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APOSTILA DE FILOSOFIA DO COLÉGIO PROTÁGORAS

Elaboradores:
Nance M. Nascente Gomes
e Pedro Gomes Neto

I. A Filosofia Grega

1.1 - O Surgimento da Filosofia


O termo filosofia nasce na cultura grega e significa, etimologicamente falando, amor à
sabedoria. Pitágoras foi quem primeiro denominou este saber por filosófico. Há, porém, dúvidas
quanto à criação da palavra filosofia. De qualquer forma, filosofia deve significar "amor à
sabedoria". Sábio é Deus. Nós homens somos, no máximo, amigo do sábio e da sabedoria.
Somos, no máximo, filósofos. O surgimento deste termo deve, também, ser compreendido no
contexto cultural grego daquela época. Foi por volta dos séculos VII e VI a.C., principalmente
neste último, que ocorreu o que os historiadores chamam de "milagre grego", isto é, a
passagem da visão mitológica para a visão filosófica do mundo.
Deve-se entender por “milagre grego” todas as manifestações em diversos campos do
saber, tais como a filosofia, a ciência, a política, as artes, as técnicas e a cultura às quais os
gregos receberam de seus ancestrais e lhes emprestaram sua originalidade. Mesmo que os
egípcios tenham construído conhecimentos matemáticos destinados à agricultura, ou os
fenícios tenham inventado o cálculo da contabilidade comercial, ou os babilônios produzido
conhecimentos sobre os meteoros, foram os gregos que sistematizaram esses saberes,
deixando-nos esse legado histórico de saberes que se transformaram em ciência matemática,
ciência agrônoma, astronomia.

1.2 – Mito e Logos

Anteriormente ao surgimento da filosofia, os homens tentavam explicar o mundo, o saber


e eles mesmos mediante fenômenos extramundanos. Tudo que acontecia na terra tinha seu
similar no céu; tudo que acontecia na terra era obra dos deuses. Dessa forma, se uma árvore
caísse, se um homem nascesse aleijado, se um rio transbordasse, o ocorrido era consequência
das divindades. A nossa realidade era advinda do extramundo. Essa era a maneira pela qual os
homens explicavam os fenômenos ocorridos aqui na terra. Essa era uma explicação mitológica
da realidade.
Conta-se que durante uma das Olimpíadas gregas, certo jovem teria vencido alguns
jogos. Indignados com as derrotas, alguns jovens gregos teriam matado o referido rapaz. Eles
só não sabiam que estavam matando o filho do Rei da ilha de Creta. O pai, indignado com a
postura dos jovens gregos, invade Atenas e puni o povo daquele lugar. Todos os anos os
atenienses deveriam enviar a Creta sete rapazes e sete moças virgens. Ao chegarem lá, seriam
apresentados ao povo de Creta e enviados a Delos. Lá seriam lançados ao mar para que
fossem comidos pelo monstro Minotauro, que vivia nos labirintos no fundo do mar. Numa
dessas viagens, um jovem com nome de Teseu teria sido enviado a Creta. Ao chegar, avista
Ariadne, filha do Rei, irmã daquele jovem que foi assassinado em Atenas. Ela se apaixona por
Teseu. Ele, por ela. A ele, Ariadne dá um novelo de lã. Teseu volta ao navio e é transportado ao
mar com o propósito de ser lançado ao monstro minotauro. Ao chegar ao destino da viagem,
Teseu amarra o novelo de lã no navio. Desce ao mar, mata o minotauro e, pela ajuda do novelo
de lã, consegue sair do labirinto e libertar o povo ateniense da punição do rei da ilha de Creta.
Porque alguns jovens mataram o filho do rei da ilha de Creta, todos pagaram. Porque um jovem
matou o Minotauro, todos atenienses foram libertos da punição do Rei. Porque alguns erraram,
todos pagaram. Porque Teseu matou o Minotauro, todos atenienses foram libertos. Esta
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mitologia grega transmitia ao povo daquela época a noção de liberdade. Trata-se de uma
liberdade coletiva. Alguns erram, todos pagam.
Mas o que se deve entender por mito? Termo muito empregado nos dias atuais, mito
assume significados muitas vezes distintos do seu sentido original. Mýthos significa “palavra”,
“sentença”, “anúncio”. O mýthos é uma tentativa de explicação do sentido essencial e total do
mundo. Ele significa a própria coisa, a realidade mesma. Somente mais tardiamente é que a
palavra mýthos vai significar “lenda”, “fábula”, “o mito”. Neste aspecto, Aírton Senna, Pelé e
Xuxa não são mitos no sentido originário do termo mýthos. O mito, em seu sentido originário,
está ligado ao sacrifício ou ao ato pelo qual o homem conquista o favor dos deuses e das forças
supremas que, a partir da visão mitológica do mundo, reinam no universo.
A filosofia surge em contraposição ao mýthos. Se o mito tinha como fundamento a
tentativa de explicar a nossa realidade mediante a existência de um outro mundo que
coordenava e regia o nosso mundo terreno, ou seja, se o mýthos tinha como expressão máxima
explicar a nossa realidade terrena mediante o mundo divino, a filosofia se contrapõe a essa
forma de explicação do mundo. A idéia originária desse saber emergente, a filosofia, era fundar
um saber que fosse irrefutável, isto é, um saber que fosse capaz de rebater todos os seus
adversários; um saber que não poderia ser refutado nem pelos homens, nem pelos deuses; um
saber, enfim, que fosse verdadeiro ou um saber que fosse absoluto, definitivo, incontroverso,
necessário, indubitável. No entanto, o fato de a filosofia se contrapor, ao seu nascimento, às
explicações mitológicas dos fenômenos mundanos não significa que este tenha desaparecido.
O surgimento da filosofia não elimina a expressão mitológica, nem a faz sobreposta a ela.
Apresentou-se uma nova forma de como interpretar os fenômenos mundanos e não uma
contraposição destruidora da leitura mitológica do mundo. A Filosofia tenta explicar os
fenômenos mundanos meidante o logos. Este termo tem diversos significados. Pode ser
traduzido por palavra, sentença, ordem, razão. Em Filosofia ele pode significar esses e outros
sentidos. No entanto, essa palavra tem maior conotação como razão. Logos seria o meio pelo
qual, a razão, os homens podem explicar os fenômenos mundanos.
Etimologicamente falando, a palavra filosofia significa amor à sabedoria, deve-se
entendê-la num contexto mais amplo da cultura grega, na qual deu seu nascimento. A filosofia
surge como busca da verdade. Compreender o princípio (arché) e a sua manifestação na
natureza (phýsis), com o propósito de conhecê-la (epistéme) e com o objetivo de ordenar
(kósmos) o caos (cháos). Em outras palavras, filosofar, inicialmente, em sua origem, é
preocupar-se com a verdade dos seres e das coisas que deve ser buscada, ordenando o caos,
com o propósito de entender como as coisas são e como elas se manifestam na natureza.
Enfim, o nascimento da filosofia é marcado pela passagem do mito à razão ou pela
construção intelectual expressa pelas investigações “científicas” e especulações filosóficas. Por
muito tempo a existência dos homens era explicada pelo mýthos. O mýthos não era concebido
como uma investigação fantástica, mas como uma revelação do sentido essencial e total do
mundo. O mýthos era a própria coisa, a verdade, a explicação de tudo que ocorria no nosso
mundo. A filosofia nasce como uma atitude de análise do mundo, do homem e do saber
mediante a razão. A filosofia surge como tentativa de explicação racional e não mitológica do
mundo. Mas o que levou os homens a mudarem seus olhares para o mundo? O que fez com
que os homens decidissem fazer “ciência” e filosofia? Por que os homens decidiram trocar a
mentalidade mitológica pela filosófica?
A questão do início histórico da filosofia e da ciência teórica ainda hoje contém pontos
controversos e continua sendo um problema em aberto. No entanto, a grande maioria dos
historiadores e filósofos admite que o nascimento da filosofia começa com o homem grego e
sua audácia de expressar o mundo pela razão (Logos) e não pela mitologia. As buscas de uma
unidade racional que pudesse organizar, integrar e dinamizar os conhecimentos são marcas da
intenção do povo grego ao criarem o saber filosófico. Essa concepção resulta, porém, de um
longo processo de racionalização cultural, acelerado a partir da destruição da antiga civilização
micênica. É a partir daí que eclode o chamado “milagre grego”, que teve na filosofia e na
ciência teórica sua expressão maior.

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Por volta do século XII a.C. os dórios chegam às proximidades do mar Egeu. Inicia-se,
aí, as civilizações micênicas, que se desenvolveram com ligações estreitas com a civilização
cretense e com contatos com os povos orientais.Os Dórios vieram do norte e dominaram a
região. Embora sejam da mesma linhagem de formação étnica dos aqueus, os dórios
apresentavam níveis civilizatórios menos acentuado do que aqueles. No entanto, possuíam
extraordinária habilidade e incontestável superioridade no tangente ao uso de utensílios e
armas de ferro, o que decidirá as invasões dóricas sobre os micênicos, que permaneciam na
idade do bronze.
A partir deste momento, o cenário filosófico começa a se formar, só se concretizando no
século VI a.C. Da Jônia surgem as epopéias homéricas e as primeiras formulações filosóficas e
cientificas teóricas dos pensadores de Mileto, Samos e Éfeso: Tales, Anaximandro e
Anaxímenes, Pitágoras, Heráclito. No entanto, considera-se Mileto como sendo o berço da
filosofia e como primeiros filósofos: Tales (cerca de 625/4-558/6 a.C.), Anaximandro (cerca de
610-547 a.C.) e Anaxímenes (cerca de 585-528/5 a .C.).
A filosofia nasce na Grécia Antiga, basicamente em Mileto, e sua intenção foi e é
alcançar a verdade. A própria palavra filosofia refere-se a isso. Se considerarmos que o termo
sophós, sapiente, termo base à palavra sophia, tal como o adjetivo Saphés (“clãs”, “verdadeiro”
etc) e que phaós, “luz”, então “filosofia” significa o interesse por tudo aquilo encontrando-se
sobre a luz afaste-se da escuridão. Ou seja, “filosofia” significa o interesse pela verdade, a
busca da verdade, pelo menos no momento emergente deste saber.
O nascimento da filosofia é marcado pela preocupação dos homens no que diz respeito à
busca da verdade das coisas e dos seres, relegando a explicação mitológica e assumindo uma
interpretação racional do mundo, do homem e do saber. Este saber tem características próprias
no século VI a.C., quando emerge a filosofia com Tales, Anaximandro e Anaxímenes, todos de
Mileto.
Tales, Anaximandro e Anaxímenes tentaram conceber um princípio unificador de tudo
que há no mundo. Princípio este que fosse racional, mundano e que não se rendesse às
explicações mitológicas, vigentes naquela época. Segundo Tales, a água era o elemento
unificador de tudo que há no mundo. Para Anaxímenes, o ar era o que mantinha a ordem do
Kósmos. Anaximandro defendia que o indeterminado e não a água ou o ar era o “elemento”
que congregava todas as coisas e seres distintos no mundo. Portanto, o início de filosofia é
marcado pela busca de um ponto fixo, unificador e racional que pudesse, a partir dele, orientar
os homens na busca da essência de todas as coisas.

1.3 – Os Pré-socráticos

A) HERÁCLITO (Cerca de 540-470 a.C.)

Não se sabe ao certo a data de sua existência. Sabe-se, no entanto, que Heráclito viveu
entre os séculos VI e V a.C. De personalidade forte e caráter desconcentrado bem como
temperamento esquivo e desdenhoso, Heráclito foi considerado o filósofo obscuro. Deixou-nos
fragmento de uma obra que, segundo contam alguns especialistas em filosofia antiga, teria
escrito sob o título Sobre a Natureza.
Primeiro filósofo representante da corrente dialética, Heráclito teria iniciado o contexto no
qual aparecerá a palavra dialética, expressão que, doravante, nunca mais saiu do cenário
lingüístico do campo filosófico. Concebia a natureza como algo dinâmico, em fluxo constante,
daí ser considerada sua filosofia como mobilista. Segundo sua filosofia, tudo estava em fluxo
constante; tudo se transformava constantemente, movido pela luta entre contrários. Dizia
Heráclito que dos contrários nasce a mais pura harmonia.
Filosoficamente, seu pensamento ficou marcado pelo atributo da tese por ele defendida
de que os seres e as coisas estão em fluxo constante, em vir-a-ser, em movimento. Heráclito
defendia a tese de que há uma eterna mudança, a realidade é um éter, muda-se
constantemente e a todo tempo. Por esse motivo estamos numa mudança sem fim, num devir

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constante.
Heráclito foi muito divulgado por sua célebre frase: “ninguém entra por duas vezes no
mesmo rio”. Na primeira vez que se entra em um rio, tanto o rio quanto o homem são
determinados. Na Segunda vez, tudo já mudou, eu não sou o mesmo homem nem ele é o
mesmo rio. Tudo muda, tudo se transforma. Estamos em fluxo constante de mudança de devir,
num vir-a-ser permanente.

B) PARMÊNIDES (Cerca de 530-460 a.C.)

Parmênides nasceu em Eléia e viveu entre 510 a 470 a.C., aproximadamente. Ficou
conhecido como o filósofo que se opôs à filosofia de Heráclito. Segundo Parmênides, só há
duas formas de como interpretar a natureza: o caminho da filosofia, da razão, da essência, do
ser e o da opinião, da crença, da ilusão, o caminho de Heráclito.
Para Parmênides, só o ser é e somente ele pode ser pensado. O não-ser, ou o vir-a-ser,
não é e, por não ser, não pode ser pensado. Heráclito defendia exatamente o contrário da
filosofia parmenídica: tudo está em vir-a-ser constante. Segundo Parmênides, para que uma
coisa se movimente, se transforme, se altere é necessário, antes de tudo, ser alguma coisa.
Portanto, inicialmente há o ser. Isto não quer dizer que Parmênides aceite a tese da mobilidade,
do movimento, defendida por Heráclito.
Um discípulo de Parmênides, Zenão de Eléia que viveu aproximadamente entre 488-430
a.C., também pertencente à escola dos pensadores eleáticos, tentou demonstrar que a própria
noção de movimento era falsa e que, portanto, só havia repouso. O paradoxo de Zenão tenta
defender que só há repouso e nada se transforma na natureza. O exemplo por ele empregado
trata da corrida de Aquiles para alcançar certa tartaruga.
A aporia de Zenão levanta uma hipótese inicial de que Aquiles andaria sempre a metade
do espaço restante entre ele e a tartaruga. Andando sempre a metade do espaço restante, a
pergunta de Zenão se norteia pela possibilidade ou noção de Aquiles alcançar a tartaruga.
Andando a metade do espaço restante, perguntava Zenão, Aquiles conseguiria ou não alcançar
a tartaruga? Se se anda sempre a metade do espaço restante, do espaço que há entre Aquiles
e a tartaruga, este nunca haveria de alcançar a tartaruga. Sempre haveria um espaço restante,
certa distância entre Aquiles e a tartaruga.
A conclusão da aporia de Zenão é que se Aquiles nunca alcança a tartaruga, pois
sempre haverá um espaço entre ele e a tartaruga, o movimento é ilusório e só há repouso, tese
defendida por seu mestre Parmênides. Só há o ser; o movimento é ilusório, esta é a tese de
Parmênides e a intenção de Zenão: provar que Heráclito estava errado e que só há repouso e
não movimento constante.
Segundo um número considerável de especialistas há, no surgimento da filosofia, certa
divisão temática que distancia os primeiros pensadores: Tales, Anaximandro e Anaxímenes dos
seus sucessores: Pitágoras, Heráclito e Parmênides. Os primeiros são considerados
pensadores cosmológicos, pois se interessavam com os problemas da ordem cósmica. Os
últimos, Pitágoras, Heráclito e Parmênides estariam interessados com as questões ontológicas
e não exatamente cosmológicas.

2 – Platão
2.1 – Sócrates: ironia e aporia

2.1.1- A Ironia Socrática


O sentido geral em língua portuguesa da palavra ironia é interrogação. Consiste no modo
de dizer o contrário daquilo que está pensando ou sentindo. O sentido do termo ironia por
Sócrates é empregado em subestimar a si mesmo quando no diálogo com os outros. A própria
célebre frase de Sócrates; “Tudo que sei é que nada sei” é exemplo de ironia. Sócrates tinha
ciência de que o conhecimento era sempre inacabado e que nunca alguém poderia saber todas
as coisas. Pior ainda, os seres e as coisas são idéias, essências, antes mesmo de serem

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corpos. Essas essências não nos pertencem nem foram criadas por homem algum. Dessa
forma, por mais que saibamos sobre o mundo dos corpos no que tange às essências, às
coisas-em-si-mesmas, às idéias dos seres e das coisas, nada de verdadeiro saberemos. Por
esse motivo somos todos ignorantes e nada sabemos, a não ser que saibamos que nada
sabemos. Mas essa afirmação tem cunho irônico porque Sócrates, ao ser julgado, queria
afirmar que ele sabia nada saber e não se atrevia a julgar nenhum homem. No entanto, seus
juízos achavam-se sabedores da verdade e o julgavam. A assertiva “tudo que sei é que nada
sei” serve a Sócrates como parte de um discurso no qual ele, ironicamente, defende saber mais
do que os outros, aqueles que o julgavam. E exatamente por saber que não sabia verdade
alguma, não tinha a pretensão de julgar qualquer homem ou coisa que fosse. Assim sendo,
Sócrates queria dizer o contrário do que afirmava: “sei que nada sei”. Pretendia o filósofo dizer
que sabia mais do que seus juízes e por isso mesmo não julgava ninguém.

2.1.2 – Aporia

A palavra aporia guarda em si o sentido de dificuldade. Mas não se trata de qualquer


dificuldade. Aporia significa dúvida racional, uma dificuldade interna a uma teoria. Trata-se de
um problema dentro de uma teoria. Sabe-se, por exemplo, que a geometria lida com pontos,
figuras, retas etc. No entanto, caberia a pergunta: o que é um ponto, uma reta, um círculo? Este
é um problema interno a uma teoria. Trata-se de uma aporia, um problema interno a uma teoria
e não um problema qualquer.
A filosofia de Sócrates sofre grande influência desse termo. Sócrates pensava
aporeticamente. Isto quer dizer que Sócrates duvidava constantemente de todas as coisas.
Uma vez que todas as coisas e seres do cosmos foram formados, inicialmente, por idéias e
admitindo que elas não nos pertencem ou que nós não fizemos idéias, essência de nada, só há,
em termos de conhecimento, a possibilidade de nos mantermos em eterna dúvida. Daí seu
discurso ser aporético.

2.1.3 – Conclui-se que o pensamento de Sócrates guardava em seu bojo características


específicas que muito influenciaram a cultura ocidental. Sua filosofia se caracteriza pelo
diálogo, sobre problemas importantes (aporéticos) e não sobre quaisquer divagações. Seu
método, no entanto, se caracterizava pela ironia, pelo questionamento através do qual ele se
subestimava diante dos seus interlocutores, com propósito claro de levá-los à reflexão, ao
questionamento, à verdadeira filosofia.

2.1.1- Platão e sua obra

Platão viveu na Grécia por volta de 428/427 a 347 a.C., aproximadamente. Eminente
filósofo grego, Platão ficou conhecimento como um dos mentores da filosofia que florescia há
aproximadamente duzentos anos. Nascido em Atenas, Aristócles - nome verdadeiro de Platão -,
nos relata Aristóteles que seu mestre teria sido discípulo de Crátilo e seguidor de Heráclito. A
grandeza de seu saber nos inclina a pensar em um homem que ultrapassou sua formação
originária e conseguiu discutir problemas e apontar teses sobre diversas questões passíveis de
análises naquele momento histórico, ao mesmo tempo em que nos legou indagações e
reflexões sobre temas ainda hoje discutíveis.
Sua obra é vasta. Platão nos deixou trinta e seis trabalhos, trinta e quatro diálogos, a
Apologia de Sócrates e as Cartas. Segundo Giovanni Reale – Historiador da Filosofia - e
seguindo a orientação do gramático Trasilo, baseando-se no conteúdo dos escritos de Platão, a
subdivisão da obra de Platão se daria em nove tetralogias:

I. Eutifron, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon;


II. Crátilo, Teeteto, O Sofista, A Política;
III. Parmênides, Filebo, O Banquete, Fedro;

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IV. Alcebíades I, Alcebíades II, Hiparcos, Os Amantes;
V. Teages, Cármides, Laqués. Lísis;
VI. Eutidemo, Protágoras, Górgias, Ménon;
VII. Hípias menor, Hípias maior, Íon, Menexeno;
VIII. Clitofonte, A República, Timeu, Crítias;
IX. Minos, As Leis, Epinome, Cartas.(Reale, 1990: 127).

No entanto, a disposição cronológica acima apresentada é uma das diversas tentativas


de identificação e disposição da obra de Platão em uma seqüência lógica. Para tal, muito já foi
proposto e desenvolvido. Já analisaram a cronologia da obra de Platão por tema, por
amadurecimento de idéias, pela doutrina das idéias, pela doutrina dos não-escritos. Em suma, o
que é ponto chave na investigação da cronologia das obras de Platão é sua incerteza.
Independente dessa intrigada investigação, Platão foi um dos pensadores mais
significativos do Ocidente. Em sua ‘Alegoria da Caverna’, Platão, com muita maestria, nos legou
uma das passagens mais significativas e belas que a história da filosofia ocidental conheceu.
Das diversas formas de como se abordar a obra de Platão, nossa escolha se pauta pela análise
da ‘Alegoria da Caverna’, confrontando-a com outros diálogos, privilegiando três temas: α)
educação; β) conhecimento e γ) homem.

2.1.2 - A Alegoria da Caverna

A ‘Alegoria da Caverna’ é descrita por Platão em seu diálogo A República. Este, por sua
vez, é composto por dez livros. A ‘Alegoria da Caverna’ aparece no sétimo livro da obra
supracitada. Os livros anteriores discutem, dentre outros assuntos, sobre a educação e a
possibilidade de uma sociedade justa. De repente, surge tal caverna descrita por Platão. Trata-
se do início do livro sétimo da República. Relata Sócrates:

Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância.
Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses
homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem
ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma
fogueira acessa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada
ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias
que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.(Platão,
2000: 225).

A descrição da ‘Alegoria da Caverna’ se inicia por apresentar o tema a ser investigado: a


natureza humana. Esta, por sua vez, poderia ser abordada e investigada de diversas formas.
Poder-se-ia analisar a natureza humana no que diz respeito à formação normativa, à “alma”
(psyché), ou no que tange aos desejos dos homens. Platão, nessa passagem, propõe que se
investigue a natureza humana no que tange à educação ou à falta dela. Com este propósito,
Platão inicia a descrição literal de sua caverna. Haveria uma caverna subterrânea habitada por
homens acorrentados pelos pés e pescoço, olhando para o interior da mesma. Atrás deles
arderia um fogo a certa distância. Entre os homens acorrentados e o fogo passaria um muro,
em cima do qual desfilariam animais, vegetais e minerais, ou seja, seres de todas as ordens.
Alguns homens passariam calados, outros, falando. Na parte superior da caverna estaria uma
luz e um fogo. Aquela abarcaria toda a caverna.
Literalmente, esta seria a caverna de Platão. Uma luz na parte superior iluminaria toda a
caverna. Dentro desta encontram-se fogo, muro e homens, numa disposição de superioridade à
inferioridade. Abaixo da luz há fogo, depois, muro e, por fim, homens. Estes se encontram
atados pelos pés e pescoço. Presos pelos pés, estes homens estariam ligados a terra, ao
mundano, à realidade fenomênica. O pescoço locomove a cabeça e possibilita, em sentido
figurado, o olhar que os homens poderiam ter sobre eles mesmos, a natureza, o saber.

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O interlocutor de Sócrates é Glauco. Após a descrição feita por Sócrates da caverna,
Glauco afirma que está acompanhando o relato de Sócrates. Platão, por intermédio de
Sócrates, continua a descrição da caverna. Diz Sócrates:

Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o
transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre
esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.(Platão, 2000: 225)

Imagina ainda, diz Sócrates a Glauco, que há um muro e em cima dele passam seres de
todas as ordens: animais, vegetais e minerais, conduzidos por transportadores que passam
falando ou não. Ou seja, o fogo que arde atrás do muro incide luz nos objetos que passam em
cima do muro, gerando uma sombra no interior e parte mais baixa da caverna. Nesse instante
da análise da ‘Alegoria da Caverna’, Platão já nos apresenta a possibilidade de uma
interpretação sobre a educação. Há um muro e em cima dele passam seres de todas as
ordens. Arde um fogo atrás do muro que, por sua vez, lança seus raios nos objetos que
transpassam pelo muro. Quando os raios incidem nos objetos projetam-se sombras no interior
da caverna, local onde se encontram os homens acorrentados.
Os homens atados pelos pés e pescoço só podem ver o que se passa diante deles.
Voltados para o interior da caverna, estes somente se refeririam aos objetos que foram
projetados pela luz do fogo ao interior da caverna. Esses homens só podem ver o que lhes são
dispostos, o que está diante deles, no interior da caverna, lá embaixo. Se o fogo incidiu nos
objetos que passavam em cima do muro e esses foram refletidos no interior da caverna, os
homens acorrentados só poderiam ver as sombras desses objetos e não eles próprios.
Glauco se espanta com tal descrição e se refere a Sócrates dizendo se tratar de um
quadro estranho e de estranhos prisioneiros. Que caverna é essa? Que homens e correntes
está-se referindo? Que situação esquisita é essa de, após seis livros discutindo sobre
educação, justiça etc, Sócrates apresenta certa caverna subterrânea, com homens
acorrentados, muro, fogo, sol? Por que a alusão a uma caverna?
Mais curioso ainda é a resposta de Sócrates: “Assemelham-se a nós”. Nós somos a
própria caverna-prisão. Somos educados desde a infância a olhar o mundo da forma como nos
propõem as pessoas com as quais convivemos. Desde crianças somos atados às
interpretações que as outras pessoas fazem do mundo. Essas direcionam nossos olhares ao
imediato e simples.

2.1.3 - A Tarefa do Filósofo - educação


Diante dessa situação, somente duas possibilidades se fazem possíveis. Num primeiro
momento, a caverna-prisão expressa a instrução. Somos instruídos a ver o mundo como ele se
apresenta, de forma simples e imediata. A nossa opinião diante do mundo, de imediato, se torna
a nossa verdade. Não há, nesse momento, distinção entre opinião e conhecimento. A minha
sensação já é a minha verdade. O meu contato com o objeto que se coloca imediatamente
diante de mim, já é a minha verdade. Opinião (doxa) e conhecimento (epistéme) não se
separam. Platão vai se opor a este argumento.
Num segundo momento haveria a possibilidade de que, mediante essa situação, fosse
possível a educação. Há a possibilidade dos homens soltarem suas amarras e mudarem de
olhar. Nesse caso, a instrução cederia lugar à educação. Os homens não mais se relacionariam
com os objetos simples e imediatos, as sombras, mas se encaminhariam a outra forma de
interpretação do mundo, do homem e do saber.
Dessa forma, há a possibilidade de duas formas de educação. Ou os homens são
instruídos a ver o mundo como algo imediato e simples, apreendendo os objetos do mundo,
mediante as sombras que eles projetam, ou são educados a olhar os próprios objetos e não
suas sombras projetadas no interior da caverna. Duas são, portanto, as formas de educação:
educa-se, digo instrui-se, para as sombras ou para a luz, o sol, os próprios objetos, a verdade,
o conhecimento. Em suma, instrui-se para o mundo das sombras ou educa-se para o mundo
das idéias.

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Platão faz distinção hipotética entre dois mundos. Um superior, denominado mundo das
idéias, inteligível. Este se dispõe em Idéia e idéias, representadas pelo Sol e pelo fogo,
respectivamente. A Idéia seria a verdade, as idéias, as essências. Abaixo do mundo inteligível
encontra-se o mundo das sombras, sensível. Este, por sua vez, relaciona-se ao muro e aos
homens e sombras, no interior da caverna. Nele encontramos o imediato e simples, os corpos.
Assim, podemos escolher na hora de decidirmos sobre a educação. Ou instruímos e aí
nos encontramos no mundo dos objetos e das sombras, instruindo as crianças a olharem o que
está diante delas, como imediato e simples, ou, então, nos decidimos pela educação e aí nos
encontramos no mundo inteligível, mundo das idéias.
Suponhamos que um desses homens que se encontram acorrentados consiga soltar
suas amarras e se encaminhar à luz (ao mundo das idéias (essências) e, depois, à Idéia
(verdade)). Lá chegando veria que os seus amigos da caverna-prisão tomam por verdade os
corpos, o sensível das coisas e não as próprias coisas, suas essências, suas idéias. Dessa
feita, altera-se o olhar desse homem que conseguiu se libertar, ao mesmo tempo em que ele
sente a necessidade de falar aos outros, seus amigos de caverna, que haveria a possibilidade
de alterarem seus próprios olhares e ver as coisas de forma diferente daquela que foram
instruídos a ver.
Num primeiro momento, presencia-se a dialética ascensional. Trata-se da dialética que
sobe às luzes. Lembrem-se de que o mundo das sombras é também denominado Létheia,
escuridão, bem como o mundo das idéias é expresso por Alétheia, luz, claridade. A dialética é a
saída do mundo da escuridão ao mundo da luz, da verdade, real. A dialética ascensional é a
subida daquele que conseguiu se soltar do que o prendia no mundo sensível e se encaminhar
ao mundo da verdade, mundo das idéias e da Idéia.
Posteriormente à sua subida ao mundo da verdade, aquele que saiu da caverna tem a
tarefa de retornar ao mundo das sombras, o mundo da Alétheia e iniciar as pessoas que lá se
encontram ao caminho do conhecimento. Em termo figurado, fazer com que as pessoas
acorrentadas soltem suas amarras, por elas mesmas, e se encaminhem ao mundo da luz.
No entanto, pode parecer que o filósofo, aquele que conseguiu sair da caverna-prisão,
tem como, tarefa imposta exteriormente a ele, fazer com que os filósofos retornem ao mundo
das sombras e cumpra a sua missão. Não se trata de uma disposição nem imposta de fora para
dentro, nem mesmo por compaixão ou piedade que o filósofo se propõe a essa tarefa, mas
simplesmente pela possibilidade de manutenção de sua própria vida. Uma vez que alguns ou
até mesmo todos consigam ver que há a possibilidade de olhar o mundo de forma diferente da
das sombras, o filósofo estaria ao mesmo tempo iniciando as pessoas ao caminho do
conhecimento e possibilitando a si mesmo a tese socrática do conheça-te a ti mesmo. Sua
missão não é para os outros, mas para sua própria sobrevivência e, ao mesmo tempo, a de
todos.
Enfim, a tarefa do filósofo é a de um educador. Iniciar as pessoas ao caminho do
conhecimento é o que cabe àquele que conseguiu sair da caverna e ver que era educado via
sombras e não verdade. No entanto, educador é iniciar e não levar à força os acorrentados ao
saber. Cada um deve por si só soltar as suas próprias amarras e se encaminhar à verdade.

2.1.4 - Alegoria da Caverna e Antropologia Filosófica - homem

A antropologia filosófica platônica pode ser considerada, assim como seu sistema, uma
síntese entre a tradição pré-socrática, Sócrates e Sofistas. Da tradição pré-socrática, Pitágoras
e sua noção de Forma, Heráclito e o problema vir-a-ser e Parmênides e o fundamento no ser
dão testemunhos da articulação filosófica platônica. A noção de Forma irá contribuir
decididamente para a formulação da doutrina das idéias. O problema heraclítico do vir-a-ser
contribuirá para a formulação onto-lógica platônica com um princípio norteado pelo devenir (vir-
a-ser), pelo movimento, não-ser. Por outro lado, mas contribuindo para a arquitetônica do
pensamento filosófico platônico, encontra-se Parmênides e seu pensamento originário no

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mundo filosófico Grego: só o ser é e somente ele pode ser pensado. O não-ser não é, e,
portanto, por não ser, não necessita ser pensado, já que não é.
Inicialmente, essas três vertentes da filosofia pré-socrática corroboram com a síntese
platônica. “O ser, de certa forma, não é e o não-ser, de certa forma, é”, dirá Platão no diálogo
Sofista. Em outros termos, Platão sintetiza e articula as doutrinas de Parmênides e Heráclito,
culminando numa concepção de Idéia, muita influenciada por Pitágoras. O ser é e não é. O
não-ser não é e é. Há, em última instância uma participação do não-ser no ser. O princípio do
movimento fica garantido. Platão pensa ao mesmo tempo em Heráclito e Parmênides. No
entanto, sua articulação se completa à medida que Pitágoras o influencia no que tange à noção
de idéia. Aí, sim, Platão pode pensar na noção de participação e a um só tempo abordar o ser
em movimento numa síntese superior que vise à Idéia.
Numa primeira articulação, Platão arquitetona seu pensar filosófico na congruência das
filosofias de Heráclito, Parmênides e Pitágoras. Uma primeira elaboração de sua antropologia
filosófica pode ser sentida na influência dos pré-socráticos, na qual há relação imediata entre o
homem e o Kósmos. Num segundo momento, no entanto, aparece a necessidade de se discutir
a tradição sofística do homem como ser de Paidéia, ser de cultura, de discurso, de razão
destinado à vida pública. Há, também, a influência da filosofia de Sócrates e o problema da
psyché, da alma.
Segundo Henrique Vaz, no que tange à antropologia filosófica, em Platão congrega-se
duas forças teóricas. De um lado, os diálogos da morte (Apologia, Críton, Ménon, Fédon)
apresentam o tema do logos. Do outro, a idéia do homem é pensada na perspectiva do amor,
apresentada nos diálogos relativos à teoria do amor (Lisis, Banquete, Fedro).1 De um lado, o
logos nos apresenta a teoria das idéias. As idéias das coisas foram inscritas em nós. O
conhecer, nessa perspectiva, comunga com a reminiscência da alma em busca do Primeiro
Amigo, expressa no diálogo Lisis e corroborada com o mito da parelha alada, no Fedro. Neste,
uma carruagem mira a transcendência. Conduzida por um cocheiro e alguns cavalos, a
carruagem expressa pelo mito da parelha alada, aponta para a alma, o mundo das idéias.
Na República, a tricotomia da alma em racional, irascível e concupiscível conduz o
problema da antropologia ao plano da Paidéia, da formação do indivíduo à vida pública justa, na
unificação entre logos e Eros na perspectiva da contemplação entre as idéias do Belo e do
Bem. No Timeu também seria possível encontrar essa dimensão de simetria e proporção entre
logos e Eros com a descrição da formação do universo e da estrutura do corpo e da alma. O
homem é considerado na perspectiva da unificação do corpo com a alma, com a teleologia
(finalidade) da alma racional que possibilitaria a categoria da harmonia.
No Crátilo, Platão afirma que os homens são os únicos que contemplam o que vê. Os
outros animais não examinam o que vêem, nem o analisam nem o contemplam. O homem, ao
contrário, contempla e analisa o que vê. Este tem corpo e alma. Por psique ou alma indicam
que esta está no corpo como a causa da vida, o que a anima (Crátilo, 399d-e). A alma “... é o
que mantém e movimenta a natureza de todo corpo, para que este vive e se mova...” (Crátilo,
400a). A alma é o entendimento, “... o primeiro mantenedor e regulador da natureza” (Crátilo,
400a). A psique é a força que movimenta e mantém a natureza (ver Crátilo, 400b)
O corpo, por sua vez, é passível de várias interpretações. Basta que o modifiquemos.
Para o orfismo, o corpo (sôma) é a sepultura (sêma) da alma . É por intermédio do corpo que a
alma dá expressão ao que quer manifestar. Assim os órficos o denominam, por defenderem que
a alma sofre castigos pelas faltas que foram cometidas, sendo o corpo um receptáculo ou
prisão da alma até que ela cumpra a sua pena.
Num outro viés de leitura, os pressupostos da teoria sofística acerca da natureza
humana, da narração histórica, da relação entre convenção (nómos) e natureza (phýsis), do
individualismo relativista, o desenvolvimento progressivo cultural, do homem como ser de
necessidade e carência e do homem como ser de logos contribuíram decididamente na
formulação da antropologia filosófica platônica. Em suma, surge com os sofistas a concepção
do homem como logos, ou seja, ser de razão, animal racional e como ser de palavra, retórica.
1
Ver LIMA VAZ, H.-C. Antroplogia Filosófica I. são Paulo: Loyola, 1991, p. 36-37. (Col. Filosofia).
9
Os sofistas defendiam a proposição de Parmênides de que só o ser é e somente ele
pode ser pensado. No entanto, vivemos enquanto fenômenos, no vir-a-ser, no fluxo das coisas
e dos entes. No fluxo do mundo, no movimento dos corpos, no vir-a-ser dos entes e das coisas,
o que se manifesta é o não-ser. Desta forma, nosso mundo seria ilusório, uma vez que só o ser
é e o não-ser é exatamente o lugar (topos) no qual nos encontramos e vivemos.
Sócrates, de outra forma, visava uma teleologia à medida que sustenta seu pensar
mediante o finalismo intelectualista do bem. A influência socrática em Platão é decisiva. No que
tange à elaboração de sua antropologia filosófica, o conheça-te a ti mesmo socrático e sua
maiêutica marcaram decididamente a concepção platônica do homem.

2.1.5 - Alegoria da Caverna e Conhecimento


A questão do conhecimento segundo Platão se situa num corpus que pode ser
investigado a partir de vários enfoques distintos. A Alegoria da Caverna, opção de caminho
apontada acima, pode nos fornecer uma dessas possíveis via de acesso ao que vem a ser
conhecimento para Platão.
Num de seus diálogos, Platão refere-se ao sol a partir das considerações dóricas como
tendo seu nome o significado de Hálios “... porque ele reúne os homens num mesmo lugar
quando nasce, ou então porque gira incessantemente em torno da terra...” (Crátilo, 409 a). Na
‘Alegoria da Caverna’, o sol que ilumina e abarca toda caverna assume no decorrer deste
diálogo o significado de idéia de Bem-em-si-mesmo. O sentido de geração está presente em
ambas as passagens. O sol seria a idéia de Bem-em-si-mesmo, a verdade, a origem das
essências e dos corpos.
O caminho do conhecimento deve seguir gradualmente das sombras ao conhecimento.
Os homens devem se acostumar a olhar as sombras, os corpos, os objetos mesmos, as idéias
e por fim a idéia de Bem-em-si-mesmo, a verdade, a alma ou o entendimento, “... o primeiro
mantenedor e regulador da natureza” (Crátilo, 400a).
Platão, diferentemente dos sofistas, diferencia opinião (doxa) de conhecimento
(episteme). Para os sofistas, cada homem é a sua própria medida. Segundo Protágoras, “o
Homem é a medida de todas as coisas”. Dessa forma, não há como distinguir opinião de
conhecimento, já que cada homem é o seu próprio padrão de medida. Além disso, a sofística
assume que todo discurso equivale a qualquer outro, e que, portanto, não haveria como afirmar
que um fosse mais verdadeiro do que outro. Todos os discursos são equivalentes. Não há
verdade, mas todas as opiniões merecem valor semelhante. Assim, não há como distinguir uma
proposição de outra. Todas têm igual valor de veracidade. Opinião e conhecimento, dessa
forma, não se separam. A filosofia de Platão defende o contrário desse pressuposto.

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2.2 A SEGUNDA FILOSOFIA SISTÊMICA DO OCIDENTE: ARISTÓTELES

2.2.1 – Aristóteles e o conhecimento

Aristóteles (384-322 a.C.) ao lado de Platão foram os dois grandes filósofos sistêmicos da
filosofia grega antiga. A descoberta da lógica permitiu-lhe construir a sua “teoria do
conhecimento”. Como a expressão do conhecimento vem via palavras, inicialmente o filósofo de
Estagira analisou a linguagem. Discute-se a questão gramatical, na qual o sujeito da frase
equivale à substância. A este se predica algo. Por exemplo: Sócrates é mortal. A substância
/sujeito é Sócrates; o predicado, mortal.
Pela gramática é possível que a proposição, por exemplo: “Sócrates é mortal” afirme a
verdade do ser e da coisa. Para isso, impõe-se o princípio da não-contradição, tema já
desenvolvido por Parmênides, segundo o qual uma coisa ou é ou não é, de forma que uma
afirmação não pode contradizer-se a si mesma: a coisa é ou não é; ela não pode ser e não ser
ao mesmo tempo.
As proposições, regidas pelo princípio da não-contradição, formam um conhecimento. Para
que isto seja possível é necessário que haja um encadeamento lógico, denominado silogismo.
Exemplo clássico de silogismo é: Todo homem é mortal; Sócrates é homem; logo, Sócrates é
mortal. Tem-se três proposições. Se as duas primeiras forem verdadeiras, a terceira, a
conclusão, também o será. As duas primeiras preposições são denominadas premissas, maior,
a primeira, menor, a segunda.
No entanto, o conhecimento, segundo Aristóteles deve ser conhecimento do que realmente
existe. A lógica é somente um instrumento para que se alcance tal conhecimento. Se por
exemplo eu disser que Todos os homens são brancos; Paulo é homem; logo, Paulo é branco é
um silogismo correto, mas não verdadeiro. Isto porque a premissa todos os homens são
brancos não é proposição verdadeira.
Aristóteles critica a teoria das idéias de Platão, segundo a qual há um mundo inteligível e um
mundo sensível, dela separado. No entanto, Aristóteles aceita a tese de que o saber busca o
que é fundamental, o universal. Mas, segundo Aristóteles, esse universal não é algo apartado
do nosso mundo. Se somente as coisas do nosso mundo são reais e, por isso, o universal
existe nas coisas individuais, é preciso que os sentidos sejam o ponto de partida para o
conhecimento. Desta feita, Aristóteles formula duas teses fundamentais: (1 a) a ciência como
conhecimento verdadeiro e certo; (2a) a ciência como conhecimento universal.
Aristóteles concebe a ciência como conhecimento verdadeiro e certo. Para tal distinguiu a
ciência em três grandes ramos: 1) ciências teoréticas, ciências que buscam o saber em si
mesmo; 2) ciências práticas, que buscam o saber para alcançar a perfeição moral; 3) ciências
poiéticas ou produtivas, que buscam o saber em função do fazer, isto é, para produzir
determinados objetos. Assim, ciências mais elevadas são as do primeiro ramo de ciência,
constituídas da metafísica, física e matemática.
A ciência, segundo Aristóteles - e da mesma forma que a interpreta Platão -, opõe-se à
opinião. A ciência é conhecimento do que é, do ser enquanto ser, da substância, diz Aristóteles.
Trata-se de investigar a questão fundamental da metafísica, o ser. A opinião pode ser ou não
ser. É algo contingente (que pode ou não ser). É acidental. Se só o necessário pode ser objeto
de ciência, a opinião não serve para o discurso científico. Diz Aristóteles que a “... obra de
ambas as partes intelectuais é a verdade” (Ética, L.VI,3).
Sobre o conhecimento científico, afirma Aristóteles: “Todos nós supomos que aquilo que
sabemos não é capaz de ser de outra forma” (Ética, L.VI,3). O objeto do conhecimento
científico existe necessariamente, donde se segue que é eterno (Ética, L.VI,3). As coisas
eternas, por suas vezes, são ingênitas (inatas) e imperecíveis.
Para Aristóteles, não há ciência do contingente, do acidental, dado ele ser inconstante. Só
há ciência do ser, da substância. Na Metafísica, afirma Aristóteles que “... toda ciência versa
sobre o que é sempre ou ordinariamente, e o acidental não se inclui em nenhuma destas

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classes” (Metafísica, L. XI). Mas o objeto de ciência, segundo a concepção aristotélica, só pode
ser necessário se o ligarmos à sua causa. E o objeto da ciência aristotélica é o necessário e
não o contingente. Desta feita deve-se saber qual a sua causa e como essa causa o produz, ou
como o objeto depende de sua causa, de forma tal que o conhecimento científico é
essencialmente conhecimento pela causa.
No ‘Livro I’ da Metafísica, Aristóteles distingue o conhecimento causal do conhecimento
pelas causas, ou seja, o conhecimento da causa e o conhecimento do efeito, ou o
conhecimento verdadeiro do conhecimento pelas experiências. Não se pode conhecer somente
o que, mas o porquê das coisas. Conhece-se pelas causas e não pelas conseqüências. Para
tal, Aristóteles formulou a teoria das quatro causas: causa material, causa formal, causa
eficiente (ou potencial, ou motriz) e causa atual (ou final) (Metafísica, L.I).
A Metafísica de Aristóteles é uma de suas obras na qual o problema do conhecimento é
apresentado. Em outras obras, como é o caso da Ética a Nicômaco e na Lógica, Aristóteles
também aborda este tema. A Metafísica é dividida em quatorze livros. No livro I ou A, Aristóteles
abordará especificamente o problema do conhecimento. Diz o estagirita: “Apesar disso,
pensamos que o conhecimento e a compreensão pertencem antes à arte do que à experiência,
e julgamos os teóricos mais sábios do que os empíricos (de onde se conclui que em todos os
homens a Sabedoria depende, antes de tudo, do conhecimento); e isso porque os primeiros
conhecem as causas, e os segundo, não. Com efeito, os empíricos sabem que a coisa é assim,
mas ignoram o porquê, enquanto os outros conhecem o porquê e as causas” (Metafísica, L. I).
O problema não é outro do que aquele de afirmar que o objeto deste primeiro livro é o de
identificar a ciência que aborda os princípios e as causas ou mesmo de indicar a ciência dos
primeiros princípios e das primeiras causas. No entanto, desde o início, Aristóteles apresenta o
desinteresse em outras coisas senão o próprio conhecimento ao afirmar que os homens, por
natureza, tendem ao saber.
No ‘Livro I’ de sua Metafísica, Aristóteles descreve os diversos ramos do saber até
alcançar a filosofia e defini-la como a busca da Sabedoria ou o saber que se dispõe ao
conhecimento da verdade por meio das primeiras causas e dos primeiros princípios. Essa
ciência é a sabedoria e seu estudo é a filosofia, de forma que a filosofia primeira (ou a
Metafísica) é a ciência das primeiras causas, a ciência do Ser ele mesmo. Por isso a Metafísica
investiga a substância, o ser enquanto ser, isto é, é do ser enquanto ser que se procuram as
primeiras causas. Esta é a proposta do ‘livro IV’, busca do ser enquanto ser. Busca-se “... os
primeiros princípios e as primeiras causas supremas...” (Metafísica, 1003a).
Ao se referir ao ser, pode-se, pela linguagem, dizê-lo da forma como bem desejar, mas
um fato não pode ser mudado: refere-se a algo, a um ser e não a nada. Diz Aristóteles que “...
são vários os sentidos em que dizemos que uma coisa “é”, mas todos eles se referem a um só
ponto de partida” (Metafísica, 1003b). Trata-se da tarefa de uma só ciência, a investigação do
ser enquanto ser (Metafísica, 1003b). Ou seja, busca-se o princípio das coisas, sua substância.
Mas o que Aristóteles entende por substância? Em sentido genérico, substância significa
estrutura necessária. Aristóteles definiu substância como aquilo que é necessariamente aquilo
que é e aquilo que existe. Ambas as determinações encontram-se na sua obra Metafísica.
Primeiramente, Aristóteles definiu por substância a essência necessária. Trata-se do objeto
próprio do conhecimento científico. A segunda definição determina a substância como aquilo
que existe necessariamente (ver Metafísica, 1031a/1031b). Em outros termos, toda coisa é em
virtude da essência necessária e, portanto, tudo aquilo que há de real ou de cognoscível nas
coisas faz parte da essência necessária e existe necessariamente. Conclui-se que substância,
segundo Aristóteles, significa a estrutura necessária do ser na sua concatenação causal. Isto
porque todas as espécies de causas são determinações da substância. Neste sentido, a causa
é eterna e nem pode ser produzida, nem ser destruída (ver Metafísica, L. VII, 1033a/1034a). Por
outro lado, Aristóteles determina substância em quatro sentidos: essência necessária, universal,
espécie, sujeito: “... algumas coisas “são” pelo fato de serem substâncias, outras por serem
modificações da substância, outras por representarem um trânsito para ela, a destruição, a

12
privação ou uma qualidade dela, ou pelo fato de a produzirem ou gerarem, ou por serem termos
relativos à substância” (Metafísica, 1003b).

A filosofia é a ciência que busca o ser enquanto o ser, os princípios e as causas, a substância, o que é primário,
as coisas que são enquanto são. Há, portanto, uma primeira e uma segunda filosofia. Desta feita, à primeira
filosofia cabe o estudo do ser enquanto ser. Esta é a função do filósofo: “... investigar todas as coisas”.
(Metafísica, 1004b) Trata-se de buscar a causa primeira e os primeiros princípios, ou seja, trata-se de buscar a
substância, dado que ela “... anterior a essas outras coisas”.(Metafísica, 1004b) Neste sentido, nem dialéticos
nem sofistas dão conta do problema. (ver Metafísica, 1004b) Mesmo admitindo que as coisas são redutíveis à
unidade e à pluralidade, compete a uma só ciência, a filosofia, a busca do ser enquanto ser. Para tal, Aristóteles
faz uso de axioma. Um axioma é uma verdade que não necessita de demonstração, “... pois essas verdades
velem para tudo que existe e não para algum gênero especial à parte dos outros (...) a cada gênero possui o
ser”.(Metafísica, 1005a)

O ponto de partida, o princípio da metafísica aristotélica é que uma coisa é ou não é; não é
possível ser e não ser ao mesmo tempo (Metafísica, 1006a). O grande problema no qual se
encontra Aristóteles é sobre a demonstração de tal princípio. Segundo Aristóteles, algumas
causas podem ser explicadas; outras, não. A causa do primeiro princípio não permite
demonstração. Trata-se de um axioma. Conclui-se, portanto, que o primeiro princípio e a
primeira causa de todas as coisas é um axioma, e como tal não permite demonstração.
Aristóteles se defende das críticas à sua tese. Segundo o filósofo estagirita, aqueles que
criticam a sua tese e demonstram negativamente que essa opinião é impossível, sem afirmar
coisa alguma, não pode ser levado a sério, pois nada tem a colocar no lugar, pois, como afirma
Aristóteles, “...não dá razão de nada, por não ter nenhuma” (Metafísica, 1006). As palavras têm
significados e cada palavra equivale ou só pode ser atribuída a uma coisa (ver Metafísica,
1006).
A crítica de Aristóteles é diretamente a Platão e à sua teoria da linguagem, apresentada no
Crátilo, bem como à sua teoria do ser descrita no diálogo Sofista. No Crátilo, Platão faz
referência às palavras e acerca delas afirma que elas não dão conta do ser. Não se trata de
questionar os nomes das coisas, mas as próprias coisas. Embora os nomes sejam e não
representem as coisas, eles não dão conta delas, dado ser Platão mais heraclítico do que
parmenídico. No diálogo Sofista, Platão afirma que ser e não-ser não são contrapostos, mas
encontra-se numa participação constante um no outro, de tal monta que o ser e a mudança se
mostram, mas não se deixa agarrar.
No caso de Aristóteles é diferente. Este analisa os nomes e não exatamente as coisas. Para
este, as palavras são as coisas e estas são, não podendo não-ser. Se forem, podem ser
nomeadas e as palavras devem ser as próprias coisas. O que está em jogo é a distinção entre
substância e acidente. Acidente é tudo aquilo que embora participe da coisa não é essencial a
ela. Um braço e uma perna formam um homem, mas sem eles, o homem continua sendo
homem, embora sem as pernas e/ou os braços. De forma que, segundo Aristóteles “... todos os
atributos são acidentais” (Metafísica, 1006a).
Por outro lado, erram aqueles que se apóiam nos sentidos, tais como Protágoras, Heráclito,
Demócrito e outros. Se cada qual tem opiniões distintas sobre as coisas, mas ao mesmo tempo
equivalentes, todas serão verdadeiras e não haverá uma só verdade, dado que são
condicionadas pelos sentidos, de forma que todos estarão de posse da verdade e ela será na
verdade várias e nunca dela se saberá o que realmente é, dado que serão várias e não uma só
verdade. Isso é impossível.
De um lado, Aristóteles critica a teoria das idéias de Platão e daqueles que são
contraditórios; de outro lado, critica aqueles que baseiam seus princípios no sensível,
identificando conhecimento e sensação, como é o caso de Protágoras. Esses afirmam que o
testemunho dos nossos sentidos deve ser verdadeiro. Esses homens identificam o que é com o
mundo sensível (ver Metafísica, 1010a). Assim, Aristóteles não critica exatamente Platão, mas
sua base teórica, primeiramente, Heráclito e Crátilo.

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Conclui-se, portanto, que o conhecimento não é uma idéia apartada do mundo sensível,
nem um mundo sensível apartado das idéias, mas que há entre eles certa comunicação. Todo
conhecimento advém das sensações, mas só poderá ser conhecimento se pudermos alcançar
sua alma, sua essência, da qual não pode ser dita, tratando-se de um axioma.

II – Razão Natural e Fé Cristã

2.1 - Aspectos iniciais


O pensamento filosófico medieval é marcado pela inclusão do pensamento Cristão
emergente na elaboração da formação cultural do Ocidente. Período que pode ser considerado
advindo do primeiro século da era Cristã, seu expoente inaugural, no entanto, é datado do
surgimento da primeira teoria cristã católica, elaborada por Agostinho, no século IV passagem
para o V depois de Cristo. Estende-se até o século XVI, passando pela interferência tomasiana,
na qual a reformulação do Cristianismo se tornou premente. Dessa forma, considerarei o
período da Idade Média, no aspecto filosófico, datado do século IV ao XVI da era Cristã.
Especificamente, o pensamento medievo data-se do final do século quarto até o século XVI e a
inauguração das críticas de René Descartes, na Filosofia, de Galileu Galilei, na Ciência e de
Giordano Bruno na Teologia aos saberes da antiguidade clássica, helênica e medieval.
Mesmo assim considera-se que o pensamento filosófico medieval é acentuadamente
marcado pela interferência de saberes anteriores a ele. Os cânones (as regras) do pensamento
Cristão estão esboçados na Bíblia, termo originário do grego bíblia, que significa livro,
exatamente por constar de livros que a compõe. Excetuando as implicações em distinções
entre Antigo e Novo Testamento,2 as contribuições da mensagem Cristã guarda sua significativa
importância na formação da nossa cultura.
Um grego clássico não concebia um único Deus. Para aqueles homens, desde a
mitologia grega, havia diversos deuses. Esses, não eram infalíveis. Erravam, eram invejosos,
ciumentos etc. Na concepção Cristã, há um só Deus, criador de tudo que há, bem expresso no
‘Gênese’. Deus teria inicialmente criado o céu e a terra. Esta estava vazia. Deus, então, criou a
luz para separar luz de trevas, fez o firmamento (céu), separando-o das águas. Ele fez as
águas se reunirem, criando a massa e surgindo os continentes e os mares. Recheou a terra de
2
Testamento traduz o termo diathéke, que em grego significa pacto ou aliança. Reale e Antiseri explicam que a proposição
Testamento significa uma aliança ou pacto que Deus teria oferecido a Israel. Ver REALE, G. e ANTISERI, D., op. cit., p. 6-8.
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verduras, árvores que continham frutos, separou o dia da noite e concebeu os seres vivos,
animais domésticos, répteis e feras. Por fim, Deus fez, no sexto dia, o homem. No sétimo e
último dia Deus concluiu a sua obra e descansou. “Essa é a história do céu e da terra, quando
foram criados”.3
Para um grego antigo, os deuses teriam conquistado, mas não criado o cosmos. A
concepção criacionista4 dos cristãos se difere do cosmocentrismo grego clássico. Além de não
admitirem um único Deus (monoteísmo), os filósofos “antigos” não pensavam numa
dependência advinda da vontade de deuses. Para um cristão, a vontade de Deus é decisiva.
Essa pressuposição influenciará a nova ordem moral. Não se trata, para os cristãos, de um ato
de dever dos homens, mas a interpretação da moral está intimamente ligada à vontade de Deus
e não uma lei naturalizada, como no caso dos gregos clássicos.
A tese de que Deus teria criado o homem à sua imagem e semelhança faz do homem
uma cópia e não agente independente e autônomo. Conseqüentemente, o homem deve se
esforçar para assemelhar-se a ele. Dessa forma, homem virtuoso é aquele que obedece aos
mandamentos divinos. Altera-se o intelectualismo dos gregos clássicos para o voluntarismo dos
cristãos. Surge, também, uma nova concepção de homem individual, distinta daquela já iniciada
pelos helênicos, principalmente os estóicos, na qual o logos produz e governa todas as coisas.
Para a filosofia grega, fé e crença (pístis) estavam subordinadas ao conhecimento. A
opinião que se remetia ao mundo sensível era diferente e se opunha ao conhecimento
(episteme), excetuando, por exemplo, a concepção sofística, segundo a qual sensação e
conhecimento se equivalem. Para um cristão, a fé está acima do conhecimento. Assim, a
antropologia cristã exige do homem a superação da supremacia do conhecimento. Deus olha o
coração dos homens. Nesse aspecto, a interpretação acerca do homem se altera em vários
sentidos. O homem, por exemplo, não é mais corpo e alma, como no caso da filosofia platônica,
mas corpo, alma e espírito. Este consiste na participação do divino, através da fé, nos homens.
Dessa forma, a dimensão da alma é alterada para a do espírito.
Outro aspecto interessante nesse contexto diz respeito ao amor. Platão tinha concebido
Éros (amor) como falta e intermediário. Éros não é um Deus. Essa é a tese defendida por
Sócrates-Diotina em O Banquete. Éros estaria entre o mortal e o imortal, entre homens e
deuses. Ele é um gênio e sua tarefa seria a de levar as súplicas e oferendas dos homens aos
deuses e trazer as idéias divinas aos homens.
Para um cristão não se trata de um amor-éros, mas de um amor-agápe. Sua natureza é
bem diferente da anterior. O amor não é mais a subida do homem ao mundo inteligível das
idéias, mas a descida de Deus em direção aos homens. Não é uma espécie de conquista dos
homens, mas um dom humano, algo espontâneo. Para um grego clássico como Platão, o amor
por ser falta e intermediário é imperfeito. Para um cristão, Deus, que é perfeito, é amor.
Enfim, outra tese de suma importância à formação do homem ocidental é a da
ressurreição dos mortos. Enquanto para um grego como Sócrates, por exemplo, a alma era a
verdadeira essência do homem, sendo imortal por natureza, os cristãos propõem uma outra
interpretação. Um cristão não aceita a tese da imortalidade da alma, mas a ressurreição dos
mortos, o que implica o retorno do corpo à vida, diferentemente do que defendia Platão.

3
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1995, p. 33.
4
Criacionismo é uma doutrina que defende que a criação do mundo veio a partir do nada e tem origem bíblica.
15
2.2 – A Patrística
A Patrística é considerada por muitos uma corrente filosófica Cristã que pode ser dividida
em duas grandes linhas de elaboração de sua interferência na formação cultural do Ocidente.
Inicialmente seus desdobramentos com o impacto da mensagem Cristã na área cultural grega
e, posteriormente, latina. O que mais nos interessa é a mensagem Cristã em termos de
interferência na elaboração cultural do homem ocidental. Nesse sentido, Agostinho é
considerado o filósofo representativo do apogeu da Patrística.
Agostinho (354-430) foi um dos filósofos mais significativo para a doutrina Cristã.
Antimaniqueísta, Agostinho elaborou obras de teor filosófico e teológico, numa vasta produção
literária, embora tenha sido convertido ao Cristianismo não tão cedo em sua vida. O grande
problema que ronda as preocupações filosóficas e teológicas foi a tentativa de encontrar a
possibilidade de diminuir a distância entre fé e razão. A fé recebe clareza da razão. Esta, por
sua vez, é impulsionada pela fé.
Agostinho, no tangente ao problema do saber, concebe que todo conhecimento tende à
verdade e que esta é Deus. Demonstrar a verdade nada mais é do que demonstrar a existência
de Deus. Assim, Deus é Ser, Verdade e Bem. O homem, nessa concepção, assume caráter de
pessoa e não a referência geral e abstrata deixada pelos gregos. O conceito de pessoa é
expresso com mais clareza em sua concepção acerca da Trindade. Para Agostinho, Deus, em
sentido absoluto, é na verdade o Pai, o Filho e o Espírito Santo, operando inseparavelmente.
No entanto, essas três pessoas são distintas no que tange ao aspecto da relação entre eles.
No mundo, todas as coisas têm unidade, ordem e forma, vestígios deixados da Trindade
nas coisas. Graças a isso podemos alcançar Deus. Nesse aspecto, o homem é uma pessoa,
um indivíduo único irrepetível. Ele é a imagem das três pessoas da Trindade, expressando a
faculdade da vontade. Tem a possibilidade de escolher entre o bem e o mal. O bem é Deus e
pela vontade livre o homem deve encaminhar-se ao Bem superior. Caso contrário, quando o
homem confunde o bem superior com o mal interior, ele está na alçada do mal. Para encontrar
a verdade, Deus, basta que o homem volte a si mesmo para encontrar a prova da existência do
Criador.
Como vimos, Platão em sua ‘Alegoria da Caverna’ concebe dois mundos. Haveria um
mundo matemático, mundo das idéias, inteligível e um outro mundo, aquele das sombras,
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sensível. Toda a descrição da caverna nos prepara para que o homem acorrentado, preso ao
interior da caverna possa soltar suas amarras e encaminhar-se para o mundo das idéias,
mundo superior. Haveria, portanto, dois mundos: inferior e superior. O homem deve buscar a
auto-suficiência da razão, somente encontrada no mundo superior, inteligível. Agostinho
também nos fala de dois mundos, mas não exatamente como Platão. Há dois mundos, mas
interno e externo, a Cidade Celeste e a Cidade Terrena.
Deus teria criado o mundo segundo as idéias que se encontram na razão divina. Essa
criação não necessitou de nenhuma substância externa, mas criou o mundo do nada,
possibilitando ao criado razões seminais para serem desenvolvidas. Deus é quem determina os
critérios da alma, que são imutáveis e, portanto, necessários. Tudo deve ser regido pelo amor, e
o amor perfeito é Deus, o ser supremo.
Platão elaborou uma filosofia pagã e a distribuiu em forma tripartite. Haveria no cume a
Idéia de Bem-em-si-mesma ou de Justo-em-si-mesmo ou Belo-em-si-mesmo e na base as
coisas sensíveis. Assim, haveria dois mundos: um mundo das idéias, composto da Idéia
absoluta e das demais idéias, ou um mundo do Uno e das Díades e um outro mundo, aquele
das coisas sensíveis, dos corpos, das sombras, no qual há multiplicidade de coisas e seres
sensíveis. No meio desses mundos existiria o filósofo, Éros, o intermediário, o elo de ligação e
de manutenção da ordem cósmica.
Agostinho mantém, de certa forma, essa mesma estrutura platônica. No cume está Deus.
Na parte inferior, o mundo sensível. Lá em cima está a Cidade Celeste. Aqui em baixo encontra-
se a Cidade Terrena. Entre estas duas Cidades há o espaço do intermediário, executando a
tarefa de ligação, intermediação entre ambas as Cidades. Esse é o papel do Padre. A Patrística,
na concepção agostiniana, se mantém pela estrutura pagã da filosofia platônica. É tripartite. Há
ordem. No cume está o ordenador cósmico, no meio o mantenedor dessa ordem na terra e na
base a grande maioria espontaneamente expressa. No entanto, a alteração de Idéia para Deus
promove uma mudança radical de compreensão do mundo, do homem e do saber.
Da filosofia pagã à filosofia Cristã, especificamente em relação a Platão e a Agostinho, os
horizontes do saber se alteram. Além da inversão de Deus para Idéia, promovida por Agostinho,
uma nova concepção de vida se apresenta. As novidades na concepção Cristã para a formação
do homem ocidental são enormes. A partir daí irá prevalecer a leitura monoteísta de mundo e a
preferência de um em relação a vários se instala. Somado ao individualismo preparado desde
os helênicos, mas agora com o Cristianismo invertido em relação à autonomia do homem, o
individualismo cristão é medido pela vontade divina e pela escola do homem. A liberdade
humana é vista pelo aspecto da decisão, da escolha, mediante opções oferecidas de Deus aos
homens. Feito à imagem e semelhança de Deus, o homem, na concepção cristã, perde a sua
autonomia. Fica relegado à vontade divina. Nesse sentido, do homem, enquanto indivíduo
autônomo dos helênicos, o Cristianismo nos aponta um novo saber. O homem é um indivíduo,
mas não autônomo, uma vez que depende da vontade divina. Essas duas concepções de
homem nos trarão problemas futuros quanto à formação do homem ocidental, principalmente
no que tange à concepção de liberdade. Ser livre é ser autônomo? Se sim, em que consiste
essa autonomia? Agir de acordo com a vontade divina, mas a partir de uma escolha individual
não é ser autônomo, mas seria ser livre? Como articular vontade e liberdade? São questões
que ainda hoje permanecem presentes em nossa época, principalmente quando nos referimos
aos processos educacionais. Outros aspectos, tais como a fé se sobrepondo ao conhecimento,
a distinção tripartite do homem - não mais concebido somente como composto de corpo e alma,
mas corpo, alma e espírito -, e a interpretação do amor – não mais como Éros, mas ágape,
juntamente com a negação da imortalidade da alma e a formulação de um saber no qual
concebe-se a ressurreição dos mortos, o Cristianismo nos deixa uma herança fortíssima na
formação do homem ocidental.
No aspecto da Patrística de Agostinho, o primeiro formulador sistêmico da teoria Cristã
Católica, a tentativa de formulação de uma teoria na qual razão é fé pudesse se aproximar é

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marca registrada desse saber. Na acepção de que a razão é impulsionada pela fé e a fé
esclarece a razão, Agostinho nos aponta a necessidade de um mundo no qual não mais cabe a
indiferença à fé. A fé se transformou nos últimos quatro séculos anteriores ao nascimento de
Agostinho num fenômeno que se apresentava, a contragosto ou não, mas que se apresentava
e era aceito e defendido por várias pessoas, povos e raças.
Num segundo aspecto, a fé nos lembra o daimon anunciado por Platão no diálogo Fedro.
Trata-se, quase, de uma inspiração. Nesse sentido, o homem ultrapassa o aspecto do sensível,
constata que há algo além do imediato que faz parte do seu ser e que, ao mesmo tempo, não é
evidente àquele no qual se manifesta. É mais do que uma aporia, ou do que um problema
dentro de uma teoria. Trata-se de um inefável que se deixa objetivar nas ações humanas.
Agostinho tanto quanto Platão nos fala desse campo aparentemente incompreensível, mas
presente nos homens. No caso do pensador cristão, a resposta a essa questão reside na
disposição à vontade de Deus. Essa resposta é uma tentativa de explicação desse fenômeno,
que atualmente poderia ser denominado por religiosidade, mas nesse aspecto são possíveis
abordagens diferentes acerca do mesmo problema.
No caso de Agostinho, Deus é a verdade e conhecer a verdade é conhecer Deus. Mas se
somos nós homens que conhecemos, há que se perguntar sobre o homem. Nesse caso, como
acima foi expresso, o homem é uma pessoa, um indivíduo único, imagem e semelhança de
Deus e se situa no liame entre o bem e o mal. Mas é alguém que tem a possibilidade de
escolha. O homem livre encaminha-se a Deus, que é o bem e, portanto, escapa-se do mal. O
mal nada mais é do que a confusão feita pelo homem entre o bem superior e o mal inferior.
Nesse sentido, para que o homem conheça e possa alcançar o bem e a verdade basta voltar-se
a si mesmo. Nesse aspecto, apresentam-se temas que ainda hoje nos causa espanto e nos
forma. A idéia de que o conhecimento nos trás a felicidade, dado que ele nos aponta ao bem e
que, para muitos, esse bem é Deus, é uma dessas implicações. Mesmo no caso dos cristãos
que colocam a fé acima do conhecimento, mas na formulação mediante a qual o bem é Deus e
conhecer é conhecer a verdade e Deus é a verdade, acredito que a tese da necessidade e
importância do conhecimento permanece forte tanto na filosofia sistêmica de Agostinho quanto
nos moldes da filosofia contemporânea. Posso considerar, portanto, que essa articulação foi e é
marcante na formação do homem do ocidente.
Outro aspecto fundamental é a disposição a si mesmo. A tese antiga socrática do
conheça-te a ti mesmo é novamente recolocada. Ela já tinha sido retomada pelos helênicos e
agora, com os cristãos, é novamente anunciada. Independente das interpretações que foram
dadas e das utilizações feitas dessa tese socrática, o fato que nos permite a ela considerarmos
significado importantíssimo é a necessidade da elaboração individual. O espaço do Eu, do Self,
a interioridade necessária à qual o homem não pode deixar de fazer uso. Essa interioridade que
parece ser um outro elemento além do que os cristãos concebem como homem, corpo, alma e
espírito, a interioridade assumida em seu aspecto de admiração, reflexão, introspecção é ou
faculdade indispensável que nos séculos foi sendo requerido aos homens e que também nos
séculos que se passaram e se passam cada vez mais é esquecida, abandonada, relegada ao
esquecimento, como se esquecêssemos do próprio ser.
Independentemente das concepções que possam advir dessa categoria de interioridade
requerida pelos homens, exatamente porque presente neles, o fato é que nós fomos formados
advertidos de que há algo no homem que é unicamente dele, o seu Eu. Além disso, nós fomos
sendo educados a respeitar a individualidade de cada um, pelo menos em tese. Assim, o
homem do Ocidente, com o Cristianismo de Agostinho nos alerta que essa individualidade
depende da vontade de Deus. Se Platão nos falava do autodomínio da razão, Agostinho nos
aponta a vontade de Deus e nos remete à fé iluminando a razão, que a esclarece.
Por fim, na concepção platônica de que haveria dois mundos: um superior e outro inferior
são alterados por Agostinho. Existem dois mundos, mas não um superior e outro inferior,
exatamente. Há um mundo superior no sentido de interno e algo inferior, no sentido de externo.

18
Daí a necessidade de pensar, ao mesmo tempo, em Cidades: a Celeste e a Terrena. Essa
aparente dicotomia que Agostinho enxerga na filosofia de Platão será outra marca transposta
ao homem ocidental contemporâneo e sua disposição à distinção física ou metafísica. O mais
significativo ao saber ocidental, no entanto, é a concepção acerca do mundo como algo unitário.
Assim, como Agostinho admite a Trindade, o mundo é um só, mas que se dispõe em vários e
que é regido por aquele que o criou, Deus. E se Deus é amor (o amor-agápe), tudo deve ser
regido pelo amor supremo, Deus.
A) A Doutrina da Iluminação
A doutrina da iluminação de Agostinho se assemelha e substitui a teoria platônica da
anamnese ou reminiscência. Platão admitia que as almas humanas contemplavam as idéias
antes dessas se encarnarem nos corpos. A alma humana tinha também o poder de recordar
das almas já encarnadas, enquanto na experiência concreta dos humanos. Ao contrário,
Agostinho concebe Deus como a suprema verdade (Platão chama a verdade de Idéia de Bem-
em-si-mesma e também de Luz, Sol, em sua ‘Alegoria da Caverna’). Deus é a luz que ilumina a
mente humana no ato do conhecimento, permitindo aos homens captar as idéias, eternas e
inteligíveis presentes na própria mente divina. Para alcançar o conhecimento, os homens
devem se libertar das mazelas do mundo deve ter alma santa e pura. Trata-se do ideal Cristão:
o homem deve ter boa vontade e pureza de coração como condição necessária para conhecer
e alcançar a Verdade.
2.3 – O Problema dos Universais
Há a posição realista e aposição nominalista. A posição realista se divide em realismo
externo e realismo moderado. O realismo afirma que os universais existem em si mesmo
(realismo externo) ou os universais subsistem antes das coisas, como idéias-arquétipos na
mente de Deus (realismo moderado). O realismo externo de Escoro Eriúgena, Guilherme de
Champeaux e, em parte, de Anselmo de Aosta defendem que os universais existem em si
mesmos, anetes das coisas (ante rem). Essas idéias arquetipicas são modelo da realidade,
bem semelhantes ao mundo das idéias de Platão. Assim, o conhecimento delas é indiretamente
o conhecimento do real.
Segundo a posição nominalista, assumida por Roscelino, o universal seria puro nome
que designa uma multiplicidade de indivíduos. Sendo assim, cada opinião se equivale a
qualquer outra e o resultado não poderia ser outro do que uma conclusão cética. Se não existe
nenhuma ligação substancial entre as palavras/os conceitos com as coisas, o conhecimento só
pode ter resultados céticos.
2.4 – A Escolástica
Outra grande vertente do pensamento filosófico cristão foi a Escolástica. Assim como a
Patrística teve seu marco nos escritos de Agostinho, a Escolástica obteve suas grandes linhas
de Tomás de Aquino (1221-1274). Nessas duas abordagens queremos demonstrar que
inicialmente duas grandes vertentes filosóficas, de cunho cristão católico, foram elaboradas na
Idade Média: A Patrística e a Escolástica. A primeira sofre influência, principalmente, das
considerações da filosofia de Platão. A Escolástica, por sua vez, se desenvolve sobre a égide
do pensamento aristotélico. Os dois grandes sistemas iniciais do Cristianismo sofrem
influências dos escritos dos pagãos Platão e Aristóteles. De um lado Agostinho substitui a
noção platônica de Idéia por Deus e, por outro, Tomás de Aquino altera o Primeiro Motor de
Aristóteles por Deus. As estruturas gerais dessas filosofias permanecem esquematicamente as
mesmas, mas as concepções alteram-se profundamente.
Na sua obra juvenil O Ente e a Essência, Tomás de Aquino delineia os traços marcantes
de sua filosofia e teologia. Ente é considerado como qualquer coisa que existe, podendo ser
tanto lógico quanto real ou extramental, distinção fundamental para se entender um dos
alicerces do pensamento tomasiano, dado que ele concebe que nem tudo que se pensa existe
realmente.
19
Pode-se dizer que há uma espécie de realismo moderado na filosofia de Tomás de
Aquino. A concepção de ente lógico corrobora com tal assertiva. O conceito, segundo o
aquinante é fruto da faculdade abstrativa do pensamento. Nem tudo o que é pensado,
simplesmente pelo fato de pensar, não quer dizer que existe da mesma forma como foi
pensado. Por outro lado, um outro aspecto do ente se manifesta na filosofia de Tomás de
Aquino. Paralelamente ao ente lógico encontra-se o ente real. O ente real é tudo que existe.
Tudo que existe é ente. Este, por sua vez, permite outras subdivisões. Há a essência, que se
caracteriza pela potência para ser. Há também aquilo que não se tornará, pois já existe de fato,
ou seja, há o ato de ser. E há, também e finalmente, os transcendentais, o verdadeiro, o uno, o
bom. O uno, por sua vez, é indivisível, mas pode ser participável. Ele se afirma por si mesmo. O
bom refere-se á vontade de Deus. E é verdadeiro porque Deus o permitiu.
Percebem-se as influências que o aquinante sofre da filosofia de Aristóteles. É evidente
que tanto a Patrística quanto a Escolástica se desenrolam pelo viés da fundamentação da fé
pela razão. É claro também que no topo da estrutura desses pensamentos encontra-se Deus.
De forma que vias para se chegar à verdade é o mesmo que provar a existência de Deus. São
cinco as vias para se alcançar a verdade, Deus. Aquino assume distinção entre conhecimento e
ontologia. Deus é o primeiro na ordem ontológico, mas não na ordem gnosiológica. Para se
chegar a Deus é necessário seguir certas vias.
A primeira via é a do movimento. Todas as coisas que se movem são movidas por um
outro que não elas mesmas. Na relação movente/movido um movimento ad infintum se
anuncia, nada explicando. Daí a necessidade de um primeiro motor. A segunda via é a da
causa. Nenhuma coisa pode gerar a si mesma, deve haver uma coisa que causa as coisas,
uma causa das causas. Mas para ainda evitar o regresso ao infinito, deve haver uma primeira
causa não-causada, Deus. A terceira via refere-se à contingência. Não há como todas as coisas
serem contingentes. Deve haver algo de necessário. Tomás o definiu como Deus. A quarta via
trata dos graus de perfeição. Há uma gradação de perfeições, de tal monta que Deus seria a
suma perfeição. A quinta e última via é a do finalismo. Há uma teleologia no pensamento
tomasiano. Há um ser supremo, uma inteligência que dirige todas os seres e as coisas,
dirigindo seus corpos físicos a um fim, Deus.
Essas vias para provar a existência de Deus podem ou não ser adotadas pelos homens.
Os homens são livres. Sendo o homem de natureza racional, ele pode ter uma certa
compreensão da sua finalidade, mas que nunca se tornará absoluta. Nesse sentido, o homem
se refere a fins parciais e a sua vontade depende do seu livre-arbítrio. Nesse sentido, o homem
está livre para pecar ou não. Depende de sua vontade.
Nesse aspecto, há na filosofia de Tomás de Aquino uma teoria do direito. O aquinante
divide a sua teoria do direito em quatro tipos de leis. Há o plano racional de Deus, a ordem do
universo e nisso consiste a lex aeterna. Esta é a primeira lei, aquela que emana do plano
racional de Deus. O universo é composto de duas espécies de coisas: as conhecidas e as não-
conhecidas. As coisas conhecidas fazem parte da lei natural. Próxima à lei natural encontra-se
a lei humana. E há, também, a lei divina. A lei humana divide-se em dois planos distintos de lei.
O primeiro deles diz respeito ius gentium. Este é mais geral. Seria o caso da proibição do
assassinato, por exemplo. O outro é o ius civile. Este e a aplicação da pena, algo mais
específico.
Enfim, o eixo condutor de toda a filosofia de Tomás de Aquino é norteado pela concepção
que o aquinante tem de fé, compreendendo-a como guia da razão. Sua tarefa, ou a tarefa da
filosofia, não poderia ser outra do que a de provar a existência de Deus. Nesse aspecto,
retorna-se à discussão inicial da inversão de Primeiro Motor para Deus, na relação entre a
filosofia de Aristóteles e a do representante maior da Escolástica, Tomás de Aquino.

IV. Teoria do Conhecimento


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O mundo moderno surge das interpretações de René Descartes (1596-1650), Giordano
Bruno (1548-1600) e Galileu Galilei (1564-1642), no tangente, consecutivamente, à filosofia, à
teologia e às ciências. Mesmo considerando as observações que alteraram o pensamento
filosófico-político anterior a esse período, expressas por Nicolau Maquiavel, as considerações
daqueles três pensadores, alteraram as reflexões acerca desses campos do saber.
O mundo moderno é tributário das alterações propostas por esses pensadores que
ousaram dizer ao mundo que a leitura mais adequada e que correspondiam mais
coerentemente com as concepções que se tinham do saber, do mundo e do homem não
podiam mais se filiar às interpretações aristotélicos-tomistas. O anúncio do mundo moderno é
inaugurador de uma reviravolta na forma como os homens se portaram em relação a tudo que
se passava diante deles.
Consideraremos como mundo filosófico moderno os desdobramentos que se iniciam no
findar do século XVI, culminando nas concepções de Descartes, Bruno, Galileu e outros se
estendendo até a segunda metade do século XVIII, com a publicação da Crítica da Razão Pura
de Immanuel Kant (1724-1804) e a formulação do seu criticismo. Assim, em linhas gerais, a
filosofia moderna pode se situar entre as filosofias de Descartes e de Kant. Como temas
centrais, no entanto, a filosofia se preocupará com o conhecimento e o método, além de
implicações à política.
No tangente ao conhecimento, três pensadores são principais ao mundo moderno: René
Descartes (1596-1650), David Hume (1711-1776) e Immanuel Kant (1724-1804). Esses três
pensadores fundaram os três métodos mais importantes da filosofia moderna. René Descartes
inaugura a teoria do conhecimento moderna propondo o seu método racionalista; David Hume,
a partir dos trabalhos de Francis Bacon, sugere o empirismo e Kant Nos apresenta o criticismo.
Essas três teorias do conhecimento são as principais vertentes filosóficas acerca do saber que
se inaugura no século XVII e percorre todo o século XVIII, até que, no século XIX começa a se
inaugurar a filosofia contemporânea.

4.1 – Descartes e as Regras do seu Método.

René Descartes (1596-1650), filósofo francês, nasce num período conturbado da cultura
ocidental. Período marcado por profundas transformações em vários aspectos da vida social,
econômica, política, filosófica etc... No final do século XVI e início do XVII, o cenário europeu
discutia as dificuldades por que passava o saber medieval. Socialmente, este era um tema
muito problemático. Giordano Bruno (1548-1600), Padre domenicano, por exemplo, morre na
fogueira da Inquisição contrapondo-se ao tradicionalismo Cristão da época; Galileu Galilei
(1564-1642) foi por diversas vezes chamado a se defender de denúncias a ele feitas de
heresia, até que em 1633 foi condenado a uma sentença mediante a qual teria que escolher
entre morrer por heresia ou desmentir suas pesquisas. Descartes, preocupado com o cenário
que vivia, mas inspirado pela necessidade de propor uma filosofia que fosse útil à vida das
pessoas, publica em 1637, o seu Discurso do Método.
O Discurso do Método tem como subtítulo: “para bem conduzir a própria razão e procurar
a verdade nas ciências”. A sugestão cartesiana parece-nos clara. Propor um método, um
caminho a ser seguido, mediante o qual fosse possível conduzir a razão, ou a faculdade de
distinguir o verdadeiro do falso, de tal forma a procurar verdade nas ciências, ou num
conhecimento distinto do teológico, que autorizasse desvelar o velado da natureza. A pergunta
que Descartes se põe é: por que alguém escreveria um discurso sobre um caminho a ser
seguido com o propósito de alcançar o conhecimento claro e seguro de tudo que é útil à vida?
O caminho já não havia sido traçado, desde os jônios naturalistas, por volta de VII-VI a.C?

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Os pensadores antigos e medievais discutiram sobre o ser, mas não conseguiram fazer
com que ele fosse representado (aliás, era possível fazê-lo?). Esta era a sua primeira
preocupação. Se durante vinte e dois séculos de filosofia ocidental nós não conseguimos falar o
que o ser é, será que, realmente, podemos fazê-lo? Ou será que devemos alterar a pergunta.
Não seria mais cauteloso perguntarmos sobre a possibilidade ou não de conhecermos alguma
coisa? A possibilidade do conhecimento direciona a atenção de Descartes. A questão foi
colocada: é possível conhecer as coisas e os seres? Se sim, como fazê-lo? Trata-se de dois
problemas que marcam, não somente o pensar filosófico de Descartes, mas todo o mundo
moderno (final do século XVI até segunda metade do século XVIII): conhecimento e método.
Lembrando Gaston Bachelard, uma pergunta bem formulada é mais do que meia
resposta dada. Descartes teria encontrado a questão que nortearia o pensamento moderno
ocidental: podemos conhecer os seres e as coisas? A filosofia de Descartes é original também
nesse sentido. Partindo da possibilidade do bom uso da razão, como faculdade de distinguir o
verdadeiro do falso na natureza, o pensador francês via reais possibilidade de descortinar,
retirar o véu que escondia, por detrás dos corpos, a essência dos seres e das coisas
alcançando o céu da verdade. Para isso, era necessário que se começasse a pensar o mundo
do seu ponto inicial. Assim sendo, todo saber anterior ao seu deveria ser posto em dúvida.
Descartes elabora a filosofia da dúvida. Duvidava dos seres e das coisas, dos corpos, das
existênciaS e, por fim, até de si mesmo. Mas justamente pela dúvida máxima, hiperbólica –
duvidar da sua própria existência – Descartes chega à sua primeira verdade: ele mesmo.
Duvidando de mim mesmo, uma coisa eu não posso negar: o fato de eu estar duvidando. Assim
sendo, se duvido, penso e se penso, sou. “Eu penso, logo eu sou”. Esta é a primeira tese
oriunda das dúvidas cartesianas. Esta é a primeira verdade atingida pelo método cartesiano: o
sujeito, o cogito, aquele que cogita, pensa.
Mas qual método foi empregado por Descartes? Ele não poderia se apoiar nos métodos
anteriores ao seu, já que tinha negado aqueles saberes. Descartes funda o seu próprio método.
Baseado em quatro preceitos básicos, o método cartesiano partia da dúvida para alcançar a
verdade. O primeiro preceito do seu método era exatamente a dúvida: jamais acolher uma coisa
como verdadeira se eu não a tivesse como tal, diz Descartes. Depois da dúvida, Descartes
propõe um segundo preceito. Trata-se de dividir em quantas parcelas forem necessárias os
objetos por ele analisados. O terceiro preceito consiste em dois momentos complementares. O
primeiro é o de encaminhar suas investigações do elemento mais simples até os mais
complexos. Depois, o de reunir as conclusões às quais chegou em um todo. O último preceito
consiste em verificar na natureza se o conceito ao qual ele chegou correspondia ao objeto
analisado. Caso afirmativo, teria o investigador encontrado a verdade.
Podem-se exemplificar os preceitos do método cartesiano mediante o uso da água. H20
é água. Primeiro preceito: H20 é água? Segundo preceito: deve-se dividir h20 em suas partes:
H - H - º O terceiro preceito propõe: 1) estude H, H e O em separado e 2) reúna suas
conclusões parciais, tais como H=X, H=X e O=Y no todo H20. O que se tem H20=XXY. Por
último verifique se na natureza H20 corresponde a XXY ou se a coisa água corresponde ao
conceito XXY. Havendo correspondência, tem-se um conceito verdadeiro. Em outras palavras,
as coisas podem ser ditas corretamente pelas palavras empregadas para denominá-las.
Lembrando Gaston Bachelard, uma pergunta bem formulada é mais do que meia
resposta dada. Descartes teria encontrado a questão que nortearia o pensamento moderno
ocidental: podemos conhecer os seres e as coisas? De imediato, seu Discurso do Método se
inicia com uma afirmação curiosa em pelo menos dois aspectos: multiplicidade e unicidade das
coisas e dos seres. Diz Descartes: “O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois
cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar
em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm”. 5 O bom senso é,
segundo Descartes, a razão (raison, bon sens, sens) ou a faculdade de distinguir o verdadeiro
5
DM: 1-2: “Le bon sens est la chose du monde la mieux partagée: car chacun pense en être si bien pourvu, que
ceux même qui sont les plus difficiles à contenter en toute autre chose, n’ont point coutume d’en désirer plus qu’ils
en ont”.
22
do falso. Ele não significa bona mens ou sabedoria, idéias divinas inscritas em nós desde
sempre, a ratio, mas razão ou bon sens (raison, sens), a capacidade que haveria em nós, com
a qual fosse permitido ir à natureza das coisas e saber diferenciar o que é essencial do que é
acidental. O essencial e o que determina os homens é o seu poder de julgamento das coisas, a
razão (raison, bon sens, sens). É ela que nos identifica e ao mesmo tempo, nos diferencia dos
outros. As coisas e os seres são distintos justamente porque cada qual e cada coisa têm nelas
ou neles uma idéia clara do que elas (es) são. Essa essência das coisas e dos seres ao mesmo
tempo em que os distingue, marca a possibilidade da convivência dos diferentes em uma
unidade mais global. Ao encontrar a essência das coisas, poder-se-ia organizar uma vida na
diferença.
Ao intuir que era possível conhecer as coisas, Descartes necessitaria de um método ou
um caminho possível a ser seguido e que lhe garantisse alcançar seu intento. Descartes sente
a necessidade de um método. Começa por duvidar dos ensinamentos que obteve na Escola de
La Flèche, escola dos jesuítas, melhor centro de Estudos da França da época. Diz Descartes:
Fui nutrido nas letras desde a infância, e por me haver persuadido de que, por meio
delas, se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo que é útil à vida,
sentia extraordinário desejo de aprendê-las. Mas, logo que terminei todo esse curso de
estudos, ao cabo do qual se costuma ser recebido na classe dos doutos, mudei
inteiramente de opinião. Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros, que me
parecia não haver obtido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter
descoberto cada vez mais minha ignorância.6

A dúvida de Descartes se estende ao máximo. Ele duvida de tudo. Duvida da mesa, dos
livros, dos homens que passam diante a sua janela, duvida de si mesmo. Será que eu existo
mesmo ou eu não passo de um engano dos meus sentidos? A resposta à dúvida máxima que
Descartes coloca a si mesmo é garantia da primeira verdade que ele procurava. Portanto, se
duvido de tudo que há na vida; se duvido de mim mesmo e de minha existência, é sinal de que
eu sou alguma coisa, pois só se duvida daquilo que é. Desta forma, se duvido de mim mesmo,
é sinal de que eu sou alguma coisa que permita ser colocada em dúvida. Portanto, eu penso,
logo eu sou (je pense, donc, je suis ou cogito ergo sum). Esta é a primeira verdade que
Descartes chega e a partir da qual seu método poderá ser formulado.

Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era
falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E notando
que esta verdade: eu penso, logo sou, era tão firma e tão certa que todas as mais
extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que
podia aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da Filosofia que procurava. 7

Deste modo, Descartes, ao mesmo tempo em que critica a concepção de conhecimento


da Renascença, inaugura a filosofia moderna. Instaura-se uma nova época. Do homem, passa-
se ao sujeito. Sujeito é o homem pensante; para o cartesianismo, aquele que utiliza a razão
para, com os critérios por ela estipulados, alcançar a verdade, discernindo o verdadeiro do
6
DM: 4: “J’ai été nourri aux lettres dès mon enfance, et pource qu’on me persuadait que, par leur moyen, on
pouvait acquérir une connaissance claire et assurée de tout ce qui est utile à la vie, j’avais um extrême désir de les
apreendre. Mais, sitôt que j’eus achevé tout ce cours d’études, au bout duquel on a coutume d’être reçu au rang
des doctes, je changeai entièrement d’opinion. Car je me trouvais embarrassé de tant de doutes et d’erreurs, qu’il
me semblait n’avoir fait autre profit, en tâchant de m’instruire, sinon que j’avais découvert de plus em plus mon
ignorance”.
7
DM: 32: “Mais, aussitôt après, je pris garde que, pendant que je voulais ainsi penser que tout était faux, il fallait
nécessairement que moi, qui le pensais, fusse quelque chose. Et remarquant que cette vérité: je pense, donc je
suis, était si ferme et si assurée, que toutes les plus extravagantes suppositions des sceptiques n’étaient pas
capables de l’ébranler, je jugeai que je pouvais la recevoir, sans scrupule, pour le premier principe de la
philosophie, que je cherchais”.
23
falso. Ocorre uma inversão ao nível do saber. Das essências dos seres e das coisas inscritas
nos homens, desde sempre, passa-se às essências inscritas nos seres e nas coisas, fora de
nós. A questão, agora, é outra. Troca-se o valor intrínseco ao valor extrínseco. Abre-se uma
nova forma de como viver, como abordar as coisas do mundo, como saber, como ser.

4.1 – O Problema Metodológico

A pergunta dos modernos aos filósofos antigos e medievais, como bem se atesta na primeira
parte do Discurso do Método de Descartes refere-se à proposta de que via conhecimento à
felicidade se apresentaria. Mas se assim fosse, vinte e dois séculos depois do arauto da razão,
a verdade ainda não se fazia traduzida pelos homens. A proposta de via razão encontrar a
verdade das coisas e ser feliz não se efetivou. Dos grandes sistemas de Platão, Aristóteles,
Agostinho e Thomas de Aquino, não se obtiveram verdade alguma que teria sido traduzida
fielmente pela razão. As essências e a verdade foram nomeadas, mas não traduzidas,
esmiuçadas, clarificadas, o que nos permitiria traduzi-la nos moldes de uma convenção e fazer
do mundo o esplendor da razão.
A Idéia de Platão, o Primeiro Motor de Aristóteles e o Deus de Agostino e Thomas de
Aquino não foram substantivamente traduzidos, mas adjetivados. Desta falibilidade da razão, o
projeto de erigir da razão, via conhecimento das essências e da verdade, não conseguiu
guarida nas filosofias antiga e medieval. Em outros termos, a possibilidade de partir da razão e
alcançar a felicidade, via conhecimento das essências e da verdade, não correspondeu com os
fatos. No século XVI passagem ao XVII o que se vê são repulsas a esse projeto. Preocupam
mais com demonologias, astrologia, magias, feitiçarias, bruxarias, como atesta Koyré, do que
com a compreensão racional dos seres e das coisas. Parei aqui
Mas se a verdade está diante de nós, como desvelá-la? Como abordar o ser? De que forma
deve-se procurar as idéias inatas das coisas e alcançar a verdade das coisas? Descartes
propõe um método a ser seguido, mediante o qual, passo a passo, possa-se abarcar a verdade
de todas as coisas. Este método ficou conhecido como racionalista. Contra ele se colocou um
outro método: o empirismo. Na tentativa de reordenação do saber, surge Kant e sua proposta
de unir os dois métodos precedentes a partir de um método dialético transcendental.
O racionalismo é marcado pela análise dualista da realidade. Separa-se sujeito de objeto.
Entre ambos há um elo de ligação. O método assume este papel. Cabe ao método ligar sujeito
a objeto e fazer da leitura científica cartesiana algo contínuo, bem-ordenado, aonde idéias como
finitude, verdade, idéias inatas são permitidas, autorizadas e buscadas. René Descartes funda
uma nova forma de como se conceber o homem, o mundo e o saber. Se esta leitura da
natureza e da metafísica trouxe ao homem ainda ligado aos ditames medievais uma
possibilidade de uma nova leitura do mundo, deixou ao mundo contemporâneo vários vestígios
complexos. Não entraremos nas críticas ao sistema cartesiano, mesmo porque necessitaríamos
de mais investigação cautelosa.
O que nos interessa no presente momento ‘’e precisar a forma como ele concebeu o seu
método. Para Descartes, a natureza é composta por coisas que têm dentro de si idéias inatas
aos seus próprios seres. Estas idéias identificam as coisas a elas mesmas. Estas coisas
existem independentemente dos homens, de forma que de um lado estamos nós e nossa razão
e de outros as coisas do mundo. Na medida em que nós nos preocupamos com as coisas,
estas se transformam em objetos de nossas análises, bem como nós transformamos em
sujeitos, ou seja, em homens pensantes.
Esta ordem, ou esta estrutura do saber obedece a uma ordem, ou a uma estrutura
organizacional, que permite que nós possamos saber o que elas são. Deus é a garantia do
conhecimento, pelo menos no Discurso do Método. A partir desta estrutura ternária entre
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sujeito/objeto/Deus foi possível Descartes pretender alcançar a verdade das coisas existentes
no mundo, ou se quiserem, foi possível a Descartes, pelo menos teoricamente, unir ou
reconciliar o que ele havia separado: sujeito e objeto.
Mas para que tudo isto fosse possível, Descartes teria de demonstrar que havia
realmente verdade e que era possível de ser alcançada. Parte da dúvida. Duvida de tudo que
existe no mundo, inclusive de sua própria existência. Chega à conclusão de que se duvida
pensa e se pensa é porque ele era alguma coisa, pelo menos pensante. Eis que se duvido,
penso, se penso, sou. Penso, logo sou será a máxima defendida por René Descartes.
Conclui-se desta exposição que de racionalista foram chamados àqueles que pela
especulação teoricamente alcançaram alguns alvos. A razão se efetiva naqueles que dela
esperam verdade. Descartes era um destes homens. Outros, até hoje em dia aceitam esta
abordagem filosófica, que sem dúvida revolucionou a sua época.
A filosofia empirista foi outra forma possível de se tentar alcançar a verdade. Ponto
comum entre o Racionalismo e o Empirismo é a assumência da realidade como algo dual. O
dualismo marca estas filosofias. A forma, porém, como estas filosofias enfocaram a natureza é
que se distam uma da outra.

IV – Política

1. O Estado como direito e força

1.1 – Considerações iniciais

Inicialmente. Mesmo que de forma primária, elementar, faz-se necessário apresentar uma
primeira definição de Estado e de Poder. Essas, no entanto, serão melhor detalhadas adiante
nas concepções liberal, democrático-burguesa e marxista sobre Estado e Poder.

A) Estado

Estado significa, genericamente falando, a maior e a mais complexa organização política


que a humanidade conhece. Ela se refere a um complexo territorial e demográfico sobre o qual
se exerce uma dominação (o poder político) bem como a coexistência e coesão de leis e
órgãos que dominam sobre esse complexo. Assim sendo, o Estado é um poder político que se
exerce sobre um território e sobre um povo.
Há três elementos constituintes do Estado: poder político, povo e território. Essas três
características são necessárias ao se fala em Estado. Especificamente sobre esse curso, o
Estado e o poder serão analisados a partir do início do século XVI primeiramente por Nicolau
Maquiavel (1469-1527), considerado o pai da ciência política ou o primeiro pensador que
abordou o Estado como unitário, dotado de poder político exclusivos, independente de outros
poderes. Com Maquiavel, o Estado se separa de outros poderes, tal como a Igreja, por
exemplo. Maquiavel é o primeiro filósofo a refletir sobre a formação dos Estados modernos. Na
sua obra O Príncipe, Maquiavel se refere ao Estado como dominação e o divide em republicano
ou principado. Trata-se de dominação sobre os homens.
Depois de Maquiavel, o Estado se separa da religião e assume um caráter independente.
Daí em diante pode-se falar em uma ciência política, em um estudo sobre o Estado e o poder.
Duas características distam os Estados grego e romano, Estados antigos, do Estado moderno.
A primeira característica do Estado moderno é ser autônomo, independe de outros aspectos
constituintes da organização social. A segunda característica é a distinção entre Estado e
sociedade civil. Embora o Estado seja expressão da sociedade civil, ele dela é independente.

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Uma vez assumido o poder político, nossos representantes agem independente da sociedade
civil, embora a ela esteja condicionado em certos aspectos.
Uma terceira característica do Estado moderno o diferencia do Estado medieval. O Estado
medieval é propriedade do senhor. Ele é dono do território e de tudo que nele exista (homens e
bens). No Estado moderno existe uma identificação, uma filiação absoluta entre o Estado e o
monarca, representante da soberania estatal.

B) Poder

Há várias nuances em relação ao poder. De Maquiavel a Marx, a questão do poder é


pensada em relação ao Estado. Trata-se de um poder político. No entanto, o poder pode se
apresentar em outras situações que não a estatal. Pode-se falar de poder político, mas também
de micro-poder, ou daquele poder que se exerce diferentemente do poder estatal. Complexos
pessoais, poderes religiosos, psíquico etc são exemplos da complexidade desse termo.
No caso específico desse curso, empregar-se-á dois vieses para a noção de poder: o poder
Estatal moderno, pensado a partir de Maquiavel até Marx e o micro-poder, apresentado por
Michel Foucault.

1.2 – Nicolau Maquiavel e a questão do Estado

Maquiavel, ao refletir sobre os problemas de sua época, acaba por elaborar não uma
primeira teoria do Estado moderno, mas sim uma teoria de como se formam os Estados
modernos, como eles se constituem. Como acima foi exposto, O Estado na teoria maquiavélica
é autônomo. Isto quer dizer que o Estado passa a ter suas próprias características, faz política,
tem técnicas e leis próprias. Sua função não é mais a de assegurar felicidade e virtude, tal e
qual eram funções do Estado antigo, por exemplo, ao de Aristóteles. O Estado lida com a
realidade efetiva. Segue a linha do pensamento experimental.. As coisas são o que elas são e
não o que elas deveriam ou poderiam ser. Há grande diferença, afirma o italiano, entre o como
as coisas são e o como elas poderiam ou deveriam ser. Daí segue-se um Estado que se
preocupa com o que pode e é necessário fazer e não sobre aquilo que seria certo fazer.

1.2.1 – Poder e Força

O Estado autônomo de que nos fala Maquiavel em sua obra O Príncipe é centrado no poder
daquele que o recebeu por herança ou daquele que o conquistou, o Príncipe. De outra forma, o
Estado se mantém pelas leis do Príncipe. O Estado é o próprio Príncipe. O poder emana e se
mantém pelo Príncipe.
Maquiavel não nos fala de um poder extra-mundano. Nesse aspecto, o pensador italiano é
muito realista. O Estado se mantém por suas leis e ao Príncipe que conquistou um Estado cabe
o papel de mantê-lo pelo poder que detém. O homem, por sua vez, não é por natureza nem
bom nem mau, mas tem uma tendência a ser mau. Assim sendo, o político não deve confiar na
bondade humana, mas agir com desconfiança em relação aos homens que governa, afinal de
contas ele pode tender ao mau. O político deve governar mantendo duas características
prementes, ser amado e temido ao mesmo tempo. Guiar-se pelo aspecto negativo do homem, a
possibilidade de ser mau e governar pelo inicialmente pelo amor e temor que os homens dele
ter. Caso não o consiga por essas características, o governante deve gerenciar o Estado
usando a força e o poder que tem enquanto autoridade máxima do Estado.
Maquiavel nos fala, em O Príncipe, que este deve, ao conquistar um novo principado, matar
o governante anterior, toda a sua família e seus auxiliares de governo mais próximos para que
nada de antigo possa retornar a pleitear o governo. É bom que mantenha as próprias leis
vigentes e aos poucos alterá-las, imprimindo-as a sua cara. O Estado deve ter a cara do
Príncipe e este deve mantê-lo pelo poder da força.

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1.2.2 – Fortuna e Virtu

Maquiavel não entende o que hoje em dia se compreende por fortuna e virtude. Acima
afirmamos que um Príncipe deve se guiar ou governar não pelo ideal ou o que poderia ser, mas
o que deve ser. A partir dessa consideração, Maquiavel propõe sua concepção de fortuna e
virtude. Diferentemente da tradição, o pensador italiano nos fala de virtude que não consiste em
um conjunto de qualidades morais que o homem pode ter, mas da capacidade que o Príncipe
deve ter para ser flexível às circunstâncias que se manifestam em seu governo e mudando com
elas para manter seu poder político. A virtu, segundo Maquiavel, é a capacidade do político de
se manter no poder, alterando-se constantemente com as circunstâncias que o cercam.
Da mesma forma, a fortuna foi entendida pela filosofia de diversas formas. Nada comparada
ao conceito que Maquiavel lhe imprime. Fortuna significa um conjunto de circunstâncias que
não dependem de nós a da nossa vontade. Fortuna não é riqueza econômica ou religiosa.
Fortuna são todos os fatores com os quais convivemos e que não dependem da nossa vontade.
Assim sendo, um bom político, para o Maquiavel de O Príncipe, seria aquele que conseguisse
se manter no poder em virtude das circunstâncias que podem advir.

1.3– Hobbes, Locke e Rousseau: estado de natureza e direitos naturais. Contrato e


estado civil.

1.3.1 – Thomas Hobbes (1588-1679)


Thomas Hobbes defende, diferentemente de Aristóteles, que o homem não é naturalmente
um ser político. Para esse teórico político inglês, o homem nasce igual aos outros homens. Em
seu estado de natureza, o homem tem direito a tudo e a todos. Dois aspectos marcam o ponto
inicial da reflexão de Hobbes sobre o estado de natureza dos homens. Primeiramente, há duas
leis de natureza. Todos os homens desejam a manutenção de suas vidas. E para alcançar tal
fim, todos eles têm que preservar a paz. Depois, num segundo momento, não há, em estado de
natureza, justiça ou injustiça, pois naturalmente não existem valores absolutos, valores que
valem para todos os homens. Os valores são frutos de convenções estabelecidas pelos
próprios homens. E no estado de natureza ainda não se convencionaram tais valores.Daí não
haver valores universais, absolutos.
O nascimento do Estado é marcado pelo temor recíproco entre os homens. Uma vez que
todos, em estado de natureza, têm direito a tudo e a todos, ou seja, naturalmente todos são
iguais, a vida das pessoas corre perigo. Posso decidir o que bem desejar. O nascimento do
Estado procede dessa situação inicial dos homens. Dois postulados marcam a natureza
humana. Deles resulta a ciência política e a origem do Estado. O primeiro deles é o que Hobbes
denominou por desejo natural. O desejo natural significa que cada um pode gozar
exclusivamente dos bens que pertencem a todos. O segundo postulado é o da razão natural.
Esta significa que todos fogem da morte violenta como do pior dos males naturais.
Já que os homens, em estado de natureza, têm direito a tudo e a todos, que o mundo lhes
pertence, que eles podem gozar de todas as coisas e seres do mundo e tentar fugir da morte
violenta, segue-se daí que haverá problemas vindouros. Os homens podem desejar as mesmas
coisas e assim sendo entrarão em guerra de todos contra todos. Ocorre que naturalmente os
homens são donos de tudo e de todos e, ao mesmo tempo, são seres de desejos. Na
realização dos seus desejos, os homens se colocaram diante de outros homens, desejantes
das mesmas coisas. Não havendo quantidade suficiente de objetos que satisfaçam seus
desejos, a guerra se imporá. Com a possibilidade da guerra, os homens correm riscos de
perderem as suas vidas e infligir o segundo postulado, fugir da morte violenta.
Para Hobbes, os homens não nascem mãos, mas com a necessidade de se impulsionarem
para alguma coisa (conatus). Na possibilidade de realização dos seus impulsos, podem ocorrer
percalços nesse processo. Outros homens podem atrapalhar a realização de seus desejos e aí
imperar a guerra entre homens. Daí surge a necessidade do surgimento do Estado. Nessa
situação, os homens se tornam lobos dos outros homens.

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Cientes da possibilidade de se matarem mutuamente e perderem a oportunidade de realizar
alguns dos seus desejos, os homens suportam os seus pares e fundam o Estado. O primeiro
passo para a fundação do Estado é a renúncia de todos os homens aos direitos naturais que
eles têm. Os homens renunciam aos direitos que têm e delegam a um terceiro homem, o
Estado artificial, o controle dos seus desejos naturais. Funda-se o Estado. Este serve para
controlar o impulso dos homens e o início da maldade. Dessa forma, os homens necessitam de
um Estado forte que controle os ímpetos de maldade dos homens.
Livremente, os homens em estado de natureza abrem mão dos seus direitos a tudo e a
todos e, pelo papel do contrato social, no qual todos renunciam aos seus direitos naturais,
nasce o Estado civil. Este é o Leviatã, mostro de sete cabeças que vigiar todos, olha para todos
os lugares, comanda e controla todos os homens.

1.3.2 – John Locke (1632-1704)


John Locke elabora uma filosofia política diferente da de Hobbes. Para Locke, o estado de
natureza dos homens é marcado pela liberdade. Todos os homens, por natureza, encontram-se
em um estado de perfeita liberdade. Têm liberdade para ordenar-lhes as ações e para regular-
lhes as posses e as pessoas, mas tudo dentro do limite da lei. O estado de natureza dos
homens é também um estado de igualdade, ou seja, ninguém tem mais do que qualquer outro,
sem subordinação ou sujeição a quem quer que seja. Sendo todos, por natureza, iguais e
independentes, nenhum homem deve prejudicar outrem na vida, na saúde, na liberdade, nas
posses.
Deus, ao criar o mundo, teria doado o mundo a Adão e aos seus sucessores. Liberdade aqui
é entendida como liberdade de propriedade. Todos têm direito de posse a tudo que Deus deu a
Adão. Ao nascerem, os homens são como tábua rasa. Nada há neles inscrito. Pos esse motivo,
os homens pode se tornarem bons ou maus, não são por natureza nem bons nem maus. Suas
ações vindouras devem ser marcadas pelas suas ações e vontades. Estas devem miram o
bem-estar e a felicidade, já que por natureza nada ao certo deles se pode dizer. Aí “reside” a
necessidade do surgimento do Estado. Este deve garantir-lhes a possibilidade de realização
dos seus desejos. Surge a necessidade do contrato. Este serve para evitar que aflore um
estado de guerra entre todos os homens. Se o estado natural dos homens consiste em ser
limitado apenas pelas leis de natureza, a liberdade do homem na sociedade consiste em não se
sujeitar a outro poder legislativo senão o estabelecimento pelo consenso, não pelo domínio de
outra vontade ou à limitação de outra lei do que aquela que este poder legislativo estabelecerá
conforme a confiança depositada nele.
O Estado de natureza lockeano não é igual ao Estado hobbesiano. Enquanto para Locke o
Estado requer participação dos homens, o hobbesiano delega a um terceiro, o detentor do
poder de Estado, a autoridade sobre tudo e sobre todas as coisas que existem. Não se trata de
um estado de natureza de guerra de todos contra todos, como o é na filosofia política de
Hobbes, mas pode tornar-se um estado de guerra entre todos. Isto se pode acontecer quando
uma ou mais pessoas recorram à força ou a uma intenção declarada de força para obter aquilo
que a norma natural proibiria, isto é, um controle sobre a liberdade, sobre a vida e sobre os
bens dos outros homens.
É justamente para evitar esse estado de guerra de todos contra todos que os homens
fundam e formam a sociedade e, consequentemente, abandonam o estado de natureza. Por
fim, a teoria lockeana acerca do Estado assume o aspecto de condição da liberdade e da
igualdade, com a afirmação da pessoa como sujeito de todo direito e, portanto, fonte e norma
de toda lei.

1.3.3 – Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)


Os homens em estado natural viviam nas matas, tendo vida natural,vivendo vida isolada,
sem lutas e comunicando-se pelos gestos, pelos gritos e gestos. Trata-se de um estado
hipotético no qual os homens eram dotados de sanidade moral, sentimento de justiça e amor.
Nesse estado, os homens não eram bons nem maus, mas tornou-se mau com a constituição da

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sociedade. Para Rousseau, a sociedade civil ou o Estado tornou o homem um ser depravado.
No estado de natureza, os homens não sabem o que é ser bom ou mau. Eles vivem na
condição natural das paixões e da ignorância do vício. Originalmente, os homens não são
racionais, mas sentimentos e paixões, vivem do instinto, não da reflexão, da autoconservação,
não da opressão. Trata-se do estado do bom selvagem inocente. Essa situação termina quando
alguém cerca um pedaço de terra, põe uma estaca na terra e diz: “isso é meu”. Com o
nascimento da propriedade privada, surge a sociedade e a divisão entre os homens.
A passagem do estado de natureza à sociedade civil ou ao Estado se dá por meio do
contrato social. Pelo contrato social, os homens renunciam à liberdade natural, à posse que têm
de bens e riquezas que possuem e concordam em transferi-las a um terceiro, o soberano.
Este,. Tem o poder de criar e aplicar leis. Torna-ser autoridade política. Assim sendo, o contrato
social funda a soberania. Todos os homens têm por direito natural direito à vida, ao que é
necessário à sua sobrevivência, ao seu corpo e à sua liberdade. As partes livres e iguais
contratam entre si e fundam o Estado, exatamente para permitir aos homens a garantia à vida e
a sobrevivência da espécie humana.
O soberano, na filosofia política de Rousseau é a vontade geral. Ele é a figura
representativa da soberania popular. Dessa forma, ao criarem o Estado, os homens estão se
submetendo à uma vida social, sujeitos às leis por eles mesmo criadas, aos direitos e deveres
sociais. Passam-se a viver em sociedade e transformam-se em co-responsáveis pela
sociedade. Tornam-se, enfim, cidadãos.

2. O Estado como processo histórico

2.1 – A história como dialética em Hegel

O alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) nasceu num período conturbado da
história. Aos seus 19 anos vê acontecer a Revolução Francesa, espelho para o povo alemão,
um pais deteriorado, sem infra-estrutura, pobre. Visando essa revolução, Hegel vê a
possibilidade de uma Alemanha altiva, rica, organizada. Mas, filosoficamente falando, o
pensador alemão identifica um problema central na cultura moderna. Trata-se do dualismo
moderno. As pessoas de sua época liam os pensadores modernos. Esses, segundo Hegel,
concebiam a realidade como alga coisa cindida. Há sempre algo de um lado e um outro algo do
outro lado. Os homens admitem que eles se encontram de um lado e a natureza de outro, deles
separada. Essa dicotomia leva Hegel a elaborar sua filosofia. Daí surge seu conceito de
história.
Hegel defendia a tese de que não há separação inicial entre homem e natureza. Tudo se dá
num processo contínuo, de tal monta que o homem está imbricado, reunido, misturado com a
natureza. Daí não se trata mais de uma teoria do conhecimento, teorizar algo apartado de mim,
mas de uma filosofia da história. Reunidos homens e natureza, tudo acontece de forma
histórica, em seu movimento, na dialética dos contrários. A história é a expressão dialética dos
acontecimentos que se formam. A sempre uma tese, a negação da tese e a reunião de ambas
numa síntese. Os aspectos negativos e positivos pelos quais os homens passam formam uma
tese. Num fluxo constante da história, novos acontecimentos ocorrerão e novamente aparecerá
uma nova tese, contrária à anterior: a antítese. O resultado do enriquecimento humano nesse
processo chama-se síntese. Assim a sociedade caminha, destruindo-se e reconstruindo-se no
fluxo eterno da história.

2.2 – O materialismo histórico dialético

Karl Marx (1818-1883) funda o materialismo histórico dialético. Oriundos da esquerda


hegeliana, os materialistas concebiam que tudo é matéria. Enquanto Hegel e os hegelianos
defendiam que havia um saber absoluto premente nos seres e nas coisas, os materialistas

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entendiam que a matéria era o que coordenava e articulava a vida das pessoas. O princípio era
a matéria e não a idéia, como propunha Hegel.
Marx amplia o conceito de matéria dos materialistas. Para ele, o princípio é a matéria, mas
ela se mostra em forma dialética, num movimento próprio que se dá mediante os modos de
produção e os meios de produção. Modo de produção é a estrutura mediante a qual a
sociedade se organiza e se reproduz. Existe, segundo Marx, os modos de produção
escravocrata, asiático, feudal e capitalista. Todos eles significaram a exploração dos mais
poderosos aos menos poderosos, dos detentores do poder em detrimento dos que só possuem
suas mãos-de-obra. Daí pensa Marx em formar uma teoria, questionar e destruir o modo de
produção no qual ele vivia, o capitalismo e funda uma sociedade mais justa.
No capitalismo, modo de produção no qual vive Marx, existe os proletários e os burgueses.
Os burgueses detêm o poder da sociedade, tanto financeiro quanto político. Os burgueses são
os donos dos meios de produção. Estes são todas as fábricas, indústrias e comércios que
controlam a fabricação e a venda do que é necessário à manutenção, à sobrevivência dos
seres humanos. Os proletários contam apenas com as suas mãos-de-obra. São empregados
pelos patrões, os burgueses, e obedecem suas ordens.
Nesse contexto, as relações sociais de produção ocorrem na submissão dos proletários aos
burgueses. Poderia parecer corretor afirmar que a submissão dos empregados aos patrões se
daria em nível financeiro. Para Marx, esta afirmação não é correta. Detento o poder de
manutenção das vidas dos proletários, os burgueses controlam o Estado, elegem os nossos
representantes políticos, controlam o país. São os grandes financiadores dos candidatos aos
cargos públicos e perpetuam sua riqueza em detrimento da pobreza das outras pessoas, os
proletários.
No capitalismo há uma relação social de produção marcada pela submissão geral dos
trabalhadores aos burgueses. Ela perpassa desde o aspecto financeiro até atingir o
pensamento. Os burgueses além da economia, ditam a moda, a Escola padrão, os produtos
mais importantes, a forma de pensar das pessoas. Marx considerava e lutou toda sua vida para
destruir essa forma de poder que aliena as pessoas e as transformam em objetos do mundo
financeiro.

V. Ética

A palavra ética origina-se de termos grego e romano. Tanto o éthos grego quanto o mores
romano têm significados semelhantes. Em última instância, ética significa – originária daqueles
termos – a morada do ser, a casa que se habita, o local de sua morada. Posteriormente, a ética
se distará da moral. Interessa nessa unidade, o estudo das éticas de Aristóteles, Kant e Sartre.

5.1 – Aristóteles: virtude e caráter


Na filosofia aristotélica, todas as ações humanas bem como todas as coisas da natureza
tendem a um fim específico e a um bem particular. Mas em termos genéricos, tudo e todos
estão em relação a um fim último e a um bem supremo que é a felicidade. Mas o que vem a ser
felicidade? Muitos homens a consideram em relação às suas paixões e riquezas. Para outros
homens, a felicidade está ligada à honra e ao sucesso. Mas todas essas filiações traem o
próprio homem, pois todas elas estão condicionadas dependentemente dessas coisas
aleatórias e efêmeras.
O homem, segundo Aristóteles, é ser racional e político por natureza. A realização da política
se faz na polis. A realização da razão humana se faz quando o homem domina seus apetites e
instintos em função de um bem maior. Nisso consiste a felicidade: o bom uso da razão em
função do Bem supremo, na busca das virtudes éticas. A submissão da alma sensitiva à razão
ocorre por meio das virtudes éticas. Virtude ética que nada mais significa do que a submissão
dos instintos à razão. A busca da justa medida entre o excesso e a falta é o que se pode
entender por virtudes éticas.

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Mas o que vem a ser virtude? Na alma se encontram, afirma Aristóteles, três espécies de
coisas: paixões, faculdades e disposições de caráter. Por paixões entende o filósofo os apetites
e a cólera, o medo, a audácia, a inveja, a alegria, a amizade, o ódio, o desejo, a emulação
(competição), a compaixão, e em geral os sentimentos que são acompanhados de prazer e dor.
Por faculdades, Aristóteles entende as coisas em virtude das quais se diz que somos capazes
de sentir tudo isso. Enfim, disposição de caráter significa as coisas em virtude das quais nossa
posição com referência às paixões é boa ou má. Por exemplo, com referência a uma dor, nossa
posição é má se a sentirmos de modo violento ou demasiado fraco, mas boa se a sentirmos
moderadamente.
O homem virtuoso é aquele que busca a felicidade como fim último e se dispõe a encontrá-
la em sua vida corriqueira, o que consiste em direcionar-se para o equilíbrio, a moderação, nem
o excesso nem a falta, não em termos quantitativos, mas qualitativos. Caráter é exatamente
viver essa disposição de busca mediana, agindo moderadamente.

5.2 – Immanuel Kant: dever e inclinação


Na filosofia geral de Kant percebe-se uma diferença entre o entendimento e a razão. O
entendimento humano refere-se ao mundo sensível e a razão ao mundo das coisas-em-si,
essências. Há portanto um mundo das aparências e um outro mundo, o das essências.
Inclinação significa a tendência do homem ao apetite habitual de natureza sensível. Dever, por
sua vez, dista de inclinação. O dever diz respeito a uma ação cumprida unicamente em vista da
lei e por respeito à lei.
Kant ficou conhecido no campo da ética por sua máxima: “devo agir de forma que minha
ação se torne uma máxima”. O dever é apresentado por Kant como a única ação racional
autêntica, isto é, ação determinada exclusivamente pela forma universal da razão. Não se deve
confundi-la com finalidade. Uma ação moral direcionada à finalidade não quer dizer dever. Uma
ação cumprida pelo dever tem seu valor moral pelo primado da vontade, pela qual a ação foi
determinada. Dever é, enfim, a necessidade de cumprir uma ação simplesmente por respeito à
lei e não por coisas ou interesses paralelos à ela.

5.3 – Sartre
5.3.1 – Existencialismo: liberdade e angústia
Dostoievski escreveu que “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Eis o ponto de
partida do existencialismo, afirma Sartre. O homem, assim, é lançado no mundo. Ele está
desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dele nada ao qual se possa amparar,
agarrar. A tese central do Existencialismo é a de que a existência precede, vem antes do que a
essência. Dessa forma, nada poderá ser explicado por recurso à natureza humana dada e
definitiva. O homem é livre, é liberdade. O homem está condenado a ser livre. Vivemos sem
desculpas e condenados à liberdade, o que significa que somos responsáveis por tudo que
fazemos ou deixamos de fazer. O homem está constantemente condenado a reinventar o
próprio homem. Este é um ser desesperado, o que significa que só podemos contar com a
nossa vontade ou com o conjunto de probabilidades que tornam a nossa ação possível. Desta
forma, o homem se torna um ser angustiado, tem que decidir sem parâmetro a nada externo a
ele ou tem que tomar decisões e agir por ele mesmo, só restando confiar em seu próprio
instinto.

5.3.2 – A ação e a responsabilidade


O agir humano está em íntima filiação com a angústia. O homem se encontra angustiado por
não poder contar com nada mais do que a sua intuição. Daí, a própria angústia constitui a
condição da ação humana. Isto significa que os homens devam encarar a pluralidade dos
possíveis e, ao escolher um caminho, ele deva saber que ele não tem nenhum valor, a não ser
o de ter escolhido aquele caminho. No entanto, o fato de escolher um determinado caminho e
não um outro pode e com freqüência influencia de diversas formas na vida dos outros homens.
Daí a responsabilidade.

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Na escolha de determinados caminhos e não de outros, o homem assume responsabilidade
direta sobre a vida de todos os outros homens engajados pela escolha. Assim, a
responsabilidade não é vista de forma exclusiva e individual, mas coletiva. Ao assumir uma
determinada escolha e agirem, os homens têm responsabilidades com o escolhido e com suas
ações, tendo em vista a convivência em sociedade e o afetar de suas ações em relação aos
seus pares. A responsabilidade que seria individual transforma-se em coletiva.

ANEXO: EXERCÍCIOS

1) Segundo Gilberto Cotrim, “o comportamento de grande parte dos animais é basicamente


determinado por instintos vinculados a estruturas biológicas hereditárias”. Qual aspecto
abaixo relacionado distingue os homens dos demais animais?
A( ) Os animais, assim como os homens, são instintivos e racionais.
B( ) Os seres humanos diferenciam-se dos demais animais no aspecto do instinto. Nós, seres

humanos, somos mais instintivos do que os outros animais.

C( ) Os animais têm a capacidade de distinguir cultura e trabalho.


D( ) Todos os seres humanos e os animais transformam a natureza e transmitem aos outros
seres de sua espécie o saber que eles acumularam.
E( ) Somente os seres humanos têm a capacidade de transformar a natureza e fazer cultura,
transmitindo de gerações a gerações o saber por eles acumulados. Somente os seres
humanos transformam a natureza, transmitindo aos outros o seu saber, a sua cultura.

2) Uma das características do trabalho é a transformação. O trabalho é uma atividade


tipicamente:
A( ) Humana e animal;
B( ) Humana e vegetal;
C( ) Humana;
D( ) Animal;
E( ) Animal e cultural.

3) Durante a Antigüidade, uma forma de trabalho era considerado uma atividade menor.
Tratava-se de qual trabalho:
A( ) Filosófico;
B( ) Científico;
C( ) Manual;
D( ) Intelectual;
E( ) Espiritual.

4) A consciência mítica tem diversos significados. Assinale o que ela NÃO pode significar:
A( ) Uma idéia falsa da realidade;
B( ) Uma crença exagerada no talento de alguém;
C( ) Algo irreal e supersticioso;
D( ) Símbolos que tentam explicar a realidade e dar sentido à vida humana;
E( ) Expressão racional da realidade em que vivemos.

5) (UFU) Escolha a alternativa correta.


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Na época de seu surgimento na Grécia Antiga, e com base em sua etimologia, o significado da
palavra Filosofia (philos sophia) é:
A( ) conhecimento indubitável;
B( ) amor à sabedoria;
C( ) amizade de Pitágoras por seus discípulos;
D( ) amor à leitura;
E( ) intuição racional.

6) A palavra cultura pode assumir diversos significados. Pode-se dizer de uma cultura de
peixes e abelhas, ou ao se referir a pessoas que possuem instruções ou informações,
chamá-las cultas. Da Grécia Antiga para cá, o termo cultura assumiu características
especiais. O que você entende por cultura?

7) O termo trabalho é muito empregado pelos homens. Mas o que se poderia estar entendo
por trabalho, ao fazer uso desta palavra? O que é trabalho?

08) A partir dos quadros abaixo, estabeleça relações entre cultura e consumo alienado

11) A palavra filosofia é formada por dois termos gregos. Quais são e o que significa cada um
desses termos?

1) O que distingue os homens dos animais?

2) O que é cultura?

3) O que é alienação?

4) O trabalho é caracterizado pela transformação. Trabalho é um pensamento e uma


realização. O que é trabalho?

5) Que diferença há entre trabalho e serviço?

6) O que é consumo alienado?

7) O que se pode entender por lazer alienado?

8) Durante a Antigüidade, o trabalho manual era considerado uma atividade menor. O trabalho
intelectual, executado pelos homens, era considerado uma atividade de maior relevância
entre as pessoas daquela época. O trabalho de maior importância era o filosófico. Explique
o porquê da consideração maior ao trabalho filosófico?

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9) Quais características são próprias de consciência mítica?
10) Qual ou quais características marca(m) a consciência racional?

11) O que é senso comum?

12) Etimologicamente falando, o que significa a palavra filosofia?

13) Segundo Gilberto Cotrim, “o comportamento de grande parte dos animais é basicamente
determinado por instintos vinculados a estruturas biológicas hereditárias”. Qual aspecto abaixo
relacionado distingue os homens dos demais animais?
A( ) Os animais, assim como os homens, são instintivos e racionais.
B( ) Os seres humanos diferenciam-se dos demais animais no aspecto do instinto. Nós, seres

humanos, somos mais instintivos do que os outros animais.

C( ) Os animais têm a capacidade de distinguir cultura e trabalho.


D( ) Todos os seres humanos e os animais transformam a natureza e transmitem aos outros
seres de sua espécie o saber que eles acumularam.
E( ) Somente os seres humanos têm a capacidade de transformar a natureza e fazer cultura,
transmitindo de gerações a gerações o saber por eles acumulados. Somente os seres
humanos transformam a natureza, transmitindo aos outros o seu saber, a sua cultura.

14) A consciência mítica tem diversos significados. Assinale o que ela NÃO pode significar:
A( ) Uma idéia falsa da realidade;
B( ) Uma crença exagerada no talento de alguém;
C( ) Algo irreal e supersticioso;
D( ) Símbolos que tentam explicar a realidade e dar sentido à vida humana;
E( ) Expressão racional da realidade em que vivemos.

15)(UFU) Escolha a alternativa correta.


Na época de seu surgimento na Grécia Antiga, e com base em sua etimologia, o significado da
palavra Filosofia (philos sophia) é:
A( ) conhecimento indubitável;
B( ) amor à sabedoria;
C( ) amizade de Pitágoras por seus discípulos;
D( ) amor à leitura;
E( ) intuição racional.

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