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Paul Connerton - Como As Sociedades Recordam PDF
Paul Connerton - Como As Sociedades Recordam PDF
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PAUL CONNERTON
COMO AS SOCIEDADES
RECORDAM
SEGUNDA EDIÇÃO
CELTA EDITORA
OEIRAS / 1999
X
í
Paul Connerton
Como as Sociedades Recordam
Primeira edição portuguesa: Abril de 1993
Tiragem: 1000 exemplares
Segunda edição portuguesa: Janeiro de 1999
Tiragem: 1000 exemplares
Agradecimentos vii
Introdução 1
J A memória social 7
l
2 Cerimônias comemorativas 47
3 Práticas corporais 83
v
AGRADECIMENTOS
V l1
INTRODUÇÃO
1
o COMO AS S O C I E D A D E S RECORDAM
quanto a mim, diticilmente pode ser posta em causa, porque não há dúvida
de que o controlo da memória de uma sociedade condiciona largamente a
hierarquia do poder. De tal modo que o armazenamento permitido pelas
actuais tecnologias da informação e, em conseqüência, a organização da
memória colectiva através da utilização de máquinas de processamento de
dados, por exemplo, não é apenas uma questão técnica, mas antes uma
questão que se relaciona directamente com a da legitimação, sendo o controlo
e a propriedade da informação um problema político decisivo.2 Mais uma
vez, o facto de já não acreditarmos nos grandes "sujeitos" da história — o
proletariado, o partido, o Ocidente — significa não o desaparecimento destas
grandes metanarrativas, mas antes a sua duradoura eficácia inconsciente,
como formas de pensar e de agir na nossa realidade contemporânea: a sua
persistência, por outras palavras, como memórias colectivas inconscientes.3
Se nem a dimensão política da memória, nem a do inconsciente são
explicitamente abordadas neste livro, tal não é devido, portanto, a quaisquer
dúvidas que o autor alimente quanto à sua importância, mas porque se
avança aqui uma proposta diferente, que não é incompatível com a manu-
tenção das posições atrás expostas, antes é susceptível de investigação inde-
pendente. O objectivo dessa investigação pode, talvez, explicar-se melhor
registando, à partida, dois pontos que são considerados axiomáticos. Um diz
respeito à memória em geral, o outro à memória social em particular.
\"o que se refere à memória em geral, podemos observar que a nossa
experiência do presente depende em grande medida do nosso conhecimento
do passado. Entendemos o mundo presente num contexto que se liga causal-
mente a acontecimentos e a objectos do passado e que, portanto, toma como
referência acontecimentos e objectos que não estamos a viver no presente. E
viveremos o nosso presente de forma diferente de acordo com os diferentes
passados com que podemos relacioná-lo. Daí a dificuldade de extrair o nosso
passado do nosso presente: não só porque os factores presentes tendem a
influenciar — alguns diriam mesmo distorcer — as nossas recordações do
passado, mas também porque os factores passados tendem a influenciar, ou
a distorcer, a nossa vivência do presente. Este processo, deve sublinhar-se,
penetra nos mais ínfimos e quotidianos pormenores das nossas vidas. E
assim que Proust nos mostra como as recordações que Mareei tinha do rosto
de Swann estavam sobrecarregadas de memórias adicionais, pois o Swann
que, na juventude de Mareei, se tornara uma figura familiar em todos os
clubes então na moda, era muito diferente do Swann inventado pela tia-avó
de Mareei — e assim ''visto", portanto, por Mareei — quando aparecia, à
noite, em Combray. Swann, nessa época tão desejado em qualquer outro
lugar, era tratado pela tia-avó de Mareei com a rude simplicidade de uma
criança que brinca com uma peça de coleccionador sem maior circunspecção
do que se se tratasse de um objecto de pouco valor. Do Swann que construí-
ram para si próprios, os familiares de Mareei haviam excluído, na sua
ignorância, muitos pormenores da vida que então levava no mundo elegante,
pormenores esses que faziam com que outras pessoas, quando o encontra-
vam, vissem todos os encantos entesourados no seu rosto. Neste rosto,
despojado de todo o fascínio, a família de Mareei implantou um resíduo
duradouro construído a partir das horas de convívio e de lazer que haviam
passado juntos. O rosto de Swann, "o seu invólucro corporal", fora tão bem
preenchido com este resíduo de reminiscência que "o seu Swann especial"
se havia tornado, para a família de Mareei, numa "criatura viva e perfeita".
Deste modo, mesmo um acto aparentemente tão simples como o que atrás
descrevemos — "ver alguém conhecido" — é, em certa medida, e como nos
lembra Proust, um processo intelectual, pois guarnecemos o contorno físico
. ( da pessoa que olhamos com todas as idéias que já formámos a seu respeito
2 e, no retrato global que dela compomos nos nossos espíritos, essas idéias
assumem o lugar mais importante. Por fim, "elas acabam por preencher tão
completamente a curva das suas faces, por seguir de forma tão exacta a
linha do seu nariz, misturam-se tão harmoniosamente com o som da sua
voz, como se esta não fosse mais do que um invólucro transparente, que,
cada vez que vemos o rosto ou ouvimos a voz, são essas idéias que nós
reconhecemos e ouvimos". 4
No que diz respeito, em particular, à memória social, constatamos que
as imagens do passado legitimam geralmente uma ordem social presente. É
uma regra implícita pressupor uma memória partilhada entre os participan-
tes em qualquer ordem social. Se as memórias que têm do passado da
sociedade divergem, os seus membros não podem partilhar experiências ou
opiniões. Esse efeito observa-se, talvez de forma mais evidente, quando a
comunicação entre gerações é dificultada por diferentes conjuntos de memó-
rias. De geração em geração, conjuntos diversos de memórias, freqüentemen-
te sob a forma de narrativas de fundo implícitas, opor-se-ão uns aos outros,
de tal modo que, embora as diferentes gerações estejam fisicamente presen-
tes, umas perante as outras, num determinado cenário, podem permanecer
mental e emocionalmente isoladas, como se as memórias de uma geração
estivessem, por assim dizer, irremediavelmente encerradas nos cérebros e
nos corpos dos indivíduos dessa geração. Proust mostra-nos o desconcertan-
7
^ COMO AS S O C I ti U A D li S RECORDAM
4 Sobre o julgamento por decreto realizado pelos regimes substitutos, ver O. Kirchhoimer,
Political justice: The lhe of Legal Procedure for Política! Ends (Prínceton, 1961), pp. 304
e seguintes.
5 A. Camus, The Rebel (trad. A. Bower, Londres, 1953), p. 112.
10 C O M ti AS S O C I E D A D E S RECORDAM
era tanto uma ameaça ao poder da dinastia, como uma homenagem implícita
a este. O assassínio deixava intacto o princípio da soberania dinástica, porque
deixava o rei inviolado, enquanto pessoa pública.
Toda a essência do julgamento e da execução de Luís residiu na sua
publicidade cerimonial. Foi isso que o matou na sua capacidade pública, ao
recusar-lhe o seu estatuto de rei. O princípio dinástico foi destruído não por
assassínio, nem por prisão ou desterro, mas sim pela condenação à morte de
Luís, como encarnação da realeza, feita de tal maneira que a rejeição pública
oficial da instituição da monarquia ficou expressa e testemunhada de forma
indubitável. b Os revolucionários precisavam de encontrar um qualquer pro-
cesso ritual através do qual a aura de inviolabilidade que cercava a realeza
pudesse ser explicitamente repudiada. Deste modo, aquilo que repudiavam
não era só uma instituição,-mas a teologia política que a legitimava. 7 Essa
teologia política, a crença de que o rei unia na sua pessoa um corpo natural,
como indivíduo, e um corpo representativo, como rei, era expressa muito
claramente na cerimônia da coroação. Exprimia-se não só no acto da coroa-
ção, mas também na unção realizada por um bispo da Igreja coma frase, de
suprema importância, que anunciava que o rei ungido governava "pela graça
de Deus", dupla componente que conferia ao ritual da coroação o seu caracter %
quase sacramentai. Durante mil anos os reis da França haviam recebido nas
cabeças, no acto da coroação, não só as coroas como o óleo sagrado, à maneira
dos sucessores dos apóstolos. Tal acto transformava os inimigos da realeza
em pessoas abertamente sacrílegas. Foi este o efeito que o regicídio público
de Luís procurou contrariar. Residia aqui o elemento oximorónico deste
regicídio: a Luís seria feito um funeral régio para acabar com todos os
funerais régios. A cerimônia do seu julgamento e execução destinava-se a
exorcizar a memória de uma cerimônia anterior. A cabeça ungida foi decapi-
tada e o ritual da coroação cerimonialmente revogado. Não foi só o corpo
natural do rei que foi morto, mas também — e sobretudo — o seu corpo
político. Neste processo, os actos dos revolucionários apropriaram-se da
linguagem do sagrado que, durante tanto tempo, o poder dinástico tinha
usurpado como sua. A vítima compreendeu claramente que este era um
acontecimento decisivo para a morte da teologia política. Luís XVI, à seme-
lhança de Carlos I de Inglaterra, identificou-se explicitamente com o Deus
morto ao falar da sua derrota como Paixão.8 Os procedimentos usados no
10 A respeito das modas de vestuário durante a Revolução Francesa, ver Sennett, The Fali of
Public Man (Cambridge, 1975), pp. 183 e seguintes.
A MEMÓRIA SOCIAL 13
11 Ver Sennett, The Fali of Public Man (Cambridge, 1975), pp. 64-72.
12 M. Oakeshott Rationalism in Politic? (Londres, 1962), p. 119.
14 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
14 Ver R. Collingwood, The Idea ofHistory (Oxford, 1946), especialmente as pp. 266 e seguin-
tes; e J. Goldstein, Historical Knowkdge (Austin, Texas, 1976), especialmente pp. 13-16
e 52-9.
A MEMÓRIA SOCIAL 17
17 Ver, em especial, F. Meinecke, Histomw: Tfw Riwofa Nav Historiai! Outlook (trad. J. E. Anderson,
Londres, 1972) e P. H. Reill, The Gerrnan Enlighhmmont and the Riseof Historie ism (Berkelev, 1975).
Ver também I. Berlin, Viço and Herder (Londres, 1976) e P. Rossi "The Ideológica! Valeneies of
Twenrieth-Cenrury Historiásm", Hfcton/and Tfuvty, Beiheft 14 (1975).
IS Sobre o desempenho de papéis num grupo de estranhos, ver R. Sennett, pawm.
20 C O M O AS S O C I E D A D E S R E C O R D A M 1
que poucas pessoas se dão ao trabalho de pôr no papel aquilo que consideram
óbvio. E, no entanto, muita actividade política terá sido alicerçada "naquilo
que é óbvio", tacitamente aceite, o que pode observar-se de forma particu-
larmente fácil numa esfera bastante técnica como a da diplomacia ou nos
negócios de uma classe governante muito fechada. Neste sentido, e é um
sentido importante, os arquivos políticos do grupo dirigente estão longe de
esgotar a sua memória política. A distinção torna-se particularmente eviden-
te quando os seus líderes necessitam de tomar decisões em crises que não
conseguem entender globalmente e em que é impossível prever a conseqüên-
cia das suas acções. E então que terão' de recorrer a certas regras e crenças
assentes, sendo as suas acções dirigidas por uma narrativa de fundo implícita
que consideram óbvia. Deste modo, durante todo o século XVIII os homens
de Estado continuaram a acreditar que, acima de todas as coisas, deviam
impedir que qualquer outro poder ganhasse alguma vez um ascendente
similar ao de Luís XIV, e relembravam a si próprios que não se deveria
permitir que algo de semelhante às antigas guerras religiosas voltasse a
suceder.22 Durante o século XIX era habitual interpretarem-se todas as insur-
reições violentas como sendo a continuação do movimento iniciado em 1789,
de tal forma que as épocas de restauração surgiam como pausas durante as
quais a corrente revolucionária se havia tornado subterrânea apenas para
irromper de novo à superfície. Na altura de cada insurreição — em 1830 e
1832, em 1848 e 1851, ou em 1871 —, tanto os apoiantes como os opositores
da revolução viam os acontecimentos como conseqüências directas de 1789.23
Mais uma vez, se queremos compreender as convicções de 1914, precisamos
de avaliar as ligações entre os valores e as crenças inculcadas na escola e os
pressupostos em que os políticos se basearam para actuar mais tarde na vida.
São as idéias da geração anterior que devemos tomar em consideração para
avaliarmos quão literalmente a doutrina da luta pela existência e da sobrevi-
vência do mais forte era aceite por muitos líderes europeus em vésperas da
Primeira Guerra Mundial. 24
Consideremos, por outro lado, o caso das histórias de vida. Afinal a
maioria das pessoas não pertence às elites dirigentes, nem vive a história das
suas próprias vidas principalmente no contexto de vida dessas mesmas
elites. Há algum tempo, uma geração de historiadores, nomeadamente so-
cialistas, viram na prática da história oral a possibilidade de salvarem do
silêncio a história e a cultura dos grupos subordinados. As histórias orais
procuram dar voz àquilo que, de outro modo, permaneceria mudo, ainda que
não ficasse sem vestígios através da reconstituição das histórias de vida
22 Ver H. Butterfield, Tlw Discoiüitutities Between tlw Generatians m Histary (Cambridge, \972).
23 Ver T. Schieder, "Das Problem der Revolution im 19. Jahrhundert", Historiscíic Zcitschrift,
170 (1950), pp. 233-71.
24 Ver J. Joll, 1914: The Unspoken Assumptions (Londres, 1968).
22 C O M O AS S ü C i l i D A U E S RECORDAM
25 S. Terkei, Wnrkhig: People Talk Ahout ivhaf theif Do ali Dayand Hoxr lhey Feel About xehnl thcu
DÍJ (Londres, 1975).
26 P Fussel, The Great Wnr and Modem Memory (Nova Iorque, 1975).
27 C. Levi, Chmt Stopped at FJmli (trad. F. Frenaye, Londres, 1963), especialmente as pp. 130
e seguintes.
24 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
no, nunca ninguém mencionava a guerra para referir feitos realizados, luga-
res vistos ou sofrimentos suportados. Não que esse assunto fosse tabu:
quando interrogados sobre ele respondiam não só com brevidade, mas -
também com indiferença. Não recordavam a guerra como um acontecimento
memorável, nem falavam dos seus mortos. Mas havia uma guerra de que
falavam constantemente — era a guerra dos salteadores. O bandoleirismo
terminara em 1865, setenta anos atrás, e muito poucos aldeãos eram suficien-
temente velhos para se recordarem dela como participantes ou testemunhas
oculares. Contudo, toda a gente, tanto os jovens como os velhos, as mulheres
como os homens, falavam dela como se tivesse acontecido no dia anterior.
As aventuras dos bandoleiros entravam facilmente no seu discurso de todos
os dias e eram comemoradas nos nomes de muitos locais no interior e nos
arredores da aldeia. As únicas guerras de que os camponeses de Gagliano •
falavam com animação e coerência mítica eram as esporádicas explosões de
revolta em que os salteadores combatiam contra o exército e o governo do )
Norte. Mas mal tinham consciência dos motivos e interesses em jogo na
Primeira Guerra Mundial, a Grande Guerra não fazia parte da sua memória.
Podemos dizer assim, de forma mais geral, que todos nos conhecemos
uns aos outros pedindo explicações, fazendo relatos, acreditando, ou não,
nas histórias sobre os passados e identidades uns dos outros.28 Ao identificar- *
mos e compreendermos com êxito o que outra pessoa está a fazer, enquadramos
um acontecimento particular, um episódio, ou comportamento, no contexto de
várias histórias narrativas. Identificamos, deste modo, uma determinada acção
recordando, pelo menos, dois tipos de contexto para essa acção. Situamos o
comportamento dos agentes por referência ao seu lugar nas suas histórias de
vida e situamos também esse comportamento pela referência ao seu lugar na
história dos contextos sociais a que pertencem. Anarrativa de uma vida faz parte
de um conjunto de narrativas que se interligam, está incrustada na história dos
grupos a partir dos quais os indivíduos adquirem a sua identidade.
1*
A MEMÓRIA SOCIAL 27
32 Ver H. Bergson, Matter a mi Memon/ ítrad. N. \L Pau! e VV. S. Paimer, Londres, 1%2).
33 B. Russel, The Arwliph of Mimi (Londres, 1921), pp. 166 e seguintes.
34 A. R. Luria, The Man with a SJmttercd Worhi ítrad. L. Solotaroff, Londres, 1973).
28 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
conduta é como aprender a falar uma língua, mas que retira uma inferência
errada dessa analogia. Aprender a falar uma língua implica ser-se capaz de
se continuar a dizer frases que ainda não foram ditas. Num certo sentido, esta
actividade implica, evidentemente, que se faça algo diferente daquilo que já
se sabe. Todavia, no que diz respeito às normas lingüísticas que se está a
seguir, é ainda como "continuar-se pelo mesmo caminho" que foi previamen-
te ensinado. E isto traz à luz o que se quer dizer, neste caso, quando falamos
em continuar pelo mesmo caminho. Num certo sentido, adquirir um hábito
é ganhar uma propensão para fazer sempre o mesmo tipo de coisas, mas há
outro sentido em que isto se aplica à aprendizagem de uma norma. Estes dois
sentidos, sublinha Winch, são diferentes, e muita coisa depende dessa dife-
rença.44 Se se tratasse apenas de uma questão de hábitos, diz ele, então o nosso
comportamento corrente poderia certamente ser influenciado pelo modo
como havíamos agido no passado, mas tratar-se-ia apenas de uma influência
causai. O cão reage, neste momento, de uma certa maneira às ordens de
fulano por causa daquilo que lhe aconteceu no passado. Se me mandarem
continuar a seqüência dos números naturais depois do cem, eu faço-o de uma
certa maneira por causa da minha aprendizagem passada. A frase "por causa
de" é utilizada de forma diversa nestas duas situações. O cão foi condiciona-
do a reagir de uma certa maneira, ao passo que eu sei a maneira correcta de
proceder com base naquilo que me ensinaram. O que Winch quer dizer é que
pode afirmar-se que eu aprendi uma norma, e não um hábito, porque eu
compreendo o que quer dizer "fazer a mesma coisa, no mesmo tipo de
ocasião". A noção de norma de conduta e a noção de acção com sentido estão
intimamente ligadas. Para identificarmos as acções como acções — e não
como meros acontecimentos corporais ou fisiológicos — é indispensável que
as vejamos como acções com sentido. A categoria mais importante para a
nossa compreensão da vida social não será, então, a de causa e efeito, mas
sim a de sentido. Com esta atitude Winch deixa a noção de hábito sem
qualquer papel significativo na teoria social.
Ao fazer esta distinção entre hábitos e normas, Winch pode defender
que as formas de actividade que Oakeshott descreve como "hábitos de afecto
e de conduta" se podem descrever correctamente como um comportamento
orientado por normas, do qual Winch refere vários exemplos. Vou citar um
que ele não dá, mas que capta aquilo que quer dizer Um termo como
"vergonha" remete-nos para um certo tipo de situação, vergonhosa, e para
uma determinada maneira de reagir relativamente a ela: escondermo-nos ou
procurarmos apagar a nódoa. Escondermo-nos, neste contexto, tem o objec-
tivo de ocultar a vergonha. Só podemos entender o significado de nos
escondermos, neste caso, se compreendermos de que tipo de situação e de
sentimento se está falar. Um termo como vergonha só pode então ser expli-
48 Ver H. E. Roberts, "The Exquisite Slave: The Role of Clothes in the Making of the Victorian
Woman", Signs, 2 (1977), pp. 554-69.
A MEMÓRIA SOCIAL 39
logo que se desvia a atenção da estrutura de uma língua para os usos que os
agentes fazem dela na prática, constata-se que o mero conhecimento da
língua, um conhecimento da norma ou do código, dá apenas um domínio
imperfeito daquelas práticas que foram classificadas sob os termos paralelos
de aplicação e de execução. Num tal quadro, quer seja o de uma língua, quer
seja o dos conjuntos de práticas entendidos em analogia com a língua, não
se atribui qualquer lugar, e logo qualquer significado, à prática cumulativa do
mesmo, na qual reside a destreza do hábito. Há, por assim dizer, um vazio
entre os dois termos que são aqui empregues de forma análoga: um vazio
entre norma e aplicação e um vazio entre código e execução, vazio que deve
ser reclamado, como irei sugerir, por uma teoria da prática usual e, portanto,
da memória-hábito.
O objectivo, ao insistir-se na existência deste vazio, é mostrar que há
qualquer coisa que se pode distinguir como memória-hábito social, ficando
assim numa posição que nos permite começar a olhar mais de perto para a
forma como ela funciona. Os hábitos sociais, como tais, têm um significado
bastante distinto dos hábitos individuais. Não faz parte do meu objectivo,
como não fazia das abordagens que Winch e Sahlins representam, inquirir
sobre o funcionamento dos hábitos distintivamente individuais, visto que
'• um hábito desse tipo apenas tem significado, para os outros, por estar
baseado nas expectativas convencionais desses outros no contexto de um
sistema de significados partilhados. Claro que um hábito puramente pessoal
ou individual, de maior ou menor trivialidade, pode ser interpretado pelos
outros como tendo significado. Um indivíduo pode ter o hábito de garatujar
durante as palestras e os outros interpretarem esse comportamento como
significativo, quer considerando-o sintomático, mas não intencional, do
temperamento de uma pessoa, quer pensando que transmite intencional-
mente o facto de o espírito desse indivíduo não estar totalmente ocupado
pelo objecto ostensivo da atenção de toda a gente. Mas isto não satisfaz o
critério de um hábito social, pois o seu significado baseia-se nas expectativas
convencionais dos outros de forma a ser interpretável como uma performan-
ce socialmente legítima (ou ilegítima). Os hábitos sociais são essencialmente
performances legitimadoras e, se a memória-hábito é inerentemente perfor-
mativa, então a memória-hábito social deve ser também socialmente perfor-
mativa num plano específico.
Se passarmos em revista os três tipos de memória que distingui — pes-
soal, cognitiva e memória-hábito — descobrimos que cada um deles tem sido
estudado, ou pode ser estudado, de modo a elucidar a natureza de um tipo
particular de esquecimento por parte da pessoa cuja capacidade de recordar
esta a ser investigada, sendo a natureza do esquecimento própria do tipo de
domínio da memória evocada em cada caso.
A memória pessoal tem sido estudada pelos psicanalistas como parte
das suas investigações sobre as histórias de vida individuais. Uma falha de
40 COMO AS S O C II: D A D E S RECORDAM
49 Ver M. Halbwachs, Les cadres sociaux de Ia mémoire (Paris, 1925); Halbwachs, La mémoire
A MEMÓRIA SOCIAL 41
collective (Paris, 1950); ver também, do mesmo autor, La topographic légendahr Jes jíiwi-
tf/7í*s cn Tem* Sainic: Étudetk mc.moirc collective (Paris, 1941); "La mémoire collective chez
ies musiciens", Rcvuc Philosophiquc, 127 (1939), pp. 136-65.
42 COMO AS S O C I E D A D E S RECORDAM
54 Para comentários corroborativos desta sugestão, com particular referência ao papel das
avós nas sociedades tradicionais, ver D. FabreeJ. Lacroix, La tradition oralçdu conte occitan
(Paris, 1974), Vol. I, especialmente as pp. 111-15.
A MEMÓRIA SOCIAL 45
1 Sobre os rituais nacionaLsociaHstas, ver H. T. Barden, The Nuremberg Party RaUies, 1929-39
(Londres, 1967); J. P. Stem, Hitler: The Führer and lhe People (Londres, 1975); K. Vondung,
Magie und Manipuhtion, ídeologischer Kult und politische Religion de$ Nationateozialismus
(Gottingen, 1971).
47
48 C O MO AS S O C I E D A D E S RE C O R D A M
Após cada grito soaram três tiros em saudação. Esta comemoração era uma
representação paga da Paixão, apresentada num vocabulário pedido de
empréstimo à religião.
A narrativa relata acontecimentos históricos — mas acontecimentos
históricos transfigurados pela mitificação que os transformou em substâncias
inalteráveis e imutáveis. O conteúdo dos mitos é representado como não
estando sujeito a qualquer espécie de mudança e o mito ensina que a história
não é um jogo de forças contingentes — as constantes fundamentais são a
luta, o sacrifício e a vitória. As virtudes cardeais do nacional-socialismo
consubstanciadas, por assim dizer, nàs dezasseis "testemunhas de sangue",
são a obediência incondicional, a confiança absoluta e a preparação para o
sacrifício até à morte. O fiasco político de 1923 não é, deste modo, reinterpre-
tado e representado nem como uma derrota, nem como fútil e sem sentido.
O destino mortal daqueles que nele tombaram deve ser interpretado não
como uma morte sem sentido, mas como uma morte sacrificial. Deve ser
entendido como um acontecimento sagrado, que aponta em frente, para um
outro acontecimento sagrado, o de 30 de Janeiro de 1933, pois a tomada do
poder não é interpretada como um mero êxito político, tal como o putsch de
1923 não o é como um mero fracasso político. Nenhum deles pertence à esfera
-das coisas mundanas. O acontecimento "sagrado" do putsch prefigurava a
vitória, enquanto o acontecimento "sagrado" da tomada do poder dava, por
fim, forma real ao conteúdo da revelação, o "Reich". Entre os dois aconteci-
mentos estabeleceu-se uma concordância mítica e a data crucial recorrente
desta narrativa mítica é o 9 de Novembro.
Esta narrativa era mais do que o contar de uma história, era um culto
encenado, era um rito estabelecido e representado. A sua história não era
inequivocamente contada no pretérito, mas no tempo de um presente meta-
físico. Subestimaríamos o poder comemorativo do rito, minimizaríamos o
seu poder mnemónico, se disséssemos que ele recordava acontecimentos
míticos aos participantes. Deveríamos antes dizer que o acontecimento sa-
grado de 1923 era reapresentado; os que participavam no rito davam-lhe uma
forma cerimoniaImente corporizada. A realidade transfigurada do mito era
reapresentada uma e outra vez, quando aqueles que tomavam parte no culto
se tornavam, por assim dizer, contemporâneos do acontecimento mítico.
Todos os anos, a marcha histórica de 1923 repetia-se; todos os anos, soavam
os dezasseis tiros, repetindo os dezasseis disparos mortais de 1923; todos os
anos, as bandeiras eram agitadas não como símbolos que se reportassem a
um acontecimento acabado, mas como relíquias consubstanciais desse mes-
mo acontecimento. Acima de tudo, era através de actos representados num
lugar sagrado que a ilusão do tempo mundano era suspensa. No Feldherr-
nhalle dava-se, todos os anos, uma forma presente à estrutura mítica. Neste
local a diferença temporal era negada e a existência da mesma realidade,
"verdadeira" e "autêntica", anualmente desvendada.
50 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
2 S. Lukes, "Political Ritual and Social Integration", Sociology, 9 (1975), pp. 289-308, espe-
cialmente a p. 291.
CERIMÔNIAS COMEMORATIVAS 51
3 Sobre os ritos terem significado para além da ocasião em que são praticados, ver C Gecrtz,
"Reiigion as a Cultural System", in D. Ctitler (ed.), The Religious Situation (Nova Iorque.
1968), pp. 639-87.
52 COMO AS S O C I E D A D E S RECORDAM
mente essa mesma continuidade. E muitas delas, nas quais desejo agora fixar
a atenção, fazem-no através da reencenação ritual de uma narrativa de
acontecimentos que se julga terem decorrido num tempo passado, de modo
suficientemente elaborado para incluírem a performance de seqüências mais
ou menos invariáveis de actos e declarações formais.
Em nenhum outro domínio é esta pretensão, de comemorar uma série
anterior de acontecimentos fundadores sob a forma de um rito, mais ampla-
mente expressa do que nas grandes religiões mundiais. Uma tal pretensão
está nelas constantemente presente.
A essência da identidade judaica é estabelecida pela referência a uma
sucessão de acontecimentos históricos. Os dois livros mais populares na vida
judaica, o Antigo Testamento e o livro judaico de orações, narram e celebram
esta sucessão. O Antigo Testamento e, em particular, os seus livros históricos
revelam uma identidade constituída pelas etapas de uma narrativa histórica:
a vida de Abraão e a sua migração para o Egipto, o êxodo das tribos judaicas )
do Egipto, a revelação da Lei no monte Sinai, a entrada dos judeus na Terra
Prometida e as aventuras subsequentes sob o domínio dos juizes e dos reis.
O livro de orações, tal como o Antigo Testamento, exprime os ideais religiosos
e éticos do judaísmo e reflecte simultaneamente a vida do judeu enquanto
membro de um grupo histórico particular. Embora os seus elementos básicos x
permanecem idênticos através da Diáspora, os pormenores do livro de
orações trazem, em quase todos os países, a marca das condições locais a que
a comunidade judaica está sujeita. Tanto no Antigo Testamento como no livro
de orações, a "recordação" torna-se um termo técnico através do qual se dá
expressão ao processo pelo qual os judeus praticantes lembram e recuperam,
na sua vida presente, os principais acontecimentos formativos da história da
sua comunidade. Em nenhum outro lugar esta teologia da memória é mais
pronunciada do que no Deuterónimo. A prova de que a nova geração de Israel
permanece ligada à tradição mosaica, que o Israel do presente não foi
separado da sua história redentora, reside numa forma de vida em que
recordar é tornar o passado presente, é formar uma solidariedade com os
antepassados. Essa prova deverá ser feita nas demonstrações do culto. Israel
celebra os festivais para recordar, e o que se recorda é a narrativa histórica de
uma comunidade. A Páscoa, um dos festivais mais importantes do ano
judaico, é explicitamente histórica, lembrando todos os anos ao povo o
acontecimento central da antiga história judaica, o êxodo do Egipto tal como
é contado no Exodus Doze. O Seder (a ceia ritual da Páscoa judaica) recorda
anualmente aos judeus praticantes o momento mais formativo na vida da
sua comunidade, o momento em que essa comunidade foi redimida do
cativeiro e transformada num povo livre, e lembra-lhes esse momento sob a
forma de uma celebração doméstica, na qual uma parte proeminente do culto
cabe à criança. As gerações permanecem unidas na história através do culto.
Também aos festivais das colheitas de Shevuoth e Sukkoth te"m sido dada
CERIMÔNIAS COMEMORATIVAS 53
4 Sobre a liturgia judaica, ver B. S. Childs, Memory and Tradüion in Israel (Londres, 1962);
í. EIbogen, Der jihlischc Gottetdienst in tehier gesehichtlichen Fjitwicklun^ (Hildesheim,
1962); N. Ni. Glatzer íed.), The Pastover Ha^adah (Nova Iorque, 1960); A. / . ídelson, /rír/s/i
Lihtrgy iwd its Deveíopment (Nova Iorque, 1967); B. Lewis, History: Remewbered, Kecorded,
Invented (Frínceton, 1975), pp. 47-48; S. Mowinckol, Rcligion und Kitítus (Gõttingen, 1953);
j . Pederson, Israel, ite Life und Culhtre (Oxford, 1940); J. Pehichovvski, Contrihntious to lhe
Scirtitific Stndu nftíie \vwish Lititrgy (Nova Iorque, 1970).
54 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
5 Sobre a liturgia cristã, ver O. Casei, The Mistery ofChristian Worship (ed. B. Neunheuser,
Londres, 1962); F. Clark, Eucharistic Sacrifice and the Reformation (Oxford, 1967); Y. M.-J.
Congar, Tradition and Traditions (tr. M. Naseby e T. Rainborough, Londres, 1966); R.
Guardini, The Church and the Catholic, and the Spirit of the Liturgy (tr. A. Lane, Londres,
1935); J. A. Jungmann, Liíurgische Erneuerung — Rückblick und Aushlick (Kevalaer, 1962);
Jungmann, The Liturgy ofthe Word (tr. H. E Winstone, Londres, 1966). *
CERIMÔNIAS COMEMORATIVAS 55
crentes. O jejum veio a ser olhado por muitos como o acto religioso mais
importante e é observado até pelos muçulmanos que negligenciam as suas
orações diárias. E o Ramadão foi escolhido devido às suas referências histó-
ricas explícitas: foi neste mês, o quinto do ano muçulmano, que o Alcorão foi
enviado à terra como um guia para o povo. 6
Nas religiões mundiais, mas também'nos ritos de muitos povos sem escrita
e em diversos rituais políticos modernos, existe, pois, uma gama de cerimô-
nias que partilham certas características comuns: não se limitam a sugerir a
continuidade com o passado, em virtude do seu grau elevado de formalismo
e rigidez; pelo contrário, um dos seus traços característicos é a reivindicação
explícita de comemorarem uma tal continuidade. Não poderemos nós inferir
então, a partir deste facto, que essas cerimônias comemorativas desempe-
nham um papel significativo na configuração da memória comunitária?
Tem-se expressado muitas vezes cepticismo a respeito desta inferência e esse
cepticismo assumiu geralmente uma de três formas possíveis.
A primeira linha de argumentação, a que chamarei a posição psicana-
lítica, consiste na perspectiva de que o comportamento ritual se compreende
melhor como uma forma de representação simbólica. Afirma-se que os ritos
são o enunciado sistematicamente indirecto, codificado no simbolismo do
rito, de conflitos que esse rito disfarça e, nessa medida, nega. O processo
primário, que se considera explicar o processo secundário da representação
simbólica, está localizado na história de vida do indivíduo, embora as inter-
pretações psicanalíticas particulares do ritual possam variar, conforme a fase
edipiana ou pré-edipiana da infância, ou outro qualquer processo conflitual,
seja, ou não, tomada como a gênese de tais representações. Aquilo que todas
essas interpretações têm em comum é descodificarem o texto ritual como
tendo uma carga de conflito e estando, por isso, de certo modo, carregado de
estratégias de negação.
É possível interpretar os rituais psicanaliticamente como repre-
sentações simbólicas, explicando essas representações em termos da história
de vida do indivíduo. Assim, o entendimento que Freud tem do ritual é
baseado na suposta analogia entre a ontogenese e a filogénese, sendo o
terreno da alegada analogia proporcionado pelo seu ponto de vista de que a
luta edipiana entre filhos e pais, no contexto da autoridade patriarcal, é o
processo primário/ Nesta base, Freud é levado a especular que na história
de vida da espécie humana terá existido outrora uma horda primitiva cons-
tituída por um pai poderoso, os seus filhos e um grupo de fêmeas às quais o
pai tinha acesso exclusivo; que os filhos, ressentindo-se da sua dominação, o
mataram; que, depois, reconheceram que o amavam, para além de o odiarem,
ficando dominados pelo remorso; e que, como reparação, restauraram a
imagem do pai sob a forma substitutiva do animal totémico. Segundo esta
interpretação, a refeição totémica que repetiam todos os anos devia então ser
vista como a repetição solene não do acto de parricídio em si, mas da forma
de encarar esse acto,. que aqueles que o haviam cometido vieram posterior-
mente a adoptar. Era um regresso da memória reprimida, no qual repre-
sentavam e superavam o acto originário. Representavam a sua ambivalência
para com o pai venerando e, devorando simultaneamente o animal totémico,
superavam essa ambivalência identificando-se com o animal que comiam. A
refeição totémica deve ser entendida como um acto de representação simbó-
lica no sentido em que se tratava de uma repetição e de uma comemoração )
deste feito criminoso e memorável. Sem nos exigir que aceitemos a ontologia
freudiana na globalidade, ou que aceitemos a sua projecção na história de
vida da humanidade, Richard Wollheim propõe uma explicação psicanalítica
alternativa do ritual como representação codificada.8 Começando por obser-
var que muitos ritos exigem uma morte, geralmente a de um animal, embora %
por vezes também a morte real ou simulada de um ser humano, sugere que
tais actos são invariavelmente "exercícios de negação" e como tal pertencem
à "patologia do ritual". O ritual nega, e aqueles que o executam negam, a
realidade da agressão como impulso humano, a denegação é feita colocando
"entre parêntisis" o seu sentido. O fim para o qual a agressão como impulso
se dirige inerentemente, a destruição de uma vida, é isolado. Uma vez
isolado, este fim é recomendado como algo que deveria ser repetido uma e
outra vez, mas sempre, em cada repetição, o motivo pelo qual a vida deve
ser tirada deve estar o mais afastado possível da agressão — deve ser em
nome da piedade, da decência, ou da reverência pela autoridade. Aquilo que
esses ritos se destinam a alcançar, sugere, é "a minimização ou a depreciação
do sadismo", e este fim apenas se pode concretizar, tal como os ritos no
cenário alternativo de Freud, pela representação quase textual codificada.
Uma segunda linha de argumentação, a que chamarei a posição socio-
lógica, consiste na opinião de que o comportamento ritual se corrípreende
melhor como uma forma de representação quase textual. Este tipo de leitura
desenvolve-se enfatizando as formas como o ritual funciona para comunicar
valores partilhados no interior de um grupo e para reduzir a dissensão
interna. Segundo este ponto de vista, aquilo que os rituais nos dizem é como
são constituídos a estabilidade e o equilíbrio sociais. Mostram-nos como o
ethos de uma cultura e a sensibilidade moldada por esse ethos, quando
soletrados para o exterior, são articulados no simbolismo de algo parecido
com um texto colectivo único.
Podem encontrar-se muitas variantes influentes desta linha de interpre-
tação. Segundo Durkheim, o ritual"representa" a realidade social tornando-a
inteligível, mesmo que o conteúdo cognitivo do rito esteja codificado sob
uma forma metafórica e simbólica. Neste sentido, podemos considerar os
rituais religiosos, por exemplo, como sistemas de idéias nos quais "os indi-
víduos representam para si próprios a sociedade de que são membros e as
relações obscuras mas íntimas que têm com esta".9 Esta idéia — que resulta
do realce da componente fortemente cognitiva da explicação de Durkheim —
de que os ritos podem ser interpretados como representações simbólicas e,
neste sentido, como possuindo conteúdo cognitivo, pode ser simultanea-
mente alargada e modificada. Pode ser alargada se considerarmos que o
simbolismo dos rituais políticos representa conceitos particulares daquilo
que é uma sociedade e de como ela funciona,10 e pode ser modificada se
considerarmos que esses rituais políticos operam no âmbito de contextos
'políticos em que o poder é distribuído de modo sistematicamente desigual,
o que nos permite interpretar os rituais como algo que possibilita um controlo
cognitivo na medida em que proporciona uma versão oficial da estrutura
política através de representações simbólicas, por exemplo, do "império", da
"constituição", da "república", ou da "nação". 11 Esses rituais podem ler-se
como uma espécie de texto colectivo simbólico, mas a possibilidade de
interpretar os ritos como formas de representação simbólica pode ser levada
ainda mais longe se, com Bakhtin, interpretarmos o Carnaval e, mais parti-
cularmente, as festividades populares que floresceram durante o Renasci-
mento como representações antecipatórias. 12 Segundo esta explicação, as
inversões da ordem hierárquica características do Carnaval não devem con-
tinuar a ser interpretadas como uma forma encoberta de reafirmar a hierar-
quia, mas, pelo contrário, como um mecanismo de libertação social, no qual
o expediente da representação simbólica é utilizado como alavanca. O Car-
c
> E. Durkheim, The Elementan/ Forms o/Religious Life (trad. j . W. Svvain, Londres, 1915), p. 225.
10 Para a extensão do estudo do simbolismo aos rituais políticos, ver E. Shils e M. Young,
"Tbe Meaning of the Coronation", Sociológica! Revira*, n.s. 1 (1953), pp, 63 -81; L. Warner,
The Living and the Dead: A Study of the Symhoíic Life of Americans (New Haven, 1959).
11 Para o uso do ritual político como controlo cognitivo, ver N. Birnbaum, "Monarchiesand
Socioiogists: A Reply to Professor Shils and Mr. Young", Sociológica! Revieio, n.s. 3 (1955),
pp. 5-23; C. Geertz, "Centers, Kings, and Charisma: Reflections on the Symbolism o\
Power", in J. Ben-David e T. N\ Clark (eds.), Culture and its Creators, Estaifs in Honour of
Edtvard Shils (Chicago, 1977), pp. 150-71; S. Lukes, "Political Ritual and Social íntegra-
tion", Sociology, 9 (1975), pp. 289-308.
12 M Bakhtin, Rabelais and his World (trad. H. íswolsky, Cambridge, Mass., 1968), pp. 196-277.
58 COMO AS S O C I E D A D E S RECORDAM
naval é assim visto como um acto em que "os indivíduos" se organizam "à
sua maneira", como uma colectividade onde os membros individuais se
tornam parte inseparável da massa humana, de tal forma que "as pessoas"
se apercebem da sua unidade corporal sensual-material. Pode então dizer-se
que as formas populares-festivas, ao permitirem a aglutinação de um tal
corpo colectivo, oferecem às pessoas uma representação simbólica não das
categorias presentes, mas da utopia, a imagem de um estado futuro no qual
se concretiza a "vitória da abundância material de todo o povo, a liberdade,
a igualdade e a fraternidade". Os ritos do Carnaval representam e prefiguram
os direitos do povo. Como forma de interpretar os ritos, esta argumentação
oferece-nos uma espécie diferente de codificação simbólica, em que aquilo
que de outro modo seria calado e indizível é expresso e a dimensão do tempo
futuro implicitamente revelada. Como interpretação da acção ritual, perten-
ce, todavia, ao mesmo gênero que o seu correspondente durkheimiano, o da
representação simbólica numa espécie de texto colectivo.
Uma terceira linha de argumentação, à qual chamarei a posição histó-
rica, consiste no parecer de que os ritos não se podem compreender de forma
satisfatória apenas em termos da sua estrutura interna, pois todos os rituais,
não importa quão venerável seja a ancestralidade que lhes é atribuída, têm
de ser inventados em alguma altura e, durante o período histórico em que
permanecem vivos, o seu significado é susceptível de mudança. Esta expli-
cação levou à tentativa de redescobrir o significado dos cerimoniais, reen-
quadrando-os no seu contexto histórico. Segundo este ponto de vista, situar
um rito no seu contexto não constitui um mero passo auxiliar, mas um
ingrediente essencial ao acto da sua interpretação. Investigar o contexto de
u m rito não é estudar apenas informação adicional a seu respeito, mas sim
colocarmo-nos em posição de obter maior compreensão do seu significado
do que aquela que seria acessível a "alguém que o interpretasse como um
texto simbólico independente". 13 Seguindo esta linha de pensamento, muitos
historiadores têm demonstrado que, se quisermos redescobrir o significado
dos rituais da realeza no início do período moderno, temos de relacioná-los
inteligivelmente com as circunstâncias em que foram realizados.14 Outros
13 Para uma elaboração desta posição, ver D. Cannadine, "The Context, Performance and
Meaning of Ritual: The Bristish Monarchy and the Tnvention of Tradition', c. 1820-1977",
in E. Hobsbawm e T. Ranger (eds.), The Invention of Tradition (Cambridge, 1983), pp. 101-
64, especialmente 104-8.
14 Para os estudos do ritual político no início da Idade Moderna, ver, entre outros, S. Anglo,
Speciacle, Pageantry and Early Tndor Policy (Oxford, 1969); D. M. Bergeron, English Civic
Pagcantry, 1558-1642 (Londres, 1971); P. Burke, Popular Ctdture in Early Modem Europe
(Londres, 1978); R. E. Giesey, The Royal Funeral Qeremony in Renaissance Trance (Genebra,,
1960); E. Muir, Civic Ritual in Renaissance Venice (Prínceton, 1981); S. Orgel, The lllusion of
Poiver: Political Theater in the English Renaissance (Berkeley, 1975); R. Strong, Spkndour at
Court: Renaissance Spectacíe and lllusion (Londres, 1973); F. A. Yates, T/;Í Valois Tapestries
(Londres, 1959).
CERIMÔNIAS COMEMORATIVAS 59
17 Ver B. Lewis, History: Remembered, Recordeâ, Invented (Prínceton, 1975), pp. 3-41.
CERIMÔNIAS COMEMORATIVAS 61
muitas readaptações dramáticas do mito de Don Juan até este ter recebido a
materialízação perfeita na ópera de Mozart. O mesmo julgamento foi aplica-
do às versões dramáticas mais antigas do mito de Fausto até este ter recebido
a forma definitiva no Fausto de Goethe. Por isso, prosseguia esta argumenta-
ção, não valia a pena querer ainda produzir um outro Don Juan, depois de
Mozart, ou um outro Fausto, depois de Goethe. O objectivo destes argumen-
tos era demonstrar que a reestruturação criativa do material mítico era um
processo finito. Porém, este objectivo apenas era alcançado reconhecendo,
em cada caso, que aquele processo constituía, na verdade, uma história de
reinterpretações, um processo de readaptações substanciais e variadas até ser
dada uma forma definitiva ao material mítico.
É possível conceber uma variância criativa acrescida, que não se enqua-
dre mais num esquema do tipo acima referido: uma pré-história das inter-
pretações que é finalmente suplantada por uma interpretação definitiva.
Tanto no caso do mito de Don Juan como no do mito de Fausto, pode ser
apropriado falar-se de soluções para o trabalho de readaptação do material
mítico que eram imperfeitas e preliminares, e de uma solução mais tardia e
definitiva. Mas o mito de Orestes-Electra não pode ser ajustado a um tal
padrão. Neste caso, o mesmo material mítico e a mesma situação trágica
1
básica são reestruturados dramaticamente pelos três grandes autores da
tragédia grega e, mais tarde, novamente sob uma forma moderna, pelo maior
de todos os dramaturgos modernos, em Hamlet. Deparamos com várias
representações dramáticas do mesmo material mítico, bastante diferentes
umas das outras. Mesmo se deixarmos de lado a versão de Eurípides, dado
o estatuto de autoria desta ter sido posta em causa por vários críticos,
incluindo Aristóteles, ficam ainda três peças que se contam entre as maiores
de todas as tragédias, mas entre as quais é impossível escolher uma única e
proclamar que essa representa, em comparação com as outras, a adaptação
definitiva do material mítico.
A adaptação dramática do mito por Esquilo e Sófocles gera, a partir do
mesmo material, significados fundamentalmente diferentes. Esquilo leva ao
extremo o elemento trágico do conflito existente no mito, mostrando o acto
de matricídio como necessário e horrendo em igual medida. Neste aspecto,
diverge dos tratamentos poéticos anteriores do mito feitos por Simónides,
Estesícore e Píndaro. Nestes, o assassínio de uma mãe, às ordens de um deus,
era representado como um acto heróico, ou, pelo menos, a obrigação de o
filho reclamar vingança sobre a sua mãe recebia maior ênfase que o horror
do seu matricídio. Esquilo leva-nos a ver o horror do acto. Mostra Orestes
encurralado pela lógica de uma ordem social vingativa, cujos modos de
funcionamento implicam necessariamente os deveres que lhe são exigidos.
A proclamação da sua inocência, na parte final da trilogia, só se torna possível
através do estabelecimento de um tribunal publicamente reconhecido como
competente para emitir um veredicto sempre que surgissem disputas sobre
64 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
cies realça a motivação que impulsiona a única excepção, o agente que sente
mais intensamente do que todos os outros.
Estas reconfigurações do material mítico revelam, de forma extrema,
uma característica intrínseca ao mito como tal. O conteúdo simbólico do mito
grego não fica esgotado em nenhuma combinação formal única. O material
simbólico desses mitos não tem a invariância e a inércia de algo já preestabe-
lecido e formalizado. Constitui, pelo contrário, algo mais semelhante a um
reservatório de significados que está disponível para voltar a ser possivelmente
usado noutras estruturas. O material mítico contém uma variedade de signi-
ficados potenciais que excede significativamente o seu uso e função em
qualquer combinação particular, em qualquer estrutura dramática singular.
Tal como acontece também com muito do material do Antigo Testamento,
por exemplo, embora ali mais sob a forma de repetição narrativa e comentá-
rio, uma rede de acontecimentos míticos goza de uma significativa historici-
dade, de um longo processo interpretativo de renovação e de variação. A
reutilização dos mitos gregos, tanto na cultura da antiga Grécia como em
contextos culturais posteriores, depende daquilo a que podemos chamar um
excedente de significado — um excedente que pode ser realizado em combi-
nações interpretativas variáveis, quando o material mítico é reestruturado
noutras formas dramáticas. 20
Em comparação com os mitos, a estrutura dos rituais tem significativa-
mente menos potencial de variação. É verdade que todos os rituais tiveram
de ser inventados em algum momento, podendo os pormenores da sua
articulação desenvolver-se ou variar em conteúdo e importância com a
passagem do tempo. Todavia, continua a existir um potencial de invariância
incorporado nos ritos, mas não nos mitos, em virtude do facto, intrínseco à
natureza dos rituais — mas não dos mitos — de estes especificarem a relação
que prevalece entre a execução do ritual e aquilo que os participantes estão
a executar. Daí resulta que, se se quiser tomar precauções consideráveis para
proteger a identidade do material simbólico de uma cultura, é aconselhável
orientarem-se essas precauções para a protecção da identidade do seu ritual.
E, na verdade, muitas sociedades tradicionais, nas quais o simbolismo parece
ser imutável, agem como se tivessem visto o perigo de uma evolução exces-
sivamente rápida: fazem tudo para impedir a mudança. Duas tradições, em
particular, exemplificam, de forma impressionante e largamente documen-
tada, este facto. A liturgia da missa persiste há quase dois milênios, durante
20 Sobre o tema do excedente de significado, ver P. Ricoeur, interpretai ion Theory; Discoursc
and lhe Surplus of Memiing (Fort Worth, 1976). Para uma consideração das mudanças
dramáticas no tratamento do mito de O e s t e s , ver K. von Fritz, Antike. und moderno Tragodie
(Berlim, 1962), pp. 113 e seguintes; para o mito de Antígona, ver G. Steiner, Antigones
(Oxford, 1984); para um tratamento geral detalhado da maneira como a cultura ocidental
transformou os seus mitos, com referências particulares ao mito de Prometeu, ver H.
Blumenberg, Work ou Mi//// (trad. R. M. Wallace, Cambridge, Mass., 1985).
66 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
21 Ver A. Baumstark, "Das Gesetz der Erhaltung des Alten in liturgisch hochwertiger Zeit",
Jahrbuchfur Liturgiewissenschaft, 7 (1927), pp. 1-23.
22 _ Ver A. Z. Idelson, Jewish Liturgy and its Development (Nova Iorque, 1932), p. 310; W. Leslav,
Falasha Anthology. The Black ]ews ofEthiopia (Nova Iorque, 1951), p. 124; S. Strizower, The
Children ofIsrael The Beni Israel ofBombay (Oxford, 1971), p. 14.
23 A minha abordagem das características formais da acção ritual deve muito a dois textos
clássicos: M. Bloch, "Symbols, Song, Dance and Features of Articula ti on", Archives
Européenes de Sociologie, 15 (1974), pp. 55-81; e R. A. Rappaport, "The Obvious Aspects of
Ritual", Cambridge Anthropology, 2 (1974), pp. 3-68. Rappaport desenvolveu os seus pontos
de vista sobre este assunto numa série de artigos: "Ritual, Sanctity and Cybernetics",
American Anthropologist, 73 (1971), pp. 59-76; "The Sacred in Human Evolution", Annual
Review of Ecology and Systematics, 2 (1971), pp. 23-44; "Liturgy and Lies", International
Yearbookfor Soáology of Knowledge and Religion, 10 (1976), pp. 75-104; "Concluding Com-
ments on Ritual and Reflexivity", Semiótica, 30 (1980), pp. 181-93. Para comentário sobre
as características formais do ritual, ver também A. R C. Wallace, Religion: an Anthropolo-
gical Viezv (Nova Iorque, 1966); V. Turner, The Forest of Symbols (Ithaca, 1967); Turner, Tlw
Ritual Process (Chicago, 1969); Turner, Dramas, Fields and Metaphors (ítaca, 1974); J. Sko-
rupski, Symbol and Theory: A Philosophical Study ofTheories ofReligion in Social Anthropology
(Cambridge, 1976); S. J. Tambiah, "A Performative Approach to Ritual", Proceedings ofthe
Bristish Academy, 65 (1979), pp. 113-69.
CERIMONIAS COMEMORATIVAS 67
24 Para um debate sobre a performatividade, ver J. L. Austin, Horo to do Thinga with Words
(Oxford, 1962); Austin, "Performative Utterances", in Philosophical Papem, 2.'1 ed., J. O.
ürmson e G. T. Warnock (eds.) (Oxford, 1970); J. R. Searle, Spcech Acts (Cambridge, 1969).
Para um debate sobre a performatividade no rituai, ver R. Finnegan, "Hovv to do 7"hings
with Words: Performative Utterances among the Limba of Sierra Leone", Man, 4 (1969),
pp. 537-51; J. Ladrière, "The Performativity of Liturgical Language", Concilium, 2 (1973),
pp. 50-62; H. Lavondes, "Magie et langage", UHommc, 3 (1963), pp. 109-17; S. ]. Tambiah,
"A Performative Approach to Rituai", Proceedings of the Britith Academy, 65 (1979),
pp. 113-69.
25 Ver G. van der Leeuw, Religion in Essence and Manifestation (trad. J. E. Turner, Gloucester,
Mass., 1967), em especial as pp. 405-11.
68 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
"eles". A forma plural de "nós" e "nos" indica que, embora existam vários
oradores, estes estão a agir colectivamente, como se fossem um único, uma
espécie de personalidade colectiva. Anteriormente a essa elocução pronomi-
nal, existe um estado de preparação indiferenciado expresso pela presença
de todos os participantes no local onde a liturgia vai ser celebrada. Ao
proferir-se o "nós" constitui-se, dá-se forma definitiva, a uma disposição
básica entre os membros da comunidade litúrgica. A comunidade é iniciada
quando os pronomes da solidariedade são repetidamente pronunciados. Ao
pronunciarem o "nós", os participantes reúnem-se não só num espaço exte-
riormente definível, mas também numa espécie de espaço ideal determinado
pelos seus actos discursivos. O seu discurso não descreve o aspecto possível
de tal comunidade, nem exprime uma comunidade constituída antes e
separadamente dele. Os enunciados performativos são, por assim dizer, o
lugar onde a comunidade é constituída e recorda a si própria o facto da
sua constituição.
Aperformatividade está também codificada nas atitudes do corpo, nos
gestos e movimentos. Os recursos desta codificação são elementares. Nos
ritos, dá-se ao corpo a postura e os movimentos apropriados através das
acções prescritas. O corpo, quando de pé, mantém-se rígido e vigilante. As
mãos são unidas e postas como que em oração. As pessoas curvam-se e *
expressam a sua impotência ajoelhando-se, ou podem abandonar completa-
mente a postura erecta na humilhação da prostração corporal. A relativa
escassez destes repertórios é a origem da sua força. Os recursos da linguagem
comum, a sua variedade semântica e flexibilidade de tom e de registo, a
possibilidade de se produzirem enunciados que podem ser qualificados,
ironizados e retratados, os modos condicional e conjuntivo dos verbos, a
capacidade da linguagem para mentir, para ocultar e para dar expressão
idealizada àquilo que não se encontra presente — todos estes recursos
constituem, de um certo ponto de vista, uma deficiência de comunicação. A
subtileza da linguagem vulgar é tal que pode sugerir ou indicar níveis
finamente graduados de submissão, respeito, indiferença e desprezo. As
interacções sociais podem ser negociadas através de um elemento lingüístico
de ambigüidade, imprecisão e incerteza, mas os recursos limitados da pos-
tura, do gesto e do movimento rituais despojam completamente a comuni-
cação de muitos pttzzles hermenêuticos. Uma pessoa ajoelha, ou nãó ajoelha,
faz o movimento necessário para executar a saudação nazi, ou não faz.
Ajoelhar em submissão não é o mesmo que declarar submissão, nem serve
apenas para comunicar uma mensagem de submissão, é antes exibi-la através
da substância visível e presente do nosso corpo. Os que se ajoelham identi-
ficam a posição do seu corpo com a sua predisposição para se submete-
rem. Estes actos performativos são maneiras particularmente eficazes de
"dizer" por serem inequívocas e materialmente substancializadas. E a
elementaridade do repertório, do qual estes "dizeres" são retirados, torna
CERIMONIAS C O M E M Ü R A T 1 VA S 69
30 Para um debate sobre este aspecto do ritual, ver, em especial, M. Bloch/'Syrnbols, Song,
Dance and Features of Articulation", Archives Européeimes de Soàologie, 15 (1974), pp. 55-81.
CERIMÔNIAS COMEMORATIVAS 71
31 P. de Man, "Literary History and Literary Modernity", Daedalus, 99 (1970), pp. 384-404.
32 Ibidem, pp. 388-9.
72 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
33 Ver H, Lefebvre, Everyday Life in the Modem World (trad. S. Rabinovitch, Londres, 1971).
Para um debate sobre o pós-modernismo e as atitudes para com a história, ver F. Jameson,
"The Cultural Logic of Capital", New Left Review, 146 (1984), pp. 53-93.
34 T. Mann, "Freud and the Future", trad. H. T. Lowe-Porter, in P. Meisel (ed.), Freud
(Englewood Cliffs, Nova Jérsia, 1981), pp. 45-60.
CERIMÔNIAS COMEMORATIVAS 73
35 Ver S. Zukin, "Ten Years of the New Urban Sociology", Theory and Society, 9 (1980),
pp. 575-601.
36 Para uma investigação da experiência da modernidade que revela estas características,
ver M. Berman, Ali that is Solid Melts into Air (Nova Iorque, 1982), e o debate deste livro
in P Anderson, "Modernity and Revolution", New Left Review, 144 (1984), pp. 96-113.
CERIMÔNIAS COMEMORATIVAS 75
40 Ver S. J. Tambiah, "The Magical Power of Words", Man, 3 (1968), pp. 175-208.
78 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
42 R. Caillois, Man, Play and Games (trad. M. Barash, Londres, 1962), pp. 108-9.
43 D. Forde, The Ethnngrapfty ofthe. Viana huiums (Berkeley, 1931).
44 Ver E. Canetti, Crowds and Power (trad. C. Stewart, Londres, 1962), pp. 313-14.
45 L. Lévy-Bruhl, Primitives and the Supernaiural (trad. L. A. Clare, Nova Iorque, 1973),
pp. 123-4.
80 C O M O AS S O C I E D A D E S RliCORDAM
46 Sobre os festivais xiitas, ver E. Canetti, Croivds and Power, pp. 171-81.
47 Sobre o gesto litúrgico e a referência bíblica, ver J. Daniélou, Jlie Bibíe and the Liturgx/
(Londres, 1956).
CERIMONIAS COMEMORATIVAS 81
83
84 COMO AS S O C I E D A D E S RECORDAM
mico a que ligamos os valores, tais como aqueles que exprimimos nas
oposiçoes entre alto e baixo, erguer-se e baixar-se, subir e cair, superior e
inferior, olhar para cima e olhar para baixo. É através da natureza essencial-
mente corporizada da nossa existência social, e através das práticas incorpo-
radas baseadas nestas corporizações, que estes termos opostos nos fornecem
as metáforas pelas quais pensamos e vivemos. As performances posturais
culturalmente específicas fornecem-nos uma mnemónica do corpo.
O alfabeto pode ser citado, por contraste, como exemplo de uma prática
de inscrição. É uma prática que existe em virtude de uma transferência
sistemática das propriedades temporais da voz humana para as proprieda-
des espaciais dos símbolos inscritos: isto é, para características repetíveis em
termos de forma, posição, distância relativa, ordem e disposição linear.4
Outros sistemas de escrita — pictogramas, hieróglifos e ideogramas —
exibem a mesma característica, mas os seus métodos de codificação espacial
são radicalmente incompletos porque continuam a depender de uma inscri-
ção directa dos significados. É por isso que os pictogramas, por exemplo, são
tão deficientes como'sistemas mnemónicos: é necessário um grande número
de símbolos para representar todos os objectos de uma cultura. A mais
simples das frases exige uma série elaborada de símbolos, só podendo
dizer-se um número limitado de coisas. É claro que sistemas de escrita
limitados deste tipo, em que o símbolo representa directamente o referente,
são capazes de extensão semântica; pode também fazer-se corresponder o
mesmo símbolo a uma classe mais geral de objectos, ou a outros referentes
associados ao símbolo original, por associação de sentido. Deste modo, nos
hieróglifos egípcios o símbolo do escaravelho simbolizava não só esse insec-
to, mas também um referente distinto e mais abstracto: "porque". Mas, dado
que todos esses métodos de elaboração inscricional permanecem arbitrários,
a interpretação dos seus símbolos não é fácil nem explícita. Na escrita chinesa
uma pessoa tem de aprender um mínimo de três mil caracteres antes de ser
razoavelmente instruída, existindo, no total, um reportório de cinqüenta mil
caracteres para ser dominado. O princípio fonético marca uma ruptura
decisiva com todos esses procedimentos. Aquilo que o distingue de todos os
outros sistemas de escrita é o facto de os seus vinte e dois elementos, a partir
dos quais o sistema é construído, não terem em si próprios um sentido
intrínseco. Os nomes das letras gregas, alfa, beta, gama, etc, constituem uma
cantilena infantil destinada a gravar os sons das letras, numa seqüência fixa,
no cérebro da criança, ao mesmo tempo que correlaciona firmemente esses
sons com a visão que a criança tem de uma seqüência fixa de formas, para a
qual olha enquanto produz os valores acústicos. Na sua forma semítica
original, estes nomes eram os de objectos comuns, como "casa", "camelo",
4 Ver P Ricoeur, Interpretation Theory: Discourse and the Surplus of Meaning (Fort Worth,
1976), pp. 42 c seguintes.
PRATICAS CORPORAIS 87
3 Sobre o impacte da escrita na memória social ver, em especial, J. Goody, The Domcstication
of the Sazmge Mind (Cambridge, 1977); J. Goody e I. P. Watt, "The Consequences of
Literacy", Comparativa Studies in History and Society, 5 (1963), pp. 304-45; J. Goody,
"Literacy and the Non-Literate", in R. Disch (ed.), The Future of Literacy (Englewood Cliffs,
1973); J. Goody, "Mémoire et apprentissage dans les sociétés avec et sans écriture: Ia
transmission du Bagre", UHomtiw, 17 (1977), pp. 29-52; mas ver também E. L Eisenstein,
"Some Conjectures about the fmpact of Printing on Western Society and Thought",
Journal of Modem History, 40 (1968), pp. 1-56; I. ]. Gelb, A Study ofWriting (Chicago, 1952);
E. A. Havelock, Qrigins of Western Literacy (Toronto, 1976); Havelock, "The Preliteracy of
the Greeks", òJexv Literary History, 8 (1977), pp. 369-92; Havelock, The Literato Revohttion
w Greece and its Cultural Consequences (Prínceton, 1982).
6 Para o efeito do ritmo sobre a memória, ver especialmente M. Jousse, "Études de
psychologie linguistique. Le style orai rhythmique et mnémotechnique chez les verbo
-moteurs", Archives de Philosophic, Vol. II, 4 (1924), pp. 1-240; mas ver também E. A.
Havelock, Preface to Píato (Cambridge, Mass., 1963).
7 Sobre o cepticismo literário e cultural, ver J. Goody e I. P. Watt, "The Consequences of
Literacy", Comparative Studies in Histon/ and Socieiu, 5 (1963), pp. 304-45.
88 COMO AS S O C I E D A D E S RECORDAM
de ser emitidas de uma forma estandardizada, para que haja alguma possi-
bilidade de virem a ser repetidas por gerações sucessivas. Os ritmos da poesia
oral são os mecanismos privilegiados de recordação, porque o ritmo inclui a
cooperação de toda uma série de reflexos motores corporais no trabalho de
recordação, mas o ritmo impõe limites drásticos à disposição verbal daquilo
que pode ser dito e pensado. A escrita fonética derruba estas limitações, pois
ao substituir u m registo acústico por um registo visual, o alfabeto liberta uma
sociedade dos constrangimentos de uma mnemónica rítmica. Os enunciados
particulares já não necessitam de ser memorizados, podendo existir como
artefactos e ser consultados quando for preciso. Esta economia da memória
liberta extensas energias mentais anteriormente investidas na construção e
na preservação de sistemas mnemónicos. Por isso, encoraja a produção de
enunciados não familiares e o pensamento de idéias originais. No que diz •
respeito ao cepticismo, podemos ver que, nas culturas orais, muita da
recordação informal dos acontecimentos toma a forma de conversação >
face a face. Isto impede, necessariamente, a articulação de u m sentido
de inconsistência; ou até de incoerência, na construção da herança
cultural. E verdade que as sociedades orais fazem, muitas vezes, uma
distinção entre o conto popular, o mito e a lenda histórica, mas mesmo
que surja inconsistência entre, ou no interior de, tais gêneros é pouco •
provável que o sentimento de inconsistência venha a gerar um impacte
cultural permanente. O cepticismo é particular e não culturalmente
acumulativo, gera disputas nominais, mas não uma reinterpretação
deliberada da herança cultural. A distinção entre aquilo que era consi-
derado mítico e o que se julgava ser histórico nasceu quando se tornou
possível colocar u m a explicação fixa do m u n d o ao lado de outra, de
forma a que as contradições internas, e entre elas, pudessem literalmen-
te ser vistas. Quer através da crítica, quer através da economia, a
substância da memória comunal é mudada pela transformação da tec-
nologia da comunicação.
É provável que estas distinções nos coloquem algumas dúvidas, pois é
certamente verdade que muitas práticas de inscrição contêm um elemento
de incorporação e pode bem ser que nenhum tipo de inscrição seja de todo
concebível sem algo de incorporação.
É certamente verdade que a escrita, o exemplo mais óbvio dè'inscrição,
tem uma componente corporal irredutível e temos tendência a esquecer isto.
A escrita é um exercício habitual de inteligência e de vontade que escapa
normalmente à atenção da pessoa que a exerce devido a esta familiaridade
com o modo de proceder. Todos os que sabem escrever com proficiência
sabem tão bem como dar forma a cada letra, e conhecem tão bem cada palavra
a escrever, que deixaram de ter consciência desse conhecimento, ou de
reparar nesses actos específicos da vontade. Cada um desses actos, no entan-
to, é acompanhado por uma acção muscular correspondente. 8 A maneira
PRATICAS CORPORAIS 89
8 Sobre a escrita e a memória-hábito, ver S. Butler, Life and Habit (Londres, 1878), pp. 6-7.
L
) M. Foucault, Discipline and Punish. The Birthof the Frisou (trad. de A. Sheridan, Londres,
1477), p. 152.
90 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
nas quais um ou outro dos aspectos predomina. Por outras palavras, a minha
classificação é concebida como um dispositivo heurístico.
12 A. di Jorio, Mimica degli antichi investigata nel gestire napoletano (Nápoles, 1832).
PRATICAS CORPORAIS 93
até épocas tão remotas como a Grécia e a Roma antigas, como se pode
verificar através da comparação das tabelas gestuais de Efron com as descri-
ções e as reproduções pictóricas dos gestos gregos e romanos fornecidas por
Di Jorio e por Karl Sittl.13 Vários dos movimentos de mãos incluídos na
colecção de Efron são reconhecíveis na descrição dos gestos oratórios roma-
nos de Quintiliano.
Enquanto os italianos do Sul ilustram gestualmente os "objectos" dos
seus actos mentais, os judeus oriundos dos guetos da Europa de Leste
produzem uma notação gestual do "desenvolvimento" da sua actividade
mental. Não se trata de uma espécie de representação visual, mas de uma
espécie de orquestração musical. Os judeus tradicionais estudados por Efron
empregavam muito raramente as mãos e os braços, à maneira de um lápis
ou pincel, para descreverem as "coisas" a que se referiam. Utilizavam, antes,
as mãos e os braços como uma batuta para ligar uma proposição a outra, para
traçarem o caminho de uma viagem lógica e para orquestrarem o ritmo do
seu movimento mental. Os gestos não podem ser especificados como "que-
rendo dizer" alguma coisa. Só comunicam com alguém que compreenda as
palavras que os acompanham, particularmente se estiver familiarizado com
os significados de certas formas de entoação estereotipadas características do
idiche. Em conseqüência, vários actores judeus proeminentes de Nova Iorque,
que colaboravam com Efron nas suas investigações, não foram capazes, ao
contrário dos seus colegas italianos, de criar qualquer pantomima com signifi-
cado baseada nos gestos "judeus", pois aquilo que é produzido por estas formas
gestuais não é uma representação pictórica do discurso, mas uma orquestração
do mesmo. Quase todas as inflexões gestuais correspondem e realizam uma
mudança na ênfase lógica, uma mudança de direcção, ou uma alteração no ritmo
do pensamento. Estas inflexões são movimentos lógicos, mapeando o "alto" e
o "baixo", os "desvios" e os "cruzamentos" de um percurso ideacional. Levado
ao seu extremo, o caracter lógico deste tipo de gesto — que não é observável no
comportamento dos italianos do Sul tradicionais — torna-se muito evidente
naqueles momentos em que o movimento assume uma forma quase silogística,
em que as inflexões do corpo correspondem e corporizam as duas premissas e
a conclusão do padrão de pensamento.
Efron pôde distinguir, assim, duas classes de gestos. Num dos tipos, o
significado do gesto é referencial, podendo essa referencialidade concretiza r-
-se de diferentes maneiras. Os movimentos da mão, do braço e da cabeça
podem referir-se, através de um sinal, a um objecto visualmente presente,
apontando mesmo para ele...O movimento pode ilustrar a forma de um
objecto visual, uma relação espacial, ou uma acção corporal, ou, por outro
lado, o movimento pode representar quer um objecto visual, quer um objecto
lógico através de uma forma pictórica ou não pictórica, sem relação morfo-
lógica com a coisa representada. Todos eles são variedades de um único tipo
básico, o gesto referencial, e podem ser contrastados com um segundo tipo
em que o significado do gesto é anotativo. Estes movimentos que têm
significado devido à estruturação e à ênfase que conferem ao conteúdo do
discurso verbal que os acompanha, encenam corporalmente as pausas, as
intensidades e as inflexões da seqüência de discurso correspondente, traçan-
do no ar as direcções tomadas por um voo do pensamento. Este tipo de
movimento é um retrato gestual não do "pensamento" ou do "objecto" de
referência, mas do curso seguido pelo processo ideacional.
Estabelecida esta distinção, podemos dizer que tanto os italianos do Sul
como os judeus do Leste europeu "falam com as mãos", mas isto é literal-
mente verdade no que toca aos primeiros e metaforicamente certo no que diz
respeito aos segundos. Em primeiro lugar, a onomatopéia gestual (ilustrando
a forma de um objecto, uma relação espacial, ou uma acção corporal) e os
símbolos gestuais (representando um objecto visual ou lógico por um movi-
mento pictórico ou não pictórico, que não está morfologicamente relacionado
com o referente) encontram-se com freqüência no comportamento dos italia-
nos do Sul e raramente no dos judeus do Leste. Por outro lado, os gestos de
anotação (delineando o curso de um processo de pensamento) tão típicos dos
judeus de Leste são virtualmente inobserváveis nos italianos do Sul. A *
disponibilidade de reportórios gestuais particulares nos movimentos das
mãos dos indivíduos de cada um dos grupos depende, em grande medida,
da sua história, da sua pertença cultural, e a performance apropriada dos
movimentos extraídos desse reportório depende tanto da memória-hábito
dos seus membros, como evoca de forma tácita a sua memória daquela
fidelidade comunal.
Como exemplo das convenções do corpo podemos considerar as manei-
ras de estar à mesa. Este tema é tratado explícita e pormenorizadamente num
famoso tratado de Erasmo, o De Civilitate Moram Piierilhim, de 1530.14 Este
IÍVJO especifica máximas de conduta respeitantes àquilo a que Erasmo chama
"o decoro corporal exterior", sendo as boas maneiras "exteriores", de atitude
corporal, dos gestos, da postura, da expressão facial e do vestuário, vistas
como a expressão da pessoa "interior". O impacte do tratado foi imediato,
vasto e duradouro. Nos primeiros seis anos após a sua publicação conheceu
mais de trinta reedições. Foi rapidamente traduzido para inglês,, francês e
alemão e, no total, fizeram-se mais de cento e trinta edições, treze das quais
já no século XVIII. As questões abordadas neste tratado, tal como as exami-
nadas no // Cortegiano, de Castiglione, e no Galateo, de Delia Casa, conferiram
uma nova precisão e centralidade ao conceito de civilitas, diversamente
traduzido na civílité francesa, na civility inglesa e na civiltã italiana. Dado que
o decoro e o comedimento eram atributos essenciais da civilidade, era natural
16 Sobre o consumo estilizado, ver Pierre Bourdieu, Distinction (trad. R. Nice, Londres, 1984).
PRATICAS CORPORAIS 97
23 Ver R. Hatton. "Louis XIV. At the Court of the Sun King", iti A. G. Dickens (ed.), The Courts
ofEurope: Politics, Patronage and Royalty, 1400-1800 (Londres, 1977), pp. 233-62.
10 O COMO AS S O C I E D A D E S RECORDAM
24 Sobre o conceito de capital simbólico, ver P. Bourdieu, Distinction: A Social Critique ofthe
fudgement ofTaste (trad. R. Nice, Londres, 1984).
PRATICAS CORPORAIS 101
Por outro lado, havia momentos em que o meu espírito distinguia em Saint-Loup
uma personalidade mais indefinida do que a sua, a qual movia os seus membros
e ordenava os seus gestos e as suas acções como se fora um espírito residente: a
personalidade do "fidalgo". Nessas alturas, então, ainda que estivesse na sua
companhia, eu ficava só, tal como o estaria frente a uma paisagem cuja harmonia
pudesse entender. Ele não era mais do que um objecto, cujas propriedades, no
meu devaneio, eu procurava explorar. A descoberta que nele fizera deste ser
preexistente, imemorial, deste aristocrata que era exactamente aquilo que Robert
aspirava a não ser, deu-me intensa alegria, mas urna alegria mais do espírito óo
que dos sentidos. Na agilidade moral e física que conferia tanto encanto à sua
simpatia, na desenvoltura com que ofereceu a sua carruagem à minha avó e a
ajudou a entrar, na alacridadecom que saltou da boleia, ao temer que eu estivesse
com frio, para lançar a sua própria capa sobre os meus ombros, eu não senti
apenas a flexibilidade herdada dos poderosos caçadores que eram, há várias
102 COMO AS S O C I E D A D E S RECORDAM
gerações, os antepassados deste jovem que não tinha pretensões a não ser à
intelectualidade, o seu desdém pela riqueza, que subsistia nele lado a lado com
o deleite em possui-la simplesmente porque isso lhe permitia acolher mais
prodigamente os amigos, levando-o a derramar tão descuidadamente os seus
bens aos pés destes. Eu apercebia-me, sobretudo, da certeza, ou da ilusão,
existente nos espíritos daqueles grandes senhores, de serem "melhores do que
os outros", graças à qual não haviam sido capazes de transmitir a Saint-Loup
essa ansiedade em mostrar-se que "se é tão bom como o vizinho do lado",
estando ele, de facto, totalmente inocente do temor de fazer isso demasiadas
vezes, o qual prejudica com tanta afectação e deselegância a civilidade plebéia
por mais sincera que esta seja.25
27 D. Sudnow, Wai/s of the Hand: The Organization of Improvised Conduct (Londres, 1978),
pp. 30-3.
PRATICAS CORPORAIS 105
Esta é uma das muitas passagens em que David Sudnow analisa as tentativas
que fez, durante mais de cinco anos, para tocar jazz. Durante esse período
teve muitas ocasiões para meditar sobre os fracassos daquilo a que chama,
numa bela frase, o controlo da conduta improvisada. A minuciosa observação
dos seus movimentos corporais permite-lhe mostrar como toda uma varie-
dade de capacidades em expansão, de formas coordenadas de olhar, de
mover, de tocar, de pensar, têm de ser desenvolvidas para uma pessoa
conseguir executar seqüências de acordes correctas. Imaginemos apenas o
seguinte item do reportório: a seqüência dos acordes A e B, situados em zonas
opostas do teclado. Para tocar A é necessário ter a mão fortemente compri-
mida; para tocar B é preciso estender a mão com grande amplitude. Para tocar
A tem de alinhar-se o corpo com o teclado, como se faz com uma máquina
de escrever, de forma a estabelecer contacto com uma posição central; para
tocar B é preciso ajustar o eixo da mão relativamente ao teclado, com o dedo
mindinho a afastar-se mais do centro corporal do que o polegar. A distância
entre A e B não pode simplesmente ser transposta, tem de ser percorrida,
espontaneamente, de uma maneira específica. Para ir correctamente de A
para B, a mão, na verdade o corpo todo, tem de ser direccionada, desde o
início, não apenas para onde B se encontra — a mão tem de preparar-se,
durante a viagem, para aterrar em B na forma adequada e no momento
correcto. Enquanto a mão se move de A para B deve provocar-se uma
pequena alteração na sua forma. Todo um conjunto de diminutos ajustamen-
tos têm de ser realizados espontânea e simultaneamente, envolvendo a
reconfiguração apropriada da mão e um leve reajustamento do corpo.
Os principiantes vão de A para B de uma forma desconexa. Tocam A e
partem para B sem se lançarem para ele da forma correcta, desde o princípio,
sem se deslocarem para B, no seu todo, no tempo correcto. Antes de adqui-
rirem destreza, os principiantes procuram e debicam no teclado, os seus
dedos hesitam e perdem a posição. Sentem continuamente uma separação
entre o "ele'' do piano e o "eu" do pianista. Um pianista mais experiente, ao
tocar um trecho rápido e intrincadamente sinuoso, bem como a sua reitera-
ção, aproximar-se-á muitas vezes da perfeição, mas falhará ligeiramente, terá
a sensação de "lutar para fazer com que aconteça", "soará como alguém que
se esforça duramente por dizer qualquer coisa". Sudnow sugere várias
analogias para esta experiência de desconexão. As improvisações falhadas
são arruinadas da mesma maneira que quando se apanha, pela primeira vez,
o jeito de uma habilidade complexa, como andar de bicicleta ou esquiar; a
tentativa de conservar um controlo fácil dessa habilidade falha, "luta-se por
manter o equilíbrio, por não cair, e então, quase de repente, ocorrem várias
rotações dos pedais, parece que a bicicleta arranca por si própria, tenta-se
aguentá-la e ela desintegra-se". Estes improvisos ensaiados trazem à memó-
ria as confusões de Charlie Chaplin na linha de montagem de Tempos Moder-
nos. A correia transportadora traz continuamente uma infindável colecção de
106 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
29 W. Dewey, Humon Nnturc am1 Conduct: An fntroduction to Social P*ycholo$v {Londres, lc)22)..
pp. 24-5.
108 COMO AS S O C I E D A D E S RECORDAM
vez mais automática, até que a consciência recua, o movimento flui ''invo-
luntariamente" e ocorre uma seqüência firme e experimentada de actos que
seguem o seu curso fluente. Os feitos dos acrobatas e dos malabaristas
ilustram uma versão extrema deste facto, tal como o fazem as destrezas
prestigiosas descritas por Proust e Sudnow. Mas o exercício automático pode
ser simultaneamente banal e prestigioso e, em vez de suave e harmonioso,
pode ser habitualmente desajeitado e desarmonioso. Os padrões de utiliza-
ção do corpo tornam-se arreigados através da nossa interacção com os
objectos. Há os movimentos aparentemente automáticos, duradouros e fami-
liares dos artesãos, a forma como um carpinteiro maneja uma plaina e o
tecelão usa um tear, tão habituais que, se lhes perguntassem, eles diriam que
"sentiam" como operar adequadamente a ferramenta que tinham entre
mãos. Há as maneiras impostas pelo trabalho realizado com uma máquina,
ou numa secretária, que reforçam um conjunto de comportamentos, a nível
da postura, que tendemos a encarar como "próprios" do operário fabril ou
do sedentário empregado de escritório. As posturas e os movimentos que são
memórias-hábito ficam sedimentados na conformação corporal. Os actores
podem mimar as impressões, os médicos podem examinar os resultados.
Acima de tudo, portanto, o hábito não é apenas um símbolo. A expe-
riência corporizada, de que as práticas habituais constituem uma parte
significativa, foi submetida recentemente a um imperialismo cognitivo e
interpretada com base no modelo da significação lingüística. A sociedade,
concebida à imagem e semelhança da linguagem, assumiria o papel de dotar
de significado os corpos físicos e os comportamentos dos indivíduos. O
corpo, reduzido ao estatuto de símbolo, transmitiria significado dado ser um
veículo altamente adaptável à expressão de categorias mentais. Certas metá-
foras da actividade corporal, como "cair" em erro, são vistas como a expres-
são de um conceito em termos de uma imagem corporal. Isto corresponde a
ver o entendimento como um processo em que um dado dos sentidos está
subsumido a uma idéia, e a ver o corpo como um objecto que transporta
significados de forma arbitrária. Porém, e como Marleau-Ponty notou cor-
rectamente, o fenômeno do hábito devia induzir-nos a rever a nossa noção
de "compreender" e a nossa noção de corpo.30 Saber dactilografar, por
exemplo, não significa conhecer o lugar de cada letra nas teclas, nem haver
adquirido um reflexo condicionado para cada letra que seria desencadea-
do sempre que cada uma dessas letras surgisse perante os nossos olhos.
Sabemos onde as letras se encontram na máquina de escrever do mesmo
modo que sabemos onde estão os nossos membros e lembramo-nos disso
através do conhecimento gerado pela familiaridade do espaço em que
vivemos. O movimento dos dedos da dactilógrafa pode ser descritível,
contudo não se lhe apresenta como uma trajectória no espaço que se possa
32 Ver P. Ricoeur, Hermeneutics and the Human Sciences (trad. J. B. Thompson, Cambridge,
1981), p. 91.
PRATICAS CORPORAIS 111
33 Sobre a analogia entre a hermenêutica legal e a hermenêutica teológica, ver E. Betti, "Zur
Grundlegung einer allgemeinen Ausíegungslehre", in Festschrift für Enist Robcl (Tübin-
gen, 1954), VoI.II, p. 145; J. Wach, Das Verstehen (Hildesheim, 1966), Vol.II, pp. 60-1, 183
e seguintes.
34 Sobre as interpretações medievais da Lei Romana, ver R Koschaker, Europa und das
Rõmische Recftt (Munique, 1966); Q. Skínner, The Foundations of Modem Polítical Thought
(Cambridge, 1978), Vol. I, pp. 9-12.
112 C O M O AS S O C I E D A D E S RECORDAM
cerca de 400, foi a Bíblia oficial da Igreja do Ocidente durante toda a Idade
Média. Quase todos os comentários bíblicos se baseavam no texto latino, sem
olhar à redacção nas línguas originais e, sempre que se fazia uma tradução
para língua vernácula, era aquele texto que servia de original. A longevidade
desta autoridade fundamentava-se na premissa de que se tratava de uma
reprodução fiel, definitiva e santa da Sagrada Escritura, a qual não devia ser
alterada. Esta versão oficial da Bíblia era respeitada pelo conhecimento de
que os pais e os avós haviam lido e proferido as mesmas palavras que as
gerações posteriores. As línguas vivas podiam mudar, mas a estabilidade da
crença religiosa exigia que a redacção da Sagrada Escritura fosse permanente.
A língua arcaica podia levar a que palavras isoladas, ou até passagens
inteiras, não fossem já totalmente compreendidas, mas as pessoas sentiam-se
tranqüilizadas pelo pensamento de que a vida era vivida, por assim dizer,
como citação. A conseqüente hostilidade contra qualquer tentativa para
mudar o texto da Vulgata foi reforçada pela maneira como a interpretação
medieval era assimilada no estudo do texto. Grandes construções exegéticas
puseram de acordo todas as declarações da Bíblia e todas as diferentes
interpretações dos Pais da Igreja. A Bíblia Latina comentada, editada em
Basiléia no ano de 1498 e reeditada em 1502, ilustra este procedimento. A
própria disposição das suas páginas revela o princípio operativo. Ao centro
de cada página fica o texto da Bíblia, impresso em letras grandes, e entre as
linhas, em letras pequenas, encontra-se impressa a interpretação. Os comen-
tários, que freqüentemente ocupam mais espaço do que as passagens que
interpretam, estão impressos o mais próximo possível do texto bíblico, pois
a intenção é que este seja lido de acordo com a tradição da exegese que
acompanha a versão latina oficial da Bíblia.
Esta premissa foi minada pela filologia dos humanistas, que procura-
vam reconstituir o contexto histórico exacto dos textos bíblicos realizando
traduções novas e mais precisas dos antigos escritos gregos e hebraicos/ 7
Valia anunciou que os filólogos se podiam pronunciar sobre questões dou-
trinais, visto que ninguém tinha o direito de interpretar a Bíblia a não ser que
a pudesse ler no grego ou no hebreu originais. Reuchlin discutiu as palavras
da Escritura como gramático, propondo um método de leitura que investi-
gava a origem do significado de cada palavra no hebreu original. Erasmo
publicou uma versão da Bíblia na qual o texto grego se encontrava impresso
lado a lado com a sua nova tradução, onde explicava, em anotações finais,
onde e porquê, precisamente, a sua versão rejeitava o texto da Vulgata. O
conhecimento mais detalhado do Novo Testamento, que surgiu a partir
38 E. Panofsky, Renaissance and Renascences in Western Art (Estocolmo, 1960), pp. 110-11.
39 Sobre o desenvolvimento da leitura crítica, ver, em especial, J. H. Franklin, Jean Bodin and
the Sixteenth-Century Revolution in the Methodology ofLaw and History (Nova Iorque, 1963),
e J. G. A. Pocock, "The Origins of Study of the Past", Comparative Studies in History and
Society, 4 (1962), pp. 209-46.
PRATICAS CORPORAIS 1 1 5.