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INTRODUÇÃO

de Paul Arbousse-Bastide

Origens

Em 1753, a Academia de Dijon propôs, para prêmio do ano seguinte, a


questão: Qual a origem da desigualdade entre os homens e será ela permitida
pela lei natural? Rousseau resolveu concorrer mais uma vez. Para se concentrar
melhor, porém, deixou Paris e afastou-se do convívio dos demais, perto de uma
floresta, em Saint-Germain. As Confissões contam qual era então seu estado de
espírito: "Metido o dia todo nafloresta, procurava e aí encontrava a imagem dos
primeiros tempos dos quais orgulhosamente traçava a história; não dava ouvidos
às pequenas mentiras dos homens, minha alma elevava-se até a divindade". O
escritor acabou a obra em Chambéry, redigindo uma dedicatória à República de
Genebra, que traz a data de 12 dejunho de 1754. A obra apareceu impressa sob
o título de Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens.
Asfontes deste segundo discurso foram estudadas por Morei'. São duas: de
um lado, Rousseau sofreu a influência dafilosofia enciclopédica, e, de outro, a
das ciências naturais e históricas.
1) Os filósofos, como Diderot e Condillac, os juristas, como Grócio e
PufendorJ, tinham destruí do a idéia tradicional de uma criação do estado social
por Deus e difundiram as idéias de uma evolução natural do homem e das socie-
dades, de sua organização progressiva da barbârie para a civilização; dessesfiló-
sofos e juristas, teóricos do direito natural, Rousseau toma, aliás, mais o seu mé-
todo do que as idéias, em relação a um bom número das quais, pelo contrário,
proclamará seu desacordo. O método consiste em reconstruir racionalmente a
história humana em lugar de se basear exclusivamente nos dados da geografia,
da erudição e da teologia; por aí pode-se fazer um julgamento dessa história,
justificando-a ou condenando-a. Em alguns pontos de pormenor, Rousseau
chega até a adotar quase que a teoria completa de um de seus predecessores: a
teoria das paixões é de Diderot. A origem de nossos conhecimentos, partindo dos
sentidos, foi descrita por Condillac; o nascimento da idéia de propriedade fora
analisado por Grácio e Pufendorf.
2) Diversamente dos filósofos e apesar de suas próprias declarações. Rous-
seau pede aos fatos a confirmação de seus raciocínios. Apóia seu sistema no es-

, Annales Jean-Jacques Rousseau, 1909. (N. de P.A.-B.)


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tudo do corpo humano, das raças e dos povos. Suas principais fontes, neste
ponto, são: Buffon, na sua monumental História Natural, da qual cita sobretudo
o capítulo sobre A Natureza do Homem; P. Dutertre, autor de uma História
Geral das Antilhas Habitadas pelos Franceses; e a História das Viagens, publi-
cação periódica, editada desde 1746. Foi daí que o filósofo extraiu o retrato,
desde então legendário, do "bom selvagem': Convém lembrar Montaigne e,
especialmente, o capítulo dos Ensaios sobre Os Canibais".

Análise sistemática do discurso

Dedicatória:

A dedicatória é dirigida à República de Genebra. Rousseau nela descreve o


Estado ideal, naforma por que decorre das teses enunciadas no segundo discurso
e atribui a origem dessas teses e seu valor ao fato de, na sua mais tenra infância,
ter sido formado de acordo com os costumes e as leis da República de Genebra.
A) O escritor apresenta as razões pelas quais escolheu a República de
Genebra para dedicar-lhe a obra. Felicita-se por ter nascido em Genebra, o Esta-
do mais perfeito possível existente na terra. Se não tivesse afelicidade de lá nas-
cer, as seguintes razões ofariam reconhecer em Genebra o Estado mais perfeito:

a) Razões morais:

1) Lá a virtude individual é idêntica à virtude social.


2) Existe uma unidade profunda entre os governantes e os governados.
3) O homem é livre.
4) A autoridade da lei não reconhece exceção para nenhum privilegiado.
5) A ancianidade da lei é afiadora de sua adaptação ao povo que, de sua
parte, está muito bem adaptado a ela.

b) Razões políticas:

1) Genebra não possui ambições em relação a seus vizinhos. Seus vizinhos


também não possuem nenhuma em relação a ela.
2) O direito de legislação é comum a todos os cidadãos, mas reserva-se aos
magistrados o direito de propor leis. Com isso evitam-se dois erros: o de Roma,
que excluía os magistrados do poder legislativo, e o de Atenas, que lhes conferia
todo esse poder.
c) Razões "providenciais": as amenidades da região e do clima; as riquezas
do solo.
B) O autor dirige a cada categoria de genebrinos uma dedicatória especiql:
1) Aos cidadãos, não desejafazer a sua felicidade, uma vez que elajá exis-
te, mas sim conservá-Ia, obedecendo aos magistrados.
2) Aos magistrados dirige elogios devidos felicidade que proporcionam a
à

2 A esse respeitopoder-se-â recorrer ao brilhante livro, copiosamente.documentado, de Afonso Arinos de


Mello Franco: O [ndio Brasileiro e a Revolução Francesa, Ed. J. Olympio, Rio de Janeiro, 1937. (N. de
P.A.-B.) ,
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seus administrados e à consideração com que tratam as classes sociais mais


desfavorecidas, das quais fazia parte o pai de Rousseau.
3) Aos pastores da religião, que dão o exemplo do amor ao próximo e à
pátria.
4) Às mulheres, guardiãs dos costumes e da paz.

Conclusão:

A República de Genebra oferece a imagem da verdadeira felicidade. A


Rousseau basta contemplá-Ia para sentir-se feliz,

'PREFÁCIO

A) O autor expõe a idéia geral do Discurso.


i) O conhecimento do homem é o mais importante de todos.
2) A dificuldade está em que se impõe distinguir o homem como deveria ser
(estado de natureza original), do homem em que se transformou (evolução do
tempo devida a mudanças exteriores e ao progresso natural do homem). Há, pois,
uma bondade original da natureza humana: a evolução social corrompeu-a.
3) A aplicação dessa idéia geral ao problema particular da desigualdade:
existe uma igualdade original inscrita no homem natural; causas físicas produzi-
ram pouco a pouco as várias desigualdades, que são artificiais.
B) O autor justifica o método observado no Discurso.
i) O método é o raciocínio; somente esse possui rigor lógico, mas suas
conclusões são hipotéticas: " ... conhecer bem um estado (o estado de natureza)
que não existe mais, que, talvez, nunca existiu, que provavelmente jamais existi-
rá, mas do qual se impõe, no entanto, possuir noções justas".
2) Esse primeiro método precisa ser completado por um segundo: O recurso
à experiência. Dificuldades na aplicação desse segundo método: má vontade dos
filósofos e dos chefes de Estado.
C) O autor afirma acreditar que seu Discurso traz uma solução ao pro-
blema do direito natural.
i) Os autores se contradizem entre si sobre essa questão e contradizem-se
a si mesmos, dando uma definição abstrata e complicada da coisa que hipotetica-
mente é "natural".
2) Rousseau definiu o direito natural em função não do estado social, que
é posterior ao estado de natureza, mas do homem natural original.
3) Encontrou no Discurso os dois fundamentos do direito natural: o ins-
tinto de conservação, que prende o homem a si mesmo, e a piedade, que o prende
a outrem.

Conclusão:

i) A oposição entre os poderosos e osfracos só superficialmente explica a


evolução das sociedades. Impõe-se procurar umfundamento naturalprimitivo.
2) Essefundamento permite distinguir aquilo que na sociedadefoi desejado
pela natureza, isto é, por Deus, do quefoiproduzido pelo homem.
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DISCURSO

Nas páginas preliminares, o autor formula com precisão o problema de que


irá tratar. Distingue duas espécies de desigualdade: a desigualdade natural oufi-
sica, e a desigualdade moral e política. Não se trata de procurar a primeira ori-
gem ou as relações entre as duas, mas de estudar como se deu a passagem da pri-
meira à segunda. A própria formulação do problema leva Rousseau a tomar
posição em relação a questões de método: é necessário alcançar novamente o es-
tado de natureza pelo raciocínio; impõe-se evitar o erro' dos filósofos que atri-
buem aos selvagens sentimentos dos civilizados; tem-se de separar osfatos, pois
a história é contrária à natureza; tem-se de respeitar o ensino da religião, que re-
vela ter sido procurada imediatamente por Deus a passagem ao estado social. O
problema que subsiste para afilosofia é o seguinte: "Que poderia ter acontecido
ao gênero humano sefora abandonado a si mesmo".

PRIMEIRA PARTE

Análise do estado de natureza afim de determinar se nele reina a desigual-


dade. Para tanto, o autor rejeita duas espécies de dados: os conhecimentos sobre-
naturais e a evolução biológica do homem. Supõe que o homem, no estado de
natureza, se encontra constituído anatomicamente como hoje.
A) Descrição do homem no estado de natureza.

I) O homem físico

1) Suas qualidades. Tem organização fisiológica perfeita. Suas necessi-


dades são facilmente satisfeitas. É capaz de adquirir todos os instintos dos ani-
mais. Possui temperamento robusto, reforçado pela seleção natural, que elimina
os fracos. Ignora o uso das máquinas, seu corpo é seu único instrumento. É auda-
cioso e não tímido, pois tem consciência de sua força. Faz-se temer pelos ~
animais.
2) Suas enfermidades naturais. Não se deve exagerá-Ias. A criança é melhor
protegida por suas-mães do que osfilhotes de outros animais. O velho, por ter
menos força, sofre menos necessidades. As doenças, enfim, são raras. Na verda-
de, são produzidas pela vida social. Quem leva um tipo de vida simples, não fica
doente. A natureza fez-nos para sermos sadios e é remédio melhor do que os dos
médicos. "O homem que medita é um animal depravado. "
3) Verificação desta última tese:
Os animais, uma vez domesticados, degeneram. Os selvagens, de acordo
com os relatos de viajantes, possuem a vista, o ouvido e o olfato mais desenvol-
vidos do que nós. Todo ser vivo é, pois, pela sua natureza.fisicamente forte.

11) O homem psicológico

1) O homem possui, em comum com os animais, os sentidos de onde pro-


vêm as idéias; por meio deles, percebe e sente.
2) O que o distingue do animal é, em primeiro lugar, a liberdade; por ela, o .
homem quer e não quer,' deseja e teme. Depois, a faculdade de aperfeiçoar-se e
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também de retrogradar; é a causa das infelicidades dos homens, que não soube-
ram permanecer nafelicidade do estado natural.
3) Asfaculdades intelectuais superiores nascem dasfaculdades inferiores.
a) A razão é posta em ação pelas paixões que, por sua vez, são suscitadas
pelas necessidades. As paixões elementares reduzem-se a três desejos e um
temor: o desejo de nutrição, o de reprodução e o de repouso; o temor da dor. O
homem, ignorante do que seria a morte, não poderia temê-Ia.
b) Essa opinião pode ser comprovada, de um lado, pela história do pro-
gresso intelectual, que está condicionado pelas paixões e pelas necessidades,
incessantemente aumentadas, do homem social; de outro lado, pela observação
dos selvagens, que não possuem desejos ou imaginação, e vivem inteiramente no
momento presente.
c) O progresso intelectual supõe trabalho, curiosidade, previdência - coi-
sas próprias não do homem natural mas do homem social. O progresso intelec-
tual supõe também duas condições que são as convenções sociais: a linguagem e
a divisão de terras.
4) Rousseau trata do problema da origem das línguas na intenção de pro-
var, de acordo com Condillac, que a língua supõe a sociedade e, portanto, não
pôde nascer naturalmente. Rousseau, consciente da dificuldade do problema e da
precariedade de todas as soluções, descreve os seguintes estágios naformação da
língua:
a) O grito é a primeira linguagem natural.
b) As inflexões da voz servem, pouco a pouco, para designar os objetos.
c) Surge, por fim, a instituição dos sinais, simbolizando as articulações da
voz. Limitada, a princípio, por palavras-frases, decompõe-se em infinitos e em
nomes próprios, depois estende-se aos adjetivos, que são abstrações, e às idéias
gerais. Compreende, então, as primeiras classificações lógicas e biológicas, como
as de Aristóteles.
5) Conclusão: a sociabilidade não está inscrita na natureza humana origi-
nal: O homem não tem necessidade de outrem. Não sofre nem a dor, nem a misé-
ria, que o tornariam digno de piedade. O estado de natureza caracteriza-se pela
suficiência do instinto, o estado de sociedade pela suficiência da razão.

Hl) O homem moral

1) Arnoralismo integral: o homem não é então nem bom, nem mau, ignora
tanto as virtudes quanto os vícios. O estado de natureza é mais vantajoso para
ele e lhe proporciona mais felicidade do que o estado social.
2) O primeiro princípio da moral natural: o instinto de conservação de si
mesmo. O erro de Hobbes, nesse ponto, consiste em ter acreditado que, para
conservar-se a si mesmo, impunha-se lutar com os outros e matá-los ou tomá-los
escravos. Ora, a ausência da bondade não implica a maldade. O direito sobre as
coisas de que tem necessidade não leva o homem natural a um domínio univer-
sal. Pode-se muito bem zelar pela própria conservação sem prejudicar a de
outrem. O erro de Hobbes deve-se a ter levado em consideração necessidades tar-
dias para julgar o estado original do homem. Ora, o homem primitivo não pode-
ria ser mau, uma vez que não sabia o que era bom e mau.
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3) O segundo princípio da moral natural: a piedade.


O homem é naturalmente indulgente; a piedade é um movimento da nature-
za, anterior a qualquer reflexão. A prova disso pode ser encontrada no instinto
maternal, nos animais e, até, nos tiranos mais cruéis, que, naturalmente, sentiam
piedade pelos males que não tinham causado.
O erro de Mandeville reside em ter pensado que a piedade é uma virtude
social. Ora, a piedade é mais forte no estado de natureza, onde nos identificamos
espontaneamente com os infelizes, do que no estado social, no qual nos dirigimos
pela reflexão. A piedade espontânea do povo, e até da canalha, é superior à do
filósofo. A primeira inspira a máxima natural: "Alcança o teu bem, causando o
menor mal possível a outrem". A segunda produz a máxima razoável: "Faze a
outrem o que queres que te façam". A vantagem do segundo princípio - a pie-
dade - é que ele equilibra o primeiro - a conservação de si mesmo - e o
compensa.
4) As paixões: São mais violentas no estado de natureza. A paixão pela
alimentação pode ser facilmente satisfeita e, quando isso se dá, extingue-se. A
mesma coisa acontece com o amor. Tem-se de distinguir, no amor, o moral que
éficticio, nascido da sociedade, inventado pelas mulheres, e o fisico, que é natu-
ral: "Qualquer mulher lhe serve". Comprovam-no, de um lado, os costumes dos
selvagens, a exemplo dos caraibas, e, de outro, os animais: os combates entre os
machos só existem onde as fêmeas são menos numerosas. Ora, existem mais
mulheres do que homens.

Conclusão: Descrição recapitulativa do homem no estado de natureza:

B) A existência e a importância da desigualdade num tal estado de


natureza.

1) A desigualdade é quase nula no estado de natureza. Em nenhuma-de


suas formas possui grande realidade ou influência.
2) A maioria das desigualdades resulta, com efeito, do hábito e da educa-
ção e, conseqiientemente, da sociedade que exercita ou não asforças do corpo e
as do espírito.
3) As desigualdades naturais, de início fracas e insignificantes, são multi-
plicadas pela sociedade que, de um lado, aumenta os desejos e, de outro,Javorece
a cultura. Desse modo, só se notou a beleza depois de inventada pelo amor men-
tal, e também a servidão e a dominação decorrentes da força e da riqueza só vie- .
ram a existir quando os homens convieram entre si quanto à sua dependência
mútua.

C) Transição para a segunda parte:

Falta, ainda, mostrar que a perfectibilidade e as virtudes sociais se desen-


volveram, que o homem se tornou sociável e mau. Uma tal mudança poderia não
se processar e permanecer o homem imutável no estado de natureza. É, também,
difícil e conjetural descrever como se originou o desenvolvimento. Escapam-nos
as causas mínimas que tiveram essas conseqüências consideráveis; elas consti-
tuem uma série de acasos.
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SEGUNDA PARTE

Rousseau descreve os cinco estágios pelos quais passou a humanidade no


seu desenvolvimento, caracterizando-se cada qual por um novo crescimento da
desigualdade. Entre eles, o estágio decisivo foi o da propriedade; dela vem todo
o mal, mas só foi inventada tardiamente e depois de longa evolução que a tornou
necessária.

A) O estado de natureza e os primeiros progressos.


)
1) Resumo da vida que levavam os homens no estado de natureza: vida
puramente animal, limitada às sensações puras "e com muita dificuldade
aproveitando-se dos dons que lhes oferecia a naturez a". Os acontecimentos prin-
cipais dessa vida eram a alimentação e a séxualidade, mas não implicavam
quaisquer relações contínuas dos humanos entre si. .
2) Os primeiros progressos nasceram das dificuldades que se apresentam
no meio natural, particularmente por causa dos animais. Consistiram em exercí-
cios do corpo, na-descoberta de armas naturais e nas primeiras disputas entre os
homens para proverem a subsistência.
3) Os primeiros progressos reforçam-se com a multiplicação rápida dos
seres humanos, que se espalham pelas mais diversas regiões do globo. A adapta-
ção às estações e às regiões leva à invenção da pesca, da caça, da vestimenta e
do fogo. Essas invenções suscitam a percepção confusa de novas relações, a for-
mação de uma consciência orgulhosa da superioridade humana sobre os animais
e, finalmente, a descoberta, feita por cada um, de que os outros pensam e agem
como ele, de que "o único móvel das ações humanas é o bem-estar".
4) Daí nascem os primeiros compromissos mútuos. O interesse comum,
mais freqüente do que a concorrência, ensina o homem a contar com a assis-
tência de seus semelhantes. Tais compromissos limitam-se ao presente, mas
ligam-se às primeiras manifestações da língua universal dos gestos e dos gritos,
que às vezes se completam por algumas articulações convencionais.
B) A Idade do Ouro.

1) Os primeiros progressos capacitaram os homens a conseguir outros mais


rápidos. Entre eles, a habitação é o mais importante. Teve três conseqüências
imediatas: .
a) a constituição dafamilia, que é a primeira forma de sociedade;
b) a constituição de uma primeira forma de propriedade, pois foi mais fácil
ao homem-construir uma choça para si do que desalojar uma familia inteira da
que ocupa; "-
c)·;qdesenvolvÍlnento psicológico do homem, com o aparecimento do amor
conjugal e do amor paternal, e a diferenciação econômica dos sexos.
2) Os homens então utilizam seu tempo para procurar comodidades ignora-
das por seus antepassados: p aperfeiçoamento da linguagem, a princípio entre os
povos insulares, depois entre os-continentais; aformação das primeiras nações,
e nascimento das relações de- lJizinhança - de um lado, o amor sentimental, a
noção de beleza, de ciúme,' di{outro; as reuniões comunitárias, os cantos e a
dança. .-
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3) Esse estado é a "verdadeira juventude do mundo ':.fica a meio caminho


entre a adolescência primitiva e a perversão atual. Já se vêem nele, porém, os ger-
mes dos males futuros: a estima e a consideração públicas surgem, então, crian-
do as primeiras desigualdades e os primeiros deveres de civilidade; são fontes de
contendas e de vingança. Introduz-se a moralidade: impõe-se a necessidade de
policiar os costumes e de punir os contraventores. O homem já pode ser conside-
rado cruel.

C) O primeiro progresso da desigualdade: a propriedade.

A invenção da propriedade suscita, de um lado, a existência da primeira


grande desigualdade, a que separa os ricos dos pobres e, de outro lado, aforma-
ção das primeiras sociedades civis, baseadas em leis.

1) A desigualdade entre ricos e pobres.

a) Causas: o desenvolvimento da metalurgia e da agricultura. A arte de tra-


balhar o ferro foi a primeira a ser inventada, por ocasião de uma erupção vulcâ-
nica. Tornou-se, então, necessário um aumento da produção do trigo para ali-
mentar os trabalhadores metalúrgicos e para ter-se alguma coisa a trocar com os
objetos fabricados. -
b) Conseqüências: a cultura das terras leva à sua divisão: sua posse contí-
nua, por aquele que as trata, transforma-se no direito de propriedade. A desigual-
dade dos talentos naturais é multiplicada pelo rendimento do trabalho. Os mais
corajosos ou mais atilados tornam-se os mais ricos. Desenvolvem-se as artes, as
riquez as e as línguas.
c) Quadro da humanidade nesse estado: a igualdade desapareceu, o traba-
lho tornou-se necessário, o desenvolvimento das faculdades psíquicas leva à dis-
tinção entre o que é e o que parece ser; a sociedade impõe-nos parecermos coisa
diferente do que somos. O homem torna-se escravo de suas necessidades e de
seus semelhantes. A riqueza suscita a ambição, a concorrência, a rivalidade de
interesses, a herança, a dominação universal.

2) A formação da sociedade e das leis.

a) Sendo aforça insuficiente para conservar o que adquiriu, o rico, afim de


legitimar sua posse, imagina dar aos homens máximas e instituições além das
naturais.
Daí aformação de associações e de governantes; daí a perda da liberdade e
do direito natural.
b) Imediatamente as sociedades multiplicam-se e cobrem a terra. Mas, se o
direito civil mantém a ordem no interior de uma sociedade, o direito natural sub-
siste nas relações das sociedades entre si. Daí as guerras nacionais.
c) Podem-se propor outras hipóteses para explicar aformação da socieda-
de. Essa é a mais natural. Isso porque a conquista não é viável sem convenções,
a riqueza é a primeira forma da conquista e a convenção, que fundamenta a
sociedade, é mais vantajosa para o rico do que para o pobre, que nada tem a
perder.
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D) O segundo progresso da desigualdade: os magistrados.

Ao criar os magistrados, a sociedade produziu uma segunda grande desi-


gualdade: a dos poderosos e a dosfracos.
1) A insuficiência do primeiro pacto - pelo qual os indivíduos se consti-
tuem em sociedade - traz consigo a necessidade de um segundo pacto - pelo
qual a sociedade dá a si mesma um Governo. Com efeito, a obra política não
deve ser abandonada ao acaso, nem deixar oportunidade para fraquezas e revol-
tas. Há necessidade de magistrados parafazer observar as deliberações do povo,
mas, inversamente, os chefes são feitos para defender a liberdade dos povos, não
para avassalá-los.
2) Neste ponto, são múltiplos os erros dos teóricos políticos:
a) Uns falam de uma tendência natural do homem para a servidão, por
confundirem o estado atual com o estado original.
b) Outros baseiam o poder político numa extensão do poder paterno,
enquanto se deu justamente o contrário: a permanência da autoridade paterna e
seu rigor provieram do regime social.
c) Não somente o Governo não pode deixar de basear-se numa conven-
ção, como ainda essa convenção só é válida quando compromete as duas partes
e respeita, no futuro, sua liberdade. O erro de Pufendorf reside em ter acreditado
que se pode alienar tanto a liberdade quanto os bens. Ora, a liberdade é um dom
da natureza e, se apesar de mim continuo senhor de mim mesmo, com muito
mais razão não posso alienar a liberdade de meus descendentes.
3) Esse estágio não é, pois, o do poder arbitrário, mas o de um pacto entre
o povo e seus chefes, sob leis fundamentais. Essas leisfundamentaisforam reco-
nhecidas pelos próprios chefes, como, por exemplo, Luís XIV. Quando se rom-
pem as leis, efetiva-se imediatamente a volta à liberdade; nisso se fundamenta o
direito de abdicar. Todavia, a razão mostra-se insuficiente para fundar a socieda-
de, é necessária a intervenção da vontade divina. A religião completa a sociabili-
dade: "Poupa ainda mais sangue do que ofanatismofaz derramar".
4) As várias formas de governo estão emfunção do grau de desigualdade.
A desigualdade com lucro de um só leva à monarquia; com lucro de alguns, à
aristocracia; com lucro do maior número, à democracia. As magistraturas são
eletivas; a riqueza, o (alento ou a idade favorecem-lhe o acesso, porém os abusos
das competições suscitam, por reação, a constituição de poderes hereditários: os
reis tornam-se deuses, os súditos escravos e, assim, dá-se a passagem ao estágio
seguinte.

E) O terceiro e último progresso da desigualdade: o despotismo.

A mudança do poder legítimo em-poder arbitrário provoca o aparecimento


da terceira grandeforma de desigualdade: a do senhor e do escravo.
1) Essa mudança é necessária. As distinções políticas acarretam distinções
civis, que são reforçadas pelas paixões de. cada um. Por exemplo, o usurpador é
obrigado a dar uma parte do poder a seus cúmplices e, parafazer com que seus
súditos se esqueçam da servidão, leva-os a guerras de dominação sobre outros
povos.
2) Há quatro espécies de desigualdade: a das qualidades naturais, única
natural; a do poderio; a da nobreea e de classe; e a da riqueza. Constituem a
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causa do progresso humano, tanto no que tem de bom quanto no que tem de
mau, mas engendram mais males do que bens.
3) Retrato da humanidade no seu último estágio. Rousseau, sem o dizer,
descreve o quadro do Antigo Regime: opressão, impostos, guerras, duelos.frivo-
lidade de;costumes, luxo e estetismo.
4) O despotismo fecha o círculo da evolução. Com efeito, reencontra todos
os caracteres do estado de natureza: os homens, então, são iguais por não vale-
rem nada: o direito do mais forte vence; a moralidade reduz-se a uma obediência
cega; não existe mais virtude de costumes, nem noção do bem. Um tal estado
. legitima todas as revoluções.

Conclusão geral:

A desigualdade não é legítima do ponto de vista natural.


1) Segundo a reflexão ensina, houve uma alteração da alma e das paixões
humanas, chegando à transformação da natureza; o homem natural desapareceu
gradativamente e cedeu lugar a agrupamentos de homens artificiais e de paixões
fictícias semfundamento na natureza. ..
2) A observação confirma-o: o homem selvagem conhece o repouso e a
liberdade: seu próprio testemunho basta-lhe para ser feliz. Não possuem sentido,
para ele, as palavras poderio e reputação. O homem policiado conhece o traba-
lho e a escravidão. Só é feliz pelo testemunho de outrem. Vive para as aparên-
cias: Suas virtudes, no fundo, não passam de vícios disfarçados.

Importância do discurso

1) Diferentemente do primeiro discurso, o Discurso sobre a Desigualdade


não foi premiado pela Academia de Dijon. Conferiu-se o prêmio a outro discur-
so, que foi impresso, de autoria do Padre Talbert, notável autor de sermões, de
inúmeros elogios, de peças e de poesias, e freqúentemente laureado pelas acade-
mias de província. O Padre Talbert e suas obras há muito tempo caíram no mais
completo esquecimento. Do mesmo modo, a Dedicatória à República de Gene-
bra não produziu, naquela cidade, o efeito esperado por Rousseau, como o prova
uma carta a Perdriau, datada de 28 de novembro de 1754. O autor, com efeito,
descrevera multo mais a cidade de seus sonhos do que a realidade da vida polí-
tica genebrina e até incorrera em certos erros no quadro dessa vida, que
esboçara.
2) Mas, ao contrário do primeiro discurso, o segundo encontrou, não
somente entre os literatos, mas no grande público, um êxito imediato e triunfal.
Mornet, que passou em revista quinhentas bibliotecas particulares do século
XVIII, nelas encontrou somente quinze vezes o primeiro discurso, enquanto o
segundo aparece setenta e seis vezes, e a Nova Heloísa, cento e sessenta e cinco
vezes. Em dois pontos especiais, a repercussão do discurso foi considerável: a)
Rousseau instaurou, definitivamente, na literatura, o mito do selvagem livre,
feliz, robusto e puro, a superioridade da vida simples na natureza em oposição à
vida doentia das cidades civilizadas; b) voltou á dar forma à doutrina da igualda-
de, ao ideal de vida comunitária, que foi o dos espartanos e dos primeiros
cristãos.
INTRODUÇÃO 219

3) Enquanto o escritor quase renegou o primeiro discurso, o segundo marca


um ponto decisivo na evolução de suas idéias, levando-o a colocar um problema
muito mais geral, que somente o Contrato Social resolverá. Esta última obra co-
meça do seguinte modo: "O homem nasceu livre e em todo lugar encontra-se a
ferros. O que se crê senhor dos demais não é menos escravo do que eles. Como
adveio tal mudança? Ignoro-o. Que pode legitimá-Ia? Creio poder resolver a
pergunta". O Discurso sobre a Desigualdade estuda a questão de fato; suas
conclusões são hipotéticas. O Contrato Social estudará a questão de direito, a
única interessante e verdadeiramente rigorosa. Quaisquer que sejam, porém, as
revisões que o Contrato Social traga ao pensamento de Rousseau, este, com o
segundo discurso, livra-se da influência demasiado forte de Diderot e conquista
sua autonomia. Diderot, e com ele os enciclopedistas, pensavam que a sociabili-
dade representa uma tendência da natureza humana: a sociedade é natural. É
inútil o contrato social no sentido em que Rousseau o entenderá; só haverá
necessidade do contrato para escolher o regime político de uma sociedade já
constituida; finalmente, a sociedade tornou-se má e corrompeu o homem, mas o
homem pode ainda salvar-se por meio de uma reforma individual, por uma volta
à verdadeira natureza original, pela restauração do direito natural. Rousseau,
pelo contrário, afirma aqui que o estado social é contra a natureza; que toda
associação tem como origem uma convenção; que, antes do contrato instituindo
um Governo, necessita-se de um contrato instituindo a sociedade; que nossa
natureza.fundamentalmente boa, está irremediavelmente corrompida. A vontade
individual perdeu sua retidão natural e não pode tomar a iniciativa de uma
redenção que só poderá vir de uma luz superior: a vontade geral. É isso que o
Contrato Social afirmará. O segundo discurso leva-nos, pois, ao seguinte ponto:
o estado de natureza não poderia subsistir eterna e imutavelmente: impunha-se
que as tendências ao aperfeiçoamento acabassem por desenvolver-se no homem
natural, mas não era necessário que se desenvolvessem numa direção determi-
nada. A via que a humanidade tomou resulta, na realidade, defatos contingentes.
Essas tendências desenvolveram-se ao acaso, ao sabor do arbítrio - daí adveio
o mal -, mas poderiam e deveriam ter sido dirigidas durante seu desenvolvi-
mento; desse modo, o bem teria sido conservado. Qual a direção que se deve
impor às tendências naturais por ocasião da passagem para o estado social? Essa
é a questão que resta a resolver depóis do Discurso sobre a Origem da
Desigualdade.

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