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Candomblé: história e ritual da nação jeje na


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LUIZ ALBERTO COUCEIRO

Candomblé como ação (dos jeje) no Os grupos étnicos africanos classi�cados


mundo como jeje pertenciam à área denominada por
Parés como “área dos gbe falantes”, região seten-
A formação do Candomblé na Bahia teve trional do atual Togo, da República do Benin e
como pilar central a nação jeje. Esta a�rmação o sudoeste da Nigéria. Foi entre os grupos que
já é su�ciente para despertar o interesse do leitor habitavam esta região que surgiu o termo “vo-
pelo livro de Luis Nicolau Parés, professor de dum”, utilizado para identi�car as divindades
Antropologia da Universidade Federal da Bahia. ou forças invisíveis do mundo espiritual. Esta
É ela que dá a tônica argumentativa do livro, fru- pequena palavra designa uma crença que apa-
to de pesquisa de sete anos, envolvendo resenhas rece em vários documentos sobre a América
da literatura especializada e atual sobre o trá�co portuguesa, o Império do Brasil e a Primeira
de escravos para a Bahia de Todos os Santos, as República, ou seja, a de que pessoas acreditam
disputas internacionais pelos domínios desta ati- no poder de “espíritos” ou “entidades espiritu-
vidade econômica, as relações internas de povos ais” para intervir em seu mundo, na vida co-
africanos com comerciantes europeus por aquela tidiana. Este dado é fundamental para que se
atividade comercial, pesquisa em fontes primá- possa compreender a construção de uma iden-
rias de diversos arquivos, além de trabalho etno- tidade coletiva entre os jeje, desembarcados
grá�co em terreiros de Salvador e de Cachoeira, maciçamente na Bahia de Todos os Santos da
cidade do Recôncavo da Bahia. Mas, por que primeira metade do século XVIII. Este evento
os jeje, e não mais os nagô, entram no centro ocorreu graças aos fortes laços estabelecidos en-
da discussão sobre a construção do Candomblé tre os portos da Bahia e os da África gbe-falante
como instituição religiosa na Bahia? pelos tra�cantes de escravos baianos, que em
O argumento de Parés não está centrado no muito se aproveitaram da produção de fumo do
desmerecimento dos nagôs e dos termos ioru- Recôncavo para comprar escravos naquela área.
bá, na construção do Candomblé como ins- Alguns libertos retornados trataram de interme-
tituição religiosa. Os alicerces do argumento diar as relações econômicas entre os tra�cantes e
são a demonstração empírica da presença dos as elites políticas locais, em cidades como Uidá,
jeje, principalmente até a década de 1860, na dando continuidade ao comércio de escravos,
formação ritual e lingüística do Candomblé mesmo na clandestinidade, até por volta de
na Bahia. Esta demonstração está pautada em 1850 – quando o governo imperial brasileiro
duas linhas mestras: a movimentação do trá�co se empenhou na aplicação da Lei Eusébio de
de escravos africanos da Costa da Mina para a Queiroz, que proibia o trá�co internacional de
Bahia de Todos os Santos e as fontes documen- escravos para o Brasil, de�nitivamente.
tais produzidas no entorno do envolvimento Se, de um lado, temos o impacto demográ�co
de policiais e membros da elite política com de uma leva de africanos escravizados que com-
rituais de Candomblé no século XIX. partilhavam a crença no “vodum”, em Salvador,

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


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de outro, temos a ação policial se imiscuindo na entre a construção da parte historiográ�ca de


prática religiosa, produzindo uma série de relatos seu trabalho e da parte baseada em entrevistas
ricos em dados sobre a composição social dos ca- e etnogra�as produzidas em terreiros de Can-
lundus e dos candomblés, os objetos rituais uti- domblé na Bahia.
lizados bem como alguns dos termos religiosos. O sucesso da institucionalização do Can-
A postura n.º 59, de 27 de fevereiro de 1857, domblé está ligado, e Parés o demonstra de
proibia os batuques, as danças e as reuniões de modo convincente, a outra característica: a re-
escravos, em qualquer lugar e hora, sob pena de lação entre ganhar dinheiro e obter êxito nesta
oito dias de prisão. Mas os livres e os libertos não empreitada através do recurso às forças mági-
tinham o dever de respeitar esta postura. Pagan- cas. A�nal, em situações cotidianas de maior
do uma licença à polícia, podiam organizar li- dramaticidade emocional – como era a vida de
vremente as suas festas, muitas delas ligadas ao escravos, libertos e africanos livres, em todas as
Candomblé. Quando ocorriam batidas policiais cidades escravistas do Atlântico – o recurso às
nos calundus ou nos candomblés, fossem para crenças mágicas era uma garantia a mais para a
encontrar escravos fugidos, ou para reprimir ba- obtenção do �m desejado.
tuques e festas não autorizadas, ou simplesmente Ao estudar a formação das congregações reli-
para perseguir as práticas religiosas das “classes giosas, Parés demonstra que tal fenômeno estava
perigosas”, autos de apreensões e processos crimi- relacionado ao tempo e ao dinheiro disponíveis,
nais eram produzidos. Tais fontes mostram que mais ligados ao estilo de vida dos libertos e das
os espaços das práticas religiosas dos calundus, e escravas, que ganhavam a vida em atividades co-
depois dos candomblés, eram lugares de diferen- merciais, em grande parte das cidades escravas
ciação das diversas nações africanas. Estas nações das Américas.1 Os candomblés serviam, como os
foram se de�nindo na relação entre os escravos, quilombos e as casas de zungu, estas últimas, na
livres e libertos em torno das formas de ocupa- Corte, como lugares de pouso para escravos fugi-
ção do espaço urbano, e dos pontos de encontro dos dos seus senhores, que, pela natureza das ati-
onde eram estabelecidos os contatos. vidades características de sua condição social, não
Uma outra característica foi fundamental podiam manter uma relação ritual constante com
para o dimensionamento geográ�co dos agentes o Candomblé.2 Em Salvador, especi�camente,
sociais não-senhoriais em torno da religiosida- salta aos olhos a alta porcentagem de pessoas de
de: a fundação e a manutenção de espaços es- cor livres e libertas, estimada entre 30% e 40% da
táveis para a adoração de “ídolos” ou “�guras”, população total, nas primeiras décadas do século
típico das tradições da Costa da Mina, onde XIX, como fato necessário para o entendimento
habitavam muitos dos escravos jeje. No iní- da consolidação institucional dos candomblés.
cio, tais espaços eram domésticos, muitas vezes Com um grau de mobilidade social maior, os lí-
para a adoração de uma divindade, passando,
aos poucos, aos espaços extradomésticos, com 1. Para maiores informações acerca das atividades econô-
níveis de hierarquia mais complexos, dentro de micas de libertos, africanos livres e escravos, em Salvador
e na Bahia, respectivamente, ver REIS (1993 e 2003).
um calendário litúrgico melhor de�nido.
2. Para os quilombos como lugares de recepção de escra-
Como, então, as crenças mágicas foram ins- vos fugidos, ver GOMES (1995 e 2005). Já para as
titucionalizadas e ganhando um corpo expli- casas de zungu na Corte, ver SOARES (1998). Vale
cativo racionalizado no Candomblé da Bahia? notar que ambos autores montam seus argumentos
Esta é uma questão que perpassa todo o livro levando em consideração os quilombos e as casas de
de Parés e que, inclusive, serve de elo de ligação zungu como espaços dinâmicos de construção de
alianças e de resolução de con�itos.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 250-253, 2006


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deres religiosos dos calundus ou dos candomblés, relações ampla entre congregações religiosas de
desde o período colonial, conseguiam sedimentar fortes traços jeje, consolidando formas de soli-
alianças com membros de outras classes sociais, dariedade em momentos mais críticos da repres-
ampliando o poder político através da crença nos são promovida por membros da boa sociedade
“voduns” para manter as casas de culto em plena imperial. Apoiando-se na historiogra�a recente
atividade. Neste sentido, Parés argumenta que as sobre as irmandades religiosas do período colo-
�guras conhecidas como ogãs eram recrutadas nial, Parés argumenta que as intensas ligações
entre pessoas in�uentes para interceder a favor entre os grupos religiosos no século XIX tinham
dos candomblés, impedindo a prisão de seus lí- relação com um comportamento de longa du-
deres e a interrupção de suas atividades rituais. A ração temporal, remontando ao incentivo se-
argumentação de Parés, então, entrelaça relações nhorial para a formação daquelas irmandades,
políticas, formas de uso do dinheiro na sociedade as quais contavam com a participação ativa de
escravista da Bahia e a visão de mundo dos agentes escravos, africanos livres e libertos.
sociais, baseada na crença em poderes mágicos. Mas e após os anos 1860, como �cou a
A conduta metódica de administração do di- in�uência jeje na institucionalização do Can-
nheiro ganha por libertos e escravas, em Salvador domblé na Bahia, o leitor, como eu mesmo ao
em larga medida pode ter ajudado na consolida- ler o livro, pode ter se perguntado?
ção dos procedimentos mágicos dos jeje, como Nos anos 1871-1891, houve o que �cou
uma ação que tinha resultado no mundo social. conhecido entre os intelectuais que estudaram
Este clima social foi favorável à predomi- as “religiões afro” na Bahia e o “povo-de-santo”
nância da tradição jeje no Candomblé dos anos como “processo de nagoização” do Candom-
1860, o que pode ser con�rmado na análise blé da Bahia, quando a identidade nagô-iorubá
minuciosa de Parés das notícias do periódico sobrepujou as referências às características jeje.
O Alabama, que alude a um nível complexo e Neste período, a “africanidade” foi construída
bem estruturado de institucionalização religio- como uma forma de resistência das antigas casas
sa em Salvador. Na cidade, predominavam os de culto, mesmo já crioulas no século XIX, para
“indivíduos”, praticantes de Candomblé, mas se manterem à frente das casas fundadas mais re-
que não lideravam hierarquia complexa algu- centemente. Parés ressalta que, neste período, a
ma, desenvolvendo práticas de “exorcismo” e idéia de que as “coisas da África” eram mais fortes
de “cura”, cultuando uma única entidade. Já do que as “crioulas”, nos efeitos dos feitiços, per-
nas roças ao redor da cidade, para onde escra- passava fortemente vários grupos sociais. Assim,
vos fugidos seguiam com maior freqüência e aquilo que as pessoas não diziam ser “africano”,
onde se localizavam quilombos diversos, esta- passou a ser dito africano. Também neste perí-
vam os candomblés com uma hierarquia mais odo muitos terreiros baianos se comunicavam
complexa e o culto de mais de uma divindade com a Costa da Mina, legitimando a sua hierar-
espiritual. Trata-se, mais uma vez, de um traço quia frente aos outros terreiros que não tinham
da matriz de culto religioso jeje, e não nagô. estes vínculos diretamente estabelecidos.3
Conforme Parés, há outros indícios desta O século XX foi palco de uma proliferação de
marcante e fundamental presença. Ele encon- Candomblés baseados, direta ou indiretamente,
trou, em O Alabama, um maior número de em certas características da religião “vodum”, ou
termos jeje do que nagô, na década de 1860 e
que, por mais imprecisões jornalísticas que pos- 3. Para uma discussão detalhada das ditas “nações afri-
sam ter sofrido, indicam que havia uma rede de canas” em Salvador e no seu entorno, ver OLIVEIRA
(1995/1996 e 1997).

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 250-253, 2006


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seja, o culto a uma constelação ou a grupos de di- Parés mostra a importante diferença entre os
vindades, com rituais que utilizam a performan- métodos e investigação da História, as formas
ce seriada. As etnogra�as produzidas por Parés de construção da memória e os métodos de aná-
demonstram como tais características, constru- lise baseados na etnogra�a, uma das marcas da
ídas historicamente através da in�uência da re- Antropologia, para a construção do livro.
ligiosidade dos jeje na Bahia, se transformaram O livro de Parés trata, em suma, das condi-
em pontos centrais da vida social dos candom- ções de possibilidade para a força do Candomblé
blés e do exercício ritual da crença nas divinda- na Bahia como religiosidade institucionalizada,
des, essencialmente dinâmicas. Na formação do condições estas historicamente construídas e
Candomblé, além destes elementos demonstra- com uma compreensão memorial do “povo-de-
dos no livro, encontra-se também a capacidade, santo” nos dias atuais. Candomblé, assim, não é
oriunda do “vodum”, de, ao longo dos séculos, um termo engessado, mas em movimento cons-
incluir outras divindades aos panteões existentes. tante de mudança social, como a própria vida
A formação é, assim, compreendida como termo social. Ainda, e sempre, em formação.
que dá dinamismo à leitura das fontes diversas
pesquisadas e produzidas pelo autor. Referências bibliográ�cas
O sentido do termo formação usado por Parés
não remonta, assim, o entendimento do modo GOMES, Flávio dos Santos. 1995. História de quilombolas:
pelo qual as características dos Candomblés na mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janei-
ro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. (2ª.
Bahia, no presente, foram gestadas no passado
edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006).
para que se possa compreender como chegamos ______. 2005. A hidra e os pântanos: mocambos, qui-
ao presente. Ao compreendermos isso, ter-se-ia lombos e comunidades de fugitivos no Brasil – séculos
as bases para a de�nição dos rumos da nossa XVII-XIX. São Paulo: Editora Unesp / Polis.
sociedade, vista muitas vezes como monolítica OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. 1995/1996. Viver e
e homogênea. Parés usa o conceito de formação morrer no meio dos seus: nações e comunidades afri-
canas na Bahia do século XIX. Revista USP, São Paulo,
no sentido de pensar o passado à luz do cruza-
n. 28: 175-193, dez./fev.
mento dos dados coletados das fontes impres- ______. 1997. Quem eram os “negros da Guiné?” A ori-
sas, das conclusões da historiogra�a pertinente gem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia, n. 19-20: 37-73.
ao assunto, da memória oral e da prática ritual REIS, João José. 1993. A greve negra de 1857 na Bahia.
– etnografada pelo autor – de certas casas de Revista USP, n. 18: 7-29, jun./jul./ago.
Candomblé de Salvador e do Recôncavo Baia- ______. 2003. Rebelião escrava no Brasil: a história do
levante dos malês em 1835. Ed. revista e ampliada.
no. Ele não coloca o presente em estado pronto
São Paulo: Companhia das Letras.
e inquestionável, mas como fruto de uma cons- SOARES, Carlos E. Líbano. 1998. Zungu: rumor de
trução de uma narrativa e das percepções que os muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Es-
agentes sociais têm do passado. Neste sentido, tado do Rio de Janeiro.

autor Luiz Alberto Couceiro


Professor de Sociologia e Antropologia / Faculdade São Bento - BA
Doutorando em Antropologia / UFRJ

Recebida em 25/10/2006
Aceito para publicação em 13/12/2006

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 250-253, 2006

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