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Conversas sobre a formação do ator

Jacques Lassalle e Jean-Loup Rivière

PRIMEIRA CONVERSA

1. A tradição teatral

A escola supõe transmissão de saberes e técnicas reunidas pela tradição.

Tradição: no momento em que se redescobre seu esplendor é que se percebe que ela etsá
a ponto de morrer.

Grandes tradições ainda são ensinadas: nô , kabuki, ópera chinesa, Satanislavski,


Meierhold, Brecht (métodos de atuação referencia no mundo todo).

Transmissão de modelos, usos, técnicas.

Tradição da arte do ator como aprendizado de grandes figuras arquetípicas, sem


reapropriação doas alunos

2. Dicção e declamação

Tradição da dicção: corpo doutrinal do ator francês – não se ensinava o jogo teatral, mas
a declamação (reprodução de um costume).

3. Encenar (exercício da arte) é ainda ensinar (transmissão)

Não dissociar encenação e formação do ator.

Nenhuma técnica de ator preexiste na singularidade de um texto, de sua leitura e seu


futuro cênico.

Redescobrir em cada texto o ritmo, o fraseado, a respiração, o movimento.

4. Fazer teatro com aquilo que é recusado pelo teatro

O banal, o imediatismo da vida; ou aquilo que não é teatro, como romance, filme, a
memória pictórica.

5. O que está na origem do ato de ensinar

O que determina o ato do ensinamento não é um corpo de doutrina, de saberes


constituídos.

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6. O mestre paternal e o mestre fraternal

Encenador como mestre paternal (enigmático, silencioso; incita – pedagogia da


transmissão) e o ator como mestre fraternal (explica, aconselha, ensina; reconforta –
transmissão da descoberta)

O melhor mestre é aquele que for menos professor, que convida o aluno a partilhar com
ele a ignorância.

Todo texto é um enigma, toda encenação uma pesquisa, toda direção de ator uma
aceitação partilhada do desconhecido.

O grande ator é capaz de renunciar a si mesmo, renegar a imagem que os outros têm
dele,

Primeiro conhecer a técnica, para depois renunciar a ela.

Ator: percurso de solidão, de incerteza

7. O outro do teatro

Teatro: arte constituída por outras artes (literatura, música, pintura...).

A identidade do teatro pode ser transcender as contribuições recebidas. Um dialética


entre o novo e o passado histórico.

8. Aprender a desdobrar

A progressividade na arte não é evidente.

Parte-se dos textos deixando de lado os comentários literários acerca deles, enfrentando
a polissemia da escrita, suas significações, suas contradições aparentes, sentidos
incompletos, espaços em branco.

Alunos-atores esperam um saber estrutural, mas artistas em transformação são mais que
isso.

Atuar é habitar os espaços em branco do texto.

Há peças que são mais “dobradas” que as outras, encenar é desdobrar.

Uma das missões do ensino é observar a dobradura de uma pela e depois aprender a
desdobrar.

Há peças que só manifestaram seu potencial após a encenação moderna, tornando


aparente suas complexidades.

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Chega-se à força poética de uma obra questionando-a, desarticulando-a.
9. O amor à língua

Durante muito tempo na França o teatro era declamação e dicção (aprender a atuar era
aprender a dizer).

No séc. XX, encenação moderna, desenvolve-se sobretudo o trabalho corporal.

Hoje a declamação parece retornar sob oura forma, uma fetichização do texto.

Se o gosto e a vontade o levam através da língua então você sabe ler.

10. Atuar é reescrever

Representar é reescrever, escrever novamente o texto.

O texto é uma invariável (escrito ele é fixo), mas cada passagem sua à cena modula sua
percepção.

Cada ator suscita uma aproximação e uma técnica particular de interpretação.

O pedagogo e o encenador ajudam o ator a penentrar os segredos da escrita, reconehcer


seu processo de fabricação.

11. Aprender a desaprender

Se se é incomodado pelo saber, pode-se descartá-lo. Pela ignorância a mesma coisa, é


uma lacuna.

Antes da ignorância há o falso saber, o jovem ator é o menos inocente e virginal, está
programado, deformado.

Daí a necessidade de ajudá-los a desaprender, da ordem da reconquista.

12. A travessia do palco

O ator comumente se protege do seu “estar lá” atrás de sua máscara, sua técnica.

É preciso um longo aprendizado de ficção cênica para recolocar e preservar sua


verdade, sem que esta se altere por interferências externas da realidade.

A travessia do palco revela o artificial do ator, pelo pânico diante da ausência de formas
impostas, subterfúgios ou esboços de interpretação.

O ator precisa aprender a sujeitar-se e contertar-se em ser o que ele é.

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SEGUNDA CONVERSA

1. Fim Pedagógico

Um artista nunca para de aprender.

Na escola de teatro há um tempo determinado de aprendizado. O fim do ensino


representa o término da duração do ensino?

2 acepções da palavra Fim (finalidade; fim como término) – a escola deve ter uma
finalização mas a formação jamais deveria interromper-se.

2. Fim Institucional e fim artístico

Finalidade da escola? Preparar para o teatro? Que teatro? E o mercado?

Caminho tortuoso do teatro para uma pedagogia de vida, de iniciação do mundo e de si


mesmo?

Há 2 tipos de ensino: 1° – submete seus programas às demandas do mercado, submissa


às flutuações da economia e às curvas da audiência;
2° - prioriza o valos das obras, lições do passado, exigência e pesquisa artísticas, se
dirige ao passado como base de resistência. Critica a sociedade atual e trabalha com a
perspectiva de uma sociedade melhor. A continuidade entre formação e mercado só
pode ser garantida a uma parcela ínfima dos alunos-atores, assim, prioriza o pensamento
crítico, a independência e liberdade intelectual.

A cada dia alunos se fragilizam diante do discurso midiático, do sonho do acesso ao star
system, da necessidade material de achar seu lugar no mercado de trabalho. Diante
disso, como assegurar a responsabilidade do artista na cidade, a cosntrução de si mesmo
a cada papel, a aula escolar como escola de vida e teatro.

3. A multiplicação das escolas

Após 1968 multiplicaram-se os cursos e escolas de teatro na França.

Pode-se ligar essa descentralização teatral na segunda metade do séc. XX à chegada da


civilização do entretenimento cultural, crescimento dos espetáculos.

Em face da proliferação de conteúdos e métodos, jamais a necessidade de uma


pedagogia do ator foi tão forte. Não apenas uma pedagogia técnica, instrumental, mas
uma pedagogia da curiosidade, da abertura aos saberes e às tradições.

4. Nenhuma escola formou jamais um ator

A escola permite um aprendizado de si mesmo, dos outros e do mundo; fomenta o gosto


e a familiaridade com os textos, a humildade e o rigor das verdadeiras disciplinas de
trabalho.

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Essa bagagem vale não só para o exercício do teatro, mas ilumina o percurso de uma
vida. Uma pedagogia de arte e vida.

5. A escola, o mestre zen e o mercado

Na escola de teatro aprende-se um saber que não é verificável.

Após as reformas de 1968: romperam-se os modelos socioculturais ultrapassados de


uma sociedade conservadora e injusta ou começava a surgir a dificuldade de avaliar e
hierarquizar qualquer forma de expressão artística?

O modelo atual de escola se fundamenta na idéia de que para aprender teatro é preciso
fazer teatro. Idéia de que “forçando o exercício de uma técnica torna-se hábil nela”.

Imagina-se um outro modelo não ligado ao fazer mas à necessidade de retardar o fazer,
este seria o verdadeiro aprendizado. Uma formação voltada para à pratica da colocação
em dúvida.

Mestre Zen e a página em branco: retardar o fazer até o momento que se seria digno de
enfrentar a página em branco. Aos nossos olhos ocidentais isto parece exagerado, não
queremos adiar a prática.

As escolas cada vez mais são assediadas pela impaciência dos resultados. Escolas como
ligação ao mercado de trabalho e máquina de produzir espetáculos.

Hoje em dia o aluno tem um leque de opções , experiências, aplicações muito mais
importantes do que outrora. Tantas escolas, tantas propostas.

È preciso atentar para não se deixar ficar ao sabor do mercado, dos messias. O ator
depende do querer dos outros, mas só sobrevive pelas próprias escolhas.

6. O ensino, inútil?

A relação pedagógica só funciona quando evolui na direção de uma aceitação mútuta


entre aluno e professor, ou, ao contrário, com o estabelecimento de uma atração
conflituosa, fortificada e produtiva.

Diante de um aluno talentoso, motivado, pronto a representar, não se experimenta o


sentimento de inutilidade.

Numa verdadeira relação pedagógica, mestre e aluno jamais se afastam, mesmo se não
mais se reencontrarem. Aquilo que foi semeado, germinará.

Não se busca apenas os resultados favoráveis, mas o pedagogo é depositário dos


malogros e sucessos.

O pedagogo-encenador não deixa de estimular seus alunos, mas quando não o puder,
não deve se culpar exageradamente. A importância está naquilo que ele revelou aos

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alunos do teatro, da vida e deles mesmos, não pelos resultados aparentes de sucesso e
fracasso do futuros atores e suas relações com o mercado.

No germe desse aprendizado está a capacidade de se colocar o teatro em dúvida. A


dúvida nunca acaba, logo o aprendizado também não.

7. A finalidade do ensino do teatro é o teatro?

O teatro pode não ser o único objetivo do ensino do teatro, pode preparar para muitas
outras atividades da vida.

“A escola é o mais belo teatro do mundo” : sonho de associação escola-teatro-mundo


pedagógico. Para Vitez a escola é o único lugar onde se poderia fazer o verdadeiro
teatro.

Escola enquanto utopia de não haver compromisso exterior que não fosse com ela
mesma.

Mais do que em todas as outras formas de expressão artística, no teatro o OUTRO é


condição da própria busca, o parceiro da própria realização.

A escola não deve estar só voltada ao futuro, aos resultados.

8. Artes do espetáculo e performing arts

Artes do espetáculo – teatro é avaliado pelo que é visto

Performing arts – teatro avaliado em função do que é feito

A escola talvez seja o momento das performing arts e seu término corresponderia á
passagem para as artes do espetáculo.

9. Parcela de sonho

Uma pedagogia afastada do circuito usual de produção.

Há aqui uma dialética: como realizar esse sonho e, ao mesmo tempo, preservar a
necessidade de um teatro inscrito na história, no coração da cidade?

Esta escola exige uma recusa provisória do mundo ao redor. Muitas escolas hoje
possuem objetivos eleitoreiros, mercantis e midiáticos, fascinando os alunos com
promessas e propostas.

A escola não é agencia de empregos.

Tudo hoje exprime a arrogância e impaciência do mercado. Isto deve ser rejeitado pela
escola.

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TERCEIRA CONVERSA

1. Lugar do saber

Geralmente, ensinar é, em grande parte, transmitir um saber. Um aluno que sai da escola
tem mais saber ou habilidade do que quando entrou. Em relação ao ator ele atua melhor
ao sair, mas se trata de um aperfeiçoamento, não de uma aquisição.

2. Ensinamento direto e indireto

Ensinamento direto – técnica e conhecimentos que são as circunstâncias de uma


interpretação.

Ensino indireto – conhecimentos ou exercícios que não têm uma relação aparente com
aquilo que se pretende e têm um efeito secundário, aparente desvio que permite na
realidade um trabalho indireto.

A transmissão do saber geralmente ocorre de forma indireta. Muitas vezes o saber


constituído, formulado, direto causa desinteresse nos alunos-atores.

A transmissão doa saber, afora o técnico ou o corporal, faz-se no jovem ator de maneira
transversal.

Alunos-atores têm muita impaciência para subir ao palco, daí a necessidade de doses
homeopáticas de comentários e exposições prévias, condição de uma relação evidente,
imediatamente necessária para o trabalho cênico.

A leitura da cena, trabalho de mesa, já configura uma interpretação em potencial, com o


corpo disponível à espera.

3. Ator racional e ator instintivo

O ator instintivo acha que o conhecimento pode ser uma ameaça ao seu “dom”. Quer ser
operacional no seu trabalho cênico.

Ator racional ou reflexivo é mais ligado à curiosidade intelectual, mas deve ser ensinado
de que não será destruído pela colocação em dúvida do saber.

O pedagogo e o encenador jamais sabem o suficiente sobre uma obra, mas quanto mais
ele souber mais estará livre para multiplicar hipóteses e propostas

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4. A descontinuidade do progresso

No teatro não há uma progressão contínua no saber. Um aluno pode titubear meses num
papel, como que à deriva, e um dia ele escapa. Essa progressão, ou melhor, essa
libertação, não pode ser programada, nem organizada somente no tempo cronológico.

A pedagogia artística difere da pedagogia cognitiva. Consiste pouco na transmissão de


um saber constituído. O percurso não está demarcado, imprevisível nas expectativas,
com objetivos que variam de aluno para aluno.

Os alunos tem uma escuta dupla, uma racional (menos determinante) e outra obsessiva
(meticulosa) ou sonhadora. O tempo da disciplina, da concentração chegará mais tarde,
caso tenha que acontecer.

5. Escola é Teatro?

Há um prolongamento entre a pedagogia e a encenação. Mas qual é a diferença entre o


teatro e a escola? O lugar, o prazo, o horizonte.

O lugar específico do teatro é o espaço e o corpo em movimento no espaço. Deve-se


aceitar apreciar o jovem ator ali, devolver-lhe a sua imagem. Ele tem necessidade de se
movimentar e ser reconhecido por você, mutante, por inteiro. Essa aceitação dele pelo
pedagogo é condição de sua aceitação dele por ele mesmo. O jovem ator é o primeiro
desafio da relação pedagógico.

6. O sujeito fragmentado do ator

O teatro é frequentemente refúgio daqueles que a sociedade parece não tê-los querido. O
jovem ator vive uma identidade fragmentada, com zonas de desequilíbrio.

No desejo de ser ator encontramos um sujeito despedaçado, o trabalho do pedagogo é


reunificá-lo.

Em arte tudo acaba sendo o construir-se, o escolher-se, fixar-se numa duração e num
espaço determinado, mesmo quando se trata do que no início é despedaçado,
interrompido, contraditório.

O pedagogo deve ajudar o aluno-ator a viver essa identidade instável numa relação
lúdica, sem angústia, viver na sua pluralidade, na sua diferença, nas suas ambigüidades,
indecisões e humores variáveis.

Não é o caso de reduzir ator, mutilá-lo com conceitos fechados como modelo de
unicidade de sentido, ditadura do dogma ou tradição.

O ator deve descobrir ordem na sua desordem, uma harmonia nas suas dissonâncias para
cada novo papel, para cada inserção numa nova coletividade.

Uma totalidade não é rígida, mas flexível, num jogo entre os elementos que a compõem

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7. Caminhos de travessia

A pedagogia pode mostrar que a travessia de um papel pode dotá-lo de uma espécie de
equilíbrio, coerência interior, mesmo que provisória.

No despedaçamento dos papéis o ator acaba por descobrir um princípio de unidade, de


construção (sem isso não poderia refazer-se).

8. Uma escola que se afasta da norma

Em arte não há caminhos retos e objetivos, mas meandros, bifurcações, desvios,


caminhos escondidos. Toda criação tem sua parte de rejeição às normas sua parte de
desvios.

A escola forma atores, intérpretes, mas não forma artistas, embora artistas possam sair
de uma escola

O pedagogo também deve ser um artista, um criador. A transmissão não se dá pela


técnica, pelo saber, mas de sonho pra sonho, de alma para outra.

O ator tem necessidade senão de escola, ao menos de um mestre, a fim de que, discípulo
e rebelde, chegue á confiabilidade do intérprete à vulnerabilidade do artista.

O que poderia legitimar a escola na sua qualidade de artista (não só de intérprete) é o


aprendizado da “impureza coletiva”. O trabalho teatral, enquanto exercício da arte é
feito de relações coletivas, há um processo de socialização, onde o ego do ator atinge o
nós do grupo e do público em que as percepções individuais não suprimem a
consciência do pertencimento à coletividade.

A escola é ao mesmo tempo fortaleza e casulo. “Entre o mundo e você, escolha o


mundo” Kafka

9. O olhar do outro

É bom que o aluno aprenda a trabalhar a dificuldade de um olhar que desloque seu
ponto de vista sobre si mesmo.

A escola permitiria aprender a viver sob a imposição desse olhar que se desloca.

O que significa no teatro olhar verdadeiramente para o outro?

Uma verdadeira pedagogia do teatro conduz sempre, de uma maneira ou outra, à


estranheza do familiar, ao estalo do monótono, à desconfiança dos momentos ditos
“fortes”, à riqueza dos momentos “fracos”.

O aluno, desnudado internamente, rebela-se. As mais belas declarações de amor, no


teatro, começam frequentemente na recusa ou no afrontamento.

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QUARTA CONVERSA

1. O gesto exato

Não há mais no teatro um código gestual fixo, modo estereotipado de significar


corporalmente uma emoção ou uma paixão. Mas isso não significa que não se deva ter
um aprendizado do gesto.

Atores em formação deveriam fazer “apontamentos” gestuais. A exatidão do gesto faz


parte de um saber a ser adquirido.

O papel é uma ficção que só pode ganhar corpo em uma outra ficção: aquela que o ator
produz dia após dia, a partir de seu imaginário, de sua memória, das suas mentiras mais
verdadeiras do que as verdades da vida.

Atuar é, ao mesmo tempo, passar de um corpo imaginário, induzido pelo texto, para o
corpo do ator que se encontra disponível no palco.

Encontrar um gesto preciso para o ator é arrancá-lo do natural da vida e fazê-lo atingir a
totalidade do papel por meio da apreensão, da colocação em evidência de um detalhe
aparentemente minúsculo.

Há sempre uma sensualidade no gesto preciso. Ele deve ser saboreado, salivado,
reconhecido pelo aroma, como no melhor da arte culinária.

2. A observação, o realismo, a iniciação

O dom da imitação não tem nada a ver, exatamente, com a arte do ator, não se pode falar
necessariamente em criação.

O ator não imita a realidade, ele a reconstrói. A partir de elementos da observação ele
inventa uma figura nova, para a qual toma emprestados diversos modelos, condensando-
os e transcendendo todos, pela condensação e decomposição de vários gestos para
atingir uma espécie de gesto genérico, jamais visto e, contudo, familiar.

A formação dos atores não permite suficientemente o trabalho de observação, que


geralmente é efetuado numa perspectiva realista, ao qual ele não é redutível.

Uma observação mal feita não é uma falta contra o realismo, mas contra o próprio
teatro, pois não existe teatro sem realismo: a presença real de um corpo humano faz com
que a questão do realismo se coloque e seja sempre colocada, seja qual for a estética do
espetáculo: naturalista, simbolista, burlesco, etc.

Em arte é sempre necessário preservar algumas pepitas de realidade para alcançar a


verdade suprema do mentir verdadeiro.

É por isso que a observação não é redutível a uma perspectiva realista. A observação já
é uma criação.

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A arte consiste muito mais em suprimir do que acrescentar: gestos apurados,
escrupulosamente analisados, desconstruídos e depois reconstruídos a fim de preservar
somente o essencial.

3. As duas histerias

Hoje em dia há um culto à “energia” que tem como conseqüência o abandono do


trabalho sobre as formas.

O teatro tem horror ao corpo histérico.

Espontaneamente o ator é histérico, achando que sua histeria é garantia de


autenticidade, de comprometimento, de sua oferenda a si mesmos.

Desde a primeira leitura peço aos atores que não me proponham nenhuma interpretação.
“Não atuem. Concentrem-se apenas na leitura e sua compreensão. Contentar-se em
responder somente na medida daquilo que vocês compreendem e daquilo que vocês
sentem. Nem menos e nem nada mais que isso – a justa medida”.

No teatro há um esforço de habitar o seu pensamento, de mostrá-lo no trabalho.


Contudo, vê-se muitos atores ausentes do pensamento no texto quanto ausentes dos seus
próprios pensamentos.

Um grande ator pode desenvolver a chamada PRESENÇA MULTIPLICADA: presente


no pensamento do texto, na maior ou menos qualidade de escuta dos seus parceiros e do
público, presente da mesma forma nos pensamentos e sentimentos que, ao mesmo
tempo, o atravessam.

A presença do ator é a sua dupla capacidade de, em meio à maior concentração,


arrebatar o seu público, simultaneamente dentro e fora, no interior e nos confins do
papel, no próprio ritmo de sua respiração e de sua fantasia.

O ator em cena, simultaneamente, espanta, surpreende, e transmite segurança.

4. A excitação do espetacular, a distância, a “pensatividade”.

O jovem ator geralmente começa exagerando ao interiorizar em excesso as modalidades


de expressão físicas ou afetivas de ordem histérica. Hoje em dia, uma grande parte do
teatro tende aos paroxismos e exageros, na embriaguez da conquista desenfreada do
espetacular desmedido, um descontrole de energia, tal qual fantoche desvairado e
desarticulado.

Há que proporcionar ao jovem ator o gosto pela paciência, pela distancia, pela
“pensatividade” (caráter pensativo). Lembrar-lhe a atuação como construção do papel
como partitura, não como identificação ilusória.

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5. A escuta do outro

Convidar o ator à escuta, a reagir ao outro, ao invés de ceder unicamente às loucuras, às


atribulações e às compulsões do ego.

Como podemos aprender a escutar?

Ao jovem ator, sobretudo no passado, muitas vezes importa pouco o parceiro ( o outro,
o olhar do outro, a reatividade do outro, a voz do outro, o corpo humoral do outro,
orgânico, animal, social, estético e cultural), quando o que importava era dar conta da
oralização do texto.

Muitos anos depois “o outro” encontrou devagar o seu lugar em todas as formas de
teatro.

O que chega a excessos e erros quando o corpo, o seu e o do outro, parecem preencher
unicamente o espaço, exclusivamente, abdicando de temas, história, sentido constituído,
troca de texto, em relações indistintas.

6. O corpo devorador

Outro devorador é o parceiro-guru (muitas vezes o pedagogo ou o encenador) para o


qual nada preexiste à obra, à situação, à identidade dos papéis, confiscando a obra em
proveito próprio, instrumentalizando e manipulando infinitamente os pensamentos,
sentimentos, as sensações de seus parceiros ou intérpretes.

Há também o caso do ator-estrela, o qual não nega o outro, mas sabe se valer dele,
diminuindo, encobrindo até finalmente negar o a presença do outro (prática corrente no
star-system).

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QUINTA CONVERSA

1. O pensamento do corpo

Há muitas ilusões sobre o corpo no teatro, o corpo do teatro. Há uma crença de que a
distancia aos códigos nos aproxima de uma verdade cênica. Exibir o corpo, ecoar sua
materialidade, seria escapar ao código, á mentira, à inautenticidade, ao que não
ineteressa.

Isto é uma ilusão, pois não há nada mais codificado que o corpo.

Há uma falsa idéia de que o agitado, o frenético é mais profundo, sincero, verdadeiro...
Um teatro impregnado de histeria, um corpo que se põe a falar na ausência de outra
“língua”.

Deve-se recusar completamente qualquer histeria ou modifica-la.

O teatro tem horror ao pleonasmo. Acentuar a histeria do próprio corpo num papel que
já tem excessos é ser redundante.

Há, contudo, uma histeria perturbadora, do corpo singular, irradiado pelo papel na
recriação do ator, não a histeria do próprio ator, previsível, advinda de determinado
modelo ou arquétipo de convenção.

O encenador deve pedir ao ator que ele “se surpreenda ao tentar surpreender os outros”.
Há aqui um ideal de ultrapassar-se a si mesmo, do desaparecimento de si mesmo em
você.

O ator verdadeiro é sempre excedido por seu papel. Ele nem está em condições de julgar
o conjunto da representação nem seu próprio percurso.

Acabar com o convencional, com o estabelecido, o esperado em arte significa renascer,


recuperar a vida.

O corpo tem seu próprio pensamento, o corpo pode traduzir as ambivalências, os


meandros de nossos pensamentos e sensações

2. Saber reinterpretar

Não interpretamos, reinterpretamos. Representar e reinterpretar, refazer.

Refazer neste caso é menos reproduzir a própria coisa e mais as suas condições de
aparecimento. Fixar no processo diário um dispositivo de atuação e administrar a
recondução. Não refazemos, colocamo-nos na situação de refazer.

O refazer no teatro é sempre volátil, uma questão de leves variações em um pressuposto


geral de invariabilidade.

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O ator é diferente a cada noite de apresentação, contudo, o papel não varia
fundamentalmente, nem na sua substância nem nos seus contornos. É dessa tensão,
desse tremor entre a variação relativa do ator e a invariabilidade relativa do papel que se
organiza a identidade, a permanência quase estabilizada, quase fixada de cada
representação.

3. O instante decisivo

Trata do momento em que tudo aquilo que preparamos, comentamos, recomeçamos


desaparece ante o surgimento do imprevisto, do milagre da vida recuperada no meio do
artificial.

É importante o intervalo entre as palavras, as coisas, os seres e o deslizamento de uns


sobre os outros.

Instante decisivo (Cartier-Bresson), instante prenhe (Diderot), instante único (Lessing):


momento que condensa o passado e o futuro, um gesto no qual ainda existe o
precendente e o que se segue.

O primeiro problema do aprendizado não é tanto produzir esse instante, mas saber
reconhecê-lo.

4. O primeiro momento

No teatro, a inocência, a ignorância são conquistas, raramente pré-requisitos (há muitos


estereótipos em circulação na TV, revistas, espetáculos de sucesso, artifícios do amador.

5. Aprender a refazer

Refazer não é reproduzir, mas repetir as condições de surgimento do acontecimento, o


que necessita de um estado de invenção perpétua.

Desenvolver reflexos, vontades, uma condição de jogo.

Para fazer teatro é preciso ter fome.

6. Saber esquecer

Refazer não é questão de análise ou de memória, antes é uma questão de esquecimento.


“Desempenha tua cena até que não saibas mais o teu texto”.

Tudo é esquecido porém retorna quando se pede, cada vez que se readquire o
dispositivo da atuação (parceiros, espaços, objetos, figurinos, sons...).

Aprender a esquecer é fundamental, primeiro o texto (enquanto apareça o esforço da


lembrança do texto estar-se-á no declamado).

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O ator não tem que se lembrar do texto, é o texto que deve se lembrar do ator. O texto
atravessa o ator, se apropria dele. Situando as condições da representação o texto
surgirá, ritmado, cadenciado. É o texto que se fala no ator, este com seu consentimento,
seu prazer de hospedeiro, de corpo penetrado.

Ensaiar é domesticar progressivamente o esquecimento. E atuar é recompor tudo aquilo


que o corpo aprendeu e depois esqueceu. Basta reconstituir o dispositivo da
representação para que reapareça a capacidade de refazer, de reinterpretar.

O esforço de memorizar ou restaurar torna o ator dependente e pressionado, o


esquecimento o deixará livre.

O esquecimento não se aprende, conquista-se. É o corpo que, como resultado de um


longo treinamento, memorizou suas marcas.
Há atores que se apossam do texto, num interminável virtuosismo, transformam diálogo
em monólogo (moda do one (wo)man shows).

O ator é o único transmissor possível de nossa língua, seu tradutor

7. Estar pronto para atuar

A interpretação do ator, que subentende sua imaginação, está condicionada por um


tempo que chamo de “meditação clínica”: o texto está lá, reclinado na sua página e é
preciso observá-lo e escutá-lo antes de interpretá-lo. Ler é considerar, observar,
descrever, não interpretar.

É um trabalho de resfriamento da pressa interpretativa, um aprendizado da lentidão. A


rapidez elaborada na lentidão é muito mais rica.

Para que a imaginação interpretativa possa desenvolver-se é preciso considerar o texto,


a cena e a peça como objeto plástico ou como pintura, música... Sentir que é uma forma,
não apenas um roteiro de uma situação a reconstituir.

8. O dom e o talento

O dom, diferente do talento, não se avalia, não se mede nem se compara. É um “Já sei.”,
o que pode levar ao isolamento da autossuficiência.

A questão do dom: o aluno superdotado pode ser desprovido em outros pontos. Priemrio
deve descobrir o prazer de trabalhar com os demais.

Pode-se morrer por excesso de si caso não se encontrem utilização e perspectiva


apropriada.

O dom induz a uma injustiça inicial que a escola tem condições de compensar. Todos
têm dons, é bom que não sejam os mesmos.

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9. O artista, a criança, a escola

Uma das responsabilidades do professor convencer o jovem ator do quanto sua arte será
maior na medida em que puder analisá-la, quantificá-la, fixá-la, excedê-la.

A escola também é útil ao artista. Há uma ideologia errônea que prega que o aluno
aprendiz é um artista que somente carece de técnica, e a escola ensinaria os métodosque
permitiriam revelar o artista escondido no aluno.

A escola pode dar ao aluno uma nova compreensão da singularidade de sua própria
busca. Conhecer a si mesmo passa pela escola e pelo conhecimento dos outros.

O pedagogo forma intérpretes, mas deseja criar artistas, tentando liberar o vigor nos
artistas, a inocência, o gosto pelas descobertas, pelo risco.

O ator por toda a sua vida continua sendo uma criança, habitando sua infância.
Carregamos uma criança não morta, mas adormecida, e que nos faz sonhar.

Não se trata de fabricar um artista, mas criar as condições para que um artista nasça a
partir de si mesmo.

Ao jovem ator a escola é um caminho para si mesmo; mais tarde ela é naturalmente
substituída pelo exercício de sua arte, que é preciso desejar que seja freqüente.

A escola que aqui se fala é uma escola de vida verdadeira, não se sacrifica à idéia de que
a universidade deveria dotar os estudantes de um saber útil, devidamente especializado,
imediatamente explorável.

Muitas escolas aderem ao sistema e trabalhando para sua prosperidade, ensinando o ator
a se vender no mercado, universidade realista e competitiva responde rápido ao
negociante de arte, rapidamente vendável.

Se a escola verdadeira está longe das religiões do lucro, ela não está, apesar disso,
descartada do mundo. Ela sabe o que a cerca e a ameaça, conhece também os motivos
de sua resistência, a necessidade de seu não alinhamento.

10. Anular-se, envolver-se

O grande ator possui uma capacidade de ruptura, de renúncia a seu ego, “adoram
imensamente desaparecer” (Novarina).

A arte do ator escapa àquele que a exerce. O grande ator realiza-se na sua própria
extinção, erguendo-se da sua própria extinção, anulação.

Todo ator deve perguntar-se sobre suas escolhas, no plano estético, político ou moral.

Qualquer ator pode começar a resistência frente aos poderes. Com o tempo, o que era
busca da experiência e esforço no jovem ator, vai se tornando escolha de compromisso e
destino.

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SEXTA CONVERSA

1. A matidez

Abatido, aflito, úmido, que não tem brilho, que tem pouca ressonância, que não é
transparente, opaco.

O ator opaco é aquele que não se declara completamente, deixando para o espectador a
tarefa de determinar aquilo que há para experimentar e compreender. É um latente em
suspensão, implosão em latência, aquém da significação proclamada, da emoção
manifestada.

“isto que experimento, isto que compreendo pode, a qualquer momento, inverter-se.”
Nenhuma conclusão definitiva é possível, há sempre algo em suspenso, não oculto para
sempre, mas permanece em aberto. Como se a maior clareza fosse a condição de uma
obscuridade.

A matidez é a linha tênue entre o dito e o você, a luz e a obscuridade. É a recusa do


pleonasmo, do declarativo, da homogeneidade de signos e ausência de tensão, de
contradições entre os elementos da representação.

Trata-se de introduzir no centro de cada proposta, senão o seu contrário, ao menos seu
correlativo contraditório. É o que sobra de obscuro no claro, de suspenso no conclusivo,
de surdo no sonoro, de escondido no mostrado.

Em termos de técnica teatral, a matidez corresponde, primeiramente, a uma grande


economia de atuação, evitando o excesso, o hiperatuar, o “tudo está dito” e o “nada mais
a declarar”.

O teatro é um longo combate contra as opiniões amplamente difundidas (contra o lugar-


comum, o clichê). Não existe ato decisivo no palco a não ser o ato imprevisível.

A atuação opaca diz respeito ao duplo convite de maior intensidade do desejo e à sua
repressão.

2. O ator adesista, o distanciado ou o complexo

Ator adesista procura a mais estreita superposição entre a personagem e ele mesmo.

Ator distanciado é da família de Diderot, Brecht.

Ator complexo constrói sua personagem em cima do contraditório (matidez).

A histeria é um momento, etapa pelo qual a maioria dos atores passa, não como um
objetivo, mas um estado-limite.

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O primeiro sentido de histeria é: conjunto de problemas psíquicos, neurológicos e
funcionais diversos. Contudo, os jovens atores logo querem chegar a esse estado, o que
não é necessariamente produtivo e verdadeiro.

3. A relação com o espectador

O que está em jogo no trabalho do ator não é somente uma questão de problema interno
de criação ou escolha estética, mas a natureza da ligação com o espectador.
O foco é a liberdade e a atividade do espectador, sozinho diante da página ou da tela, em
conjunto com os outros diante do palco.

É necessário o envolvimento dos atores e do pedagogo/encenador, correndo riscos,


passando por crises.

No teatro, em determinadas circunstâncias, talvez nunca se alcance o outro senão


através de si próprio.

4. A água e o feno

O teatro não é a simples ilustração de uma idéia, por mais explícita que seja. Há sempre
um equilíbrio precário na interpretação, dividida entre os sentidos, as forças, as energias
que se defrontam no ator, o desafiam.

O ator pode ir a vir, aceitar a embriaguez da atuação, mas “se ele vai até a água, não
esquece do feno”. Interiormente permanece em parte dividido, como que ausente pela
incompatibilidade de suas tentações. Há uma impossibilidade de entregar-se totalmente
a um ou a outro.

5. A atuação contraditória

O ator sem brilho satisfaz porque sua interpretação é um questionamento febril tanto
sobre si mesmo quanto para a platéia. Prefiro a indecisão do ator sem brilho.

O que se experimenta por trás da matidez do desempenho de um ator é a presença, a


aspereza, a densidade, a opacidade do mundo sob o verniz da representação. A matidez
consiste em preservar no palco aquilo que é da ordem do confuso, da indecisão do
mundo.

6. A economia expressiva

Em situações-limite do ser humano, a primeira reação é formidavelmente econômica,


tudo começa pelo espanto, o espanto congela, paralisa, impede qualquer tipo de reação.
O ator que reage de imediato não entendeu nada.

Os momentos de emoção mais intensa são os de maior economia expressiva. A reação


vem senão depois, muito depois.

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O teatro com que sonho é um teatro que nunca se farta, que sempre economiza no cerne
de sua aparente plenitude de consumação, com uma parcela de indecisão, de convite à
continuação, à troca permanente. A obra no seu objetivo máximo é feita por aquele que
a observa.

O ator sem brilho, no auge da ação e do envolvimento com a personagem, administra


uma distância, uma economia no dispêndio, como uma reserva que poderá acessar caso
a tensão se torne mais forte.

Na ação eles sabem conservar uma espécie de moderação entre o que fazem, o que
poderiam ter feito e o quanto vão fazer.

7. A “absorção” teatral

A matidez preserva a porção necessária de absorção teatral no trabalho do ator.

É preciso sempre conservar a idéia de divertimento, havendo oposição entre aquele que
é entretenimento “sem conseqüência” e aquele que a presume, não sendo esta
necessariamente um aumento de saber, de consciência, de moral, mas talvez seja o caso
de “menos”: menos certezas, menos ilusões.

A encenação é a circulação entre palco e a mesa do encenador de um discurso profuso e


interrompido. O ator econômico e opaco deve ter um encenador passional, excessivo.

8. A barca de Caronte e os aplausos

O ator desaparece em proveito daquilo que produziu. Na interpretação há a mortereal do


personagem e a morte fictícia do ator.

Seriam os aplausos sinal de gratidão e prazer ou um gesto de saudação e proteção diante


da morte?

Há uma necessidade recíproca na peça e na platéia de compartilhar, pelos aplausos, uma


alegria e uma gratidão. E, acima de tudo, possibilitar aos atores e espectadores um
tempo de transição, um filtro de descompressão entre teatro e vida, uma travessia
invertida na barca de Caronte.

O ator opaco termina a apresentação ainda suspenso entre vida e morte, entre visível e
invisível, uma qualidade de apatia, de desvario, de ausência de si e dos outros que não
se finge. E aos poucos vai sendo restituído a si mesmo, exausto mas feliz, para à alegria
do compartilhamento final.

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SÉTIMA CONVERSA

1. Depois do fim

A escola aqui evocada não possui o “depois” como fonte de preocupação, mas este,
igualmente, não deixa de estar no seu horizonte.

2. A revolta dos intermitentes do entretenimento

Uma superabundância de formações não conduziria a um grave excedente de candidatos


e atores?

3. Ser ator: quem decide sobre isso?

Que outro ensino, senão o artístico, aceita ser desobrigado de supervisão de aptidão do
ensino. “Eu sou artista e isto basta. Não é preciso dar nenhuma prova disso.” Este
posicionamento fere a própria dignidade dos artistas.

É sempre delicado, em matéria artística, fixar critérios, habilitações, avaliações,


comprovações. Mas, ao mesmo tempo, a tolerância demagógica tem favorecido a
ascensão de mediocridades e injustiças.

Questão complexa, pois a competência do artesão ou do operário é certificada, mas


quanto ao ator, quem decide?

Não há somente uma formação ao ator. Além disso, a mídia nos mostra que, mesmo sem
a mínima formação ou preparação, muitas pessoas se transformam nas estrelas do dia ou
do trimestre (vide os reality-shows). Nestas condições, para que se formar?

O teatro exige de seus atores o domínio do tempo, do espaço, do corpo, da voz, a


compreensão de um texto, a construção a partir do personagem de um outro além de si
próprio. Há que se insuflar nos atores o orgulho pela sua formação, o prazer de sua
maestria, a riqueza infinita de sua contribuição.

4. Ritos de passagem

Na conclusão de qualquer formação há sempre um rito de passagem. No teatro, não. Isto


faz falta. Como poderia ser feito esse momento de passagem?

5. Vida de cão

Meyerhold dizia: “Um verdadeiro teatro coletivo dura tanto quanto a vida de um cão”.

Atores que coincidem muito com o ensinamento que receberam não sobrevivem a ele.

O que nos interessa no artista é a sua não conformidade.

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6. O artista diplomado

Contudo, é impossível existir um diploma de não conformidade. A excelência de um


técnico é observável, objetivável; a não conformidade de um artista não o é.

Mas, se não há mais diploma, exame ou título, o que haverá então? Talvez a exigência
individual...

7. Exigência e notoriedade

Há papéis “inadequados”, que em nada combinam com a aparência física do ator, ou


seus antecedentes artísticos. Este fator ameaça a “imagem para os outros” que o ator
interiorizou de si mesmo.

Frente a um risco ou perturbação dá-se igualmente a oportunidade para uma abertura,


uma ampliação decisiva de registro.

Um ator deve ser habitado pelo desejo de ultrapassar os seus limites e pela lucidez de
conhecê-los. Cabe à escola prepará-lo para essa dupla vigilância.

Quando o artista não se percebe mais como uma inquietude, mas um eufórico
administrador de sua imagem, reconhecendo-se como mercadoria, ele está perdido para
o teatro. Muitos jovens esperam que a escola acelere seu acesso à notoriedade.

O compromisso sociológico do ator mudou muito. Cada um parece estar envolvido na


sua bolha. Cada um ostenta os seus trunfos, interpreta uma personagem qualquer,
ignorando as dificuldades e tentativas do vizinho, “a crise do não partilhamento”. É um
problema particular e ao mesmo tempo um problema de política geral da cultura.

Como conciliar na vida de ator, a humildade de artesão, a leveza de um saltimbanco, a


lucidez do cidadão e a exigência do artista?

A vida do artista não é senão uma longa experimentação, longo aprendizado nunca
terminado de um saber e um amadurecimento.

8. Uma Casa do Teatro

Idéia de construção de um espaço de encontro à atores com bibliotecas, videotecas,


salas de trabalho, iniciação em outras disciplinas, intercâmbios... voltada para a
formação e reciclagem dos atores.

9. Escola de arte, escola de vida

Atualmente todos parecem perdidos em uma espécie de terra de ninguém. O teatro se


dissolve na opinião pública, nos meios de comunicação, sem importar com a exigência
de um espetáculo, sua ambição, seu poder de influência.

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“Mais uma peça que não fará ninguém rir, exceto o público: Mais uma arte, o teatro, que
não interessa a ninguém, exceto ao público.”

Há público, existe demanda. O espectador tem a intuição de que uma das oportunidades
que se lhe apresentam para escapar ao nivelamento, à desinformação, à lavagem
cerebral, é compartilhar com os outros, numa proximidade física e intelectual, um
questionamento sobre si mesmo e sobre o mundo.

O teatro não pode morrer, é o menor denominador comum de uma sociedade. Qualquer
coletividade começou sempre por se colocar à prova na representação de seus mitos e
seus valores, suas proibições e aspirações. Desse ponto de vista não se deve ceder ao
mercado e ao catastrofismo.

Como construir uma escola que não seja entregue à impaciência aterrorizada de
representar, uma escola que seja, pelo contrário, uma propedêutica de arte e vida? Com
professores que não transmitem as tradições duvidosas, mas algo a partir de sua própria
busca, convidando-os a viver o presente. “Eu vivo tão intensamente, harmoniosamente,
o presente que não tenho que me preocupar com o futuro”.

10. Uma arte luxuosa

A arte é sempre luxuosa e a idéia é que ela seja um luxo “acessível a todos”
(Stanislavski). O aspecto luxuoso da arte deve ser pensado e afirmado numa perspectiva
democrática.

A arte não deve ser justificada pela existência do mercado; a arte ter uma função prática
constitui a negação da arte. Este argumento é frequentemente utilizado pela classe
política, ou seja, a cultura como subterfúgio para o investimento produtivo.

11. Um serviço público

O teatro público não tem que se deixar beneficiar pelos reflexos do teatro privado.

Não há teatro de arte que não reflita conjuntamente o desejo e a impossibilidade de


dirigir-se a todos.

A arte é criada contra o poder daqueles que pretenderiam domesticá-la, censurá-la ou


confiscá-la em proveito próprio.

A relação pública e política com a arte assume compromissos de natureza tecnocrática e


liberal.

O acesso à arte, à educação é um direito dispendioso, luxuoso talvez, mas inalienável.

A escola deve reivindicar um teatro de arte, nacional, popular, ou seja, elitista, luxuoso
para todos; o futuro de uma prática de criação e transmissão que ainda se inscreve numa
missão de serviço público.

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