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Margem, Faculdade de Ciências Sociais PUC – SP, nº.

5, São Paulo, EDUC,


1992.

Entre o fascínio do passado e o enigma do futuro

ISAÍAS PESSOTTI

Resumo

O artigo analisa as emoções suscitadas pelas narrativas do passado,


pela vivência dos fatos presentes e pelas indefinições do futuro. Esse
procedimento permite situar o ser humano – fraco, limitado, inseguro e
dolorosamente autônomo – diante do enigma do futuro: como projetá-lo e
construí-lo. A ciência é o único mapa confiável, mas traz a possibilidade de
dominação cientificamente administrada dos povos, pessoas e recursos. A
discussão e proposição de valores para o futuro devem ser buscados na
junção dos conhecimentos histórico e científico. Esse é um papel superior da
universidade.
Palavras-chave: vivência do tempo; emoções e tempo, ciência e ética;
universidade e ética; construção do futuro.

Abstract

The article analyses the emotions raised by the narrations of the past,
by the experience of present facts and by the lack of definitions of the future.
This procedure allows to place the human being – weak, limited, insecure
and painfully autonomous – before the future’s enigma: how to design and
build it. Science is the only reliable source, but it brings about the possibility
of the scientifically administered domination of peoples, individuals and
resources. The discussion and proposal of values for the future must be
searched in the historical and scientifical knowledge. This is a major role of
universities.
Key Words: Time experience; emotions and time; Science and ethics;
ethics and university; future construction.
O fascínio do passado nos é transmitido desde as primeiras historinhas
da infância, em que se narravam feitos, venturas e azares de heróis e vilões
que jamais eram contemporâneos de quem narrava ou escrevera a história.
Nada era presente, atual. Tudo era passado, tudo “era uma vez...”.
Um avô ou uma tia mais velha, mesmo que não fosse uma fonte de
carinho, era uma fonte de histórias, de saberes, de experiências. Era alguém
que tinha visto bondes puxados por burros, que sabia como fazer vassouras,
que tinha enfrentado desafios, imprevistos e acidentes. Alguém que, para o
nosso deslumbramento infantil, tinha algo dos heróis das historinhas. Assim,
o avô, ou a tia, mesmo presentes, faziam parte do “era uma vez...”.
Uma história sobre os fatos e personagens do momento não teria o
fascínio das coisas do “tempo antigo”, dos fatos acontecidos “muito longe
daqui”. Por quê? Porque a realidade presente, o que ocorre agora e aqui,
impõe-se como fato, em toda a sua realidade, em toda a sua objetividade. E,
enquanto realidade, impede a fantasia, o prazer lúdico de imaginar.
Enquanto objetividade, anula ou, no mínimo, limita os processos subjetivos
de identificação com os personagens, ou a sublimação dos aspectos feios,
traumáticos ou desagradáveis do que se narra.
Então o charme do “era uma vez” e do “país distante” está no poder do
fugir do agora e do aqui. Está, portanto, no prazer da fantasia e da livre
elaboração emocional dos fatos e eventos da história. Está na negação da
realidade objetiva. Se o passado imaginado ou histórico nos encanta, é
porque ele não existe mais: não está aqui, não existe agora. Não é realidade;
não é, a rigor, fato. É registro, história.
Ao contrário, os episódios atuais, presentes, não são registros:
aparecem como fatos. E, enquanto fatos, impõem certas percepções e
excluem outras, impõem certas emoções e impedem outras. Mais ainda, o
episódio presente é um dado, “dado de fato”, inalterável. É a realidade com
toda sua força a impor-se a nós, pelo simples fato de existir, sem que a
subjetividade possa de algum modo alterá-la, mudá-la do rumo do belo e do
prazer; ou na direção dos desejos, conscientes ou não, de cada um.
No tempo do “era uma vez”, e no espaço do “país distante”, tudo é
diverso. A fantasia e a apropriação subjetiva dos eventos e personagens é
totalmente livre. Não havendo fatos a racionalidade não se impõe. Seria o
gozo da irracionalidade? Não da irracionalidade desejada, imposta, que seria
o delírio ou a loucura. Uma irracionalidade consentida, reversível.
O fascínio das histórias infantis está, portanto, na liberdade de jogar
com a fantasia e a própria subjetividade emocional. Note-se: está na
liberdade de se entregar ao jogo da irracionalidade ou da ficção e não na
imposição desse jogo. É, se quiserem, um delírio consentido e cuja atração
está justamente no contraste que mantém com a percepção racional que o
presente impõe. Ou na possibilidade de acordar do sonho. De recorrer às
armas da razão, quando a fantasia trouxer medo, terror ou sofrimento.
O passado fascina porque, de certo modo, nós o dominamos, está sob
controle. O presente, não. O presente se impõe e escapa do nosso controle,
ele nos controla. Por isso é, quase sempre, desafio. É risco. Um risco que o
passado não traz. O passado não assusta, não ameaça.
Como o passado do “era uma vez” nos fascinava na infância, o passado
histórico também nos fascina. Por motivos parecidos. A Idade Média, a Grécia
antiga, as navegações pioneiras, o Renascimento, a vida dos imigrantes do
século passado e do início deste também encantam. Aqui não se trata do
reino da fantasia: além dos documentos das épocas, as armaduras e castelos
estão à vista, como os textos gregos, Atenas e seus templos, as cúpulas e
estátuas do Renascimento, os carroções dos imigrantes ou os tonéis ou
ferramentas que utilizaram. Não há ficção, não é um “faz de conta”. Mas o
fascínio é o mesmo ou quase o mesmo. Não há fantasia, mas se trata
também, aqui, de irrealidade. O passado histórico foi real, já não é.
Os restos de uma catedral ou uma carroça dos velhos imigrantes nos
fascinam justamente por sua natureza híbrida: são restos reais e presentes,
de eventos ou pessoas que são, agora, irreais e ausentes.
Agora o prazer buscado não é o da livre fantasia que o conto de fadas
desgarrava, nem o prazer de se apropriar dos eventos e poder alterá-los
livremente, nas asas da própria emoção. As velhas fotografias ou uma vasilha
de cerâmica pré-colombiana nos fascinam justamente porque são elementos
factuais. Provas de eventos e marcas reais de pessoas. Perderiam seu
encanto se descobríssemos que são imitações, ficções. Aqui a ficção seria o
desencanto. Diante do passado histórico, já não é a fantasia que nos
encanta, mas o que dele restou e que permanece real. Continua real, mas
não é do presente.
Tocar uma estátua romana ou uma espada etrusca ou uma velha roda
d’água nos emociona. Por quê? Porque ao tocá-las nós entramos no passado,
convivemos, por um instante, com o escultor romano, o guerreiro etrusco, ou
o carpinteiro de cem anos atrás. É um contato pessoal, através dos sinais que
ele deixou. Essa sensação de convivência, de intimidade, fica mais evidente,
até dramático, quando o que ficou do passado não são ruínas ou objetos,
mas os escritos, os textos, a palavra escrita. É por isso que os manuscritos
antigos têm um charme irresistível. Não são apenas palavras mortas do
tempo que passou; são mensagens, carregadas de significados que
perduram, guardados nas palavras. Quando alguém as decifra tornam-se
vivas, tão vivas como eram para quem as escrevia.
Ao ler um escrito medieval, por exemplo, faz-se um contato com o
passado. Só que agora não é um contato simbólico e mediado por um
objeto-sinal. É um contato real, vivo e direto, com o autor do escrito ou com
o copista que o escreveu no pergaminho. Agora se interage com pessoas
distantes, que habitam outro tempo. Agora chegamos ao autor, como
chegava qualquer leitor contemporâneo dele. Do mesmo modo que a leitura
da carta de um amigo distante nos coloca em contato real, direto e pessoal,
com ele.
Mas há uma diferença: ao contrário de um texto atual, o conteúdo de
um pergaminho medieval não toca a nossa vida de hoje. Por isso, a
compreensão que temos dele, as idéias que ele nos desperta, são isentas de
qualquer exigência de lógica, coerência ideológica e de correção da
informação. Pode-se lê-lo e entendê-lo sem qualquer referência à realidade,
ou às categorias do pensamento atual, aos critérios de acerto desse tempo.
Não há, nessa leitura, qualquer risco de erro. É uma liberdade de “leitura”
que, diante de um texto de hoje não nos é dada, não sentimos. É essa
liberdade que assemelha o fascínio do passado histórico ao do conto de
fada, do “era uma vez”.
Mas há outras razões para o charme do passado histórico.
Diversamente do presente e do futuro, ele não tem imprevistos. É aventura,
ventura ou desventura consumada. É um universo racionalizado, ordenado,.
Onde os imprevistos e os contrastes se acabaram. É um reino de paz, de
serenidade. Não há mais desejos insatisfeitos ou angústias pelo que pode
ocorrer. As paixões estão caladas, as desgraças não existem. As dores se
aquietaram. O passado é, assim, um lugar seguro, um refúgio, livre das
incertezas do presente, dos temores pelo futuro. Também por isso, nos
fascina.
Outra explicação para o charme do passado, ou para o prazer que
sentimos ao conhecê-lo, tem raízes na insegurança da criança sobre suas
origens. É a ansiedade de sentir-se estranha. De não saber as causas de sua
presença no meio de pessoas que sabem e podem mais que ela, e que
viveram experiências que ela não conhece, falam de coisas e fatos que ela
jamais viu. Conhecer o passado significa, agora, o alívio da angústia de
existir por acidente, sem razões, sem explicação. A criança adora saber como
viviam seus pais e seus avós porque, ao conhecer esse passado, enxerga sua
existência como parte coerente de um processo, como “fruto” dele. O
conhecimento do passado, neste caso, atrai porque ordena o caos, ilumina a
penumbra. Aclara o horizonte.
Também o adulto encontra prazer em descobrir como viviam seus
avós, como era sua cidade antes de ele nascer, como foi a chegada do
primeiro médico à vila. Por quê? Pelo mesmo motivo: ele encontra, ao saber
desse passado, explicações que lhe faltavam, significados novos para
acontecimentos que pareciam incompreensíveis, respostas para perguntas
que gostaria de ter feito e não fez. Ele também busca, e acha, no passado, a
resposta a incertezas, a reordenação do que não se explicava. (O
conhecimento do passado traz o prazer de achar respostas. Mesmo a
perguntas jamais formuladas, inconscientes, disfarçadas sob a forma de
angústias e inseguranças.)
E o passado alheio? O dos acontecimentos políticos, sociais e culturais?
Tem seu charme, também ele.
Conhecer os detalhes da colonização portuguesa no Brasil, do
assassinato de Júlio César, das batalhas dos templários da Terra Santa ou da
abdicação de D. Pedro I dá a sensação de penetrar no proibido, no
escondido. Não só: dá a sensação de pertencer a um processo maior, que
inclui aqueles episódios. Mesmo que eles não nos empolguem, ainda que nos
incomodem, o simples fato de conhecer esse passado dá algum sentido mais
claro à nossa concepção do presente e da vida. Neste caso, o conhecimento
histórico não só dissipa as trevas, mas também nos dá recursos para julgar o
passado; não só nos reduz as ansiedades, mas nos torna, em certo modo,
donos de episódios que não eram nossos e nos mostra participantes de
processos que nem conhecíamos. O conhecimento histórico, agora, amplia a
nossa significação. Também por isso nos fascina. Ele nos faz saber em que
rota caminha a nave que nos transporta, por quais portos ela já passou.
Há mais uma explicação para os encantos do passado e do
conhecimento histórico. Também envolve a busca dessa significação nossa
no processo temporal em que navegamos. Mas há alguma diferença aqui. A
que vai entre o enxergar-se como participante de um processo histórico
impessoal que nos envolve e o perceber-se parceiro ou seguidor de outros
homens, que agora habitam o passado.
Quanto mais se conhece sobre as lutas e projetos dos que passaram,
mais se pode perceber quanto os próprios combates e planos são
continuação daqueles. Quanto a luta é a mesma e os alvos não mudaram.
Assim, o conhecimento do passado histórico nos vincula a outros homens,
que sequer nos conheceram, mas que nós podemos conhecer e amar, como
companheiros de luta, de crença, de valores. E então nos sentimos
depositários de bandeiras que acreditávamos só nossas, mas foram herdadas
dos que as defraldaram antes de nós. Aqui não se trata apenas de encontrar
uma significação maior para a própria trajetória no planeta: agora, o que o
conhecimento histórico nos dá é companhia. É significação afetiva para a
nossa luta ou projeto. É comunicação pessoal com os valores e idéias dos
que nos precederam.
Há ainda outra graça, talvez menor, no conhecimento do passado
histórico. Ele nos mostra quanto as inovações são velhas, quanto as mesmas
descobertas se repetem, quanto os pioneiros de hoje foram precedidos na
história. Mostra a inexorável continuidade da trajetória do conhecimento.
Quanto as novidades são antigas. Qual a graça disso? É a certeza de que o
melhor conhecimento de hoje será ultrapassado amanhã, e de que, portanto,
a angustiante busca da verdade permanente não vale a pena que custa.
Agora, o conhecimento histórico nos absolve e isenta da culpa de não
sermos deuses. De sermos finitos.
O conhecimento histórico pode, ademais, ser fonte de prazer, quando
enxergamos os episódios e personagens, ressuscitados dentro de alguma
trama coerente. Como ocorre nos romances ditos históricos. Por que a ficção
histórica, principalmente quando brotada de documentação autêntica, pode
fascinar-nos?
Para responder a essa pergunta, convém começar com um pouco de
história: no final das tragédias gregas, principalmente das de Eurípedes, uma
fala de algum personagem, de algum deus ou do coro apontava o destino
ulterior das figuras participantes: desgraça e vergonha para os vilões, honra
e glória para os heróis e mártires. A katá strophé era o retorno à serenidade
após as emoções intensas do pathos. Assim, os terrores e ódios, compaixões
e desprezos que a tragédia suscitara eram abolidos. Superados por uma
reordenação de fatos e personagens numa harmonia racional, sublimada.
A ficção “histórica”, parece, faz o contrário: promove o retorno a um
passado, em que o bem e o mal, as dores e os desejos já se aquietaram. A
volta a um mundo já sublimado e racionalizado, para reativar as emoções, as
ansiedades, ou, numa palavra, o pathos. Episódios e personagens revivem
para recriar paixões, emoções, ansiedades. Por exemplo, monges,
inquisidores e hereges ressuscitam e nos provocam medo, ódios ou
compaixão.
A ficção histórica produz no leitor a vivência emotiva, patética, de
episódios passados, depois de se terem transformado em história. Aliás o
conhecimento propriamente histórico é, essencialmente, uma reordenação
racional e sublimadora; é um que, como a katá strophé, abole as dores, anula
os conflitos, transforma vida e paixões em registro sereno.
Como explicar, então, o charme, a sedução de obras como O nome da
rosa, em que o leitor se defronta, não com a serenidade das atas e registros
mas com medos, perigos e situações cruentas? Onde não se acha, portanto,
qualquer sublimação tranqüilizadora.
Ocorre que o passado que o romance ressuscita, mesmo repleto de
terrores, é vivido como uma aventura já consumada. É até relatada pelo
protagonista. E, portanto, inofensiva. Na verdade, o novo pathos é vivido sem
impotência, sem angústia: por mais conflituosa ou trágica que seja, a trama é
vivida com a segurança, inconsciente até, de que tudo pode retornar ao
plano do sublime ou do racional em qualquer momento. Com a segurança da
katá strophé.
Talvez não aconteça o mesmo, com obras de ficção não histórica:
nessas, ou se elabora o quotidiano, ou se decola para a fantasia. No primeiro
caso, não se pode sublimar as contradições e conflitos do dia-a-dia nem se
exclui eventual sobreposição ou paralelismo a aspectos da vida real do leitor,
o que lhe impede uma verdadeira fuga do presente. No segundo, é
necessário, quase por definição, que a trama não seja ancorada em qualquer
ordenação racionalizadora.
Em outros termos, ou o leitor revive o seu quotidiano, através dos
personagens ou precisa abandonar-se à insegurança da fantasia ilimitada, à
insegurança do... delírio. Ora, o pensamento delirante fascina porque é fuga
de uma realidade tediosa ou sofrida, ou porque é aventura. Mas ele é
também ameaça, traz ansiedade, quando a narrativa lhe impõe o
desgarramento da órbita da racionalidade. Quando ele se sente empurrado
para o espaço negro do absurdo. Ou da loucura.
É necessário, então, para que o prazer da aventura não se desgaste na
ansiedade, que não se perca a sensação de poder voltar à racionalidade; ou à
sublimação post-factum.
Uma obra de ficção, histórica ou não, atrai porque traz o prazer lúdico
da fantasia, do pensamento delirante. Mas para fascinar o leitor, deve
preservar-lhe a segurança de não se extraviar num universo sem limites, de
não “se perder de si mesmo”. E nisso reside, talvez, o charme do romance
histórico: ele é menos uma viagem ao espaço sideral que uma visita ao velho
sótão dos avós. Uma visita que revive pessoas, diálogos e episódios, mesmo
tristes ou cruéis. Mas eles são revividos com a segurança de que, fechada a
porta, glórias e medos, grandezas e vergonhas, dramas e temores, tudo isso,
todo esse universo se esfuma.
É o pathos, agora mais sereno, após a katá stophé. A essas emoções
mais serenas, livres da ansiedade pode-se juntar, no romance, algum enigma
a desafiar a razão.
Então se junta o encanto da fantasia ao prazer tranqüilizante do
conhecimento histórico e ao emprego lúdico das armas da razão.
Agora a teia em que se enreda o leitor é mais completa ainda. A ficção
histórica de enigma seduz porque oferece ao leitor o prazer lúdico do
pensamento delirante (na revivência afetiva do passado), imune à
insegurança ansiosa do absurdo e com a sensação de pleno gozo de sua
razão.
O fascínio, em resumo, estaria no equilíbrio tênue entre o real,
portanto racionalizável, e o imaginário. O que seduz, no romance histórico,
não é o evidente, nem o absurdo. É o verossímil.
Após essas reflexões sobre os encantos do passado e o conhecimento
histórico, e já que se fala tanto em novo milênio, olhemos um pouco para os
enigmas do futuro e o conhecimento científico.
O futuro é o reino do amanhã, o território do que ainda vai ser. Para o
entusiasmo da nossa infância aparecia identificado com a promessa de ser
grande, de saber tudo ou quase tudo, de ser forte. Tanto quanto nos
sentiamos pequenos, ignorantes e fracos. O futuro era uma linha de
chegada, o acesso à plenitude. O fim das impotências, da fraqueza. A
conquista da autonomia.
Depois crescemos, aprendemos muito, ficamos até mais fortes. Só que
a linha de chegada não existia. A plenitude continua a fugir de nós como
miragem. Apenas se termina um trabalho, percebe-se que ele poderia ser
totalmente outro. Apenas se alcança um alvo e ele aponta para outros.
Atinge-se uma meta e dela partem novas estradas. Mais caminhamos, mais
avançamos no território que era o das esperanças, mais percebemos que
continuamos fracos, limitados, inseguros. E, agora, dolorosamente
autônomos. Entregues a nós.
Tudo quanto o passado tinha de consumado e ordenado, o futuro tem
de indefinição e inconsistência. Por isso, diante do futuro, o homem se acha
indefeso, impotente. Não há acasos no passado: a causalidade está lá,
aprisionada, exaurida: foram ditas todas as palavras, sofridas todas as dores,
fruídos todos os prazeres. Os complexos processos causais que
determinaram guerras e epopéias, heresias e inquisições, sonatas e
catedrais, mesquinharias e grandezas estão lá, agora intemporais,
desativados. E, enquanto desativados, seu conhecimento dispensa qualquer
urgência.
Diante do futuro o homem se defronta com a vastidão de um horizonte
nebuloso e sem contornos que pertence ao acaso. Ao domínio do
imponderável. Mas é um território de incerteza que terá de ser atravessado. E
na medida em que a incerteza é risco de sofrimento e desgraça, o futuro não
traz só a indefinição cognitiva. Ele é, também, ameaça ou, no mínimo, um
desafio.
A mera abolição racional do acaso não assegura a calmaria. Saber que
amanhã não choverá não basta para nos proteger da chuva. O que o futuro
exige é, agora, mais que a busca de certezas: é preparação para o risco. Com
tudo o que nisso possa haver de temor ou de ousadia, de confiança ou
timidez. Mas como preparar-se para riscos que não se esclarecem? Como
prever os acidentes e as perdas? Armando-se de saber e de experiências que
possam servir para uma gama de amplas situações. O futuro, então, impõe o
aperfeiçoamento pessoal. O desafio que ele propõe é dúplice: requer o
equipar-se de saberes e estratégias, de um lado. De outro, exige coragem,
virtude.
Não seria mais cômodo, nessa situação, experimentar estóica ou
cinicamente que a vida traga o que tiver de trazer, sem as angústias que
marcam a espécie humana?
Uma espécie que, posta entre a besta e um deus, não tem a
imprevidência daquela nem a potência deste e que, portanto, está condenada
a antecipar o perigo e a sentir-se impotente?
É que, diante do futuro, desnuda-se a impotência e a fragilidade do
homem. Como sempre ocorreu. Em tempos passados, diante da impotência e
a um deus que sabe tudo e que sendo também onipotente podia garantir
esquivas e vitórias diante de qualquer urgência improvisada. O recurso à
divindade – portanto, ao mito e ao dogma – era o remédio para a ansiedade
diante do futuro. Porque abolia a incerteza e supria a importância.
Já desde o Renascimento e, principalmente, a partir do século XVII, os
sucessos da racionalidade na indagação da natureza abalaram os mitos e os
dogmas, Com o crescente desprestígio das crenças frente à eficácia da
racionalidade no domínio das coisas, a divindade começou a perecer sua
função ansiolítica: já não é mais ela que afasta os fantasmas da incerteza e
dá virtude ao homem assustado.
Essas funções, agora, cabem à razão e ao seu método: pertencem à
Ciência. Saber e Técnica agora são produtos da racionalidade. Agora, no
território do futuro, começam a sumir os fantasmas e a nascer esperanças. O
futuro passa a ser promessa.
Desse modo, o enigma do futuro hoje é outro: já não se trata de
adivinhar como ele é, quais monstros o habitam e como enfrentá-los. O
futuro agora se despovoa: é uma terra vazia, destinada a abrigar o que brotar
da racionalidade científica. o futuro agora deve ser construído. O enigma é:
como projetar o futuro e construí-lo? O desafio novo é o de afirmar o poder
do conhecimento e do engenho humano sobre a natureza, sobre o espaço e
sobre o tempo.
O conhecimento científico é o único mapa relativamente confiável para
a multiplicidade de estradas que o futuro guarda e que o homem deverá
percorrer. O futuro assusta menos nesse tempo de riqueza tecnológica, que
o conhecimento científico gerou e que pode melhorar a qualidade de vida,
preservar o ambiente, banir sofrimentos, distanciar a morte e enfeitar a vida.
Assim, o conhecimento científico não só assumiu a função iluminadora
do dogma e o papel tranqüilizante do mito: ele trouxe sementes e
ferramentas para povoar de esperança o território do futuro, onde só havia
fantasmas. Basta pensar nos avanços da medicina, da genética, da
engenharia de alimentos.
É, portanto, o conhecimento científico que oferece alguma segurança
de um futuro mais feliz para o homem. Uma segurança que deriva das
possibilidades de um controle cada vez mais preciso de variáveis cada vez
mais numerosas. Que encolhe, a cada dia, o terreno do acaso, do risco.
A ciência nos deu fórmulas que nos podem levar a diferentes direções.
Que nos permitem caminhar, prever impasses, cruzamentos, acidentes de
percurso. Armados do conhecimento científico, enfrentaremos o futuro com
um mapa cuja malha viária se faz cada dia mais complexa e interdependente.
É um mapa mais preciso a cada dia. E é com ele que deveremos atravessar o
futuro, com menos sofrimento ou com mais segurança. Um futuro risonho,
portanto?
Talvez não. O mapa da ciência não tem norte. Pode dar-nos fórmulas,
mas não rumos. Falta a bússola. E a bússola dos valores está desgovernada.
Sem ela, apostar na esperança é puro jogo. Com o risco que todo jogo
implica.
Nesse impasse não nos socorre o mito nem o dogma, que ambos
foram substituídos pela ciência. Mas também ela agora não nos salva. O
poder da tecnologia, que o conhecimento científico trouxe ao homem, não
aponta rumos, oferece métodos. Para produzir antibióticos ou guerra
bacteriológica, por exemplo. A ciência não só nos desamparara na hora de
escolher os rumos do progresso. Criou um risco maior: junto com o poder da
tecnologia ela gerou a tecnologia do poder. A dominação de povos, riquezas
e pessoas, idéias, recursos de sobrevivência, mercados, opiniões e
consciências não se faz mais com a tirania do dogma, com os fanatismos do
mito, coisas do passado. A razão os suplantou, a ciência os baniu. No futuro
toda aquela dominação se exercerá, como já se ensaia agora, segundo as
regras do conhecimento científico.
O poder cientificamente administrado: este é o grande fantasma do
futuro. Um formidável aparato de controle tecnológico das coisas e das
pessoas. Controle para quê? Para qual fim? Tanto quanto o saber aspira à
ordenação teórica, à formalização, à coerência ou, numa palavra, à forma, o
poder aspira à força e aborrece as formas, prescinde das coerências e das
formas teóricas; ele tem por meta o próprio crescimento e a própria
ampliação. Cresce oportunista, como uma rede informe e mutável de pontos
de apoio e de realimentação.
Há uma contradição insanável entre a forma e a força, entre os fins do
saber e os do poder. Seguramente o rumo do futuro, se ditado pelo poder,
qualquer que seja seu dono, visará apenas ao próprio crescimento desse
poder. Podemos esperar, então, que a indicação de rumos virá dos homens
do saber? Virá da instituição destinada a produzir e buscar o saber? Virá da
Universidade? Seria ela capaz de consertar a bússola? De apontar valores que
norteiem a travessia do futuro?
Os valores que um povo ou uma comunidade persegue, ainda que não
formulados com clareza, são produtos de reflexão sobre a experiência e, por
isso, resultados de algum tipo de conhecimento histórico. Mas são, também,
aspirações, projetos e, desse modo, programação do futuro. Uma
programação que será tanto mais viável quanto mais se fundar em métodos
seguros, quanto mais se socorrer do conhecimento científico (aquele que
aponta as variáveis que precisam ser manipuladas para chegar a um certo
efeito).
Então, a discussão e a eventual proposição dos valores para o futuro
deveriam ser buscadas onde se juntam o conhecimento histórico e o
conhecimento científico. Onde homens responsáveis analisassem as lições da
experiência humana e a partir dessa análise propusessem objetivos de
interesse comum e tecnologia científica eficaz para consegui-los.
Não seria esse o papel superior de uma universidade? Restaria a
questão da conversão dos projetos em atuação política, sem dúvida. Por isso,
deixemos de parte, agora, essa condição decisivamente limitante. A
universalidade não tem poder para tanto. Mas como produtora de saber
deveria ser, naturalmente, capaz de enxergar, nas lições da experiência
histórica, as carências e no método científico, as possibilidades de supri-las.
É isso o que as universidades fazem?
Qual o papel da universidades entre as calmas lições do passado e os
intrigantes impasses do futuro? É nela que se gera o conhecimento histórico
e o conhecimento científico e é nela que a reflexão sobre o passado e as
projeções para o futuro se podem encontrar. O que tem a mostrar, ou, pelo
menos, a dizer, sobre isso, a nossa universidade brasileira?
Receio que a universidade ignore até o rumo para o qual ela própria
navega. Tenho um palpite pouco entusiasmante sobre a universidade: ela
tende a desvalorizar o passado e o saber crítico, a abdicar de construir o
futuro. Está mergulhada num imediatismo estreito, que se revela na pesquisa
oportunista, no culto às revistas de prestígio, no descaso pela graduação em
favor da pós-graduação, nos critérios de avaliação que privilegiam a
produção editorial acelerada, nos financiamentos preferenciais a setores que
produzem agora, com prejuízo dos que poderiam produzir amanhã, se
devidamente financiados. No favorecimento à pesquisa de relevância
tecnológica etc.
Esses critérios regem, paralelamente, a distribuição do poder dentro da
universidade. Essa busca do poder, conduzida quase sempre sem grandeza,
suplantou a busca do saber que era a alma da academia. Tentam legitimar
aqueles critérios acenando com a urgência de conquistar os poderes da
tecnologia. É importante colher e mostrar a colheita, muito mais do que
semear. Para isso, os novos gerentes da universidade não hesitam em impor
normas, em prescrever cobranças, em desfavorecer os recalcitrantes. Em
resumo, não hesitam em exercer seu bisonho poder. Por sorte, de forma
ainda grotesca, ainda primária, ainda distante de uma tecnologia do poder.
Esses desvios de rumo, da universidade, a tornam, até certo ponto,
mera espectadora, e portanto inútil, ou incompetente, na hora de apontar
rumos para a travessia do futuro. Ela deveria ter o que propor e dizer. Pelo
menos deveria saber quais rumos projeta para si mesma. Mas isso pode
esperar, ao que parece. O mais urgente é o verbo mágico: produzir. A crise
maior não é essa absurda e grave ausência de rumos, de valores a serem
perseguidos: é o descaso diante dessa ausência.
Quanto ao “mundo externo”, por sorte, o desnorteamento da
universidade não trará prejuízo maior. Ele está habituado a caminhar sem
ela.
Os rumos do futuro estão ditados, na realidade, pelo processo
histórico de organização dos grupos sociais em torno de seus objetivos. Esse
processo será tanto mais rápido, quanto mais conhecimento tiverem esses
grupos. Quanto mais o saber histórico e científico fizer parte da educação e
das pessoas. E, sobretudo, quanto mais o cidadão comum entender os
processos que o poder emprega para controlar a vida das pessoas.
Não cabe à universidade ditar os rumos da sociedade. Cabe-lhe
difundir o saber nos vários grupos sociais. Cabe-lhe espalhar a informação
sobre os processos de controle do comportamento. Sobre a tecnologia do
poder. Para que esses grupos sociais enxerguem sua posição no processo
histórico, e então proponham os seus próprios rumos. Não só: para que
saibam, eles também, empregar, para seus fins, a tecnologia do poder.
Isaías Pessotti, psicólogo, professor da USP – Ribeirão Preto.

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