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39
K96c BC
KUP ag

ISBN flS-7i4tD-mt-E 215516

9ll798574ll601464ll
ciências
Adam Kuper

Coordenação Editorial
Irmã Jacinta Turolo Garcia

Assessoría Administrativa
Irmã Teresa Ana Sofiãtti

Coordenação da Coleção Ciências Sociais


Cultura
a visão dos antropólogos
Luiz Eugênio Véscio

Tradução
Mirtes Frange de Oliveira Pinheiros

caenoas^sociais
EDUSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração
00 S

EDUSC
Ia Universidade do Sagrado Coraçã<

K9678c

Kuper, Adam ,
Cultura : a visão dos antropólogos / Adam
Kuper ; tradução Miites Fraiige; de Oliveira,
.pinheiros. - Bauru/SP: EDUSC, 2002.
324 p. ; 21 cm. — (Coleção Ciências Sociais)

ISBN 85-7460-146-2
Tradução de: Culture: the anthropologisfs
account.

1. Cultura. 2. Etnologia. 3. Civilização —


Sociologia. I. Título. II. Série.

CDD. 306

ISBN 0^674-00.417-5 (original)

Copyright© Adam Kuper, 1999


Copyright© (tradução) EDUSC, 2002

Tradução realizada a partir da edição de 1999


Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa
para o Brasil adquiridos pela
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO 'SAGRADO CORAÇÃO
Rua Irmã Arminda, 10-50
CEP 17011-160 - Bauru - SP
Fone (14) 3235-7111 - Fax (14) 3235-7219
e-mail: eclusc@edusc.com,br
para Jessica
l. sumario

9 Prefácio à edição brasileira


11 Prefácio
21 Introdução: guerras culturais

Parte 1. Genealogias
45 Capítulo 1. Cultura e civilização: intelectuais franceses,
alemães e ingleses, 1930-1958
73 Capítulo 2. A visão cias ciências sociaisfTalcott
Parsons e os antropólogos americanos

Parte 2. Experimentos
lOjv Capítulo 3. Clifford Géertz: cultura como religião e
como grande ópera
101 Capítulo 4. David Schneíder: biologia como cultura
207 Capítulo 5. Marshall Sahlins: história como cultura
(
259 Capítulo 6. Admirável mundo novo
287 Capítulo 7. Cultura, diferença, identidade

Leituras adicionais
317 Agradecimentos
319 índice onomástico
l prefácio à edição brasileira

E, / m agosto cie 1999, pouco antes da publicação inicial


cie Cultura., eu era professor convidado no Museu Nacional
cio Rio de Janeiro, oncle conduzi uma série cie seminários que
sintetizavam, o assunto cio livro. As discussões foram uma
revelação para mim.'Não é demais dizer que me sentia em
casa, tanto nas mas dó Rio quanto no anfiteatro cie conférên.-.
cias. Os jovens brasileiros com os quais dialogava obviamente
entendiam muito, bem o que x eu tinha em mente. Meu
primeiro envolvimento com as questões cie identidade e
política cultural se deu na década de 1950,, quando era estu-
dante universitário na África do Sul. No Brasil, no final do
século 20, jovens antropólogos intetessavam-se por questões
muito similares, com a mesma intensidade. Tanto no Brasil
como na África do Sul, a definição de cultura e a importância
dada às causas culturais não eram apenas questões acadêmi-
cas abstratas, mas problemas com conseqüências políticas e
sociais imediatas. Essas questões estavam no âmago cios de-
bates nacionais sobre raça, sobre o caráter e o.destino dos
"povos indígenas", sobre as causas cia pobreza.
No Brasil, como tem muitos outros países, por vezes pare-
cia que a idéia de cultura havia substituído a idéia cie raça no
discurso popular, mas falar de cultura freqüentemente eqüiva-
lia a falar de raça, oferecendo uma razão para crer que as
relações econômicas, políticas e sociais eram determinadas
pela natureza interior dos diferentes grupos na: sociedade.
Para entendermos as implicações desse, tipo de pensamento
basta considerarmos alguns dos fatores que ele. rejeita: as con-
seqüências das, políticas econômicas, o poder modeíador da
políticajnternacional, a política dos grupos de interesse. Uma
antropologia que se define como o estudo da cultura despre-
zará fatores sociais, políticos, econômicos e também biológi-
!
cos. Idéias e valores serão vistos como as causas cio compor-
tamento — cio crime, das práticas trabalhistas, cias práticas edu-
prefácio à edição brasileira

cacionais — e não como as conseqüências de outros fatores,


tais como a prosperidade e a pfobreza relativas, as oportu- (prefácio
nidades de emprego, a exclusão cios processos políticos, a cor-
rupção e assim por diante.
A primeira parte deste livro explora as genealogias inte-
lectuais das diferentes noções de cultura. A segunda "parte
examina as quase sempre criativas e críticas aplicações de
JL álo neste livro sobre certa "tradição moderna dentro
uma noção particular cie .cultura na antropologia cultural nos
do antigo discurso internacional em constante transformação
Estados Unidos durante a segunda metade cio século 20. Esta
Sobre cultura. Já em 1917, Robert Lowie declarou que cultura
parte do livro denomina-se Experimentos, pois os maiores "é, na verdade, o único assunto da etnologia, assim como a
expoentes da antropologia cultural moderna estavam na ver- consciência é o assunto cia psicologia, a vida é o assunto clã
dade testando o valor do conceito de cultura para a com- biologia e a eletricidade é um ramo cia física".' Palavras arre-
preensão do comportamento humano. Finalinente, discuto as batadoras. Boa parte dos catedráticos alemães, por exemplo,
versões mais recentes do determinismo cultural em antropolo- descreveu seu campo como ciência cultural, mas não como
gia e levanto questões sobre o que poderia acontecer se fôsse-
etnologia. Os discípulos cie Mathew Arnold perguntaram se
mos tentados à-adotar uma teoria cia história radicalmente ide-, era possível encontrar qualquer cultura, que fizesse jus ao
'alista e relativista. nome além das fronteiras das grandes civilizações. É alguns-
Escrevo este Prefácio uma semana após os ataques ter- antropólogos contestaram, dizendo que o verdadeiro tema da_
roristas nas cidades de Nova York e Washington. As .reações süà disciplina era a evolução hivmana.-JVías. Lowie falou em
imediatas ciavam conta cie que o acontecido provava a tese de nome cie uma escola de antropologia cultural norte-america-
Samuel Huntington cie que os conflitos do século 21 seriam na recém-criacla que decidiu desafiar as idéias comumehte'
conflitos culturais e cjue as novas guerras seriam guerras entre aceitas, Suas afirmações seriam, levadas mais a sério uma ge-
civilizações. Há um fatalismo trágico neste tipo de visão, assim ração mais tarde.' Depois da Segunda Guerra Mundial, as Ciên-
como havia na idéia muito parecida, no início cio século 20, cias sociais gozaram de um período de prosperidade e prestí-
de que raça era destino, e que a$ grandes guerras por vir seri- gio sem precedentes nos Estados Unidos. As várias disciplinas
am guerras entre raças. Até certo ponto, uma profecia desse ficaram mais especializadas e a antropologia cultural recebeu
tipo poderá, se concretizar. Vale a pena refletir muito sobre as uma licença especial para atuar no campo cia cultura.
teorias e a própria idéia cie cultura que fundamentam essa Os resultados foram bastante satisfatórios; pelo menos a
maneira de "pensar. princípio, para os antropólogos. Stuart Chase comentou, em
1948, que o "conceito cie cultura dos antropólogos e sociólo-
-Londres, 17 de setembro de 2001
gos está sendo considerado o alicerce das ciências sociais".2
Tradução cie Valéria Biondo Em 195t2,"a opinião respeitada cios maiores expoentes da an-
tropologia norte-americana cia época, Alfred Kroeber e Clycle
Kluckhohn, era de que "a idéia -de cultura, no sentido antro-

1. LOWIE, Robert II. Culliíre and Ethnology. Nova York: McMur-


trie, 1917. p. 5,
,2. CHASE, Saiait. TíyeProper Study ofMankind. Nova York: Harper,
194S. p. 59.

lio Hl
prefácio prefácio

polõgico técnico, constitui, uma das principais noções do pen- cultura ou apurando definições que esses problemas serão re-
samento americano contemporâneo".3 E eles estavam confian- solvidos. As dificuldades tornam-se maiores quando (.depois
tes cie que no "sentido antropológico técnico", cultura era um cie todos os protestos em contrário) a cultura deixa cie ser algo
conceito de promessa científica cie grande vulto, "quase ilimi- a ser descrito, interpretado ou talvez até mesmo explicado
tado. "Em importância explicativa e generalidade de aplicação para ser tratada como uma fonte de explicação propriamente
é comparável á categorias como a gravidade na, física, a doen- dita. Não quero GO m isso negar que alguma forma de explica-
ça na medicina e a,evolução na biologia." ção cultural possa ser bastante útil, em seu devido lugar, mas
Hoje em dia as coisas estão muito diferentes. Poucos an- apelos à cultura.só podem oferecer uma explicação parcial do
tropólogos afirmariam que a noção de cultura pode ser com- que leva as pessoas a pensarem e a agirem de determinada
parada "em importância explicativa" com gravidade, doença forma e cio que faz com que elas.mudem seu jeito cie ser. For-
ou evolução. Embora ainda se considerem especialistas no es- ças políticas e econômicas, instituições sociais e processos
tudo cia cultura, eles precisam aceitar a idéia de quê não go- biológicos não desaparecem como num passe de mágica ape-
zam mais de uma posição privilegiada na galeria condensada nas porque esse é o nosso desejo, nem podem ser assimila-
e diversa cie autoridades em cultura. Além disso, -a natureza cla. dos em sistemas de conhecimentos e crenças. E esse, eu diria,
área que eles reivindicam-sofreu uma mudança radical. De constitui o principal empecilho no caminho da teoria.cultural,
modo geral, eles transferiram sua fidelidade intelectual das certamente em vista de suas pretensões atuais. -
ciências sociais para as ciências humanas, e estão propensos Espero que os capítulos independentes deste livro pos-
a fazer uma interpretação prática, até mesmo uma desconstru- sam corroborar essas conclusões, persuadir o leitor de visão e
ção, e não uma análise sociológica ou -psicológica. Não obs- semear dúvidas na mente dos mais crédulos. Entretanto, po-
tante, ,os antropólogos modernos norte-americanos vêm siste- der-se-ia alegar que, antes cie iniciar esse projeto, eu tinha pre-
maciçamente aplicando as teorias culturais em uma grande va- conceitos contra a maior parte cias teorias sobre cultura. Sou
riedade de estudos etnográficos, e creio que seus experimen- membro integrante cia facção européia de antropologia que
tos representam o mais intrigante e satisfatório teste do valor sempre teve muita cautela em reivindicar cultura como seu
- e talvez da validade - das teorias culturais. O objetivo pri- tema exclusivo, ê mais, ainda de lhe conferir poder de explica-
mordial deste livro, por conseguinte, consiste em fazer uma
ção. Sem dúvida alguma, meu ceticismo inicial foi acentuado
^avaliação do projeto-.central da -antropologia cultural norte- por minhas visões políticas: sou. liberal, no sentido.europeu e
americana cio pós-guerra. .não americano, um homem moderado, um humanista sem ex-
Cheguei à conclusão de que~quanto"mais se analisam os
tremos; .mas apesar de ser bastante sensato, não posso dizer
melhores trabalhos modernos cios antropólogos sobre cultura,
que estou livre de preconceitos. Um materialista moderado e
mais aconselhável se torna abandonar cie vez a palavra hiper-
com convicções brandas sobre direitos humanos universais,
:_ referencial e passar a falar de forma mais precisa sobre conhe-
sou refratário ao idealismo,e ao relativismo cia teoria cultural
cimento, convicção, arte, tecnologia, tradição ou até mesmo
moderna e não tenho muita simpatia pelos movimentos sociais
ideologia (embora problemas semelhantes sejam levantados
por esses conceitos polivalentes). Existem problemas episte- fundamentados em nacionalismo, identidade étnica ou reli-
mológicos fundamentais, e não vai ser tergiversando, sobre gião, exatamente os movimentos que exibem maior tendência
de invocar a cultura para motivar ação política.
Pouco antes cie começar a escrever este livro, tomei cons-
ciência cie. que essas dúvidas teóricas e preocupações políticas
3. KROEBER, A. L.; KLUCKHOHN, Clyde. 'Çulture: A Criticai Re-
view of Concepts and Definitions. Cambridge, Mass.: Trabalhos cio
estavam profundamente enraizadas em minha própria condi-
Peabody Musèüm, 1952, p. 3. -'.- ção cie sul-africano liberal. No estágio inicial cia recente trans-

12' 13!
;
prefácio prefácio

formação por que passou a África cio Sul, depois da eleição cie Os nacionalistas africânderes suspeitavam da "missão ci-
F. W, De Klerk para á presidência mas antes da libertação cie vilizaclora" proclamada, com boa ou má fé, pelos poderes co-
Nelson Mandela da prisão, um momento imbuído de grandes loniais na África.4 Alguns acreditavam que os africanos não
possibilidades históricas, recebi uma carta de um eminente an- .podiam ser socializados, e que até mesmo uma tentativa nes-
tropólogo americano. Ele havia siclo convidado a proferir uma se sentido era contraproducente; ou, na melhor cias hipóteses,
palestra sobre liberdade acadêmica na Universidade da Cidade que levaria séculos para alcançar tal objetivo, e talvez apenas
cio Cabo. Naturalmente, ele se perguntava de que maneira um a um grande custo humano. Esse tipo cie argumento, em ge-
antropólogo poderia contribuir para os seríssimos debates so^ ral, é motivado por um racismo torpe, e o pensamento racis-
bre raça, cultura e história que arrebatavam a África cio Sul, e ta certamente era disseminado entre os brancos sul-africanos.
me pedia para lhe fornecer alguns subsídios sobre as discus- Entretanto, alguns intelectuais africânderes, entre eles Eiselen,
sões travadas nos círculos antropológicos locais.:Eu lhe enviei repudiavam os preconceitos populares. Não havia provas-cie
jrevisòes dos principais argumentos cia antropologia cultural que, a inteligência variava com a raça, afirmou Eiselen numa
africânder, e ele me escreveu novamente agradecendo. Ele es- palestra em 1929, tampouco que uma raça ou nação privile-
capou por pouco de cometer uma grave impropriedacle, pois giada deveria conduzir o mundo para todo o sempre na civi-
seu primeiro impulso tinha sido dedicar a palestra a um dis- lização. Não era a raça, mas sim a cultura que constituía a ver-"
curso boasiano clássico sobre cultura. Provavelmente ele teria cladeira base da diferença, o sinal do destino. E as diferenças
afirmado que raça e cultura eram independentes entre si, ,que culturais deveriam ser avaliadas. A troca cultural, até mesmo
era a cultura que tornava"as pessoas o que elas, eram e que.o o progresso, não era necessariamente uma dádiva.-Seu custo
respeito .pelas diferenças culturais deveria constituir a base cie podia ser demasiadamente alto. Se a integridade cias culturas
uma sociedade justa. Um argumento edificante nos Estados tradicionais fosse minada, haveria uma desintegração social.
Unidos, mas que na África cio Sul teria soado como uma justi- Eiselen achava que o governo deveria estimular uma "cultura
ficativa desesperada para o apartheicl. banto mais elevada, e não produzir europeus negros". Mais
Esse paradoxo estava profundamente entranhaclo em mi- tarde, o slogan "desenvolvimento separado" passou a ser usa-
nha consciência e, sem dúvida, constituiu um dos motivos do. A segregação era o curso adequado ^para a África cio Sul,
para a elaboração deste livro. Eu estava cursando a faculdade pois só assim as diferenças culturais seriam preservadas.
na África do Sul no final década cie f 950. Naquela época, um A escola cie etnologia do apartheicl citava os antropólo-
sistema africânder radical segurava firmemente as rédeas do ^gos culturais , norte-americanos com aprovação, embora em
país, e sua política coercitiva de segregação racial, o apar- grande parte em seus próprios termos; mas seus líderes eram'
theicl, estava sendo implementada com um tipo cie sadismo' radicalmente contrários as teorias cia escola britânica de antro-
moralizante. O governo parecia ser praticamente invulnerável pologia social, sobretudo às teorias cie A. R. Raclcliffe-Brown;
e impérvio a críticas. Os movimentos de oposição africana primeiro a ocupar a cadeira cie antropologia social na África do
eram brutalmente reprimidos. E, no entanto, havia um campo Sul, em Í921. Radcliffe-Brown, obviamente, não negava que
em que aparentemente 'algumás"das convicções mais sagradas
desgoverno podiam ser expostas por argumentos sensatos e
evidências irrefutáveis. .Embora muitas vezes estivessem en- 4. Para uma revisão da etnologia africânder e da carreira de Eise-
voltas na linguagem da teologia, _as doutrinas oficiais sobre len, ver GORDON, Robert. Apartheid's Anthropologist: The Gè-
raça e cultura invocavam autoridade científica; o apartheicl es- nealogy of Afrikaner Anthropology. American Ethnologist, v. 13,
tava fundamentado numa teoria antropológica. Não era por n. 3, p. 535-53, 1988, e para um relato mais geral sobre a antro-
acaso que seu arquiteto intelectual,-W. W. M. Eiselen, tinha pologia sul-africana, ver HAMMOND-TOOKE, W; D. Imperfect tn-
terpreters: South Africa's Anthropologists 1920-1990. Joanesburgo:
sido professor cie etnologia. L Witwatersrand University Press1, 1997.

14 151
prefácio prefácio

existiam diferenças culturais no país, mas rejeitava a política de mente se libertaram desse condicionamento inicial e'abraça-
segregação com base no argumento cie que a, África do. Sul ram a escola cultural. Meu ceticismo sobre cultura era mais
transformara-se numa sociedade única. As instituições nacio- forte, em parte por ter ficado, tão impressionado com o abuso
nais cruzavam as fronteiras culturais -e moldavam opções cie da teoria cultural na África do Sul. Mas não é de todo ruim
vicia em todas, as aldeias e cidades no país. Todos os cidadãos abordar uma teoria profundamente arraigada com uma postu-
(ou indivíduos) estavam no mesmo;barco. As, políticas de base ra cética. Ademais, as inclinações políticas não impedem, ne-
acerca de diferenças culturais representavam uma 'receita para cessariamente, alguém de avaliar os pontos fortes e fracos cios-
o desastre. "A segregação é insuportável", afirmou ele à platéia contra-argumentos. Além disso, as teorias culturais geralmen-
em uma de suas palestras. "O nacionalismo sul-africano tem cie te trazem em seu bojo uma carga política, justificando unia crí-
ser um nacionalismo composto poí pretos e brancos." tica política. Mas embora minha experiência sul-africana tenha
Em parte como resultado cia sua experiência sul-africa-. influenciado minhas indagações acerca da teoria cultural, es-
na, Radcliffe-Brown,, mais tarde, tinha a tendência cie tratar pero que isso não determine as conclusões a que cheguei.
todos os assuntos ligados à cultura com reservas! "Não obser- Qualquer que seja o preconceito que eu tenha trazido para
vamos uma 'cultura'", comentou ele em seu discurso de pos- esse projeto, fiz o melhor que pude para respeitar tanto os ar-
se como presidente cio Royal Antllrópological Institute, em gumentos como as evidências. ,
- 1940, "uma vez que essa palavra denota, não uma realidade
concreta, mas uma abstração, e da forma com é usada comu-
"mente, uma abstração vaga".5 Ele repudiava a opinião do seu
grande rival, Bronislaw Malinowski, de que uma sociedade
como a África cio Sul deveria ser estudada como uma arena
em que duas ou mais "culturas" interagiam. "Pois o que está
ocorrendo na África cio Sul [explicou Radcliffe-Brown] não é
a interação das culturas britânica, africânder (ou bôer), hoten-
to'te, banto e, indiana, mas sim a interação cie indivíduos e
grupos dentro cie uma estrutura social estabelecida que está.
em processo cie mudança. O que está acontecendo numa tri-
bo em Transkei, pôr exemplo, só pode ser descrito reconhe-
cendo-se que a tribo foi incorporada num amplo sistema es-
truturar político e econômico."6
Vindo da África do Sul, sem dúvida alguma eu estava
predisposto a aceitar esse tipo de argumento. Além do mais,
quaisquer preconceitos iniciais que e-ú tivesse foram reforça-
dos no meu curso de pós-graduação em antropologia estrütu^-
ral e social na Universidade de Cambridge no início da déca-
da, cie 196o. Todavia, alguns cios meus contemporâneos real-

.5. RADCLIFFE-BROWN, A. R. Ün Social Structure. Journal of the,


Rayal Anthropological Institute, v. 70, p. 1-12, 1940.
6. Icl., ibid.

16 171
Provavelmente, isso é tudo o que se pode pedir da his-
tória, sobretudo da história de idéias: não solucionar as
questões, mas sim elevar o nível cio debate.

Albert O. Hirschman
(introdução:
(guerras culturais

Não sei -quantas vezes desejei nunca ter ouvido a maldita


palavra.'
Raymond Williams

acadêmicos americanos estão travando-guerras


culturais. (Nem todas estão moitas). Os políticos conclamam
uma revolução cultural. Aparentemente, é necessário .que haja ,
uma mudança cultural sísmica para.resolver os problemas cie
pobreza, consumo cie drogas, crime, ilegitimidade e competi-
ção industrial. Fala-se sobre diferenças culturais entre sexos e-
gerações, entre equipes de futebol ou entre agências cie pro-
paganda. Quando uma fusão entre duas empresas não dá cer-
to, dizem que suas culturas não eram compatíveis.:O bom-cie
tudo isso é cjue todo mundo entende. "Tentamos vender 'se-
miótica', mas tivemos algumas dificuldades", declarou uma
empresa londrina chamada Semiotic Solutions, "por isso agora
vendemos 'cultura'. Essa todos conhecem e, portanto, dispen-
sa explicações".2 Além disso, não há como subestimar a cultu-
ra. "Ela fala- mais alto em termos de motivação cio comporta-
mento do consumidor", afirma o folheto cia empresa, "é mais
persuasiva do que a razão, mais 'massa' do que a psicologia"!
Existe também um mercado secundário florescente no discur-
so cultural. Em meados de 1990, as livrarias montaram seções-
de "estudos culturais" em posições de destaque que antes
eram,dedicadas à religião New Age e, antes disso, áps livros de
auto-ajuda. O gerente da Olsson's em Washington, D. C., Guy

1. WILLIAMS, Raymond. Polüics and Letlers. Londres: New Left


Books, 1979. p. 174T
2. MACFARQUAHAR, Larissa. This Semiotieian Went to Market. Lín-
gua Franca, p. 62, set./out. 1994.

21
Introdução
. Introdução

Brussat, explicou: "As pessoas vêem sociologia e pensam: tex- ciedade atualmente", cliz um político iraniano fundamentalista,
to acadêmico árido. Elas vêem estudos culturais e pensam: Ah, "é cultural".".(Mas certamente falar sobre identidade cultural é
cultura! Trata-se cie uma abordagem .psicológica sutil."1 muito... americano?) Akio Morita, um cios fundadores da Sony,
Todo inundo está envolvido com cultura atualmente. rebate as alegações cie que o Japão deveria, liberalizar seus
Para os antropólogos, esse já foi um termo ligado às artes. acordos de,comércio para permitir uma maior competição cie
Hoje, os nativos falam de suas culturas. "Cultura - a própria empresas estrangeiras. "Reciprocidade", explica ele, "significa-
palavra, ou algum equivalente local - está na boca cie todos", ria alterar as leis para aceitar sistemas estrangeiros que podem
observou Marshall Sahlins.4 "Tíbetanos, havaianos, esquimós, não ser adequados à nossa cultura".7 (Felizmente, vender tele-
cazaques, mongóis, aborígenes australianos, balineses, caxe- visores Sony para os-américanos e fazer filmes hollywoodiafios
rriirenses, Ojibway, Kwakiutl e Maori neozelandeses: todos está perfeitamente de acordo com a cultura japonesa,) _
descobrem cfue -têm uma 'cultura'." Os índios Caiapó que vi- Talvez o futuro cie todo o mundo dependa cia cultura.
vem na floresta tropical da América do Sul usam o termo cul- Em 1993, Samuel Huntington anunciou num artigo apocalíp-
tura para descrever suas cerimônias tradicionais. Maurice Go- tico para a revista norte-americana Foreign Affairs que a his-
delier descreve um trabalhador emigrante que retorna para o tória global iniciou uma nova fase, em que "as principais fon-
seu povo na Nova Guiné, os Baruya, proclamando: "Precisa- tes cie conflito" não serão fundamentalmente econômicas ou
mos fortalecer nossos costumes; precisámos nos basear naqui- ideológicas. "As grandes divisões entre a humanidade e as
lo que os brancos chamam de cultura." Outro habitante da principais fontes de conflito serão culturais."8 Ao discorrer so-
Nova Guiné diz a, um antropólogo: "Se não tivéssemos kas- bre essa tese recentemente num livro, ele afirmou que pode-
tom, seríamos exatamente como os homens brancos." Sahlins mos esperar um gigantesco choque cíe civilizações, cada qual
menciona toclos esses exemplos para ilustrar uma proposição representando uma identidade cultural primordial. As "princi-
geral: "A consciência cultural que se desenvolveu entre ás an- pais diferenças no desenvolvimento político e econômico en-
tigas vítimas cio imperialismo, no final do século 20, constitui tre as civilizações estão claramente enraizadas em suas cultu-
um dos fenômenos mais notáveis cia história mundial." ras distintas", e "a cultura e as identidades culturais... estão
Essas vítimas podem até mesmo desenvolver uma cultu- moldando os padrões de coesão, desintegração:e conflito no
ra crítica. Gerd Baumann mostrou que em Southall, subúrbio mundo pós-Guerra Fria,.. Nesse novo mundo, a política, lo
multiétnico situado a oeste de Londres, em primeiro lugar as • cal é a política da etnicidade; a política global é a política de
pessoas "questionam o significado dos termos 'cultura' e 'co- civilizações, A rivalidade cias superpotências é substituída
munidade'. Qs termos, por si só, tornam-se fundamentais para pelo choque de civilizações".9 ,.
a formação de uma cultura em Southall".5 Todavia, até mesmo
os nacionalistas antiocidente podem simplesmente se apro-
priar da retórica internacional dominante de cultura para afir-
mar á identidade singular do seu próprio povo, sem medo de
se contradizerem. "Achamos que a maior ameaça à nossa so- 6. International H, p. 5, 1996. __
7. Apud BURÚMA, lan, The Mtssionary and the Libertina Lovè and
War in East anel West. Londres: Faber, 1996. p, 235.
3. MARSHALL, Jessica. .Shelf Life. Franca, p. 27, mar./abr. 1995.
8. HUNTINGTON, Samuel P. Foreign Affairs, p. 22, verão 1993-
4. SAHLINS, Marshall. Goodby to Tristes Tropes: Ethnography in the
9. Id. The Clash of Ciinlization and the Remaking of World Or-
Context of Moclern World Histoiy. Journal of Modem Histoiy, v. 65,
der. Nova York: Simon and Schuster, 1996. p, 29- As observações
p. 3-4, 1993.
seguintes são das páginas 20 e 28. Observe-que o ensaio original
5. BAUMANN, Gerd, Contesting Culture: Discourses of Identity in
fazia a pergunta ("as principais fontes de conflito"). Agora, apa-
Multi-Ethnic London. Cambridge: Cambridge University Press,
rentemente, a pergunta foi respondida, de forma afirmativa.
1996T p. 145.

122 231
Introdução
Introdução

Não é preciso dizer que cultura tem um significado bas- sistas", escreve Erecl Inglis, com um leve toque de ironia.12 Mas
tante diferente para os pesquisadores de mercado em Lon- embora os conservadores rejeitem esses argumentos, eles con-
'dres, para um magnata japonês, para os habitantes da Nova cordam que a cultura estabelece padrões públicos e determi-
Guiné e para um religioso radical de Teerã, sem falar em Sa- na o destino cia nação. E quando pessoas de nações e grupos
muel Huntington. Há, entretanto, .uma semelhança familiar étnicos distintos entram em contato, há um confronto total cie
'. entre os conceitos que eles têm em mente" Em seu sentido culturas. Alguém deve-ceder nesse conflito.
mais amplo, cultura-é simplesmente uma forma de falar so- A cultura também é usada freqüentemente com outro
bre identidades coletivas. Porém, o status também está em sentido, para se referir à grande arte que é apreciada por pou-
jogo. Muitas pessoas, acreditam que, as culturas podem ser cos afortunados. Mas não se trata simplesmente cie uma reali-
comparadas, e tendem a prezar mais a sua própria cultura. zação pessoal. Se a arte e a erudição forem ameaçadas, o bem-
Elas-podem, até mesmo, acreditar que exista apenas uma ci- estar cie toda a nação estará em jogo. Para Matthew Arnold, a
vilização verdadeira, e que o futuro não. apenas cia nação, verdadeira luta cie classes não era travada .entre ricos e pobres,
mas do mundo, depende da sobrevivência da sua.cultura. "A mas sim entre os guardiões da cultura e as pessoas,a quem ele
despeito dos multiculturalistas", insiste Roger Kimball, "a op- chamava de filisteus, que serviam a Mamon. Escritores radicais,
ção atualmente não é-entre uma cultura ocidentar'repressiva' contudo, negam que a cultura da elite dissemina doçura ejuz.
e um paraíso multicultural, mas sim entre cultura e barbaris- A alta cultura pode representar um instrurnento de dominação,
mo. Civilização não é uma dádiva, mas sim uma conquista - um ardil cias castas. Em meio à elite, argumentou Pierre Bõur-
uma conquista frágil que precisa ser constantemente reafir- dieu, o valor das altas culturas reside precisamente no fato cie'
mada e defendida interna e externamente contra sitiadores".10 que a capacidade de avaliar obras de arte e fazer distinções
Huntington diz-que o conflito de civilizações pós-Guerra Fria . por si só confere "distinção".13 A cultura é õ dom do gosto re-
não passa de um estágio no caminho da luta maior que está finado que diferencia unia clama ou um cavalheiro do'novo-
por vir, "o conflito maior, 11
o 'verdadeiro conflito' global, entre rico. Para os adeptos da tradição marxista., a cultura tem seu
Civilização e barbarismo". lugar numa luta de classes mais ampla. A alta cultura disfarça
Enquanto os patriotas da Civilização ocidental reivindi- as extorsões dos ricos. A cultura de massa de Ersatz confunde
cam a superioridade da grande tradição, os multiculturalistas os'pobres. Apenas as tradições culturais populares podem'con-
comemoram a diversidade cia América e defendem a cultura- trapor-se à corrupção cia mídia de massa.,
cios marginalizados, das minorias, cios dissidentes e cios colo- Embora haja muita conversa em torno de cultura, discus-
nizados. A cultura do establishment é denunciada como sões desse tipo obviamente não são novas. Todas elas aflora-
opressiva. A&_culturas das minorias fortalecem os fracos: elas ram durante uma explosão semelhante cie teorização cultural
são autênticas; elas falam para pessoas cie verdade; elas man- .que ocorreu entre as.décadas cie 1920 e de 1950, como mostra
têm variedade e escolha; elas alimentam a dissensão. Todas as o próximo capítulo. (Talvez essa longa discussão apenas tenha
culturas são iguais, ou deveriam ser tratadas como "tal. "Por-.- sido interrompida.durante uma geração em virtude cljjs preocu-
tanto, a cultura como tema ou tópico cie estudo substituiu a pações ideológicas cia Guerra Fria). Naquela época, assim como
sociedade como objeto geral de indagação entre os progres- agora, os autores mais reflexivos citavam seus precursores cios
séculos 18 e 19, reconhecendo que os discursos sobre cultura
tendem a se encaixar em categorias bem definidas.-

W. KIMBALL, Roger. Tenured Radicais, New Criterío.n, p.. 13, jan.


12. INGLIS, Frecl. Cultural'Studies. Oxford: Blackwell, 1993. p. 109.
1991. '•'(-•'• 13. BOURDIEU, Pierre. Distinction: A Social Critique of the Judge-
11. HUNTINGTON, Samuel P. op. cit. p. 321.
ment of Taste. Londres: Routledge, 1984.

!24
Introdução Introdução

Uma teoria francesa de cultura, uma alemã e uma Ingle- A medida que esse creçlo se espalhou pelo resto da Europa,
sa muitas vezes são identificadas cie forma vaga.- Da mesma sua maior oposição ideológica veio cios intelectuais alemães,
forma, e igualmente vaga, podem-se distinguir discursos ro- amiúde ministros protestantes incitados a defender a tradição
mânticos, clássicos e ilúministas. Tratam-se de rótulos toscos nacional contra a civilização cosmopolita; os valores espirituais
para constructos complexos que são regularmente separados contra o materialismo; as artes e os trabalhos manuais contra"i a
.
e reagrupados em novos padrões, ^ adaptados, declarados ciência e a tecnologia; a genialidade .individual .e a expressão
mortos, revividos, renomeados, remodelados e, em geral, su- das próprias idéias contra a burocracia asfixiante; as emoções,
jeitos a uma variedade de transformações estruturais. No en- até mesmo as forças mais obscuras.do nosso íntimo contra a
tanto, apesar de grosseira, essa. classificação fornece uma razão árida: em suma, Kultur contra Civilização:
orientação inicial. Até mesmo os pensadores mais imaginati- , Ao contrário cio conhecimento científico, a sabedoria
vos e originais podem encaixar-se em uma ou outra dessas da cultura é subjetiva. Suas reflexões mais profundas são re-
tradições centrais, cada uma delas especificando uma con- lativas, e não leis universais. O que é válido em vim lado dos
; cepção de cultura e colocando-a em .ação dentro cie uma de- Pireneus põcle representar um erro do outro lado. Mas quan-
terminada teoria da história.
do a fé cultural é corroída, a vida perde todo o seu signifi-
Na: tradição francesa, a civilização ê representada como cado. Enquanto a civilização material está ganhando terreno
« uma conquista progressiva, cumulativa e. distintamente, huma- em toda a sociedade européia, as nações lutam para manter
na. Os seres humanos são semelhantes, pelo menos em po- uma cultura espiritual, expressada acima cie tudo por inter-
tencial. Todos-são capazes de criar uma civilização, o que de- médio cia linguagem e das artes. A autêntica Kultur dos ale-
pende do dom exclusivamente humano da razão. Não resta mães certamente seria preferível à Civilização artificial de
dúvida, de que a civilização se desenvolveu mais na França, uma elite francófona cosmopolita e materialista. De qualquer
-mas .em princípio ela pode ser usufruída, embora talvez não ,forma, diferença cultural era normal. Não existe uma nature-
com a mesma intensidade, por selvagens, bárbaros e outros za humana comum. "Tenho visto franceses, italianos, rus-
povos europeus. Segundo Louis Dürripnt, um francês, portan- : sos", escreveu o contra-reyolucionário, francês de Maistre.
íõ, vai "identificar inocentemente sua própria cultura com 'ci-
"Mas quanto ao homem', declaro que jamais o conheci; se ele
vilisation' ou cultura universal"." Para ser exato, um francês
"reflexivo admitiria prontamente que a razão nem sempre pre- existe, desconheço."15 (Pode ser que Henry James tivesse
valece,' ela precisa lutar contra a tradição, a superstição e o esse aforismo em mente quando escreveu: "O homem não é
instinto irracional. Mas ele poderia ficar confiante na vitória um só - afinal, o americano tem características muito dife-
;suprema dá civilização, pois ela pode convocar a ciência para rentes do francês, e assim por diante."16)
vir-em seu auxílio: a. mais alta expressão da razão e, certamen- Essas duas correntes de pensamento sobre cultura se de-
te, da cultura ou civilização, o conhecimento verdadeiro e efi- senvolveram em oposição dialética uma ã outra. Um tema im-
caz das leis que informam a natureza e a sociedade. portante dos pensadores iíuministas era o progresso cio ser
Esse credo secular foi formulado na França na segunda humano,.ao passo que seus oponentes estavam interessados
metade do século 18, em, oposição ao que os phtiosophes con- no destino específico de uma nação. Na visão do Iluminismo,
sideravam como forças cie reação e irracionalidade, represen- a civilização travava uma grande luta para vencer a resistên-
tadas, acima cie tudo, pela igreja católica e pelo ancien regime. ' cia cias culturas tradicionais,.com suas superstições", seus pre-

15. MAISTREj Joseph de. Considerations on France. Cambrictge:


14. DUMONT, Louis. German Ideoldgy: From France to Germany
Cambridge University Press, 1994 (publicação francesa, 1797). p. 53.
and Back. Chicago: University ôf Chicago Press, 1994. p. 3"'
16. Heniy James, carta a William Dean Howells, i de maio de 1890.

126
27
Introdução
Introdução

chamar a França de "um país verdadeiramente bárbaro" e es-


conceitos irracionais e suas lealclades temerosas a governan- pecular que talvez a civilização "tenha se refugiado em algu-
tes sarcásticos. (Diderot disse que só descansaria em paz '*ma tribo minúscula, porém ainda não descoberta".18 A Primei-
quando o último rei fosse estrangulado com as entranhas cio ra Guerra Mundial foi travada por trás das bandeiras rivais cia
último sacerdote.) Da parte cio contra-Iluminismo, a definição Civilização ocidental e da Kultur alemã, mas bem na sombra
cie inimigo era civilização, racional, científica e uniyersal: o da guerra, os irmãos Thomas e Heinrich Mann se colocaram
próprio Iluminismo. Associada a valores qiateriais, ao capita- em lados opostos - o alemão e o francês - 'num famoso de-
lismo e muitas vezes à política externa e à influência econô- bate sobre cultura e civilização'.
mica, essa civilização ameaçava a cultura autêntica e conde- Nessas duas tradições, cultura ou civilização representa-
nava artes seculares à obsolescência. O cosmopoli.tanismo va os valores supremos. Aventou-se a hipótese de que. esses •-
corrompia a linguagem. O racionalismo perturbava a fé reli- conceitos tenham sido propagados no século 18 porque a re-
giosa. Juntos, eles corroíam os valores espirituais dos quais ligião estava perdendo seu domínio sobre muitos intelectuais.
dependia a comunidade orgânica. Essas tradições constituíam uma alternativa, fonte secular cie
Essas ideologias contrastantes poderiam alimentar a retó- valor e significado. Cada uma delas, todavia, tinha afinidades'
rica nacionalista e suscitar emoções populares em épocas, de com uma determinada perspectiva cristã. A idéia de Civiliza-
guerra, mas até mesmo em sua faceta mais virulenta, elas nun- ção lembra as reivindicações universalistas da igreja católica.
ca foram meramente discursos nacionais. Alguns intelectuais
Comte e Saint-Simon criaram a religião do positivismo, para
franceses simpatizavam com o contra-Iluminismo apenas por-
a qual tomaram emprestados rituais católicos. Seu dogma
que ele saía em defesa da religião contra a insicliosa subver-
central era o progresso, que representava a salvação neste
são cia razão. Depois da batalha de Seclan, em 1870 (vencida,
mundo. As noções alemãs cie Bildung e Kultur, expressadas ,
assim disseram, pelos professores da Prússia), a idéia de uma
de forma característica numa linguagem espiritual, compro-
cultura naciqnah penetrou numa França humilhada, e "Ia cul-
metidas com as necessidades cia alma do indivíduo, que va-
ture Française" foi cada"vez mais contrastada com "Ia culture
lorizam mais a • virtude interior do que a aparência exterior e
allemancle", embora sem necessariamente comprometer as
reivindicações francesas de superioridade. (Ainda em 1938, o encaram com pessimismo o progresso secular, por sua vez,
Dicionário Quillet observou que o termo cultura podia ser : estão impregnadas,dos valores da Reforma, e Thomas. Mann

usado cie forma irônica, como na frase "Ia culture allemancle".)_. afirmou que a Reforma imunizara os alemães contra as idéias
Na Alemanha, havia uma antiga tradição do pensamento ilu- da Revolução Francesa.
Qs ingleses, como sempre, mantiveram-se um tanto
minista que jamais submergiu completamente, embora algu-
afastados desses argumentos continentais. John Stuart Mill
mas vezes assumisse formas estranhas, quase irreconhecíveis.
Nietzche condenava seus compatriotas por sua caótica Bil- tentou reunir as tradições francesas, e inglesas em seus famo-
dung, ou formação cultural, corrompida por -empréstimos e sos ensaios sobre Bentham e Coleridge, mas os ingleses ti-
moda, que ele contrastava com a Kultur orgânica da França, , nham suas próprias preocupações. À medida que a industria-
que, por sua vez, equiparava com a própria Civilização. Ele lização'transformava a Inglaterra, os intelectuais identifica-
optava' pela civilização — em outras palavras, pela França:, vam uma crise espiritual, uma luta de vicia ou de morte entre
"berço da mais refinada e espiritual cultura européia".17 Um o que Shelley chamou cie Poesia e Mamon. A" tecnologia e o
dissidente francês como Baudelaire, por outro lado, podia

18. BAUDELAIRE. Apud STAROBINSKI, Jean. Blessings in Disguise:


Or, The Morality of Evil. Cambridge, Mass.: Harvard University
17. NIETZSCHE, F. Jensetis von GutunâBôse. Munique: Golclmann, Press, 1993. p. 54.
.1980. 254. p. 145.

i 28
Introdução Introdução

matérialismo da civilização moderna incorporavam o inimigo, emprestadas cia genética competem, hoje em clia, com o jar-
contra o qual os intelectuais liberais lançavam valores cultu-' gão cia teoria literária contemporânea. Entretanto, mesmo que
Tais eternos extraídos cia grande tradição da a'rte e da filoso- fossem expressados em termos modernos, os discursos sobre
fia européias. Matthew Arnold definiu cultura como "o me- cultura não são inventados livremente; :eles remontam a cleter-
lhor de tuclo o que se teve conhecimento e foi dito",1' um câ- rninadas tradições intelectuais que persistiram por gerações,
non cosmopolita duradouro. Adquirindo cultura, ficamos co- disseminando-se da Europa para todo o mundo, impondo
nhecendo "a história do espírito humano". Era ela que dístin- concepções da natureza humana é da história, provocando
guia os eleitos dos bárbaros incultos.. Mas esse legado huma- uma série cie debates recorrentes. Vozes ancestrais perseguem
nista estava sob o cerco dos.exércitos cia civilização indus- os escritores contemporâneos. Novas formulações podem ser
trial. A grande interrogação era se a cultura intelectual cia eli- estabelecidas numa longa genealogia, mesmo que estejam re-
te instruída poderia, cie alguma forma, sustentar os valores lacionadas com as necessidades cio momento.
espirituais cia sociedade. Talvez a cultura cedesse, esmagada À medida que as ciências humanas se consolidavam, es-
pelo materialismo exacerbado cie homens compenetrados . colas de pensamento rivais recorriam a essas perspectivas
que sabiam o preço cie tuclo, mas não sabiam o valor de clássicas. Temas centrais da visão iluminista do mundo ou da
nacla. "À medida que as civilizações avançam", concluiu Ma-
ideologia francesa ressurgiram no positivismo, no socialismo
caulay, "há uni declínio quase inexorável da poesia".-9
e no utilitarismo cio século 19. No século 20, a idéia cie uma
No çntanto, de nada adianta exagerar o caráter distinto
civilização mundial científica progressiva foi traduzida parada
da tradição inglesa. Arnold recorreu a Coleridge, e este, aos
românticos alemães. As preocupações e os valores se sobre-. .teoria cia globalização. A curto prazo,-a cultura representou
punham. Em todos os lugares, cultura representava a esfera . uma barreira à modernização (ou industrialização, ou globali-
dos valores supremos, sobre os quais acreditava-se que se zação), mas no final a civilização moderna passaria por cima
apoiava a ordem social. Como a cultura era transmitida atra- das tradições locais menos eficazes. A cultura foi invocada '
vés cio Cisterna educacional e exprimida de forma mais inten- quando tornou-se necessário explicar por que as ..pessoas es-
~ sã por intermédio cias artes, essas eram áreas essenciais que tavam adotando metas irracionais e estratégias auto-clestruti-
um intelectual deveria estudar para aprimorar-se. E como o vas. Projetos cie desenvolvimento-eram derrotados pela resis-
destino de uma nação dependia da condição de sua cultura, tência cultural. A democracia desmoronava porque estava
essa era uma arena importantíssima para a ação política. alheia às tradições da.'..nação. Teorias de opções racionais não
Os argumentos modernos não recapitulam cie forma pré- — podiam explicar o que os economistas -desesperaclamente
cisa as controvérsias anteriores. Os contextos cia época dei- chamam cie. "apego", formas cie pensar e agir tão arraigadas
xam a sua marca. Cada ,geração moderniza o idioma do deba- que resistem aos argumentos mais convincentes. A cultura re-
te, via de regra adaptando-o à terminologia científica do mo- presentava o retrocesso, para explicar o"comportamento apa-
mento: evolucionismo no final do século 19, organicismo no rentemente irracional. Ela também foi responsável pelo resul-
;início do século 20, relatividade na década de 1920. Metáforas tado, desapontadqr de muitas reformas políticas. A tradição era
o refúgio dos ignorantes e receosos, ou o recurso cios ricos, e
poderosos, que temiam perder .seus privilégios.
19. ARNOLD, Matthew, Ltíerature and Dogma. Londres: McMillan, Vista sob outro prisma, -a resistência cias culturas locais
1873. a globalização provavelmente é respeitada e até mesmo co-
20. Thomas Babington Macaulay, "Milton". Publicado pela primei- memorada. Essa era a perspectiva cios herdeiros cio contra-
ra vez em 1825; retirado de Criticai and Historical Essays, 1843; Huminismo. A tradição romântica, ou alemã, também não fi-
reimpressò por Everyman's Libraiy. Londres: Dent, 1907. p. 153. cou estática. • Ela passou por suas próprias transformações,

130
31
Introdução Introdução

..embora exibisse sempre uma afinidade eletiva com idealis- O desafio cie uma teoria biológica cie progresso huma-
mo, relativismo, historicismo,_.um estilo hermenêutico de aná- no e diferenças humanas levou ao desenvolvimento daquilo
lise e o que chamamos atualmente cie identidade política. Ri- que, sob alguns aspectos, representava uma nova concepção
charcl A. Shweder tentou, até mesmo, fazer uma genealogia de cultura, que passou a ser considerada o oposto da biolo-
ligando p movimento romântico cio século 19-ao que ele cha- aia. Era a cultura que diferenciava os seres humanos cios ou-
ma cie "rebelião romântica contra o íluminismo"21 dos antro- tros animais e clistinguia as nações umas cias outras. E ela não
pólogos contemporâneos. era herdada biologicamente, mas sim assimilada, adquirida e.
Mesmo crue vestissem novas roupagens, as idéias clássi- até mesmo emprestada. Christopher Herbert afirmou que
cas sobre cultura não eram soberanas, Elas enfrentavam novas essa noção cie cultura também nasceu de uma controvérsia
rivais, e a maior delas surgiu com a -publicação de A origem religiosa. Ele a associarão movimento cie revivificação evan-
das Espécies de Darwin, em 1859. Até mesmo o pensador me- gélica do início do século 19 na Inglaterra, que propagou
.nos científico não podia ignorar o desafio depois que Darwin uma noção do pecado original que ele chama cie "o mito de
estendeu seu argumento aos seres humanos em-^4 Descendên- .um estado de desejo humano inçontrolado". A idéia de cul-
cia do Homem, em 1871. Era preciso encarar a possibilidade tura oferecia a esperança redentora de salvação secular: a
cie que os padrões cie comportamento humano e as diferen- cultura era a nossa defesa contra a natureza humana. Os se-
ças humanas podiam ser explicadas em termos biológicos. A res humanos deixavam sua condição de pecadores pelas gra-
cultura segue leis naturais. Não obstante, a teoria darwiniana ças dos tabus e das, leis. Herbert argumenta que "pode-se
íião tornava necessariamente obsoletas as idéias clássicas. A considerar as idéias de cultura e desejo livre como dois ele-
teoria cie que todos os seres humanos tinham uma origem em mentos recíprocos complementares de um único padrão cie
comum reafirmava a crença do íluminismo ha unidade cia hu- discurso, embora um padrão repleto cie conflitos e necessa-
manidade, A civilização ainda pode ser considerada o traço, riamente instável".22 Talvez Herbert esteja certo e essa con-
que define a característica humana. A evolução cia. vida tam- cepção cie cultura tenha nascido em resposta a preocupações
bém pode fornecer um modelo para a evolução da civilização. religiosas, mas ela amadureceu em reação à revolução darwi-
1
niana, que ameaçava conferir autoridade científica a algo
Os seres humanos representavam uma evolução dos macacos,
como a doutrina do desejo humano inçontrolado.
e'raças superiores - ou civilizações superiores - representa- Em nenhum outro lugar, o argumento contra o darwinis-
vam, da mesma forma, uma evolução cie raças inferiores e dê mo foi formulado com maior premência e intensidade do que
suas civilizações. O próprio Darwin compartilhava dessa opi- nos idos de 1880, em Berlim. O mais proeminente darwinista
nião, mas alguns dos seus seguidores foram recrutados para a cia Alemanha, Ernst Haeckel, aduziu conclusões políticas da
causa do cõntra-Iluminismo. Disparidade cultural pode ser teoria darwinista que cleixou o próprio Darwin bastante
uma expressão de diferenças raciais mais-fundamentais. A pu- apreensivo. Segundo Haeckel, Darwin apresentara arguijten-
reza racial podia ser um imperativo político, ligada inextrica- tos científicos irrefutáveis para o livre comércio e contra aris-
vélmente à defesa de uma identidade cultural. A história pode- tocracias hereditárias. Sua teoria também podia ser usada para
ser escrita com sangue, tendo como tema a luta pela sobrevi- demonstrar a superioridade da raça prussiana e para subscre-
vência entre as raça-s. ver as políticas cie Bismarck, que demonstravam os efeitos
maravilhosos da luta e da seleção.

21. SHWEDER, Richard A. Anthropòlogy's Romantic Rebellion


Against the Enlightenment. In: SHWEDER, Richard-A. ; LEVINE, Ro- 22. HERBERT, Christopher. Culture and Anomie: Ethnographic
bert A. (Ed.X Culture Theory: Essays bn Mind, Self, and Emotion. Imagination in the Nineteenth Centuiy. Chicago: University of Chi-
Cambriclge: Cambridge University Press, 1984. cago Press, Í991. p. 29.

132 331
Introdução Introdução

O dogma de Haeckel espantou seu ex-professor, Rudolf Essa antropologia liberal berlinense foi caracterizada como
- Virchow, maior patologista alemão, político proeminente cie um misto de idéias iluministas e românticas, mas na realidade
visões liberais e mentor cia Sociedade cie Antropologia cie Ber- baseava-se numa rejeição dupla. Se as culturas são abertas, sin-
lim. Do ponto de vista metodológico, sua objeção era quanto créticas e instáveis, obviamente não podem expressar identida-
a uma conclusão teórica prematura. O grande número de aca- des essenciais imutáveis ou um caracter racial subjacente. E se
sos da mudança eyolucipnaria ainda não podia ser reduzido á as mudanças culturais são resultado de fatores locais imprevis-
leis. Rudolf mostrava-se especialmente hostil em relação ao tos, por conseguinte não existem leis gerais cie história. Acima
determinismo racial -de Haeckel e ao nacionalismo cultural de tudo, entretanto, a escola berlinense insistia em afirmar que
com o qual este estava associado. Raças eram categorias ins- a cultura funciona de uma forma bastante distinta cias forças
táveis com fronteiras móveis, e a mistura racial era amplamen- biológicas - e pode até mesmo sobrepujá-las.
te disseminada, senão universal. Traços biológicos passavam Franz Boas, aluno.de Virchow-e Bastian, introduziu essa
por cima das classificações raciais convencionais, que em to- abordagem na antropologia americana. À medida que esta se
ei os os casos eram influenciadas por fatores ambientais locais. desenvolvia numa disciplina acadêmica organizada no início
Diferença cultural nào representava indício de diferença ra- do" século 20, ela era definida pela luta épica entre Boas e sua
cial. Raça, cultura, língua e nacionalidade não coincidiam ne- escola e a tradição evolucionista, representada nos Estados
cessariamente. Os refugiados huguenotes, insistia Virchow, Unidos pelos discípulos de Lewis Hemy Morgan, cujas narra-
"estão germanizados, assim como os numerosos judeus que tivas 'triunfalistas de progresso utilizávamos metáforas da teo-
acolhemos da Polônia e da Rússia, e [que]... contribuíram so- ria de Darwin. Os boasianos eram céticos em relação às leis
bremaneira para o nosso progresso cultural".23 .universais da evolução. Além disso, eles repudiavam explica-
O colega de Virchow, Adolf Bastian (que em 1886 se ções raciais de diferença, um assunto -de grande importância
tornou o primeiro diretor cio grande museu cie etnologia de política nos Estados Unidos. A tese fundamental boàsiana era
Berlim), tentou demonstrar que, assim como as raças, as cul- de que à cultura é que nos faz, e nào a biologia. Nós nos tor-
turas são híbridas. Nào existem culturas puras, distintas e namos o que somos ao crescer num determinado ambiente
permanentes': Toda cultura recorre a diversas "fontes, depen- cultural; não nascemos assim. Raça, e também sexo e idade
de de empréstimos e está em constante mudança. Os seres são constructos culturais, e -não condições naturais imutáveis.
humanos são bastante semelhantes, e toda cultura está enrai- Isso quer dizer que podemos nos transformar em algo melhor,
talvez aprendendo com o pçvo tolerante cie Samoa, ou com
zada numa mentalidade humana universal. As diferenças cul-
os balineses perfeitamente equilibrados.
turais eram causadas pelos desafios apresentados pelo am- Essa era uma idéia bastante atraente na América do sé-
biente natural local é pelos contatos entre as populações. O
culo 20, mas a compreensão racial alternativa de diferença
empréstimo era o mecanismo primário da mudança cultural.: cultural continuava a ser um grande desafio. A idéia de cultu-
E como as mudanças culturais eram resultado de processos ra podia realmente reforçar uma teoria racial cie diferençar
locais imprevistos — pressões, ambientais, migrações, comér- Cultura podia ser um eufemismo para raça, estimulando um
cio -— conseqüentemente, a história não tem um padrão fixo discurso sobre, identidades raciais enquanto aparentemente
de desenvolvimento. abjurava o racismo. Os antropólogos podiam distinguir siste-
maticamente raça e cultura, mas na .linguagem popular ''cultu-
ra" se referia a uma qualidade inata. Á natureza cie um grupo
25. Apuei ACKERKNEGHT, Erwin H. Rudolf Virchow: Doctor, Sta- era evidente. a olho nu, expressada igualmente pela cor da
tesman, Anthropologist. Madison: .University of Wisconsin Press, pele, pelas características faciais, pela religião, pelos princí-
1953. p. 215-6. pios morais, pelas aptídqes, pelo sotaque, pelos gestos.e pe-

134 35|
Introdução

Ias preferências de alimentação. Essa confusão obstinada per-


. siste, Na clécacía de 1980, Michael Moffatt, etnógrafo que esta- psi e obviamente, era estudada pelos psicólogos. O sistema
va realizando um estudo'sobre os alunos brancos e negros ique jj-tica e a economia estavam sendo administrados ,
que "dividiam um -dormitório na Rutgers University, relatou ""'especialistas
^ da área, o que--era satisfatório contanto que
que os alunos literalmente se recusavam a falar sobre raça, '°!os os envolvidos concordassem que a sociologia tinha prio-
mas acreditavam que falar sobre diferenças culturais era mo- °1 lê A cultura, contudo, foi confiada tempo demais às mãos
-derno e politicamente correto.21 Na prática, todavia, eles fa- tnadoras dos humanistas. Daí em diante, ela deveria ser en-
. ziam uma distinção entre brancos e negros, embora a diferen- tregue aos antropólogos, que finalmente poderiam transforma-
ça entre esses alunos parecia ser essencialmente no que tan- Ia em ciência, se eles pudessem ser persuadidos a se concen-
ge ao gosto por grupos .pop e fast fpod. trar nessa tarefa e abandonar seus hobbies pitorescos.
''Cultura sempre é definida em oposição a algo mais. Nem todo antropólogo ficou satisfeito com esse prospec-
Trata-se da forma local autêntica cie ser diferente que resiste to Alguns consideravam um rebaixamento ser um efiteridiclo
à sua inimiga implacável, uma civilização material globali- em cultura, em vez de, digamos, especialista em todos os as-
zante. Ou o domínio cio espírito armado contra o materialis- sunto- pertinentes a uma comunidade tribal ou até mesmo uma
mo. Ou a capacidade que o ser humano tem cie crescer es- ' autoridade na história cia evolução humana. Além disso, ás dis-
piritualmente e que sobrepuja ~sua. natureza animal. Dentro putas clé demarcação com outros cientistas sociais persistiam.
das .ciências sociais, a cultura aparecia em outro conjunto cie Não-obstante, a idéia' de que cultura era um assunto cie preo-
contrastes: ela era a consciência coletiva, em oposição à psi- cupação científica e que os antropólogos eram autoridade no
que individual. Ao mesmo tempo, representava a dimensão assunto passou a ser amplamente aceita na clécacía cie 1950.
ideológica cie vicia social que se contrapunha à organização Em 1952, os dois decanos cia antropologia americana', Alfred
comum de governo, fábrica ou família. Essas idéias foram Kroeber, de Berkeley, e Clycle Kluckhohn, de Ilarvard, publi-
desenvolvidas pelos fundadores da sociologia européia e in- caram um relatório dogmático sobre a concepção antropológi- -
troduzidas na sociologia americana, tradicionalmente empí- = ca científica cie cultura, confiantes de que ela tornaria obsole-
rica e utilitária, por Talcótt Parsons. tas as abordagens tradicionais. •" Duas décadas mais tarde, Roy
_-' Jamais," nem antes nem depois, as ciências sociais ou Wagner -pôde introduzir um ensaio sobre cultura com a obser-
' "eomportamentais" receberam tantos incentivos financeiros, fo- vação cie que o conceito "ficou cie tal forma associado ao pen-
,ràm mais bem organizadas e, de modo geral, estiveram com o samento antropológico que... podíamos definir um antropólo-.
' moral tão alto como nas décadas cie 1950 e 1960 nos Estados go como alguém que usa a palavra 'cultura' habitualmente".26
Unidos, e seus líderes estavam convencidos cie que o futuro — Na década cie 1990, o tema da cultura foi tão difundido que na
cjue só podia ser ainda melhor --reservava grandes projetos definição de Wagner praticamente todo mundo que escrevia
científicos que apresentariam um plano racional para um mun- sobre questões cie ciências sociais teria de ser considerado an-
do ainda melhor. Talcótt Parsons, o grande expoente das ciên- tiopólogo. Entretanto, um comentarista ainda poderia observar
cias sociais naquele período, insistia que o,.progresso exigia que um antropólogo moderno que não crê em cultura de cer-
uma divisão mais eficaz cie trabalho, tanto no campo das ciên- ta forma é uma contradição cie termos".2"
cias sociais como cie qualquer empreendimento moderno. A
5. KROEBER, A. L. • KLUCKHOHN, Clyde: Culture: A Criticai Re-
view Of Concepts and Detinitions. Cambridge, Mass.: Papers of
24. MOFFATT, Michael. Corning of Age in New Jersey: College and eabocly Museum, Harvard University. v. 47, n. l, 1952.
American Culture. New Brunswick, N.J.: Rutgers University Press, - . WAGNER, R0y. "lhe Invention ofCullitre. Chicago: University of
1989, Chicago Press, 1975. p i.
27. HERBERT. Culture and Anomie. p. 20.

136
37 i
Introdução Introdução

Mas antes que os antropólogos pudessem fazer investi- traduzidos em termos culturais e transformados.em mitos para
gações científicas sobre cultura, eles tinham clé chegar a um que tenham influência na vicia das pessoas.
acordo quanto ao significado desse termo. Kroeber e Kluc- O problema seguinte era .como proceder a investigação
khohn realizaram uma intensa pesquisa na literatura e, no fi- cie cultura. O próprio Parsons forneceu pouca orientação a
nal, tiveram cie concordar que' Parsoiis encontrara a definição esse respeito, mas em meados cio século surgiram dois mocle-
correta de cultura, para os propósitos da ciência. Tratava-se de los nos Estados Unidos, um velho e um novo. O primeiro re-
um discurso simbólico coletivo sobre conhecimentos, crenças comendava explorar com simpatia a visão de mundo de um
e valores. Não era sinônimo de arte de elite, como os huma- nativo, traduzi-la e interpretá-la. O nome de Weber foi evoca-
nistas acreditavam, pois todo membro de uma sociedade tinha do e a palavra Verstehen pronunciada com reverência, mesmo
uma parte nessa cultura. Além disso, era bastante distinta da que nem sempre cie forma acurada. Geertz escolheu esse cur-
civilização humana universal, que havia dado ao mundo a so, que identificou inicialmente como parsoniano, depois
ciência, a tecnologia e a democracia, pois tocla comunidade ti- como weberiano, e, inais tarde, como uma forma cie herme-
nha a sua própria cultura, com seus valores específicos, que a nêutica. Aos poucos, ele ficou menos ansioso para alegar queV
distinguia.cle todas as outras. era um procedimento científico, pois chegou à conclusão de
Se isso era cultura, então até que ponto ela era importan- que embora a cultura podia ser interpretada, ela não poderia
te? Segundo Parsons, as pessoas concebem um mundo simbó- ser explicada (e certamente não podia ser justificada). A cul-
lico a partir cie idéias recebidas, e essas idéias chocam-se com tura não contava com leis gerais nem interculturais. Podia-se,
as escolhas que elas fazem no mundo real No entanto, ele ti- talvez, calcular o que uma representação simbólica significa-
.nha certeza cie que idéias sozinhas dificilmente determinam va para os espectadores, mas não se podia separá-la do seu
ação. De forma semelhante, os símbolos coletivos entram na significado no vernáculo e tratá-la como sintoma cie uma cau-
consciência individual, mas não a tomam completamente. En- sa biológica ou econômica mais fundamental e livre de cultu-
tretanto, quanto mais os antropólogos se entregavam à sua ra cia qual o paciente não tinha consciência.
nova especialidade, mais convencidos ficavam cie que a cultu- A abordagem alternativa, em contraste, era científica, re-
ra era muito mais poderosa cio que Parsons tinha levado a crer. ducionista e generalizadora. Ela partia da premissa cie que a
As pessoas não apenas constróem um mundo cie símbolos; na cultura — um discurso simbólico - era muito semelhante à lin-
verdade, elas vivem nesse mundo. Os mais importantes antro- guagem. Conseqüentemente, o estudo da cultura devia seguir
pólogos americanos cia 'geração seguinte, Clifford Geertz, Da-
o caminho que-estava sendo indicado pelos lingüistas moder-
vicl Schneider e Marshall Sahlins, criaram uma galeria cie per-
nos, que estavam prestes a descobrir as leis universais. da lin-
sonagens nativos de espiritualidade sem paralelo. Esses perso-
guagem, "Durante séculos as ciências humanas e as ciências
nagens pareciam viver somente para as idéias, fossem sacerdo-
tes havaianos, cortesãos balineses ou cidadãos cia classe média ; sociais se resignaram a contemplar o mundo das ciências na-
cie Chicago. No livro de Geertz, Negara, o negócio é a repre- turais e exatas como um tipo cie'paraíso no qual eles nunca
sentação teatral - ou melhor, o que ele chama de óperas cia entrariam", observou Claude Lévi-Strauss numa conferência
corte são a síntese do próprio modo cie vida. A política e a sobre lingüística e antropologia em Blomingtpn, Indiana, em
economia são meros ruídos de bastidores. Para Schneider, pa- 1952. "De repente, uma pequena porta está se abrindo entre
rentesco, advém da idéia que as pessoas têm sobre prôcriação. os clois campos, e isso foi obra cia lingüística."28 Essa porta'
A biologia está na mente, ou não é nada. Para Sahlins, a his-
tória representa a encenação incessante cie um velho roteiro, a
28. LEV-I STRAUSS, Claude. Structural Antbropology. Nova York:
representação teatral de uma saga. Terremotos, invasões bru-
Basic Books, 1903. p. 70-1. Alterei ligeiramente a tradução da se-,
tais de conquistadores e^até mesmo o capitalismo precisam ser guncla 'citação.

39 i
.
Introdução Introdução

conduzia à fonte original .cia linguagem e clã cultura. Havia quais os praticantes da nova etnografia tinham depositado a
"uma .intrusa sentada ao hòsso lado "durante toda. a eonferên- sua fé anteriormente. Outra facção se apoderou dos novos de-
^ cia, a mente humana", disse ele aos participantes-. Se uma senvolvimentos da lingüística e se determinou a adaptar a
nova ciência de cultura fosse conduzida pela lingüística, en- pragmática, ou a teoria do discurso, ao-estudo cia cultura. .
'tão, juntas, no final essas ciências estabeleceriam a estrutura, Os geertzianos rejeitavam sistematicamente qualquer
•profunda que todas as línguas e culturas partilhavam e que afirmação de que podia haver uma ciência da cultura. A cul-
(certamente) era esboçada no próprio cérebro. Uma antropo- tura, na verdade, era bastante semelhante à linguagem, !mas;--
logia científica.cartesiana estava esperando para nascer. o modelo cie cultura cjue eles preferiam era o de texto. Con-
Isso tudo era bastante empolgante, mas era preciso ad- seqüentemente, eles recorriam à. teoria literária, é não à lin-
mitir que os próprios lingüistas não tinham chegado a consen- güística.. Foi essa abordagem que, se desenvolveu, e o iníer-
so sobre a niélhor rota para atingir a. sua grande meta. Lévi- pretativismo se transformou na ortodoxia cia principal corren-
Strauss fora apresentado à lingüística por um companheiro de te cia antropologia ^cultural americana. Embora os geertzianos
exílio nos Estados Unidos durante a guerra, Roman Jakobson. mais- novos se rebelassem contra o pai, em vez de optarem
Seu modelo estava em conformidade com a fonologia estru- por um projeto mais científico, eles tomaram a mesma dire-
tural ista desenvolvida pela Escola cie Praga. Ele aplicou- es.se ção dos pós-estruturalistas franceses. Uma cultura não podia :
modelo primeiramente ao sistema do casamento, depois a ser tão prontamente compreendida por um, estranho solidá-
-métodos cie classificação e, por fim, a mitos. Os estruturalistas rio como Geertz sugerira. Cultura pode ser um texto, mas é
americanos preferiram se deixar conduzir pela. gramática de um texto fabricado, uma ficção escrita pelo etnógrãfo. Além
.transformação cie v Chpmsky. A faculdade cie Yale de Louns- disso, a mensagem clara de desconstrução é" que os textos
buiy e Goodenough (que recrutou vários doutores do Depar- não produzem mensagens inequívocas. Vozes discordantes
tamento de Relações Sociais de Harvarcl) iniciou uma investi- disputam a linha oficial. A cultura é contestada, como diz o
gação científica formal cias estruturas subjacentes que gera- novo slogan. .Assim como não há um texto canônico, não há
1 vam- terminologias de parentesco, classificações botânicas,- leitores privilegiados. Os antropólogos pós-modernistas pre-
sintomas de doenças e .outras taxonomias. folclóricas que ferem imaginar o domínio da cultura como algo mais seme-
constituíam domínios semióticos especializados. lhante a lima democracia ingovernável cio que a um estado
Esses programas estruturalistas floresceram durante um teocrático ou a uma monarquia absolutista. Apreensivos acer-
certo tempo, produzindo relatos notáveis de corpos específi- - ca das insinuações totalitaristas cio termo cultura, alguns pre-
. cos de pensamento nativo, mas no final da década de 196(3 - ferem escrever sobre hábito, ideologia ou discurso, embora,
(precisamente em maio cie 1968, afirmou Lévi-Strauss), o estru- como salienta Robert Brightmãn, o efeito final dessas estraté-
turalismo francês perdeu seu encanto, dando'lugar a uma va- gias cie retórica seja "(re)construir um conceito cie cultura es-
riedade de "pós-estnituralismos" cie uma casta decididamente sencializacla nos antípodas das orientações teóricas contem-
rel.atívista. Seus adeptos abandonaram as ambições científicas porâneas".29 Ainda há a pressuposição de quê as pessoas vi-
cio estruturalismo clássico, insistindo na qualidade indetermi- vem num_ mundo cie símbolos. Os atores são dirigidos e a his-
nada das palavras e dos símbolos. A etnociência americana fi- tória é moldada (talvez inconscientemente) pelas idéias. A
cou fora cie moda na mesma época, mas alguns antigos entu- corrente predominante cia antropologia cultural americana,
siastas descobriram uma promessa científica alternativa na em suma, ainda está nas garras cie .um idealismo difuso.
ciência cognitiva. Reprodução dos processos cio cérebro por
computador, esquemas cie conhecimento e. redes de conexão 29. BRIGHTMAN, Robert. Forget Culture: Replacement, Tfanscen-
passaram a ser procurados, em vez das regras gramaticais nas dence, Relexification. Cultural Antbropology, v. 10, ri. 4,"p. 510,
199*-

140
41
Introdução

O idealismo teve maior ascensão nas últimas décadas,1


juntamente com seu servo, o rèlativismó. Toda cultura era fun-
damentada em premissas singulares. A generalização era im-
possível e a comparação, extremamente probJemática/H(ouve
uma tendência semelhante na filosofia, que encorajou sobre-
modo os antropólogos. Até mesmo o marxismo ficou obceca-
do pela ideologia. ("La fantaisie au pouvoir", cantavam os es-
partel
tudantes parisienses de 68, enquanto atiravam pedras nos po-
liciais.) Mas nem sempre as coisas eram fácejs para idealistas e
genealogias
culturalistas. Pelo contrário, eles achavam que estavam senclo
sitiados por grandes batalhões de rivais que marchavam por
trás de bandeiras familiares: O Mercado Decide, A Classe Do-
minante Governa, Somos Nossos Genes. Os argumentos dos
culturalistas tinham de ser lançados contra os modelos estabe-
lecidos de racionalidade econômica e determinismo biológico,
mas^ um número crescente embora heterogêneo de -;estetas,
idealistas e românticos concordava que a Cultura Nos Faz.

142
capítulo l

cultura e civilização:
intelectuais
franceses, alemães
e ingleses^
1930-1958
Civilisation naít à son heure.1
([Ar"palavra] "civilização" nasceu na hora certa.)

Lucien Fébvre

«O
J. ara reconstruir a história da palavra francesa ' Civi-
lisation'",2 observou o historiador Lucien Fébvre, "seria" neces-
sário reconstituir os estágios tia mais profunda de todas as re-
voluções pela qualpassou o espírito francês-da segunda me-
tade cio século 18.até os dias cie hoje". Este foi o tópico que
ele decidiu abordar num seminário cie fim de semana; organi-

1. FÉBVRE, Lucien. Ciyilization. In: ". et ai. Civilisation: Lê mot


e l'idée. Paris: Centre International cie Synthèse, La Renaissance clu
Livre, 1930. p. ló. Tradução publicada em BURKE, P.eter (Ecl:>. A
New Kind of History: From the Writings ofFebvre. Londres: Rou-
tledge e Kegan Paul, 1973. Burke também faz um breve relato da
carreira de Fébvre na introdução do livro.
2. Ibicl. (tradução cie Burke, ligeiramente modificada), p. 219. •

45!
capítulo l cultura e civilização

zado em 1929 sobre o tema "Civilisátion: Lê mot et Piclée" (a por pessoas incivilizadas tornou-se bastante.comum."3 (Ele co-
palavra e a idéia, deve-se ressaltar, e não a coisa em si). Esse mentou cie forma morclaz que se poderia imaginar um ar-
era o assunto do momento. À medida que nuvens de tempes- queólogo "lidando tranqüilamente com' a civilização dos nu-.
tade se formavam sobre a Europa pela segunda vez no espa- nosr que um dia nos disseram ter sido 'o flagelo da civiliza-
ço cie uma geração, os intelectuais foram levados a repensar ção'".) No entanto, muito embora os franceses admitissem
o significado cie cultura e, civilização, e a relação deles com o prontamente que os tupis-guaranis, e até mesmo os hunos, ti-
.destino de suas nações. O sociólogo alemão Norbert Elias, nham uma'civilização, eles ainda .tendiam a acreditar que ci-
atraído para essas questões na .mesma época, observou que vilização implicava progresso. Aparentemente, a palavra de-
embora as teorias de cultura e civilização estivessem sendo signava duas noções bastante distintas. Uma delas Febvre ca-
discutidas (com as palavras em si) desde- a segunda metade racterizava como emprego etnográfico e se referia ao conjun-
cio século 18, elas só passaram a despeitar o interesse geral to de características que um observador consegue registrar ao
em determinados momentos históricos quando "alguma coisa estudar a vida coletiva de um grupo de seres humanos, con-
no presente estado da sociedade encontra expressão na cris- junto esse que englobava aspectos materiais, intelectuais, mo-
talização do passado incorporado nas palavras"., r rais e políticos da vida social. Esse emprego não implicava jul-.
Febvre (1878-1956) estudou na École Normale Supé-
, gamento cie valor. Na segunda acepção,, a palavra significava
rietire, onde se formou em história e geografia. Durante a a nossa própria civilização, que era éxtrerriamente-valorizada
Primeira Guerra Mundial ele serviu ativamente de metralha- e à qual alguns indivíduos tinham acesso privilegiado. Como
dora ein punho, e quando veio a paz, foi chamado pela Uni- podia uma língua famosa por sua clareza e lógica possuir um
versidade de Strasbourg, que voltou a ser uma universidade vocábulo com clüas acepções contraditórias?
francesa em 1919, quando a Alsácia foi devolvida à França, Febvre não conseguira encontrar uma fonte que -usasse
O jovem e brilhante corpo docente recrutado para a univer-. o termo civilisation em qualquer um cios seus sentidos mo-
siclade incluía alguns cios maioresvcientistas sociais e histo- -dernos antes de 1766. Civilisationxera empregado anterior-
riadores da-geração seguinte, como Maurice Halbwachs, mente apenas como termo técnico legal, referindo-se .à passa-.
Charles Blóndel, Georges Lefebvre e, juntamente com o pró- gem de uma ação penal para a esfera civil. Entretanto, os ter-
prio Febvre, o'historiador Marc Bloch, com o qual iniciou mos civilité, politesse e pdlice (significando observânc-ia da lei)
uma longa colaboração que transformaria a historiografia remontam ao século 16. Durante o spculo, 17, os termos "sel-
francesa. Em 1929, eles fundaram a revista Annales, que se vagem" e, para os povos mais avançados, "bárbaros" eram co-
transformou no fórum cie uma escola de historiadores estrei- muns em francês para descrever pessoas que não possuíam as
tamente; ligados às ciências sociais. Temas culturais, psicoló- qualidades de "civilidade, cortesia e sabedoria.administrativa".
gicos e sociais foram resgatados para uma historiografia que Com o tempo, civilisé substituiu o termo policé, mas no sécu-
havia siclo dominada pelo estudo de política, diplomacia e lo 18, afirmou Febvre, houve necessidade de um novo termo
.guerra, e a história intelectual foi revivida. que descrevesse uma nova noção. Nascido a seu tempo, na
x
Na abertura do seminário sobre "Civilisátion", Febvre década cie 1770, o neologismo civilisation "recebeu seus pa-
chamou a atenção para o fato cie que pouco tempo antes ha- péis cie naturalização", e em 1798 forçou as portas cio. Dicio-
nário da Academia Francesa.
via sido apresentada uma dissertação na Sorbonne sobre a "ci-
vilização" cios tupis-guaranis da América do Sul, que, obser-
vou ele; uma geração anterior teria chamado de selvagens.
"Mas há_ muito tempo o conceito de uma civilização formada
3. W., ibid., p. 220.

146
471
capítulo l cultura e civilização

Esse foi' um período cie .intensa atividade científica em to- Europe (1828) e De Ia civilisation en France (1.829) de Guizot.
das as áreas, bem como de sínteses teóricas audaciosas. O, Febvre cita a audaciosa afirmação de fé de Guizot: "A idéia cie
grande leque'de materiais sobre culturas exóticas e o passado progresso, de desenvolvimento, a meu ver, parece ser a idéia
remoto reunidos na Encydopédie 'suscitou reflexões sobre o fundamental contida na palavra civilização." O progresso po-
grande padrão cia história. A tendência do volume crescente clia ser medido tanto no nível da sociedade como do intelec-
cie literatura sobre exploração, a princípio, era reforçar a cren- to, embora ambos não andem necessariamente juntos. -A In-
ça na superioridade da civilização,. Os intelectuais franceses glaterra, segundo Guizot, alcançara progresso social, mas não
começaram a conceber o esboço de uma história universal em intelectual; na Alemanha, o progresso espiritual não tinha sido
que a selvagerià levou ao barbarismo, e o barbarismo à civi- acompanhado pelo progresso social; apenas ria França ambos
lização. Esse modelo de desenvolvimento cultural imitava a haviam marchado lado a lado.
representação cie Lamarck cias relações entre as espécies em Febvre notou que uma linha diferente de. pensamento se
sua versão cia grande cadeia cios seres vivos. Logo, entretan- desenvolvera na Alemanha. No início, a noção de cultura era
to, essa história triunfalista -de progresso começou a ser ques- bastante semelhante à icléía francesa cie civilização, mas com
tionada. Não apenas níveis de civilização, mas até mesmo es- o tempo foi feita uma distinção entre os aspectos exteriores .
tados cie civilização aos poucos foram clistinguiclos. O imenso da civilização e a realidade espiritual interior da cultura. Ale-
império clã "Ia Civilisatión" foi dividido em províncias autôno- xander von Humbolt, por exemplo, afirmou que uma tribo
mas. Admitiu-se que maneiras características de ser civilizado . selvagem podia ter urna civilizarão, no sentido de ordem po-
haviam-se desenvolvido em diferentes partes do mundo. Se- lítica, sem possuir um alto nível de "culture de.Pespfit" - e,
gundo ..Febvre, a forma plural, Civilisatíons,' foi empregada certamente, vice-versa. Não obstante, ambas as correntes cie
pela primeira vez em 1819., pensamento traziam em seu bojo um problema filosófico se-
Febvre situou essa relativização cia noção cie civilização melhante.. Uma avaliação relativista das diferenças entre cultu-
no período compreendido entre 1780 e 1830, observando que ras è compatível com "o -velho conceito de civilização humar
representava o clímax de um longo e paciente esforço de do- na em geral"? A pergunta foi deixada no ar.
cumentação e reflexão. Houve uma transição simultânea nas Em outro trabalho, apresentado no mesmo seminário
áreas cie biologia, história, etnografia e lingüística, cio univer- sob o título "Lês Civilisations: Éléments et formes", o sociólo-
salismo do século 18 para uma perspectiva mais relativista. A . go Mareei Mauss esboçou a concepção cie civilização que ele
teoria de Lamarck também foi colocada em xeque. Cuvier in- e Emile Durkheim expuseram durante vários anos no Année
sistia que não havia Lima cadeia dos seres vivos, mas sim vá- Sociologique;' Mauss discorreu rapidamente sobre o que ele
rias cadeias separadas. Essas mudanças no pensamento cien- denominava usos vulgares em frases como: civilização fran-
tífico refletiram-se numa alteração do clima intelectual. O oti- , cesa, budista ou islâmica. O que estava em debate nesse ca-
mismo do período revolucionário entrara em declínio. Os so- sos eram maneiras específicas cie pensar, posturas mentais,
breviventes da revolução aprenderam algo novo: que uma ci- para as quais ele preferia usar a palavra .mentalité. Civiliza-
vilização pocle morrer. ("E eles não aprenderam isso apenas ção também não devia ser restringida a sinônimo de artes,
com os livros", frisou Cuvier.) A fé numa filosofia de, progres- tampouco ser equiparada a Kultur, no sentido^cle aquisição
so e na perfecti.biliclacle da humanidade foi corroída. O apoio cie cultura. Essas eram representações folclóricas desprovidas
ao pessimismo cie Rousseau e à sua preocupação com as ma- de valor científico.
zelas cia civilização foi renovado.
Com a restauração cia monarquia, a crença otimista
numa civilização progressista ganhou nova força. Ela foi pres- 4. MAUSS, Mareei. Lês Civilisations. In: FEBVRE, Lucien. op. clt. p.
sagiacla com maior intensidade nas obras De Ia civilisation en 105-6.

491
cultura e civilização
capítulo l

Do ponto de vista de um sociólogo, civilização é, primei- Num ensaio publicado em 1989* Jean Starobinski ressalta
ramente, coletiva e distintiva. Mas esse conceito não eqüivale que civilisation foi apenas um cios vários substantivos forma- •
.ao que os durkheimianos chamavam de "consciência:coletiva" cios, durante aqueles anos revolucionários, com o sufixo -ation
de uma sociedade, pois ela não está confinada a unia. popu- -a partir cie verbos que terminavam em -iser. Em 1775, Diderot
lação em particular, Além disso, ao contrário das tradições cul- definira o novo termo em relação a outra cunhagem de -ation:
turais- puramente locais, a civilização é racional, universal e, "Emancipação (emancipation) ou, o que significa a mesma
acima de tudo, progressista. Por esse motivo, ela se dissemi- coisa com outro nome, civilização (civilization), é um traba-
nou de forma irresistível por todo o mundo. Com a difusão in- lho longo e difícil."7 Quanto ao uso cie Diderot, Starobinski co-
ternacional da ciência e de novas tecnologias como o cinema, menta que "já há fartos indícios de que a civilização pode
o fonógrafo,e a radiotelefonia, começava a nascer uma nova muito bem se tornar a substituta secularizacla cia religião, uma '
civilização, que "permeia todas( as formas de música, todos os apoteose da razão". , .
sotaques, todas as palavras e todas as notícias, a despeito de O novo substantivo-reunia noções de requinte e refina-
•todas as barreiras. Estamos apenas no início [desse proces- mento, bem como cie progresso intelectual e político. Contu-
so]",5 O .avanço da civilização impõe sacrifícios. Não, há garan- do, embora Febvre afirmasse que a palavra civilisation havia
sido criada para designar uma nova idéia, ainda, que um tan-
tias de que vai proporcionar felicidade pessoal ou contribuir
to vaga a princípio, Starobinski transforma a palavra em pre-
para o bem comum. "Mas o capital da humanidade aumenta
cie qualquer forma... a tendência é de que todas as nações .é cursora cia idéia. "Conseqüentemente, conforme o termo ga-
civilizações, na verdade, fiquem mais— mais poderosas, mais nhou popularidade graças às suas qualidades sintéticas, ele
gerais e mais racionais." também se tornou objeto de reflexão teórica." Essa reflexão
Febvre iniciara esse ensaio com o famoso comentário de foi estimulada pelo fato de que o uso da palavra civilização fi-
que o tempo despendido na descoberta da origem de uma pa- cou corrente ao. mesmo tempo, que a palavra "progresso" em
lavra nunca é perdido. Seu exemplo inspirou outros estudio- seu sentido moderno: "Ambas estavam destinadas a manter
sos franceses a expandirem, mais tarde, sua investigação. Em uma relação bastante íntima."8 Refletindo sobre esses dois
1954, o lingüista Emile Benveniste afirmou ter descoberto neologisrnos, os philosophes concluíram que eles "descrevem
através de uma pesquisa diligente que o termo civilisati&n tanto o processo fundamental da história como o resultado fi-
fora usado pela primeira vez pelo fisiocrata Mirabeau, em nal deSse processo... o sufixo clé ação -ation nos força a pen-
1757.6 O.sentido era depolicé, no âmbito da política, mas na sar em um agente. Se esse agente for confundido com a pró-
década cie 1700, o termo era usado geralmente com o signifi- pria ação, ele se torna autônomo".'
cado cie "processo coletivo original que fez a humanidade • Mas o termo não sugeria apenas uma idéia. "Tão logo a
emergir cia barbárie, e esse uso, até mesmo naquela época, le- palavra civilisation foi escrita...descobriu-se que ela encerrava
vava à definição cie civilisation como estado cia sociedade ei- _ uma possível fonte de equívoco." O próprio Mirabeau escre-
vilizacla". Ele observou também que antes da revolução pou- vera sobre "falsa civilização" e "a barbárie cias nossas civiliza-
cas palavras francesas terminavam em -isation. ções". O termo podia ''-referir-se tanto a civilizações modernas

7. STAROBINSKI, Jean. The Word Civilization. In: Blessings in Dis-


5. Id., ibid. giiise; or, 'lhe Morality ofEml; Cambridge, Mass.:lHarvarc1 University
6. Esse ensaio foi publicado na tradução em BENYENISTE, Emile. Press, 1993 (publicado pela primeira vez em francês, 1989), p. 3.
Prpblems in General Linguistics. Coral Gables, Fia.: University of 8. Icl., ibid.,- p. 4.
Miami Press, 1971. p. 291. 9. Icl., ibid., p. 5.-..

150 51
como ao idealide uma condição de vicia social civilizada. "A
avaliação, portanto, assumia duas formas: unia avaliação, de
civilização e uma avaliação formulada em nome cia civiliza-
capítulo l

ção."10 Em qualquer um dos sentidos, o termo implica contras-


r cultura e civilização

cão cultural alemã - como é o meu caso — sem ser, não va-
mos dizer patriota, mas nacionalista". Todavia, como, judeu
(ligado, além disso, ao radical Mannheim), ele foi obrigado
a deixar a Alemanha após a ascensão de Ilitler. Depois de
uma curta estadia na França, ele mudou-se para Inglaterra e~
te; mas o contraste — natural, selvagem ou bárbaro - pode pa-
passou os anos imediatamente 'anteriores à guerra no Salão
recer preferível. A civilização pode ser decadente, e o remé-
de Leitura cio Museu Britânico, trabalhando em sua obra-pri-
dio talvez seja a re-cristianização, como argumentaria Benja-
ma sobre o processo de civilização, que foi publicada na
min Constant, ou a- re-barbarização, cie modo que Rimbaucl
Alemanha em 1939. O reconhecimento-veio muito tarde,/
exigia "sangue novo... sangue pagão".11 Mas além de valoriza-
apenas durante seu retiro prolongado, primeiro em Bielefelcl
da, civilização geralmente era identificada com progresso. De
na Alemanha, e depois, em Amsterdã foi que ele se tornou
modo geral, o termo assumiu uma aura sagrada. Representar
um ícone para uma nova geração de sociólogos .europeus.
algo como contrário à civilização significava clemonizá-lo.
Alfred. Weber e Karl Mannheim defendiam duas aborda-
Alguns anos depois cio seminário cie Febyre, Norbert
gens opostas ao estudo, da cultura. Para Alfred Weber, cultura^
Elias, judeu alemão exilado que escrevia em Londres às vés-
peras, cia Segunda Guerra Mundial, comparou a evolução-da representava o munclo reservado cia arte e da religião, que
noção alemã de Kultur e da idéia francesa de Civilisation." não servia a fins racionais e se opunha ao mundo material cia
"Elias (1897-1990.) nasceu em Breslau e estudou sociologia em civilização. Essa era a visão ortodoxa de cultura cie Heidel-
Heidelberg com Karl Marmheim e Alfred Weber. O irmão cie berg, e ojilósofo Karl Jasper estimulou o jovem Elias aDescre-
Alfred, Max Weber, morrera havia pouco tempo, "mas seu le- ver um trabalho sobre o debate entre Thomas Mann e a me-
gado ainda estava muito vivo em sua antiga universidade. Em nosprezada Zívilisationsliterat. Para Mannheim, em. contrapar-
1929, Mannheim foi chamado para assumir a.cadeira cie socio- tida, as produções culturais originavam-se de situações sociais
logia em Frankfurt e convidou Elias para .ser seu assistente. Lá, e deveriam ser entendidas como expressões de determinados
Elias se juntou aos principais representantes da "Escola de interesses políticos e econômicos.
Frankfurt", um grupo criativo formado por intelectuais marxis- No primeiro volume cie The Civilizing Process, Elias ex-
tas como Theoclor Adorno, com quem Elias fez amizade, ape- plorou as relações entre a noção alemã de cultura e a idéia
francesa cie civilização. Na tradição francesa, civilização era
sar cio seu "ceticismo em relação à teoria Marxista.
concebida como um todo complexo e multifacetado, que
Elias observou que os judeus, apesar cie ausentes cio
abrangia fatos políticos, econômicos, religiosos, técnicos, mo-
cenário político, eram "ao mesmo tempo transmissores cia
rais ou sociais. Esse conceito amplo de civilização "expressa
vida cultural alemã".1' "Eu estava .impregnado pela Kultur
a conscientização cio Ocidente... Resume tudo o que a socie-
alemã", observou ele no final de sua longa existência, mas
dade ocidental cios dois ou três últimos séculos acreditam ser
frisou que "é possível identificar-se fortemente com a tradi-
superior às .sociedades anteriores ou às sociedades contem-
porâneas 'mais primitivas'".'4 Para os alemães, contudo, civj-

10. id., ibid, p. 8.


11. Id., ibid.,.p. 25: 14. Id. ThefivüizingProcess^he Development of manners. Chan-
12. Cf. MENNELL, Stephen. Norbert Elias: Civilisation and the Hu- ges in the Code of,,Conduct and Feeling in Early Modem Times.
man Self-Image. Oxford: Blackwell, 1989 e ELIAS, Norbert. Reflec- Nova York: Urizen Books, 1978 (primeira edição alemã, Basel,
tions on a Life. Oxford: Polity Press, 1994. 1939). p. 3-4.
13. ELIAS, Norbert. Ibid. p. 18-9. .

152 531
capítulo l cultura e civilização

lização era algo-exterior e utilitário, e, em muitos aspectos, pessoal e cie realização, científica é artística. O crescimento
alheio aos valores nacionais. A civilização é aprimorada com espiritual era mais valorizado do que o status herdado e os
o tempo e transcende as fronteiras nacionais, em contraste sinais exteriores artificiais cio estilo palaciano. A base cios. in-
com ,a Kultur, limitada no tempo e nó espaço e contérmina telectuais era a universidade, "o equilíbrio cia classe méclia
com uma identidade nacional. \. em relação à corte",16 e eles fomentavam uma cultura literária
Quando os alemães expressavam orgulho por suas reali- e filosófica alemã, adquirida, interior.
zações, eles não falavam cia sua civilização, mas sim da sua , Seguindo Mannlieim, Elias identificou razões sociais por
Kultur. Esse termo "refere-se essencialmente a fatos intelec- trás dessas diferenças ideológicas. O conceito cie civilização
tuais, artísticos e religiosos"," e a Alemanha geralmente "traça universal, por motivos óbvios, apavorava as classes dominan-
uma clara linha divisória entre fatos dessa natureza e fatos po- tes de Estados imperiallstas, como a França e a Inglaterra, en-
líticos, econômicos e sociais". A Kultur não era só nacional, quanto "o conceito de Kultur espelhava a consciência de uma
mas também pessoal. O termo fora introduzido no discurso; nação [como a Alemanha] que tinha de lutar constantemente
moderno por Hercler, que o extraíra da metáfora de Cícero, para constituir.novas fronteiras, tanto num sentido- político
cultura animi, que, estendia a idéia de cultura agrícola para como espiritual". Atreladas às circunstâncias políticas/essas
aplicá-la ao espírito. Kultur, por conseguinte, significava, cul- idéias oscilavam com as mudanças históricas. Na esteira da re-
tivo; Bildung, uma progressão pessoal rumo à perfeição espi- volução francesa, a antítese entre uma civilização aristocrática
ritual. Um francês e ou um inglês podia dizer que era "civili- falsa e uma cultura nacional genuína foi projetada numa opo-
zado" sem que tivesse realizado alguma coisa, mas para os sição entre a França e a Alemanha. Essa antítese ganhou nova
alemães todo indivíduo adquiria cultura por meio de um pro- força depois cia derrota cia Alemanha na Grande Guerra, uma
cesso de educação e desenvolvimento espiritual. guerra que fora declarada contra eles em nome de uma civi-
x
A noção de Kultur desenvolveu-se em tensão com o lização universal. A idéia de Kultur entrou em jogo na luta
conceito cie uma civilização universal associada à frança. O subseqüente para redefinir a identidade e o destino cia Alema-
que os franceses consideravam civilização transnacional, na nha. Kultur e Zivilisation resumiam os valores rivais que (na.
Alemanha era considerada fonte cie perigo para culturas lo- visão cie alguns alemães) dividiam Alemanha e França: virtu-
cais., Na própria Alemanha, a ameaça era bastante imediata. de espiritual e materialismo, honestidade e artifício, moralida-
-A Giuilisation estabelecera-se nos centros de poder político, de genuína e mera cortesia exterior,
nas cortes francófonas e nas cortes francófila.s alemãs. Num Mas ao contrário de Mannheim, Elias não. acreditava, que
' marcado contraste com os intelectuais franceses e ingleses, idéias fossem simplesmente produções ideológicas, instrumen-
que se identificavam com as aspirações da classe dominante, tos cie'dominação degradados por seus usos. Quaisquer que
os intelectuais alemães se definiam em oposição aos prínci- fossem suas origens e a forma como Tinham sido manipulados,
pes e aristocratas. Aos seus olhos, a classe'alta não possuía conceitos como cultura e civilização podiam ter-um valor ana-.
uma cultura autêntica. A civilização cia elite francófona era lítico. Assim como Mareei Mauss, Elias colocou a idéia de civi-
emprestada; ela não era internalizada, mas sim uma questão lização em ação, e o segundo volume do seu trabalho ilustrou
cie formas e de aparência^exterior. Os princípios morais cia o que ele chamou cie processo cie civilização na história euro-
aristocracia aclvinham de um código cie honra artificial. Ex- péia. Aos poucos, as cortes européias refinavam suas manei-
cluídos dos círculos que detinham o poder, os intelectuais ras, submetendo o corpo e suas funções a uma série "de con-
alemães decidiram reforçar as reivindicações de integridade

15. Id., ibicl, p. 4. 16. Id, ibid, p. 24.

154 55!
capítulo l cultura e civilização

troles cumulativos. As "limitações sociais que exigiam autocon- clade cultural, mas impõe grandes sacrifícios da liberdade se-
,'trote" ganharam força e surgiu o "limiar do constrangimento". xual e exige o controle da agressividade.
Esse argumento foi desenvolvido, em The Court Society, publi- Talvez a ascensão do fascismo tenha impelido os intelec-
cado pela primeira vez em 1969 na Alemanha, mas escrito tam- tuais judeus da Europa central, como Freud e Elias, a questio-
bém em grande parte nos anos trinta. Em ambos os estudos, narem o poclér-de salvação da-cultura individual. Quando
Elias retratou a clássica visão alemã do processo de civilização, chegou o momento crítico, os controles frágeis, externos e hu-
como exterior, meramente costumeira e impondo .regras for- manos que a civilização havia fabricado não conseguiram re-
mais sobre os atos expressivos ou instintivos, um processo que primir as massas incultas, que Segundo palavras cie Freud são
ele vinculava à extensão cio controle do Estado. "inclolentes e ignorantes; elas não têm amor pela renúncia aos
Elias observou que na época em-que.estava trabalhando instintos". As massas só aceitarão o sacrifício de uma liberda-
em seu livro ele era mais influenciado por Freud do -que por de animal se forem compensadas em termos materiais. "Se a
qualquer sociólogo, até mesmo por Mannheim.1" Freud publi- perda não for compensada economicamente, pode-se estar
cara-recentemente dois livros sobre cultura ou civilização: The certo cie que resultará em graves perigos."
f Future ofan Tllüsion (publicado pela primeira vez na Alema- Ao contrário de Elias e Freud, os escritores nacionalistas
nha,- em 1927) e Civilisatton and Its Discontents (1930). Neles, de direita preferiam não fazer diferença entre instinto e cul-
Freud discorria sobre "civilização humana, pela qual me refi- tura. Eles reservavam suas desconfianças para a civilização. O
ro a todos os aspectos em que a vida humana se elevou aci- crescimento da cultura é orgânico, o da civilização é artificial..
ma do seu status animal e difere cia vida das .feras — e me ré-, Cultura e civilização tendem a entrar em conflito na mesma
cuso a fazer-distinção entre cultura e civilização".18 Essa isen- medida em que .divergem-'suas formas de crescimento. A ci-
ção talvez desculpe seu tradutor para o inglês, que usou sis- vilização acaba se tornando uma concha vazia, destituída cie
tematicamente Q. termo civilisation onde Freud usou Kultur, espírito animado, e desmorona. Esse tema - antigo - foi re-
mas cie qualquer forma a oposição central proposta por» Freud vivido pelos conservadores alemães à medida que o oportu-
foi entre o ser humano educado e o animal instintivo. A cul- nismo dos hegelianos foi colocado em xeque pela catástrofe.
tura transforma um simples ser humano em deus (ainda que, , da Primeira Guerra Mundial, Um expoente extremo foi Spen-
'brinca ele, um deus com uma prótese). Mas esse poder é con- gler, que possuía uma moral diametralmente oposta à. de
quistado com grande esforço. O processo cie educação do ser Freud e à de Elias e.atacava violentamente "os intelectos,
humano .é considerado puramente externo, imprimido pela exangues cujas críticas corroem tudo o que resta cla; cultura
força.. Assim como o indivíduo faz o sacrifício atroz das fanta- genuína - ou seja - a cultura espontânea".20 Assim Como vá-
sias edipianas, "toda civilização eleve ser erguida sobre-coer- rios intelectuais alemães,_Spengler acolheu os nazistas como
ção e renunciando instinto".19 A sublimação estimula a criativi- arautos de uma renovação cultural da raça, e como inimigos
cie uma civilização artificial.
Muito embora Elias ressaltasse o papel das universidades
17. MENNEIL, Stephen. op. cit. p. 111.
na criação desse discurso sobre cultura e civilização, ele não
18-1 FREUD, Sigmund. The Future ofan Illusion. Londres: Hpgarth discutia em detalhes as disciplinas acadêmicas que foram cria-
Press, 1.961 (Standard Editíon; publicado primeiramente em .alemão das ria Alemanha para estudar os produtos cia cultura e cio es-
em 1927). p, 5-6. . pírito humano, o Geist (Kulturwissenschaften e Geisteswissens-
19. Id. Cívilísation and Its Discontents. Londres: Hogarth Press,,_
1961 (Standard Edition; publicado primeiramente em alemão,
em 1930). p. 7. As citações seguintes foram retiradas da me^sma
20. SPENGLER, Oswald. The Hour of Decision. Nova York: Kropf,
página. 1934. p. 88.

156 571
capítulo l cultura e civilização

chafieri). Fritz Ringer, em The Decline oftbe German Manda- a elaborar os princípios cia sua sociologia cultural numa série
rins (1969), estendeu a análise de Elias cie modo a abarcar o cie afirmações metodológicas que surgiram entre 1903 e 1919.
desenvolvimento desses campos cie estudo nos anos críticos Weber definia cultura como "o legado cie uma parcela fi-
após a guerra franco-prussiana. A Alemanha desfrutou um pe- nita clã infinidade cie fatos do mundo sem significado, que tem
ríodo de crescimento econômico rápido, porém turbulento, significado e importância cio ponto cie vista dos seres huma-
• que se acelerou por .volta de 1890. Os intelectuais, temerosos. nos".22 Sua expressão mais característica foi na vida religiosa.
d,o materialismo e do que Weber chamava cie racionalização Embora cultura fosse uma questão de idéias, quase sempre
da vida pública, enfrentaram o que concebiam como um- de- implícitas, que podiam ser apreendidas apenas por meio de
safio renovado, porém poderoso, à cultura de uma civilização uni exercício cie identificação da imaginação, Weber insistia
sein alma, e reagiram lançando mão cios recursos do idealis- que "as convicções e os valores são tão 'reais' quanto as for-
mo filosófico è do romantismo e também estimulando o orgu- ças materiais" e que elas podem "transformar a natureza da
lho nacional. A civilização universal, racional ameaçava a cul- realiclade social".23 A cultura, entretanto, era vulnerável. Seus
tura espiritual cie um Volk e invadia a liberdade-interior cio in- alicerces estavam sendo minados pela civilização, pelas forças
divíduo. As nações não deveriam permitir que seus valores corrosivas e irresistíveis da ciência, pela racionalização, pela
singulares fossem engolidos-por uma civilização comum. O burocratização e pelo materialismo. Em sua defesa, a cultura
.mundo é formado por "espíritos nacionais cpntenciosos... por pode contar apenas as probabilidades caóticas de renovação
culturas qualitativamente distintas".21 carismática e o trabalho defensivo cio intelectual.
O materialismo científico constituía o agente mais insiclio- Mais recentemente, Woodruff D. Smith aprimorou a ge-
so cia civilização, uma vez que -corrói os valores morais, des- nealogia cie Ringer em Poliiics and the Sciences of Ciiltuve in
valoriza as descobertas espirituais e menospreza a.sabedoria Germany, 1840-1920(1991)- Ele extrai uma linha específica
tradicional. Os mandarins rejeitavam a noção de que idéias são de reflexão acadêmica liberal sobre cultura, uma Kuitlirwis-
impressas na mente pelas sensações, cie que ps valores têm senschaft distinta da Geisteswissenschaften da tradição herme-
uma origem material. O Geist não deveria ser tratado como se' nêutica. Essa maneira de pensar se aproximava mais das
fosse parte da natureza. A ciência do espírito era completa- idéias liberais francesas e inglesas; e Smith afirma que Herder
mente diferente de uma ciência natural. Na década cie 1880, e Humboldt era-m mais solidários ao Iluminismo cio que pare-
Dilthey adaptou a noção he.geliana do "Geist objetivo". O tra- ciam. Os acadêmicos clã tradição liberal abordavam cultura
balho cio espírito coletivo era expressado e tornado público com um espírito científico, buscando leis de desenvolvimen-
em documentos e formas cie linguagem e, portanto, podia ser to, Eles definiam cultura, observa Smith, num sentido antro-
estudado, mas apenas por meio de uma abordagem intuitiva e : pológico: "Quer dizer, eles se interessavam principalmente pe-
los padrões cie pensamento e comportamento característicos
subjetiva que levava a uma compreensão ampla. Os métodos
cie todo um povo, e não pelas atividades intelectuais e artísti-:,;
das ciências naturais não eram apropriados. O debate acirrado cas cia elite.'"2?. Os destinos dessa tradição liberal - e cia tradi-
entre os positivistas e Dilthey e seus simpatizantes culminou, ção hermenêutica mais conservadora - flutuavam com ps des-
numa grande controvérsia metodológica,,.a Metbodenslreit,:que
teve início em 1883 e, mais tarde, levou ao desenvolvimento
.de uma-nova história cultural. Além disso, incitou Max Weber
22. Apud SCIIROEDER, Ralph. Max Weber and the Sociology of
Culture. Londres: Sage, 1992-. p. 6.
21. TROELTSCH, Ernst. Apud RINGER, Fritz K. Tloe Decline of the 23. Id, ibid,, p, 8.
German Mandarins The German Academic Community, 1890- 24. SMITH, Woodruff D. Polítícs and the Sciences Of Culture in
1933. Carnbridge, Mass.T Harvard University Press, 1969. p. 101. Germany, 1840-1920.Nova York: Oxford University Press,'1991-;
p. 3.

l 58 59)
capítulo l cultura e civilização

tudo isso junto não constitui a cultura...uma cultura é mais do.


tinos cios movimentos liberais e nacionalistas cia política ale-
que s reunião de artes, costumes e crenças religiosas. Todas es-
mfy. Os anos d.e 1848 e 1870 foram divisores de'água para am- sas coisas agem entre si, e para compreender verdadeiramente
, bas as tradições cie pensamento, e Smith identifica o ressurgi- unia é preciso compreender todas.2'1
mento de uma preocupação com cultura um tanto científica e
- liberal por parte da escola etnológica criada por Rudolf Vir- Em Notas para uma Definição de Cultura (1948), Eliot
chow em Berlim, nas décadas de 1870 e 1880. contrastou essa idéia antropológica cie cultura ("como a usa-
.Na Grã Bretanha,-bem como na França e na Alemanha, a da, por exemplo, por E. B. Tylor no título cio livro Primitive
crise política européia da década cie 1930 suscitou novos e an- Culture") com a visão humanista convencional, que está liga-
siosos debates em torno das questões cie cultura e civilização. da ao desenvolvimento intelectual ou espiritual cie. um indiví-
Entretanto, os intelectuais recorriam cie forma mais direta a duo,, grupo ou classe, e não ao modo de vicia cie toda uma so-
uma tradição bastante inglesa de reflexões sobre a posição que ;
cieclacle. A noção literária tradicional cie cultura era imprópria,
a alta cultura ocupava na vicja de uma nação; o ponto cie re- pois "a cultura cio indivíduo-depende da cultura cie um grupo
ferência desses intelectuais era a tese de Matthew Arnold, que ou classe", e "a cultura cie um grupo, ou classe depende cia
ficou mais. conhecida ao ser apresentada em Culture and cultura cie toda a sociedade".27 Cada classe "possui uma fun-
Anarchy (1869). A cultura, acreditavam- eles, estava ameaçada ção, a cie manter essa parte cia cultura total da sociedade que
por dois fatores: a civilização material e a cultura de massa. pertence a essa .classe". A imagem de sociedade de Eliot era
Depois cia humilhação cie Munique, T. S. Eliot ficou bas- hierárquica, porém orgânica. "O importante é uma estrutura
tante apreensivo, não tanto por uma aversão às políticas cio de sociedade na qual haverá, do 'topo' à 'base', uma gradua-
governo de Chamberlain, mas por algo mais profundo, "a dú- ção contínua cie níveis culturais."28
vida sobre a validade de uma civilização".25 (Quando.Eliot es- Em suma, cultura "inclui todas as atividades e interesses
crevia sobre materialismo, ou finanças e indústria, ele preferia característicos de um povo". Ela não estava confinada a um
usar o termo "civilização" a "cultura".) minoria privilegiada, como acreditava Matthew Arnold, mas
abarcava o majestoso e o humilde, a elite e o popular, o sa-
Será que a nossa sociedade sempre tão convicta de sua su-
perioridade e retidão, tão confiante em seus pressupostos,in- grado e o profano. A título de ilustração, Eliot elaborou -uma
questionáveis, configurou-se em torno de algo mais permanen- lista cios traços culturais ingleses: "o Derby Day, a regata cie
te cio que uma congérie de bancos, empresas de seguros, e in- Henley, a cidade de Cowes, o 12 cie agosto,, uma final cie cam-
dústrias, e teve alguma, convicção mais essencial cio que a dos peonato, as corridas de cães, a mesa cie pinos, o alvo de dar-
juros compostos e da manutenção cie dividendos? dos; o queijo Wensleydale, o repolho cozido e cortado em pe-
daços, a beterraba em conserva, as igrejas góticas do século
v Refletindo sobre essas questões-logo após a guerra, Eliot 19 e a música de Elgar".*29
foi-levado a repensar toda a questão sobre cultura, Por cultu-
ra, .disse ele a uma platéia alemã,
26. Palestras publicadas como um apêndice em Notei Towards the
refiro-me, primeiramente, ao que os antropólogos .querem di- Definitfon of Culture. Londres.: Faber anel Faber, 1948. p. 120)
zer: o modo de vida de um determinado povo que vive junto 27. ELIOT. Notes Towards the Definition ofCitlture. p. "21.
i num mesmo lugar. Essa cultura pode ser vista em suas artes, 28. Id., ibid., p. 48.
seu sistema social, seus hábitos e costumes e sua religião. Mas * Dérby Day, principal prova cie turfe inglesa; 12 cie.agosto, início
da temporada de caça aos galos silvestres; mesa de pinos, jogo
tradicional nos pubs ingleses. (N.T.)
25. ELIOT, T. S. Theldea ofa Chrlslian Society. iondon: Faber anel 29. Id., ibid., p. 31. Eliot provavelmente estava seguindo a lista de
Faber, 1939. p. 64, exemplos de Robert Lowie cios traços que formam a cultura ameri-

!60 61!
capítulo l cultura e civilização

Essa cultura nacional era um todo integrado. Amolei, suas características: a destruição deliberada de outra cultura
Colericlge e Newman insistiam" - com base em pontos de vis- como um todo é um erro-irreparável, praticamente tão per-
ta distintos - que a cultura está ligada à religião. "Podemos verso quanto tratar seres humanos como animais."34 É exata-
ir além", escreveu Eliot, "e perguntar se o que chamamos de mente a diversidade das culturas que deve ser valorizada. O
cultura e o que chamamos de religião de um povo não são ideal de uma jcultura mundial comum, por conseguinte, é
aspectos distintos da mesma coisa: a cultura sendo, essen- uma noção monstruosa: "uma cultura mundial cjue fosse sim-
cialmente, a encarhaçãp (por assim dizer) cia religião de um plesmente uniforme-não seria cultura. Teríamos uma huma-
povo".30 (Conseqüentemente, afirmou "ele, "bispo§ fazem par- nidade des-humanizada". "Devemos aspirar, sim, a uma cul-
te cia cultura inglesa, e cavalos e cães fazem parte cia religião tura mundial comum mas que não diminua a particularidade
inglesa".)31 Cultura e religião podem servir ao mesnío gran- das partes que a compõem." Ele também alertou para o fato
de propósito: "qualquer religião, enquanto dura, e em seu de que. variedade cultural provocaria conflito. "Em última
próprio nível, confere um significado,evidente à vida, ofere- análise, religiões antagônicas significam culturas antagônicas;
ce a estrutura para uma, cultura e protege a massa cia huma- e religiões,não podem'ser conciliadas."35
nidade do tédio e cio desespero".32 Mas é também função da Uma década mais tarde, em 1958, Raymond Williams
. cultura> imbuir a vida de propósito e significado. "Cultura produziu uma genealogia dos teóricos ingleses sobre cultura,
pode até mesmo ser descrita como aquilo que faz a vida va- (paralela aos ensaios de Febvre Sobre a tradição francesa e cie
ler a pena."33 Elias sobre a Alemanha). Rejeitando o apelo de Eliot-a uma
Depois'da guerra mundial,. Eliot adotou um relativismo abordagem antropológica especializada, Williams o situava
qualificado. Era verdade que a civilização ficara mais comple- exatamente dentro do .pensamento inglês tradicional de cultu-
xa, que os grupos sociais ficaram mais especializados e as ar- ra, uma tradição que ele insistia ser bastante distinta das ale-
tes, mais sofisticadas; mas não ocorrera nenhum progresso- mãs e francesas.
moral aparente. Além disso, ele insistia que as outras cultu- Raymoncl Williams (1921-1988) vinha de uma classe ope-
ras deviam ser tratadas em seus próprios termos. "Podemos rária, cie um meio socialista na fronteira com o País cie-Gales.*
também aprender a respeitar qualquer outra, cultura como um Ele foi para a Universidade de Cambridge estudar inglês, mas
todo, por riíais inferior que ela pareça em relação à nossa, ou seus estudos foram interrompidos pela Segunda Guerra Mun-
por mais que possamos desaprovar com razão algumas de dial, em que serviu ativamente. Mesmo tendo sido membro cio
Partido, Comunista por um breve período antes cia guerra,
Raymoncl foi bastante influenciado pela teoria de literatura e
cultura formulada por um dissidente carismático, porém pro-
cana. Lowie havia comentado que a luz elétrica faz parte dessa cul- fundamente conservador (ainda que de forma sutil), que fazia .
tura, da mesma forma que o estusiamo por beisebol, "assim como parte cio corpo docente da cadeira de inglês na Universidade
os filmes, os thés dansants, as máscaras do Dia de Ação de Graças, de Cambridge,.F. R,Xeavis.
os bares, os Ziegfeld Midnight Follies, as escolas noturnas, a im- A despeito das inclinações políticas de ambos serem bas-
prensa marrom de William Hearst, os clubes de sufrágio femininos, tante distintas, suas abordagens tinham muito em comum, e a
o movimento a favor do imposto único, as farmácias Riker, os sedas descrição que E. P. Thompson fez de Williams como "um mo-
de luxo e Tammany ríall" (LOWIE, Robert. Culture and Etbnology.
[19171. p. 7).
30. Id, ibid.; p. 28.
31., Icl., ibid., p. 32. 34. . id, ibid, p. 65.
32. Id,, ibid., p. 34. 35. Icl., ibid., p. 62.
33. lei., ibid., p. 26. 36. Cf. INGLJS, Precl. Raymond Williaws..Londres: Routledge, 1995.

162 631
capítulo l cultura e civilização

ralísta com hábito literário"37 podia ser aplicada também a. Lea- gumentava que essa oposição maniqueísta entre arte e co-
vis. Em 1948, Leavis publicara TheGreatTmdition, no qual de- mércio não podia ser Sustentada. "A conseqüência positiva
finia um cânon cie textos cia moderna literatura inglesa que ofe- da idéia cie arte como uma realidade superior era que ela
recia uma cultura alternativa "capaz cie contribuir para a melho- oferecia uma base imediata para uma .importante crítica ao
ria da vida" aos valores cia sociedade industrial moderna de inclustrialismo. A conseqüência negativa é que tendia...a iso-
massa! Em Cultura e Sociedade, 1780-1950, ...publicado em lar a arte...e, dessa forma, enfraquecer a função dinâmica
1958, Raymoncl Williams construiu uma tradição paralela de'in- que Shelley propôs pára ela."
telectuais literatos (incluindo Leavis .e Eliot) que haviam formu- Coleridge e Carlyle fizeram uma crítica mais sofisticada à
lado teorias sobre o papel cie salvação da cultura na sociedade civilização industrial. Civilização significava modernidade, ma-,
industrial - ou, mais precisamente, na Inglaterra moderna: terialismo, indústria e ciência: o mundo do progresso festeja-
Na introdução de uma nova edição cio livro, em 1983, do pelos utilitaristas: Ela anunciava que as ciências positivas
Williams disse que esse argumento havia se baseado na "des- representavam a única base confiável de conhecimento. Carly-
coberta cie que a idéia de-cultura, e-a palavra propriamente le condenava a tese de que "não existem ciências verdadeiras,
dita em seus empregos mais tradicionais, passara a fazer par- á não ser a externa; de que para o mundo interiorizado (se é
te do pensamento inglês no período que normalmente chama- que ele existe) o único caminho concebível é para fora; de
mos de Revolução Cultural".38 O termo havia entrado para o que, em suma, o que não se consegue investigar e compreen-
discurso inglês juntamente com outras palavras: "indústria", der mecanicamente, na verdade não pode ser investigado e
"democracia", "classe" e "arte". A noção cie cultura tomou for- compreendido". Coleridge declara em itálico para chamar a
ma por intermédio da sua relação com essas outras idéias. Em atenção "a distinção permanente e o contraste ocasional entre
particular, a idéia de cultura havia se desenvolvido em para- 'educação e civilização ".
lelo ,ao que Carlyle chamou de "inclustrialismo".
Segundo Williams, o discurso inglês sobre cultura foi Mas a própria civilização nacla mais é cio que um bem con-
iniciado pelos poetas românticos, particularmente Blake, traditório [escreveu Coleridge], se não muito mais uma influên-
Wordsworth, Shelley e Keats. Muito embora reconhecesse cia corrompedora," uma doença que^consome, do que o viço
que muitos dos temas desses poetas podiam ser encontra- da saúde, e seria melhor dizer-de uma-nação assim caracteriza-
dos em Rousseau, Goethe, Schiller e Chateaubriand, Wil- da que ela é mais envernizacla que policia, pois que sua civili-
liams insistia que havia certa inclinação inglesa em suas for- zação não se fundamenta ha educação e no desenvolvimento
harmonioso das qualidades e aptidões que caracterizam a con-
mas cle_ pensar, moldada pela reação cios poetas à Revolu- dição humana.
ção Industrial, cujo lema era "A Poesia e ó Princípio do Ego,
dos quais o dinheiro representa a encarnação visível, são o Matthew Arnold fez a declaração mais influente sobre a
Deus e o Mamon cio muncló", de Shelley.39 Mas Williams ar- oposição entre os valores cia cultura e os valores da civiliza-
ção moderna. A civilização industrial era "muito mais mecâni-
37. THOMPSON, E. P; Making History: Writings on History and Cul- ca e exteriorizacla cio que a civilização cia Grécia ou cie Roma,
ture. Nova York: The Ffee Press, 1994. p. 244. e a tendência é que essas características se intensifiquem". Os
38. WILLIAMS, Raymond. Culture and Society. ed. rev. Nova York: filisteus estão, contentes com o progresso material que a civi-
Columbia University Press, 1983 (publicado pela primeira vez em lização proporciona. Mas:
Londres: Chatto and Windus, 1958). p. vii. Esse argumento foi re-
petido em Id. Keywords. Oxford: Oxford University Press, 1976. Diz a cultura: "Observe essas pessoas, seu moclo de vicia,.
39. As citações de Shelley, Coleridge, Arnold, Eliot, Leavis e de ou- seus hábitos, seus costumes e seu tom cie voz; analise-as com
tros autores nestas páginas foram selecionadas por Raymond Wil- atenção; observe o que lêem, o que lhes dá prazer, o que cli-
liams para ilustrar seu argumento em Culture and Society,,

164 651
capítulo l cultura e civilização

zem, os pensamentos que povoam suas mentes. Valeria a pena central cia tradição,",'12 pois ele começou a articular uma crítica
ser rico com a condição dê' se tornar como elas?"
cio inclustrialismo proto-socialista,^-indicando a possibilidade cie
um renascimento cultural .popular. Mais tarde, D. II. Lawrence
Williams observou com, pesar que Arnold imbuiu a tradi-
se tornaria um porta-voz mais explícito de uma sensibilidade
ção de-ura novo pedantismo e orgulho espiritual, reagindo- à
popular, uma testemunha das possibilidades libertantes da ex-
vulgaridade cie uma forma, por si só, vulgar. Em sua opinião, periência, da classe operária, Eliot, em contrapartida, represen-
Arnold estava infectado por "sentimentos de classe em grande tava uma posição conservadora sobre cultura, mas foi original
parte egocêntricos".* E se ele desprezava a burguesia de men- e importante,.pois analisou a posição que a cultura ocupava
talidade estreita, Arnold estremecia diante das pessoas co- numa sociedade clássica. ("Podemos dizer de Eliot o que Mill
muns. A despeito da sua preocupação crescente com a educa- disse, de Colericlge, que um 'Radical ou Liberal esclarecido'
ção popular, ele estava pronto a invocar proteção ao Estado, deve 'exultar diante um Conservador assim'".)43 Williams tam-
contra as massas ameaçadoras, que "os amantes da cultura di- bém louvava Eliot por sua perspectiva anti-indiviclualista, mes-
zem prezar, mas contra as quais empregam fogo e força". mo que seu ideal de uma sociedade integrada não pudesse ser
Arnold podia ser descartado como reacionário, mas Wil- conciliado com a realidade da sociedade individualista atomi-
liams acreditava que, de modo geral, os grandes teóricos in- zacla que o capitalismo inevitavelmente produzia.
gleses não compreenderam a importância permanente cio in- Não obstante, Williams insistia em afirmar que a abor-
clustrialismo e a natureza cia civilização que este criara. Ele de- dagem de Eliot à cultura -estava firmemente situada dentro cia
dicou um longo capítulo aos clois ensaios de John Stuárt Mill tradição literária inglesa. Para Eliot, os principais componen-
sobre as idéias de cultura e civilização de Bentham e Colericl- tes da cultura eram a religião e as artes, como haviam sido
ge (ensaios que foram revisados por Leavis)." Mill havia ten- para Coleridge e Arnold, e sua inimiga, como sempre, era a
tado encontrar uma forma cie sintetizar a ciência cia vida prá- civilização moderna. Williams menosprezava p significado cia
tica, representada por Bentham, com o que chamou de "filo- introdução da idéia de "cultura" cie Eliot como "todo um
sofia cia cultura humana", cujo porta-voz foi Colericlge. Mas moclo de vicia". Ele admitia que o uso do termo nesse senti-
sua síntese, inevitavelmente, não alcançou seu objetivo, pois do "havia se destacado mais na antropologia e na sociologia
^ele escreveu sobre "Civilização" de forma, geral, quando deve- do século 20"," mas afirmava que até mesmo o uso antropo-
ria ter abordado especificamente a questão cio "Industrialis- lógico não era novo.
mo" (que para Williams representava realmente o capitalis-
mo). Como Mill não compreendeu a natureza cias mudanças O sentidodepende, na verdade, cia tradição literária. O de-
que ocorreram na .Inglaterra, ele não reconheceu que a rea- senvolvimento cia antropologia social tendeu a herckir e a for-
ção cie. Colericlge ao inclustrialismo transcendia as fronteiras' talecer os modos cie analisar a sociedade e a vida cotidiana que
cio seu próprio "Utilitarismo humanizado". haviam sido elaborados com base na experiência geral do in-
Coleridge, segundo Williams, havia antecipado uma: críti- clustrialismo. A ênfase em "todo um moclo de vida" vem desde
ca mais radical à sociedade capitalista, e as intuições de Cole- Coleridge e Çarlyle, mas o que era uma afirmação pessoal de
valor transformou-se num método intelectual generalizado.
riclge foram desenvolvidas por Ruskin, Çarlyle e William Mor-
ris. Williams identificava, Morris em particular como "a figura

40. WILLÍAMS, Raymond, op. cit. p. 117. 42. Icl., ibid, p. 161.
41.-LEAVIS, E. R. (Eá.). Mill on Bentham and Coleridge. Cambrid-,. 43. Icl., ibid., p. 227.
ge: Gambridge University Press, 1950. ,44. Essa citação e a seguinte são Icl,,- ibid., p. 232-3.

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cultura e civilização

Williams não estava familiarizado com as ciência sociais,


Williams afirmou que enquanto Arnold confrontava o In-
mas-sua esposa, que estudara antropologia na London School
dustrialismo, Leavis identificava e desafiava outro monstro, que
of Êcpnpmics, "fez com que ele lesse o trabalho dos sociólo-
emergira da fumaça e da fuligem cías\fábricas satânicas: a Cul-
gos que constavam do programa de estudos da década ..de
tura de Massa. Esta foi representada por Leavis pela imprensa
1930 dá LSE"45 enquanto ele escrevia Cultura e Sociedade. En- popular e, até mesmo, pelos semanários intelectuais, e epito^
tretanto, ele admitia que duas lições podiam ser aprendidas tríada por Middletown, comunidade de Illinois que havia sido
com os antropólogos. A primeira era que uma mudança pocle- descrita por dois etnógrafos americanos, Robert e Helen Lyrid,
ser positiva, mas não pode ser fragmentada: "Um elemento cie nüfrr livro que trazia audaciosamente como subtítulo: A Study
um sistema complexo dificilmente pode ser alterado-sem afe- of Contemporaiy Culture* Leavis ficou visivelmente estarreci-
tar seriamente o todo." A segunda lição era que existiam ou- do com o quadro que os autores apresentaram, da vicia em
tras alternativas à Civilização industrial, além cio munclo me- uma pequena ciclacle no meio-oeste. A julgar pela cultura de
dieval evocado por tantos autores ingleses que'escreviam so- Middletown, o mundo contemporâneo certamente estava em
bre cultura. Mas essa "talvez fosse cie valor mais duvidoso", péssimas condições. "Middletown é um livro assustador",*"
uma vez que nem o primitivismo riem o meclievalismo repre- concordou Williams, mas ele insistia que a cultura manufatura-
sentavam uma opção realista em nosso próprio caso. da cios bairros elegantes cia classe média precisava ser diferen- •
A verdadeira importância .do discurso de Eliot, para Wil- ciada-da cultura autêntica que emanava cia experiência da clas-
liams, era seu argumento cie que a cultura varia de classe-para se operária, uma experiência que estimula ã oposição a pa-
classe em sociedades complexas. Uma cultura de elite não drões estabelecidos e prefigura os valores sobre os quais uma
pode florescer isolada, tampouco pode ser estendida entre as , sociedade melhor deve ser criada. Williams, conseqüentemen-
classes sem adulteração. Isso aponta para uma. questão bas- te, estava impaciente com as referência nostálgicas cie Leavis a
tante diferente. A cultura popular eleve contaminar a cultura uma época de ouro, quando, imaginava ele, a cultura inglesa
mais elevada, ou mais autêntica - ou poderia ser uma fonte havia se apoiado firmemente sobre a base de uma vida comu-
cie renovação? Leavis havia abordado a mesma questão em nal orgânica. Socialista, ele não podia se juntar à lamentação
seu livro Mass Civilisation and Minoríty Culture (1930). Toda- de Leavis pela "grande mudança - essa desintegração vasta e
via, ele aceitava a tese de Arnolcl cie que "a avaliação com dis- aterrorizante... descrita comumente como progresso".
cernimento cie arte e literatura depende de uma pequena mi- Os autores no cânon cie Williams haviam formulado um
noria". Essa pequena elite discurso nacional distintivo sobre cultura. Eni'contraste com
os intelectuais alemães, eles não apelavam para uma cultura
.constitui a consciência da raça (ou um ramo dela) num cieter- especificamente nacional (e talvez isso tivesse sido mais pfò-
. minado período... Dessa minoria depende a nossa capacidade blemático, pois o que teriam eles feito cia cultura galesa, es-
cie lucrar com as melhores experiências do ser humano no pas-
sado... Na sua conservação... está a linguagem, o idioma'em
cocesa ou irlandesa?). Ao contrário cios franceses, eles não es-
constante transformação, do qual depende o bem viver, e sem tavam inclinados a celebrar os valores nacionais cie uma civi-
o qual a distinção do espírito é frustrada e incoerente. Por "cul- lização científica e racional. Em Vez disso, eles escreveram so-
tura", refiro-me ao uso dessa .linguagem. bre urna alta cultura ao mesmo tempo européia e inglesa. O

.46. LYND, Robert ; LYND, Helen. Middletown: A Study in Contem-


45.'INGLIS../?£?v/?jo«rf Williams~p. 130. poraiy Culture. Nova York: Harcourt Brace, 1929: ^
47. WILLIAMS, RaymoncL.op. cit. p. 260.

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cultura e civilização

problema central desses escritores - a relação entre alta cultu- ticos alemães; Arnold era insistentemente europeu, um tor-
ra, cultura popular e progresso material na sociedade indus-
mento cie .insutaridade cultural inglesa; e Eliot baseava-se nas
trial — foi relançado pôr Williams em termos marxistas, como
idéias do escritor católico francês de direita Charles Maurras.
uma dimensão cie um conflito xle classe mais fundamental. ,
O próprio projeto cie Williams certamente eleve ser visto
Na introdução cie uma nova edição do seu livro, publi-
como uma contribuição ao debate europeu mais amplo que
cada em 1983, Williams comentou cie forma um tanto defen-
ocorreu em meados do século 20 sobre as origens e ó signi-
siva que os críticos haviam perguntado por que ele ignorava
ficado de cultura e civilização. Seus depoimentos são análo-
os autores de outros países que escreviam sobre cultura. Um
gos aos cie Febvre e Elias; e assim como o próprio Williams
biógrafo observa que ele "não sabia ler alemão e não lia fran-
cês por diversão",48 mas Williams, cie qualquer forma, estava mais tarde veio a reconhecer, os argumentos que ele utilizou
convencido de que o discurso inglês sobre cultura emergira eram semelhantes aos que haviam siclo desenvolvidos pela Es-
cie uma experiência histórica bastante peculiar. A revolução cola de Frankfurt na Alemanha e por Gramsci na Itália. À me-
industrial tinha começado na Inglaterra, e foi lá que seus efei- dia que a Europa enfrentou sua maior crise, um antigo discur-
so europeu sobre cultura irrompeu novamente. Em toda a Eu-
tos foram avaliados primeiro.
ropa, os mesmos temas reapareceram nos mais diversos deba-
No início, e certamente durante duas ou três gerações, foi li- tes, atraindo radicais e reacionários — bem.como-hümanistas e
teralmente um problema encontrar uma linguagem que expres- cientistas sociais.
sasse esses efeitos. Assim, embora seja verdade que outras so-
ciedades passaram por mudanças comparáveis, e que novas
formas cie -pensamento e arte surgiram em resposta a eles, mui-
tas vezes cie maneiras tão penetrantes e interessantes quanto a
desses escritores ingleses, ou mais, é importante analisar o que
houve oncle aconteceu primeiro.1''

Esse não é um argumento persjjasivo, pois prioridade


não garante intuição mais elevada, .e no final do, século 19 a
experiência inglesa cie industrialismo era amplamente partilha-
da. De qualquer modo, os escritores com quem Williams esta-
va envolvido muitas vezes eram profundamente influenciados
pelos debates continentais. Worclsworth estava contaminado
pela linguagem e pelas Idéias cia Revolução Francçsa; Colètíd-
ge estava impregnado cia filosofia alemã (com efeito, Mill es-
creveu sobre a "escola teuto-coleridgiaiia"); Mill talvez tenha
siclo o comentarista mais sofisticado do positivismo cie Comte;
Carlyle escrevia mais extensamente, sobre Goethe e ps roniãn-

48. INGLIS, op. cit. p. 145.


49. Introdução à segunda edição de' Culturé and Society, 1983, p.
XJXÍ.

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