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QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES


DO CONHECIMENTO
EVITANDO CONFUSÕES

Martin W. Bauer, G e o r g e Gaskell &


Nicholas C. A.llum

Palavras-chave: análise de dados; a lei do instrumento; geração


de dados; m o d o s e meios de representação; a situação ideal de
pesquisa; delineamento da pesquisa; interesses do conhecimento.

Imagine u m j o g o de futebol. Dois j o g a d o r e s adversários correm


atrás da bola e, d e repente, u m deles cai, rolando pelo chão. Metade
dos espectadores assobiam e gritam, e a outra metade respira alivia-
da, pois o possível perigo foi superado.
Podemos analisar esta situação social competitiva da seguinte
maneira. Primeiro, existem os atores: os j o g a d o r e s de futebol, 11 de
cada lado, altamente treinados, habilidosos e articulados em seus
papéis, com o propósito de g a n h a r o jogo; e os árbitros, isto é, o juiz
e os bandeirinhas. Este é o "campo da ação".
T e m o s depois os espectadores. Os assistentes, em sua maioria,
são leais torcedores d e u m time ou outro. São poucos os que não se
identificam com u m ou outro dos times. Haverá, contudo, u m ou
dois espectadores que não c o n h e c e m o futebol, e são apenas curio-
sos. As arquibancadas dos espectadores são o "campo de observação
ingênua" — i n g ê n u a n o sentido de que os espectadores estão sim-
plesmente assistindo aos acontecimentos n o campo e são como que
parte do p r ó p r i o j o g o , que eles experienciam como se eles próprios
estivessem j o g a n d o . Devido a sua lealdade a u m dos times, pensam e
sentem d e n t r o de u m a perspectiva partidária. Q u a n d o u m dos joga-

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dores cai, isto é i n t e r p r e t a d o pelos torcedores do seu time como


u m a falta, e n q u a n t o que p a r a os fãs do outro time n ã o passa de u m
erro pessoal e teatral.
Finalmente, há a posição daqueles que descrevem a situação
como nós o fazemos aqui. T e m o s u m a curiosidade sobre a natureza
tribal do acontecimento, do campo de ação e dos espectadores que
estão sendo observados. Em termos ideais, tal descrição requer u m a
análise fria da situação, que n ã o tenha envolvimento com n e n h u m
dos times. Nosso envolvimento direto p o d e ser com o futebol em ge-
ral - seus problemas atuais e futuros. A isto nós chamamos de "cam-
p o de observação sistemática". A partir desta posição, p o d e m o s rela-
cionar três formas de evidência: o que está acontecendo no campo,
as reações dos espectadores, e a instituição d o futebol como u m
ramo do esporte, dos negócios ligados aos divertimentos ou ao co-
mércio. Evitar u m envolvimento direto exige precauções: a) u m a
consciência treinada das conseqüências que derivam do envolvi-
mento pessoal; e b) u m compromisso em avaliar as observações d e
alguém metodicamente e em público.
Tais observações com diferentes graus d e imparcialidade são a
problemática da pesquisa social. Por analogia, p o d e m o s facilmente
estender este "tipo ideal" de análise daquilo que p o d e m o s chamar
u m a "situação total de pesquisa" (Cranach et al., 1982: 50), a outras
atividades sociais, tais como votar, trabalhar, fazer compras e com-
p o r música, p a r a m e n c i o n a r apenas algumas. Podemos estudar o
campo de ação, e p e r g u n t a r que acontecimentos estão no campo (o
objeto de estudo); p o d e m o s experimentar subjetivamente tal acon-
tecimento - o que está acontecendo, como nos sentimos, e quais os
motivos p a r a tal acontecimento. Esta observação ingênua é seme-
lhante à perspectiva dos atores e dos auto-observadores. Finalmen-
te, nós nos concentramos na relação sujeito/objeto que brota da com-
paração da perspectiva do autor e da perspectiva do observador,
dentro de u m contexto mais amplo e p e r g u n t a como os aconteci-
mentos se relacionam às pessoas que os experienciam.
U m a cobertura a d e q u a d a dos acontecimentos sociais exige mui-
tos métodos e dados: u m pluralismo metodológico se origina como
u m a necessidade metodológica. A investigação da ação empírica
exige a) a observação sistemática dos acontecimentos; inferir os sen-
tidos desses acontecimentos das (auto-) observações dos atores e dos
espectadores exige b) técnicas de entrevista; e a interpretação dos
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vestígios materiais que f o r a m deixados pelos atores e espectadores


exige c) u m a análise sistemática.

O delineamento da pesquisa: geração de dados, redução e análise


É útil distinguir e n t r e quatro dimensões n a investigação social.
Estas dimensões descrevem o processo d e pesquisa e m termos d e
combinações de elementos através das quatro dimensões. Primeiro,
h á o delineamento d a pesquisa d e acordo com seus princípios estraté-
gicos, tais como o levantamento p o r amostragem, a observação parti-
cipante, os estudos d e caso, os experimentos e quase-experimentos.
Segundo, h á os m é t o d o s d e coleta d e dados, tais como a entrevista, a
observação e a busca de documentos. Terceiro, há os tratamentos
analíticos dos dados, tais c o m o a análise de conteúdo, a análise retóri-
ca, a análise de discurso e a análise estatística. Finalmente, os interes-
ses d o conhecimento referem-se à classificação d e H a b e r m a s sobre o
controle, a construção d e consenso e a emancipação dos sujeitos do
estudo. Estas quatro dimensões são mostradas na Tabela 1.1.

Tabela 1.1 - As quatro dimensões do processo de pesquisa

Princípios do G e r a ç ã o de dados Análise dos dados Interesses do


delineamento conhecimento
Estudo de caso Entrevista individual Formal
Estudo comparativo Questionário Modelagem
estatística

Levantamento por Grupos focais Análise estrutural Controle e predição


Amostragem
Levantamento por Filme informal Construção de
Painel consenso
Experimento Registros Análise de conteúdo Emancipação e
áudio-visuais "empoderamento"

Observação Observação Codificação


Participante sistemática
Coleta de Indexação
documentos
Etnografia Registro de sons Análise semiótica
Análise retórica
Análise de discurso
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Muita confusão m e t o d o l ó g i c a e muitas afirmações falsas s u r g e m


d a c o m p r e e n s ã o equivocada ao se fazer a distinção e n t r e qualitati-
vo/quantitativo n a coleta e análise d e dados, c o m princípios d o deli-
n e a m e n t o d a pesquisa e interesses d o c o n h e c i m e n t o . E m u i t o possí-
vel conceber u m d e l i n e a m e n t o e x p e r i m e n t a l , e m p r e g a n d o entrevis-
tas e m p r o f u n d i d a d e p a r a conseguir os dados. D o m e s m o m o d o , u m
d e l i n e a m e n t o d e e s t u d o d e caso p o d e i n c o r p o r a r u m questionário
d e pesquisa p a r a levantamento, j u n t o c o m técnicas observacionais,
como p o r e x e m p l o estudar u m a c o r p o r a ç ã o comercial q u e passa p o r
dificuldades. U m l e v a n t a m e n t o d e g r a n d e escala d e u m g r u p o d e
m i n o r i a étnica p o d e incluir questões abertas p a r a análise qualitati-
va, e os resultados p o d e m servir a interesses emancipatórios d o gru-
p o minoritário. O u p o d e m o s p e n s a r e m u m l e v a n t a m e n t o aleatório
d e u m a população, coletando os d a d o s através d e entrevistas c o m
g r u p o s focais. C o n t u d o , c o m o m o s t r a o último e x e m p l o , certas com-
binações d e princípios de delineamentos, c o m m é t o d o s d e coleta d e
dados, o c o r r e m com m e n o s freqüência, devido às implicações liga-
das aos recursos. D e f e n d e m o s a idéia d e que todas as q u a t r o d i m e n -
sões d e v e m ser vistas c o m o escolhas relativamente i n d e p e n d e n t e s
n o processo d e pesquisa e que a escolha qualitativa ou quantitativa é
p r i m a r i a m e n t e u m a decisão sobre a geração d e d a d o s e os m é t o d o s
de análise, e só s e c u n d a r i a m e n t e u m a escolha sobre o d e l i n e a m e n t o
da pesquisa ou d e interesses d o c o n h e c i m e n t o .

E m b o r a nossos e x e m p l o s t e n h a m incluído a pesquisa d e levanta-


m e n t o , nesse livro nós t r a b a l h a m o s p r i n c i p a l m e n t e c o m geração d e
dados e procedimentos d e análise d e n t r o da prática d a pesquisa qua-
litativa, isto é, pesquisa n ã o - n u m é r i c a .

Modos e meios de representação: tipos de dados

Duas distinções sobre d a d o s p o d e m ser úteis nesse livro. O m u n -


do, c o m o o c o n h e c e m o s e o experienciamos, isto é, o m u n d o r e p r e -
sentado e n ã o o m u n d o e m si m e s m o , é constituído através d e p r o -
cessos d e comunicação (Berger & L u c k m a n n , 1979; L u c k m a n n ,
1995). A pesquisa social, p o r t a n t o , apóia-se e m d a d o s sociais - d a d o s
sobre o m u n d o social - que são o resultado, e são construídos nos
processos de comunicação.
Neste livro, distinguimos dois m o d o s d e d a d o s sociais: comuni-
cação i n f o r m a l e comunicação formal. Além disso, distinguimos três
meios, através dos quais os d a d o s p o d e m ser construídos: texto, ima-

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g e m e materiais sonoros (ver Tabela 1.2). A comunicação informal


possui algumas poucas regras explícitas: as pessoas p o d e m falar, de-
senhar ou cantar do m o d o que queiram. O fato de haver poucas re-
gras explícitas não significa que n ã o existam regras, e p o d e aconte-
cer que o foco central da pesquisa social seja desvelar a ordem oculta
do m u n d o informal da vida cotidiana (ver Myers, cap. 11, neste vo-
lume, sobre análise da conversação). Na pesquisa social, estamos in-
teressados na maneira como as pessoas espontaneamente se expres-
sam e falam sobre o que é i m p o r t a n t e p a r a elas e como elas p e n s a m
sobre suas ações e as dos outros. Dados informais são gerados menos
c o n f o r m e as regras d e competência, tais como capacidade de escre-
ver u m texto, pintar ou c o m p o r u m a música, e mais do impulso do
m o m e n t o , ou sob a influência do pesquisador. O problema surge
q u a n d o os entrevistados dizem o que p e n s a m que o entrevistador
gostaria de ouvir. Devemos reconhecer falsas falas, que p o d e m dizer
mais sobre o pesquisador e sobre o processo de pesquisa, do que so-
b r e o tema pesquisado.

Tabela 1.2 - Modos e meios

Meio-modo Informal Formal


Entrevistas Jornais,
Texto Programas de rádio
Desenhos de crianças Quadros
Imagem Rabiscos feitos a o tele' Fotografias
Cantos espontâneos Escritos musicais
Sons Cenários sonoros Rituais sonoros
Relatos "distorcidos" Ruídos estratégicos Afirmações falsas sobre
"falsos" ou encenados uma representação

Por outro lado, existem ações comunicativas que são altamente


formais, no sentido d e que a competência exige u m conhecimento
especializado. As pessoas necessitam de treino p a r a escrever arti-
gos d e j o r n a l , p a r a p r o d u z i r desenhos p a r a u m comercial, ou p a r a
criar u m a r r a n j o p a r a u m a b a n d a p o p u l a r ou p a r a u m a orquestra
sinfônica. U m a pessoa c o m p e t e n t e p o d e ter estudado as regras do
comércio, muitas vezes p a r a modificá-las a seu proveito, o que se
chama de inovação. A comunicação formal segue as regras do co-
mércio. O fato d e o pesquisador u s a r os p r o d u t o s resultantes, tais
como u m artigo d e j o r n a l , p a r a a pesquisa social, provavelmente
n ã o influencia o ato da comunicação: n ã o faz diferença o que o j o r -
nalista escreveu. Nesse sentido, os dados baseados nos registros
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n ã o t r a z e m p r o b l e m a . U m p r o b l e m a d i f e r e n t e surge, c o n t u d o ,
q u a n d o os c o m u n i c a d o r e s d i z e m r e p r e s e n t a r u m g r u p o social que,
n a r e a l i d a d e , n ã o r e p r e s e n t a m . O cientista social deve r e c o n h e c e r
essas falsas p r e t e n s õ e s d e r e p r e s e n t a ç ã o .
Os d a d o s formais r e c o n s t r o e m as m a n e i r a s pelas quais a realida-
de social é r e p r e s e n t a d a p o r u m g r u p o social. U m j o r n a l r e p r e s e n t a
até certo p o n t o o m u n d o p a r a u m grupo d e pessoas, caso contrário
elas n ã o o c o m p r a r i a m . Nesse contexto, o j o r n a l se t o r n a u m indica-
d o r desta visão d e m u n d o . O m e s m o p o d e ser v e r d a d e p a r a dese-
n h o s que as pessoas c o n s i d e r a m interessantes e desejáveis, ou p a r a
u m a música q u e é a p r e c i a d a c o m o agradável. O que u m a pessoa lê,
olha, ou escuta, coloca esta pessoa e m d e t e r m i n a d a categoria, e
p o d e indicar o que a pessoa p o d e fazer n o f u t u r o . Categorizar o p r e -
sente e, às vezes, p r e d i z e r f u t u r a s trajetórias é o objetivo de t o d a pes-
quisa social. Neste livro nós nos c o n c e n t r a m o s quase que exclusiva-
m e n t e n o p r i m e i r o p o n t o : a categorização d o p r o b l e m a .
A filosofia deste livro p r e s s u p õ e que n ã o h á " u m m o d o ótimo" d e
fazer pesquisa social: n ã o h á razões convincentes p a r a nos tornar-
mos pollsters (pessoas que c o n d u z e m pesquisas d e opinião), n e m de-
vemos nos t o r n a r todos focusers (pessoas que realizam pesquisas com
g r u p o s focais). O objetivo deste livro é s u p e r a r a "lei d o i n s t r u m e n -
to" (Duncker, 1995), s e g u n d o a qual u m a criança que só conhece o
martelo p e n s a que t u d o deve ser t r a t a d o a marteladas. Por analogia,
n e m o questionário d e levantamento, n e m o g r u p o focal se consti-
t u e m n o c a m i n h o régio p a r a a pesquisa social. Este c a m i n h o p o d e ,
contudo, ser e n c o n t r a d o através d e u m a consciência a d e q u a d a dos
diferentes m é t o d o s , de u m a avaliação d e suas vantagens e limitações
e de u m a c o m p r e e n s ã o de seu uso e m diferentes situações sociais, di-
ferentes tipos de informações e diferentes p r o b l e m a s sociais.
Estamos de acordo agora que a realidade social p o d e ser repre-
sentada de maneiras informais ou formais de comunicar e que o meio
de comunicação p o d e ser composto de textos, imagens ou materiais
sonoros. Na pesquisa social nós consideramos todos eles como impor-
tantes, de u m m o d o ou de outro. E isto que tentaremos esclarecer.

Pesquisa qualitativa versus pesquisa quantitativa

T e m havido m u i t a discussão sobre as diferenças entre pesquisa


quantitativa e qualitativa. A pesquisa quantitativa lida com n ú m e r o s ,
usa m o d e l o s estatísticos p a r a explicar os dados, e é considerada pes-
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quisa hard. O protótipo mais conhecido é a pesquisa d e levantamen-


to de opinião. Em contraste, a pesquisa qualitativa evita números,
lida com interpretações das realidades sociais, e é considerada pes-
quisa soft. O protótipo mais conhecido é, provavelmente, a entrevis-
ta em p r o f u n d i d a d e . Estas diferenças são mostradas na Tabela 1.3.
Muitos esforços f o r a m despendidos na tentativa de j u s t a p o r pesqui-
sa quantitativa e qualitativa como paradigmas competitivos d e pes-
quisa social, ao p o n t o de haver pessoas que construíram carreiras
dentro de u m a ou de outra, muitas vezes polemizando sobre a supe-
rioridade da quantitativa sobre a qualitativa, ou vice-versa. Os edito-
res foram rápidos e m demarcar u m mercado e criaram coleções de
livros e revistas com a finalidade de p e r p e t u a r tal discussão.

Tabela 1.3 - Diferenças entre pesquisa quantitativa e qualitativa

Estratégias
Quantitativas Qualitativas

Dados Números Textos

Análise Estatística Interpretação

Protótipo Pesquisas de opinião Entrevista e m profundidade

Qualidade Hard Soff

É correto afirmar que a maior parte da pesquisa quantitativa está


centrada ao r e d o r do levantamento de dados (survey) e de questioná-
rios, apoiada pelo SPSS (Statistical Package for Social Sciences) e pelo
SAS (Statistics for Social Sciences) como programas padrões de análise
estatística. Tal prática estabeleceu padrões de treinamento metodo-
lógico nas universidades, a tal p o n t o que o termo metodologia pas-
sou a significar estatística em muitos campos da ciência social. Para-
lelamente, desenvolveu-se u m amplo setor de negócios, oferecendo
pesquisa social quantitativa p a r a u m a infinidade de propósitos. Mas
o entusiasmo recente pela pesquisa qualitativa conseguiu mudar,
com sucesso, a simples equiparação da pesquisa social com a meto-
dologia quantitativa; e foi reaberto u m espaço para u m a visão menos
dogmática a respeito de assuntos metodológicos - u m a atitude que
era comum entre os pioneiros da pesquisa social (veja, p o r exemplo,
Lazarsfeld, 1968).
Em nossos esforços, tanto em pesquisar, como em ensinar pes-
quisa social, estamos t e n t a n d o u m m o d o de superar tal polêmica es-
téril, entre duas tradições de pesquisa social a p a r e n t e m e n t e compe-

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titivas. Estamos p r o c u r a n d o este objetivo apoiados em vários pressu-


postos, como os que se seguem.

Não há quantificação sem qualificação


A mensuração dos fatos sociais d e p e n d e da categorização do
m u n d o social. As atividades sociais devem ser distinguidas antes que
qualquer freqüência ou percentual possa ser atribuído a qualquer
distinção. É necessário ter u m a noção das distinções qualitativas en-
tre categorias sociais, antes que se possa medir quantas pessoas per-
tencem a u m a ou outra categoria. Se alguém quer saber a distribui-
ção de cores n u m j a r d i m d e flores, deve p r i m e i r a m e n t e identificar o
conjunto de cores que existem n o j a r d i m ; somente depois disso
pode-se começar a contar as flores de d e t e r m i n a d a cor. O mesmo é
verdade p a r a os fatos sociais.

Não há análise estatística sem interpretação


Pensamos que é incorreto assumir que a pesquisa qualitativa
possui o monopólio da interpretação, com o pressuposto paralelo
d e que a pesquisa quantitativa chega a suas conclusões quase que au-
tomaticamente. Nós mesmos n u n c a realizamos n e n h u m a pesquisa
numérica sem e n f r e n t a r problemas de interpretação. Os dados não
falam p o r si mesmos, m e s m o que sejam processados cuidadosamen-
te, com modelos estatísticos sofisticados. Na verdade, quanto mais
complexo o modelo, mais difícil é a interpretação dos resultados.
Escudar-se atrás do "círculo hermenêutico" de interpretação, de
acordo com o qual a m e l h o r compreensão provém do fato d e se sa-
ber mais sobre o campo d e investigação, é para os pesquisadores
qualitativos u m lance retórico, mas u m lance bastante ilusório. O
que a discussão sobre a pesquisa qualitativa tem conseguido foi des-
mistificar a sofisticação estatística como o único caminho p a r a se
conseguir resultados significativos.. O prestígio ligado aos dados nu-
méricos possui tal p o d e r d e persuasão que, em alguns contextos, a
má qualidade dos dados é mascarada e compensada p o r u m a sofisti-
cação numérica. A estatística, como u m recurso retórico, contudo,
preocupa-se com o p r o b l e m a relativo ao tipo de informações que
são analisadas: se colocarmos informações irrelevantes, teremos es-
tatísticas irrelevantes. N o nosso p o n t o de vista, a g r a n d e conquista
da discussão sobre m é t o d o s qualitativos é que ela, n o que se refere à
pesquisa e ao treinamento, deslocou a atenção da análise em direção
a questões referentes à qualidade e à coleta dos dados.

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1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

Parece que a distinção entre pesquisa numérica e não-numérica é,


muitas vezes, confundida com outra discussão, isto é, a distinção entre
formalização e não formalização da pesquisa (ver Tabela 1.4). A polê-
mica sobre estes tipos de pesquisa é muitas vezes ligada ao problema
da formalidade, e baseada na socialização metodológica do pesquisa-
dor. O formalismo implica abstrações do contexto concreto da pes-
quisa, introduzindo assim u m a distância entre a observação e os da-
dos. Explicando melhor, o formalismo é u m a abstração para propósi-
tos gerais, útil para o tratamento de muitos tipos de dados, contanto
que determinadas condições sejam satisfeitas, tais como independên-
cia das mensurações, igual variância, etc. A natureza abstrata do for-
malismo implica u m a especialização tal que pode conduzir a u m de-
sinteresse total para com a realidade social representada pelos dados.
Muitas vezes é esse "distanciamento emocional", e não tanto os núme-
ros em si, que leva pesquisadores com outras convicções a não se sen-
tirem b e m com a pesquisa quantitativa. Como mostraremos a seguir,
contudo, isso tem a ver com o fato de se lidar com u m método de pes-
quisa específico, mas pode ser discutido com mais proveito no contex-
to mais amplo dos interesses do conhecimento. A pesquisa numérica
possui u m amplo repertório de formalidades estatísticas a seu dispor,
enquanto que u m repertório equivalente na pesquisa qualitativa não
está ainda bem desenvolvido - apesar do fato de que seu antecessor,
muitas vezes invocado, o estruturalismo, fosse muito forte em forma-
lismos (veja, p o r exemplo, Abell, 1987).

Tabela 1.4 - A formalização e a não formalização da pesquisa

Quantitativa Qualitativa
N ã o formalização Freqüências descritivas Citações, descrições, anedo-
tas
Formalização M o d e l a g e m estatística, por Modelagem
ex. um livro de introdução teórico-gráfica, por ex.
Abell (1987)

Pluralismo metodológico dentro do processo de pesquisa: além da lei do


instrumento
U m a conseqüência infeliz da prática de se centrar em dados nu-
méricos no treinamento em pesquisa foi u m a interrupção prematu-
ra n a fase de coleta de dados n o processo de pesquisa. Com muitas
pessoas competentes no tratamento de dados numéricos, o processo
de coleta de dados é r a p i d a m e n t e reduzido às rotinas mecânicas do
s
PESQUISA QUALITATIVA C O M TEXTO, I M A G E M E S O M §
... . . . . . . , , . . . . . . ^.. .

delineamento do questionário e da amostra do levantamento, como


s§j
s

se esta fosse a única maneira d e se fazer pesquisa social. N ã o há dúvi- S


da que muito se conseguiu devido ao r e f i n a m e n t o destes procedi- |i
mentos, ao passar dos anos, e o status do levantamento (survey), como §.
o mais i m p o r t a n t e m é t o d o de pesquisa social é justificado devido a
isso. N a d a justifica, contudo, sua condição como o único instrumen- |j
to de pesquisa social. Estamos aqui n o p e r i g o de sucumbir à "lei do
instrumento": dê u m martelo a u m a criança, e todas as coisas n o
m u n d o devem ser marteladas.
O que é necessário é u m a visão mais holística do processo d e pes-
quisa social, p a r a que ele possa incluir a definição e a revisão de u m
problema, sua teorização, a coleta de dados, a análise dos dados e a
apresentação dos resultados. Dentro deste processo, diferentes me-
todologias têm contribuições diversas a oferecer. Necessitamos de
u m a noção mais clara das vantagens e desvantagens funcionais das
diferentes correntes de métodos, e dos diferentes métodos d e n t r o
d e u m a corrente.

A ordenação do tempo
U m m o d o de descrever a funcionalidade dos diferentes métodos
é ordená-los em u m desenho que implique u m a linha de tempo. Jíí
Tradicionalmente, a pesquisa qualitativa foi considerada apenas no
estágio exploratório do processo de pesquisa (pré-desenho), com a |g
finalidade de explorar distinções qualitativas, a fim de se desenvol- j
ver mensurações, ou p a r a que se tivesse certa sensibilidade com o |g
campo de pesquisa. Formulações mais recentes consideram a pes- :j|
quisa qualitativa como igualmente i m p o r t a n t e depois do levanta- |g
mento, p a r a guiar a análise dos dados levantados, ou p a r a f u n d a - |§
m e n t a r a interpretação com observações mais detalhadas (pós-deli- í>
neamento). Delineamentos mais amplos consideram duas correntes fe
paralelas d e pesquisa, tanto simultaneamente, como em seqüências
oscilantes (delineamento paralelo; delineamento antes-e-depois).
Finalmente, a pesquisa qualitativa p o d e ser agora considerada como 5
sendo u m a estratégia de pesquisa i n d e p e n d e n t e , sem qualquer co- ||
nexão funcional com o levantamento ou com outra pesquisa quanti- ^
tativa (independente). A pesquisa qualitativa é vista como u m em- &
p r e e n d i m e n t o a u t ô n o m o de pesquisa, no contexto de u m p r o g r a m a
de pesquisa com u m a série de diferentes projetos.
A função i n d e p e n d e n t e da pesquisa qualitativa possui u m a limi-
tação que nós tentamos enfrentar neste livro. Embora seja possível

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1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

considerar a pesquisa n u m é r i c a e a n ã o n u m é r i c a c o m o e m p r e e n d i -
mentos a u t ô n o m o s , o p r o b l e m a com a p e s q u i s a qualitativa é que
ela é u m " p e s a d e l o didático". Se c o m p a r a d o s c o m a tradição d e
pesquisa n u m é r i c a , b a s e a d a n a a m o s t r a g e m , n o questionário e n a
análise estatística, os pesquisadores qualitativos, e os que p r e t e n -
d e m tornar-se pesquisadores qualitativos, e n c o n t r a m p o u c a clareza
e orientação n a literatura p a r a seus p r o c e d i m e n t o s . E m b o r a isto es-
teja m u d a n d o l e n t a m e n t e , à m e d i d a que a massa crítica de pesquisa-
dores desta linha está a u m e n t a n d o , a m a i o r i a d a literatura está ain-
da p r e o c u p a d a e m d e m a r c a r o território legítimo deste procedi-
mento metodológico a u t ô n o m o . Esta retórica Iegitimadora levou a
u m a h i p e r t r o f i a epistemológica, o r i g i n a n d o definições de posicio-
namentos e contraposicionamentos d e n t r o d e u m c a m p o competiti-
vo, com mais obscurantismo e j a r g õ e s d o q u e com esclarecimento e,
ao final d e contas, foi d e p o u c a serventia q u a n d o se trata d e saber o
que fazer q u a n d o se faz pesquisa qualitativa. Até o p r e s e n t e m o m e n -
to, temos m u i t o a p o i o p a r a nos "sentirmos b e m " , face à crítica tradi-
cional, mas h á p o u c a auto-observação crítica.

Discurso independente dos "padrões de boa prática"


A v a n t a g e m didática e prática d a pesquisa n u m é r i c a é sua clareza
de p r o c e d i m e n t o s e seu elaborado discurso d e qualidade n o proces-
so de investigação. U m discurso de q u a l i d a d e serve a vários propósi-
tos n u m a investigação: a) p a r a estabelecer u m a base p a r a autocríti-
ca; b) p a r a d e m a r c a r u m a prática boa d e u m a ruim, servindo como
padrões p a r a a revisão dos pares; c) p a r a g a n h a r credibilidade no
contexto d a credibilidade pública; d) p a r a servir como u m instru-
mento didático n o t r e i n a m e n t o dos estudantes. Sem q u e r e r imitar
literalmente a pesquisa quantitativa, a pesquisa qualitativa necessita
desenvolver equivalentes funcionais. A fim d e reforçar a a u t o n o m i a e a
credibilidade d a pesquisa qualitativa, necessitamos p r o c e d i m e n t o s e
padrões claros p a r a identificar u m a boa prática e u m a prática ruim,
tanto através d e exemplos, c o m o de critérios abstratos. Este livro
traz u m a contribuição nesta direção.

Elementos retóricos da pesquisa social


Historicamente, a ciência e a retórica tiveram u m a relação difícil.
A retórica foi vista pelos pioneiros da ciência como u m a forma d e em-
belezamento verbal que necessitava ser evitado se alguém quisesse al-
cançar a v e r d a d e d o problema: veja o lema da Sociedade Real de

— 27 —
PESQUISA QUALITATIVA C O M TEXTO, IMAGEM E SOM

Londres, nullius in verbis (nada nas palavras). Este ideal científico da


descrição e explicação da natureza, sem recorrer a meios retóricos,
está sendo cada vez mais desafiado pela visão realista do que está
acontecendo na comunicação n o meio dos cientistas e entre cientistas
e outros setores do público (Gross, 1990). O "deve" da ciência está
obscurecendo o "é" da ciência. U m elemento essencial da atividade
científica é "comunicar", e isto implica persuadir os ouvintes que al-
gumas coisas são importantes e outras não. A persuasão nos leva à es-
fera tradicional da retórica como "a arte de persuadir". Por conse-
guinte, nós consideramos a pesquisa social científica como u m a forma
d e retórica com meios e normas específicas de engajamento.
A análise retórica incorpora os "três mosqueteiros" da persua-
são: o logos, opathos e o ethos (veja Leach, cap. 12 neste volume). O lo-
gos se refere à lógica do p u r o argumento, e os tipos d e argumentos
empregados. Opathos se refere aos tipos de apelo e reconhecimento
d a d o à audiência, levando e m consideração a psicologia social das
emoções. O ethos abrange as referências implícitas e explícitas na si-
tuação de quem fala, que estabelece sua legitimidade e credibilidade
n o falar o que está sendo dito. Deveríamos, portanto, pressupor que
toda apresentação d e resultados de u m a pesquisa é u m conjunto dos
três elementos básicos da persuasão, na m e d i d a em que os pesquisa-
dores querem convencer seus pares, os políticos, as agências de fi-
nanciamento, ou m e s m o seus sujeitos de estudo, da autenticidade e
importância d e seus achados. N o contexto de se comunicar os resul-
tados da pesquisa, o ideal científico d e u m a retórica de p u r a raciona-
lidade argumentativa, sem pathos ou ethos, é u m a ilusão.
Esta perspectiva apresenta várias implicações úteis p a r a nosso pro-
blema da pesquisa qualitativa. Primeiro, sentimo-nos livres para con-
siderar a metodologia da pesquisa social como o meio retórico, atra-
vés do qual as ciências sociais p o d e m reforçar sua forma específica de
persuasão. O surgimento e a trajetória histórica desta forma de retóri-
ca na esfera pública da sociedade m o d e r n a são, em si mesmos, pro-
blemas históricos e sociológicos. Em segundo lugar, libertamo-nos do
obscurecimento epistemológico que pesa sobre as discussões dos mé-
todos, e podemos nos concentrar em desenvolver comunicações ve-
rossímeis, dentro das regras do j o g o científico. Em terceiro lugar, po-
demos tratar a pesquisa quantitativa e qualitativa de m o d o igual, a
partir destes pressupostos. E m quarto lugar, a retórica se desenvolve
no contexto do falar e do escrever públicos, o que nos lembra que o
método e o procedimento constituem u m a forma de responsabilida-

— 28 —
1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

d e pública p a r a a pesquisa que necessita ser exercida à altura. E final-


mente, o ideal científico n ã o é p e r d i d o , mas é preservado, a partir d e
u m a motivação coletiva p a r a se construir e conservar esta f o r m a espe-
cífica de persuasão científica - isto é, m a n t e r u m a retórica e m favor do
logos, reduzindo o ethos e opathos n a comunicação. As regras do méto-
d o e os procedimentos p a r a se conseguir apresentar evidência e m pú-
blico nos p r o t e g e m d a supervalorização da autoridade {ethos), e d e
apenas satisfazer ao público - dizendo-lhe o que quer ouvir (pathos).
N ã o d a r ouvidos n e m à autoridade, n e m ao público, continua sendo
u m valor central d e qualquer pesquisa que mereça tal n o m e . Isto é
apenas relevante e m contraste c o m outras formas d e retórica d a vida
pública, que diferem e m sua combinação de logos, ethos e pathos. Os
m u n d o s d a política, d a arte e d a literatura, os meios d e comunicação e
os tribunais, encorajam e cultivam formas d e persuasão que são dife-
rentes da f o r m a como ela é e m p r e g á d a na ciência. Atente-se que "di-
ferentes d a ciência" n ã o significa "irrelevantes": notícias, j u l g a m e n t o s
legais e boatos são formas importantes de comunicação e m b o r a difi-
r a m , e m sua combinação d e logos, pathos e ethos, do que n o r m a l m e n t e
é considerado u m a comunicação científica.

Deste m o d o , consideramos os m é t o d o s e p r o c e d i m e n t o s de cole-


ta e d e apresentação d e evidência como essenciais p a r a a pesquisa
social científica. Eles d e f i n e m o g r a u específico de retórica que de-
m a r c a as atividades científicas d e outras atividades públicas, e colo-
cam c o m clareza a pesquisa d e n t r o d a esfera pública, sujeitando-a às
exigências d e credibilidade. Os m é t o d o s e os p r o c e d i m e n t o s são o
meio científico d e prestação d e contas pública com respeito à evi-
dência. T e m o s , contudo, d e p r e s s u p o r u m a esfera pública que t e n h a
liberdade d e p e r m i t i r u m a busca d a evidência sem censura, o que
não p o d e ser assumido c o m o algo d a d o (Habermas, 1989).

Interesses do conhecimento e métodos


Métodos quantitativos e qualitativos são mais que apenas diferen-
ças entre estratégias de pesquisa e procedimentos de coleta de da-
dos. Esses enfoques representam, fundavientalmente, diferentes re-
ferenciais epistemológicos para teonzar a natureza do conhecimen-
to, a realidade social e os procedimentos para se compreender esses
fenômenos (Filstead, 1979: 45).
Esta afirmação exemplifica o p o n t o de vista de que enfoques
quantitativos e qualitativos com referência à pesquisa social r e p r e -
s e n t a m posições epistemológicas p r o f u n d a m e n t e diferentes. Eles
PESQUISA QUALITATIVA C O M TEXTO, IMAGEM E SOM

são, d e n t r o de tal concepção, m o d o s d e investigação m u t u a m e n t e jg


exclusivos. O u t r a afirmação, contudo, que muitas vezes é feita, refe- |§
re-se à significância crítica, radical ou emancipatória, implicada na §
escolha do m é t o d o feita pelo pesquisador. A pesquisa qualitativa é, f
muitas vezes, vista como u m a m a n e i r a d e dar p o d e r ou dar voz às
pessoas, em vez de tratá-las como objetos, cujo c o m p o r t a m e n t o deve m
ser quantificado e estatisticamente modelado. Essa dicotomia é inú-
til, como j á vimos.
U m m o d o alternativo de p e n s a r sobre os objetivos da pesquisa
social e sua relação com a metodologia é levar em conta a filosofia de
J ü r g e n Habermas, apresentada e m Knowledge and Human Interests
(Conhecimento e Interesses H u m a n o s , 1987). Habermas identifica
três "interesses do conhecimento", que devem ser compreendidos, a W-
fim de dar sentido à prática da ciência social e de suas conseqüências
na sociedade. Mas ele ressalta que n ã o são as orientações intencio-
nais e epistemologicamente conscientes dos cientistas que fornecem
a chave p a r a tal compreensão. Ao contrário, ele concebe os interes-
ses do conhecimento como tradições "antropologicamente sedi-
mentadas" (Habermas, 1974: 8). Os interesses constitutivos do co-
nhecimento aos quais H a b e r m a s se r e f e r e são, de fato, as "condições
que são necessárias a fim de que sujeitos capazes d e falar e agir pos-
sam ter u m a experiência que possa f u n d a m e n t a r u m a objetividade"
(1974: 9). T e n t a n d o t o m a r isso claro, nós descartamos a idéia de
que interesses, no sentido de H a b e r m a s , possam ser colocados "a
serviço" d e qualquer enfoque metodológico; ao contrário, eles exis-
tem, e m primeiro lugar, como condições necessárias p a r a a possibi-
lidade da prática de pesquisa, i n d e p e n d e n t e m e n t e de que métodos
específicos sejam empregados:
O fato de negarmos a reflexão é positivismo (1987: VII).
Em Knowledge and Human Interests, Habermas quer reconstruir a
"pré-história" do positivismo, p a r a mostrar como a epistemologia,
como u m a crítica do conhecimento, foi sendo progressivamente mi-
nada. Desde Kant, argumenta Habermas, "constrói-se o próprio ca-
minho sobre estágios abandonados de reflexão" (1987: VII). A partir
do predomínio do positivismo, a filosofia não pode mais compreen-
der a ciência; pois é a própria ciência que constitui a única forma de
conhecimento que o positivismo admite como crítica. A investigação
kantiana sobre as condições de u m conhecimento possível foi substi-
tuída p o r u m a filosofia da ciência que "se restringe à regulação pseu-

— 30 —
1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

donormativa da pesquisa estabelecida" (1987: 4), como o falsificacio-


nismo d e Popper. Habermas tenta reabilitar u m a dimensão episte-
mológica dentro da filosofia da ciência, "auto-reflexão crítica", atra-
vés da qual a ciência p o d e se tornar capaz de autocompreensão
(não-cientística). E, ao fazer isso, argumenta Habermas, a ciência, e
j particularmente a ciência social, é capaz de revelar as condições que
!/ possam impedir u m a prática de pesquisa crítica e emancipatória.
Podemos agora voltar à tipologia específica de interesses que
Habermas emprega. Através de u m a interpretação de Marx, Peirce,
Gadamer e Dilthey, Habermas identifica três interesses constitutivos
do conhecimento que estão na base das ciências "empírico-analíti-
cas", "histórico-hermenêuticas" e "críticas". As ciências empírico-ana-
líticas têm como sua base u m interesse no controle técnico. A luta
perpétua p a r a controlar o m u n d o natural, necessária p a r a a repro-
dução de nós mesmos como seres humanos, leva-nos a formular re-
gras que guiam nossa ação com propósito racional. Em outras pala-
vras, o imperativo racional p a r a a aquisição do conhecimento cientí-
fico sempre foi o de conseguir controle sobre as condições materiais
em que nos encontramos e com isso a u m e n t a r nossa saúde e segu-
rança física e espiritual. Devido ao fato de nosso interesse pela natu-
reza ser f u n d a m e n t a l m e n t e o de controlar suas condições, "este sis-
tema de ação condiciona, com necessidade transcendental, nosso
conhecimento da natureza ao interesse no possível controle técnico
sobre os processos naturais" (McCarthy, 1978: 62). As ciências empí-
rico-analíticas procuram produzir conhecimento nomológico. A pre-
dição e a explicação possuem, portanto, u m a relação de simetria.
Leis universais f u n d a m e n t a d a s empiricamente são combinadas com
um conjunto de condições iniciais, que resultam em u m conjunto de
covariâncias (previsíveis) de acontecimentos observáveis. Este é u m
modelo que p o d e ser visto em muita pesquisa social quantitativa.
As ciências histórico-hermenêuticas, diz Habermas, surgem atra-
vés de u m interesse prático no estabelecimento de consenso. Para
que a ciência (e, na verdade, qualquer outra prática social) aconteça,
é imperativo que haja compreensão intersubjetiva fidedigna, estabe-
lecida na prática da linguagem comum. A compreensão hermenêu-
tica (Verstehen) tem como finalidade restaurar canais rompidos de
comunicação. Isto se dá em duas dimensões: a primeira, no elo entre
a própria experiência de vida de alguém e a tradição à qual ele per-
tence; e a segunda se dá na esfera da comunicação entre diferentes
indivíduos, grupos e tradições. A falta d e comunicação é u m a carac-

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PESQUISA QUALITATIVA C O M TEXTO, IMAGEM E SOM

terística p e r p é t u a e onipresente do m u n d o social, e se constitui n u m


problema social óbvio. A preocupação em restabelecer o entendi-
mento m ú t u o torna-se então, de igual m o d o , u m p r o b l e m a perpé-
tuo e onipresente. As ciências histórico-hermenêuticas p r o c e d e r a m
de práticas em questões públicas — na política e na organização de
comunidades e d e trabalho p a r a p r o d u ç ã o - o n d e a vida individual e
a organização social são impossíveis sem alguma estabilidade do sen-
tido intersubjetivo. Estas são, pois, as condições que exigem o desen-
volvimento das ciências culturais ou sociais. H a b e r m a s contrasta a fi-
nalidade das ciências empírico-analíticas com as ciências culturais
(Geisteswissenchaften):
As primeiras têm como finalidade substituir regras de comporta-
mento que fracassaram na realidade com regras técnicas testadas,
enquanto que as segundas procuram interpretar expressões da
vida que não podem ser compreendidas e que bloqueiam a recipro-
cidade das expectativas comportamentais (1987: 175).
O cientista cultural necessita a p r e n d e r a falar a língua que ele in-
terpreta, mas deve necessariamente aproximar-se d e tal interpreta-
ção de u m p o n t o histórico específico. E ao fazer isto, é impossível
não levar e m consideração a totalidade d e interpretação que j á está
presente: o pesquisador entra no que poderia se c h a m a r d e "círculo
hermenêutico". O p o n t o a que tudo isso conduz, p a r a Habermas, é
ao estabelecimento d e consenso entre os atores. Este consenso é ne-
cessariamente fluido e dinâmico, pois ele é conseguido através de
u m a interpretação que evoluiu, e continua a evoluir, historicamente.
Essa orientação consensual p a r a se a p r e e n d e r a realidade social
constitui o "interesse prático" das ciências hermenêuticas - cuja fi-
nalidade (não dita) é estabelecer as normas comuns que tornam a
atividade social possível.
A esta altura, pode-se ver claramente como a clivagem quantita-
tivo/qualitativo p o d e ser caracterizada como a que separa técnicas
de "controle", p o r u m lado, e de "compreensão", p o r outro. Mas
isto, na verdade, n ã o confronta a afirmativa mais forte feita, muitas
vezes, em favor da pesquisa qualitativa, d e que ela é intrinsecamente
u m a f o r m a de pesquisa mais crítica e potencialmente emancipató-
ria. U m objetivo i m p o r t a n t e do pesquisador qualitativo é que ele se
torna capaz de ver "através dos olhos daqueles que estão sendo pes-
quisados" (Bryman, 1988: 61). Tal tipo de enfoque d e f e n d e que é
necessário c o m p r e e n d e r as interpretações que os atores sociais pos-
suem do m u n d o , pois são estes que motivam o c o m p o r t a m e n t o que

— 32 —
1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

cria o p r ó p r i o m u n d o social. E m b o r a isso seja certamente verdadei-


ro, não se conclui que o resultado seja necessariamente u m a p r o d u -
ção crítica. N a verdade, pode-se imaginar u m a situação em que tal
"entendimento", da m a n e i r a como é construído, sirva de f u n d a m e n -
to p a r a o estabelecimento de mecanismos de controle social.
U m a crítica bem-sucedida é a que explica os fenômenos sob in-
vestigação com mais sucesso do que as teorias aceitas até o m o m e n -
to. E ao fazer isto, ela deve desafiar pressupostos que até o m o m e n t o
tinham sido aceitos acriticamente. Corremos o risco, ao assumirmos
um enfoque fenomènológico, socioconstrucionista ou qualquer ou-
tro enfoque qualitativo, d e substituirmos acriticamente nossos p r ó -
prios pressupostos, pelos de nossos informantes. Deste modo, p o r
arte de u m "empiricismo p o r proximidade", a pesquisa qualitativa
pode repetir os erros considerados, em geral, como sendo associa-
dos a u m positivismo acrítico.
A esta altura Habermas é, mais u m a vez, útil. Os interesses eman-
cipatórios daquilo que Habermas (1987: 310) chama de ciências "crí-
ticas", não excluem u m m o d o de investigação empírico-analítica: mas
de igual m o d o eles vão mais além que o entendimento hermenêutico.
A tese de Habermas é a de que os interesses emancipatórios fornecem
o referencial para se avançar além do conhecimento nomológico e da
Verstelien, e nos p e r m i t e m "determinar quando afirmações teóricas
atingem regularidades invariantes da ação social como tal, e quando
elas expressam relações ideologicamente congeladas de dependência
que podem, em princípio, ser transformadas" (1987: 310). É através
de u m processo auto-reflexivo que as ciências críticas p o d e m chegar a
identificar estruturas condicionadoras de poder que, acriticamente,
se mostram como "naturais" mas são, de fato, o resultado de u m a
"comunicação sistematicamente distorcida e de u m a repressão sutil-
mente legitimada" (1987: 371).
Habermas vê o p e r í o d o do Iluminismo como a idade de ouro da
ciência "crítica", da astronomia até a filosofia. Mas o que distingue
este período não é simplesmente o fato de que ele marcou o começo
do "método científico", mas que a aplicação da razão, como corpori-
ficada no método, foi i n e r e n t e m e n t e emancipatória, devido ao de-
safio que ela colocou à legitimação da Igreja e da hierarquia social
existente. A afirmativa de H a b e r m a s é, pois, que a razão (o que nós
comumente e n t e n d e m o s hoje p o r racionalismo) em si mesma é ine-
rente a u m interesse de conhecimento emancipatório e que a aplica-
ção da razão é f u n d a m e n t a l m e n t e u m e m p r e e n d i m e n t o crítico. Não
PESQUISA QUALITATIVA C O M TEXTO, IMAGEM E SOM

se deveria, porém, tentar c o m p r e e n d e r esta postura como u m a pres-


crição normativa a ser assumida pelos cientistas sociais "radicais", ao
invés disto, ela é u m caminho p a r a se teorizar como, e p o r que, u m a
boa ciência, de qualquer espécie, p o d e ser u m a atividade libertadora
para a humanidade.
Zygmunt Bauman, escrevendo na mesma linha d e idéias que Ha-
bermas dentro da tradição da teoria crítica, apresenta u m a sugestão
prática p a r a a operacionalização d e u m enfoque de pesquisa crítica -
"autenticação":
0 potencial emancipatôrio do conhecimento é posto à prova -ena
verdade pode ser concretizado — somente a partir do diálogo, quan-
do os objetos das afirmações, teóricas se transformavi em partici-
pantes ativos no processo incipiente de autenticação (1976: 106).
A autenticação de u m a teoria crítica, deste ponto de vista, so-
m e n t e p o d e ser conseguida através da aceitação de sua importância
pelos que constituem seus objetos. Por exemplo, u m a pesquisa qua-
litativa que pressuponha a devolução dos resultados aos p a r t i c i p a n -
tes do estudo p o d e conseguir, na verdade, tal resultado. E claro, che-
ga-se aos limites de tal enfoque, q u a n d o os objetos da pesquisa são
pessoas que j á ocupam posições de p o d e r ou de elite - como os polí-
ticos, gerentes e profissionais. Em tais casos, os informantes p o d e m
ter interesses pessoais a d e f e n d e r e p o d e m , p o r isso, procurar dis-
torcer seus reais pontos d e vista com respeito às interpretações críti-
cas feitas pelos pesquisadores.
Mas a crítica n ã o precisa ser, exclusivamente, o campo do enfo-
que qualitativo. Estudos vitorianos sobre pobreza, tais c o m o Po-
verty: a Study o/Town Life (1902), d e Rowntree, atingiram um status
crítico, p o d e m o s dizer, ao desvelar a extensão da pobreza e m esca-
la quantitativa:
A classe trabalhadora recebe até 24 por cento menos de comida do
quanto, conforme provado por peritos especializados, é necessário
para a manutenção da eficiênciafísica(1902: 303).
É um fato que pode muito bem causar grandes sofrimentos, que
nesse país de abundante riqueza durante um tempo de prosperida-
de sem igual, mais que um quarto da população esteja vivendo na
pobreza (1902: 304).
O trabalho quantitativo d e Rowntree consistia em u m a simples
estatística descritiva; mas ela se mostrou poderosa devido a sua habi-
lidade em expor condições ocultas de pobreza e privação. Apresen-

— 34 —
1. QUALIDADE, QUANTIDADE E INTERESSES..

tações d e d a d o s numéricos c h a m a m , f r e q ü e n t e m e n t e , a atenção n o


discurso dos meios d e comunicação; eles são recursos retóricos. E
isso se constitui e m u m m o d o p e l o qual, p a r a citar Bauman, a teori-
zação sociál "brota d a escrivaninha d o p e s q u i s a d o r e navega pelas
águas infinitas d a reflexão p o p u l a r " (1976: 107).
Parece claro, então, que se deve t a m b é m levar e m consideração a
recepção dos resultados d a pesquisa p e l o público p r e t e n d i d o (ou
talvez n ã o p r e t e n d i d o ) , c o m o p a r t e d a "situação total d a pesquisa".
Os achados d e pesquisas realizadas c o m g r u p o s focais sobre o consu-
m o d e álcool, p o r e x e m p l o , p o s s u e m u m a significação diversa, de-
p e n d e n d o d o fato d e eles s e r e m publicados n a i m p r e n s a p o p u l a r ,
como p a r t e d e u m a c a m p a n h a d e s a ú d e pública, com o fim d e aju-
d a r alcoólicos, ou se f o r e m u s a d o s p a r a d a r i n f o r m a ç õ e s às estraté-
gias d e m a r k e t i n g d e u m a g r a n d e cervejaria. Neste caso, a r e c e p ç ã o
dos achados p o r q u e m e p a r a q u e p r o p ó s i t o é u m p o n t o crucial. A
recente controvérsia sobre o Censo dos Estados Unidos d o a n o 2000
é u m e x e m p l o o n d e os estatísticos, q u e estavam pleiteando e m p r e -
gar u m a m e t o d o l o g i a sofisticada d e a m o s t r a g e m d e estágios múlti-
plos, q u e r i a m corrigir a subestimação d e minorias étnicas, i n e r e n t e
ao m é t o d o constitucionalmente c o n s a g r a d o d e "contagem comple-
ta" (Wright, 1998). A t e m p e s t a d e política que se seguiu é u m exem-
plo o n d e u m a reflexão pública generalizada sobre assuntos sociais
relevantes foi d e s e n c a d e a d a devido às claras implicações d e u m a
metodologia d e pesquisa quantitativa clássica.
A implicação, então, d a tipologia d e interesses d o c o n h e c i m e n t o
de H a b e r m a s é que nós p o d e m o s c o n s i d e r a r que o potencial crítico
de diferentes metodologias d e pesquisa, sui generis, n ã o é i m p o r t a n -
te n o que se r e f e r e às discussões a p r e s e n t a d a s nos capítulos que se
seguem. A p r o n t i d ã o dos pesquisadores e m questionar seus p r ó -
prios pressupostos e as i n t e r p r e t a ç õ e s subseqüentes de acordo com
os dados, j u n t a m e n t e c o m o m o d o c o m o os resultados são recebidos
e p o r q u e m são recebidos, são fatores m u i t o mais importantes p a r a a
possibilidade d e u m a ação e m a n c i p a t ó r i a d o que a escolha da técni-
ca e m p r e g a d a .

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