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CHARTIER, Roger. Línguas e leituras no mundo digital.

In: Os desafios da
escrita. Tradução: Fulvia M. L. Moretto. São Paulo: UNESP, 2002. 11-32 p.

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Cristiano Freydnni Araújo Sousa

O livro Os desafios da escrita, de Roger Chartier, é, como esclarece o autor,


resultado de textos proferidos durante um evento ocorrido em 2001, na 10ª Bienal
Internacional do Livro do Rio de Janeiro. Dividido em cinco capítulos, a obra trata das
novas perspectivas relacionadas às mudanças nas práticas de leitura e os seus
consequentes reflexos na escrita. No primeiro deles, o autor faz uma análise do
contexto atual em que a leitura ganha novos parâmetros no cenário digital. É este
capítulo que tomamos como base para este trabalho.

A primeira parte do livro intitula-se Língua e leituras no mundo digital. Chartier


inicia o texto mencionando dois contos dO livro de areia, de Jorge Luis Borges, escritor
e poeta argentino: “O congresso” e “Utopia de um homem que está cansado”.

O primeiro é narrado em primeira pessoa por Alejandro Ferri que, a convite


de um amigo, José Fernández Irala, entra para uma agremiação que tem a missão de
representar todos os homens de todas as nações, abarcando todo o planeta, sendo a
plena representação do gênero humano. Idealizado por Dom Alejandro Glencoe,
estancieiro uruguaio, dono de uma propriedade no campo que ficava na fronteira com
o Brasil, e que se revoltou por aspirar a ser deputado e ter seus anseios barrados pelo
parlamento uruguaio, o congresso, entidade enigmática, quase secreta, deu a Ferri a
missão de buscar uma língua que fosse usada pelos congressistas. Enviado a
Londres, apaixona-se por uma estudante, Beatriz Frost, a quem pede em casamento,
porém a resposta não foi propícia. Ao regressar, Ferri encontra o congresso em crise
por causa de desavenças internas e de desistência de muitos integrantes. O fundador,
Dom Alejandro, decide pôr fim à entidade ordenando que todos os livros adquiridos
durante a existência da organização fossem queimados. O conto se encerra com a

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Mestrando em Linguagens e Letramento pelo PROFLETRAS.
conclusão de que é impossível buscar uma unidade linguística, já que o mundo é
composto por uma imensa variedade de lugares, coisas, indivíduos e línguas.

No segundo conto de Borges citado por Chartier, o narrador Eudoro Acevedo,


professor de letras inglesas e norte-americanas e escritor de contos fantásticos, como
se apresenta, é conduzido para um futuro em que se alcançou a unidade linguística e
coube ao latim o papel de funcionar como língua universal. O personagem se vê
andando por um caminho de planície quando é surpreendido por uma chuva e pede
abrigo numa casa que descreve como baixa, retangular e cercada por árvores. Seu
anfitrião, que inicialmente lhe causou medo pela altura, e que atendia apenas por
alguém, colocou Eudoro a par das muitas mudanças ocorridas: a abolição da
imprensa, de museus e bibliotecas; o fim das comemorações e centenários; a
mudança de profissão pelos políticos, uma vez que a imprensa deixou de publicar
suas colaborações. Ao deixar a casa que o abrigara, Eudoro percebe a figura de uma
inquietante torre e houve de seu hospedador a explicação de que se trata do
crematório, local que abriga uma câmara letal idealizada por um filantropo chamado
Adolf Hitler – uma brincadeira imponderada sobre o holocausto. O desfecho deixa
claras as consequências de um mundo em que se voltou à unidade linguística: a perda
da história e o desaparecimento da identidade. Borges defende, desse modo, a ideia
de que uma língua única resultaria na destruição das diversidades e da memória.

Chartier introduz o capítulo com a análise destas fábulas a fim de nos fazer
refletir acerca da seguinte problemática: como pensar a língua em um mundo
construído pela comunicação eletrônica em que a relação do leitor com o texto
impresso está se alterando? Para o autor, se considerarmos o método usado por Ferri,
personagem de “O congresso”, o inglês ocuparia lugar de prestígio nesse cenário, a
julgar pela relevância que apresenta atualmente: é a língua dos estudos, publicações
científicas e intercâmbios; das grandes empresas, das viagens e do mercado de bases
de dados numéricos.

O papel de destaque que o inglês recebe se deve, dentre outros aspectos, ao


fato de apresentar semelhanças com as línguas formais que buscavam a
representação do pensamento de forma simbólica. É o caso dos emoticons, palavra
derivada da junção dos termos em inglês emotion (emoção) + icon (ícone), caracteres
tipográficos que traduzem ou transmitem o estado psicológico, emotivo, de quem os
emprega, por meio de ícones ilustrativos de uma expressão facial.
Contudo, nas palavras do autor, é possível dizer que o inglês da comunicação
eletrônica é mais uma língua artificial do que uma língua particular elevada, uma vez
que reduz o léxico, simplifica a gramática, inventa palavras e multiplica abreviaturas.

Chartier lista três consequências geradas pela ambiguidade inerente à ideia


do inglês como língua universal: a hegemonia da língua norte-americana; a suposição
de uma aprendizagem que não tem por finalidade o conhecimento da língua inglesa,
uma vez que o inglês aprendido na internet é mais fácil; e o imperialismo ortográfico
do inglês que não reconhece acentos e impõe a supressão dessas notações léxicas
a outras línguas.

Outro fator que reforça a notoriedade do inglês como língua de comunicação


universalmente aceita diz respeito ao fato de se notar uma considerável diminuição
da distância entre a comunidade de falantes do inglês como língua oficial e outras no
mundo eletrônico. Dados da Global Internet Statistics atestam que quase 50% da
população on line mora em países que têm a língua inglesa como principal idioma.
Essa hegemonia é reforçada pelo progresso no ensino e no conhecimento das línguas
estrangeiras na Europa e na América Latina. Na perspectiva de Chartier, apenas um
projeto pedagógico bem definido seria capaz de impedir o domínio absoluto de uma
única língua.

Na visão do autor, o mundo da comunicação eletrônica expõe o leitor a uma


abundância textual que ultrapassa a capacidade de apropriação do leitor. É deste
cenário que surge mais uma inquietação proposta por Chartier: como pensar a leitura
diante de uma oferta textual que a técnica eletrônica multiplica mais ainda do que a
invenção da imprensa?

Para buscar entender o teor da indagação proposta pelo autor, é preciso voltar
a três momentos distintos que envolvem a revolução do texto digital: a substituição
dos rolos da Antiguidade grega e romana por livros entre os séculos II e IV; o
surgimento do livro unitário (manuscrito de obras compostas por um único autor dentro
de um mesmo livro) entre os séculos XIV e XV; e, por último, a invenção da escrita no
século XV, cuja técnica é até hoje a mais utilizada na produção de livros. Somos, pois,
conforme esclarece Chartier, herdeiros do livro, este fascinante objeto material,
intelectual e estético.
Cabe agora ao computador a tarefa de apontar para o leitor os tipos de textos
tradicionalmente distribuídos entre objetos diferentes. Nessa ótica, o que se torna
mais difícil é a percepção da obra como um todo, pois a leitura é descontínua e
buscada por meio de palavras-chave, sem que haja preocupação com o entendimento
do texto na sua totalidade. Decorre daí mais três consequências provocadas por essa
quebra de paradigma: surge uma nova técnica de difusão da escrita, incita-se uma
nova relação com o texto e fixa-se uma nova forma de inscrição.

Chartier cita ainda como transformação proposta pela textualidade digital o


fato de o leitor intervir no conteúdo do texto, podendo deslocar, recortar e recompor
unidades textuais das quais se apodera, graças ao fato de o texto ser móvel, maleável
e aberto. A consequência dessa alteração é o desaparecimento da atribuição de
textos ao nome do autor, já que serão constantemente modificados por uma escritura
coletiva. Tal colocação leva a uma reflexão quanto aos dispositivos que permitirão
delimitar, designar e identificar textos. Para o autor, essa reorganização é uma
condição para que possam ser protegidos os direitos econômicos e morais dos
autores.

Todavia, coexistirão duas formas de publicação: a que continuará oferecendo


textos abertos e a que oferecerá textos fechados para o mercado. Nesse contexto,
dois veículos corresponderão a cada uma dessas formas: o computador para textos
maleáveis e o e-book para os demais, já que esta ferramenta não permite a
modificação dos textos. O embate existente entre pesquisadores ilustra a tensão entre
essas duas lógicas: muitos exigem o livre acesso a artigos e revistas científicas, que
impõem altos preços de assinatura.

Chartier alude ainda à atual possibilidade de digitalizações de acervos de


bibliotecas lembrando que, por mais fundamental que seja esse projeto, não se deve
destruir os objetos do passado. Nesse ponto, o autor dialoga com o romancista
Nicholson Baker para citar um episódio ocorrido nos Estados Unidos no qual o Concil
on Library Resources decidiu microfilmar jornais e livros dos séculos XIV e XX e
acabou destruindo milhões de volumes e periódicos com a justificativa de preservação
em outro suporte e a necessidade de se esvaziar estantes para novas aquisições.
“Como leitores, como cidadãos, com herdeiros do passado, devemos, pois, exigir que
as operações de digitalização não ocasionem o desaparecimento dos objetos do
passado e que seja mantida a possibilidade de acesso aos textos tais como foram
impressos e lidos na sua época”, reitera o historiador.

Não se sabe ao certo como a modalidade digital de leitura modifica a relação


do leitor com a escrita. Para além do que está exposto, o autor destaca que as telas
do presente não ignoram a cultura escrita, mas a transmitem. Como caracterizar, pois,
a leitura do texto eletrônico? Nesse ínterim, Chartier toma parte de duas observações
feitas por Antonio Rodriguez de las Heras: a primeira é a de que a tela não é uma
página, mas um espaço em que os textos brotam; a segunda diz respeito ao fato de a
leitura do texto digital ser descontínua, segmentada e fragmentada. Nessa
perspectiva, é preciso que o leitor construa uma postura diante da leitura de textos
digitais a fim de superar a tendência ao derramamento que os caracterizam.

O autor encerra reportando-se mais uma vez aO livro de areia para comparar
a metáfora que permeia o título com o texto eletrônico: seria ele um livro com um
número infinito de páginas o qual não se poderia nunca ler ou mais uma modalidade
capaz de enriquecer e favorecer o diálogo que se estabelece com o leitor?

O texto digital não deve, portanto, ser visto como algo negativo, pois amplia
nossas possibilidades de leitura. É preciso um olhar crítico para orientar a busca,
seleção e gerenciamento das informações que estão disponíveis na rede. Não só a
leitura, como também a escrita, foram favorecidas pelas novas possibilidades de
contato com o texto observadas na última década, o que proporcionou,
consequentemente, um contato maior das pessoas com atividades que envolvam a
escrita.

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