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17/05/2016 A razão brilha para todos ­ Revista de História

A razão brilha para todos


Muito além das artes, o Renascimento transformou a vida social e o
comportamento do homem comum
Angelo Adriano Faria Assis
1/11/2013  

O sorriso enigmático da Mona Lisa


faz por merecer a multidão de
turistas e a enxurrada de flashes
que a registram todos os dias no
Museu do Louvre, em Paris. Criada
por Leonardo Da Vinci no início do
século XVI, a Gioconda é resultado
da utilização de técnicas de pintura
apuradíssimas e proporções
corporais exatas, sem falar no
famoso meio sorriso e no olhar
enviesado. Mais do que uma
revolução artística, porém, o que
aquela criação testemunha é um
período de transformações culturais
e sociais que varreriam a Europa e
dariam luz ao homem moderno.
Na pintura do flamengo Pieter Brueghel, O Velho, de 1565,
Em geral, o Renascimento é trabalhadores em colheita. A arte do período sobrepunha a
celebrado por suas grandes obras razão à fé.
na pintura, na escultura e na
arquitetura. Artistas do quilate de
Michelangelo, Rafael, Da Vinci, Botticelli, Caravaggio, Arcimboldo, El Greco, Bruegel, Bosch,
entre tantos outros, reiventarama arte com novas noções de dimensão espacial, emprego das
cores e valorização dos planos e contrastes, como ochiaroescuro, ornamentação detalhada e
equilíbrio geométrico. Mais tarde, o conceito de renascença seria estendido à literatura, à
filosofia e à ciência. Na escrita, Cervantes, Camões, Maquiavel, Montaigne e Erasmo detalhavam
desejos, medos, qualidades e defeitos do ser humano e de sua moral. Era a razão se sobrepondo
à fé. Descreviam a utopia de um homem novo e do mundo perfeito, num tempo em que sonhar
era arriscado.

Foi também um momento de exacerbação da escatologia, do realismo grotesco e do vocabulário


das ruas, presentes nas obras Gargântua (c. 1532) ePantagruel (c. 1564), de François Rabelais,
a retratar celebrações e atos cômicos do cotidiano popular. Cientistas como Copérnico, Galileu,
Vesalius e Kepler ajudavam a compreender os fenômenos da natureza pela própria natureza, e
não mais por vontade divina. O homem, em vez de Deus, passava a ocupar o centro das
atenções.

O historiador francês Jean Delumeau, em A civilização do Renascimento, afirma que este


movimento ensinou o homem “a atravessar os oceanos, a fabricar ferro fundido, a servir‐se das
armas de fogo, a contar as horas com um motor, a imprimir, a utilizar dia a dia a letra de
câmbio e o seguro marítimo”. Fez mais: despertou o interesse pelo conhecimento do corpo,
definiu maneiras de pensar a política e o sagrado, permitiu a descoberta de terras e costumes no
contato com outros povos, incentivou o avanço nas ciências e no modo de entender a ordem do
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mundo. Pintores, escultores e escritores representaram o cotidiano e os costumes de camponeses


e citadinos, a natureza, os rituais da aldeia, as fases da vida, o trabalho diário, a produção e o
preparo dos alimentos, as festas, as danças, os jogos, as feiras, as batalhas, a morte, o amor.

Mas qual terá sido o impacto prático do Renascimento para o homem comum?

O advento da imprensa – graças à invenção dos tipos móveis por Gutenberg na década de 1450 –
tornou‐se poderoso fator de transformação social, ao acelerar e expandir a circulação das ideias
para um público cada vez mais extenso, incentivando o desenvolvimento da cultura letrada,
ainda bastante limitada. Embora muitos fossem analfabetos, as informações eram repassadas
pelos que liam e repetidas oralmente aos demais, contribuindo para alargar a visão de mundo e
para reordenar os papéis a serem desempenhados pelos homens na sociedade.

Do macro ao micro, inovações tecnológicas mudaram o entendimento do mundo. Enquanto


ateoria heliocêntrica provava que a Terra girava em torno do Sol (e não o contrário, como
normalmente se acreditava), microscópios desvendavam seres desconhecidos ao olho humano. O
estudo da dissecação de cadáveres, que permitia a mestres da arte pintarem e esculpirem figuras
humanas em perfeição de detalhes, também gerava avanços na medicina. Entender a composição
e o funcionamento do corpo – veias, ossos, músculos, órgãos internos e externos, sistemas
digestivo, circulatório e respiratório – auxiliava na descoberta, na identificação e no tratamento
de mazelas. Aos poucos, explicações sobrenaturais para as doenças, como espíritos malignos ou
influência do demônio, eram substituídas por tratamentos racionais e científicos. Surgiram o
termômetro e uma série de novos instrumentos e técnicas cirúrgicas, remédios químicos e
minerais, a exemplo do mercúrio. Passou‐se a produzir membros artificiais, como pernas e
braços mecânicos, as suturas substituíram a cauterização de ferimentos. Popularizou‐se a ideia
do cuidado com a saúde, diminuiu a necessidade de amputações, aumentou a expectativa de
vida.

Nos campos, o aperfeiçoamento de arados, alavancas de rosca e moinhos hidráulicos somava‐se a


métodos organizados de plantio e experiências vindas de outras regiões e continentes, efeito das
grandes navegações. Resultado: aumentou a produção e a oferta de alimentos e amenizou‐se o
trabalho árduo na lavoura, com reflexos imediatos na saúde da população.

O tempo passou a ser contado com maior exatidão do que antes, quando o máximo de que se
dispunha eram ampulhetas, quando não o badalar dos sinos das igrejas. O relógio mecânico,
composto por complexa engrenagem de rodas denteadas, molas e ponteiros, tornava precisa a
indicação de horas e minutos, aumentando o controle sobre as rotinas diárias. Tratados como
verdadeiros objetos de arte, ficavam muitas vezes expostos em edificações e praças públicas,
enfeitando a paisagem e ordenando os afazeres, fixando e disciplinando compromissos ou a
contagem das horas trabalhadas.

A aplicação dos símbolos matemáticos + e –, em vez de escritos por extenso, o uso de frações
decimais, a invenção da máquina de calcular por Blaise Pascal, em 1642, a padronização de
pesos, medidas e valores monetários garantiam contas mais rápidas e a exatidão de quantidades
e preços, auxiliando os registros comerciais de compra e venda de mercadorias.

O florescimento das cidades, a ascensão burguesa, as novas normas de convivência e civilidade e


o fortalecimento do individualismo levaram a mudanças até nos casamentos, que começavam a
respeitar as preferências de cada pessoa, ao contrário dos matrimônios arranjados da Idade
Média. Extremamente sensível às transformações de seu tempo, coube a William Shakespeare
criar o símbolo máximo dessa revolução: a tragédia de Romeu e Julieta (1597), dois jovens
apaixonados que sacrificam suas vidas em nome do amor, pondo fim à milenar rivalidade entre
suas famílias.

O teatro, por sinal, mobilizava grandes públicos e era um veículo importante para disseminar as

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mudanças de costumes. O próprio Shakespeare possuía, em sociedade, o Globe Theatre,


localizado junto ao rio Tâmisa, na capital inglesa. As peças eram encenadas durante o verão e
com dia claro, para garantir transporte à plateia até a outra margem do Tâmisa e se encerrar
cedo, pelo risco de assaltos. Os cenários eram simples, com poucos adereços, e os papéis
femininos ainda eram interpretados por homens, pois mulheres eram proibidas de representar.
Elas também raramente apareciam na plateia. Algumas companhias realizavam turnês, levando
os espetáculos, recheados de críticas sociais, para públicos que viviam longe das grandes cidades,
divulgando novas ideias e aumentando o interesse popular pela arte.

Embora os efeitos do Renascimento se fizessem sentir principalmente nas cidades, os locais mais
afastados também foram influenciados pelas transformações da época. A rotina dos camponeses
e das classes populares nunca mais seria a mesma: na forma de comer, no modo de trabalhar,
nas relações sociais, na crítica aos valores estabelecidos, na relação com Deus e com o clero. Um
mundo com maior presença da razão começava a ganhar força e a moldar as raízes do homem
contemporâneo.

Mas a soberania da razão não impede a renovação dos horrores humanos: guerras religiosas e
pela formação de Estados, a miséria e a fome que se alastravam pela Europa, armas de fogo
mais potentes, a violência da conquista de novas terras e povos, a escravização de africanos. Os
questionamentos à ordem estabelecida também geraram reações conservadoras, principalmente
da Igreja. A Inquisição foi intensificada, espalhando uma atmosfera de perseguição e medo nas
sociedades sob a alçada do Santo Ofício, como Portugal, Espanha e Itália. Perseguiam‐se bruxas,
hereges, protestantes, homossexuais, descendentes de judeus e mouros, proibiam‐se livros e a
divulgação de valores contrários à moral cristã. Indivíduos eram denunciados, presos, processados
e, no limite, condenados à morte. Não eram poucos os que continuavam a acreditar em
superstições, na influência do diabo e nos castigos divinos como explicação para os problemas do
dia a dia. Os pintores flamengos Hieronymus Bosch e Pieter Brueghel, em quadros como Juízo
Final e O triunfo da Morte, retrataram os terrores que alimentavam o imaginário popular,
recheado de monstros, doenças, demônios, fantasmas, vícios, seres híbridos, hermafroditas.

Se hoje as obras de arte renascentistas são conhecidas em todo o mundo, na época eram
financiadas por mecenas e costumavam ficar restritas a poucos, enfeitando palácios ou
residências burguesas. Foi em termos de impacto social e cultural que o Renascimento extrapolou
todos os limites. “Penso, logo existo”, filosofou Descartes. Quando o pensamento humano se
liberta, um novo mundo pode existir.

Angelo Adriano Faria Assisé professor da Universidade Federal de Viçosa e autor de João Nunes,
um rabi escatológico na Nova Lusitânia: sociedade colonial e inquisição no nordeste
quinhentista (Alameda, 2011), e de Macabeias da Colônia: Criptojudaísmo feminino na Bahia
(Alameda, 2012).

Saiba mais ‐ Bibliografia

BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras,
1991.

BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Europa, 1500‐1800. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
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DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Vol. 1. Lisboa: Editorial Estampa, 1983.

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