Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resenha Outsiders PDF
Resenha Outsiders PDF
de outsiders pelos membros mais conven- e nas circunstâncias em que regras são
cionais da comunidade” (:89). Tendo sido feitas e impostas, o autor narra o processo
ele mesmo um músico de casa noturna, que culminou com a lei de tributação da
Becker procura entender esta atividade maconha nos EUA. Valores dominantes,
como uma ocupação que, como outras como o autocontrole, a aversão ao êxtase e
ocupações estudadas por pesquisadores até mesmo o humanitarismo, foram tradu-
como Everett Hughes, desenvolve culturas zidos em regras específicas, contando com
ou subculturas próprias, aqui entendidas a iniciativa empreendedora da Agência
como “uma organização de entendimentos Federal de Narcóticos. “A iniciativa da
comuns aceitos por um grupo” (:90). agência produzira uma nova regra, cuja
Assim, o autor nos apresenta um imposição subsequente ajudaria a criar
universo onde há diferenciações entre uma nova classe de outsiders – os usuários
músicos de jazz e músicos comerciais, e de maconha” (:151).
relações ambivalentes entre os músicos As pessoas que apresentam iniciativas
e seus públicos “quadrados”. Se, por um no sentido de criar novas classes de out-
lado, há a valorização da originalidade e siders são denominadas empreendedores
da liberdade do músico de jazz, por outro, morais. São esses os “reformadores cru-
uma carreira bem-sucedida envolve uma zados”, por exemplo, que acreditam na
série de compromissos e a participação sacralidade de suas missões, apesar de
em redes de relações pessoais com outros muitas vezes contarem com a concor-
músicos que compõem “panelinhas”, dância daqueles que pretendem “salvar”.
nas quais o desempenho individual não Mas os cruzados recorrem a especialistas,
deixa de ser um elemento importante. como psiquiatras ou advogados, que
A participação em “panelinhas” de jazz têm seus próprios interesses em jogo.
ou em “panelinhas” comerciais é fonte de Uma cruzada bem-sucedida tem como
conflitos e, em meio a eles, os músicos de- possíveis consequências não somente a
senvolvem suas carreiras. “As ‘panelinhas’ criação de um novo conjunto de regras,
compostas por jazzmen não oferecem mas a criação de novas agências, que
nada a seus integrantes além do prestígio institucionalizam o empreendimento e,
de manterem a integridade artística; as finalmente, podem agir por meio de uma
‘panelas’ comerciais fornecem seguran- força policial.
ça, mobilidade, renda e prestígio social” Os impositores profissionais, por sua
(:119). As escolhas de adesão são feitas vez, estão menos interessados na justifi-
sempre em relação a outras instâncias cativa da regra do que na manutenção de
sociais, como cônjuges, família de origem sua profissão, o que gera um ciclo para-
e o próprio público ouvinte. doxal: ao mesmo tempo em que devem
Após traçar as carreiras de músicos e mostrar a sua eficácia, o fim do problema
usuários de maconha, com ênfase no de- significaria o fim de sua razão de exis-
senvolvimento de práticas, valores e iden- tência. Assim, profissionais escolhem em
tidades, o autor volta a sua atenção, no ca- quais casos deverão agir, exercendo suas
pítulo sete, para os processos de imposição próprias escolhas. Conclui então o autor:
de regras. As regras não funcionam auto- “Cumpre ver o desvio, e os outsiders que
maticamente, elas precisam ser impostas, e personificam a concepção abstrata, como
a imposição é sempre um empreendimento uma consequência de um processo de
que depende de interesses e iniciativas interação entre pessoas, algumas das
de atores no sentido de tornar pública a quais, a serviço de seus próprios interes-
infração. Interessado nos empreendedores ses, fazem e impõem regras que apanham
resenhas 591
outras – que, a serviço de seus próprios museus etnográficos. Ao longo de dez ca-
interesses, cometeram atos rotulados de pítulos divididos em duas partes, o autor
desviantes” (:168). apresenta uma diversidade de histórias
Becker termina o texto original com da interface entre a antropologia e os
um apelo à pesquisa de campo e ao museus na França e em outros museus
estudo aprofundado dos grupos, sejam europeus e americanos.
eles os desviantes ou os empreendedores Em formato enciclopédico, na primeira
morais. Argumentando que os estudos so- parte o livro apresenta as transformações
bre desvio apresentam muito mais teorias das políticas e poéticas de exibição dos
do que fatos, ele chama a atenção para a objetos pilhados nas colônias francesas na
necessidade de se conhecerem as práticas África – da Exposition Coloniale de 1931
desviantes e os pontos de vista de seus até o surgimento do Musée de l’Homme,
praticantes. Quanto ao comportamento seu apogeu e questionamentos posteriores.
desviante em si, “Cumpre vê-lo como Na segunda parte do livro, L’Estoile faz
um tipo de comportamento que alguns uma ampla genealogia do lugar dos obje-
reprovam e outros valorizam, estudando tos nos museus etnográficos – de objetos
os processos pelos quais cada uma das de curiosidade e termômetros de paraísos
perspectivas é construída e conservada. históricos perdidos, até a noção de uma
Talvez a melhor garantia contra qualquer arte das origens. É por meio desta história
dos dois extremos seja o contato estreito das ideias que o autor nos introduz nas
com as pessoas que estudamos” (:178). escolhas por um universalismo de caráter
No décimo capítulo do livro, escrito estetizante no novo e polêmico Musée du
em 1971, Becker reitera a necessidade Quai Branly, aberto em Paris em 2004.
de relativizar os julgamentos morais, e Partindo de um contínuo que vai
reforça a perspectiva de que estudar o da Exposition Coloniale de 1931 até a
empreendedorismo moral é também uma abertura do Musée du Quai Branly, o
maneira de estudar as formas de poder na autor nos apresenta as permanências e
sociedade. Criticando a denominação de descontinuidades na paisagem museal
sua proposta de “teoria da rotulação”, re- francesa, como a tentativa de construir
coloca sua perspectiva como “uma teoria um mundo colonial em miniatura na
interacionista do desvio” (:182) e insiste Exposition de 1931, visível em um tour
em que os julgamentos éticos não devam de apenas uma hora (Capítulo 1). As
ser protegidos de testes empíricos. críticas dos surrealistas sobre a Exposi-
tion de 1931 e seu formato exotizante e
racista mobilizariam a tentativa de uma
colonização e pilhagem científica, com a
L’ESTOILE, Benoît de. 2007. Le goût des Ecole Colonial, que formaria os futuros
autres: de l’Exposition Coloniale aux arts funcionários da administração colonial
premiers. Paris: Flammarion. 454pp. enviados à África (Capítulo 2).
Surgia uma crescente demanda por
uma instituição que representasse a pro-
Leonardo Carvalho Bertolossi fissionalização e a unificação das ciências
Mestrando do PPGAS/Museu Nacional/UFRJ antropológicas e ainda centralizasse
as relações entre a pilhagem científica
Le goût des autres, de Benoît de L’Estoile, nas colônias e a Ecole Colonial. É nes-
é um livro fundamental aos interessados se contexto que o Musée de l’Homme
nas relações entre a antropologia e os fora aberto, ocupando papel central na