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de identificação étnica. Sem dúvida, a Hughes, Robert Park e William Thomas,


etnicidade é situacionalmente definida e entre outros grandes nomes da Escola
o Estado assume aí um papel incontorná- de Chicago.
vel, mas corre-se o risco de iniciar e findar O livro é um marco nos estudos sobre
a investigação no Estado, perdendo de desvio, efetuando importantes desloca-
vista nuanças das percepções dos grupos mentos de foco: da ideia essencializada
em busca de reconhecimento. de “crime” para o termo desvio, que
Apesar de as questões a respeito das supõe uma relação social; do foco no
comunidades remanescentes de quilom- indivíduo para o foco nas relações, que
bos serem relativamente recentes e sinuo- produzem regras e exigem seu cumpri-
sas – algo, aliás, demonstrado com muita mento; da naturalização das regras para a
propriedade pelo autor – Mocambo pode produção social das mesmas e os proces-
ser considerado um livro-síntese, pois sos de imposição de rótulos sobre os que
enfrenta vários dos problemas em pauta são designados como desviantes.
sobre o tema e procede a um balanço crí- Ao longo dos dez capítulos do livro,
tico do que foi produzido até o momento. Becker nos leva a conhecer usuários de
Arruti fornece interpretações originais maconha, músicos de casas noturnas,
para problemas permeados por ambiva- “quadrados” e empreendedores morais,
lências e contradições, redimensionando todos esses “tipos” sendo agentes em
– e até mesmo inaugurando – uma série processos que produzem carreiras, estilos
de questões, como a descrição das re- de vida e visões de mundo que não dei-
lações entre indígenas e quilombolas. xam de ser reais por serem socialmente
Trata-se de uma obra que transita entre construídos. O mundo social, ou melhor,
fronteiras e vai além delas, adentrando os mundos sociais concebidos por Becker
terrenos pantanosos repletos de questões são compostos por pessoas que, agindo
controversas frequentemente dimensio- juntas, com diferentes graus de compro-
nadas com base em lugares-comuns e/ou metimento, produzem realidades que
definições operacionais. também as definem. Assim, Becker cita
a máxima de W. Thomas de que “Se os
homens definem situações como reais,
elas são reais em suas consequências”
Becker, Howard S. 2008 [1963]. Outsiders. (:12), ao mesmo tempo em que invoca
Estudos de sociologia do desvio. Rio de George Herbert Mead e Herbert Blumer
Janeiro: Zahar. 232pp. ao insistir que as pessoas agem juntas
(:183).
O primeiro capítulo, que mantém o
Cristina Patriota de Moura título original Outsiders, começa por
UnB um exercício de relativização das regras
sociais que definem situações e compor-
Propor uma teoria interacionista do tamentos como “certos” ou “errados”.
desvio: é este o principal objetivo de Segundo Becker, regras, desvios e rótulos
Howard S. Becker no livro Outsiders. são sempre construídos em processos
Quarenta e cinco anos depois de sua políticos, nos quais alguns grupos con-
primeira edição em língua inglesa, surge seguem impor seus pontos de vista como
a primeira edição brasileira da já clássica mais legítimos que outros. O desvio, diz
obra do sociólogo norte-americano, que o autor, não é inerente aos atos ou aos
insiste em traçar sua genealogia a Everett indivíduos que os praticam; ele é definido
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ao longo de processos de julgamento que seus significados e suas motivações so-


envolvem disputas em torno de objetivos cialmente configurados, e o aprendizado
de grupos específicos. “Desvio não é de técnicas e interpretações construído ao
uma qualidade que reside no próprio longo de carreiras. Becker insiste em que
comportamento, mas na interação entre a a experiência física do uso da maconha
pessoa que comete um ato e aquelas que é uma experiência ambígua que só se
reagem a ele” (:27). Como as sociedades transforma em algo prazeroso através de
complexas são sempre compostas por sequências de aprendizados: “impulsos
diversos grupos, imposições de regras e desejos vagos são transformados em
e rotulações de atos e pessoas, elas en- padrões definidos de ação por meio da
volvem também conflitos e divergências interpretação social de uma experiên-
acerca de definições: “aquele que infringe cia física em si mesmo ambígua” (:51).
a regra pode pensar que seus juízes são Chegar a usar a maconha por prazer
outsiders” (:15). envolve uma sequência de experiências
As sociedades, no entanto, têm gru- que inclui: 1. o aprendizado da técnica
pos dominantes e grupos desviantes, de fumar; 2. a identificação dos efeitos
assim como tipos diferentes de desvio. e a atribuição desses efeitos ao uso da
No segundo capítulo, Becker propõe um maconha; e 3. a redefinição das sensações
modelo sequencial para pensar o desvio. como prazerosas.
Após classificar tipos de comportamento Para se tornar um usuário estável de
desviante de acordo com as percepções maconha, é necessário, no entanto, além
e o grau de publicidade dos atos, o autor de sentir prazer, escapar de uma série
reflete a respeito da adesão de indivíduos de pressões sociais. “Minha questão
a padrões de comportamento desviantes básica é: qual é a sequência de eventos
a partir de uma perspectiva sequencial, e experiências pela qual uma pessoa se
a qual envolve não somente atos isolados torna capaz de levar adiante o uso da
e eventuais acusações, mas aprendizados maconha, apesar dos elaborados con-
específicos. Existem carreiras desviantes, troles sociais que funcionam para evitar
que se apresentam como alternativas tal comportamento?” (:70) A resposta é:
para carreiras convencionais. “O com- através da crescente participação em
portamento normal das pessoas em nossa grupos de insiders, são desenvolvidos
sociedade (e provavelmente em qualquer valores e táticas específicas de aquisição
sociedade) pode ser visto como uma sé- do produto e justificativas morais para as
rie de compromissos progressivamente suas práticas. A carreira do usuário de
crescentes, com normas e instituições maconha, portanto, progride do estágio
convencionais” (:38). de iniciante para o de usuário ocasional
Estabelecidas as bases teóricas de sua e, finalmente, para o de usuário regular,
abordagem, o autor parte para o traçado podendo haver sucessos e fracassos em
de carreiras desviantes específicas, apre- cada um destes estágios, sempre na com-
endidas a partir de trabalho de campo e panhia de outros usuários.
entrevistas com duas categorias iden- Os músicos de casas noturnas tam-
tificadas como desviantes: usuários de bém desenvolvem rotinas desviantes e se
maconha e músicos de casas noturnas. percebem como diferentes. “Embora suas
No primeiro caso, trata-se de de- atividades estejam formalmente dentro
monstrar como um comportamento, da lei, sua cultura e o modo de vida são
comumente explicado como decorrente suficientemente extravagantes e não-
de traços psicológicos individuais, tem convencionais para que sejam rotulados
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de outsiders pelos membros mais conven- e nas circunstâncias em que regras são
cionais da comunidade” (:89). Tendo sido feitas e impostas, o autor narra o processo
ele mesmo um músico de casa noturna, que culminou com a lei de tributação da
Becker procura entender esta atividade maconha nos EUA. Valores dominantes,
como uma ocupação que, como outras como o autocontrole, a aversão ao êxtase e
ocupações estudadas por pesquisadores até mesmo o humanitarismo, foram tradu-
como Everett Hughes, desenvolve culturas zidos em regras específicas, contando com
ou subculturas próprias, aqui entendidas a iniciativa empreendedora da Agência
como “uma organização de entendimentos Federal de Narcóticos. “A iniciativa da
comuns aceitos por um grupo” (:90). agência produzira uma nova regra, cuja
Assim, o autor nos apresenta um imposição subsequente ajudaria a criar
universo onde há diferenciações entre uma nova classe de outsiders – os usuários
músicos de jazz e músicos comerciais, e de maconha” (:151).
relações ambivalentes entre os músicos As pessoas que apresentam iniciativas
e seus públicos “quadrados”. Se, por um no sentido de criar novas classes de out-
lado, há a valorização da originalidade e siders são denominadas empreendedores
da liberdade do músico de jazz, por outro, morais. São esses os “reformadores cru-
uma carreira bem-sucedida envolve uma zados”, por exemplo, que acreditam na
série de compromissos e a participação sacralidade de suas missões, apesar de
em redes de relações pessoais com outros muitas vezes contarem com a concor-
músicos que compõem “panelinhas”, dância daqueles que pretendem “salvar”.
nas quais o desempenho individual não Mas os cruzados recorrem a especialistas,
deixa de ser um elemento importante. como psiquiatras ou advogados, que
A participação em “panelinhas” de jazz têm seus próprios interesses em jogo.
ou em “panelinhas” comerciais é fonte de Uma cruzada bem-sucedida tem como
conflitos e, em meio a eles, os músicos de- possíveis consequências não somente a
senvolvem suas carreiras. “As ‘pane­­linhas’ criação de um novo conjunto de regras,
compostas por jazzmen não oferecem mas a criação de novas agências, que
nada a seus integrantes além do prestígio institucionalizam o empreendimento e,
de manterem a integridade artística; as finalmente, podem agir por meio de uma
‘panelas’ comerciais fornecem seguran- força policial.
ça, mobilidade, renda e prestígio social” Os impositores profissionais, por sua
(:119). As escolhas de adesão são feitas vez, estão menos interessados na justifi-
sempre em relação a outras instâncias cativa da regra do que na manutenção de
sociais, como cônjuges, família de origem sua profissão, o que gera um ciclo para-
e o próprio público ouvinte. doxal: ao mesmo tempo em que devem
Após traçar as carreiras de músicos e mostrar a sua eficácia, o fim do problema
usuários de maconha, com ênfase no de- significaria o fim de sua razão de exis-
senvolvimento de práticas, valores e iden- tência. Assim, profissionais escolhem em
tidades, o autor volta a sua atenção, no ca- quais casos deverão agir, exercendo suas
pítulo sete, para os processos de imposição próprias escolhas. Conclui então o autor:
de regras. As regras não funcionam auto- “Cumpre ver o desvio, e os outsiders que
maticamente, elas precisam ser impostas, e personificam a concepção abstrata, como
a imposição é sempre um empreendimento uma consequência de um processo de
que depende de interesses e iniciativas interação entre pessoas, algumas das
de atores no sentido de tornar pública a quais, a serviço de seus próprios interes-
infração. Interessado nos empreendedores ses, fazem e impõem regras que apanham
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outras – que, a serviço de seus próprios museus etnográficos. Ao longo de dez ca-
interesses, cometeram atos rotulados de pítulos divididos em duas partes, o autor
desviantes” (:168). apresenta uma diversidade de histórias
Becker termina o texto original com da interface entre a antropologia e os
um apelo à pesquisa de campo e ao museus na França e em outros museus
estudo aprofundado dos grupos, sejam europeus e americanos.
eles os desviantes ou os empreendedores Em formato enciclopédico, na primeira
morais. Argumentando que os estudos so- parte o livro apresenta as transformações
bre desvio apresentam muito mais teorias das políticas e poéticas de exibição dos
do que fatos, ele chama a atenção para a objetos pilhados nas colônias francesas na
necessidade de se conhecerem as práticas África – da Exposition Coloniale de 1931
desviantes e os pontos de vista de seus até o surgimento do Musée de l’Homme,
praticantes. Quanto ao comportamento seu apogeu e questionamentos posteriores.
desviante em si, “Cumpre vê-lo como Na segunda parte do livro, L’Estoile faz
um tipo de comportamento que alguns uma ampla genealogia do lugar dos obje-
reprovam e outros valorizam, estudando tos nos museus etnográficos – de objetos
os processos pelos quais cada uma das de curiosidade e termômetros de paraísos
perspectivas é construída e conservada. históricos perdidos, até a noção de uma
Talvez a melhor garantia contra qualquer arte das origens. É por meio desta história
dos dois extremos seja o contato estreito das ideias que o autor nos introduz nas
com as pessoas que estudamos” (:178). escolhas por um universalismo de caráter
No décimo capítulo do livro, escrito estetizante no novo e polêmico Musée du
em 1971, Becker reitera a necessidade Quai Branly, aberto em Paris em 2004.
de relativizar os julgamentos morais, e Partindo de um contínuo que vai
reforça a perspectiva de que estudar o da Exposition Coloniale de 1931 até a
empreendedorismo moral é também uma abertura do Musée du Quai Branly, o
maneira de estudar as formas de poder na autor nos apresenta as permanências e
sociedade. Criticando a denominação de descontinuidades na paisagem museal
sua proposta de “teoria da rotulação”, re- francesa, como a tentativa de construir
coloca sua perspectiva como “uma teoria um mundo colonial em miniatura na
interacionista do desvio” (:182) e insiste Exposition de 1931, visível em um tour
em que os julgamentos éticos não devam de apenas uma hora (Capítulo 1). As
ser protegidos de testes empíricos. críticas dos surrealistas sobre a Exposi-
tion de 1931 e seu formato exotizante e
racista mobilizariam a tentativa de uma
colonização e pilhagem científica, com a
L’ESTOILE, Benoît de. 2007. Le goût des Ecole Colonial, que formaria os futuros
autres: de l’Exposition Coloniale aux arts funcionários da administração colonial
premiers. Paris: Flammarion. 454pp. enviados à África (Capítulo 2).
Surgia uma crescente demanda por
uma instituição que representasse a pro-
Leonardo Carvalho Bertolossi fissionalização e a unificação das ciências
Mestrando do PPGAS/Museu Nacional/UFRJ antropológicas e ainda centralizasse
as relações entre a pilhagem científica
Le goût des autres, de Benoît de L’Estoile, nas colônias e a Ecole Colonial. É nes-
é um livro fundamental aos interessados se contexto que o Musée de l’Homme
nas relações entre a antropologia e os fora aberto, ocupando papel central na

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