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OBJETO BIOGRÁFICO E PERFORMANCE NARRATIVA:

QUESTÕES PARA HISTÓRIA ORAL DE VIDA

Juniele Rabêlo de Almeida∗

Experiências, impressões, sentimentos e sonhos... Expressões dinâmicas e


abrangentes do vivido compõem a chamada história oral de vida. Por meio de
narrativas pessoais, como sugere Bom Meihy (1996), o colaborador1 disserta o mais
livremente possível, segundo sua vontade e condições no tempo presente. Nesse
processo o objeto biográfico pode, muitas vezes, potencializar a performance
narrativa do colaborador.
Os objetos biográficos são construções do mundo material que incorporam
experiências de vida do seu possuidor. Como fonte de descobertas, o objeto
biográfico ancora memórias que estimulam performances narrativas do colaborador.
O significado biográfico dado ao objeto é efetivado na presença constante deste
elemento material na vida de seus proprietários.
Janet Hoskins, antropóloga vinculada à Universidade da Califórnia, apresenta
o lugar do objeto biográfico enquanto expressão e instrumento de memória em seu
livro Biographical objects: how things tell stories of people's lives, publicado em
1998 pela editora londrina Routledge. Em especial, no capítulo intitulado The betel
bag: a sack for souls and stories, a autora analisa o relacionamento de Maru Daku
(homem do povoado de Kodi, localizado na costa sudoeste da ilha de Sumba -
Indonésia) com a sua inseparável “bolsa de betel”, evidenciando singularidades
históricas que conectam presente e passado em um rico processo de identificação.
A “bolsa de betel” representada por Janet Hoskins como “um saco para almas
e histórias” foi utilizada como pivô para incentivar a narrativa das experiências de
vida do senhor Maru Daku. Este objeto doméstico, uma pequena bolsa de tecido
usualmente levada no ombro, presente no cotidiano dos homens e mulheres da Vila
do Kodi, guarda um conteúdo cuidadosamente preparado: o betel (uma pimenta cuja


Integrante do Núcleo de Estudos em História Oral – USP.
1
Colaborador é o nome dado ao depoente que tem papel mais ativo em história oral, deixando de ser
mero informante, ator ou objeto de pesquisa (BOM MEIHY, 1996: 260).
folha tem propriedades adstringentes) envolvendo a noz de areca (semente da
Areca Catechu conhecida como “palmeira de betel”) para formar uma pastilha
elástica, uma “goma estimulante” que é mastigada e armazenada:

(...) Maru Daku herdou do seu avô as "sementes de sabedoria" que são
produzidas por meio de uma mistura, feita na boca com saliva e
embrulhadas com a unha do polegar para mascar. Ele juntou sementes e
histórias em um pequeno saco de tecidos que ele levava ao longo de sua
vida (HOSKINS, 1998: 26).

Segundo Janet Hoskins, o senhor Maru Daku usou a “bolsa de betel” como
uma metáfora das suas experiências. Afinal, este objeto biográfico sugestionou suas
recordações ancestrais mediando novas percepções. O significado dado por Maru
Daku à “bolsa de betel” foi evidenciado em três momentos da sua narrativa que
apontou a transmissão de conhecimento por gerações: recordações do seu avô, do
seu irmão e do seu filho favorito.
Ultrapassando gerações, o objeto biográfico permite o contato com o
passado, representando experiências vividas. A “bolsa de betel” interessa assim, no
seu valor inestimável, como instrumento de registro dos momentos considerados
significativos na vida de Maru Daku para a construção de suas histórias de vida.
Suscitando um posicionamento reflexivo do colaborador, o objeto biográfico facilita a
elaboração de narrativas por meio da atribuição de sentidos aos vários detalhes do
objeto apresentado. Com o seu valor e significado cultural, a “bolsa de betel”
resguardou lembranças que poderiam desaparecer.
Ao possibilitar a criação discursiva dos valores e práticas vivenciados, o
objeto biográfico revela-se fundamental para construção das performances
narrativas dos colaboradores. Richard Bauman, na obra Story, performance, and
event: contextual studies of oral narrative (publicada pela Universidade de
Cambridge, em 1986), procura analisar as narrativas orais de texanos, por ele
coletadas, observando o significado de seu contexto social. Para tanto, o autor
identifica os eventos rememorados nas narrativas (eventos narrados) e as situações
em que as narrativas são elaboradas (eventos narrativos), demonstrando a relação
entre a história, a perfomance e o evento.
Richard Bauman explora a chamada performance narrativa enquanto
manifestação da competência comunicativa do sujeito histórico. A compreensão da
performance evoca a valorização da linguagem desenvolvida pelo colaborador,
descortinando um caminho privilegiado para efetivação da história oral de vida
proposta por Bom Meihy (1996). A construção narrativa (variação das versões)
traduz memórias, intenções e imaginação. Em colaboração, o pesquisador examina
a construção discursiva emergente na performance narrativa.
Ressalta-se, porém, que o narrador pode ou não, intensificar a experiência
através da performance narrativa. Richard Bauman chama de contextualização a
análise do momento histórico da narrativa. As performances narrativas aparecem
como momentos contextualizados de reflexão, envolvendo experiências de eventos
passados na construção do tempo presente. Abarcando a dimensão temporal da
experiência, a narração impõe significados às memórias (múltiplas e fragmentadas).
Dessa forma, deve-se considerar a versão oferecida pelo narrador (revelando ou
ocultando casos, situações e pessoas) como parte de um contexto histórico.
As performances narrativas são únicas, caracterizando uma cultura em
constante emergência. Cabe assim, maior atenção aos objetos biográficos enquanto
catalisadores dos aspectos performáticos que compõem o fato comunicativo,
considerando as construções/criações do colaborador.

Referências Bibliográficas

BAUMAN, Richard. Story, performance, and event: contextual studies of oral


narrative. Cambridge University Press, 1986.

BOM MEIHY, José Carlos Sebe. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 2005.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia


das Letras, 1994.

HOSKINS, Janet. The Betel Bag: a sack for souls and stories. In: Biographical
Objects: How Things Tell Stories of People's Lives. New York, Londres: Routledge,
1998.

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