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O GOVERNO

BOLSONARO

Ofensiva burguesa e
Resistência proletária

cemflores.org

2019
Sumário

Apresentação 4

As eleições de 2018 e a necessidade de continuar e


aprofundar a resistência das classes dominadas 11

A conjuntura econômica no começo do governo Bolsonaro:


continuidade da crise do capital, estagnação e aumento do
desemprego 19

A reforma da previdência faz parte do programa de classe


da burguesia, de opressão e exploração dos trabalhadores 43

Aumentar a informalidade para aumentar a exploração do


trabalho: a reforma trabalhista e sindical de Bolsonaro 51

O governo Bolsonaro e a ofensiva reacionária na educação 66

Aumento da repressão à população pobre e trabalhadora


como necessidade do capital em crise: programa do
governo Bolsonaro 83

O hipócrita patriotismo burguês de Bolsonaro e seus


objetivos 104
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Apresentação

Camaradas e leitores.

Passados mais de sete meses das eleições presidenciais do ano passado e


cinco meses da posse de Bolsonaro, já nos parece possível e necessário
realizar uma análise mais abrangente e profunda das características
principais desse governo. Esta é a proposta deste livro: apresentar, para
o debate com camaradas e leitores, uma análise do governo Bolsonaro
que busque partir de uma perspectiva marxista, proletária, ou seja, do
ponto de vista da classe operária, dos trabalhadores, das classes
dominadas.

Os leitores não deverão esperar dos textos aqui reunidos nem uma proposta
de “política econômica” para a crise em que vivemos, nem uma proposta de
solução de “políticas públicas” para enfrentar o descalabro social no qual o

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país está atolado, nem tampouco uma alternativa de “políticas de geração


de emprego e renda” para iludir as dezenas de milhões de desempregados e
subempregados que são vítimas da crise capitalista no Brasil. Não existe
“solução" para o capitalismo, do ponto de vista dos trabalhadores, que
não seja varrê-lo da face da Terra. Nossa “proposta” de “política
pública” é a revolução proletária – possível, como mostraram as diversas
experiências socialistas do século XX, através da luta dura e constante pela
autonomia e independência política e teórica desta classe.

Nos artigos que compõem este livro procuramos mostrar o caráter de


classe burguês do governo Bolsonaro e (como já demonstramos em
outros textos em nosso site) que se trata, portanto, de um governo que dá
continuidade à dominação capitalista no Brasil, buscando adequá-la aos
novos tempos de crise, necessariamente tempos de maior exploração e
repressão. Ou seja, Bolsonaro é mais um coordenador da recente ofensiva
burguesa vivenciada em nosso país.

Mas queremos mostrar também que é possível, e necessário!, combatê-lo.


Aliás, é o que as massas têm feito, nos quatro cantos do país: os
trabalhadores que não aceitam ainda mais exploração; os estudantes e
professores que reivindicam condições dignas de estudo e trabalho; as
mulheres, os indígenas, os negros e os moradores das periferias, em defesa
de suas vidas. Lutas nas quais nos somamos e às quais buscamos
impulsionar e fazer avançar, inclusive com uma análise concreta de nosso
inimigo e de nossas forças.

Nossa análise marxista busca partir do fundamental, da luta de classes.


Luta, concreta, entre classes antagônicas e inconciliáveis (burguesia x
proletariado) que define essas próprias classes (e as demais) e o modo de
produção capitalista. Essa análise toma, obviamente, o ponto de vista da
classe revolucionária, do proletariado. Isso quer dizer que combatemos
tanto a burguesia exploradora quanto os “vendedores de ilusões”
reformistas, que pregam a contínua subordinação dos trabalhadores
aos patrões, defendem os patrões na esperança de receber algumas
migalhas e, com isso, minam a organização e a luta independente da classe
operária e demais classes exploradas.

Outro ponto relevante de nossa análise, um princípio para os que


querem realizar uma análise marxista, é sobre o papel do Estado. No

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

capitalismo (ou em qualquer sociedade de classes), o Estado é um


instrumento de dominação e de repressão a serviço da classe
dominante. Sua função principal é garantir a reprodução das relações de
produção dominantes, função que é travestida de várias figuras ideológicas
tais como a defesa do “desenvolvimento nacional”, do “crescimento
econômico”, das “melhorias sociais" etc. Figuras ideológicas que sempre
escondem que esse “desenvolvimento”, esse “crescimento”, essas
“melhorias” são sempre para o próprio sistema capitalista, sistema baseado
na exploração da força de trabalho dos trabalhadores e na opressão das
grandes massas, no roubo da riqueza produzida pela classe operária e pelo
povo, sistema capitalista regido pelas leis férreas da reprodução ampliada,
com pouquíssima (quase nenhuma e cada vez menos) margem de manobra
para os governos de plantão. Não é esse o crescimento ou o
desenvolvimento que atende às necessidades das classes dominadas.

Assim, uma análise concreta de um determinado governo de um país


capitalista, deve sempre partir das determinações (em última instância, sem
qualquer mecanicismo) da luta de classes econômica, política, ideológica;
dos interesses das classes em disputa e da concorrência entre as frações de
classe que estão no poder. A ausência desse, digamos, “cuidado básico” é
uma das responsáveis pela enorme quantidade de sandices que lemos e
ouvimos constantemente, principalmente da “esquerda acadêmica” no
Brasil. Além do seu reformismo, é claro...

Na análise do governo Bolsonaro duas características mais profundas são


determinantes e devem ser consideradas:

• a profunda crise pela qual passa o modo de produção capitalista, no


Brasil e no mundo, há vários anos, e;
• a profunda crise que atinge o marxismo, o movimento proletário, no
Brasil e no mundo, também há vários anos.
Essas duas características deixam seu selo, sua marca, nas formas concretas
com que a luta de classes se apresenta hoje.

É a profunda crise econômica que está na base da crise política


estabelecida no Brasil. Crise política que tem nas manifestações de 2013
um marco. A crise empurra, por um lado, a classe dominante a se lançar de
forma mais ofensiva em sua luta, a aprofundar os mecanismos de
exploração e dominação capitalista. Por outro, estimula objetivamente, a

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resistência das classes dominadas, cada vez mais conscientes de que estão
sendo “enroladas” por um ou outro gestor capitalista de plantão. Isso gera o
aprofundamento da contradição principal do modo de produção capitalista,
a contradição entre a burguesia (os detentores dos meios de produção) e a
classe operária (os verdadeiros produtores de toda riqueza existente).

Esse acirramento gera o aumento da repressão e da ideologia que a


legitima. A cooptação e a “enrolação”, que caracterizaram o período
petista no governo, servindo às classes dominantes, já não funcionam mais
tão bem. O capital põe em campo suas armas e suas forças sempre
presentes (legais ou não) treinadas, estimuladas e ampliadas nos governos
anteriores, e avança no combate, desesperado para tentar retomar as taxas
de lucro combalidas pela crise.

Os trabalhadores, ainda pouco organizados, divididos pelo oportunismo e


pelo reformismo, com quase a totalidade de suas entidades representativas
na mão de pelegos, lutando muitas vezes (involuntariamente) com a
posição do inimigo, sobrevivem e resistem como podem, e aprendem nesse
processo que não devem depender de ninguém, a não ser de sua força e
capacidade de luta e enfrentamento.

Concomitante a essa ofensiva burguesa, a resistência proletária se


tornou visível em diversos eventos. Sua força se fez presente na luta nos
grandes projetos como as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, nas
“greves selvagens” por fora do aparelho sindical pelego; nas jornadas de
2013 e nas manifestações contra a Copa e as Olimpíadas; nas lutas por
transporte, terra e moradia; nas ocupações de escolas por estudantes; na
Greve Geral de abril de 2017; na greve dos caminhoneiros e nas outras
milhares de greves, inclusive em setores e categorias mais precarizados...

E, propriamente relacionadas a Bolsonaro e seu governo, tivemos, ainda em


2018, a luta nacional das mulheres no #EleNão, contra a extrema-direita
que o candidato e seus apoiadores representavam; as lutas contra os
aumentos de tarifas de transporte público em alguns estados, que abriram o
ano de 2019; os protestos contra a reforma da previdência já em março
desse ano; além da atual e imensa luta contra o corte na educação, que tem
tomado as ruas de todo o país.

Muitos outros exemplos menores e mais cotidianos poderiam ser


ressaltados. Exemplos que demonstram a necessidade e a disposição de luta

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

do proletariado e das classes dominadas. São todas valiosas lições na luta


da classe operária! Lições que devemos aprender e desenvolver, teórica e
praticamente, para a reconstrução de uma alternativa proletária,
revolucionária.

Neste livro estão reunidos, além desta Apresentação, sete artigos


publicados no site http://cemflores.org/. Com esses artigos buscamos
englobar os principais aspectos do governo empossado em janeiro de 2019:
seus aspectos econômicos (política econômica, reformas da previdência e
trabalhista, desmonte do aparelho sindical), as mudanças propostas para o
aparelho ideológico escolar, o reforço do aparelho repressivo, a ofensiva
ideológica conservadora, além de uma análise do resultado das eleições. E,
claro, as respectivas resistências.

O primeiro artigo, As Eleições de 2018 e a Necessidade de Continuar e


Aprofundar a Resistência das Classes Dominadas, publicado dois dias
após o segundo turno, faz uma análise das eleições presidenciais, das lutas
que ocorreram naquele período e aponta as tendências já visíveis do então
novo governo eleito.

No segundo, A Conjuntura Econômica no Começo do Governo


Bolsonaro: continuidade da crise do capital, estagnação e aumento do
desemprego, de 24 de maio, apresenta e analisa os principais dados da
conjuntura econômica brasileira, demonstrando a continuidade da crise do
capital no país e os sinais claros do seu agravamento neste começo de
2019.

O terceiro artigo do livro, A Reforma da Previdência Faz Parte do


Programa de Classe da Burguesia, de Opressão e Exploração dos
Trabalhadores, publicado em 20 de fevereiro, poucos dias após o governo
encaminhar ao Congresso Nacional sua proposta de reforma da
previdência, apresenta os objetivos dessa reforma para o capital e o
discurso ideológico burguês que busca justificá-la.

No quarto artigo, Aumentar a Informalidade para Aumentar a


Exploração do Trabalho: a reforma trabalhista e sindical de
Bolsonaro, de 19 de abril, atualizamos a análise do cenário de avanço da
burguesia contra os trabalhadores (continuando os governos petistas e de
Temer) visando reformular o mercado de trabalho brasileiro para ampliar a
exploração dos trabalhadores, tentando retomar as taxas de lucro e de

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acumulação de capital em nosso país através da redução dos salários e o


aumento da exploração capitalista.

O quinto artigo, O Governo Bolsonaro e a Ofensiva Reacionária na


Educação, publicado em 17 de março, detalha a ofensiva do governo
contra o sistema educacional brasileiro, buscando reformá-lo de maneira
reacionária, restringindo-o e adaptando-o às necessidades políticas e
econômicas da conjuntura atual de ofensiva burguesa contra os
trabalhadores.

O sexto artigo do livro, Aumento da Opressão à População Pobre e


Trabalhadora como Necessidade do Capital em Crise: programa do
governo Bolsonaro, de 28 de abril, mostra o avanço neste governo das
funções de violência/repressão, intrínsecas ao Estado, buscando manter as
classes dominadas acuadas e amedrontadas em sua justa luta de resistência.

O sétimo e último artigo deste livro, O Hipócrita Patriotismo Burguês de


Bolsonaro e seus Objetivos, publicado em 8 de fevereiro, mostra, como o
título indica, que o tal patriotismo de Bolsonaro é hipócrita, pois
subserviente aos interesses dos EUA, e burguês, porque só considera os
interesses das classes dominantes brasileiras.

* * *

Aos comunistas e revolucionários brasileiros uma questão é fundamental e


incontornável: a classe operária e os trabalhadores precisam retomar
sua luta de classes com sua posição de classe, própria e independente,
eliminando (ou pelo menos reduzindo) a presença e a influência do inimigo
de classe dentro de suas fileiras. É central eliminar a presença das posições
dos inimigos dos trabalhadores que sempre apresentam soluções ilusórias
que nos distanciam dos nossos objetivos e nos dificultam a capacidade de
combater.

Como já afirmamos em outros momentos, para nós, do Cem Flores, a


primeira e principal razão do recuo das classes dominadas na luta de
classes é a longa ausência de um partido revolucionário dotado de uma
teoria revolucionária e presente na classe operária. Por isso reafirmamos
sempre nossas tarefas, base de nossa constituição como coletivo:

“Primeira, retomar o marxismo-leninismo no nível de


desenvolvimento em que se encontra hoje. Segunda,
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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

reconstruir o partido revolucionário, unidade indissolúvel da


teoria e da prática. Terceira, aprofundar nossas ligações com
as massas dentro do princípio de que só as massas dirigidas
pela classe operária e seu partido, armado da teoria
revolucionária, podem fazer a revolução”.


Cem Flores

31 de maio de 2019

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As eleições de 2018 e a necessidade de


continuar e aprofundar a resistência das
classes dominadas

Como já era apontado pelas pesquisas de intenções de voto, o candidato


fascista, de extrema-direita, será o novo presidente do Brasil a partir de
janeiro de 2019.

Contados os votos do segundo turno, novamente mais de um quarto do


eleitorado brasileiro não compareceu à votação, votou em branco ou anulou
o seu voto – por volta de 42,5 milhões de pessoas, número maior que o do
primeiro turno. Dos 105 milhões que votaram em algum candidato,
Bolsonaro (PSL) venceu, com 55%, e o candidato Haddad (PT) ficou com
45%.

A vitória da chapa dos militares reformados – o capitão Bolsonaro e o


general Mourão – coroa a ascensão da extrema-direita no cenário político
brasileiro, que vem sendo construída (pelo menos) desde 2014 e já foi vista

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

nitidamente no primeiro turno e durante o violento processo eleitoral deste


ano. Tal ascensão não se encerra em nossas fronteiras, pelo contrário, tem
semelhanças com outros casos no cenário internacional. Afinal, não é
apenas no Brasil que organizações e candidaturas de extrema-direita ou
mesmo abertamente fascistas têm se consolidado enquanto alternativas
políticas do imperialismo desde sua última, profunda e inacabada
crise. Estamos a presenciar um importante, mas não único, momento
desse processo global da nova rodada de agravamento da barbárie
capitalista.

Cabe aos que se entrincheiram do lado das classes exploradas fazer um


balanço desse evento da luta de classes, que também inclui uma leva de
candidatos a governador mais à direita ou abertamente reacionários eleitos
nesse segundo turno, além do resultado das eleições parlamentares, com
um Congresso Nacional mais fragmentado e conservador. Essa análise é
parte imprescindível da resistência que já se iniciou. Resistência que, no
entanto, precisa ser aprofundada urgentemente. Com a análise justa da
conjuntura aberta e a disposição ideológica de enfrentar o inimigo de classe
é que conseguiremos dar passos mais seguros no combate ao “novo”
governo burguês e à tendência de fascistização que este representa.

Como chegamos até aqui?


Karl Marx, em seu famoso O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, ao falar
sobre o diferencial de sua análise sobre o golpe de Estado ocorrido na
França em 1851, afirma: “eu demonstro como a luta de classes na França
criou circunstâncias e condições que permitiram a um personagem
medíocre e grotesco desempenhar o papel do herói”. Com as devidas
ressalvas, e entendendo a luta de classes como um processo objetivo e
constitutivo do modo de produção capitalista, podemos nos inspirar nas
palavras de Marx para esta nossa análise.

Ora, como a luta de classes no Brasil criou circunstâncias e condições que


permitiram a um Bolsonaro medíocre e grotesco ser eleito Presidente da
República? Como um abjeto e insignificante representante da última
ditadura militar conseguiu despontar como a alternativa burguesa na atual
conjuntura ―democrática‖ – sobrepujando o PT (Haddad), o PSDB

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(Alckmin), o PDT (Ciro), o MDB (Meirelles), entre outros candidatos


também burgueses?

Para fazer essa análise concreta e responder às perguntas acima, é


fundamental compreender que as eleições burguesas de 2018
ocorreram em cenário de profundas e interligadas crises econômica e
política. A crise econômica, efeito dos impactos da crise imperialista
iniciada em 2007/2008, lança a burguesia em uma violenta ofensiva pela
retomada da acumulação capitalista e da taxa de lucro, o que significa
aumento da exploração do proletariado e demais trabalhadores. Assim,
deteriorando profundamente as condições de vida, trabalho e luta das
classes exploradas. Analisamos essa crise econômica neste livro, no
capítulo A Conjuntura Econômica no Começo do Governo Bolsonaro:
continuidade da crise do capital, estagnação e aumento do desemprego.

Tal profunda e prolongada crise (ainda longe de encerrada) é o pano de


fundo da crise política, que não só transformou os governos Dilma e Temer
em sucessivos campeões de impopularidade, como também vem afetando a
legitimidade do próprio sistema político burguês (crise da dominação
burguesa no Brasil), que, por sua vez, vê-se afundado em agudos e
instáveis “conflitos institucionais”, sobretudo desde o início da Lava-Jato.

Ambas as crises, mesmo após as eleições, não possuem quaisquer indícios


de que caminham para seu fim. Apenas tendem a mudar de patamar e
forma. Nossa análise mais detida dessas crises se encontra em nosso
primeiro documento sobre essas eleições, publicado em 11 de setembro no
site do Cem Flores [1].

Tais graves crises ocorrem sem uma posição proletária independente e


organizada para construir uma alternativa revolucionária. Portanto, as
“saídas” apresentadas até o momento se encerraram no campo das classes
dominantes e na radicalização de sua ofensiva de classe. Estas classes e
suas frações precisam driblar a crise política e de legitimidade, buscando
representantes políticos minimamente aceitáveis para a população e
sustentáveis diante da guerra de facções políticas em cenário de
reorganização da representação burguesa. Ao mesmo tempo, precisam
aplicar e aprofundar o seu programa de “reformas” para tentar sair da crise
econômica – ou, em bom português, para estabelecer um novo patamar de
exploração e de opressão da força de trabalho.

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Ao longo do processo eleitoral, de início aparentemente com poucos


recursos e poucas condições de vitória em condições “normais”, Bolsonaro
foi aos poucos se firmando enquanto a alternativa para a burguesia
nesse quadro específico.

De um lado, acenou às classes dominantes não ter nenhum desconforto –


pelo contrário! – em continuar as reformas do capital emperradas no
governo Temer, fazer uma nova e radical rodada de privatizações, ampliar
a repressão e a disciplinarização às classes dominadas, inclusive com forte
apoio das Forças Armadas. Assim, levou à euforia o “mercado” e foi
trazendo para seu lado setores empresariais, seus assumidos “patrões”,
além de alas inteiras da representação política burguesa. Sem contar que
contou com a plena conivência do Judiciário (que, não esqueçamos, faz
parte do aparelho repressivo do Estado capitalista, tal qual as Forças
Armadas e as polícias – tema que é desenvolvido no capítulo Aumento da
repressão à população pobre e trabalhadora como necessidade do capital
em crise: programa do governo Bolsonaro deste livro), perceptível ao
longo de toda a campanha.

Sobre esse aspecto, a participação ativa do Judiciário na campanha eleitoral


e na sanção de um novo regime político de maior repressão e censura às
manifestações dos dominados, merece especial destaque as determinações
judiciais para as ações de repressão policial mediante invasões de dezenas
de universidades em campanha anti-fascista na última semana. O Judiciário
só “restabeleceu a normalidade” depois que os objetivos desse estado de
exceção já haviam sido alcançados e, principalmente, seu recado bem dado
e compreendido.

De outro, e com ajuda de grupos de direita há anos consolidados no país e


com uma imensa presença nas redes sociais através de grandes fábricas
de fake news, tanto uns quanto outros fortemente financiados pelo capital,
cresceu e mobilizou a insatisfação popular contra o sistema político e a
crise, explodida em um governo supostamente “de esquerda”. Ou seja,
conseguiu firmar-se enquanto alternativa “radical” ao status quo,
colocando-se como o único sujeito capaz de colocar ordem no caos social
vivido no país de dezenas de milhões de desempregados e violência típica
de guerra civil. Mais um (pseudo) outsider (pretenso) salvador da pátria
(como Collor no Brasil em 1989 ou Trump nos EUA de 2016). Também
não foi a primeira vez que a burguesia e as camadas médias recorrem à

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figura das Forças Armadas e à ideologia militar como aqueles que


socorrem a nação quando esta se encontra “em perigo”.

O PT, ávido para se manter enquanto representante máximo da burguesia


tupiniquim mais uma vez, buscou a estratégia de transferir os votos de Lula
preso para Haddad. A grande rejeição ao PT, depois de décadas de
oportunismo, que culminaram com os seus vários e apodrecidos governos
abertamente burgueses, não permitiu que essa estratégia desse certo desta
vez.

A todo momento o PT, como partido burguês que é, empurrou para o


ambiente institucional o “embate” com Bolsonaro, reforçando até o fim a
ideologia jurídica burguesa e as ilusões reformistas com as eleições e a
justiça eleitoral do Estado capitalista. Fez seu papel social-democrata de
sempre: semeando ilusões, desarmando as massas. E agora, mais uma vez
descartado pela burguesia, tende a voltar a ser oposição, volta e meia
denunciando a falta de “lisura” nas eleições burguesas (sic!), indo
cinicamente contra as medidas que eles mesmos aplicariam se tivessem
sido eleitos ou mesmo aquelas que apenas são o reforço das medidas
tomadas pelo PT quando governo. Aliás, é sintomático desse aspecto que
Bolsonaro tenha falado recentemente, como uma de suas primeiras
medidas, em qualificar ações do MST e do MTST como terrorismo, se
fundamentando em uma lei que foi sancionada por Dilma, no apagar das
luzes de seu governo (Lei 13.260, de 16 de março de 2016).

O que esperar?
O segundo turno reforçou as tendências já apontadas no primeiro: à
fascistização e ao aumento da repressão. Tendências já presentes na
conjuntura nacional há alguns anos, que deverão se aprofundar, não apenas
como resultado direto das eleições, mas sim como consequência das graves
crises nas quais estamos enfiados.

Os contornos dessa violência de classe ainda estão em parte


indefinidos, mas tendem a alcançar outro patamar, sobretudo quando
se fortalecer uma resistência que apresente grave ameaça à aplicação
do programa hegemônico da burguesia. O uso das Forças Armadas e
mecanismos de Estado de Exceção contra as classes dominadas podem ser

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

aprofundados, apesar do regime se manter com as vestes de “democracia” e


das “instituições em pleno funcionamento” – para a burguesia, de fato!

O apoio popular dado nessas eleições à extrema-direita dá também mais


liberdade e estimula a atuação de agrupamentos fascistas e paramilitares,
que agiram já no processo eleitoral, contra os identificados enquanto
“esquerda” ou demais bodes expiatórios (LGBTs, negros, pobres etc.), em
graus variados de violência, chegando ao assassinato.

Essas ações de repressão e violência tendem a ser complementadas, em


termos legais, por reformas a serem aprovadas pelo novo Congresso
conservador. Estão em discussão tanto medidas como a mencionada
qualificação de terroristas aos movimentos sociais e manifestações
proletárias e populares, quanto retrocessos em relação ao aborto, direitos
das minorias, laicidade do estado, educação pública, científica e plural.

Por fim, a pauta das “reformas” para o capital prevê cortes adicionais e
significativos nos orçamentos públicos (educação, saúde, transportes, etc.),
ratificação e aprofundamento da nova legislação trabalhista aprovada por
Temer (tema analisado no capítulo Aumentar a informalidade para
aumentar a exploração do trabalho: a reforma trabalhista e sindical de
Bolsonaro), privatizações, etc.

Que fazer?
O crescimento da alternativa Bolsonaro, no processo eleitoral, foi
respondido por um significativo movimento de massas pelo país,
liderado por mulheres e seus coletivos – movimento que ficou
conhecido internacionalmente como #EleNão. Aliás, esse movimento
traz similaridades às resistências à extrema-direita ocorridas em outros
países – por exemplo, o movimento de mulheres contra Trump. Foram dias
de importantes manifestações, em centenas de cidades, fora a constante
mobilização e início de uma organização mais consolidada. As tentativas
de aparelhar eleitoralmente esse movimento pelo reformismo e pelo
oportunismo (PT e outros) foram um fato, assim como o abraço “crítico” à
candidatura de Haddad por muitos do movimento. O que em nada reduz
sua relevância e importância política para uma perspectiva concreta de

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Cem Flores (cemflores.org)

resistência ao governo Bolsonaro, nas ruas e nas massas, em outro campo


em relação às disputas intra-burguesas e parlamentares.

A capacidade de coletivos de gênero, raça etc. mobilizarem e terem apoio


de massa não é um mero detalhe fortuito. É resultado de um trabalho
constante com suas bases, relações de apoio e luta em pautas e
problemas concretos. Trabalho cada vez mais fundamental e antes
realizado por centros comunitários, sindicatos, associações e partidos que,
em grande parte, e sobretudo desde o petismo, se afundaram na
institucionalidade burguesa e nas tramas da “governabilidade” – e, como
resultado, perderam o mínimo contato que ainda tinham com a classe.

No entanto, a lição e as potencialidades trazidas por esse movimento não


devem ser tomadas sem a avaliação dos limites em que estão enredados. A
compreensão também dos limites ainda presentes desse movimento é
fundamental para aprofundar e aprimorar a resistência que deverá ser bem
mais dura e em contexto mais repressivo a partir de agora. Tais coletivos e
movimentos não ficaram imunes, em parte, à ideologia burguesa: também
alimentam forte crença nas instituições burguesas (crença nas “políticas
públicas”, na representatividade etc.), e possuem dificuldade em enxergar
que Bolsonaro não representa apenas mais discriminação e violência
contra minorias, mas também mais exploração e opressão contra a
maior parte do povo, a classe operária e as classes exploradas. Ou seja,
um aprofundamento da repressão e exploração a que já estávamos
submetidos.

Por isso, faz-se necessário pensar e praticar articulações entre todos os


setores das classes dominadas que já sofrem e irão sofrer com a repressão e
as medidas do governo Bolsonaro. Mas ter clareza também que se trata
de luta de classes: a mesma que fez Bolsonaro se erguer como
alternativa burguesa.

Ou seja, a fascistização não irá ser derrotada pelas instituições


burguesas, pela oposição parlamentar ou pelo “amor” contra o ódio, a
violência e a intolerância.

A tendência ao fascismo, expressão política típica da etapa imperialista


do capitalismo, só se rebate com o socialismo; com a reorganização do
proletariado, hoje em parte aguardando que esse governo possa ser menos
pior, mas que estará no centro de seus ataques e precisará reagir contra ele.

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

[1]
Sobre as eleições 2018. Análise da crise econômica e política no Brasil hoje.
http://cemflores.org/index.php/2018/09/11/sobre-as-eleicoes-2018-analise-da-crise-
economica-e-politica-no-brasil-hoje/.

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A conjuntura econômica no começo do


governo Bolsonaro: continuidade da crise
do capital, estagnação e aumento do
desemprego.

Neste primeiro semestre de 2019, a dominação burguesa no Brasil


permanece em crise, uma crise que se desdobra e se entrelaça nos seus
aspectos de crise política e crise econômica desde, pelo menos, 2013.
Dados os acontecimentos deste começo de ano e de governo, tanto no
campo econômico quanto no político, não parece haver qualquer
perspectiva de resolução dessa crise de dominação à vista. O governo
Bolsonaro não é a solução burguesa para o final dessa crise. Pelo contrário,
ele a agrava. Em relação a uma solução proletária, ela não está presente na
conjuntura, considerando a ausência de uma linha marxista-leninista,
revolucionária, com força de massas, no seio da classe operária e das
demais classes dominadas no país. Criar as condições para essa solução
proletária à crise de dominação burguesa no Brasil é a tarefa de todos
os comunistas.

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Por crise política, no contexto brasileiro atual, entendemos a situação na


qual o domínio das classes dominantes e de suas frações sobre a
superestrutura política e de Estado não é capaz de permitir que essas
funcionem de maneira estável e eficiente, de forma a implementar o
programa político-econômico dessas classes. Podemos adotar como
marco (político) inicial da crise política o Junho de 2013, com as
enormes manifestações de rua que marcaram aquele mês.

Por um lado, a crise política ocasiona avanços, divisões, recuos e


incertezas quanto à implementação efetiva do programa da burguesia,
com óbvios impactos de agravamento da crise econômica. Veja-se, por
exemplo, o caso da reforma da previdência, um dos principais itens do
programa econômico burguês no Brasil de hoje. Em moldes similares ao
atual, a burguesia tenta aprovar essa reforma desde o primeiro governo
Dilma (fizemos uma análise da proposta de reforma da previdência de
Bolsonaro/Guedes no próximo artigo deste livro).

Por outro, a crise política se expressa na erosão da aceitação desses


representantes das classes dominantes junto às camadas médias e
classes dominadas, expressos, por exemplo, nos baixos níveis de
popularidade de todos os políticos e partidos depois de Junho de 2013,
assim como no decrescente grau de legitimidade conferida às diversas
instituições burguesas (Judiciário, Congresso etc.). Bolsonaro iniciou seu
governo com o mais baixo nível de popularidade de qualquer presidente
eleito em primeiro mandato desde Collor. Essa rejeição alimenta uma
oposição/resistência ao governo de plantão e seu programa.

Por fim, a resistência das classes dominadas e de setores das camadas


médias também é relevante nesse contexto de crise política. Resistência
impulsionada pela deterioração das condições de vida e de trabalho,
agravadas pela crise econômica; pela rejeição aos representantes políticos
das classes dominantes; e pela ofensiva burguesa que sofremos. Essa
resistência se manifesta desde as formas mais latentes, como o difuso ódio
ao Estado brasileiro e seus representantes, até as formas mais diretas e
organizadas, como nas greves e paralisações, nas ocupações e
manifestações de rua. Vimos um brilhante exemplo no último dia 15 de
maio (Greve Nacional da Educação). Se essa resistência ainda é pequena e

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Cem Flores (cemflores.org)

fragmentada, tendo em vista o tamanho dos ataques da burguesia, tudo


indica que ela tende a crescer e se fortalecer. Afinal, a ofensiva burguesa,
apesar das dificuldades que tem sofrido no atual contexto de crise, continua
e não deixa alternativas aos dominados.

Por crise econômica tratamos especificamente do período inaugurado


pela recessão (iniciada em 2014) e ainda não encerrado. Essa recessão
histórica – de dimensões iguais ou maiores que a dos anos 1980 ou mesmo
que aos efeitos no país da grande depressão mundial dos anos 1930 – durou
de meados de 2014 ao final de 2016, de acordo com os economistas
burgueses. O período de crise, no entanto, contempla também os dois anos
e meio que se passaram a partir do final da recessão – ou seja, do começo
de 2017 até hoje –, caracterizados pela dificuldade do capital em retomar
sua acumulação, pela estagnação econômica e pela permanência do elevado
desemprego. Isso indica que estamos na pior “recuperação” (sic!)
econômica pós-recessão na história do país. Como sintetizou Cláudio
Considera, economista com passagens pelo Ipea, pelo IBGE, pela UFF e
atualmente na FGV: “Foi a pior recessão da história e está sendo a
recuperação mais lenta da história”. Na verdade, como veremos mais
adiante, a economia está estagnada, à beira de uma nova recessão, em
cenário que já se aproxima de uma depressão.

Sobre essa crise é importante retomar alguns pontos do nosso documento


de abril de 2017, Teses Sobre a Crise do Capital e a Luta de Classes no
Brasil [1]:

- A atual crise do capital no Brasil integra a crise do


imperialismo inaugurada em 2008 e ainda não encerrada. Ou
seja, a crise do imperialismo e os movimentos do capital que ela
causa (buscando retomar a taxa de lucro, redefinindo a divisão
internacional do trabalho, etc.) são importantes determinantes da
crise no Brasil. Por exemplo, o fim do superciclo de commodities,
atingindo diretamente a acumulação e lucratividade dos setores
capitalistas mais dinâmicos do país, como o agronegócio e a
indústria extrativa mineral, ambas para exportação.

21
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

- O agravamento das contradições da acumulação de capital no


país após o miniciclo de expansão capitalista (2005-2010) e o
esgotamento do dinamismo dessa acumulação são as causas
diretas da atual crise do capital no Brasil. Um exemplo é o
crescimento do crédito, que acabou por gerar “bolhas” de consumo
via sobre-endividamento das empresas e das pessoas e que, não
apenas contribuiu para o início e a magnitude da crise (pelo corte do
crédito) como também tem dificultado a retomada (pelo elevado
endividamento e a consequente “desalavancagem”).

- As políticas econômicas adotadas desde 2015, já com a recessão


instalada, têm o objetivo claro de agravar a recessão, para que
essa possa cumprir seu papel de recolocar as condições de
acumulação e a taxa de lucro, mediante o aumento significativo do
desemprego e a precarização dos postos de trabalho restantes, a
redução dos salários, o aumento da intensidade do trabalho etc.

- A crise do capital deve ser entendida, portanto, como a


tentativa forçada de recolocar as condições propícias para a
acumulação e lucratividade do capital, com o aumento da
exploração sobre o proletariado e demais classes dominadas.

Neste texto pretendemos analisar e apresentar aos camaradas e leitores do


Cem Flores a situação atual da economia brasileira nesses primeiros
meses de 2019, que nos parece ser não apenas a continuidade da
estagnação de 2017-2018, mas uma piora maior do que já estava ruim,
com possível novo mergulho na recessão ou mesmo numa depressão.
Sem essa análise, avaliamos não ser possível fazer a análise concreta da
situação concreta da conjuntura econômica, política e social da luta de
classes no país neste começo de governo Bolsonaro.

Os dados da conjuntura econômica brasileira

É imprescindível o acompanhamento dos fatos e dos dados da conjuntura


para fazer a análise concreta da situação concreta da luta de classes no
nosso país. Por isso, nos esforçamos para consolidar e quantificar, a seguir,

22
Cem Flores (cemflores.org)

as informações empíricas da economia brasileira que avaliamos as mais


relevantes para a análise do cenário atual.

 A magnitude da recessão

A recessão de 2014-2016 foi uma das maiores da história econômica do


Brasil, quer consideremos o tamanho da redução do PIB que ela
causou, quer o tempo em que a economia permaneceu em queda livre.
Essa recessão de magnitude excepcional expressa, por um lado, o peso da
crise do imperialismo em uma economia dominada tão integrada à
economia mundial quanto a brasileira. Por outro, o nível a que chegou o
agravamento das contradições do capitalismo no nosso país. Se a recessão
já mostrou características excepcionais, a estagnação que se seguiu foi
absolutamente única em sua incapacidade de retomar a acumulação
capitalista.

O gráfico abaixo, publicado pela Folha de São Paulo a partir de estudo do


banco americano Goldman Sachs, mostra o crescimento médio do PIB per
capita no Brasil por década desde o começo do século XX. A taxa média
anual de “crescimento” de 2011 a 2018 foi negativa, igualando a chamada
“década perdida” dos anos 1980, da hiperinflação e das sucessivas crises da
dívida externa. Esse dado permite avaliar a magnitude da atual crise do
capital na história do capitalismo brasileiro.

23
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

O gráfico seguinte mostra esse mesmo dado – crescimento médio do PIB


per capita por década – em perspectiva internacional. O Instituto Brasileiro
de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Ibre) fez essa conta a
partir da base de dados do FMI, desde 1980. Na década atual, 85% dos
países do mundo deverão ter crescimento médio anual superior ao
brasileiro. Isso mostra que, mesmo considerando os impactos da crise do
imperialismo na economia mundial, a magnitude da crise do capital no
Brasil se destaca. Esses elementos são indispensáveis para
contextualizarmos a ofensiva (em todas as frentes) da burguesia na sua
luta de classes contra o proletariado e demais classes dominadas, bem
como sua agressividade (pensemos nas odiosas reformas, aprovadas ou
planejadas, por exemplo).

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Cem Flores (cemflores.org)

O mesmo FGV-Ibre calculou a redução do PIB e dos seus componentes na


recessão. A queda do PIB foi de 8% nos dois anos e meio de recessão. A
indústria caiu quase 14%, com a construção civil despencando 27%,
também afetada pelo impacto da Lava-Jato em todas as maiores
empreiteiras do país. As importações caíram 23%, mas o maior impacto
ocorreu no investimento (Formação Bruta de Capital Fixo), cuja queda
atingiu 30%. Esse efeito sobre o investimento constitui aspecto
fundamental da crise: a crise provoca a redução da produção e da
demanda e a ociosidade dos fatores de produção – máquinas e
equipamentos sem uso, trabalhadores desempregados. A queda da
utilização da capacidade instalada na indústria e em outros setores da
produção provoca a desvalorização do capital, importante consequência da
crise para a tentativa de retomada. Essa mesma capacidade ociosa também
dificulta novos investimentos, contribuindo para o rebaixamento da
produtividade da economia, logo, do crescimento da mais-valia relativa.
Assim, cresce a importância, para a burguesia, do aumento da extração de
mais-valia absoluta, o aumento da exploração mais direta e agressiva contra
a classe operária e demais classes dominadas, como forma de buscar
retomar suas taxas de lucro.

25
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Tabela 1 – Variação acumulada da recessão aos dias atuais e a necessidade de


crescimento para retornar ao mesmo nível de 2014/I – PIB e componentes (%)

Variação acumulada no período, em termos reais - %


Completo Recessão Estagnação "Retomada"
PIB e Componentes
Crescimento para
De 2014/II a De 2014/II a De 2017/I a
igualar 2014/I, a
2018/IV 2016/IV 2018/IV
partir de 2018/IV
PIB -5,1 -8,2 3,4 5,3
Transformação -13,2 -16,7 4,2 15,2
Construção -30,5 -27,1 -4,7 43,8
Total da Indústria -12,1 -13,8 1,9 13,8
Comércio -11,1 -16,1 5,9 12,5
Formação Bruta de
-25,9 -30,1 6,1 34,9
Capital Fixo
Importação -15,1 -23,2 10,6 17,8

Essa mesma tabela também quantifica o que o país precisaria crescer para
voltar ao patamar anterior ao início da crise (primeiro trimestre de 2014).
Ou seja, apenas para voltar para os níveis de cinco anos atrás, o PIB precisa
crescer 5%; a indústria, 14%; as importações, 18% e o investimento 35%!
Com o ritmo de crescimento de 1% observado em 2017, 2018 e, ao que
tudo indica, em 2019 (pode ser menos!), esses números só seriam
alcançados no final de 2023...

 A estagnação atual. Rumo a uma nova recessão ou a uma


depressão?

A estagnação da economia brasileira pode ser comprovada pelas pífias


taxas de crescimento após o final da recessão. O PIB cresceu 1,1% tanto
em 2017 quanto em 2018 e deve crescer por volta disso neste ano (ou ainda
menos!), pois quanto mais o tempo passa, mais as projeções de crescimento
para o ano são reduzidas. Medido pelo PIB per capita, o “crescimento” foi
de apenas 0,3% em 2017 e 2018, devendo permanecer nesse ritmo
estagnado.

O gráfico abaixo compara a trajetória de recessão/recuperação nas oito


recessões brasileiras dos últimos quarenta anos, medidas a partir da
evolução do PIB per capita. A excepcionalidade dessa “recuperação”, na
realidade estagnação, é patente.

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Cem Flores (cemflores.org)

Mas essa é apenas uma parte da história. Olhando mais de perto, a


realidade está ficando pior. A economia desacelera desde o final do ano
passado, quando o PIB cresceu apenas 0,1% no último trimestre. O
primeiro trimestre deste ano deverá ser negativo, de acordo com as
projeções do Bradesco e do Itaú. O gráfico abaixo mostra como têm
evoluído as projeções para o crescimento deste ano. De 2,6% que chegaram
a ser previstos no começo do ano passou-se a 1,45% e a projeção mais
recente é de 1,24%, número que deve continuar diminuindo, pois o
Bradesco já projeta 1,1% e o Itaú, 1%.

27
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Com esses resultados, um novo mergulho na recessão está cada vez


mais provável. Os próprios economistas e institutos burgueses já começam
a falar em “cheiro de recessão”, “possível recessão técnica”, e “flerte com a
recessão”. Só para lembrar, o mesmo Paulo Guedes que hoje diz que a
economia está no “fundo do poço”, como forma de pressionar o Congresso
a aprovar suas reformas, no final do ano passado falava em crescimento de
3% a 3,5% neste ano...

A confirmação desse ciclo recessão-estagnação-nova recessão pode


caracterizar uma depressão na economia brasileira. Da mesma forma
que a crise do imperialismo (recessão seguida de estagnação) e uma
possível nova recessão nos países imperialistas (que já começou em alguns
países europeus, como a Itália) leva analistas burgueses a falar em uma
“estagnação secular” e marxistas como Michael Roberts a falar em uma
longa depressão, situação similar pode estar ocorrendo no Brasil. Dentre os
economistas burgueses, quem levantou essa hipótese foi ninguém menos
que Afonso Celso Pastore, uma espécie de decano dos espadachins
mercenários do capital no país. Em estudo “A Depressão Depois da
Recessão”, conforme matéria da Folha de São Paulo, ele afirma que “o
Brasil não apenas está vivendo a mais lenta retomada da história como
caminha para a depressão. Com a renda per capita mantendo-se por três
anos 8% abaixo do pico prévio, só nos resta definir a situação como
característica de uma depressão. O país está parado. Depois da recessão,
28
Cem Flores (cemflores.org)

ainda não tivemos recuperação. Se isso não é sinal de depressão, não sei o
que é”.

 Indústria: mais que recessão, uma verdadeira depressão

O setor mais afetado pela crise do capital no Brasil – podemos mesmo


afirmar que constitui o centro da crise – é a indústria, mais
especificamente a indústria de transformação (ou seja, excluindo a
indústria extrativa). Olhando em horizonte mais amplo, trata-se da
continuidade do processo de desindustrialização do país, dada a
inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho do imperialismo,
com uma cada vez maior especialização na produção de commodities para
exportação (já analisamos o fenômeno da desindustrialização em nosso site
[2]
).

Como vimos na tabela do FGV/Ibre, a queda da indústria de transformação


foi o dobro da do PIB, e a do investimento, o dobro da queda da indústria.
A magnitude dessas quedas passadas, somadas à total incapacidade de
recuperação e às novas quedas deste ano, caracterizam uma real
depressão industrial. O crescimento do PIB industrial em 2017 e 2018 foi
praticamente nulo e, no primeiro trimestre deste ano, houve contração de
2,2% na produção industrial. Essa retração da indústria também puxa para
baixo os serviços, que tiveram queda de 1,7% no mesmo período.

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

O gráfico acima, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial


(IEDI), mostra uma queda de quase 20% na produção industrial do início
da recessão até seu momento mais grave, no começo do último trimestre de
2016, e também o impacto paralisante da greve dos caminhoneiros (que
analisamos em nosso site) em maio de 2018. Para este texto, no entanto,
importa destacar a sequência de quedas mês a mês que a produção
industrial vem tendo desde então, caracterizando o agravamento da crise no
setor industrial em recessão, e também já em depressão. O mesmo
comportamento é encontrado no nível de utilização da capacidade instalada
da indústria (estoque de máquinas e equipamentos prontos para o uso) que
já se encontra no mesmo patamar do final de 2016 e da greve dos
caminhoneiros (pelo indicador mais amplo, da Confederação Nacional da
Indústria, CNI).

Esses indicadores se traduzem em estagnação também nas taxas de


crescimento anual da produtividade. Em geral, com menor nível de
investimento, menores serão os ganhos de produtividade. A produtividade é
elemento fundamental para ampliar a escala de produção de mercadorias,
possibilitar seu barateamento e ampliar as taxas de mais-valia e de lucros.
Assim, capitais que geram menores ganhos de produtividade tornam-se, por
um lado, mais frágeis na concorrência com outros capitais, tendendo a
desaparecer, e, por outro, seu setor de atividade tende a receber menos
capitais (investimentos), que são dirigidos aos setores mais produtivos e
lucrativos dessa economia ou das demais economias concorrentes.

Não é por outra razão que vemos um contínuo crescimento do agronegócio


no Brasil nas últimas décadas, em fenômeno por vezes chamado de
“reprimarização” (sobre o qual já nos posicionamos em nosso site [3]). Uma
medida agregada de produtividade do agronegócio pode ser obtida a partir
da divisão da produção agrícola (quantidade produzida, em toneladas de
grãos) pela dimensão da área plantada (em hectares). De 1990 a 2018,
usando dados da Conab disponíveis no Ipeadata, enquanto a área plantada
cresceu 58,5%, a produção de grãos aumentou 290,9%. Dividindo esses
resultados, temos um aumento da produtividade de 146,5% no período, ou
um crescimento médio anual de 3,28% por ano nas últimas quase três
décadas. O maior dinamismo do agronegócio nas últimas décadas é

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Cem Flores (cemflores.org)

importante para explicar diversas mudanças na estrutura econômica


do país, da composição das exportações (e também das importações)
até uma nova geografia da produção e da renda, mais descentralizada,
com o crescimento relativo de novos polos no interior do país. É
também imprescindível para analisar o bloco de frações de classe
dominante no poder e sua influência nas decisões de política econômica
e na representação política, principalmente nos estados.

Por fim, voltando à indústria, as informações mais recentes das pesquisas


da FGV com os empresários industriais mostram uma queda da confiança e
das perspectivas de produção para os próximos seis meses nos últimos
dois/três meses. Ou seja, os empresários parecem dizer que aquele
otimismo com a eleição de Bolsonaro e com o programa econômico de
Guedes está se esvaindo dada a crise política que vem sendo um obstáculo
à aprovação das “reformas” e os próprios números mais recentes da
economia.

 Crédito: depois da contração, estagnação

Todos sabemos o papel que o capital de empréstimo, capital portador de


juros, desempenha como alavanca da acumulação, ao possibilitar a cada
burguês um potencial de ampliação de sua produção acima da capitalização
de mais-valia obtida do seu próprio capital (constante mais variável). O
contrário, no entanto, uma contração da oferta de crédito representa não
apenas a inviabilização da continuidade desse ritmo de crescimento como
também um peso sobre o ritmo de acumulação anterior (sem crédito), dado
que um determinado montante da mais-valia obtida deverá, agora, ser
repassado ao banqueiro na forma de juros.

Esse processo de crescimento com “bolha” de crédito, seguido da recessão


com excesso de endividamento, foi característico da última crise do
imperialismo em praticamente todos os países e, também, no Brasil. Esse
excesso de endividamento restringe a oferta de crédito novo pelos bancos e
força uma “desalavancagem” por parte das empresas, que reduz sua
produção (ou o crescimento da mesma) para quitar dívidas.

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Ou seja, o cenário mostrado pelo gráfico abaixo, retirado de publicação do


IEDI, mostra a contribuição da restrição de crédito para a perda de
dinamismo do capitalismo brasileiro, gerando um ciclo vicioso, no qual os
bancos não ofertam crédito pelo excesso de endividamento das empresas e
essas não demandam mais crédito, não apenas pelo endividamento, mas
também pela estagnação econômica. Um ciclo similar de endividamento
também afeta camadas médias e trabalhadores que agora, não apenas tem
que pagar suas dívidas, como enfrentam dificuldades em manter sua
própria renda, desempregados ou ameaçados de desemprego. A retração e
a posterior estagnação do crédito são fatores importantes na
recessão/estagnação da economia brasileira atual.

 O mercado de trabalho continua piorando

A classe operária e os demais trabalhadores do campo e da cidade têm


sido os principais atingidos pela crise do capital no Brasil, seja de forma
“direta”, com o aumento do desemprego e a piora das condições de
trabalho e aumento da exploração dos que permanecem empregados, seja
de maneira “indireta”, pelo efeito dos sucessivos “cortes de gastos” na
qualidade dos serviços públicos de saúde e educação, na piora da
“qualidade” de vida (mais exposição à violência, “tragédias” “naturais”...)
etc. A lógica do capital na sua luta de classe para retomar sua taxa de
lucro envolve, necessariamente, o aumento da exploração da força de
trabalho e uma concomitante deterioração das condições de
reprodução da mesma.
32
Cem Flores (cemflores.org)

Na atual crise brasileira, essa deterioração do mercado de trabalho tem, ao


menos, as seguintes características: aumento do desemprego, aumento da
subutilização da força de trabalho, aumento da informalidade e da
precarização (com novos limites legais, cada vez mais rebaixados), piora
das condições de trabalho e dos salários e ataques da burguesia contra os
sindicatos (nosso último texto sobre os efeitos da reforma trabalhista, ver o
quarto artigo deste livro) e outras formas de organização e luta dos
trabalhadores.

Na recessão, a taxa de desemprego calculada pelo IBGE, que era de 7,2%,


em março de 2014, quase dobrou para 13,7%, em março de 2017. Passados
dois anos, a mesma permanece em 12,7%. Ou seja, em relação a 2014 são
quase 6 milhões de desempregados a mais, em um número que já soma
13,4 milhões de trabalhadores a procura do emprego para sustentar a si e
sua família.

Só que a piora do mercado de trabalho pode ser melhor analisada com a


nova estatística do IBGE, uma espécie de conceito amplo de desemprego,
na qual são acrescidas à taxa de desemprego a população subocupada
(trabalho em tempo parcial) e a desalentada (que não foi procurar emprego
pois sabia que não ia achar mesmo). Nesse conceito, o desemprego não
parou de subir, mesmo já tendo se passados dois anos e meio do final
da recessão! A chamada “taxa de subutilização da força de trabalho” bateu
recorde em março de 2019, atingindo um quarto da população
economicamente ativa do país. São 28,3 milhões de trabalhadores nessa
condição.

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Taxa Composta de subutilização da força de trabalho – trimestres de


janeiro a março – 2012/2019 - Brasil (%)

Esse contingente desempregado/subutilizado exerce significativa


pressão de redução sobre os salários e demais condições de trabalho
dos que permanecem empregados, o que faz parte da ofensiva
burguesa para reduzir os salários e aumentar seus lucros. Isso pode ser
visto analisando as condições de trabalho do contingente dos trabalhadores
empregados. Primeiramente, vamos focar nos empregados com carteira
assinada, o mercado de trabalho formal. 2018 foi o primeiro ano desde
2014 com mais contratações que demissões, segundo dados do Caged, do
finado Ministério do Trabalho. Dessas contratações, 86% foram para
empregos de até dois salários mínimos. As principais profissões
contratadas no ano passado foram: vendedores e demonstradores (1,8
milhão), auxiliares administrativos (1,1 milhão), síndicos, porteiros e
zeladores (1 milhão) e serviços de hotelaria e administração (0,9 milhão).
Ou seja, nenhuma na área de produção, comprovando a
estagnação/depressão do setor, todas na área de comércio ou serviços, em
geral, com menores qualificação, salários e condições de trabalho.

Outra face da piora dos postos de trabalho é o aumento da


informalidade. De acordo com dados compilados pelo site Nexo, de 2015
a 2018, o número de trabalhadores por conta própria, nome “oficial” do
IBGE para o emprego informal, aumentou em 2,1 milhões, enquanto os
“empregados do setor privado” tiveram queda de 2,5 milhões de postos e o
emprego doméstico aumentou em quase 300 mil. Houve, portanto, uma

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Cem Flores (cemflores.org)

“troca” perversa para o trabalhador: após a demissão, só se consegue


arrumar empregos informais (aqueles que conseguem). Em relação à
mulher trabalhadora, além da informalidade, voltou a crescer uma
ocupação “típica”, a de prestar serviços domésticos nas casas da burguesia
e da classe média brasileira. Outra face dessa “troca” é a redução de postos
na indústria (menos 2,6 milhões) – em geral com maior percentual de
trabalho formal – pelo setor de comércio e serviços (mais 2,4 milhões) –
onde há proporção maior de trabalho informal.

Nesse contexto, os rendimentos médios permanecem estagnados. De


acordo com o IBGE, de 2014 a 2019 (dados para março), o “rendimento
médio mensal real habitualmente recebido de todos os trabalhos”
aumentou, em termos acumulado, pífios 0,75%... E essa média ainda pode
dar uma falsa impressão da realidade. Vejamos a afirmação do coordenador
do IBGE responsável por esses números: “O mercado jogou 1,2 milhão de
pessoas na desocupação e a carteira de trabalho não teve recuperação. Os
trabalhadores sem carteira que tinham sido contratados como temporários
para vendas, como na Black Friday e no Natal, ou que trabalharam nas
eleições, saíram do emprego no início do ano. Como esses postos de
trabalho pagam menos, a média de rendimentos do setor aumentou sem
que houvesse um ganho real nos rendimentos dos trabalhadores”.

É importante ressaltar que essa deterioração do mercado de trabalho


faz parte do programa econômico da burguesia na crise do capital
para retomar suas taxas de lucro. E, inclusive por isso, tais medidas
fazem parte do próprio programa político da burguesia na sua luta de
classes contra o proletariado, visando limitar sua organização e
capacidade de manifestação e resistência. E, não custa lembrar, se isso
não for suficiente, a burguesia conta com o reforço dos aparelhos
repressivo e ideológicos de estado (que analisaremos no quinto e no sexto
artigos deste livro).

 Desigualdade crescente

Considerando todos os fatos e dados da realidade econômica brasileira já


expostos neste texto, a conclusão sobre a desigualdade no Brasil não
poderia ser outra senão a de um crescimento dessa medida já

35
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

absurdamente alta na comparação internacional. Isso mesmo levando


em consideração apenas os estudos provenientes das estatísticas oficiais de
rendimentos (PNAD-IBGE) e renda/patrimônio (Imposto de Renda). Hoje
sabemos que, ao contrário da propaganda dos governos petistas, a
desigualdade se manteve estável ou com ligeiro crescimento naqueles anos.
Sobre o período de 2006 a 2012, afirmam os autores desses estudos [4]:

“Entre 2006 e 2012 cresceu a participação dos rendimentos de


capital no topo da distribuição de renda. Esses rendimentos são
extremamente concentrados: três quartos dos lucros e dividendos,
três quartos das rendas de aplicações financeiras e quatro quintos de
todos os ganhos de capital dos 10% mais ricos são apropriados pelo
1% mais rico. Essas frações expressam, aproximadamente, a
concentração na população inteira. O comportamento da
desigualdade de renda entre 2006 e 2012 decorre de um aumento
das rendas de capital no topo da distribuição compensando uma
desconcentração dos rendimentos do trabalho, o que em parte
explica a divergência de comportamento da desigualdade em relação
à estimada em pesquisas domiciliares”.

Essa frase sintetiza à perfeição os governos petistas: a mais ampla liberdade


para a acumulação de capital pela burguesia, enquanto se jogam os
trabalhadores assalariados uns contra os outros, dividindo-os entre
“privilegiados” e “pobres”. Não é à toa que vemos esse velho bordão
repaginado para a defesa da reforma da previdência.

Inegavelmente, as consequências da recessão/estagnação com a


contração dos salários e o aumento do desemprego acarretam aumento
da desigualdade. Ainda que não conheçamos estatísticas comparáveis de
PNAD-Imposto de Renda para os anos mais recentes, a própria evolução
do Índice de Gini (rendimentos apenas) atesta a crescente desigualdade. O
gráfico abaixo, elaborado pela FGV-Ibre a partir dos dados do IBGE,
mostra que esse indicador de desigualdade cresce a 17 trimestres
consecutivos e está no maior nível em pelo menos sete anos.

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Cem Flores (cemflores.org)

Da mesma forma que a desigualdade, a recessão/estagnação também


aumentou a pobreza em mais 7,4 milhões de pessoas de 2014 a 2017, de
acordo com estudo do Banco Mundial. A continuar a estagnação/depressão,
outros 14 milhões podem ser adicionados ao contingente de pobres,
segundo o mesmo estudo.

Esses números, no entanto, são “apenas um pálido retrato da extrema


‗desigualdade social‘ do país”, pois não dão conta da “própria produção
da riqueza no capitalismo, que necessariamente, como nos mostra Marx, é
desigual, posto que fundada na exploração do trabalho assalariado, isto é,
na expropriação da mais-valia”, conforme afirmamos em texto de 2014
sobre desigualdade social, a propaganda de sua diminuição e seus
propósitos ideológicos [5].

Afinal de contas, a tendência do capitalismo, sociedade de classes, é


exatamente a de perpetuar, ampliar e aprofundar a desigualdade. Como
concluímos naquele texto:

“Marx nos diz também que o desenvolvimento histórico do modo de


produção capitalista é regido pela „lei geral da acumulação
capitalista‟, e que esse desenvolvimento „(…) ocasiona uma
acumulação de miséria correspondente à acumulação de capital. A
acumulação da riqueza num polo é, portanto, ao mesmo tempo, a
acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão,
ignorância, brutalização e degradação moral no polo oposto.‘ (K.

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Marx, O Capital, Livro II, Capítulo XXIII, Abril Cultural, 1985, p.


210)”.

 O que sabemos sobre a tendência recente da taxa de lucro no


Brasil?

É fundamental para a análise econômica marxista da conjuntura e da


luta de classes o estudo da evolução da taxa de lucro. No entanto, essa
variável é complexa de ser calculada de acordo com as definições da teoria
marxista, consideradas as insuficiências das estatísticas oficiais. No Brasil,
os estudos de Miguel Bruno e Adalmir Marquetti têm buscado calcular
empiricamente a taxa de lucro em termos marxistas. No entanto, os estudos
mais recentes desses autores têm dados apenas até 2015.

Bruno Theodosio, em recente trabalho acadêmico coorientado por


Marquetti (Determinantes da acumulação de capital no Brasil entre 2000 e
2016: lucratividade, distribuição, tecnologia e financeirização), atualiza
esse cálculo até 2016, conforme gráfico abaixo. Vemos então claramente o
aumento da taxa de lucro no período do mini-ciclo de expansão de
2005-2010 e seu esgotamento/reversão a partir de 2011/2012,
antecedendo o início da recessão, conforme esperado. A taxa de lucro
continua em queda até o fim da série, em 2016, ano de encerramento
da recessão.

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Cem Flores (cemflores.org)

A questão mais relevante para a análise da situação atual é: e depois da


recessão, o que aconteceu com a taxa de lucro? Não existem dados
similares ao do gráfico acima, portanto devemos contar com aproximações
empíricas e com a intuição teórica.

Teoricamente, as consequências da recessão/estagnação que exploramos


neste texto implicaram, para as classes dominadas, aumento do
desemprego, piora nas condições de trabalho, redução dos salários e
aumento da exploração. Todos esses fatores são contrarrestantes da
tendência de queda da taxa de lucro. O próprio objetivo da crise
econômica, de acordo com o marxismo, é a reposição das condições de
acumulação para um novo ciclo expansivo, dentre elas o aumento das taxas
de lucro. A intuição teórica nos diz, portanto, que as taxas de lucro
devem ter aumentado a partir de 2017, ainda que de forma insuficiente
para o aumento dos investimentos e retomada sustentada da
acumulação capitalista no país.

As informações de lucratividade empresarial para o período de 2017 a 2019


(primeiro trimestre) resumem-se aos balanços das empresas. Ou são
apurações dos lucros brutos ou de rentabilidade, dividindo os lucros pelos
ativos ou pelo patrimônio líquido. Não são, portanto, equivalentes ao
cálculo da taxa de lucro de acordo com a teoria marxista.

A empresa Economática consolida sistematicamente os lucros de por volta


de 300 empresas listadas na bolsa de valores. Em 2017, essas empresas
aumentaram em 17,1% seus lucros. Em 2018, esse crescimento foi de
41,8%. No primeiro trimestre de 2019, novo aumento, de 9,1%. Esses
resultados incluem os bancos, mas a tendência de crescimento dos lucros se
mantém se forem consideradas apenas as empresas não financeiras.

O IEDI também realizou cálculos sobre lucratividade empresarial para


2018. Considerando mais de 300 empresas não financeiras, sem Petrobrás,
Vale e Eletrobrás (que distorcem o número dado seu tamanho), “a margem
passou de 4,5% para 5,9%, retornando ao nível de 2014 (5,6%)”. Com
essas três empresas atingiu 7,6% em 2018. Assim como a Economática, o
IEDI destaca a concentração desses lucros em alguns setores, como

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

comércio e serviços. Embora a lucratividade industrial tenha melhorado, o


resultado de 2018, 4,6%, permaneceu abaixo do de 2014, 5,7%, e foi
concentrado na indústria extrativa (mesmo excluindo Petrobrás e Vale) e
em insumos básicos.

Como podemos ver no gráfico abaixo, retirado do estudo do IEDI, a


“margem líquida de lucro” começou a se recuperar a partir de 2016,
enquanto a taxa de lucro calculada por Theodosio continuava em queda.
Essa margem continuou aumentando em 2017 e 2018, resultado que parece
consistente com nossa intuição teórica.

Prováveis “cenários”
Se esses resultados se confirmarem em termos de taxa de lucro, de acordo
com a teoria marxista, teríamos então as seguintes possibilidades: 1) a
contínua elevação da taxa de lucro estimularia os investimentos e a
acumulação (portanto, a exploração), encerrando a estagnação, ou 2) o
aumento da taxa de lucro se mostraria pequeno e insustentável, voltando a
se reduzir e indicando uma nova recessão à vista.

Considerados os elementos apresentados neste texto, que constituem a


crise econômica e a crise política atuais, somados à desaceleração da

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Cem Flores (cemflores.org)

economia mundial como um todo, principalmente nos EUA e na China,


a hipótese 2 – de continuidade da estagnação e/ou de uma nova
recessão – nos parece ser a mais provável atualmente.

Esse cenário tenderia a agravar as condições de dominação burguesa,


acirrando a luta de classes em nosso território. A burguesia, vendo a
necessidade de ainda mais arrocho, repressão e reformas em seu
instrumento de dominação (Estado); o proletariado, empurrado a se
organizar e resistir para manter suas (mínimas) condições de vida e
trabalho.

E, como dissemos no início do texto, para sair desse inferno sem fim que é
o capitalismo, cabem à classe operária e aos comunistas construírem a
única alternativa possível: a revolucionária.

41
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

[1]
Teses Sobre a Crise do Capital e a Luta de Classes no Brasil.
http://cemflores.org/index.php/2017/04/16/teses-sobre-a-crise-do-capital-e-a-luta-de-
classes-no-brasil/
[2]
Brasil: Crise e Regressão (Parte 2).
http://cemflores.org/index.php/2014/12/09/brasil-crise-e-regressao-parte-2/
[3]
Brasil: Crise e Regressão (Parte 3). http://cemflores.org/index.php/2015/01/21/265/
[4]
Marcelo Medeiros e Fábio Ávila de Castro. A composição da renda no topo da
distribuição: evolução no Brasil entre 2006 e 2012, a partir de informações do
Imposto de Renda. Economia e Sociedade, 2018.
[5]
A propaganda da diminuição da ―desigualdade social‖ no Brasil e seu propósito
ideológico. http://cemflores.org/index.php/2014/12/17/a-propaganda-da-diminuicao-da-
desigualdade-social-no-brasil-e-seu-proposito-ideologico/

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Cem Flores (cemflores.org)

A reforma da previdência faz parte do


programa de classe da burguesia, de
opressão e exploração dos trabalhadores

Na quarta-feira, dia 20 de fevereiro, o circo (de horrores!) foi montado em


Brasília. Sob o aplauso unânime e entusiástico da grande imprensa,
da grande indústria, dos grandes bancos e do capital internacional, o
governo entregou ao Congresso Nacional sua proposta de “reforma” (sic!)
da previdência. O documento celebrado pelos funcionários do capital visa
baratear o valor da força de trabalho no país, tornando-a mais lucrativa para
os patrões; permitir a redução da carga tributária das empresas, também
ampliando seus lucros; ao mesmo tempo em que prolonga o suplício do
trabalho assalariado, piora as condições de vida dos trabalhadores da cidade
e do campo e agrava a desigualdade, a exploração e a miséria na sociedade
brasileira.

Em primeiro lugar, vale lembrar que a “reforma da previdência”– sob


o pretexto explícito de reduzir o déficit público via diminuição dos gastos

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

do governo; e com os objetivos encobertos de ampliar o tempo útil da força


de trabalho para o capital, aumentar a quantidade de trabalhadores
disponíveis e, com isso, reduzir seu valor e ampliar a lucratividade – tem
sido uma bandeira da burguesia, dos seus governos e dos seus
economistas no mundo inteiro, especialmente após a grande crise do
capital iniciada em 2007/08. Vários são os exemplos: França, Rússia,
Espanha, Argentina...

Em todos esses casos, como agora no Brasil, a capacidade dos


operários, dos camponeses e dos demais trabalhadores assalariados
para organizar protestos, manifestações e greves, em todo o país, foi (e
continua sendo) decisiva para sua vitória contra mais essa ofensiva
burguesa.

No Brasil, o mantra da “reforma da previdência” ameaça os


trabalhadores já faz mais de vinte anos. Pelo menos desde FHC, todos os
governos burgueses (FHC, Lula, Dilma, Temer e, agora, Bolsonaro)
manobraram mundos e fundos para cumprir essa meta do programa
acordado com seus patrões. Tal qual Bolsonaro nesta semana, Lula também
foi pessoalmente ao Congresso em 2003 entregar a sua “reforma”, vista, na
época, como um desdobramento necessário dos compromissos assumidos
com a burguesia na sua “Carta aos Brasileiros”. Dilma buscou ir além: não
apenas “reformou” a previdência em 2015 criando a regra de aposentadoria
variando conforme a expectativa de vida– o famoso trabalhar até morrer –
como insistiu até o final do seu mandato em fazer mais uma “reforma”,
dessa vez, com foco na idade mínima, o mesmo da proposta atual. Esse
mesmo item, por sinal, era um dos focos da proposta de “reforma da
previdência” do PT na última campanha eleitoral, com Haddad.

A “reforma da previdência” é tema comum do programa da burguesia


brasileira há décadas, quer seja de sua ala direita (FHC, Temer), quer
seja de sua ala “esquerda” (Lula, Dilma), e também, agora, de sua
vertente de extrema-direita (Bolsonaro). Diante dessa constatação e do
conteúdo das seguidas “reformas” propostas (aprovadas ou não), podemos
concluir que as mesmas objetivam, em geral, a retomada das condições
de acumulação do capital, via aumento da exploração da força de
trabalho, redução dos salários e piora nas condições de vida e
reprodução dos trabalhadores.

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Cem Flores (cemflores.org)

Os objetivos da “reforma da previdência” para o capital


Especificamente em relação à proposta de “reforma da previdência”
apresentada por Bolsonaro-Guedes, afirmamos que seus objetivos
principais são:

 Ampliar a disponibilidade de força de trabalho para o capital

Para alcançar esse objetivo, a “reforma” propõe as seguintes regras gerais:

1. eliminar a possibilidade de aposentadoria por tempo de contribuição


– e não devemos esquecer que, antes das “reformas” das duas
últimas décadas, o conceito era aposentadoria por tempo de
trabalho!;
2. aumentar a idade mínima para 65 anos para homens e 62 anos para
mulheres;
3. revisar para cima essa idade mínima a cada quatro anos;
4. ampliar a contribuição mínima de 15 para 20 anos, e
5. elevar para 40 anos o tempo de contribuição mínimo para
aposentadoria integral (servidores públicos) ou no teto do INSS
(setor privado).

Com isso, a proposta busca explicitamente incorporar na força de trabalho


ativa, disponível à exploração do capital, um contingente de trabalhadores
que poderia estar aposentado pelas regras atuais.

Esse dispositivo da proposta tende a afetar diretamente a parcela dos


operários e demais trabalhadores dos setores formalizados e/ou de maior
tradição de representatividade sindical, como servidores públicos,
metalúrgicos, bancários, petroleiros, etc. dentre os quais era mais comum a
aposentadoria por tempo de contribuição. Também são atingidas
diretamente categorias que tinham tempo menor para aposentadoria, como
professores, com a fixação de idade mínima de 60 anos – independente de
gênero –, com contribuição mínima de 30 anos.

A mulher trabalhadora também é duramente atingida por essa proposta.


Não apenas no caso das professoras, mas também no das trabalhadoras
rurais, a idade para aposentadoria feminina foi, não apenas elevada (60
anos nos dois casos), mas igualada à masculina, ignorando as diferenças

45
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

concretas nas condições de vida e de trabalho entre homens e mulheres na


nossa sociedade, capitalista e machista.

Embora existam diferenças específicas e relevantes entre as diversas


categorias de trabalhadores, o objetivo da “reforma” Bolsonaro-Guedes em
relação aos trabalhadores assalariados é um só: ampliar a disponibilidade
de força de trabalho para o capital. Dessa forma, a resposta da classe
operária e do conjunto dos trabalhadores também deve ser única:
derrotar nas ruas, nas lutas, nas manifestações e nas greves mais essa
ofensiva da luta de classes burguesa.

 Baratear o valor da força de trabalho para o capital

A própria ampliação do tempo em que os trabalhadores assalariados


deverão ficar à disposição do capital antes de poderem se aposentar, ao
contribuir para o aumento do contingente de trabalhadores trabalhando ou
em busca de emprego, contribui para o rebaixamento dos salários.

Não contentes com esse mecanismo geral, a dupla Bolsonaro-Guedes ainda


inclui requintes de crueldade na proposta, para demonstrar que a sede de
lucro não tem limites e que, se o trabalhador não consegue contribuir para a
geração desses lucros, então é inteiramente descartável. A “reforma” reduz
as aposentadorias por invalidez (de 100% da base de cálculo do benefício
para 60% até 20 anos de contribuição e mais 2% por ano adicional);
permite pensão por morte abaixo de um salário mínimo; reduz o PIS/Pasep
de 2 para 1 salário mínimo; e também reduz o benefício de prestação
continuada, pago aos mais miseráveis dentre nós. De um salário mínimo, o
idoso de 65 anos passa a receber R$400 até completar 70 anos. Morra!, diz
o gerente do capital ao trabalhador inválido, deficiente ou idoso…

Esse mecanismo de contenção salarial permite, de maneira direta, a


ampliação dos lucros (que também é um dos objetivos/efeitos da reforma
trabalhista de Temer, que Bolsonaro-Guedes querem ampliar, cada vez
mais em direção à “formalidade informal”) e uma maior competitividade
ao capital que acumula no país.

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Cem Flores (cemflores.org)

 Permitir a redução dos impostos sobre o capital

Essa “reforma da previdência” também é o primeiro passo da “reforma


tributária” tão desejada por Guedes e pelo conjunto da burguesia. De
acordo com a propaganda do Ministério da Economia, o governo poderá
chegar a economizar mais de R$1 trilhão em dez anos com a “reforma”. O
que significa essa quantia astronômica? Tão somente que, ao impedir os
trabalhadores assalariados de se aposentar pelas já duras regras atuais: i) o
governo vai coletar impostos (contribuição previdenciária) desses
trabalhadores durante muito mais tempo, logo aumentando a sua
arrecadação, e ii) vai pagar aposentadorias e pensões, para quem conseguir
chegar lá, de valor menor e por menos tempo, portanto reduzindo seus
gastos.

Dessa forma, ao longo do tempo a “reforma” tende a criar tendência


crescente nas receitas previdenciárias e tendência decrescente nas despesas.
O gasto público líquido se reduz fortemente (os citados R$1 trilhão). O
próximo passo é reduzir a carga tributária para as empresas. Com isso,
Bolsonaro-Guedes terão feito a “mágica” da “reforma tributária” do
capital: reduzir os impostos sobre o capital, aumentando os impostos
sobre o trabalho assalariado.

 Aumento da massa de dinheiro à disposição do capital

O aumento da receita previdenciária e a redução da despesa


previdenciária permitem ampliar a massa de dinheiro arrecadado dos
trabalhadores assalariados que o Estado burguês pode dirigir para a
acumulação e o lucro dos capitalistas. Se isso parece esquisito, pensemos
nos recursos do FGTS, arrecadados de cada trabalhador, reunidos no FAT e
que são graciosamente colocados à disposição do BNDES para emprestar a
juros baixos para os capitalistas… Embora por diferentes caminhos, via
orçamento público e outros, o processo é o mesmo aqui.

Mas a “reforma” Bolsonaro-Guedes quer ir ainda mais longe que esse


caminho, digamos, tradicional. Ao propor para as futuras gerações de
trabalhadores o regime de capitalização para aposentadoria, o mecanismo
se torna mais simples e direto. Sem a intermediação do Estado, o “imposto”
cobrado dos trabalhadores já vai direto para as mãos dos fundos de pensão

47
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

e similares. Esses fazem uma parte do papel dos bancos: reúnem uma
massa gigantesca de dinheiro e o transformam em capital ao emprestar para
os capitalistas ampliarem sua acumulação e seus lucros, dos quais recebem
uma generosa porção.

O discurso ideológico de justificação da “reforma”


Mas, obviamente, esses objetivos da “reforma da previdência” não são
apresentados dessa maneira aos operários e à toda a população. Existe todo
um discurso ideológico da “reforma da previdência” que vem se
desenvolvendo nas últimas décadas e que culminou na patética afirmação
de que o primeiro princípio dessa “reforma” é criar um ―sistema justo e
igualitário (rico se aposentará na idade do pobre)‖.

Não era de outra forma que Lula justificava sua “reforma” em 2003: “Nas
justificativas que enviou com as propostas de mudanças constitucionais, o
presidente Lula assinala que elas são fundamentais para tornar a
Previdência mais justa”.

Da semelhança entre as duas frases, podemos ver que está em curso


operação ideológica semelhante à que caracterizou o lulismo: o
discurso de redução das desigualdades. No caso do PT, a operação era
limitar a evidência empírica de redução das desigualdades à desigualdade
de renda do trabalho. Com isso, o PT passou todo o governo Lula
mostrando o Índice de Gini como prova de seu “esquerdismo” (sic!). E no
governo Dilma, nem isso… O que estava por trás desse desempenho era a
dinâmica do mercado de trabalho de gerar fundamentalmente novas vagas
de trabalho simples, eliminando postos de trabalho mais qualificados, em
função da maior especialização do Brasil na produção de commodities e a
redução do peso da indústria na economia. Com isso, houve um
achatamento da renda das camadas médias que se traduziu estatisticamente
em redução das diferenças salariais. No entanto, quando incluídos nas
medidas de desigualdade os lucros e dividendos do capital, a história
mudou. Não houve nenhuma redução de desigualdade no período lulista.
Afinal, como ele próprio se gabava: “Se tem uma coisa que nenhum
empresário brasileiro pode se queixar nos meus seis anos de mandato é
que nunca se ganhou tanto dinheiro como no meu governo”.

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Cem Flores (cemflores.org)

Da mesma forma, a proposta Bolsonaro-Guedes só discute “justiça”,


“igualdade” e “fim de privilégios” no âmbito das diferenças salariais
entre trabalhadores assalariados. Dessa forma, e de maneira conveniente
para os capitalistas e suas rendas sem trabalho, a discussão ideológica do
governo tenta opor servidores públicos (aposentadoria “integral”) x setor
privado (teto do INSS); categorias com regras especiais (menos tempo de
contribuição) x demais trabalhadores; trabalhadores urbanos x rurais;
trabalhadores x trabalhadoras; etc.

Reafirmamos que é preciso denunciar essa “reforma” burguesa e unir


os trabalhadores contra ela. É apenas a capacidade dos operários, dos
camponeses e dos demais trabalhadores assalariados para organizar
protestos, manifestações e greves, em todo o país, que é decisiva para
sua vitória contra mais essa ofensiva burguesa.

A outra operação ideológica do “bolsonarismo liberal” (sic!) é mostrar essa


proposta de “reforma da previdência” como elemento chave para a
consolidação fiscal, a redução do déficit público e o fim do crescimento da
dívida pública. A aposentadoria do INSS passou a ser a culpada do desastre
nacional provocado pelas políticas econômicas governamentais, tanto que
representaria R$715 bilhões do R$1 trilhão de “economia”! A
aposentadoria dos trabalhadores assalariados passou, por meio dessa
manobra ideológica, a ser o centro da gestão dos recursos estatais, a
desculpa preferida para a precariedade dos serviços públicos, da moradia,
da infraestrutura, etc. O governo quer fazer crer que o problema da
nossa sociedade capitalista é o excesso de renda que ela destina aos
trabalhadores! Um único exemplo basta para desnudar a hipocrisia desse
discurso: quanto foi o “déficit público” causado pelos desastres ambientais
da Vale, uma das maiores empresas do Brasil, em Mariana e Brumadinho?
A empresa nunca pagou por isso, ou pagou quase nada, enquanto todo o
trabalho de resgate de vítimas, contenção dos danos, limpeza da área
atingida, despoluição, etc. por décadas a fio caberá ao Estado, financiado
pelos impostos…

O presente é de luta. O futuro será nosso!


A classe operária das cidades, o proletariado rural, os camponeses, os
trabalhadores assalariados em todo o Brasil (e no mundo!) são os únicos e
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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

verdadeiros criadores de valor e de toda a riqueza existente. O que essa


massa trabalhadora precisa não é da exploração capitalista, da insegurança
de não saber se no dia de amanhã terá ou não pão em sua mesa para si e
seus filhos.

As classes dominadas no capitalismo precisam de trabalho digno, de


condições de vida dignas, durante sua idade produtiva e de aposentadorias
adequadas na velhice. Mais do que isso, precisam redescobrir que esses
desejos mínimos de garantia de emprego, felicidade, lazer, boas condições
de vida não são alcançáveis no capitalismo.

No capitalismo, os donos do poder e a corja que os defende só reservam a


quem vive de seu trabalho precariedade, insegurança, jornadas infindas,
tristeza, pobreza, violência e exploração. Isso porque é dessa exploração do
trabalho e do suor alheio que eles tiram sua vida boa, sem trabalho,
usufruindo seus lucros roubados. A construção desse futuro socialista da
classe operária e de todos os trabalhadores começa nessa luta cotidiana
contra os causadores de sua miséria, começa pela sua maior
organização e solidariedade de classe.

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Cem Flores (cemflores.org)

Aumentar a informalidade para


aumentar a exploração do trabalho: a
reforma trabalhista e sindical de
Bolsonaro

No final do ano passado, já eleito presidente, Bolsonaro lançou sua máxima


para o mercado de trabalho brasileiro: “No que for possível, sei que está
engessado o artigo sétimo [da Constituição], mas tem que se aproximar
da informalidade… Ser patrão no Brasil é um tormento”. Além do coice
(mais uma tentativa de retirada de conquistas trabalhistas), o insulto (quem
tem pena de patrão?). Não poderia ficar mais claro o caráter de classe de
Bolsonaro, seu governo e seus aliados, contra os quais a classe operária e
todos os trabalhadores devem lutar sem trégua.

Mais recentemente esta meta foi renovada em sua visita ao Chile: “Eu
tenho dito que na questão trabalhista nós devemos beirar a informalidade

51
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

porque a nossa mão de obra talvez seja uma das mais caras do mundo”.
Ou seja, no Brasil o trabalho – mesmo após a enorme reforma trabalhista
de Temer, em 2017 (sobre a qual escrevemos em nosso site) – necessitaria
de ainda mais desregulamentação e ausência de fiscalização, mais
flexibilidade de contratos e mais restrições à atuação sindical… Melhores
condições, em suma, para o patrão esfolar o trabalhador como bem
entender. Mais poder ao código penal da fábrica, como diria Marx, e menos
Brasília, como diria Bolsonaro. Diminuindo, assim, o “horror” (sic!) que é
ser patrão no Brasil, também como diz esse último.

No governo, Bolsonaro, sua equipe econômica [1] e seus aliados políticos


têm buscado concretizar essa meta. A primeira ação foi, sobretudo,
simbólica: a extinção do Ministério do Trabalho. Não que esse Ministério
do Trabalho estivesse a serviço dos explorados no país [2]. Pelo contrário.
Era uma estrutura política dominada pelos partidos burgueses, portanto,
partícipe da exploração capitalista. Ainda assim, sua extinção pelo
governo Bolsonaro dá o seguinte recado aos trabalhadores: “de agora
em diante, não tem mais proteção estatal nem legal. Vocês estão sós, por
sua própria conta”. Então que assim seja: se a única opção que resta é a
luta, vamos à luta, companheiros!

O governo seguiu anunciando (e, sobretudo, praticando!), dia após dia, suas
intenções abertamente patronais. Defesa do fim da justiça do trabalho e seu
suposto excesso de proteção ao trabalhador; proposta de criação de uma
nova carteira de trabalho (sic!), verde e amarela, revogando as conquistas
existentes e vinculada com a reforma da previdência; execução de
uma nova onda de privatizações e enxugamento de empregados e
servidores públicos etc.

Essa caixa de Pandora para o trabalhador que Bolsonaro quer abrir dá


continuidade aos ataques que as conquistas trabalhistas já vêm sofrendo
nos últimos anos e governos, sobretudo após o estourar da crise
econômica. Programa de governo de Dilma, implementado por Temer, que
Bolsonaro quer aprofundar.

Esses ataques visam uma reformulação do mercado de trabalho


brasileiro, inclusive com a criação de novos parâmetros legais para

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Cem Flores (cemflores.org)

ampliar a exploração do trabalho. E tendo como objetivo fundamental


retomar as taxas de lucro e de acumulação de capital em nosso país
através da redução dos salários e aumento da exploração [3].

Simultânea e complementarmente, o movimento sindical [4] também tem


sido um dos alvos preferidos de ataque no novo governo. O sindicalismo no
Brasil – que, em sua ampla maioria, pode ser caracterizado, já há décadas,
como reformista, oportunista, pelego e corrupto – já havia sido bastante
atingido pela reforma trabalhista de Temer e, agora, tem sido massacrado
pelas novas medidas do governo para dificultar sua arrecadação e
sustentação financeira [5]. O objetivo de Bolsonaro é demonstrar que não há
conversa com esse setor, mesmo este estando, como sempre, aberto a
negociatas [6].

Antes de entrarmos no debate mais específico sobre as propostas de


aprofundamento da reforma trabalhista e sindical, no entanto, é importante
contextualizá-las na conjuntura econômica e política atual, conjuntura
que se caracteriza, por um lado, por graves crises tanto na esfera da
acumulação/lucratividade do capital, quanto na de dominação
burguesa e, por outro lado, por uma ampla e disseminada ofensiva da
burguesia na sua luta de classes contra a classe operária.

 Conjuntura econômica: enorme dificuldade do capital em superar sua


crise econômica, que levou a uma recessão histórica de 2014 a 2016 e a
uma “recuperação” pífia de 1% por ano em 2017 e 2018. A falta de
investimentos (reprodução ampliada do capital) é causada pela falta de
perspectiva de retomada da taxa de lucro e, nesse cenário, as saídas
para o capital são:

 Conjuntural/Curto prazo: manter um enorme contingente de milhões


de trabalhadores na condição de desemprego (exército industrial de
reserva), visando comprimir ao máximo o nível geral dos salários,
piorar as demais condições de trabalho, e, com isso, ampliar a mais-
valia absoluta e a taxa de lucro. Esse curto prazo tem duração
indeterminada, podendo se prolongar pelo tempo necessário ao
capital e/ou ser revertido pela luta de classes.

53
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

 Estrutural/Longo prazo: modificar de forma permanente as condições


de reprodução da força de trabalho (seu valor), mediante as
chamadas reformas econômicas, como a da previdência (que
tratamos acima) – no limite impondo a necessidade de trabalhar até
morrer e eliminando a contribuição patronal (carteira verde e amarela
e capitalização) – e a trabalhista.

 Conjuntura política: embora no primeiro plano da situação política


atual deva ser explicitado o consenso burguês e pequeno-burguês para
o aumento da exploração das classes dominadas, o que temos visto
desde 2013 é uma divisão das frações burguesas em relação às formas
de exercer sua dominação de classe. As trapalhadas, as medidas e os
recuos, as disputas e os expurgos neste início de governo, internamente
e com o Congresso, são sinais evidentes da continuidade da crise
política. Assim como a queda veloz da popularidade do gestor do
capital de plantão, Bolsonaro – que surfou na insatisfação das classes
dominadas com o sistema político burguês e seus maiores
representantes durante a eleição.

 Reformas no Aparelho Repressivo de Estado (ARE) e nos Aparelhos


Ideológicos de Estado (AIE): que o aumento da exploração necessite
de um reforço das justificativas ideológicas por parte das classes
dominantes, assim como tende a gerar revoltas, manifestações e
mobilizações nas classes dominadas, é sabido tanto pelo proletariado
quanto pela burguesia. Para a burguesia, sua necessidade objetiva de
impor aos explorados as novas condições de reprodução capitalista e
seu temor das lutas operárias e populares tem levado a um triplo
movimento neste governo:

 Reforço no ARE “formal”: enquadram-se nessa categoria, o pacote


apresentado pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio
Moro – que prevê licença para matar para os policiais e aumento do
encarceramento – e a liberação do porte/posse de armas, entre
outros.

 Reforço no ARE “informal”: referem-se às ações e aos grupos


constitutivos do ARE que atuam fora dos limites legais, acobertados

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Cem Flores (cemflores.org)

pelo ARE formal (e mesmo dele fazendo parte). Esse reforço se dá,
por exemplo, pelo apoio explícito de Bolsonaro e seus filhos às
milícias, na defesa (explícita/implícita) da impunidade das ações de
repressão, etc.

 Reformulação dos AIE, sobretudo escolar: refere-se à ofensiva


reacionária na educação (tratada por nós também acima) que visa o
reforço da dominação ideológica burguesa e o “preparo” das classes
dominadas às novas condições de exploração e dominação
capitalista.

Neste texto buscaremos entender mais a fundo como tem se articulado a


reforma trabalhista e sindical do governo, uma das faces da ofensiva
burguesia na atual conjuntura. Para isso, faz-se necessário uma breve
recordação sobre as alterações nesse terreno nos últimos anos. Sobretudo,
os impactos da crise e da última reforma trabalhista.

A crise e a devastação do trabalho


A crise econômica elevou radicalmente o exército industrial de reserva no
Brasil. As estatísticas oficiais do país têm dois indicadores disso: a taxa de
desemprego e a taxa de subutilização da força de trabalho (que é uma taxa
de desemprego ampliada), ambas calculadas pelo IBGE (PNAD Contínua).

A taxa de desemprego se elevou rapidamente entre 2015 e 2017,


estabilizando-se depois nos dois dígitos. E sem perspectivas de curto prazo
para sair desse patamar. Recentemente, inclusive, verifica-se uma perda de
dinamismo na “recuperação” de vagas de emprego, como mostra recente
relatório do IPEA[7] – em sinergia com a “recuperação” econômica, que
pariu, pelo segundo ano consecutivo, um medíocre crescimento de 1,1% do
PIB em 2018. Diz ainda o IPEA:

“dessa forma, há atualmente, no país, um contingente de 12,7


milhões de pessoas desocupadas, cujo tempo de permanência no
desemprego vem crescendo sistematicamente. De acordo com os
dados da Pnad Contínua, no último trimestre de 2018, 26% dos

55
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

desempregados estavam procurando uma ocupação há mais de dois


anos”.

Mas isso é apenas uma face da desgraça que a classe operária e os demais
trabalhadores têm sofrido nesses tempos. A taxa composta de subutilização
da força de trabalho é um indicador mais completo e representa melhor o
mercado de trabalho nessa conjuntura. Esta inclui não só os
desempregados, mas os subocupados (presos a empregos de menos de 40h
semanais) e a força de trabalho em potencial (os que queriam trabalhar,
mas estão sem procurar emprego por alguma razão). Essa taxa subiu quase
10 pontos percentuais entre 2014 e 2018, chegando a atingir praticamente
25% de toda a população trabalhadora do país, e permanece ainda mais
estável do que a taxa de desemprego – e no patamar mais alto desde o
início da série histórica (2012). São quase 30 milhões de trabalhadores
nessa situação. É gigantesco também o contingente dos que desistiram de
procurar emprego: quase 5 milhões de trabalhadores no quarto trimestre de
2018!

Esse período de crise tem impulsionado, portanto, uma reestruturação


do mercado de trabalho, já rumo (mais ainda!) à informalidade, o
desejo de Bolsonaro.

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Cem Flores (cemflores.org)

Os dados do CAGED mostram que as 3,5 milhões de vagas formais


perdidas durante o auge da crise estão longe de se recuperarem. Além
disso, diz novamente o IPEA, “o ritmo de criação de novas vagas formais
vem perdendo fôlego nos últimos meses, combinado uma estabilidade do
número de contratações e um aumento das demissões. Adicionalmente,
nota-se que quase um quarto dos empregos formais criados (de acordo
com o Caged) foram baseados em contratos de trabalho parciais ou
intermitentes [fomentados pela última reforma]”. Essas poucas e novas
vagas são de baixíssimos salários ou de salários em queda, apontam outros
levantamentos.

Por outro lado, a informalidade, onde se recebe ainda menores salários


e sem nenhuma garantia legal, vai de vento em popa. Para o IBGE:

“As altas recordes na informalidade se mostram, por exemplo,


no menor contingente de pessoas com carteira de trabalho
assinada, exceto empregados domésticos, na série histórica, que
alcançou 32,9 milhões em 2018. Outro indicador que mostra o
aumento do mercado informal é o número de empregados sem
carteira assinada no setor privado, excluídos domésticos, que
chegou a 11,2 milhões. Os trabalhadores por conta própria
também chegaram ao maior nível na série, 23,3 milhões, pouco
mais de um quarto do total da população ocupada no país. O total
de empregados domésticos chegou a 6,2 milhões de pessoas,
também o patamar mais alto da série, sendo que, desse total,
menos de um terço (29,2%) tinham carteira assinada, o menor
percentual desde 2012”.

Tudo isso se reflete na estagnação dos rendimentos e no crescimento da


pobreza. O salário médio real se encontra praticamente congelado.
Enquanto os reajustes salariais das datas-base sofreram reversão, a partir de
2015, segundo levantamento do DIEESE, diminuindo significativamente
aqueles que resultavam em aumento real ou reposição da inflação – mesmo
esta estando em baixo patamar. Por fim, no Síntese de Indicadores Sociais
2018 – IBGE, lemos:

57
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

“considerando a linha de extrema pobreza global, entre 2016 e


2017, aumentou o percentual de pessoas com rendimento
domiciliar per capita inferior a US$ 1,90 por dia(ou cerca de R$
140,00 mensais em valores de 2017). No País, em 2016 havia 6,6%
da população abaixo desta linha, valor que chegou a 7,4% em 2017
(compreendendo mais de 15 milhões de pessoas). […] Da mesma
forma, a linha de US$ 3,20 (cerca de R$ 236,00 mensais) mostrou
crescimento, classificando 13,3% da população na pobreza em
2017 (diante de 12,8% em 2016)”.

Reforma trabalhista e seus efeitos específicos [8]


Essa devastação do trabalho causada pela crise do capital gerou as
bases materiais da chantagem que fundamentou a reforma trabalhista
de Temer. “Se for para escolher entre um emprego sem direitos e menor
renda e o desemprego puro e simples, qual você escolheria?”, diziam
cinicamente os políticos à época (discurso repetido por Bolsonaro
insistentemente), prometendo a retomada de vagas no mercado caso a
reforma fosse aprovada. As classes dominadas, sob forte desorganização e
com o enorme efeito do exército industrial de reserva, não conseguiram dar
uma resposta que conseguisse barrar esse ataque em 2017, apesar de ter
realizado ações de grande envergadura, como uma Greve Geral.

Os dados da última seção nos mostram o quanto essa chantagem não


passava de um engodo. O desemprego não caiu, a miséria só aumenta.
Mas, apesar da “insegurança jurídica” presente em vários pontos das
enormes alterações na CLT e em outras leis trabalhistas, que ainda
aguardam julgamento no STF, por exemplo, a burguesia tem tirado
proveito de vários efeitos dessa reforma. E tende a tirar mais com o aparar
de arestas e “refinamento” (brutal!) proposto pelo governo atual.

Mesmo que as modalidades de trabalho “formal” mais precárias, abertas


pela reforma, ainda sejam a minoria no mercado de trabalho brasileiro, seu
crescimento tem sido significativo. Segundo o levantamento de Clemente
Ganz Lúcio, diretor do DIEESE, com dados do CAGED de novembro de
2017 a janeiro de 2019: ―os contratos de trabalho intermitente e de

58
Cem Flores (cemflores.org)

jornada parcial equivalem a 80.666 e são responsáveis por 36% do saldo


total de empregos gerados com carteira de trabalho assinada no período
em questão, que corresponde a 224.753 empregos‖.

Assim como o crescimento das demissões com “acordo” (o trabalhador


entra com o lombo e o patrão com chicote). Diz matéria do Valor, já citada:
“Já na demissão mediante acordo entre empregador e empregado, houve
19.030 desligamentos em fevereiro, envolvendo 12.801 empresas. O
número de acordos é 71,2% maior do que o registrado no mesmo mês do
ano passado”.

Caso similar se verifica na justiça trabalhista. Os trabalhadores estão


processando menos seus patrões (o famoso “colocar no pau”, sobretudo
após a demissão, normalmente injusta e cheia de calotes) por conta das
alterações da reforma, que elevou risco do trabalhador pagar as custas do
processo ou mesmo ser processado por processar!

Abaixo, série histórica das reclamações recebidas pela Justiça do Trabalho:


a queda recente é grande e tem se mostrado consistente.

Em vários estados, como em São Paulo, ações denunciando assédio moral


despencaram. Uma mensagem clara aos patrões: continuem a fazer o
que sempre fazem, agora com menos risco de ter o incômodo de gastar
com advogados!

59
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Mas talvez o efeito mais robusto da reforma tenha sido através de sua
face “sindical”. A retirada do imposto sindical derrubou a arrecadação de
todas as entidades, inclusive as centrais sindicais. Segundo levantamento
feito pelo G1, em novembro de ano passado, os bilhões do movimento
sindical viraram apenas poucas centenas de milhões: de quase R$2 bilhões
de arrecadação em 2017, caiu para menos de R$300 milhões em 2018.

Para se virar, a maioria (pelega) agiu de diversas formas: “tivemos


entidades que buscaram a ‗autorização expressa‘ da lei mediante
assembleia da categoria dos seus representados para essa finalidade;
outras que negociaram que apenas os empregados não sindicalizados
contribuiriam para o direito de gozo dos benefícios negociados; outras
ainda que incluíram cláusulas nas convenções coletivas de que somente os
empregados que pagassem a referida taxa negocial seriam agraciados com
as suas conquistas sindicais”. E por estarem conseguindo “se virar” é que
vem o novo ataque de Bolsonaro e a guerra judicial que veio daí, já
comentada na introdução desse texto – cujos resultados definitivos ainda
não há.

Os objetivos da burguesia e seu novo governo


Como dissemos, o contexto de crise do capital, no mundo e também em
nosso país, fez as classes dominantes intensificarem seus ataques aos
trabalhadores. Um dos aspectos centrais dessa ofensiva é lutar para
reformular as condições de exploração da força de trabalho (contratação,
salário, jornada, rotatividade, intensidade etc.), inclusive alterando a
legislação, para melhor atender à retomada da acumulação capitalista.
Nessa reformulação se inclui também o aparelho sindical, que em certos
períodos históricos e formações sociais precisa sofrer forte e direta
intervenção da burguesia, com o objetivo de minimizar ou eliminar greves
e lutas trabalhistas em geral.

A reforma trabalhista de 2017 avançou nesse ponto. E alcançou êxito


diante do fraco poder dos trabalhadores em contexto de desemprego em
massa, desorganização política e amplo predomínio do reformismo e do
peleguismo no aparelho sindical. No entanto, a recuperação econômica

60
Cem Flores (cemflores.org)

ainda pendente, de um lado, e a continuidade dessa fraqueza dos


trabalhadores, de outro, são razões mais que suficientes para que o governo
burguês de plantão lance um segundo round dessa reforma. Até o
momento, no entanto, só podemos ver suas linhas gerais.

Em matéria de 10 de março de 2019, a Folha de São Paulo consultou vários


especialistas que analisaram a proposta de reforma da previdência de
Bolsonaro. Eles encontraram diversos pontos que são claramente
trabalhistas, sobretudo, diminuindo o custo previdenciário de contratação
do trabalhador formal. “PEC da Previdência antecipa reforma trabalhista
de Bolsonaro”, eis o título da reportagem.

Nessa PEC (Proposta de Emenda Constitucional), caso o trabalhador


“escolha” pelo regime de capitalização, o empregador não precisará
recolher nem a parte do trabalhador e nem a sua contribuição! De cara,
economizaria cerca de 20% do custo da força de trabalho, todo mês! Para o
aposentado que continue a trabalhar, toda a liberdade ao patrão: nem ao
FGTS tem que prestar contas. Para o trabalhador intermitente, as regras
para contribuição ficam “mais claras”, estimulando que essa forma de
contrato de expanda ainda mais.

Sintetizando, o ultrarreacionário Ives Gandra Filho disse, corretamente: “O


novo governo está completando o que o anterior não conseguiu concluir”.

Em nossa análise sobre a reforma da previdência, chamamos atenção para a


sanha de baratear o valor da força de trabalho para o capital de diversas
formas, sob a máscara de “acabar com privilégios” (sic!). Além dos
aspectos levantados pela matéria da Folha, ressaltamos à época:

“A ‗reforma‘ reduz as aposentadorias por invalidez (de 100% da


base de cálculo do benefício para 60% até 20 anos de contribuição
e mais 2% por ano adicional); permite pensão por morte abaixo de
um salário mínimo; reduz o PIS/Pasep de 2 para 1 salário mínimo;
e também reduz o benefício de prestação continuada, pago aos
mais miseráveis dentre nós. De um salário mínimo, o idoso de 65
anos passa a receber R$400 até completar 70 anos.”

61
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Mas hoje o sonho maior da burguesia nessa vereda parece mesmo ter
uma coloração específica: auriverde. A proposta da famigerada
carteira de trabalho verde e amarela, que possuiria apenas os direitos
mínimos presentes (ainda) na Constituição atual, em uma só sacada:
descartaria a CLT, em vez de adentrar em seus meandros e em suas eternas
reformas; criaria mais uma subdivisão na força de trabalho e nas categorias,
semelhante ao feito com a massificação dos contratos terceirizados, com
efeitos nefastos à organização dos trabalhadores; criaria uma clientela
específica para o regime de capitalização, estudado para ser específico para
esses contratos.

“Quanto mais flexível, maior a empregabilidade!” – diz, de novo, a


chantagista voz do capital, com seu sorriso cínico, aos que se aglomeram
ou até dormem nas filas para entregar um currículo e concorrem a um
subemprego. E a burguesia suspira esperançosa, fazendo seus planos para
dez mil anos, como dizia Brecht.

Quanto ao movimento sindical, além da asfixia financeira e contínuo


ataque ideológico e político, o governo menciona propor o fim da
unicidade sindical. A real intenção não é cumprir Convenção da OIT (como
se ligassem para isso!). E está longe de se assimilar às reivindicações de
alas do movimento que antigamente visavam menor controle estatal e
maior espaço para entidades mais combativas [9]. O que se pretende é não só
quebrar ainda mais os bastiões sindicais, controlados por partidos como PT
e PCdoB, ou “oposições” de fachada, institucionais, de parlamento. Mas,
ao mesmo tempo, aprofundar uma tendência já presente no peleguismo
atual: sindicatos como meras empresas prestadoras de serviços aos seus
“sócios”. Afinal, criar barreiras para a luta e a organização dos
trabalhadores é uma peça fundamental para que os novos planos de
exploração sejam exitosos.

Eis o que o capital tem a oferecer ao proletariado e suas novas


gerações: mais esfolação!

O proletariado, por sua vez, não tem nada a perder a não ser os seus
grilhões. Tem um mundo a ganhar!

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Cem Flores (cemflores.org)

Que consigamos, como no dia 22 de março, quando tomamos as ruas em


vários cantos do país, defender nossa dignidade e revidar mais esse ataque
da burguesia.

O presente é de luta, o futuro nos pertence!

63
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

[1]
Aliás, o secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia é
ninguém menos que o próprio relator da reforma trabalhista de 2017, o ex-deputado
Rogério Marinho (PSDB).
[2]
Isso não foi verdade nem mesmo após um levante proletário que derrubou a
monarquia, mas não o regime burguês, como em Fevereiro de 1848. Como afirmou
Marx em As Lutas de Classe na França:
“Os operários tinham feito a revolução de Fevereiro juntamente com a burguesia; ao
lado da burguesia procuravam fazer valer os seus interesses, tal como tinham instalado
um operário no próprio Governo provisório ao lado da maioria burguesa. Organização
do trabalho! Mas o trabalho assalariado é a organização burguesa existente do
trabalho. Sem ele não há capital, nem burguesia, nem sociedade
burguesa. Um ministério especial do Trabalho! Mas os ministérios das Finanças, do
Comércio, das Obras Públicas não são eles os ministérios burgueses do trabalho? Ao
lado deles, um ministério proletário do trabalho tinha de ser um ministério da
impotência, um ministério dos desejos piedosos, uma Comissão do Luxemburgo”
(https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/11/lutas_class/cap01.htm).
[3]
Causas Contrariantes [da Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro]:
“I. Elevação do grau de exploração do trabalho. O grau de exploração do trabalho, a
apropriação de mais trabalho e de mais-valia, é elevado a saber por meio de
prolongamento da jornada de trabalho e intensificação do trabalho. …
II. Compressão do salário abaixo de seu valor… é uma das causas mais significativas
de contenção da tendência à queda da taxa de lucro.”
MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro Terceiro, Tomo I,
Seção III (Lei da Queda da Taxa de Lucro), Capítulo XIV (Causas Contrariantes). 3ª
Edição. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 168-170.
[4]
Para nossa análise sobre o movimento sindical contemporâneo no Brasil,
ver: http://cemflores.org/index.php/2017/07/10/o-movimento-sindical-na-crise-do-
capitalismo-brasileiro/
[5]
A Medida Provisória 873/2019 e o Decreto 9.735/2019 impedem que a contribuição
sindical seja descontada na folha de pagamento. Essas medidas visam barrar alternativas
que os sindicatos estavam encontrando para continuar descontando o imposto sindical
de suas bases, contornando a reforma trabalhista. Sobre a situação financeira dos
sindicatos no atual cenário, trataremos mais à frente.
[6]
Wagner Freitas, presidente da CUT: “É verdade que o Governo [Bolsonaro] foi eleito
por 57 milhões de pessoas e que ele vai tomar posse no dia 1º de janeiro. A CUT vai
procurar o Governo para negociar os interesses dos trabalhadores. Diferentemente do
que fez com o [presidente Michel] Temer, que nunca foi eleito, o senhor Jair Bolsonaro,
com todas as críticas que eu possa fazer, foi eleito presidente da República. E portanto
nós vamos tratá-lo assim, como quem foi eleito, e vamos levar a nossa pauta de
reivindicação dos trabalhadores para ser negociada. […] devemos apresentar uma

64
Cem Flores (cemflores.org)

proposta de Previdência que nós entendemos que seja adequada ao momento que
estamos vivendo”.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/17/politica/1545056931_483830.html
A quase totalidade das Centrais Sindicais tem tratado o governo de
forma “diplomática”, mesmo que este deixe claro sua ojeriza ao sindicalismo – mais
ainda que o gerente anterior, Temer. Recentemente, os burocratas sindicais se
animaram em serem chamados pelo vice-presidente para uma “conversa”.
[7]
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/190320_cc_42_mercad
o_de_trabalho.pdf
[8]
Já comentamos sobre o tema, aqui: http://cemflores.org/index.php/2018/04/30/os-
impactos-iniciais-dos-primeiros-seis-meses-da-reforma-trabalhista/
[9]
Estas, se surgirem, terão que receber a autorização do funcionário do governo Sergio
Moro, ninguém menos do que o articulador da repressão no país. Moro escalou no
início do ano um delegado da Polícia Federal para cuidar dos registros sindicais,
Alexandre Rabelo Patury, que tem no currículo cursos ministrados pelo FBI.

65
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

O governo Bolsonaro e a ofensiva


reacionária na educação

A busca por realizar uma reforma reacionária do sistema educacional


brasileiro é um dos aspectos centrais do governo Bolsonaro e de parte
importante de seus aliados políticos e sua base eleitoral, composta pelas
camadas médias, líderes religiosos (especialmente os neopentecostais),
militares e militantes e parlamentares da extrema-direita.

Ao contrário da análise superficial – baseadas nas patéticas ações dos seus


principais proponentes no governo: o Ministro da Educação (sic!), a
Ministra da Mulher, da Família e dos Diretos Humanos (sic!), os filhos de
Bolsonaro e o próprio Presidente – não se trata (apenas) de uma pauta
diversionista, de “costumes”, ou da ação meramente pessoal de ministros
“ideológicos” ou olavetes.

O combate ao sistema escolar brasileiro é importante palavra de


ordem bolsonarista. Esse combate esteve e está presente em diversas
manifestações de campanha (por exemplo, a ridícula denúncia (sic!) de
66
Cem Flores (cemflores.org)

Bolsonaro do sistema escolar como divulgador de um fictício “kit gay”),


nas disputas pós-eleitorais pela indicação do futuro Ministro da Educação
(com o veto da bancada evangélica [1]), na euforia da ignorância no começo
do governo (Eduardo Bolsonaro afirmando que não será preciso mais
estudar “feminismo”), nas ameaças de censura (Bolsonaro quer analisar
previamente as questões do Enem), nos projetos de lei (como o da Escola
sem Partido) e, nas últimas duas semanas, na ferrenha e errática disputa
sobre quem de fato comanda o MEC, disputa que envolve os principais
setores da base eleitoral do governo atual: olavetes – agora divididos entre
o Ministro e os seguidores demitidos/mantidos de Olavo de Carvalho;
militares; evangélicos; além de “técnicos”.

Trata-se, no caso dessa tentativa de reforma reacionária do Aparelho


Ideológico de Estado (AIE) escolar, de uma ação complementar às
reacionárias reformas econômicas (previdência, trabalhista – já
tratadas aqui – e privatizações) e no Aparelho Repressivo de Estado
(ARE). De uma forma muito geral/esquemática, cada uma dessas reformas
reacionárias visa manter/garantir as condições de produção/exploração do
capitalismo no país, em uma conjuntura de graves crises econômica e
política – que permanecem desde, no mínimo, 2014.

Por isso, afirmamos que integram, em sua diversidade e efeitos


específicos, uma única e profunda ofensiva da classe burguesa na luta
de classes em nosso país. Ofensiva que não só se resume ao governo de
plantão. Vejamos:

 Reformas econômicas: buscam reduzir o valor da força de trabalho,


via redução dos custos diretos e indiretos que as empresas têm com
salários (reformas trabalhista e previdenciária), buscando ampliar os
lucros, e a ampliação dos espaços de acumulação do capital
(concessões e privatizações). Continuam/aprofundam as ações dos
governos petistas;
 Reformas no ARE: buscam reforçá-lo para garantir as condições de
reprodução capitalista na conjuntura de desemprego elevado e
permanente, corte de “gastos sociais” e piora das condições mínimas
de sobrevivência para os trabalhadores, agravamento da violência
urbana e domínio generalizado do crime organizado nas grandes
cidades. Inclui maior repressão às manifestações e às organizações

67
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

sindicais e populares. Continuam/aprofundam as ações dos governos


petistas;
 Reformas no AIE escolar: podemos citar como seus objetivos
principais/gerais:
 Principal/estrutural: manter a péssima qualidade da escola voltada
para as classes dominadas no Brasil, suficiente apenas para preparar
precariamente para os postos de trabalho desqualificados gerados
pela inserção internacional do país;
 Principal/conjuntural: reforçar e tornar mais explícita a dominação
ideológica da ideologia burguesa, dominante (entre outros aspectos,
o patriotismo – que ainda analisaremos no último capítulo deste
livro), buscando garantir futuras gerações de operários e de
trabalhadores mais passivas em contexto de uma exploração mais
intensa e de uma repressão mais aberta. A recente, desastrada e
depois revogada ordem do MEC, nostálgica da ditadura militar,
de gravar crianças cantando o hino nacional e recitando slogan de
campanha de Bolsonaro, é uma evidência dessa característica; e
 Conjuntural: reduzir o gasto público com o sistema educacional
(fim da vinculação dos gastos com educação e o PIB, redução dos
salários reais, aumento do tempo para aposentadoria dos
professores, etc.).

Para aprofundar nossa análise do papel do AIE escolar no governo


Bolsonaro, é preciso entender um pouco mais seu papel, em especial no
caso brasileiro, assim como a intensificação da luta de classes nesse
aparelho nos últimos anos.

A escola desempenha papel fundamental para a reprodução


do sistema capitalista [2]
A sustentação da burguesia enquanto classe dominante, sustentação das
relações de produção/exploração capitalista, se dá principalmente pelo
poder de Estado burguês, pela violência organizada. Mas esse Estado
Capitalista, lembra-nos Althusser, funciona não apenas com esse núcleo – o
Aparelho Repressivo de Estado (ARE). A reprodução capitalista também
exige outros aparelhos (públicos e também “privados”) que funcionam,

68
Cem Flores (cemflores.org)

sobretudo (mas não somente!), pela ideologia. Dentre eles o Aparelho


Ideológico de Estado (AIE) escolar.

Como o capitalismo é uma sociedade dividida em classes, sua educação


se define pela preparação das futuras gerações para ocupar lugares
antagônicos nas relações de produção. Ou seja, de modo geral, a
educação reproduz o capitalismo ao fornecer e preparar filhos/filhas
para ocuparem, fundamentalmente, as posições de classe burguesas e
proletárias.

Essa reprodução não é apenas via qualificação técnica, que corresponde,


por sua vez, às necessidades do capital, sempre contextualizadas histórica e
geograficamente. Como afirma Poulantzas (1975, p. 36) [3]: “a reprodução
dos agentes, principalmente a famosa ‗qualificação‘ dos agentes da
própria produção, não se refere a uma simples ‗divisão técnica‘ do
trabalho – uma formação técnica – mas constitui uma efetiva qualificação-
sujeição que se estende às relações políticas e ideológicas”. Ou seja, a
educação não apenas prepara a maioria dos alunos para serem
explorados (proletários) e uma minoria para serem exploradores
(burgueses e seus “gerentes”), mas também para verem como natural
tal realidade, fundamentar a dominação e a sujeição necessários à
sustentação da ordem burguesa.

O papel conservador do AIE escolar, profundamente dividido em duas


redes de ensino principais, correspondente à formação das duas classes
fundamentais e por isso com propósitos e muitas vezes até instituições
diferentes, é camuflado pelos mitos de meritocracia e de uma suposta
igualdade dentro desse aparelho, visto como “único”. O “sucesso” ou
“fracasso” nele, inclusive, serve de justificativa para as abismais
desigualdades de classe.

Os comunistas não podem nunca esquecer a luta de classes (Mao), e,


portanto, “o conceito marxista de ideologia implica luta ideológica” [4]. A
luta de classes proletária também repercute e se efetua, de múltiplas
formas, no AIE escolar. Para responder aos ataques burgueses nesse
campo, a classe operária, personificada em seus filhos e membros mais
novos, reage, ora tornando-se um “problema de indisciplina” isolado, ora
ocupando as escolas inteiras, como comentaremos a seguir.

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O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

O sistema educacional brasileiro é ilustrativo para se demonstrar as teses


gerais acima. Como um AIE capitalista, reproduz suas relações de
produção e de classe em correspondência às exigências conjunturais e sob
os efeitos da luta de classes.

O sistema educacional brasileiro


O atual sistema educacional brasileiro é um enorme aparelho, com
instituições públicas e privadas, civis e militares, presente em todos os
cantos do país. Esse sistema se divide principalmente em dois “níveis”: a
educação básica (Infantil, Fundamental e Médio) e a educação superior
(Graduação, sobretudo). E possui diversas modalidades, como a Educação
de Jovens e Adultos, a Distância, Especial, etc.

 Perfil da educação básica e da educação superior

Segundo o Censo Escolar (INEP), em 2018, a educação básica tinha 48,5


milhões de estudantes, 2,2 milhões de professores, em 181,9 mil
instituições. O fato da população estudantil da educação básica ser
equivalente a pouco mais de 23% da população brasileira total já
demonstra, por si só, a importância do AIE escolar para a reprodução
ideológica do sistema de dominação capitalista. A dualidade dos sistemas
de ensino se reflete aqui pelo predomínio absoluto da educação pública
(81% do total de alunos).

A expansão do sistema, nas últimas décadas, também se verifica


pela ampliação dos anos de estudo e da taxa de escolaridade da população.
Segundo o IBGE, em 2015, 98,6% das crianças de 6 a 14 anos estavam na
escola e o grupo de pessoas com 25 anos ou mais na faixa de 11 anos ou
mais de estudo chegou a 43%.

As Notas Estatísticas do Censo da Educação Superior 2017 (INEP)


completam o quadro com os 8,3 milhões de estudantes de graduação do
ensino superior. A dualidade, agora, é invertida, com as instituições
privadas respondendo por 88% do total e por 75% das matrículas (6,2
milhões de alunos e alunas). A expansão ocorrida na última década
beneficiou principalmente os grandes conglomerados como Kroton,

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Cem Flores (cemflores.org)

Estácio, Unip e Ser Educacional. Os cinco maiores grupos privados do


ensino superior – fruto de diversas fusões e aquisições (centralização de
capital) – já respondiam por mais de um terço das matrículas em 2016, com
receita líquida superior a R$14 bilhões. Eis os verdadeiros beneficiários da
“Pátria Educadora” de Dilma…

O sistema educacional brasileiro hoje, portanto, consiste em educação


pública de baixa qualidade para quase 40 milhões de futuros
trabalhadores, aos quais está reservada a massa dos empregos de baixa
qualidade/qualificação/rendimento e, sobretudo, em educação privada
de baixa qualidade para os 3% da população matriculados nas
faculdades particulares, que acalentam e se frustram com o sonho de
vida mais digna.

Todavia, esse retrato muito geral do sistema educacional brasileiro esconde


algumas características fundamentais, principalmente o seu papel na
reprodução das classes.

 Escola como aparelho para a conservação das posições de classe

Para uma parcela imensa da população, aqueles das classes dominadas,


mais anos de estudo ou maior permanência na escola podem não significar
muita coisa. Primeiro, por conta das altas taxas de evasão, reprovação e
defasagem idade-série. Passam-se muitos anos na escola, mas sem de fato
avançar no sistema. Em 2017, um terço dos alunos do 1º ano do ensino
médio estavam com atraso escolar de 2 anos ou mais.

Se considerarmos a educação superior, as coisas pioram ainda mais.


Mesmo após a última expansão de vagas (sobretudo no setor privado
lucrativo, estimulada pelo Prouni, Fies, BNDES… [5]), a porcentagem de
população jovem nesse nível é muito baixa e profundamente
desigual. Menos de 20% das pessoas com 18 a 24 anos estão matriculadas
em alguma instituição de ensino superior– onde a renda é forte
determinante na possibilidade de acesso e permanência [6]. Segundo
relatório da OCDE, em 2017, o Brasil possui baixíssima porcentagem de
adultos (25-34 anos) com educação superior, encontrando-se atrás de países
como Colômbia e Costa Rica.

71
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Quando se trata da reprodução das classes sociais no AIE escolar, no


entanto, a “qualidade” e os “resultados” a que chegam ambas as classes
nessa trajetória são também bem díspares.

Segundo IBGE, a taxa de analfabetismo está estacionada em 7% da


população com mais de 15 anos. Mas cerca de 30% da população é
analfabeta funcional (incapacidade de ler e compreender mensagens e
textos simples). Quase 40 milhões de pessoas entre 15 a 64 anos! Já
podemos imaginar a qual classe pertence a imensa maioria desses
analfabetos funcionais. Ou seja, parcela considerável dos trabalhadores
brasileiros ainda se encontra, na prática, no analfabetismo, mesmo com
elevação de anos na escola.

Na educação básica, as instituições privadas, voltadas para a burguesia e


camadas médias mais elevadas, possuem os melhores resultados nas
avaliações estatais como o IDEB (que leva em conta taxa de aprovação e
rendimento dos estudantes em exames nacionais). Até porque contam, entre
outros fatores citados, com melhor estrutura (laboratórios, bibliotecas,
quadras, equipamentos didáticos de qualidade etc.). E serão esses alunos
que, em sua maioria, ocuparão as vagas dos cursos e instituições mais
privilegiadas no nível superior.

Resumindo, para a maioria da população, o sistema de ensino é muito


mais uma armadilha que uma “escada”. Atraso, repetição, poucas
chances de entrar nos últimos níveis. Suas difíceis condições de vida e
trabalho são razões mais que suficientes para o “insucesso” nesse aparelho,
que também é moldado para conservá-las. O difícil acesso aos diplomas,
pouco valorizados, afeta basicamente em qual “nicho” da base do mercado
de trabalho irá ser explorada essa imensa parcela da população (com maior
ou menor dificuldade). E as “aberrações”, como os milhões analfabetos
funcionais ou o baixo acesso à educação superior, correspondem ao
baixo nível de qualificação técnica exigido para a maioria dos
empregos em um país dominado.

Enquanto para a minoria (burguesa e de camadas médias mais elevadas) a


trajetória escolar é mais longa, avança progressivamente, e com altas
chances de reprodução, legitimada pelos diplomas, de classe. Por isso, esse
sistema já é “democrático”, “meritocrático” e “funciona” perfeitamente
para seus membros.

72
Cem Flores (cemflores.org)

Panorama da intensificação da luta de classes no AIE escolar


brasileiro
A reprodução do sistema capitalista deve ser vista não só em seu aspecto de
conservação e manutenção da ordem burguesa, mas também sob o da
resistência das classes dominadas, mesmo que em nível espontâneo e
pouco organizado.

Desse ponto de vista, o AIE escolar torna-se, ao mesmo tempo, efeito de


uma necessidade burguesa (técnica: preparação de quadros e trabalhadores
para o mercado de trabalho, atender capitais envolvidos com a atividade
educacional; ideológica: impor sua cultura, manter aparência de
“democracia” e igualdades de oportunidade) e, também, fruto de demandas
e lutas das classes dominadas. Lutar “por educação”, via movimento
estudantil, sindical (professores), comunitário etc., é, para os setores
populares, lutar por melhores condições de vida, na esperança de um
emprego menos pior, e até por “salário indireto” (escola como sinônimo de
estadia e alimentação por certo período do dia, por vezes transporte gratuito
etc.). E, por que não?, lutar para acessar conhecimentos necessários à luta
contra o inimigo de classe.

Em nosso país, a frustração/descontentamento das classes dominadas,


diante da expansão do sistema que não entregou o que a propaganda
ideológica prometia, e a posterior crise na acumulação (crise econômica) e
também na dominação burguesa (crise política) intensificaram não só a luta
de classes no geral (greves, manifestações, de um lado, ataques da
burguesia e reformas, de outro). A luta no AIE escolar também se elevou,
acirrando as contradições no mesmo.

Debrucemo-nos sobre alguns eventos que evidenciam essa tese.

Já nas manifestações de 2013, uma frustração específica em relação à


educação já podia ser vista pelas ruas. Alguns dos motes presentes
foram “Da Copa do Mundo eu abro mão, quero dinheiro pra saúde e
educação!”, “Queremos escola pública padrão FIFA!”, “Não é mole, não.
Tem dinheiro pra estádio e cadê a educação?”. Os astronômicos gastos
com megaeventos esportivos contrastavam com a deterioração crônica dos
serviços públicos (que piorariam ainda mais com a crise fiscal que ainda

73
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

não se anunciava…) nas periferias e centros urbanos, gerando a justa


revolta popular.

Vários dos manifestantes eram jovens estudantes-trabalhadores, que


sentiam na pele o engodo da promessa petista. Na pesquisa feita pelo
IBOPE em oito capitais com protestos, em 20/06/2013, 49% dos
manifestantes tinha ensino superior incompleto; 46% tinham renda familiar
mensal até 5 salários mínimos; 43%, até 24 anos. Submetidos a jornadas de
deslocamento-trabalho-estudo dignas de um operário do século XIX, esses
jovens foram para a rua não só protestar contra o aumento de passagem e a
violência policial, mas também para expressarem seu descontentamento
frente à precariedade do trabalho (normalmente longe do sindicalismo
oficial/pelego) e as poucas oportunidades trazidas com mais anos de
escolarização.

O DIEESE, de certa forma, resumiu o “espírito” da revolta desses jovens:


“A relação do jovem com o mundo do trabalho revela uma experiência
paradoxal, uma vez que as expectativas de ampliação de oportunidades –
com a possibilidade de uma carreira promissora por meio da formação
escolar – são frustradas diante dos postos de trabalho precarizados, que
usam da força de trabalho jovem sem assegurar direitos ou contemplar um
patamar mínimo de qualidade no emprego”. Afinal de contas, o que essa
geração das classes dominadas percebeu é que o diploma do ensino
superior já não era sinônimo de se tornar “dotô”, como nos tempos de seus
avós; ou de ter um emprego mais seguro, como na época de seus pais. O
diploma, agora, para aqueles que o alcançaram via Fies, significava sim
uma dívida gigantesca! Já o ensino médio, conquistado com muito
sacrifício e custo, não se tornara nada mais que um requisito obrigatório
para serviços insalubres e degradantes.

Essas tensões e contradições se tornaram ainda mais explosivas com a


recessão que, para os estudantes e jovens das classes dominadas, tem
significado menos verbas para a educação e programas de expansão da
educação superior, ampliação da concorrência no mercado de trabalho…
Empurrando-os para o desalento, o desemprego, a informalidade, o
subemprego – quando não para a criminalidade e o genocídio de jovens
pobres e negros em nosso país. E, quando se tem conseguido emprego, uma
enorme parcela é em áreas fora ou aquém de sua formação.

74
Cem Flores (cemflores.org)

Foi em plena crise, em 2016, com o sistema político já combalido e com a


proposta do governo de impor um teto de gastos federais (o “oposto” do
exigido em 2013) que se massifica outra onda de manifestações, agora
propriamente estudantis [7], pelo país: as ocupações de centenas escolas,
institutos e universidades públicas.

Essa tática já tinha ocorrido nas Reitorias de Universidades durante o


período petista, mas também em 2015, em São Paulo, que resultou numa
retumbante vitória dos estudantes de escolas públicas e comunidades que
sofreriam com a “reorganização” do sistema pelos tucanos (analisamos o
tema em nosso site). Mas foi em 2016 que essa luta alcançou um patamar
nacional e com poucos paralelos. Mais uma vez, os membros mais jovens
da classe operária e demais exploradas falavam, sobretudo, através de suas
ações, que algo estava errado. Que aquele espaço que ocupavam não estava
servindo aos seus interesses, ao seu futuro, e que tomariam o que era de
fato seu – inclusive reconstruindo a vida escolar e as atividades didáticas
durante a ocupação.

Concomitante a essas ações radicalizadas do lado das classes


dominadas, que ocorreram na ausência de uma posição proletária
consolidada, uma forte reação burguesa, tocada pelos setores de direita
e extrema-direita, também se verificou. Ora, tal reação, como vimos, está
relacionada ao contexto mais geral de crise/ofensiva capitalista que nesses
anos se desenvolveu. Tais forças políticas conservadoras inclusive
disputaram a todo o momento o descontentamento popular contra o suposto
“governo de esquerda” do PT. Disputando, assim, a direção e sentido
dessas lutas. Vejamos algumas das principais forças políticas
conservadoras.

O movimento Escola sem Partido foi lançado em 2004, por um advogado


inspirado em movimentos semelhantes nos EUA, que se voltou contra uma
suposta doutrinação política de esquerda (sic!) nas escolas. No Brasil, ao
longo dos últimos anos, inspirou vários projetos de leis, elegeu
parlamentares e vem consolidando uma nova cultura de denúncia e
perseguição de docentes, tanto em instituições públicas, quanto privadas.
Concomitante e articulando-se ao macarthismo tupiniquim, movimentos
religiosos e conservadores retomam uma ofensiva em “defesa da família”
(burguesa, e seu moralismo e preconceitos de efeitos mais bárbaros e
violentos) e contra uma inventada “ideologia de gênero” nas escolas.

75
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Além e somado a esse movimento reacionário, tem-se a militarização das


escolas civis e o crescimento da direita no movimento estudantil.

Em Goiás, em 2013 já existiam 8 escolas com gestão militarizada. Em


2018, esse número era 46. Já em levantamento da revista Época, “de 2013
a 2018, o número de escolas estaduais geridas pela Polícia Militar saltou
de 39 para 122 em 14 estados da Federação — um aumento de 212%. Em
2019, outras 70 escolas deverão ser colocadas sob a gestão de militares
nesses estados. O fenômeno se reproduz por todo o país, mas com mais
intensidade nos estados do Norte e do Centro-Oeste. Amazonas já conta
com 15 escolas administradas pela PM. Mato Grosso pretende criar cinco
escolas da PM no segundo semestre. Em Roraima, das 382 escolas da rede
estadual de ensino, 18 unidades foram militarizadas, totalizando 20 mil
alunos sob jurisdição militar”. O número é ainda irrisório tendo em vista o
tamanho do sistema, mas cresce em alta velocidade.

Em 2009, uma chapa de direita, ligada a movimentos liberais e grupos


empresariais, venceu a eleição para o DCE da UFRGS. Anos depois, o
movimento estudantil de direita nas universidades e escolas – inclusive o
MBL possui origem nesse tipo de movimento – se ampliou e se
consolidou.

Esses vários e diversos movimentos devem ser entendidos enquanto


integrados numa mesma ofensiva burguesa, relacionados às lutas das
classes dominadas que impactam ou ocorreram e ocorrem no AIE
escolar. Objetivamente:

1. A Escola sem Partido visa à censura nas escolas e aos


professores. Maior controle dos conteúdos é visto como instrumento
para combater quaisquer valores e/ou conhecimentos científicos que,
minimamente, contradigam a ordem burguesa, como ir de encontro,
por exemplo, a outros AIE, como o familiar e o religioso.
2. A militarização das escolas reforça o aspecto repressivo do AIE
escolar. Na realidade, realiza uma espécie de fusão entre aparato
repressivo-militar com o ideológico. Isso fortalece a
disciplinarização da futura força de trabalho, propagação de valores
patrióticos burgueses e auxilia a censura e repressão não só do
movimento estudantil quanto do sindical. É uma ação do Estado que
aumenta sua presença e diminui a autonomia das comunidades.

76
Cem Flores (cemflores.org)

3. Os movimentos estudantis de direita servem ao mesmo propósito


de disputa política e ideológica pró-burguesia, através da
mobilização e organização estudantil sob sua direção e combate
direto e real a organizações mais alinhadas à esquerda.

De uma forma geral, tais movimentos ocorrem, objetivamente, em


resposta/luta frente às ondas de protestos e insatisfação, sobretudo no AIE
escolar; reforçam a ideologia e o poder físico da burguesia nesse AIE;
visam reformular os parâmetros da qualificação dos agentes (não só
técnica, mas com ideologia mais abertamente burguesa e mais submissão
política) para o novo momento da acumulação capitalista. E essas
tendências se reforçaram com a subida de Bolsonaro no poder.

Tais ações, lembremos, têm ocorrido em contexto de grave crise


capitalista no país. E esta não só afeta as probabilidades de reprodução
e ascensão das camadas médias, como também abre as portas para a
ingovernabilidade burguesa. Para a burguesia, apoiar o reforço de sua
dominação é algo previsível. E para as camadas médias, reagir às ameaças
democratizantes (mesmo que ilusórias, limitadas) é uma forma de
garantirem seus pequenos privilégios via diplomas e manterem as
instituições de ensino sob uma ideologia mais condizente consigo. O bom
grado com que as camadas médias veem as escolas com disciplina militar
se explica não só pelo fetichismo da ordem e os gastos e investimentos
extras que possibilitam se distinguir da massa, mas também pelos efeitos
acadêmicos positivos que geram – os alunos “problemas” tendem a ser
expulsos, impede-se atrasados de terem aulas… um “paraíso” para quem
quer apenas “sucesso” individual nesse AIE! [8]

As camadas populares, que em parte votaram em Bolsonaro na


esperança/desespero de “mudança”, encontram-se sob forte
desorganização e estão mais suscetíveis à ideologia burguesa – e às
novas formas de engodo em voga. Ao mesmo tempo, seu apoio é mais
pragmático e vinculado a necessidades emergenciais. Por exemplo, na
aprovação da comunidade em relação à militarização de algumas escolas
em Brasília, a mudança na gestão ocorre em situações que a escola já não
consegue garantir segurança às crianças e jovens – e a PM propõe soluções
imediatas.

77
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

A nova fase que se desenha: o MEC reestruturado e a


resistência necessária
Os Bolsonaros construíram sua “carreira” parlamentar na defesa do
anticomunismo, da ditatura militar, do revisionismo histórico desse período
e do aparelho repressivo, inclusive as milícias. Durante os últimos anos, e
em especial desde a campanha eleitoral, passaram a integrar no seu
“programa” e em sua base eleitoral, todos esses movimentos de direita, seja
o Escola Sem Partido e os conservadores religiosos, seja a direita mais
liberal estudantil, e as propostas de militarização de escolas civis.

Obviamente, entre todos esses grupos ocorrem contradições, discordâncias


e tensões – ver a atual dança das cadeiras no MEC. Mas há uma unidade
fundamental. Como vimos, uma unidade de classe.

Essa unidade foi expressa não só pelo apoio unânime de tais setores à
eleição do fascista, mas também pelo programa e início do novo governo
que, como dissemos acima, dá mais voz e corpo (e cargos e sinecuras!) a
esses movimentos e bandeiras.

Se pudéssemos resumir os aspectos fundamentais da política


educacional de Bolsonaro que se desponta, os seguintes eixos se
destacariam:

1) ampliar o caráter tecnicista do ensino, como forma de melhor


adequá-lo às necessidades da reprodução do capital hoje no Brasil;

2) reduzir o custo desse ensino, ajustando-se às restrições fiscais das


reformas econômicas;

3) censurar vozes divergentes, sob pretexto de combater a hegemonia


da esquerda (sic!) no AIE escolar;

4) por meio de um civismo requentado, buscar pacificar, tornar


passivos, os filhos dos operários e demais classes dominadas; e

5) militarizar as escolas, reforçando o ARE.

Ora, já vimos que os pontos 1 e 2 vêm sendo agravados desde o


aprofundamento da crise econômica/política. O item 3 avança em várias
instituições e estados, assim como os pontos 4 e 5, que se confluem nas
escolas que aplicaram convênio com militares.

78
Cem Flores (cemflores.org)

E todos esses pontos possuem apoio político em suas bases eleitorais.


Inclusive, já na campanha eleitoral, Bolsonaro os defendia. Sua propaganda
partia do pressuposto de que era preciso uma profunda mudança no sistema
educacional, que já recebia bastante recursos. Se pareciam insuficientes, é
porque os professores-militantes estavam a desviar seu verdadeiro
propósito. O foco deveria ser a educação básica (ou seja, que se continue
um nível superior elitista e privatizado) e os conteúdos essenciais para
prepararem os alunos para o mercado de trabalho. E para atingir isso, era
preciso combater a doutrinação ideológica e “sexualização precoce” dos
estudantes e ao mesmo tempo resgatar a autoridade do professor (o que não
é “militante”!).

Em suas propostas, constava também o aumento das escolas militares,


impedir a aprovação automática (presente em algumas séries como
mecanismo pedagógico alternativo à reprovação) e “expurgar a ideologia
de Paulo Freire”, um dos responsáveis pelo “comunismo” (sic!) na
educação.

A indicação dos nomes para o comando da educação – e do seu orçamento


de mais de R$100 bilhões por ano– foi fruto de enorme disputa, com
pressões das alas mais liberais às mais conservadoras, inclusive militares.
“Venceu” (provisoriamente) Ricardo Vélez Rodríguez, nome apreciado
(provisoriamente) pelo guru da direita conservadora, Olavo de Carvalho.
Rodríguez é um religioso anticomunista integrante da educação militar e
entusiasta da militarização das escolas, inclusive com o exército se preciso
for e defensor do Escola sem Partido.

Em seu texto, Um roteiro para o MEC, além de alfinetar as alas mais


liberais da direita e os especialistas da educação, reforça que o objetivo de
Bolsonaro deve ser a “refundação” desse setor, combatendo “uma
doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista…
destinada a desmontar os valores tradicionais da nossa sociedade, no que
tange à preservação da vida, da família, da religião, da cidadania, em
soma, do patriotismo”.

Desde sua nomeação e reestruturação do MEC, bichos conservadores de


todas as espécies saíram de seus lixos para ocuparem cadeiras centrais do
sistema educacional, em consonância com o Ministério “irmão” da
“Mulher”. As propostas e medidas mais esdrúxulas são de

79
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

acompanhamento diário da mídia, e não nos cabe remontar o circo.


Focaremos nas tendências e questões que nos parecem fundamentais.

O jornalista Leandro Beguoci, do site Nova Escola, fez uma análise de


algumas obras de Vélez que, de certa forma, sintetizam as perspectivas
gerais do novo MEC:

“para Vélez Rodríguez, a educação aparece, principalmente, como um


tema de segurança [nacional, portanto, burguesa] e desenvolvimento
econômico. Isso explica por que, em alguns livros, Vélez critica as
políticas de universalização de todas as etapas de ensino. Para o
professor, é melhor garantir a qualidade em poucas etapas do que
universalizar todas elas de uma vez. Educação não é necessariamente um
direito, mas uma obrigação do Estado, fundamental para manter sua
própria existência. E isso, sempre é bom lembrar, é ideológico e casa com
a visão de mundo de várias alas das Forças Armadas. Vélez é professor
emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército”.

Na mesma matéria encontramos o seguinte trecho de “O Republicanismo


Brasileiro”, livro de Vélez de 2015:

“A experiência dos países que formam parte do mundo desenvolvido


sugere que o ensino fundamental garante a homogeneidade cultural, o
regular funcionamento do sistema democrático…, bem como a
produtividade do trabalho. Por ter apostado demais no ensino
superior, tendo descuidado do ensino básico, hoje vemos uma
universidade em crise continuada e um país perplexo diante dos reptos que
a modernidade impõe”.

Podemos, claramente, substituir a vagueza do termo “segurança” por


“repressão e ordem burguesas”. Ou seja, a educação servindo de forma
mais intensa à reprodução da ordem burguesa, de forma mais
ofensiva.

O objetivo central do novo MEC – após análise das bases políticas da


reforma educacional, dos eixos da política educacional de Bolsonaro e, por
fim, da posição do novo Ministro – parece ser: além de tentar a todo custo
censurar e eliminar seus inimigos políticos e ideológicos do sistema
(inclusive lançando mão de uma nova Lava Jato), ampliar para as classes
dominadas um modelo básico e tecnicista de ensino (“capacitação

80
Cem Flores (cemflores.org)

profissional”), de menor custo, e sob reforço do assujeitamento


ideológico (“civismo”) [9].

Isso se consolida na proposta e nova pasta do MEC, a de Subsecretaria de


Fomento às Escolas Cívico-Militares, espécie de curinga da reacionária
reforma educacional. Aliás, segundo o governo, o ministério terá papel
auxiliar dos municípios e estados, basicamente estimulando a militarização
da educação pública e um modelo de gestão mais repressivo e de melhor
custo-benefício.

Como ressaltamos, tais medidas são, em si, ações na luta de classes. Em


período de crise, uma maior “eficácia” dos custos com a reprodução da
força de trabalho e dos gastos do Estado com a mesma é algo que
objetivamente atende à acumulação capitalista. O mesmo ocorre na
proposta de formar as novas gerações de trabalhadores em um sistema mais
repressivo política e ideologicamente.

Somado a outros ataques da ofensiva burguesa na qual passamos, tais


propostas da educação precisam ser alvo de luta e resistência, dentro e
fora do AIE escolar. Desenvolver as lutas, com alunos, professores e
comunidade, que ocorreram neste aparelho nos últimos anos é
essencial.

81
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

[1]
A matéria traz as seguintes declarações textuais do deputado Sóstenes Cavalcanti
(DEM-RJ), um dos líderes da bancada evangélica:
– “Nós não vamos indicar qualquer nome, mas nos sentimos no direito de vetar quem
for de outro campo ideológico porque ajudamos a construir a candidatura de
Bolsonaro”;
– “Queremos que o governo dê certo na economia, isso é importante. Mas demoramos
para chegar a um governo ideologicamente afinado conosco, não vamos deixar que o
cérebro dele, que é o Ministério da Educação, fique com a esquerda”;
– “Para nós, o futuro governo pode errar no que quiser, menos no Ministério da
Educação”. (https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/bancada-evangelica-tem-
direito-a-vetar-ministro-da-educacao-diz-deputado/).
O deputado parece identificar perfeitamente o papel do Aparelho Ideológico de Estado
escolar para a reprodução do capital e a luta de classes…
[2]
Recomendamos aos camaradas o seguinte texto sobre o tema,
do Lavrapalavra: https://lavrapalavra.com/2018/06/15/as-contribuicoes-do-marxismo-
althusseriano-para-o-debate-sobre-o-aparelho-escolar-na-sociedade-capitalista-notas-
introdutorias/.
[3]
POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo hoje. São Paulo: Zahar,
1975.
[4]
BAUDELOT, Christian; ESTABLET, Roger. La escuela capitalista. 10. ed. México:
Siglo XXI, 1987.
[5]
Aliás, a política petista para a educação pariu nada mais, nada menos, que o maior
monopólio educacional do mundo: a Kroton. https://exame.abril.com.br/revista-
exame/redes-privadas-de-ensino-ganharam-fortunas-com-governo/.
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/06/conglomerados-do-ensino-superior-
avancam-sobre-a-educacao-basica.shtml.
[6]
Ver esse estudo do
IPEA: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3021/1/TD_1950.pdf.
[7]
Mas não só: no Paraná, por exemplo, se combinou com forte greve dos professores da
educação básica. Houve também uma Greve Geral da Educação em 2017.
[8]
“Fica um grupo muito seleto e relativamente homogêneo, que não é a realidade da
maior parte das escolas, por isso o desempenho final desses alunos tende a ser maior“,
diz professor da USP entrevistado na seguinte
matéria: https://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2019/03/escolas-militares-
modelo-excludente-educacao.
[9]
Isso também compreende eliminar referências a indígenas, negros, mulheres, LGBT.
Trata-se para o novo governo não só de desvio de recursos para o essencial como
também politicamente um perigo. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2019/01/02/velez-confirma-desmonte-de-secretaria-da-diversidade-apos-tuite-
bolsonaro.htm. Sem contar o revisionismo histórico, uma das metas incessantes dos
militares: https://apublica.org/2018/11/para-criticos-objetivo-do-escola-sem-partido-e-
reescrever-historia-da-ditadura/.

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Cem Flores (cemflores.org)

Aumento da repressão à população pobre


e trabalhadora como necessidade do
capital em crise: programa do governo
Bolsonaro.

Jair Bolsonaro sempre se caracterizou pela apologia da violência do


opressor contra o oprimido, pela apologia da violência de Estado.
Pela defesa da violência de Estado, em todas as suas formas (ditadura
militar, assassinatos, torturas, agressões), seja mediante o aparelho
repressor formal (Forças Armadas e polícias), seja pelo uso de sua “força
auxiliar”, semiclandestina (esquadrões da morte, pistoleiros, milícias).

Nada a estranhar, portanto, quando a campanha eleitoral do ano passado


resultou em recorde de violência, incluindo assassinatos, como o do mestre
capoeirista Moa do Katendê. No governo, Bolsonaro busca concretizar seu
programa, por meio do decreto legalizando e estimulando a posse de armas,

83
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

em especial no campo; com o projeto “anticrime” do Ministro da Justiça e


Segurança Pública, Sérgio Moro, na verdade, uma licença para matar para
policiais; com o reforço do aparato repressivo contra manifestações
populares; e com as reiteradas demonstrações de apoio à crescente e cada
vez mais letal ação repressiva do Estado, inclusive a recente negação dos
fatos– no caso do assassinato, pelo Exército Brasileiro, aos risos, do músico
Evaldo Rosa e do catador Luciano Moraes.

A base material na qual essa apologia da repressão se baseia – e que


garante popularidade aos seus defensores (Bolsonaro e família, Wilson
Witzel, governador do Rio de Janeiro, bancada da bala nos legislativos
federal e estaduais, etc.) junto às classes dominantes a às camadas médias –
é a extrema violência da sociedade brasileira e o medo dessas classes de
que essa violência extrapole as favelas e periferias, chegue aos seus bairros
elegantes e atinja os seus. Mas isso já aconteceu faz tempo… Daí o apoio
entusiasmado dessas classes ao aumento da repressão, legal e ilegal,
comprovado cotidianamente através de incontáveis exemplos.

 A extrema violência do capitalismo brasileiro

O que já deve estar claro, mas ainda assim deve ser explicitado, é que “a
extrema violência da sociedade brasileira”, na verdade, é a extrema
violência do capitalismo brasileiro. Ou seja, a violência é causada, de
um lado, pelas condições bárbaras de vida impostas às classes
exploradas (desemprego, miséria, fome); de outro, tem um caráter de
repressão de classe, pela resposta repressiva da classe dominante por
meio de seu Estado, e de contínuo controle social. Essa repressão,
portanto, é apoiada e estimulada pelas classes dominantes e por uma
crescente maioria das camadas médias, e dirigida contra as classes
dominadas.

 Repressão de classe e reprodução do capitalismo

Essa violência/repressão do Estado cumpre, portanto, um papel na


sociedade capitalista. Ela é responsável por garantir a reprodução
84
Cem Flores (cemflores.org)

dessa sociedade de classes, mantendo os dominantes e os dominados


enquanto tais.

Como vamos ver mais à frente neste texto, o programa de governo de


Bolsonaro não quer eliminar “a violência”, mas sim reforçar e aprimorar
esse papel, essa função, da violência e da repressão, reforçá-lo em prol das
classes dominantes. Para isso, suas propostas de reformas legais e
parlamentares – entre elas, a licença para a polícia matar do projeto
“anticrime” de Moro – se articulam ao apoio (implícito, porém
entusiasmado!) a um programa informal, ilegal e semiclandestino do
governo, do Estado em seus diversos níveis (executivo federal e estaduais,
judiciário, etc.), das forças armadas, das polícias de um modo geral, das
milícias, com forte apoio das camadas médias e das classes dominantes.
Esse programa é o dos abusos de autoridade, das chantagens e extorsões, da
corrupção, da violência, das torturas e dos assassinatos que vivemos e
sofremos cotidianamente. Portanto, Bolsonaro/Moro nem de longe
apresentam soluções reais aos problemas concretos do povo
trabalhador e pobre das periferias das grandes cidades e do campo,
que vive, faz tempo, em estado de guerra civil, na qual são os alvos
privilegiados.

Essa violência/repressão de Estado, além de garantir, em geral, a


reprodução do capitalismo brasileiro, também contribui para garantir
a reprodução das suas características específicas, tais como sua radical
desigualdade (renda, trabalho, moradia, condições de vida), seu machismo,
conservadorismo e preconceito (daí o racismo, os feminicídios, os crimes
contra a população LGBT, etc.), e a própria herança de sua constituição
histórica baseada na extrema violência, na exclusão (semi)absoluta da
grande maioria da população e na repressão à organização e manifestação.
Além de também ser uma necessidade na atual conjuntura de crise
econômica, de até aqui frustradas tentativas de retomada da acumulação do
capital, quando a burguesia precisa se lançar na violenta ofensiva contra as
classes dominadas, em todas as frentes e sob todas as formas possíveis (não
descartando, inclusive, estados de exceção).

Essa maioria de excluídos é constituída pelas classes dominadas no país,


pelos trabalhadores do campo e da cidade, pelos indígenas, pelos

85
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

moradores das periferias das (grandes) cidades. E essa maioria tem cor,
são…

… mulatos

E outros quase brancos

Tratados como pretos

Só pra mostrar aos outros quase pretos

(E são quase todos pretos)

E aos quase brancos pobres como pretos

Como é que pretos, pobres e mulatos

E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados

… são quase todos pretos

Ou quase pretos

Ou quase brancos quase pretos de tão pobres

E pobres são como podres

E todos sabem como se tratam os pretos.

(Gilberto Gil e Caetano Veloso)

A tarefa obrigatória dos comunistas, de seguir os passos de Lênin e fazer “o


que é a própria essência, a alma viva do marxismo: a análise concreta de
uma situação concreta” nos leva a buscar esboçar as relações e
interligações dessa estrutura dual de violência/repressão no Brasil
(formal/informal, legal/semiclandestina), que o governo Bolsonaro
pretende reforçar no contexto atual de profunda e prolongada crise
econômica e crise política no país desde, pelo menos, 2013.

Esta análise se soma aos textos anteriores para traçar um panorama do


início do governo Bolsonaro e seu programa – mostrando seu caráter
de classe, de governo burguês, de extrema-direita, inimigo da classe

86
Cem Flores (cemflores.org)

operária e das demais classes dominadas– e buscar contribuir para


construir um programa e uma organização de resistência e de luta da
classe operária e dos trabalhadores do campo e da cidade; da mulher
trabalhadora, duplamente explorada; da juventude sem escola nem
emprego; dos negros pobres sobre os quais recai com vigor redobrado o
peso da exploração; da comunidade LGBT das periferias; em suma, de
todas as classes e camadas exploradas e oprimidas de nosso país.

O aparelho repressor de estado (ARE) capitalista


Um aspecto central da teoria marxista é a tese de que as sociedades
divididas em classes produzem Estados a serviço das classes
dominantes, para perpetuar sua dominação, para oprimir as classes
dominadas. Daí Marx definir Estado, em geral, como “um órgão de
dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra”,
responsável pela “criação da ‗ordem‘ que legaliza e garante essa
opressão”. Da mesma forma, Lênin: “O Estado é uma organização
especial da força, uma organização da violência para reprimir a outra
classe”. Ao tratar do capitalismo, Engels especifica essas classes na
atuação do Estado moderno: “o moderno Estado representativo é o
instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho
assalariado”[1].

É a luta entre as classes antagônicas, inerente a todas as sociedades de


classe, que torna necessário o Estado como órgão de dominação de
uma classe (dominante) sobre outras (dominadas), luta de classes que
ocorre em todos os níveis (na produção, ou seja, no nível econômico,
mas também nos níveis político, ideológico). Para que essa dominação
seja perpetuada, é necessário garantir a contínua reprodução do sistema
(capitalista), reprodução de suas classes enquanto tais
(dominantes/dominadas) e de seus respectivos lugares nas relações de
produção/exploração (burguesia/proletariado). O aparelho de Estado tem,
portanto, outro papel fundamental, o de “garantir a perpetuação da
exploração dos proletários e outros trabalhadores assalariados, isto é,

87
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

garantir a perpetuação, portanto, a reprodução, das relações de produção


que, ao mesmo tempo, são relações de exploração”[2].

Para garantir essa “perpetuação da exploração”, os aparelhos de Estado


atuam nos diversos níveis em que ocorre a luta de classes e podem ser
divididos em dois tipos, conforme sua forma predominante (mas não
exclusiva) de atuação: os aparelhos ideológicos de Estado (AIE)–
buscamos discutir as modificações que o governo Bolsonaro propõe para
um dos mais importantes, o AIE escolar, no capítulo anterior – e
o aparelho repressor de Estado (ARE), que é o que buscamos analisar
neste texto.

 O papel da ideologia no ARE

Essa dualidade ideologia/repressão é importante pois, embora o


garantidor final do sistema de opressão de classes seja a violência de
classe, a repressão estatal, a manutenção cotidiana do sistema ocorre
principalmente pela dominação ideológica, inculcação da ideologia
dominante, ideologia das classes dominantes, em toda a sociedade,
inclusive as classes dominadas[3]. Dessa forma, mesmo o ARE busca,
sempre, legitimar ideologicamente sua violência, seja pela “defesa da lei e
da ordem” (mesmo em suas ações ilegais), seja pelo “combate ao crime
organizado” (ainda quando combate trabalhadores) ou no “combate à
violência” (ampliando-a). É essa mesma ideologia – e sua base material na
violência cotidiana – que gera na população pobre das periferias a demanda
por mais ações da polícia que a reprime, e que vai gerar seus protestos e
suas manifestações posteriores.

 Composição do ARE

O ARE é a constituição, no Estado, de uma “força especial de repressão”


(Engels) – são inseparáveis, um (Estado) não pode existir sem a outra
(repressão e sua força específica). Daí a afirmação de Lênin de que “o
exército permanente e a polícia são os instrumentos principais da força do
poder estatal”. Mas essa força pública, a ação repressiva do Estado, no
88
Cem Flores (cemflores.org)

entanto, “não está formada apenas por homens armados, mas também por
acessórios materiais, as prisões e as instituições coercitivas de todo
gênero” (Engels). Na época do imperialismo, com o fortalecimento ainda
maior do Estado burguês, Lênin o qualifica de “presídios militares para os
operários”, dada a “monstruosa opressão das massas trabalhadoras pelo
Estado”.

Na nossa conjuntura, o ARE capitalista é o aparelho centralizado – mas não


sem contradições internas![4]– composto pelo governo (Poder Executivo) e
sua burocracia, as três forças armadas, as polícias (federal, militar, civil,
etc.), incluindo a força nacional, os tribunais (Poder Judiciário, Ministério
Público), e o sistema prisional, com o objetivo principal de reprimir pela
violência que for necessária (direta/física, indireta, legal, ilegal)[5] as
ameaças à dominação burguesa.

O sistema prisional desempenha seu papel direto na violência estatal


mediante o encarceramento e a ameaça de encarceramento. Esse papel –
que, de acordo com a ideologia jurídica, está dirigido indiscriminadamente
para toda a sociedade – está voltado, na prática, principalmente para as
camadas proletárias, para os demais trabalhadores assalariados, para os
desempregados e a população pobre e marginalizada. Daí que as condições
concretas dos presídios e demais instituições carcerárias sejam definidas,
em geral, de modo a ficarem ainda piores que as condições de vida e de
reprodução das parcelas mais miseráveis dos trabalhadores. Isso torna
efetiva a violência estatal (no seu objetivo de garantir a reprodução do
capitalismo) ao contribuir para a regulação/contenção do mercado de
trabalho mediante a dupla função de “manter o trabalhador na linha” e
fazê-lo aceitar mesmo as piores condições de exploração existentes. As
prisões podem mesmo funcionar como unidades produtivas, de forma que
nem preso o trabalhador se livre do tormento e da opressão do trabalho.

Por fim, cabe ressaltar que a grave e prolongada crise do capital –


econômica e política – em que vivemos, entre outros aspectos, gera
uma enorme pressão por parte das classes dominantes para a
necessidade de reforço, ampliação e reorganização da atuação do ARE.
De forma simplificada, a piora das condições objetivas de vida das classes
dominadas (aumento do desemprego, substituição do emprego formal pelo

89
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

informal, aumento da pobreza e da miséria), gera tanto mais revolta e


protestos, quanto uma maior criminalidade. O reforço, a ampliação e a
reorganização do ARE é uma resposta das classes dominantes a essas
tendências.

O aparelho repressor de estado (ARE) capitalista no Brasil


A violência/repressão das classes dominantes no Brasil é constitutiva
da nossa formação econômico-social. Sociedade formalmente
escravocrata por quase quatro séculos (ou três quartos da nossa história
desde 1500), o Brasil foi constituído, além dessa “infâmia e cobardia”
(Castro Alves), também pelo virtual extermínio de sua população indígena.
Herdeira dessa cruel epopeia de colonização, escravidão e genocídio (e
resistência!), nossa população negra segue, após cinco séculos, constituindo
grande parte da massa trabalhadora, explorada, reprimida e, também, da
população encarcerada.

No período mais recente dessa história, foi sob a última ditadura


(1964-1985) que se deu a configuração atual, no essencial inalterada,
do ARE brasileiro, fortemente militarizado, com o comando
centralizado da repressão nas mãos das Forças Armadas, contando com as
polícias como forças auxiliares. A dualidade legal/semiclandestino estava
presente tanto na repressão à resistência à ditadura (prisões, torturas e
assassinatos), quanto na atividade de agentes da repressão compondo os
“esquadrões da morte”, para posteriormente passarem à associação com a
contravenção (jogo do bicho, entre outros) e o crime (incluindo o tráfico de
drogas e as atuais milícias). O ARE, com praticamente a mesma
configuração (tendo significativamente reforçada a ação do seu braço
judiciário, especialmente o Ministério Público, após a Constituição de
1988) e mantendo sua dualidade, passou incólume pelo período da
chamada “redemocratização”.

Nesta década, principalmente após o início da crise política e da crise


econômica em 2013/2014, observam-se claramente ações para o reforço
do ARE, seja na sua base legal, seja na sua maior centralização

90
Cem Flores (cemflores.org)

operacional, seja na sua atuação prática e, ainda, no discurso ideológico


para defendê-lo e justificá-lo.

 Aumento da violência e ampliação do ARE

Um fator objetivo indispensável para entender a atuação do ARE, seu


reforço recente e a ideologia que o sustenta é a extrema violência do
capitalismo brasileiro, que pode ser “resumida” na brutal estatística
dos mais de 60 mil homicídios por ano no país. De acordo com o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), foram 63,9 mil homicídios em
2017, último dado disponível. O gráfico [6]abaixo mostra a trajetória de
crescimento constante dos homicídios nos últimos dez anos, acumulando
aumento de 26% nesse período.

A taxa de homicídios por 100 mil habitantes também aumentou, superando


30, bastante acima de dez anos atrás. Com os dados do Atlas da Violência
2018, do Ipea, pode-se decompor essa taxa pela cor do assassinado. Os
estados com a maior taxa foram Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte e
Pará, todos com taxas acima de 50. A taxa de homicídio da população
negra, 40,2, é mais que o dobro da branca (“não negros” para o Atlas), 16.

91
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Se contarmos apenas jovens de 15 a 29 anos, a taxa mais que dobra, para


65,5. Ou seja, é um fato evidente que a extrema violência do
capitalismo brasileiro faz distinção de cor e de classe.

O FBSP, junto com o Núcleo de Violência da USP e o site G1, publica


outra estatística – o Monitor da Violência – de homicídios (os números são
menores e não comparáveis com os do Atlas. Não incluem, por exemplo,
mortes por “intervenção policial”), que já apresenta dados atualizados até
2018. Por essa (outra) série, houve redução do número de homicídios em
2018, para 51,6 mil, queda de 12,8% em relação a 2017. Segundo a
especialista em segurança pública, convidada e desconvidada por Sérgio
Moro, uma das razões para a queda de 2018 foi a consolidação do poder do
Primeiro Comando da Capital (PCC) sobre as facções rivais após as
disputas de 2017 e o aumento de homicídios que essa disputa de facções
havia causado naquele ano.

É sobre essa base material que o reforço do ARE ganha justificação


ideológica e apoio da população, inclusive das classes dominadas, que
sofrem com a ação desse mesmo aparelho repressor. Só que a diretriz com
a qual o ARE opera no nosso país é a de mais violência e mais repressão,
atingindo os mesmos de sempre. Ainda que submersos na ideologia
dominante que justifica essa ação repressiva – e sem o contraponto da
posição proletária organizada e com influência nas massas – a juventude
das periferias sabe, instintivamente, quem é o inimigo: mais da metade dos
jovens, negros e de baixa renda tem medo da polícia.

 O reforço do ARE no Brasil na década de 2010

Sob a ótica do reforço e da ampliação do ARE, podemos dizer que esta


década começou com a política das Unidades de Polícia Pacificadora
(UPP), no Rio de Janeiro – tema que tratamos no texto do site Cadê o(s)
Amarildo(s)?, de setembro de 2013 [7] –, e com a invasão do Morro do
Alemão por tropas do Exército, treinadas no Haiti, e da Polícia Militar do
Rio, com apoio da Marinha e da Aeronáutica, em novembro de 2010. Essa
ação caracterizou a primeira vez, após o fim da ditadura, que as Forças
Armadas voltaram a atuar nas ruas com poder de polícia (patrulhamento,

92
Cem Flores (cemflores.org)

revista, flagrante). Para isso, Lula autorizou a revisão da diretriz de atuação


do Exército e a criação de uma “Força de Pacificação”, explicitando a
subordinação da PM às Forças Armadas. Essa ação ocorreu na sequência
do reforço e da centralização da ação das Forças Armadas, com a nova lei
da defesa, também sancionada por Lula, em agosto de 2010.

A partir de 2013, com o agravamento das crises política e econômica,


houve reforços adicionais na atuação dos ARE, processo iniciado nos
governos petistas, ratificado no de Temer e que Bolsonaro quer
reforçar ainda mais. Só para ficarmos nos marcos principais desse
processo, temos as sucessivas decretações de “estado de exceção” com as
“operações de garantia da lei e da ordem” (GLOs) – ou seja, a
determinação para atuação do Exército nas ruas – e a sanção da Lei
Antiterrorismo, no governo Dilma. Na sequência, já no governo Temer, a
continuidade das GLOs e a radicalização do “estado de exceção” com a
decretação da Intervenção Militar no Rio de Janeiro.

No nosso texto A nova intervenção militar no Rio de Janeiro: reforço da


repressão burguesa no Brasil, de fevereiro de 2018 [8], analisamos esses
fatos e buscamos mostrar o sentido da atuação repressiva desses sucessivos
governos do país:

“A tese que queremos levantar é que vem se constituindo nos


últimos anos, qualquer que seja o governo, um reforço da
presença do aparelho repressivo (Forças Armadas, Polícias
Federal e Estaduais, Militares e Civis, Poder Judiciário,
Ministérios Públicos, etc.) do estado capitalista no Brasil. Esse
reforço se dá pela ampliação da legislação repressiva e pela ação
conjunta e coordenada dessas diversas instâncias. O “exercício”
que está sendo realizado no Rio de Janeiro atualmente –
intervenção federal mais GLO, ou seja, poderes administrativos
mais policiais nas mãos do Exército – é mais um passo adiante
nessa trajetória.”

Sobre a extrema violência do capitalismo brasileiro e sua lógica de


repressão, de exclusão e de controle sobre as classes dominadas, afirmamos
naquele texto do ano passado:

93
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

“A resposta do capitalismo brasileiro à barbárie e à banalização


da violência só pode ser mais violência. Solucionar os problemas
das classes dominadas que alimentam a violência urbana exige a
própria derrota da posição e do poder dos dominantes.

Logo, mais repressão, por mais irracional que pareça aos especialistas, é
a única solução da burguesia em tal cenário e em última instância. Não
só para retomada de regiões e populações ―fora do controle‖, mas
também como salvaguarda para qualquer tentativa de revide político dos
dominados, cuja situação de crise econômica só tende a acirrar tal
tendência”.

Além do reforço do arcabouço legal e de suas operações, a ampliação do


ARE também pode ser vista, por um lado, pelos seus gastos, pelo efetivo
policial e pelo crescimento de sua letalidade e, por outro, no aumento da
população carcerária.

 O aparato policial e sua letalidade

Parecem não existir estatísticas recentes que englobem todo o efetivo


engajado em atividades policiais no Brasil. De acordo com o Perfil dos
Estados e dos Municípios Brasileiros 2014, do IBGE, o total do efetivo das
polícias militares (425,2 mil) e civis (117,6 mil) estaduais ultrapassava
meio milhão no final de 2013. Esse total é dois terços maior que
os estimados 334,5 mil efetivos das Forças Armadas.

Os gastos com segurança pública, também de acordo com o FBSP,


atingiram R$84,7 bilhões em 2017. Apenas para comparação, as despesas
previstas no Orçamento Geral da União para 2017foram de R$110,7
bilhões para a área da Educação e de R$107,3 bilhões para a da Saúde.

A letalidade policial tem aumentando nos últimos anos em ritmo


superior ao do total de homicídios. O Anuário Brasileiro de Segurança
Pública 2018, do FBSP, mostra esse aumento, apresentado no gráfico
abaixo. Em 2017, os casos de “homicídios em intervenções policiais”
somaram 5,2 mil em todo o país, mais do que o dobro de apenas quatro
anos atrás. No mesmo período, o total de homicídios no país subiu 11%,
94
Cem Flores (cemflores.org)

fazendo com que os homicídios por policiais passassem a representar 8,1%


do total, em 2017, quando eram 3,9%, em 2013.

De acordo com o Monitor da Violência, o número de homicídios por


policiais aumentou novamente em 2018, atingindo 6,2 mil, um aumento de
18%em um ano apenas (de acordo com essa outra fonte). Ou seja, enquanto
o número de homicídios totais teria diminuído em 2018, o de assassinatos
por policiais aumentou. Em relação ao tamanho da população, o Rio de
Janeiro lidera a taxa de letalidade policial, seguido de Pará, Sergipe, Goiás
e Bahia.

Essa estatística já nos permite um primeiro vislumbre da dualidade


legal/semiclandestino do ARE no Brasil. De acordo com Bruno Paes
Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, essa estatística indica
que “uma parte do efetivo aproveita essa licença para matar para defender
seus próprios interesses pessoais e financeiros”, a “carta branca para
matar permite ao policial usar esse poder em defesa de seus lucros e de
seus interesses no crime”, ou seja, “desta polícia violenta nasceram as
milícias”.

95
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

 O sistema prisional brasileiro

O sistema prisional brasileiro aumentou significativamente seu papel


no ARE nos últimos dez a quinze anos. Esse aumento decorre do próprio
crescimento da violência e do fortalecimento do crime organizado, da
revisão da legislação sobre drogas (praticamente um em cada três presos
atualmente está vinculado às drogas), do reforço da atuação repressiva das
polícias. Paradoxalmente, a ampliação do sistema prisional serve para, num
círculo vicioso, reforçar as principais facções do crime organizado,
absolutamente dominantes dentro das cadeias, tornadas seus centros de
comando para sua atuação externa. Por outro lado, é a permanente
ameaça à população jovem, negra e de periferia, sempre à mercê da
arbitrariedade policial e, portanto, orientada à passividade “para não
ter problemas”.

Os números oficiais comprovam cabalmente esse caso.

Pelos dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública, a população


carcerária no país sobe sem parar, chegando a mais de 700 mil pessoas
“privadas de liberdade” em 2016. Com as imagens que todos conhecemos,
esses presos são amontoados em celas nas quais só caberiam a metade
deles. 40% do total de presos, ou 292,5 mil, são presos provisórios, sem
condenação – ou seja, à mercê da arbitrariedade policial. 400 mil presos

96
Cem Flores (cemflores.org)

(55%) tem menos de 30 anos, 465 mil (64%) são negros, e 545 mil (75%)
tem, no máximo, o ensino fundamental. O ARE no Brasil identifica a
idade, a cor, o local de moradia e a classe social dos seus alvos.

O Monitor da Violência atualizou o número da população carcerária para


este começo de 2019. Sem novidades, houve aumento para 754,2 mil.

O aparelho repressor de estado (ARE) capitalista no Brasil


sob Bolsonaro – reforço de sua dualidade
legal/semiclandestino
Como vimos no início deste texto, o “armamentista” Bolsonaro sempre se
caracterizou pela apologia da violência da classe dominante contra as
classes dominadas. A sua campanha e eleição, entre outras características,
contou com forte mobilização de expressivos setores das camadas
médias prestando entusiasmado apoio à violência e à repressão, sobre o
pretexto de retomada da “ordem”. Essa ideologia de extrema-direita se
volta, por um lado, contra a corrupção (associada aos governos do PT), e,
por outro, contra qualquer coisa que possa ser vista como ligada à
esquerda, aos trabalhadores, aos pobres ou a alguma forma de protesto e
manifestação popular. Não à toa, uma das imagens mais marcantes da
campanha de 2018 foi a quebra de uma placa em homenagem à Marielle
Franco, vista como símbolo de todos esses aspectos (esquerda,
trabalhadora, pobre, militante).

A esse grupo se juntariam a burguesia e parcela representativa do


próprio ARE (centralizada ao redor de Moro e da Lava-Jato). A Lava-
Jato, com seu programa de endurecimento penal (como o habeas-corpus e a
legalização de provas ilícitas no pacote das 10 Medidas contra a
Corrupção). A burguesia, pela necessidade de reforço do ARE em contexto
de violenta e prolongada crise econômica e desemprego em massa e diante
das medidas que o capital se vê necessitado de adotar que agravam ainda
mais as condições de vida dos dominados (reforma da previdência
e trabalhista, por exemplo).

97
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

 O reforço do ARE legal

O somatório desses três grupos, e ainda as Forças Armadas, resulta em


forte tendência de utilização do ARE para um “controle social”:
repressão a movimentos e militantes das cidades e do campo, manutenção
da população trabalhadora/pobre “nos seus lugares”, restrição da violência
crônica, endêmica, às periferias/favelas e maior proteção ao dia a dia dos
ricos e das camadas médias.

Em relação às manifestações, desde 2013 acumulam-se um sem número de


leis, regulamentos, projetos e decisões voltadas a cercear a liberdade de
manifestação pública. Matéria do El País do ano passado indicava pelo
menos 70 projetos de lei de criminalização de manifestantes. A mesma
matéria também indica melhorias táticas e de armamentos para as polícias
pós-2013, tais como: “canhões sônicos, blindados israelenses, trajes
Robocop, veículos com canhões de água, além do uso contínuo e
indiscriminado de balas de borracha, bombas de efeito moral, cassetetes e
spray de pimenta”, “acompanhar manifestações sem estarem identificados”
e “infiltração de policiais, filmagem de manifestantes, investigação nas
redes sociais, quebra de sigilo das comunicações”.

As principais ações do governo Bolsonaro para reforçar o ARE formal


nesses primeiros quatro meses foram: o encaminhamento ao Congresso
Nacional do pacote Moro de “licença para matar” para policiais e a
autorização para a utilização da Força Nacional na repressão aos protestos
indígenas em Brasília.

O pacote Moro de “licença para matar” para policiais é encomenda


expressa de Bolsonaro, que nunca escondeu sua posição de “dar carta
branca para PM matar em serviço”. Dessa forma, fecha-se o círculo das
ações legais/semiclandestinas do ARE: a licença para matar já existe na
prática, tanto para a polícia quanto para as milícias. Ela agora pode se
tornar formal – por exemplo, com a diretriz explícita do governador do Rio
de Janeiro para atirar na “cabecinha”– e, também, legal, caso o projeto de
lei de Moro seja aprovado.

Da mesma forma que no pacote das 10 Medidas contra a Corrupção,


o projeto atual de Moro não vê qualquer problema de entrar em conflito

98
Cem Flores (cemflores.org)

com a institucionalidade e com as leis vigentes e com a jurisprudência


estabelecida. São exemplos disso as propostas para ampliar ainda mais a
população carcerária, tais como vedação de progressão de pena e a
impossibilidade de concessão de liberdade provisória, além do flagrante
induzido e da própria “licença para matar” para policiais.

Esse conjunto de propostas legislativas contrárias ao sistema jurídico atual


é parte da ofensiva burguesa por maior repressão em contexto de sua crise
política e econômica. Uma das tendências identificadas por Poulantzas de
transformações do Estado no contexto de sua crise é exatamente essa: “a
derrubada do sistema legal e da ideologia jurídica correspondente ao
‗estado de direito‘ tradicional a fim de dar conta das transformações
institucionais”[9].

 O reforço do ARE semiclandestino e suas ligações com o ARE


legal

Os integrantes do ARE encarregados de sua linha de frente de


combate, quase que por definição, transitam entre três zonas
contíguas: a das estritas atribuições legais, a zona cinzenta de práticas
ilegais “toleradas” pela ideologia dominante numa determinada
conjuntura, e a ilegalidade aberta. No Brasil atual é comum ver as duas
primeiras como área de atuação das polícias. A terceira há tempos vem
sendo dominada pelo que se pode chamar, de maneira ampla, de milícias.

Em relação à “zona cinzenta”, trata-se da atuação policial arbitrária, sem


as (pseudo)-amarras dos controles e prestações de contas que estariam
envolvidos na sua atuação estritamente legal (o que não significa deixar de
ser repressora). Nessa zona cinzenta incluem-se desde as ações cotidianas
para controlar e intimidar a população trabalhadora das periferias (batidas,
invasões, detenções de curto prazo, extorsões, etc.) como as ações mais
explicitamente violentas, chegando às execuções.

Por que chamar execuções por policiais de “zona cinzenta” na atuação do


ARE? Porque, nesses casos, a polícia sempre busca “legalizar” sua atuação
mediante a formalização de autos de resistência e construção de narrativas

99
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

de morte em confronto com policiais. Essas “fake news” geralmente se


caracterizam “na ausência de testemunhas, na baixa qualidade ou ausência
de laudos periciais, nas idas e vindas dos autos entre a polícia e o
Ministério Público, assim como na alegada impossibilidade de
individualização da conduta dos policiais”[10].

Os efeitos práticos e ideológicos desse procedimento são: construir a


narrativa do morto como criminoso, e ele é quase sempre negro; evitar
qualquer punição para os policiais, com o arquivamento de até 96% dos
casos; e manter a narrativa ideológica de cumprimento do dever por parte
do ARE, buscando o apoio da população. Esse efeito ideológico pode ser
visto nos elogios do governador de São Paulo à Rota e nos do governador
do Rio de Janeiro às 15 mortes após a ação da PM no Morro do Fallet-
Fogueteiro.

A inovação do governo Bolsonaro, como já mencionado é buscar ampliar o


verniz de legalidade a essa atuação do ARE na “zona cinzenta”, mediante a
proteção legal aos “excessos” (sic!).

A atuação abertamente ilegal do ARE está associada à mistura


polícia/milícia. Embora essa história pareça recente e confinada ao Rio de
Janeiro, trata-se de algo constitutivo do ARE brasileiro, cuja história está
vinculada à figura do “pistoleiro”, tanto nas cidades como, e talvez
principalmente, no campo, na atuação dos verdadeiros “exércitos
particulares” dos latifundiários e dos “coronéis” para o controle e
obediência de seus empregados e contra a massa camponesa sem-terra.

Desde os anos 1960, a periferia das grandes cidades vem sendo infestada
pelos “esquadrões da morte”, organizados seja para a vingança das mortes
de policiais, seja para vender segurança aos pequenos proprietários e
população de suas áreas de atuação. A partir dos anos 2000, essa atuação
violenta/repressora das milícias vem se ampliando para uma atuação mais
orgânica e profissional, emulando a atividade empresarial e buscando
diversificar suas fontes de rendimento mediante controle de território e de
todo o tipo de produtos e serviços nessa área (do “gatonet” às drogas,
passando pela construção civil). Um pressuposto desse controle é a
eliminação violenta e imediata de qualquer ameaça à sua atuação, como foi

100
Cem Flores (cemflores.org)

caso exemplar o assassinato da juíza Patrícia Acioli. E, é claro, nesse


processo reforçando seus laços com as polícias e com as demais
autoridades, inclusive políticos eleitos, que se tornam cada vez mais
dependentes das milícias para suas eleições.

Para reforçar que não se trata apenas de um caso carioca, transcrevemos


trecho de artigo do Monitor da Violência do último dia 19 de abril:

“No Pará, o segundo colocado no ranking da violência policial, a


força das milícias já vem sendo investigada e denunciada. Lá, esses
grupos cresceram principalmente por associação com os
traficantes do estado. As milícias rurais também agem em defesa de
grandes proprietários de terra e de grileiros, seguindo a tradição
dos matadores de aluguel e da pistolagem, que há anos vigora na
região”

Jair Bolsonaro e seus familiares nunca esconderam suas ligações


íntimas com milicianos. Pelo contrário, sempre fizeram questão
de explicitá-las. Foram homenagens a milicianos feitas pelo então deputado
estadual Flávio Bolsonaro, emprego de parentes de milicianos, e mesmo
propostas de legalizar sua atuação(!). Ou como no discurso de Bolsonaro
pai: “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o
crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não
houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se
depender de mim, terão todo o meu apoio”. Essa afirmação consta de
matéria do Intercept sobre as ligações dos Bolsonaros com as milícias a
respeito dos casos Queiróz e Marielle Franco-Anderson Gomes.

O reforço dessa atuação semiclandestina do ARE no Brasil se dá,


portanto, tanto pelo apoio explícito das classes dominantes e seus
representantes políticos, quanto pelo seu apoio implícito, porém não
menos relevante, traduzido na não punição de suas atividades,
resultando na ampliação de sua área de atuação e “negócios”.

101
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

O problema da violência para as classes dominadas


O crescimento da violência e da repressão no capitalismo brasileiro,
magnificados pelas crises política e econômica nas quais nos encontramos
faz tempo, e sem perspectivas de resolução, parecem ser tendências de mais
longo prazo, que indicam trajetória de maior autoritarismo burguês e
estatal.

Diante delas, não há quaisquer perspectivas de melhoria das condições de


vida da classe operária e demais classes dominadas que não seja fruto de
sua ação coletiva, de sua luta conjunta, de seus protestos de classe. Essas
melhorias das condições de vida devem ser arrancadas aos dominantes.
Como dissemos no texto Os Limites da Dominação Capitalista no
Brasil, de 16 de junho de 2018 [11]:

“A vida proletária não precisa ser um calvário sem fim. As lutas


são o caminho para sua superação. A solidariedade entre os
explorados fortalece essas lutas e lhes dá um caráter mais
diretamente político. A posição proletária na luta de classes
reaparecerá a partir dos ensinamentos das lutas concretas e da
visão política dos trabalhadores.

Como dizia o aniversariante de 200 anos: os proletários não têm


nada a perder, a não ser os grilhões que os acorrentam à
exploração capitalista. Eles têm um mundo a ganhar!”

102
Cem Flores (cemflores.org)

[1]
Essas citações e as seguintes (quando não houver atribuição específica), mesmo
quando referentes a Marx e a Engels, constam do livro O Estado e a Revolução, de
Lênin (1917), e foram traduzidas do espanhol: El Estado y la Revolución. La Doctrina
Marxista del Estado y las Tareas del Proletariado em la Revoluciíon. Obras
Completas, tomo 33. Moscou: Editorial Progresso, 1986. Disponível em português
em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/index.htm.
[2]
ALTHUSSER, Louis. (Março-Abril de 1969). Sobre a Reprodução. Petrópolis:
Vozes, 1999, pg. 225.
[3]
“As classes dominantes não podem dominar as classes exploradas exclusivamente
pelo uso da violência; a dominação deve sempre ser apresentada como legítima pela
manipulação estatal da ideologia dominante, a qual provoca um certo consenso em
certas classes e frações das classes dominadas”. POULANTZAS. Nicos. (1976). The
Political Crisis and the Crisis of the State. In: MARTIN, James (editor). The
Poulantzas Reader: Marxism, Law and the State. Londres: Verso, 2008, pg. 301.
[4]
A imprensa diária nos informa sem parar dessas contradições entre as diferentes
facções do governo (militares x olavetes), do poder judiciário (STF x Lava-Jato), entre
outros. Mais além dos conflitos entre personalidades, trata-se de disputas de poder entre
essas facções, travadas sobre os rumos das políticas de Estado, ou seja, sobre as
melhores formas de dominação burguesa em cada conjuntura.
Nas palavras de Althusser: “Mas o fato é que o conjunto desses membros faz parte de
um único e mesmo corpo de executantes repressores às ordens dos detentores do poder
de Estado que são os representantes políticos da classe dominante …, aplicando sua
política de classe. É a razão pela qual podemos dizer que o Aparelho repressor de
Estado constitui um todo orgânico porque organizado-unificado sob uma direção
única: a dos representantes políticos da classe no poder” (op. cit., pg. 160).
[5]
Ainda Althusser: “desde a mais brutal força física até às simples ordens e proibições
administrativas, à censura aberta ou tácita, etc.” (op. cit., pg. 164).
[6]
No gráfico, os números de 2008 a 2016 têm como fonte o Atlas da Violência 2018,
do Ipea/FBSP, disponível em http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/. Para 2017, a fonte
é o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2018, do FBSP, disponível
em http://www.forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2018/08/Apresenta%C3%A7%C3%A3o_Anu%C3%A1rio.pdf.
[7]
http://cemflores.blogspot.com/2013/09/cade-os-amarildos.html
[8]
http://cemflores.org/index.php/2018/06/16/os-limites-da-dominacao-capitalista-no-
brasil/
[9]
POULANTZAS. Op. cit., pg. 322.
[10]
PASSOS, Aline e OLIVEIRA, Henrique. O Pretexto da Legítima Defesa. Revista
Cult, ano 22, nº 244, abril de 2019, pg. 28.
[11]
http://cemflores.org/index.php/2018/06/16/os-limites-da-dominacao-capitalista-no-
brasil/

103
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

O hipócrita patriotismo burguês de


Bolsonaro e seus objetivos

Todos lembram a patética frase de campanha com a qual Bolsonaro


empolgava os setores mais reacionários do país e com a qual encerrou um
dos seus discursos de posse: “a nossa bandeira jamais será vermelha”.
Todos também recordam o fajuto slogan da campanha de Bolsonaro:
“Brasil acima de tudo”. Todos igualmente viram o logotipo de propaganda
do seu governo: “Pátria Amada, Brasil”. Por fim, todos obviamente sabem
do apoio das forças armadas à sua candidatura e do número recorde de
oficiais que tiraram o pijama para ocuparem cargos no alto escalão
governamental [1], consolidando a tutela militar ao personagem medíocre e
grotesco que sonha representar o papel de herói [2]. Todos esses fatos
pretensamente caracterizariam o patriotismo, o amor ao Brasil, como um
dos traços principais dessa abjeta “nova era” (sic!) do país que teria
começado no mês passado. Pois é, só que não…

104
Cem Flores (cemflores.org)

Como a história nos ensina com frequência, as aparências enganam e às


vezes escondem os verdadeiros fenômenos. Os fatos, vistos apenas em sua
superfície, não revelam suas raízes profundas. A ideologia atua como
reflexo, necessariamente imaginário, das reais condições de existência [3].

Em resumo, além de serem banais e requentadas, as declarações


patrióticas de Bolsonaro e sua corja também são hipócritas.

A hipocrisia do patriotismo de Bolsonaro e sua corja se dá em vários


níveis. O primeiro é o do mais vil servilismo que a corja – neste caso
capitaneada pelo olavete Eduardo Bolsonaro – presta, genuflexa, aos EUA
e seu atual governo de extrema-direita. O segundo, é a necessidade
primordial de atender à classe dominante – “os nossos patrões”, como disse
Bolsonaro em evento de campanha – a qualquer custo e, nesse caso, a
bandeira que honram é o dinheiro, de preferência na cor verde do dólar, e o
deus ao qual se prostram, o lucro. O terceiro, alinhado ao anterior, é a
definição restrita de a quem a “pátria” pertence nessa “nova era”: aos
banqueiros e ao capital, aos proprietários (com destaque aos ruralistas), aos
burgueses e às camadas médias, aos brancos (racismo), aos heterossexuais
(homofobia), aos cristãos (intolerância religiosa), relegando a absoluta
maioria da população – pobre, parda, preta, trabalhadora e explorada – e os
povos oprimidos que habitam nosso país ao aumento da exploração e a uma
deterioração ainda maior de suas condições de vida.

Comecemos pelo primeiro caso: para Bolsonaro e sua corja, o Brasil


deve estar acima de tudo, menos dos interesses do “grande irmão”
(sic!) do norte. Não basta à Bolsonaro prestar continência/obediência à
bandeira dos EUA (antes da eleição) e ao conselheiro de segurança
nacional do EUA, John Bolton (depois) [4]. Suas primeiras declarações
como presidente eleito foram de propor aos americanos instalar uma base
militar no Brasil – no que, pelas notícias da imprensa, seus próprios
militares governistas foram contra; tentar tornar o Brasil um dos
pouquíssimos países do mundo a seguir a paranoia religiosa/geopolítica de
Trump de mudar a embaixada do país em Israel de Tel Aviv para
Jerusalém; e igualmente seguir Trump na retirada do país do acordo de
Paris sobre o clima global [5]. Nenhuma das três ações se efetivaram até
agora. Mas a fidelidade canina aos EUA e a Trump restou comprovada
nessas declarações de intenções…

105
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

A mais importante ação efetiva, até agora, da política de “siga-o-chefe” foi


o reconhecimento (sic!) do auto-proclamado (sic!) presidente da
Venezuela, Juan Guaidó, imediatamente após Trump haver feito o mesmo.
Nossa análise mais detalhada da crise na Venezuela encontra-se no site.

Esse posicionamento do governo brasileiro na crise da Venezuela não se


dá, obviamente, pela paixão democrática de Bolsonaro e sua corja. Aos
idólatras da última ditadura militar no Brasil só interessa a liberdade do
capital, dos lucros e da exploração do trabalho (alheio).

O que interessa aos novos governistas é tornarem-se a si próprios


sócios preferenciais dos EUA na América do Sul, mediante a aceitação
de migalhas e a “terceirização” para si das ações para alcançar interesses
gringos (aliás, não muito diferente do governo Lula na missão
“pacificadora” da ONU no Haiti…).

Essa nova disposição “brazileira” já foi muito bem captada pelo atual
principal artífice político da estratégia imperialista dos EUA para a
América Latina, Marco Rubio, gusano e senador republicano da Flórida
[6]
. Em artigo recente [7], Rubio define um programa para o Brasil de
forma explícita como há tempo não se via. Vejamos suas, digamos,
“orientações” para Bolsonaro:

―O governo Bolsonaro já indicou que busca uma ainda maior


proximidade nas relações de segurança e econômicas com os
Estados Unidos … é crucial que os Estados Unidos capitalizem
essa oportunidade histórica‖.

―O governo Trump deve se mover rapidamente para avançar


objetivos que serão bem-vindos pelo governo Bolsonaro, tais como

impulsionando nossas ligações de defesa e inteligência …

aumentando os investimentos no comércio …

cooperação no setor de energia …

expansão do acesso dos EUA à indústria espacial do Brasil …


novo parceiro para reforçar nossas capacidades espaciais e
expandir nossa cooperação no espaço … sua localização
geográfica oferece potencial para lançamentos espaciais …
106
Cem Flores (cemflores.org)

cooperação adicional contra o terrorismo e as redes criminosas


transnacionais …

assistência técnica às agências militares e de combate ao crime do


Brasil para esforços de segurança de fronteira e para assegurar
que terroristas não estejam usando o aeroporto internacional de
São Paulo como porta de saída para as Américas‖.

O programa dos EUA para a acumulação ampliada dos seus capitais no


Brasil é explícito e cristalino. Identifica setores de interesse e projetos
prioritários. Ah… mas íamos esquecendo de mencionar as migalhas.
Segundo Rubio, em troca dos itens acima, os EUA “apoiariam a adesão do
Brasil à OCDE”.

Mas a ampliação do potencial de lucro das empresas americanas no


Brasil não é toda a história. No cenário das agravadas contradições
interimperialistas entre EUA e China e EUA e Rússia, é do maior
interesse dos EUA expulsar seus rivais ou, ao menos, diminuir sua
importância no seu antigo “quintal”.

Depois de iniciar uma guerra comercial com a China e de romper um


antigo tratado armamentista com a Rússia, para ficarmos em apenas dois
exemplos recentes, a política imperialista dos EUA de Trump – no
sentido leninista, de “partilha territorial do mundo entre as potências
capitalistas mais importantes” [8] – agora busca reconquistar seu
espaço na América do Sul, em parte perdido para Rússia (sobretudo na
Venezuela) e, principalmente, para a China. Rubio também é explícito
quanto a isso:

―Os valores culturais e democráticos do Brasil são naturalmente


mais alinhados com os dos Estados Unidos (do que com a
China)‖.

―Um Brasil forte, democrático e vibrante que esteja alinhado mais


de perto com os Estados Unidos como parceiro estratégico pode
ser uma força multiplicadora para tratar a atual crise na Venezuela
… e para conter as intenções malignas de regimes autoritários
como China, Rússia e Irã que buscam expandir suas presença e
atividades na América Latina‖.

107
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

Como toda a potência imperialista, a ação dos EUA de fortalecer sua


presença no Brasil (ou em qualquer país) também é, ao mesmo tempo, a
busca por eliminar ou enfraquecer a presença dos seus rivais.

Como dizia o Comandante Ernesto “Che” Guevara: no imperialismo


não se pode confiar nem mesmo um pouquinho assim, nada!

E, assim, passamos para o segundo aspecto da hipocrisia do


nacionalismo burguês de Bolsonaro e sua corja: a defesa intransigente
dos interesses da burguesia brasileira. Neste caso, a intenção é que,
assumindo o posto de parceiro ou sócio (minoritário) preferencial dos EUA
na América do Sul, o capital brasileiro possa se beneficiar tanto de um
hipotético maior acesso ao mercado americano (p.ex., via retirada de tarifas
e restrições alfandegárias, sanitárias, etc.), quanto da parceria subordinada
ao capital americano aplicado no Brasil, nesses novos espaços prioritários
de acumulação elencados no texto citado acima. Brasil acima de tudo,
menos dos lucros (é claro!).

O reconhecimento dos EUA a essa disposição está, entre outros, expresso,


em termos políticos, no posto honorífico conferido pelo ex-estrategista-
chefe de Trump, Steve Bannon, ao filhinho Eduardo Bolsonaro: o de
representante na América do Sul da sua articulação internacional de
extrema-direita, populista e retrógada [9].

No entanto, essa defesa dos interesses das classes dominantes


brasileiras mediante um patriotismo burguês que vise alinhar os
interesses do Brasil aos dos EUA, tem dois impactos distintos e
contraditórios.

De um lado, é uma ideologia hipócrita na qual as juras de amor ao país


são apenas disfarces para buscar enganar os operários e as classes
dominadas, mas também, de outra forma, as camadas médias (que
vestem a camisa amarela da Nike/CBF). No primeiro caso, assim como a
religião, servem como ideologia dominante, ideologia da classe dominante
agindo entre as classes dominadas, para ocultar a exploração e dominação
de classe. No segundo, para as camadas médias, como mais uma forma de
sua identificação às classes dominantes, juntamente com a ideologia
militarista, que ressurge em tempos de crise econômica-política, como
símbolo de garantia da ordem, ou seja, manutenção do status quo e de sua
posição de classe.

108
Cem Flores (cemflores.org)

Ou seja, para as classes dominantes e seu governo, o que importa não é


país, patriotismo ou nacionalismo, mas sim a defesa de seus interesses
de classe, manutenção de seu regime de exploração e acumulação
ampliada de lucros. Se a maioria da população entende patriotismo
daquela forma, a ideologia dominante terá atingido seu objetivo. Ou seja, o
patriotismo é, aqui também, uma das ideologias da classe dominante para
atingir seus objetivos de classe.

A contradição em que se enreda o “patriotismo americanista” de


Bolsonaro e sua corja é que a defesa intransigente dos interesses dos
EUA entra (ou entrará) em conflito com (pelo menos com parcela dos)
os interesses da burguesia brasileira – agronegócio, mineração,
petróleo, importação, etc. – em seus negócios com a China (e, também,
com a União Europeia e outros).

A China é, já faz alguns anos, a maior parceira comercial do Brasil, tanto


nas exportações quanto nas importações, respondendo por quase um quarto
(23,5%) desse total. Esses fluxos de comércio (exportações mais
importações) com o Brasil somaram quase US$100 bilhões em 2018, 70%
acima dos US$58 bilhões com os EUA. O superávit comercial brasileiro
com a China chegou a US$29,5 bilhões no ano passado, enquanto houve
ligeiro déficit com os EUA, o que significa que o mercado chinês
de commodities representou polpudos lucros para o conjunto da
burguesia brasileira. Também pudera, as exportações do país para a
China, US$64 bilhões, foram bem mais que o dobro das vendas para os
EUA [10].

A China é, também, e crescentemente, fonte de investimentos e


empréstimos (exportação de capital) ao Brasil. Só nos investimentos
diretos, os chineses já acumulam US$21 bilhões no Brasil, valor que
cresceu 143% nos últimos dois anos. Se esse valor ainda é pequeno diante
dos US$119 bilhões dos EUA, em 2010 o percentual dos investimentos
chineses em relação aos americanos era de 7%, passando para 18%, em
2017 [11]. Ou seja, são os investimentos de capitais chineses os que
crescem mais aceleradamente no Brasil.

Como esses dois exemplos pontuais indicam, os bolsonaristas podem ficar


deslumbrados com seu papel de (sub)parceiros (pseudo)preferenciais dos
EUA na região, mas o que interessa a seus patrões, a burguesia brasileira, é

109
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

a defesa dos seus interesses e lucros e, para isso, não poderão negligenciar
a China. Ou seja, os interesses do vil metal da burguesia colocam-na, e
ao governo brasileiro, no meio da disputa interimperialista dominante
no mundo de hoje [12]. Não haverá posicionamento em favor de um lado
que não gere contradições com o outro.

O patriotismo, que já havia cedido lugar ao americanismo, agora cede lugar


ao lucro e terá que se equilibrar entre seu “aliado natural” e as “intenções
malignas”, buscando recolher as migalhas que surgirem dos conflitos
interimperialistas entre EUA e China.

Concluímos com a terceira característica do hipócrita patriotismo


burguês de Bolsonaro e sua corja: ao contrário da pátria como união de
todos (utilizado, por exemplo, na hipocrisia da era lulista e em vários
outros momentos, quando a burguesia entende conveniente), no Brasil
atual, para seus governantes e apoiadores, “pátria” explicitamente exclui os
operários e demais trabalhadores (aos quais restaria uma reforma
trabalhista para reduzir as conquistas da classe à “informalidade”); exclui
os brancos, os pretos e pardos moradores das favelas e periferias (deixados
à violência conjunta das polícias, milícias e crime organizado); exclui a
comunidade LGBT (largados à sua própria sorte por contrariar os ditames
do fundamentalismo religioso e do conservadorismo); exclui os povos
oprimidos do país (indígenas e quilombolas, alvos de crescente extermínio
e assalto de suas terras). Exclui também, e de forma fundamental, qualquer
um que proteste, se manifeste, mobilize e ganhe as ruas e as fábricas em
defesa de sua classe, de suas conquistas, de sua condição de vida.

A posição dos comunistas sempre foi explícita em relação ao


nacionalismo e ao patriotismo burguês. Contra as guerras e as invasões
que eles causaram seguidamente nos últimos séculos e seguem causando,
contra a exploração dos dominados e dos povos que essas ideologias
justificam, os comunistas opõem a organização dos trabalhadores e a sua
solidariedade internacional, eternizadas no lema: Proletários de todos os
países, uni-vos!

Nós somos hermanos dos explorados famintos na periferia de Caracas,


assim como somos brothers dos operários americanos de Detroit, com seus
empregos destruídos (mesmo eles tendo votado em Trump). Nós somos 兄
弟姐妹 dos chineses migrantes do campo para as fábricas-quarteis e que

110
Cem Flores (cemflores.org)

agora começam a se organizar e levantar contra a repressão patronal-estatal


e também somos ‫ واألخ وات األخ وة‬dos trabalhadores sauditas, dominados por
uma ditadura medieval e pró-americana.

Aos burgueses, no entanto, só dedicamos desprezo e ódio de classe [13].


Assim como a Bolsonaro, Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre, Temer.
Também aos assassinos da Vale em Mariana e Brumadinho e a todos os
que compartilham sua sede sagrada do lucro sobre todo o resto.

A exploração não será eterna. O movimento proletário, seguido de


todas as massas dominadas, acabará com a exploração, assim como já
o fez várias vezes antes. O presente é de luta, o futuro nos pertence!

111
O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária

[1]
Ver a lista dos 32 principais, dos quais 26 oficiais generais das três forças,
principalmente do Exército, em https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/governo-
bolsonaro-ja-passa-de-30-militares-em-postos-chave/. A Folha de São Paulo já fala em
mais de 45 os militares nomeados para cargos no governo:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/militares-ja-se-espalham-por-21-areas-
do-governo-bolsonaro-de-banco-estatal-a-educacao.shtml
[2]
Inspirado na frase de Marx sobre o Bonaparte menor no prefácio à segunda edição
de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de 1869, disponível
em https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/prefacio.htm.
[3]
Conceito e frase (explicitamente) althusserianos citados conforme o filme Luta em
Itália, de 1970, do Coletivo Dziga Vertov.
[4]
Conforme, entre outros, a insuspeita Veja: https://veja.abril.com.br/mundo/em-
encontro-no-rio-bolsonaro-presta-continencia-para-bolton/.
[5]
https://theintercept.com/2018/11/11/amadorismo-e-delirios-conspiratorios-marcam-
primeiros-passos-da-politica-externa-de-bolsonaro/.
[6]
Conforme as informações do New York Times
em https://www.nytimes.com/2019/01/26/world/americas/marco-rubio-venezuela.html.
[7]
Marco Rubio. US Should Go Big on Brazil.
https://edition.cnn.com/2019/01/29/opinions/us-should-go-big-on-brazil-
rubio/index.html.
[8]
Lênin. Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, disponível
em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap7.htm.
[9]
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/02/bannon-anuncia-eduardo-bolsonaro-
como-lider-sul-americano-de-movimento-de-ultradireita.shtml.
[10]
http://www.mdic.gov.br/balanca/mes/2018/BCP056A.xlsx.
[11]
https://www.bcb.gov.br/publicacoes/relatorioid.
[12]
Para acrescentar um pouco de comédia pastelão a essa história, veja-se o caso da
viagem da comitiva dos parlamentares eleitos do partido de Bolsonaro à China e
diatribes que isso causou na parcela americanista de seus apoiadores. O melhor relato
está na piauí: https://piaui.folha.uol.com.br/olavo-lidera-insurgencia-entre-
bolsonaristas/ e https://piaui.folha.uol.com.br/deputados-do-psl-na-china-mandam-
recado-para-bolsonaro-sobre-previdencia/.
[13]
Ao substituir a Liga dos Justos pela Liga Comunista e trocar seu slogan, de “Todos
os Homens São Irmãos” para “Proletários de Todos os Países, Uni-vos”, “Marx teria
declarado que havia muitos homens de quem ele não desejava ser irmão de modo
algum” (McLELLAN, Donald. Karl Marx. Vida e Pensamento. Petrópolis: Vozes,
1990, pg. 188).

112
Cem Flores (cemflores.org)

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