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RIO DE JANEIRO, V.16, N.2, P.

113-131, 2009 | ETHICA

O GRANDE OUTRO NÃO EXISTE1


SLAVOJ ZIZEK2

TRADUÇÃO DO INGLÊS:
SILVIA PIMENTA VELLOSO ROCHA
E-mail: silviapimenta@superig.com.br.

REVISÃO TÉCNICA:
NORMAN MADARASZ
E-mail: Norman@ugf.br.

RESUMO
O artigo explora dois sentidos diferentes da formulação “o grande outro não
existe”: o primeiro, formulado por Lacan, atesta a inexistência real do grande
Outro e seu caráter estritamente simbólico; o segundo, característico da
postura cínica, resulta do descrédito diante da ordem simbólica e aponta
para o ressurgimento da figura do grande Outro no Real. A crença no grande
Outro que existe no Real é a mais sucinta definição de paranóia: o sujeito
contemporâneo, ao mesmo tempo em que demonstra um descrédito cínico
diante de toda ideologia pública, entrega-se a fantasias paranóicas sobre
conspirações, ameaças e formas excessivas de gozo do Outro. A descrença
no grande Outro (a ordem das ficções simbólicas), a recusa do sujeito de
“levar a sério”, repousa sobre a crença de um “Outro do Outro,” um agente
invisível, secreto, onipotente, que efetivamente “puxa os cordões” por trás
do poder público visível.
PALAVRAS-CHAVE: grande Outro; Real; paranóia; Deus; Lacan; Freud.

ABSTRACT
The aim of this article is to explore two different senses of the statement:
“The big Other doesn’t exist”. The first sense, formulated by Lacan, shows
the real inexistence of the big Other and its strictly symbolic character. The
second sense, characteristic of a cynical stance, is the outcome of discrediting

1
Artigo publicado no European Journal of Psychoanalysis, 5, Spring-Fall 1997,
páginação html: << http://www.psychomedia.it/jep/number5/zizek.htm >>.
Tradução e publicação autorizadas pelo autor em 10 de setembro de 2009.
2
Slavoj Zizek é pesquisador titular no Instituto de Sociologia, na Universidade de
Ljubljana, Slovenia e professor convidado em Filosofia e Psicanálise em várias
Universidades Internacionais.

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the symbolic order. It points to the resurgence of the figure of the big Other
in the Real. Now, belief in a big Other that exists, as it were, in the Real, is
one of the most succinct definitions of paranoia. The contemporary subject
surrenders to paranoid fantasies about conspiracies, threats and excessive
forms of the Other’s jouissance precisely when it cynically discredits all
public ideologies. Disbelief in the big Other (the order of symbolic fictions),
that is, the subject’s refusal to “take things seriously”, rests on the belief of
an “Other of the Other”: an invisible, secret and omnipotent agent “pulling
the strings” behind the visible side of public power.
KEYWORDS: Big Other; Real; paranoia; God; Lacan; Freud.

“O GRANDE OUTRO NÃO EXISTE”

Por que Freud suplementou o mito de Édipo com a narrativa


mitológica do “pai primevo” em Totem e Tabu?3 A lição desse segundo
mito é o exato oposto de Édipo: em vez de dizer respeito a um pai que,
intervindo como um Terceiro, impede o contato direto como o objeto
incestuoso (sustentando assim a ilusão de que seu aniquilamento nos
daria livre acesso a esse objeto), é o assassinato do pai, isto é, a própria
realização do desejo edipiano, que dá origem à proibição simbólica (o
pai morto retorna como seu Nome). E o tão lamentado “declínio do
Édipo” (da autoridade simbólica paterna) é precisamente o retorno de
figuras que funcionam segundo a lógica do “pai primevo”, dos líderes
políticos totalitários ao assédio sexual exercido pelo pai. Mas por quê?
Quando a autoridade simbólica “pacificadora” é suspensa, o único modo
de evitar o debilitante impasse do desejo, sua impossibilidade
constitutiva, é localizar a causa desta inacessibilidade em uma figura
despótica que representa o detentor do gozo [jouisseur] primevo: nós
não podemos gozar porque ELE se apropria de todo gozo...

-1-

No “complexo de Édipo”, o parricídio (e o incesto com a mãe)


é o desejo inconsciente de todos os sujeitos comuns (masculinos): a
figura paterna interdita o acesso o objeto materno e impede nossa
simbiose com o mesmo, ao passo que Édipo é a figura excepcional,

3
S. Freud (1913) Totem e Tabu. In: Obras psicológicas completas: Edição Standard
Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XIII, pp. 11-191.

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aquele que efetivamente realizou o incesto. Em Totem e Tabu, ao


contrário, o parricídio não é o objetivo de nosso desejo inconsciente,
mas, como Freud não se cansa de enfatizar, um fato pré-histórico que
“realmente teve que ocorrer” para permitir a passagem da animalidade
para a Cultura. Em resumo, o evento traumático não é algo sobre o
que sonhamos e que jamais ocorre - e que deste modo, por seu
adiamento, sustenta o estado da cultura (visto que a consumação do
laço incestuoso com a mãe aboliria a distância/ proibição simbólica
que define o universo da Cultura); ao contrário, o evento traumático é
aquilo que deve ter sempre já ocorrido a partir do momento em que
estamos na ordem da Cultura. Se efetivamente matamos o pai, por
que disso não decorre a tão desejada união incestuosa? Neste paradoxo
reside a tese central de Totem e Tabu: quem sustenta a proibição que
veta nosso acesso ao objeto incestuoso não é o pai vivo, mas o pai
MORTO, que retorna após a morte como seu Nome, ou seja, a
encarnação da lei/proibição simbólica. A matriz de Totem e Tabu dá
conta da necessidade estrutural do parricídio: a passagem da força
brutal direta para a regra da autoridade simbólica - a lei proibitiva -
está sempre fundada no ato denegado do crime primordial. É nisso
que reside a dialética do “apenas me traindo você pode provar que me
ama”: o pai é promovido a símbolo da Lei somente a partir de sua
traição e assassinato. Esta problemática também inaugura os
desdobramentos da ignorância não do sujeito, mas do grande Outro:
“o pai está morto, embora não saiba disso”, ou seja, não sabe que seus
amorosos seguidores já o traíram desde sempre. Por outro lado, isso
significa que o pai “realmente pensa que é um pai”, acreditando que
sua autoridade emana diretamente de sua pessoa, e não apenas do
lugar simbólico vazio que ele ocupa e/ou preenche. Aquilo que o
seguidor crente deve ocultar da figura paterna é precisamente essa
distância entre o líder na concretude de sua personalidade e o lugar
simbólico que ele ocupa, uma distância em função da qual o pai,
enquanto pessoa efetiva, é fundamentalmente impotente e ridículo (o
Rei Lear, violentamente confrontado à sua traição e à subseqüente
revelação de sua impotência, privado de seu título simbólico, vê-se
reduzido a um velho tolo, raivoso, impotente). A lenda herética segundo
a qual o próprio Cristo ordenou a Judas que o traísse (ou pelo menos
revelou seu desejo nas entrelinhas...) é, portanto, bem fundamentada:
nessa necessidade de traição do Grande Homem, condição necessária
para assegurar sua fama, reside o verdadeiro mistério do Poder.

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No entanto, ainda há algo faltando na matriz de Totem e Tabu.


Não basta que o pai assassinado retorne como o agente da proibição
simbólica: esta, para ser efetiva, deve ser sustentada como um ato
positivo da Vontade. Por este motivo, em Moises e o Monoteísmo,
Freud acrescentou ainda uma última variação no dispositivo edipiano.4
Aqui, entretanto, as duas figuras paternas não são as mesmas que em
Totem e Tabu: já não se trata aqui do contraponto entre o Pai do Gozo
pré-simbólico, obsceno e não castrado, e o pai (morto) enquanto
suporte da autoridade simbólica, ou seja, o Nome-do-Pai, mas do
contraponto entre o velho Moisés egípcio (que, abandonando as
superstições politeístas anteriores, introduz o monoteísmo, a noção
de um universo determinado e regido por uma única Ordem racional)
e o Moisés semítico (Jeová, o Deus invejoso que semeia sua ira
vingativa quando se sente traído por seu povo). Moisés e o Monoteísmo
inverte novamente o dispositivo de Totem e Tabu: o pai “traído” e
assassinado por seus filhos/seguidores NÃO é o obsceno e primevo
Pai do gozo, mas o pai “racional” que encarna a autoridade simbólica,
a figura que personifica a estrutura racional unificada do universo
(logos). Em vez do obsceno pai pré-simbólico que retorna na figura
de seu Nome, como autoridade simbólica, temos agora a autoridade
simbólica (logos) traída, morta por seus seguidores/filhos, e retornando
na figura superegóica de um Deus ciumento, vingativo e rancoroso,
cheio de raiva assassina.5 Somente a partir dessa segunda inversão da
matriz edípica encontramos a conhecida distinção pascaliana entre o
Deus dos filósofos (Deus enquanto a estrutura universal do logos,
identificada com a estrutura racional do universo) e o Deus dos
teólogos (o Deus de amor e ódio, o inescrutável “Deus obscuro” da
predestinação caprichosa e “irracional”).
O ponto crucial é que, em contraste com o pai primevo dotado
de um conhecimento sobre o gozo, este Deus inflexível diz “Não!” ao
gozo. Como afirma Lacan, esse Deus é possuído por uma ignorância
feroz (“la féroce ignorance de Yahvé”6) , por uma atitude de “eu me

4
S. Freud, Moisés e o monoteísmo. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XXIII.
5
Para uma descrição concisa desses deslocamentos, veja Michel Lapeyre, Au-delà
du complexe d’Oedipe (Paris: Anthropos-Economica 1997).
6
Em frase no otiginal. A frase remete ao título do Capítulo IX do Seminário XVII de
Jacques Lacan, O avesso da psicanálise (Paris: Editions du Seuil 1991).

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recuso a saber, não quero ouvir nada sobre seus sujos e secretos modos
de gozo”; é um Deus que exclui o universo da sabedoria tradicional
sexualizada, um universo em que ainda havia a aparência de uma
harmonia fundamental entre o grande Outro (a ordem simbólica) e o
gozo, e a noção de um macrocosmo regulado por uma tensão sexual
subjacente entre os “princípios” masculino e feminino (yin e yang,
Luz e Escuridão, Terra e Céu...). Este é o Deus proto-existencialista
cuja existência, para aplicar de modo anacrônico a definição sartreana
do homem, não apenas coincide com sua essência (como ocorre com
o Deus medieval de S. Tomás de Aquino), mas a precede. Deste modo,
ele fala por tautologias não apenas no que diz respeito à sua própria
quididade (“Eu sou aquele que é”), mas também e sobretudo no que
concerne ao logos, às razões para o que faz, ou, mais precisamente,
para suas injunções (aquilo que Ele nos pede ou proíbe fazer); suas
ordens inexoráveis estão em última instância fundadas em “É assim
PORQUE EU DIGO QUE É ASSIM!”. Em resumo, este é o Deus da
pura Vontade, do abismo arbitrário que se situa para além de toda
ordem racional e global do logos, um Deus que não precisa prestar
contas de nada do que faz.7
Esse é o Deus que fala a seus seguidores/filhos, a seu “povo”.
A intervenção da voz é crucial aqui. Como afirma Lacan em seu
Seminário sobre a Angústia (de 1962-63) 8, a voz (o efetivo “ato de
discurso”) realiza a passage à l’acte da rede significante, sua “eficácia

7
Na história da filosofia, essa falha no edifício racional global do macrocosmo - em
que a Vontade Divina aparece - foi inicialmente inaugurada por Duns Scotus; mas
devemos a F.W.J. Schelling as descrições mais penetrantes desse assustador abismo
da Vontade. Schelling opunha a Vontade ao “princípio de razão suficiente”: o puro
querer é sempre auto-idêntico e repousa apenas sobre seu próprio ato – “quero
porque quero!”. Em suas descrições de assustadora beleza poética, Schelling enfatiza
de que modo as pessoas comuns ficam horrorizadas quando encontram alguém
cujo comportamento demonstra tal Vontade incondicional: há nisso algo de
fascinante, de realmente hipnótico, e fica-se como que enfeitiçado por essa visão...
A ênfase de Schelling no abismo da pura Vontade, é claro, visa o suposto
“panlogismo” de Hegel: Schelling quer provar que o sistema lógico universal
hegeliano é em si mesmo stricto sensu impotente: trata-se de um sistema de puras
potencialidades, e como tal necessita do suplemento de um ato “irracional” de pura
Vontade para se atualizar.
8
O texto em questão é o Seminário X, L’angoisse (promovido na verdade em 1962-
1963), e foi publicado em 2004 pelas Editions du Seuil, Paris. No Brasil, foi
publicado em 2005 pela Zahar, com o título Seminário X: A Angústia. (N.T.)

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simbólica”. Esta voz é intrinsecamente sem sentido, absurda até, um


gesto negativo que expressa a raiva vingativa e maliciosa de Deus
(todo sentido já está inscrito na ordem simbólica que estrutura nosso
universo); mas é precisamente por isso que ela efetiva o significado
puramente estrutural, transformando-o em uma experiência de
Sentido.9 Evidentemente, isso é um outro modo de dizer que, através
da verbalização da Voz que manifesta sua Vontade, Deus subjetiva a
Si mesmo. O velho Moisés egípcio, traído e morto por seu povo, era
o Uno todo-inclusivo do logos, a estrutura racional e substancial do
universo, a “escrita” accessível àqueles que sabem como ler o “grande
livro da Natureza” e não ainda o Uno todo exclusivo da subjetividade
que impõe sua Vontade incondicional sobre sua criação.
Este Deus de uma Vontade infundada, de uma ira feroz e
“irracional”, é aquele que, por meio de sua Proibição, destrói a velha
Sabedoria sexualizada, abrindo lugar {deste modo} para o conhecimento
dessexualizado, “abstrato”, da ciência moderna. O paradoxo é que só
há conhecimento científico “objetivo” (no sentido moderno, pós-
cartesiano do termo) se o próprio universo do conhecimento científico
é suplementado e sustentado por essa figura excessiva e “irracional” do
pai proibitivo; o “voluntarismo” de Descartes (sua infame afirmação
de que 2+2 seria 5 se esta fosse a Vontade de Deus, não há verdades
eternas diretamente consubstanciais à Natureza Divina) é o obverso
necessário do conhecimento científico moderno. O conhecimento pré-
moderno, aristotélico e medieval, ainda não era “objetivo,” racional,
científico, precisamente porque a ele faltava esse elemento excessivo
de Deus enquanto a subjetividade de puro Querer “irracional”: o Deus
aristotélico, diretamente idêntico à sua própria Natureza eterna e
racional, não “é” nada senão a Ordem Lógica das Coisas. Outro paradoxo
ainda é que esse Deus “irracional”, como a figura paterna proibitiva,
também abre o espaço para todo o desenvolvimento da modernidade,
chegando à noção desconstrucionista de que nossa identidade sexual é
uma formação sócio-simbólica contingente: a partir do momento em
que essa figura proibitória recua, retornamos às noções jungianas neo-
obscurantistas dos arquétipos masculino e feminino que florescem
atualmente. Este ponto é crucial para não perdermos completamente de

9
Para uma abordagem mais detalhada dessa distinção, cf. capítulo 2 de Slavoj Zizek,
The Indivisible Remainder (London: Verso, 1996).

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vista a distância que separa a autoridade “propriamente dita”


(característica da lei simbólica/proibição) da mera “regulação por
regras”: paradoxalmente, o domínio das regras simbólicas, para valer
como tal, deve estar fundado em uma autoridade tautológica ALÉM
DAS REGRAS, que diz “É assim porque eu digo que é!”.
Pode-se ver agora por que, na esfera da economia libidinal
individual, Lacan denomina esse Deus proibidor o “pai real como agente
da castração”: a castração simbólica é um outro nome para a distância
entre o grande Outro e o gozo, para o fato de que estes não podem
jamais ser “sincronizados”. Pode-se ver também em que sentido preciso
a perversão implica a denegação da castração: a ilusão fundamental do
perverso é que ele possui um conhecimento (simbólico) que lhe permite
regular seu acesso ao gozo; dito em termos mais contemporâneos, o
sonho do perverso é transformar a atividade sexual em uma atividade
instrumental, guiada para um fim e passível de ser projetada e executada
segundo um plano bem definido. Portanto, quando se fala hoje no
declínio da autoridade paterna, é ESTE pai, o pai do “Não!”
incondicional, que parece estar efetivamente em declínio; em sua
ausência, na ausência de seu “Não!” proibitivo, novas formas de
harmonia fantasmática entre a ordem simbólica e o gozo podem
novamente florescer. Em última instância, é disso que se trata na assim
chamada atitude “holística” new age: a renovação da harmonia entre a
Razão e a substância da Vida (a Terra ou o próprio macrocosmo como
uma entidade viva) às custas do “pai real” proibidor 10.

-2-

Esses impasses indicam que hoje, em certo sentido, “o grande


Outro não mais existe”; no entanto, em QUE sentido? O Grande Outro
é de certo modo semelhante a Deus segundo Lacan (Deus não está
morto hoje, ele sempre esteve morto, apenas não sabia disso...): ele

10
Um indício de que nem mesmo a Igreja resiste a essa mudança de atitude
fundamental são as recentes pressões de base sobre o Papa [João Paulo II] para
elevar Maria ao status de co-redentora: espera-se que o Papa torne a Igreja Católica
viável para o terceiro milênio pós-paterno proclamando um dogma segundo o qual
o único modo para nós, pecadores mortais, recebermos a graça divina é suplicando
pela mediação de Maria: se nós a convencermos, ela falará a nosso favor com
Cristo, seu filho.

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nunca chegou a existir. Ou seja, em última instância, a inexistência do


“grande Outro” equivale ao fato de que Ele é a ordem simbólica, a
ordem das ficções simbólicas que operam num nível diferente da
causalidade material direta. (Nesse sentido, o único sujeito para quem
o grande Outro de fato existe é o psicótico, que atribui às palavras
eficácia material direta.) Em resumo, a “inexistência do grande Outro”
é estritamente correlata à noção de crença, de confiança simbólica,
de crédito, de tomar a fala do outro “pelo valor de suas palavras”.
O que é a eficácia simbólica? Todos conhecem a velha piada
sobre o louco que pensava ser um grão de milho; depois de finalmente
curado e liberado, volta imediatamente ao hospício, explicando ao
medico seu pânico: “No caminho, encontrei uma galinha, e fiquei
com medo de que ela me comesse!” Diante da reação surpresa do
médico: - “Mas qual é o problema agora? Você sabe que não é um
grão e sim um homem, que não pode ser engolido por uma galinha!”,
o louco responde: “Sim, eu sei que já não sou um grão de milho, mas
será que a galinha sabe?”... Esta anedota, absurda no nível da realidade
factual em que ou bem se é um grão ou bem não se é, torna-se
plenamente racional se substituirmos “grão” por algum aspecto que
determina minha identidade simbólica.
Vejamos o que ocorre em nossas experiências cotidianas com
a hierarquia burocrática. Por exemplo, um funcionário de alto escalão
acolhe meu pedido de promoção; no entanto, é preciso um tempo
para o decreto ser adequadamente executado, atingindo a instância
administrativa que efetivamente se ocupa dos benefícios desse cargo
(aumento de salário, etc.). Todos conhecem a frustração causada por
um pequeno burocrata que, lançando um olhar ao decreto, responde
com indiferença: “Lamento, ainda não fui devidamente informado
dessa nova medida, não posso ajudá-lo...”. Isso não se parece com
alguém que diz: “Lamento, para nós você ainda é um grão de milho,
não um ser humano”? Em resumo, há um certo momento misterioso
em que uma medida ou decreto torna-se efetivamente operatório,
registrado pelo “grande Outro” da instituição simbólica.
Esse momento misterioso pode ser exemplificado por um
episódio curioso que ocorreu durante a última campanha eleitoral na
Eslovênia. Um amigo meu, candidato local, foi procurado por uma
velha senhora de seu eleitorado. Ela estava convencida de que o
número de sua casa (não o tradicional 13, mas o 23) lhe trazia má
sorte. A partir do momento em que, devido a uma reforma
administrativa, sua casa recebeu tal número, os infortúnios começaram

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a atingi-la (ladrões invadiram a casa, uma tempestade arrancou o


telhado, vizinhos começaram a perturbá-la...). Ela pediu gentilmente
a meu amigo que conseguisse junto às autoridades municipais a
mudança de número. Meu amigo fez uma sugestão simples: por que
ela mesma não o fazia? Por que simplesmente não substituía a placa
ou modificava a numeração (23-A ou 23-1, em vez de 23)? A velha
senhora respondeu: “Ah, eu experimentei isso algumas semanas atrás,
acrescentei um A ao 23, mas não adianta, os infortúnios continuam;
não se pode trapacear com isso, tem que ser feito corretamente, pela
instituição pública responsável...”. O “isso” com o qual não se pode
trapacear é, evidentemente, o “grande Outro” da instituição simbólica.
A eficácia simbólica diz respeito, portanto, a esse mínimo de
“reificação”: para um fato tornar-se operatório, não basta que todos
os indivíduos concernidos o conheçam; “isso”, a instituição simbólica,
também deve conhecer/”registrar” tal fato. Evidentemente, em última
instância, “isso” pode ser encarnado no olhar do “grande Outro”
absoluto, o próprio Deus. Encontramos exatamente o mesmo problema
da infeliz senhora no caso dos católicos que, para evitar a gravidez
indesejada, restringem as relações aos dias sem ovulação. A quem
eles querem enganar? Como se Deus não pudesse conhecer seu desejo
pelos prazeres do sexo sem procriação! A Igreja sempre foi muito
atenta a esta distância entre a mera existência e sua adequada inscrição/
registro: por exemplo, proibindo o enterro em solo sagrado às crianças
que morriam sem batismo, visto que estas não haviam sido
adequadamente inscritas na comunidade dos crentes...
Em um filme dos irmãos Marx, pego em uma mentira, Groucho
reage com irritação: “Em que você acredita, em seus olhos ou em
minhas palavras?” Esta lógica aparentemente absurda traduz
perfeitamente o funcionamento da ordem simbólica, na qual a máscara-
mandato simbólica importa mais do que a realidade direta do indivíduo
que porta a máscara e/ou assume tal mandato. Esse funcionamento
envolve a estrutura do desmentido [disavowal] fetichista: “Sei muito
bem que as coisas são do modo que eu as vejo/ que esta pessoa é um
velhaco corrupto/, mas, no entanto, eu o trato respeitosamente porque
ele porta as insígnias de um juiz, de modo que quando fala, é a própria
Lei que fala através dele”. Em certo sentido, portanto, eu efetivamente
creio em suas palavras e não em meus olhos, i.e., eu creio em um
Outro Espaço (o domínio da pura autoridade simbólica ) que é mais
importante do que a realidade de seus porta-vozes. A redução cínica à
realidade falha: quando um juiz fala, num certo sentido existe mais

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verdade em suas palavras (as palavras da Instituição do direito) do


que na realidade direta da pessoa do juiz. Quando alguém se limita ao
que vê, simplesmente perde de vista o fundamental. Lacan visa esse
paradoxo com seu les non-dupes errent: aqueles que se recusam a
entrar na ilusão/ficção simbólica, que continuam a crer em seus
próprios olhos, são aqueles que mais erram. Um cínico que “crê apenas
em seus olhos” perde de vista a eficácia da ficção simbólica e o modo
como esta estrutura nossa experiência da realidade. O mesmo ocorre
em nossas relações mais íntimas com nossos semelhantes: agimos
COMO SE não soubéssemos que também eles cheiram mal, produzem
excrementos, etc. Um mínimo de idealização, de denegação fetichista,
é a base de nossa coexistência.
Atualmente, as novas tecnologias digitais - sem falar da
realidade virtual - possibilitam imagens documentais perfeitamente
falsas, de modo que o lema “acredite em minhas palavras
(argumentação), não na fascinação de seus olhos!” está mais atual do
que nunca. É fundamental ter em mente como a lógica do “Em que
você acredita, em seus olhos ou em minhas palavras?” (i.e., “Eu sei,
mas mesmo assim... /Eu acredito/”) pode funcionar de dois modos
diferentes: o da ficção simbólica e o do simulacro imaginário. No
caso da eficácia simbólica da ficção do juiz portando sua insígnia,
“Sei muito bem que essa pessoa é um velhaco corrupto, mas no entanto
eu o trato como se (ou acredito que) o grande Outro simbólico falasse
através dele”: renego o que dizem meus olhos e escolho acreditar na
ficção simbólica. Ao contrário, no caso dos simulacros da realidade
virtual, “Sei muito bem que tudo o que vejo é uma ilusão gerada pela
tecnologia digital, mas, no entanto aceito imergir ali, agir como se
acreditasse nisso”. Aqui, eu renego o que meu conhecimento
(simbólico) me diz e escolho crer em meus próprios olhos...
No entanto, o supremo exemplo do poder da ficção simbólica
como o medium da universalidade é talvez o próprio Cristianismo, i.e.,
a crença na Ressurreição de Cristo: a morte do Cristo “real” é “negada”
no Espírito Santo, a comunidade espiritual de crentes. Este autêntico
núcleo do Cristianismo, articulado pela primeira vez por São Paulo,
hoje está ameaçado pela equivocada interpretação gnóstica/dualista,
de inspiração new age, que reduz a Ressurreição a uma metáfora do
crescimento espiritual “interior” da alma individual. O que se perde
com isso é a doutrina central do Cristianismo: o milagre da graça, que
apaga ou “desfaz” retroativamente nossos pecados anteriores, rompendo
com a lógica do pecado e castigo do Antigo Testamento.

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A “boa nova” do Novo Testamento é que é possível o milagre


da criação ex nihilo, um Novo Começo, o início de uma nova vida a
partir “do nada”. (A criação ex nihilo, o estabelecimento de uma nova
ficção simbólica que apaga a anterior, evidentemente só é factível
dentro de um universo simbólico). O ponto crucial é que este Novo
Começo só é possível pela Graça Divina; seu impulso deve vir de
fora, não como resultado de um esforço interior do homem para superar
suas limitações e elevar sua alma acima dos interesses materiais
egoístas. Nesse sentido preciso, o Novo Começo cristão é
absolutamente incompatível com a problemática pagã e gnóstica da
“purificação da alma”.
Uma das obsessões da abordagem new age de Platão é a de
desenterrar, por debaixo dos ensinamentos públicos disponíveis em seus
diálogos escritos, sua doutrina verdadeira, esotérica: a assim chamada
“doutrina secreta” de Platão. Esta exemplifica o caso do Outro teórico
obsceno que acompanha, como um tipo de duplo sombrio, o Um da pura
teoria. Mas, a um olhar mais atento, o conteúdo positivo dessa “doutrina
secreta” revela os lugares comuns da sabedoria à la Joseph Campbell
vendida nos aeroportos: banalidades new age sobre a dualidade dos
princípios cósmicos, sobre como o Um, o princípio positivo da Luz, deve
ser acompanhado pela Alteridade primordial, o princípio misterioso e
obscuro da matéria feminina. É aí que reside o paradoxo básico da
misteriosa “doutrina secreta” de Platão: o segredo que supostamente
podemos vislumbrar através do árduo trabalho de arqueologia textual
não é nada além da mais óbvia sabedoria pop new age: bom exemplo da
topologia lacaniana na qual o núcleo mais íntimo coincide com a
exterioridade radical. Este é apenas outro capítulo na eterna luta travada
pela Iluminação obscurantista contra o Iluminismo11 : na medida em que
Platão foi o primeiro grande Iluminista, a obsessão com seus ensinamentos
secretos testemunha o esforço de provar que o próprio Platão era já um
obscurantista pregando uma doutrina iniciática especial.
Os recentes esforços pop-gnósticas de inspiração new age,
reafirmando uma espécie de “doutrina secreta” de Cristo oculta sob o
dogma paulino, têm o mesmo objetivo: desfazer, apagar a novidade
radical do “Evento-Cristo,” reduzindo-o a uma continuação da linhagem
gnóstica que o precede. Outro aspecto importante dessa equivocada

11
No original: Illumination against Enlightenment. (N.T.)

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leitura gnóstica do Cristianismo é a crescente obsessão da pseudo-ciência


popular com o mistério da suposta tumba de Cristo e/ou com os
descendentes de seu suposto casamento com Maria Madalena. Best-
sellers como O sangue de Cristo e o Santo Graal 12 ou The Tomb of
God 13, focando a região em torno de Rennes-le-Château, no sul da
França, tecem uma narrativa ampla e coerente a partir do mito do Graal,
dos Cátaros, Templários, Franco-maçons, etc. Eles procuram substituir
o poder cada vez menor da ficção simbólica do Espírito Santo (a
comunidade dos crentes) pela corporeidade Real de Cristo e/ou de seus
descendentes. O fato de que Cristo tenha deixado para trás seu corpo
ou descendentes físicos subverte a narrativa cristã-paulina da
Ressurreição: o corpo de Cristo não ressuscitou de fato, “a verdadeira
mensagem de Jesus perdeu-se com Ressurreição”. 14 Esta “verdadeira
mensagem” supostamente consiste em promover “o caminho da
autodeterminação, em contraste com a obediência à palavra escrita” 15:
a redenção resulta da jornada interior da alma, não de um ato de Perdão
vindo de Fora. A “Ressurreição” deve ser compreendida como a
renovação/renascimento interior da alma em sua jornada de
autopurificação. Para os advogados desse “retorno do/no real”, sua
descoberta é o desvelamento do segredo herético e subversivo
longamente reprimido pela Igreja como Instituição; entretanto, e se este
mesmo desvelamento do “segredo” contribui para a “anulação”, para o
alívio do núcleo verdadeiramente traumático e subversivo da doutrina
cristã - o escândalo (skandalon) da Ressurreição e do perdão retroativo
dos pecados, ou seja, o caráter único do evento de Ressurreição?

-3-

Essas vicissitudes assinalam que, hoje, “o grande Outro não existe”


num sentido mais radical do que o usual, sinônimo da ordem simbólica:
essa confiança simbólica, que persiste contra todo dado cético, está cada

12
Tradução portuguesa de The Holy Blood and the Holy Grail - De autoria de Michael
Baigent , Richard Leigh e Henry Lincoln, Secker and Warburg, 2005 (Editora
Livros do Brasil. Lisboa, 2003.) (NT)
13
Richard Andrews / Paul Schellenberger
14
Richard Andrews and Paul Schellenberger, The Tomb of Deus (London: Warner
Books 1997), p. 433.
15
Op.cit., p. 428.

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vez mais minada. O primeiro paradoxo deste declínio do grande Outro


transparece na assim chamada “cultura da queixa” com sua subjacente
lógica do ressentimento: longe de assumir alegremente a inexistência do
grande Outro, o sujeito censura ao Outro seu fracasso e/ou impotência,
como se o Outro fosse culpado do fato de não existir, ou seja, como se a
impotência não fosse desculpa. Quanto mais a estrutura do sujeito é
“narcisista,” mais ele culpa o grande Outro, e reafirma desse modo sua
dependência diante dele. Portanto, a “cultura da queixa” solicita a
intervenção do grande Outro para corrigir as coisas (recompensar uma
minoria sexual ou étnica desfavorecida, etc., embora a questão de saber
exatamente como isso deve ser feito se reporte aos diferentes “comitês”
ético-legais). A característica específica da “cultura da queixa” reside em
seu desdobramento jurídico, com a tentativa de traduzir a queixa em
obrigação legal do Outro (geralmente o Estado), de me indenizar - pelo
que? Pelo mesmo insondável mais-de-gozar do qual estou privado, cuja
falta me faz sentir prejudicado. Portanto, a “cultura da queixa” não seria
apenas a versão atual da demanda histérica dirigida ao Outro? Demanda
que efetivamente quer ser rejeitada, visto que o sujeito funda sua existência
na queixa: “Eu existo na medida em que torno o Outro responsável e/ou
culpado por meu sofrimento”. Há uma distância insuperável entre essa
lógica da queixa e o verdadeiro ato “radical” (“revolucionário”) que, em
vez de queixar-se ao Outro e esperar que este aja (i.e. deslocando para o
Outro a necessidade de agir), suspende a moldura legal existente e realiza
por si mesmo o ato. O problema com a queixa dos verdadeiramente
desprivilegiados é que, em lugar de minar a posição do Outro, eles ainda
se dirigem a Ele: traduzindo sua demanda em reivindicação legal, por
este ataque mesmo eles confirmam o Outro em sua posição.
Além disso, uma ampla gama de fenômenos - o ressurgimento
dos “fundamentalismos” ético-religiosos, de inspiração cristã ou islâmica,
que defendem o retorno à divisão patriarcal de papéis sexuais; a massiva
ressexualização new age do universo, ou seja, o retorno às cosmo-
ontologias sexualizadas, pré-modernas, pagãs; o crescimento das “teorias
da conspiração” como uma forma de “mapeamento cognitivo popular” –
parecem contestar o declínio do grande Outro. Esses fenômenos não
podem ser simplesmente desqualificados como “regressivos”, como novas
formas de “fuga da liberdade”, como infelizes “resquícios do passado”
que irão desaparecer desde que continuemos resolutamente no caminho
da historicização, desconstruindo toda identidade fixa, desmascarando a
contingência de toda auto-imagem naturalizada. Ao contrário, esses
fenômenos perturbadores nos compelem a elaborar os contornos do

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ETHICA | RIO DE JANEIRO, V.16, N.2, P.113-131, 2009

declínio do grande Outro: o resultado paradoxal dessa mutação na


“inexistência do Outro” (no crescente colapso da eficácia simbólica) é
precisamente a reemergência de diferentes facetas de um grande Outro
que existe efetivamente, no Real, e não apenas como ficção simbólica.
A crença no grande Outro que existe no Real é a mais sucinta
definição de paranóia, de modo que dois aspectos que caracterizam a
posição ideológica atual - o distanciamento cínico e a completa adesão à
fantasia paranóica - são estritamente co-dependentes: o sujeito típico atual,
ao mesmo tempo em que demonstra um descrédito cínico diante de toda
ideologia pública, entrega-se livremente a fantasias paranóicas sobre
conspirações, ameaças e formas excessivas de gozo do Outro. A descrença
no grande Outro (a ordem das ficções simbólicas), a recusa do sujeito de
“levar a sério”, repousa sobre a crença de um “Outro do Outro,” um
agente invisível, secreto, onipotente, que efetivamente “puxa os cordões”
por trás do poder público visível. Essa outra estrutura de poder, obscena
e invisível, desempenha o papel de “Outro do Outro” na acepção lacaniana,
o papel da meta-garantia da consistência do grande Outro (a ordem
simbólica que regula a vida social).
Neste ponto, devemos procurar as raízes do recente impasse da
narratividade, i.e., do “fim das grandes narrativas”. Em nossa era, quando
as narrativas globais e totalizadoras (“o confronto entre a democracia
liberal e o totalitarismo”, etc.) já não parecem mais possíveis – na política
e na ideologia, assim como na literatura e no cinema – a narrativa paranóica
das “teorias conspiratórias” parecem o único modo de se atingir um tipo
de “mapeamento cognitivo” global. Vemos essa narrativa paranóica não
apenas nos fundamentalismos e populismos de direita, mas também nas
posições liberais de centro (o “mistério” do assassinato de Kennedy) e de
esquerda (a velha obsessão da esquerda norte-americana de que alguma
misteriosa agência governamental faz experimentos com gás de nervos
para regular o comportamento da população). É excessivamente simplista
descartar as narrativas conspiratórias como uma reação paranóica proto-
fascita das infames “classes médias” que se sentem ameaçadas pelo
processo de modernização: seria muito mais produtivo conceber as “teorias
conspiratórias” como um tipo de significante flutuante que poderia ser
apropriado por diferentes opções políticas para obter um mapeamento
cognitivo mínimo.
Esta, portanto, é uma versão do grande Outro que persiste na
vigília de seu suposto desaparecimento. Outra versão opera sob a forma
da ressexualização do universo, de inspiração new age ou jungiana
(“homens são de Marte, mulheres são de Venus”), segundo a qual

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existe uma identidade arquetípica subjacente, profundamente


ancorada, que fornece um porto seguro na confusão contemporânea
de papéis e identidades. Dessa perspectiva, a verdadeira origem da
crise atual não é a dificuldade de superar os papéis sexuais fixos ou
tradicionais, mas a ênfase exagerada do homem moderno no aspecto
masculino/racional/consciente em detrimento do aspecto feminino/
compassivo. Compartilhando com o feminismo o viés anti-cartesiano
e anti-patriarcal, esta tendência redefine o projeto feminista,
entendendo-o como a reafirmação das raízes arquetípicas femininas
reprimidas em nosso universo competitivo, masculino e mecanicista.
Outra versão do Outro real é a figura do pai como abusador sexual de
suas jovens filhas, que persiste no âmago da assim chamada “síndrome
da memória falsa”: aqui também, a figura do pai, suspensa como agente
da autoridade simbólica (i.e., como encarnação de uma ficção
simbólica) “retorna no real”. (A controvérsia é casada pelos que
defendem que a rememoração de abusos sexuais na infância pelo pai
não é mera fantasia, nem mesmo uma mistura indissolúvel de fato e
fantasia, mas um fato bruto, algo que na maioria das famílias
“realmente aconteceu,” uma obstinação comparável à insistência por
parte de Freud de que o assassinato do “pai primevo” é um evento
real na pré-história da humanidade.) Entretanto, existe uma afirmação
ainda mais interessante e surpreendente do grande Outro, claramente
perceptível na noção supostamente “liberadora” de que, hoje, os
indivíduos são compelidos a (re) inventar as regras de sua co-existência
sem a garantia de qualquer tipo de meta-norma. A filosofia ética de
Kant já era o caso exemplar de tal noção. Em Coldness and Cruelty,
Deleuze fornece uma formulação do caráter radicalmente novo da
concepção kantiana da Lei moral:

“… a lei não depende mais do Bem: pelo


contrário, o Bem depende da lei. Isso significa
que a lei não mais tem que se fundar, não pode
mais se fundar num princípio superior do qual
tiraria seu direito. Significa que a lei deve valer
por si mesma e se fundar por si mesma, que ela
não tem outra fonte senão sua própria forma [...]
fazendo da Lei um fundamento último, Kant
dotava o pensamento moderno de uma de suas
principais dimensões: o objeto da lei se furta
essencialmente. [...] Pois o mais claro é que A

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ETHICA | RIO DE JANEIRO, V.16, N.2, P.113-131, 2009

Lei, definida por sua pura forma, sem matéria e


sem objeto, sem especificação, é tal que não se
sabe nem se pode saber o que ela é. Ela age sem
ser conhecida. Ela define uma área de errância
em que todos somos culpados, isto é, em que já
transgredimos os limites antes de saber o que
ela exatamente é – a exemplo de Édipo. E a
culpabilidade e o castigo [nem mesmo a] sequer
nos fazem saber o que é a lei, deixando-a na
indeterminação, que corresponde à extrema
precisão do castigo.”16

A Lei kantiana, portanto, não é apenas uma forma vazia aplicada


a um conteúdo empírico contingente para verificar se este corresponde
aos critérios de adequação ética. Ao contrário, a forma vazia da Lei
funciona como a promessa de um conteúdo ausente (jamais) por vir.
A forma não é um tipo de moldura neutra e universal aplicável à
pluralidade de diferentes conteúdos empíricos; ao contrário, a
autonomia da Forma testemunha a incerteza permanente diante do
conteúdo de nossos atos. Nunca sabemos se o conteúdo determinado
que da conta da especificidade de nossos atos é o certo, i.e., se
efetivamente agimos de acordo com a Lei e não guiados por motivos
patológicos ocultos. Desse modo, Kant anuncia a noção de Lei que
culmina em Kafka e na experiência do “totalitarismo” político
moderno: visto que, no que diz respeito à Lei, seu Dass-Sein (o fato
da Lei) precede seu Was-Sein (o que a Lei é), o sujeito se encontra em
uma situação na qual, embora saiba que há uma Lei, nunca sabe (e a
priori não pode saber) o que é essa Lei. Um abismo definitivo separa
a Lei de suas encarnações positivas. O sujeito é, portanto, a priori, em
sua própria existência, culpado: culpado sem saber de que é culpado
(e por isso mesmo, culpado), infringindo a lei sem conhecer suas regras
exatas. Pela primeira vez na história da filosofia, a afirmação da Lei é
inconsciente: a forma experimentada sem conteúdo é sempre o índice
de um conteúdo reprimido; quanto mais o sujeito adere à forma vazia,
mais traumático se torna o conteúdo reprimido.

16
Gilles Deleuze, Sacher-Masoch: O Frio e o cruel. Tradução de Jorge Bastos, Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. (N.T.)

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A distância que separa a versão kantiana do sujeito reinventando


as regras de sua conduta ética da versão pós-moderna de inspiração
foucaultiana é facilmente perceptível. Ambos sustentam que, em última
instância, os juízos éticos apresentam a estrutura do juízo estético (no
qual, em vez de simplesmente aplicar uma regra universal a uma
situação particular, deve-se (re)inventar a regra universal em cada
situação singular concreta); em Foucault, no entanto, isso significa
simplesmente que o sujeito é jogado em uma situação na qual ele
deve criar seu projeto ético sem suporte em qualquer Lei transcendente
ou transcendental, ao passo que para Kant, a própria ausência de Lei
- no sentido específico de um conjunto determinado de normas
positivas universais - torna ainda mais aguda a insuportável pressão
da Lei moral enquanto injunção vazia para o sujeito cumprir seu Dever.
Da perspectiva lacaniana, é aqui que encontramos a distinção
crucial entre regras a serem inventadas e sua Lei/Proibição subjacente:
somente quando a Lei, enquanto conjunto de normas simbólicas
positivas e universais, deixe de aparecer, encontramos a Lei em seu
aspecto mais radical, em seu aspecto do Real de uma injunção
incondicional. O paradoxo a ser enfatizado aqui reside na natureza
precisa da Proibição implicada na Lei moral: em seu aspecto mais
fundamental, esta não é a Proibição de realizar alguma ação positiva
que transgrediria a Lei, mas a proibição autorreferencial de confundir
a Lei “impossível” com qualquer prescrição e/ou proibição simbólica
positiva, i.e., de reivindicar para qualquer conjunto de normas positivas
o estatuto de Lei. Em última instância, a Proibição significa que o
próprio lugar da Lei deve permanecer vazio.
Dito em termos freudianos clássicos: em Foucault, temos um
conjunto de regras regulando o “cuidado de si” em seu “uso dos
prazeres” (em resumo, uma aplicação sensata do “princípio do
prazer”), ao passo que em Kant, a (re)invenção das regras segue uma
injunção que procede “além do princípio do prazer.” Sem dúvida, a
resposta foucaultiana/deleuziana seria que Kant é em última instância
vítima de um tipo de ilusão de perspectiva que o conduz a um equívoco:
conceber a imanência radical das normas éticas – ou seja, o fato de
que o sujeito deve inventar autonomamente as normas que regulam
sua conduta, por sua própria conta e responsabilidade, sem qualquer
grande Outro a ser imputado – como seu exato oposto, como
transcendência radical, pressupondo a existência de um “grande Outro”
inescrutável e transcendente, que nos aterroriza com sua injunção
incondicional e simultaneamente nos proíbe o acesso a ele. Estamos

129
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sob a compulsão de cumprir nosso Dever, mas definitivamente


impedidos de saber claramente qual é nosso Dever.
A resposta freudiana é que uma tal solução (a tradução imanente
do inescrutável apelo ao dever do grande Outro) repousa sobre a recusa
do Inconsciente: o que passa geralmente despercebido é que a rejeição
por Foucault da abordagem psicanalítica da sexualidade envolve
também uma completa rejeição do inconsciente freudiano. Se lermos
Kant em termos psicanalíticos, a distância entre regras auto-inventadas
e sua Lei subjacente não é outra senão a distância entre as regras que
seguimos (conscientemente/ pré-conscientemente) e a Lei enquanto
inconsciente: segundo a lição básica da psicanálise, o que é
radicalmente inconsciente, não é a reserva dos desejos “reprimidos”,
mas a própria Lei fundamental.
Portanto, mesmo no caso do sujeito narcisista dedicado ao
“cuidado de si”, seu “uso dos prazeres” é sustentado pela injunção
superegóica —- inconsciente e incondicional – de gozar. O sentimento
de culpa que persegue o sujeito quando este falha em sua busca de
prazeres não é a prova definitiva disso? De acordo com investigações
sociológicas, as pessoas são cada vez menos atraídas pela atividade
sexual; essa surpreendente e crescente indiferença diante do prazer
sexual intenso contrasta agudamente com a ideologia oficial de nossa
sociedade pós-moderna, direcionada para a gratificação instantânea e
a busca do prazer. Desse modo, temos um sujeito que dedica sua vida
ao prazer e se torna tão intensamente envolvido nas atividades
preparatórias (jogging, massagens, bronzeamento, aplicação de cremes
e loções...) que a atração do Objetivo oficial de seu esforço se perde;
um breve passeio ao longo da Christopher Street em Nova York ou
em Chelsea revela centenas de gays despendendo uma energia
extraordinária em body-building, obcecados com o envelhecimento,
dedicados ao prazer, mas vivendo evidentemente em permanente
ansiedade diante da sombra do fracasso absoluto... Novamente, o
superego foi bem sucedido em seu trabalho: a injunção direta “Goza!”
é um meio muito mais eficaz para bloquear o acesso do sujeito ao
gozo do que a Proibição explícita, que mantém o espaço de sua
transgressão. A lição disso é que o “cuidado de si” narcisista - e não a
rede “repressiva” de proibições sociais - é o verdadeiro inimigo da
experiência sexual intensa. A utopia de uma subjetividade pós-
psicanalítica engajada na busca de prazeres corporais novos e
singulares reverteu-se em tédio desinteressado; e a intervenção direta

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da dor (práticas sexuais sadomasoquistas) parece o único caminho


que resta para a experiência intensa de prazer.
Deste modo, o fato de que “o grande Outro não existe” (como
ficção simbólica eficiente) tem duas consequências interligadas, porém
opostas: de um lado, a falência da ficção simbólica induz o sujeito a
aderir cada vez mais a simulacros imaginários, a espetáculos sensuais
que nos bombardeiam hoje de todos os lados; por outro lado, ela
desencadeia a necessidade de violência no Real do próprio corpo
(cortar e perfurar a carne, ou inserir objetos protéticos no corpo).

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