Você está na página 1de 21

A MORTE COMO SEMENTE PARA A VIDA

Marcos Bráulio de Souza*


Orientadora: Joyce Werres**

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo mostrar que a morte pode ser
uma semente para a vida. Para que a vida brote há na natureza uma morte precedente, que
permite que esta vida aconteça. O intuito do autor é mostrar que psiquicamente acontece o
mesmo, ou seja, a morte contém em si uma semente de vida, oculta e implícita, pronta para
germinar. Mas que para isto ocorra é necessário chegar ao significado da morte, os
sofrimentos que não são bem aceitos e, com frequência, rechaçados.

Palavras-chave: Morte. Vida. Significado. Jornada. Alquimia. Mitologia.

ABSTRACT: This paper aims to show that death can be a seed for life. In nature,
for life to flourish there is a previous death, which allows this life to happen. The author's
intention is to show that psychologically it's the same: that death itself contains a seed for life,
hidden and implicit, ready to germinate. But for this to happen it's necessary to reach the
meaning of death, the sufferings that are not well accepted and often rejected.

Keywords: Death. Life. Meaning. Journey. Alchemy. Mythology.

___________________________________
* Marcos Bráulio de Souza é aluno do curso de Pós Graduação em Psicologia Clínica Junguiana pelo Instituto Junguiano
do Rio Grande do Sul - IJRS, administrador e graduando em psicologia. Contato: mbraulio1982@gmail.com
** Joyce Werres é analista, psicóloga clínica e coordenadora do curso de Pós Graduação em Psicologia Clínica Junguiana
pelo Instituto Junguiano do Rio Grande do Sul - IJRS. Contato: joycewerres@yahoo.com.br

1 INTRODUÇÃO

A morte tem sido um tema ao mesmo tempo discutido e negado na sociedade atual.
Para esta constatação, basta ver as redes sociais, onde tudo é vida, tudo é máximo, e, quando
aparece, vem em forma de alguma homenagem à morte de alguém, ou a alguma quebra de
relacionamento, mas dificilmente fala-se de si próprio. Certamente não se está falando apenas
da morte real, do corpo, do velório e enterro. Está se falando da morte simbólica, aquela que
nos faz penar dia a dia, mas que também nos faz, aos poucos, renascer para uma nova vida.
Assim sendo, esta conotação de que a morte pode trazer a vida, será trabalhada neste
artigo. Esta delimitação do tema foi encontrada após a leitura de livros de psicologia
junguiana que abordam este tema com esta conotação, mas não com estas palavras.
A ênfase a ser tratada neste trabalho será sempre a do ponto de vista simbólico, onde
cada indivíduo poderá significar o tema de uma forma pessoal e subjetiva, como a morte.

2. DESENVOLVIMENTO

Onde está a morte? Essa pergunta pode ter uma resposta interessante se pensada de
uma forma não regular. Ao nascer, o ser humano já se depara com a morte. Ao deixar a
totalidade de ser um com o outro para ser único na vida, enfrenta-se uma morte. A morte
daquilo que era perfeito, uníssono, simbiótico. Desde então passam-se por várias outras
pequenas mortes, até a derradeira morte física.
Antes ainda, não é a liberação de milhões de espermatozoides que viabilizam a
chegada de um, eventualmente alguns poucos, ao óvulo? Todos os outros cumprem seu papel
de ponte para estes, 'morrendo', mas sustentando a vida.
Até que a semente não caia do pé, e não morra da forma de fruta, pode virar outra
árvore? E a lagarta, se não morresse para a vida de lagarta, viraria borboleta? Se a natureza, a
vida física, assim o faz, torna-se justo pensar que também nossa vida psíquica nos apresenta
mortes para que sejam sementes para a vida.
Hillman diz que "É difícil compreender que amor e morte possam ser metafóricos -
afinal de contas, algo precisa ser real, diz o ego, o grande literalista, positivista, realista.
Facilmente perdemos o contato com as formas sutis da morte" (HILLMAN, 2013, p.105).
As formas sutis da morte exploradas por Hillman são as perdas, pequenas ou grandes
do dia a dia. Em maior ou menor intensidade, estas perdas atingem a vida de todos, e, se não
conseguir lidar com isto, poder-se-á perder a noção de ganho.

Este mesmo ego, que resiste às perdas, faz com que seja difícil o aprendizado sobre
este tema. Trazida e sedimentada ao longo dos anos, esta forma de pensar deixa a pessoa
presa em questões onde o ganho é aquilo que acontece de bom, e a perda o que acontece de
ruim.
Não se pode ter dentes permanentes sem perder os de leite. Quando estes não caem
naturalmente, precisam ser arrancados com um procedimento médico, ou atrapalham a vinda
dos permanentes, aqueles que poderão mastigar o alimento para adulto, aqueles que serão
usados por toda a vida para mastigar, iniciar a digestão do alimento, que irá alimentar o corpo.
Levando isto para o âmbito simbólico, pode-se ver que a perda pode oferecer muitos
ganhos, além da capacidade momentânea de percepção. Goethe (apud HOLLIS, 1998, p.7)
nos diz que
Não nos é dado compreender diretamente a verdade, que é idêntica ao divino. Nós
só a percebemos no reflexo, no exemplo e no símbolo, em aparições singulares e
relacionadas. Ela se apresenta a nós como uma espécie de vida incompreensível para
nós, e, no entanto, não conseguimos nos livrar do desejo de compreendê-la.

Ver a perda como algo necessário pode ser difícil. Porém, se buscada
simbolicamente, esta verdade oculta, esta vida que brota da morte, pode ser vista.
Se mesmo a perda do lugar perfeito do Uroboros, do ventre onde tudo se sustenta
sozinho, é um passo tão importante para a vida, por que o restante desta deveria ser diferente?
Eis o maior ganho que o ser humano pode ter: a própria vida, que chega através de uma
morte. Somente com este maior dom é que se pode ter acesso aos outros.
Na Mitologia vemos a morte como uma necessidade ao novo. Cronos, o Titã no
poder, sucumbe para que a nova vida surja, dando lugar a Zeus, o deus que traz uma nova
ordem prendendo os titãs vencidos no monte Tártaro (BRANDÃO, 2013).
Na Alquimia não é diferente: na primeira das operações alquímicas, a nigredo, o
início do processo, o caos da inconsciência, a matéria prima, abarca a operação mortificatio
para o processo de deixar morrer, sendo pertinente, portanto, à experiência da morte
(EDINGER, 2006, p. 165). Edinger ainda afirma que "todavia, essas imagens sombrias com
frequência levam a imagens altamente positivas - crescimento, ressurreição, renascimento"
(EDINGER, 2006, p. 166).
Assim, após esta morte alquímica, acontece a albedo, o branco que purifica e depois
é inflada de sangue, a rubedo, surgindo assim a vida( EDINGER, 2006).
A tendência do ser humano em evitar ou não aceitar este processo, o qual ocorre
independente do nosso esforço contrário, leva a alma à um abismo, onde vai aos poucos se
distanciando, deixando toda a atuação para o ego, já vazio da própria alma. Não refletir com

estes momentos de regressão de libido - um retraimento da nossa energia psíquica - não


introjetá-los e conscientemente fazer parte deles é como ficar no trilho do trem olhando para
frente, despreocupado do que pode vir de trás.
Contudo, fazer parte deles é muito diferente de conformidade, a aceitação pura e
simples dos fatos. Aceitar o sofrimento sem uma busca interior é da mesma forma uma
evitação. Buscar as causas já é um passo, mas ainda não traz o sentido e o significado do
sofrimento.
Assim, "um chamado pode ser adiado, evitado, intermitentemente não escutado.
Pode também tomar conta de você totalmente. Qualquer coisa; com o tempo ele aparece.
Exige. O daimon não vai embora" (HILLMAN, 2001, p.19).
Um chamado pode ser uma boa definição para a morte simbólica. É um chamado
para a alma. Olhar para o que a alma está pedindo, o que ela está necessitando e que lhe falta.
Na cultura atual, em geral, o corpo físico é o mais importante. O corpo sutil não existe. O
chamado é atendido no sentido físico, literal.
Ao buscar a felicidade, os ganhos 'bons', em detrimento ao sofrimento, que é 'ruim', o
indivíduo olha para o outro lado, o físico, toma seus remédios ou entorpece-se, perdendo o
sinal, a mensagem, e, desta forma, perde aos poucos sua alma ou seu contato com ela. Da
linguagem popular o jargão "vender a alma para o diabo" pode refletir isto: trocar o pertencer-
se para sempre por algo passageiro.
Sem dúvida, o corpo físico não deve ser descuidado, muito menos esquecido, mas a
conexão que leva ao verdadeiro corpo (físico inclusive) é o contato consigo mesmo, com
aquilo que não se pode ver ou ouvir somente pelos acontecimentos externos, afinal, "o
essencial é invisível aos olhos" (SAINT-EXUPÉRY, 2008, p.72).
Muito impulsionado pelas redes sociais, o conceito de morte como uma perda
necessária é muito pouco aceito. Colocam-se nestes lugares de destaque as vitórias, as viagens
e as refeições mais bonitas, e não a tristeza ou o vazio.
Posta-se a foto do carro novo, mas não seus carnês. Isto não é nem de perto a causa,
mas ajuda a esquecer o propósito, afinal vê-se a felicidade dos outros e não se quer estar na
contramão. Sem dúvida que comemorar e compartilhar momentos importantes é saudável,
mas pode-se pensar que os outros não passam por isto, não amargam no deserto da alma, pois
parecem mais felizes, ou, analogamente demonstrado na alquimia pelo excesso de sal, que
segundo Hillman (2011) é base estável para a vida mas que que enrijece e que tem como
característica o amargor, a adstringência, pungência, mordacidade, dissecação e rispidez,
ferroadas e dores secas, agudeza e aspereza (HILLMAN, 2011, p. 84-85)

Quando o sujeito não ressignifica a perda, ela se torna apenas um sofrimento, sem o
grande gatilho que ele implicitamente traz para a vida. Desta forma a felicidade torna-se um
fim, e não pontos de sustentação para a jornada.
Jung propôs que uma neurose "precisa ser compreendida como o sofrimento de uma
alma que não encontrou significado" (JUNG, CW 11, p. 497). Assim, ao se deparar com as
situações de sofrimento, deve-se olhar para este como um sintoma, ou melhor, como uma
mensagem da alma indicando para o ego que ali há algo de importante, assim como uma febre
não é deixada de lado, pois pode haver uma infecção.
Ao falar sobre a alma, Jung dá a ideia que esta seja nossa personalidade interna, pois
assim como a experiência diária nos autoriza a falar de uma personalidade externa,
também nos autoriza a aceitar a existência de uma personalidade interna. Este é o
modo como alguém se comporta em relação aos processos psíquicos internos, é
atitude interna, o caráter que apresenta ao inconsciente. Denomino persona a atitude
externa, o caráter externo; e a atitude interna denomino anima, alma. (JUNG, 2008,
p. 391)

Sobre o motivo do sofrimento, Rubem Alves em seu conto 'Por quê?' diz que "Quem
faz esta pergunta se encontra diante de um enigma, algo que não entende. Não entende e dói.
É preciso que o não entendido doa para que a pergunta brote" (ALVES, 2011, p. 171). Aquilo
que não dói, não chama a atenção, e por isto dá-se menos importância.
Alves (2011) ainda fala neste mesmo conto que o sofrimento poderia ser
propositalmente causado por causa de uma desobediência, mas com seus argumentos refuta
esta possibilidade. Também fala que este poderia ter uma finalidade puramente pedagógica,
para nos fazer melhores, e novamente descarta esta possibilidade. Ao final do conto explica
que prefere acreditar em outra coisa. Aqui abre-se uma porta: qual o significado do
sofrimento?
Ao não refletir sobre a ferida que está originando este sofrimento, nega-se uma parte
importante de si mesmo, e cada vez mais forte precisa ser a anestesia imposta à si mesmo em
relação ao Si-Mesmo, centro e totalidade da psique e "fator que ordena todo esse sistema
[psíquico] e o mantém unido e coeso" (STEIN, 2006, p. 152). Somatiza-se fazendo padecer o
corpo, pois os sinais não pararão de aparecer, e por não estar aberto à mensagem, perde-se o
contato com o significado, ficando apenas com o sofrimento estéril, que já não gera a vida.
A jornada ao profundo, ao que o sofrimento quer falar sobre cada um, leva o ser
humano que não olha para dentro de si ao pavor, e a resistência a isto se torna inevitável, pois
lembra-o da própria morte corpórea.
Desde a infância aprende-se a evitar o sofrimento, seja para si ou para os outros. Não
colocar o dedo na tomada e não fazer birra para não chatear o pai ou a mãe fazem parte deste

aprendizado. Assim formamos nossa sombra pessoal, temida pelo ego, que deseja seus
sofrimentos esquecidos.
O ego se forma neste contexto de que o que é bom deve permanecer, e o que não é,
deve ser de alguma forma retirado. Se segurança, felicidade, estabilidade, etc., são
importantes ao ego e ele é o nosso complexo consciente, o síndico que mantém a porta para o
inconsciente sob 'controle', então esta evitação ao sofrimento não está naturalmente errada.
Opus contra maturam, segundo Jung, é o trabalho psíquico no processo de individuação ao ir
contra ao que na nossa natureza precisa modificar-se.
Uma das respostas à pergunta feita acima, é que o significado do sofrimento é
encontrar o significado! Qual significado? "Há também as dores da alma que nenhuma
cirurgia consegue curar" (ALVES, 2011, p. 42). Cada alma tem as suas feridas, e cada uma
delas tem o seu significado pessoal.
Em João 3:7, Jesus fala que "necessário vos é nascer de novo". Este nascimento é
simbólico, pois a morte que dá origem a este nascimento também o é. Assim como aprende-se
que algumas coisas inicialmente conhecidas como ruins e mais tarde reaprende-se que podem
não ser tão ruins, pode-se remodelar o ego, fazendo-o renascer, de forma que este possa ao
menos aceitar as condições da alma e ouvi-la, para assim, talvez, acolhê-la e entender seus
significados.
Se o indivíduo não chega no nível do significado a alma, para ser ouvida, aumenta o
estímulo, que pode ser um sofrimento, pois quer ser vista, e novamente, para abafar e não dar
ouvidos à eles, precisam-se de anestésicos mais e mais fortes. Se o indivíduo entrar neste
círculo vicioso, não apenas o sofrimento é inútil ao processo, como o torna cada vez mais
pesado.
Se não revisitar estes momentos de morte e não estiver aberto ao seu significado, ou
pelo menos à sua apresentação, também não é possível abrir-se à sua redenção.
T. S. Eliot (2004) em seu poema Little Gidding diz que “ao final de nossa longa
exploração, chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos, então, pela
primeira vez". Talvez seja este o grande aprendizado da alma para o ego: ensiná-lo a criar a
vida a partir das sementes dadas por ela e já conhecidas pelo indivíduo, eventualmente
disfarçadas ou ocultas de sua forma final, mas ainda cheias daquilo que exatamente precisa-se
para ser, cheias de um novo significado não visto anteriormente.
Pensando em mitologia, pode-se fazer uma descrição análoga: ao olhar nos olhos dos
deuses em sua forma divina o ser humano seria pulverizado, petrificado, ficaria louco ou

simplesmente morreria. Olhar diretamente para a alma, sem seus sintomas, poderia ser o
estado de felicidade absoluto que tanto se procura, mas, se alguém o fizesse, morreria.
Porém, como os deuses mudam suas formas para que possam estar entre os humanos,
também a alma se transmuta para revelar-se. Quem pensaria que um mendigo poderia ser um
deus? Ou quem poderia pensar que um sofrimento poderia ser a alma barganhando,
mendigando nossa atenção? Em Mateus 25:40, Jesus diz que "todas as vezes que fizerem isto
[caridade] a um destes pequeninos [mendigos], foi a mim que o fizeste".
No filme Festa no Céu (2014), de direção de Jorge R. Gutierrez, Katrina, la Muerte,
se transforma em uma senhora idosa que pede algo ao protagonista, Manolo, e em troca lhe
daria sua bênção. Em outro filme, Imortais (2011), de direção de Tarsem Singh, o próprio
Zeus se transforma em um velho, que instiga Teseu a salvar a humanidade do rei Hipérion.
Se cada um consegue guardar seus momentos e sentimentos de alegria, de ternura, de
coisas que são realmente importantes, não seria prudente também guardar os que agradam
menos? Este é o acolhimento do sinal da alma, o renascimento: aceitar nossa humanidade, ou
seja, acolher nossas mortes, para que os deuses não se tornem doenças (JUNG, 1929/2003),
mas a salvação.
Ao contrário, o que geralmente se faz com as partes ruins de si mesmo é que são
colocadas em algum lugar, inacessível à consciência. Tornam-se sombra, junto com seus
significados. Quando pequenos, todos ensinam a esconder as coisas ruins, os sentimentos de
raiva, de medo, etc. Na vida adulta, fica-se com o aprendizado de que as coisas ruins não são
boas, e devem ser evitadas.
Contudo, ao deslocar as coisas 'ruins' para a sombra, junto vai também uma grande
fatia de energia, e ao chegar aos 20 anos, conserva-se uma fatia muito pequena daquela
original, pois o restante foi posto em uma sacola, a sombra. (BLY, 2005, p. 30-31).
Ao acessar esta sombra e integrá-la novamente ao que se é, esta parte perdida de
energia torna-se vida novamente. Isto ocorre muitas vezes ao longo da vida, mais para uns
que para outros, pois "nossa sombra continua a ser o grande fardo do autoconhecimento, o
elemento destrutivo que não quer ser conhecido" (ZWEIG e ABRAMS, 2005, p. 15) e nem
todos estão dispostos a este 'fardo do autoconhecimento'.
Ao permitir-se viver suas partes menos aceitas, está também permitindo ter de volta
sua criatividade, sua força criadora, a força motriz da vida, ou seja, trazendo aquilo que estava
'morto', para a vida.
Hillman (2011, p.264) diz que

Se nos aproximamos de nós mesmos para nos curar e colocamos o "eu" no centro,
isso com muita frequência degenera no objetivo de curar o ego — ficar mais forte,
tornar-se melhor e crescer de acordo com os objetivos do ego, que em geral são
cópias mecânicas dos objetivos da sociedade. Mas quando nos aproximamos de nós
mesmos para curar essas firmes e intratáveis fraquezas congênitas de obstinação,
cegueira, mesquinhez, crueldade, impostura e ostentação, defrontamo-nos com a
necessidade de todo um novo modo de ser; nele, o ego precisa servir, ouvir e
cooperar com um exército de desagradáveis figuras da sombra e descobrir a
capacidade de amar até mesmo o mais insignificante desses traços.

O ego, centro da consciência, prefere ter o poder, o controle. Ou melhor, a fantasia


do controle, e, assim, aquilo que é incontrolável é tido como ruim. Se é ruim, diz o ego, deve
ser jogado 'fora', e assim perde-se a chance de resgatar uma parte perdida, cheia de energia
criativa, de vida nova, pois "a consciência egóica parece achar fácil identificar-se com o
herói" (JACOBY, 1971), que, supõe o ego, não é mesquinho nem tampouco cruel ou
ostentador.
Desta forma, o ego, o herói, olha naturalmente para o alto e avante, em uma
obstinada luta contra o 'mal', para manter a paz e o controle sobre tudo o que não está de
acordo com suas leis, e, ao fazê-lo, acaba por sufocar a necessidade antiheróica da alma.
Mas seriam todas as mortes que trariam vida? Por certo que não. Toda a morte que
não for trabalhada, olhada, entendida, ou, pelo menos, vivida com respeito à este pedido de
alma, poderá ser em vão.
Este é um fator chave ao crescimento: tornar-se consciente de si mesmo. Somente
quando a experiência é levada ao pessoal, acolhida com valor de alma, é que ela pode ser uma
semente para a vida. Contudo seu significado nem sempre é entendido no momento em que
está ocorrendo.
Havia um amigo que tinha sempre sonhos e visões de um lobisomem. A criatura não
era assustadora, mas era feia, imprevisível e primitiva, apesar de nunca ter atacado ninguém.
Ele estava geralmente em uma caverna, preso por uma corrente de segurança duvidosa, com
um gancho sem fechadura na pata traseira. Ele poderia sair dali com um simples movimento
da pata. Mas não saía. Em uma sessão de terapia, ele visualizou o lobisomem e fez uma
reverência a ele, abaixando a cabeça e dando-lhe a mão em sinal de respeito. Imediatamente
os pelos do lobisomem caíram ao chão enquanto ia para a saída da caverna. Parando um
pouco antes de sair, deu uma olhada para trás e nunca mais apareceu.
Este lobisomem sem dúvida é algo comumente visto como mau, como um ser que
pode destruir. Apesar de não existir na vida 'real', existe dentro da alma, e pode devorar ou
destruir aquilo que achar necessário. Mesmo assim, estava ali, esperando o respeito e
reconhecimento para tornar-se mais humano.

Assim também podem-se tratar as situações menos agradáveis. Com uma reverência,
não daquele que se coloca como menos perante o outro, e sim como alguém que reconhece
seu valor e sua importância. Mas para chegar a isto é necessário querer olhar por este prisma.
Perguntar-se 'como isto pode me trazer vida?' pode ser um desafio a ouvir uma resposta
indesejada, mas com certeza recompensante.
Hollis diz que "a meta da vida não é a felicidade, mas o significado" (HOLLIS, 1999,
p.9). Sem dúvida a felicidade é desejável por todos, mas quando fazem desta uma meta, um
objetivo de vida, algo sairá errado.
Em tempos de alegria, de prosperidade, são menos comuns as reflexões acerca do
que pode ser melhor, do que pode trazer mais alma à situação. Em tempos de perdas, de
crises, há mais reflexão, mais busca. Se esta busca for honesta, a solução virá, não na campina
ensolarada, mas nos "pantanais da alma, as savanas do sofrimento, que fornecem o contexto
para a estimulação e a obtenção do significado". (HOLLIS, 1999, p. 9)
Em administração fala-se em concorrência. Uma empresa que está no topo, sem
concorrência, o oceano azul, se diferencia mas pode cair no erro de não inovar, de não buscar
seu melhor. Já a que está enfrentando forte concorrência, o oceano vermelho, é obrigada a
inovar, sair do seu estado atual, para sobreviver. Se fizer isto com sucesso, irá para o oceano
azul, até seu próximo desafio (MAUBORGNE e KIM, 2005). Esta metáfora pode ser usada
para a alma, apesar de sua simplicidade.
Como uma criança que precisa passar pela dor do crescimento para se tornar adulta,
também a alma deve passar pelos aprendizados para crescer e amadurecer, e assim caminhar
em uma direção cujo objetivo é o significado da jornada, e não um 'felizes para sempre'.
Ao escolher fechar os olhos para o significado, fecha-se a possibilidade deste
crescimento, e a morte é evitada a qualquer custo, sob a linda bandeira do 'eu mereço ser
feliz!'.
Certamente que todos merecem, e naturalmente sempre há a calmaria após uma
tempestade. Mas "são os pantanais onde a alma é fabricada e forjada, onde encontramos não
apenas o gravitas da vida, como também seu propósito, sua dignidade e seu mais profundo
significado"(HOLLIS, 1999, p.11).
Quando algo é ruim, isto o é pessoalmente. Alguma coisa ou situação pode ser ruim
para um e não para outro. Aquilo que está fora, que está refletindo o interior e lembrando que
é ruim é também pessoalmente evitado.
Ao quebrar esta ponte, ao não permitir que Hermes traga do mundo inferior seus
fantasmas, perde-se a chance de buscar o significado. Certamente ele achará outra forma de

trazer isto à tona, emocionalmente ou fisicamente, mas a esta altura quem já está cego não
voltará a ver facilmente.
Assim, entra-se em um círculo vicioso, pois os sintomas "são expressões de um
desejo de cura" (HOLLIS, 1999, p. 13), e se não se quer vê-los, não se pode fazer muito com
seus significados e nem com as feridas que os representam.
Abster-se destes sintomas leva o indivíduo a um lugar comum, na multidão, sendo
levado pela paradoxal rotina, que oprime mas ao mesmo tempo sustenta.
Mas há uma centelha sempre acesa, uma forma sempre nova de Hermes, trazer do
mundo inferior nossos sofrimentos. Hermes é o deus grego que "frequentemente
acompanhava as pessoas que iam de um reino para outro [...] que sinalizava os limites e
também o deus que cruzava todos eles" (BOLEN, 2002, p. 246).
Uma destas formas pode ser os sonhos, que vão autorregulando a psique, mantendo o
ego em seu lugar de comandante sem deixar de ter os acessos necessários à individuação.
Certamente uma pessoa aberta à isto, consciente deste movimento, pode ter maiores chances
de sucesso, mas não é garantia de nada.
Como o fogo alquímico que transforma a matéria prima negra (nigredo) em material
branco (albedo) em seu próprio tempo e não deve ser apressado, ou como um alimento que é
cozido e não deve ficar nem cru e nem queimado, também nosso sofrimento não deve ser
apressado. Diferentes formas de diminuir o sofrimento são usadas, mas seria interessante se
apenas fossem usadas na medida em que não eliminassem o sofrimento, mas apenas ajudasse
o indivíduo a suportá-lo.
Uma das formas de reduzir o sofrimento é na busca por alguém que possa ajudar.
Dentre estas pessoas encontram-se, entre outros, os terapeutas. Sobre a terapia, Hollis (1999,
p. 12) diz que "o objetivo da terapia não é, portanto, remover o sofrimento, e sim passar
através dele em direção a uma consciência ampliada capaz de sustentar a polaridade de
opostos dolorosos".
Estes opostos dolorosos são, como já dito, processados com certa dificuldade pelo
ego, que deseja o controle. Opostos e dolorosos são palavras evitadas para quem precisa de
controle.
Não se pode dizer que equilíbrio é a solução última para estes opostos, apesar de
poder ser um passo em direção à esta busca da consciência ampliada. Se fosse a solução,
bastaria comer com equilíbrio, dormir uma quantidade exata de horas, trabalhar sempre da
mesma forma equilibrada e sem grandes desvios.

10

Mas isto nem de longe resolve a situação, pois por mais equilibrada, por mais no
caminho do meio que ande uma pessoa, ela ainda terá que se confrontar com seus fantasmas,
aquilo que ela mesma matou e enterrou, conscientemente ou não, mas que insistem em não
permanecerem em suas covas.
Antes disto, o equilíbrio total pode ser um batimento cardíaco inexistente, uma linha
reta, sem sístole e diástole. Novamente os opostos: só há o equilíbrio da vida porque sístole e
diástole existem, só há o equilíbrio porque o desequilíbrio existe.
Pode-se considerar a morte o desequilíbrio da vida, onde uma só existe porque o
outro existe. Mais que entender conscientemente este conceito, pode-se aceitá-lo como sendo
possível, e assim a abertura ao significado pode tornar-se possível.
Se como mencionado anteriormente a meta da vida não é a felicidade, mas o
significado, e, para este autor, o significado vem da morte (morte simbólica que nos leva à
vida através do significado), então pode-se dizer como Jung que "a meta da vida é a morte",
pois esta trará o significado.
Muitas religiões tem diferentes conceitos acerca da morte, e em diferentes culturas
tem-se diferentes tratativas, mas sempre há um mistério. Sempre há um algo a mais, uma
preparação, ritual ou conceitos de pós vida para todos os gostos.
Também nos filmes, músicas, literatura, arte, ou onde quer que se olhe há este tema,
apesar dos esforços humanos de não a acolher. Ou seja, é sempre um assunto levado em conta
mas não efetivamente posto na conta.
No mistério cristão a morte de Jesus é que abre as portas do céu para que todos os
que acreditam nele possam entrar no paraíso. Antes de sua morte não havia esta possibilidade.
Simbolicamente pode-se pegar emprestado este conceito e psicologizá-lo: sem a morte do
herói, daquele que salva, não há salvação, não há paraíso. Seu sofrimento e agonia nos
momentos anteriores à morte como as grandes e profundas tristezas e depressões,
descomunais regressões de libido que enfrenta-se em momentos específicos da vida.
Aceitar a cruz e carregá-la, apesar do não entendimento de muitos, pode ser o
primeiro passo para o significado, e assim, para a redenção. Se as neuroses são sofrimentos de
uma alma que ainda não encontrou seu significado, aceitar conscientemente a tarefa, mesmo
sem saber sua exata proporção, pode ser um primeiro passo.
Mas para isto é necessário não perder de vista o objetivo, que é a própria jornada, e
transcender o sofrimento, não se apegando a ele como algo profundamente seu e nem o
afastando como se não o fosse.

11

Complicada e baseada em opostos, assim é a jornada. Sem um mapa ou bússola,


sobram apenas os fragmentos que brotam do inconsciente através de sonhos ou pedidos de
alma através de felicidades ou pantanais.
Assim como pode-se correr o risco de erroneamente entender a felicidade como a
meta da vida, pode-se também entender o sofrimento como esta meta. Trazido ao longo dos
anos por algumas culturas e religiões, a crença de que o sofrimento é redentor pode ser
verdadeira, mas pode também ser uma cilada.
Ao apegar-se profundamente ao sofrimento, este já não é aceito pelo significado que
ele pode trazer ou pelo que ele pode representar, mas pelo sofrimento puramente purgador,
como uma expiação dos pecados, onde perde-se a dualidade e ele torna-se algo bom para
reparar algo mau.
Não é esta a ideia apresentada por este breve artigo. A dualidade é condição
imperativa para que o significado ressurja, ou seja, para que a morte se torne vida. Assim já
não há algo bom e outro algo ruim. Algo é ruim e bom ao mesmo tempo, unificados e
equilibrados em um único ser, como o hermafrodita da alquimia, que "se unifica na coniuntio,
a fim de aparecer de novo ao fim sob a forma radiante do 'lumen novum' (nova luz)" (JUNG,
2011, p. 313), e assim mostrando a "natureza paradoxal da meta" (JUNG, 2012, p. 205).
Estes opostos sim, o equilíbrio desejado, não como constância alva e inerte, mas
como dinâmica rubra, como o sangue, que quando para, morre e mata.
Elton John em um parte de sua música The Circle of Life, aqui traduzida pelo autor,
expressa uma parte deste sentimento:
Alguns de nós caem pela estrada
Enquanto outros alcançam as estrelas
Alguns de nós navegam acima dos problemas
Enquanto outros tem que viver com as cicatrizes
Há muito para se conseguir aqui
Mais para se encontrar do que o que já foi encontrado
Mas o sol se move alto no céu azul safira
E mantêm-se, ora grande, ora pequeno, neste ciclo sem fim

Neste ciclo sem fim há muito mais para ser encontrado, e mesmo que se viva com as
cicatrizes, mesmo que se caia pela estrada, o sol ainda se move alto no céu, dando a cada dia
uma nova chance desta busca, e mesmo após o último pôr-do-sol, o processo não é
interrompido, continuando com a psique no inconsciente coletivo.
Segundo Hollis (1999) Psyche é a palavra grega para alma, e uma de suas raízes é o
verbo respirar, análogo ao vento invisível que penetra o corpo na hora do nascimento e que
parte na hora da morte. Quando o significado não é buscado, a alma falta, e quando ela falta
não há o vento que a sustenta, ou seja, há morte.

12

Esta morte leva o indivíduo à depressão, à perda do sentido da vida e a tantas outras
dificuldades não pela presença da morte, mas pela ausência do significado. Assim, mesmo
uma ação corriqueira como trabalho ou uma simples caminhada, se não é feita com alma, leva
à morte, lenta e precisa, arrastando ao longo dos anos o indivíduo ao abismo onde os opostos
não se tocam.
Mas é esta mesma morte que contém a vida como semente incubada, esperando a
terra e a água que irão fecundá-la. É neste cenário que pode-se desenvolver uma nova árvore:
uma semente, terra, água e clima. Mas isto dependerá sempre do indivíduo e da faísca de vida
que sempre habita dentro de si.
A semente é o conteúdo da própria morte, que contém em si o potencial para a vida.
A terra e a água são os conteúdos trazidos ao longo do tempo e armazenados em algum lugar
possível de ser acessado. Cada semente tem sua terra e sua quantidade de água determinada.
O clima é a motivação, o enredo, o ambiente em que está sendo conduzida esta morte. Um
ambiente terapêutico, se feito também com alma, pode ser um clima perfeito para a lenta
germinação desta vida escondida.
Daí nascerá uma nova vida, uma árvore, que novamente dará frutos, renovará o ar,
trará sombra e novas sementes. É como os filmes ou novelas que acabam com o nascimento
de uma criança, uma reconciliação com a alma esquecida que dará início à uma nova etapa e
um novo aprendizado.
Talvez seja este um dos desejos da alma, a reconciliação. Como visto anteriormente,
coloca-se muito de si mesmo na sombra. Talvez nossa alma não deseje desta forma, e um de
seus métodos seja o de fazer o ego provar um pouco do que ela padece - a morte. Assim,
experimentamos o sofrimento, carregado de significado que não recebeu atenção e volta cada
vez mais expressivo.
Uma bela definição deste paradoxo é trazida pelo autor Aldo Carotenuto, que,
falando sobre o suicídio, traz com precisão um resumo sobre o tema. Diz ele que
A tensão para o suicídio não exprime, pois, somente uma pulsão destrutiva [...], mas
também, paradoxalmente, pode ser lida como uma mensagem "cifrada" que nos
remete a uma realidade profundamente diversa, até de sinal oposto, isto é, ao desejo
de uma vida nova. Trata-se de um momento muito delicado, porque é necessário
esclarecermos com nós mesmos se a vida de fato nos entregou à morte ou se, ao
contrário, quer indicar-nos o percurso doloroso e totalizante da descoberta da alma
(CAROTENUTO, 2011, p. 213).

Esta descoberta da alma, falada no texto referido através do suicídio, e no texto


presente através da metáfora da morte simbólica, é a mesma alma descrita por Barcelos,
quando este diz que

13

A alma volta sempre às suas mesmas feridas, ela insiste sempre nas mesmas figuras
e emoções, vemos os mesmos temas nos sonhos por muitos e muitos anos. Desse
ângulo, a psicopatologia aponta para a circularidade da alma, outra noção muito
antiga. A alma repete-se infinitamente, e na repetição está uma tentativa de
aprofundamento (BARCELOS, 1991)

Ao encontrar este aprofundamento, talvez no paradoxo do sofrimento e da dor ou


talvez nas emoções mais tranquilizadoras, poder-se-á entrar em contato com o que é
verdadeiro dentro, acalentando a alma e dando ao ego a paz, sentida como reflexo da 'missão
cumprida' do autoconhecimento.
Esta pode ser uma das saídas do complexo paradoxo pantanoso ao qual Hollis (1999)
se referia, e que seria um dos momentos de alegria e felicidade, experimentados como
combustível para a continuação da jornada, já que esta nunca estará completamente cumprida:
o sentido para o ego, necessário à sua estruturação, e o significado à alma, necessário à sua
permanência no processo.
É notável a facilidade com que estas duas palavras, sentido e significado, não se
encontram no dia a dia. Ao seguir, por exemplo, os passos predeterminados por outros, pode-
se perder a alma, e, como Cronos devorava seus filhos, ser devorado pela necessidade, ou pela
comodidade. De qualquer forma, decide-se o que se pode, com as condições que se tem em
cada momento.
Nesta situação, ao longo do tempo, perde-se o sentido e o significado, ficando apenas
reagindo aos estímulos, num eterno comportamento respondente, condicionado ao ideal de
mundo engolido e assimilado como alimento através do tempo.
A alma, que deseja a profundidade, em sua circularidade continua a mandar os seus
estímulos, os quais, nesta conjuntura, não podem mais serem respondidos, pois já não há mais
o fio de Ariadne que conduz para fora deste labirinto e para a luz (BRANDÃO, 2013, p. 58),
mas que, ao contrário, leva para dentro sem levar ao profundo.
Ainda assim, quando o olho não brilha, o coração não pulsa e o pulmão não infla
como poderiam, há a chance de ser resgatado. Destino, sorte, acaso, Deus, deuses, ou
qualquer outro nome que se dê, há o momento em que, ao estar pronta, a semente, cai da
árvore, e pode passar, solitária e constante, pelo seu processo de germinar.
Rubem Alves (2008, p. 11-12), em seu conto 'Ostra feliz não faz pérolas', retrata de
forma alegórica e acurada a tragédia que se torna beleza. Ele diz que uma ostra que vivia
sozinha e incomodada, diferente das outras, vivia com dor por causa de um grão de areia que
havia entrado em sua carne. Um pescador a pegou em suas redes e encontrou dentro dela uma

14

pérola, que ela havia feito para transformar as asperezas e arestas duras do grão de areia em
algo suportável e belo.
A esta altura o leitor pode estar se perguntando se seria esta a única forma de
encontrar o significado e reaver a alma perdida. Por certo que não. Qualquer coisa que
permita o encontro com a alma terá o mesmo efeito. Uma pessoa que tenha uma paixão por
música, por exemplo, pode encontrar ali a alma. A música irá tocá-la de uma forma que esta
poderá ser a porta que se abrirá para a alma. Uma pessoa havia dito que não precisava de
terapia pois já fazia muay thai, a arte marcial tailandesa. Certamente que funcionava!
O que acontece para esta apologia ao sofrimento ser tão importante é que nem
sempre pode-se estar ouvindo ou compondo música, ou em um ringue, ou em qualquer outro
lugar de se desejaria. Pior, pode-se não estar nunca neste lugar onde alguém pode se tornar
mais do que os olhos podem ver.
Ao não ouvir o chamado da alma, que poderia a certa altura, por exemplo, ter
mostrado a vocação que se deveria ter seguido mas não foi percebida, fecha-se uma parte
importante de si mesmo e assim entra-se no círculo vicioso que vai envenenando lenta e
constantemente a vida. Parte do desenvolvimento psíquico fica preso naquele momento, e, até
que não se volte para buscá-lo, reclama a atenção perdida.
De que outra forma poderia alguém notar o que perdeu se não sentisse sua perda?
Certamente uma das melhores formas de valorizar um dia sem enxaqueca é ter um dia com
ela! Em outras palavras, como poderia alguém conhecer pela primeira vez o que já se
conhece? Ressignificando. Ressignificando o dia sem enxaqueca, mesmo tendo vivido tantos
desta forma. E o sofrimento é o grande poema recitado pela alma, que sempre sabe qual
soneto cantar para ser notada, ou relida.
A música o 'Papa é pop' da banda Engenheiros do Hawaii diz que "todo mundo está
revendo o que nunca foi visto". Indubitavelmente esta é uma das formas que a alma tem para
mostrar o que precisa: mostrar novamente o que já foi visto. Porém, nem todos estão
conscientemente o fazendo.
Assim, os que evitam este encontro consigo mesmo ignorando os chamados da alma
caem em um círculo vicioso, que inicia com a assepsia àquilo que é tido como feio, impuro ou
podre em si mesmo. Como uma ferida não cicatrizada e tampouco tratada, esta cria pus e
afasta o olhar de quem não a quer acolher, afinal, como no dito popular, o que os olhos não
vêem, o coração não sente. Será?
Como o obsessivo-compulsivo que lava constantemente as mãos, acaba por pegar da
mesma forma a doença, não pelo excesso de sujeira, mas pelo excesso de limpeza que

15

fragilizou a pele, deixando-a exposta. Pensa estar afastando a doença, mas está apenas
aumentando sua intensidade e mudando a forma como ela chega, pois "o destino do homem é
sempre moldado por aquele ponto em que residem seus temores" (JAFFÉ, 1989 apud STEIN,
1998)
Os que se aventuram por este caminho, por esta opus contra naturam, estarão sempre
buscando, não raro, nos mesmos scripts as suas 'curas' mas não como o Sísifo, que rola sua
pedra para cima e espera cair para rolá-la novamente, num frenesi sem sentido, mas sim em
um círculo virtuoso, onde cada volta ao mesmo tema traz consigo um novo aprendizado,
fazendo conhecer pela primeira vez o lugar já conhecido.
O discurso muito ouvido sobre a necessidade de paz para a humanidade pode ser
equiparado com o equilíbrio desejado internamente. Contudo, este equilíbrio é resultado de
um longo e constante olhar para dentro, para a alma, sem deixar de dar conta do que está fora,
o dia a dia e suas responsabilidades. Os que escolhem não olhar para os sinais que lhes são
dados acabam por se demorar neste desenvolvimento.
Este aprendizado a duras penas é muito bem exposto pelo poeta Rilke, que diz
não acredite que quem procura consolá-lo vive sem esforço, em meio às palavras
simples e tranquilas que às vezes lhe fazem bem. A vida dele tem muita labuta e
muita tristeza e permanece muito atrás dessas coisas. Se fosse de outra maneira,
nunca teria encontrado aquelas palavras (RILKE, 2014, p. 83).

Como um animal feroz que ataca para defender seus filhotes, também a alma irá
defender seu território e seus interesses, e se não houver a compreensão disto, pode-se correr
o risco de entender mal o recado.
O mesmo poeta ainda diz que "em toda doença há muitos dias em que o médico não
pode fazer nada além de esperar" (RILKE, 2014, p. 81). Sim, há tempos em que os pantanais
da alma são momentos de solidão e não se pode fazer muito além de esperar. Contudo há de
se ter o cuidado para não deixar os músculos psíquicos perderem seu tônus.
Mas como esperar, ou como estar disposto a fazer isto no mundo pós-moderno onde
tudo é rápido e acontece ao mesmo tempo? No trabalho, em casa, na escola, uma das ordens é
rapidez. Ainda quando esta não é necessária, acaba-se por correr apenas porque se está
acostumado a fazê-lo.
Como uma pessoa que procura algo para fazer e se distrair para não sentir a saudade
de alguém que não chega, ou não chegará, também aquele que não quer ver os sinais se ocupa
para não ouvir aquilo que teme, pois se ouvir terá que pensar, e assim ter uma "dor de ideia"
(ALVES, 2011, p. 111-116).

16

Buscar a alma novamente é entrar na morte, aceitando-a e permitindo que algo morra
para que algo renasça, permitindo o fluxo necessário de sístole e diástole, o paradoxal
movimento onde um não sobrevive sem o outro, mas que juntos suportam a vida.
Lenine em sua música 'Paciência' fala deste fluxo onde é necessária a calma e,
contudo, não se pode parar. Segue abaixo transcrita a letra da música.

Mesmo quando tudo pede


Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
A vida não para
Enquanto o tempo acelera
E pede pressa
Eu me recuso faço hora
Vou na valsa
A vida é tão rara
Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência
O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência
Será que é o tempo que me falta pra perceber?
Será que temos esse tempo pra perder?
E quem quer saber
A vida é tão rara, tão rara
Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei,
A vida não para
a vida não para, não (LENINE, 2006)

Se o indivíduo olhar apenas para fora, estará abraçando a demanda externa, que pede
pressa, acelera, e nem sempre permite o olhar para dentro, para o que é vital. Assim este
torna-se uma folha solta num vendaval, sendo jogado para onde o vento sopra, inconsciente
de seu próprio movimento, onde tentando evitar a morte, a encontra.
Contudo, não se pode fugir muito disto, pois a vida não para, e nem todos estão
dispostos a virar monges! Pode-se ver uma bifurcação de caminhos, e, se não estiver
acostumado com as reflexões internas, perceber que há um caminho do meio pode passar em
branco.
O caminho do meio será criado, inventado, desbravado por cada um, de uma forma
única, conforme as necessidades de sua alma, sem deixar o mundo externo de fora.
Novamente o paradoxo dos opostos mostra a necessidade de união destes extremos para se
trilhar um caminho convergente e sólido.

17

E quando a consciência se cansa deste caminho, muito mais denso que o da folha que
se deixa levar? Bom, naturalmente todos precisam de um 'bando' durante o pega-pega. Uns
cansam mais, outros menos, uns correm mais, outros menos, mas hora ou outra, todos
descansam um pouco. Desta forma, também o inconsciente permite 'bandos'! São momentos
de descanso para a consciência, onde se pode recarregar as forças.
Há uma outra música, do padre Zezinho, chamada Maria de minha infância, onde
conta uma história que diz que quando era criança ele rezava todas as noites, esquecendo
algumas palavras, mas rezando como alguém que amava. Depois o tempo passa e ele se
esquece desta amizade, perdendo o costume da criança inocente. O tempo passa, e "embora
cansado, sem rezar como eu devo, eu de ti Maria, não me esqueço" (ZEZINHO, 1972)
Esta é a história da alma com a consciência. Na infância, a espontaneidade da criança
permite uma abertura e um direcionamento da alma. Com o passar do tempo, e do achar-se
sábio, esquece-se desta guia e passa-se a preferir outras coisas. Com sorte, o amadurecimento,
os calos e esfolões da jornada, trazem de volta uma parte daquela disposição a ouvir e a
refletir, que, ainda que não ideal, permite uma aproximação mais consciente que a primeira.
Assim, a morte contém em si a essência da vida. Sempre que algo morre, algo
também nasce. Se esta simbologia for acolhida, o significado irá aparecer, pois o mais
importante é estar disposto a ouvir e a perceber que as coisas podem ser vistas por outro
ângulo.

3 CONCLUSÃO

Apesar da extensão e profundidade do tema, a mensagem deste artigo é muito


simples e clara: de coisas normalmente vistas como ruins, podem sair coisas boas.
Contudo a dificuldade do ser humano em aceitar isto parece ser um grande entrave
no entendimento deste mecanismo. Assim, a alma, que precisa ser ouvida para sobreviver à
erosão dos dias envia seu mais forte estímulo para o ser humano: o sofrimento.
Estes pantanais da alma onde passa-se boa parte da jornada chamada vida convida o
indivíduo à reflexão, que, ocupado demais com os estímulos externos acaba por esquecer, ou
se entreter com estes, a ponto de deixar sua própria alma de lado, trocando-a por algo que lhe
valha mais, em uma errônea porém comum decisão.

18

Esta decisão não é necessariamente consciente, mas carregada de um senso comum,


arrastada por um destino nem sempre escolhido, mas massivo o suficiente para soterrar os
clamores da já enfraquecida alma.
Como a fênix que ressurge das cinzas, a alma faz passar pelo fogo o ego, retirando
suas impurezas e transformando em ouro a improvável e desvalorizada matéria-prima escura,
desprezado por todos os que desejam o ouro mas não seu custoso processo.
Desta forma, ao olhar o horizonte e acreditar cegamente em um futuro onde a
felicidade é a palavra de ordem, sacrifica-se a essência da busca, a jornada onde os cascalhos
que entram no sapato podem ser mais significativos que a pedra, grande porém transponível,
que aparece eventualmente ao longo do caminhar.
Carregam-se por quilômetros as leves gramas dos cascalhos que alfinetam os pés,
criando feridas cada vez maiores, onde a solução é culpar, e esquecer, onde foram adquiridos
ao invés de parar e retirá-los.
Esta metáfora exemplifica como são as dores da alma: prefere-se viver anos com a
dor do que parar para olhá-la de perto, com respeito e reverência, tendo a chance de dar-lhes
voz, e, quem sabe, acalmá-las. A diferença desta metáfora para o que realmente acontece, é
que a consequência não é imediata e nem claramente conectada com a causa.
Muito mais fácil é tratar o corpo, e anestesiar seus sinais, do que tentar compreender
ou aceitar a ferida da alma revisitando a própria história ou fazendo as pazes consigo mesmo.
Reconciliar-se com a alma é preciso. E para isto é necessário acolher suas imagens,
seus discretos pedidos ou seus altos brados, e ali encontrar seu significado, para não tornarem-
se neuroses ou doenças. É lá que está a verdadeira vida e é de lá que virá a redenção, que é a
vida plena no paraíso pessoal não idealizado, mas possível, pois como disse São Francisco em
sua oração: 'É morrendo que se vive para a vida eterna'.

4 REFERÊNCIAS

ALVES, R. O amor que acende a lua. 15 ed. Campinas: Papirus, 2011

______. Ostra feliz não faz pérola. São Paulo: Planeta do Brasil, 2008.

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução: Centro Bíblico Católico. 34. ed rev.
São Paulo: Ave Maria, 1982

19

BOLEN, J. S. Os deuses e o homem: uma nova psicologia da vida e dos amores


masculinos. São Paulo: Paulus, 2002

BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega. Vol. 1. 25 ed. Petrópolis: Vozes, 2013

CAROTENUTO, A. Amar trair: quase uma apologia da traição. 3 ed. São Paulo:
Paulus, 2011.

DOWNING, C. (Org.). Espelhos do self: as imagens arquetípicas que moldam


sua vida. 10 ed. São Paulo: Cultrix, 1998.

EDINGER, E. F. Anatomia da psique - o simbolismo alquímico na psicoterapia.


São Paulo: Cultrix, 2006

ELIOT, T. S. Little Gidding. In: __________. Poesia: Quatro Quartetos.


Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Vol. I. Edição bilíngue. São Paulo: Arx,
2004. p. 384-387.

HILLMAN, J. O código do ser - Uma busca do caráter e da vocação pessoal. Rio


de Janeiro: Objetiva, 2001

______. O sonho e o mundo das trevas. Petrópolis: Vozes, 2013.

______. Psicologia Alquímica. Petrópolis: Vozes, 2011

______. Psicologia Arquetípica: Um Breve Relato. São Paulo: Cultrix, 1991.

HOLLIS, J. Os pantanais da alma. São Paulo: Paulus, 1999.

JUNG, C. G. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 8 ed. Petrópolis:


Vozes, 2012.

______. Estudos Alquímicos. vol. XIII. Petrópolis: Vozes, 2003

______. Psicologia e Alquimia. 5a. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011

______. The colleted works (bollingen Series XX), 20 vols., trad. R. F. C. Hull, ed.
H Read, M. Fordham, G. Adler, W. McGuire, Princeton University Press, Princeton, 1953-
1979

______. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2008.

KERENYI, K. The gods of the greeks. London: Thames and Hudson, 1951

KIM, C. W.; MAUBORGNE, R. A Estratégia do Oceano Azul – Como criar


novos mercados e tornar a concorrência irrelevante. 20 ed. Rio de Janeiro: Elsivier, 2005.

RILKE, R. M. Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: L&PM, 2014.

SAINT-EXUPÉRY, A. O pequeno príncipe. 48 ed. Rio de Janeiro: Agir, 2006.

20

STEIN, M. Jung: o mapa da alma - uma introdução. 5 ed. São Paulo: Cultrix,
2006.

ZWEIG, C.; ABRAMS, J. (Orgs.). Ao encontro da sombra. 5 ed. São Paulo:


Cultrix, 2005.

BARCELLOS, G. A anima 30 anos pós-Jung. São Paulo. 1991. Disponível em


<http://ijusp.org.br/artigos/a-anima-30-anos-pos-jung/>. Acesso em 15 fevereiro 2016.

JACOBY, J. O Conceito de Ego e os Problemas de Fragilidade do Ego.


Conferência proferida no Instituto Jung, Zurique, Suíça,1971.

FESTA no céu. Produção de Guillermo del Toro. Direção e roteiro de Jorge R.


Gutierrez. EUA: Twentieth Century Fox, 2014.

IMORTAIS. Produção de Mark Canton, Ruan Kavanaugh e Gianni Nunnari. Direção


de Tarsem Singh. EUA: Universal Pictures, 2011.

GESSINGER, H. O Papa é pop. Intérprete: Engenheiros do Hawaii. In: O Papa é


pop. Rio de Janeiro: BMG, 1990. 1 CD. Faixa 7.

JOHN, E.; RICE, T. The circle of life. Intérpretes: Carmen Twillie e Lebo M. In:
The Lion King: Original Motion Picture Soundtrack. EUA: BOP, 1994. 1 CD. Faixa 1.

LENINE.; FALCÃO, D. Paciência. Intérprete: Lenine. In: Acústico MTV. São


Paulo: BMG, 2006. 1 CD. Faixa 4.

ZEZINHO. Maria de minha infância. Intérprete: Pe. Zezinho SCJ. In: Estou
pensando em Deus. São Paulo: EPD, 1972. LP. Lado B. Faixa 1.

21

Você também pode gostar