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1ª Edição | Março 2016

www.edicoesesgotadas.com
geral@edicoesesgotadas.com

Título
100 ORPHEU

Organizadores
Dionísio Vila Maior
Annabela Rita

Imagem da Capa
??

Revisão Final da Obra


Ana Maria Oliveira

ISBN
978-989-8801-37-1

Depósito Legal
XXXXXX/16
Impressão
xxx
Execução Gráfica
Hugo Carvalho | Edições Esgotadas, Lda

© 2016
Dionísio Vila Maior
Annabela Rita
Todos os direitos reservados.

Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia
no âmbito do Projeto UID/ELT/00077/2013
100
ORPHEU
Palavra prévia

Numa carta datada de 21 de setembro de 1915, dirigida a Santa-Rita, escrevia Pessoa:

[…] “Orpheu” não acabou. “Orpheu” não pode acabar. Na mitologia dos antigos, que
o meu espírito radicalmente pagão se não cansa nunca de recordar […] há a história
de um rio, de cujo nome apenas me entrelembro, que, a certa altura do seu curso, se
sumia na areia. Aparentemente morto, ele, porém, mais adiante […] surgia outra vez à
superfície, e continuava, com aquático escrúpulo, o seu leve caminho para o mar. Assim
quero crer que seja […] a revista […] “Orpheu”.

Em 2015, um grupo de trabalho reavivou (mais uma vez) esse “rio”, delineando
cuidadosamente, laborando intensamente, organizando diversos seminários,
colóquios, exposições e congressos internacionais, dezenas de iniciativas que
comemorassem o centenário do Orpheu. E consideramos ter sido com um elevado
sentido de responsabilidade que, 100 anos depois do lançamento da revista
Orpheu, este grupo de trabalho acabou por despertar esse outro “rio” — não de
“noturna consistência”, não lidiamente sossegado, antes multicolor, polifónico e
pluridiscursivo — como, aliás, convém.
Assim se publicam diversos contributos que refletem sobre uma plêiade de escritores
e artistas cuja produção foi marcada profundamente por uma experimentação
estética e literária: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros,
António Ferro, Amadeo de Sousa-Cardoso, Santa-Rita Pintor, Luís de Montalvor,
Ronald de Carvalho, Alfredo Pedro Guisado, Armando César Cortes-Rodrigues,
Ângelo de Lima, Raul Leal, e outros que, balizados pelo timbre das obras que estes
legaram à posteridade, aprofundaram a descontinuidade moderna, numa cadeia de
acontecimentos que ainda hoje persistem na memória coletiva luso-brasileira.
Referindo-se ao grupo do Orpheu, disse Eduardo Lourenço: “Tudo o que eles
tocam, levanta voo à nossa frente”. Descreveu, desse modo, o impacto que o grupo
modernista português vem exercendo sobre a produção artística e literária da
contemporaneidade com a publicação da revista Orpheu. Defini-lo perentoriamente
como “autêntica revolução poética, sem paralelo na história literária portuguesa” foi
um acerto visionário, de modo que estamos ainda a colher os frutos dessa viragem,
disseminados muito para além da lusofonia.
Procurando celebrar esse centenário (com as honras que também à [re]leitura
convidam), o CLEPUL, o LEPEM e o Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre
Manuel Antunes responderam de pronto — com a intensidade consentida pela paixão
e amor profundos pela Literatura, pelas Artes, pelas Humanidades (reservando-nos,
todos nós, o direito de homenagear, diversamente, aqueles que questionaram,
clarificando, uma memória coletiva).
Aos que nos apoiaram e acompanharam, deixamos aqui exarados a saudação, o
agradecimento e a promessa de reencontro em 2017, no 100/Futurismo, continuando
a aventura da revisitação e da reinvenção da nossa memória coletiva, percurso iniciado
em Lisboa e em São Paulo (com a nossa colega Lilian Jacoto). À Fundação Millennium
BCP, na pessoa do seu Presidente, Dr. Fernando Nogueira, estamos profundamente
penhorados pelo apoio cúmplice que viabilizou esta edição. À Fundação Calouste
Gulbenkian e ao Centro Cultural de Belém, agradecemos, penhorados, o acolhimento
do encontro científico central no calendário comemorativo. Menção saudosa e grata
deixamos lavrada a Vasco Graça Moura, que presidia ao Centro Cultural de Belém no
início do projeto celebratório. Louvamos todos os membros da organização do vasto
programa comemorativo, destacando na pessoa do Dr. Luís Pinheiro, o nosso sempre
disponível e eficaz executivo, a constância da ação. A todos, pois, o nosso bem-haja!
Perguntar-se-á: Quanto de coletivo terá essa memória coletiva? Quanto de amena
perversidade (ou não) terão a mitificação da História e a comemoração de uma
revista que definitivamente balizou? Se dúvidas houvesse acerca da representatividade
e do benefício estruturante da consciência histórica para a sobrevivência de uma
coletividade, bastaria recordar que o próprio conceito de coletividade linguística integra
em si uma imagem dinâmica — imagem esta que só se concretiza enquanto consciência
transformada em discurso, ato e obra realizada. E é, no fundo, essa consciência que (de
acordo com Pessoa) permitirá ao homem atingir aquela «vitalidade» que, em 1912, ele
emprestava à «exuberância de alma» de uma comunidade, à sua «capacidade de criar
[…] novos moldes, novas ideias gerais».
É, afinal, essa “exuberância”, essa “capacidade criativa” com que os órficos
sinalizaram a literatura portuguesa que, com este livro, relembramos — procurando,
por um lado, contribuir para a (re)avaliação da geração de Orpheu (preenchendo
novos “lugares” de leituras) e, por outro, dar razão às palavras de Pessoa publicadas
em 1935, no nº 3 da revista Sudoeste, quando dizia: “[…] Orpheu acabou. Orpheu
continua”.

Coimbra/Lisboa, março de 2016


Os Organizadores
Dionísio Vila Maior e Annabela Rita
ÍNDICE

«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de


Vanguarda, «apesar de blague?»
Abbati, Orietta 15

A desabar catedrais..., ou o outro modernismo


Abreu, Luís Machado de 27

A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso


Amado, Maria Teresa 35

Palhaçadas e Coisas Sérias


Amado, Nuno 49

Orpheu na PO.EX: A tradição em movimento


Amaral, André Luiz do 61

Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato


com as de outros autores
Amorim, Bernardo Nascimento de 69

“Orpheu” Regabofe Tiroliro


Blanco, José 83

Orpheu da Arábia. A temática arábico-islâmica no Modernismo português


Boscaglia, Fabrizio 99

Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray


Brás, João Maurício 115

As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de


tradução d’A Cena do Ódio e de Mima Fataxa de Almada Negreiros
Bucaioni, Marco 127

A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional


Cabral, Maria de Jesus 135
10 100 Orpheu

Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos


poéticos almadianos no Orpheu
Ceccucci, Piero 147

Elementar, meu caro Lúcio!


Cerdeira, Teresa Cristina 161

1915: O Ano da Guerra e do Orpheu


Cruz, Duarte Ivo 175

Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em


A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro
Dunder, Mauro 179

Entre o “Orpheu” e a “A Águia”, entre Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes


Epifânio, Renato 191

“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial


da espacialidade na “Ode marítima”, de Álvaro de Campos
Feitosa, Márcia Manir Miguel 197

Orfeu. O mito, a arte, a religião e o mistério


Fernandes, Raul Miguel Rosado 207

O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real


Ferraz, Roberta A. P. de F.  215

Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos


Ferreira, Ana Sofia Marques Viana 227

A palavra em exílio. Orpheu e o desejo de comunidade


Finazzi-Agrò, Ettore 237

Guilherme Pobre
França, José-Augusto 245
Índice 11

Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues


e a sua ideografia do Portugal futuro (com publicação de carta inédita a António
Quadros)
Franco, José Eduardo 259

A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português


Freitas, Zilda de Oliveira 275

Heteronímia como ficção de autognose


Furlan, Stélio 291

Uma faceta ortónima “non despicienda”


Garcez, Maria Helena Nery 305

Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para


pensar a modernidade
Gebra, Fernando de Moraes 325

Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana


Gori, Barbara 339

Os Caminhos da Heteronímia
Guimarães, Fernando 355

Fernando Pessoa e Almada Negreiros: olhares que se cruzam sem se intersectarem


Henriques, Marisa das Neves 359

O Sensacionismo é um Não-Existencialismo
Hipólito, Nuno 367

Do desassossego ou a geometria do abismo


Jacoto, Lilian 379

Orpheu… e depois?...
Leão, Isabel Ponce de 389
12 100 Orpheu

Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos intermédios = o


sorriso do Desenho no tempo de Orpheu e tudO
Leandro, Sandra 401

Orpheu em tempo de guerra(s)


Lopes, Teresa Rita 417

O modelo de cidade nos textos do Grupo de Orpheu, de 1915 a 1917


Loureiro, Maria de La Salette 429

Conferência
Lourenço, Eduardo 443

De Pessoa a Sophia: um Diálogo Intertextual de Reunificação do Ser.


Malheiro, Helena 451

«Um peso de mândria sobre mim»: Sá-Carneiro inacabado


Marchis, Giorgio de 463

A loucura e o génio de Orpheu


Martins, Fernando Cabral 475

Orpheu e a Guerra
Martins, Patrícia Soares 489

“Lápis e linhas para desenhar uma flor de nome Almada”


Mateus, Isabel Cristina 503

O Contributo de Armando Côrtes-Rodrigues para a revista Orpheu


Moniz, António Manuel de Andrade 515

Efemérides: e depois de Orpheu? – recepções, repercussões, reverberações


Mourinha, Marisa 525

O Modernismo no Romance Português, ou o Terceiro Modernismo como Modernismo


Tardio
Oliveira, Marcelo G.  537
Índice 13

“Orpheu ou «a única ponte entre Portugal e a Europa»”


Piedade, Ana Nascimento 547

Pessoa(s) por trás das quadras


Pina, Maria da Graça Gomes de 555

Intersecionismos: Pessoa, o símbolo e o oculto


PIRES, Antônio Donizeti 565

Os poetas do Orpheu em tradução bangla


Ray, Rita 579

Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán


Rey, Rosario Mascato 587

Mensagem em moldura epocal


Rita, Annabela 601

O Mito do Orpheu
Saraiva, Arnaldo 619

A Poesia Pictórica de Alberto Caeiro


Silva Filho, Gilvan José da e Ramalho, Christina Bielinski 633

Amadeo e Orpheu
Soares, Marta 643

Contextos de Orpheu nas páginas de Fon-Fon!


Sousa, Rui 657

Alberto, Orpheu, Álvaro: pontes


Souza Júnior, José Luiz Foureaux de 671

Mar Alto, de António Ferro, no contexto teatral da Lisboa dos anos 20


Vasconcelos, Ana Isabel 679
14 100 Orpheu

Espetralidades do Sul: hantologie de Orpheu


Vecchi, Roberto 691

Caeiro e Espinosa: em torno do conceito de liberdade


Viegas, Paula Marçalo 701

Os modernistas e a (des)construção do ineludível


Vila Maior, Dionísio 713

Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde


Yokozawa, Solange Fiuza Cardoso 727

Campos Triunfal
Zenith, Richard 741
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro,
poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?»

Orietta Abbati
Universidade de Turim

Palavras-chave: Sá-Carneiro; Poema; Manucure; Órfico; Vanguarda.


Resumo: A nossa reflexão visa propor uma leitura do poema Manucure como texto colocado
em posição excêntrica em relação à obra poética do autor da Confissão de Lúcio, tendo em
conta a inserção pessoana da expressão “apesar de blague” que sempre o tem acompanhado,
na Tábua biográfica de Mário de Sá-Carneiro por ele redigida, condicionando de certa forma a
apreciação crítica e a seriedade da abordagem que, em nosso parecer, este longo componimento
merece. Não foi por acaso que Manucure constituiu um texto de referência no Orpheu 2, mas
que, por vezes, tem ficado algo fora do focus da crítica sacarneiriana, que de certa maneira
considerou as palavras de Fernando Pessoa como ponto de partida. Ora, pelo contrário,
este texto apresenta-se como um dos que, parafraseando as próprias palavras de Sá-Carneiro,
contém «um pouco de Europa na alma», nisto solicitando uma fecunda leitura em diálogo
com a grande Ode de Álvaro de Campos publicada no mesmo número da revista modernista.

Se, como afirma Fernando Guimarães, «Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro


e Almada Negreiros constituem a santíssima trindade do Modernismo português»
(GUIMARÃES, F., 1999: 65), o segundo número de Orpheu mostra, sem ironia, toda
a verdade desta afirmação, evidenciando a centralidade do inventor dos heterónimos,
amplificada pela ostensiva copresença de Álvaro de Campos, e confirmando o papel
não secundário de Sá-Carneiro. O facto, aliás, de Fernando Pessoa e Sá-Carneiro
serem diretores, faz com que a revista se oriente, de maneira mais marcada do que
o primeiro número, numa linha vanguardista1, onde aparecem «alcuni dei testi
oggi considerati esemplari del Modernismo portoghese» (STEGAGNO PICCHIO
L., 2004: 239): Chuva oblíqua que, como um diamante de seis faces, brilha na sua
singularidade de alfa e ómega do intersecionismo de Fernando Pessoa; A grande Ode
Marítima do engenheiro e poeta sensacionista que desdobra a força expressiva do
verso livre de teor whitmaniano, numa síntese modernista do destino atlântico de

1 Basta pensar na colaboração neste número do poeta Ângelo Lima, ou na “novela vertígica” Atelier, de Raul Leal.
16 100 Orpheu Orietta Abbati

Portugal; e Poemas sem Suporte – Elegia e Manucure – de Mário de Sá-Carneiro que,


como verdadeiro paradigma estético do poeta, evidenciam o seu vulto em métrica
tradicional mas permeada pela atmosfera decadentista e pela estética simbolista,
no primeiro, prelúdio, contudo evidente e «anúncio do cataclismo sonoro e visual»
(MARTINS, F. C., 1994: 281) do segundo, Manucure, que revela toda a impetuosa e
dinâmica sintaxe da modernidade, certamente estimulada pelo contacto com Paris,
a capital cultural europeia que o autor de Dispersão reelabora misturando-a com
o seu peculiar vocabulário e o seu mundo poético, onde persistem indelevelmente
traços do gosto refinado de fin-de-siècle, conjugados com um residual e incongruente
dandismo, – como se constatará mais adiante – com «um pouco de Europa na alma».
Aquando do lançamento do segundo número, o clamor escandalizado do
«lepidóptero burguês», não se atenua, sobretudo em relação a Ângelo Lima, Álvaro
de Campos2 e ao «rapaz mastodôntico» Sá-Carneiro, assim definido pelo jornal A
Capital, devido a Manucure, que o jornal lisboeta comenta nestes termos: «[…] poema
que vai num crescendo indescritível de disparates» (apud JÚDICE, N., 1986: 104).
Excetuando a previsível crítica feroz da imprensa que uniu «os de Orpheu»,
identificando-os como «Artistas de Rilhafoles», deve dizer-se que a morte prematura de
Sá-Carneiro certamente terá condicionado as sortes póstumas, determinadas, em grande
parte, por Pessoa3, a quem o «amigo de alma» tinha dado carta branca4 relativamente ao
destino das poesias Indícios de Ouro, ainda inéditas, transcritas no conhecido caderno
confiado a seus cuidados «uns dias antes do suicídio» (PESSOA, F., 2000: 374).
Na qualidade, portanto, de «procurador» testamentário das vontades de Sá-Carneiro,
Pessoa redige a Tábua bibliográfica onde, traçando uma síntese do percurso poético-literário
do amigo morto em Paris, exprime, como mensagem subliminar, um juízo de valor,
estabelecendo uma ordem de prioridades ou deixando transparecer a sua preferência,
facto que se confirma de imediato no editorial elaborado, a partir do qual expunge
obras já editadas pelo autor5, para uma futura publicação definitiva, que, acrescenta,
«não será feita por enquanto, pois não há ainda público, propriamente dito para ela»
(id.: 375).

2 No artigo “Artistas de Rilhafoles” em A Capital, afirma-se, a propósito da colaboração de Álvaro de Campos


que «A trapalhada mais extraordinária e mais assombrosa que encerra o novo número de Orpheu é a Ode
Marítima» (apud JÚDICE, N., 1986: 104).
3 Sobre as implicações que a intervenção de Fernando Pessoa produziu na aproximação crítica à vida e à obra
de Sá-Carneiro veja-se DE MARCHIS, G., 2007: 7-11.
4 Escrevendo em terceira pessoa, o autor de Mensagem afirma: «Mário de Sá-Carneiro deixou a Fernando
Pessoa a indicação de publicar a obra, que dele houvesse, onde, quando e como lhe parecesse melhor», in
PESSOA, F., «Tábua bibliográfica Mário de Sá-Carneiro», in id.: 2000: 374.
5 Trata-se de Amizade e do volume de contos Princípio.
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 17

Qual é então a posição que, na Tábua, Pessoa atribui à poesia Manucure? Citando-a
entre as colaborações do amigo em jornais e revistas, com referências pontuais
a Orpheu 2, inclui-a entre os poucos «aproveitáveis», rotulando-a logo de seguida
como «poema semi-futurista (feito com intenção de blague)». Insere-a também na
projetada publicação final, «apesar de blague», não sem deixar de enfatizar, mais uma
vez e sem parênteses, a confiabilidade duvidosa.
A impressão imediata é de uma, mesmo se involuntária ou talvez não,
desvalorização daquela que foi sucessivamente considerada entre os poucos
exemplos de poesia futurista, aliás, citando F. Cabral Martins, «Manucure talvez
seja, se exceptuarmos K4 O Quadrado azul, Saltimbancos e o Manifesto Anti-Dantas,
de Almada, o texto português mais próximo do cânone do Futurismo» (1994: 279).
Sem pretensões de entrar na questão da sua assimilação, ou da sua órbita, mais ou
menos rigorosa, à volta da vanguarda marinettiana6, deve-se notar que Manucure,
talvez levando consigo esses epítetos, constituidores de um peritexto, que, de alguma
forma se tornou uma parte integrante do título, com um aviso ao leitor, de fato aparece
numa posição excêntrica ou marginal em toda a obra poética de Sá-Carneiro, quase
um corpo estranhado e ao mesmo tempo estranho, que mereceu da crítica a seriedade
circunscrita da citação «apesar de blague».
Neste contexto, torna-se necessário apresentar algumas considerações adicionais.
É sabido que o autor de Mensagem nunca foi um entusiástico estimador de
Marinetti e do futurismo e, embora reconhecendo que a ligação entre a sua poética
e Sensacionismo e «(…) a atitude enérgica, vibrante, cheia de admiração pela Vida,
pela Matéria e pela Força que tem lá fora representantes com Verhaeren, Marinetti»
(PESSOA, F., 1966: 126) existe, defende, especialmente por meio da prosa desinibida
e provocadora de Álvaro de Campos, na carta ao pai do Futurismo que deveria
acompanhar o envio de uma cópia de Orpheu, a superioridade do -ismo sensacionista
encarnado pelo engenheiro, como se pode ler:

Para mim as vossas palavras em liberdade não fazem sentido. Apenas admito as
minhas sensações e, utilizando a Vossa expressão, na arte apenas admito as sensações
em liberdade. (...) Não há senão a arte das sensações (...) É a essa escola sensacionista
que eu adiro. Essa escola sou eu. (PESSOA, F., 2012: 253).

6 Sobre as diferentes modalidades de relacionamento e influências do Futurismo no ambiente intelectual


português veja-se: STEGAGNO PICCHIO, L., 2004: 109-136. Sobre o relacionamento de Mário de Sá-Carneiro
com as vanguardas em Paris veja-se: MARGARIDO, A. (1990: 92-101); VASCONCELOS, R. (2015: 149-165).
18 100 Orpheu Orietta Abbati

Em tons mais atenuados, mas igualmente convictos, o próprio Pessoa,


repetidamente, e com uma pitada de frustração, aliada a um indisfarçável sentimento
nacionalista, reivindica do Sensacionismo uma originalidade e uma superioridade
não compreendidas, quando afirma «O Cubismo, o futurismo e outros ismos menores
tem-se tornado bem conhecidos e muito falados por se haverem originado nos centros
aceites da cultura europeia» e que o sensacionismo «(…) continua desconhecido por
haver nascido longe desses centros» (PESSOA, F., 1966: 203).
Todavia, contradizendo as suas palavras, ele próprio parece mal querer acreditar no
projeto sensacionista, impulsionado por uma missão muito mais grave e irrenunciável,
o que o faz declarar numa carta a Côrtes-Rodrigues, em janeiro de 1915, cerca dois
meses antes da publicação de Orpheu 1: «Passou de mim a ambição grosseira de
brilhar por brilhar e essa outra, grosseiríssima, (…) de querer épater. Não me agarro
já à ideia do lançamento do Interseccionismo com ardor ou entusiasmo algum»
(PESSOA, F., 1999: 141).
Em suma, dividido entre uma defesa orgulhosa de seus ismos forjados em casa,
em contraposição com as mais conhecidas e difusas vanguardas da Europa, e uma
íntima consciência de que tudo aquilo era apenas uma «quase-blague,» o poeta
da Mensagem, revela uma firme convicção do valor pragmático utilitarístico da
provocação implícita no lançamento do Intersecionismo, que só por isso admite
no seu próprio projeto literário-cultural, reduzindo o valor artístico da blague e
das novas correntes, para conceder-lhes apenas umas funções animadoras que,
afirma Pessoa «nos arranquem à estagnação» (ibid.). Com isso, parece declarar
um afastamento tanto mais necessário, quanto profundamente sentido7, do
compromisso direto para a aventura modernista, apesar de ter a seu cargo a direção
de Orpheu 2, para deixar a Álvaro de Campos a tarefa de a apoiar e de a defender
com a força e ímpeto que o contradistinguem.
O conjunto apresentado pode explicar, em parte, as escolhas feitas por Pessoa em
relação à obra de seu amigo Sá-Carneiro; justificar o entusiasmo amornado e cauteloso
ao acolher Manucure no projeto editorial, que fundamenta com a expressão «feito
com intensão de blague», quase até querendo preservar a arte «séria» de Sá-Carneiro,
para o qual ele não hesita em usar palavras, no texto escrito em memória do jovem
poeta suicida, que, para além da circunstância lutuosa, evidenciam o papel central da
arte na sua breve existência, onde podemos ler «Gênio na arte, não teve Sá-Carneiro
nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte que fez, ou que sentiu, por instantes o
turbou de consolação» (PESSOA, F., 2000: 228).

7 Na mesma carta explica Pessoa: «porque a ideia patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus
propósitos, avulta agora em mim; (...) é uma consequência de encarar à sério a arte e a vida» (Ibidem).
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 19

A indubitável e forte ligação de amizade e de comum sentimento estético, que


transparece a partir destas palavras, e que, claramente, deve ter lugar num texto
de despedida, só deixa intuir, transparecendo-a, a distância e as diferenças entre a
trajetória dos dois poetas que, citando T. Rita Lopes, «Astros solitários foram, com
órbitas talvez concêntricas, mas, ah, isso sim, nitidamente marcadas e separadas uma
da outra» (LOPES, T. R., 1989: 35).
Sá-Carneiro, elaborando grande parte da sua obra em Paris, instaura na distância
física do amigo Pessoa, as condições de uma diversa dinâmica de relação e de
influências no que concerne à evolução da própria poética, da qual temos um constante
e precioso testemunho na intensa correspondência enviada a Lisboa que fez dele «um
dos mais espantosos epistológrafos da literatura portuguesa» (SARAIVA, A., 1981: 5).
Sabemos que Sá-Carneiro sentia de forma intensa a necessidade estética, aliada a
uma atitude de dândi fora do tempo, de «ter hum pouco de Europa na alma» e, então,
decide procurá-la dirigindo-se diretamente à fonte, mesmo que se mantenha, na
verdade, numa zona periférica, ou melhor na semiperiferia do foco real da vanguarda
do início do século XX que convergem em Paris (DE MARCHIS, G., 2007: 19). Deve
salientar-se, no entanto, que isto com certeza constitui para o autor de Dispersão um
estímulo de que se deixa envolver, absorvendo-o, embora o seu deambular pelos
boulevards e pelos cafés da Ville lumière, andando «às moscas», possa parecer estéril
e ocioso.
As referências a cubistas e futuristas, cujo conhecimento, ainda que fragmentário
e lacunoso, é filtrado por outros artistas portugueses presentes no contexto francês,
sobretudo por Santa-Rita Pintor, para o qual Sá-Carneiro demonstra uma atitude
algo ambîgua de admiração misturada ao desejo de se afastar dele, que pontilha
toda a correspondência, de onde se evidencia que o autor da Manucure sofre a
atração e estímulo8. Mesmo sem os exaltar, sabendo que isso teria talvez constituído
um elemento de atrito ou de dissonância com a sensibilidade comum, entre ele e
o «mestre» Pessoa, preocupa-se insistentemente em fazer circular e meter em
contato a vanguarda Portuguesa com Paris, integrando-a na arte e nas vanguardas
francesas, tendo como objetivo mover e promover o novo nascido em Portugal,
trazer a periferia ao centro, como quando escreve «Exorto-o intensamente a que não
descure a propaganda europeia do Orfeu, sobretudo das Odes, da ‘Chuva oblíqua’ e
da ‘Manucure’ (…) Por mim não mandei o Orfeu ao movimento futurista - mesmo

8 Logo nos primeiros dias em Paris escreve ao amigo da alma, Fernando Pessoa: «Tenho andado muito com o
Guilherme de Santa-Rita. É um tipo fantástico, não deixando no entanto de ser interessante» (SÁ-CARNEIRO,
M. de, 2001: 13). Em outra carta de 31 de janeiro de 1912 afirma: «Respeitantemente ao Santa-Rita, a minha
opinião difere muito da sua e da do Veiga Simões: Não me parece um caso de Hospital mas – vai talvez pasmar
um caso de Limoeiro. [...] É na verdade uma personagem interessante, mas lamentável e desprezível».(id.: 26)
20 100 Orpheu Orietta Abbati

porque não sei o endereço. Para centralizar, mande você. Não lhe parece melhor?»
(SÁ-CARNEIRO, M. de, 2001: 188). Respira, sem dúvida, um ar diferente do lisboeta,
apesar da sua condição marginal, como, de resto, uma outra carta a Pessoa testemunha,
quando escreve «Na galeria Sagod, o templo cubista futurista de que lhe falei já numa
das minhas cartas comprei ontem um volume: I poeti futuristi. (…) vou-lho mandar
em presente. Já lá descobri uns Fu fu… cri-cri (…) muito recomendáveis. Vamos a
ver...» (id.: 190). Na mesma missiva, surge todo o interesse de Sá-Carneiro pela revista
internacional de literatura Poesia, de que não tem mais notícias por causa da guerra,
sugerindo ao amigo «Se a revista existisse – nós poderíamos muito possivelmente ser
colaboradores» (ibid.).
Estas rápidas referências revelam, então, um real, sério e interessado envolvimento
de Sá-Carneiro que não poderia não se reverberar na sua poesia, da qual Manucure
se apresenta como a melhor realização. Isto para dizer que a Europa tão sonhada,
mesmo envolvendo a vida pessoal do poeta, se estabelece plenamente nesta
longa poesia, fundindo-se numa hibridação fecunda, e pregnante de toda a arte
sacarneiriana.
Os elementos peritextuais, acima de tudo, a partir do título Poemas sem
suporte que anuncia a poesia publicada em Orpheu 2 juntamente com a Elegia e
pela dedicação a Santa-Rita Pintor; longe de tirar a seriedade ao texto, este, pelo
contrário, circunscreve o âmbito que surge como uma síntese justa e eficaz, com
referência à liberdade dinâmica das palavras na poesia modernista, de evocação
futurista, e integração naquela ineludível expressão da vanguarda artística do início do
século XX, do pintor Português, cujo papel é reconhecido oficialmente e redimido
pelo autor Dispersão.
A adição posterior da frase pessoana «feito com intenção de blague», por sua vez,
possui a intenção de estabelecer os limites dentro dos quais este poema se move,
condicionando, portanto, uma abordagem séria também à leitura do mesmo. No
entanto, nas palavras de Eduardo Lourenço, «uma “blague” pode pôr – ou traduzir – os
mesmos problemas de um ato ‘sério’» (2003: 54), efetivamente é necessário ter esse
aspeto em conta, juntamente com as reflecções supracitadas, para devolver ao texto
de Sá-Carneiro o adequado espaço estético literário reservado às grandes Odes de
Álvaro de Campos, em particular, em relação à grande Ode Marítima, a que se junta
em Orpheu 2.
Em primeiro lugar, no projeto modernista da revista, a blague funciona como
imediato ato visível de rutura. O facto de ter sido premeditado ou fruto de sensações
inquietas que a poesia sempre traduz, é um tema que merece outras reflexões.
Certamente a própria escolha do título, implica também a assunção do que
efetivamente o mito de Orpheu significa, ou seja, citando ainda Eduardo Lourenço,
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 21

«tomar a sério, com todas as consequências imprevisíveis o papel da poesia no destino


humano. Transformar a existência em existência poética» (id.: 47)9.
Manucure, parece condensar isto tudo de forma exemplar. Efetivamente Sá-Carneiro
deixa entrar, aparentemente de forma caótica, todo o seu mundo que, por um
lado, se concentra essencialmente à volta de um olhar narcisístico, como último
possível vestígio de uma vida de dândi em Paris, claramente patética e anacrónica,
à qual se une um elemento comum aos cânones do dandismo do século XIX, e à
própria poesia órfica, ou seja, a ideia de uma aristocrática distância do intelectual
da trivialidade da vida «lepidóptera burguesa»; por outro lado, e como vimos, e
também fortemente solicitado pelo ambiente parisiense, o entusiasmo para a
contemporaneidade, para os movimentos e a arte da vanguarda, que entram com
um vigor imparável ou como um dilúvio, a encher as amplas páginas do longo
poema, escrito porém em Lisboa.
Ao mesmo nível da estrutura e da «(…) perfeição da “linha” construtiva»
(SÁ-CARNEIRO, M. de, 2001: 211) da Ode Marítima, como o próprio Sá-Carneiro
reconhece, e que também tinha sido alvo de críticas fortes, bem como previsíveis
pelos detratores de Orpheu, também Manucure possui uma arquitetura e um
desenvolvimento tais que se demonstram capazes de conferir plasticidade e um
crescente dinamismo à sua desordem aparente.
O incipit, constituído pela ideia narcisista da manucure, operação em que o poeta
que se definia uma «esfinge gorda», demonstrava esmeros e cuidados da única parte
do corpo que sentisse em sintonia com a própria sensibilidade e aspiração de dândi,
parece colocar a obra sob a marca de um predominante egotismo, refúgio irrenunciável
face à dispersão de si próprio, colocado no espaço privilegiado de eleição do poeta,
a parte interior de uma Café, no pleno exercício de um isolamento aristocrático que
separa os seus «olhos delicados, refinados, esguios e citadinos» do externo, do «dia
brutal, provinciano e democrático».

Na sensação de estar polindo as minhas unhas


Súbita sensação inexplicável de ternura,
Todo, me incluo em Mim – piedosamente.
Entanto eis-me sozinho no Café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos

9 Continua ainda E. Lourenço: «A importância única da geração de Orpheu reside nessa aceitação sem limites
da seriedade da poesia, ou, se se prefere, da poesia como realidade absoluta» (ibid.).
22 100 Orpheu Orietta Abbati

Assim prossegue o primeiro segmento do texto até ao verso 20, num movimento
centrípeto que tudo reconduz ao eu, delineando, em verso livre, uma síntese perfeita
da vida parisiense de Sá-Carneiro, repetidamente contada ou encenada, quer em
outros poemas, quer na correspondência. Contudo, na estrutura desta longa poesia
encontramos traços da sua função bivalente, uma vez que ela aparece como um
prelúdio para os versos seguintes, quando, como o volano de Álvaro de Campos, põe
em movimento a capacidade imaginativa sensorial, mudando-lhe, porém, a direção
com a qual inicia um vórtice centrífugo, onde o mesmo sujeito entrará a fazer parte
num processo de dispersão e anulação total.
Em poucas palavras, com Manucure, Sá-Carneiro constrói o espaço ideal para
realizar, em nome da radicalidade absoluta, a totalidade da sua poética. Doseia de
forma gradual, mas crescente, o vocabulário e os topoi sempre presentes na estética
decadentista e simbolista, declinados numa atmosfera não mais estagnante, mas
previamente carregada de uma força cinética que anuncia a «arte fluida», também
tematizada no conto Asas, como os seguintes versos o demonstram:

Eis como, pouco a pouco, se me foca


A obsessão débil dum sorriso
Que espelhos vagos reflectiram…
Leve inflexão a sinusar…
Fino arrepio cristalizado…

para fluir, logo depois, nos ismos modernistas, misturando-se «fluidamente» no


paulismo pessoano, no intersecionismo e sensacionismo, evidentes nos versos:

E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço


Por inúmeras interseções de planos
Múltiplos, livres, resvalantes.

Todo este conjunto leva a uma evolução gradual mas rápida para uma maior
inclusão da estética futurista e cubista, com que o eu poético parece finalmente
encontrar-se em perfeita comunhão, como depois de uma verdadeira unção divina, o
que faz com que ele declare:

Meus olhos ungidos de Novo,


Sim! Meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos
Intersecionistas
Não param de fremir, de sorver e faiscar
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 23

(...)
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variável sempre
E livre – em mutações contínuas
Em insodáveis divergências...

Até escrever na forma de caligrama, imitando Apollinaire, o verso mais emblemático


da arte fluida: «É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!»
Em seguida, a escrita linear dos versos, embora livre, dá espaço à reprodução gráfica
de tudo o que é objeto de atenção na estética futurista, solicitada por um jornal, que
o poeta transfere literalmente em duas páginas inteiras, selecionando caoticamente,
mas com uma disposição gráfica de evidente impacto visual, as marcas comerciais, as
manchetes dos jornais e todos os símbolos mais estrepitosos da modernidade, numa
espécie de embriaguez que leva ao clímax do vórtice e de movimento onde o ar é o
elemento dinamizador.
Na sarabanda de «palavras em liberdade, sons sem-fio» Sá-Carneiro, recompõe,
mas não de forma caótica, através de uma sugestiva adição matemática de aspeto
caligramatico, o grupo dos artífices da arte moderna e da vanguarda em Paris,
resumindo de tal modo toda a experiência e ligação por ele sempre auspicadas entre
Portugal e a Europa, e que Fernando Pessoa tinha prefigurado ao afirmar a necessidade
de «criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço» (PESSOA, F., 1966: 113).

MARINETTI + PICASSO = PARIS < SANTA RITA PIN


TOR + FERNANDO PESSOA
ÁLVARO DE CAMPOS
!!!!

Colocado no segmento final do longo poema, reaparece o dândi que, abandonando


o seu ato narcisista, vencido pela impossibilidade de alcançar com os versos «Toda
essa Beleza inatingível, Essa Beleza pura!», fica completamente fora de si, indo ao
encontro da mais radical e barulhenta dispersão do próprio eu, para se anular no
pirotécnico espetáculo final das onomatopéias Marinettianas.
Este é o modo mais futurista de encenar o próprio fim, que Sá-Carneiro,
transformando a palavra em ação, poderia inventar e que encontra um equivalente na
carnavalesca e irreverente imagem do próprio funeral, da poesia Fim.
No entanto, deixando o devido espaço para os efeitos burlescos e irónicos
subjacentes à intensão provocatória cultural de rutura, como foi a aventura de Orpheu,
hoje, passados 100 anos, Manucure pode sair do perímetro traçado por Pessoa, e
24 100 Orpheu Orietta Abbati

brilhar com luz própria, lado a lado, com o mesmo valor das outras grandes Odes de
Álvaro de Campos, como, aliás, o autor de Dispersão auspiciava, sugerindo a Pessoa a
divulgação de, pelo menos, aquele junto a Chuva oblíqua.
Mesmo estruturalmente, a Ode Marítima e Manucure possuem elementos que
destacam um certo paralelismo, e as diferenças, na verdade reforçam ainda mais
o valor de cada texto, mostrando em contraluz a individualidade e procedimentos
diferentes que os dois poetas portugueses encenam para chegar a um epílogo, orientado
em ambos, para o negativismo, para a queda e a derrota, de ordem metafísica, na
consciência comum do vácuo do sentido de tudo.
Atlântica e lisboeta é a postura do sujeito poético em Ode Marítima, cujo percurso
se desenvolve num ciclo solar onde a poderosa e imaginativa máquina colocada
em movimento pelo volano, enlaça, em pleno sensacionismo, o inteiro e imenso
espaço-tempo marítimo, entre as horas do amanhecer e as do anoitecer no porto da
cidade portuguesa, para depois encontrarmos o poeta ainda imóvel no cais, imerso
num sentimento de angústia, de tristeza, e «no silêncio comovido da minha alma»,
como recita Álvaro de Campos; parisiense e circunscrita pelo espaço fechado de um
café protegido da luz solar, também Manucure, encena a própria ideia de dinamismo,
num espaço esse também fluído e móvel. No entanto, mais do que uma simples
viagem, trata-se de uma explosão multidirecional de sensações, na plena assunção
do lema futurista de palavras em liberdade, não gratuitas, mas com uma intenção
metafísica, traduzida em expressão estética, da pesquisa, da experiência totalizante,
num verdadeiro «sentir tudo de todas as maneiras» da Beleza pura, daquela «[…]
Arte com força centrífuga» sonhada pelo artista russo Zagoriansky no conto Asas
(SÁ-CARNEIRO, M. de, 1999: 118).
No entanto, enquanto que Álvaro de Campos deixa parar o volano e, lucidamente
desiludido, conforma-se com a impossibilidade do seu esforço titânico, Sá-Carneiro,
corre em direção ao seu fim, acabando por ficar disperso entre as palavras explodidas
e fragmentadas, já não sendo úteis para dizer a beleza, para dizer a poesia, para
criar então a realidade, condenando ao definitivo silêncio o dândi anacrónico e
incongruente, do qual a última mise en scène, Manucure, como extremo gesto poético,
se desenvolve no palco de um obscuro café de Paris.
Somando ainda estas reflexões a outras feitas até aqui, podemos afirmar que um
olhar mais distante permite ver nesta poesia «sem suporte», quanto a sua «intenção de
blague» seja aparente ou pelo menos redutora, embora também exista nos termos em
que «[...] o desejo de provocação do público [...] estava desde logo inscrito no código
genético do fazer vanguardista» (VASCONCELOS, R., 2015: 164). De facto, Sá-Carneiro
nela desenha literalmente, quase em timelapse fotográfico, o percurso seriíssimo,
da própria experiência estética. Na arte e poesia futurista e de vanguarda europeia,
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 25

na verdade, Sá-Carneiro, encontra a linguagem mais avançada antes do limite do


pronunciável e dela serve-se naquela sua pesquisa titânica de uma forma totalizadora
de escrever e viver a vida como arte, e a arte com vida, em contínua evolução e firme
rumo a «Essa beleza pura», que ele conduz até ás últimas consequências.
Só assim será possível intuir a intensão mais séria e grave de Manucure, que pode,
por isso, ser plenamente definida como poesia órfica de vanguarda, em que o percurso
atinge o limite extremo. De resto, empurrado por uma incapacidade de renunciar, o
próprio Sá-Carneiro, com firme quanto surpreendente lucidez e premonição, declara
numa das suas primeiras cartas enviadas ao «amigo de alma»: «Eu sou daqueles que
vão até ao fim» (SÁ-CARNEIRO, M. de, 2001: 33). Hoje sabemos que Sá-Carneiro
tem coerentemente e radicalmente atravessado esse limite, no distante 26 de abril
1916. A isto parecem também aludir as palavras de Óscar Lopes, ao afirmar que «(…)
ele próprio lavrou em verso a melhor acta da sua derrota» (LOPES, Ó., 1994: 178).

Bibliografia Final

Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1966). Páginas Íntimas e de Auto – Interpretação. Eds.
COELHO, Jacinto do Prado e LIND, Jorge Rudolf. Lisboa: Ed Ática.
PESSOA, Fernando (1999). Correspondência 1905-1922. Ed.. SILVA, Manuela
Parreira da. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2000). Crítica, Ensaios, Artigos e entrevistas. Ed. MARTINS,
Fernando Cabral. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2012). Prosa de Álvaro de Campos. Ed. PIZARRO, Jeronimo,
CARDIELLO, António. Lisboa: Babel-Ática.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1999). Céu em Fogo. Ed. MARTINS, Fernando Cabral.
Lisboa: Assírio & Alvim.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (2001). Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando
Pessoa. Ed. SILVA, Manuela Parreira da. Lisboa: Assírio & Alvim.

Bibliografia Passiva
DE MARCHIS, Giorgio (2007). O silêncio do Dândi e a morte da Esfinge. Lisboa: IN/
CM.
GUIMARÃES, Fernando (1999). O Modernismo português e a sua poética. Porto:
Lello Editores.
JÚDICE, Nuno (1986). A era do Orpheu. Lisboa: Editorial Teorema.
LOPES, Óscar (1994). A busca de sentido. Lisboa: Editorial Caminho.
26 100 Orpheu Orietta Abbati

LOPES, Teresa Rita (1989). «O monólogo/ Diálogo do ‘Esfinge Gorda’», in:


AMARAL, Fernando Pinto do (org). Um século de poesia, número especial de
A Phala. Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 33-35.
LOURENÇO, Eduardo (2003). «‘Orpheu’ ou a poesia como realidade», in:
LOURENÇO, Eduardo. Tempo e Poesia. Lisboa: Gradiva, pp. 47-67.
MARGARIDO, Alfredo (1990). «O Cubismo apaixonado de Mário de Sá-Carneiro»,
in: Colóquio/ Letras 117/118, pp. 92-102.
MARTINS, Fernando Cabral (1994). O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro.
Lisboa: Editorial Estampa.
SARAIVA, Arnaldo (1981). «Mário de Sá-Carneiro: uma carta inédita», in: JL-Jornal
de Letras, Artes e Ideias, I, 6, p.5.
STEGAGNO PICCHIO, Luciana (2004). «Pessoa, Marinetti e il Futurismo
mentale della generazione dell’ Orpheu», in STEGAGNO PICCHIO, Luciana.
Nel segno di Orfeo. Fernando Pessoa e l’Avanguardia portoghese. Genova: Il
melangolo, pp. 109-136.
STEGAGNO PICCHIO, Luciana (2004). «Dalle Avanguardie ai Modernismi. I
nomi e le cose in Portogallo e in Brasile», in STEGAGNO PICCHIO, Luciana.
Nel segno di Orfeo. Fernando Pessoa e l’Avanguardia portoghese. Genova: Il
melangolo, pp. 235-239.
VASCONCELOS, Ricardo (2015). «Orpheu e Paris. Ecos cubistas na poesia de
Mário de Sá-Carneiro», in: DIX, Steffen (org). O ano do Orpheu 1915. Lisboa:
Tinta da China, pp. 149-165.
A desabar catedrais..., ou o outro modernismo

Luís Machado de Abreu


Universidade de Aveiro

Palavras-chave: Modernismo; Pessoa; Orpheu; Pascendi; Teologia.


Resumo: A amplitude do movimento modernista em que se inscreve ORPHEU já tinha, antes
de 1915, sacudido a beata quietude do catolicismo romano. E se não parece aceitável tratar
o modernismo teológico e o modernismo estético como se fossem apertados e íntimos os
laços de família que os ligam, também não pode apodar-se de insana a tarefa de reduzir a
distância entre as identidades que os distinguem e afastam. Fazer convergir as duas expressões
modernistas, eis o propósito desta comunicação. Ela vai tentar traduzir essa convergência
sobretudo a partir de duas atitudes criativas, presentes em ambas: afirmar a liberdade de saber
e de imaginar, desconstruir o poder das autoridades.

Deus é um grande Intervalo,


Mas entre quê e quê? (PESSOA, F., 1989: 188)
E a noite cresce agora a desabar catedrais” (SÁ-CARNEIRO, M., 1989: 11)

Sob o signo “desabar catedrais” perfila-se outro modernismo, o modernismo


teológico, que começou e se metamorfoseou ainda antes de o modernismo literário e
das artes plásticas se ter afirmado. O emergir do modernismo teológico vem sempre
desalinhado quando historiadores e críticos literários exibem audácias criativas ou
novos universos encenados pela poética modernista. Remetido para nota de rodapé
ou repescado do olvido como simples à parte da erudição conveniente, mais parece
um equívoco1 em toda esta história. Como se apenas um significante nominalista
ligasse por ténue fio vocabular dois continentes que entre si nada tivessem a ver,
formados cada um por distintas genéticas identitárias e obedecendo a dialécticas
autónomas que jamais se encontram.

1 Em texto que pode ser datado de 1915 e tem no espólio pessoano da Biblioteca Nacional de Lisboa a cota
87A-19, Fernando Pessoa denuncia o equívoco: “O termo ‘modernista’ que por vezes também se aplicou aos
artistas de Orpheu, não lhes pode também ser aplicado, por isso que não tem significação nenhuma, a não ser
para designar – porque assim se designou – a nova escola pragmatista e exegética dos Evangelhos, nascida
adentro da Igreja Católica, e condenada pelo Papa, por excessivamente tendente a procurar a verdade.” Apud
Teresa Rita Lopes, Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, 1993, p. 263.
28 100 Orpheu Luís Machado de Abreu

Quando inserida numa história crítica da cultura, a fenomenologia modernista


há-de ser lida muito aquém ou muito além de uma excitante doxa de manifestos,
revistas, grupos ou gerações. A doxa transporta-nos para o lugar e o agora de um
real imediato. Instala-nos e fecha-nos dentro dele para que também nós, leitores,
embarquemos na aventura e ela volte a acontecer outra vez. Há nesta doxa o efeito
de uma convulsão chamada modernidade cujo paroxismo foi atingido na cultura
do século XIX e se traduziu em nova compreensão do homem, do mundo e de
Deus. A novidade assim trazida assenta em duas bases: a auto-referencialidade e a
absolutização do fragmento e do relativo.
A auto-referencialidade remete-nos para a imanência do ser do homem e da
natureza onde a ciência procura a chave com que há-de resolver os problemas que
a realidade humana e o mundo da natureza encerram. Essa chave apresenta-se
como única e universal. O século XIX proclama-o do alto das tribunas eufóricas
do cientismo, positivismo, naturalismo, marxismo e niilismo. São elas as grandes
“narrativas militantes” portadoras de uma soteriologia laica que as canoniza como
religiões da humanidade2.
Quanto a Deus, o espaço público deixa-lhe um lugar que, a pouco e pouco, se torna
mais exíguo e distante dos centros vitais que animam e comandam a vida da sociedade.
Quando não lhe nega pertinência, e nega com frequência crescente, remete-o para a
insignificância e o recôndito da vida privada. Com a auto-referencialidade cresce a
distância, a independência, o isolamento que afasta o homem da relação com o
divino e com a Natureza, à força de, qual Narciso, tanto olhar e se fixar em si próprio.
E, ao mesmo tempo, avança o processo de decomposição dos equilíbrios, dissipa-se
a harmonia do todo, agrava-se a consciência de crise e o sintoma indefinido do dia
que anoitece. Na sua dispersão, cada fragmento tem uma história para inventar as
derivas de um mundo que se estilhaçou. E agarra-se a essa ficção como náufrago
que, na incerteza do momento, ainda o pode prender ao absoluto da vida.
É à luz do paroxismo convulsivo da cultura oitocentista que o modernismo
estético, e de modo mais preciso o modernismo de Orpheu, tem raiz na crise
filosófica e religiosa. E de maneira muito peculiar, os mais substantivos criadores
do universo poético dessa geração perseguem com anelo, ânsia, angústia e mística
obsessão o porto da “verdadeira religião poética”. Com sagacidade amplamente
confirmada, assim o reconheceu Eduardo Lourenço ao afirmar, sem rodeios, que

2 Ver a sua exposição em Marc Angenot, Les Grands Récits Militants des XIXe et XXe Siècles Religions de
l’humanité et sciences de l’histoire. Paris, L’Harmattan, 2000.
A desabar catedrais..., ou o outro modernismo 29

todo o século XIX andou à procura de uma nova religião, para responder a uma
civilização que tinha entrado no domínio material do mundo e para responder
também ao pensamento filosófico, expresso por Schopenhauer, segundo o qual o
mundo não tem sentido, é uma vontade cega (LOURENÇO, E., 2015: 9).

Havia o pressentimento de um mundo novo a explorar e os jovens artistas


embarcaram freneticamente nessa aventura. Dela dirá Almada Negreiros: «De
começo havia mais entusiasmo do que sentido, mas era o que bastava» (ALMADA
NEGREIROS, J., 1972: 64). A viagem estética empreendida pela geração de Orpheu
jamais sofreu qualquer desvio por lugares ou acontecimentos onde a experiência
religiosa se vive como fé esclarecida ou como devoção emocionada. Mas “os de
Orpheu” conheciam essa experiência espiritual tão profundamente enraizada e
marca indelével da tradição cultural portuguesa. E acenam-lhe agarrando-se aos
destroços da arqueologia mitológica do Portugal cristão e católico nascido à sombra
das cinco chagas e da Cruz de Cristo. Em nenhum momento esses destroços serviram
para compor um epicédio ao universo da fé perdida no oceano tempestuoso da
modernidade céptica e sôfrega de novos cultos. Livres de nostalgias, os criadores de
Orpheu destilam nele a desesperada ânsia de um ideal que, sendo deles, os ultrapasse
e se consume na fúria e na plenitude de um paraíso impossível. Não encontram
velas melhores nem remos mais vigorosos para fazer avançar o barco até esse porto
senão investindo a opulência do léxico religioso na mística laica de uma redenção
estética: “Deus, longo cais em mim, donde outras naus singrando, / Conduzem
para o Longe o meu não existir” (GUISADO, A., 1989: 47), assim desabafa o órfico
Alfredo Guisado.
É de uma viagem singular que estão saturadas as páginas de Orpheu e as emoções
nelas derramadas. A viagem começa em nenhures e tem como destino final o
simbólico Longe que fica depois do Longe e se esfuma no Nada. O mais aliciante
não está no ponto de partida nem na previsível cena terminal de naufrágio no
oceano do Vazio. Está no caminho andado, caminho cheio de acenos à infância, ao
heroísmo da aventura, ao ideal e à arte, à luta e sofrimento, à conquista e perda, ao
sonho e decepção, à angústia e tédio, ao gozo e infinita solidão… E enquanto dura
a travessia, ponte que liga a lado nenhum, a viagem torna-se peregrinação que faz
com devoção a visita de todos os lugares sagrados da religião da arte. São lugares
que nenhuma divindade de religiões positivas tradicionais visitou. Inventa-os a ânsia,
a vertigem de ideal, o eros da liberdade infinita de ser tudo de todas as maneiras.
Chegam até eles cansados dos cultos antigos e dispostos a abraçar a “irreligião do
futuro”. Dão testemunho de viver no desconforto de
30 100 Orpheu Luís Machado de Abreu

nem uma sequer das divindades criadas sucessivamente pelo espírito humano
lhes poder bastar hoje; precisam de todas ao mesmo tempo, e ainda de algo mais,
porque o seu pensamento vai para além dos deuses. […] a verdadeira ‘palavra
sagrada’ não é uma palavra solitária, mas a sinfonia de todas as vozes que, juntas,
ressoam sob a abóbada celeste (GUYAU, M., 1890: 320-321).

É na viagem que o eu se resgata da monotonia da solidão, do “Mal da Palavra”, e


faz coro, juntando à sinfonia de todas as vozes a irreprimível vontade de querer “ser
Deus, o Deus dum culto ao contrário” (p. 143) como confessa Álvaro de Campos na
“Ode Marítima”. Aqui chegados, o gosto e o gesto de Orpheu tem o sabor de hybris
da modernidade que se exprime na apoteose do sujeito e na criação poética elevada
a ideal de transfiguração da própria vida em obra de arte. Não anuncia menos do que
isso a vertigem do Longe sentida por Raul Leal que proclama “o indefinido a que na
arte nós aspiramos, […] essa ânsia, esse desejo infinito e jamais satisfeito deve encher
a nossa vida que a mais alta expressão se tornará assim, da arte pura!...” (LEAL, R.,
1989: 119).
Correndo o risco de ser acusado de aproximações simplistas e, por isso, criticamente
irrelevantes ou de forçar semelhanças até fantasiá-las como traços de uma identidade
comum, vou deter-me no que considero ser partilhado pelos dois modernismos, sem
ignorar ou iludir o que neles se impõe como claramente diverso.
Dando por adquirido o que seja o modernismo em arte, não para fugir à
complexidade do conceito3, mas por se tratar de território já muito frequentado
pelos estudiosos da geração de Orpheu, comecemos por um esboço de caracterização
do chamado modernismo católico ou teológico, por vezes designado também crise
modernista da Igreja4. Esse modernismo surgiu como tentativa destinada a repensar a
doutrina e a prática da Igreja à luz das exigências intelectuais e civilizacionais criadas
pelo espírito dos tempos modernos. Protagonizaram esta iniciativa de renovação
membros do clero dedicados à investigação em teologia e em filosofia a que se juntaram
leigos como Maurice Blondel e Édouard le Roy. Tratava-se de interpretar a doutrina
da fé à luz de contributos recentes do saber histórico e da abertura à autonomia da
consciência do homem moderno. Em termos cronológicos, o modernismo religioso

3 Sobre o tema ver o erudito estudo de Vítor Aguiar e Silva, “A construção da categoria periodológica de
Modernismo na literatura portuguesa”, in: Luís Machado de Abreu (Coord.), Diagonais das Letras Portuguesas
Contemporâneas. Aveiro, Fundação João Jacinto de Magalhães, 1996, pp. 17-35.
4 Da vastíssima literatura sobre esta corrente modernista sublinho a obra já clássica de Émile Poulat, Histoire,
dogme et critique dans la Crise Moderniste. Paris, Casterman, 1962 (Obra reeditada em 1995 pela Albin
Michel) e de Pierre Colin, L’audace et le soupçon La crise du modernisme dans le catholicisme français
(1893-1914). Paris, Desclée de Brouwer, 1997.
A desabar catedrais..., ou o outro modernismo 31

desenvolveu-se a partir da década de 1890 e atingiu o apogeu da crise então gerada


no ano de 1907, ano em que o papa Pio X o condenou na encíclica Pascendi dominici
gregis de 8 de setembro de 1907, depois de a 3 de julho deste mesmo ano o Santo
Ofício ter inventariado no decreto Lamentabili os principais erros dos modernistas
acerca da Igreja, da revelação, de Cristo, dos sacramentos e dos dogmas.
Da análise desta tentativa generosa de introduzir a modernidade na leitura das
expressões doutrinais do catolicismo decorrem marcas culturais que replicam em
grande escala aspectos também identificados pela crítica no modernismo estético.
Entre outros, são notórios nos dois movimentos os elementos seguintes: consciência
de atraso e inadaptação às rotinas da situação cultural dominante; experiência do
tempo como kairós, isto é, como tempo oportuno; exigência de liberdade de ser,
de conhecer e de se afirmar; espontaneidade do humano através da afirmação das
potencialidades do sujeito; inscrição histórica dotada de perenidade. Percorramos
com algum pormenor cada uma dessas marcas de modernidade.
A consciência de inadaptação às rotinas da situação cultural vigente impõe-se
através do impulso que essa geração sente de não condescender com a estagnação
do tempo presente. Tem de ser diferente e criadora. À arte atribui a função de “ao
mesmo tempo interpretar e opor-se à realidade social coeva”, no dizer de Pessoa. Não
pede licença aos patriarcas da arte dominante nem quer pactuar com o conformismo
da vida aburguesada. Despreza o passado, desobedece ao presente e voa rumo ao
mundo futuro. A essa desadequação alude Almada Negreiros em 1926 e remete-a
para o desencontro português entre o tempo cronológico e o tempo da história em
construção. A verdade é que “A humanidade inteira, incluindo os Portugueses, está
no século XX, contudo, Portugal não está ao lado da humanidade actual.” (ALMADA
NEGREIROS, J., 1972: 54). Desde Alcácer-Quibir, nunca mais Portugal acertou o
passo com a marcha geral da humanidade.
A experiência do tempo como kairós, isto é, como tempo oportuno. Na “Introdução”
de Luís de Montalvor evoca-se o momento certo que acaba de chegar como “procura
estética de permutas: os que nos procuram e os que nós esperamos…”. O espelho que
Orpheu também é não reproduz o retrato de uma época; revela a prova de vida, o
ritmo frenético de uma geração que se inventa como história em movimento. Não
sendo com propriedade órgão de um movimento, Orpheu é a resultante de uma
geração constituída por personalidades em movimento, movimento acelerado pela
fúria de cada um se desassemelhar pela arte que cria.
A exigência da liberdade de ser, de conhecer e de se afirmar. Não está em causa fazer a
apologia do livre arbítrio mas forçar as barreiras que, em âmbitos vários, ainda obstam
ao exercício efectivo da liberdade. Em nome do dever de autodeterminação pessoal,
os modernistas insubordinam-se tanto perante a autoridade que exige obediência
32 100 Orpheu Luís Machado de Abreu

cega, como em face de constrangimentos da tradição impostos à arte e à vida. No


modernismo religioso a inteligência quer emancipar-se da interpretação da doutrina
da fé tutelada pela autoridade eclesiástica. Em vez de cultivar o entendimento dos
dogmas como formulações absolutas e imutáveis das verdades da fé, tende a concebê-los
como “poemas metafísicos” difusores do ideal cristão. No modernismo estético é de
emancipação da sensibilidade e do gosto que se trata, em ordem à plena liberdade de
imaginar e sonhar outros mundos.
Espontaneidade do humano que se manifesta nas potencialidades do sujeito.
Estas potencialidades andaram durante muito tempo cingidas ao investimento no
subjectivismo lírico do romantismo. Era tão grande e central o eu que a natureza
inteira lhe servia de caixa de ressonância. Agora, as mais intensas potencialidades
encontram-se na descoberta de que esse eu já não existe. Dissipou-se e em seu lugar
cresce uma pluralidade de eus, cada qual com sua verdade. É que também a verdade
deixou de consistir na correspondência da ideia com a realidade objectiva que ela
deveria significar. Como o eu, a verdade afirma-se plural e relativa, e mora no universo
do sonho para onde nunca acabamos de partir.
Inscrição histórica dotada de perenidade. Ao abalo estético provocado pelas
audácias de Orpheu seguiram-se réplicas que se foram traduzindo no aparecimento
de novas iniciativas e novas revistas. E veio a Presença e o segundo modernismo. E
não faltou também o antimodernismo para conferir actualidade à poética que ele
recusa. O momento inaugural em que se inovou não morreu à nascença. Teve réplicas
várias, e, com justiça, dele disse Pessoa em 1935: “Orpheu acabou. Orpheu continua”.
À semelhança do que aconteceu no mundo das artes, os episódios de sobressalto
doutrinal causados pelos teólogos modernistas não se extinguiram com as censuras
e o anátema lançados pela encíclica Pascendi de 1907. A visível acalmia verificada a
partir de então foi de novo sacudida na década de 1940 pela chamada “Nova Teologia”
de Henri de Lubac, Henri Bouillard, Gaston Fessard, Teilhard de Chardin e outros. E
duas décadas mais tarde, a par do aggiornamento trazido pelo Concílio Vaticano II,
surgem os corifeus do mais audacioso e inconformista progressismo teológico, de que
Hans Küng foi, é ainda, um dos mais emblemáticos protagonistas.
Seja qual for o sentido do sibilino verso de Pessoa “Deus é um grande Intervalo”, ele
significará sempre uma saída de cena para virem à ribalta outros actores e, com eles,
a representação de novo drama.
Aconteceram nos dois modernismos projectos audaciosos de aproximação ao
humano ditados pela vontade de conhecer, de sentir e de criar. Em nome de Deus e da
ortodoxia católica, a autoridade eclesiástica censurou o modernismo de Alfred Loisy
e companheiros, anatematizando-o como grande heresia dos tempos modernos.
Em nome da criatividade poética o modernismo de Orpheu reservou para Deus
A desabar catedrais..., ou o outro modernismo 33

a periferia e o ócio de “grande Intervalo” entre a ânsia desesperada de “indícios


de oiro” e a mágoa da eterna Ausência, ou em versão de Álvaro de Campos, “a
Distância Absoluta, / O Puro Longe, liberto do peso do Actual…” (Álvaro de Campos,
PESSOA, F., 1989: 135).

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Jacinto de Magalhães, pp. 17-35.
A Vida dos Instrumentos – pureza e
ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso

Maria Teresa Amado


Universidade de Évora

Palavras-chave: Amadeo de Souza-Cardoso; Modernismo; Pintura; Música; Organização do


espaço.
Resumo: A vitalidade da Música na criação do Modernismo impõe-se no diálogo que estabelece
com a Literatura e a Pintura. A Música é a arte que desperta no ser humano as emoções mais
profundas, ecos e ressonâncias da alma. É uma arte da vibração e do rigor da medida, abstrata,
liberta das contingências da imitação. A partir do fim do século XIX ela vai à procura de
novos caminhos, muitos músicos entram em rutura com a linguagem harmónica tradicional,
à procura de novas expressividades. Este processo de busca e de vanguarda da Música marca
as diferentes correntes pictóricas: como temática visível, na globalidade; e como fragmentação
do tempo e estruturação vibrante da forma e da cor, em Amadeu e nos artistas que sentem a
pintura como um caminho interior. Perceber os sons e as vibrações dessa musicalidade dá-nos
a evolução e a profundidade do percurso da obra plástica de Amadeo.

1- Introdução

Esta comunicação tem três objetivos simples. Por um lado, mostrar a importância
que a obra teórica, gráfica e pictórica de Kandinsky teve para Amadeo; por outro,
como as experiências dos movimentos de vanguarda foram absorvidas pela sua
pintura. Especificamente, como a sonoridade da cor e das formas é um processo de
libertação do exterior, de ida para o interior, para as profundezas1.
A procura da musicalidade, dos sons, do ritmo das formas, da vibração das cores
está presente desde os tempos de absorção e de aprendizagem que Amadeo passou
em Paris. A aceleração, a estilização e o alongamento das figuras, a sua suavidade
e delicadeza, associadas a movimentos e ritmos harmónicos e a um brilho intenso,
produzem pinturas dominadas pelos jogos de cores e cadências. Sem romper com

1 Agradeço reconhecida ao Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão/Fundação Calouste Gulbenkian
a autorização graciosa da reprodução das pinturas de Amadeo de Souza-Cardoso, e, de uma maneira especial,
à Senhora Dra. Ana Vasconcelos e Melo pelas facilidades concedidas.
36 100 Orpheu Maria Teresa Amado

os modelos e a estética clássica, Amadeo cria um equilíbrio e uma harmonia, que


não sendo ainda dissonante, os subverte. “Amplia a verdade pela sobreexcitação de
intencionalidades”, eis como Jérome Doucet o carateriza em 1911 na introdução aos
Dessins (XX DESSINS, 1983: s/p).
As suas primeiras obras, os XX Dessins, diretamente inspiradas no álbum de
Kandinsky, Klänge-Sonoridades2, rompem logo com o estilo académico em pintura.
O imaginário dos temas, o desenho e a cadência rítmica resultante, substanciam o
diálogo que a literatura, a pintura, a escultura, a música e até o bailado mantêm neste
princípio do século XX.
Se a musicalidade, o ritmo, os sons são uma constante na obra do Amadeo, só a
partir de 1915, quando, apanhado pela guerra, é obrigado a um refúgio forçado em
Portugal, é que os instrumentos musicais se tornam uma presença dominante nos seus
quadros. É exclusivamente de uma seleção de quatro destas pinturas que o artigo trata.
Considera-se que elas são a chave da sua evolução para a pintura abstrata. Genérica e
tematicamente estas pinturas podem dividir-se em três grandes grupos: instrumentos
musicais, instrumentos musicais integrados em composições, e instrumentos musicais
em composições abstratas. De cada um destes temas escolheram-se as pinturas mais
elaboradas do ponto de vista da integração dos elementos e as mais estruturadas
quanto à composição global do quadro.

2- Mil cordas

Como Bartok, Stravinsky e outros artistas da sua geração, Amadeo faz recolha de
canções. O pintor recria nas suas telas o espírito da arte popular e dos seus artistas.
São eles os detentores desta arte que os exprime. O que Amadeo tenta ainda captar é
a transmissão simultânea de uma vivência e de uma memória cultural que ultrapassa
a própria música. Surgem assim, entre 1915 e 1916, óleos, aguarelas, desenhos que se
concentram no instrumento musical: mostram guitarras, violinos, cavaquinhos. As
cordas têm valor simbólico para o pintor: a sua vibração desperta diretamente a alma,
«o instrumento das mil cordas»:

A cor é um meio para exercer uma influência direta sobre a alma. A cor é a tecla; o olho o
martelo. A alma, o instrumento das mil cordas. O artista é a mão que, ao tocar nesta e naquela
tecla, obtém da alma a vibração justa. A harmonia das cores baseia-se exclusivamente no

2 Os poemas, os desenhos e as gravuras da obra gráfica Klänge foram criados por Kandinsky entre os anos de
1908 e 1912, ano da publicação do álbum em Munique.
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 37

princípio do contacto eficaz. A alma humana tocada no seu ponto mais sensível responde.
A este fundamento chamaremos o princípio da Necessidade Interior. (KANDINSKY, V.,
2013: 21).

Há um paralelismo que se pode fazer entre a evolução da música e da pintura


neste princípio do século XX: a rutura com a tonalidade e o academismo e a procura
da pureza da musicalidade e da abstração como formas de expressão do sentir mais
íntimo, como necessidade fundamental.
Vida dos instrumentos é o título de, pelo menos, três quadros conhecidos de
Amadeo. No primeiro, de 1915, existem duas figuras humanas que tocam dois
instrumentos de cordas (AMADEO DE SOUZA-CARDOSO, 1998: 51)3. De cores
sombrias entrecortadas por linhas escuras, a composição centra-se nas personagens,
a guitarra e o violino ficam subordinados. As expressões dos rostos e a forma como
os corpos envolvem os instrumentos transmitem a procura da ancestralidade e
ruralidade em Amadeo. Mas, mesmo atingindo esse mundo ancestral, o artista sente
que penetra numa só faceta do real. Nos desenhos e nas pinturas ulteriores, o espaço
temático é ocupado por instrumentos musicais. As figuras humanas desaparecem,
intensifica-se a emoção e amplia-se a ligação com o mundo do som e da música. A sua
pintura caminha num processo de libertação do figurativo.
Em 1916 Amadeo desenha e pinta, em óleos e aguarelas, várias composições com
guitarras. Destaca-se um pequeno desenho em grafite, guache e aguarela, cujo título
poderia ser Mil Cordas, porque é uma composição simples de dois núcleos, da palavra
MIL e de guitarras de formas depuradas e cores irradiantes. As formas, quadriláteros,
são centradas e dão estabilidade.
O grau de abstração desta pequena aguarela é o prenúncio de uma nova etapa.
A imagem visual associa-se à imagem sonora e transmite, pelas cores e formas,
emoções arquetipais, concentradas no centro azul, do primeiro plano. Este tem uma
ressonância com o grande círculo azul do canto superior direito, que sugere vibração
concêntrica, complementada pela forte pincelada vermelha, que induz abertura
infinita. Com a palavra MIL, a pintura é o anagrama da pureza da emoção poética de
uma alma sensível e desperta.

3 Pintura (Vida dos Instrumentos), 1915. Óleo sobre tela. 100 x 60cm. Museu Municipal Amadeo de
Souza-Cardoso.
38 100 Orpheu Maria Teresa Amado

Figura 1. Sem título [MIL]. 1916. @ CAM/FCG

Não há saltos bruscos na obra de Amadeo, o pintor é versátil e persegue um fio


condutor íntimo: captar a «interior expressão das coisas»4. Entre 1915 e 1916 Amadeo
pinta dois óleos de grandes dimensões em que ensaia as linhas mestras dos quadros que
formam o objeto da presente análise. No quadro com o nome PAR ÍMPAR 1 2 15, surge,
como eixo central, uma estrutura metálica em zig-zag que interceta três pontos vitais
da figura humana (mão, coração, ouvido) e separa verticalmente a parte esquerda da
parte direita, como se de um díptico se tratasse. O grafismo de 1 2 1 do título dado pelo
autor indica a força organizadora da configuração metálica em três partes – longa,
curta, muito longa. O braço mecânico articulado parece ter a finalidade de perfurar o
superficial para chegar a um interior que Amadeo ainda procura.
Arabesco dinâmico = REAL ocre rouge café Rouge, ZIG ZAG, cantante, couraceiro,
bandolim, Vibrações metálicas, (Esplendor mecano-geométrico)6 é o título de
uma pintura de 1916, que pode ser facilmente ligada à anterior. Pelo título somos
introduzidos no labirinto do quadro. A palavra arabesco designa formas geométricas
evoluindo para formas orgânicas que, na arte islâmica, podem ser uma via da procura
do infinito. Este longo título associa o dinamismo a esta via de procura do centro
interior. O movimento das configurações vermelhas em zig zag acelera a sugestão de
vibrações metálicas. REAL é o processo de procura, penetrando o superficial. A figura
humana surge neste quadro despersonalizada, um esboço de um robot, em que duas
campainhas são olhos que choram e os ferrinhos marcam a cara. O corpo e os braços
estão na posição de um violinista, mas, no lugar do violino há um vazio ou uma
indefinição, o que permite pensar na procura de um caminho, da necessidade interior.
Esta pintura assenta ainda a sua composição num eixo de simetria, vertical e
horizontal. A parte superior do quadro é a mais elaborada e rica de significados; é

4 Título de uma das suas pinturas de 1915.


5 Óleo sobre tela, 100 x 70 cm, Coleção Particular (Lisboa).
6 Óleo sobre tela, 100 x 60 cm, Coleção Particular (Porto).
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 39

aqui que Amadeo ensaia diversos níveis de profundidade. A parte inferior tem formas
mais indefinidas.
Cordas, molas, configurações metálicas, tubos, sinos são formas que ganham um
estatuto especial, de vida e autonomia nas composições de Amadeo.

3- Instrumentos Musicais ou Vida dos Instrumentos

No mesmo ano, Amadeo pinta dois óleos que intitula também Vida dos
Instrumentos. As Mil cordas marcam a presença nas telas, tal como vão marcar nos
outros quadros aqui apresentados. Observa-se uma grande semelhança nas formas e
no alinhamento espacial entre o óleo da figura 2 e a aguarela anteriormente analisada.
Mas a composição é mais complexa.
A partir de um eixo de simetria, Amadeo desloca o centro de gravidade do quadro
para direita e para cima. As guitarras têm uma base mais estreita e, por isso, embora
as cores contribuam para uma sensação de expansão, inspiram instabilidade. O
contraponto está no círculo azul e violeta, que absorve luz, som ou talvez tempo.
Também, do lado esquerdo e destacado, está o elemento dinâmico da pintura,
elemento que é, aliás, um leitmotiv dos seus quadros: o zig-zag, ou o braço mecânico
que comanda os instrumentos.
A sua verticalidade metálica é reforçada pela cor branca envolvente, estática. A
extremidade do braço, uma mão mecânica ou um espelho, é direcionada para fora,
absorve do exterior e comanda o núcleo de direita; interceta vários planos, criando
extensão e profundidade.

Figura 2. Vida dos Instrumentos. 1916. © CAM/FCG

Aqui Amadeo contrapõe às formas simples (caraterísticas da sua pintura anterior)


grandes manchas de cor e de tons. Na procura do abstrato, ele ensaia sobreposição
de planos, texturas e fragmentação de formas. Esta técnica de pintar a totalidade do
40 100 Orpheu Maria Teresa Amado

espaço do quadro com tons vai ser usada posteriormente, em 1917, como processo
de criação típico de Amadeo quanto à sucessão de inúmeros planos e sentido de
profundidade, por outras palavras, quanto ao fundo dos seus quadros.

4- Trou de la serrure

Trou de la Serrure PARTO DA VIOLA Bon ménage Fraise avant garde é o nome dado
por Amadeo a este óleo no catálogo da exposição realizada no Porto e em Lisboa, em 1916.
Trou de la Serrure insere-se num conjunto de 5 telas não figurativas, todas de
1916, de intensas e humorísticas sugestões, sinestesias; são pinturas aparentemente
leves, brincalhonas, alegres e otimistas. Viola e Morango7, Violino e Cereja8 podem
ser considerados dois pequenos estudos do óleo Luxúria do Violino, IMAN, Oscilação
Vermelha Cá dentro e ao ar livre9. São obras que transmitem a sugestão de sensações
­­– som, cor, paladar, sensualidade ­­– atraídas para o interior, pelo IMAN. Esta última
pintura aproxima-se, plástica e iconologicamente, de Trou de la Serrure. Quanto à tela
Pato Violino Insecto, ela «grita» sons dissonantes e vibrações em contraponto com a
musicalidade do violino10.
Aparentemente Trou de la serrure PARTO DA VIOLA Bon ménage Fraise avant
garde é uma obra que comunica alegria e despreocupação no seu movimento: através
de simples sinestesias sonoras e cromáticas, a boa convivência chega-nos de dentro
para fora, e talvez também em via contrária. A profusão do título e a tendência para
o vanguardismo do autor prepara-nos para a abundância de sequências e de planos,
que é uma característica desta grande composição. Pela força da palavra, “trou de la
serrure”, obriga à orientação – ­­ O Buraco da Fechadura. Numa composição tão vasta
e variada, focaliza-se o olhar e descobre-se o círculo de cor clara, quase branca, com
um ponto escuro no centro, um olho no coração de um violino amarelo, instrumento
que quer expandir-se, mas está limitado: pela grande espessura das linhas curvas
vermelhas e pela abertura da caixa da viola, que permite ver o frio azul interior.
Neste contexto, o orifício central destaca-se. Num plano bem mais profundo, mais
indefinido, mas em ressonância, ele espreita e encontra o olho interior, uma metáfora
do buraco da fechadura. Há movimento, indicado pelas três linhas horizontais, cordas
que intercetam este plano mais profundo.

7 Óleo em cartão de 16,5 x 12 cm Coleção Particular (Porto).


8 Óleo em cartão de 16,5 x 12 cm Coleção Particular, atualmente desaparecida.
9 Óleo sobre tela de 50 x 40 cm Coleção Particular (Lisboa).
10 Óleo sobre tela de 50 x 40 cm Coleção Particular (Cascais).
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 41

Figura 3. Trou de la serrure PARTO DA VIOLA Bon

ménage Fraise avant garde. 1917. © CAM/FCG

Neste processo de espreitar, depara-se com três instrumentos fragmentados, em


que um dos instrumentos sugere o algarismo três. Letras que formam a palavra SOL,
um T e um R, talvez da palavra TROU, assim como fragmentos de instrumentos
mais pequenos justapõem-se sobre os tons, de predominância azul, de fundo. Toda a
composição dirige-se para «o buraco da fechadura», que dinamiza o lado direito do
quadro. Em contraponto, o lado esquerdo é estático e acentua propositadamente a
bidimensionalidade pictórica e a escuta interior: é um puzzle de pequenos quadros
(polarizados em redor dos chamados ouvidos do violino, ou abertura acústicas),
que remetem para objetos da cultura popular, e sugerem sensações auditivas, tácteis,
de olfato e paladar. Destaca-se o vermelho de um maduro e delicioso morango em
relevo. A alegria e a singeleza destes pequenos quadros (em que alguns elementos
também surgem pintados nos óleos da temática «Canção popular»11) é associada
à música popular com a sua estrutura linear e melodia única. No entanto, Trou de
la Serrure aponta para uma composição musical elaborada e complexa, orquestral,
tendo o violino em destaque.
Há um eixo branco e preto, cores estáticas segundo Kandinsky, uma parede
que acentua a diferença entre o mundo exterior e o mundo interior mais abstrato.
Aqui podem existir objetos carregados de simbolismo para a alma, assimilados e
representados figurativamente no puzzle do lado esquerdo. Finalmente, junto aos
ouvidos do violino e aos símbolos musicais do lado esquerdo também se encontram
cordas ou pautas de música e um pequeno olho, uma deixa de Amadeo para o
observador iniciar o caminho inverso, em que o ver e o ouvir se entrelaçam.

11 Dentro do conjunto Canção Popular são conhecidas quatro telas, a primeira, Sem título, datada de 1915-16,
é uma composição muito simples: a figura da boneca ocupa quase todo o espaço pictórico. As outras são
de 1916, Canção popular, Canção popular e o Pássaro do Brazil, e Canção popular a Russa e o Fígaro. Estas
três pinturas já integram nas suas composições as características “janelas/olhos” de Amadeu, revelando uma
melhoria progressiva quanto à sua elaboração plástica.
42 100 Orpheu Maria Teresa Amado

Concluindo, comparando Trou de la Serrure com as pinturas acima referidas,


percebe-se a sua radical diferença: nas pinturas em que Amadeo agrega aos
instrumentos musicais a representação de frutos, bonecas, objetos populares, etc., em
que a temática musical tem um caráter mais sensorial, a força imagética da sobreposição
de fragmentos concretos do quotidiano abafa a sugestão de musicalidade, a emoção
“pura”.

5- O «atelier de pintura» de Gershwin

Tendo por um lado presente pinturas anteriores de Amadeo chamaríamos a este


quadro/óleo sem título, de 1917, Vida dos Instrumentos 2, ou, tentando responder ao
desafio da composição e a sugestão de sincretismo das artes, O «atelier de pintura» de
Gershwin.
É um espaço físico absorvido pelo ofício do pintor: tintas, mãos, quadros e telas,
madeiras, fósforos. Trata-se de uma composição densa, com múltiplas sobreposições
de planos, com formas fragmentadas de objetos/elementos e com textura metálica de
configurações que funcionam como principais agentes dinamizadores.
As formas evocam instrumentos musicais. No centro está uma guitarra. Nas
múltiplas sobreposições de planos encontra-se uma nova dimensão da pintura
de Amadeo. As formas e as cores são familiares, mas no conjunto, encontram-se
dependentes umas das outras, assim como da estrutura final da composição. Dito de
outra maneira, há dois pilares – o da cor e da forma, e o da conceptualização do espaço.
A composição global do quadro torna-se a primeira finalidade. É esta a característica
da pintura de Amadeo em 1917: uma grande estruturação na organização do espaço e
da cor. Propositadamente, o quadro não tem centro, mas há centralidades, há núcleos
organizadores na pintura, à volta de guitarras (KANDINSKY, V., 2013: 60)12.

12 «A composição grande pode ser formada por composições menores, completas em si mesmas, ainda que
exteriormente possam parecer opostas, mas, mesmo através desta sua oposição, concorrem para o conjunto
da grande composição, de que fazem parte integrante. Deste modo, os vários objetos de um quadro (reais,
parcial ou totalmente abstratos) encontram-se dependentes de uma grande forma única. A transformação
profunda que recebem submete-os a esta forma; eles serão esta forma. A ressonância de uma forma isolada
enfraquece. Ela é apenas um dos elementos constitutivos da grande composição formal».
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 43

Figura 4. Sem Título [O «atelier de pintura» de

Gershwin]. 1917. © CAM/FCG

Na verticalidade, do lado esquerdo do observador, destacam-se dois planos de


guitarras, de grande dimensão, possíveis violoncelos. Do lado direito, de evidente
menor dimensão, reconhecem-se as guitarras de Amadeo. Pelas cores quentes sobre
um quadro preto, pelo olho azul hexagonal, este núcleo deslocado para a direita ganha
em profundidade. Mas no centro do quadro há uma abertura luminosa que equilibra
as partes, intencionalmente deslocadas pelo artista (o «coração» da guitarra).
Na horizontalidade, há estabilidade na parte superior do quadro. O canto superior
direito transmite leveza pelas suas cores claras, que continuam, em movimento de
translação, para o centro e para baixo.
As configurações metálicas percorrem o quadro e sugerem um espaço delimitado
por elas. Há dinamismo e associação de variados sons metálicos. No canto superior
esquerdo, uma alavanca parece sustentar todo este movimento rompante.
A fonte dos sons parece ser o quadrado branco superior direito, com agentes
sonoros metálicos, com diapasão e a nota musical LA, tudo ampliado por uma
caixa-de-ressonância. Tubos verdes, em forma de diapasão, ligam e trazem para o
primeiro plano os instrumentos musicais; concedem-lhes ação, logo vida.
É conhecida a importância dos olhos na pintura de Amadeo. Os olhos do quadro
são pontos vitais de concentração, eles atraem o olhar, interpelam e intimam o
observador, coagem a direção do seu olhar (KANDINSKY, V., 2013: 59)13.
Não há representações de pessoas no quadro, mas há mãos – um braço mecânico
surpreendido a dominar e trespassar o amarelo. Ele evoca o braço do pintor, a ferir o
belo superficial, em busca de um interior oculto. Uma outra mão, mecânica também,

13 «No caso de um indivíduo altamente evoluído, o acesso à alma é de tal modo direto, a alma é tão aberta a
todas as sensações, que qualquer excitação faz reagir instantaneamente o olho – reação que lembra o eco ou
a ressonância de um instrumento de música cujas cordas estimuladas pelo som de um outro instrumento
vibrem em uníssono. Homens com uma sensibilidade assim apurada são como bons violinos com muito uso,
que ao mais pequeno toque vibra intensamente».
44 100 Orpheu Maria Teresa Amado

evoca a paleta do pintor ou a palheta do guitarrista, até uma caixa de fósforos14.


Seja como for, o movimento é o mesmo, ardente, para o interior; a cor vermelha,
misturada com tonalidades metálicas, agride o exterior. E o som é de percussão – ­­­­ ou
por trespassar, ou por tamborinar numa caixa acústica.
O «atelier de pintura» está repleto de telas em processo de experimentação e criação,
de cores, formas, fragmentos e texturas diferentes. Contrasta com a organização
dos três núcleos centrais das guitarras e dos três olhos estruturantes. Sequências
de números e de letras enquadram a composição. Esta organização espacial, por
um lado coesa e por outro, fortuita e de sugestão, assemelha-se à improvisação e à
liberdade sonora e criativa do jazz. Embora haja óbvia presença de guitarras, como
o instrumento musical visualmente dominante, é o som da percussão que inunda o
quadro. Não só dos ferrinhos como das trombetas – ­­ para Kandinsky o amarelo evoca
justamente aquele som.
Do lado direito do quadro há três insetos encarcerados, talvez conservados
dentro do metal. Transmitem vibração, dissonância, mas também o pulsar da vida
primordial. Esta vibração irradiada do quadro não é só dissonância, mas também
contraponto. Amadeo ensaia na pintura o que Scriabin tentou com a sua associação
de tons musicais e de tons coloridos (KANDINSKY, V., 2013: 60).
A profundidade deste quadro vai nascendo da sobreposição. O observador encontra
sempre mais profundidades interiores. Nas camadas primordiais, as cores evocam o
elemento ar, vaporoso. Neste caso, a profundidade é plasticamente e psicologicamente
libertadora. As camadas e as sobreposições pictóricas de Amadeu criam no espaço o
que o jazz ou a música sinfónica moderna tem a notoriedade de criar no tempo.
A inovação, a riqueza e a complexidade desta pintura revelam a força originária de
Amadeo e a angústia criativa no seu processo interior e secreto de procura.
A alma obscura corresponde afinal ao Princípio de Necessidade Interior de Kandinsky.
Obscura enquanto azul, mistério de profundidade infinita de facetas inalcançáveis.

6- Conclusão

Pode dizer-se de Amadeo o que em 1910 Debussy comentou de Stravinsky: um


instintivo génio de cor e ritmo. O músico cria uma nova maneira de compor música
e de a montar. Amadeo segue a mesma via na pintura. Como numa montagem de um
filme, eles cortam as sequências, criam ritmos contrastantes, cortantes e sincopados,

14 Há fósforos colados no canto inferior direito, sobre um pequeno pedaço de madeira e pintados de branco
sujo, quase impercetíveis – aliás, na mesma posição dos incendiários fósforos do quadro Entrada.
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 45

mudanças bruscas em momentos extremos de imensa energia e poder. Nascem assim


dissonâncias dentro da profundidade.
Num curto período de tempo, entre 1912 e 1917, Amadeo passa dum desenho
elegante, de cadência rítmica, harmónica, e pureza de cores, para composições com
temática musical de grande complexidade construtiva e cromática, de forte impacto
visual e sugestão sonora. Dos XX Dessins e do manuscrito iluminado Légende de Saint
Julien de Flaubert até Par/Ímpar 1 2 1, Arabesco dynamico, à Vida dos Instrumentos,
Trou de la Serrure, Brut 300 TSF e O Atelier de Pintura de Gershwin, é um longo
caminho percorrido.
As pinturas que analisamos não são figurativas. A sugestão da música, e de
sonoridades modernas, vem da vibração das cores, associada a linhas e texturas que
criam a fragmentação de formas, em movimentada e reiterada sobreposição de planos.
De grande vitalidade, despertam, uma emoção íntima que ultrapassa e aprofunda o
ver e traz consigo a sugestão do som.
Os instrumentos, símbolos pictóricos e musicais criados pela intencionalidade
poética de Amadeo, dialogam com a alma obscura do seu criador e envolvem-nos
densamente nesse confronto. Com olhos, fragmentação, fissuras e frechas, deixam
penetrar, mas têm autonomia. Também nos observam.
Finalmente, estas três pinturas analisadas revelam como a fragmentação rítmica
das formas geométricas em jogos de cor, corporizados em composições de estrutura
dinâmica e rigorosa, remetem para uma ordem essencial, para uma duração abstrata,
unificadora da pintura e da música.

Bibliografia

1. Obras de Amadeo de Souza-Cardoso


1.1. Desenhos e Pinturas
Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão/Fundação Calouste
Gulbenkian
Sem título [MIL]. 1916. Desenho. Grafite, guache e aguarela sobre papel. 24 x 19,2 cm.
Inv. nº: 92DP1103
Vida dos Instrumentos. 1916. Óleo sobre tela. 70 x 50 cm. Inv. nº: 88P160
Trou de la serrure PARTO DA VIOLA Bon ménage Fraise avant garde. 1917. Óleo
e pochoir sobre óleo e tela, preparação e verniz. Carimbos. 70 x 58 cm. Inv.
nº: 68P10
Sem título [O «atelier de pintura» de Gershwin]. 1917. Óleo e colagens sobre tela e
madeira. 93,5 x 93,5 cm. Inv. nº: 77P 8
46 100 Orpheu Maria Teresa Amado

1.2. Obra Gráfica


XX DESSINS(1983). DOUCET, Jérome (pref.) Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian/Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. (1º ed.
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LA LÉGENDE DE SAINT JULIEN L’HOSPITALIER DE FLAUBERT
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Maria Filomena (ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro de
Arte Moderna José de Azeredo Perdigão.

1.3. Catálogos e Estudos


AMADEO DE SOUZA-CARDOSO (1998). Madrid: Fundación Juan March – ­­
Fundação Calouste Gulbenkian/Centro de Arte Moderna José de Azeredo
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AMADEO DE SOUZA-CARDOSO. DIÁLOGO DE VANGUARDAS (2006).
FREITAS, Helena de (coord.) Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro
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AMADEO DE SOUZA-CARDOSO FOTOBIOGRAFIA. CATÁLOGO RAISONNÉ.
Vol. I (2007). FREITAS, Helena de (coord.), ALFARO, Catarina (texto).
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro de Arte Moderna José de
Azeredo Perdigão, Assírio & Alvim.
AMADEO DE SOUZA-CARDOSO: PINTURA: CATÁLOGO RAISONNÉ.
Vol. II (2008). FREITAS, Helena de (coord.), Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian/Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Assírio &
Alvim.

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SHATTUCK, Roger (1968). The Banquet Years. The Origins of the Avant-Garde in
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A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 47

3. Webgrafia

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Disponível em: <http://www.petruschkaklavierfestival.de/index.asp?level
1=2&level2=2&page=0&pdt=4&lang=2 - id_jealous>. [Consultado em 25
de fevereiro 2015].
Palhaçadas e Coisas Sérias

Nuno Amado
FLUL

Palavras-chave: Orpheu; Palhaçadas; Provincianismo; Côrtes-Rodrigues; Sá-Carneiro.


Resumo: A 19 de Janeiro de 1915, Pessoa confidencia a Côrtes-Rodrigues uma
«incompatibilidade profunda com as criaturas que me cercam». Pelo que é dito de seguida
na mesma carta, é razoável sustentar que as criaturas com as quais se incompatibilizou são
as mesmas criaturas das quais se fez cercar, dois meses depois, para lançar a revista Orpheu.
Se assim é, a «ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e de um
plebeísmo artístico insuportável, de querer épater», que Pessoa associa a tais criaturas e que
confessa a Côrtes-Rodrigues que já não tem, haveria de ser retomada não muito tempo depois.
Ao colaborar em Orpheu, associando-se de novo a «todos quantos fazem arte para vários fins
inferiores», Pessoa cede, portanto, à atitude que descrevera como condizente com a atitude de
um palhaço e da qual se sentia «afastado de achar graça» dois meses antes.

Ao escrever a Armando Côrtes-Rodrigues a 19 de Janeiro de 1915, Pessoa


confidencia uma «incompatibilidade profunda com as criaturas que me cercam»
(PESSOA, F., 1999: 140). Poucos parágrafos antes, explicara que não podia falar com
outro amigo que não Côrtes-Rodrigues porque só ele o compreendia espiritualmente.
Dois meses antes do lançamento da revista Orpheu, Côrtes-Rodrigues parece assim
o amigo mais íntimo de Pessoa. É, além disso, a única criatura, das que «de perto
literariamente [o] cercam», que possui a consciência «da terrível importância, da
Vida, essa consciência que nos impossibilita de fazer arte meramente pela arte, e sem a
consciência de um dever a cumprir para com nós-próprios e para com a humanidade»
(PESSOA, F., 1999: 139).
A crise de incompatibilidade com os outros a que Pessoa se reporta nesta carta,
devida portanto a certas motivações artísticas, arrastava-se desde o início de Setembro
do ano anterior. Aquilo que o preocupava nessa altura era, porém, «a necessidade
de dar ao conjunto da minha orientação, tanto intelectual como ‘existente na vida’,
uma linha metódica e lógica» (PESSOA, F., 1999: 120-121). O que Pessoa diz logo de
seguida faz supor que a indisciplina mental em que consiste a crise de Setembro está
intimamente relacionada com o aparecimento, poucos meses antes, da heteronímia:
«quero disciplinar a minha vida (e, consequentemente, a minha obra) como a um
50 100 Orpheu Nuno Amado

estado anárquico, anárquico pelo próprio excesso de «forças vivas» em acção, conflito
e evolução interconexa e divergente» (PESSOA, F., 1999: 120-121). A ser assim, é
razoável afirmar que se tratam de duas crises diferentes, ainda que uma esteja na
origem da outra: a crise de indisciplina interior motivada por não saber o que fazer
com a heteronímia transformou-se, com a disciplina que a veio corrigir, numa crise
de incompatibilidade com os outros.
Essa correcção parece alcançada, ou perto disso, a 4 de Dezembro, pois Pessoa
fala a Côrtes-Rodrigues no seu «curioso estado de espírito actual» e anuncia «uma,
não menos curiosa, evolução que se tem dado em mim ultimamente» (PESSOA, F.,
1999: 134). É, aliás, possível precisar o dia em que essa evolução teve início. Num
manuscrito datado de 21 de Novembro de 19141, Pessoa diz que tomou «de vez a
decisão de ser Eu, de viver á altura do meu mister», e que reentrou de vez «na posse
plena do meu Genio e na divina consciência da minha Missão» (PESSOA, F., 2009:
117), exactamente algumas das coisas que diria a Côrtes-Rodrigues apenas dois meses
mais tarde. Pouco depois, acrescenta: «um raio hoje deslumbrou-me de lucidez.
Nasci» (PESSOA, F., 2009: 118). No final do manuscrito, de resto, Pessoa lembra-se
de registar a importância de notificar Côrtes-Rodrigues a respeito desta resolução, o
que torna inequívoca a relação entre a mudança que ocorreu naquele dia e o estado de
espírito resoluto que transparece na carta de 19 de Janeiro: «é o C[ôrtes] R[odrigues]
quem, de todos, melhor e mais dentro me comprehende. Diser-lhe isto» (PESSOA, F.,
2009: 119).
A 19 de Janeiro, a crise de que Pessoa fala já «não é de incompatibilidade [consigo]
próprio», como fora antes. Como faz questão de explicar a Côrtes-Rodrigues, «a
minha, gradualmente adquirida, auto-disciplina, tem conseguido unificar dentro
de mim quantos divergentes elementos do meu carácter eram susceptíveis de
harmonização» (PESSOA, F., 1999: 139). A explicação anterior é de tal forma
categórica quanto à evolução de que Pessoa falara anteriormente que é difícil ignorar
a diferença. No início de 1915, o problema de orientação artística que o aparecimento
dos heterónimos tinha criado fora vencido, e Pessoa sabia agora exactamente o que a
esse respeito se lhe impunha.
Em certa medida, a carta de 19 de Janeiro é norteada pela distinção entre actividades
artísticas sinceras e actividades artísticas insinceras: por actividades sinceras entende

1 Este manuscrito tem sido publicado ora como entrada de diário, opção tomada por Richard Zenith em
Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal (2003), ora como parte de um conjunto mais amplo
de textos sobre teoria estética, que é como o publica Jerónimo Pizarro em Sensacionismo e outros Ismos (2009).
Creio, no entanto, que a proximidade àquilo que Pessoa haveria de dizer a Côrtes-Rodrigues na carta de 19 de
Janeiro é flagrante e que tanto o tom, como os termos que Pessoa usa para descrever a sua evolução interior
permite pensar no texto como o ponto de partida, se não mesmo o rascunho, dessa carta.
Palhaçadas e Coisas Sérias 51

todas aquelas que resultam da «consciência cada vez maior da terrível e religiosa
missão que todo o homem de génio recebe de Deus com o seu génio» (PESSOA,
F., 1999: 140); actividades insinceras, inversamente, são todas aquelas que associa
à «ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e de um
plebeísmo artístico insuportável, de querer épater», ou seja, «tudo quanto é futilidade
literária, mera-arte», coisas que gradualmente lhe iam soando «cada vez mais a oco e
repugnante» (PESSOA, F., 1999: 140). Tudo isto aponta para o facto de, alguns meses
antes do lançamento de Orpheu, Pessoa estar inclinado a seguir um rumo diferente
daquele que viria de facto a seguir, com esse lançamento e com tudo o que lhe sucedeu.
A atitude plebeia que associava agora ao grupo de poetas do qual acabaria por
ser o máximo representante leva-o, por exemplo, a perder o entusiasmo inerente «à
ideia do lançamento do Interseccionismo», a enjeitar a publicação do «Manifesto
‘escandaloso’», a perceber o grau de insinceridade que havia em «coisas feitas para
fazer pasmar», em coisas «que não contêm uma fundamental ideia metafísica, isto é,
por onde não passa, ainda que como um vento, uma noção da gravidade e do mistério
da Vida», em tudo aquilo que, em suma, não é «escrito dramaticamente» (PESSOA, F.,
1999: 142), como o é a obra de cada um dos heterónimos. À excepção do que escrevera
nos últimos nove meses em nome de Caeiro, Reis e Campos, Pessoa parece renunciar
a tudo aquilo que de mais importante criara até à altura: «não são sérios os Paúis,
nem seria o Manifesto interseccionista de que uma vez lhe li trechos desconexos»
(PESSOA, F., 1999: 142-143), diz Pessoa a Côrtes-Rodrigues. O paulismo e o seu
sucedâneo, o interseccionismo, duas das vertentes da sua obra sobre as quais fundara
mais expectativas e que, não muito tempo antes, muito animavam a correspondência
com Sá-Carneiro, inserem-se assim na categoria de coisas insinceras de que Pessoa
tenta aqui desculpar-se. Em coisas como essas - remata Pessoa - «a minha atitude
para com o público é a de um palhaço» (PESSOA, F., 1999: 143).
Compare-se novamente o que é dito nesta carta com o que Pessoa escreveu no texto
de 21 de Novembro de 1914 em que descreve o seu renascimento deslumbrante. Tal
como na carta, o que Pessoa considera desprezível, neste texto, é «a idéa do reclame,
e plebêa sociabilização de mim, do Interseccionismo» (PESSOA, F., 2009: 117); tal
como na carta, também no texto a mudança de atitude decorre de estar «de volta da
minha viagem de impressões pelos outros» e de reentrar de vez «na posse plena do
meu Genio e na divina consciência da minha Missão» (PESSOA, F., 2009: 117); tal
como na carta, também no texto é descrita a libertação da influência dos outros e,
por conseguinte, uma recuperação da posse de si: «o ultimo rasto de influencia dos
outros no meu caracter cessou com isto. Recobrei – ao sentir que podia e ia dominar
o desejo intenso e infantil de ‘lançar o interseccionismo’ – a tranquila posse de mim»
(PESSOA, F., 2009: 117).
52 100 Orpheu Nuno Amado

A crise de incompatibilidade com os outros que Pessoa confidencia a 19 de Janeiro


de 1915 resulta, pois, da resolução de uma crise de tipo diferente. Se isso era já bastante
evidente na carta a Côrtes-Rodrigues, neste rascunho ainda o é mais: «As m[inhas]
angustias espirituais continuarão em muitos pontos; mas n’um cessaram, na busca
de mim que, no amago de tudo, me trazia irrequieto porque não me encontrára»
(PESSOA, F., 2009: 118). Mais ainda, é também de certas palhaçadas que, no texto,
Pessoa anuncia distanciar-se: «nada de desafios á plebe, nada de girândolas para
o riso ou a raiva dos inferiores. A superioridade não se mascara de palhaço; é de
renuncia e de silencio que se veste» (PESSOA, F., 2009: 117). Entreter, pasmar,
desafiar, provocar, ou escandalizar o público, de modo a obter efeitos extremos
como o riso ou a raiva, são portanto palhaçadas de que, dada a sua superioridade,
se deve abster.
A distinção que parece interessar a Pessoa é assim a que opõe palhaçadas a
coisas sérias, e é por se sentir «afastado de achar graça» (PESSOA, F., 1999: 143)
a todo o género de palhaçadas que, no fundo, se sente incompatibilizado com os
outros. Os palhaços desta história, por mais surpreendente que pareça a quem se
habituou a ouvir falar de Pessoa essencialmente como um poeta de Orpheu, são
os colegas órficos. Num texto que será contemporâneo da crise psíquica de que
começa a dar conta a Côrtes-Rodrigues em Setembro de 1914, Pessoa exemplifica
o excesso de artificialidade que agora atribuía à estética paúlica justamente através
dos exageros de Guilherme de Santa-Rita. O paulismo é assim uma «intoxicação de
artificialidade», qualquer coisa que consiste em fingir «ser doido e achando graça a
pensar simililoucamente» e que atinge a sua expressão máxima nesse «pobre rapaz
em quem o artifício suprime a falta de originalidade real» (PESSOA, F., 2003: 146).
Parece relativamente fácil, portanto, associar as palhaçadas a que Pessoa se refere a
Santa-Rita. Mais laborioso será associá-las a Sá-Carneiro.
Na carta que escreve a 14 de Maio de 1913, Sá-Carneiro cita a seguinte frase de
Pessoa a propósito da estreiteza da Renascença Portuguesa: «O que é preciso é ter um
pouco de Europa na alma» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 88). Num apontamento, que
com certeza, antecede a carta em que Pessoa o diz a Sá-Carneiro, esta preocupação
aparece melhor explicada:

O que é preciso ter é, além de cultura, uma noção do meio internacional, de não ter a alma
(ainda que obscuramente) limitada pela nacionalidade. Cultura não basta. É preciso ter a
alma na Europa. Escrever ao Sá-Carneiro expondo a nova orientação que é preciso tomar.
(PESSOA, F., 2009: 29)
Palhaçadas e Coisas Sérias 53

Ter ou não ter Europa na alma, eis então o que faz Pessoa balançar. A ideia é
retomada no rascunho de uma carta a Sá-Carneiro que Manuela Parreira da Silva,
com boas razões, situa algures em 19132. Aí, Pessoa apresenta um contraste exemplar
entre a mediocridade de alguns dos mais aclamados escritores portugueses da época
e a escrita do seu interlocutor: «v. escreve europeiamente! V. escreve sem ver a pátria,
e a sua obra, que eu creio genial, esbarra com o provincianismo constante da nossa
atitude. Para nós o universo está entre Mesão e Vila Real de Santo António.» (PESSOA,
F., 1999: 102). Ter Europa na alma, aquilo que faz com que Pessoa, pelo menos a
partir de Maio de 1913, manifestamente se afaste da Renascença e se aproxime de
Sá-Carneiro, parece ser então, em certa medida, fugir a ser provinciano.
A história desta fuga compreende, entre outras coisas, a adesão ao paulismo que
tanta histeria haveria de provocar em Sá-Carneiro, pelo que a mudança de opinião de
Pessoa a respeito da estética paúlica tem de ser um momento-chave de tal história.
Numa carta de dia 20 de Julho de 1914, Sá-Carneiro acusa a recepção de uma carta
na qual Pessoa terá associado o estado de alma do amigo a uma certa artificialidade.
Seja o que for que Pessoa lhe tenha dito, Sá-Carneiro concorda que já não tem estados
de alma, revela que nada sabe quanto à sua «vida artística», mas defende-se dizendo
que «esta mesma artificialização, este mesmo embalsamamento a salva, porque a fixa»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 131). É talvez possível especular, interpretando as palavras
com que se defende, que Pessoa se tenha queixado da artificialidade de Sá-Carneiro, e
que este tenha sentido necessidade de explicar a utilidade artística dessa artificialidade.
Mais ainda, é talvez possível especular, principalmente porque Sá-Carneiro emprega
o termo, que Pessoa tenha associado essa artificialidade precisamente ao paulismo:
«era desnecessário repetir-me a sua sinceridade dentro dela [a carta recebida], por
causa da literatura com que a ungiu. Eu nunca duvido dela em você – e foi-me mesmo
deveras grato esse paulismo intermediário...» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 131). O que
estou, de algum modo, a insinuar é que Pessoa terá sugerido que a atitude paúlica, a
que atribuiria agora uma artificialidade indesejada, deveria ser encarada como uma
atitude meramente intermediária. Assim se explica também, parece-me, o termo que
Sá-Carneiro emprega, algumas linhas depois, ao recomendar que Pessoa enviasse
uma colaboração para a revista Labareda, que surgira no Porto no início de Junho:
«Você é claro que faz muito bem em mandar para lá ultrapaulismo, mas bem ultra!»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 132).

2 Percebe-se, por aquilo que Pessoa diz no rascunho da carta, que Sá-Carneiro fizera publicar um artigo que
poderia valer-lhe algumas represálias. Segundo Manuela Parreira da Silva, é possível que Pessoa se estivesse
a referir ao artigo «O Teatro-Arte», publicado no jornal O Rebate, a 28 de Novembro de 1913, no qual
Sá-Carneiro «critica fortemente alguns dos visados» (PESSOA, F., 1999: 423) por Pessoa neste rascunho,
nomeadamente João de Barros, Joaquim Manso e Júlio Dantas.
54 100 Orpheu Nuno Amado

Pessoa haveria de documentar a descoberta de «um novo género de paúlismo»


(PESSOA, F., 1999: 124) numa carta a Côrtes-Rodrigues de 4 de Outubro desse ano.
Não é inverosímil que a passagem de um paulismo velho e artificial a um novo sem
artificialidade se relacione com o aparecimento dos heterónimos poucos meses antes
e, sobretudo, com a sinceridade com que haveria de caracterizá-los a Côrtes-Rodrigues
a 19 de Janeiro de 1915. Parece confirmar esta relação, aliás, o facto de Sá-Carneiro,
ainda na mesma carta de 20 de Julho de 1914, considerar curioso o que Pessoa lhe
dissera «sobre o seu desdobramento em várias personagens – e o sentir-se mais eles,
às vezes, do que você próprio» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 132). Sentir-se mais os
heterónimos do que ele próprio é outra maneira de dizer que é mais sincera a obra
de Caeiro, Reis e Campos do que a sua, e era para isso que Pessoa, já nessa altura,
orientava a sua atenção.
A carta de Pessoa a que Sá-Carneiro responde a 20 de Julho é uma resposta à carta
que Sá-Carneiro enviara de Paris no dia 13, a qual, por sua vez, é uma resposta a uma
carta enviada por Pessoa no dia 10. Serão dessa altura os primeiros sinais da crise de
que falará preferencialmente a Côrtes-Rodrigues a partir de Setembro. Pelas palavras
de Sá-Carneiro na carta de dia 13, é perceptível que Pessoa se considerava cada vez
mais exilado da capacidade de sentir, o que, em seu entender, não inviabilizava que
não possuísse outra capacidade, a de saber sentir:

Desdobre-se você como se desdobrar, sinta-de-fora a como quiser, o certo é que quem pode
escrever essas páginas, se não sente, sabe genialmente sentir, aquilo de que me confessa mais
e mais cada dia se exilar. Saber sentir e sentir, meu Amigo, afigura-se-me qualquer coisa de
muito próximo. (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 123)

Parece assim mais ou menos claro que a possibilidade de desdobramento que os


heterónimos garantiam a Pessoa introduzira um problema de expressão. A relação
entre as duas coisas é ainda mais evidente poucas linhas depois: «quer ver, eu encontro
uma explicação fácil para o facto de justamente após o caso Álvaro de Campos você se
sentir mais afastado do mundo» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 123). A explicação que
Sá-Carneiro dá para a sensação de exilado de Pessoa é extraordinária não só porque
apresenta uma distinção claríssima entre a atitude artística dos dois poetas como por
basear essa distinção, ainda que involuntariamente, no seu próprio provincianismo:

Oiça: Eu amo incomparavelmente mais Paris, eu vejo-o bem mais nitidamente e


compreendo-o em bem maior lucidez longe dele, por Lisboa, do que aqui, nos seus
boulevards onde até, confesso-lhe meu Amigo, por vezes eu lhe sou infiel e, em vislumbre,
me lembro até da sua desnecessidade para a minha alma, para a minha emoção... Assim
Palhaçadas e Coisas Sérias 55

em você, meu Amigo, é isso só: não sente já ânsia de conhecer cidades, Europa, progresso,
porque tudo isso você viajou, hiperviajou, hiperconhece, hiperpossui ao escrever a sua
admirável obra. (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 123-124)

O provincianismo que identifico nestas palavras de Sá-Carneiro não é, a bem dizer,


exactamente o mesmo que Pessoa atribuíra aos saudosistas, em 1913, mas o síndroma a
que se poderia reduzir «o mal superior português» (PESSOA, F., 2000: 371), de acordo
com o famoso texto sobre provincianismo publicado a 12 de Agosto de 1928 n’O
Notícias Ilustrado. Se, em 1913, Pessoa empregava o termo para distinguir aqueles que
não viam para lá das fronteiras nacionais daqueles que, como Sá-Carneiro, escreviam
«europeiamente» (PESSOA, F., 1999: 102), em 1928 haveria de empregá-lo a respeito
de um comportamento diferente. A caracterização do provincianismo de Sá-Carneiro
em «O Provincianismo Português» é de tal modo parecida com o que acabei de citar
da carta de 13 de Julho que me parece razoável sugerir que é ao verificar que, afinal, o
amigo não era menos provinciano do que os outros que se origina a incompatibilidade
de que Pessoa se queixará meses mais tarde. Vejam-se as semelhanças:

Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes


meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é
parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas.
Recordo-me de que uma vez, nos tempos do Orpheu, disse a Mário de Sá-Carneiro: “Você é
europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa você é vítima da sua educação portuguesa.
Você admira Paris, admira as grandes cidades. Se você tivesse sido educado no estrangeiro,
e sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes cidades.
Estavam todas dentro de si”. (PESSOA, F., 2000: 371)

Na carta de 13 de Julho, Sá-Carneiro tenta dizer a Pessoa que o exílio em que se


encontra é consequência do desdobramento heteronímico que lhe permitiu superar
interiormente uma ânsia que ele, Sá-Carneiro, só podia superar estando fisicamente
em Paris. É como se, de certo modo, Pessoa tivesse vencido, através da literatura, a
necessidade de ser parisiense que Sá-Carneiro só podia vencer vivendo em Paris. As
duas formas de superação não são, todavia, igualmente produtivas. A ânsia de Paris, que
Sá-Carneiro supera indo para Paris, é a causa primeira da sua obra, pelo que superá-la
é contraproducente. Assim se explica que, pouco depois, diga que tudo acabou «após a
minha chegada aqui», que se sinta «o embalsamemento de mim próprio», que «estados
de alma, ânsias, tristezas, ideias, grandes torturas de que saíam os meus livros tudo isso
acabou» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 124). Sem a ânsia de Paris, Sá-Carneiro deixa de ser
capaz de sentir suficientemente aquilo por que ansiava e deixa de ser capaz de escrever.
56 100 Orpheu Nuno Amado

Por saber sentir, Pessoa «hiperviajou, hiperconheceu, hiperpossui» (SÁ-CARNEIRO,


M., 2001: 124) o que Sá-Carneiro, ao viajar, ao conhecer e ao possuir, deixou de poder
sentir. Nos termos da acusação expressa em «O Provincianismo Português», admirar
Paris era o que tornava possível a Sá-Carneiro senti-lo suficientemente. A partir do
momento em que obteve o que ansiava e se tornou, à sua maneira, parisiense, deixou
de admirar Paris porque, como Pessoa explica no texto, «um parisiense não admira Paris;
gosta de Paris» (PESSOA, F., 2000: 371). Dizendo de outro modo, o que Sá-Carneiro
demonstra na carta de 13 de Julho de 1914, ao explicar que já não tem estados de alma
aos quais possa dar expressão artística porque já não pode senão gostar de Paris, é que
a sua actividade de poeta é intrinsecamente provinciana.
Em meados de Julho de 1914, Pessoa percebia então que ter demasiada Europa
na alma podia conduzir ao mesmo provincianismo a que a falta dela conduzia.
Conquanto não tivesse o entusiasmo de Guilherme de Santa-Rita e não fosse, como
Raul Leal, «um pouco Orfeu de mais» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 234), Sá-Carneiro
sofria do mal comum a todos eles de não saber escrever senão sobre aquilo que deveras
sentia. A sua obra dependia da sua «admiração pelos grandes meios» (PESSOA, F.,
2000: 371) e, sem essa admiração, não era capaz de exprimir-se. Este provincianismo
expressivo parece assim um mal comum a todos os que, com ou sem Europa na alma,
expressam o que sentem, e só pode escapar-lhe quem, além de sentir, souber sentir.
O principal aspecto do provincianismo a que Pessoa se reporta em «O
Provincianismo Português» não é, aliás, outro que não o seu aspecto expressivo: «é na
incapacidade de ironia que reside o traço mais profundo do provincianismo mental»
(PESSOA, F., 2000: 372). Entendendo por ironia «o dizer uma coisa para dizer o
contrário», argumenta Pessoa que ela exige «um domínio absoluto da expressão» e
ainda «aquilo a que os ingleses chamam ‘detachment’ – o poder de afastar-se de si
mesmo, de dividir-se em dois» ou, «em outras palavras, o não se ser provinciano»
(PESSOA, F., 2000: 373). Assim, é provinciano todo aquele que, não sendo capaz
de desdobrar-se, consegue exprimir apenas aquilo que exactamente sente ou pensa.
Na carta de 13 de Julho de 1914, Sá-Carneiro revelara tanto essa incapacidade de
desdobramento como a incapacidade para exprimir outra coisa que não aquilo
que deveras admirava. A coincidência entre a inclinação para o provincianismo e
a incapacidade para dar expressão a emoções que não se têm é ainda mais flagrante
no final de «O Caso Mental Português», um texto publicado na revista Fama a 30 de
Novembro de 1932:

O mesmo provincianismo se nota na esfera da emoção. A pobreza, a monotonia da emoção


nos nossos homens de talento literário e artístico, salta ao coração e confrange a inteligência.
Emoção viva, sim, como aliás era de esperar, mas sempre a mesma, sempre simples, sempre
Palhaçadas e Coisas Sérias 57

simples emoção, sem auxílio crítico da inteligência ou da cultura. A ironia emotiva, a


subtileza passional, a contradição no sentimento – não as encontrareis em nenhum dos
nossos poetas emotivos, e são quase todos emotivos. Escrevem, em matéria do que sentem,
como escreveria o pai Adão, se tivesse dado à humanidade, além do mau exemplo já sabido,
o, ainda pior, de escrever. (PESSOA, F., 2000: 440)

O provincianismo dos poetas portugueses, de acordo com este exame, provém


da incapacidade, comum a todos eles, de escrever sobre outra coisa que não sobre
as emoções que têm, da incapacidade, na esfera da emoções, para ironizarem. A
habilidade para a ironia a que Pessoa atribui tanta importância em «O Provincianismo
Português» e que aqui volta a servir de contraste ao provincianismo não é mais do que
aquilo a que se convencionou chamar «fingimento» e que, ao contrário do que se
poderia talvez supor, corresponde ao que Pessoa, desde 1915, chama «sinceridade».
É essa habilidade dramática que o aparecimento dos heterónimos permite a Pessoa
desenvolver, e é o gradual desenvolvimento dela, em contraste com a artificialidade
que consiste em não filtrar racionalmente aquilo que provém das emoções, que o irá
afastar de Sá-Carneiro e restante companhia órfica.
Ainda no final de «O Caso Mental Português», Pessoa completa a sua análise aos
poetas portugueses dando a entender, precisamente, que é por não padecer desse
provincianismo expressivo que se distingue de todos eles. Percebendo que um poema
é «uma carne de emoção cobrindo um esqueleto de raciocínio», Pessoa não incorre
no erro de todos esses poetas, que «escrevem ou artistam ao sabor da chamada
‘inspiração’» (PESSOA, F., 2000: 440). Precavido contra isso, não peca, portanto, em
não submeter essa inspiração «à transmutação alquímica da consciência», por não
transformar emoções abstractas, através de «uma aplicação centrípeta da vontade»
(PESSOA, F., 2000: 440), numa coisa diferente.
De acordo com o argumento central de «O Caso Mental Português», há três formas
de reagir à artificialidade em que consiste o progresso: os que detestam o progresso são
como campónios; os que o amam são como provincianos; e os que lhe ficam indiferentes
são como citadinos. Nos termos deste texto, não ter Europa na alma, aquilo que
caracteriza a geração saudosista, é então a atitude do campónio e não a do provinciano.
Posto assim, o mal que resulta de ter demasiada Europa na alma não é exactamente o
mesmo que o mal que resulta de não tê-la, como o fazia supor o termo empregue por
Pessoa na carta de 1913 a Sá-Carneiro que motivou a minha insinuação: «V. escreve sem
ver a pátria e a sua obra, que eu creio genial, esbarra com o provincianismo constante
da nossa atitude» (PESSOA, F., 1999: 102). Usando, pois, a distinção ensaiada no texto
de 1932, Pessoa afastara-se dos campónios da Renascença ao aproximar-se, em 1913, de
Sá-Carneiro, mas afastar-se-ia também, no final de 1914, dos provincianos de Orpheu.
58 100 Orpheu Nuno Amado

Segundo este argumento, a crise psíquica que Pessoa confessa a Côrtes-Rodrigues


no início de Setembro de 1914 e que, como tentei mostrar, se transformaria alguns
meses depois numa crise de natureza diferente, é motivada pela descoberta de que
não era tão civilizado quanto se supunha. Como o demonstra o último parágrafo
de «O Provincianismo Português», é precisamente dessa suposição que se alimenta
o provincianismo. O esforço de fugir a ser campónio, encetado a partir de 1913,
trouxera Pessoa, afinal, apenas a ser provinciano:

Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo


vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos
civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na
consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que
está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos
que sonhamos. (PESSOA, F., 2000: 373)

Em Julho de 1914, Pessoa começa, pois, a adquirir consciência do provincianismo


de que padecia; ao saber-se um doido entre doidos, deixa então de ser doido. Mais do
que um período de crise, como o sugere a correspondência com Côrtes-Rodrigues,
o segundo semestre de 1914 foi, portanto, um período de convalescença.
A 21 de Novembro de 1914, data do texto com o qual fui comparando a carta
de 19 de Janeiro de 1915 a Côrtes-Rodrigues, a convalescença chegara ao fim e
estava curado. Nessa altura, já não estava apenas «perto de acordar» (PPV 376);
de tal modo acordava que era como se nascesse: «um raio hoje deslumbrou-me
de lucidez. Nasci» (PESSOA, F., 2009: 117). Uma vez que, em «O Caso Mental
Português», Pessoa compara o provinciano a uma criança por ser, como ela, «um
espírito desperto, mas incompletamente desperto» (PESSOA, F., 2000: 438), é
admissível que, a 21 de Novembro, depois de alguns meses de convalescença, o seu
espírito despertasse por completo e se desviasse para sempre do provincianismo a
que fora conduzido desde que incautamente se desviara do grupo de campónios da
Renascença Portuguesa. No mesmo texto de 21 de Novembro, de resto, esse desvio
é tão necessário que se impõe um regresso a qualquer coisa associada à Renascença:
«Cessaram as grotescas vontades de erigir uma Europa; voltou a mim o desejo de
auxiliar e colaborar com a Renascença, porque para o anarquismo intelectual, social
em mim o caminho é aquelle. De alli é que se pode agir sobre a Pátria» (PESSOA,
F., 2009: 118).
O argumento que fui ensaiando levanta um problema. Se, no final de 1914, Pessoa
estava decidido a enveredar por um caminho distinto daquele que tinha percorrido
desde que se aproximara de Sá-Carneiro, como é que se explica o aparecimento,
Palhaçadas e Coisas Sérias 59

apenas alguns meses mais tarde, de Orpheu? Por outras palavras, para que servem
palhaçadas a que se deixou de achar graça? A carta de 19 de Janeiro de 1915 a
Côrtes-Rodrigues é, a esse respeito, mais uma vez esclarecedora:

Será talvez útil – penso – lançar essa corrente como corrente, mas não com fins meramente
artísticos, mas, pensando esse acto a fundo, como uma série de ideias que urge atirar para
a publicidade para que possam agir sobre o psiquismo nacional, que precisa trabalhado
e percorrido em todas as direcções por novas correntes de ideias e emoções que nos
arranquem à nossa estagnação. (PESSOA, F., 1999: 141)

Admitindo que as palhaçadas de que Pessoa fala a Côrtes-Rodrigues correspondem,


em larga medida, às manifestações artísticas de Orpheu, a revista seria importante, na
perspectiva de Pessoa, para preparar o público, arrancando-o da estagnação mental
em que se encontrava, para coisas mais sérias. De certo modo, é talvez possível dizer
que Orpheu, roubando as palavras de um dos poemas mais famosos de Pessoa, não foi
mais do que «um terraço / sobre outra cousa ainda», sendo que «essa cousa» sobre a
qual esse terraço foi edificado «é que é linda» (PESSOA, F., 1998: 95).

Bibliografia Final

PESSOA, Fernando (1998). Ficções do Interlúdio: 1914-1935 (ed. Fernando Cabral


Martins). Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (1999). Correspondência: 1905-1922 (ed. Manuela Parreira da
Silva). Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2000). Crítica: ensaios, artigos e entrevistas (ed. Fernando
Cabral Martins). Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2003). Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão
Pessoal (ed. Richard Zenith). Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2009). Sensacionismo e outros Ismos (ed. Jerónimo Pizarro).
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (2001). Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando
Pessoa (ed. Manuela Parreira da Silva). Lisboa: Assírio & Alvim.
Orpheu na PO.EX:
A tradição em movimento

André Luiz do Amaral


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Campus de São José do Rio Preto

Palavras-chave: Intertextualidade; Tradição; Revistas Literárias; Poesia Experimental; Orpheu.


Resumo: Herberto Helder afirma, na introdução de Poesia Experimental I, que a “tradição é um
movimento” constantemente rearticulado pela experimentação da linguagem. Por isso mesmo,
é na linguagem que acontece o encontro de dois movimentos de vanguarda: Orpheu torna-se
fundamental para o Experimentalismo dos anos 60 porque inaugura as principais inovações
na moderna poesia portuguesa, da medida do verso ao rigor estrutural. A proposta desta
comunicação é, portanto, realizar uma análise das influências explícitas e implícitas exercidas
por Orpheu nos dois números de Poesia Experimental (PO.EX), publicados, respectivamente,
em 1964 e 1966. Neles, Ângelo Lima recebe lugar de destaque, mas é Fernando Pessoa,
ortônimo e heterônimos, quem assume o papel de oráculo dos poetas experimentais. Em cada
um dos textos aqui referidos, o legado de Orpheu é compreendido através de releituras críticas,
tensivas e plagiotrópicas, isto é, por meio de uma operação tradutória da tradição.

Lançado em 1964, às vésperas do cinquentenário de Orpheu, Poesia experimental:


1º Caderno Antológico exibia algumas das marcas distintivas do Experimentalismo,
dentre elas o intenso diálogo com a tradição como fundamento da criação literária,
conforme a “Introdução” assinada por Herberto Helder:

Porque a tradição é um movimento. Em princípio, não existe nenhum trabalho criativo que
não seja experimental, nesse sentido de que ele supõe vigilância sobre o desgaste dos meios
que utiliza e que procura constantemente recarregar de capacidade de exercício. A linguagem
encontra-se sempre ameaçada pelos perigos da inadequação e da invalidez. É algo que, no seu
uso, se gasta e refaz, se perde e ajusta, se organiza, desorganiza e reorganiza – se experimenta.
Como diria um poeta, essa é a própria lição das coisas (HELDER, H., 1964: 6).

Para pôr em prática a preconizada reatualização da tradição, Poesia Experimental I


organiza uma antologia fragmentária, que pretende congregar os poetas contemporâneos
ligados ao experimentalismo e aqueles que formam seu paideuma. A revista apresenta,
62 100 Orpheu André Luiz do Amaral

na primeira seção, textos visuais de António Aragão, poemas diversos de António


Barahona da Fonseca e António Ramos Rosa, além de criações de E. M. de Melo e Castro,
Herberto Helder e Salette Tavares. Na segunda seção, denominada “Antologia”, estão
os mais diferentes poetas e poemas: Camões, com “Os chamados disparates da Índia”;
Ângelo de Lima, com “Eddora Addio… - Mia Soave!”; Mário Cesariny de Vasconcelos,
com “Ditirambo”; Emilio Villa, com “Carta para Ruggero Jacobbi” e, finalmente, o
poeta e místico barroco alemão Quirinus Kuhlman, em tradução de António Ramos
Rosa. Outro dado de interesse é a data de publicação, inscrita sob cada um dos poemas.
Com tal ajuntamento incomum, os cadernos visam “reunir experiências portuguesas e
algumas estrangeiras em curso”, mas “também exemplificar, com o passado, essa mesma
alertada consciência da evolução das formas” (HELDER, H., 1964: 6), tendência que
persiste no segundo caderno, publicado em 1966.
Poesia Experimental II conta com textos de António Aragão, António Barahona da
Fonseca, Edgar Braga, Ian Hamilton Finlay, Emilio Villa, Mario Diacono, Mike Weaver,
Henri Chopin, Haroldo de Campos, Ana Hatherly, Herberto Helder, Luiza Neto Jorge,
José-Alberto Marques, E. M. de Melo e Castro, Álvaro Neto, Salette Tavares, Pedro
Xisto e Jorge Peixinho. Restrita a poetas contemporâneos enquanto mantém o caráter
internacional, neste segundo número a revista prescinde da seção antológica, isto
porque a presença dos poetas tradicionais está já disseminada nos textos atuais, os quais
entrelaçam influências barrocas, classicistas e modernistas, num gesto plagiotrópico que
se define, de acordo com Haroldo de Campos, como “tradução da tradição, em sentido
não necessariamente retilíneo” (CAMPOS, H., 1997: 48). Nos dois números da PO.EX
essa mecânica tradutória se fortalece sobre os rasgos da tradição mais adequados às
potencialidades de experimentação da linguagem e historicamente mais significativos:
Camões e os poetas d’Orpheu. Camões é glosado em vários textos, com destaque para
“A máquina de emaranhar paisagens”, de Herberto Helder, que fragmenta trechos de
do Canto I dos Lusíadas, misturados a referências bíblicas e outros versos camonianos
esparsos. É também Camões quem abre a “Antologia” do primeiro número e sobre seus
motes Melo e Castro e Ana Hatherly realizariam, mais tarde, diversas experimentações,
como demonstrou Maria dos Prazeres Gomes em Outrora Agora: relações dialógicas
na poesia portuguesa de invenção (GOMES, M., 1993: 34-94)1. Já as influências de
Orpheu são menos evidentes e merecem considerações mais detalhadas2, a começar

1 Veja-se, também, o ensaio de Rui Torres (2006).


2 No importante livro Pessoa e a moderna poesia portuguesa – do “Orpheu” a 1960, Fernando J. B. Martinho
explicita a reverberação de Orpheu na obra individual de poetas experimentais como Ana Hatherly, E. M. de
Melo e Castro e Salette Tavares (MARTINHO, F. J. B., 1983: 143-145).. Nossa proposta, entretanto, é diferente
daquela, pois nosso enfoque não está nas criações individuais desses ou de outros poetas, mas especificamente
na maneira como essas criações se organizam nos dois números da PO.EX.
Orpheu na PO.EX: A tradição em movimento 63

pela presença do poema “Eddora Addio… - Mia Soave!”, de Ângelo de Lima,


logo depois de Camões na seção antológica do primeiro caderno. Publicado
originalmente no segundo número de Orpheu, o poema é dedicado “aos meus
amigos d‘Orpheu” e, abaixo dele, consta a data de 1915. Sobre este poema escreve
E. M. de Melo e Castro:

No caso de Ângelo de Lima, o uso inusitado de maiúsculas, a aparente desarticulação


sintática, a inovação vocabular, a pontuação criadora, a indeterminação semântica,
constituem características que, pela sua importância, […] não podem ser criticamente
imputadas à doença mental de que sofria o seu autor.
A importância dada à pontuação confere-lhe mesmo a categoria de um código expressional
diferenciado e autônomo, que no poema se sintetiza com o código vocabular e imagético.
O uso das maiúsculas, o próprio poeta o explica pela necessidade e importância que as
imagens e palavras vão assumindo no momento da escrita. A escrita é pois visualmente
representativa da emoção criadora (MELO E CASTRO, E. M., 1973: 54).

Se no primeiro caderno a referência é direta, com a reprodução de um dos textos mais


conhecidos do autor, no segundo caderno o acróstico-colagem de António Barahona
da Fonseca se encarrega da menção: “A//Ângelo de Lima espreita no silvado/ está
longo de corpo e inteligência/ o meu rei”. O tom de reverência não é casual, mas
programático, à medida que Ângelo de Lima é identificado como experimental em
sentido amplo pelo grupo que se mobiliza ao redor da revista. Talvez isso se deva à
substituição, no poema, da “coerência semântica” pela “coerência da matéria fônica
dos versos” (ROCHA, C., 2010: 403), notadamente uma das características principais
do Experimentalismo.
Não obstante o papel destacado de Ângelo de Lima, é Fernando Pessoa, ortônimo
e heterônimos, quem assume a função oracular para os poetas da PO.EX. São
detectatáveis elementos da poesia de Álvaro de Campos, por exemplo, em “Eros
Frenético”, de Ana Hatherly, da erotização das máquinas ao ritmo acelerado da
linguagem. Hatherly, neste mesmo período, encetava tentativas de aproximação a
Pessoa, como no poema “A Chuva oblíqua é um convite à inclinação do teu ombro”,
que à primeira vista guarda semelhanças apenas no título com o poema de Pessoa
publicado no segundo número de Orpheu, ou ainda, segundo a autora, “a alusão a
Pessoa no título é no poema ultrapassada, deliberadamente frustrando as expectativas
de uma glosa ao dar-se preferência à realidade da máquina sobreposta à realidade
humana” (HATHERLY, A., 2001: 16). Uma leitura atenta, contudo, revela pontos
de inflexão entre o texto de Orpheu e sua recriação: oposições de imagens, o jogo
com substantivos abstratos e estáticos, simultaneidade dos acontecimentos, etc.
64 100 Orpheu André Luiz do Amaral

(GAGLIARDI, C., 2010: 157-160). Noutro texto, Anacrusa – 68 sonhos, revela-se,


simbolicamente, o papel que Pessoa exerce sobre Hatherly e sua geração:

12/9/70
Estou em casa de Fernando Pessoa com A. Digo: Fernando Pessoa já morreu. A. diz: não,
vais ver. Fernando Pessoa aparece: magro, com óculos, vestindo um fato cinzento. A.
apresenta-me: não sei se conhece… Conheço sim, diz Fernando Pessoa, já ouvi falar muito.
Fita-me com uma intensidade quase insuportável. Fala comigo um pouco e depois diz: Sim,
disseram-me que você era muito intelectual – e rindo – imagine o que isso pode significar
para mim… Ajoelho junto dele e beijo-lhe as mãos. Então ele projecta-se sobre mim como
se fosse uma sombra ou uma nuvem (HATHERLY, A., 1982: 28).

O tema é retomado num ensaio crítico:

Ora, Fernando Pessoa é, por assim dizer, a ponta brilhante do enorme icebergue que é a poesia
portuguesa do século XX – icebergue por ser uma espécie de montanha semi-submersa de
poetas ilustres que, salvo raríssimas excepções, permanece ignorada e por isso urge divulgar.
Com efeito, nenhum poeta (ou artista) nasce no vácuo […]. Isto é: há sempre uma herança,
um suporte, seja ele conscientemente assumido ou não (HATHERLY, A., 1995: 175).

Assim, ora como sombra, numa atitude persecutória infinita, ora deslocada para
a esfera celestial; ora assumida ora denegada, a presença de Pessoa e seus colegas
d’Orpheu exerce evidente fascínio sobre Hatherly e seus colegas do Experimentalismo,
basta ver o depoimento dela na edição especial da revista Colóquio/Letras, por ocasião
do aniversário de Orpheu, em 1975:

Na literatura portuguesa moderna quase tudo o que não foi de vanguarda foi esse
sentimentalismo. Basta compararmos o Orpheu com a Presença ou o Surrealismo com
a Poesia Experimental com outras tendências suas contemporâneas para o verificarmos.
A sessenta anos de distância, o significado histórico do Orpheu é maximamente o de
ter sido um movimento de vanguarda. É assim que ele faz parte de nossa experiência
contemporânea. A sua sobrevivência é a sua permanência na nossa memória antológica
onde tudo se torna contemporâneo. Mas, se fosse necessário falar da influência directa
das obras que escreveram os poetas dominantes do Orpheu, eu diria que quando, numa
determinada zona da criatividade, se atinge com uma obra ou um grupo de obras uma
realização inultrapassável dentro do seu próprio espaço, a partir daí todas as verdadeiras
tentativas criadoras se voltam sempre para novos objectivos, novos sentidos. Essa é a sua
máxima competência criadora (HATHERLY, A., 1975: 8).
Orpheu na PO.EX: A tradição em movimento 65

Aqueles a quem ela se refere como os “poetas dominantes do Orpheu” são os que
mais encontram lugar na sua obra: Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Sá-Carneiro
e Almada Negreiros. São eles, aliás, que aparecem fundidos em “Algarismos Alfinete”,
de Saltette Tavares, no segundo caderno da PO.EX:

Figura 1. “Algarismo Alfinete”. Fragmento

Jogos como “altemipétaloAlvaroAlberto”; “alma alfinete”; “Alvarral Alvarral”;


“Almagiste aljofar”; “Alvissaras Almirante”, põem em movimento a tradição d’Orpheu,
traduzindo-a numa só imagem e a profusão numérica que acompanha os anagramas
faz lembrar “Manucure”, de Mario de Sá-Carneiro: “E no Ar eis que se cravam moldes
de algarismos/ Assunção da Beleza Numérica!” (MARTINS, F., 2008: 102). Outro
poema de Salette Tavares em que ecoa a voz d’Orpheu é “Partitura do Maquinim”,
publicado em 1965 na coletânea Visopoemas, de que faziam parte os mesmos poetas
experimentais: “Eu visto o que vesti ao manequim/ sou poeta que mente o que sente/
e de só fico contente quando visto/ aquilo que se ri atrás de mim./ / - Manequim do
meu amor/ como te vejo/ todo de cera e sedas emprestadas/ em meu desejo sou eu
que te manejo/ em não, em flor/ em tempestade e nadas” (TAVARES, S., 1979: 74). O
intertexto com “Manucure” se repete em “A primeira pessoa do singular do presente
do indicativo do verbo reflexo encontrar-se”, de Luiza Neto Jorge, publicado no
segundo caderno da PO.EX.:
66 100 Orpheu André Luiz do Amaral

Figura 2. “A primeira pessoa do singular do presente

do indicativo do verbo reflexo encontrar-se”.

Fragmento

De resto, há vestígios aqui e ali de um verso de Álvaro de Campos ou de um modo


de dizer que lembre o de Almada Negreiros. Há, também, uma série de outros poetas
do mesmo período que foram diretamente influenciados pela tradição de Orpheu
e, embora experimentais, não participaram dos cadernos da PO.EX, como Alberto
Pimenta, por exemplo. Isto porque Orpheu é uma linha divisória, o marco de algo novo
em relação à linguagem, de tal modo que as vanguardas posteriores provavelmente
não tivessem existido sem a afronta inaugural dos poetas órficos.
Cabe ressaltar, contudo, que a porção d’Orpheu que permanece na PO.EX. não
é aquela de viés exclusivamente futurista, pelo menos ideologicamente. Para os
poetas-críticos do Experimentalismo, Ana Hatherly e Melo e Castro, é importante
notar a independência que a revista publicada em 1915 adquiriu no curso do tempo.
Segundo ela, depois do segundo número, “Orpheu vai seguir a sua carreira – aliás
curta – independentemente do Futurismo, com uma direcção própria, apesar das
influências que o Movimento inegavelmente teve sobre as principais personalidades
do modernismo Português” (HATHERLY, A., 1979: 70). Segundo ele, a partir de
Orpheu Pessoa se torna poeta-chave para a compreensão da poesia portuguesa e,
obviamente, como uma espécie de oráculo do experimentalismo, mesmo quando
ausente ou recusado, pelo que a própria noção de Modernidade e de literatura em
Portugal depende dele, pois “com Fernando Pessoa o poema em português passa a não
descrever, não imitar e a não contar uma anedota. O poema É e mais nada. Contém
e é a sua própria significação: Texto” (MELO E CASTRO, E. M., 1973: 45). Logo,
é da perspectiva da criação poética, do uso da linguagem, da invenção e inovação
textual que a PO.EX. se une ao Orpheu em compasso sincrônico, plagiotropicamente,
revitalizando a tradição que cria para si.
Orpheu na PO.EX: A tradição em movimento 67

Afinal, é como se Orpheu fosse um experimentalismo avant la lettre, abortado pelo


tempo e tardiamente reencarnado. É como se os poetas experimentais dissessem:
“Quanto ao mais, nada mais. Cá estamos sempre. Orpheu acabou. Orpheu continua”
(PESSOA, F., 1980: 227).

Bibliografia

Bibliografia Ativa
ARAGÃO, António; HELDER, Herberto (org.) (1964). Poesia Experimental: 1º
caderno antológico. Lisboa: A. Aragão. http://www.po-ex.net/evaluation/
index.html [05.03.2015].
ARAGÃO, António; HELDER, Herberto; MELO E CASTRO, E. M. de (org.)
(1966). Poesia Experimental: 2º caderno antológico. Lisboa: A. Aragão. http://
www.po-ex.net/evaluation/index.html [05.03.2015].
HATHERLY, Ana (1975). “O significado histórico do Orpheu (1915-1975)” In:
Revista Colóquio/Letras. Inquérito, n.º 26, jul., p. 7-8.
HATHERLY, Ana (1979). O espaço crítico: do simbolismo à vanguarda. Lisboa:
Caminho.
HATHERLY, Ana (1982). Anacrusa: 68 sonhos. Lisboa: & etc e tal.
HATHERLY, Ana (1995). A casa das musas. Lisboa: Estampa.
HATHERLY, Ana (2001). Um calculador de improbabilidades. 1ª ed. Lisboa:
Quimera.
MARTINS, Fernando Cabral (org.) (1989). Orpheu: edição facsimilada. Lisboa:
Contexto.
PESSOA, Fernando (1980). Textos de crítica e de intervenção. Lisboa: Ática.
TAVARAES, Salette (1979). “Maquinin” In: MENÉRES, M. Alberta; MELO E
CASTRO, E. M. de. Antologia da poesia portuguesa: 1940-1977. 2º volume.
Lisboa: Moraes, p. 74.
VISOPOEMAS - catálogo da exposição (1965). Lisboa: [s.n.]. Galeria Divulgação,
Lisboa. http://www.po-ex.net/evaluation/index.html [05.03.2015].

Bibliografia passiva
CAMPOS, Haroldo de (1997). O arco-íris branco. Ensaios de Literatura e Cultura.
Rio de Janeiro: Imago.
GAGLIARDI, Caio (2010). “Chuva oblíqua” In: MARTINS, Fernando Cabral
(coord). Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português. São
Paulo: Leya, p. 157-160.
68 100 Orpheu André Luiz do Amaral

GOMES, Maria dos Prazeres (1993). Outrora Agora: relações dialógicas na poesia
portuguesa de invenção. São Paulo: Educ.
MARTINHO, Fernando J. B. (1983). Pessoa e a moderna poesia portuguesa – do
“Orpheu” a 1960. 1ª ed. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.
MELO E CASTRO, E. M. (1973). O próprio poético: ensaio de revisão da poesia
portuguesa atual. São Paulo: Quíron.
ROCHA, Clara (2010). “LIMA, Ângelo de” In: MARTINS, Fernando Cabral
(coord). Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português. São
Paulo: Leya, p. 400-403.
TORRES, Rui (2006). “Camões transformado e remontado: o caso de Herberto
Helder” In: Callema, nº 1, novembro, p. 58-63.
Acerca de gênio e loucura:
especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de
outros autores

Bernardo Nascimento de Amorim


Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP

Palavras-chave: Fernando Pessoa; Gênio; Loucura; Poesia; Sociedade.


Resumo: De Platão a Baudelaire e Rimbaud, passando pelos iluministas franceses, por Kant e
Hegel, associa-se a faculdade característica do poeta a uma força não passível de ser submetida
às regras próprias de uma certa convenção, sublinhando-se o caráter extraordinário do talento
criativo. Em alguns casos, esta equação se solidificaria na oposição entre as normas e a criação,
em vigor na postura combativa de muitos artistas modernos e modernistas, como em Antonin
Artaud, que concebe uma sociedade convencional contrária a «certas lucidezes superiores»,
os autênticos artistas. Como Artaud, Pessoa também pensou sobre os limites entre a lucidez
e a loucura, articulando sua reflexão com a interrogação sobre a natureza do gênio, em textos
como os que podem ser encontrados nos Escritos sobre génio e loucura. É tendo em vista,
particularmente, a leitura destes que proponho o meu trabalho, o qual ressaltará especificidades
da visada de Pessoa, iluminando-as com a projeção do que pensaram outros autores.

A loucura, longe de ser uma anormalidade, é a condição normal


humana. Não ter consciencia d’ella, e ella não ser grande, é ser homem
normal. Não ter consciência d’ella, e ella ser grande, é ser louco. Ter
consciência d’ella e ella ser pequena é ser desilludido. Ter consciência
d’ella e ella ser grande é ser genio. (PESSOA, F., 2006: 154).

1. A associação entre gênio e loucura, ainda que não exatamente nestes termos,
pode ser vista em diversos autores, não apenas modernos, mas também antigos.
Em que pese a diferenças, por exemplo, entre o conceito de gênio na Antiguidade
Clássica e o conceito de gênio após o Iluminismo, tomando-se estes dois momentos
como balizas importantes, certas conexões autorizam a pensar em uma tradição de
longa duração, aproximando as ideias em questão. Apenas para ficar com algumas
passagens de relevo, falarei um pouco sobre traços da relação entre gênio e loucura
em autores anteriores a Fernando Pessoa e Artaud, representantes de posições
modernistas a respeito do problema, os quais, sobretudo, o primeiro, merecerão uma
atenção especial. Entre os outros autores estarão, de um lado, Platão e o enciclopedista
70 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim

Saint-Lambert; de outro, os alemães Kant e Hegel, tomados como contrapontos, em


determinados aspectos, dos primeiros. Fechando este meu introito, serão mencionados
também Baudelaire e Rimbaud, como antecessores mais próximos dos dois autores
propriamente modernistas em pauta.

2. Começo com um breve comentário sobre o Íon, de Platão. Neste diálogo, cuja
redação pode ser situada no século IV a. C., Sócrates, interrogando o rapsodo que
dá nome ao texto, discute o caráter divino do poeta, afirmando ser ele, na tradução
portuguesa de Victor Jabouille, «uma coisa leve, alada, sagrada» (PLATÃO, 1988: 51),
que «não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da
razão» (ibid.). A formulação é bastante atraente, sobretudo para os próprios poetas,
além de ser de remota tradição, associada a antigos mitos, a crenças sobre quem seriam
os portadores das palavras essenciais de uma comunidade, intermediários entre os
homens e os deuses. Segundo ela, o poeta, para alçar o voo que o faz ser mais do que
os homens comuns, aproximando-se das divindades, precisa perder a razão. Tomado
por um poder alheio a si mesmo, um sopro que o habita, sem que saiba como, tem ele
a função de dar a conhecer à sua comunidade mistérios de ordem sobrenatural.
Embora desprovido de arte, de ciência, o poeta se apresentaria, em mais de um texto
de Platão, efetivamente, como um ser especial, dotado de uma origem divina. Ainda que
esta não tenha sido suficiente para defender a presença do poeta na República, na obra
mais expressiva do filósofo grego, a ideia permaneceria. Acompanhando o raciocínio
de Ernst Robert Curtius sobre o Fedro, ter-se-ia, em Platão, com efeito, a exposição
pioneira da «teoria da loucura divina do poeta» (CURTIUS, E., 1979: 505), a qual, com
«outros atributos da mitologia antiga» (ibid.), chegaria à Idade Média e a atravessaria.
Saltando algumas porções de centenas de anos, mas não esquecendo a recuperação
humanista ou renascentista de muitas das obras mais conhecidas dos autores gregos
e latinos, bastante influentes nos séculos XVI e XVII, uma sorte de teoria do gênio
se encontra já relativamente sistematizada entre os iluministas franceses, com o
verbete da Enciclopédia dedicado ao assunto. Nele, hoje atribuído a Jean-François de
Saint-Lambert, relaciona-se o termo a uma forma de talento singular, mais ligado à
criação do que à compreensão e não reduzível às normas do bom gosto, que regem
ou deveriam reger a conduta dos demais indivíduos. Sublinha-se, então, uma clara
tendência de cisão entre a pessoa que se julga ter um talento superior e a ordem
estabelecida, destacando-se um necessário desconcerto, assim como a incompreensão
dos contemporâneos. Sugere-se a existência de singularidades irredutíveis, não
integráveis pacificamente ao conjunto da sociedade, marcadas pela recusa ou pela
dissonância em relação às instituições e práticas representativas da ordem, pilares
da normalidade. Fala-se, ainda, significativamente, no poder do excesso, associado à
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 71

capacidade de fundação ou inauguração de novos caminhos. No verbete, carregado


das impressões de seu autor, lê-se: «Os homens de gênio, forçados a sentir, [...]
levando ao excesso seus desejos, suas esperanças, [...] parecem-me mais feitos para
derrubar ou fundar estados do que para mantê-los» (SAINT-LAMBERT, J.-F., 2013:
não paginado)1.
Próximos do enciclopedista francês, tanto temporal quanto filosoficamente, Kant e
Hegel penderiam, entretanto, para o lado de um maior equilíbrio, com noções como
a beleza e a perfeição tendendo a coibir maiores excessos, mantendo-se um certo
padrão do gosto, do qual o gênio não deveria abrir mão. Para ambos, é o gênio também
associado à originalidade, ao talento para criar sem seguir as regras já estabelecidas,
concebendo obras modelares para os pósteros. O sentido da dissonância, todavia, já
não parece permitir a aproximação com a ideia de loucura, ou de um desvio da ordem,
da normalidade, em sentido amplo. Em Kant, a importância do gosto, em ligação
com o estudo e o conhecimento da tradição, bem como com o esforço técnico, vem
ao encontro da crítica aos pré-românticos alemães, julgados «‘espíritos superficiais’»
(KANT, I. apud SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado), pois crentes em que «‘se desfila
melhor em um cavalo desvairado do que sobre um cavalo domado’» (ibid.).
Em Hegel, igualmente repudiando desvarios, a dimensão racional do fazer poético
merece tanto realce quanto no seu compatriota. O artista, para ele, não deve deixar de
«buscar ajuda na ponderação [...] lúcida do entendimento» (HEGEL, G., 1999: 283),
requerendo todas as artes «um amplo estudo, uma aplicação constante, uma habilidade
variadamente formada» (id.: 286), sem os quais a inspiração, ou o entusiasmo, aqui
já desprovidos de sua dimensão esotérica, não podem resultar em «uma obra de arte
consistente» (id.: 288). Investindo agudamente na compreensão do que seja a fantasia,
diferenciada da imaginação e tornada elemento fundamental da produção artística,
faculdade própria do gênio, distingue-se a simples extravagância, aquilo que seria
próprio de um único sujeito, constituindo «uma má particularidade» (id.: 295), e a
verdadeira originalidade. Tendo sempre no horizonte o ideal de universalidade que
preside a sua estética, o autor concebe a originalidade como atributo que se distancia
da «mera maneira» (id.: 292) (grifo do autor), uma vez que esta, afastando-se do
ideal, limita-se às «particularidades [...] contingentes» (ibid.) (grifos do autor) de
uma «peculiaridade subjetiva» (ibid.), não sendo capaz de configurar «em fenômenos
concretos as autênticas profundidades da vida» (HEGEL, G., 1999: 284).

1 A tradução, desta e de outras passagens, seja em francês, seja em inglês, corre por minha conta. No rodapé,
apresento os originais: Eis o texto da Enciclopédia: «Les hommes de génie forcés de sentir, [...] portant à l’excès
leurs desirs, leurs esperances, [...] me paraissent plus fait pour renverser ou pour fonder les états que pour les
maintenir».
72 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim

Menos racionalista, evidentemente, seria o romantismo do início do século XIX,


quando se consolida, incluindo-se as contribuições dos antecessores, um certo ethos
moderno, isto é, um conjunto de valores, hábitos e traços próprios a um período
relativamente longo da história, em consonância com o que se firmaria a relação entre
a genialidade e o poder imaginativo, bem como a figura do artista como ser de exceção,
supostamente marcado por uma criatividade superior e pela independência da mente,
pela autenticidade e pela genuinidade, muitas vezes levando-o à condição de solitário
ou marginal, dada a sua falta de habilidade de adaptação ao concerto social.
Tal fórmula seria logo também encarnada, ainda que em meio a posições
nitidamente antirromânticas, pelos poetas franceses da segunda metade do século,
incluindo Baudelaire e Rimbaud. Segundo Hugo Friedrich, aqui se teria a assunção
de um mesmo princípio, segundo o qual a «própria anormalidade» (FRIEDRICH,
H., 1991: 24) é vista como garantia de uma vocação, sendo a «proscrição do mundo
circunstante» (ibid.) a consequência de um «ato de orgulho» (ibid.), manifestando-se
como «uma pretensão à superioridade» (ibid.). Esta seria alcançável, sobretudo, através
da exploração do sonho ou da fantasia, em que se manifestaria «uma capacidade criativa
superior»(FRIEDRICH, H., 1991: 53), voltada para a «produção de conteúdos irreais»
(id.: 54), capaz de transformar uma realidade circunstante sempre insatisfatória.
Em Baudelaire, é esta realidade amesquinhada o que se interpõe aos anseios
do artista, cujo impulso para a elevação se mostra tão evidente quanto o desejo de
oposição às convenções sociais, calcado em um «gosto apaixonado de oposição»
(BAUDELAIRE, C. apud FRIEDRICH, H. 1991: 45). Contrapondo-se à «interpretação
científica do universo» (id.: 56), Baudelaire salientaria a potência de um outro tipo
de interpretação, a poética, àquela altura já motivo de uma espécie de disputa pela
recuperação de seu antigo prestígio. Lembre-se, todavia, que o autor não chegaria a
repudiar os movimentos da razão, defendendo o contato entre a fantasia e a consciência,
entre «o gênio poético e a inteligência crítica» (id.: 36), sem o que não seria possível
o trabalho de «transformação e desrealização do real» (id.: 53). Para ele, «o poeta é
a inteligência mais elevada, e a fantasia [...] a mais científica de todas as faculdades»
(BAUDELAIRE, C. apud FRIEDRICH, H., 1991: 57).
No que diz respeito a Rimbaud, para além da prática poética, suposta realização de
algumas de suas intenções, como a de «ser absolutamente moderno» (RIMBAUD, A.,
1999: 204)2, são conhecidas as duas cartas ditas do vidente, em que o autor fala sobre
a necessidade de provocar o «desregramento de todos os sentidos» (id.: 84) (grifos do

2 É em um trecho do poema «Adieu», fechando Une saison en enfer, que se diz: «Il faut être absolument
moderne».
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 73

autor)3, defendendo o desvio em relação ao «bom caminho» (id.: 83)4, assim como
a execração dos ancestrais5, julgados versificadores, mas não verdadeiros artistas.
Fazendo jus ao epíteto de poeta maldito, sem recuar diante da extravagância, com
postura provocativa, afim ao desejo de chocar, o autor se propõe a transformar a
própria alma em algo monstruoso6, a se tornar um crápula, avesso às leis de seu tempo
e de sua civilização. Somente forçando os limites de si mesmo, tornando-se «o grande
doente, o grande criminoso, o grande maldito» (id.: 89)7, o poeta acredita poder
chegar ao contato com «as coisas inauditas e inomináveis» (ibid.)8, meta última para
todos aqueles que se queiram, em sua perspectiva, «poetas do novo» (RIMBAUD, A.,
1999: 92)9 (grifos do autor), suficientemente fortes para «descobrir uma linguagem»
(id.: 91)10.

3. Tornando-se mais intensa a experiência da separação entre o artista e os homens


que este mesmo vê como vulgares, a genialidade, em Fernando Pessoa, já no início
do século vinte, configura-se também no âmbito de reflexões sobre a oposição às
convenções, às ideias a respeito do que seria certo, são ou normal. Com ela, pensada
sobre o pano de fundo contrastante de um momento em que, segundo o autor,
«qualquer privilégio é um castigo» (PESSOA, F., 1995: 12), quando «nada nasce de
grande que não nasça maldito» (ibid.), reforça-se o sentido da dissonância em relação
aos padrões estabelecidos.
Nos Escritos sobre génio e loucura, destacam-se as asserções sobre o estado mesquinho
do tempo em que vivia o poeta, cujo traço característico seria «a incapacidade de
grandeza» (PESSOA, F., 2006: 83), ou seja, a incapacidade de «pensamento profundo,
de emoção intensa, de acção coordenadamente superior» (ibid.). A «civilização
moderna» (ibid.) se qualifica como «um ambiente estiolantemente propício»
(ibid.), onde vigora «a baixa do nivel mental superior em todas as manifestações»

3 Tal desregramento se apresenta como condição para se chegar ao desconhecido: «Il s’agit d’arriver à l’inconnu
par le dérèglement de tous les sens».
4 No idioma de Rimbaud: «la bonne ornière».
5 Reivindica-se a liberdade, para os novos poetas, de execrar os ancestrais: «[...] libre aux nouveaux! d’execrer
les ancêtres [...]» (RIMBAUD, A., 1999: 87) (grifo do autor).
6 É o que afirma o poeta, na segunda das cartas ditas do vidente, em maio de 1871: «Il s’agit de faire l’âme
monstruese» (id.: 88).
7 Em francês, no original: «le grand malade, le grand criminel, le grand maudit».
8 Em francês: «les choses inouïes et innommables».
9 No texto original: «poètes du nouveau».
10 Na língua de Rimbaud: «Trouver une langue».
74 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim

(ibid.). O gênio, como contraponto a este estado de coisas, é imaginado como um


homem superior, que «pensa mais acuradamente, sente mais profundamente, deseja
mais instantaneamente» (PESSOA, F., 2006: 45)11, que é «imaginativo» (id.: 46)12,
«fortemente criativo» (ibid.)13 e «profundamente original» (ibid.)14. Necessariamente
desviante em relação às normas contemporâneas, em diversas épocas, tal figura se
mostraria especialmente contrária às limitações dos tempos modernos, fazendo do
sonho, transfiguração da realidade, uma de suas experiências principais, tanto como
o isolamento egotista, fruto inevitável de sua falta de capacidade de adaptação.
Com relação ao sonho, muito do que diz Pessoa revela o seu alinhamento a
antecessores como Baudelaire ou Edgar Allan Poe, mencionados como grandes
homens de gênio, «simplesmente incapazes de adaptação» (PESSOA, F., 2006: 52-53)15.
Pensando, como Baudelaire, na reunião entre consciência e fantasia, afirma o autor
que os homens de gênio «veem mais claro e sonham mais do que os homens comuns»
(id.: 52)16. Por vezes, aqueles dois termos, consciência e fantasia, dão lugar a outros,
como quando Pessoa diz que «o homem de genio é um intuitivo que se serve da
intelligencia para exprimir as suas intuições» (id.: 80). A fórmula, todavia, permanece
a mesma, reunindo, de um lado, um elemento independente ou menos dependente
do processo de raciocínio, seja a imaginação, o sonho, a fantasia ou a intuição, e, de
outro, o elemento racional, aquele que se liga a «um maior desejo de compreensão»
(id.: 53)17. Da conjugação das duas dimensões é que se configuraria o gênio, o qual
se apresenta, não apenas como um criador de mundos outros, mas como um sujeito
marcado por uma «lucidez superior» (id.: 84).
Completando o quadro, o passo seguinte seria a inevitável aproximação deste tipo
de lucidez com a loucura. Dando prosseguimento à tradição que remete a Platão,
mas com a renovação de teorias próximas da psiquiatria e da psicologia do final do
século XIX, Pessoa se interessará pela constituição psíquica dos homens de gênio, por
vezes, inclusive, aceitando a ideia de que haveria um «elemento morbido» (id.: 65)
necessário à existência desta figura, ou refletindo sobre relações entre hereditariedade,
nevrose, psicose, histeria e o «desvio mental» (id.: 131) característico do fenômeno.

11 O texto original é escrito em inglês: «thinks more accurately, feels more deeply, wills more
instantly».
12 Em inglês: «imaginative».
13 No original: «strongly creative».
14 No inglês de Pessoa: «profoundly original».
15 No texto de Pessoa: «simply incapable of adaptation».
16 Veja-se o original: «Men of genius both see more clear and dream more than common men».
17 No inglês de Pessoa: «a greater desire to comprehend».
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 75

Em alguns textos, exploram-se sintomas como uma certa «mania de dúvida» (id.: 48)18,
da qual se observariam vários traços presentes na constituição do gênio. Dá-se
realce, neste ponto, a características como a hesitação e a indecisão, consequências
de um constante interrogar a si mesmo, um «colocar a si mesmo muitas questões»
(id.: 51)19, as quais se acompanham da «ansiedade para achar [...] resposta» (ibid.)20.
Na perspectiva do autor, são comuns, entre os homens de gênio, assim como entre
indivíduos que apenas sofrem da mania de dúvida, mas sem a contrapartida criativa
que caracteriza os primeiros, elementos como a insanidade e o nervosismo, os quais
resultam, entretanto, não da falta de um intelecto privilegiado, mas de um «abuso
dos poderes de raciocínio» (ibid.)21, do «exaggero de uma faculdade» (PESSOA, F.,
2006: 137).
Com estas colocações, volta-se à natureza da ligação, no homem de gênio, entre
a consciência e a imaginação, a primeira sendo responsável pela clareza de visão,
conquistada, não raro, a duras penas, com a insistência do pensamento, a segunda
mais relacionada à parte criadora do fenômeno, à «invenção»22 (id.: 153) (grifo do
autor). O gênio, nesta perspectiva, que inclui a importância da ideia de originalidade,
não poderia existir sem a atividade que torna manifesta a criação23, a qual, por sua
vez, remete, novamente, à loucura24. Pessoa, mencionando Carlyle e Blake, afirma que
a «parte creadora do genio é a parte de loucura» (id.: 65) (grifo do autor). Em outro
fragmento, este já apontando para a ação dos homens de gênio sobre a sociedade
de seu tempo, implicando uma abertura ao futuro, afirma-se que «os creadores de
impulsos sociaes são os creadores da sem-razão» (id.: 64).
Aos homens de gênio, com efeito, é atribuída a ligação com o futuro, sendo eles vistos
mesmo como homens «do futuro» (id.: 61). Segundo Pessoa, estas figuras sentiriam
«antes dos outros homens a direcção de uma sociedade» (id.: 71) (grifo do autor),

18 Em inglês: «mania of doubt».


19 A dúvida seria, na língua de Shakespeare, «the putting to oneself of many questions».
20 Em inglês: «the anxiety over the finding of [...] answer».
21 Em inglês: «the abuse of the reasoning powers».
22 Cogitando uma possível distinção entre gênio e talento, diz Pessoa: «O talento é essencialmente coordenação.
O genio é invenção e coordenação» (PESSOA, F., 2006: 153) (grifos do autor).
23 Ao apontar como elementos fundamentais para a existência do gênio a «superioridade» (id.: 141),
a «originalidade» (ibid.) e a «actividade» (ibid.), explica Pessoa que esta última «não quér dizer trabalho
intenso, mas sim manifestação de qualidades» (PESSOA, F., 2006: 142), não se opondo à «inercia» (ibid.), à
«inactividade» (ibid.), mas, simplesmente, à «não-manifestação» (ibid.) (grifos do autor).
24 Se a atividade de criação se associa à imaginação, esta, por sua vez, quando predominante sobre o raciocínio,
seria indício de loucura, sendo «doido» «[...] um homem que mostra [...] pred[omini]o da imaginação sobre
o raciocinio [...]» (PESSOA, F., 2006: 111).
76 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim

sendo, portanto, o primeiro «indicio da sua evolução» (ibid.). Fala-se, nomeadamente,


em «evolução social» (ibid.) (grifos do autor), atribuindo-se aos homens de gênio
uma espécie de função na mesma sociedade na qual não se integram normalmente.
Diferentemente da simples loucura, que seria apenas uma «expressão individual»
(PESSOA, F., 2006: 139), o gênio seria «manifestação [...] social» (ibid.), inerentemente
ligada à criação, por um lado, e ao destino da comunidade, por outro. Nas palavras
do autor, «o facto mais importante da vida de uma sociedade é a producção de
homens de genio, de creadores» (PESSOA, F., 2006: 62), o que se relaciona ao próprio
«progresso» (id.: 75) da civilização. Sendo o gênio «um inadaptado que cria» (id.: 63)
(grifo do autor), o resultado de seu fazer seria levar «o meio [a] adaptar-se a si» (ibid.).
Sendo, contudo, este homem um indivíduo não muito propenso à ação, sobretudo, a
uma interferência concreta, de caráter pragmático, esta forma de adaptação estaria
fadada a apenas surtir efeito em «um meio futuro» (PESSOA, F., 2006: 64).
Sob outro aspecto, Pessoa ressalta, ainda, o perigo que representa o gênio para a
sociedade de que faz parte, quando se trata de exercer a função social que lhe seria
própria, associada à renovação do seu meio, e motivada, de acordo com alguns textos,
por seu «amor à humanidade» (id.: 46)25. A intervenção desta figura, em seu movimento
de «espalhar idéas, educar almas, transformar mentalidades» (id.: 77), não poderia
deixar de ser problematizada. Pessoa fala mesmo sobre os «maleficios do genio» (ibid.).
Tendo em vista, em suas palavras, que «espalhar ideias é frequentemente desorientar»
(ibid.), que «educar almas é frequentemente torcel-as do seu vero caminho» (ibid.),
que «transformar mentalidades é frequentemente tirar-lhes a calma e a felicidade,
alargando-as para a incerteza e para o abismo» (ibid.), tal intervenção, embora «útil
superiormente» (ibid.), não poderia deixar de ser perigosa, senão nociva, para alguns.
Entre estes últimos, certamente, encontrar-se-iam alguns psicólogos e psiquiatras
lidos à época de Pessoa, para os quais os desvios enaltecidos pelos modernistas,
em geral, não representavam oposição à estreiteza e à mediocridade, mas simples
degenerescência. Se Pessoa também usou este termo, em alguns momentos, em
sentido próximo do que lhe dava Max Nordau, é preciso perceber que, noutros,
mais numerosos, manifesta-se uma apropriação e uma reversão de sentido irônicas,
através das quais se chega à valorização de um movimento como o do grupo da
revista Orpheu, cujos «elementos morbidos» (PESSOA, F., 2006: 389), típicos da
degenerescência, não se dissociam de sua originalidade, de sua capacidade de criar
«um novo modo-de-expressão» (id.: 403), fundamental, senão para o campo da
moral, ao menos para o da estética. Incapazes de perceber esta separação, seriam os

25 Em inglês, no original: «love of humanity».


Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 77

psiquiatras, na visão de Pessoa, verdadeiros «charlatães» (id.: 396), responsáveis por


uma forma de «charlatanismo scientifico» (id.: 393), «superstição scientifica» (id.: 397)
(grifos do autor), ou, ainda, «delirio interpretativo» (id.: 401). Neste âmbito, não se
poderiam valorizar os princípios, a um só tempo, «novos e perturbadores» (id.: 403)
de uma gente «doentia e perigosa» (id.: 402) como a de Orpheu.

4. É a menção à psiquiatria que me deve levar ao breve comentário sobre Antonin


Artaud, antes de passar às minhas considerações finais. Elas incidem, em particular,
sobre o contundente texto do autor em defesa, a um só tempo, da genialidade e
da sanidade de Van Gogh, o qual, como se sabe, passou parte importante da vida
internado, sob os cuidados da psiquiatria. O que é digno de nota, sobretudo, neste
texto, é a força da acusação de Artaud ao pensamento convencional, indigitando-se,
em uma espécie de inversão da ordem comum, o «delírio» (ARTAUD, A., 2004: 9)
ou o «desregramento» (ibid.), a «anomalia psíquica» (ibid.) em que se encontraria o
mundo contemporâneo, um «mundo enjaulado» (ARTAUD, A., 2004: 47), do qual
certas «lucidezes superiores» (id.: 9), como a do pintor holandês, seriam vítimas
emblemáticas. Em seu raciocínio, a psiquiatria merece destaque como uma invenção
de uma sociedade «anormal» (ibid.), interessada em «se defender das investigações»
(ibid.) de figuras contrárias à «consciência geral» (ARTAUD, A., 2004: 15), imbuídas
de «certa ideia superior de honra humana» (id.: 12). A estas últimas figuras, entre
as quais se contariam também Gérard de Nerval, Baudelaire e Edgar Allan Poe,
associam-se «boas-vontades raras e lúcidas» (id.: 13), que, entretanto, a sociedade
«não quis ouvir» (id.: 12), barrando a formulação de «verdades insuportáveis» (ibid.)
para quem «sempre gostou mais de se contentar muito simplesmente em existir»
(ARTAUD, A., 2004: 44).
É ao psiquiatra, então, neste contexto, que se atribui a «mais indiscutível loucura»
(id.: 25), vendo-se, neste suposto homem de ciência, um «velho e atávico reflexo
da turba» (ibid.), o qual faria dele um «inimigo nato [...] de todo o génio» (ibid.).
Não se deixa, assim, de atacar também o vulgo, os homens medianos, falando-se de
uma «consciência bestial das massas» (ARTAUD, A., 2004: 51), contrárias às mais
legítimas aspirações dos homens de gênio, tidos como verdadeiros «heróis da terra»
(id.: 29), «naturezas elevadas, sempre um furo acima do real» (id.: 28), capazes de
«ver mais longe, infinita e perigosamente mais longe» (id.: 27). Temerosa da «rebelião
reivindicadora» (id.: 25) que estaria «na origem do génio» (ibid.), a turba faria dos
psiquiatras a sua «guarda suíça» (ibid.), disposta a protegê-la daquela sorte de «lucidez
superior» (ARTAUD, A., 2004: 27), a qual, desse modo, ficaria «vigiada» (ibid.), ou
seria, simplesmente, expelida, como teria acontecido com Van Gogh, nas palavras de
Artaud, um «despachado do mundo» (ARTAUD, A., 2004: 52).
78 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim

5. Resta-me, pois, agora, amarrar alguns fios de contato entre Fernando Pessoa e
os autores de quem falei alguma coisa, ao longo do texto. As afinidades com Artaud,
para começar, são bastante evidentes, confirmando a ideia de que fazem os dois
parte de um mesmo universo de valores e posições, próprios dos modernistas da
primeira metade do século XX, os quais prolongam ainda formas de pensar advindas
da centúria anterior. Não apenas ambos os autores, efetivamente, discorrem sobre os
perigos que o gênio representaria para a sociedade de seu tempo, como concebem
a positividade deste perigo, a importância de uma ação convulsionante, sem a qual
o mundo, necessitando de transformação, não deixaria de ser o que é. Em ambos,
de modo significativo, ressalta a ideia de uma lucidez própria do homem de gênio,
superior, em muitos sentidos, à inteligência do homem comum, menosprezado tanto
em um quanto no outro autor, os quais, não raro, identificam-no com o burguês,
senhor dos negócios do mundo moderno, marcado, segundo Artaud, pela «inércia
burguesa» (id.: 9), pelo «conformismo larvar da burguesia» (id.: 10).
Pessoa, entretanto, repare-se, mostra-se mais meticuloso do que Artaud, no
conjunto dos seus raciocínios, fazendo distinções que este último não explora, seja
a que respeita à diferença entre o gênio e a simples loucura, seja aquela atinente à
separação entre o gênio e o criminoso, próximos, em sua conduta antissocial,
mas distintos no que tange ao poder de criação e à sua manifestação, de caráter
positivamente social, presente em um, e ausente no outro. Neste caso, as afinidades de
Artaud parecem ser mais evidentes com Rimbaud, e não, propriamente, com Pessoa,
cuja análise da constituição do homem de gênio, informada mesmo por referências
médicas e filosóficas, vai mais além.
Sob outro aspecto, se Pessoa explora a ligação com o futuro que seria própria
do gênio, Artaud fala em suas «faculdades de adivinhação» (id.: 9), os dois, neste
sentido, aproximando-se também de figuras tão díspares quanto são Kant e Rimbaud.
Naturalmente, o filósofo alemão não aprovaria o desregramento ou a monstruosidade
de que fala o poeta francês, indícios de um necessário afastamento em relação ao
gosto, bem como de uma postura mais radical, excessiva, do que equilibrada.
Relembre-se, todavia, que já em Kant se destaca a importância assumida pela ideia
de originalidade, articulada à recusa das «regras ou [...] formas prontas da tradição»
(SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado), conectada à oposição «ao espírito de imitação»
(KANT, I. apud SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado), da mesma forma que se realça
o caráter de exemplaridade daquilo que cria o homem de gênio, fornecendo modelos
para os que vêm depois, no futuro. Se, para Rimbaud, novos poetas, desde que se
disponham a enfrentar o tortuoso caminho da busca pelo desconhecido, começam
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 79

«pelos horizontes onde outro foi abatido» (RIMBAUD, A., 1999: 89)26, para Kant, os
produtos do gênio, embora «inimitáveis», constituem «os únicos meios de orientação
para a posteridade» (SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado).
Quanto a outros autores de que falei, é evidente a relação que existe entre Hegel e
Baudelaire, em particular, no que tange à posição que a fantasia assume, no processo
criativo, em ambos, como faculdade essencial. Para além disso, embora mais aberto à
articulação entre a produção poética e o mistério ou a magia, alijados de um mundo
controlado pela racionalidade, Baudelaire, como Hegel, não concebe a existência de
verdadeira poesia sem que o poeta tenha domínio do seu fazer, sem que se experimente
uma funda concentração do intelecto, voltado para o «trabalho» (FRIEDRICH, H.,
1991: 39), a «construção sistemática» (ibid.), a «construção formal» (ibid.) do poema.
Neste sentido, a afirmação de Hegel, de que seria «disparate acreditar que o autêntico
artista não sabe o que faz» (HEGEL, G., 1999: 283), refutando Platão, encontraria
ressonância na estética do poeta francês. Em particular, neste ponto, ambos também
se aproximariam de Pessoa, o qual não nega a importância do intelecto no processo de
composição poética, como quando, elogiando aquele que afirma ser o «maior homem
de génio» (PESSOA, F., 2006: 439) (grifos do autor) da Península Ibérica do século
XIX, Antero de Quental, claramente com ele se identificando, afirma se tratar de «um
dos mais conscientes, talvez o mais consciente poeta que jamais existiu» (id.: 438).
No que diz respeito ao iluminista Saint-Lambert, por sua vez, a oposição entre o
que se vê em seu verbete, na Enciclopédia, de um lado, e os alemães Kant e Hegel,
de outro, faz com que se possa dar relevo à posição intermediária de Pessoa.
Aproximando-se do francês, o poeta não pretende aderir às restrições da noção de
gosto, ainda associadas ao belo e à perfeição, adotando, ao mesmo tempo, a perspectiva
da cisão marcante entre o homem de gênio, em sua firme singularidade, e o vulgo,
incapaz de compreender aquele que estaria destinado a alterar o estado de coisas de
seu mundo, abrindo as portas para o futuro. As menções de Saint-Lambert a elementos
como a irregularidade ou o caráter «selvagem» (SAINT-LAMBERT, J.-F., 2013: não
paginado)27 dos produtos do gênio, a referência aos «edifícios atrevidos que a razão
não arriscaria habitar» (ibid.)28, de fato, parecem mais próximas de Pessoa, e mesmo
de Rimbaud, do que de Kant e Hegel, com os quais, entretanto, o enciclopedista, assim
como o poeta de Orpheu, não deixa de compartilhar algumas posições. Dentre estas,
vale destacar, por exemplo, a percepção da importância da imaginação, ou da fantasia,

26 No francês de Rimbaud: «par les horizons où l’autre s’est affaissé».


27 As coisas do gênio, devem ter, no francês de Saint-Lambert, «l’air irrégulier, [...] sauvage [...]».
28 No original da Enciclopédia: «des édifices hardis que la raison n’oserait habiter».
80 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim

como especificidade diferenciadora do gênio, e, ainda, a preocupação em pensar as


relações entre o próprio gosto, «obra do estudo e do tempo» (ibid.)29, e uma forma de
criação mais livre, intempestiva ou tempestuosa, a qual, presente em Saint-Lambert,
não deixa de rondar as reflexões de Kant, Hegel e Pessoa.
Por fim, no que tange a Platão, com o qual darei por encerradas estas minhas
elucubrações, não resta dúvida de que se apresenta mesmo como figura basilar, senão
em sua faceta mais moralista, como em A república, ao menos, para o que interessa
aqui, naquilo que se apropriou de suas reflexões sobre a natureza da inspiração poética.
Revista, quando se substitui o caráter divino do poeta por uma mais chã superioridade
perante os demais homens, considerando-se a sua função social em uma comunidade
burguesa, a teoria de Platão permanece como uma fonte de referência importante. Se,
em um mundo desencantado, como o mundo moderno, cientificamente ordenado e
explicado, os deuses não são mais as figuras a que se ligam os poetas, em seus delírios,
ou se os homens de gênio, em que pese à sua suposta superioridade, não são divinos,
o fato é que, em perspectivas como a de Pessoa e Artaud, eles permanecem, malgrado
a sua posição conflitante com o mundo, ou mesmo por causa dela, como seres a quem
se insiste em atribuir alguma luz especial.

Bibliografia

Bibliografia Ativa
ARTAUD, Antonin (2004). Van Gogh o suicidado da sociedade. Tradução e notas
de Aníbal Fernandes. Lisboa: Assírio & Alvim.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich (1999). Cursos de Estética I. Tradução de Marco
Aurélio Werle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
PESSOA, Fernando (2006). Escritos sobre gênio e loucura. Edição de Jerónimo
Pizarro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 2 v.
PLATÃO (1988). Íon. Introdução, tradução e notas de Victor Jabouille. Lisboa:
Editorial Inquérito.
RIMBAUD, Arthur (1995). Poésies. Une saison en enfer. Illuminations. Edition de
Louis Forestier. Paris: Gallimard.
SAINT-LAMBERT, Jean-François de (2013). «Génie». In: DIDEROT, Denis;
D’ALEMBERT, Jean le Rond (Eds.). ENCYCLOPÉDIE, ou Dictionnaire
Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, par une Societé de Gens de Lettres.

29 Em Saint-Lambert: «ouvrage de l’étude et du temps».


Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 81

Chicago: University of Chicago: ARTFL Encyclopédie Project: Spring 2013.


MORRISSEY, Robert (Ed.). Disponível em: <http://encyclopedie.uchicago.
edu/>. [Acesso em: 06 mar. 2015].

Bibliografia Passiva
CURTIUS, Ernst Robert (1979). Literatura europeia e idade média latina. Tradução
de Teodoro Cabral, com a colaboração de Paulo Ronai. Brasília: INL.
FRIEDRICH, Hugo (1991). Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX
a meados do século XX. São Paulo: Duas Cidades.
SÜSSEKIND, Pedro (2009). «Considerações sobre a teoria filosófica do gênio».
In: VISO – Cadernos de estética aplicada, n. 7, jul.-dez. 2009. Não paginado.
“Orpheu” Regabofe Tiroliro

José Blanco

Resumo: A leitura  das notícias e dos artigos publicados nos jornais da época (de que Mário de
Sá-Carneiro fez um caderno de recortes), revela que, ao lado da maioria de reacções negativas,
mais ou menos violentas e insultuosas, houve opiniões favoráveis aos colaboradores do Orpheu,
não apenas em Lisboa mas também em localidades da periferia, bem como na Galiza.

Sintezando os diferentes tipos de repercussão do Orpheu na sociedade portuguesa


do seu tempo, tal como a Imprensa a reflectiu, Maria Aliete Galhoz escreveu que
a revista foi considerada “uma soberba piada” ou “um logro medíocre”, ou “uma
desonesta tentativa de notoriedade” ou ainda “uma destrambelhada aberração de
nevróticos sem talento.” E comparando os dois fenómenos literários do princípio
do século – o da Águia e o do Orpheu – diz ainda Maria Aliete Galhoz: “Se para a
Águia apareceram alguns defensores (…), para o Orpheu a claque foi de gargalhadas
e ninguém achou que valesse a pena acreditar nas suas afirmações. Vozes contrárias,
quase não as houve”.
No meio da infernal barulheira dos ataques ao grupo do Orpheu, houve
efectivamente algumas vozes – poucas mas, como se verá, significativas – que se
levantaram em favor dos atacados ou, nalguns casos, em ofensiva contra os atacantes.
O presente texto é sobre essas vozes minoritárias, identificadas ou anónimas, em
homenagem póstuma àqueles que viram no Orpheu e nos seus autores mais qualquer
coisa do que alienação mental, espalhafato ou provocação – ou, pelo menos, lhe
deram o benefício da dúvida. Para muitos não será novidade, conhecidos como são
os estudos que serviram de base a este trabalho: O Movimento Poético do Orpheu,
tese de licenciatura dactilografada de Maria Aliete Galhoz (1953); “Orpheu” em 1915
(Revistas e Jornais), dissertação policopiada de Maria João Marques Inglês Covas
(1999) e O primeiro modernismo português e a Galiz (1915) Um caminho impossível,
de Carlos Pazos, in Diálogos Ibéricos sobre a Modernidade (2011).
O escândalo do Orpheu não tem paralelo na história literária e social de
Portugal. Há talvez uma tendência para pensar que tudo se passou apenas em
Lisboa e nos jornais lisboetas. Mas foi um fenómeno verdadeiramente nacional:
as suas repercussões na Imprensa da época varreram literalmente o País, desde o
Algarve até ao Minho. Os dois cadernos de recortes sobre o Orpheu organizados
84 100 Orpheu José Blanco

por Mário de Sá-Carneiro – e que hoje se encontram no espólio de Fernando


Pessoa na Biblioteca Nacional de Portugal – contêm 90 recortes de 31 jornais e
representam apenas uma parte de tudo o que se apareceu na imprensa publicada em
35 localidades: Águeda, Anadia, Ançã, Arcos de Valdevez, Beja, Braga, Bragança,
Cantanhede, Coimbra, Covilhã, Elvas, Esposende, Estremoz, Évora, Faro, Guimarães,
Lamego, Leiria, Lisboa, Mafra, Melgaço, Montalegre, Montemor-o-Velho, Oliveira do
Hospital, Penafiel, Porto, Póvoa do Varzim, Santa Comba Dão, Silves, Sintra, Tondela,
Valença, Viana do Castelo, Vila do Conde e Viseu. Na sua dissertação, Maria João
Gomes Covas, alertando para o facto de a lista que apresenta não ser exaustiva, elenca
84 periódicos – jornais e revistas de todo o País – que se referiram ao Orpheu.
Em defesa do Orpheu ergueram-se vozes minoritárias em Lisboa e em quatro
localidades da periferia atentas aos movimentos culturais que ali se publicavam:
Faro, Estremoz, Coimbra e Bragança. Comecemos por Lisboa e por quatro jornais da
capital: O Mundo, O Século, O Paiz e Acção Nacional.

Segundo informação do próprio Fernando Pessoa, o primeiro número do Orpheu


foi posto à venda no dia 26 de Março (sexta-feira), tendo o primeiro exemplar sido
vendido às 19 horas. Logo no dia seguinte, sábado 27 de Março, saía a primeira
referência crítica da imprensa, publicada pelo jornal O Mundo. Embora com alguma
cautela, a notícia é elogiosa:

Orfeu, revista trimestral de literatura. Um grupo de novos escritores acaba de lançar uma
revista trimestral, Orfeu, que é uma espécie de resumo das várias correntes modernas na nossa
literatura. Mesmo que se não concorde com a orientação geral dos colaboradores da nova
revista, tem de se lhes reconhecer talento e iniciativa, coisas infelizmente raras entre nós,
sobretudo em assuntos destes. O primeiro numero de Orfeu, que temos sobre a nossa mesa,
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 85

contém variada colaboração das mais caracteristicas figuras de entre os novos. Inclui versos
de Mario de Sá-Carneiro, Ronald de Carvalho, Alfredo Pedro Guisado, e Côrtes Rodrigues, e
insere duas poesias futuristas (as primeiras, cremos, que aparecem entre nós) do malogrado
[sic] Alvaro de Campos. Em prosa, além da exquisita introdução de Luis de Montalvôr,
director da revista, ha um drama num acto de Fernando Pessoa. A capa de Orfeu, do lápis
de José Pacheco, é curiosissima.

Estes elogios foram sol de pouca dura. Logo três dias depois, em 30 de Março,
o jornal A Capital publicava, com grande destaque, um artigo verdadeiramente
assassino, dando o mote para a longuíssima série de diatribes que iriam ser lançadas
pela Imprensa sobre o Orpheu. Os títulos fizeram história:

Na mesma ordem de ideias, no dia seguinte, 31 de Março, o popular e influente


humorista André Brun, dedicava a sua muito lida crónica Migalhas, às “maluqueiras”
da “rapaziada” do Orpheu. Para a generalidade da opinião pública, Fernando Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro e os seus amigos ficavam a partir de então definidos, sem apelo
nem agravo.
Na sexta-feira seguinte, dia 2 de Abril, pelo menos três jornais de Lisboa se referiam
ao Orpheu. O Século noticiava em sete parcas e cautelosas linhas, o aparecimento da
nova revista:

ORFEU – Assim se intitula uma revista trimestral de literatura, que se destina


a Portugal e ao Brazil, da qual é director o sr. Antonio Ferro e de que saiu o 1º.
numero, relativo aos mezes de Janeiro, Fevereiro e março. Traz uma colaboração
muito variada e interessante.

O Diário de Notícias e O Paiz anunciavam com simpatia a publicação da revista. A


circunstância de os dois jornais publicarem ipsis verbis o mesmo texto e a utilização
nele de termos de requinte literário (tais como “seiva ardente”, “desejo intenso de crear”
86 100 Orpheu José Blanco

e “última e derradeira nota de pensamento “raffinée”) pode fazer pensar na intervenção


de mão redactorial de alguém ligado ao grupo do Orpheu:

“Orpheu”. Com este título acaba de ser posta à venda uma revista trimestral de literatura, que
em Portugal é dirigida pelo sr. Luiz de Montalvor e no Brazil pelo sr. Ronald de Carvalho.
Todos os colaboradores do seu primeiro número são aquelles que se convencionou chamar
novos, e aos novos a quem anima uma seiva ardente e um desejo intenso de crear procuram
dar a ultima e derradeira nota do pensamento, a mais moderna e a mais “rafinée”. Entre
esses novos encontram-se Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Alfredo Pedro Guisado, Alvaro de
Campos e outros. Na capa vê-se um curioso desenho de José Pacheco. Longa vida.

Publicava-se nessa altura em Lisboa um jornal monárquico, com o título Acção


Nacional, dirigido por Astrigildo Chaves, jornalista que fora republicano convicto mas que
depois do regicídio se convertera à Monarquia. O jornal teve curta duração: 15 números
publicados, entre 30 de Janeiro e 8 de Maio de 1915. Em pleno iniciar do escândalo do
Orpheu, no número de 3 de Abril, um articulista anónimo atacava os detractores da
revista, defendia-a com veemência e elogiava largamente os seus colaboradores:

É uma empreza bastante arriscada esta que um grupo de moços poetas tentou ao publicar
o “Orpheu”. Não é uma literatura banal a que encontrámos dispersa pelas 83 páginas do
volume, mas uma literatura “para raros apenas”, como diria Eugénio de Castro.
E tanto assim, que logo toparam os seus fundadores com uma decidida má vontade da parte
dos litteratelhos, que em cenaculos baratos dizem a ultima palavra d’Arte, arranchando a má
língua às mezas dos cafés ou às portas das livrarias.
Sentiram esses litteratos gá-gás arrripiarem-se os nervos ao deffrontarem a audacia deste
grupo de cultores do Bello. Certo jornal [A Capital] (…) não viu nas paginas da revista uma
sombra de talento, ou uma nesga de Belleza; fingiu não conhecer os nomes, já affirmados em
anteriores trabalhos, de Mario de Sá-Carneiro, o altissimo poeta da “Dispersão”, o estylista
incomparável da “Confissão de Lucio”; de Fernando Pessoa, que nas páginas d’“A Aguia”
escreveu um profundo estudo sobre a “Poesia Portugueza”; de Luiz de Montalvor, ainda
ha pouco regressado do Brazil, onde escriptores de mór nome e os novos principiantes o
consagraram e lhe deram as maiores provas d’estima e de admiração; de Almada Negreiros,
o caricaturista da nova geração e que ora se affirma um artista da penna.
Fingem ignorar tudo isto os escribas que querem uma Litteratura só para elles. Continuem
os jovens poetas a sua obra e deixem fallar quem falla. Acaso se confundiu alguma vez o
grito da águia com o grasnar da gralha?
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 87

Como já se disse, a repercussão do Orpheu cobriu todo o País, a partir de Faro.

Na capital do Algarve, a revista Alma Nova, criada um ano antes pelo jornalista
Mateus Martins Moreno e que se intitulava “revista mensal ilustrada de arte, sciencias
e literatura”, publicou no seu número de Abril, na rubrica “Por Lisboa. Crónicas
de Arte”, um extenso artigo sobre o Orpheu. Com inteligência, sensibilidade e
objectividade, o seu autor, A. Bustorff, elogiava a revista e os textos nela publicados,
embora levantasse dúvidas sobre os poemas de Mário de Sá-Carneiro, que “por
excesso de Interseccionismo, descambam em Charadismo”. O Autor guardava os mais
francos elogios para Fernando Pessoa e para o seu O Marinheiro, sobre o qual fazia
um pertinente comentário:

Fernando Pessôa [sic], no Marinheiro parece querêr traduzir-nos o mais completo estado de
abstracção em que as almas podem cair. As interrogações seguem-se e acumulam-se num
alheamento de Vida e de Realidade, cavalga-se o Sonho, vai-se além do Real, penetra-se o
Além-Vida… Essa historia encantada do marinheiro perdido em longinqua ilha e levado
pelas saudades da pátria a criar em sônho uma pátria nunca possuída, é, na verdade,
sentidissima. Como o marinheiro integrando-se no seu sonho até fazer da Irrealidade
Realidade, tambem nós, seguindo a historia, fomos por ela possuidos, caindo numa
abstracção doentia e aniquiladora. Era este o fim do senhor Fernando Pessôa? Se o era,
realisou-o por completo.

Referindo-se a Álvaro de Campos, A. Bustorff comenta com perspicácia a Ode


Triunfal, que para ele é uma “irritantíssima blague”:
88 100 Orpheu José Blanco

Porque é blague com certeza, essa “Ode Triunfal”. Blague que colocada na boca dum
nevrótico, dum neurasténico e espírito desordenado como esse hipotético engenheiro
Alvaro de Campos, toma o carácter e merece os louvores inerentes a uma página de
psiquiatria completissima. Por ela felicitamos o seu autor-editor, senhor Fernando Pessoa.
Merece-o.

A terminar a sua recensão, o crítico escreve:

E eis o Orpheu. O seu homonimo da Grécia amansava as brutas-feras com a harmonia da


vóz. Amansará os Críticos – feras guardadoras da Arte – com o ritmo das suas composições?
Esperamo-l’o.

O autor deste ainda hoje notável texto era um jovem que acabara de fazer vinte
anos e se chamava, de seu nome completo, António Júdice Bustorff Silva. Viria a
ser, anos mais tarde, um dos dois mais famosos advogados portugueses do século
XX, juntamente com o seu rival José de Azeredo Perdigão, que foi o primeiro e o
grande Presidente da Fundação Calouste Gubenkian. Azeredo Perdigão, se não fez
propriamente parte do grupo do Orpheu – era um jurista, não era um escritor – estava
ligado por íntima amizade a alguns dos seus membros, nomeadamente a Alfredo
Pedro Guisado e a António Ferro, que vemos nesta fotografia.

A foto faz-nos pensar em como era jovem a gente do Orpheu. Em 1915, António
Ferro tinha 20 anos de idade; Ronald de Carvalho e Almada Negreiros, 22; Alfredo
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 89

Pedro Guisado, Luís de Montalvor e Armando Côrtes-Rodrigues tinham 24; Mário de


Sá-Carneiro, 25. E Fernando Pessoa, fazia o papel de patriarca, com os seus 27 anos de
idade (Azeredo Perdigão era nessa altura um rapazinho de 19 anos).
Deixemos Faro e o Algarve e encaminhemo-nos para Estremoz, pacata vila
alentejana em que, em 1915, se fizeram sentir os ecos do Orpheu.

Num texto sobre a história do Orpheu e dos seus protagonistas, Fernando


Pessoa escreveu que à volta dos “primeiros da revista” havia “outros rapazes, mais
novos, que mais ou menos seguiram, então ou depois, a nossa corrente – uns com
individualidade real e própria, outros com um mimetismo desculpável”. Entre
estes últimos contava-se um jovem de vinte e um anos chamado Fernando Manuel
Carvalho Mourão, que mais tarde haveria de ser engenheiro e, por agora, era poeta.
No ano anterior, 1914, fora director da revista Renascença, em que Fernando Pessoa
se estreou como poeta, publicando as suas “Impressões de Crepúsculo”. O seu nome
figura na “Lista de assinantes” da revista, que Mário de Sá-Carneiro escreveu numa
das páginas do caderno de recortes.
Carvalho Mourão era colaborador do semanário Terra Nossa, de Estremoz, no
qual não perdeu tempo em publicar, em 11 de Abril, contra a corrente dominante
na Imprensa, um entusiástico artigo sobre o grupo do Orpheu, em que, entre outros
elogios, escrevia em estilo “futurista”:

Uma grande obra, com efeito, se propõe erguer esse grupo gentil de inteligencias, que
não pretende Forma mas pretende Essencia, que não anseia Altura mas que busca
Motivo e Côr.
Adivinha-se em toda aquela Realisação o Verbo ignorado e obscuro duma Sinceridade!
Não ha linhas de Colorido nem perfumes de Violeta a engrinaldar em Destaque esse Mundo
90 100 Orpheu José Blanco

que se pretende sentir para viver depois! (…)


Orpheu é no seu conjunto uma psicologia doente mas bela. A Alma passa em delírios de
febre… e canta… e sonha visionando mundos… (…)
Foi esta revista de literatura que a critica de Lisboa, conscenciosa creio, apelidou de “falha de
rasão”, “desconexa”, “imperfeita” e “sem verdade”, em todos os seus periodicos, justamente,
talvez, porque ninguem conseguiu compreende-la.
Um verdadeiro sucesso!

Este artigo de Carvalho Mourão, acompanhado da publicação do soneto “Ante


Deus”, de Alfredo Pedro Guisado e do já então muito célebre poema “7”, de Mário
de Sá-Carneiro, tiveram grande repercussão em Estremoz. Tanta que, no número
seguinte do semanário, publicado em 18 de Abril, um articulista de nome escondido
atrás das iniciais Ú.I., publicava a seguinte interessante prosa, sob o título “Variações
… sobre um velho tema”:

Também a Estremoz, ao meu lindo e bisbilhoteiro burgo, chegaram, mercê do artigo


no nosso anterior numero publicado, as notas extranhamente inéditas e, para muitos,
incompreensivelmente artísticas, da revista Orfeu, que um grupo de novos de valor deu à
lume ha dias (…)
Porque uns tantos de indiscutível talento, fartos do ramerrão do lirismo clássico, uniforme
nas suas sédiças e estragadas formas, criou, artisticamente, um novo género em que as suas
imaginações, sem peias de Forma, dão largas às suas sensações artísticas e aos seus vôos de
inspiração, batendo as asas, livres de obstáculos de Escolas ou Preceitos – levanta-se um
escarcéu e formulam-se opiniões que eu ouvi.
Não é de extranhar; que se pode exigir, o que é de esperar de quem tem o gosto artístico
completamente sem cultivo e as faculdades artísticas a cada passo ofendidas impunemente,
em todos os campos, por mesquinhas e banais produções? (…)
Maior número de pessoa há ainda que foge a sete pés duma qualquer confusa mas
transcendente e sublime audição wagneriana, para se deliciar com a Maria Cachucha ou o
Fado do Ciume.
E ainda outra amostra cuja ideia eu sintetizo numa pergunta: o que tem mais leitores, o
Almanaque das Gargalhadas ou os Sonetos de Antero?
Esta, de prosaicos, completamente desprovidos de educação e sentimento artísticos, se
meterem a criticar o Orfeu, lembra-me aquele sacristão que em latim só sabia dizer Amen e
nas horas vagas, em conversação, versava Homero…
Pois a respeito do Orpheu dizia-me há dias o meu compadre Cosme:
– Não é o mel para a boca do asno.
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 91

Sigamos de Estremoz para Coimbra:

Publicava-se nessa época em Coimbra um jornal com o título O Dever e o subtítulo


Semanário defensor da união da Família Portuguesa. Intervindo na polémica do
Orpheu, um articulista anónimo escreve um longo texto doutrinário sob a forma de
conversa entre dois interlocutores, um dos quais inesperadamente afirma:

Nesse “Orpheu” tão discutível e tão perturbador não encontro só joio. De momento a
momento encontro vislumbres de Arte e pensamentos apreciáveis. É possivel que esses
que têm uma teoria para a escola que pretendem estabelecer, a introduzam em Portugal,
depois de facetada e de purificada dos sem valor que nada mais fazem do que ocupar
espaço.

É em Trás os Montes que encontramos a melhor surpresa: um excelente exemplo


de crítica literária “à antiga portuguesa”:
92 100 Orpheu José Blanco

Em 29 de Abril, o jornal Notícias de Bragança, que se intitulava “Órgão do Partido


Democrático” e era dirigido por Alberto Charrua (deputado durante a Monarquia e
que continuou a sê-lo na República), revelou-se como o mais extreme defensor dos
autores do Orpheu – melhor dizendo, como o mais violento – e virulento – atacante
de quantos diziam mal da revista

Apareceu ha dias nas montras das livrarias uma revista literaria, Orpheu de nome, orgão de
meia duzia de preopinantes, que resolveram lançar neste país o futurismo das letras, dar nas
vistas e irritar os indigenas. Mais ainda que os disparates poeticos que a obra contém me
irrita a campanha indecente que as gentes do meu país fizeram aos homens que ali lançam
as suas produções literarias.
A “Capital” de Lisboa tratou os escreventes de imbecis e mais coisas feias e o Sr. Camacho
da “Lucta” mandou a Rilhafoles perguntar ao dr. Julio de Mattos se tinham o juizo todo.
Que diabo, não compreendo porque tamanho reboliço com estes homens de letras quando,
p’la província qualquer sapateiro se julga com o direito de dedilhar a lira d’Orfeu no
intervalo de duas tombas.
De resto, vá de dizer que Orpheu, ao pé de muita coisa disparatada mas que o autor pôde
julgar excelente, tem produções de gente ajuizada, melhores algumas do que muitas
assinadas por criaturas que criticam a revista.
Aquilo é bonito e, palavra d’honra, eu gosto de muitas coisas que lá vêm. Vi lá mesmo
um bocado de prosa do sr. Fernando Pessoa – O Marinheiro – que é um primor de arte e
literatura.
Mas ha quem não goste porque a revista prospera e este país é um coio de invejosos onde
ninguém pode medrar nas letras sem o perigo de levar um coice do primeiro fazedor de
prosa que aparece a um canto…
E o que é verdade é que este grupo de rapazes audaciosos, se algo mais não conseguiu para
o bem próprio e das letras pátrias, pelo menos deu nas vistas e irritou o indigena, coisa que
não pode deixar de merecer o meu aplauso e a minha simpatia profunda.
Pois venha de lá o 2º. Orpheu, para ver outra vez no ar as ferraduras dos críticos literários
do meu país.

Um dos aspectos interessantes da história do Orpheu foi a repercussão que a revista


teve na Galiza, começando em Santiago de Compostela. E tal repercussão, ao contrário
do que aconteceu com a generalidade da Imprensa portuguesa, foi altamente positiva.
O facto de os críticos galegos terem atentado na revista tem um único responsável:
Alfredo Pedro Guisado.
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 93

Filho de emigrantes galegos em Lisboa, Alfredo Pedro Guisado teve desde cedo
uma ligação muito estreita com a Galiza, mantendo uma rede de relações e contactos
com escritores e intelectuais galegos. Colaborador habitual do semanário El Tea, já
antes de 1915 numerosas produções literárias suas tinham sido publicadas na Galiza.
Não é de estranhar, portanto, que o primeiro número do Orpheu tenha sido desde
logo conhecido na Galiza e merecido referências críticas nos jornais galegos.
Uma das primeiras apareceu no jornal El Eco de Santiago, assinada por Juan Barcía
Caballero, médico de profissão e homem de letras, de 63 anos de idade, respeitado
autor de poesias e prosas de gosto bastante conservador

Sus redactores, seguramente jóvenes y por lo tanto valientes y arriscados, se confiesan


francamente modernistas y dispuestos a romper los viejos moldes y las tradiciones
rutinarias. Y a fe que lo hacen como lo dicen: todo es nuevo allí, la forma, la manera, la
métrica y el asunto. Algunos de los trabajos son verdaderamente extraordinarios, sobretodo
por eso, por ser cosa fuera de lo usado y corriente. Haylos también casi incomprensibles:
tales son ellos de alambicados y febriles – término muy usado por sus autores.
En general sobresalen los trabajos en prosa. Creo que en primer lugar debe citarse O
marinheiro, de Fernando Pessoa. Aunque sutil y quintesencia en demasía, tiene verdaderos
atisbos de genio y atrae fuertemente a toda alma soñadora y filosófica. Puede ser base de
una reputación entera.

Pouco tempo depois, nas páginas do jornal La Concordia, de Vigo, um entusiástico


crítico de nome Jesus Cano, não hesitava em escrever rasgos líricos como este:
94 100 Orpheu José Blanco

Todo el brío, toda la fuerza impulsiva de la juventud intelectual portuguesa, ha dejado su


bridaje suelto en el galopar de sus nobles ansias, de sus altos anhelos, haciendose paso por un
campo florido sembrado com sus propias ensoñadoras aspiraciones y que se llama Orpheu.
La obra de Orpheu es ya una realización. (…) Toda la juventud lusitana está en Orpheu.

Finalmente, num outro jornal de Vigo não identificado por Mário de Sá-Carneiro,
um crítico que assina apenas com as iniciais R.R., contesta a opinião generalizada na
Imprensa portuguesa de que o Orpheu era uma “rapaziada”:

Porque es lo cierto que los fundadores de Orpheu, verdaderos revolucionarios de la pluma,


non son, cuatro mozalhetes almidonados, com muchas pretensiones y sin ningun prestigio,
sino escritores de muy sólida reputación.
Esos jóvenes enamorados de la nueva escuela, por ellos creada, constituyen una hermosa
aristocracía intelectual, la aristocracia del nuevo estilo que sabe entrelazar las opacidades de
melancólicos atardeceres com los bellísimos destellos de doradas auroras.

E exclama no final:

Y hemos de terminar este brevísimo trabajo, dando un fuerte y sincero hurrah! a esos rebeldes
artistas que com tanta valentia y arrogancia vuelven los ojos hacia lo porvenir, despreciando
com una sarcástica sonrisa bajezas, odios y desplantes de cuatro miserables sapos.

Aqui chegados, pergunta-se: mas que tem tudo isto a ver com o título deste texto
– “Orpheu – Regabofe Tiroliro”? Eis a explicação: esta insólita expressão está ligada à
consagração popular definitiva do Orpheu, através da sua subida ao palco do teatro
de revista.
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 95

Na noite de 23 de Junho de 1915 estreava-se com grande sucesso no Eden-Teatro,


a revista O Diabo a Quatro, com texto de Ernesto Rodrigues, Felix Bermudes e João
Bastos (a famosa “Parceria”), e música de Thomás Del-Negro e Bernardo Ferreira.

A Ilustração Portuguesa, no seu número 489 de 5 de Julho de 1915 elogiava a


revista e os seus autores. Um dos quadros de maior sucesso intitulava-se “Os poetas
do Orpheu” e era representado por Nascimento Fernandes, no papel de “Orpheu” e
Álvaro Cabral, como compère.
96 100 Orpheu José Blanco

Nesse quadro, o poeta “Orpheu” parodiava simultaneamente a Manicure, de Mário


de Sá-Carneiro e a Ode Marítima de Álvaro de Campos, recitando:

Pegai num carapau, vesti-lhe uma casaca


Metei dois camarões na cova dum suspiro
Cobri com um véu de noiva os chifres duma vaca
Pegai numa espada e disparai um tiro…
Pum!

Atrelem-me as vergas dos navios…


Enforquem-me em todos os comboios…
Amarrotem-me os colarinhos, quebrem-me os
ossos…
Assobiem-me o Hino da Carta!

E no fim do quadro eram cantadas as seguintes coplas:

Asneirofe, escrevinhari, tiroliro


Regabofe tiroliro
Camion, bom-bom!
Burricófe, cavalati, sela, tiro
Tiroliro
Toma lá piramidon
Fon-fon!

Satanaz, o machacaz que é ferrabraz,


Barrabaz e fariseu
Mas audaz,
Sagaz,
Um dia p’ra que lhe deu?
P’ra ler o Orfeu.
Sabem o que lhe aconteceu?
Satanaz endoideceu!
Orfeu! Orfeu! Orfeu!

Sola, sapato, rei e rainha,


Isto é um mal que dá na pinha!
Pico, pico, cerenico – bis –
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 97

Quem te deu tamanho bico?


Não fui eu!
Nem eu!
Nem eu!
Se calhar foi o Orfeu.
Larga o rabo que não é teu.
Orfeu! Orfeu!
Orfeu!
Asneirofe, escrevinhari, tiroliro
etc.

É pena que não seja possível ouvir a música que Thomás Del-Negro e Bernardo
Ferreira compuseram para esta divertida letra de Ernesto Rodrigues, Felix Bermudes
e João Bastos, talvez a melhor das muitas paródias a que o Orpheu deu origem. Mas
é possível imaginar que os jovens autores do grupo do Orpheu tenham ido ver a
revista – e tenham achado graça à brincadeira…
Orpheu da Arábia
A temática arábico-islâmica no Modernismo português

Fabrizio Boscaglia
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

Palavras-chave: Geração de Orpheu; Sensacionismo; Civilização Arábico-Islâmica;


Orientalismo; Al-Andalus.
Resumo: São aqui apresentados elementos úteis para se investigar o tema arábico-islâmico nas obras
de alguns protagonistas da designada Geração de Orpheu: Fernando Pessoa, Almada Negreiros,
Mário de Sá-Carneiro, Ângelo de Lima, Alfredo Pedro Guisado, Amadeo de Souza-Cardoso e
Ruy Coelho. Procura-se enquadrar esta temática no discurso cultural acerca da identidade
portuguesa, mostrando dados biobibliográficos e histórico-culturais que contribuam para o
estudo da presença arábico-islâmica na história da literatura e do pensamento portugueses.

O sensacionismo é puramente arabe.


Fernando Pessoa (2009: 222)

A oportunidade de se estudar a temática arábico-islâmica no chamado primeiro


Modernismo português é sugerida diretamente e em primeira instância pela obra de
Fernando Pessoa. Este interessou-se pelo passado muçulmano da Península Ibérica
(outrora Al-Andalus; 711-1492) e abordou, por volta de 1916, a presença e o legado
da Civilização Arábico-Islâmica no Orpheu.
Enquanto impulsionador intelectual e teórico do Sensacionismo, a corrente artística
e cultural divulgada pela revista, Pessoa dedicou-se a esta tarefa através de um autor
fictício, o “filósofo” António Mora. Segundo este, existe um «elemento arabe» – isto
é, arábico-islâmico1 – na mentalidade e na cultura portuguesas (PESSOA, F., 2009:
222-227). Trata-se do legado psíquico-coletivo e cultural herdado dos cerca de cinco
séculos de administração islâmica (cerca de oito, de presença ativa na sociedade) no
ocidente ibérico (em árabe, Ġarb Al-Andalus; 711-1492).

1 Pessoa e outros autores citados neste artigo utilizam, na maior parte dos casos, o substantivo e adjetivo ‘árabes’
conforme um costume das Letras portuguesas, num sentido abrangente e cientificamente pouco rigoroso,
para falar dos muçulmanos e da Civilização Islâmica em geral, e não apenas dos naturais da Arábia ou dos
arabófonos (cf. BOSCAGLIA, F., 2015: 44). Sobre a «designação cómoda e genérica» de «Árabes» nas Letras
e na historiografia portuguesas, veja-se a voz «Árabes na Península» no Dicionário de História de Portugal de
Joel Serrão (1984-2000, vol. 1: 166).
100 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia

Segundo Mora, este «elemento arabe» (ou «spirito arabe» ou «arabismo») tinha ficado
latente durante as Cruzadas e a Inquisição católicas («eterno ponto morto do christismo
peninsular») e estava a reemergir na cultura nacional através do Sensacionismo
(PESSOA, F., 2009: 222-223), graças ao renovado contexto político e cultural
determinado pela implantação da República Portuguesa (1910), nomeadamente pelo
intrínseco anticatolicismo desta: «Os sucessivos sucessos revolucionários portuguezes
acabaram por destruir o catholicismo como fé real. [...] Com isso ficou preparada a
emergencia do outro elemento da nossa psyche, até ahi latente: o elemento arabe.»
(PESSOA, F., 2002: 223).
A convicção de a República ser essencialmente «anti-catholica» deve-se a uma série
de medidas («leis anti-catholicas») tomadas logo após a implantação da mesma, que
culminaram na promulgação da Lei da Separação entre Estado e Igreja (1911). Este é o
âmbito político e cultural em que Mora situa a ação dos sensacionistas: «Nascidos com a
geração que estabeleceu a Republica, são, no fundo, anti-catholicos» (PESSOA, F., 2009:
223-226).
Para melhor contextualizar estes elementos, considero necessário referir previamente
alguns elementos da presença arábico-islâmica na história e na história cultural
portuguesas2. Antes e durante o nascimento e o estabelecimento do Reino no contexto
das Cruzadas e da chamada Reconquista (1139), os muçulmanos administraram uma
grande parte das terras lusas (711-1249), deixando um relevante legado literário,
cultural e civilizacional no nascente Reino de Portugal. A partir do século XVI,
logo após a expulsão de muçulmanos e judeus (1496) e com o início da Inquisição
(1536), consolida-se nas Letras portuguesas um processo de parcial ocultação e
menosprezamento deste legado, também condicionado pelo clima religioso e cultural
das novas Cruzadas contra os Otomanos (conquistadores de Constantinopla em 1453).
Com efeito, a literatura e o discurso cultural nacionais irão incorporar durante muito
tempo uma representação estereotipada do muçulmano enquanto o outro, infiel e
inimigo, que consubstanciará aspetos do mito e da narração identitária da portugalidade
ainda no século XX (cf. VAKIL, A., 2003: 257-260). Exemplo paradigmático disto são as
menções aos «Mouros enganosos» e ao «malvado Mouro» n’ Os Lusíadas de Camões (I,
101, 1; II, 7, 6). Apesar disto, durante os séculos das Cruzadas e da Inquisição existem
também alguns casos de arabofilia e de reconhecimento do legado arábico-islâmico em
Portugal, nomeadamente nos romances e nas lendas populares e ainda na dramaturgia
do século XVI (ALVES, A., 2009: 75).

2 Elementos para este enquadramento histórico e histórico-cultural encontram-se em escritos de Adalberto


Alves (2009: 65-95), Elsa Rodrigues dos Santos (2005) e Pinharanda Gomes (1991).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 101

Uma sensibilidade menos vinculada aos referidos estereótipos começa a surgir no


início do século XIX com os escritores românticos, em concomitância com o fim oficial
da Inquisição em Portugal (1821), com o influxo do Romantismo europeu e com as
expedições de Napoleão ao Egito (1798-1801), que marcam o início de uma nova fase
imperialista e colonialista europeia, já não identificada com a ação da Igreja Católica.
Em Herculano, Garrett e Soares de Passos começa a aparecer um recorte psicológico
e/ou um fundo historiográfico e filológico mais complexo e menos estereotipado, no
que respeita à representação do “mouro” e do “árabe”.
Na segunda parte do século XIX, a designada Geração de 70 dedicar-se-á a uma
tentativa de reconhecimento da importância do legado e da cultura islâmicos na
Península. Ainda no início do século XX, tanto a Renascença Portuguesa como a Geração
de Orpheu serão devedoras das criticadas teorizações moçarabistas de Teófilo Braga, da
historiografia peninsular de Oliveira Martins e da historiografia cultural esboçada por
Antero de Quental em Causas da decadência dos povos peninsulares (1871).
Estas referências, aqui sumariamente referidas, são cruciais para se abordar, tanto
a recuperação de um fundo psíquico-coletivo composto (entre outros elementos) de
«atavismos árabes» no Saudosismo de Teixeira de Pascoaes (1987 [1919]: 167), como
a «emergencia do spirito arabe» que Pessoa referia em 1916 no Sensacionismo, através
de uma teoria da mentalidade arábico-islâmica enquanto fusão de um «subjectivismo»
(imaginação, introspeção) propriamente «arabe» e de um «objectivismo» (cientismo,
fatalismo) herdado pelos muçulmanos dos gregos, cuja cultura antiga «foi missão dos
arabes transmittir á Europa» durante a Idade Média e particularmente na Península
(PESSOA, F., 2009: 225). Como referi anteriormente, esta teorização foi entregue por
Pessoa ao quase-heterónimo Mora em 1916 (num período em que o Império Otomano
se dissolvia e era aliado da Alemanha na Primeira Guerra Mundial). Mora detetou uma
identidade entre as características do Sensacionismo e da mentalidade arábico-islâmica:

A essa corrente chamaram os seus membros o “sensacionismo”; se houvessem tido a noção


exacta das origens, ter-lhe-hiam dado, antes, o nome de /neo/-arabismo3, ou qualquer
outro, com o mesmo sentido historico.
Nella renasce todo o spirito arabe no que directamente arabe, não como transmissor da
ideação grega. O enthusiasmo de imaginação, a sensualidade intellectual da meditação e do
mysticismo, o esmiuçamento de sensações e de idéas, taes characteristicas revelam a psyche
arabe, transportada que seja para o nosso periodo. (PESSOA, F., 2009: 222-223)

3 O símbolo // indica lição duvidada pelo autor.


102 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia

A descrição da mentalidade arábico-islâmica como sonhadora e sensualista


é inerente ao chamado Orientalismo, cujas instâncias Pessoa recebia, por volta
de 1916, através das leituras de escritos do orientalista alemão Theodor Nöldeke
(BOSCAGLIA, F., 2015: 169-190).
Enquanto representação estereotipada do “Oriente”, produzida pela cultura
europeia e ocidental «para dominar, reestruturar e exercer autoridade sobre o
Oriente», o Orientalismo é descrito por Said como «estilo de pensamento baseado
numa diferença ontológica e epistemológica estabelecida entre “o Oriente” e [...] “o
Ocidente”». Sensualismo, fatalismo e despotismo são alguns temas e motivos pelos
quais as academias e artes europeias têm vindo a representar, com pretensão de
objetividade, um Oriente tendencialmente «aberrante, subdesenvolvido e inferior»
perante um Ocidente «racional, desenvolvido, humanitário e superior». Said
apresenta estes elementos como «dogmas» do Orientalismo, que «existem hoje na
sua forma mais pura nos estudos sobre os árabes e sobre o Islão», «apesar ou além de
qualquer correspondência, ou ausência dela, com o Oriente “real”»4 (SAID, E., 2004
[1979]: 2-7, 102, 345, 355-356).
Na Geração de Orpheu, o imaginário orientalista (nomeadamente, do “Oriente”
arábico-islâmico) não se enquadra plenamente neste Orientalismo. Por exemplo, o
poema «Opiário» de Álvaro de Campos (escrito «[n]o canal de Sués»; PESSOA, F.,
1915: 82) foi interpretado por Duarte Braga como obra em que existe uma síntese e
ao mesmo tempo uma crítica do referido paradigma orientalista (BRAGA, D., 2014:
389-423). Braga salienta que, neste poema, mais do que a representação do Oriente
enquanto «o outro civilizacional da Europa», o imaginário orientalista consubstancia
uma estética do espaço interior e subjetivo que revela «um outro que é o mesmo,
ou melhor, que se descobre enquanto tal» (BRAGA, D., 2014: 410). O imaginário
orientalista é, logo, utilizado para representar o “espaço interior” e subjetivo do
próprio homem ocidental (português): «[o] Oriente simboliza esse eu profundo e
impossível, porque sempre “ao oriente do Oriente”, a que é necessário aportar. Fumar
ópio seria, assim, a metáfora desse processo de descoberta do “Oriente-alma”.»
(BRAGA, D., 2014: 400).
Outro «distanciamento» perante o paradigma orientalista é detetado por Braga
no poema «Distante melodia» de Mário de Sá-Carneiro (1915a: 13), em que lemos
acerca de «Tapetes doutras Pérsias mais Oriente...» e de «outras Turquias...». Trata-se,

4 Tradução de Pedro Serra. No original: «dominating, restructuring, and having authority over the Orient»;
«a style of thought based upon an ontological and epistemological distinction made between “the Orient”
and (most of the time) “the Occident.”»; «aberrant, undeveloped, inferior»; «rational, developed, humane,
superior»; «dogmas»; «exist in their purest form today in studies of the Arabs and Islam» «despite or beyond
any correspondence, or lack thereof, with a “real” Orient» (SAID, E., 1979: 2-6, 300-301).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 103

aqui, de um Oriente imaterial e “simbólico”, que não veicula em primeira instância


uma ideia de alteridade histórico-cultural, antes uma «interiorização da realidade
em “sonho”», típica da estética sensacionista codificada por Pessoa (BRAGA, D.,
2014: 373-375).
Realidade e sonho, eu e outro, Oriente e o Ocidente... Dicotomias ou polaridades
que se fundem no subjetivismo sonhador de Pedro de Menezes (1916: 12-13),
pseudónimo sensacionista de Alfredo Pedro Guisado (PESSOA, F., 2009: 207-210).
Este, ao representar a batalha de Alcácer-Quibir através de uma ontologia meta-narrativa
(«creio que a batalha | apenas existiu no meu contá-la!»), retrata a figura de D. Sebastião
utilizando um imaginário arabizante: «E el-rei agora é o luar, perdido, | Eco falando em
claustros dum convento | O coração duma princesa moira...».
Em Pessoa ortónimo, o próprio imaginário do Al-Andalus veicula uma ontologia
e psicologia do eu e da saudade:

Outr’ora fui talvez, não Boabdil5,


Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...

Hoje sou a saudade imperial


Do que já na distancia de mim vi...
Eu próprio sou aquillo que perdi...
(PESSOA, F., 1916: 68)

No mesmo período, Pessoa ultrapassa a distinção orientalista entre Oriente


(Civilização Arábico-Islâmica) e Ocidente (Cultura Portuguesa) ao teorizar
de forma programática sobre os seus ismos, clamando: «O sensacionismo é
puramente arabe.» e «Não ha profundo movimento portuguez que não seja um
movimento arabe, porque a alma arabe é o fundo da alma portugueza.» (PESSOA,
F., 2009: 222, 229). Trata-se de uma radical mudança de perspetiva, pela qual
caduca o pilar teórico fundamental do Orientalismo, ou seja, a sistemática distinção
onto-epistemológica entre Oriente e Ocidente. A Civilização Arábico-Islâmica vem
a ser considerada como componente da formação (e/ou da própria essência) da
portugalidade bem como do próprio Sensacionismo enquanto proposta cultural
portuguesa.

5 Muhammad XII (1459-1528), último rei muçulmano do Al-Andalus.


104 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia

Já a partir destas primeiras referências, coloca-se a hipótese de que o tema


arábico-islâmico possa ser lido, na Geração de Orpheu e para além do caso de Pessoa,
como parte de um discurso identitário (psicológico, estético, étnico-cultural) em
que se aprecia um distanciamento e/ou uma ultrapassagem da distinção sistemática
entre o Ocidente – enquanto o mesmo –, e o Oriente arábico-islâmico – enquanto o
outro –, que define filosoficamente o chamado Orientalismo europeu e que conota
historicamente uma parte do discurso nacional português.
Tendo em consideração este quadro hermenêutico, leiam-se agora estes versos
do poema «Fado» de Ângelo de Lima, poeta de Orpheu:

Fado – Mistério Improfundo...


Saudade – Sultana Lenda...
Legenda – História do Mundo...
– Fado – Saudade – Legenda!...
[...]
Canto dolente do Harem...
– Como a Vela ao Vento – Além...
– Ao qual geme o Alfange no Ar!...
– Saudade – Sultana Lenda!...
[...]
(LIMA, Â., 2003: 62-63)

Aqui, o imaginário orientalista (o harém) é utilizado, já não para se dirigir ao


outro oriental, mas sim para retratar elementos comumente tidos como identitários
da cultura portuguesa: o Fado e a Saudade. Enquanto o imaginário estético-literário
é orientalista, não o é a onto-epistemologia cultural e civilizacional subjacente à
obra. Orientalismo e “arabismo” são, aliás, referidos como dois aspetos distintos
pelo próprio Lima numa numa carta dirigida aos autores da revista Orpheu a
8 de abril de 1915, em que o poeta refere o caráter «medieval, sarraceno e, um
pouco ainda, Orientalista» de Orpheu (apud NOGUEIRA, M., 2005: 79). Terá esta
carta acompanhado a escrita de Pessoa/Mora sobre o Sensacionismo enquanto
Neoarabismo?
Seja como for, numa perspetiva de história dos conceitos e das ideias, é pertinente
notar que, independentemente de o Fado ter ou não ter uma influência musical
arábico-islâmica (como foi debatido)6, as raízes etimológicas das próprias palavras

6 Algumas referências textuais inerentes a este debate são fornecidas por Kamila Koncová (2011: 28-31).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 105

Fado e Saudade foram reconduzidas pela Arabística portuguesa7 aos vestígios árabes
da língua portuguesa: ‘saudade’, vindo da palavra árabe sawdā’, ‘melancolia’; e ‘fado’,
de hadū, ‘cantilena de caravana’.
Estas vertentes etimológicas e conceptuais poderão ser utilizadas numa abordagem
comparativa e hermenêutica dos textos de Teixeira de Pascoaes (1987 [1919]: 51-52)
sobre a Saudade enquanto essência psíquico-espiritual da raça portuguesa: «[a]
melancolia árabe e o Panteísmo do norte, definiram, num meio concordante, a alma
dos lusíadas, que se contém no seu primordial e original sentimento da Saudade.». A
oportunidade de se citar Pascoaes neste contexto é justificada pelo facto de Orpheu
se situar, também e em concreto no percurso biobibliográfico de Pessoa, como aquela
revista que, ao distanciar-se do Saudosismo, também se colocava num diálogo crítico
e ativo com ele, como é evidente nesta passagem de Pessoa, escrita por volta de 1917,
possivelmente como comentário a Arte de Ser Português8 de Pascoaes (1915):

O fundo romano-grego-arabe-semita da n[ossa] mentalidade. Viu-o T[eixeira] de Pascoaes


quando, na linguagem nevoenta e absurda dos mysticos, fallou no “aria e semita” em
n[osso] sangue. Mas viu certo, sob a sua confusão verbal. A intuição do mystico  subjaz a
incoherencia do mysticismo. (PESSOA, F., 2012: 47)

Tal como Pascoaes, outro artista natural de Amarante foi Amadeo de Souza-Cardoso,
pintor cuja participação no Orpheu era planeada para o número 3 da revista, que
não chegou a ser publicado na altura. Numa carta enviada à sua futura esposa
Lucie Meynardi Pecetto, em 1910, Amadeo escrevia: «Ha tormentos dentro de mim,
alegrias momentaneas, estados de uma alma complicada. É o sangue arabe que me
gira cá dentro, o sangue visionario, fervendo sem cessar, supersticioso, profundamente
tragico.». Noutra carta dirigida à sua amada, lê-se: «Ontem em Aveiro tinha grandes
desejos de te ter commigo. Aveiro é todo penetrado de canaes do mar, a paysagem é de
um horizonte infinito, a cidade branca como uma mesquita arabe.» (SOUZA-CARDOSO,
A., [1890-1988]: ASC 12/09, 12/04).
Uma veia arábico-islâmica na auto-observação psicológica do próprio Amadeo
bem como na caraterização da paisagem portuguesa é reconhecida pelo artista neste
momento de intimidade e privacidade transposto para carta. Elementos da temática
arábico-islâmica na obra Amadeo são evidentes no caderno de desenhos XX Dessins

7 Veja-se o Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa de Adalberto Alves (2013).


8 Cf. «A alma, a personalidade da nossa Patria resultou, como dissemos, do cruzamento de distintos e nobres
atavismos: celtas, romanos, arabes, fenicios, godos, judeus, normandos, etc; e, por isso, traduz, numa unidade
original e activa, as qualidades herdadas d’aqueles povos.» (PASCOAES, T., 1915: 180).
106 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia

(Paris, 1912), nomeadamente nos desenhos «Mauresques» (‘Mouras’) e «Les chevaux


du Sultan» (‘Os cavalos do Sultão’). Como sugere Ayres de Abreu (2014: 44-45), é
possível que o primeiro tenha sido realizado em concomitância com a produção
da obra musical intitulada 6 Kacides9 Mauresques, composta por Ruy Coelho
possivelmente entre 1911 e 1912, aquando da estadia deste em França. As letras desta
obra são traduções francesas de poemas de «poetas arabes do X século», aos quais o
compositor – que teve significativas relações com os artistas de Orpheu – se referiu
em carta a Teófilo Braga em 1913 e que possivelmente tinha lido no Mercure de France
(1909)10.
Um pormenor do referido desenho «Mauresques» de Amadeo – o umbigo de
uma das mulheres representadas – é a meu ver mencionado numa variante do
poema «Litoral» de Almada Negreiros: «Castelo dos moiros □11 o umbigo da moira
| resto de sarracenos» (NEGREIROS, A., 2001: 203). Este poema, escrito em 1916,
foi dedicado por Almada ao artista amarantino (sobre o qual naquele ano escreveu
também um elogioso manifesto12). Neste texto assim como em outras obras,
Almada representa o Castelo dos Mouros, vestígio do período islâmico de Sintra,
cidade onde ele viveu e que frequentava com agrado. Este imaginário faz também
parte de um certo medievalismo arabizante que é comum, tanto aos referidos
Dessins de Amadeo como à atividade literária e plástica de Almada: por exemplo,
em «Histoire du Portugal par cœur» (1922), no desenho intitulado «Sintra» e no
desenho intitulado «D. Afonso Henriques», em que também é representado um
“mouro” (NEGREIROS, A., 2001: 75, 77). Emerge neste segundo desenho, dedicado
ao “Milagre de Ourique”, o tema das Cruzadas (logo, do chamado choque de
civilizações).
Existe um elemento arábico-islâmico de outro género, na obra de Almada, patente
logo desde o primeiro verso do seu primeiro poema, «Rondel do Alentejo», escrito
em 1913 e publicado em várias edições entre 1922 e 1930. Trata-se de um texto cuja
abordagem é particularmente significativa para o presente estudo. O poema descreve
um baile alentejano e abre-se com uma imagem islamizante (um minarete) que conota
a primeira e a última estrofes, que são idênticas:

9 A palavra árabe qaṣīdah indica um tipo de poema árabe, que pode chegar a ter mais de cem versos.
10 Os referidos poemas foram publicados por Franz Toussaint sob o título «Kacidas mauresques du X.e siècle».
11 Espaço deixado em branco pelo autor, por razões gráficas e estéticas.
12 O manifesto intitula-se Exposição Amadeo de Souza-Cardoso.
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 107

Em minarête
mâte
bate
leve
verde neve
minuette
de luar.

Além de uma referência sonhante, vagamente folclorística e lendária ao passado


muçulmano das terras alentejanas, o poema apresenta elementos que deixam supor
a intenção de Almada em sondar e/ou expressar uma consciência da componente
arábico-islâmica das suas raízes culturais: a esta hipótese leva-me o facto de o Alentejo
ser a terra natural do seu pai, António Lobo de Almada Negreiros; além disso, note-se
que a palavra Almada possivelmente deve a sua origem etimológica ao lema árabe
al-ma’dnah, que significa propriamente ‘o minarete’ (e ‘a torre’, ‘o farol’), o que permite
especular que Almada tenha começado a sua atividade de poeta deixando uma espécie
de “assinatura” arabizante, logo no primeiro verso do seu primeiro poema.
O facto de este poema vir acompanhado, em 1929, do subtítulo «uma obra-prima da
poesia sensacionista» (NEGREIROS, A., 2001: 270), oferece mais uma possibilidade
de o ler no quadro hermenêutico estruturado por Pessoa/Mora em 1916, pelo qual o
Sensacionismo é um Neoarabismo.
Outros temas arábico-islâmicos estão presentes, ao longo das décadas, na obra
literária e plástica de Almada. Ainda no contexto de Orpheu e nos anos imediatamente
sucessivos, emerge um elemento arabista-orientalista na sua escrita poética. Em 1915,
em «A cena do Ódio», em que também existe uma etimologia árabe (alfange, de
al-ḫanǧar, ‘punhal’) que já encontrámos no citado poema «Fado» de Ângelo de
Lima: «Hei-de Alfange-Mahoma | cantar Sodoma na Voz de Nero!» (NEGREIROS,
A., 2001: 23). Em 1919, em «Os ingleses fumam cachimbo», em que também se
nota o imaginário do Canal de Suez (também presente no referido «Opiário» de
Campos e, no século XIX, em várias obras de Eça de Queirós): «Cachimbo de moiro,
| Constantinopla, | Canal de Suez!» (NEGREIROS, A., 2001: 61).
Dois anos mais tarde, n’A invenção do Dia Claro, «o arabe» que rapta a «menina
loira» emerge enquanto uma das figuras centrais da obra (obra em que aparecem
outras referências ao mundo islâmico13) representando o arquétipo do masculino e da
virilidade com o qual o autor deseja identificar-se:

13 Nomeadamente, a «Mahomet» (NEGREIROS, A., 1921: 27).


108 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia

Um homem – saber raptar; uma senhora – merecer ser raptada.


Exemplo de homem que soube raptar: o arabe. Exemplo de senhora que mereceu ser
raptada: a menina loira da oleografia.
[…]
Mãe! eu queria ser o arabe! Eu queria raptar a menina loira! Eu queria saber raptar.
(NEGREIROS, A., 1921: 18, 26)

Seria interessante investigar se uma determinada caracterização (e valorização) do


elemento viril associado à mentalidade e à Civilização Arábico-Islâmica possa ter sido
veiculada pela leitura de Der Antichrist de Nietzsche (1895: § 60), que Almada podia
conhecer ou ter lido. Note-se que este livro possivelmente contribuiu também para o
referido processo de reflexão de Pessoa sobre o «arabismo» no Orpheu (BOSCAGLIA,
F., 2016: 143-158). Entre várias outras referências14 ao mundo arábico-islâmico em
Almada, gostaria de sublinhar a inclusão – e não ocultação – dos «Mouros» numa lista de
elementos que compõem a formação e a história de Portugal, no romance Nome de
Guerra (escrito em 1925):

Poder-se-ia ver Portugal inteiro de uma só olhadela, como no mapa, em aeroplano?


– Palmela e Almada. De cá, Sintra e Santarém. Mouros, Afonso Henriques. Os cruzados.
E desde então até hoje. Até aqui a esta água-furtada. Até mim. Tanta gente e tantos séculos
encarreirados por aqui: as quinas, Avis, caravelas, o pelicano, a esfera armilar, Filipes, azul e
branco, encarnado e verde, e continua. Nada para mim. Portugal.
(NEGREIROS, A., 1997: 347)

Numa perspetiva histórico-cultural, note-se também a latência desta temática no


fresco A Matemática desde os Caldeus e Egípcios até aos nossos dias, realizado por
Almada na Universidade de Coimbra em 1969. Nesta obra, em particular, assinala-se
um diálogo figurativo entre a imagem do matemático árabe e o mapa de Portugal.
As palavras de Duarte Braga (2014: 421) dedicadas à obra de Álvaro de Campos são
também apropriadas para se enquadrar este material de Almada no vasto discurso
sobre o Orientalismo: «a tradição orientalista portuguesa estaria, antes de mais,
preocupada com a fixação da identidade nacional». De um ponto de vista histórico,
é significativo notar que os frescos de Almada em Coimbra foram realizados um ano
após a fundação da Comunidade Islâmica de Lisboa, nas vésperas da Revolução de
1974, que impulsionou um crescente cosmopolitismo na sociedade portuguesa, após

14 A temática arábico-islâmica em Almada Negreiros foi objeto de uma minha comunicação no Colóquio
Internacional “Almada Negreiros: un trait d’union tra arti e culture” (Universidade de Pisa, junho de 2015).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 109

a descolonização que trouxe para Lisboa largos contingentes muçulmanos lusófonos,


naturais das ex-colónias portuguesas e do subcontinente indiano.
O cosmopolitismo foi um dos ideais de Orpheu. O Sensacionismo era, segundo
Pessoa, o movimento cultural mais importante e representativo da «nossa epocha» («a
grande epocha do internacionalismo»15), pois realizava uma «arte synthese de nações
e de epochas e de artes», de acordo com a tendência civilizacional europeia, moderna
e cosmopolita, pela qual «todos os paizes, mais materialmente do que nunca, e pela
primeira vez intellectualmente, existem todos dentro de cada um»16 (PESSOA, F.,
2009: 75-76).
Uma referência futurista e sensacionista à cultura arábico-islâmica, no «transito
cosmopolita» da síntese sensacionista, encontra-se no poema «Manucure» de Sá-Carneiro
(1915b: 104):

–Abecedarios antigos e modernos,


Gregos, góticos,
Slavos, arabes, latinos–,
Eia-hô! Eia-hô! Eia-hô!…

O diálogo deste poema com a «Ode triunfal» de Álvaro de Campos («[...]


árvore-fábrica cosmopolita! | Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!») é enquadrável nas
coordenadas estético-programáticas do Sensacionismo, isto é, na mesma fome de
totalidade expressa pelo próprio Campos e por Pessoa ortónimo («Sentir tudo de todas
as maneiras») e ainda por Almada («poeta d’Orpheu futurista e tudo») (PESSOA, F.,
1915: 82; 2006: 191; 2009: 180; NEGREIROS, A., 1915: [1]). Almada, aliás, ainda em
1960 (13) incluía a arte dos «Árabes» entre as referências que consubstanciaram a sua
busca de um cânone artístico universal, isto é, arquetípico e sintético.
Voltando à «Ode triunfal» de Campos, o poema inclui uma referência ao Canal de
«Suez», que, juntamente com os conteúdos de «Opiário» e de «A passagem das horas»
de 1916 («Dar-es-Salaam») (PESSOA, F., 1915: 82, 76; 2006: 205), representa um
testemunho das memórias que as cidades muçulmanas da África oriental deixaram
em Pessoa aquando do seu trânsito marítimo por aquelas zonas durante a sua viagem
a Portugal (1901), após cerca de nove anos passados em África do Sul (onde vivia uma
comunidade muçulmana, cuja existência o jovem Pessoa terá notado, no ambiente
cosmopolita e portuense de Durban).

15 Nos textos sensacionistas, Pessoa (2009: 189) utiliza a «palavra internacionalismo, ou sua synonyma
cosmopolitismo».
16 Pessoa (1980: 223) afirma que o «cosmopolitismo europeu» é uma das «bases da nossa civilização».
110 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia

Na mesma viagem, Pessoa visitou a cidade algarvia de Tavira, de onde era


originária uma parte da sua família paterna, «na parte mais arabe do paiz» onde os
sensacionistas são «admirados, imitados, discutidos17» e onde “nasceu” Álvaro de
Campos. Este, segundo Agostinho da Silva (1958: 64), tinha «feições ligeiramente
semíticas, que, mais do que o aparentarem a judeus, como julgava Fernando Pessoa, o
ligam provavelmente à grande massa mourisca do Algarve».
É importante relevar que, nos referidos textos de Mora sobre o Sensacionismo
enquanto Neoarabismo (1916), Pessoa chegou a afirmar que a própria capacidade
sintética (logo, cosmopolita) dos sensacionistas tinha sido herdada por estes da
Civilização Arábico-Islâmica do Al-Andalus:

[Os sensacionistas têm] a vantagem typica do spirito arabe: a universal curiosidade activa,
com que acceitam as influencias de todas as bandas, lhes aprofundam o sentido, lhes reunem
os resultados e finalmente as transformam na substancia do seu proprio spirito. (PESSOA,
F., 2009: 223)

Na senda de Oliveira Martins (1880: 65, passim) Pessoa, de forma coerente,


reconhecia, a este respeito, a pacífica convivência e a compenetração cultural entre
judeus, cristãos e muçulmanos, que estes – ao observarem os mandamentos do
Alcorão18 – tinham favorecido na Península: o escritor quis elogiar a «nossa grande
tradição arabe – de tolerancia e de livre civilização», afirmando que «é na proporção
em que formos os mantenedores do spirito arabe na Europa que teremos uma
individualidade àparte.» (PESSOA, F., 2012: 71).
Antes de se tentar detetar uma influência arábico-islâmica no Modernismo de
Orpheu ou de se analisar criticamente as afirmações de Pessoa com a pretensão de
“medir” os seus “reais” conhecimentos acerca do Islão, considero que os elementos
aqui apresentados permitem chegar a uma preliminar e necessária consideração:
na Geração de Orpheu existe, não apenas uma estética orientalista recebida pelas
correntes literárias europeias e criticamente reinterpretada, mas também um
reconhecimento e um esboço de crítica histórico-cultural (este, sobretudo em Pessoa
e em aberto diálogo com a tradição anterior) que têm como objeto uma componente
identitária e um legado arábico-islâmicos na portugalidade, na cultura portuguesa e
na própria arte de Orpheu.

17 Repare-se que a 1 de julho de 1917 o sensacionista Fernando Pessoa publicou – enquanto «Director de
Orpheu» – o poema «A casa branca nau preta» (escrito a 11 de outubro de 1916) no jornal O Heraldo de Faro
(n.º 388).
18 Leia-se: «Não há compulsão na religião.» (II, 256).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 111

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Fernando Pessoa e a filosofia.
Um dialógo com Emil Cioran e John Gray

João Maurício Brás


Clepul

Resumo: A revista Orpheu é uma publicação ímpar na história cultural Portuguesa, a sua
brevidade é sintomática do nosso modo de estar. É contudo sobre Fernando Pessoa que este
texto incide. Defendemos que não é possível uma compreensão ampla de Pessoa sem analisar a
importância da Filosofia na sua obra. Para sustentar esta afirmação: «Numa curta comunicação
e numa dezena de páginas, não ousarei mais que utilizar uma pequena comparação e apontar
alguns fragmentos e apenas de uma das suas obras, O Livro do Desassossego. Convoquei dois
filósofos para estabelecer esse diálogo, Cioran e John Gray.»

A revista Orpheu, independentemente da análise especializada do seu conteúdo,


muito nos diz sobre hábitos culturais e estruturas de fundo do modo de estar luso.
Hoje, a ser possível o exercício, não haveria provavelmente sequer a revista ou a
existir, não teria conhecido maior longevidade. Contém todos os ingredientes do que
é Portugal.
Orpheu foi um projeto inovador, radical, contemporâneo. Conheceu, excetuando
um círculo restritivo e citadino, a indiferença e a crítica negativa, com vida breve,
fecha devido a alguns desacordos e falta de verbas.
Quase tão importante como aquilo que foi, é o que poderia ter sido e os motivos
porque não foi.
O tema desta reflexão não incide contudo sobre o monumento Orpheu, mas sobre
um dos seus principais pilares, Fernando Pessoa.

Um pequeno preâmbulo sobre o universo Pessoano

Fernando Pessoa, este nome ultrapassa há muito qualquer radicação num texto,
numa ação, num livro ou mesmo na obra, com todas as vantagens e riscos de tal
metamorfose. Podemos falar de Pessoa, ter sobre ele uma opinião e nada conhecer ao
certo da sua obra. Algo transcendeu em muito o autor e o seu trabalho.
Corremos o risco de quando dele falamos ou o analisamos, referir, não já Pessoa
e a sua obra, mas o meu Pessoa, o teu Pessoa, o Pessoa do grupo y ou do grupo x, o
116 100 Orpheu João Maurício Brás

Pessoa, por exemplo esotérico, o nacionalista, o da literatura. Faltará ainda um Pessoa


da filosofia.
O escritor tem os seus fiéis e verdadeiros intérpretes e exegetas1, o que é perigoso,
sabemos como os dogmas destroem e chegam mesmo a matar. Nem sei se esta não será
uma limitação à leitura do nosso poeta mor. Quando um autor se torna muito estudado
deixa com frequência de ser lido/fruído e até vivido. A análise tem algo de esquartejamento
e artificialismo. É caso para perguntar, quando falamos de Pessoa, falamos do quê?
Pessoa e tudo o que se seguiu com a sua obra, torna-o também o mais Borgiano dos
autores. Basta rearrumar, cortar, juntar, justapor os seus textos, e temos quase tantos
Pessoas quantos aqueles que pretendemos. Cada um de nós constrói o seu Pessoa.
O que é uma qualidade sem dúvida, mas perturba qualquer compreensão essencial,
a não ser que o essencial de uma obra, seja o dar-se a essa possibilidade de cada um
construir o seu texto e a sua interpretação.
No caso deste texto, Não conseguimos não incorrer no que enunciamos.

É redundante afirmar que Pessoa é um mundo, um universo. Mas esse chavão


legítimo contribui para que o autor deixe de ser totalmente nítido. O problema é duplo,
Pessoa é um mundo e é genial (encarna a literatura, como já mencionamos no sentido
Borgiano), e as lentes para o analisar, ler e fruir, geraram todo um universo, que muito
também deve, quer à capacidade analítica quer imaginativa dos seus exegetas. Não
sabemos até que ponto se tem visto muito mais que aquilo que lá está.
No meu caso, como leitor laico de Pessoa sempre vi nele um autor profundamente
filosófico.
A temática central da vida como sonho e da sensação como a única via de acesso
à realidade, é mais filosófica que literária. A sua filosofia tem contudo um problema,
é principalmente intuitiva, experiêncial e tentativa de sabedoria, e não tanto uma
técnica de conhecimento com o respetivo jargão.
A sua capacidade literária e de criador de universos provoca também uma densa
cortina sobre o conjunto de ideias e experiências que constituem a sua substância.
Pessoa e literatura identificam-se de um modo apenas acessível a um punhado de
autores. Pessoa e literatura são sinónimos. Institucionalmente é um escritor, não um
filósofo genuíno, mas sem a captação das suas referências e experiências de índole
filosófica, ficará bastante empobrecida a análise literária da sua obra.

1 O termo Pessoano já faz parte desse universo. Há os pessoanos e os outros.


Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 117

Numa curta comunicação e numa dezena de páginas, não ousarei mais que utilizar
uma pequena comparação e apontar alguns fragmentos e apenas de uma das suas
obras, O Livro do Desassossego. Convoquei dois filósofos para estabelecer esse diálogo,
Cioran, John Gray.
As citações de Pessoa que utilizo referem-se, portanto, unicamente a esse livro. A
minha conceção tem pouca ou nenhuma relevância, mas como amador considero o
Livro do Desassossego o seu registo autobiográfico por excelência e que só poderia ser
literário. Refira-se que a autobiografia de Pessoa teria que ser algo de essencialmente
mental, «sendo a vida essencialmente um estado mental». O Livro do Desassossego é
uma autobiografia mental de um escritor.

Atendamos nos seguintes aforismos:

«O conhecimento não é possível, e se apesar de tudo o fosse, não resolveria nada.»

«Só tem convicções quem não aprofundou nada.»

«Dividido entre a violência e o desengano, assemelho-me a um terrorista que ao sair à


rua com a intenção de perpetrar algum atentado, se deteve no caminho para consultar o
Eclesiastes e Epicteto.»

«A vida só se tornará suportável no seio de uma humanidade a que não reste nenhuma
ilusão, uma humanidade completamente desenganada e feliz por o estar.»

«Para aquele que tomou o irritante hábito de desmascarar as aparências, acontecimento e


mal-entendido são sinónimos. Ir ao essencial é abandonar a partida e confessar-se vencido.».

«Onde estão as minhas sensações? Desvaneceram-se…em mim, e o que é isso senão a soma
dessas sensações?».

«Ser estéril e com tantas sensações. É a perpétua poesia sem palavras.»

Poderiam ser certamente aforismos de Pessoa, e a sua escrita muito tem de


aforístico. Estes aforismos e encontraríamos centenas, pertencem a um pensador de
fragmentos, Emile Cioran e à obra De l’Inconvénient d’Être Né. Também Pessoa é um
filósofo de fragmentos.
São muitas e profundas as semelhanças filosóficas entre Pessoa e Emile Cioran,
filósofo marginal de origem romena, que viveu a maior parte da sua vida em Paris até
118 100 Orpheu João Maurício Brás

à sua morte em 1995. Ambos escritores e pensadores geniais, marginais no seu tempo,
mas depressa canónicos e eternamente condenados ao mal-entendido da apropriação
pelos pares, às emoções dos leitores e aos dogmas à peça dos académicos.
Pensadores subjetivos e fragmentários. Escreveram primeiro que tudo para
expressar um tremendo desacordo com a vida e tiveram em comum a capacidade
de expressar esse desacordo, que adquire corpo, principalmente nas suas existências,
através das palavras, se bem que ambos desconfiassem das palavras.
Lucidez, desengano, tédio, um pensar orgânico e visceral, a impotência de agir, a
sabedoria mais que o conhecimento, a importância e problematização da clarividência,
o horror e fascínio de ser humano, a inanidade do sentido e da vida, são lugares
primordiais que ambos percorrem de modo muito idêntico. A consciência dolorosa das
nossas alienações, as limitações da nossa condição, o Shakesperiano asco perante a nossa
fragilidade, a dor da diferença e a necessidade de um saber como suportar a vida, em
que cada um encontra o seu conjunto de estratégias vitais, são programáticos em ambos.
São autores demasiado singulares, Pessoa será sempre e unicamente Pessoa, e o
mesmo sucede com Cioran, mas o estado mental, o modo de estar e ver têm muito
em comum. Sendo a respetiva singularidade um traço fundamental assim como o seu
pensar subjetivo, como alcançaram o respetivo reconhecimento?
O pensador subjetivo parte do que sente, do que vive, dos seus caprichos e
transtornos, mas alcança, pela intensidade da experiência particular, aspetos universais
do estar humano. O particular eleva-se ao universal, porque toca o fundo da vida2.
Também Fernando Pessoa, como Cioran, se insere numa longínqua tradição3.
Aquela que de Theognis a Beckett revela muitas dúvidas sobre a legitimidade do ser
humano e sobre as visões predominantes do mundo, ordenado, quotidiano, arrumado
e vigente, o tal mundo tributável. «É outra vez o horror de sempre, – o dia, a vida, a
utilidade fictícia, a atividade sem remédio (…). Sou eu outra vez, tal qual não sou»
(PESSOA, F., VOL II, 1982: 325).
Como viver quando se alcança essa “pavorosa ciência do ver”? Que já não é apenas
sobre um pessoa, lugar ou situação concreta, mas que adquire a ressonância da
própria condição humana? Como viver ainda? E viver, é principalmente na nossa
mundividência, ação.
O Ocidente moderno tem um dos seus pilares fundamentais no culto da ação. É
o agir que realiza e transforma. Sem a ação não há progresso. O êxito, o sucesso, o
mérito advêm principalmente da ação.

2 Fundo da vida primordial, originário, deveriam constituir as características do que se chama verdade.
3 Por exemplo, para Homero, o homem é o ser mais desgraçado de todos aqueles que respiram e existe, para
Platão a vida é desventura, e melhor teria sido para o homem não existir.
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 119

A inação, a quietude, a contemplação tornam-se anomalias e podem mesmo ter


origem numa patologia (psicológica) ou num vício (moral).
Diz-nos Pessoa: «Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia a dia, mais
e mais, se infiltrou em mim a consciência sombria da minha inércia de abdicador.»
(PESSOA, F., VOL II, 1982: 327).
Agir não só expressa como é a potência, não agir provem e resulta de uma
impotência, num menos de ser, numa doença. Agir é produzir, gerar, construir.
Quem não age é o improdutivo, e quem não produz é e está obsoleto, já não serve, é
excedentário, está a mais. São os ritmos modernos do mundo. Aquele que não age4 ou
não privilegia a ação é o inútil.
Ora, paradoxalmente há uma dimensão do não agir, que é prática, remete para
um tipo de conhecimento e modo de estar. Refere Pessoa: «Se erguia dos livros os
meus olhos cansados, ou se dos meus pensamentos desviava para o mundo exterior
a minha perturbada atenção, só uma cousa eu via, desmentindo-me toda a utilidade
de ler e pensar, arrancando-me uma a uma todas as pétalas da ideia de esforço: a
infinita complexidade das cousas, a imensa soma (…), a prolixa inatingibilidade dos
próprios poucos factos que se poderiam conceber precisos para o levantamento de
uma ciência» (PESSOA, F., VOL II, 1982: 326).
A impotência para a ação tem um fator principal, o sentimento e conhecimento da
profunda inutilidade da própria ação.
Esta impotência legitima-se na desarticulação com a narrativa e o modo de estar
“oficial”, ou seja “vigente”, e oferece dois caminhos, a patologia, e um outro, que é
possibilidade de clarividência, de fecundo cepticismo, niilismo e pessimismo. É via
para uma filosofia possível da lucidez e do desengano.
«Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou
ação, que a minha sensibilidade repugna; ou a ação, para que não nasci, ou o sonho,
para que ninguém nasceu.
Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum» (PESSOA, F., VOL II,
1982: 52). Ainda sobre o agir, «A ação desorienta-nos, em parte por incompetência
física, ainda mais por inapetência moral. Parece-nos imoral agir. Todo o pensamento
nos parece degradado pela expressão em palavras, que o tornam coisa dos outros, que
o fazem compreensível aos que compreendem» (PESSOA, F., VOL II, 1982: 53). Mas
há um positivo que se vislumbra na impotência para agir e nos seus correlatos visíveis
do frenesim e da agitação. A lucidez, que exige um deter-nos, um parar, uma não adesão

4 Pessoa quis agir, mas algo se impõe à vontade de agir. Veja-se o exemplo da Mensagem, e a tese original de
Onésimo Almeida, em Pessoa, Portugal e o Futuro (Gradiva, 2014), a estratégia de criar e utilizar mitos como
guia para ação, no que é um projeto político baseada numa teoria pragmática da verdade.
120 100 Orpheu João Maurício Brás

na roda da mudança permanente, seja ela ilusória ou não, do mundo e da existência. A


impotência para agir é uma condição necessária, embora não suficiente para a lucidez.
A lucidez, não se adquire sem um determinado modo de estar que implica
necessariamente um outro modo de ver.
Dizia-nos Cioran que se tivesse que fazer o seu próprio balanço, ele seria o resultado
das suas horas perdidas, do seu tempo desperdiçado. Perda que contudo considera
um ganho. Pois só o homem que se mantem à margem, que não atua como os demais,
conservaria a faculdade de compreender algo de verdade.
Estamos num outro plano do conhecimento e acesso ao mesmo.
Procurar a verdade é indagar sobre o que verdadeiramente importa, para a vida
concreta e vivida. E essa verdade extrai-se a partir de uma experiência não valorizada
social e politicamente. A lucidez não é um conceito científico, não se verifica ou
falsifica, é uma experiência individual. Ora, não há ciência do individual. E como
experiência individual depende de diferentes níveis, físicos, psicológicos e cognitivos.
A lucidez tem origem num desacerto que não é só mental e conceptual. A fisiologia e
a metafísica são dimensões dessa experiência.
Os textos literários de Pessoa estão repletos de uma filosofia que é uma fisiologia
das ideias. Por exemplo, sobre o tédio. Este será algo próprio de quem não tem deuses
nem mitologias: «A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o cepticismo
não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade
de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à
verdade.» (PESSOA, F., VOL I, 1982: 282).
Não se trata do tédio como aborrecimento ou mera experiência psicológica e
sazonal. O tédio que Pessoa refere tem implicações no modo de estar e pensar, não
se trataria de uma doença do aborrecimento de quem nada tem que fazer, mas algo
maior, o sentir que não vale a pena fazer nada. Também Cioran numa entrevista5
ao filósofo Fernando Savater confessa que a experiência do tédio6 dominou a sua
vida. Em Pessoa e Cioran7, este estado não é algo que se combata com distrações,
prazeres ou conversas. Este constitui uma experiência determinante e transforma-se
em interrogação profunda da nossa razão de ser.

5 A entrevista referida foi publicada originalmente no jornal espanhol El País de 25 de outubro de 1990.
6 O tédio é um problema de saúde pública, não interessa aos poderes instituídos, nunca foi bom para a ação.
Parece algo muito literário, mas seria devastador, uma maré de tédio, populações abúlicas, meditativas,
críticas, questionadoras e distanciadas e separadas da vida que vivem sem porquê. Uma multidão lúcida
da sua condição, abúlica por opção, crítica e cética sobre as grandes ilusões humanas, seria o fim quer da
civilização frenética, quer da ideia de homem moderna e ocidental.
7 Se, em Pessoa e Cioran a impotência para agir e o tédio não estão explícitos nos muitos milhares de páginas
escritos, surgem contudo de modo implícito em todas elas. Constituem um fundo criativo e estruturador.
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 121

Se a impotência para agir, é inicialmente algo de visceral e orgânico, transforma-se


em saber, em intelectualização que esclarece os respetivos comportamentos e atitudes
perante a vida. O tédio é a experiência vital que produz uma estranheza radical em
relação ao mundo e se transforma em conhecimento sobre a essência da realidade.
Torna-se tédio metafísico e não devemos temer a palavra metafísica. Essa essência é
a insignificância universal do que somos e a experienciação da nossa presença como
um interlúdio entre um antes e um depois eterno.
O tédio transformado em visão do mundo provoca uma desintegração do sentido
corrente da vida, das visões teleológicas da existência, das conceções finalistas e das
apologias do sentido. A vida não tem sentido, não pode ter, para além das construções e dos
mitos, e o homem é principalmente um animal mitológico. Há então, obrigatoriamente,
uma verdadeira transmutação de todos os valores e hierarquias correntes.
A essência do tédio é o tempo, a relação humana com o tempo. Um tempo
desprovido de objetivos, de metas e que não tende para qualquer tipo de realização.
Esta desarticulação essencial entre o homem e o sentido não é patologia e tem uma
dimensão prática e epistemológica. Permite forjar um tipo de sabedoria, um saber
sem ilusões. Um saber desencantado e feliz por o estar.
A obra de Pessoa com a de Cioran radica numa filosofia do desengano e do
desencanto. Diz-nos Pessoa: «Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor,
porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do
que se quer e menos do que se espera.
Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si
próprio e não ousa ser toda a angústia que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos...
Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto de
nossa Imperfeição...» (PESSOA, F., VOL II, 1982: 30).
A ausência de sentido, não na aceção existencialista, não é apenas deriva literária
ou especulativa. Até mesmo para disciplinas como a física e a biologia, as questões
do caos, do acaso e do aleatório estão há muito “em cima da mesa” como forças que
regem o universo. A ordem e sentido humano são construções, artifícios para tornar
a vida suportável, uma teoria sobre a existência e não a própria existência. Quanto
mais a ciência conhece a estrutura da realidade, mais ela parece estranha e vazia de
significado (veja-se por exemplo as teses de Stephen Weinberg e Jacques Monod), a não
ser para os cientistas influenciados por conceções religiosas, mesmo que não assumidas.
O desengano é um sinónimo desse importante conceito de complexa caracterização,
a lucidez. Para a psiquiatria, a lucidez é o período de sanidade percebido entre
momentos de insanidade ou de confusão mental. Inclino-me para a definição de
lucidez como discernimento, estar atento, alerta, acordado e sóbrio.
122 100 Orpheu João Maurício Brás

Regressemos a essas experiências capitais de dissociação, distanciação e


diferenciação. Recordemos que uma experiência só o é, se resulta de um acontecimento
ou soma de acontecimentos transformados em conhecimento, acontece alguns
humanos transformarem-no em literatura e filosofia.
A visão da inanidade das coisas, do magnífico e dispensável fracasso que é o
humano suporta-se através do desengano. As nossas deceções e fracassos são
elevados a conhecimento. O desengano é o equilíbrio do vencido. O vencido é aquele
que na visão predominante do mundo não é uma figura do sucesso. É episódico o
êxito duradouro da figura do intelectual da cultura. Bicho amestrado para exibir em
eventos.
A lucidez não radica na procura de uma verdade que não existe, mas no assumir a
nossa condição de animal e ser delirante, que depende de mitos e de ilusões necessárias
à vida. Não há verdade, mas verdades construídas que dependem das nossas limitações
e das necessidades de sonhos compensatórios. Procurar a verdade ou desocultar
ilusões pressupõe uma elevada crença, tão absurda como crença nenhuma. O saber
desenganado consiste em viver a ilusão como ilusão e saber que necessitamos dela, tal
como dos mitos. Ir ao essencial não é descobrir nada de transcendente, mas aceder
ao âmago das coisas através da experimentação profunda dessas coisas (as relações, o
mundo, o presente e o futuro, o eu e o nós). Não se procura fórmulas salvíficas, sabe-se
que o saber dissocia do mundo, da vida normal, das felicidades e alegrias imersas no
quotidiano.
Diz-nos Cioran: «Tudo é possível e nada o é, tudo é permitido e nada o é. Qualquer
que seja a direcção escolhida, não será melhor que as demais. Realizar qualquer
coisa ou nada, criar ou não, é tudo o mesmo, como é a mesma coisa gritar ao calar.
Podemos encontrar uma justificação para tudo, como também nenhuma. Tudo é, por
sua vez, real e irreal, lógico e absurdo, glorioso e insulso. Nada é melhor que nada, tal
como nenhuma ideia é melhor do que outra» (CIORAN, E., 2011: 95-96). O filósofo
Romeno faz ressoar nas suas páginas o tom que encontramos em Pessoa, veja-se a
título exemplificativo: «(…) é tarde demais para ser sábio, que em qualquer caso, isso
de nada serviria, sem contar que um mesmo abismo nos devorará a todos, os sábios
e os loucos. Reconheço de resto que sou o homem sábio que nunca serei (…) Toda a
fórmula de salvação age sobre mim como um veneno; desfaz-me, aumenta as minhas
dificuldades, agrava as minhas relações com os outros, irrita as minhas feridas e, em
vez de exercer, na economia dos meus dias, uma virtude salutar, desempenha um
papel nefasto. Sim, toda a sabedoria, age sobre mim como um tóxico.» (CIORAN, E.,
2011: 891).

*
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 123

John Gray é um dos mais importantes pensadores contemporâneos vivo (nasceu


em 1948). Filósofo inglês e professor em Oxford. As suas ideias ousadas questionam o
âmago da nossa civilização, crítico acérrimo do progresso e dos mitos das sociedades
modernas e Ocidentais.
Num fragmento de Pessoa encontrei uma boa síntese do pensamento de John Gray.
No Livro Desassossego lemos: «Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens
haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido
— sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar
porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para
sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na
margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de que são, senão também
os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como
eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia
ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia
biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de
adoração do que qualquer outra espécie animal.» (PESSOA, F., VOL I, 1982: 38)
Este é apenas um átrio para uma crítica ao humanismo, à ideologia humanista
(crença consolidada a partir do Iluminismo), radicada na «abstracção que chamamos
homem» e na crença que o progresso material é sinónimo de desenvolvimento moral e
ético. Esta mundividência substitui a religião, colocando o homem no altar onde estava
Deus, e gerando a maior parte dos erros conceptuais que temos sobre a vida e a nossa
importância. Permutámos um erro por outro erro, quiçá mais delirante. Daqui decorre
uma necessária crítica à egolatria contemporânea que ficará, se houver um amanhã tão
longínquo, como um dos maiores absurdos da nossa imaginação.
John Gray refere diversas vezes, nas suas apresentações públicas, a importância de
abrirmos janelas não humanas para o mundo. O mundo não é exclusivamente algo de
humano e para os humanos. Bastará um cataclismo ambiental (ou um problema grave
com os recursos como a água, ou a falta de petróleo ou eletricidade), e tudo o que é
civilização e valores se esfumará num instante. Bastará olhar para o que vê alguma
ciência, como por exemplo, a astrofísica, e não somos de facto nada. Nada que é tudo,
mas ainda assim, nada.
A redução da humanidade a uma ideia biológica é não só de extrema lucidez como
bastante realista, e está no cerne de muitos debates do fim do século XX e século XXI.
Leiam-se as obras de Gray, Sobre os Humanos e outros Animais (2002) e O Silêncio dos
Animais (2013)8. Trata-se de uma redução que nada tem de pejorativo, nem radica em

8 As datas referem-se à publicação original.


124 100 Orpheu João Maurício Brás

qualquer excesso biologista, antes coloca razoabilidade face aos delírios egocêntricos
da nossa espécie, e aos consequentes devaneios que vivemos como se de verdades se
tratassem. Não somos o princípio e o fim de tudo, nem o sentido do mundo se esgota
em nós, nem tão pouco somos o centro do universo.
O que acabei de expressar, são lugares comuns, mas na verdade vivemos encerrados
na nossa espécie, no nosso universo verbal, nas nossas logomaquias e mitologias, ou
seja vivemos baseados em falsas crenças.
John Gray cita Pessoa no Sobre os Humanos e Outros animais: «Se considero com
atenção a vida que os homens vivem, nada encontro nela que a diferencie da vida que
vivem os animais. Uns e outros são lançados inconscientemente através das coisas e do
mundo; uns e outros se entretêm com intervalos; uns e outros percorrem diariamente
o mesmo percurso orgânico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem
vivem para além do que vivem. O gato espoja-se ao Sol e dorme ali. O homem espoja-se
à vida, com todas as suas complexidades, e dorme ali. Nem um nem outro se liberta
da lei fatal de ser como é.» (GRAY, J., 2007: 117).
Somos animais como quaisquer outros, a nossa superioridade assenta numa
auto-ilusão, somos os melhores no nosso mundo, como as espécies animais são
melhores no mundo delas. Claro que podemos tentar libertar-nos dos nossos
constrangimentos naturais, não só já no plano da crença, seja nas ideologias religiosas
ou laicas, pois temos a tecnologia, mas sabemos como são funestas essas aventuras e
têm principalmente um carácter não essencial, mas instrumental e reversível. Como
podemos discutir a “superioridade” de uma espécie a partir exclusivamente da visão
dessa própria espécie?
Uma das principais teses de John Gray diz-nos que a modernidade e os ideais
iluministas, as crenças laicas, não passam de reapropriações do cristianismo. A
modernidade e mesmo os seus movimentos mais revolucionários são a continuação
da religião por outros meios. O homem é principalmente um criador de mitos. Lemos
em Pessoa: «Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade,
pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como
deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.» (PESSOA, F., VOL I, 1982: 38)
Este é apenas um exemplo das possibilidades filosóficas que decorrem dos textos de
Pessoa, autor que permite continuar a dialogar com outros deste século e certamente
dos próximos, marca da profundidade de um pensamento fundamental.
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 125

Bibliografia

CIORAN, E. M. (1973). De l’Inconvénient d’Être Né. Paris: Gallimard.


CIORAN, E. M. (2011). Oeuvres. Paris: Gallimard.
GRAY, John (2007). Sobre Humanos e Outros Animais. Lisboa: Lua de Papel.
PESSOA, Fernando (1982). Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol. I e
II (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral
Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho). Lisboa: Ática.
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma
tentativa de tradução d’A Cena do Ódio e de Mima Fataxa de Almada
Negreiros

Marco Bucaioni
Università della Tuscia, Viterbo

Palavras-chave: Álvaro de Campos; Ode Marítima; Tradução; Italiano; Almada Negreiros.


Resumo: Faz-se uma resenha das traduções italianas publicadas de Álvaro de Campos e de
José de Almada Negreiros; analisam-se as duas versões mais correntes da tradução da Ode
Marítima, uma de Antonio Tabucchi e outra de Orietta Abbati/Piero Ceccucci sublinhando e
comentando as divergências; tenta-se estabelecer algumas peculiaridades da poesia de Almada
Negreiros, a partir dos exemplos d’A Cena do Ódio e de Mima Fataxa, ambas no prelo pela
tradução de quem escreve.

Não é novidade alguma que Fernando Pessoa obteve fortuna editorial, crítica e
de público na Europa e no mundo. A Itália, não constituindo excepção nisto, é aliás
um dos países em que o maior poeta português do século XX atraiu mais atenção
por parte dos tradutores, das editoras e dos académicos. É quase redundante,
neste contexto, citar a incontornável figura do professor e escritor Antonio
Tabucchi, notabilíssima figura de intelectual quer em Portugal, quer em Itália, e
com certeza a pessoa que mais contribuiu para a “exportação” da figura e da obra
de Fernando Pessoa para Itália. Com igual certeza podemos e temos que afirmar
que Tabucchi, especialmente nos últimos anos, não esteve sozinho nesta tarefa de
tradução pessoana para italiano: muitos outros académicos, tradutores e editores
trabalharam e trabalham para continuar a desvendar os mil e um recônditos cantos
do fragmentário legado pessoano em Itália.
Aliás, hoje em dia já temos grandes contingentes de “pessoanos” italianos,
talvez mais numerosos do que outros contingentes estrangeiros, muitos dos quais
radicados e a trabalhar em Lisboa em directo contacto com o espólio e com o
“espírito” pessoano, para contribuir para esta eterna e inesgotável “leitura” de
Fernando Pessoa.
Se também é verdade que a obra de Fernando Pessoa foi recebida de forma irregular
e nem sempre paralela aos avanços da crítica pessoana portuguesa (assimetrias estas
objecto do trabalho de muitos dos acima referidos pessoanos), nem por isso podemos
128 100 Orpheu Marco Bucaioni

dizer que Pessoa seja um autor pouco conhecido na península mediterrânica, sendo
talvez o único autor português, a par do Prémio Nobel Saramago, conhecido pelo
vasto público italiano.
Em consequência disto, a parte da obra em verso de Fernando Pessoa que
podemos chamar poesia modernista, quase toda contida na obra do heterónimo
engenheiro Álvaro de Campos, já tem uma história de traduções e de edições
diferentes em Itália.
As duas mais importantes, contudo, são a tradução do próprio Antonio Tabucchi,
contida parcialmente dentro da célebre antologia pessoana Una sola moltitudine
(TABUCCHI, A., 1978), e depois publicada em separado, na sua totalidade (até à data),
no volume Poesie di Álvaro de Campos (TABUCCHI, A., 1993) e a mais recente de Piero
Ceccucci e Orietta Abbati, incluída na antologia de bolso em dois volumes da poesia
pessoana, debaixo do título Il mondo che non vedo, e publicada pela BUR (que contém
poesia ortónima) (CECCUCCI, P., 2009) e Un’affollata solitudine (que contém poesia
heterónima), também publicada pela BUR (CECCUCCI, P., 2012). Existem outras
publicações que contêm parcialmente ou inteiramente (até à data) a obra de Campos1.
A razão pela qual, contudo, as primeiras duas edições citadas são consideradas mais
importantes é simples: são as únicas duas edições publicadas por chancelas prestigiadas
de projecção nacional, e que efectivamente se encontram a todo o momento no
mercado, tendo-se encarregado a Adelphi de reimprimir e distribuir quer a antologia
quer a publicação independente com a poesia de Campos continuamente desde a sua
primeira publicação. Nesta comunicação vão ser analisadas as duas traduções da Ode
Marítima de Tabucchi e de Ceccucci/Abbati, tomando este poema como simbólico de
toda a produção de Campos, sendo o maior do ponto de vista material e um dos mais
significativos e marcantes do período modernista português.
A mesma sorte não tiveram, misteriosamente (ou não), os autores que, na segunda
década do século XX, integraram o cenáculo literário a que Pessoa pertencia: José de
Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro. Certo é que o principal e mais conceituado
promotor da fama de Pessoa em Itália, o acima referido Antonio Tabucchi, não fez
muito para que o público italiano ganhasse conhecimento destas duas figuras (o
que aconteceu, em geral, com o resto da literatura portuguesa tout-court). Em geral,
parece que, mesmo os que dedicaram uma parte consistente da sua actividade ao
estudo e/ou à tradução de Fernando Pessoa, concentraram-se muito nele, ignorando
o resto, o que, considerando a vastidão, a heterogeneidade e a profundidade do legado
pessoano, talvez seja mais do que justificável.

1 A primeira foi a de Luigi Panarese, Poesia di Fernando Pessoa, Milano, Lerici Editori, 1967.
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de tradução d’A Cena do Ódio ... 129

Pelo que diz respeito a Almada Negreiros, um possível obstáculo à sua tradução e
publicação no estrangeiro pode ter sido o facto de ainda não terem passado os setenta
anos desde o falecimento do autor, necessários para que, segundo a lei portuguesa, os
direitos de autor, e os conseguintes direitos de tradução, revertessem para o domínio
público, desincentivando desta forma as eventuais iniciativas editoriais. Seja como for,
tivemos que esperar até ao ano passado (2014) para ver em volume duas publicações
com o nome de Almada Negreiros em Itália: o romance Nome de Guerra, traduzido
com o título Nome di battaglia por Andrea Ragusa e a recolha Prosa d’avanguardia,
que contém uma selecção da prosa polémica e vanguardista de Almada Negreiros,
juntamente com alguns textos de ficção (A Engomadeira) (organizado por Valeria
Tocco, com tradução de Valeria Tocco, Andrea Ragusa, Mauro La Mancusa) (ambas
publicadas pelas Edizioni dell’Urogallo de Perúgia). No plano editorial da mesma,
consta para este ano a publicação do volume da poesia, contendo toda a obra poética
de Almada, com tradução de Manuel Masini, de Andrea Ragusa e de quem escreve.
Antes destas publicações, as únicas obras de Almada disponíveis em Itália eram uma
publicação separada d’A Invenção do Dia Claro (ALMADA NEGREIROS, J., 2000)
e uma recolha de manifestos do modernismo português, organizada e traduzida
por Valeria Tocco (TOCCO, V., 2002), de que constavam os seguintes manifestos
almadianos: Manifesto Anti-Dantas e per esteso, Ultimatum futurista alle generazioni
portoghesi del XX secolo.
Ambas as traduções da Ode Marítima (no caso da de Antonio Tabucchi, quer a
contida em Una sola moltitudine, quer a outra) são publicadas em edição bilingue.
Pelo que diz respeito à tradução de Antonio Tabucchi, aqui referir-nos-emos à edição
de 1993.
Ambas as traduções são, como era de esperar, muito cuidadosas e competentes.
Numa primeira leitura, temos que sublinhar como, de modo geral, as duas traduções
são muito parecidas uma com a outra, não apresentando superficialmente grandes
diferenças. Olhando mais de perto, surgem algumas soluções diferenciadas aos
problemas cuja solução menos simples se apresenta ao tradutor italiano.
Sendo o português e o italiano duas línguas que pertencem à mesma subfamília
do ramo kentum das línguas indo-europeias, isto é, a das línguas românicas, muito
frequente é o caso de haver palavras ou frases inteiras numa das duas línguas que
têm um correspondente quase literal na outra, isto é, em que se usam palavras ou
fragmentos que têm claramente uma origem comum. Regra geral, os dois tradutores
têm a tendência para acompanhar este andamento, usando sempre que possível
palavras cujo material morfemático remonta claramente à origem comum. Nestes
casos todos, que porventura são a maioria estatística do português para o italiano, os
dois tradutores têm tendência para comportar-se da mesma forma.
130 100 Orpheu Marco Bucaioni

A maioria das divergências entre as duas traduções encontra-se, por outro lado,
nos restantes casos: os que obrigam o tradutor italiano a buscar uma palavra ou uma
frase que não têm correspondência directa etimológica em português.
Um dos casos mais interessantes é certamente o da tradução do português cio. Esta
palavra, usada quer no seu sentido literal, quer no figurativo, é uma das palavras-chave
da Ode Marítima e, num certo sentido, da poesia de Campos e da Geração de Orpheu
tout-court. Pela primeira vez, de facto, canta-se explicitamente a sexualidade, nas suas
vertentes até promíscuas e ferais, em clara oposição à estética que ainda prevalecia na
altura2. Mais em particular, se a Ode Marítima toda pode ser vista como uma grande
vaga poético-narrativa que anuncia, prepara e alcança o seu clímax para só depois
nas últimas páginas voltar ao “sentado” (desas-)sossego inicial, o conceito de cio («do
mundo, ebriedade do diverso!») talvez seja o verdadeiro motor que inicia a acção toda
e a alimente até ao pretendido clímax.
A escolha de Tabucchi para a sua tradução recai no italiano fregola, que
correctamente traduz o estado de excitação e de disponibilidade para o acasalamento
de certos mamíferos; e, tal como o português, pode ser usado também em sentido não
literal3. Mantendo esta escolha feliz na esmagadora maioria dos casos em que aparece
a palavra cio, contudo, Tabucchi decidiu por três vezes optar por uma tradução
diferente: temos duas vezes foia (TABUCCHI, A., 1993: 83/95) e uma vez calore
(idem: 93), dentro da expressão «gata com cio», que assim fica «gatta in calore». De
facto, é mais comum, em italiano, usar esta palavra, quando, no dia a dia, queremos
referir-nos ao estado dos mamíferos supracitados. É evidente que a palavra calore não
podia ser utilizada no resto dos casos, especialmente se sem referência explícita a um
animal, pois ela também traduz a palavra portuguesa calor, e acabaria portanto por
engendrar ambiguidade na versão italiana. O que é menos evidente são as razões que
devem estar por trás da escolha de foia, por duas vezes, sem que haja nada que force a
abandonar a escolha maioritária.

2 Na medida em que o Campos da Ode Marítima chega a desejar ser chicoteado, violado e até rasgado pelas
mãos e pelos corpos dos seus piratas de sonho, ousando cantar a violação das mulheres, Almada responde
cantando sodomia e lesbianismo, entre outras práticas sexuais, em Mima Fataxa e referindo-se várias vezes
a sensações explicitamente sexuais n'A Cena do Ódio. Além da superfície, porém, estes poemas e as demais
odes maiores de Campos são percorridos por um “cio” não necessariamente material, enquanto “histérico
entusiasmo” para com os vários aspectos da vida e da actividade modernas, como a navegação moderna, o
comércio, as grandes cidades e o cosmopolitismo em geral.
3 «Fregola, [fré-go-la], s.f., 1 Stato di eccitazione degli animali che si ripete con regolarità periodica in
concomitanza con la fase della riproduzione: essere, andare, entrare in f.; avere la f., ‖ SIN. calore, estro, 2
fig. Bramosia, voglia ardente e ostinata: ora gli è venuta la f. dell'automobile, ‖ Mania: la f. della pulizia».
(Dicionário Hoepli).
«fregola[fré-go-la] s.f., 1 Eccitazione sessuale degli animali durante il periodo della riproduzione SIN foia:
andare in f.; estens. volg., stato di sovreccitazione sessuale, 2 fig. Desiderio eccessivo, smania di qlco. SIN
frenesia: avere la f. di fare qlco.» (Dicionário Sabatini Coletti).
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de tradução d’A Cena do Ódio ... 131

Na tradução de Abbati/Ceccucci, pelo contrário, a uniformidade é maior, embora


não seja total. Os dois tradutores optaram por estro com o mesmo valor. Verdade é
que, significando em primeiro lugar brilho ou predisposição para actividades artísticas,
a palavra tem o valor de cio listado entre os seus significados possíveis4. Também
é verdade que o tabucchiano fregola é de mais imediata compreensão para várias
camadas do púbico italiano. Além disso, a tradução estro apresenta um dos problemas
do acima referido calore: sem a justaposição de um termo que coloque a palavra no
campo semântico, material ou figurativo, de cio, o risco é o de resultar ambíguo para
o leitor italiano que, sem qualificativos, pode ser induzido a pensar no brilho, ou na
predisposição para actividades artísticas, ficando longe dos pretendidos, “espasmos”
de Álvaro de Campos. Mesmo assim, Abbati/Ceccucci optam também uma vez por
foia, exactamente na mesma posição em que Tabucchi propõe esta tradução pela sua
segunda vez (id.: 95 e CECCUCCI, P., 2012: 411), onde temos nos dois casos «di cui
sopravvive la foia» que traduz «cujo cio sobrevive».
Outra palavra-chave do poema, sem um correspondente etimológico directo em
italiano é longe, usado como substantivo, em Campos com L maiúsculo. Na primeira
ocorrência, que acontece com um adjectivo («o Puro Longe»), Tabucchi escolhe
traduzir com «la Pura Lontananza» (TABUCCHI, A., 1993: 79), enquanto Abbati/
Ceccucci preferem «il Puro Lungi» (CECCUCCI, P., 2012: 393). A seguir, os tradutores
mantêm a sua escolha («Lontananza» vs. «Lungi», 81 e 397 respectivamente), mas
logo depois Tabucchi decide mudar: ele propõe agora «Largo» (89) enquanto Abbati/
Ceccucci mantêm «Lungi» (405) para depois, quase no fim, também Tabucchi propor
«Lungi» (107). Apesar de mais corrente, a proposta de Abbati/Ceccucci parece
menos imediata em italiano: enquanto lontananza é substantivo neutro e comum
para substantivar o que é longínquo, lungi é uma palavra que tem raro uso como
substantivo, criando um efeito de registo datado.
Oscilações encontram-se ainda na tradução do português vapor enquanto
embarcação: Abbati/Ceccucci mantêm vapore ao longo da tradução toda, Tabucchi
propõe piroscafo que, nas duas traduções, traduz também o paquete, que aparece no
começo do poema.
De entre os nomes de embarcações, assinalamos ainda a diferente escolha feita para
traduzir o português naus: por um lado «caravelle» (TABUCCHI, A., 1993: 125) e
por outro o mais neutro «navi» (CECCUCCI, P., 2012: 447) que geralmente significa

4 «Estro […], 4 BIOL Nelle femmine dei Mammiferi, il periodo dell'ovulazione che le rende predisposte
all'accoppiamento e alla riproduzione: e. venereo» (Dicionário Hoepli).
«Estro 1 Esaltazione creativa dell'artista, del poeta, sinonimo: ispirazione: e. musicale, 2 Bizza, capriccio: gli è
venuto l'e. di scrivere, 3 biol. e. sessuale, nelle femmine dei mammiferi, attivazione del desiderio» (Dicionário
Sabatini Coletti).
132 100 Orpheu Marco Bucaioni

navios. Certo é que nenhum dos tradutores escolhe traduzir à letra pois existiria uma
palavra que se refere exactamente a uma nau em italiano: caracca5. Por outro lado,
certo é, também, que a esmagadora maioria dos italianos não conhece esta palavra, ao
contrário do que se pode dizer do seu correspondente português e dos portugueses.
De qualquer forma, admira um pouco que, no contexto deste longo poema dedicado à
vida marítima, cheio de nomes específicos de vários tipos de embarcações e de vários
objectos de bordo, todos traduzidos com o máximo cuidado por todos os tradutores,
sem necessariamente recorrer a palavras de uso e compreensão comuns noutros
sítios, agora de repente se faça uma escolha em tal sentido6. A escolha de caravelle por
naus tem o mérito claro de ligar desde logo à época dos Descobrimentos, usando uma
palavra de uso comum em italiano. Navi, pelo contrário, sendo mais parecido com
o original por causa do som, não tem qualquer conotação histórica, sendo o que os
linguistas chamam de versão não marcada do substantivo.
Outra coisa interessante a assinalar é a diferente tradução da palavra negro, referida
a ser humano. Enquanto Tabucchi tem «negri» e «negre» (TABUCCHI, A., 1993: 85),
Abbati/Ceccucci têm «neri» e «nere» (CECCUCCI, P., 2012: 403), mais em linha com
o politicamente correcto da altura.
Depois desta rápida revista, é claro que, para qualquer italiano, a palavra fregola
é mais prontamente e menos ambiguamente identificada como cio do animal, com
valor sexual, e portanto da forma pretendida por Álvaro de Campos. Sendo a tradução
de Tabucchi anterior à de Ceccucci, não percebemos a exigência desta mudança.
No caso de Almada Negreiros, esta análise concentrar-se-á em dois poemas: Mima
Fataxa – Sinfonia Cosmopolita e Apologia do Triângulo Feminino e A Cena do Ódio, sendo
os dois poemas longos mais iconoclastas e vulcânicos dentro da obra poética deste autor.
O texto de Almada é muito diferente da poesia de Campos. De alguma forma,
Almada usa palavras mais “difíceis” do que Campos, ao menos do ponto de vista
do tradutor. É evidente o gosto pelo exótico, pelo marginal, pelo pouco usual, que leva
Almada a fazer escolhas lexicais que nos levam continuamente a uma pesquisa incessante.

5 «caracca, [ca-ràc-ca], s.f. (pl. -che), ST Grossa nave a vela, da guerra o da carico, munita di due o tre alberi,
con un castello a prua e uno a poppa e armata di cannoni, usata dai Portoghesi e dai Genovesi dal XIV al XVII
sec». (Dicionário Hoepli).
«caracca [ca-ràc-ca] s.f. (pl. -che), Grande nave a vela con due o tre alberi, due castelli, armata di cannoni,
usata da genovesi e portoghesi nei secc. XIII-XVI». (Dicionário Sabatini Coletti).
6 O mesmo problema teve que ser encarado e resolvido pela tradutora do célebre romance As Naus de António
Lobo Antunes, Vittoria Martinetto, que acabou por fazer a mesma escolha de Abbati/Ceccucci, embora num
contexto muito diferente, como é o de um título, em que há em jogo outras forças (interesse do editor, questões
comerciais, etc...), mas mesmo assim em contra-tendência com os tradutores para alemão e para inglês, que
fizeram a mesma escolha de Tabucchi, chamando ao romance (por exemplo, em alemão): Die Rückkehr der
Karawellen (O Retorno das Caravelas).
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de tradução d’A Cena do Ódio ... 133

Nos dois casos em questão, embatemos com um Almada mais experimental, mais
exigente do que o Campos da Ode Marítima. Se, por um lado, Ceccucci assinala na sua
introdução (CECCUCCI, P., 2012: LXXXIV) que Fernando Pessoa muitas vezes joga
com a língua, torcendo a gramática para os seus fins, e assim dificultando a tarefa do
tradutor; Almada parece querer pegar na língua e renová-la, negando as mais elementares
regras gramaticais, na fúria iconoclasta que lhe é própria, e que talvez represente a melhor
realização da quintessência modernista, no seio da Geração de Orpheu.
Sendo esta a premissa geral, deverá o tradutor aceitar o compromisso fundamental
de desconstrução linguística, não hesitando em repropor na língua-alvo soluções que
na língua-fonte são interpretáveis como “erros gramaticais”, de ordem sintáctica ou
fraseológica, ou neologismos.
Muito poderia ainda ser dito sobre as escolhas dos vários tradutores de Álvaro de
Campos e sobre as possibilidades para uma tradução da poesia de Almada Negreiros.
No entanto, da análise já efectuada das traduções publicadas, o que ressalta é, em ambos
os casos, uma preocupação de rigor e a tentativa de, sempre que possível, seguir de
muito perto o texto. Da tradução mais recente transparece, a certos passos, uma certa
preocupação em actualizar o registo, particularmente no que diz respeito a termos
mais eruditos, o que nem sempre acontece, havendo por exemplo recurso a um tipo de
vocabulário que caíra em desuso já aquando da publicação desta tradução.

Bibliografia

ALMADA NEGREIROS, José de (2000). L’invenzione del giorno chiaro. Pisa: ETS.
ALMADA NEGREIROS, José de (2001). Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim.
ALMADA NEGREIROS, José de (2014). Prosa d’avanguardia. Perugia: Edizioni
dell’Urogallo.
ALMADA NEGREIROS, José de (2014). Nome di battaglia. Perugia: Edizioni
dell’Urogallo.
PESSOA, Fernando (1979). Una sola moltitudine. Milano: Adelphi. (volume
primo)
PESSOA, Fernando (1984). Una sola moltitudine. Milano: Adelphi. (volume
secondo)
PESSOA, Fernando (1993). Poesie di Álvaro de Campos. Milano: Adelphi.
PESSOA, Fernando (2009). Il mondo che non vedo. Poesie ortonime. Milano: BUR.
PESSOA, Fernando (2012). Un’affollata solitudine. Poesie eteronime. Milano: BUR.
TOCCO, Valeria (org.) (2001). I manifesti dell’avanguardia portoghese. Lucca:
Baroni.
134 100 Orpheu Marco Bucaioni

Dicionário Hoepli da língua italiana online:


http://www.grandidizionari.it/Dizionario_Italiano.aspx?idD=1
[6-3-2015]

Dicionário Sabatini Coletti da língua italiana online:


http://dizionari.corriere.it/dizionario_italiano/
[6-3-2015]
A doença em Fernando Pessoa:
cenografias discursivas e consciencialização ficcional

Maria de Jesus Cabral


Universidade de Lisboa

Palavras-chave: Doença; Loucura; Heteronímia; teatralidade; Modernismo.


Resumo: Este artigo começa por questionar a relação entre criação literária e doença em
Fernando Pessoa, patente em Escritos sobre génio e loucura, mas podendo conduzir a leituras de
índole patográfico, pouco valorizadoras, senão contraditórias da problemática do fingimento
poético, determinante na criação pessoana. Tentaremos alargar este ângulo estendendo
a atenção à questão da ficção e da heteronímia, que nos parecem oferecer um quadro mais
apto para apreender um jogo dinâmico de linguagem tornado palco de uma experiência
revitalizadora, estética e humana no contexto de Orpheu e com avatares críticos até nós.

J’ai une maladie: je vois le langage


R. Barthes, Roland Barthes par Roland Barthes

«E tudo é uma doença incurável»

A questão da doença é primordial em Pessoa, convocando desde logo a dor de


pensar, um dos temas mas obsessivos da sua obra, marcada pela pluralidade. Como
não lembrar que ela parte e gravita à volta de Alberto Caeiro falecido de tuberculose
aos vinte e seis anos – um pouco mais jovem apenas que Cesário Verde, que ele tanto
admirava –, ganhando peculiar ressonância no isolamento doentio de um Bernardo
Soares, no transbordamento psicótico de um Álvaro de Campos, ou no caso extremo
de António Mora, internado no manicómio em Cascais, valendo-lhe o título do
«oficialmente louco» (Tabucchi, A., 1994) entre os «doentes» que formam a
coorte pessoana. «Sombras amigas» no olhar impávido do médico Ricardo Reis, à
semelhança dos seus «jogadores de xadrez»?
O livro recente de Kenneth Krabbenhoft, Fernando Pessoa e as doenças do Fim de
século (2011) veio mostrar, com base na edição crítica de Jerónimo Pizarro, Escritos sobre
génio e loucura (2007), quanto Pessoa se embebeu dos principais estudos psicológicos
do final do século XIX e início do século XX, traçando o perfil de um «poeta-psicólogo,
analista de si mesmo e teórico de doenças mentais» (KRABBENHOFF, K., 2011: 11). Mas
para avaliar a premência com que o poeta dos Escritos autobiográficos inquiriu todo
136 100 Orpheu Maria de Jesus Cabral

um leque de teorias psicopatológicas – da manie du doute de Henri Legrand du Saulle


ao délire des négations de Jules Cotard, do atavismo criminal de Lombroso à teoria da
degenerescência de Nordau – basta lembrar que recorrentemente as examinou a partir
do seu próprio caso, na pres/suposição da sua hereditariedade patológica, como realça
Kenneth Krabbenhoft:

Recentemente Jerónimo Pizarro (2007: 68) salientou a preocupação profunda de Pessoa


em relação às doenças mentais manifestadas pelos seus antepassados, em particular por
sua avó Dionísia, que morreu aos 83 anos de «demência senil». No vocabulário psicológico
da época, esse tipo de demência pertencia a uma única categoria de doenças mentais e
fisiológicas, a par da epilepsia, do alcoolismo, da depressão, da abulia, do délire des négations
e de outras ilusões e fobias (Krabbenhoft, K., 2011: 45)

O próprio fenómeno de despersonalização poderia ser entendido como «autoscopia»


ou «alucinação de si-mesmo» na definição de Paul Sollier, cujo Guide des maladies
mentales (1893) consta das leituras mais constantes do poeta (Krabbenhoft, K.,
2011: 33). Estará a conexão entre patologia mental, de herança biológica e criação
na base da obra pessoana, constituindo o «preço do génio» (Idem: 191) conforme
o sugere e parece concluir o estudo de Krabbenhoft, revelando, in fine, o «lado
“iluminado” da degenerescência, que é o dom da criatividade» (Krabbenhoft,
K., 2011: 231)? Mas não estaremos deste modo a incorrer nos riscos do «pacto
biográfico», remetendo a linguagem artística, tão reivindicada pelo criador da poética
do fingimento – em poema ironicamente intitulado «Autopsicografia» – a uma escala
factual, testemunhal? Mallarmé, mentor incontornável da modernidade poética, de
quem Pessoa foi atento leitor (SEABRA, J. A., in PESSOA, F., 1998: 11), afirmara:
«Toute méthode est une fiction», precisando, ainda em Igitur (1874):

Le langage lui est apparu l’instrument de la fiction : il suivra la méthode du langage […]
Enfin, la fiction lui semble être le procédé même de l’esprit humain – c’est elle qui met en jeu
toute méthode, et l’homme est réduit à la volonté (MALLARMÉ, S., 1998 : 504)

A literatura é aqui concebida como um jogo – termo recorrente em Mallarmé, que


define a poesia como devoir et jeu littéraire – em que inteligência e experiência da
linguagem são forças reciprocamente concordantes, num gesto de desautorização
do lirismo biográfico romântico: «devant le papier, l’artiste se fait» (Mallarmé,
S., 1995: 227). O gesto literário supõe, lembrando ainda o poeta de «Crise de Vers»,
a cedência às palavras: «céder l’initiative aux mots» – condensando o princípio de
teatro mental, estruturante na obra dos dois autores, independentemente do género
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 137

adoptado – ou adaptado (CABRAL, M. J., 2012). O seguinte passo de O rosto e as


máscaras (1929) resume essa necessária separação: «De resto, a minha vida gira em
torno da minha obra literária – boa ou má que seja, ou possa ser» (PESSOA, F., 1978:
142).

«Quando por jogo apenas ele tira a máscara»

O «instinto dramático» é apontado pelo próprio na carta de Dezembro 1931 a


João Gaspar Simões como «chave da [sua] personalidade» e único meio possível de
abrir «todas as fechaduras da [sua] expressão» (PESSOA, F., 1980: 175), por oposição
a outras leituras, de índole biográfica ou mesmo psiquiátrica, rebatidas no mesmo
texto e com acutilante crítica a Freud e aos seus seguidores que confinaram a questão
da loucura a uma «interpretação sexual» (Idem). Por outro lado, sabemos a grande
afinidade electiva de Pessoa com Shakespeare, que lhe permitiu consolidar o conceito
de despersonalização dramática, para além de reconfigurações ficcionais várias, como
a carismática personagem do detective William Byng nos contos policiais Tales of
a reasoner escritos entre 1906 e 1907 e recentemente reunidos e publicados sob o
título Histórias de um raciocinador (2012). Aplicando o revolucionário método de
inquérito psicológico «From mental truth» – de perspectiva puramente cerebral, Byng
consegue esboçar uma tipologia de todos os tipos de homens, onde deverá encaixar
o perfil do criminoso. Assim sendo, são os indícios caracterológicos que conduzem
inequivocamente ao criminoso e este ao crime – e não o percurso contrário. Num jogo
especular bastante característico, é por comparação com a maneira do dramaturgo
inglês que o narrador explicita a sua perspectiva mental:

É a percepção da unidade de caracter que confere aos homens altamente imaginativos e


capazes de auto-análise o poder de criar personagens dotadas de vida – um poder que é
muitas vezes (como no caso de Shakespeare) intemporalmente rápido e inconsciente no seu
funcionamento (Pessoa, F., 2012: 66).

O que fundamentalmente interessa aqui salientar, e se oferece relevante em toda a


obra, é essa intersecção entre raciocínio e sensação, de grande densidade porquanto
releva de fenómenos inconscientes. Pessoa rendia assim tributo ao poeta de Hamlet
que percebeu, antes da sua conceptualização, no século XX, a complexidade da mente
humana – a ponto, como sabemos, de servir de fundamento às próprias teorias
de Freud – numa associação determinante entre loucura e método, entre pathos e
logos, a que o próprio Pessoa aderiu e a que se refere nas «Personal Notes» como o 
«Shakespeare Problem» (PESSOA, F., 1966a: 20). Nesse sentido, e mais do que as teorias
138 100 Orpheu Maria de Jesus Cabral

psicológicas vigentes – Krabbenhoft refere várias vezes a insatisfação de Pessoa, em


relação às suas leituras de Lombroso, de Freud, de Júlio de Matos – é ao domínio
artístico e a toda a sua originalidade inerente que o poeta atribui a possibilidade de
penetrar e apreender o mistério da vida interior, na senda das intuições de Mallarmé
e Maeterlinck. À predilecção deste pelo submundo da linguagem, por esse «mare
tenebrarum  où sévissent les étranges tempêtes  de l’inarticulé et de l’inexprimable»
(MAETERLINCK, M., 1999: 455) que é a substância do seu teatro, corresponde a
hipótese do «Mystère dans les Lettres» daquele, assim formulado: «… il doit y
avoir quelque chose d’occulte au fond de tous, je crois décidément à quelque chose
d’abscons, signifiant fermé et caché qui habite le commun.» (MALLARMÉ, S., 2003:
230). Compreende-se assim o interesse de Fernando Pessoa pela obra destes mentores
do teatro simbolista, conforme bem apontou Teresa Rita Lopes desde o seu Fernando
Pessoa et le drame symboliste. Héritage et création (LOPES, T. R., 1977).
Mas tomar o princípio da teatralidade como a essência, o fundamento e, quiçá, a
condição da escrita em Fernando Pessoa permite também historicizar a sua própria
dimensão dentro do projecto de Orpheu de mostrar «originalidade, não relativa,
senão absoluta; isto é, que excedesse as correntes literárias comtemporaneas dos
outros paizes» (Pessoa, F., 2009: 46). Embora reconhecendo o caminho traçado
por nomes expoentes da poesia portuguesa, como Camões e Antero de Quental,
entre outros, Pessoa também considera que este último «mais não fez do que tratar
com personalidade e dolorosa profundeza elementos de inspiração que pertenciam
á esthetica do período em que viveu» (Idem, meu sublinhado). E declara de modo
contundente o ideário da geração de Orpheu: fazer «com caracter absolutamente novo
em relação a qualquer corrente ou obra […] dentro ou fora do seu paiz de origem»,
acrescentando existir nesse primeiro número da revista «elementos para se poder
afirmar [isso] com segurança» (Pessoa, F., 2009: 47).
Ora, para além da cataclísmica Ode Triunfal de Campos e do não menos alucinante
Poema 16 de Sá-Carneiro, Pessoa publica O Marinheiro, «drama estático em um
quadro», texto bastante menos progressista se considerarmos a presença inequívoca
do arrière-texte (Gladieu, M.-M. et al., 2013) do teatro simbolista de Maeterlinck,
pelo qual o poeta português se interessou, nomeadamente as peças L’Intruse e Les
Aveugles (1890), assentes no princípio de um trágico interior dentro do qual opera,
dramaticamente activa, a morte (Cabral, M. J., 2007). Ao fazê-lo, Fernando Pessoa
está assim a prolongar toda uma veia explorada na literatura dramática desde o
fim-de-século com a Belkiss (1894) de Eugénio de Castro, cuja tessitura dramática
dialoga e interage sincronicamente com textos contemporâneos enformados numa
estética simbolista valorizadora do mistério (D. João da Câmara, António Patrício),
e com as próprias incursões dramáticas de Mário de Sá-Carneiro, já dentro do
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 139

Modernismo. Basta lembrar a peça A Alma, composta com António de Ponce Leão
em 1913, ilustração do teatro de «arquitectura interior» teorizado no mesmo ano por
Sá-Carneiro no artigo «O Teatro-Arte (Apontamentos para uma crónica)» publicado
em 1913 no jornal republicano Rebate.
Não sendo pela sua originalidade absoluta que O Marinheiro se alinhou ao lado
dos outros meteoritos do número inaugural de Orpheu – sendo que Fernando Pessoa
cogitara publicá-la na Renascença, conforme o evidencia uma carta a Álvaro Pinto
de Maio de 1914 (Pessoa, 1986: 144) – afigura-se especialmente relevante dar todo
o peso às palavras do autor quando justifica a sua escolha por uma «tragedia que
se passa apenas nos sonhos [ser] contida dentro de uma sobriedade externa difícil
de encontrar fora da Grécia antiga» (PESSOA, F., 2009: 47), sintetizável na equação
perspectiva mental/rarefacção formal. É na verdade o princípio duma «teatralidade
sem teatro», na justíssima expressão de Eduardo Lourenço, enquanto princípio basilar
da criação heteronímica que está aqui patente e que nos leva a pensar que temos em
Orpheu o grande momento de afirmação da originalidade de um processo criativo
onde a alteridade e a pluralidade são fenómenos da linguagem em exercício radical.
É a linguagem que assume a função essencial de pôr os heterónimos em relação
dialógica de linguagem e de pensamento como o têm mostrado os trabalhos de Dionísio
Vila Maior (VILA MAIOR, D., 1994, 2012). É no fundo o que podem alegorizar as
veladoras, cujos discursos se constituem naquilo que se pode designar com Dominique
Maingueneau de cenografias de enunciação (MAINGUENEAU, D., 2004: 190-202), na
confluência das quais surge a figura do marinheiro, toda de ficção, out of the world, mas
com poderosa força de realidade e de concretude, à imagem dos heterónimos.
Derrogando dicotomias seculares (vida/morte, realidade/sonho, visível/invisível,
Pessoa opera através da heteronímia uma união íntima entre os dois sentidos da
experiência humana – racional e existencial, o que lhe permite outrossim experimentar
diferentes modos de sentir e de pensar. O palco mental também é experimental e torna-se
assim experiência vital, fonte e meio de conhecimento que permite corporizações
numerosas e contrárias e, em última análise, justifica o gesto do poema enquanto
fazer – poiein –, enquanto «cálculo» e enquanto «acaso», enquanto invenção de novas
formas.

«É sempre nome, sempre linguagem»

O retorno da questão biográfica a que se assiste actualmente no âmbito dos


estudos literários, a par da valorização da componente contextual da obra literária
«contre l’impersonnalité formaliste» (DIAZ, J-L., 2010: 228), não implica resvalar em
conjecturas biografistas, tão veementemente cominadas pelas correntes estruturalistas.
140 100 Orpheu Maria de Jesus Cabral

Não se trata, na perspectiva de Diaz, de justificar a obra pela vida, mas antes de
acrescentar ao estudo da literatura como jogo ou invenção a possibilidade de
identificação da personalidade literária que a concebeu, que não se confunde com
o perfil social e psicológico do autor, mas entretece com este uma «liaison intime»
(Idem: 104), tanto mais a partir do século XIX em que a literatura se tornou uma
«aventura existencial», conforme explica o autor a partir de vários exemplos da
Literatura francesa, com destaque para Proust. Afinal, é o homem quem cede a
palavra ao artista, e nesse desdobramento em suma bastante teatral, o que escreve
permanece em ressonância com aquele num encontro híbrido de singularidade e
de distanciamento, de ficção e de dicção, como propôs Gérard Genette (GENETTE,
G., 1994) que transcende o homem e in fine a própria obra. Este processo dinâmico
prossegue na leitura, num devir contínuo que permite aquela «coalescência de vários
tempos numa dada unidade de tempo», como disse Manuel Gusmão (GUSMÃO, M.,
2011: 546), e que faz do poema, no sentido lato, aquela «construção antropológica
aberta» (Idem: 182) que dá ao leitor a «possibilidade […] se transformar [e] de ser
transformado por aquilo que lê» (Idem: 186). Do ponto de vista hermenêutico,
esta abertura, já preconizada por Umberto Eco e as teorias da recepção de Jauss e
Iser nos anos oitenta, contracena com o Barthes do Plaisir du texte (BARTHES, R.,
1973), que mais explicitamente manifesta a viragem da famigerada «mort de l’auteur»
(Barthes, R., 1968) para o novo paradigma da leitura e do leitor, na crítica do
último quartel do século XX. Desta sorte, a leitura literária rompeu com as pretensões
objectivistas do formalismo, aspecto já apontado pelo Barthes de Critique et Vérité
aludindo à «eternidade» da obra de arte literária, realizada no movimento dinâmico
da leitura, assente na linguagem e por isso num processo de inovação semântica que
ultrapassa e de certo modo contradiz as interpretações literais, porquanto releva do
«segundo grau» e até do «sonho»:

[U]ne œuvre est «éternelle», non parce qu’elle impose un sens unique à des hommes
différents, mais parce qu’elle suggère des sens différents à un homme unique, qui parle
toujours la même langue symbolique à travers des temps multiples  : l’œuvre propose,
l’homme dispose.
Tout le lecteur sait cela, s’il veut bien ne pas se laisser intimider par les censures de la lettre :
ne sent-il pas qu’il reprend contact avec un certain au-delà du texte, comme si le langage
premier de l’œuvre développait en lui d’autres mots et lui apprenait à parler une seconde
langue ? C’est ce qu’on appelle rêver. Mais le rêve a ses avenues, selon le mot de Bachelard,
et ce sont ces avenues qui sont tracées devant le mot par la seconde langue de l’œuvre. La
littérature est exploration du mot. (BARTHES, R., 1966: 51-52)
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 141

A literatura é exploração da palavra. Parece-me que é essa convicção que comanda


não só a escrita de Fernando Pessoa mas a sua poética de desdobramento teatral,
que, no seu movimento caleidoscópico, faz nascer e sobrepor novas cenografias
e dá origem a novos modos de ser e de estar no mundo, que são também novas
maneiras de escrever. Aproximamo-nos aqui do impulso apolíneo dum Nietzsche do
Nascimento da tragédia quando fala da «bela aparência do mundo do sonho» que
permite ultrapassar e transformar a experiência do sofrimento em sensibilidade
artística – ou gai savoir (Nietzsche, F., 1997). Em Fernando Pessoa, a criação
de figuras heteronímicas ou semi-heteronímicas inscreve-se num jogo artístico de
dimensão teatral, que permite explorar outras formas e outras forças de escrita. O
pluralismo daí resultante abarca géneros literários, tipologias textuais, estilos e
movimentos literários levando a linguagem a sendas estéticas, sensoriais e axiológicas
inexploradas. Ao criar estas novas realidades, ele desenraíza as formas, a linguagem
e outros sistemas de significação da linearidade e do esquematismo. Criar novas
figuras poéticas e reconstruir novos modos de ser-no-mundo é uma forma ao mesmo
tempo de converter as tensões íntimas – consciência/inconsciência, sensibilidade/
inteligência –, sociais – moral/imoral se «a arte deve ser ‘art for art’s sake’» (PESSOA,
F., 1966b: 55), ou traduzir o mal-estar na da civilização, como ressoa o início Lisbon
Revisited – e estéticas – classicismo / modernismo –, próprias de uma época de crise
histórica, social e estética. Não podemos esquecer que o Modernismo onde evolui
Fernando Pessoa e os seus amigos Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros é um
movimento plural, que abrange os vários ismos que transitam para a revista Orpheu
em 1915, numa clara ruptura com princípios unitários – políticos, sociais e estéticos
em vigor. Igualmente se deve ter presente que coincide com uma crise generalizada
dos sistemas de referência ancestrais, artísticos e científicos. A concepção rígida do
espaço e do tempo estava a ser desmantelada pelas teorias de Einstein, ao passo que a
arte evoluía no sentido da abstracção e da intersecção com outros domínios – o que
reflecte também o poema «Chuva oblíqua» – «com uma horizontalidade vertical» e
se alterava também, no domínio da emergente psicanálise, a percepção do sujeito, de
certo modo anunciada por Nietzsche e sua noção de super-homem. No entanto, a
pluralidade que apresenta Fernando Pessoa nada tem de dispersão caótica; antes surge
desdobrada e organizada a partir da mente humana, segundo um princípio ordenador
que pode parecer paradoxal mas o não é se encararmos a mente como um palco
consciente da sua interacção com o corpo, instrumento mediador das suas relações
com o mundo. Por isso, também pode ser incorporada noutro corpo, mantendo com
este uma relação profunda mas oculta, e assumindo a sua individuação numa nova
materialidade – o que mostra a natureza eminentemente teatral do desdobramento
pessoano.
142 100 Orpheu Maria de Jesus Cabral

A nova personalidade artística acaba por se configurar no processo de fingimento


poético numa conciliação sempre renovada entre ordem e invenção (ou razão e
sentimento), dois impulsos artísticos correspondentes a forças complementares e que
poderíamos fazer corresponder às figuras de Apolo e Dionísio.
Mental, ela não tece uma relação mimética com o mundo enquanto tal, tornando-se
a sua própria realidade; no entanto, ela nasce e projecta-se a partir da mundividência
do sujeito poético que vive e se move social e quotidianamente nesse mundo. É porque
oferece ao leitor pontos de identificação com a realidade que a obra de Pessoa cumpre
a função mimética ou força de representação na formulação de Barthes (BARTHES,
R., 1978: 22) nos mesmos termos irrealistas e paradoxais distinguidos por este crítico
para a res literária (Idem: 22).
Numa página sobre «erros mais graves, porque dos mais vulgares», Pessoa observa
precisamente que um deles está

em não se reflectir que na literatura – visto que a sua matéria, a linguagem, é o veículo de
todas as emoções, sobretudo das mais profundas, das que não podem caber na acção, das
que excedem a capacidade da vontade – se reflectem os temperamentos, isto é as somas das
emoções mais profundas, dos que por ela se exprimem (LOPES, T. R., 1990: 55)

Estamos perante um indício marcante da consistência poética e diria mesmo


antropológica do pensamento do autor, que acrescenta, um pouco mais à frente: «O
que nos afasta dos homens aproxima-nos da humanidade.» Se, a partir da linguagem
das palavras e das imagens por elas criadas o discurso poético (no sentido de Poiésis)
permite exprimir e partilhar a dimensão sensível como a característica humana e
subjectiva por excelência, contrariando a redução do homem às categorias estáticas
da lógica per se, então a literatura, ao espelhar a nossa experiência do mundo e a
nossa existência no mundo, tem um peculiar valor de verdade, de humanidade e de
universalidade. Entendida como forma de conhecimento singular do humano no seu
sentido mais complexo e mais profundo, a literatura permite ver e redimensionar
categorias como as emoções que, conforme o vieram demonstrar as neurociências,
suportam o homem na sua dinâmica interna tanto quanto o chamado edifício racional
(Damásio, A., 1994). Decorre daqui toda a natureza transdisciplinar da literatura
e a mais-valia que o seu estudo representa para outros campos disciplinares, como
a medicina, designadamente, discussão que está muito para além dos limites deste
estudo1.

1 Como é o caso da medicina narrativa, movimento nascido nos Estados Unidos na tripla dimensão de
investigação, formação e prática médica por acção de Rita Charon (ver Charon, R., 2006. Narrative Medicine:
Honoring the Stories of Illness. Oxford, Oxford University Press). Em Portugal, desenvolve-se actualmente
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 143

Em suma, mais do que viver um drama psicológico, assente na síndrome da


dúvida e na intuição de uma relação entre génio e nevrose congénita, cremos existir
sobretudo em Fernando Pessoa um enorme impulso de saber e de criação, em clara
sintonia com uma época de rebuliço epistemológico e de grande criatividade em todos
os domínios do conhecimento. O estatuto do poeta fingidor constitui na verdade
a condição ambivalente por excelência para declinar, em vozes e personae diversas,
o «drama em gente», como lhe chama, ou mais precisamente o «drama em poetas:
um poetodrama», segundo o conceito de José Augusto Seabra (SEABRA, J. A., 1988).
Nas suas metamorfoses, essa pluralidade representa uma conquista da linguagem
ampliada à dimensão de mundos possíveis.
É, no fundo, a partir da linguagem «posta em cena» (BARTHES, R., 1978: 18) que a
terrível « única realidade» pode assumir novas cenografias e significações, ganhando
uma nova atmosfera vivencial, diria Mallarmé, para lá das calhas de corda da existência
– qual rochedo de Sísifo. Foi dessa carência e das possibilidades infinitas que ela abria
que Pessoa teve aguda percepção, numa confluência exemplar entre discurso literário
e cons/ciência da linguagem.

Bibliografia

Bibliografia activa:
PESSOA, Fernando (2012). Histórias de um raciocinador. Lisboa: Assírio &Alvim.
PESSOA, Fernando (2010). O Marinheiro [Introdução, estabelecimento de texto e
notas de Claúdia F. Souza]. Lisboa: Edições Ática.
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Pizarro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
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no âmbito do Projecto interdisciplinar «Narrativa & Medicina» sediado no Centro de Estudos Anglísticos
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Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos
textos poéticos almadianos no Orpheu

Piero Ceccucci
Universidade de Florença

Palavras-chave: Almada; Frizos; Scena-do-Ódio; Orpheu; Modernismo.


Resumo: Como se sabe, o conjunto de textos em prosa-poética, inseridos por Almada Negreiros
com o título «Frizos» no primeiro número da revista Orpheu, devia ser assinalado, ao menos
nas intenções do poeta, por uma distanciação resoluta das poéticas do Simbolismo e do
Decadentismo, que, embora se possa inscrever no Paulismo, há poucos anos experimentado
por Pessoa, de facto traduz claramente um discurso poético ainda ligado à linguagem e às
sugestões simbolistas e decadentistas. Pelo contrário, nos trechos de A Scena do Ódio, que
deviam entrar no terceiro número da revista, o conúbio entre a linguagem da escrita poética e a
das Artes plásticas encaminha decididamente e de toda plena consciência para o Modernismo
português, de que o Nosso autor se tornará uma das principais figuras no meio cultural do
País. Com este trabalho entende-se investigar, através de uma análise pontual, sobre o papel
pervasivo das artes plásticas na Poesia de Almada; assim como o traço peculiar, dado por ele,
aos movimentos de vanguardas em Portugal nas primeira décadas do século XX.

Há quem persista em que Orpheu foi o


início de um épocal das letras, quando,
a final, era já a consequência do encontro
das letras com a pintura.
(NEGREIROS, J. A., 1993: 1741)

O significado histórico do Orpheu é maximamente


o de ter sido um movimento de vanguarda. É assim
que ele faz parte da nossa experiência contemporânea.
A sua sobrevivência é a sua permanência na nossa
memória antológica onde tudo se torna contemporâneo.
(HATHERLY, A., 1975: 8)

1 Escrito para comemorar o cinquentenário do Orpheu, Edições Ática, 1965;


148 100 Orpheu Piero Ceccucci

Por ocasião do sexagésimo aniversário do lançamento da Revista Orpheu, Eduardo


Lourenço escrevia:

O verdadeiro rosto de Orpheu não pertence nem aos que o inventaram nem aos que,
fascinada ou distraidamente, experimentaram a necessidade de o contemplar. Pertence
à forma mesma do presente sempre outro e sempre futuro, à sua específica maneira
de exorcisar o seu próprio enigma ou de o ignorar ignorando-se. Desse presente ou
presente-futuro poderá até descer sobre Orpheu aquele “esquecimento” que é o tributo de
tudo o que existe ao que não existe. Todavia, nem nesse esquecimento (para outros que
não nós) Orpheu perderá a sua imperdível figura. Ela mesma emprestou voz humana, tanto
quanto nela cabe, à visão da existência como “esquecimento”. E quem o esquecer nela se
lembrará (LOURENÇO, E., 1975: 9).

Na intenção de querer oportunamente glosar este breve e incisivo enunciado de


Eduardo Lourenço, amigo e mestre de sempre, não posso deixar de sublinhar como
o presente Congresso Internacional sobre o primeiro centenário do nascimento da
revista se coloca louvável e oportunamente na senda do pensamento eduardiano, vindo
a celebrar um evento que indelevelmente marcou e ainda hoje marca a cultura lusófona,
in primis, e, no mínimo há mais de cinquenta anos, a de todo o mundo ocidental.
No entanto, esta alta assembleia, obviamente, não basta para remover – nem sequer
psicologicamente – o improvável esquecimento, quanto a sancionar o reconhecimento
devido e definitivo da imperdível e perenemente vital força propulsiva no campo
das letras e das artes, que a revista, com o seu indubitável fascínio, exerce até hoje.
Portanto, mais do que a comemoração de um tempo e de um clima passados, inscritos
e representados em Orpheu, somos aqui chamados – se fosse necessário esclarecê-lo – a
imprimir novo impulso criativo de leitura aos postulados modernistas, ao menos aos
mais próximos das instâncias filosóficas do nosso tempo e dos anos vindouros. O que
só se poderá verificar proficuamente, se nós entrarmos novamente, com olhos espúrios
de antigas hermeneuses, ainda que louváveis, no esforço de compreender o impacto
delas na história civil e cultural do tempo, nos textos deixados nos três números da
revista – incluindo o terceiro, embora ficasse inédito durante muitos anos2 – por cada
performer modernista, dando vida à cena cultural lusitana do princípio do século vinte
com o seu engenho, o seu entusiasmo e a sua operosidade.

2 Foi publicado em 1984, primeiro numa edição fac-similada das Edições Nova Renascença, depois, numa
cuidada crítica textual pela mão de Arnaldo Saraiva, pelas Edições Ática, em julho do mesmo ano. Para
informações mais detalhadas sobre as primeiras edições de Orpheu 3, vd. a «Avant-propos», ainda de Arnaldo
Saraiva, colocado no espaço paratextual das edições em questão, nas pp. III-XLIV.
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 149

Portanto, é ao longo do eixo destas enunciações e com claras intenções especulativas,


abertas no entanto ao confronto e ao debate que, aproveitando desta extraordinária e
irrepetível ocasião, me cinjo a orientar aqui um olhar crítico “outro”, conduzido sobre
dois famosos escritos, Frizos e a Scena do Ódio3 de Almada Negreiros, inseridos nos
números 1 e 3 da revista. Pretendo selecioná-los como textos paradigmáticos de um
percurso de maturação ideológica e poética – no sentido modernista – efetuado por
este poeta-artista no breve arco de tempo de vida da revista, convicto, como estou,
que é no campo concreto da prática da poesia, que o génio do nosso Autor dá os seus
frutos literários mais fecundos. As obras citadas, como teremos ocasião de verificar
mais adiante, inundadas por uma vasta gama de implicações estilístico-discursivas,
prestam-se realmente a uma atenção ao novo dizer poético das vanguardas europeias,
que estavam a encontrar em Portugal uma sua, frequentemente original, dimensão
expressiva, a que o Nosso poeta já há uns anos se mostra particularmente sensível.
Em tais obras, podemos certamente encontrar, exemplarmente, a mise en scène,
fundamentalmente no plano da realização prática, mais do que sobre a teórica, da
passagem do decadentismo francês e do simbolismo declinante, enfático e barroco,
da escola portuguesa – que, por mérito de Pessoa, tinha aproado, embora com uma
dimensão pragmática e teórica no Paulismo – às múltiplas formas experimentais das
vanguardas (cubismo, futurismo, sensacionismo e outros -ismos), que na segunda
década do século XX, além dos Pirenéus, sobretudo em Paris, caleidoscopicamente,
alastrando-se a todas as Artes e acendendo debates críticos e polémicas sem fim,
tinham chegado às margens do Tejo.
Desde o primeiro número, de facto, com as doze breves composições em prosa-poética
de Frizos, Almada traduz uma ainda forte ligação com as poéticas de fim de oitocentos
do Simbolismo e do Decadentismo, nas quais, frequentemente, afloram também
ecos não apagados do Romantismo (MAGALHÃES, I. A., 1987: 50). Como
perspicazmente sublinha Isabel Allegro de Magalhães, onde, referindo-se à prosa da
primeira ‘Mima-Fataxa’ de Frizos, afirma que se trata de:

uma prosa breve, compacta, que é por sua vez uma estampa de cigana. A cena é ainda
romântica: um muro branco de cemitério, em que se apoia esbeltamente a figura exótica:
Mulher-objeto, mulher-animal, mulher-desejo, a sua descrição obedece de perto ao
cânone romântico. E até usa aqui o poeta-pintor, na descrição do seu corpo – corpo de
beleza estranha, corpo escuro e ferino de mulher-natureza – estilemas que são do mais
óbvio cariz romântico (Id.: 50-51).

3 Na elaboração destas breves notas, utilizarei para os dois textos e para todas as citações, que irei efetuando, a
ortografia em vigor no tempo de Orpheu.
150 100 Orpheu Piero Ceccucci

Não só em ‘Mima-Fataxa’, mas em outros textos ainda aflora, por toda a parte, de
modo muito nítido, todo um conjunto de estilemas românticos, como, por exemplo,
para citar um entre muitos outros, em Sèvres Partido, no qual – não obstante
eloquentes referências simbolistas, já encerradas no título, evocadas pelo narrado
inscrito no desenho de uma fina porcelana despedaçada – transitam nítidos elementos
românticos de entoação fabulosa, como, por exemplo, no texto seguinte:

A amazona negra era bela como o sol e triste como o luar, e ninguém acredita mas era
pastora de galgas. Figura negra muito esguia, cipreste procurando vagas na margem do
caminho.[...] Sobre a relva, na sombra arrendilhada das folhas amarelecidas dos plátanos
onde os repuxos do tanque cuspiam lágrimas de vidro, a Amazona negra sonhava o seu
Príncipe encantado e a galga do dia dormia quieta, estendido o focinho no ventre d’Ela.
(NEGREIROS, J. de A., 1993: 69)

Efetivamente, a descrição envolvente, de tipo ecfrástico, das feições da bela


Amazona, e os traços rápidos de sábias pinceladas, com que o sujeito introduz a
paisagem que faz de pano de fundo à cena, não podem deixar de remeter para um
delicioso quadro de vida campestre, tão caro aos Românticos, nos quais, no entanto,
não faltam sequer diáfanas referências simbolistas, como o enunciado «… os repuxos
do tanque cuspiam lágrimas de vidro», introduzido pelo eu poético como prenúncio
do epílogo infeliz da historieta narrada, sublinhado tanto pela imagem do «sèvres
partido», como pelo outro enunciado de evidente entoação crepuscular, «Uma flauta
triste vinha de viagem pelo caminho; chorava de seguida imensas canções de choro e
tinha acompanhamentos funéreos de guisalhadas surdas» (ibid.).
Sem esquecer a lição dos importantes estudos já efetuados sobre Frizos por Celina
Silva (SILVA, C., 1994: 102-103), Ellen W. Sapega (SAPEGA, E. W., 1992: 21-29) e
Maria de Fatima Marinho (MARINHO, M. de. F., 1996: 63-71), não podemos ignorar
quanto os doze mini-textos4, se delineiam inegavelmente como eivados invadidos
por uma evidente discursividade poética, ligada ao cânone estético da poesia
saudosista, pensado e elaborado por Pessoa nos dois célebres artigos, «A Nova Poesia
Sociologicamente Considerada» (PESSOA, F., 2000: 7-35) e «A Nova Poesia Portuguesa
no seu aspecto Psicológico» (PESSOA, F., 2000: 36-67), publicados na revista A Águia
de Porto em 1912. Sobretudo no segundo, no qual Pessoa enuncia perentoriamente, à
sua maneira, as linhas portantes das suas concepções, em matéria de poesia, e que, com

4 O poeta não inseriu o texto “Silêncios”, que se publica na edição Obras Completas – Vol. I, cit., p. 67; e que,
como recorda Ellen W. Sapega, talvez composto em 1913, tinha sido publicado em Portugal Artístico, n° 1,
Março de 1914.
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 151

extrema síntese, como é sabido, se substantivam em três elementos, caracterizantes o


novo dizer poético, cuja estrutura espiritual é constituída pelas ideias do vago, da
sutileza e da complexidade (id.: 42), paradigmática e penetrantemente encenadas no
conhecido poema-manifesto Pauis de 1914.
Almada, embora ainda substancialmente ligado, como acima referido, às
concepções próprias do Simbolismo mais maduro português, acolhe o verbo
pessoano do Paulismo que no entanto ressoa – em certos estilemas, ligados a
atmosferas noturnas, às ânsias e às inquietações da alma e ao sentido do mistério
– explícitos elementos constitutivos do Crepuscolarimo europeu, dominado por
uma atitude fundamentalmente pessimista, que atravessa a civilização decadente
europeia e encontra os seus fundamentos teóricos na filosofia de Schopenhauer e de
Nietzsche, na psicanálise de Freud, no intuicionismo de Bergson e no existencialismo
de Kierkegaard. Intelectuais, estes, que não só interpretam a crise da civilização e
dos valores do seu tempo, mas elaboram uma nova concepção da realidade, que
agora se apresenta incompreensível, misteriosa, caótica, irracional e de improvável
enunciação, solicitando e justificando o aparecimento de um tipo de discurso poético,
no qual os conteúdos revestem agora menor importância relativamente a uma “forma”,
procurada em refinadíssimas realizações, ao ponto de ela assumir cada vez mais valor
de conteúdo, enchendo-se de significados, que muitas vezes deixam estupefatos. A
forma, em suma, é já o conteúdo.
No entanto é, no que concerne ao discurso poético de Almada, sobretudo o
indivíduo que, focado na sua dimensão interior, nas suas inquietações mais profundas,
se lhe perfila como dobrado sobre si mesmo, imerso no sonho, tocado por um sopro
de leve, vaga melancolia que induz à solidão e, ao mesmo tempo, não sem antonímias
concetuais evidentes, ao sensualismo, à voluptas. O todo levemente veiado daquela
subtil ironia, à vezes destemperada no humour e na sorridente malícia, que desvanece
o excesso de visões e sentimentos atormentados e predispõe a alma a abrir-se ao novo.
É neste ponto que o artista, com a sua personalidade extravasante e turbulenta, não
isenta de desejado divertissement, chega à tertúlia da Brasileira e, em consequência, à
revista Orpheu, onde, no entanto, com uma postura mais compassada, encena a série
de mini-textos, dando o seu próprio contributo à revista, desde o primeiro número,
com Frizos.
Esta obra apresenta-se como um conjunto de textos em prosa poética, que, como
acima mencionado, embora constituídos por diversas temáticas, são realizados
com uma linguagem simples, de novela popular, aparentemente distanciada, fria.
Permeados por uma leve plasticidade descritiva, delineiam-se quase como aguarelas
graciosas, de cores ténues, cor pastel, que denunciam não só a proveniência da arte
pictórica do autor – de resto, já explicitada por ele próprio, no peritexto, constituído,
152 100 Orpheu Piero Ceccucci

para além do título, pelo nome do autor, precedido pela indicação da própria
qualificação profissional de desenhador, a que faz eco iterativamente à de pintor posta
ao lado da assinatura: «José de Almada Negreiros – Pintor» (NEGREIROS, J. de A.,
1990: 39)5 do texto, que segue a «Introdução» no l° volume da INCM, de Jorge de Sena
(SENA, J. 1982)6 – mas também a presença em muitas figuras encenadas (os Pierrots,
os Arlequins), imbuídas dos sucos, no estilo linear, claro e exacto, do Cubismo de
Picasso, quase a querer sublinhar com orgulho a sua escolha de vida profissional para
as artes plásticas.
De resto, o mesmo título de Frizos, que acolhe e apresenta o conjunto dos rápidos
contos, como segmentos constitutivos de um único quadro pictórico, convoca um dos
elementos mais caros à gramática do imaginário iconográfico do Simbolismo plástico,
remetendo para um signo ornamental da antiga arte arquitetónica grega7.
O lema, assumido pelo autor, não se limita, porém, a uma simples referência de
intenção decorativa, embora importante na estratégia comunicativa simbolista, tanto
em literatura como nas artes figurativas, mas apresenta-se, tout de abord, para uma
maior e mais pontual significação e descodificação do discurso poético veiculado,
como vontade de dissociar o signo, inscrito na imagem, do seu sentido codificado
para o transformar em visão alegórica, enunciativa de uma vasta e polivalente gama
de significados alusivos ou evocativos, como o sentido do belo, inscrito no lema
frizo, que emoldura a cena envolta em símbolos ambíguos e inesgotáveis, como os
do ornamento em si, do luxo, dos ouros, das pedras preciosas, das joias, dos tecidos
requintados, das sedas, que em Itália – para dar um exemplo – tinham encontrado
um inimitável cantor em Gabriele D’Annunzio, portador de um hedonismo sensual
e caprichoso (D’ANNUNZIO, G., 1982: 55-56)8, enquanto, para dar um outro rápido

5 Refiro-me explicitamente a: J. ALMADA NEGREIROS, «Prefácio ao Livro de Qualquer Poeta”, in Obra


Completa, Vol. I – Poesia, cit., pp. 35-39, que segue o texto «Almada Negreiros – poeta» de Jorge de Sena,
inserido de «Introdução», no Vol. I – Poesia da Obra Completa, cit., pp. 9-33;
6 Na verdade, trata-se de uma conferência, dada por Jorge de Sena na Sociedade Nacional de Belas Artes a 12
de fevereiro de 1968, publicada pela primeira vez na revista Nova Renascença, n° 7, Vol. 2, Primavera, 1982, e
recuperada, con a permisssão de Mécia de Sena, viúva do crítico, à laia de «Introduzione».
7 Com o lema “friso”, na actual norma ortográfica portuguesa, levado à letra, pretende-se denominar, come
se sabe, a parte ornamental na coluna dórica grega, intermédia de um “entablamento”, situada entre “a
arquitrave” e “a moldura”. O “friso” era constituído por uma placa de mármore com três tríglifos verticais,
alternada em painéis com relevos esculpidos (métopa). Em sentido lato, pode indicar qualquer decoração
pictórica ou escultura em baixo-relevo de uma faixa ornamental.
8 Escrevia Gabriele D’Annunzio ao seu editor, o príncipe Maffeo Barberini Sciarra Colonna: «[…] Por
temperamento, por instinto, preciso do supérfluo. A educação estética do meu espírito arrasta-me
irresistivelmente para o desejo e compra de coisas belas. Eu teria podido perfeitamente viver numa casa
modesta, sentar-me em cadeiras de Viena, comer em pratos comuns, caminhar num tapete de fabrico
nacional, tomar chá numa chávena de três vinténs […]. Ao contrário, fatalmente, quis divãs, mármores,
bibelôs, todas as coisas inúteis e belas que eu amo com uma paixão profunda e ruinosa.»
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 153

exemplo, no campo pictórico, é inevitável a referência à Salomé de Apparition [1876]


de Gustave Moreau, como máxima realização plástica da faustosidade desmedida
e da luxúria das cortes depravadas de baudeleriana consagração poética. Com isto
atinge-se a codificação e ostentação daquela floresta de símbolos, aos quais nem
sequer poetas e artistas portugueses permanecem estranhos. Dois nomes entre todos:
o Mário de Sá Carneiro (1890-1916) do poema «Salomé» de Indícios de ouro, pelo
género poético e – ainda que orientado para temáticas de introspeção psicológica e
da alegoria da vida humana, mais do que sobre as do brilho dos ouros e das pedras
preciosas, impelido para a exploração dos territórios das emoções e da intuição – o
António Carneiro (1872-1930) do tríptico A vida: a Esperança, o Amor, a Saudade
[1899-1901], para género pictórico.
Ora, mesmo na impossibilidade, por óbvios motivos de tempo, de levar a cabo uma
análise exaustiva sobre cada uma das doze narrações, não posso deixar de me deter
alguns instantes para tecer algumas breves considerações sobre o último quadrinho
«A Taça de Chá», que se coloca como corolário hermenêutico de toda a obra, onde
ele denuncia, em letras claras, a predominância dos elementos plásticos, ligados em
fio duplo ao cânone cubista, a partir do momento em que se configura como última
tessela significante de um conjunto de figuras planas entre si estreitamente ligadas em
função da veiculação e descodificação do discurso narrativo.
A descrição ecfrástica da cena desenhada nos lados exteriores da taça vivifica, por
efeito da imaginação, toda a narração, conferindo-lhe um movimento liberatório da
condição de estaticidade em que ab origine chegou a estar. Isto poderia fazer pensar
a um deslizar para o futurismo. Na verdade, a uma releitura mais atenta da figura,
não poderemos não nos lembrar quanto seja justamente a imaginação, elemento e
momento fundadores do Simbolismo, a transportar-nos, com a sua potencialidade
vivificadora, para o mundo das figuras representadas de um quadro, que parecem
animar-se, motu proprio, conferindo, no palco da mente, movimento à acção, como
acontece com a paragem da imagem na arte cinematográfica.
Estas rápidas considerações sobre o último quadrinho da colectânea vêm corroborar
a tese introduzida por Ellen W. Sapega, enquanto afirma que «A taça de Chá» é uma
espécie de mise en abyme simbolista de toda a obra, ainda que, aqui e ali o sujeito
poético extravase para o futurismo, do qual rapidamente se retrai para se reposicionar
nas vias certas das poéticas fin-de-siecle.
Exemplo disto é, sem dúvida alguma, Scena do Ódio, inserida por Almada em
Orpheu 3, de ampla entoação futurista9, ainda que não exclusiva, na qual, num carrossel

9 Embora a crítica mais recente tenda a circuncrever a influência do futurismo italiano sobre a Scena do
Ódio, não podemos não reconhecer que estudos autorizados, muitas vezes nos anos em que o texto apareceu
154 100 Orpheu Piero Ceccucci

vertiginoso de imagens chocantes, acompanhadas por uma linguagem e epítetos de


ostensiva, irreverente vulgaridade, são encenados, sem solução de continuidade, os
mais caraterizantes –ismos (Futurismo, Sensacionismo, Cubismo), acima recordados,
do Modernismo que, com cumes de verdadeira genialidade, se está propondo em
Portugal à obra da revista.
Com efeito, é opinião comum que são, primeiro, as próprias poéticas futuristas, mais
notáveis e vistosas, a ser eleitas entre as várias instâncias de vanguarda pelo Almada
no poema em questão que, a uma primeira leitura, se apresenta como um complexo
de mise en scène de todos os elementos do discurso textual da teoria, absolutamente
assertiva, dos vários Manifestos Futuristas, vindos a lume a partir 1909 na Europa.
Aliás, tal forma escritural concisa que, como argumentará Musil, sob o imperativo
dos tempos que se querem agitados e excitados, favorece um dizer poético incisivo,
lapidar, absolutus.
Assim, no Almada da Scena do Ódio, à maneira dos futurismos europeus mais
ostensivos e vistosos, o fragmento apodítico parece colorir todo o discurso textual,
estruturado, porém de modo tal que a palavra chega quase a perder a sua função de
significação lógica do próprio discurso, mutando-se num signo autónomo, fulgurante
e magnífico, transfigurado na invetiva e no ataque mais direto e injurioso.
Exemplar, neste sentido, é a estrofe, aqui citada:

Zutt! Bruto-parvo-nada
Que Me roubaste tudo:
‘té Me roubaste a Vida
E não Me deixaste nada!
Nem Me deixaste a Morte!
Zutt! Poeira-pingo-microbio
Que gemes pequenissimo gemidos gigantes,
Gravido de uma dor propheta colossal!
Zutt! Elefante-berloque parasita do não presta!
Zutt! Buguganga-cellulode-bagatella!
Zutt! bêsta!
Zutt! bacaro!!
Zutt! merda!!! (NEGREIROS, J. A. de, 1984: 62-63)

em edição completa, tenham sido realizados por reconhecidos estudiosos do Modernismo português, que
enquadraram o poema em questão, mesmo não ignorando a presença de outras correntes de vanguarda, no
ventre da poética futurista. Alguns nomes entre outros: José-Augusto França, Fernando Cabral Martins, Rui
Mário Gonçalves.
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 155

(exemplar, dizia eu, esta estrofe), pois, nela o sujeito, tanto na vincada anáfora Zutt
que, no som onomatopeico evocado pelo silvo de um chicote, acentua a função
reiterada da linguagem ultrajante e particularmente depreciativa, codificada pelo
Futurismo europeu, gritando o seu raivoso ódio, carregado de insultos, contra o
«bruto-parvo-nada» burguês, encenando a técnica enunciativa das palavras em
liberdade e da desestruturação da sintaxe.
Além, no entanto, da arrogância do impropério, o estilo breve no seu discurso
poético, como na própria vanguarda europeia, incluindo obviamente o Futurismo,
exterioriza-se em linguagem inovadora e alegórica, transformando-se em ato
performativo de militância, não privo de uma sua poesia própria ou expectativa
plástica. Projetado para tingir, marcar o evento literário, representado por Orpheu, a
Scena do Ódio, como poema de vanguarda destinado à comunicação e ao envolvimento
de um destinatário, tudo a classificar e definir como alvo, privilegia a palavra e os
sintagmas, que se tornam cifra escritural autónoma, paroxística, que se irradia, nos
clarões de um istantâneo de um ápice, de uma figura, em todas as suas possibilidades
evocativas.
Paradigma disto é o próprio incipit do poema:

Ergo-me Pederasta apupado d’imbecis,


Divinizo-Me Meretriz, ex-libris do Pecado,
e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!
Satanizo-Me Tara na Vara de Moisés!
O castigo das serpentes é-Me riso nos dentes,
Inferno a arder o Meu Cantar! (id.: 49)

Para além da leitura crítica da ode, no complexo condivisível, proposta por


Gregory McNab, que requer atenção para uma suposta, improvável postura
“vanagloriosa” e «compulsiva por egocêntrico anseio de se protagonizar» (MCNAB,
G., 1979: 41-42)10 por parte do sujeito que se eleva de modo transbordante sobre a
cena, representando-se graficamente – na intenção absoluta de se representar como
dotado de uma hiperpersonalidade orgulhosamente insubmissa – com a maiúscula
em todos os lemes que exprimem a primeira pessoa, queria aqui, acima de tudo,
sublinhar, talvez de forma mais plausível, quanto na linguagem crua e cortante da
própria auto-definição ele tenda a elevar-se psicologicamente pela negativa, em
aberto contraste com a seriedadezinha hipócrita, “lepidóptera”, no fustigante epíteto

10 «The first step the poet must take is to create himself, and the anti-social individual. It may be characterized
as a swaggering, chest-thumping posture os egocentric self-inflation.» Vd. MCNAB, G., 1979: 41-42.
156 100 Orpheu Piero Ceccucci

sa-carneirano, da classe burguesa, responsável pela decadência moral, politico-social


e cultural do País.
Como mais lucidamente sustenta Celina Silva, com a habitual, reconhecida
acríbia – com cuja abordagem hermenêutica em torno da figura do eu da enunciação
me encontro em perfeita sintonia – este trabalho almadiano, verdadeira «performance
de linguagem», instaura uma nova, mais pertinente leitura crítica em volta da figura
do protagonista, centrada na função e significação da linguagem, mais do que numa
definição impressionista, o mais das vezes ilusória e falaciosa. Afirma a estudiosa:

Esta obra-imprecação instaura um manifesto, um programa de actuação violentemente


proclamado por um sujeito dionísiaco, ente de desejo absoluto em revolta indomável,
em ruptura assumida e gritante com a pátria-colectividade.[...] Esse sujeito, autêntico
«eu pânico», andrógino e autodivinizado, está em sintonia directa com a experiência de
metamorfose, [...] em que a apetência da vida triunfa pela transgressão dos cânones morais,
sociais e literários (SILVA, C., 1994: 104).

De facto, à sufocação de toda a desinibição instintiva, operada pelo conformismo


burguês, o eu da enunciação erige-se, não de modo inutilmente vanaglorioso, mas,
pelo contrário, como paladino credível da emancipação do indivíduo, acolhendo
em si, enquanto Eu-herói desdenhado, portanto não-herói, ou melhor, anti-herói,
contraposto à moral dupla e mentirosa do interlocutor: um “tu”, este, mesquinho
e abjeto a destruir, investindo-o sem salvação com o seu próprio ódio absoluto,
irreparavelmente desmistificador de todas as suas hipocrisias.
Deste modo, desde os primeiros segmentos textuais, os actantes, na definição
greimasiana, são definidos no seu papel performativo: por um lado um eu rebelde
protagonista, belicoso e transgressivo, por outro um tu coletivo, egoísta e amorfo,
individuado como inimigo a implicar e indicar ao desprezo definitivo, representando-se
como figura instituída, tutelar retrógrada e passadista, para usar uma terminologia
cara ao Futurismo.
Poème-exorcisme (FRANÇA, J. A., 1989: 7), portanto, na definição de José-Augusto
França e, contudo, poema fundador das novas tendências de Vanguarda, Scena do Ódio,
pela sua marcada estrutura estilístico-discursiva, é indicado, ainda por José-Augusto
França (id.: 10) como a única grande (711 versi) ode modernista que, mais e melhor
do que a «Ode Marítima» e do que a «Ode Triunfal» de Álvaro de Campos, e do
que «Manucure» de Mário de Sá-Carneiro, funciona como a ímpar, verdadeira ponte
cultural entre a vanguarda portuguesa e a europeia das primeiras décadas do século vinte.
Aliás – em acréscimo ao que aqui disse até agora – o mesmo Interseccionismo
de Pessoa e o Sensacionismo de Álvaro de Campos traduzem, embora com uma
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 157

gradualidade e postura diferentes, uma presença inegável de elementos estilísticos


futuristas, que no entanto não invalidam a sua originalidade concetual e de
representação no interior da Casa Vanguardista Europeia, e que transitam na mesma
poética almadiana, corroborando-lhe a escolha de campo.
Coisa, esta, absolutamente evidente na Scena do Ódio, desde que, no plano ideológico,
enucleando e acolhendo em si os aportes conceptuais e estilísticos das grandes odes
pessoanas, acabadas de recordar, esta coloca-se decerto para lá do próprio Futurismo,
que no plano filosófico se lhe configura como portador de um pensamento bastante
fraco, ainda por cima centrado no mito da velocidade, da vida vivida galhardamente,
que enaltece negativa e tragicamente a função catártica da guerra, exaltada “como
única higiene do mondo” à procura do beau geste, da “bela morte”, exasperando as
componentes estetizantes do Fascismo liberticida, racista, militarista, absolutamente
estranho ao pensamento da Vanguarda portuguesa. Sobretudo de Almada Negreiros,
declaradamente portador de uma convicta concepção anti-belicista:

(E tu também roberto fardado:


Futrica-te espantalho engalonado
[…]
larga a espada de matar
e põe o penacho no rabo!
[...]
Desuniversidadiza-te da doutorança da chacina,
da ciência da matança!
[...]
(Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!
E esta gente distraida em guerras!) (NEGREIROS, J. A. de. 1984: 58-59)

Estas rápidas enunciações da ode almadiana, são testemunho de um sujeito que,


fugindo à deriva ideológica do Futurismo, se abre a uma filosofia mais estritamente
ligada ao Sensacionismo de Campos. Coisa, esta, aliás, explicitamente afirmado
por ele mesmo na assinatura colocada no trabalho – José Almada Negreiros, poeta
sensacionista e Nárciso do Egipto – e na dedicatória – A Álvaro de Campos, a dedicação
intensa de todos os meus avatares –.
Neste segmento inicial peritextual, o eu da enunciação, como parece evidente,
afasta-se desiludido das concepções futuristas, perigosas e inaceitáveis, tanto no plano
moral como no social, consolidando a sua ligação com o Sensacionismo, em cujo ventre
teórico inscreve o seu poema, caraterizando-o com os eloquentes e essenciais elementos
estéticos antecipados pelo próprio Pessoa, quando este afirmava suasivamente que o
158 100 Orpheu Piero Ceccucci

texto sensacionista deve cuidar: as «associações de ideias desconexas, a sedução rítmica


pura e a justaposição de imagens que (…) se sintetizam sugestivamente no espírito»
e, por último, mas não menos importante, «a unidade e organicidade do texto»,
absolutamente irrenunciável para ele (PESSOA, F., 2000: 130-131).
No entanto, se estas asserções ligam muito estreitamente a Scena do Ódio à
Ode Maritíma, não podemos deixar de sublinhar fortemente quanto o próprio
poeta-engenheiro, por sua vez, paga um tributo não secundário à linguagem declamatória
e declamada e à representação gráfica ostentada das palavras, próprias dos futuristas.
Com isto chego ao nó crucial da questão, pontualizando que, se é excessivo
sobrevalorizar a presença do Futurismo na Scena do Ódio, como nos foi dado ler em
algumas exegeses, publicadas no próprio tempo da publicação da obra, é também
exorbitante exaltar nela a função exclusiva da influência do Sensacionismo.
A verdade é que o poema em questão se desenha felizmente como território de
encontro das mais acabadas poéticas de vanguarda, que se cruzam e se fundem, como
num ideal cadinho, no texto do Nosso artista que flui harmoniosamente, cume de
todos os aportes felizmente amalgamados, já não enucleáveis, como acontece no
majestoso rio Tejo que, prenhe das muitas águas, provenientes de todos os afluentes
encontrados ao longo do caminho, vai desaguar – como diria o ilustre poeta italiano,
Ugo Foscolo – no «grande mare Oceano».
Se virmos bem, se, empurrado pela angústia da influência, de bloomiana
enunciação, quisesse perder-me na enumeração das «diversas águas (Foscolo)» que
indistintamente compõem o corpus textual da Scena do Ódio, não poderei ignorar,
para além da recordada presença das poéticas e futuristas e sensacionistas e cubistas,
o aporte, que também existe, por exemplo, do Expressionismo alemão, do Dadaísmo
e, se quisermos, de um Surrealismo, ante litteram, no qual, de momento, por óbvios
motivos de tempo e oportunidade não pretendo deter-me.
Esta é, enfim, a trajectória estilístico-concetual, inscrita neste texto finalmente e
plenamente modernista; que está, no fundo, para lá do fingimento poético, aquela do
próprio Almada Negreiros, que, como afirma Pierre Rivas «Telle sera le trajectoire,
convergente e divergente, d’Almada et de Pessoa, entre Mythe regressif et utopie
messianique, alpha et oméga de la modernité portugaise. [...] D’où la fuite dans une
teléologie trans-historique, l’affirmation de la primauté du Poètique sur le Politique,
du Mythe sur l’Histoire» (RIVAS, P., 1989: 84-85)11.
É, neste sentido, e à laia de conclusão, que a Scena do Ódio, embora encontrando
nela, perfeitamente inscritas e harmonizadas, as várias tendências poéticas

11 «[…] será convergente e divergente da de Fernando Pessoa, entre Mito regressivo e utopia messiânica, alfa e
omega da modernidade portuguesa. […] Nasce daqui a fuga para uma teleologia trans-histórica, a afirmação
do primado da Poética sobre a Política, do Mito sobre a História» [tradução minha].
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 159

estilístico-concetuais das Vanguardas do princípio do século vinte, se desenha como


poema-síntese do moderno dizer poético, estruturalmente orgânico e coerente,
sobretudo original na sua manifesta antiepicidade discursiva, à luz, mesmo, da
ideologia autoral, que se manifesta numa visão de cultura «inteiramente portuguesa
e inteiramente atual, por uma patria inteiramente portuguesa», que, todavia, se não
deve fechar às novas instâncias culturais, lato sensu, provenientes de além Pirenéus.
Como recorda Eduardo Lourenço:

Paradoxalmente, a obra de Almada Negreiros, tão voltada para o interior português,


obcecada pela exigência de criar a famosa pátria portuguesa que o merecesse – quer dizer,
que merecesse o tipo de homem e atitude novos que ele dizia incarnar do alto dos seus vinte
anos provocantes – é uma patria, um estilo, uma enunciação, que necessitam, como poucos,
do exterior, do criticamente europeu e exemplar, para ser compreendida. (LOURENÇO, E.,
1985: 79).

Coisa esta, que Almada tinha demonstrado ter compreendido bem, quando precisou:

Portugal, a civilização portuguesa, depende das civilizações ibérica, grego-latina,


ocidental-europeia, europeia e universal. (NEGREIROS, J. A. de, 1992: 67)

Bibliografia

Bibliografia Ativa
NEGREIROS, José Almada de (1935). «Portugal no mapa da Europa», in:
Sudoeste, n° 1, Lisboa, Junho de 1935. Reproduzido in: NEGREIROS, Almada
de (1992). Obras Completas (Ensaios, Vol. V). Lisboa: INCM, pp. 65-67.
NEGREIROS, José Almada de (1965). «Orpheu 1915-1965». In: NEGREIROS,
José Almada de (1993). Obras Completas, Vol. VI – Textos de Intervenção.
Lisboa: INCM, p. 174.
NEGREIROS, José Almada de (1984). A Cena do Ódio (Edição Crítica de Arnaldo
Saraiva). Lisboa: Edições Ática.
NEGREIROS, José Almada de (1990). «Frizos – Sevres Partido». In: Obras
Completas – Vol. I – Poesia. Lisboa: INCM, p. 69.
PESSOA, Fernando (2000). Crítica – Ensaios, Artigos e entrevistas (org Fernando
Cabral Martins). Lisboa: Assírio e Alvim.
160 100 Orpheu Piero Ceccucci

Bibliografia Passiva
D’ANNUNZIO, Gabriele (1982). «Lettera a Maffeo Barberini Sciarra Colonna».
apud M.M. Lamberti, 1870-1915: i mutamenti del mercato e le ricerche degli
artisti, in Stora dell’Arte italiana, Parte seconda. Dal Medioevo al Novecento.
Volume terzo. Il Novecento, Torino: Einaudi, pp. 55-56.
FRANÇA, José-Augusto (1989). «Préface a ‘La scène de la haine’: Un poème-exorcisme».
In: La scène de la haine, Paris: Librairie José Corti, pp. 7-14.
HATHERLY, Ana (1975). «60 anos do Orpheu». In: Colóquio/Letras, n° 26, Lisboa:
Ed. Fundação C. Gulbenkian, pp. 5-22.
LOURENÇO, Eduardo (1975). «60 anos do Orpheu». In: Colóquio/Letras, n° 26,
Lisboa: Ed. Fundação C. Gulbenkian, pp. 5-22.
LOURENÇO, Eduardo (1985). «Almada ensaísta?». In: Almada, Actas do Colóquio
sobre Almada Negreiros, Lisboa Outubro de 1984. Lisboa: Edições Fundação
Calouste Gulbenkian, pp. 79-85.
MACNAB, Gregory (1975). «Sobre duas “intervenções” de Almada Negreiros». In:
Colóquio/Letras, n°35, Lisboa, Edição Fundação C. Gulbenkian, pp. 32-40.
MACNAB, Gregory (1979). «The Poet Strikes Back: Almada-Negreiros in the Cena
do Ódio». In: Luso-Brazilian Review, Vol. 16, n 1, University of Wisconsin Press,
pp. 41-52.
MAGALHÃES, Isabel Allegro de (1987). «Almada. ‘Mima-Fataxa’ em dois tempos».
In: Colóquio/ Letras, n° 95, Lisboa: INCM, pp. 49-59.
MARINHO, Maria de Fátima (1998).«Frisos ou o Desgosto de Colombina».
In: Almada Negreiros: A Descoberta como Necessidade, Actas do Colóquio
Internacional, Porto 12-14 de Dezembro de 1996, Porto: Edição Eng. António
de Almeida, pp. 391-400. (Artigo reproposto em Colóquio/Letras, n° 149/150,
Lisboa: Edições Fundação Gulbenkian, 1998, pp. 63-71).
RIVAS, Pierre (1989). «L’écho du silence», Postface a NEGREIROS, J. Almada de. La
Scène de la haine. Paris: Librairie José Corti, pp. 84-85.
SAPEGA, Ellen W. (1992). «Os Limites da Narrativa Almadiana: da Influência
simbolista em ‘Frisos’ à Experiência Futurista de ‘Saltimbancos’». In: Ficções
Modernistas: Um Estudo da Obra em Prosa de José de Almada Negreiros
1915-1925. Lisboa: ICALP, pp. 21-29.
SENA, Jorge (1982). «Almada Negreiros Poeta». In: Nova Renascença, n° 7, Vol.
2. apud: NEGREIROS Almada de (1990). Obras Completas – Vol. I – Poesia.
Lisboa: INCM, pp. 9-33.
SILVA, Celina (1994). «Nos Labirintos – Frisos». In: Almada Negreiros. A Busca de
uma Poética da Ingenuidade. Porto: Edição Fundação Eng. António de Almeida,
pp. 102-103.
Elementar, meu caro Lúcio!

Teresa Cristina Cerdeira


UFRJ/CNPq

Palavras-chave: duplo; narcisismo; voluptuosidade; mise-en-abyme.


Resumo: Partindo da proposta de ler A Confissão de Lúcio como um ensaio sobre a
voluptuosidade, interessa-me acompanhar o processo de construção do duplo a partir
do conceito de narcisismo. O conceito freudiano de «estranho» (unheimlich) constituirá
a base teórica para a leitura do duplo narcísico, não apenas através do sentido primeiro de
não familiar mas naquilo que ele tem de ambíguo quando entendido como o elemento que
deveria ter permanecido oculto, quieto, tranquilo (heimlich) mas que ousou apresentar-se à
luz revelando sua estranheza (unheimlich). Daí o medo e o horror que impulsionam à morte.
Caberá avaliar as variantes do narcisimo na novela de Sá-Carneiro posto que ele surge de uma
autocontemplação voluptuosa, não através de uma automiragem no espelho da identificação,
mas da possibilidade de produção de um outro ainda mais perfeito de si, nesse caso um
desejado outro feminino.

A leitura que proponho hoje para A Confissão de Lúcio nasceu de um ensaio que
escrevi há alguns anos1 e que tinha por centro de interesse o conceito de voluptuosidade.
Ainda hoje este me parece ser esse o sintagma gerador das mais variadas relações
semânticas dessa primorosa novela de Mário de Sá-Carneiro, ela mesma tão exemplar
do contexto decadentista finissecular que deixou marcas indeléveis nos artistas do
entrante século XX. A hipótese inicial permitiria ler a obra como um «ensaio sobre
a voluptuosidade» que se desdobrasse em três tempos: a teorização, a encenação e a
experimentação.
No que tange aos personagens da novela, composta de não mais de seis actantes
de maior ou menor importância em termos consequentes para a trama, uma figura
feminina, na mais pura tradição orgíaca das bacantes, emerge da cena intelectual de
uma Paris fin-de-siècle para desencadear, contra todas as convenções, o conceito de
arte da volúpia ou da volúpia como arte, muito antes que do simples exercício da
voluptuosidade na arte.

1 Refiro-me ao capítulo de A Mão que escreve (CERDEIRA, T. C., 2013).


162 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

Do lado oposto da luxúria, dos amplexos brutais, dos beijos úmidos, das carícias
repugnantes e viscosas, essa voluptuosidade é a experiência da con-fusão radical dos
sentidos que escapam, aliás, a qualquer configuração referencial, por se constituírem
antes como intangibilidades que ligam, num mesmo excesso, a sensorialidade e a
espiritualidade, o desejo e a morte, Eros e Thanatos, como opostos que coabitam.
A «americana», como fica conhecida, é, portanto, a Diotima de Sá-Carneiro, para
quem a espiritualização da volúpia seria o estágio mais sublime da beleza ideal, ou em
palavras suas, dos «desejos espiritualizados em beleza». Numa fascinante pedagogia,
dela se ouve a lição da volúpia das correspondências sinestésicas em que se cruzam
impressões de planos diversos: o físico e o moral, o concreto e o abstrato, o sedutor
e o terrificante, identificados pela voluptuosidade do fogo, pela perversidade esguia da
água, pelos requintes viciosos da luz.
O segundo passo dessa inusitada personagem feminina seria o de transformar
o conceito que veiculara verbalmente em grande festa. Mas festa aurática, nunca
grotesca, festa de apagamento dos limites, em que o mundo masculino do dandysmo
mergulha como simples espectador de uma incorpórea fisicalidade de refinadíssimos
sentidos. A festa é uma cena de teatro de fulguração homoerótica, com mulheres
a funcionarem como actantes secundárias dos excessos experimentados pela
«americana», aquela afinal sobre quem todos os olhares convergem e cujo orgasmo
final metaforiza-se como desaparecimento e morte. Diz o texto: «... Até que por fim,
num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre
as águas douradas – tranquilas, mortas também»2 (CL: 45).
Enfim, como a demonstração de uma tese que se preparara em conceito e
mise-en-scène, os factos que se seguem à cena dessa festa triunfal constituiriam a fase
da experimentação, na escala individual, dos êxtases e dos mistérios que compõem
o enredo da narrativa confessional de Lúcio. Passar do inefável para a linguagem é
possivelmente o seu modo de tentar perceber com outras categorias – que não as da
racionalidade – o exercício dessa erótica transgressora.
A experiência homoerótica feminina – maravilha / mirabilia para espectadores eleitos
– é o que dará suporte à experiência de afeto dos dois protagonistas masculinos – Lúcio e
Ricardo de Loureiro – cuja atração mútua, travestida de amizade, só logrará completar-se
com o advento algo surpreendente de um terceiro elemento – já agora feminino – que
será o modo de normalizar, ou de normatizar, uma transgressão sexual através de uma
outra transgressão de base psicótica que consiste na produção de um suplemento de
personalidade, de um desdobramento da psique na imagem de um duplo de si.

2 SÁ-CARNEIRO, Mário. A Confissão de Lúcio. Lisboa, Assirio & Alvim, 1998. Todas as citações serão a partir
de agora indicadas com as letras CL seguidas do número da página.
Elementar, meu caro Lúcio! 163

Freud afirmara que o duplo nasce do «terreno do ilimitado amor a si próprio, do


narcisismo primário». E continua: «Com a superação dessa fase, o duplo tem seu
sinal invertido e de garantia de sobrevivência passa para inquietante mensageiro
da morte»3. Amor e morte reunidos de modo visceral.
Será preciso lembrar que em A Confissão de Lúcio essa evidência da realidade
do duplo só ganha estatuto verbal nos últimos capítulos da novela quando, depois
de uma crise passional em que se misturam o ciúme, o desprezo e a inveja, Ricardo
revela a Lúcio o seu projeto de construção da imagem de Marta. A partir de então,
desvelada como criação sua, como a sua grande obra de arte, a sua obra-prima
plenamente conseguida, Marta parecerá enfim «explicada» como duplo de
Ricardo, dado que, obedecendo à configuração mais tradicional do gênero, é
também o responsável por detonar imediatamente o processo de sua necessária
eliminação.
Pois é justamente sobre essa versão do advento do duplo narcísico, trazida à cena
narrativa como epifania da paixão, que me interessa pensar aqui. Ela está obviamente
centrada no relato em primeira pessoa de Ricardo, mesmo que daí não se ausente a
consciência de que estamos diante de uma transcrição – em discurso direto – que
vem contudo inserida na narrativa maior da «confissão» feita em primeira pessoa
por Lúcio. Por outras palavras, o que se tem que levar em conta é o facto de que
esse entendimento da virtualidade de Marta pelo narrador da novela (Lúcio) será
evidentemente outro. Para ele, a existência daquela figura feminina certamente
desconcertante estava comprometida pelo desejoso consentimento da sua
concretude. Pouco mobilizado pelas causas e mais interessado nos efeitos daquela
aparição, Lúcio hesitava em contrariar a certamente discutível verossimilhança de
Marta como sujeito e realidade independentes Ricardo, seu verdadeiro parceiro para
os afetos não consumados.
O duplo de configuração narcísica é recorrente na literatura. A visibilidade do
tema4 atravessa tempos e autores com algumas variantes nem sempre excludentes,
tais como a sombra como alma, a figura dos gêmeos, o pacto com o demônio, a dupla
personalidade, o sonho de rejuvenescimento, a demanda de eternidade, a crença na
dupla paternidade, o desejo de morte. Na leitura de A Confissão de Lúcio o mito de
Narciso ganha contornos relevantes e nos convida a interpretar o modo como
Sá-Carneiro negocia com ele, como o relê, como dele se apropria e o transforma
em uma dominante da configuração da personagem de Ricardo de Loureiro, em que

3 FREUD, S., 2010: 352 («O inquietante»). Em algumas traduções o título aparece como «O estranho».
4 Cf Otto Rank. Don Juan et le Double. http://classiques.uqac.ca/classiques/rank_otto/don_juan/rank_
donjuan_double.pdf
164 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

estarão sobretudo presentes duas de suas variantes: a história do reflexo perdido5 e a


necessidade da morte do outro.
Neste ensaio sobre a voluptuosidade – que parece ser uma via de leitura para a
novela de Sá-Carneiro – o investimento na beleza é uma tónica da experiência dos
sujeitos para assegurarem, através dela, o gozo, a paixão, a sedução. Acrescente-se
a isso o facto de esses personagens, não por acaso, serem todos artistas, conscientes
de sua fúria criadora, mesmo que em geral improdutiva, que se negam a qualquer
compromisso utilitário em nome de uma grandeza superior que ultrapassaria os
valores do senso comum fundadores da experiência em sociedade. Sendo assim, a
sedução da beleza assim como a capacidade de a produzir – mente bela em corpo
belo – parecem ir de par com a estrutura mesma do narcisismo.
A volúpia da beleza narcísica – e aqui nos referimos ao terreno do mito e às suas
migrações conceituais – é uma vocação autocentrada e autotélica, em que a paixão
não se dirige a um outro diferente de si, mas à sua própria imagem, sem qualquer
sentido ou finalidade para além ou fora de si. Essa definição nos obriga a colocar, para
efeitos de leitura de A Confissão de Lúcio, uma questão metodológica inevitável: como
aproximar de Narciso a figura de Ricardo de Loureiro, a não ser assumindo-a como
uma variante em que o personagem masculino se projeta numa figura feminina,
que tem, já sexualmente, a marca de uma diferença? O que poderia parecer uma
fragilidade epistemológica rapidamente se resolve, como sempre em literatura, através
da voz do próprio personagem. Este será o caminho mais autorizado para a revelação
de um narcisismo ainda mais radical, pois que constituído pela idolatria nascida
de uma autocontemplação voluptuosa, não através de uma miragem no espelho da
identificação, mas através da produção de um outro ainda mais perfeito de si (passe a
tautologia etimológica).

«Ah! meu querido Lúcio [...] como eu sinto a vitória duma mulher admirável, estiraçada
sobre um leito de rendas, olhando a sua carne toda nua...esplêndida...loira d’álcool! A carne
feminina – que apoteose! [...] E lembra-me então um desejo perdido de ser mulher – ao
menos para isto: para que num encantamento pudesse olhar as minhas pernas nuas, muito
brancas, a escoarem-se, frias, sob um lençol de linho».

5 Cf. Hoffman, «L'histoire du reflet perdu», tomo II, cap. III, dos Contos fantásticos. Mas seria um excelente
desenvolvimento da pesquisa revisitar autores brasileiros como Machado de Assis ou Guimarães Rosa. Em
ambos os casos, «O espelho», de Papéis avulsos, e o conto medial das Primeiras estórias, com o mesmo título
do anterior, podem bem fundamentar em metáfora a perquirição sobre a identidade do sujeito.
Elementar, meu caro Lúcio! 165

O que Ricardo de Loureiro viabiliza nessa utopia é um só aparente deslocamento para


o outro. O seu verdadeiro investimento está na criação de uma autoimagem aperfeiçoada,
que embora não seja, como refere o mito, a do seu reflexo é ainda a da sua projeção ideal,
o que só amplia o gozo de si na competência dessa transmutação, radicalizando – em vez
de escamotear – o gozo narcísico. Quando ele expõe a Lúcio o seu fascínio pelo corpo
feminino – «mulher admirável, estiraçada sobre um leito de rendas, olhando a sua carne
toda nua ... esplêndida ... loira d’álcool» – estamos longe de assistir a uma dissociação
ou mesmo a uma alterização do objeto do desejo. O que seria verdadeiramente belo – e
nesse sentido verdadeiramente desejável – era o seu «desejo perdido de ser mulher» para
se poder mirar como tal, e «num encantamento pudesse olhar as [...] pernas nuas, muito
brancas, a escoarem-se, frias, sob um lençol de linho», numa convergência de excessos
de sensações visuais, (nuas, brancas), de percepções táteis (frias, linho), de uma liquidez
(escoarem-se) que lembra a dissolução de toda concretude.
Construía-se já – nessa confissão do desejo de sentir-se mulher em nome do culto
do belo – a sua estratégia futura de invenção do personagem de Marta como seu
duplo, o que nos permitiria considerá-la como uma espécie de embrião heteronímico.
Esse movimento – que Mário de Sá-Carneiro algumas vezes tangencia, menos pela
via da dilaceração do sujeito do que pela da via da autoprojeção, Fernando Pessoa, na
linha de outras experiências literárias próprias do seu tempo (e pense-se en passant
em Proust ou Virgínia Woolf), realizaria na sua radicalidade, como modo de sentir
tudo de todas as maneiras.
Marta é pois o duplo construído como projeção de uma beleza ideal que
o corpo masculino desejoso de feminizar-se logra constituir. Nessa linha de
leitura justificar-se-iam algumas cenas absolutamente exemplares que apontam
o espelhamento constitutivo dos dois personagens – Ricardo e Marta –, em que a
consistência afetiva de um é inversamente proporcional ao desvanecimento do outro,
ao desvelamento da sua inconsistência histórica e, por que não, jurídica.
Na primeira delas Lúcio, que observa Marta numa sala de concerto, a vê desaparecer
do seu campo de visão no exato momento em que Ricardo é tomado por um excesso de
emoção diante de um concerto muito significativamente chamado Além. («Nunca vibrei
sensações mais intensas [dirá ele] do que perante esta música admirável»- CL: 67).

Narrada por Lúcio, a cena é a seguinte:

E então, pouco a pouco, à medida que a música aumentava de maravilha, eu vi – sim na


realidade vi! – a figura de Marta dissipar-se, esbater-se, som a som, lentamente, até que
desapareceu por completo. Em face dos meus olhos abismados eu só tinha agora o fauteuil
vazio...(CL: 66-67)
166 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

A segunda cena é como um reflexo invertido da primeira, e tem a ver com o


momento em que Ricardo de Loureiro, no auge da paixão entre Lúcio e Marta, e, nesse
sentido, no auge daquilo que ele imaginava ser a grande vitória da sua alterização,
relata ao amigo o que chamou de «uma bizarra alucinação» (CL: 77): «Por acaso olhei
para o espelho do guarda-vestidos e não me vi reflectido nele! Era verdade! Via tudo
em redor de mim, via tudo quanto me cercava projectado no espelho. Só não via
a minha imagem!» (CL: 77). Marta sobrepujava-se ao seu criador, e a máscara da
personagem encobria ou anulava a face do seu autor6.
A explicação de ambos os exemplos parece absolutamente coincidente com
o modelo típico do fenómeno do duplo: em momentos de excesso de afeto ou de
emoção por parte de um, a imagem do outro perde consistência e desaparece. No
entanto, um detalhe não despiciendo vem roubar-nos a certeza sobre essa hipótese
de entendimento. Se a primeira cena é narrada por Lúcio, a segunda (em princípio
referida por Ricardo) na verdade não o será menos, pois transita daquilo que seria
uma declaração verdadeira do personagem sobre uma experiência pessoal de caráter,
digamos, sobrenatural (já que para ele inexplicada) para uma questionável irrealidade
do próprio discurso e, nesse sentido, para a diluição do seu valor de testemunho ou
de verdade. O que equivale a dizer que ambas as cenas de perda de imagem são, na
verdade, perceções de Lúcio, e nesse sentido só credíveis na dimensão da parcialidade
do seu ponto de vista. Depois do que teria sido a transcrição de uma fala do
personagem, o narrador confessa:

Porém, refletindo melhor, descobri que em realidade o meu amigo não me dissera nada
disto. Apenas eu – numa reminiscência muito complicada e muito estranha – me lembrava,
não de que verdadeiramente ele mo tivesse dito, mas de que, entretanto, mo devera ter dito
(CL: 77).

O que também parece evidente – tanto no mito de Narciso como no conceito de


narcisismo para Freud, a respeito da imagem do duplo como modo de representação

6 Sobre esse epifenômeno, Otto Rank (1932) refere, entre outros tantos exemplos mais ou menos contemporâneos
da novela de Sá-Carneiro, o filme «O Estudante de Praga» de Hans Heinz Ewers, em que Balduin, depois de
um pacto fáustico, aceita que lhe roubem a sua sombra até que ela reiteradamente reaparece diante dele como
seu duplo macabro, destituindo-o dos seus afetos. Ao perceber que já não é capaz de ver a sua imagem no
espelho, atira no fantasma e morre do mesmo tiro. Já no conto «Le Horla» de Maupassant, o personagem sem
causa aparente (o que redobra a angústia e o sentimento de absurdo) se expõe a alucinações sucessivas ao se
sentir perseguido por uma espécie de fantasma de si próprio, vê sua própria imagem desaparecer no espelho
do quarto, e, ao tentar eliminar a figura incorpórea pelo fogo, destrói inutilmente a casa, torna-se o assassino
dos criados que ali ficaram aprisionados, até concluir que, contrariamente a si mesmo, exposto humanamente
à morte a cada instante, Le Horla, «corpo feito só de Espírito, não precisava temer nem os males, nem os
ferimentos, nem as enfermidades, nem a destruição prematura».
Elementar, meu caro Lúcio! 167

do eu – é a convivência de afetos contraditórios em que a fascinação vem assinalada


pela tensão entre a aspiração por um ideal (seja ele a beleza ou a eternidade ou o
poder) e o ódio avassalador, que tende frequentemente à eliminação e à morte, pelo
facto de o duplo, na sua possível autonomização, ser pressentido como franca ameaça
à identidade do sujeito.
Ricardo desejara-se mulher, lograra mesmo projetar-se num corpo feminino que,
relembrando a categoria do «estranho»7 (unheimlich) para Freud, é mais do que a
evidência imediata do não-familiar ou do não-doméstico, mas vem investido de
uma dimensão ambígua que desfaz a simplicidade das oposições para se reconhecer
também como aquilo que deveria ter permanecido oculto, quieto, tranquilo (heimlich)
mas que ousou apresentar-se à luz revelando sua estranheza (unheimlich). Daí o
medo e o horror que impulsionam à morte. Só que, ao destruir o outro (o duplo, o
estranho que veio à luz), é também quase sempre a si que o sujeito destrói. Como uma
fatalidade, nessa luta com o objeto do desejo, alguém precisa morrer.
Apontar essa versão do duplo narcísico na novela de Sá-Carneiro é mais do que
somar uma nova variante de leitura para entender o surgimento do personagem de
Marta para além da versão mais convencional de sua explicação pelo fantástico ou
daquela que privilegia a evidenciação de uma mera ficcionalização metafórica. Essa
opção pelo tratamento da criação do personagem de Marta pela via do narcisismo
torna-se sobretudo funcional para intuir uma interpretação mais consequente para o
desfecho da novela que, na camada mais literal do discurso, finda sobre a afirmação
da inocência de Lúcio.
Sendo a novela narrada sem a intervenção de um narrador omnisciente, fica-se
a conhecer tão somente a versão apresentada por Lúcio e estaria justamente aí a
chave algo perversa da escolha autoral: fornecer através de uma anamnese, feita à
distância de dez anos do fato acontecido, a versão do único personagem sobrevivente
e, por isso mesmo, do único personagem passível de dar testemunho de verdade.
Resumidamente é esta a versão de Lúcio: depois de Ricardo lhe ter revelado o segredo
da sua invenção de Marta, depois de ele ter admitido que através dela pudera realizar
seu afeto não apenas por ele mas também pelo russo Sergio Warginsky8, o seu poder

7 FREUD, S., 2010: 338.


8 «Era um belo rapaz de vinte e cinco anos, Sergio Warginsky. Alto e elançado [...] Os seus lábios vermelhos,
petulantes, amorosos [...] Os seus olhos de penumbra áurea, nunca os despregava de Marta – devia-me lembrar
mais tarde. Enfim, se alguma mulher havia entre nós, parecia-me mais ser ele do que Marta. [...] Sergio tinha
uma voz formosíssima – sonora, vibrante, esbraseada. [...] Por isso Ricardo se aprazia muito em lhe mandar
ler os seus poemas que, vibrados por aquela garganta adamantina, se sonorizavam em auréola. [...] De resto
era evidente que o poeta dedicava uma grande simpatia ao russo. A mim, pelo contrário, Warginsky só me
irritava – sobretudo talvez pela sua beleza excessiva –, chegando eu a não poder retrair certas impaciências
quando ele se me dirigia».
168 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

criador volve-se em poder de aniquilação e Ricardo decide eliminá-la com um tiro.


Marta então desaparece, o corpo de Ricardo cai, Lúcio tem o revólver ao seu lado e
será condenado por homicídio a dez anos de prisão.
Ricardo-Narciso poderia assim justificar o desenlace da trama em que o assassinato
do segundo eu corresponde regularmente à morte do herói: assassinar o duplo
torna-se uma variante fatal do suicídio. O mistério do duplo estaria todo explicitado
no fundamento identitário que lhe dá origem: «Compreendemo-nos tanto, [confessa
Ricardo a Lúcio] que Marta é como se fora a minha própria alma. Pensamos da mesma
maneira, igualmente sentimos, Somos nós-dois». (CL: 120).
Para além dessa especularidade, Marta havia sido para Ricardo a quintessência do
poder, de tal modo que à sedução narcísica se soma o fascínio fáustico de ultrapassagem
de seus próprios limites sobre uma incapacidade – aliás pouco justificada na dimensão
meramente física – de possuir uma pessoa do mesmo sexo. É pois num transe de
transmutação que aquele ouro desejado pelos alquimistas, a remeter à cena teatralizada
da «americana», ter-se-lhe-ia parecido de súbito viável, tangível, realizável. Como se a
maldição fálica do seu corpo masculino não precisasse violar-se ou abdicar de si para
tornar-se corpo penetrável, já que um duplo feminino ocupava esse lugar ao reunir
complementarmente – e não paradoxalmente – a semelhança e a diferença. Era a
revelação do «grande segredo», a sua apoteose:

«Uma noite, porém, finalmente, uma noite fantástica de branca, triunfei! Achei-A... sim, criei-A!...
criei-A... Ela é só minha – entendes? – é só minha!... Compreendemo-nos tanto, que Marta é
como se fora a minha própria alma. Pensamos da mesma maneira; igualmente sentimos.
Somos nós-dois... Ah! e desde essa noite eu soube, em glória soube, vibrar dentro de mim
o teu afeto – retribuir-to: mandei-A ser tua! Mas, estreitando-te ela, era eu próprio quem te
estreitava... Satisfiz a minha ternura: Venci! E ao possuí-la, eu sentia, tinha nela, a amizade
que te devera dedicar – como os outros sentem na alma as suas afeições. Na hora em que a
achei – tu ouves? – foi como se a minha alma, sendo sexualizada, se tivesse materializado. E
só com o espírito te possuí materialmente! Eis o meu triunfo... Triunfo inigualável! Grandioso
segredo!...»

E quanto a Lúcio? Se acreditarmos nele, contentar-nos-emos com a sua lógica cujos


valores ficam claramente explicitados: não se defende das acusações injustificadas de
homicídio por saber que suas explicações não seriam críveis; não se desespera com
a condenação; afirma-se inocente ao escrever a sua confissão depois de dez anos de
reclusão; aceita como um privilégio ser no presente um morto-vivo por ter tido um
dia o vislumbre da plenitude.
Elementar, meu caro Lúcio! 169

Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem
mais ter ação sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido
o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos
fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem.
As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou – apenas – os desencantados que,
muita vez, acabam no suicídio. (CL: 12)

Se se crê nele como narrador, é esta a história. Acontece que essa sua experiência
de rememoração vem comprometida pela referência confessada a uma supressão
momentânea de sua própria lucidez no momento do crime e, nesse sentido, por uma
incapacidade de julgamento imparcial e objetivo. Acumulam-se no seu discurso
significantes dignos de nota, tais como assombro e mistério; outros ainda em que ele
próprio se define como aterrado, possesso de medo, olhos fora das órbitas, cabelos erguidos;
ou que revelam que, diante da cena climática, a sua opção fora a de precipitar-se para
fora, numa carreira louca. (CL: 122-3). A tudo isso acrescente-se, no que tange à técnica
narrativa, um hiato composto visualmente por duas linhas de pontos de suspensão,
evidente momento de espera a que se segue, como num ato falho, a confissão de sua
alucinação: «– Quando pude raciocinar, juntar duas idéias, em suma quando despertei
deste pesadelo alucinante que fora só a realidade, a realidade inverossímil – achei-me
preso num calabouço do Governo Civil [...]» (CL: 123 grifos meus). Leve-se portanto
em conta a dúvida sobre a sua incapacidade de julgamento.
Há ainda um outro detalhe singular – uma pista para um thriller policial – que
ajuda a comprometê-lo imageticamente com a morte de Marta/Ricardo, e que vem
à tona, malgré lui, através de um gesto passível de leitura psicanalítica e revelado por
seu próprio discurso. Detalhe não desprezível, Lúcio, escritor impotente, escrevera
uma peça de teatro, que ele tinha ainda por inacabada mas cuja encenação teria sido
prometida para os palcos de Lisboa, o que apontaria assim para um seu possível triunfo.
Às vésperas da primeira representação, imbuído de uma fúria de inspiração
aparentemente inexplicada, Lúcio anuncia ao metteur en scène uma nova proposta
de desenlace para a peça. O que essa peça é, o que essa alteração representa não
ficamos a sabê-lo com clareza para além do fato de, na primeira versão, morrer
o personagem do escultor, e de a segunda versão – que Lúcio julgava «uma ideia
belíssima, grande, que [o] entusiasm[ava]» (CL: 115) – ter sido julgada pelo
empresário «um disparate».
O facto é que Lúcio recusa a montagem já feita e, como não consegue persuadir
o metteur en scène da superioridade da sua nova versão, lança o manuscrito da sua
obra – cujo título é A Chama – para dentro de uma fogueira, destruindo-a: a Chama
na chama, como uma espécie de fatalidade tautológica. Falha o artista incompleto por
170 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

não deixar vir à luz a sua obra-prima, condenando-a inexoravelmente ao silêncio, ao


fogo, à morte.
Será fundamental esclarecer que essa cena sacrificial antecede imediatamente o
paroxismo da relação entre Lúcio e Ricardo e o que salta aos olhos é a sua função
de mise en abyme, como se a peça afinal não representada antecipasse em metáfora
o desenlace da vida/novela, tão elípticas ambas nas suas exíguas referências, já que
apostam de início – tanto uma quanto a outra (peça e novela) – numa solução trágica
mas realista – morte do personagem (escultor na peça, Ricardo na novela), evoluindo
ambas paralelamente para qualquer coisa de mais ambíguo, para um «disparate»
(para usar os termos sentenciosos e utilitaristas do empresário), ou, nas palavras de
Lúcio, para um «acto novo [...] profundo e inquietador» que «rasgava véus sobre o
além» (CL: 117).
Façamos pois o esforço de conviver com a ambiguidade, não exatamente a da
peça – a que não temos acesso nem no momento em que Lúcio informa tê-la lido
diante de Ricardo e Marta, nem sequer a posteriori dada a falência da representação
e a sua consumição pelo fogo – mas a ambiguidade da novela que, afinal, também
finda em apoteose do fogo. Essa simbiose entre a peça de teatro e a vida (que se faz
posteriormente discurso sobre a vida, confissão, novela) está aliás inscrita no discurso
de Lúcio: «sugerira-se-me durante a leitura [da peça] outra ideia muito estrambótica.
Fora isto: pareceu-me vagamente que eu era o meu drama – a coisa artificial – e o meu
drama a realidade» (CL: 102).
Nova pista: recorde-se que no momento em que recebera o convite efusivo para
a montagem da sua peça em Lisboa, Lúcio rompera a sua relação com Ricardo por
razões ambíguas: ciúmes de Marta com outros possíveis amantes, desprezo por
Ricardo «em face da sua baixeza» no consentimento das múltiplas traições da mulher,
e inveja. E desesperado afirma: «me voou pelo cérebro a ideia rubra de o assassinar
– para satisfazer a minha inveja, o meu ciúme, para me vingar dele» (CL: 111). Se
o ciúme e a vingança são facilmente explicáveis, a inveja carrega em si uma maior
complexidade, uma estranheza, uma bizarrice: ao ciúme de Marta, ao asco e ao ódio
por Ricardo se mescla um outro afeto, a inveja, aquele desejo de ser o que o outro é,
de ter o que ele possui. Nesse caso, o que Ricardo possuía era uma face feminina que
podia e se deixava pertencer a muitos homens: «Invejava-o! Invejava-o por ela me
haver pertencido...a mim, ao conde russo, a todos mais!...» O que dilacerava Lúcio era
portanto mais que o ciúme de Marta, era mais que desejo de vingança que abria nele
a brecha do assassinato de Ricardo. Era a inveja de o outro ter publicamente acedido
a formas diversas do prazer, ao gozo multiplicado com outros homens, através de
uma obra verdadeiramente conseguida de outrar-se no feminino: Marta, como ele
definira, a sua «obra-prima». Enquanto a ele, Lúcio, coubera-lhe tão somente dessa
Elementar, meu caro Lúcio! 171

mesma Marta uma fulguração de que ele fora incapaz de se apropriar. Ricardo a
triunfar em Marta. Marta a escoar pelos dedos de Lúcio, como mera «reminiscência
longínqua», logrando tão somente com ela uma aventura passageira, o que é, aliás,
uma reverência intertextual à «passante»9 de Baudelaire, a ponto de o poema das
Flores do mal – demasiado conhecido para exigir que o leiamos para evocá-lo – poder
servir, quase verso a verso, como uma interpretação da fugacidade de sua experiência
afetiva: fugitiva beleza, majestade, fausto, nobreza, agilidade, relâmpago e noite, olhar
lívido onde nasce o furacão, dor que fascina e prazer que mata. Diante dela, Lúcio – tal
como o poeta das «Correspondências» – de repente renasce, ao mesmo tempo que dela
tudo ignora, ela que ele teria amado, ela que o sabia.
Ouçamos o texto:

Com efeito, ainda hoje, às tardes maceradas, eu não sei evitar uma reminiscência longínqua,
a saudade violeta de certa criaturinha indecisa que mal roçou a minha vida. Por isso só:
porque ela me beijou os dedos; e um dia, a sorrir, defronte dos nossos amigos, me colocou
em segredo o braço nu, mordorado, sobre a mão... E depois logo fugiu da minha vida,
esguiamente, embora eu, por piedade – doido que fui! – ainda a quisesse dourar de mim
num enternecimento azul pelas suas carícias (CL: 108)

Como a tornar mais complexa a relação triádica dos personagens, revelam-se aí


duplos consecutivos, especulares e complementares, de tal modo que qualquer um dos
elementos está em íntima conexão com os demais, dependendo dos três o seu precário
equilíbrio: Ricardo quer ser Marta e logra sê-lo, realizando o desejo de ser mulher e de
possuir outros homens; Lúcio possui uma Marta que se dissolve numa reminiscência
longínqua no falhado trânsito afetivo de seu desejo por Ricardo; Lúcio, enfim, quer ser
Ricardo, inveja-o, naquilo que vai intuindo como o gozo conseguido da sedução.

9 «La rue assourdissante autour de moi hurlait. / Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse, / Une
femme passa, d’une main fastueuse / Soulevant, balançant de feston et l’ourlet. // Agile et noble, avec sa jambe
de statue. / Moi je buvais, crispé comme un extravagant, / Dans son œil, ciel livide où germe l’ouragan, / La
douleur qui fascine et le plaisir qui tue. // Un éclair… puis la nuit ! – Fugitive beauté / Dont le regard m’a fait
soudainement renaître, / ne te verrai-je plus que dans l’éternité ? // Ailleurs, bien loin d’ici ! trop tard peut-être !
/ Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, / o toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais !» 
O fascínio do poema de Baudelaire «A une passante» (Les Fleurs du Mal) gerou outras cenas poéticas nele
inspiradas como «A débil» de Cesário Verde, aquela com quem o poeta se compraz, não pela suavidade
que fascina e pelo prazer que mata, mas por intuir nela o poder nascido de uma inteireza moral, de uma
força natural e de uma pureza rural, elementos capazes de contaminar positivamente a doença de uma
metrópole ameaçadora. Tão diversas e tão similares, são ambas passantes, fugazes, alumbramentos, como em
reminiscência Marta aparecera para Lúcio.
Acentue-se aqui, como um parêntesis, que Baudelaire e Cesário Verde eram dois poetas que estavam
evidentemente no horizonte das expectativas literárias de Sá-Carneiro, de tal modo que não parece aleatória a
evocação da «passante» e da «débil» na composição «criaturinha indecisa que mal [lhe] roçou a vida».
172 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

Resta voltar a Marta e ao seu desaparecimento que, na linha da fatalidade narcísica


e autodestrutiva de Ricardo de Loureiro, parecia ter ganhado contornos bastante
justificáveis. Mas se é assim, onde localizar, no paralelo com a peça que vimos
postulando até aqui, aquela dominante profunda e inquietadora que rasgava véus
sobre o além? Passemos pois aos discursos que é o lugar da traição dos segredos. Na
narrativa de Lúcio sobre a morte de Marta denuncia-se inconscientemente uma outra
lógica, como novo ato falho denunciador: «Marta, essa desaparecera, evolara-se em
silêncio, como se extingue uma chama...» Como se extingue uma chama. Caberá então
perguntar: tal como a peça de teatro se extinguira por ter sido jogada ao fogo pelo
autor desiludido, transformando-se ele no motor da sua própria perdição? Depois
da peça de teatro seria agora a vez de Marta também morrer pelo fogo/chama do
revólver por decisão não de Ricardo mas do próprio Lúcio? A arma de fogo, que como
sugere a sua confissão de inocente estava estranhamente aos seus pés na hora da morte
de Ricardo, impedindo por demasiada evidência qualquer defesa que o isentasse da
culpa, deixaria então de ser mais que um acaso bizarro e inexplicado («E aos meus
pés – sim, aos meus pés! – caíra o seu revólver ainda fumegante» - CL: 122), para
tornar-se na evidência de uma outra versão do mesmo ato simbólico de eliminar pela
chama a inadequação insuportável dos afetos, fossem eles ciúme, vingança, inveja?
Na inscrição da tragédia, portanto, uma fatalidade discursiva já se teria indiciado à
sua revelia. A semelhança das duas mortes – a da peça de teatro e a de Marta/Ricardo
– tornava-se numa espécie de denúncia metafórica de que também a ação efetiva de
Lúcio, no desenlace da triangulação amorosa, ficava implícita, como se ele, afinal,
ao comparecer à cena do crime não tivesse feito mais do que atender ao chamado
simbólico do amigo na direção da perdição trágica e fatal que os unia e os comprometia
definitivamente a ambos: «Vamos ver! Vamos ver!... Chegou a hora de dissipar os
fantasmas...» (CL: 122).
Marta era de certo modo a ficção de ambos e a sua existência dependia do mistério
e da estranheza que a envolvia: para Lúcio, ela funcionava como fulguração passageira
que nunca deixara de inspirar nele o trânsito de afeto para Ricardo (lembre-se a cena
do beijo como exemplo dessa superposição de imagens); para Ricardo ela funcionava
como um duplo de si através de quem ele podia partilhar os afetos no seu próprio
corpo feminizado. Recordemos: «...assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de
nós sabendo bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro viveria». É essa a
epígrafe da novela de Sá-Carneiro, que encontra em Fernando Pessoa a economia da
sua proposta: o duplo, o mistério, a morte.
Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a epifania é o que destrói o equilíbrio do pacto,
desvendando-o através da explicação racional de Ricardo, pondo fim à hipótese de
plenitude que dissipara temporariamente as divergências e os interditos. O resultado?
Elementar, meu caro Lúcio! 173

Esgarça-se o desejo, a morte sobrevém, narcísica na dimensão de Ricardo, fatal e trágica


na dimensão de Lúcio. Ambos identificados até o fim, para dissipar seus fantasmas.
A tríade que instituíra Marta como duplo de Ricardo e chama de Lúcio estava
desde sempre fadada à morte, único estágio verdadeiramente incorruptível porque
ele mesmo definitivo. Seja no desaparecimento de Marta, seja na evidência da morte
de Ricardo, seja no mergulho na sensibilidade nostálgica de um Lúcio morto-vivo, o
que se revela para os três é, afinal, a mais-que-evidente impossibilidade da plenitude
do desejo que os faz mergulhar num vazio literal ou metafórico.
Ricardo tocara através de Marta o limite da obra-prima. E qualquer obra de arte
precisa de leitores. Lúcio terá sido um mau leitor porque não soube apreender Marta no
que ela tinha de dom não exclusivo, não soube perceber que ela tinha sido criada para
ser oferecida também a outros leitores, que, como ele, deveriam saber amá-la – para que
ela pudesse sobreviver – sem exigir dela o dom total, que seria ele próprio uma forma
de suicídio porque equivalente ao esquecimento de si, no que ele tem de infinitamente
transformador. Poderia recuperar aqui uma reflexão de Camus em Le Mythe de
Sisyphe10 ao falar de Dom Juan como o personagem teatral por excelência, na sua
trágica certeza da absurda precariedade do tempo: «o único amor generoso é aquele
que se sabe ao mesmo tempo passageiro e singular». Marta/Ricardo teriam sido um
modo de donjuanismo naquilo que entendiam como forma de doar e de fazer viver no
tempo absurdamente exíguo que nos é dado viver. Era de uma outra forma de amor
que se tratava, um amor liberador, que trazia consigo todos os rostos do mundo, cujo
excesso nascia do fato mesmo de se saber perecível e nesse sentido isento de qualquer
esperança de eternidade, de qualquer lei moral, de qualquer constrangimento ético.
Era esse o seu modo de conhecimento. Interessante pensar, aliás, que na lógica da
linguagem bíblica conhecer corresponde também ao ato de amar.
Lúcio foi certamente um mau leitor. Para ele Marta foi uma «passante» de quem
ele teria querido em vão apropriar-se. Sem consegui-lo, só lhe restava colaborar com
o seu desaparecimento, autor (Ricardo) e leitor (Lúcio) reunidos enfim no mesmo
ato aniquilador. Sobra-lhe então, morto-vivo que é, a capacidade de formular um
último projeto – a escrita da sua confissão, que só na superfície seria uma confissão de
inocência. Seria antes a trágica confissão de uma falência de entendimento. Através
dessa anamnese ele se compraz na rememoração menos para entendê-la do que
para revivê-la como discurso, lugar de memória, lugar da sua própria ficção que ele
constrói como a única e precária permanência possível. Afirmando-se inocência mas
revelando-se insidiosamente como agente do crime.

10 «C’est un autre amour qui ébranle Don Juan, et celui-là est libérateur. Il apporte avec lui tous les visages du
monde et son frémissement vient de ce qu’il se connaît périssable» (CAMUS, A., 1966: 102).
174 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

Sá-Carneiro experimentou outrar-se ele próprio em A confissão de Lúcio, menos


certamente pelas correspondências autobiográficas, demasiado evidentes, que vão do
homoerotismo à sedução por Paris, da experiência no meio artístico da capital francesa
à insinuação, senão do suicídio, do fascínio da morte. A sua presença autoral nessa
elíptica e primorosa novela insinua-se antes, discursivamente, na aventura daquele
desregramento dos sentidos à moda de Rimbaud, em que ele experimenta como um
voyant todas as formas de amor, de sofrimento e de loucura, em que esgota dentro de si
todos os venenos para guardar deles apenas as quintessências, em que ele se faz doente,
criminoso, visionário e maldito para ir ao fundo do desconhecido. Herdeiro de uma
atmosfera fin-de-siècle, Mário de Sá-Carneiro é digno representante da modernidade
de Orpheu, no que esse grupo de artistas tem de sensibilidade extravagante, de excesso,
de iconoclastia, de libertação, de loucura. No avesso da tradição do romance de
formação, A Confissão de Lúcio é uma demonstração do gozo não utilitário, do desvio
da doxa, numa narrativa que desorienta mais do que ensina.
A frase de Hipócrates – «A vida é curta, a Arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência
enganadora, o julgamento difícil» – bem poderia funcionar como outra epígrafe de A
Confissão de Lúcio. Ela não está lá mas ecoa nos versos de Fernando Pessoa, «A vida é
breve, a alma é vasta, ter é tardar», que Lúcio certamente assinaria ao escolher fazer de
sua «confissão» o modo de intuir o único sentimento de eternidade que, para além dos
perecíveis afetos, só a alma – e a arte – são capazes de insinuar na nossa precariedade
de seres mortais.

Bibliografia

CAMUS, Albert (1966). Le Mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard (Collection Idées).


CERDEIRA, Teresa Cristina (2003). A Confissão de Lúcio, um ensaio sobre a
voluptuosidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra.
FREUD, S. (2010). Obras completas, vol. 14, São Paulo: Cia das Letras.
SÁ-CARNEIRO, Mário (1998). A Confissão de Lúcio. Lisboa: Assirio & Alvim.
1915: O Ano da Guerra e do Orpheu

Duarte Ivo Cruz


CLEPUL

Resumo: Realça-se, na presente intervenção, o contexto político e cultural interno e externo


de Portugal no ano de 1915 e seguintes, tendo em vista o significado e obra do movimento do
ORPHEU e dos seus fundadores, dirigentes e colaboradores, com destaque para a importância
do movimento no plano cultural e social. Procede-se à análise dos dois números da revista no
conjunto da obra global de cada um dos escritores envolvidos, incluindo a programação do
terceiro número nunca publicado.

Como introdução ao tema, pretende-se aqui traçar uma síntese da situação portuguesa
no contexto da Primeira Grande Guerra, em planos diversos mas complementares:
contexto geral da política interna; conflitos militares em Moçambique e em Angola;
relações diplomáticas até ao corte com o Império Alemão; reflexos da guerra antes e
depois da intervenção militar de Portugal na guerra europeia; negociações diplomáticas,
no contexto do conflito europeu e africano, sendo que, no que respeita a África, a situação
portuguesa assumiu desde logo, no caso do conflito de Maziua em Moçambique (24 de
agosto de 1914) e de Naulila em Angola (17 de novembro de 1915), uma intervenção
direta, mesmo antes da declaração de guerra e do rompimento das relações diplomáticas
com a Alemanha e da participação na guerra europeia.
Recorde-se que, em 1915, no plano interno, assistimos ao final do mandato
presidencial de Manuel de Arriaga, mandato iniciado em setembro de 1911 e que é
interrompido, por renúncia de Arriaga, em maio de 1915, dando lugar a um espécie de
presidência interina, chamemos-lhe assim, de Teófilo Braga, de junho a novembro de
1915, data em que Bernardino Machado toma posse como Presidente da República.
E em 1915 tivemos entretanto 5 ministérios: Vítor Hugo de Azevedo Coutinho,
(governo a quem os inimigos políticos chamavam “Os Miseráveis de Vítor Hugo”),
Pimenta de Castro (que os inimigos qualificavam como ditadura militar), José de
Castro e em 29 de novembro de 1915, o início do governo de Afonso Costa, já no
mandato de Bernardino Machado. Mas, como vimos, o ano político foi entretanto
marcado e dominado, ainda antes da formalização do estado de guerra com a
Alemanha, pelo início das hostilidades com o Império Alemão em Moçambique e
em Angola. As relações diplomáticas não se rompem imediatamente porque não
176 100 Orpheu Duarte Ivo Cruz

havia consenso entre os três partidos dominantes: Partido Democrático de Afonso


Costa, Partido Evolucionista de António José de Almeida, Partido Unionista – União
Republicana de Brito Camacho. Quanto à intervenção formal no conflito europeu, só
em 15 de fevereiro de 1916 Portugal intervém nos navios alemães fundeados no Tejo.
E logo a seguir, a Alemanha declara formalmente guerra a Portugal.
1915 foi assim o ano do envolvimento diplomático e dos conflitos em África e os
sinais de debates internos sobre a intervenção na guerra europeia: mas foi também
o ano do Orpheu, com a publicação dos dois números da revista e a preparação de
um terceiro número que não chegou a ser publicado.
Vejamos então o que foi efetivamente o Orpheu.
Como sabemos, a revista é dirigida por Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro
e denomina-se “Orpheu – Revista Trimestral de Literatura”. O primeiro número,
correspondente a janeiro, fevereiro e março de 1915, refere como membros da direção,
expressamente em Portugal Luiz de Montalvor e no Brasil Ronald de Carvalho. E
como editor, António Ferro que, diga-se de passagem, tinha à data 18 anos.
Este primeiro número elenca os seguintes textos e, como colaboradores respetivos,
os seguintes escritores:

Luis de Montalvor com uma Introdução;


Mário de Sá Carneiro – “Indícios de Ouro” – poemas
Ronald de Carvalho – poemas
Fernando Pessoa – “O Marinheiro – Drama Estático”
Alfredo Pedro Guizado – “Treze Sonetos”
José de Almada Negreiros – “Frizos” (prosa)
Armando Cortes Rodrigues – poemas
Álvaro de Campos – “Opiários” e “Ode Triunfal”
A capa foi desenhada por José Pacheco.

O segundo número é datado de abril-maio-junho de 1915 e já refere expressamente


como diretores Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro: é consensual que essa
direção já vinha da origem do Movimento.
Este segundo número tem o seguinte sumário:

Ângelo de Lima – Poemas Inéditos


Mário Sá Carneiro – “Poemas sem Suporte”
Eduardo Guimarães – Poemas
Raul Leal – “Atelier – Novela Vertígica”
Violante de Cisneiros – Poemas
1915: O Ano da Guerra e do Orpheu 177

Álvaro de Campos – “Ode Marítima”


Luís de Montalvor – “Narciso” (poemas)
Fernando Pessoa – “Chuva Oblíqua – Poemas Intercecionistas”
Colaboração Especial do Futurista Santa-Rita Pintor com “4 Hors –Texte Duplos”

Os heterónimos de Pessoa, conhecemos todos muito bem. Mas vale a pena lembrar
que Violante de Cisneiros era o escritor Armando Cortes Rodrigues.
Este número do Orpheu contém a seguinte informação:

“Orpheu iniciará na rentrée uma longa série de conferências de afirmação, sendo as


primeiras as seguintes:
A Torre Eiffel e o Génio do Futurismo por Santa Rita Pintor.
A Arte e a Heráldica, pelo pintor Manuel Jardim
As Esfinges e os Guindastes: estudo do bi-metalismo psicológico, por Mário de Sá-Carneiro”

Sabemos que não chegou a sair o terceiro número do Orpheu.


Em qualquer caso, assinalamos nesta sessão a publicação da obra intitulada “O
Ano do Orpheu – 1915”, organização de Steffen Dix, obra essa que recolhe textos
projetados para o número 3 da revista, da autoria designadamente de Pessoa, Almada
Negreiros, Tomaz de Almeida, C. Pacheco e Castelo de Moraes. Nesse importante
estudo, são recolhidos mais de 20 ensaios e transcrições antológicas (cfr. 1915 – O Ano
do Orpheu, org. Steffen Dix. Lisboa: Tinta da China, 2015). Aí se prevê o que seria o
número 3 da revista, de acordo com um texto de Arnaldo Saraiva:

Sá Carneiro – “Poemas de Paris”


Albino de Menezes – “Após o Rapto”
Fernando Pessoa – “Gládio” e “Além Deus”
Augusto Ferreira Gomes – “Por esse Crepúsculo” e “A Morte do Fauno”
Almada Negreiros – “A Cena do Ódio”
Tomaz de Almeida – “Olhos”
C. Pacheco – “Para Além Doutro Oceano”
Castelo de Moraes – “Névoa”

Na sessão evocativa, foram lidos ou citados textos de Fernando Pessoa, Almada


Negreiros e outros, publicados nos dois números da revista ou alusivos ao movimento
do Orpheu.
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do
século XX em A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro

Mauro Dunder
USP /CAPES 1

Palavras-chave: Modernismo; Representação; Identidade Portuguesa; Mário de Sá-Carneiro;


A confissão de Lúcio.
Resumo: Esta comunicação explorará as marcas representativas das questões mais prementes,
no tocante à imagem que se constrói do pensamento português, em A confissão de Lúcio.
O início do século XX configura-se como um dos momentos mais conturbados da história
política do país; eventos como o Regicídio de 1908 e a instauração da República (1910) são
concomitantes com a chegada da Modernidade artística a Portugal, especialmente no que
concerne às manifestações literárias, das quais o projeto de Orpheu é, indubitavelmente, peça
fundamental. Nesse contexto, o romance de Mário de Sá-Carneiro dá a conhecer algumas
imagens que podem ser lidas como representações de um ponto de vista sobre a identidade
nacional; para compreender tais representações, além do distanciamento proporcionado pela
passagem de um século desde a publicação do romance, estudos como A morte de Portugal,
de Miguel Real e O labirinto da saudade, de Eduardo Lourenço, lançam luz sobre aquele
que, certamente, pode ser considerado como a maior crise identitária da história portuguesa
recente.

No texto que abre sua narrativa, Lúcio Vaz é categórico: “A minha confissão é um
mero documento” (SÁ-CARNEIRO, M. de, 1988: 6). Em que pese a relação entre a
afirmação e a trajetória da revelação ontológica (como a compreende Heidegger) do
protagonista, bem como a noção de narrativa como representação que envolve o texto
ficcional e as especificidades que envolvem a questão da identidade portuguesa no
projeto de Orpheu, a leitura de A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro traz
à baila algumas reflexões sobre como se constroem, ao longo da trama do romance,
um conjunto de imagens reveladoras sobre o pensamento português, não apenas a

1 Doutor em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo. Investigador aceito pela Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra para Pós-Doutoramento, sob supervisão do Prof. Dr. Carlos Reis.
Membro do Grupo de Pesquisa “Literatura Portuguesa de Autoria Feminina” (USP/CNPq). Professor Assistente
do curso de Letras das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). A participação no congresso 100 Orpheu
terá sido totalmente custeada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
180 100 Orpheu Mauro Dunder

respeito de si mesmo, mas, principalmente, de sua identidade perante o contexto


europeu do início do século XX e de como se relaciona, como nação, com sua história
de, então, quase oito séculos.
Ainda que conceitos como “identidade”, “vanguarda” e “nacionalidade” sejam
relativamente elásticos, especialmente no que diz respeito ao surgimento e
consolidação da Modernidade em Portugal, à altura um Reino em esfacelamento, em
direção a uma República fragilizada à partida, a obra de Sá-Carneiro é, por certo, uma
das mais relevantes contribuições para tal discussão. Nesse sentido, constitui relevante
aspecto a relação da literatura da geração de Orpheu com a ideia de vanguarda
estética, como instrumento de representação de um espírito em plena transformação,
cuja integridade de imagem apresenta-se fraturada pela instabilidade social, política
e filosófica, instaurada por transformações – ou seus prenúncios – vivenciadas no
final do século XIX. De tal situação, em Portugal, o Ultimatum inglês, apontado
como o último dos três grandes traumas que marcaram – e construíram a identidade
portuguesa – constitui exemplo importantíssimo (LOURENÇO, E., 2009).
Em um país que, em pouco mais de vinte anos, assiste ao declínio da monarquia
que o rege desde, no mínimo, a Restauração de 1640 (em sentido amplo, a bem da
verdade, desde 1128, na Batalha de S. Mamede) e a instauração de uma República
frágil e instável, seria bastante coerente que se observasse, nas tendências artísticas
da época, uma inclinação para estéticas que contemplassem as noções de ruptura,
desconstrução, esfacelamento do ponto de vista. Não é, exatamente, o que acontece
com o pensamento português, tão afeito ao culto do passado como referência para os
projetos de futuro, em uma estranha fusão, na qual o conceito de vanguarda adquire,
não raro, uma roupagem passadista.
Nesse sentido, é fundamental notar o papel desempenhado pelos artistas de Orpheu
no confronto com essa noção viciada de progresso em direção a um futuro que se faz
passado. Na esteira desse pensamento, a própria imagem mitológica de Orfeu, que se
vê forçado a deixar o passado para trás, se quiser, de facto, resgatar sua Eurídice e viver
em amor e harmonia com ela, relaciona-se com o projeto de nação consubstanciado
na literatura dessa geração. Na busca por uma ruptura com toda uma identidade
nacional, ainda que permeada por um processo ontológico de descentramento do
sujeito, é parte da ideologia do grupo de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro
um rompimento com a noção de que apenas no passado português se encontrará a
inspiração para superar as dificuldades do presente.
A primeira edição de A confissão de Lúcio veio a público em 1914, um ano antes
do lançamento do primeiro número de Orpheu, o que, em certa medida, torna a obra
uma espécie de prenúncio dos valores fundamentais do pensamento que a revista
defenderá. Em que pese o caráter predominantemente psicológico da narrativa, por
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 181

conta do qual se estabelece forte vínculo entre a trama e as tendências de vanguarda


mais diretamente ligada à questão da crise de identidade do sujeito, vivida pelo homem
do final do século XIX, as relações do projeto órfico com as questões identitárias em
sentido mais amplo e a crise institucional por que passa Portugal naquele momento
trazem à baila representações que, se não têm como centro a discussão do pensamento
nacional, não a deixam de lado. Antes, as duas crises identitárias unem-se, como
reflexos de um movimento mais amplo, qual seja o estremecimento das concepções
que orientaram séculos de compreensão do universo em que se insere o homem
europeu.
No percurso de três das personagens de A confissão de Lúcio, Gervásio Vila-Nova,
Ricardo de Loureiro e o próprio narrador, Lúcio Vaz, algumas passagens revelam
muito mais do que impressões pessoais a respeito de emoções e percepções subjetivas.
À luz da teoria de fundo psicanalítico elaborada por Miguel Real, na qual se exploram
quatro diferentes complexos comportamentais que permeiam as concepções do
povo português acerca de si mesmo e do mundo que o cerca, o conceito de complexo
pombalino, que contempla a noção de “pobreza intrínseca” nos âmbitos político,
econômico e cultural (REAL, M., 2008), explica, sob essa perspectiva, algumas das
considerações que, a partir de passagens do romance de Mário de Sá-Carneiro,
apontam para a maneira como a geração de Orpheu enxerga – ou faz enxergar – Portugal.
O romance de Sá-Carneiro, à partida, cria uma imagem do país que aponta para
a concepção de atraso intelectual, supostamente consequência do modo de vida
português, voltado para o passado e, evidentemente, preso a ele. Diz Lúcio Vaz, o
narrador-personagem:

Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou melhor,
não estudando. Vagabundo de minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha
vida e de todos igualmente desistido – sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande
capital. Logo me embrenhei por meios mais ou menos artísticos, e Gervásio Vila-Nova,
que eu mal conhecia de Lisboa, volveu-se-me o grande companheiro de todas as horas
(SÁ-CARNEIRO, M., 1988: 7).

A imagem do português “sedento de Europa”, que se muda para a “grande


capital” é a primeira expressão da ideia de que, para uma mente curiosa, aguçada
e perturbada por questionamentos que requerem transformação, Portugal é
insuficiente, é pequeno e não comporta a arte – e, por extensão, o pensamento –
que a Modernidade requer.
Da mesma forma, a caracterização por meio da qual o narrador nos apresenta
Gervásio Vila-Nova corroboram a visão de que apenas em Paris existe a perspectiva
182 100 Orpheu Mauro Dunder

de uma vida dentro do pensamento europeu, como se Portugal não fosse, de facto, parte
desse continente. Dono de um exotismo calcado em uma postura superficial, pretenso
“cidadão do mundo”, Gervásio Vila-Nova renega, por oposição, o “cidadão português”,
quando se nos dá a conhecer como um artista moderno, cuja identidade é marcada pelo
contraditório, pela valorização do “erro”, pela intensidade com que se nega o tradicional.
Ao dizer que “Gervásio Vila-Nova era aquele que nós olhamos na rua, dizendo:
ali, deve ir alguém” (Id.: 7), o narrador institui o conceito moderno de sujeito: aquele
que se destaca, que confronta, que não se enquadra nas acepções sociais, culturais
e políticas tradicionais. Logo, na linha de pensamento que ora se propõe, Gervásio
Vila-Nova, por ser “alguém”, não cabe em um país cujo orgulho da história é norte
para o pensamento e o comportamento, individual e coletivamente.
Outra afirmação que o narrador faz acerca da trajetória de Gervásio Vila-Nova
relaciona-se com uma questão fulcral na história de Portugal. Segundo Lúcio Vaz,
Gervásio “não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar” (Id.: 8). A
noção cubista de fragmentação, metaforizada pela imagem de “se despedaçar”, ao
mesmo tempo em que remete à crise do sujeito, confrontado com um mundo em
transformação ao qual é necessário adaptar-se, por meio da quebra de certezas que
sustentavam a relação desse sujeito com o universo em que se insere, sugere também,
no plano nacional, a imagem invertida do que se passa com o império colonial
português – em movimento que se prolongará, a rigor, até depois da Revolução dos
Cravos (1974). O sistema colonial falhou exatamente porque não teve a coragem de
se despedaçar, ou, por outro lado, foi um falhado porque não reconheceu quando – e
como – se despedaçou.
Nesse sentido, torna-se relevante notar que, por um lado, a narrativa de A confissão
de Lúcio transcorre nos últimos cinco anos do século XIX e, por outro, foi escrito em
1913. Esses parâmetros aproximam a narrativa de dois relevantes eventos históricos,
os quais também estão ligados à ideia de esfacelamento, de “se despedaçar”.
A trama se passa na sequência do período marcado pelo ultimatum inglês de 1890,
evento que pode ser interpretado como um dos maiores sinais da crise pela qual passa
– e seguirá passando até depois de 1974 – o sistema colonial português, baseado em
conceitos de posse e poder herdados do período das grandes navegações. Como já
se disse, os efeitos do ultimatum foram bastante devastadores para a concepção de
nação que Portugal carrega, no mínimo, desde o século XV – a de grande império,
de povo predestinado a constituir o “Quinto Império”, sonhado por Dom Manuel,
encampado por Dom Sebastião e pelo povo português ao longo de sua história –,
a ponto de ser considerado pelo filósofo Eduardo Lourenço um trauma fundador, ao
lado da própria criação do Reino, no século XII, e da perda da soberania, após a morte
de Dom Sebastião, em 1580.
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 183

A esse respeito, escreve Oliveira Marques:

Os acontecimentos de 1890-91 estiveram enquadrados numa séria crise económica e


financeira, de âmbito internacional. A crise económica europeia de 1890 repercutiu-se
em Portugal como possivelmente nenhuma até então, sendo agravada pelo ambiente
de pessimismo e de profunda descrença nos governantes e nos modos de governar que
permeabilizava as classes dirigentes. (...) Por outro lado, a expansão económica dos
decénios anteriores e o afluxo crescente de população às grandes cidades haviam causado
o surto de uma classe média de pequenos e médios burgueses que se sentia oprimida pela
grande burguesia e a aristocracia dirigentes [à qual pertenceu Mário de Sá-Carneiro]. Essa
classe média urbana, que constituía novidade pelo número e a concentração atingidos,
representou o sedimento de base do republicanismo militante e a grande força de ataque
ao rei, às instituições monárquicas e à igreja (OLIVEIRA MARQUES, A. H. de, 2009: 465).

A história de Portugal, em que pese a concepção de que o discurso histórico não


esteja, como qualquer outro, livre de vieses ideológicos, aponta, então, para um
cenário complexo, em que sintomas de uma grande crise econômica internacional
fundem-se a uma crise institucional no âmbito português. É a crise dentro da crise,
tornada ainda mais intensa pela relação que se estabelece entre o imaginário do “peito
ilustre lusitano” e a derrota que o episódio do ultimatum representou para essa esfera
da nação.
Chama a atenção, ainda, dentro dos registos propostos pela História, a distinção
que o século XIX, em sua porção final, observa na sociedade portuguesa, no tocante à
constituição econômica de suas camadas. Em oposição a uma burguesia já estabelecida
– e que será, de certa forma, a protagonista dos romances queirosianos finisseculares –
e à aristocracia de sempre, surge uma classe média insatisfeita com o espaço que se
lhe oferece e amedrontada por sua relativa pequenez, perante as classes dominantes
mais tradicionais. Se observarmos a maneira como Mário de Sá-Carneiro articula
essas esferas socioeconômicas na composição do rol de personagens de A confissão de
Lúcio, será possível notar que, em grandíssima medida, tal distinção é representada
com clareza, especialmente por meio das relações entre as personagens, seu modo de
vida, valores que vivem e pregam, concepção de sociedade, cultura, arte, entre outros
elementos. Enquanto Ricardo de Loureiro e Gervásio Vila-Nova seriam representantes
dessa classe dominante superior, o pequeno artista Lúcio Vaz apresenta-se como
membro da “nova classe média”. Em comum entre ambos os estratos, a insatisfação
com Portugal, a noção de que o país não lhes basta.
Por fim, na esfera histórica, torna-se relevante notar que, em relação aos dois
primeiros traumas, a análise de Lourenço menciona a existência de uma atmosfera
184 100 Orpheu Mauro Dunder

mística, uma vez que foram eventos em torno dos quais pairam questões cuja solução
teria vindo, ao olhar português, da interferência de uma esfera do maravilhoso,
categoria literária ligada à ação de forças externas, de caráter metafísico. Com
o ultimatum, Portugal vê-se diante de uma situação em que tal ação externa não
se apresenta, o que provoca, quando pouco, uma fratura na visão do país sobre si
mesmo.
Quanto ao ano de escrita de A confissão de Lúcio, está há apenas cinco anos do
“Regicídio”, ponto crucial para o desaparecimento do sistema monárquico português,
e a três da instauração da República, em um dos momentos mais críticos da
história recente do país. Desse modo, a própria vinculação do texto do romance às
tendências de vanguarda, especialmente aos princípios fragmentários do Cubismo
e ao viés onírico e inconsciente do Surrealismo, constituiria uma manifestação da
proposta ideológica da geração de Orpheu, qual seja a de desconstrução de toda uma
história, na qual, recorrentemente, a concepção de “vanguarda” esteve relacionada a
um elemento místico, pautada por uma atitude de eterna retomada de um passado
supostamente glorioso, o qual encapsula os valores que, em tese, deveriam sempre
orientar o progresso nacional.
Na esteira desse pensamento, ainda que revestida da ideia de fragmentação do
sujeito, multiplicidade de pontos de vistas e, consequentemente, de possibilidades de
verdade, típica das tendências de vanguarda que permearam a arte da Modernidade,
a constante menção de Lúcio Vaz à nebulosidade e ao mistério que envolviam seu
sentimento por Ricardo e Marta não deixa de apontar para uma das características
do pensamento português que a geração de Orpheu, especialmente Fernando Pessoa,
resgatou mais rigorosamente: a ideia de que a verdade dos eventos esconde-se atrás
de uma bruma de encantamento pode também ser atribuída à maneira como o
povo português interpreta sua história e a formação de sua identidade. A noção de
que o inexplicável, o maravilhoso, como categoria filosófica, permeia os fatos mais
relevantes da história de Portugal, ecoa também em A confissão de Lúcio, como um
dos elementos mais significativos na construção do ponto de vista que o narrador
revela a respeito da realidade em que se insere.
Outro aspecto de A confissão de Lúcio que chama atenção e se relaciona
diretamente com a questão da visão portuguesa sobre o próprio país – e com as
bases do que Miguel Real chamou de complexo pombalino – está em uma espécie de
xenofobia às avessas, uma xenofilia que o romance deslinda, por meio da trajetória
de suas personagens. É em Paris, por exemplo, que Lúcio Vaz vai buscar livrar-se do
brumoso ambiente que lhe provocava o sonho, o inexplicável que lhe encampava a
realidade:
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 185

Entanto, agora já não podia duvidar: vencera. Atravessara a Praça da Concórdia, monumental
e aristocrática, tilitante de luzes...
De novo, ungindo-me de Europa, alastrando-me de sua vibração, se encapelava dentro
de mim Paris, o meu Paris, o Paris dos meus vinte e três anos... (SÁ-CARNEIRO, M. de,
1988: 65)

Ou, ainda, a reflexão do narrador sobre sua estada na capital francesa:

Mas voltando às suas [de Ricardo de Loureiro] revelações estrambóticas:


Como gostássemos, em muitas horas, de nos embrenhar pela vida normal e nos esquecer a
nós próprios – frequentávamos bastante os teatros e os music-halls, numa ânsia também de
sermos agitados por esses meios intensamente contemporâneos, europeus e luxuosos (Id.:
23).

Nesse sentido, “esquecer a nós próprios” pode referir-se, no âmbito da obra, a


Ricardo e Lúcio, anormais diante do cenário exótico de Paris, portugueses demais
para encaixarem-se naquele ambiente. Por extensão, pode também ser compreendido
como uma referência a “nós próprios”, os portugueses, tão díspares daquele contexto
cultural, tão arrebatados pelo que lhes parece, por oposto, muito mais interessante e
relevante. O não-pertencimento, ainda que também diga respeito a um movimento
interno, ontológico, reflete os traços do olhar português para o progresso europeu, de
quem não poderia, em Portugal, ver acontecer tais manifestações de cunho artístico.
Note-se, ainda, que Gervásio Vila-Nova, Ricardo de Loureiro e Lúcio Vaz são os
únicos portugueses incluídos na descrição da seguinte cena:

A sala enchera-se entretanto de uma multidão bizarrada e esquisita. Eram estranhas mulheres
quase nuas nos seus trajos audaciosos de baile, e rostos suspeitos sobre as uníssonas e negras
vestes masculinas de cerimónia. Havia russos hirsutos e fulvos, escandinavos suavemente
louros, meridionais densos, crespos – e um chinês, um índio. Enfim, condensava-se ali bem
o Paris cosmopolita – rastaquouère e genial (Id.: 15)

O olhar encantado do português, ainda que parte do movimento artístico do


final do século XIX, denuncia um encantamento com o que lhe parece “bizarro”, o
que se confirma na sequência, quando Lúcio refere-se aos três portugueses como os
“requintados de ultracivilização e arte” (Id.: 16). Isso lhes passa, em tese e no contexto
do romance, por conhecerem Paris e terem contato com experiências, como essa,
apoteóticas por serem bizarras e estranhas ao gosto português, tão habituado a uma
visão de arte “atrasada”, por oposição ao que encanta os que têm a experiência da
186 100 Orpheu Mauro Dunder

superioridade, como a “americana fulva” (sob esse ponto de vista, uma voz autorizada),
que assim se manifesta a esse respeito: “Meus amigos, creiam-me, não passam de
uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam
aparentar” (Id.: 11).
Ainda com relação a essa espécie de “complexo de inferioridade”, Gervásio Vila-Nova,
personagem representativa de uma arte pautada pela ruptura de tradições, ainda que
ela implique a existência de uma manifestação artística vazia de sentido, na óptica da
lógica formal, apresenta uma crítica ferina à maneira como Portugal enxerga a arte
que produz. Ao citar a declaração de Fonseca, um “pobre pintorzinho da Madeira”,
Vila-Nova define claramente a oposição sobre que se centra sua visão de sua terra: “o
Fonseca diz que é um ofício acompanhar-me. E uma arte difícil, fatigante. (...) Sim,
concordo que a minha companhia seja fatigante. Vocês têm razão” (Id.: 10). Ao que
segue o comentário do narrador, em discurso indireto livre:

Vocês – note-se em parêntese – era todo o mundo, menos o Gervásio... E o Fonseca, de


resto, um pobre pintorzinho da Madeira, “pensionista do Estado”, de barbichas lavallière,
cachimbo – sempre calado e oco, olhando nostalgicamente o espaço, à procura talvez de sua
ilha perdida... Um santo rapaz! (Ibid.).

Em que pese a ironia da descrição feita por Vila-Nova, tornam-se evidentes traços
do discurso que despreza Portugal, em certa medida: o “pintorzinho da Madeira”,
“pensionista do Estado”, “olhando nostalgicamente o espaço”, remete à imagem de
um artista desconectado das tendências renovadoras por que passa a arte europeia,
vivendo em uma espécie de ranço do passado, ideia que se reforça pela caracterização
final: um “santo rapaz”.
Nota-se, sobretudo, nessa passagem, a ideia de uma arte incapaz de aderir às
tendências do pensamento europeu, civilizado, superior, em que o artista é, ao mesmo
tempo, sujeito e objeto de uma ruptura a qual Portugal, país “não-europeu”, é incapaz
de perceber e promover.
Nesse sentido, é fundamental refletir acerca da divergência, manifestada por sutil
ironia, entre a visão do narrador e a de Gervásio Vila-Nova, no tocante à noção de escola
literária, conceito esse que aponta para uma tradição consolidada na leitura que se faz
dos movimentos artísticos. Logo no início do romance, Gervásio declara-se admirador
e seguidor do Selvagismo, cujos traços característicos consistiam na destruição da
forma física, em uma estética baseada no uso de “diversos papeis e tintas de várias
cores” (Id.: 9), assim definida por Lúcio Vaz, conforme descrição de Gervásio
Vila-Nova:
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 187

Também – e eis o que mais entusiasmava o meu amigo – os poetas e prosadores selvagens,
abolindo a ideia, “esse escarro”, traduziam as suas emoções, unicamente em jogo silábico,
por onomatopeias rasgadas, bizarras: criando mesmo novas palavras que coisa alguma
significavam e cuja beleza, segundo eles, residia justamente em não significarem coisa
alguma... (Ibid.)

Em que pese a ideia de ruptura com padrões tradicionais de arte, representados no


trecho pela concepção acadêmica de “escola”, salta aos olhos o fato de que a estética
“selvagista” caracteriza-se pela nulidade de traços, ou de busca de um sentido para a
substância da obra de arte. Em discurso que aproxima essa noção de uma concepção
niilista para o fazer artístico, o posicionamento de Gervásio Vila-Nova traz ao
romance a percepção de que, à tradição portuguesa, é preferível o nada, ou uma arte
que se sustenha pela superficialidade, quase frívola, de suas manifestações, talvez
pelo simples fato de ser estrangeira, de estar localizada em países “europeus”, como a
Alemanha e a França.
Na esteira desse pensamento, é imprescindível relembrar, também, a própria
concepção de artista que Lúcio Vaz oferece ao leitor: a relevância do artista – e, por
extensão, de sua arte – encontra-se na medida com que rompe, radicalmente, com as
noções morais de sua sociedade.

Sinto tantas afinidades com essas criaturas... como também as sinto com os pederastas...
com as prostitutas... Oh! é terrível, meu amigo, terrível...
Eu sorria apenas. Estava já acostumado. Sabia bem o que significava tudo aquilo. Isto só:
arte. (Id.: 11-12)

Curiosamente, o discurso de Gervásio Vila-Nova, bem como sua concepção de


arte – e de artista – dialogam, em intertexto, com algumas das concepções atribuídas
pelo narrador de O primo Basílio, de Eça de Queirós, à personagem Conselheiro
Acácio. Embora de lados distintos, Gervásio Vila-Nova e o Conselheiro Acácio
dão vozes a representações bastante próximas, em natureza. A idealização limitada,
construída a partir da própria experiência, centrada na individualidade, que resulta
em empobrecimento da visão de mundo, disfarçada de superior complexidade
– símbolos de Portugal, no tocante à visão de mundo que manifestam. “De resto,
era outro traço característico em Gervásio: construir as individualidades como lhe
agradava que fossem, e não as ver como realmente eram” (Ibid.).
Não será, portanto, disparate afirmar que, por vias divergentes, Eça de Queirós e
Mário de Sá-Carneiro visam ao mesmo desiderato: despertar o leitor para a pequenez
de Portugal diante de um universo mais amplo, qual seja o da cultura dos outros
188 100 Orpheu Mauro Dunder

países europeus. Nesse sentido, ao universo beato, representado criticamente pelas


personagens da fase Realista de Eça de Queirós, opõe-se a experiência sensorial
extrema, cuja representação, baseada em metáforas e referências de cunho sexual, seria
inconcebível pela conservadora sociedade portuguesa – a mesma que, em primeiro
momento, reprova o movimento renovador de Orpheu, vaiando a “Ode Triunfal” de
Pessoa, ou o “16”, do próprio Mário de Sá-Carneiro (conforme mencionado na carta
a Côrte-Rodrigues sobre o primeiro número da revista).
Na esteira desse pensamento, nota-se que, em contexto irônico, Gervásio Vila-Nova
declara, sobre o público português: “Sabe você, Lúcio, não imagina a pena que eu
tenho e que não gostem das minhas obras. (...) Mas não pense que é por mim. Eu
estou certo do que elas valem. É por eles, coitados, que não podem sentir a sua beleza.”
(Id.: 20). Tal declaração denota a visão que o texto de Sá-Carneiro sugere sobre a
relação do público português com as tendências inovadoras que, em certa medida,
já são percebidas, por exemplo, em Paris. Gervásio Vila-Nova, o incompreendido
por um povo de inteligência medíocre, é denotativo da imagem de atrasado que o
pensador português tem acerca de seu próprio povo. É o complexo pombalino, de que
trata Miguel Real.
Nesse sentido, aponta-se a reflexão de Ricardo de Loureiro sobre as capitais de
França e Portugal, respectivamente e em contraste, particularmente relevante para
esta análise:

De Paris, amo tudo com igual amor: os seus monumentos, os seus teatros, os seus bulevares,
os seus jardins, as suas árvores... Tudo nele me é heráldico, me é litúrgico.
[...]
As ruas tristonhas da Lisboa do sul, descia-as às tardes magoadas rezando o seu nome: O
meu Paris... o meu Paris...
E à noite, num grande leito deserto, antes de adormecer, eu recordava-o – sim, recordava-o
– como se recorda a carne nua de uma amante doirada!
[...]
Só posso viver nos grandes meios. Quero tanto ao progresso, à civilização, ao movimento
citadino, à actividade febril contemporânea!... Porque, no fundo, eu amo muito a vida. Sou
todo de incoerências. Vivo desolado, abatido, parado de energia, e admiro a vida, entanto,
como nunca ninguém a admirou!
Europa! Europa! Encapela-te dentro de mim, alastra-me da tua vibração, unge-me da
minha época!...
Lançar pontes! lançar pontes! silvar estradas férreas! erguer torres de aço!... (Id.: 26-27).
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 189

A visão de Ricardo de Loureiro acerca de Paris (a “amante dourada”) e, por


oposição, de Lisboa (a cidade de “ruas tristes”, onde se vivem “tardes magoadas”)
constitui procedimento discursivo a que Mikhail Bakhtin chama de cronotopo, no
qual as marcas de constituição do espaço guardam, não apenas, marcas da passagem
do tempo da narrativa e do tempo histórico, como visões de mundo condensadas
nas características do ambiente. É cronotópico, pois, o que diz a personagem, uma
vez que, mais do que simplesmente descrever locais, a passagem designa a oposição
entre a atmosfera sociocultural parisiense (local grandioso, em que tudo lhe parece
“heráldico” e “litúrgico”) e o suposto atraso lisboeta (em que Loureiro se encontra
em um “grande leito deserto”). Corroboram essa leitura da cena as imagens de que
o discurso do poeta lança mão para estabelecer as relações entre sua vida e o lugar
em que está: Paris é a sociedade em que se encontram o “progresso”, a “civilização”,
o “movimento citadino”, a “actividade febril”, as quais Ricardo de Loureiro atribui o
estatuto de “vida”, no contexto.
Por oposição, portanto, Lisboa seria o local da ausência de vida, em que interferem
o atraso, a falta de civilização, a vida de jaez campestre, uma monotonia inativa.
Assim, a ideologia que pauta a visão das personagens acerca da capital portuguesa
estabelece uma espécie de lente, por meio da qual, em que pese a postura maniqueísta
do discurso, se dá a conhecer a visão que o intelectual português, representado pelas
personagens do romance, tem a respeito de si, de sua própria cultura e da nação que
habita, local que põe o poeta “desolado, abatido, parado de energia”. Nesse sentido,
a única possibilidade para o pensamento português está na Europa, ou, por outras
palavras, na busca de um processo de europeização, ao qual o país não assiste. A
oposição entre vida e desolamento, civilização e atraso, caracterizam não apenas a
visão que transparece no discurso de A confissão de Lúcio, senão a do próprio povo
português: a Europa precisa entrar em Portugal, ainda que seja à força, por meio da
poesia de Orpheu e de sua iconoclastia.
De Lúcio Vaz, o que se dispõe, desde o início, a dar ao leitor um “documento”,
que é confissão, apreendem-se as mesmas impressões. Dá conta dessa visão
cronotópica a respeito de Lisboa a seguinte descrição, feita pelo narrador, a respeito
do hotel em que se hospeda na capital lusitana: “Um criado estilizado conduziu-me
a uma grande sala escura, pesada, ainda que jorros de luz a iluminassem. Ao entrar,
com efeito, nessa sala resplandecente, eu tive a mesma sensação que sofremos se,
vindos do sol, penetramos numa casa imersa em penumbra” (Id.: 35). Torna-se
assim evidente a disposição do narrador para reforçar, junto ao leitor, a imagem de
um país escuro, penumbroso, envolto em grande treva, a qual, simbolicamente e
no contexto deste romance, pode ser tomada como a condição da intelectualidade
portuguesa.
190 100 Orpheu Mauro Dunder

Um pouco adiante na narrativa, Lúcio Vaz é apresentado a Marta, esposa do poeta


Ricardo. De certa forma, ao declarar que a conhece em um momento de “rodopio
nevoento” e, em seguida, afirmar que, “ao adormecer, tive a sensação estonteante
de acordar de um longo desmaio, regressando agora à vida”, para além de incutir à
trama narrativa algum traço de verossimilhança (o ambiente onírico contribuiria
para, talvez, explicar o assassinato do desfecho), insinua também que, em oposição à
vida que Paris lhe permite, estar em Lisboa só lhe é possível, dentro da ambientação
“imersa em penumbra”, em sonho, onde poder afastar-se de tudo o quanto se relacione
com a “penumbra” da sala “escura, pesada”, microcosmo de Portugal na obra.
Dessa forma, as representações identitárias da cultura portuguesa presentes em A
confissão de Lúcio constituem mais do que mera criação ambientadora da trama. Elas
trazem à baila a visão nacional contra a qual a geração de Orpheu criará uma das mais
significativas manifestações artísticas da história da cultura portuguesa – e da qual,
sinal claro de sua relevância, celebra-se neste evento o primeiro centenário.

Bibliografia

Bibliografia Activa
MARQUES, Oliveira A. H. O. (2009). Breve História de Portugal. Lisboa: Presença,
7ª edição.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1988). A confissão de Lúcio. Porto: Justiça e Paz.

Bibliografia Passiva
BAKHTIN, Mikhail (2003). Estética da criação verbal. Trad.: Paulo Bezerra. São
Paulo: Martins Fontes, 4ª edição.
BAKHTIN, Mikhail (1988). Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
Trad.: Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: HUCITEC/Editora da
UNESP.
HEIDDEGER, Martin (2006). Ser e tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 5ª edição.
LOURENÇO, Eduardo (2009). O labirinto da saudade. Lisboa: Gradiva, 6ª edição.
REAL, Miguel (2008). A morte de Portugal. Coleção Campo da Actualidade. Porto:
Campo das Letras, 2ª edição.
Entre o “Orpheu” e a “A Águia”, entre Fernando Pessoa
e Teixeira de Pascoaes

Renato Epifânio
Movimento Internacional Lusófono

Palavras-chave: Orpheu; A Águia; Teixeira de Pascoaes; Fernando Pessoa.


Resumo: Na nossa comunicação, iremos problematizar o legado de Orpheu, desde logo
estabelecendo a ponte com a revista A Águia, órgão do movimento cultural e cívico da
“Renascença Portuguesa” – onde Fernando Pessoa publicou os seus primeiros textos, em
1912:  “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada”, “Reincidindo…” e “A Nova
Poesia Portuguesa no Seu Aspecto Psicológico” –, assim confrontando a figura maior da revista
A Águia com a figura maior do Orpheu (ou seja, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa,
respectivamente), mesmo quando essa confrontação pareça de todo incompreensiva.

1. Comecemos por dizer o óbvio: o Orpheu foi, de facto, uma revista marcante.
Foi uma espécie de cometa que atravessou e revolveu o panorama cultural da
época – em apenas dois números, publicados nos dois primeiros trimestres de
1915. O terceiro já não viria a ser publicado, por razões financeiras, pandemia que,
década após década, tem vitimado dezenas, senão centenas, de projectos culturais
meritórios num país com um público culto tão escasso (cada vez mais escasso?)
como o nosso.
Tendo sido uma espécie de cometa, não foi, longe disso, um «fogo fátuo», tal a
influência que exerceu nas décadas seguintes. Foi a primeira grande expressão, em
Portugal, de uma vanguarda modernista que, agregou, entre outros, nomes como
Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada-Negreiros ou Santa-Rita Pintor,
nomes que ficaram para sempre associados à chamada «geração d’Orpheu».
Foi, para além disso, o que para nós é particularmente significativo, uma revista
de escala luso-brasileira. Pelo menos do ponto de vista institucional, já que veio à luz
com dois directores: Luiz de Montalvôr, em Portugal, e Ronald de Carvalho, no Brasil.
Saliente-se também a presença do então jovem António Ferro como editor da revista,
o mesmo António Ferro que virá depois a ter o papel proeminente que se conhece
durante o Estado Novo, desde logo no plano cultural, onde continuou a contar com
a participação e o apoio dessa geração. Também por isso, 100 anos depois, o Orpheu
continua a confundir os espíritos mais obtusos…
192 100 Orpheu Renato Epifânio

Para estes, como é sabido, o mundo é sempre simples e deve continuar a ser visto a
preto e branco. À luz dessa grelha, o Estado Novo foi a negação da cultura em geral e
da modernidade em particular. Decerto que sim, em alguns aspectos. Noutros, porém,
e não menores, foi com o Estado Novo que essa modernidade anunciada pelo Orpheu
se veio a afirmar – refira-se apenas, como exemplo maior, a obra de Almada Negreiros
apoiada pelo regime. O que concluir daqui? Desde logo, que o mundo, felizmente, é
sempre mais complexo do que julgam aqueles para quem o mundo deve continuar a
ser visto a preto e branco.

2. Tal como a revista A Águia, também o Orpheu provocou as mais eriçadas


reacções. Comecemos por recordar, para depois estabeleceremos essa ponte, algumas
reacções em relação à revista A Águia e, por extensão, ao movimento cultural e cívico
de que a revista A Águia foi a grande expressão…
Ao lermos, por exemplo, o Inquérito Literário promovido por Boavida Portugal nas
páginas do jornal A República e depois coligido em livro1, ficamos com uma excelente
panorâmica do ambiente cultural da época, confirmando, mais especificamente, o
carácter assaz controverso do movimento da “Renascença Portuguesa”.
Tomemos, desde logo, como exemplo a primeira resposta a esse mesmo Inquérito,
de Júlio de Matos – diz-nos ele que

uma literatura, como a deles [da “Renascença”], que se faz panteista, que préga naturalmente
o regresso á vida simples, á vida patriarcal, ao campo, que nos aconselha a voltar para traz,
quando as outras na­ções teem toda a sua atenção posta no futuro, en­carando-o altivamente,
não na atitude do Dester­rado, mas em atitude de marcha, essa literatura é uma excrescência
do passado, não póde viver2.

É certo que, no âmbito desse mesmo Inquérito, houve quem tivesse rebatido essa
perspectiva «passadista» da “Renascença”, como alegadamente aparecia expressa na
revista A Águia, órgão por excelência do movimento. Eis, nomeadamente, o caso de
Jaime Cortesão, que, de resto, não apenas rebate Júlio de Matos3, como apresenta,

1 PORTUGAL, B., 1915.


2 Ibid.: 19.
3 Cf. Ibid.: 163-164: «O conceito de Saudade que aparece na Aguia é outro bem diferente. A Saudade,
como síntese psi­cológica e o saudosismo é criação individual do poeta Teixeira de Pascoais, que aliás
acho formo­sissima e cheia de profunda verdade. É pois a êle que compete a sua defesa, se é que este
termo tem aqui algum cabimento. No entanto devo dizer-lhe para contraditar a definição do snr. Matos,
que no conceito de Pascoais a Saudade envolve Esperança, esforço criador, entusiasmo religioso e
voluntariosa continuidade afectiva./ Esta Saudade não é “um sentimento depressivo” nem “a recordação
de uma pessoa querida que nos faltou” (que coisa tão chôcha!), e cultivá-la não é “amarrar-se ao passado,
Entre o “Orpheu” e a “A Águia”, entre Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes 193

pela positiva, a matriz da “Renascença”4.


O mesmo, de resto, será reafirmado pelo próprio Teixeira de Pascoaes, decerto a
figura mais emblemática da “Renascença Portuguesa”. Expressando a sua «esperança
de ressurgimento pátrio»5, defende, no essencial, que a “Renascença Portuguesa” não
é mais do que um instrumento para promover esse ressurgimento6, o qual, visando
o reencontro com aquilo que nos é mais próprio, nas palavras do próprio Pascoaes,
«não rejeita o que haja de bom e util nas sciências estrangeiras. O seu lusitanismo
intransigente não vai além do campo religioso e artístico»7.
Daí, aliás, toda a extensão deste movimento – operando, desde logo, no plano
artístico e religioso (recordemos que Pascoaes chegou a propor uma «religião
lusitana», independente da Igreja de Roma), ele tem uma abrangência cultural e cívica
que faz com que seja necessariamente redutor analisá-lo como um movimento apenas
artístico ou literário. A esse respeito, referindo-se à “Renascença”, e ainda em resposta
a Júlio de Matos, fala Raul Proença de «um ‘movimento de educação nacional’, e não
de uma renascença literária»8.

alimentar um estado mór­bido, ajudar a definhar mais a raça”, é antes elevar a Raça á consciencia activa
das suas mais altas vir­tudes, é levantá-la ás suas mais sublimes culminan­cias, arrebatá-la no impeto da
sua antiga audacia, erguendo‑lhe a vontade pelos seus mais genuinos sentimentos para as realisações do
Futuro».
4 Cf. Ibid.: 165: «um dos fins que se propõe a “Renascença Portuguesa” é precisamente combater o estrangeirismo,
revelar ao nosso Povo o Espirito Lusitano, e quando igualmente ninguem de boa fé pôde afirmar que o grupo
de escritores da “Renascença Portuguesa” sofra de qualquer influência estrangeira».
5 Cf. Ibid.: 187.
6 Cf. Ibid.: 177-178: «A “Renascença Portuguesa” tem, portanto, um fim e um alto critério filosófico e religioso
que a dirige e anima. E ao mesmo fim e ao mesmo critério obe­dece a nova Poesia portuguesa, que representa a
primeira afloração do espírito da Raça. Sim: há um renascimento literário iniciado pelos poetas que mencionei
na minha resposta ao inquérito da Re­pública. E o numero e o valor dêstes poetas são o bastante para se poder
afirmar que existe, no mo­mento actual, uma nova alma pátria que é a antiga alma renovada e plenamente
revelada, ainda no seu aspecto transcendente e poético, mas que ama­nhã será perfeito pensamento definido
e fecunda actividade. Há uma nova alma lusitana revelada pela nova Poesia. E só não reconhecem esta
con­soladora verdade os velhos espíritos empedernidos em velhos preconceitos e alguns novos espíritos (aliás
de valor) afastados da sua Raça, porque não sabem ou não querem reagir contra o meio portu­guês adulterado
por alguns séculos de subordina­ção a Roma e a Paris».
7 Cf. Ibid.: 180.
8 Cf. Ibid.: 198. Não escamoteando as já referidas divergências internas – ainda nas palavras de Proença: «no
fim de alguns numeros — muito poucos — o que veio a predominar na Aguia não foi o lado intele­ctual da
Renascença, mas a sua falange emotiva, mística, amorosa de sonho e de misterio. Por culpa dos elementos
do sul, a Poesia tinha tomado posse da Aguia, da primeira pagina até á ultima; por culpa dos elementos do
sul, a Renascença Portu­guesa falhara completamente na sua missão./ O “saudosismo” a que se refere o snr.
dr. Ju­lio de Matos foi assim um elemento sur-ajouté e de modo algum orgânico e primitivo da Renascença
Portuguesa./ Manda porém a inteira justiça que se diga que nêsse “desvio” da orientação de uma sociedade
não cabem só graves responsabilidades á inércia cul­posa dos meridionais; o snr. dr. Teixeira de Pas­coais,
logo no 1.º numero, por um evidente equi­voco (que do mais é incapaz a sua belissima alma, cheia de tão
profunda emoção e de tão humana simpatia) acentuava já êsse desvio nestas palavras do editorial: “É
na Saudade revelada que existe a razão da nossa Renascença; nela ressurgiremos, porque ela é a própria
194 100 Orpheu Renato Epifânio

3. Em comparação com as reacções provocadas pela revista A Águia, as reacções


provocadas pela revista Orpheu não foram menos eriçadas – daí a significativa
alusão, por parte de Fernando Pessoa, às «referências desagradáveis que a imprensa
portuguesa nos tem feito», numa carta ao poeta Camilo Pessanha:

Sou um dos directores da revista trimestral de literatura Orpheu. Não sei se V. Ex.ª
a conhece; é provável que não a conheça. Terá talvez lido, casualmente, alguma das
referências desagradáveis que a imprensa portuguesa nos tem feito. Se assim é, é possível
que essa notícia o tenha impressionado mal a nosso respeito, se bem que eu faça a V. Ex.ª
a justiça de acreditar que pouco deve orientar-se, salvo em sentido contrário, pela opinião
dos meros jornalistas. Resta explicar o que é Orpheu. É uma revista, da qual saíram já
dois números; é a única revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde
a Revista de Portugal, que foi dirigida por Eça de Queirós. A nossa revista acolhe tudo
quanto representa a arte avançada; assim é que temos publicado poemas e prosas que vão
do ultra-simbolismo ao futurismo. Falar do nível que ela tem mantido será talvez inábil, e
possivelmente desgracioso. Mas o facto é que ela tem sabido irritar e enfurecer, o que, como
V. Ex.ª muito bem sabe, a mera banalidade nunca consegue que aconteça. Os dois números
não só se têm vendido, como se esgotaram, o primeiro deles no espaço inacreditável de
três semanas. Isto alguma coisa prova – atentas as condições artisticamente negativas
do nosso meio – a favor do interesse que conseguimos despertar. E serve ao mesmo
tempo de explicação para o facto de não remeter a V. Ex.ª os dois números dessa revista.
Caso seja possível arranjá-los, enviá-los-emos sem demora.9

Tanto por aquilo que diz, esta carta é igualmente significativa por aquilo que
omite: falamos ainda, claro está, da revista A Águia, onde Fernando Pessoa publicou
os seus primeiros textos, em 1912:   “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente
Considerada”, “Reincidindo…” e “A Nova Poesia Portuguesa no Seu Aspecto
Psicológico”. Saliente-se que, na citada carta, Fernando Pessoa refere-se ao Orpheu
como «a única revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde a Revista
de Portugal, que foi dirigida por Eça de Queirós» – ou seja, Fernando Pessoa dá aqui

Raça original e criadora”./ Isto era a antítese do espirito que animava os elementos do sul; poderiam êstes
ter feito entrar o movimento na trajectória que lhe competia; a sua inércia porém era absoluta; por isso,
dentro em pouco, a Renascença ficou limitada aos seus elementos “saudosistas” e o tom predominante na
revista foi o tom “saudosista”./ O autor destas linhas, e alguns outros do sul, muito poucos, que tinham
querido actuar, desliga­ram-se então completamente da Renascença, ainda que continuando a auxiliar a
sustentação da Revista, que tem publicado, dentro do seu espirito, coisas realmente interessantes» [ibid.:
123-124].
9 PESSOA, F., 1998.
Entre o “Orpheu” e a “A Águia”, entre Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes 195

um salto histórico, passando de 1889, data de lançamento da Revista de Portugal, para


1915, como se nada entretanto de relevante tivesse acontecido… Verdade que Teixeira
Pascoaes lhe pagou na mesma moeda. Na última entrevista que concedeu10, reduz o
poema Tabacaria a uma mera «brincadeira» – nas suas palavras:

Veja a Tabacaria: não passa duma brincadeira. Que poesia há ali? Não há nenhuma, como
não há nada… nem sequer cigarros!… Fernando Pessoa tentou intelectualizar a poesia e
isso é a morte dela. É roubar o espontâneo à Alma Humana, isto é, o que ela tem de Alma
Universal ou de poder representativo da realidade. Veja o poema (o poema?!) que começa
‘o que nós vemos das coisas são as coisas’… Isto não é poesia, nem filosofia, nem nada.”. E,
por isso, chegou a considerar Pessoa como um “não poeta” – nas suas palavras: “Repare:
não digo que foi mau poeta. Digo que não foi poeta, isto é, nem bom nem mau poeta. E se
foi poeta, foi-o só com exclusão de todos os outros, desde Homero até aos nossos dias…” –,
inclusive, como um mero “ironista” que, enquanto tal, não se deve tomar a sério11.

4. Como já defendemos num outro texto12, não entendemos estas palavras como
um sintoma de despeito ou de ressentimento. De modo algum. Pelo contrário,
consideramos que, vindas de Pascoaes, estas são palavras inteiramente justas, por
mais injustas que, em absoluto, as possamos considerar. E isto porque, atendendo ao
Poeta que Pascoaes foi, Pessoa só poderia aparecer-lhe como um «não poeta», nem
sequer como um «meio poeta». Para o Poeta que Pascoaes foi, poeta integralmente
poeta, não poderia haver, de resto, «meios poetas». Ou se era integralmente poeta,
como, de facto, Pascoaes foi, ou, muito simplesmente, não se era…
E porque foi Pascoaes integralmente poeta? A nosso ver, por uma simples mas
ainda assim suficiente razão: porque acreditava, integralmente, naquilo que escreveu,
naquilo que dizia. Quando falava, por exemplo, dos deuses ou dos anjos, Pascoaes,
com efeito, acreditava neles, no seu discurso, acreditava tanto no seu discurso que
acreditava que, através dele, essas entidades passavam realmente a existir. Realmente.
Como se, de facto, o discurso poético fosse um discurso realmente divino, realmente
criador. Como se, de facto, ao serem nomeados poeticamente, mesmo as entidades
mais fantasmáticas passassem realmente a existir. Ao lermos as suas obras, ao

10 Publicada n’ O Primeiro de Janeiro, em 25 de Maio de 1950; republicada, mais recentemente, in PASCOAES,


T., 2004: 249-253.
11 Ainda nas suas palavras: «Considero, sim senhor, Fernando Pessoa um grande talento. Mais: afirmo que
como crítico e como ironista não houve outro que o igualasse. Nem o Camilo nem o Eça, nem o Fialho (que,
quando atingia o máximo da expressão, era superior ao Camilo e ao Eça). Mas depois veio Fernando Pessoa,
e foi o mais genial de todos (tão genial, que o tomaram e tomam a sério, o que não aconteceu aos outros)».
12 “Entre Pascoaes e Pessoa”, in AA.VV., 2011: 129-130.
196 100 Orpheu Renato Epifânio

lermo-las em voz alta, sobretudo, também nós acreditamos, ainda que apenas por uns
momentos, nisso, nesse poder criador.
Ora, em Pessoa, isso não acontece. Pessoa era demasiado “filosófico” – diremos
mesmo, demasiado “inteligente” – para acreditar integralmente no seu discurso.
Entre ele e o seu discurso havia sempre uma “cisão”, uma “distância”, uma “distância
crítica”, que impossibilitava essa crença. Mesmo nos seus poemas mais arrebatados,
como a Mensagem, essa distância paira, como uma ubíqua sombra. Não conseguimos,
de resto, imaginar Pessoa a ler em voz alta a sua Mensagem. No princípio, no meio
ou no fim, haveria sempre, fatalmente, um sorriso de ironia, que, por mais leve que
fosse, destruiria, por completo, o poema. Em Pascoaes, ao invés, mesmo quando ele
é irónico, não há ironia, essa ironia. E, por isso, muito justamente, Pessoa era, para
Pascoaes, um “não poeta”.

Bibliografia

AA.VV. (2011). Entre Filosofia e Literatura: ciclo de conferências (org. de Celeste


Natário e Renato Epifânio). Lisboa: Zéfiro.
PASCOAES, Teixeira de (2004). Ensaios de Exegese Literária e vária escrita:
opúsculos e dispersos. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (1998). “Carta a Camilo Pessanha”, in Correspondência
1905-1922. Edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, pp.
184-185.
PORTUGAL, Boavida (1915). Inquérito Literário. Lisboa: Livraria Clássica
Editora.
“A imensidade imensa do mar imenso”:
uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode
marítima”, de Álvaro de Campos

Márcia Manir Miguel Feitosa


Universidade Federal do Maranhão – Bolsista CAPES de Pós-Doutorado no Centro de
Estudos Comparatistas – Universidade de Lisboa

Palavras-chave: Espacialidade; Fenomenologia; Poesia moderna; Experiência; Percepção.


Resumo: Publicado em Orpheu 2, o poema “Ode marítima”, de Álvaro de Campos, constitui o
marco da poesia moderna portuguesa pelo seu estilo torrencial, vanguardista e cosmopolita.
Ao cantar a vida marítima, o heterônimo dá ensejo às sensações vividas e imaginadas na sua
expressão mais complexa, sentidas de todas as maneiras. Apoiando-se na estrutura apolínea da
ode, apregoa o avesso da expansão marítima ao exaltar a sua face mais autêntica e terrível. O
objetivo deste trabalho é a abordagem do poema à luz da Geografia Humanista Cultural, em
que pesem os conceitos de espaço, lugar, experiência, topofilia e ser-estar-no-mundo. Busca-se
o sentido da essência humana a partir da experiência vivida e do mundo percebido ou, na ótica
do poeta, sentido e reconstruído para ser reinventado. Servirão de aporte teórico e conceitual
os estudos desenvolvidos pelos geógrafos humanistas Eric Dardel e Yi-Fu Tuan.

Lá vai a Nau Catrineta,


leva muito que contar.
Estava a noite a cair,
e ela em terra a varar.
(Nau Catrineta – autor anônimo)

E além do que dito é, a experiência, que é madre das cousas,


nos desengana e de toda a dúvida nos tira.
(Duarte Pacheco – Esmeraldo de situ orbis)

1 – INTRODUÇÃO

Concebido segundo a estrutura apolínea da ode, o longo poema “Ode marítima”, de


Álvaro de Campos, com 904 versos, ocupa, nada mais, nada menos, do que 22 páginas
de Orpheu 2. Seu autor, o único a figurar, dentre seus companheiros de heteronímia,
na polêmica revista, teria retornado a Lisboa justamente quando do aparecimento dos
198 100 Orpheu Márcia Manir Miguel Feitosa

dois números de Orpheu e colaborado com dois poemas magistrais, representativos


de sua primeira fase.
Fernando Pessoa, nas Páginas íntimas e de auto-interpretação, sustenta o caráter
magnífico da organização do poema, visto que “nenhum regimento alemão jamais
possuiu a disciplina interior subjacente a essa composição” (PESSOA, F., 1966: 148).
Assim, a partir da solidão do eu-lírico, sentado à beira do cais deserto, a avistar
um paquete que chega e para toda a vida marítima ao seu redor, somos enovelados
num turbilhão de impressões subjetivas, fruto do sonho de vivenciar diferentes
experiências, projetadas na intimidade do eu-lírico e manifestadas com a descrição
de paisagens e aventuras distantes, ao som de gritos do marinheiro inglês Jim Barns
e de frases e expressões célebres de Ilha do tesouro, de Stevenson. Tudo sob o ritmo
embalado pelo volante da imaginação que gira lentamente, acelera, atinge o ápice e
depois declina até o total esmorecimento.
Nosso objetivo com a análise desta ode de Campos é buscar o sentido da essência
humana por meio da experiência vivida e do mundo percebido ou reinventado à
luz dos conceitos de uma vertente da Geografia que prima pelo estudo do objeto a
partir de seu valor humano. Estamos a falar da Geografia Humanista Cultural, que
nasceu, inicialmente, na década de 70 do século passado, como Geografia Humanista
e, mais recentemente, incorporou os estudos culturais e filosóficos, com a abordagem
de conceitos fundamentais em torno do espaço, lugar, experiência, topofilia e
ser-estar-no-mundo, este último bebido na fonte viva da Fenomenologia. Dentre seus
teóricos mais importantes, estão Eric Dardel e Yi-Fu Tuan, autores, respectivamente,
de O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica, publicado em 1952 e com
edição brasileira de 2011, e Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do
meio ambiente, de 1974, reeditado no Brasil em 2012 e, ainda, Espaço e lugar: a
perspectiva da experiência, publicado em 1977 e reeditado em terras brasileiras em
2013. Os dois estudiosos, portanto, constituirão a base da argumentação teórica em
torno da espacialidade na “Ode marítima”.

2 – O EU-LÍRICO E A EXPERIÊNCIA INTENSIVA COM O MAR



No capítulo dedicado ao espaço geográfico, Dardel salienta que, no que concerne
ao espaço aquático, não há dúvidas de sua importância para a superfície do globo,
sejam as águas lacustres e fluviais, sejam os próprios mares. Ele revela que, “lá onde
não existe água, o espaço tem algo de incompleto, de anormal: o deserto, a superfície
árida dos platôs calcários, sugerem naturalmente a ideia de morte.” (DARDEL,
E., 2011: 19). Mais especificamente ao mar, destaca que “é uma força envolvente,
ambiência em seu sentido mais apropriado; ele é um elemento” (id.: 21 – grifos do
“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode marítima” ... 199

autor). Essa observação nos interessa na medida em que nos remete diretamente ao
poema de Campos.
Ao longo de todos os versos da “Ode marítima”, o eu-lírico dirige seu olhar para
o “elemento” mar e por ele se deixa envolver. Mais adiante, transfere o olhar de fora
para dentro de si e assume a vida marítima com a invenção do mar imaginário, rico
em fantasias e movimento, a configurar a unidade da natureza universal. Sozinho, a
avistar do cais deserto um paquete que se aproxima do porto, sua imaginação cria asas
e abre um leque de possibilidades que ganha dinamismo à proporção que o volante
interior deixa de ser racional e começa a girar lentamente.
“Tela anímica onde tudo acontece”, eis o que se configura a alma do eu-lírico neste
momento. José Ney Costa Gomes avança neste pensamento ao afirmar que “aqui o ser
que olha e vê o faz com a alma, inventa-se, cria-se como sujeito (independente, apesar
de fundido à paisagem)” (GOMES, J., 2009: 96). Acompanhemos, portanto, como
procede tal invenção ou criação em pormenor.
Quando o volante ganha vida, o olhar, antes voltado para o paquete e outras
embarcações, mergulha na memória de tempos passados e, curiosamente, entre o cais
e o navio que parte, irrompe sobre o eu-lírico uma saudade de um cais de outrora, o
Cais Absoluto, de onde partiu para o mundo exterior, “fora do Espaço e do Tempo”.
Esse momento único, situado entre o cais e o navio, constitui o cerne da ideia de
intervalo, tão cara à poesia pessoana. Nesta cena intervalar, caracterizada como
uma espécie de redução fenomenológica, tudo acontece: o ruído dos guindastes, as
chegadas de comboios de mercadorias, o bulício a bordo dos navios até a fuga para
as águas eternas das Grandes Navegações, onde se pôde viver intensamente o espírito
das descobertas e do “mistério de cada ida e cada chegada”.
O não-lugar, inerente à concepção de intervalo, é que dá ensejo a que o eu-lírico
anseie por viver a experiência que o espaço proporciona, com todos os seus desafios e
aventuras, medos e angústias. Assim, como ressalta Yi-Fu Tuan, “para experienciar no
sentido ativo, é necessário aventurar-se no desconhecido e experimentar o ilusório e o
incerto. Para se tornar um experto, cumpre arriscar-se a enfrentar os perigos do novo”
(TUAN, Y., 2013: 18). Porém, ainda o momento não é chegado e o eu-lírico retoma
o seu posto a observar o paquete que entra no cais, ao mesmo tempo em que novo
impulso é dado ao volante interior, agora de forma mais acelerada.
A comoção toma conta do poeta que vislumbra não mais o paquete a entrar,
mas os navios abstratos e os navios vistos de perto, com suas especificidades e
características. Por meio das sensações múltiplas, vividas pelos órgãos dos
sentidos, o eu-lírico se imiscui na vida marítima que invade o seu sangue com
sedução. Seguindo, assim, a linha do pensamento de Tuan, o eu-lírico se estende
para o mundo: “Toda a vida marítima! Tudo na vida marítima!/ Insinua-se no
200 100 Orpheu Márcia Manir Miguel Feitosa

meu sangue toda essa sedução fina/ E eu cismo indeterminadamente as viagens”


(PESSOA, F., 2014: 116).
Adentra, pois, os oceanos conhecidos e o Mar Mediterrâneo até ansiar por todos
os mares, estreitos, baías e golfos e aí sim morrer, isto é, viver a vida absoluta, na
sua essência mais perfeita. É o que podemos evidenciar na estrofe seguinte quando
o eu-lírico se nutre, interior e esteticamente, de tudo o que diz respeito ao ambiente
do mar, com suas metáforas e imagens sobretudo. A conclusão é fatídica: nada está
seguro dentro de si, nada se revela como o esperado. Antes em constante ebulição,
qual uma âncora meio submersa ou um barco de quilha pro ar.
Como um crescendo, acelera-se o volante íntimo, a lembrar uma máquina em
processo de funcionamento que ganha velocidade a cada investida da imaginação. A
propósito, José Augusto Seabra realça que

o “volante” constitui o centro regulador de movimento do poema. Assim este não é de


nenhum modo desordenado e caótico, mas pelo contrário rigorosamente orquestrado
em função da gradação ascendente e descendente que o comanda (SEABRA, J., 1982:
131-132).

Embora seja o engenheiro naval que é, o que “beija com a alma as máquinas”,
Álvaro de Campos, a esta altura do poema, revela um desejo passadista da antiga vida
dos mares. A aparente contradição o poeta tenta justificar pela Distância Absoluta
em que se encontra em relação à história das grandes navegações. Qual Alberto
Caeiro, seu companheiro do “drama em gente”, anseia pela autenticidade, pela origem
primeira da Natureza, isto é, pelos mares ainda desconhecidos e pouco explorados
pela humanidade. O que era distante, por conseguinte, se torna próximo. O eu-lírico
passa então a alimentar o que Dardel aponta como a “Geografia Heroica”, a que
“manifesta um interesse pela Terra como realidade geográfica, uma inquietude sobre
o espaço a percorrer e a explorar, uma primeira geografia da aventura, da viagem
como exploração e proeza” (DARDEL, E., 2011: 73). Oniricamente, vivencia o apelo
do “delírio das coisas marítimas” e se transporta, graças ao balanço incansável do
volante, para dentro do universo das águas, a penetrar na própria essência geográfica
do ser-estar-no-mundo, sua geograficidade portanto, na esteira do pensamento de
Dardel.
“O mergulhar nas águas deste mar significa”, nas palavras de Marion Ehrhardt,
“um volver ao estado informe da pré-existência, um suspender de todas as tensões
e contrastes” (EHRHARDT, M., 1964: 180). Esse mergulho, ou melhor, essa
“viagem” constitui o cerne da “Ode marítima” e sobre ela teceremos nossas reflexões
subsequentes.
“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode marítima” ... 201

O primeiro personagem a surgir no transcurso pelos mares primordiais é o


marinheiro inglês Jim Barns, porta-voz da experiência e responsável pela excitação
em excesso do poeta. Por meio de seu “grito antiquíssimo”, desperta uma explosão
histérica a que faz jus o emprego de anáforas, onomatopeias, imprecações, interjeições,
exclamações e, de modo muito curioso, trechos em inglês da Ilha do tesouro, de
Stevenson, lido na infância de Pessoa. No mesmo compasso do êxtase do poeta,
imprime-se novo giro do volante.
No mesmo compasso frenético do volante, aflora a veia poética do eu-lírico que
se esvai em aliterações e assonâncias, como a coroar o momento único da mais fina e
sinestésica poesia:

Subitamente, tremulamente, extraorbitadamente,


Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo da minha imaginação,
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima (PESSOA, F., 2014: 121).

Segue-se, embalada pela interjeição “eh”, uma série de estrofes de invocação das
gentes do mar, experientes homens que se aventuraram para o “Mar Absoluto”, a
fim de “realizar o impossível”. O desbravar o espaço, “a imensidade imensa do
mar imenso”, na verdade, significa a busca pelo lugar experienciado, o “centro de
significados construído pela experiência” (TUAN, Y., 1975: 152). O que o poeta
almeja é a vivência de todos os homens dos mares, dos mais simples homens dos
mastros aos mais violentos e sagazes negociantes e exploradores. Da saudação
entusiasta a todos eles assoma a vontade vulcânica do eu-lírico de a eles se unir, num
afã desenfreado de realizar ações múltiplas, de modo a adquirir o que foi impossível
em terra firme. Verbos como “querer”, “encontrar”, “cuspir”, “sentir”, “despir”, “salgar”,
“fustigar”, “flagelar”, etc. povoam o imaginário do poeta e impelem uma grande
velocidade ao poema, tal como o volante imprimiu à sua alma desde a “partida” do
cais deserto.
O ápice de semelhante ebulição se dá com a tentativa de experienciar intensamente
a “febre da pirataria antiga”: desde as canções de marinheiros, inspiradas ainda em
Stevenson, até a guerra em alto mar, eivada de sangue e selvageria. Aliás, a cor vermelha
e seus matizes predominam por várias estrofes, tingindo o mar de fogo e de morte.
Curioso destacar que Álvaro de Campos objetiva compor uma orquestra sinfônica
quando adentra de corpo e alma na vida que gira em torno da pirataria, de tal modo
que ora é a vítima, ora o algoz, ora ainda – e de forma mais contundente – Deus, não
o magnânimo e onipotente, mas o “monstruoso e satânico”.
202 100 Orpheu Márcia Manir Miguel Feitosa

O que podemos evidenciar, neste conjunto de estrofes em que o poeta faz apologia
da pilhagem e da carnificina, é o que Tuan denomina de “topofilia”, não no sentido
primeiro que implica os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente
material, antes a emoção humana mais forte com o lugar, isto é, quando o lugar ou
o meio ambiente se torna “o veículo de acontecimentos emocionalmente fortes ou é
percebido como um símbolo” (TUAN, Y., 2012: 136). A partir do momento em que o
eu-lírico elege o mar de domínio da pirataria como sendo o seu locus, institui a marca
simbólica de tudo o que isto pode significar no contexto do poema: um sentimento
de afeto muito grande pelos piratas e corsários portugueses que, como é sabido,
viveram sua Época de Ouro no século XV, quando exerceram a supremacia dos
ataques no Atlântico e no Mediterrâneo. Para Campos, tal experiência se sobrepõe
à vivenciada pelos descobridores, na medida em que instaura a anarquia e a aversão
aos atos civilizatórios, os quais coíbem o espírito do homem e o afastam do ritmo da
modernidade, afeita à velocidade e ao estilo esfuziante e torrencial, à maneira de Walt
Whitman.
O que incomoda sobremaneira o poeta de Tavira é a sua condição de engenheiro
ao mesmo tempo prático e sensível, estático e débil diante da “grande dinâmica
estridente, quente e sangrenta”. O que o incomoda é o modo de ser de sua geração,
nomeadamente moralista e conservadora:

Ah, os piratas! os piratas!


A ânsia do ilegal unido ao feroz,
A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis,
Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhos vazios! (PESSOA, F., 2014: 132)

Entretanto, decorridas páginas e páginas de frenesis e êxtases, paralelamente a


sensações masoquistas e sádicas, o eu-lírico anoitece, dado ter sentido mais do que
poderia sentir, ter-se doado mais do que sua alma poderia comportar. E mais uma
vez quem o acompanha é o volante, cuja velocidade decresce vertiginosamente. Os
sonhos parecem abandoná-lo e a ocuparem o seu eu interior apenas a escuridão,
representada pelo mar noturno, e a lua que desponta na horizonte, a avivar a
infância do poeta, excitada pelo já conhecido grito antiquíssimo. Reacende no
âmago de Campos a saudade da infância perdida, não roubada na algibeira. Com
ela, o remorso e a ternura pelas vítimas de seu sonho de pirata, sentimentos que se
contrapõem às sensações histéricas de versos anteriores, fermentadas ao sabor do
volante veloz.
“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode marítima” ... 203

José Augusto Seabra reforça o papel desempenhado pelo volante neste momento
exato da ode, argumentando que, “se o volante funciona ainda, é agora ao contrário,
numa cadência cada vez mais lenta e doce, como a das velhas canções de embalar”
(SEABRA, J., 1982: 134); canções estas que ganham corpo e voz no poema, a comporem
a memória do passado distante e feliz. “Nas coisas menores mais familiares”, pontua
Freya Stark, citada por Tuan,

a memória tece as alegrias mais intensas e nos mantém à sua mercê por intermédio de
ninharias, algum som, o tom de uma voz, o odor de piche e de algas marinhas no cais. […]
Este certamente é o significado de lar – um lugar em que cada dia é multiplicado por todos
os dias anteriores (STARK, F. apud TUAN, Y., 2013: 176-177).

Em decorrência de sensações tão desencontradas, instala-se a grande dualidade


inerente à poesia do heterônimo pessoano, entre viver o futuro célere, modernista e
anticivilizatório e recuar no tempo à procura da arca da infância, ancorada no passado
como um fósforo frio. A solução encontrada, a de retomar pela imaginação literária
“a fúria da pirataria”, se revela inútil diante da presença do transcendente e da voz
misteriosa do marinheiro inglês Jim Barns que clama pelo poeta “de nenhum lado do
espaço, de nenhum local no tempo”. A mesma voz que o chamou para os mares, agora
o chama para o “mundo real”, onde os sonhos são dissipados e onde é possível avistar
a chegada dos paquetes no cais.
A paisagem para o eu-lírico, descortinada naquela manhã de verão, configurou-se,
fenomenologicamente, como “um conjunto, uma convergência, um momento vivido,
uma ligação interna, uma ‘impressão’, que une todos os elementos” (DARDEL, E.,
2011: 30). Mais ainda, sob a sensibilidade de Dardel, significou “presença atraente ou
estranha, e, no entanto, lúcida. Limpidez de uma relação que afeta a carne e o sangue”
(id.: 31).
“Nada perdeu a poesia”, afirma o poeta, mesmo que a imaginação seja agora higiênica
e prática, movida lentamente pelo volante maquinal da modernidade, que abriu espaço
para o comércio e para os sonhos regulares, enquadrados no ritmo previsível do trabalho.
Mesmo a poesia dos escritórios, da vida urbana, cultuada por Cesário Verde, passa a ter
para Álvaro de Campos um valor inestimável no âmbito do mundo moderno, onde
“as faturas e as cartas comerciais são o princípio da história/ E os navios que levam as
mercadorias pelo mar eterno são o fim” (PESSOA, F., 2014: 143).
Feita a apologia das faturas e das cartas comerciais, das viagens e dos viajantes,
dos transatlânticos, dos sentimentos burgueses, da vida flutuante, o poeta se despede
com o olhar direcionado a um sujo navio inglês a vapor que corta as águas outrora
desfraldadas pelas naus. A despedida acontece no exato instante em que o volante
204 100 Orpheu Márcia Manir Miguel Feitosa

cessa seu movimento dentro do poeta. A despedida do navio e da imaginação delirante


calam fundo na alma do eu-lírico que se abandona à tristeza e à solidão do princípio,
num cais ainda mais deserto.

3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao ter escolhido a ode para compor o longo poema de Orpheu 2, dentre as


composições poéticas do gênero lírico, Álvaro de Campos desejou elevar ao mais alto
tom o canto de amor ao mar, a sua gente, em especial, e, em particular, aos piratas,
numa febre de vertigem que beira a loucura.
A adoção de semelhante gênero, contrariando a tendência da maioria dos poetas
do século XX, encontra em Walt Whitman e em Antero de Quental, autor das Odes
modernas, sua inspiração. Para o poeta realista, segundo David Mourão-Ferreira, as
duas formas essenciais do lirismo hodierno são o soneto e a ode. Em relação ao soneto,
“conclui ser ‘o lirismo puro da alma, a ideia que traduz o eterno sentimento’ e a ode, por
seu turno, ‘o lirismo de cabeça, aonde se espalha o universo’” (MOURÃO-FERREIRA,
D., 1983: 562). Lirismo cerebral, portanto, com a bússola apontada para a possessão
dos mares e para as viagens imaginárias, como podemos evidenciar na “Ode marítima”.
Mas o poeta não esteve só nesse decurso. Acompanhou-o o volante que serviu de
diapasão para que sua imaginação fluísse num compasso gradativo e atingisse o ápice
do arrebatamento. Daí para a derrocada foi um desligar a chave. O olhar perdido
no horizonte levou consigo o navio que jamais conseguiu largar o cais para viver
a experiência do desafio. Na ótica de Tuan, “a experiência implica a capacidade de
aprender a partir da própria vivência” (TUAN, Y., 2013: 18). Entre o cais e o navio,
a vivência da viagem constitui a Distância Absoluta que o heterônimo ambicionou
alcançar. Os mares que, debalde, nunca singrou; o navegante que, inevitavelmente,
naufragou dentro de si se contrapõem ao engenheiro naval de formação. No sonho é
que reside a alma de Pessoa e de seu heterônimo. É no intervalo que ambos expressam
a experiência única de ser-estar-no-mundo.

Bibliografia

Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1966). Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (2014). Poesias heterónimos. Introdução e organização de
Auxilia Ramos e Zaida Braga. Porto: Porto Editora.
“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode marítima” ... 205

Bibliografia Passiva
DARDEL, Eric (2011). O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. Trad.
Wetther Holzer. São Paulo: Perspectiva.
EHRHARDT, Marion (1964). O mar na “Ode marítima” de Fernando Pessoa.
Munster Westfalen: Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung.
GOMES, José Ney Costa (2009). Alma à janela: perfil intensivo de Álvaro de
Campos. Tese de Doutorado, FFLCH- USP.
MOURÃO-FERREIRA, David (1983). Larbaud, Pessoa, Antero: o recurso à ode
como forma de modernidade. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian/ Centre
Culturel Portugais.
PACHECO, Duarte (1905). Esmeraldo de situ orbis. Lisboa: Sociedade de Geografia
de Lisboa, Typografia Universal.
SEABRA, José Augusto (1982). Fernando Pessoa ou o poetodrama. São Paulo:
Perspectiva.
TUAN, Yi-Fu (1975). “Place: an experiential perspective”. The Geographical
Review. New York, vol. 65, nº 2, pp. 151-165.
TUAN, Yi-Fu (2012). Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio
ambiente. Trad. Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel.
TUAN, Yi-Fu (2013). Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. Lívia de
Oliveira. Londrina: Eduel.
Orfeu
O mito, a arte, a religião e o mistério

Raul Miguel Rosado Fernandes


Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

ORFEU, é um nome grego que chegou aos nossos dias, envolto num verdadeiro
mistério, mesmo que a figura que o corporiza, figure em poemas de autores reais, e
se apresente como a inspiradora de textos místicos, que temos a maior dificuldade
em decifrar no seu significado e alcance. Perguntamo-nos sempre: será que o orfismo
foi mesmo objecto de crença e praticado por devotos. E é nesta interrogação, a que
não se pode responder com qualquer certeza, que reside o encantador mistério que
tem vindo a seduzir artistas e poetas, figurando Orfeu em inúmeros poemas da
Antiguidade e mesmo no Portugal do século XX.
A mitologia órfica lembra-nos a textura de uma perfeita teia de aranha, que ora
se alonga, ora se encolhe, sem jamais nos permitir compreender a realidade da sua
estranha imagem que aparece em textos que vão desde a épica homérica aos tempos
de Bizâncio, sem jamais nos dar a chave que abra os esconsos da sua misteriosa
existência tão importante para a inteligência e sensibilidade do ser humano.
Os mitógrafos variam de opinião quanto à sua genealogia. Consultámos a Biblioteca
de Apolodoro, dos séculos I-II a.C., e o mitógrafo grego diz-nos que ele nascera
de Calíope, a Musa, e de Oiagro, contra a opinião de outros que o dizem filho de
Polímnia, a Musa da Música, talvez pelo simples motivo de Orfeu ser um encantador
da Natureza e dos seres que a ela pertencem, por fazer sair harmónicos sons pela
forma arrebatadora como tocava a sua lira.
Ao longo das descrições que dele se ocupam através da vida helénica e até romana,
é pela força irresistível da música que ele consegue as maiores proezas. A arte musical
era a força invencível que ele dominava como arma, facto que chama a atenção
das gerações antigas e das modernas. Por isso além de figurar em epopeias, que
celebram os seus feitos, os Argonautas, escritas nas línguas grega (Apolónio de Rodes
e Pseudo-Orfeu) e latina (Valério Flaco), também em seu nome, inventado ou não,
chegaram até nós fragmentos e Hinos, dedicados aos deuses, como senhor que era
dos mistérios ligados à vida e à morte. Tratar-se-á do Orfismo que apresenta íntimas
semelhanças com o Pitagorismo, sem que o seu deus seja necessáriamente Apolo,
mas sim Diónisos, de preferência, ao qual o Pseudo-Orfeu dedica na ed. de Quandt
(Berlim, 1955) o hino 30 (pp. 24-25) sem que insista como a teologia sua rival, na
208 100 Orpheu Raul Miguel Rosado Fernandes

transmigração das almas, mas sim no ascetismo (ou seja exercícios espirituais) que
proporcionem a entrada dos crentes nas Ilhas dos Bem-Aventurados, ou seja no céu,
ou no paraíso (jardim=parádeisos) divino.
Os princípios catequéticos que nos resume M. H. Rocha Pereira (p. 237) pregam
“– a abstenção de derramamento de sangue; – o vegetarianismo; – a doutrina de que
o corpo é a prisão da alma (que Sócrates, na sua Apologia, invocará, sem que se saiba,
pelo que penso, que haja qualquer ligação com as doutrinas de Orfeu); – a crença na
purificação do pecado, por meio de certos ritos, neste mundo e no outro, etc.) o que
não nos força a pensar na transmigração, segundo pessoalmente penso, contrariando
assim as dúvidas de Rocha Pereira que a este propósito cita, no volume dedicado à
Cultura Grega (p. 236 s.v. Orfismo), a sentença erudita de Willamowitz Moellenforf
que acusa os Modernos de falarem excessivamente dos Órficos. Lança contudo a
acusação ao interrogar o leitor perguntando-lhe: “Quem é que procedeu assim na
antiguidade?” Por muito erudito que o sábio alemão seja, também não lhe podemos
responder que ninguém o fez, visto que a sua música até as feras, as rochas e as Sereias
domava.
Entre os Gregos referem-se à sua existência, natureza e poderio, vários poetas,
entre os quais, Íbico que o intitula “o glorioso Orfeu” (frg. da p. 141, Hélade, ed.
2003, Rocha Pereira), e Simónides, que nos comunica a sensação dos que a sua
música e canto ouviam: “Inúmeras, as aves voavam / sobre a sua cabeça / e os peixes,
em pé, saltavam das águas de anil do mar, / ao som do seu belo canto.” E acrescenta
noutro passo: “Não se ergueu então o sopro do vento que abala as folhas, / para
impedir que a voz doce como o mel / aderisse aos ouvidos humanos” (frgs, da p. 179,
ed. 2003, Rocha Pereira).
O hino 30 a Diónisos, a quem dedica incenso resinoso, começa por invocá-lo
dedicando-lhe vários epítetos que sugerem o tom ribombante da sua presença divina,
a sua profícua presença astral, o ter sido trazido à existência antes de todos, as suas
duas existências, engendrado três vezes, e, como sempre acontece em preces deste
tipo, intitulando-o religiosamente por “senhor Báquico”. É uma espécie de ladainha
que temos diante dos olhos, em que se enumeram todas as qualidades do deus.
Ovídio nas Metamorfoses, já no séc. II (trad. de Paulo Farmhouse Alberto) da nossa
era, refere-se insistentemente a Orfeu, esse mágico vate e músico da Trácia, nos cantos
X e XI, em que vai em busca, para depois a perder, de Eurídice, a sua amada, que só
poderia fazer sair do Tártaro, se olhando para trás, a não procurasse com o seu olhar
apaixonado. Na versão de Ovídio, Eurídice tinha sido mordida no calcanhar por uma
serpente, e estava para sempre e para ele perdida. O canto do vate é romanticamente
manejado por Ovídio, cuja prece se dirige a todos os deuses: “Ó deuses deste mundo
situado sob as terras / no qual voltamos a cair todos quantos nascemos mortais, / se é
Orfeu - O mito, a arte, a religião e o mistério 209

lícito e permitis falar a verdade ….. não desci aqui para ver as trevas do Tártaro, / nem
para acorrentar as três goelas desse vosso monstro, / o rebento de Medusa…. / A razão
da vinda é a minha esposa, a quem uma serpente / ao ser pisada, injectou veneno / Por
estas paragens repletas de pavor / ….rogo: / tornai a tecer o destino apressadamente
cortado de Euridíce…. / Mas se os destinos me negam este favor pela minha esposa, /
estou decidido a não voltar: rejubilai com a morte dos dois.” Eis o estilo plangente do
igualmente libertino autor da Arte de Amar.
Mais plangente e completo é o episódio criado por Virgílio no canto IV das Geórgicas
que concebe Eurídice como Ninfa Dríade (dos bosques) que Aristeu perseguia e mata,
e ao descer aos infernos será Orfeu que a irá buscar, com a condição quase infantil
de se não voltar para a ver. Tudo acontece ao contrário e a ninfa morre e as forças
infernais não lhe permitirão levá-la para a vida.
A morte de Orfeu também será conhecida em várias versões, uma vez que os poetas
antigos, que eram teólogos também, introduziam nas histórias dos entes mágicos e
sagrados as versões que porventura lhes chegavam ou mesmo que inventavam.
Uma das versões mais correntes é a de que teriam sido as mulheres trácias, suas
conterrâneas, que o teriam despedaçado, não conseguindo evitar que a cabeça da
vítima chegasse a Lesbos, onde os habitantes lhe ergueram um túmulo, que deu à ilha
a potencialidade de vir a ser o centro da poesia lírica.
Outras versões religiosas, ligam os seus despojos à Trácia ficando sempre a eles
ligada a arte da poesia e do canto mágicos. Dentro desta visão, constava que a sua
lira fora transportada para o céu, e a sua alma para os Campos Elíseos, onde, vestido
de túnica branca, ele cantava para os Bem-aventurados, era versão dionisíaca do céu.
Daí o terem-no os antigos ligado aos mistérios de Elêusis, localidade que ainda hoje
encontramos a uns quilómetros de Atenas.
A sua fama e mito chegaram até nós, integrados em cantos épicos, um deles até
com o seu nome como autor, Os Argonautas, ou em hinos de origem religiosa, dos
quais já antes escolhi o dedicado a Diónisos.
As aventuras da Argo (Argus em Latim e velho bacalhoeiro português, que ainda vi),
vão passar-se sob o comando de Jasão na Cólquida, que convida Orfeu a acompanhar
a sua tripulação (Pseudo-Orfeu, Argonáuticas, v. 60, segs.) uma vez que sabia que os
poderes mágicos da sua música e do seu canto podiam fazer frente a todos os perigos
que lhe surgissem pelos caminhos marítimo ou terrestre. É o caso das SEREIAS que já
tinham aparecido nas aventuras homéricas de Ulisses, e que Orfeu enfrenta na viagem
à Cólquida, em busca do VELO DE OURO, descrevendo o encontro da primeira
pessoa (v. 1276 e segs.): “Eu cantava, gritando a alta voz, um hino maravilhoso……e
então, quando eu tocava, dos altos nevados, as Sereias ficaram chocadas pelo encanto
e deixaram de cantar. Uma deixou cair das mãos a flauta e a outra a lira, e lançaram
210 100 Orpheu Raul Miguel Rosado Fernandes

gemidos terríveis, uma vez que a morte, o seu horrível destino tinha chegado. Do alto
da rocha onde estavam, lançaram-se no abismo do mar agitado, e os seus corpos e a
sua figura orgulhosa transformaram-se em rochedos.”
Eis um rápido episódio que demonstra a força mágica de Orfeu, sem entrar
imediatamente na lenda espantosa e cruel da paixão de Jasão e Medeia, que Eurípides
consagrou de maneira inesquecível, e que até acabou no cinema num filme em que era
a Diva Calas, a grega, que interpretava o papel da cruel e imortal Medeia.
O mito dos Argonautas vai ser igualmente tratado na Grécia e em Roma, mas nem
todos os poemas se encontraram.
O mais conhecido é o de Apolónio de Rodes, nascido em Alexandria e depois
forçado a exilar-se em Rodes, no séc. III a.C., no reinado dos Ptolomeus e na presença
de Calímaco, cujo princípio “Um livro grande é um grande mal”, ele não seguiu,
consagrando o seu poema épico, a Jasão, a Orfeu e às suas mágicas proezas pela música
e canto, e igualmente aos amores de Jasão e de Medeia. Cria um mundo mítico, que
nunca sabemos onde acaba, mas que prendia e encantava o seu público decadente da
Grécia ptolomaica.
Roma, não tem para nos apresentar um poema de alta qualidade, embora já tivesse
conhecido Vergílio e o perseguido Ovídio, cujas poesias até hoje são respeitadas e
apreciadas, pelo ritmo conseguido e pela criatividade.
Nem por isso a fama da lenda de Orfeu foi esquecida e o seu nome aparece longo
à entrada do Inferno na Divina Commedia de Dante, canto IV, v. 139 e segs.: “e vidi
il buono acoglitor del quale, / Dioscoride dico; e vidi Orfeo, / Tulio e Lino e Seneca
morale…”. E se consultarmos a longa série de obras que celebraram a memória do
mítico vate, em Gilbert Highet, The Classical Tradition, Greek and Roman Influences
on Western Literature, Nova Iorque, 1957, veremos que o mito não foi esquecido: a
sua versão mais antiga, em pleno renascimento, vai ser em Mântua para a corte dos
nobres, na peça teatral, Orfeo, levada à cena em 1471, por Ângelo Policiano, que não
descura a acção dramática e apaixonada de Orfeu e Eurídice o que fará perdurar a
sua influência nos anos posteriores, como na época das “Luzes” a que se seguiu a
Revolução Francesa, quando Macaulay afirma com desdém num escrito dirigido a
Frederico da Prússia: “Prometeu e Orfeu, Elísio e Aqueronte … e todos os outros
arrebiques, que, tal qual um vestido atirado por uma bela orgulhosa à sua criada de
quarto, foi com desprezo abandonado pelo génio para as mãos da mediocridade.” De
facto os temas clássicos estavam a sofrer um tremendo abanão. Havia quem chamasse
a Homero, um ordinário, e a Ésquilo, um louco (p. 357).
Passada a revolução vemos André Chénier, um ex-revolucionário, a escrever elegias
em que o nome e a figura de Orfeu aparecem, uma vez que o poeta traduziu poemas
do Grego e do Latim (p. 403).
Orfeu - O mito, a arte, a religião e o mistério 211

Apesar da força dos antigos clássicos vir a reviver na nobre Inglaterra, onde
podemos ler o Ulisses de Joyce e a sua descida aos infernos, quando do enterro do Sr.
Dignam em Dublin, de Orfeu não há nenhuma obra que a ele se dedique inteiramente,
ele que também desceu aos infernos devido à força da sua arte.
Foi a França que devido à extrema sensibilidade de Anouilh faz reanimar o mito
de Eurídice, em vestes da época, uma vez que a heroína morre, e Orfeu seu marido
desce pela força da música aos infernos e é lhe concedida a graça de trazer a mulher
para o mundo dos vivos, desde que para ela não olhe. Mas olha e como castigo vai
ser dilacerado e devorado pelas Ménades da Trácia. Na peça de Anouilh, Orfeu, é um
violinista de café, e Eurídice é trazida pelo Senhor Henri, que lhe transmite a única
condição para que ela fique em seu poder: que não pergunte quais foram os seus
amantes (tipicamente francês), o que ele não consegue, e, por isso, a perde de novo.
Muito mais haveria a dizer, mas como diz o velho Horácio “tempus fugit” e foge
mesmo, mas permite-nos chegar ao ORPHEU de Lisboa, como estação final deste
combóio, de linha não férrea incansável. E o que é o ORPHEU lisboeta?
Data de 1915, e na lembrança do mistério órfico, artistas portugueses lançaram-se
com enorme sucesso, na criação artística do MODERNISMO, tal como em 1922
poetas e pintores se lançarão em São Paulo, lá tão longe no Brasil, na semana da arte
moderna.
Os nossos modernistas ainda hoje vivem, não só nas estantes das bibliotecas, mas
nas paredes onde penduramos os seus quadros. E quem não gostaria de ter ou mesmo
só ler um livro dos seus, ou um quadro dessa extraordinária geração?
Ainda me lembro que num dos anos da década de 1950 a minha professora
Marina Pestana, me comunicava que um poeta português de nome Fernando Pessoa,
começava a ser considerado muito perto de Camões, e que em breve iria gozar de
estatuto de celebridade igual.
Prestei-lhe a atenção que a Dra. Marina merecia, e comecei a interessar-me,
encantado pelo canto órfico, que eu nem sabia o que era, pois só anos depois e já a
estudar na universidade, vim a conhecer Pessoa e Sá-Carneiro, e fui ensinado por
docentes que dominavam o modernismo português. Não desci aos infernos em busca
de Eurídice, mas li os poetas e fiquei como que encantado pela música de Orfeu que
eles tocavam. Gostando dos clássicos e românticos, deixei-me levar pelas paisagens
que eles atravessavam e pelos sortilégios e mistérios que eles me faziam ouvir e
imaginar, pois mesmo quando ensinei em Nova Iorque, transmiti o seu encanto aos
meus alunos de todas nacionalidades.
É dessa altura que encomendei os sete livros de uma edição em sete volumes, hoje
segundo me consta esgotada e quase preciosa, dos Textos Universais, Centro Editorial
Português, Porto, s.d., OS MODERNISTAS PORTUGUESES, Escritos Públicos,
212 100 Orpheu Raul Miguel Rosado Fernandes

Proclamações e Manifestos, que constituem um corpus do futurismo, modernismo,


que abrange a época compreendida, desde referências a 1914, mas sobretudo à revista
ORPHEU, em 1915, até referências a essa época por literatos e escritores nos fins dos
anos 50.
Limito-me a transcrever do livro que indiquei sobre o Modernismo, um inédito
de 1916 traduzido por Tomás Kim (O Prof. Monteiro Grilo da Faculdade de Letras
de Lisboa), porque escrito em Inglês por F. Pessoa, intitula-se O Orpheu e o
Sensacionismo (pp. 16-17):

O Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro.


Possivelmente é difícil destrinçar a parte de cada um na origem do movimento e, com
certeza, absolutamente inútil determiná-lo.
O facto é que ambos lhe deram início -
Mas cada sensacionista digno de menção é uma personalidade à parte e, naturalmente,
todos exerceram uma acção recíproca.
Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro estão mais próximos dos simbolistas. Álvaro de
Campos e Almada Negreiros são mais afins da moderna maneira de sentir e de escrever. Os
outros são intermédios.
Fernando Pessoa padece de cultura clássica.

Ao longo dos sete volumes, em que até acaba por aparece o nome de Prado Coelho,
que a muitos de nós ensinou, percorre-se o caminho da metamorfose que se operou
na letras portuguesas, que entraram por uma via mais europeia e mais “sensacionista”
daquela época, que em breve chegará ao surrealismo, influenciada sem dúvida
essencialmente pela literatura francesa.
Joel Serrão cita Alfredo Guisado, um dos muitos que estiveram activos naquele
milagre sensacionalista, o qual diz: “Orfeu foi a porta de pesado bronze que se fechou
para sempre e para lá da qual ficou definitivamente o passado literário da nossa terra,
os seus continuadores e os seus admiradores.” (p. 27)
De qualquer forma, como em todos os grandes movimentos inovadores, não houve
só admiradores, mas também detractores, que ficaram indignados com tanta ousadia.
Ainda conheci pessoalmente alguns, mais conservadores ou totalmente conservadores,
que andaram pelas livrarias a rasgar os livros modernistas e a lançar-lhes fogo,
quando podiam, mas tinha já sido em vão o seu esforço, e os modernistas venceram
nesta batalha, e ainda hoje são eles que lemos, muito naturalmente acompanhados
pelos nossos livros de culturas antigas e bem portuguesas, que nem por isso deixaram
perder o valor estético que sempre as impuseram ao nosso gosto literário. Nada
fica igual nestes movimentos, mas o HOMEM esse permanece igual a si próprio e
Orfeu - O mito, a arte, a religião e o mistério 213

entregando-se em épocas ao longo da sua já velha história, ao que mais lhe agrada,
na época em que viveu, e nas outras, em que não viveu, mas que do ponto de vista
mais antigo obedecem a ritmos e imagens que são trascendentais. E a isso nem o
tal HOMEM consegue fugir, fica sempre cativo do que o impressiona e agrada. Pois
não era e é ele, segundo a versão platónica de PROTÁGORAS: “a medida de todas as
coisas”? Das que foram e das que estão para existir, pensamento, já na Grécia antiga,
considerado demasiado ateu e materialista, porque lá faltam os deuses.
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo,
entre sonho e real

Roberta A. P. de F. Ferraz
Universidade de São Paulo / FAPESP

Palavras-chave: Teixeira de Pascoaes; Fernando Pessoa; modernismo português; Sonho; Poesia.


Resumo: É sabido que a recusa do editor da revista A Águia, Álvaro Pinto, em publicar o texto
pessoano O Marinheiro serviu ao seu autor como motivo de rompimento com o grupo saudosista
em 1913, o que é muitas vezes entendido também como signo da divergência, recorrentemente
sustentada por uma visada crítica, entre Pessoa e Pascoaes. O drama ‘estático’ de caráter
simbolista, enquanto se afasta e rompe com a estética saudosista e dá início ao repertório de
vanguarda da revista Orpheu, não se distancia, ao todo, de um diálogo possível com alguma
obra de Teixeira de Pascoaes, especialmente O Pobre Tolo, que teve uma primeira edição, em
prosa, em 1924 e uma segunda edição, poética, em 1929. Ambos os textos apresentam duas
figuras arquetípicas da escrita, que se elabora a partir da negatividade, da sombra, da morte;
e ambos, tanto o marinheiro quanto o pobre tolo, fazem-se corpo estático e extático por onde
escorrer o texto, levantando reflexões acerca do fazer poético na modernidade, num vagar de
deriva, entre sonho e realidade.

Toda literatura é elegíaca


Silvina R. Lopes

Mesmo depois de falecidos, queremos uma


ama que nos embale, cantando o sono eterno.
Teixeira de Pascoaes

No mesmo ano em que registrava a escrita de seu drama estático O Marinheiro,


1913, Fernando Pessoa escrevia também um apontamento no qual lemos o vínculo,
direto e reiterado por ele, entre arte moderna e sonho. Neste excerto Pessoa diz:
“Quem quiser resumir numa palavra a característica principal da arte moderna
encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é a arte do sonho”
(PESSOA, F., 1966: 156). Ainda neste texto, Pessoa expõe uma de suas (várias) leituras
da modernidade como sendo qualificada por uma “complexidade dura”, formada
pelo cientificismo, pela democracia, pelo industrialismo e pelo imperialismo – todos
216 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz

esses, nas palavras do poeta, enfraquecedores da potência sonhadora. Seguindo o


gozo de seu raciocinar, o poeta afirma que, justamente, este contexto ‘duro’ seria o
mais propício à arte sonhadora, já que, como aprenderemos com Álvaro de Campos,
em sua ‘estética não aristotélica’, a arte moderna opera por reação. No dealbar do
século XX, já encontramos sintomas da ressaca do positivismo cientificista nos mais
variados autores, de diferentes línguas (Rilke, Yeats, Benjamin, etc.), lamentando
que os mistérios fossem sentidos como experiência que rumasse ao morno e ao
esclarecimento, frutos artificiais da cultura técnica. Se, portanto, o mundo moderno
possibilitava que o sujeito fizesse mais de uma vez a viagem de ida e volta ao tédio
de todos os seus sentidos, era de se esperar que o artista, vivendo nesta/desta cena,
reagindo a ela, resistisse – esse longo exercício do poema – desdobrando sobre a frieza
da técnica as vértebras obscuras do sonho.
Arte do sonho, sim; mas não mais como dava-se, por exemplo, na mundividência
medieval, quando o sonho corresponderia ao desejo de ação, de uma ação
grandiosa que se sabia ainda sonho e desejo, cuja impossibilidade ou dificuldade
só o faziam crescer. Sonho como ação, projeção de um feito heróico a cumprir. No
contexto de Pascoaes e Pessoa – o início do século XX – acendidas as luzes da noite
tenebrosa, com as coisas dispostas ao visível da luz elétrica, sabemos, por exemplo,
com Pessoa, que “logo no limiar do sonho surge o inevitável pensamento de (sua)
impossibilidade” (PESSOA, F., 1966: 156). O autor provoca-nos, portanto, com a
ideia de que o sonho agora exigiria outra amplitude e função: não mais apontando
para o realizável, mas apoiando-se nas vias do irrealizável: o sonho do sonho. Para
o desejo movente e sem fundo, sem teleologia, estático em seu drama. Fraturado
da ação, integrado a uma “paisagem” também feita de sonho, que “na sua essência,
é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior” pois
“quanto mais rápida e turva é a vida moderna, mais lento, quieto e claro é o sonho”
(idem, ibidem). Do não desejo do sonho como motor da ação, esta “arte moderna”
nos vem falar do desejo do fora, lugar de desaceleração vertiginosa, na contramão
do “cheio do mundo”. Ou seja: essa arte nos vem falar do seu e do nosso vazio e de
sua proliferação.
Como diria o astrólogo Rafael Baldaya, em seu Tratado da Negação (PESSOA, F.,
1968: 42), tudo que conduzia à ideia de unidade e emanava de um desejo de princípio
afirmativo, nada mais era do que esta grande ficção, da qual ironicamente afirma
Baldaya, “Deus é a Mentira Suprema” (ibidem). Já as forças de ‘negação’, por sua vez,
seriam aquelas “que partem de além do Único, Fora do Único” (ibidem). Fazendo-se
cantor de sua modernidade, Pessoa, como abre-alas de sua tão ansiada revista
Orpheu, apresenta um texto cuja materialidade textual, abarrotada de inúmeros
nãos, (des-)faz-se em sonho, sonho do sonho sonhado sonhando-se, força do fora em
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 217

toda sua potência negativa, numa dinâmica – palavra curiosa – do desdobramento e


do esvaziamento do sujeito nas suas mais diversas (e falhas) tentativas de nomeação
e conhecimento do real: da mudez gestual do corpo (as três veladoras não se movem,
e também não se movimenta a morta no centro da cena) ao sonambulismo abissal
da linguagem, música que experimentamos como monótona canção de ninar e velar,
ladainha que desencadeia (n)o caos, dando-nos o gosto daquela epígrafe pascoaesiana:
“Mesmo depois de falecidos, queremos uma ama que nos embale, cantando o sono
eterno” (PASCOAES, T., 1993: 85). Tudo que n’O Marinheiro se expressa, resvala
na esfinge que habita a voz de velar, no oráculo de silêncio que dela ecoa. Se as
veladoras existem em sua função de velar o sonho, já que toda ação é vã, abre-se,
no tempo do velório, a perspectiva do jogo: façamo-nos lúcidos, jogando com a
linguagem o jogo sério das crianças, inflando e esmorecendo, a nosso bel prazer,
esta ausência constitutiva com que nos dizemos e nos buscamos, metalinguagem
aporética que assume um corpo sonoro e breve, uma fantasmagoria imagética, que
nos reverta de volta ao incessante ruído mudo que se move por tudo deste (nosso)
drama estático: a morte. Façamo-nos com a morte, façamos como a morte: cantemos
a opacidade da existência, fascinados e horrorizados com nosso corpo ainda vivo.
Ou seja: escrevamos a partir da morte.
A iniciação pela morte – como aponta também um outro poema avassalador
de Pessoa – Episódios / A múmia (PESSOA, F., 1998: 131) – inscreve no poema a
demanda ética e estética da sensibilidade do invisível, ou seja, faz do corpo poético
o lugar, por excelência, da linguagem, por reforçar, da linguagem, a sua conjugação
aporética de presença e ausência, simultaneamente. Se a linguagem é já espessura
sensível de seu vazio, o canto poético será, por sua vez, a ponte que intensifica o
seu abismo. O poeta, portanto, não tem como escapar de seu destino órfico. Como
no mito, só lhe cabe seguir cantando aquele ‘nada que é tudo’.
Inaugurando a revista cujo nome não podia ser outro que ORPHEU1, Pessoa
nos dá à leitura a anti-história de um múltiplo marinheiro nenhum, que só pôde
tornar-se imagem porque desde sempre fantasma e desejo, ou seja, sonho daquelas
veladoras que, como nós, desassogadamente sossegadas, cantamos e fiamos o
tempo, velando o futuro de nosso próprio cadáver. O que fazer, dentro e diante
deste nosso drama estático? Ora, cantar. Cantamos o sonho de um marinheiro
que sonhamos sonhar. Imaginemos, na tela invisível do visível da linguagem, este

1 Embora consideremos o aleatório do nome da revista, já que não há indícios textuais suficientes que nos
autorize a afirmar a sua extrema pertinência e adequação, esta nossa leitura d’O Marinheiro, como exercício
poético do negativo da escrita, abre-nos uma inevitável compreensão de que, sim, o nome não poderia ser
outro...
218 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz

nada que nos substancializa, essa materialidade do insondável que, somando-se


à nossa voz, projeta no tempo a nossa situação de espectadores de nossa própria
espera. Enquanto esperamos, cantemos, aquilo que o canto mais propriamente
pode suportar: os sonhos, os desejos do desejo. Aquilo que na ausência nos move,
movendo-se em nós: a sombra do velado, o negativo que a linguagem cava em sua
possessão despossuidora, cientes daquilo que dirá Deleuze: “A linguagem é ela própria
um duplo último que exprime todos os duplos, o maior simulacro” (DELEUZE, G.,
1996: 16). Na trama pessoana, além dos English Poems, notamos que, depois do
marinheiro sonhado sonhando, será, principalmente, Bernardo Soares, quem irá
passar todo um livro que não é livro a ensaiar respostas àquelas três veladoras de
Orpheu:

Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o


(distraidamente) confere mais apego ao nosso momento de sonhar. Fazer isto consciente,
muito conscientemente, da inutilidade e (...) de o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo,
perder-se da realidade com todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher
de areia vã os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher e despejar,
futilissimamente. Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar. Estagnar em
torpor todos os nossos pensamentos de acção. (...) Ver o Tempo pintar o mundo e achar o
quadro não só falso mas vão (PESSOA, F., 1982: 370).

Nesta ‘ética da inação sonhadora’ nos deparamos com uma das figuras mais
recorrentes da obra pessoana: a figura antiga (grega e medieval) do Destino enquanto
‘roda da Fortuna’, imageticamente representada por uma roda inexorável a girar,
independente da vontade e da ação humanas. Assim como, fatalmente, a noite sucede
ao dia, fatalmente nossa morte nos assiste. Existir consciente da vanidade da vida
pede, no exercício poético de Pessoa, que se consiga (pelo esforço ou pela resignação)
inverter esta lei natural, desconsiderando o apego às instâncias daquilo que se pode
ler como real (matéria, ação, vida desperta) e “desmanchando o Universo”, como
ensina Soares, fazer-se senhor do/no sonho.
Voltando ao artigo pessoano, se “a arte moderna é a arte do sonho”, podemos,
partindo desta premissa, investigar muitas coisas acerca da elasticidade e utilização
do próprio conceito de ‘moderno’. Por exemplo: na reação moderna ao moderno, que
o poeta propõe via sonho, haveria – diz-nos ele – três caminhos possíveis ao artista,
no que concerne à relação, na arte, entre SONHO E REAL: o primeiro seria, como ele
diz, “entregar-se ao mundo exterior, deixar-se absorver por ele, tomando dele a vida
oca e ruidosa (...)” (PESSOA, F., 1966: 156) – esta seria a via seguida por Nietzsche
e Whitman, entre outros; o segundo caminho deu-se com “pôr-se ao lado, (...), num
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 219

sonho todo individual, todo isolado, reagindo inerentemente e passivamente contra a


vida moderna, quer pela ânsia medieval, quer pela fuga para o longe no espaço (...)”
(ibidem) – casos em que cita, por exemplo, Poe e Verlaine; já o terceiro caminho, que
ele entende como “tão caracteristicamente português” (ibidem) e no qual inclui a si
mesmo, numa linhagem que começaria com Antero de Quental seguindo até “a nossa
recentíssima poesia” (ibidem), seria o caminho em que o poeta opera “metendo esse
ruidoso mundo, a natureza, tudo, dentro do próprio sonho – e fugindo da ‘Realidade’
nesse sonho” (ibidem).
Esta ‘terceira via’ de reação insere-se num caminho, portanto, pós-simbolista;
entretanto, vemo-lo ainda na sequência não só do Simbolismo como do Romantismo,
se temos em mente não o Romantismo como foi experimentado em sua versão mais
didática, preocupado em levantar das invocações geniosas toda uma nova mitologia
nacional, feita de híbridos passados imaginados e desejosos, num apelo missionário
do qual o Poeta, com P maiúsculo, se autoinvestia. Falamos daquele Romantismo
radical, febril, convulsivo, que abriu os primeiros rasgos modernos na reflexão sobre
a arte, dissolvendo a velha lógica das mimeses e representações e instaurando a (auto)
crítica no bojo da própria criação artística. Não, portanto, o romantismo da inflação
do eu, mas aquele do excesso que estoura, dissolve e suspende qualquer possibilidade
de identificação e separação entre sujeito e objeto, aquele romantismo que, fora
de lugar, aconteceu em Portugal com Teixeira de Pascoaes. Não falo do Pascoaes
saudosista. Falo do Pascoaes cuja obra toda se entrelaça compondo um excessivo e
inacabado – porque o excesso transborda seu próprio fim – romance da saudade, e
que tem como um dos pontos fulcrais e luminosos a obra O Pobre Tolo, cuja primeira
edição é de 1924, numa versão em prosa.
Pascoaes também se compromete, em toda a sua obra, a reagir à pretensa perda
de intensidade acarretada pelo excesso comercial e científico do ‘moderno’ tal como
experimentado por ele e muitos de sua geração. Já em 1914, com a publicação de
Verbo Escuro, ano em que Pascoaes assume a direção literária da revista A Águia,
lemos a gênese d’O Pobre Tolo de 1924. Diferentemente do que se costuma querer
ver, a referida obra de 1914 em muito pouco se coaduna com o messianismo
ideológico-cultural das páginas da revista em que o poeta assinava os editoriais. Há
no Verbo Escuro um primeiro rompimento – o estranho é ele ser concomitante com
o engajamento e o compromisso – de Pascoaes com o saudosismo mais ideológico e
uma aproximação mais vertical à poética da saudade, que já vinha sendo trabalhada
desde a sua primeira obra. Podemos dizer que é com este livro que Pascoaes entende a
sua poética, a saudade, enquanto verbo escuro, voz plasmando sombras, chamamentos
e saudações da ausência. Na abertura deste livro, no capítulo primeiro nomeado “O
Poeta”, ele diz, definindo o poeta em reação ao mundo moderno, definindo, portanto,
220 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz

o seu entendimento da função moderna do poeta diante do mundo moderno: “Poetas,


cantai os fantasmas; quero eu dizer – o que é eterno” (PASCOAES, T., 1999: 43)2.
Contra o enfraquecimento do sonho e da perda do mistério, Pascoaes tece, com
mais vigor a partir de Marânus, de 1911, esse seu duplo arquetípico, figuração do poeta
em toda sua cômica tragédia. N’O Pobre Tolo, a personagem principal que dá nome
ao livro compõe-se dos mais valiosos signos com que Pascoaes entende o poeta em
sua função demiúrgica de sagração agônica e fantasmagórica da vida: a simplicidade,
inocente e assombrada do tolo; a dor enquanto princípio de comunhão com as coisas
– mística melancolia; e o resultado dessas alianças: a compaixão com o não-lugar
dos sonhadores, estes pobres lunares, híbrido de homem e jumento, compaixão que
acarreta em compaixão generalizada: na noção de simpatia dolorosa, pacto que chega
até o leitor, o atravessa, e o coloca de volta, na intimidade ultrassensível do texto
pascoaesiano.
O ‘pobre tolo’, híbrido de homem e jerico, eternamente parado no meio da ponte
de São Gonçalo, em Amarante, revela, para Pascoaes, a figura do poeta, elogio do
vagabundo exilado, parvo absorto, sujeito-quase hipnotizado pela impossibilidade de
qualquer ação decisiva, que, tal como o marinheiro e suas veladoras, num mundo
cuja carnalidade se oferece como um carnaval de máscaras e esquecimento, encarna
também um drama estático. Para o sujeito tragicômico, inerente à cosmovisão poética
de Pascoaes, a vida se forma a partir de uma aguda luta entre sonho e real, luta que é
bailado duplamente eufórico e fúnebre, levando seu ator – o sujeito – a experimentar
a constância da dor, dor que, por sua vez, é matriz de toda a criação. Dor criativa:
negatividade que se faz motor. O sonho e assombração do real, n’O Pobre Tolo, dão-se
enquanto partilha terrível e sublime de uma simpatia dolorosa que parece brotar do
luto verbal (verbo escuro) da cruz que somos, composta de carne e verbo, irmanados
num giro sem conciliação:

Tudo é o sonho dum pobre tolo. E o pobre tolo é também um sonho, um sonho de Deus que
não encarnou inteiramente. Por isso, ele anda envolto numa auréola, e tem a leveza duma
nuvem...

2 E continua: “Fumo das fábricas, gritos de sirenes, velocidades – sois atitudes da Matéria, impostas pelo espírito
imitativo e simiesco (...). // Eu fui dado à luz elétrica deste século; o denso fumo industrial satura-me os
pulmões; o ruído mecânico faz sangrar os meus ouvidos – e eu não compreendo, não assimilo esta Vertigem,
que é de ferro! // Fumos das fábricas, gritos das sirenes, velocidades, qual a vossa entoação espiritual, o vosso
significado? Qual o sentido das palavras – Força, Vitória, Actividade, que modernos vates apregoam? Sois
ocas palavras de metal... a bruta matéria a tornar-se nublosa, a incompreender-se. / Hulha negra feita nuvem
de fumo. // Poetas, deixai cantar o vosso coração. A inteligência conhece a Liturgia, mas ignora a Divindade. //
Cantai os Fantasmas e os Anjos; cantai os obreiros da nova Redenção – os que trabalham, em névoa de alma,
o Relâmpago futuro. / Cantai o que não existe... O resto é cinza. (idem: 44)
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 221

Somos o sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos nossos limites
materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a
faculdade mitológica de idealizar todas as cousas.
(...)
A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e
ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne
e o Verbo.
(...)
E aí tendes um pobre tolo sentimental, uma caricatura elegíaca. (PASCOAES, T., 2000: 19-20)

Preso numa cruz formada pelo elo tragicômico de carne e verbo – substância e
ausência – o poeta-cantor elabora a sua musa que, com o passar das obras, vai
tornando-se mais e mais complexa: a SAUDADE. Musa-metáfora – arte poética – de um
amor lúgubre, a Saudade será o cais buscado por meio de um canto órfico-alquímico,
que se esboça com todo o fôlego, na sutileza do negativo, sutileza que complexifica,
refina e adensa:

A incerteza, a hesitação, o querer e não querer, o partir e ficar, o vaivém da sorte, como diz o
poeta, é a própria atividade universal cindida em duas forças contrárias que se neutralizam
mutuamente e se condensam, originando um ponto definido na imensidade indefinida, uma
luz acesa nas trevas, um grito no silêncio – a Criação! Tudo é lembrança e esperança: duas
forças contraditórias e hesitantes no seu ímpeto criador. Hesitam, equilibram-se, casam-se e
originam o Existente – uma autoescultura da Saudade. (PASCOAES, T., 2000: 21-22)

Ocasião poético-ontológica em que a ausência é transmutada numa outra forma de


si mesma, sutilizada como diriam os alquimistas (mais do que sublimada), por meio
do canto que, Pascoaes o sabia, faz-se num verbo escuro. A incerteza do real, composto
por uma carne que se faz verbo, e portanto, sonho, leva o sujeito à consciência de
sua fantasmagoria que, por sua vez, o impele à criação, à vontade de dar outras
formas à materialidade deslizante do visível. Elegia erótica sutilizando as rudezas da
matéria-viva que estarão sempre diante do aniquilamento e do esquecimento. É por
isto tudo que o tolo, nas palavras de Pascoaes,

é e não é; desperta e devaneia; foge não sabe para onde e, afinal, está sempre no mesmo sítio;
está ali, sentado numa pedra, mas o sonho não se desfaz absolutamente. Há horas em que
se torna mais intenso; pretende resistir, viver, e envolve a cabeça do tolo que se perturba e
magica além dos astros. (...) O tolo é desmaio, silêncio e um medo enorme ao seu fantasma,
tão destacado e vivo, diante dele! Sempre diante dele!
222 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz

– Quem és tu? – atreve-se a murmurar.


Mas a sombra não responde, porque a sombra é um pobre tolo que não existe, a imagem
negativa dum pobre tolo, figurada neste Azul de milagre que nos envolve e dá o mesmo
aspecto de realidade aos sonhos e aos penedos. (PASCOAES, T., 2000: 27)

Entre a inflação da voz potente e a mudez abobalhada, o sujeito é indecisão e


assombro, plasmado em sua encruzilhada cuja cruz dolorosa em si mesma se
faz mãe dos afetos que, para Pascoaes, são os mais intensos: beleza, comoção,
compaixão e a mesma dor. Tudo que o perpassa e o imaterializa, confere à sua efígie
uma grandiosidade fantasmagórica que, em si mesma, já é o modo de resistir ao
mundo ‘moderno’ empedernido pelo excesso de razão. Bernardo Soares também
dirá que “somos morte”: “O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na
nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela. (...) Povoamos sonhos, somos
sombras errando através de florestas impossíveis, em que as árvores são casas, costumes,
ideias, ideais e filosofias” (PESSOA, http://arquivopessoa.net/textos/4518).
Além dos acordes entrevistos entre o drama estático do Marinheiro e a estaticidade
tragicômica d’O Pobre Tolo, é forçoso percebermos que é na consciência da linguagem
que encontramos o posicionamento das diferenças entre eles. Se, com Pessoa,
somos levados ao apuro sombrio do epigrama, cuja concentração simbólica faz
de todo dizer um ato de silêncio sepulcral, com Pascoaes, pelo avesso, entramos no
ritmo das incansáveis (e por vezes, cansativas) repetições, dos excessos, da difusão
oscilante das metáforas que insistem em retornar, num esforço de nomeação das
coisas, que, dolorosamente caindo em seu próprio luto, só sabem resistir na epifania
também sombria que é a Saudade. No entanto, se podemos dizer que com Pessoa,
n’O Marinheiro, somos conduzidos ironicamente (ironia que não resolve a tensão) à
mudez, ao vão da palavra, não será menos correto dizer, de Pascoaes, que, depois de
páginas e páginas de grito, lamentação, louvação, acordamos também na antemanhã
do silêncio, o mesmo cais-nenhum, apenas sonora travessia: duas ausências – ou
viagens pelo negativo da escrita – em cada um deles. Do vozerio espectral que
assombra o pobre tolo, levando-o ao exílio da língua, diz ainda Pascoaes:

É um fantasma, só memória. Anda descalço e em cabelo; e por isso é tolo e meio poeta.
Põe-se a evocar o Passado; e esta evocação é uma névoa que lhe transtorna o juízo e escurece
as cousas que se ilimitam e aumentam de tamanho, como aparições prodigiosas. (...) Vive no
meio de vozes que lhe falam, mas não as compreende. São confusas, distantes: – uma nuvem
musical que se condensa em lágrimas espectrais; uma nuvem que o absorve por completo e
onde ele boia, abstrato e doloroso – tão abstrato que não é ninguém! tão doloroso e sensível
que é todas as almas deste mundo e do Outro Mundo!
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 223

(...) Os monstros não largam o pobre tolo, a debater-se, aflito, entre um rochedo e uma
nuvem, o que existe e não vive e o que vive mas não existe.
(...) O pobre triste não dorme; sonha. Sonha de dia e tem a ilusão da realidade; e tem, de
noite, sonhando, a realidade da ilusão. Possui, em alto grau, estes dois sentidos da Realidade,
como todos os malucos que avistam as duas faces da medalha. É que ele existe e vive. E existe
de tal modo, que penetra na própria substância dos rochedos. (PASCOAES, T., 2000: 50-52)

Para além da insistência do vazio e sua inquietude, para qual ambas as obras nos
levam, cumpre ressaltar que, apesar do sim da saudade, o resultado final não é de
todo afirmativo, já que, como o dissemos, o corpo deste sim, desta afirmatividade
que a Saudade encarna, é a própria ausência. Não se trata, reiteramos, da conclusão
satisfeita numa identidade ou unidade salvífica localizada numa origem ou num
além-morte. Pascoaes o sabe: a saudade pode mostrar-se um inteligentíssimo
xeque-mate às intrínsecas ameaças de finitude, mas de maneira alguma conclui o
jogo. Ele o sabe porque a saudade só é enquanto se canta, na ponte do poema, no
corpo desse doloroso verbo escuro, voz em gangorra que, assim como conquista e
celebra, perde e põe a perder, novamente, o já sempre perdido. Em São Paulo, por
exemplo, biografia escrita em 1934, Pascoaes escreve: “Ninguém atinge a meta na
corrida. Não há destinos concluídos. O acabado é quimera. Há esboços” (PASCOAES,
T., 2002: 236). Experiência poético-ontológica que o crítico M. Blanchot, em seu texto
“O pensamento trágico”, assim apresenta:

Onde tudo é indeciso só se pode viver num desvio perpétuo, pois ater-se a uma coisa suporia
que há algo de determinado a que se ater, suporia portanto uma separação nítida de sombra
e de claridade, de sentido e de não-sentido e, por fim, de felicidade e de infelicidade, mas
como um é sempre o outro e o sabemos, mas numa espécie de ignorância que nos dissuade
sem nos esclarecer, não buscamos senão preservar a incerteza e obedecer-lhe, inconstantes
por uma falta de constância inerente às próprias coisas, não nos apoiando em nada porque
não há apoio em nada, e essa ligeireza responde à verdade de nossa existência ambígua que
é rica apenas de sua ambiguidade, a qual cessaria tão logo quisesse realizar-se: ela nunca é
mais do que possível (BLANCHOT, M., 2007: 28)

O crítico de arte francês Didi-Huberman em “O evitamento do vazio: crença


ou tautologia” (1998: 37), falando sobre a inelutável cisão do ver apresenta-nos
uma ‘situação exemplar’ em que somos olhados velo vazio. É, diz ele, “a situação de
quem se acha face a face com um túmulo, diante dele, pondo sobre ele os olhos”
(DIDI-HUBERMAN, G., 1998: 37). Sabemos que as veladoras d’O Marinheiro cantam
nesta situação acima, mas nos parece interessante perguntar se, também a imobilidade
224 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz

física do pobre tolo sobre a ponte, olhando a natureza em toda sua diversidade, plasmado
ali como um ‘túmulo de pé’, não seria melhor compreendida se abarcando esse reverso do
vazio que vê a personagem, absorta nessa inelutável cisão do ver... Como se ele, parado,
olhando a paisagem movente, olhasse para um imenso volume do vazio, vazio que lhe
devolve o olhar, movendo-o assim (o sujeito) ao ‘trabalho’ do sentido inelutável da perda:
o poema. Este arfar-entre, este jogo do visível/invisível, é o ritmo que Pascoaes labora
para impregnar, em texto, o sentido pleno da ausência que ele chamou de Saudade. A
saudade acaba por ser (ou querer ser) esta forma hesitante, em que não apenas se evita o
vazio, a dominação do vazio, a negação; como que, muito habilmente, fá-lo evitando o
pleno, a verdade do sentido, o apaziguamento. Nas palavras de Didi-Huberman:

(...) diante de um túmulo, a experiência torna-se mais monolítica, e nossas imagens são mais
diretamente coagidas ao que o túmulo quer dizer, isto é, ao que o túmulo encerra. Eis por que
o túmulo, quando o vejo, me olha até o âmago – e nesse ponto, aliás, ele vem perturbar minha
capacidade de vê-lo simplesmente, serenamente – na medida mesma em que me mostra que
perdi esse corpo que ele recolhe em seu fundo. Ele me olha também, é claro, porque impõe
em mim a imagem impossível de ver daquilo que me fará o igual e semelhante desse corpo
em meu próprio destino futuro de corpo que em breve se esvaziará, jazerá e desaparecerá
num volume mais ou menos parecido. Assim, diante da tumba, eu mesmo tombo, caio na
angústia – a saber, esse ‘modo fundamental do sentimento de toda situação’, essa ‘revelação
privilegiada do ser-aí’, de que falava Heidegger... É a angústia de olhar o fundo – o lugar – do
que me olha, angústia de ser lançado à questão de saber (na verdade, de não saber) o que
vem a ser meu próprio corpo, entre sua capacidade de fazer o volume e sua capacidade de se
oferecer ao vazio, de se abrir. (DIDI-HUBERMAN, G., 1998: 38)

Nomear é ausentar-se, ou retomando a epígrafe de Silvina R. Lopes, “toda literatura


é elegíaca” (LOPES, S. R., 2012: 11). Desta arte de prestidigitação negativa, faz-se a
mágica dos desaparecimentos, acentua-se a composição de ausência das coisas.
É neste sentido que lemos o negativo da escrita, nos dois textos comentados aqui.
Escrevendo, Pascoaes e Pessoa, sobre a escrita em si mesma – a escrita enquanto
agenciamento de um mundo – os autores devassam as entranhas deste ato/gesto que
está no escrever: a morte, a indecisão, o inelutável, o suspenso, as reticências... e assim
experimentam o reverso desta ‘queda’: a aposta no sonho. Da autópsia do texto no
texto, do negativo da escrita, por meio de suas figuras arquetípicas principais – o ‘pobre
tolo’ e o ‘marinheiro’ – chega-se a uma positivação da própria escrita (faz da ausência
um esplendor fulgurante), que não significa salvação durável, mas sim, resistência. E
resistência convidativa, aberta, que, como diz R. Lopes, tem como função suscitar em
nós, leitores, a nossa, coletiva, ‘estranheza em-comum’:
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 225

No desfazer de estereótipos ou fórmulas fixas, o dirigir-se ao outro põe em movimento


uma memória transindividual, um pensamento que se ergue sobre o ‘luto originário’, o
de tudo ter desde sempre desaparecido na palavra que o nomeou. Como efeito singular
do que neles, sobre-vivendo, é material e imaterial inseparavelmente, os textos e poemas
são espaços de vacilação – aproximação e afastamento, realização e expectativa. Voltada
para o resgate de um tempo perdido, que nunca esteve presente, toda a literatura é
elegíaca, independentemente dos seus temas e estilos. Nesse movimento, porém, ela
faz-se afirmação: em qualquer obra literária – visionária, elíptica, orientada para o
conhecimento, para o humor ou para o trágico – sobra sempre o que a torna incompleta,
uma intensidade que lhe desfaz os limites e a expõe como apresentação impossível do
infinito (LOPES, S. R., 2012: 12).

Se, como vaticinou Pessoa, “o maior poeta da época moderna será o que tiver mais
capacidade de sonho”, além de uma galáxia toda de exímios sonhadores de nossa frugal
fragilidade e hesitação, podemos, sem dúvidas, saber ler que o par Pascoaes-Pessoa nos
revela um dueto cuja força nos legou uma das mais excitantes constelações literárias
do negativo. O negativo como poder sonhador, a voz que move, não montanhas, mas
fantasmas de montanhas, vastidões de vácuos, uma plenitude que, para sorte nossa,
não nos deixa ceder ao tédio, à movimentação anestesiante e histérica de um mundo
que, como o deles, segue demandando que saibamos responder a ele, cantando com
nossa voz a centelha de Orfeu cuja cabeça, depois de morto, rolando por um rio, seguiu
chamando na morte a sua amada morta, resistindo ao esquecimento.
A Saudade não será, portanto, cais nenhum que receber qualquer marinheiro
desejado ou seus despojos. Pascoaes o dirá: “O tolo é um mar e boia em pleno mar”
(PASCOAES, T., 2000: 58). É apenas, durante a viagem, enquanto se boia, aquela
paisagem abstrata e infinita, entranhada e comovente, que se faz poema, num esforço
da voz em sustentá-la, esforço, lembramos, trágico e cômico, tragicômico, cuja figura
por excelência é a do pobre tolo. Pascoaes o sabia e o disse ao longo de todo o seu
romance da saudade: o canto é poderoso porque é frágil.
Pascoaes e Pessoa, em diferentes graus, são ambos viajantes de um mundo cuja
representação libertou-se de suas margens, sonhadores de um devir em deriva,
escrevendo o negativo de qualquer conquista, em intimidade ardente com o que
hoje se faz legado nosso: o desejo de seguir resistindo, pela poesia, na poesia, a toda
ameaça de menos sonho, menos loucura, menos intensidade. A poesia como frágil
desejo de antídoto da banalidade. Tudo para que, seguindo o mote pascoaesiano, “a
raça dos tolos não se extinga, nesse mundo do Bom Senso e da Razão” (PASCOAES,
T., 2000: 22), para que, ardentes, sigamos, resistentes e resilientes, bailando contra toda
força normativa e banalizadora, resistindo ao cadáver nosso, convidando o perder e
226 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz

o morrer à nossa boca de leitores insaciáveis num mundo muitas vezes entristecido
pela saciedade banal de todos os dias. E fechamos, convocando os pobres tolos, com
Pascoaes:

O tolo arde, embriaga-se de fumo e canta como os pássaros noturnos. Põe-se a cantar, e
aparece-lhe a morte. Dança e vê, junto dos pés, a boca aberta dum sepulcro. E canta e dança
em volta dum sepulcro: uma dança de velhos ritos funerários. O pobre tolo já morreu. Esta
figura em que ele se mostra, à luz do sol, é feita duma substância espectral e fabulosa: uma
sombra, orelhuda e lanzuda, que ergue as mãos e põe os ouvidos em íntima comunicação
com as estrelas. Ergue as mãos, canta e dança embriagado, e deita fumo pela boca. E fuma, e
fumega, e torna a fumegar. Esconde-se num eclipse total (...) E o pobre tolo dança, em volta
do seu túmulo, com a sombra da sua infância (PASCOAES, T., 2000: 122)

Bibliografia

Bibliografia Ativa
PASCOAES, Teixeira de (2000). O pobre tolo. Lisboa: Assírio & Alvim.
PASCOAES, Teixeira de (1993). O Homem Universal. Lisboa: Assírio & Alvim.
PASCOAES, Teixeira de (2002). São Paulo. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (1992). Livro do Desassossego (Recolha e transcrição dos
textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização
de Jacinto do Prado Coelho). Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1998). Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PESSOA, Fernando (1966). Páginas de Estética e Teoria Literária. Org. Jacinto do
Prado Coelho. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1968). Textos Filosóficos – Vol. I (Estabelecidos e prefaciados
por António de Pina Coelho). Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando. http://arquivopessoa.net/textos/4518 (09/02/2011)

Bibliografia Passiva
BLANCHOT, Maurice (2007). A conversa infinita – a experiência limite. São Paulo:
Escuta.
DELEUZE, Gilles (1996). O mistério de Ariana. Lisboa: Vega.
DIDI-HUBERMAN, G. (1998). O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34.
LOPES, Silvina Rodrigues (2012). A estranheza-em-comum. São Paulo: Lumme
Editor.
Antecedentes do microconto em Portugal:
Almada Negreiros e os seus Frizos1 2

Ana Sofia Marques Viana Ferreira


Universidad de Salamanca

Palavras-chave: Microconto; Almada Negreiros; Frizos; Modernismo; Hibridação genérica.


Resumo: O recente aparato crítico que ladeia a escrita do microconto vem demonstrando a
sua representatividade como discurso que plasma o modo de estar e pensar do ser humano
de hoje, imerso nas ditas sociedades urbanas e que se circunscreve sob a efígie do conceito
de posmodernidade. Apesar deste muito novo interesse para os estudos literários, esta forma
literária encontra, segundo diversos autores, as suas primeiras manifestações mais importantes
nas primeiras décadas do século XX. A sua natureza lacónica, proteica, veloz e híbrida permite
fagocitar e entrar em diálogo com discursos de outros âmbitos, proporcionando ao mesmo
tempo recuperar e parodiar textos que de algum modo perseveram na memória histórica de
um coletivo tendencialmente universalizante.
Será nosso objetivo analisar Frizos, de Almada Negreiros, à luz das características vigentes na
poética da brevidade por ele proposta, e ver de que modo esta obra se coaduna com o que é
hoje é denominado por microconto.

O presente estudo, tal como o respetivo título sugere, pretende conduzir-nos


a um objetivo primordial: fazer aproximar e convergir duas entidades referenciais
num mesmo segmento sintático como é o microconto e a obra Os Frizos de Almada
Negreiros. Em concreto, queremos aqui patentear, tal como Henrique Manuel Bento
Fialho formulou na Primeira Antologia de Micro-ficção Portuguesa (Exodus, 2008),
como a participação de Almada Negreiros no primeiro número da Revista Orpheu
pôde constituir um dos primeiros precedentes do que mais tarde veio a considerar-se
um discurso literário emergente – mas não totalmente inédito– dentro do panorama
literário português e que é o microconto. E agora que o fenómeno da narrativa
hiperbreve demonstra ganhar um crescente interesse por parte da comunidade leitora
e das entidades autorais e críticas, urge ainda mais estabelecer pontes com o passado

1 Respeitar-se-á, sempre e quando se proceda à citação direta da obra de Almada Negreiros em questão, a grafia
usada na 2ª edição publicada pelas Edições Ática (Lisboa, 1971).
2 Os resultados deste trabalho são fruto do financiamento do Programa de FPU do Ministerio de Educación,
Cultura y Deporte do Governo de Espanha.
228 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira

e perscrutar o fenómeno dentro das balizas que delimitam o modernismo português


e entendê-lo como o ponto de germinação mais direto do microconto em Portugal, e
colocá-lo a par e em sincronia dos principais focos literários europeus.
A inclassificabilidade ou a falta de resguardo terminológico que se adapte e cubra
algumas obras experimentais como as que saíram das vanguardas das primeiras
décadas do século XX deve ser encarada, a nosso entender, como oportunidades de
questionamento, flexibilização e renovação das proposições oferecidas pela rigidez de
qualquer sistema teórico. É a partir desta base – e da discutível pertença da maioria
dos textos que conformam os Frizos no âmbito do conto ou do poema em prosa –
que propomos a consideração dos mesmos como prenúncios de uma das tendências
figurativas da narrativa contemporânea e que se materializa em autores como Pedro
Paixão, Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz, Rui Manuel Amaral, Luís Ene, José Mário
Silva, Paulo Kellerman ou Joana Bértholo.
Para tal, iniciaremos esta nossa análise através de um primeiro exercício que defina
o território conceptual do microconto, recorrendo a três definições dadas por três
especialistas, de diferentes tradições literárias e âmbitos linguísticos, da categoria
textual em questão:

The short-short is clearly a subgenre of the short story, but there are notable distinctions,
mostly of degree.
[…] Because of its miniaturist commitment, the short-short form is not notable for bold
actions, even though something always happens; the short-short fiction tends to be a story
of manners, of key moments in the relationship of two protagonists, the vehicle for modern
myth, fable, or excursions into horror. (HALL, J. B., 1986: 234)

Lo que aquí llamo cuento ultracorto, como ya señalé, tiene una extensión que no rebasa las
doscientas palabras. […]
En el estudio de estos minicuentos es necesario considerar, además de la brevedad extrema,
los siguientes elementos característicos:
a) Diversas estrategias de intertextualidad (hibridación genérica, silepsis, alusión, citación
y parodia)
b) Diversas clases de metaficción (en el plano narrativo: construcción en abismo, metalepsis,
diálogo con el lector) (en el plano lingüístico: juegos de lenguaje como lipogramas,
tautogramas o repeticiones lúdicas)
c) Diversas clases de ambigüedad semántica (final sorpresivo o enigmático)
d) Diversas formas de humor (intertextual) y de ironía (necesariamente inestable).
(ZAVALA, L., 2004: 98-99)
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 229

Miniconto é um tipo de conto muito pequeno, digamos que com no máximo uma página,
ou um parágrafo. Alguns dizem que ele é o primo mais novo do poema em prosa, outros
apontam as fábulas chinesas como origem, de certo é que desde meados do século XX o
conto tem experimentado – com sucesso – formas extremamente breves a partir de textos
de gente como Cortázar, Borges, Kafka, Arreola, Monterroso e Trevisan. (SPALDING, M.,
2007: 1)

Aliado a este novo conceito que detém uma vasta terminologia a ele associada e
que, insistimos, não é um fenómeno totalmente estranho e desgarrado da poética
da brevidade na História da Literatura, há uma série de características e tendências
que se reiteram em ser-lhe atribuídas: falamos da presença dos elementos que
conformam uma narração (tempo, espaço, personagens, narrador e ação), da
extensão hiperbreve – que não deve ultrapassar uma página impressa3 (no caso
da publicação em papel) –, do recurso à elipse, à unidade de efeito e à velocidade
no desenlace narrativo, da presença de ambiguidade semântica e de uma alta
capacidade de sugestão, do encadeamento de processos de hibridação e incorporação
de elementos pertencentes a outros domínios literários e extraliterários, da fácil
propensão a jogos intertextuais, da incorporação de estratégias que cabem dentro de
uma estética da provocação como é a ironia, a paródia e a ruptura das expectativas
leitoras.
A questão da classificação quanto ao género literário a que pertence a obra Frizos
tem sido levantada várias vezes, pelo seu carácter heterogéneo:

Quando apareceu nas páginas de Orpheu, Frisos não trazia qualquer subtítulo que indicasse
o género do texto e, do subtítulo que o acompanha, só podemos colher o facto de o autor
se considerar um «desenhador», antes de um escritor. Na mesma época, porém, Fernando
Pessoa refere-se a Frisos como uma série de «contos» e, nos anos seguintes, a crítica tem
empregado várias classificações para descrever este conjunto de pequenos textos em prosa.
Em 1970 e em 1985, vemo-los incluídos no volume de «Poesia» das Obras Completas de
Almada Negreiros e, em outros lugares, são considerados como poemetos, poemas em
prosa, parábolas, prosas poéticas ou prosas.
(SAPEGA, E. W., 1992: 18)

3 Não é casualidade o facto de, entre a vastíssima terminologia aplicada a este conceito no âmbito anglo-saxónico e
hispânico, existirem termos como sudden fiction, flash fiction, ficción súbita ou cuento instantáneo: constituem,
eles mesmos, chamadas de atenção para o carácter extremamente sucinto destes textos, cujo conteúdo total,
em termos idílicos, deve ser captado de modo instantâneo.
230 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira

O próprio prólogo da 2ª reedição, que serve como aproximação introdutiva


ao movimento e ao contexto de surgimento da revista Orpheu, assim o expressa:
“«Frisos» engloba uma série de poemetos formando pequenos esboços, de desenho e
musicalidade fantasistas” (GALHOZ, M. A. D., 1971: XLVI). Sem o intuito de querer dar
mais complexidade a esta matéria, abonamos pela ideia de que um número significativo
dos textos que habitam Frizos coincidem e participam na concepção de microconto. O
primeiro indicador desse mesmo facto é a presença de narratividade que, embora não
constitua a marca mais saliente em textos como “A Sombra” (1971: 75) ou “Canção”
(1971: 81), é uma das propriedades unificadoras desta obra, que podemos reconhecer
através da existência de um número restrito de personagens – em quase todos os
textos há um casal –, dentro de um espaço e um tempo delimitados, que cometem
ou estão implicados na realização de uma ou mais ações contadas por um narrador
heterodiegético. O primeiro texto, “Ciúmes” (1971: 71-72), descreve, em pouco mais
de uma página, uma cena bucólica em que Pierrot repousa junto a um lago ao
entardecer. Durante a sesta, surge uma andorinha que interrompe o sono de Pierrot
e que tenta interagir com ele e seduzi-lo. Quando esta foge, o leitor apercebe-se da
presença de um interveniente humano feminino – Colombina –, que não só fazia nesse
momento companhia a Pierrot, como também é, tal como a tradição da Commedia
dell’Arte instaurou, o par dessa mesma personagem. Quando Pierrot – encarnação da
personagem ingénua e cândida – atribui importância ao episódio com a andorinha e
transmite o relato do que acaba de suceder entre ele e a ave, Colombina sofre de ciúmes
hiperbólicos e morre. Graças à comparência destes elementos, é-nos possível edificar
uma história e atribuir-lhe um estatuto narrativo que, a nosso ver, se destaca sobre outros
planos existentes, como o poético e o descritivo.
A segunda característica que marca o tom destes textos é a brevidade. O texto
mais reduzido é “A Sombra”, que contém 88 palavras e o mais extenso “Mima Fataxa”,
com 396 palavras. Em termos de composição tipográfica, o maior texto aqui incluído
prolonga-se apenas por quase página e meia, o que incita ao leitor a dar-lhes a estas
pequenas obras uma etiqueta que fuja, nem que seja por uma questão de grau4, dos
paradigmas de um conto convencional. Mas mais do que falar em brevidade, a concisão,
a capacidade elíptica e a carga simbólica que adquirem (esta última característica
associada às convenções estéticas seguidas por Almada neste primeiro período da sua
criação poética) proporcionam o efeito de profundidade dissimulada que tão bem

4 Não sendo nosso objetivo expor e desenvolver as atuais discussões sobre a catalogação do microconto no sistema
literário, queremos apenas fazer menção a teóricos do microconto, como David Roas, que consideram este
discurso literário uma variante do conto, o que faz com que as suas diferenças com respeito a este último sejam
medidos pela magnitude das propriedades que se costumam outorgar ao conto literário (ROAS, D., 2010: 9-42).
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 231

Hemingway esquematizou com a sua teoria do iceberg, aplicada ao conto literário5.


Ilustraremos este mesmo aspecto, aludindo ao segundo texto que compõe (por ordem
de aparição) Frizos:

O Echo
Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!
Talvez que fosse á caça; quer fazer surprezas com alguma côrça branca lá da floresta.
Era p’lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Teve mêdo: mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E uma voz de mulher tambem,
tambem chamou Adão.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma!
E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe.
– Outra que não Ella chamára também por Elle. (NEGREIROS, A., 1971: 72)

Como é percetível, este texto começa com a apropriação da voz de uma das
personagens, Eva, fazendo com que o aparente vazio de omnisciência com respeito à
ação narrada produza um efeito de inquietação no leitor. O laconismo, expresso em
frases muito curtas e na enunciação concisa das ações das personagens intensificam
a aura de mistério. Do mesmo modo, a utilização de personagens do imaginário
coletivo, como Adão e Eva (e nos textos “Ciúmes” e “A Sésta”, das personagens
Colombina e Pierrot da Commedia dell’Arte italiana), permite ao narrador poupar
descrições e contextualizações, confiando nos conhecimentos prévios do leitor e
propiciando o foco na ação. Em nenhum momento, o corpo da narrativa faz menção
explícita ao eco, mas sim à voz de uma outra mulher, jogando, através do discurso
indireto livre, com a ingenuidade da personagem feminina. Se não fosse pelo título,
o leitor poderia inferir que estaríamos perante um texto de reescrita subversiva de
uma obra canónica, procedimento recorrente no microconto contemporâneo.
Este é apenas um exemplo de que a escolha tanto do título de cada texto
hiperbreve como da própria obra não é gratuita. Por um lado, Frizos, remete-nos
para a natureza transferível e total que uma obra literária pode adquirir, o que já
de si mostra como Almada Negreiros foi na sua época um visionário, sabendo
aproveitar as propriedades pictóricas de artes visuais e traduzi-las para o âmbito

5 Para um aprofundamento do tema, sugere-se a consulta de ZAVALA, Lauro (ed.) (1996). «Ernest Hemingway.
El principio del iceberg». Teorías del cuento III. Poéticas de la Brevedad. México D.F.: Universidad Nacional
Autónoma de México, pp. 19-26.
232 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira

literário, conferindo-lhe à sua obra uma essência ainda mais híbrida. Tal como
Graça Videira Lopes expõe:

O que Almada faz, pois, nas pequenas narrativas experimentais de “Frisos” é uma inversão
dos termos: ao contrário da prática tradicional, onde a pintura (nomeadamente a histórica
e figurativa) parte de uma narrativa e lhe serve de ilustração, nesta sequência de “Frisos” são
as narrativas literárias que glosam poeticamente imagens visuais, ou que as “ilustram” (se
tal verbo pudesse ter algum sentido aqui). (LOPES, G. V., 2005: 4-5)

Esse efeito é visível através da perceção de que a ação de cada texto se move
maioritariamente de uma forma unidirecional e sequencial, dando a sensação de
observação contemplativa por parte do narrador. Por outra parte, a maior parte dos
títulos que compõem Frizos, “Ciúmes” (1971: 71-72), “O Echo” (1971: 72), “Sèvres
Partido” (1971: 72-73), “Mima Fataxa” (1971: 73-75), “A Sombra” (1971: 75-76), “A
Sésta” (1971: 75-76), “Ruínas” (1971: 77-78), “Primavera” (1971: 78-79), “Trevas”
(1971: 79-80), “Canção” (1971: 81), “A Taça de Chá” (1971: 82) não só funcionam
nalguns dos casos como a chave para decifrar o significado e a mensagem primordiais,
como também poderiam muito bem, pela eleição de sintagmas nominais breves,
ser títulos de pinturas ou esboços, ideia que o próprio autor faz questão de recalcar
quando assina e faz corresponder a sua obra ao “desenhador José Almada Negreiros”.
Ora, também os microcontos tendem a delegar protagonismo e relevância ao título,
tal e como o afirma Irene Andres-Suárez:

[...] la importancia del título – elemento clave que guarda una relación dialéctica con el
texto, orienta la lectura y subraya los elementos significativos que conviene tener en
cuenta –, y también del inicio y del cierre (abundan los finales sorpresivos y/o enigmáticos).
(ANDRES-SUÁREZ, I., 2012: 24)

A carga simbólica em textos como “Trevas” (1971: 79-80) assume dimensões muito
significativas, quando conceitos e imagens como “punhaes”, “pinheiros esgalgados”,
“lençoes de linho”, “azas brancas de garças caídas por faunos caçadores” e “Noite”
concorrem na obtenção e sugestão de uma atmosfera tenebrosa e de sobressalto. Este texto,
embora reconheçamos que o valor descritivo constranja a força e velocidades narrativas,
é pertinente para entender como uma unidade de efeito consistente pode fazer alterar
as expectativas leitoras, processo também ele muito frequente nos microcontos. A ideia
principal que é veiculada em “Trevas” é a de que o narrador se encontra num espaço que
se assemelha a um cenário de história de terror: “De dia não se via nada, mas p’la tardinha
já se apercebia gente que vinha de punhaes na mão, devagar, silenciosamente, nascendo
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 233

dos pinheiros e morrendo nelles” (1971: 79). As metáforas e imagens sucedem-se de


forma insistente, capacitando o texto de uma forte componente visual:

A lua é uma laranja d’oiro num prato azul do Egypto com pérolas desirmanadas. E as
silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na briza eram um bailado de estatuas de sonho
em vitraes azues. Mãos ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se. (1971: 80)

A linha de tensão permanece consistente até à última linha do texto, ouvindo-se


“surdinas de gritos distantes”, e aparecendo em cena bruxas que gritam ladainhas de
Morte. Só alcançando a derradeira frase é que o leitor se apercebe da condição onírica
interna ao texto, quando se revela que chegando a manhã, tudo havia desaparecido.
Semelhante estrutura tem “A Taça de Chá”, último texto de Almada a figurar no
primeiro número da revista Orpheu, e que insiste na representação de um episódio
funesto e no efeito surpreendente que a última frase pode desencadear. Começado in
medias res e ambientado em cenários orientais, estampa-se uma vez mais a temática
amorosa, através da representação de uma personagem masculina que está a ponto de
sucumbir e que se faz acompanhar de uma gueisha, seu par. Em modo de despedida,
ele pede-lhe que cumpra uma promessa: “Chorar não é remedio; só te peço que não
me atraiçoes emquanto o meu corpo for quente” (1971: 82). Após a morte deste, elide-se
o que se passou durante o resto da noite, descrevendo-se o que os vizinhos vêem de
manhã, quando vão ao seu encontro: “a gueisha abanando o morto com um leque de
marfim” (1971: 82). Se o tom desta expressão roça o burlesco e toca o nível do jocoso,
a última frase pode ainda chegar a ser mais demolidora: “A estampa do pires é igual”,
desterrando o leitor de todo o contexto que havia formulado anteriormente: não se
trata de uma narrativa convencional, mas sim da descrição e narração das figuras que
compõem uma taça de chá. Desta forma, uma vez mais estamos diante de um texto
que, à luz da estética do microconto, obedece a alguns parâmetros como a brevidade
(103 palavras) e condensação, ausência de complexidade estrutural, contundência,
ausência de traços descritivos das personagens, esquematismo espacial e temporal, o
começo in medias res e a presença de um final surpreendente e impactante.
Concluindo, quisemos expor nesta análise a aproximação que pode ter Frizos a
um conceito que cada vez mais suscita curiosidade pelo espaço literário atual e que
começa a dar sinais de alguma reivindicação dentro do território lusófono, sobretudo
no Brasil. No entanto, tal como para entender qualquer outro fenómeno literário
contemporâneo, exige-se traçar umas coordenadas históricas que dêem conta da sua
origem e evolução. No caso português, tal como no espanhol e latino-americano,
queremos acreditar que os movimentos de vanguarda foram contundentes para a
conformação do gosto, visibilidade e reativação da poética da brevidade aqui exposta.
234 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira

Em particular, se nos atendemos às especificidades da obra de Almada Negreiros


presente no primeiro número de Orpheu e que frequentemente é tida como uma obra
menor, acreditamos que a sua génese e natureza deteve também um importante impacto
sobretudo para as obras saídas de movimentos e formas de expressão experimentais,
como o Surrealismo (basta pensarmos em nomes como Mário Henrique-Leiria
ou Ana Hatherly) e repercutindo-se ainda nos dias de hoje, inculcando no sistema
literário português, novos âmbitos, novos desafios, novas propostas.

Bibliografia

Bibliografia Activa
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A palavra em exílio
Orpheu e o desejo de comunidade

Ettore Finazzi-Agrò
Sapienza Universidade de Roma

Palavras-chave: Orpheu; Exílio; Comunidade; Pessoa; Sá-Carneiro


Resumo: A análise do programa ideológico, inscrito logo na “introducção” de Luís de
Montalvor ao primeiro número da revista, ajuda-nos a entender com clareza o confuso desejo
de evasão e eversão dos cânones que tem acompanhado, ao longo dos anos, a Geração de
Orpheu, mostrando, ao mesmo tempo, a razão pela qual alguns dos membros do grupo não
conseguiram sustentar até ao fim o peso duma existência (e duma escrita) sempre “exceptuada”.
Vão ser considerados, nessa perspectiva, não apenas o significativo aparecimento, em 1916, da
revista Exílio, mas sobretudo a frequência e o modo parcialmente disforme com que os poetas de
Orpheu se valeram do termo “exílio”, com particular atenção aos casos de Pessoa e Sá-Carneiro.

Vamos começar onde tudo acaba; vamos começar pelo estabelecimento duma
identidade plural: “Nós, os de Orpheu”. Uma afirmação peremptória da qual
descende uma pergunta que poderíamos formular assim: de que modo e seguindo
quais caminhos é que um conjunto bastante heterogéneo de artistas chegou a
identificar-se numa comunidade, num sujeito coletivo? A assunção de um “nós”,
mais do que um cimento estético efetivo ou uma reivindicação geracional, parece,
com efeito, a suposição de uma identidade compartilhada que sobrevive no tempo
e ao tempo, apesar do desaparecimento súbito de alguns, do afastamento de outros,
da dispersão que corroeu as relações pessoais, da deriva anti-moderna que arrastou
vários membros do grupo originário para fora do projeto de renovação estética e
ideológica que estava na base do programa inicial.
O programa inicial, justamente. Mas como circunscrever e compreender o que
se encontrava e, ao mesmo tempo, se escondia na fundação do grupo de Orpheu e
que, cruzando práticas artísticas diversas e escolhas poéticas às vezes incompatíveis,
desembocou numa identidade coletiva? A resposta talvez possa ser procurada
no breve texto assinado por Luís de Montalvor que funciona como introdução ao
primeiro número duma revista que se furta ao padrão das revistas ou de qualquer tipo
de publicação periódica. Lemos, de facto, no incipit:
238 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò

O que é propriamente revista em sua essencia de vida e quotidiano, deixa-o de ser ORPHEU,


para melhor se engalanar do seu título e propor-se. 1

Temos, desde logo, uma opção que não consiste apenas numa recusa dos modelos
anteriores, mas que se manifesta através duma escolha estilística peculiar. De facto, o
andamento aparentemente anómico, irregular e antigramatical do discurso procura
manifestar, de imediato, uma diferença irredutível sobre a qual construir um novo e
extravagante modelo discursivo.
E esse vagar fora das normas consolidadas é, com efeito, imediatamente confirmado
no período seguinte:

E propondo-se, vincula o direito de em primeiro lugar se desassemelhar de outros meios,


maneiras de formas de realisar arte, tendo por notavel nosso volume de Beleza não ser
incaracteristico ou fragmentado, como literarias que são essas duas formas de fazer revista
ou jornal.2

Como se vê, a disposição sintagmática da frase tenta romper com qualquer modelo
lógico-discursivo ao mesmo tempo que reafirma a coerência incoerente do projeto
estético, vinculado a um “volume de Beleza” logo “nosso”, característico e coeso, do
qual “se engalanar”.
A questão à qual a apresentação duma nova revista deveria responder parece, até
aqui, iludida, levando o leitor a interrogar-se sobre a razão que empurrou os jovens
artistas a escolher uma figura da mitologia clássica para intitular uma publicação, que
deveria ser periódica e, sobretudo, inovadora e anti-tradicional. Se compararmos, de
facto, o texto de Montalvor com aqueles de outros manifestos das vanguardas europeias,
a escolha do título ficaria fora de foco: nenhuma apresentação dum novo ismo, nenhuma
projeção para um futuro de subversão dos cânones estéticos clássicos (por exemplo, para
Marinetti: “um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que
a Vitória de Samotrácia”3), e sim o esconder-se desse discurso, que fica todavia irregular
e anti-normativo, atrás duma simbologia bastante corriqueira, tirada dum modo de
pensar a arte certamente passadista, atrás dum nome mítico, o de Orfeu, que desde
sempre é uma marca e uma metáfora do poético. Mas a apresentação continua assim:

1 Luís de Montalvor, “Introdução”. Orpheu, ano 1 (1915), n. 1, pp. 11-12. Na reprodução desse texto “inaugural”
decidi manter a grafia original.
2 Ibidem.
3 Tirei a tradução do Manifesto futurista do livro de Gilberto Mendonça Teles (1983: 91).
A palavra em exílio Orpheu e o desejo de comunidade 239

Puras e raras suas intenções como seu destino de Beleza é o do: — Exilio!
Bem propriamente, ORPHEU, é um exilio de temperamentos de arte que a querem como a um
segrêdo ou tormento…4

Nestas frases encontramos, talvez, tanto a razão de ser do título escolhido, quanto
finalmente a base que fundamenta a atribuição do discurso a uma identidade coletiva.
Porque, em primeiro lugar, o Orfeu a quem é intitulada a revista – apesar da influência
aparente do quadro Orfeu nos infernos, composto por Santa Rita Pintor por volta de
1909 ou mesmo antes, mas reproduzido apenas em 1917 no interior de Portugal
Futurista 5 – não é o emblema mitológico da poesia e do caráter apolíneo da arte,
mas é o nome que, no orfismo, encobre e significa uma série de crenças místicas e de
práticas dionisíacas – como, aliás, o próprio Luís de Montalvor esclarece logo a seguir:

Nossa pretenção é formar, em grupo ou ideia, um numero escolhido de revelações em


pensamento ou arte, que sobre este principio aristocratico tenham em ORPHEU o seu ideal
esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos.6

O esoterismo, então, como religião ou re-ligação do grupo, como elemento


agregador de um “nós” que, numa adesão comum e comunitária ao elitismo e à
natureza iniciática da arte, encontra a sua profunda razão de ser. Não por acaso,
vamos reencontrar, entre os membros do grupo, essa investigação inconclusa do
lado misterioso da existência, esse apelo à mistagogia, que encontra sobretudo em
Fernando Pessoa, como todos sabem, a sua expressão mais evidente.
A opção por uma sublimação estética e por uma deriva hermética, a circunscrever
um conjunto reduzido de iniciados, representa, de resto, um traço comum a muitas
vanguardas artísticas tanto oito quanto novecentistas. Aqui, porém, a palavra
utilizada para definir a condição de eleição dos happy few merece uma atenção
suplementar, visto que não só vai determinar o projeto artístico do grupo, mas
vai tornar-se uma escolha existencial, um modo de ser (e de ser-se) de muitos dos
membros de Orpheu. O termo, repetido duas vezes em duas linhas sucessivas por
Luís de Montalvor a definir o estatuto peculiar do “nós”, é, de facto, Exílio. Palavra
complexa, esta, sobrecarregada por sentidos às vezes heterogéneos e ambivalentes
que não se deixa fechar num significado unívoco, mas que descreve, na sua

4 L. de Montalvor, “Introdução”, cit., p. 11.


5 Uma fiel reprodução deste quadro encontra-se, por exemplo, no site: http://miglaspoon.tumblr.com/
post/86299805115/orfeu-nos-infernos-santa-rita-pintor
6 L. de Montalvor, “Introdução”, cit., p. 11.
240 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò

indeterminação, uma condição peculiar: a de quem não se identifica no contexto


(ambiental e sociocultural) onde se encontra.
A sensação de estar alhures, de ser, no fundo, déplacés ou outsiders, representa,
então, uma instância unificadora para os membros de Orpheu, herdada, em boa
medida, da geração poética anterior e cristalizada no nome e na obra de Camilo
Pessanha.7 Apontar para o exílio como condição prévia no interior dum programa de
inovação estética radical, pode representar, todavia, um elemento de distinção entre
o Modernismo português e os muitos ismos que pululam nas primeiras décadas do
séc. XX. Se, com efeito, em vários casos e a partir do Futurismo, temos a vontade
de ocupar um novo espaço, integrando-se todavia no panorama artístico nacional
como protagonistas, num tempo por vir, duma revolução estética e duma subversão
dos cânones e das hierarquias culturais (ainda Marinetti: “É para a Itália que nós
lançamos este manifesto [...] porque queremos livrar a Itália de sua gangrena de
professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários”8), no breve texto que
deveria constituir a fundamentação ideológica do grupo português encontramos
uma opção pelo isolamento ou até pelo alheamento em relação a um ambiente
cultural tido por impróprio, estranho a “nós” e onde os “nós” se identificam como
estrangeiros. A procura da “originalidade”, nesse sentido, não produz um projeto
artístico “catastrófico” que vira do avesso o discurso poético para aderir a uma nova e
eventual realidade (se é verdade que a palavra catástrofe encerra também um sentido
de mudança9), mas acomoda-se numa situação tanto excepcional quanto exceptuada.
Se, portanto, as outras vanguardas artísticas querem ocupar um lugar inexplorado,
cavado no interior duma cultura sedimentada, a portuguesa tenta permanecer num
“espaço inteiro fora”, para utilizar uma expressão de Pessoa que bem descreve a
completude do ser, encontrada numa multiplicação de instâncias, constelando, porém,
as diferenças e conjugando-se na unicidade e excepcionalidade de um “nós”: “nós”
estrangeiros não só em relação aos outros mas também, ou sobretudo, a nós mesmos.
E a comunhão entre os participantes de Orpheu torna-se, assim, uma comunidade de
indivíduos que não têm comunidade: uma comunidade de exilados, de displaced, de
degredados, cujo destino é o de não se sentir em casa em lugar nenhum ou o de habitar
perenemente um “fora” em relação aos outros e a si próprios. Uma comunidade imune,
enfim, que vai descobrir o seu lugar de enunciação apenas no Exílio – termo que volta,
não por acaso, a intitular, em 1916, a segunda revista do grupo modernista depois de

7 Veja-se, a respeito do tema do exílio em Pessanha, o importante livro de Paulo Franchetti (2001).
8 TELES, G. M., 1983: 92.
9 Veja-se, a esse respeito, o estudo de Salvatore Natoli (1999: 195-199).
A palavra em exílio Orpheu e o desejo de comunidade 241

Orpheu, aberta por uma “justificação” de autoria, desta vez, de Augusto Santa-Rita na
qual se retoma a ideia, que já encontrámos em Luís de Montalvor: a dum desterro em
direção à Beleza e contra a “massa amorpha de um povo de inconscientes emotivos”
que se apoderou do espaço pátrio.10
Falei em “comunidade de exilados” e, mais em particular, numa comunidade de
artistas que não têm comunidade ou que compartilham apenas aquele “nada em
comum” de que falou magistralmente Georges Bataille. A questão que fica todavia em
aberto é como conciliar tudo isto com a reivindicação de um sujeito coletivo, de um
“nós” a abrigar vozes e personalidades diferentes. Acho que o problema não poderá
ser resolvido atribuindo àquela identidade plural apenas um valor emblemático
ou um estatuto conjetural, mas analisando em concreto como essa comunidade de
desterrados consiga constituir-se num grupo coeso. Porque há, no exílio, pelo menos
uma oportunidade: a de se livrar do peso da herança cultural, a de inventar uma
tradição a partir do desenraizamento, a de se encontrar, enfim, e de se reconhecer no
alheamento. Entenda-se bem: a condição do exilado é sempre ligada a uma situação
de solidão existencial, de angústia dependente da perda de todas as referências
espácio-temporais e socioculturais (como bem mostrou um ilustre exilado como
Edward Said nos seus livros11), mas a esta condição trágica e aparentemente sem
remédio corresponde, todavia, uma liberdade de inventar o seu próprio discurso e o
seu próprio percurso, dentro de uma realidade alheia na qual viver, embora de modo
sofrido e apartado, uma vida eventual – como aconteceu, por exemplo, com Joseph
Conrad, que habitou a sua expatriação como apropriação, como hipótese duma nova
pátria dentro de uma língua nova e estrangeira, tentando preencher o vazio da sua
identidade originária, irremediavelmente perdida.
Seria preciso, na perspetiva de uma reinvenção de si mesmos no alhures, considerar as
duas figuras mais destacadas do grupo de Orpheu: Mário de Sá-Carneiro e, naturalmente,
Fernando Pessoa. O primeiro, desterrado numa Paris que o não reconhece e que lhe é,
no fundo, estranha, apesar da sua condição de capital da cultura ocidental, onde ele, a
contragosto e sempre mais ciente do seu anonimato, tenta levar adiante os seus estudos
de Direito; o segundo, retornado do seu “exílio” sul-africano com uma bagagem de
conhecimentos ligados à cultura de língua inglesa e que não consegue se reconhecer
na sua verdadeira pátria, estudante falhado e falido, também ele, dum curso superior de
Letras. Para ambos, então, o desterro é algo de real – embora de duração mais limitada
em relação, por exemplo, a Camilo Pessanha –: uma experiência dolorosa e concreta

10 Cf. Exílio. Revista Mensal de Arte, Lettras e Sciencias, n. 1 (1916), Lisboa: Contexto (Ed. fac-similar: 1982).
11 Veja-se, em particular, o conjunto de ensaios que Edward W. Said (2000). Um dos autores mais lembrados e
estudados nesse livro do grande crítico palestino é, não por acaso, Joseph Conrad.
242 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò

à qual eles procuram dar respostas diferentes, não compartilhando, todavia, a mesma
sensação de isolamento e saudade presente nos poemas de Clepsidra.
O “nós” funciona, nesse sentido, como identificação no afastamento, como
lugar indeterminado de encontro e, ao mesmo tempo, como instância imaginária
de dissolução e salvação do eu dentro dum “grupo ou ideia”, nas palavras de Luís
de Montalvor. Para Sá-Carneiro e Pessoa, de facto, o poder agregador da prática
artística passa por um aparente “ausentar-se” de si mesmos, para fugir à Norma
e ao Poder dum discurso imposto, para tentar dizer aquilo que deveria ficar fora do
alcance das palavras usuais e consumidas pelo uso. O exílio real confunde-se, assim,
com o imaginário, levando os dois – junto com outros membros de Orpheu – a criar
uma espécie de dimensão poética própria, ligada à capacidade de deslocar-se e de
desdizer-se12. Poder-se-ia afirmar que eles adotam, no fundo, uma atitude que os
leva a contrastar e a resistir com teimosia a qualquer forma de integração ou de
normalização, jogando os signos contra si mesmos e instituindo, como escreveu
Roland Barthes, “no próprio coração da língua servil, uma verdadeira heteronímia
das coisas”13.
A obrigação ao exílio torna-se, portanto, uma opção pelo auto-exílio, primeiro
dentro de um “nós” constituindo uma comunidade artística e depois – diante do
fracasso e da dispersão dessa comunidade, diante da impossibilidade de levar adiante
a experiência de Orpheu, para além do segundo número – no interior de um “nós”
inventado. E se Mário de Sá-Carneiro, por um lado, “Rei exilado” e “vagabundo”, vai
enfrentar a trágica incapacidade de ser eu e outro ao mesmo tempo, de sustentar a sua
pessoal “ponte de tédio”, optando pela definitiva supressão de si mesmo; Pessoa, por
seu lado, vai continuar acreditando na possibilidade de existir na pluralidade, de viver
como um e muitos, de ser um “nós” heteronímico, de criar, enfim, sozinho “toda uma
literatura”, fugindo ao servilismo da língua, inventando uma comunidade poética na
qual, novamente, experimentar um exílio que seja, ao mesmo tempo, afastamento e
aproximação de um ideal de Beleza e Completude. Uma comunidade, aliás, que ele vai
fazer coincidir com aquela que se tinha constituído num tempo pretérito e perdido,
numa revista que ele tentou ressuscitar quase até ao fim da vida, quando já aquela
hipótese de grupo naufragara no silêncio e na inviabilidade, ao ponto de fechar um
breve artigo seu, publicado numa outra revista (Sudoeste) e à véspera da morte, com a
frase: “Orpheu acabou. Orpheu continua”.

12 Como se sabe, são estas, fundamentalmente, as “forças” da grande literatura, na visão magistral de Roland
Barthes: “s’entêter”, “se déplacer” (até chegar à abjuração) e “jouer les signes” (Leçon. Paris: Seuil, 1978, pp.
25-28).
13 Ibidem, p. 28.
A palavra em exílio Orpheu e o desejo de comunidade 243

A reafirmação teimosa duma comunidade ausente – e gerada na e pela ausência


– mostra, em princípio, o desejo de dissolver o Eu no espaço circunscrito duma
identidade coletiva, que por sua vez preserva o sujeito duma anulação sem remédio.
E esta cessão de autoridade, esta refundição do singular dentro do plural combina-se,
de resto, com a possibilidade de manter um controle eventual sobre a dispersão.
É possível, de facto, pensar o exílio também como condição inelutável do sujeito
poético, visto que o ato de escrever encerra desde sempre – e a consciência disso
torna-se mais contundente no âmbito da literatura do séc. XX – um poder de
alienação em relação ao Eu que o cumpre e que nele deveria se espelhar. Nesse
sentido, descobrir-se outro e estrangeiro no signo ou no traço pode ser considerado
uma experiência primária de Ichspaltung, de divisão irremediável do indivíduo,
contra a qual a única salvação é, talvez, a de se multiplicar, numa espécie de
fragmentação infinita da identidade, espelhando-se e reconhecendo-se numa
pluralidade de instâncias egóticas. É o caso, justamente, de Pessoa e da sua tentativa
de criar tantas identidades quantas são as hipóteses discursivas que se abrem diante
do sujeito, ou melhor, de existir tantas vezes como outro quantas são as disposições
virtuais do Eu.
A heteronímia pessoana pode, de facto, ser considerada um “dispositivo” (seja no
sentido simplesmente retórico, seja no significado mais amplo e complexo que a este
termo atribuiu Michel Foucault 14) pelo qual, embora mantendo intacto o limiar entre
o Si próprio e o estranho-de-Si, seria possível apoderar-se, de forma intermitente, de
diferentes identidades que mantenham uma relação de tipo solidário com o sujeito
que as inventa e as age. Por paradoxo, esta modalidade de deslocação ou de exílio do
sujeito em relação a si mesmo mostra-se como uma tentativa extrema de controle
sobre a dissolução da identidade. Na objetivação dinâmica da relação entre eu e
outro, nesta espécie de abdicação à sua centralidade por parte do sujeito do discurso,
descobrimos, na verdade, um projeto de recomposição pânica, de domínio utópico
sobre a dispersão que passa pelo apagamento duma identidade homogénea para se
encontrar, uno e plural, na heterogeneidade das coisas e do mundo (projeto, esse, que
Pessoa desenvolve, de modo significativo e pelo menos na primeira parte da sua obra,
no signo de Walt Whitman).
Aqui, porém, encontramo-nos longe da suposição inicial e iniciática que aparece
no texto de Luís de Montalvor; aqui encontramo-nos diante dum projeto ideal do qual
a prática poética foi, aos poucos, embaciando os contornos; aqui encontramo-nos,

14 Como se sabe, na obra de Michel Foucault o termo “dispositivo” é várias vezes evocado mas nunca definido
com clareza. À tarefa de circunscrever o(s) significado(s) dessa palavra utilizada pelo filósofo francês, se
deram primeiro Gilles Deleuze (1989) (Qu’est-ce qu’un dispositif?) e mais recentemente Giorgio Agamben
(2006), (Che cos’è un dispositivo?), com dois ensaios que têm, por acaso, o mesmo título.
244 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò

enfim, diante duma história realmente trágica e duma ideologia fracassada. Em vez
do “nosso volume de Beleza” atingido graças a um exílio compartilhado, temos, com
efeito, a procura individual e impossível duma via de fuga, tanto existencial quanto
estética, em relação a um desterro que já não é a condição para a constituição de um
grupo aristocrático de artistas que se reconhecem na sua originalidade, mas a situação
desoladora em que se encontra o eu poético – “homem da mansarda” que, no seu
isolamento, longe e fora de qualquer “nós”, na consciência do seu não ser nem querer
ser nada, olha para um mundo que lhe é definitivamente estranho e irreversivelmente
estrangeiro.

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio (2006). Che cos’è un dispositivo? Roma: Nottetempo.


BARTHES, Roland (1978). Leçon. Paris: Seuil.
DELEUZE, Gilles (1989). Qu’est-ce qu’un dispositif? Paris: Seuil.
Exílio. Revista Mensal de Arte, Lettras e Sciencias, n. 1 (1916), Lisboa: Contexto
(Ed. fac-similar: 1982).
FRANCHETTI, Paulo (2001). Nostalgia, exílio e melancolia. Leituras de Camilo
Pessanha. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
NATOLI, Salvatore(1999), Progresso e Catastrofe. Dinamiche della modernità.
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TELES, Gilberto Mendonça (1983). Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro.
8a ed. Petrópolis: Vozes
Guilherme Pobre

José-Augusto França1

O colaborador mais evidente do fatídico n.º 2 do Orpheu foi Santa-Rita Pintor. Não
só a ele Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro dedicaram a sua própria colaboração
no número, como é ele quem tem os quatro grandes extratextos que revelam uma
nova personalidade na criação artística portuguesa. Também se deve a um dos
grandes colaboradores desse segundo n.º do Orpheu, Raúl Leal, o primeiro texto de
interpretação de Santa-Rita Pintor, daí a ano e meio na revista Portugal Futurista.
Pouco se sabe da vida breve de Guilherme Santa-Rita, nascido em Lisboa, em 1889,
e aqui falecido em 1918, em abril. Fora bolseiro para Paris, em abril de 1910, como
escolar das Belas-Artes de Lisboa, mas não ingressou na Escola parisiense, tendo
falhado provas de admissão. Perdeu a bolsa nacional em 1912, por conflito com o
embaixador da recente República Portuguesa, o jornalista militante João Chagas; ele,
Santa-Rita, que se gabava de monárquico, admirador do D. Carlos artista, pronto a
escrever sobre a obra dele e havia de investir no desejo da restauração do regime
que lhe daria “poder” e deveria ser acompanhado pelo regresso dos jesuítas que
a República expulsara e pela reinstauração da Inquisição… Sabemo-lo por cartas
de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, de 1915, já Santa-Rita regressara a Lisboa, em
setembro do ano anterior, por causa da guerra e aqui se movia no âmbito da Orpheu,
sempre em referência a Sá-Carneiro, que lhe dedicara os seus “Poemas sem Suporte”,
no n.º 2 da revista. Já vamos ver o que ela representou para Santa-Rita.
Outra via de informação sobre estes anos da vida do pintor vem de uma biografia
que, desde 1922, o pintor Henrique Vilhena consagrou a seu primo, o pintor Manuel
Jardim, que cruzou amistosamente Santa-Rita em Paris e depois em Portugal, mas à
distância de Coimbra para Lisboa, e aí não sem um mal-entendido que ficou registado
em correspondência trocada e que tem a ver com as respetivas carreiras ou desejo
delas, como veremos. Ainda de Vilhena, há um artigo tardio que ficou a meio, na
revista Átomo, de 1950. Mais informação vem de outros contemporâneos, de Paris e
da Lisboa dos anos ditos “futuristas”, que também em Paris foram ou desejaram ser os
de Santa-Rita, ali espetador da primeira exposição que, em 1912, os pintores italianos
apresentaram e que Aquilino Ribeiro reportara para a Illustração Portugueza, de

1 Gravação por Rui Sousa (CLEPUL-FLL) e transcrição por Sofia Santos (CLEPUL-FLL), a quem os
organizadores muito agradecem.
246 100 Orpheu José Augusto França

Lisboa. O famoso manifesto que, em 1908, Marinetti publicara no Figaro – antes,


portanto, da chegada de Santa-Rita –, teve tempo de por ele ser lido e endoutrinado,
de modo a, de volta a Lisboa, se declarar encarregado pelo teórico italiano de difundir
a boa-nova estética. Implicaria isso um contacto, mesmo de confiança, com Marinetti
(a cuja conferência de 1911 assistiu, segundo o repórter Diogo de Macedo) e os seus
camaradas pintores (italianos eles quase todos), sobretudo Severini, instalado em
Paris; mas não há provas disso e pode suspeitar-se da efabulação de Santa-Rita. O
que era a opinião veiculada pelas cartas de Sá-Carneiro, já, porém, posteriores, e com
razões de queixa. Mas não só porque o poeta tivera já o seu período de fascinação pelo
pintor, ao conhecê-lo, e antes de lhe ter dedicado os poemas de Orpheu, onde pusera
em versos do poema “Apoteose”: “MARINETTI + PICASSO = PARIS < SANTA-RITA
PINTOR + FERNANDO PESSOA ÁLVARO DE CAMPOS!!!!”. Em 1914, já na
narrativa Confissão de Lúcio, Santa-Rita está presente sob o nome de Gervásio
Vila-Nova, personagem, escultor emigrado também, com o seu corpo “macerado e
esguio”, “de linhas quebradas” e “as suas obras eram esculturas sem pé nem cabeça,
pois ele só esculpia torsos contorcidos, enclavinhados, monstruosos”, dada a um
público de “coitados que não podiam sentir a sua beleza” – e, sobretudo, uma alma
diabólica que domina o narrador até ao rompimento dramático da narração.
Nas cartas que escreve a Fernando Pessoa, Sá-Carneiro dirá que, com ele, “todo o
cuidado é pouco” e descreve-o como “um tipo fantástico”, “cada vez mais intolerável”,
“insuportavelmente vaidoso”, “maçador” e mesmo “malandro”, até às queixas finais, já
de setembro de 1915, após o Orpheu, quando Santa-Rita havia disposto captar a raiz de
Orpheu, que Sá-Carneiro já não podia pagar na tipografia. E isso, escreve Sá-Carneiro
a Fernando Pessoa, “seria pior que a morte (da revista)”. Porém, Sá-Carneiro dera na
revista abrigo a quatro hors-textes de obras de Santa-Rita, numa nova orientação de
colaboração artística que se inaugurava no n.º 2 e que no n.º3 deveria ser satisfeita por
Amadeo de Sousa-Cardoso. Já veremos a importância destas quatro obras quando,
anteriormente, Sá-Carneiro duvidara da sua criação artística, ou dela mesmo troçara,
nomeando, em carta de 1912, um quadro intitulado “WC”, que, na opinião citada
do pintor, “só dez pessoas no mundo podiam não só compreender como ver”. Duas
outras obras suas intitulavam-se “Portugal” e “Ruído num Quarto sem Móveis”.
Seria esse quadro objeto de uma paródia feita ao pintor, numa crónica para a revista
lisboeta Teatro, no seu n.º 1 de 1 de março de 1913, em texto sobre “O cubismo
nacional”, de um tal jornalista Eduardo de Freitas, que anunciava, com escândalo,
a sua exibição no “Salon des Indépendantes”, em Paris, e reproduzindo um quadro
realmente de Picabia… Blague ofensiva que o comportamento polémico e antipático
(ou “intolerável”) de Santa-Rita dava razões e originava más relações com os poucos
emigrados na vida artística local – que, um deles, Diogo de Macedo, haveria de
Guilherme Pobre 247

descrever saborosamente, em 1930, nas suas memórias 14, Cité Falguière. Como já
em 1921, no Diário de Lisboa, ele ali falaria de vários companheiros (Manuel Bentes,
Francis Smith, Armando de Basto, o seu caro Amadeo – ainda “impressionista” e
caricaturista, mas que “se a morte o não vence seria hoje o maior pintor português”). E
de Modigliani também ele fala, porque foi Modigliani que o levou a ouvir a conferência
de Marinetti: e foi ali, na conferência de Marinetti, que ele, Diogo de Macedo, pela
única vez fala em Santa-Rita. Em 1942, Macedo voltaria a falar no pintor, visto em
1917, numa panorâmica ordenada (a primeira de todas) dos primórdios do nosso
Modernismo na revista Aventura.
Em Lisboa, o caso Orpheu levantou escândalo jornalístico, politicamente assanhado
por Pessoa, como sabemos – é verdade que logo arrependido, como os seus amigos
– menos Santa-Rita, que açulou Raúl Leal, o mais sincero de todos eles… Mas foi
o pintor o alvo preferido nas colunas do Século Cómico, de 8 de julho (1915), num
desenho de Stuart de Carvalhais e numa poesia trocista de Belmiro Acácio de Paiva,
pseudónimo de Acácio de Paiva, um gazetista apreciado, que o punha “em foco”
imitando versos de Sá-Carneiro, de invenção tipográfica: “Santa-Rita, Rita Santa, pó,
pó! (…) / (…) le nez dan le cou”, caricaturado por isso mesmo. Oitenta e nove artigos
ou alusões a Orpheu ficavam registados nas colagens de um caderno recolhido no
espólio de Fernando Pessoa, na Biblioteca Nacional. Mas Orpheu chegou também ao
Teatro de Revista, ainda em 1915, no então Éden, dos Restauradores, em A Parceria
O Diabo a Quatro, com Satanás a endoidecer por ter lido a revista. Orpheu n.º 3 não
houve, só provas tipográficas, de algumas páginas, recuperadas em edição em 1983.
Santa-Rita não levou avante o seu projeto, que afligia Sá-Carneiro e Pessoa protelava
evasivamente em suas correspondências, ele que também lhe dedicara em Orpheu a
sua “Ode Marítima”. Mas o pintor continuara a agir no minúsculo meio que era o do
Chiado – que a exposição de Amadeo, anunciada como futurista (embora de modo
algum o fosse em suas obras), a dois passos, no Calhariz da Liga Naval, que então
agitara em dezembro de 1916, com a bênção batismal de Almada Negreiros. Amadeo
deveria ter sido o artista destacado em hors-textes correspondentes no n.º 3 da revista
de Sá-Carneiro, mas não, certamente, no Orpheu que fosse ou que tivesse podido ser
de Santa-Rita... E uma grave altercação entre os dois pintores se registou então na
Brasileira, a vias de facto, de que o frágil Santa-Rita saiu agredido por um Amadeo
robusto e exasperado pelas suas provocações, provocações; habituais, ao que consta no
anedotário desta brevíssima época. Se em vão Santa-Rita, em 1915, projetou realizar
três conferências futuristas na cola da sua participação no Orpheu, uma delas sobre a
“Torre Eiffel e o Génio do Futurismo”, outra teria sido combinada com Sá-Carneiro que
falaria sobre “As Esfinges e os Guindastes. Estudo sobre o Bimetalismo Psicológico”,
Raúl Leal dissertaria sobre “Teatro Futurista no Espaço”, sem mais nota sobre qualquer
248 100 Orpheu José Augusto França

delas ou sobre a organização, nem de um festival teatral a ela mais ou menos ligado,
com a colaboração do casal Delaunay, que a guerra trouxera também em 1915, no seu
caso ao Norte de Portugal, e que havia, ela, a russa Sónia Delaunay, de ter convívio e
projetos com Amadeo. Ainda uma hipótese conferência sobre “A Arte e a Heráldica”
foi anunciada, da autoria de Manuel Jardim, então regressado de Paris a Coimbra e
que protestou veementemente contra a notícia divulgada em fins de junho, que não
convinha a carreira mais pacata que pretendia conduzir na sua cidade natal, e não sem
opinar contra a gente de Orpheu. Também Francisco Franco e ainda então Amadeo se
encontravam previstos no improvável conjunto.
Mas em abril de 1916, a revista monárquica extremista, A Ideia Nacional, dirigida
por Homem Cristo Filho – um polemista que viria a pretender ter carreira no fascismo
italiano depois de começar a tê-la com o Sidonismo, em 1918 –, apesar da colaboração
que recebia de Almada, como de Soares, Jorge Barradas e Stuart Carvalhais e da direção
artística de Pacheko, atacava os futuristas, “fautores da desordem e da revolução”,
“novos arautos da anarquia”, “sem fé, nem pátria”, que mereciam ser “corridos à
gargalhada, quando inofensivos”, senão “a chicote quando insolentes e perigosos”; o
que lhe valeu uma resposta prudente de Santa-Rita, a garantir “o caráter absolutamente
nacionalista da sua doutrina, o seu carácter absolutamente antianárquico”, tal como
o de Marinetti, cujo trabalho caracteriza nestas expressões. Ele que na sua “vida de
trabalho artístico, de esforço constante e consciente”, “todos de anos para cá, adentro
do futurismo”, afirmava: “Futurista declarado em Portugal há um, que sou eu!”.
Mas logo depois, Almada Negreiros havia de publicar o texto mais escandaloso
de todo o processo do Futurismo nacional, pela personalidade oficiosa que punha
em cena o dramaturgo, poeta e cronista Júlio Dantas, que estreou em outubro,
no Teatro D. Maria, uma peça intitulada “Soror Mariana”, no seu jeito e talento
tardo-românticos (“talento de coisinhas”, escreveu Fialho de Almeida sobre o autor),
devidamente aplaudida, mas pateada por Almada na sala, o que o fez ir prestar contas
à esquadra vizinha (Almada que já criticara Dantas na revista Teatro, dois anos antes).
Depois dessa consequência policial, chegado a casa, na mesma noite, Almada redigiu
o famigerado “Manifesto Anti-Dantas e por extenso”, opúsculo que, por informação
numa carta sua a Sónia Delaunay, só terá sido publicado em maio de 1916, numa
edição logo comprada, em atacado, pelo visado, circulando reduzidamente, ficou
espécie bibliográfica raríssima, mas com largo eco mitológico: “Morra o Dantas!
PUM!” [sic], ficou na memória literária pelos anos fora e até hoje, como se comemora
o seu centenário – não do Dantas mas do Orpheu.
Menos a peça troçada no texto, era o seu autor que interessava a Almada e a todos
os de Orpheu, porquanto Dantas, que produzira teses de formatura em Medicina,
como um estudo sobre os “Pintores e Poetas [internados do hospital psiquiátrico] de
Guilherme Pobre 249

Rilhafoles” e que, pela sua especialização, se achava apto a classificar de “paranoicos”


os poetas de Orpheu – e certamente o artista Santa-Rita, seu parceiro, embora não
mencionado – e cronicara nesse sentido, na Illustração Portugueza (maggazine de
toda a pequena burguesia nacional), a que o diário A Capital dava eco, a 28 de junho:
“Poetas de Rilhafoles eram eles todos”, e já o famoso e popular comediógrafo André
Brun lá se divertira com opinião semelhante, em 31 de março.
Assim ia o microscópico mundo cultural lisboeta, nestes anos de 1915 e 1916,
mais Orpheu 2, menos Orpheu 3, com o malogrado salão de Arte Moderna, que
José Pacheko congeminara, e uma “Galeria de Artes” que ele levou avante no espaço
habitual do Salão Bobone, no Chiado, logo pelo vulgo apelidado sem razão de Salão
dos Futuristas. E, é claro, a exposição de Amadeo, no fim do ano, com o novo manifesto
de Almada, esse a favor do seu jovem amigo – quando tendo sido consagrado no Salão
da Primavera da Sociedade de Belas Artes, o Fado de Malhoa, no fim do ano de 1917,
saiu à rua o Portugal Futurista, logo apreendido, diz-se, à porta da tipografia pela
censura do governo democrático que estava nesse mesmo momento a ser despejado
pela revolução militar de Sidónio Pais.
A revista era naturalmente alheia à movimentação política, se bem que ela se
gabasse de “absolutamente nacionalista”, pela pena de Santa-Rita e um prospeto tivesse
anunciado a publicação com três palavras: “Monarquia”, “República”, “Portugal”, as
duas primeiras barradas a vermelho, e, no seu interior, os “Ultimatun” de Almada
e Pessoa / Álvaro de Campos manifestasse ideias, opções e críticas contra a política
corrente que o “Presidente-Rei” Sidónio, assim glorificado por Pessoa, ia arredar
ditatorialmente... Almada atribuiria à apreensão da revista “palavrões escamados” que
ele empregara no seu admirável texto “Saltimbancos”, mas outras responsabilidades
haveria que invocar para o acontecido no meio da grande confusão daqueles dias
tumultuosos, que, aliás, e em sentido contrário e pior, de mortos e feridos, respondia
aos da Revolução de 14 de maio de 1915, que inspirara o poema “Canção do Ódio” a
Almada, destinada precisamente ao n.º 3 do Orpheu e que ficara inédito.
Portugal Futurista veio dois anos e meio depois, com a exposição de Amadeo e
o Manifesto Anti-Dantas, de Almada, pelo meio, mas, sobretudo, uma “tumultuosa
apresentação do Futurismo aos povo português” (palavras de Almada), na tarde de
4 de abril de 1917, no Teatro República (hoje S. Luís), sob a designação de “Primeira
Conferência Futurista”, da responsabilidade de Almada, mas encenada (digamos,
maniganciada) por Santa-Rita, presente na sala, numa frisa, e dali animando e
ordenando, (“increpando”, escreve Diogo de Macedo) o espetáculo, sua eminance
grize, que Almada, ao lado do palco, apresentou e terá sido recebido por uma “ovação
unânime”. É Almada quem escreve, já se descrevendo a si próprio: “recebido por uma
expontanea e tremenda pateada, seguida por uma calorosíssima salva de palmas que
250 100 Orpheu José Augusto França

cort[ou] de um gesto”... Uma fotografia no-lo mostra vestido com um fato de macaco
de corte clownesco, que passou à posteridade.
As coisas passaram-se mais ou menos assim, numa sala meio cheia de curiosos
dos cafés Chiado e da Baixa, alguns estudantes, com uma popular e vistosa mundana
(negra, ao que parece) contratada para o efeito. O diário A Capital, que já perseguira
Orpheu nas suas colunas, dedicou uma crónica anónima facciosa à sessão, mas atenta
a todas as anedotas que se produziram no seu decurso – tal como os organizadores
desejavam, para marcar o evento. E, nesse sentido, Almada agradeceu à redação,
felicitando também, e “de uma só vez, o público de Lisboa pela brilhante apoteose de
que [foi] alvo”, bem como pelas “extraordinárias aptidões futuristas” que esse povo
português revelara ao ter entendido a intervenção. E Almada anunciava já uma nova
sessão: “espectáculo prático e positivo de Futurismo, em que se resolvam à vista do
público as energias mais assombrosamente cerebrais e as mais fisicamente record” e
que contaria numa segunda parte com “uma comédia futurista” em que participariam,
“interseccionistamente”, os melhores números de variedades atualmente em Lisboa e
ainda outros elementos “espontaneamente civis”. A tal anúncio, a imprensa trocista
acrescentou uma tourada e um filme, ao mesmo tempo que a Illustração Portugueza
chamava “doidos varridos” e “desequilibrados cerebrais” pela pena do tal Acácio de
Paiva, que já troçara de Santa Rita dois anos antes. Chamava isso a Almada e a todo o
grupo, com um destaque muito especial, e anónimo, de uma paródia da conferência
de Almada no Século Cómico. Isso mesmo pretendia Almada Negreiros e, sobretudo,
no caso, Santa-Rita, que preparava o seu futuro de guru do Futurismo em Portugal
que a sua revista Portugal Futurista havia de consagrar meses depois.
Tudo isto está por escrito e repetido por mim e por outros no quadro do Modernismo
português, em letras e artes. Célebres de um lado, as Letras, mais tarde as de outro, as
Artes, no ciclo mais estrito da sua polémica, deu a Amadeo de Souza-Cardozo (mas só
em meados dos anos de 1950, por descuido da geração que o sucedeu e António Ferro
protegeu) o lugar cimeiro que lhe é historicamente devido, mas deixou na penumbra
mais ou menos lendária Santa-Rita Pintor, o herói do Portugal Futurista. A revista
vinha a seu tempo, ano e meio após a falência de Orpheu e seguindo-se a outras duas
também efémeras em Lisboa, a Exílio e a Centauro, de abril a outubro de 1916, ficando
ambas no n.º1. Só um dos colaboradores do Orpheu apareceu em ambas as revistas,
Fernando Pessoa, e os outros eram variados no Exílio – aliás dirigido por um irmão
de Santa-Rita, em mais relações fraternas, o poeta mais ou menos decadentista e
mundano Augusto Santa-Rita, considerado aliás modernista por António Ferro, em
1929, e que viria a ter nome conhecido na Literatura Infantil – e na Centauro, dirigida
por Luís de Montalvor, do grupo do Orpheu, que lhe deu também Camilo Pessanha e
Raúl Leal. Em Faro, um jovem pintor de 20 anos, com bens de fortuna, Carlos Filipe
Guilherme Pobre 251

Porfírio, fez publicar, desde 1917, nos seus princípios, num jornal Heraldo, poesias
de intenção futurista, algo provincianas, mas também transcrever o grande poema
“Litoral”, de Almada Negreiros, ao mesmo tempo que hesitava na pintura que ele
próprio queria fazer. Subindo a Lisboa, a ele se ligou Santa-Rita para ter a sua revista
editada, pondo-o nominalmente na direção. Porfírio seria pintor expressionista
em 1922 numa pequena exposição, depois pintor decorador em Paris até 1939 e
ainda em 1945 e 1949, regressado a Portugal, pôde realizar duas longas-metragens,
pretensiosas, inteiramente nulas, “Sonho de Amor” e “Um Grito na Noite”, que só
em Cinemateca se podem ver (felizmente). No Portugal Futurista de Santa-Rita,
ele terá sido apenas uma vítima inocente, como entenderia Sá-Carneiro, entretanto
suicidado em Paris, vítima de si próprio. Santa-Rita, no seu meio familiar de boa
burguesia – pai funcionário e poeta amador, bem como o irmão, como vimos, e avó
materno e padrinho, conselheiro e Par do Reino, chamado Cau da Costa –, fizera
bem classificada pintura nas Belas-Artes de Lisboa, fora e deixara de ser bolseiro em
Paris, mas lá, logo em janeiro de 1911, mandou como prova de trabalho uma cópia
da Olympia, de Manet, que não deixou boa impressão no júri, ele que se formara na
sua tese em Lisboa com “Édipo e Antígona”, de boa aprovação académica. E foi José
de Figueiredo, que ia a seguir ser diretor do Museu de Arte Antiga, quem diretamente
lhe censurou a má ideia que tivera em copiar tal quadro (no qual há quem entenda
ter começado a pintura moderna no Ocidente). Essa pintura pode ver-se numa sala
na Academia Nacional de Belas-Artes, de que José de Figueiredo seria, em 1935,
presidente inaugural, na sua restauração, mas só muito depois do falecimento do
pintor.
Acamaradando em Paris, nesta altura, com Manuel Jardim, como sabemos, ambos
haviam sido influenciados pela criação manetiana que Jardim havia de assumir
como melhor destino da sua própria malograda pintura, é um ponto para avaliar o
entendimento de Santa-Rita, logo em fim de 1910, após Édipos e Antigonas escolares,
de uma nova situação da pintura, antes de ele próprio mergulhar no labirinto parisiense,
que em 1912 seria almejadamente futurista. A cópia de Santa-Rita, realizada com
suficiência técnica e entendimento do problema pictural posto, no “acordo tonal
usado dos àplats do nu banal”, para além do escândalo da imagem clássica, colocada
em tempos de vivência moderna, baudelairiana, como se diria (que não em Lisboa). É,
como se sabe, das raras obras que Santa-Rita que existe, pois, ao morrer em 1918, ele
pediu à família que tudo destruísse, e mesmo antes, ao seu amigo Saavedra Machado,
que o contou publicamente. Antes de “Olympia”, porém, existe “Orfeu nos Infernos”,
de cerca de 1907, espécie de brincadeira escolar, largamente brochada, com caricaturas
dos professores de Lisboa que, cerca de 1917, ele ainda vendeu ao seu amigo Alberto
Monsaraz, que durante muito tempo o conservou e é hoje curiosidade por demais
252 100 Orpheu José Augusto França

valorizada. Mas de 1912 resta outro quadro, no Museu do Chiado, que tem especial
importância na história da pintura moderna portuguesa. Não assinado e datado, no
verso, de 1910 por mão que não será a do pintor, esta cabeça “cubo-futurista”, tem
sofrido justa discussão crítica por alguma similitude com pinturas de Severini, com
quem Santa-Rita terá tido proximidade em Paris. Oferecido pelo pintor a Manuel
Jardim e pelos seus herdeiros cedido à Secretaria de Estado que sucedeu ao SNI, no
fim do Estado Novo, o quadro passou atualmente para o Museu do Chiado, assim se
salvando como “ícone polémico da Modernidade num país que não podia tê-la...”.
Pintura primeira da sua espécie, assim o escrevi e repito, contando bem os passos
cronológicos de Amadeo de Souza-Cardoso, que, em 1912, data mais provável da tela
de Santa-Rita, ainda não assumira a posição criativa original: cubista sim, e órfica,
nunca definidamente “futurista”), que admiravelmente explodira na sede das últimas
pinturas de 1916/17, na Fundação Gulbenkian. “Esta agressiva cabeça de ave, máscara
africana nos seus bicos, olhos encovados no movimento elíptico do desenho, uma
espécie de vórtice que só dois planos, por similitude cubistas, interrompem e um sinal
de ouvido em caixa de violino pontua, fora de propósito formal ou antropomórfico”;
esta pintura, “no seu jogo de volumes e grafismos”, é uma peça notável dos anos 1910
europeus e uma peça única na pintura portuguesa. Peça milagrosa, considerado o
quadro moroso em que ela poderá ter-se desenrolado, que, em 1918, se acabaram com
a morte de Santa-Rita e de Amadeo, a poucos meses de distância.
No Portugal Futurista foram reproduzidas quatro obras de Santa-Rita, mas não
esta. E perguntar-se-á porquê, tendo em conta a sua estratégia de carreira. Vemos
lá o “Orpheu nos Infernos”, com um comentário laudatório inconsequente, em
que se fala de “fisiognomia mefistofélica”, em que o pintor aprovou ou fez redigir;
“Perspectiva Dinâmica de um Quarto ao Acordar”, de 1912; “Cabeça = Linha –
Força. Complementarismo Orgânico”, de 1913; e “Abstração Congénita e Intuitiva
(Matéria Força)”, de 1915. Se a primeira “obedece a um sistema futurista ortodoxo na
dinamização espacial, em que as ondas de vibração dos objetos têm um tratamento
de ordem cubista” (escrevi-o em 1974), a outras duas peças inscrevem-se no tempo,
entre ou depois, das obras que tinham sido reproduzidas no Orpheu e que no Portugal
Futurista tinha sido definitivamente assumida. Para Santa-Rita era o extremo limite
das suas forças criativas e físicas também, que pouco mais ele duraria, até abril do
ano seguinte, já em “estado gravíssimo de saúde”, como Manuel Jardim escreveu,
informado pelo Professor Vilhena.
Mas a via de colaboração de Santa-Rita no Portugal Futurista foi outra e
indireta, quer pelo seu retrato fotográfico de página inteira, quase a abrir a revista,
convenientemente encenado, quer por dois textos que se lhe referiam de Bettencourt-
Rabelo e de Raúl Leal, que no Orpheu publicara o alucinado texto “Atelier (novela
Guilherme Pobre 253

vertígica)”, como que predisposto para o que da arte de Santa-Rita havia de entender.
E fora no n.º 2 da revista de Sá-Carneiro que o pintor tivera a primeira entrada em
cena, como anunciada “colaboração especial do futurista Santa-Rita Pintor”, com
fotogravuras de “quatro hors-textes duplos”, na medida em que se dobravam a sua
dimensão, de papel couché, nos cadernos do volume. São datados de Paris, “annos”
de 1912 e 1913, dois deles, e 1914, realizados a carvão ou traço de guache branco e
com técnica cubista dos papiers collés. Os originais desapareceram, em incalculável
a perda do património artístico português, porque se trata de quatro peças senão
fundamentais – porque nada fundamentaram ou teriam podido fundamentar em
Portugal – de extrema originalidade no quadro europeu do Futurismo, que delas não
tomou conhecimento historiográfico ou estético, nas mais autorizadas e mesmo mais
recentes pesquisas sobre o grande movimento italiano. Ignorado para sempre (?):
terei sido o único historiador deste período dos anos 1910 a assinalar a presença de
Santa-Rita Pintor, em 1987, numa História da Arte Ocidental – tentada para além das
grandes vias esculturais em que ela tem sido estabelecida na lei dos centros maiores de
produção e da sua pesquisa universitária ou da sua indústria editorial.
Evoquemos primeiramente (como Santa-Rita evidentemente desejava, em
atitude provocatória) os títulos destes trabalhos, que ultrapassam em proposição
ou reformulação teórica (embora inspirados em teses de Boccioni) o quadro
estético do Futurismo italiano: “Decomposição Dinâmica”, “Síntese Geometral”,
“Compenetração Estática”, designam atuações ou reflexões plásticas, em situações
alegadas, respetivamente, de “interseccionismo plástico”, “sensibilidade radiográfica”
ou “litográfica”, ou “mecânica”, que dificilmente poderemos distinguir no exame
das próprias obras. Devendo, porém, entender-se (como escrevi) que se trata de
uma “atitude conceptual”, que ainda assim se não nomeava. A “Decomposição
Dinâmica” (declarada na peça de 1912) é o de uma mesa, adicionado (com o sinal
“+”) a “estilo de movimento” e a obra deixa perceber, em planos geometricamente
opostos, a mesa modelo desfeita. Por que a fez Santa-Rita reproduzir após as
outras três obras, quanto a sua leitura formal e a sua datação a situam à cabeça
do discurso histórico proposto? Trata-se, na sua realidade, de uma proposta
demonstrativa de “interseccionismo plástico”, enquanto as outras três peças, dadas
como demonstrações de “sensibilidades”, provocadas gráfica ou mecanicamente, se
referem a cabeças-modelo. “Estojo científico de uma cabeça”, marcada com insistência
no fator “luz”, pelo “aparelho ocular” + “sobreposição dinâmica visual + reflexo de
ambiente” que se multiplicam (“X”) pela “luz” (é a primeira reprodução de 1914); ou o
seu “interior” “compenetrado”, identificado com o seu “complementarismo congénito
absoluto” (e tem sido a obra mais reproduzida por facilidade de identificação formal);
ou a sua “Síntese geometral [de uma cabeça], multiplicada [“X”] por “infinito plástico
254 100 Orpheu José Augusto França

de ambiente” e [“X”] transcendentalismo físico”, de 1913. A obra de 1915 (no Portugal


Futurista), “Abstracção Congénita Intitiva”, tem referência aparentemente cubista,
na sobreposição dos planos que a péssima reprodução mal deixa ver. Dificilmente
poderemos avaliar a evolução possível, mas devemos sublinhar a situação “abstracta”,
que num título, pela primeira vez, propõe e que denuncia uma nova e desejada situação
estética da criação de Santa Rita. A obra de 1913 tem a lembrança da sobreposição
de planos geométricos de 1912, mas com uma maior e voluntária clareza. É também
uma “decomposição dinâmica”, mas pergunta-se de quê, que a cabeça indicada no
título não a permite desse modo e, em matéria de legibilidade temática, o pintor
oferece-nos, como anedoticamente, em justificação do aludido “complementarismo
orgânico”, um par de bigodes saíndo de uma “linha – força” que corta a composição
na diagonal. Mas, no seu conjunto gráfico, a peça apresenta uma qualidade superior
às obras da revista Orpheu. Não vou insistir na descrição destas peças porque há que
as ver, há que olhá-las; elas estão reproduzidas na revista Orpheu, e na sua reedição.
Estão, portanto, ao alcance de todo o nosso conhecimento e são as únicas provas que
existem das referidas peças, malgrado a sua enorme importância.
No Portugal Futurista, Santa-Rita Pintor, depois do retrato já mencionado, contava
sobretudo com o artigo de Bettencourt-Rabelo, que, sob a sua simples denominação
assumida de “Santa-Rita Pintor”, em seis notas de I a VI, estabeleceu a sua hagiografia.
Começava o artista “por nos surpreender” pela sua “sensibilidade mediumnica”,
“antena da sensibilidade universal”, passava a ser declarado um “denominador”, em
cuja “emoção há serenidade”, depois “artista que o génio da época produziu”, o seu
“espírito de adivinhão latino”, como ele próprio se define, “é como um buzio onde a
intuição resôa”. Depois ainda é dito: “personalidade complexa”, que na sua arte nos
dá uma “interpretação emocional e filosófica dos objetos”, “a configuração abstrata e
harmoniosa que lhes é própria”; a seguir assegura-se de que “a sua vida de pintor tem-se
desenvolvido n’uma evolução contínua”, como as “metamorfoses do bicho de sêda” e
que “as raças afirmam-se pelos genios que conteem”, “Portugal que é uma raça, deu
tambem a esta época um representante”: Santa-Rita Pintor. Assim, ele “traz consigo
a coragem e o orgulho de uma raça”, em conclusão, numa nota, garantindo-nos, no
fim, que “N’ele o Futuro é já Presente…”. Assim, de ponto em ponto, a imagem de
Santa-Rita se afina: “espírito renovador”, “genial temperamento”, ele “faz-se vertigem
perante a vertigem, mas domina a vertigem”; “é um iluminado que se afirma, que
electrisa, e atrai, e convulsiona a vida”. E “tão forte era o seu Pensamento e o seu
Espírito de Europeu, de homem moderno, que “um dia rompeu e inutilisou a Forma”.
E seria (no ponto IV da prosa) “a sua arte um lirismo geométrico” em “desejada
definição”. O signatário destas duas páginas destacadas em tipografia era um jovem
e sossegado poeta açoriano, de “odes” e “canções” publicadas em voluminhos, e
Guilherme Pobre 255

que viera à Capital, apresentado por Carlos Porfírio no Café Martinho (ao lado do
Teatro Nacional) a Santa-Rita e logo por ele foi convidado para “redacteur-en-chef ”
da sua revista, que “nos ia pôr em contacto com a Europa!”. Não o foi, nem editor
responsável, posto atribuído a um anónimo (se existente) C. Ferreira. Mais tarde,
em 1928, ele recordaria num livro de crónicas e memórias, O Mundo das Imagens,
o fascínio sofrido, tal como e principalmente, conta ele, o sofreu Almada Negreiros.
Depois ainda, em 1929, Bettencourt lançaria um magazine medíocre que ficou no
primeiro número, chamado Lisboa Galante, sem mais notícia até morrer, em 1969.
O autor de outro texto consagrado da revista era Raúl Leal: “L’Abstraccionisme
Futuriste. Divagation outrephilosophique – Vertige à propos de l’oeuvre géniale de
Santa Rita Pintor, “Abstraction Congénitale Intuitive (Matière-Force)”, la suprème
réalisation du Futurisme” refere-se à obra que vimos mal reproduzida na revista.
Era “L’Abstraction Futuriste” que o autor declarava alcançada nesta obra: Santa-Rita
“concebeu em síntese a irrealização integral de toda a teoria futurista sobre a vida!”.
Raúl Leal teria correspondência com o próprio Marinetti, a quem ele queria converter
às suas teorias, mais teosofistas, a certa altura. Trinta e nove vezes a palavra ‘Vertige’
é avançada neste breve texto de duas páginas, redigido em excelente francês, que o
“Vertiginisme” está mais para além do “mais o Futurismo pode dar”, “concebendo
então perfeitamente o “concrét-en-abstrait” – Vértige, “où il n’ya a rien de physique”. E
nisso “Santa-Rita Pintor “est un futuriste outré, son génie est la quintessence du GÉNIE
FUTURISTE!”. Raúl Leal (que, em 1924, se ocuparia também d’“a luxuriosa loucura de
Deus”, em Mário Eloy, falando do seu “ultra-Futurismo” – que já está historiada – e ainda
nos anos 1950 ele se debruçaria sobre o Realismo em convívio com Mário Cesariny) foi
o único dos grandes de Orpheu a ter, na altura, voz significativa a favor de Santa-Rita,
numa admiração sincera e fascinada, que ainda quarenta anos mais tarde se manifestará
em artigos da revista Tempo Presente, no n.º 3, em 1959, a insistir na “ética pessoal e
dignificadora” do seu “grande Amigo e admirável Artista”. Pouco depois, na mesma
publicação, Raúl Leal revelará uma magna obra com que Santa-Rita então sonhava: “O
Papão”. Tratar-se-ia de grandes pinturas a fresco, no Mosteiro dos Jerónimos, “desenhos
coloridos informes (…), que dessem imediatamente a forte impressão alucinatória
desse mundo astral, apavorante, expresso em abstrato, que evocassem (…) o mundo
abismicamente espectral que perturbava exaltadamente as imaginações delirantes dos
nossos antigos navegadores…”. Estamos em 1917, durante a congeminação desta grande
obra, de que Raúl Leal teria guardado a lembrança. “Soberbo sonho pictural”, Santa-Rita
levou-o consigo ao morrer logo três meses depois da publicação de Portugal Futurista.
“– Serão febres de África, senhor Doutor?” – “Ah, o Senhor Santa-Rita está em África”,
acudiu o médico desesperado com o complexo quadro clínico do moribundo. “– Não,
nunca lá fui…”. Foi a última anedota que sobre Santa-Rita correu em Lisboa…
256 100 Orpheu José Augusto França

No mês seguinte à sua desaparição (para ser publicado num In Memoriam de


um só autor, logo em 1919), outro modesto publicista seu amigo, poeta, ficcionista,
crítico, cronista meio simbolista, de “rezas d’ espumas de sarcasmo” – A Esmeralda
de Nero, publicado em 1915 –, e funcionário colonial de emprego contrariado, Carlos
Parreira (que Santa-Rita dizia ser o “único génio” que ele conhecia) escreveu sentidas
palavras da maior admiração. O pintor era para ele lembrado como o “representante
legitimo d’essa espécie de exilados, sempre feridos pelo gume das cousas circundantes,
sobrepairando numa atmosfera de abstrações e desdéns”; “figura grácilmente exangue
de fim de raça”, “voz de hemoptise”, “fronte de um palôr de camélia banca”, de “gestos
hiper-inquietos”, estridentes”, “alguém que nos domínios da Emoção e do Pensamento,
os fados sagraram um gran-senhor”. É, como tal (“figura negra de espectro, meio
Hamlet, meio espantalho”) que outra testemunha da época, um tal Rui de Aragão, o
vem a descrever, mais tarde, na revista Aventura, em 1940, onde Santa-Rita aparece
num auto-retrato desenhado, de cabeça afilada, duplamente traçada, cabeleira farta,
porte de dandy (n.º 2, 1942)…
Todas estas prosas circunstanciais de santificação valem o que valem, de emoção
e de estilo de época, que não podia ser futurista num “decadentismo” que lhe fora
ponte de passagem do séc. XIX, que se terminava sem se saber como, num Portugal à
procura de salvações, não só políticas, e mergulhado numa guerra alheia para salvar
as colónias mais ou menos próprias. Uma guerra “higiene do mundo”, para manifestos
sem consequências, a não ser, dramática e miseravelmente, para os lapuzes do Corpo
Expedicionário, “malta das trincheiras”, carne de canhão, “Joões Ratões” sacrificados.
Nanja para os poetas futuristas que manifestavam, sem darem corpo ao manifesto,
nem voluntariato à incorporação, fossem eles quais fossem, geniais como Pessoas,
Almadas, Amadeos. Não, porém, a fraca figura de Santa-Rita que, numa anedota que
também corria, não tinha corpo, era só o fato… E, para além dos textos hagiológicos,
logo publicados e sem leitores (e que temos que achar francamente medíocres em
termos literários – Raúl Leal à parte, bem entendido), as anedotas foi o que restou
do “Guilherme pobre”, cuja obra, jamais exposta individual ou coletivamente, a
seu derradeiro pedido, foi destruída pela família, derradeira atitude também de
auto-lendificação, mas também, certamente, de insatisfação, se não de dúvida, quanto
ao que pudera realizar.
Em 1965, no centenário de Orpheu, Almada Negreiros publicou memórias e
comentários e nelas coube a lembrança breve de Santa-Rita como “um dos mais
extraordinários espíritos que conhec[eu] em toda a [sua] vida”, vendo em “ele ser só
espírito afinal e a sua genial coerência”. Almada acrescentou que “cort[ou] relações
pessoais com quem se bastava com a notoriedade de andar por aí a brilhar com
‘histórias do Santa-Rita’, provocando gargalhadas e ignaro do magistral que nessas
Guilherme Pobre 257

mesmas histórias estropiadas ainda existia”. Porque tinha sido com ele, Santa-Rita, e
com Amadeo que Almada fizera juramento de estudar os painéis de Nuno Gonçalves,
rapando então, à navalha, os cabelos como “selo do nosso pacto!”. Assim se esboçou
– não pode saber-se com que grau de consciência dos outros dois comparsas – o que
viria a ser o leit-motiv da criação almadina.
Não foi diretamente Santa-Rita que Almada teve que falar, ele que lhe dedicará,
e a Amadeo, a conferência sobre o “Modernismo”, realizada em 1926, mas em seu
nome o fez quando, em 1932, à vinda de Marinetti (“académico do Fascismo italiano”)
a Lisboa, trazido por António Ferro (então a preparar-se para o Secretariado da
Propaganda Nacional, com a sua proposta de “Política do Espirito”), “em habilidades
do seu programa pessoalíssimo” – palavras do Almada –, veementemente protestou
nas colunas do Diário de Lisboa contra o ­­­­­­“ameno sarau mundano para deleite dos
pompiers nossos amigos”, realizado ante os três mais categorizados inimigos do
Futurismo em Portugal e que eram, além do António Ferro– editor menor do Orpheu
–, que trouxera o Marinetti, e de Adães Bermudes, presidente da Sociedade Nacional
de Belas-Artes, onde a sessão teve lugar, também, academicamente, Júlio Dantas,
o fantasma de 1915, “em memória dos nomes heroicos do Futurismo português”,
Almada Negreiros falou em palco.
Estamos em 1932. Vinte anos depois do centenário do Orpheu e cinquenta anos
depois do episódio Marinetti, alguém, um jovem José António Sampaio (que não
conheço), nas páginas da revista portuense Nova Renascença, em 3 de março de
1983 (n.º7), chamou à atenção para Santa-Rita, num artigo bem informado no seu
entusiasmo e que provocou reação imediata de João Gaspar Simões, no Comércio
do Porto (3 março 1983). Gaspar Simões que, achando ser “pecha dos portugueses
exaltar o valor dos que pouco ou nada fazem para, assim, pôr em cheque o valor dos
que muito realizam”, recusou a “reabilitação” dessa “espécie de símbolo clownesco do
modernismo órphico, que representa um dos maiores vícios da mentalidade nacional:
a inércia”, deste Santa-Rita; que “nada nos legou, além de um fabulário anedótico” e
cuja obra “nada representa, nada é”. Não será, com certeza, a última manifestação de
um desentendimento crítico fundamental que, na pena de quem se assumia como
a revista presença, “Nós, a presença”, 1935) – na altura a publicação de referência do
Modernismo da geração anterior – tem particular gravidade, no mesmo momento
em que Fernando Pessoa, nas páginas do lado da revista Sudoeste SW, de Almada
Negreiros, assinava como “Nós, os de Orpheu”, entre os quais Santa-Rita (não é
mencionado), para ele a “alta sensibilidade moderna”, “inteligentíssimo e muito
pitoresco”, do convívio havido em Lisboa, em 1915. Quanto a Santa-Rita, escreveu,
em setembro de 1915, “Orpheu não acabou, Orpheu não pode acabar”. Tratava-se de
surgir outra vez, à superfície, mais adiante.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu?
Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro
(com publicação de carta inédita a António Quadros)

José Eduardo Franco


CIDH / Universidade Aberta / CLEPUL1

“Ilha próxima e remota


Que nos ouvidos persiste
Para a vista não existe
Que nau, que armada, que frota
Pode encontrar o caminho”.
Fernando Pessoa

“Como as sereias temos uma dupla natureza – somos carne e pedra.


Os nossos ossos mergulham no mar”.
Vitorino Nemésio

“Logo, conhecem-se por Lusitanos os mestres daquele novo lar que


é como o retrato, a imagem, a figura de Ares, o campo luminoso e
fértil do Carneiro, onde o Pastor se recreia, atua e exalta alimentando
os Cavaleiros da Luz, os intrépidos vencedores da Treva, aqueles que
jamais renunciarão ao cimbório refulgente do Amor.”
Vasco da Gama Rodrigues

A tradição literária das ilhas atlânticas dos Açores e da Madeira contribuiu de


forma peculiar para aquilo a que chamamos a História das Ideias de Portugal2. É mais
conhecido o relevante contributo de autores da literatura açoriana, seja em prosa seja
em poesia, para pensar Portugal a partir do eixo atlântico insular, ou participando
em círculos culturais do Continente, onde a preocupação com o presente e o futuro
do país tem estado no centro da reflexão patente na sua produção filosófica-literária.
Neste quadro, destacaram-se autores açorianos que reivindicaram a centralidade dos

1 CIDH – Cátedra Infante Dom Henrique para os Estudos Insulares Atlântico e a Globalização/Universidade
Aberta/CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
2 Sobre este campo de pesquisa e análise, têm já vindo a lume diversos estudos e propostas de sistematização.
Recordamos aqui a nossa recente obra coletiva, onde apresentamos um elenco bibliográfico para dar a
conhecer este vasto território de investigação (FRANCO, J. E. e CALAFATE, P., 2012).
260 100 Orpheu José Eduardo Franco

Açores numa futura e profetizada regeneração de Portugal, num tempo em que o país
se reabilitaria da hiper-diagnosticada decadência dos últimos séculos e da perda do
lugar cimeiro no xadrez das nações, ou da posição de liderança mitificada e situada na
Idade de Ouro proto-moderna que teria ocorrido há cinco séculos.
É bem conhecida a contribuição de uma desconcertante autora açoriana na
segunda metade do século XX para a literatura portugalófila, reivindicando uma
recentração do Portugal futuro, que se redimirá da Idade de Ferro em que persiste,
no eixo insular representado em ilhas açorianas (São Miguel e Santa Maria). A
irreverente escritora Natália Correia metamorfoseia assim a utopia do Quinto
Império de Vieira numa perspetiva feminina. É, na verdade, mais no Quinto Império,
na versão mística e esotérica de Pessoa e de Agostinho da Silva, que Natália Correia
assenta a sua ideia, acentuando a sua inscrição no profetismo joaquimita – que
anunciava a Idade do Espírito Santo identificada com essa anunciada plenificação
da História – sob égide portuguesa, tendo como eixo de partida as ilhas açorianas:
“Consideremos que os homens que acham os Açores, e dão nomes às suas ilhas
são da confiança do Infante, por conseguinte impregnados da mística pentecostal
adoptada pela Ordem de Cristo que recebe dos Templários e dos Franciscanos. É
caso, pois, para perguntarmos se logo nos nomes que deram às duas primeiras ilhas
achadas – Santa Maria e São Miguel – não teremos um pórtico para a formação
de uma comunidade que testemunharia os primeiros passos expansionistas para a
fundação do Reino do Espírito Santo na história, projeto que seria o motor místico
dos rasgos descobridores do Infante”3.
Além desta inscrição insular do ponto de partida para a regeneração da humanidade,
Natália Correia oferece como novidade a perspetiva feminista do Quinto Império, ou
seja, esta será uma idade feliz na terra porquanto orientada por valores característicos
do universo feminino. O fundamento é dado através de uma afirmação ontoteológica
axiomática que considera a terceira pessoa da Trindade Divina como o lado feminino
de Deus, que inspirará a consumação da História4.
O outro aspeto peculiar que nos interessa aqui sobremaneira é o papel refundador
do Portugal futuro e do mundo novo que o nosso país protagonizará, realizado a partir
do arquipélago açoriano e do seu eixo místico-profético, constituído por Natália como
ponto de partida para que se opere uma renovatio temporum da história da humanidade.
Se é mais conhecida na cultura açoriana a afirmação de uma literatura e de uma
identidade própria, assim como a sua contribuição distinta e distintiva para a identidade
nacional, quer diferenciando-se desta quer complementando-a com vantagem,

3 CORREIA, N., 2005.


4 FRANCO, J. E., 2005.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 261

é muito menos conhecido o contributo de autores madeirenses e da sua literatura


regional para a História das Ideias de Portugal em perspetiva insular.
Todavia, a Madeira também gerou escritores que pensaram com preocupação
aguda a deriva histórica de Portugal depois da afirmação moderna como país-líder da
Europa, em direção a uma secundarização fruto de uma decadência que teria tornado
a pátria lusitana uma sombra do que foi5.
Assim como fizeram autores açorianos como Natália Correia, escritores madeirenses
houve que acrescentaram à tradição de pensamento sobre Portugal, e, especialmente,
sobre o seu destino futuro, uma historiovidência ligada a uma teleologia marcada
por uma ideografia insular, ou seja, que coloca o universo insular atlântico como o
centro recriador de carácter mítico-utópico para a regeneração portuguesa e para a
consumação da história humana.
Como enquadramento daquilo que podemos designar como uma antropologia
insular, importa sublinhar que, na Madeira, a relação do homem com o meio natural
modelou uma espécie de psicogeografia, em nosso entender, ou uma psicologia
com tonalidades específicas. Esta relação psicogeográfica comunga certamente das
características gerais da psicologia idiossincrática do homo insularis. Ângela Almeida
já tinha analisado esta relação simbiótica entre mentalidade e geografia na sua tese
de doutoramento, que aqui destacamos: “A origem líquida que caracteriza todo o
ilhéu marca, para sempre, a sua identidade. Para o homem, a ilha não se reduz ao
espaço sólido; antes, completa-se no mar que a prolonga. Quando o ilhéu se ausenta
da ilha e vive num continente, é como se a outra metade de si próprio tivesse ficado
na ilha. Apesar da luta interior pela adaptação a um novo espaço, no inconsciente do
indivíduo insular, acentua-se a ausência de mar”. Por outro lado, continua a autora,
a coexistência do mar em forma de ligação umbilical com a ilha “relembra a função
materna e, por isso, fecundadora da água”6.
A ideia de ilha está envolta numa forte simbologia modeladora, que faz eco de
certos arquétipos míticos primordiais. A imagem geográfica da ilha aparecendo no
meio do oceano e existindo enquanto território rodeado de água projeta nela a ideia
de nascimento, de maternidade genesíaca e na sua envolvência a origem líquida
primordial do universo e da criação da humanidade7. Assim, a ilha ganha uma
dimensão simbólica uterina, criadora, umbilical, de centro do mundo, uma dimensão
caldeada no inconsciente coletivo e exteriorizada “através da saudade da primeira Mãe,

5 Cf. FRANCO. J. E., 2013.


6 ALMEIDA, Â. D., 2005: 123.
7 Cf. ELIADE, M., s/d: 36, 58 e ss.
262 100 Orpheu José Eduardo Franco

água”, do regresso à “tellus mater”8, com quem se tem uma relação filial, de devoção,
de imitação e de desejo de regresso à ilha-mãe-natal, como uma espécie de fatalidade9.
Gilbert Durand, noutro ângulo, considera que “todas as imagens da terra e da água
contribuem para constituir uma ambiência de volúpia e de felicidade que constitui
uma reabilitação da feminidade”. Por isso, “o eterno feminino e sentimento de natureza
caminham lado a lado na literatura”10. Como já escrevemos noutro estudo, “a ilha detém
um capital simbólico de que decorrem potencialidades utópicas poderosas. A ilha é ao
mesmo tempo o lugar do paraíso, mas também a possibilidade da sua recuperação, isto
é, a possibilidade de uma nova criação”11. A ilha é também associada à noção de lar, de
aconchego materno, de casa íntima, do descanso, da regeneração da alma e do corpo,
a morada do amor, da harmonia, da liberdade e até da libertação dos sentidos, espaço
protegido da história turbulenta e fraturante dos continentes”12.
O campo simbólico da ilha representa uma realidade unificante e unificada, um
símbolo de agregação. De acordo com os dados da psicologia arquetípica de C. G. Jung,
o território insular insere-se no conjunto de símbolos de unidade13. A ilha é o lugar
recatado, separado, sagrado, onde, longe da confusão, se realiza a unificação do disperso.
É o lugar privilegiado de intermediação entre o humano e o divino14. Em suma, o
potencial simbólico do genus locii insular faz desta geografia simbólica o lugar de paz, de
fraternidade, no fundo, “um lugar capaz de Deus”. Talvez por isso mesmo o conceito de
Utopia ideado por Thomas More situe numa ilha a construção de uma sociedade ideal15.
Um desses autores madeirenses que pensou Portugal, tendo como pano de fundo
a sua origem insular, foi o hoje desconhecido Vasco da Gama Rodrigues. Funcionário
público, mas apaixonado pelo mundo das Letras e da História, conviveu com poetas
que vinham do Círculo do Orpheu, nomeadamente Fernando Pessoa, e partilhou das
suas preocupações relativamente ao Portugal em estado de nevoeiro de então. Nascido
a 27 de janeiro de 1909 no Paul do Mar, fez a formação liceal na capital madeirense
e viveu em Moçambique, mas acabou por se radicar em Lisboa, onde se tornou
funcionário do Secretariado Nacional de Informação. Como funcionário público

8 Cf. ALMEIDA, Â. D., 2005: 127.


9 Cf. Ibidem: 276 e ss.
10 Cf. DURAND, G., 1989.
11 FRANCO, J. E. e GOMES, C. C., 2007: 57. Cf. NEMÉSIO, V., 1932.
12 Cf. BACHELARD, G., 1942: 333 e ss.
13 JUNG, C. G., 1956 e 1989.
14 ALMEIDA, Â. D., 2005: 172.
15 Cf. MORUS, T., 1961.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 263

desta instituição chegou a desempenhar o cargo de inspetor da secção encarregada da


área hoteleira. Faleceu a 3 de maio de 1991, em Lisboa.
A par da sua atividade profissional muito burocrática interessou-se pela literatura
e pelo jornalismo, tendo colaborado no Diário da Madeira e no Diário Popular, onde
tratou assuntos de ordem vária, desde os de carácter económico e social até temas de
identidade e de cultura.
Para além da publicação em periódicos e de uma obra que parece ter ficado
inconclusa, com o sugestivo título A Reforma do Mundo, a sua ligação a Fernando
Pessoa, a Luna de Carvalho, a Agostinho da Silva e a António Quadros faz-se também
pela semelhança do esquema hermenêutico que preside ao diagnóstico negativo sobre
os últimos séculos da história portuguesa e da aguda percepção de quebramento
nacional da época. Esta leitura decadentista e a sua visão da história futura de
Portugal é realizada em três pequenas obras publicadas, duas das quais em vida, com
os seguintes títulos: Atlantes (1961) e As Três Taças (1972); a obra póstuma Cristo das
Nações, publicada em 1995, completa a tríade.
Se há semelhança da sua poesia profética e utópica com o diagnóstico dos poetas
do Orpheu e com os juízos agudos dos autores da Filosofia Portuguesa com quem
se corresponde, avultando nesta correspondência a camaradagem com António
Quadros, Agostinho da Silva e Júlio Fragata, encontramos uma peculiaridade
distintiva na forma como intui o futuro de Portugal no eixo mítico-simbólico de
onde deverá partir a reabilitação do nosso país. À semelhança de autores homólogos
açorianos, Vasco da Gama Rodrigues confere uma centralidade atlântica e insular na
assunção do Portugal futuro.
No seu primeiro livrinho, Os Atlantes, apresenta no capítulo inicial, intitulado
“Lusitânia”, o Portugal primigénio, as origens heroicas do povo Português, ou melhor,
o Proto-Povo Português, ou seja, os Lusitanos; no segundo capítulo, “Portugal”, este
é concebido como povo-líder da Europa na Modernidade, sendo os portugueses
os construtores de um mundo unido pelo conhecimento da geografia planetária; e
o terceiro capítulo, dedicado à Atlântida, profetiza ser a hora de erguer o Portugal
futuro, ou o império do Mar com o vigor dos portugueses do futuro, os Atlantes16, que
emergirão da ilha encantada, no meio do atlântico, e construirão o Império do Mar.

16 O etnónimo “Atlantes” designa na acepção de Vasco da Gama Rodrigues os habitantes da Atlântida, ou os que
descenderão deste ilha-continente que emergirá do Atlântico, que serão os cidadãos construtores do Portugal
e do novo mundo futuro. Todavia, o nome próprio “Atlante” tem uma ressonância mítica que remete para
o gigante assim denominado na mitologia grega como um dos Titãs, filho de Jápeto e Climanes. Era quem
tinha sido encarregado por Zeus para segurar as colunas celestes onde assenta a Terra. Por seu lado, existe
outra tradição em versão feminina, que faz das Atlantes as filhas de Atlante, as quais alvo de um rapto pelo
rei do Egito, Bursiris, e depois devolvidas a seu pai por Hércules que as resgatou. Outra tradição ainda chama
Atlantes aos habitantes da Mauritânia no território ocidental de África, que teria sido governado por Atlas.
264 100 Orpheu José Eduardo Franco

Inscreve-se a sua ideografia da antiguidade portuguesa na corrente lusitanista que


desde o século XVI, com André de Resende e outros humanistas, situa as origens de
Portugal na chamada primigénia pátria Lusitânia, retrotraindo os começos do país a
uma antiguidade pré-romana17.
Fazendo eco de autores antigos e modernos que focaram a Lusitânia, no extremo
ocidente do continente europeu, como detendo características geográficas e climáticas
especiais, o lugar de descanso das Hespérides que desfrutavam as maçãs de ouro que
Hércules teve de roubar, Vasco da Gama Rodrigues acentua o carácter mítico do
território dos Lusos, descrevendo-o esotericamente como um lugar iniciático, uma
verdadeira natio onde a luz natural, de per si única, oferece uma visão especial aos que
ali nascem. Canta assim na epítome inicial do livro:

“A Lusitânia é o lugar do fogo sagrado da Terra, o Lar eterno do Povo da Luz. Éden do Mundo,
original e criador, tornou-se o alvo da cobiça, ambição e inveja de todos os contrários, ou
seja, de quem é natural ou pertence ao paralelo oposto e, portanto, ausente de Luz.”18

Viriato é definido como o proto-português, chefe tribal e herói afrontador do


Império Romano que queria dominar toda a Ibéria, o primeiro a defender o seu povo
da cobiça das potências estrangeiras que ao longo dos séculos, em versões, modos
e proveniências variadas, vão tentar conquistar a Lusitânia. A obsessão estrangeira
de garantir o domínio deste território é uma estratégia ideográfico-literária, usada
por alguns ideógrafos da nacionalidade portuguesa, para evidenciar historicamente o
quão especiais e desejadas eram esta terra e este povo19.
Ao retratar poeticamente a paixão consumada de Viriato por Luzia, recorre a
uma linguagem toda ela simbólica, em que a etimologia das palavras transporta
mensagens e estados que depois são usados para avaliar a incidência ou
distanciamento do modelo ideal origem em perspetiva de fundo platónico. A sua
poesia é de tom esotérico, visando revelar o Portugal primordial, escondido ou
mesmo oculto:

“Neste recanto solitário e distante


Onde a Ibéria acaba
– A Oeste –

17 Cf. FRANCO, J. E., 2000: passim.


18 RODRIGUES, V. G., 1961: 13.
19 Um dos autores que recorre de forma bem enfática a esta estratégia é precisamente Fernando Oliveira, na sua
primeira História de Portugal, escrita em torno de 1580. Cf. FRANCO, J. E., 2002-2006.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 265

Anda Viriato – viril adolescente –


Inquieto, ansioso, ardente,
Em busca de uma doce noite nupcial,
Preso de Amor pela divina Luzia,
A Senhora aos pés de quem se humilha a Treva”. 20

Viriato é a figura prototípica do português viril, é a personificação do modelo


heroico da virilidade por excelência, e Luzia é a luz da sabedoria. Quando a história
portuguesa não manteve esta união (quebrada com o rapto de Luzia) entre a força
viril, corajosa e empreendedora com a sabedoria que sabe ponderar, mas também
criar e ver mais longe, o país sucumbiu ao domínio e aos interesses que lhe eram
estrangeiros, amoleceu a sua ligação ao fogo primigénio, enfraqueceu e tornou-se
sombra. Eis, portanto, a base da explicação esotérica da decadência portuguesa,
que se explica pela descontinuidade na ligação às origens e aos dois grandes tempos da
história exemplar de Portugal: a idade mítica heroica das origens lusitanas e a idade de
ouro das descobertas e dos seus valorosos portugueses, vencedores dos mares ignotos.
No capítulo dedicado a Portugal, é a saudosa pátria dos descobrimentos, ponto de
chegada da fundação desta pátria para grandes feitos ao serviço da humanidade, que
será agora descrito como o Portugal traído, arruinado. Na gesta do desbravamento
dos mares e da criação da era da proto-globalização, o autor encontra o sentido da
missão portuguesa e da razão de ser histórica e mística da existência desta nação:
ser mensageiro universal do Amor.
Atribui a Portugal o estatuto de cabeça da Europa. Esse lugar de cabeça e logo fronte
permite-lhe explorar simbolicamente o exercício de três sentidos fundamentais para
a estratégia de afirmação pioneira da Europa no mundo: a boca que respira, os olhos
que veem e a cabeça que é consciência. Nas palavras mesmas do autor: “Portugal a
cabeça, cuja fronte patenteia três sentidos, o que respira, o que concede a palavra e o
da visão, é o Consciente da Europa [...].” Portugal é visto como cabeça, coração, mas
também é força capaz de fazer vencer o ideal para que foi fundado:

“Encarnação de Marte – o Mestre da Força, da Ação e da Luta – é o estratega excelente, o


criador das Quinas, dos Escudos ou Heróis, o construtor eminente dos Castelos – a sua
invencível Fortaleza – e o realizador, por mérito próprio, do seu nobre, glorioso e ariano Solar.
Representando o princípio masculino, a força centrifuga, o movimento de trasladação é o
génio do Amor, da Aventura e da Saudade, o protetor dos Argonautas, o Siva da Fé, aquele

20 RODRIGUES, V. G., 1961: 15.


266 100 Orpheu José Eduardo Franco

que debruçado na sua Ponte-Cais olhando fixo o cristalino do Mar avista ali, diante de si,
num só ponto, os quatro pontos cardeais, a par da vitória daqueles Argonautas contra todos
os Titães e contra o próprio Mestre da Morte e dos Infernos e, por fim, como prémio, o
mundo-terra a seus pés.
Portanto, os Portugueses – os homens dos portos – vencedores do Mar Tenebroso e
descobridores dos quatro caminhos do Mundo, foram os construtores, os instituidores, os
fundadores do império.”21

O tempo que sucedeu a este tempo glorioso é o tempo que no presente se


experimenta: o enfraquecimento de Portugal e a perda da sua dianteira na liderança
das nações. Hoje Portugal é uma sombra do que foi, mas clama para continuar a
cumprir a sua missão, entendida como estando inconclusa.
Este quebrantamento português é bem descrito simbolicamente na parte
intitulada “Letargia”, onde ecoa um tom dramático e apocalíptico, dado/conferido
pelas figuras-símbolo e estados críticos utilizados poeticamente:

“Àquele passo triste e doloroso,


Um outro infausto sucedeu:
Os quatro Cavaleiros da fome cavalgando
Turbulentos, inquietos e furiosos
Vão por aqueles senhorios semeando
O infortúnio, a dor e o luto.
Porém, o Carneiro sonolento, de seu leito
Não desperta, agora ausente o Pastor.
Olhem o velho Povo da Luz, a Luz traída,
Sujeito a dura escuridão!
Como seus olhos vendados pela Treva
Num mar de lágrimas, sem brilho estão!
E agora vejam como o Califa voluptuso
No silêncio da noite escura contra aquele avança.
Mas o Carneiro sonolento, de seu leito
Não desperta, ainda ausente o Pastor!”22

21 Ibidem: 25.
22 Ibidem: 27-28.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 267

O terceiro capítulo desta obra cheia de figuras-símbolo, ansiando messianicamente


por um líder restaurador personificado no Pastor ausente, que faz lembrar mutatis
mutandis a Mensagem de Pessoa, vem revelar que o futuro de Portugal, o seu profetizado
futuro glorioso, está escondido no Oceano à sua frente. Recupera o significado simbólico
do mito da Atlântida e da sua associação sebastianista à tradição profético-mítica
do Encoberto para apresentar uma versão peculiar deste profetismo nacionalizante
português. Sendo os portugueses, mormente os portugueses da Idade de Ouro dos
Descobrimentos, os homens do Mar e, que no Mar tiveram e deveriam ter timbre da
sua glória, entende que o futuro de Portugal está no mar. E do mar, de um território
mítico insular, virginal, imaculado, virão os homens do futuro. Assim antevê o autor:

“Reino de Mar, abrange todo o oceano desvendado pelo Argonauta, por aquele que,
ardendo em fé, deixou certa vez o porto de Portugal em busca do sagrado vaso do amor
imortal João – o Prestes. Ilha encoberta, diluída sobre todo o espaço da Terra, é a Pátria do
Ar – o Terceiro grau o Ar –, a Essência Quinta mergulhada em sonhos isentos de manchas,
sombras e terra, o centro autêntico da inteligência da redenção universal, o núcleo do
Coração generoso do Homem sem limite nem lugar. [...] Ora os Lusitanos, os homens dos
portos, os descobridores do mar vivo e da Ilha Encoberta – a Pátria da Essência Quinta –
como todos os discípulos da última pessoa da Trindade, chamam-se ATLANTES”23.

Aqui se encontra um aspecto que, para lá da profecia de um território aquoso para


a realização teleológica da vocação da pátria portuguesa, afirma um outro território
ainda mais etéreo, configurado no conceito de Pátria do Ar. De algum modo, vemos
aqui, para além da visão essencialista patente na ascendente gradação dos elementos
fogo/terra/água e ar, o papel crescente da aviação na afirmação das potências hodiernas
pelo domínio dos ares24.
De qualquer modo, é interessante observar a gradação histórica oferecida
simbolicamente pelos quatro elementos explorados para efeito de caracterização
dos grandes tempos de Portugal: o fogo corresponde à terra sagrada e primordial da
Lusitânia, a terra coincide com a afirmação histórica de Portugal, a água é o elemento
simbólico para traduzir o tempo épico do seu império marítimo, e o ar a ascensão
futura a partir do oceano, para cobrir a terra com o império pneumático, ou seja,

23 Ibidem: 35.
24 Podemos estabelecer alguma aproximação a um outro autor madeirense, Abel Tiago Vasconcelos e Sousa,
que tinha escrito em 1924 uma obra teleológica com o nome Sinais dos Tempos, onde preconiza, eufórico com
as pioneiras viagens áreas de cruzamentos dos ares entre continentes de Gago Coutinho, que Portugal e o seu
Quinto Império passará pelo domínio dos ares, através do desenvolvimento da tecnologia aeronáutica sob a
liderança portuguesa. Ver SOUSA, A. T. V., 1924.
268 100 Orpheu José Eduardo Franco

a idade do Espírito Santo. Na visão mística do futuro, Portugal e a humanidade


realizam-se na etereadade, numa era espiritual de amor puro, estabelecida pelo
regresso do Encoberto, que se levantará com a emersão da Atlântida encantada:

“Desvendaram num delicioso leito o virginal corpo da Atlântida.”25

Nesta visão profética e futurista, que valoriza a vocação marítima de centralidade


atlântica e insular de Portugal, Vasco da Gama Rodrigues mistura elementos da
tradição joaquimita e da sua utopia da Terceira Idade do Espírito Santo com elementos
da corrente sebastianista, corrente profético-nacionalista portuguesa, e com elementos
provenientes das leituras astrológicas das idades da história. Fazendo coincidir o
advento do Quinto Império com a chegada da Era do Aquário, o seu profetismo, em
muito semelhante ao da filosofia portuguesa e do esoterismo simbolista pessoano,
incluiu não obstante uma mescla de elementos que o aproxima do sincretismo típico
da corrente contemporânea New Age. Tal é evidente na amálgama de elementos
tradicionais com elementos contemporâneos, em vista de uma síntese que deseja ser
integradora de opostos, para afirmar uma determinada verdade sobre o futuro de um
povo ou da própria humanidade.
Num tom de voz profético, com ecos evidentes do tom da Mensagem de Fernando
Pessoa, o autor ecoa o grito de chamada dos portugueses para a missão do futuro num
presente onde tudo parece caído. O “É a hora” de Pessoa é semanticamente próximo
do “Agora é” de Gama Rodrigues:

“Ó Portugal! Agora é o tempo de realizar a Atlântida, o Reino da Ilusão de Aquário, Paraíso


do Mundo.”26

A teologia da história de Joaquim de Flora e a sua teologia das três idades ou três
estados da história da humanidade está bem patente no esquema hermenêutico de
Vasco da Gama Rodrigues, o qual estrutura a obra publicada em 1972, As Três Taças. A
deriva histórica do Ocidente é apresentada como uma evolução em tensão dramática de
afirmação espiritual em ordem a uma consumação numa Idade do Espírito vencedor.
Figuras-símbolo são usadas para representar as idades da história que preparam a
terceira e última idade. As pessoas da Trindade Divina são as primeiras configuradoras
divinas das três idades humanas, marcadas pelo ritmo do ciclo triádico da Idade de

25 RODRIGUES, V. G., 1961: 42.


26 Ibidem: 53.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 269

Ouro/Idade de Ferro, Decadência/Renovatio temporum ou recuperação do Paraíso


Perdido. O primeiro tempo é o do Pai, o da Alegria; o segundo tempo é o do Filho, o
da Dor; e o terceiro é o tempo do Espírito Santo, o da graça. A figura prototípica da
Idade do Pai é Moisés, o herói; a da Idade do Filho é Jesus, o Sábio; e a da Idade do
Espírito Santo é o Príncipe da Paz, o Sonho. Estas idades e as suas figuras-símbolo
estão adscritas a lugares-centro e a templos simbólico-míticos: Jerusalém, o templo da
Luz; Roma, o templo da cruz; e a Ilha do Encoberto, o Templo do Amor. Nesta associação
triádica, Gama Rodrigues identifica ainda tês povos: os Hebreus, no primeiro Estádio;
os Romanos, no segundo; e os Atlantes, a culminar o tempo final da história no terceiro
estádio. Aqui, os Atlantes são os portugueses do futuro, que fundarão a humanidade nova:

“De vela nova subida


Venceu todo o elemento
E as correntes de Ar e Mar.
A Terra foi toda unida.
O maltês d’oiro sedento
Falta agora conquistar.
[...]
Violou o Amor? Quem ignora
Que dar luz ao mundo inteiro
Foi Ato de Criação?
Quem vem saber sem demora,
Que toda a Cruz foi braseiro
Para a nossa Redenção?”27

Vasco da Gama Rodrigues completa na obra póstuma Cristo das Nações a sua
hermenêutica, fazendo da história portuguesa uma história crística. Portugal e a
sua teologia da história seria uma metonímia da vida e do destino de Cristo, uma
espécie de encarnação da missão e sentido da vida de Cristo. Se Cristo e os seus gestos
aconteceram para a redenção do género humano, Portugal encarnaria como povo
essa missão, para a consumação da transfiguração da humanidade numa idade final
da história, desocultando o mundo que vivia nas trevas e dando-lhe o sentido e a
realização final.
À semelhança de conteúdos de outras tradições profético-nacionalistas, como o
caso conhecido da tradição moderna da Polónia28, país que também se via “como

27 RODRIGUES, V. G., 1972: 54-55.


28 FRANCO, J. E., 2009.
270 100 Orpheu José Eduardo Franco

Cristo das Nações”, Vasco da Gama Rodrigues identifica a missão de Portugal com a
missão de Cristo, ou mais ainda, Portugal seria o instrumento para consumar à escala
universal a missão do Salvador. Portugal, qual povo eleito da Nova Aliança, de que o
povo de Israel era prefiguração, seria o instrumento para universalizar a redenção de
Cristo agora proporcionada a todo o género humano. Esse processo teria começado
com as viagens de descobrimento e missionação planetária no século XV e aguardava
agora a plenificação na Terceira Idade do Mundo29.
Vasco da Gama Rodrigues, através do recurso a elementos de várias tradições
e correntes, mas acentuando a sua óptica insular, resultante da sua marcada
proveniência insular, propõe um futuro glorioso para Portugal, que o liberte da
sombra em que vive, e cumpra de forma plena a missão que a sua origem e a sua
história determinam.
Este poeta insular recusa, apesar da abordagem do seu pensamento poder numa
determinada óptica indicar isso mesmo, que o apodem de sebastianista ou o inscrevam
em correntes ideográficas de Portugal nas quais não se revê. Numa carta inédita a
António Quadros, que aqui reproduzimos em anexo, Vasco da Gama Rodrigues
reivindica para si o estatuto de poeta que canta o Amor e anuncia o Reino do Amor,
que não é outra coisa do que o Reino do Espírito Santo, a Idade do Espírito, a idade
final da História. Com efeito, o Amor é o cerne da sua ideia de Portugal, o motor
íntimo da história de Portugal, e não qualquer sebastianismo ou astrologismo. António
Quadros, na sua emblemática obra sobre a poesia e filosofia sebastianista portuguesa,
tentou colocar-lhe rótulos que desagradaram a Rodrigues. Definiu a sua obra poética
como “inteiramente uma filosofia mítico-profética da história”, “excessivamente
dominada pela linguagem cifrada”, apresentando-o como “astrólogo”, que “tende mais
a uma conceituosa geometria esotérica do que a uma poética”30. Gama Rodrigues não
concordou com esta análise e escreveu-lhe a manifesta o seu desagrado, pedindo que
revisse a sua proposta de avaliação e classificação da sua poesia patriótica (Ver carta
anexa).
O “Agora” deste poeta insular é, segundo entendemos, o mesmo grito do “É hora” de
Fernando Pessoa e participa neste escopo bem português de reforçar a sua identidade
histórica através do apelo do futuro para superar a ideia de insuficiência do presente.
Atualiza a utopia portuguesa do Quinto Império, mas inscrevendo-a plenamente
na tradição teleológica joaquimita, projetando a Terceira Idade da História, sob
égide portuguesa e assente no influxo recriador do Paráclito como o dispensador da
plenitude do amor.

29 Cf. RODRIGUES, V. G., 1995.


30 Cf. QUADROS, A., 2001: 153-154.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 271

Portugal, fundado no Amor e para ser o veículo do Amor Universal, recuperará


o seu sentido primigeniamente inscrito na sua historiogénese e cumprirá a missão
inconclusa.
Assim, como o entenderam os grandes ideógrafos na nacionalidade portuguesa,
no futuro joga-se sempre a justiça de um passado-promessa que, tendo sido grande,
se quer que seja maior.

Anexo
Carta Inédita de Vasco da Gama Rodrigues a António Quadros

Lisboa, 3 de junho de 198331

Caro António Quadros,

Informado como fui por um amigo de que você tinha dedicado alguma atenção no
seu recente livro acerca do sebastianismo à obra de poesia por mim publicada, tive a
curiosidade e o interesse de verificar o que a experiência de homem de 74 anos poderia
causar no pensamento reflexivo de um homem de 60. Creio que é esta a sua idade.
Além disso, convivemos há cerca de um vinténio. Perdoe-me você a discordância que
manifesto perante o seu modo de interpretar o sebastianismo como denominador
comum dos portugueses ilustres que publicaram obras sobre este tema ou sobre temas
convergentes. Com efeito, parece-me que o seu ponto de vista se situa tão alto, é tão
geral, que engloba no mesmo mundo teorias, pessoas e obras completamente díspares e
que, por mais que pense, julgo não terem como eixo o mito sebástico. Estão neste caso,
por exemplo, Teixeira de Pascoais, José Régio e Fernando Pessoa, para só me referir a
alguns que você cita na sua obra. Com efeito, mostram tão radicais diferenças que não é
possível determinar o seu denominador como o sebastianismo em que comungariam. As
afinidades entre estes poetas são realidade, mas Teixeira de Pascoais aspira à saudade –
que é uma deusa feminina e mergulha por entre as sombras; José Régio oscila indeciso
entre um Cristianismo não Católico e uma ideia de Deus que se lhe afigura longínqua
relativamente a este mundo; quanto a Fernando Pessoa, você estudou-o longamente
para poder concluir, como concluiu, das suas radicais diferenças em relação àqueles dois
poetas.

31 Carta patente no Espólio de António Quadros, obtida por gentileza de Rosa Canarim Fina. Transcrição feita
por Joana Balsa de Pinho e José Eduardo Franco.
272 100 Orpheu José Eduardo Franco

Outro exemplo. A obra por mim publicada nada tem que ver com o sebastianismo e o
António Quadros sabe bem que nela se anuncia o Reino do Amor, o Reino do Paracleto.
Assim, não consigo entender como pode envolver esta obra na comparação com a obra
publicada por Fernando Pessoa. De resto, como você sabe a comparação é usada como
processo mágico de que resulta o mais ou menos, processo este muito utilizado pelo
jornalismo vulgar, dado que representa a forma inferior da imaginação. O António
Quadros certamente há de aceitar que um poeta preferira à comparação a analogia.
Muito estranhei também o ter-me apodado do astrólogo quando você tratava de uma
obra poética. Como sabe, a astrologia é atualmente uma profissão remunerada que,
se não é reconhecida pela Universidade, é publicitada, porém, pelos jornais. Requer,
portanto, que quem a pratique receba remuneração e é frequentemente associada ao
charlatanismo.
Se alguma vez a minha amizade me fez dar-lhe indicações das relações dos astros
com a vida humana e particularmente com a sua não há entre as pessoas que comigo
convivem o reconhecimento de tal profissão. De facto, nunca foi essa a minha intenção e
prática. Por isso, peço-lhe que se tiver outra oportunidade para se referir à obra por mim
publicada, se lhe refira como a obra publicada por um poeta. Na sua opinião boa ou má.
Assim, só peço o mesmo que você concedeu a quem comigo comparou: Fernando Pessoa
fazia horóscopos e ninguém disse que ele era astrólogo.
Um abraço do amigo que o lê com muita atenção,

Vasco da Gama Rodrigues

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A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português

Zilda de Oliveira Freitas


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Palavras-chave: Mito; Ulisses; Fernando Pessoa; Modernismo


Resumo: Procurarei refletir sobre as reminiscências do mito de Ulisses no processo de
individuação do sujeito modernista. Para isso, apresentarei um estudo comparativo entre o
Ulisses homérico e a figura mítica que nos é apresentada por Fernando Pessoa em Mensagem.
Para além de ser um livro que reconstrói de forma mítica e poética a história de Portugal,
Mensagem é um texto emblemático que nos permite refletir acerca da concepção pessoana sobre
a sociedade portuguesa, desde a formação do povo lusitano até a era modernista. Importa-nos
questionar: qual é a Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português? Ao propor algumas
possíveis respostas, enfatizarei o que explicitaram os investigadores Mircea Eliade, Claude
Lévi-Strauss e Joseph Campbell. Ressaltarei que o conteúdo mítico da Odisseia – sob a ótica
pessoana – traduzir-se-á por uma proto-história da subjetividade humana e como prefiguração
da trajetória do indivíduo, num constante fluxo simbólico e literário, da Odisseia à Mensagem.

A pátria fugira da terra para a região aérea da poesia e dos mitos.


(MARTINS, J.P. O., 1882: 69)

Nas palavras de Fernando Pessoa, «Só duas nações – a Grécia passada e Portugal
futuro – receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as
outras. Chamo a atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa
e Atenas estão quase na mesma latitude» (PESSOA, F., 2000: 197). A influência do
helenismo é perceptível em diversos momentos da produção literária pessoana. Aqui
selecionamos Ulysses1, poema integrante da primeira parte de Mensagem. Parece-nos
merecedor de especial atenção o texto de Roman Jakobson sobre poema pessoano
referido, que ressalta a presença mítica do rei de Ítaca em Lisboa e lembra-nos que:
“O herói da estrofe central, Ulisses, – cujo desembarque lendário na embocadura do
Tejo se deve apenas a um vínculo paronomástico entre seu nome e Lisboa, e cuja
existência tem, ela mesma, um caráter mítico” (JAKOBSON, R. 1970: 100-101).

1 Utilizaremos a grafia Ulysses para registrar o título do poema pessoano e Ulisses para o nome do herói grego,
a fim de distingui-los.
276 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas

Importa-nos destacar que a mítica passagem do herói grego2, por terras lusitanas
é, ao mesmo tempo, rememoração do passado e comemoração do devir português.
Em Ulisses está concentrada a reminiscência do mito referido na fundação da pátria
e, concomitantemente, a expectativa sebastianista pelo vindouro Quinto Império
português, pois, assegura António Apolinário Lourenço nas palavras seguintes:

Como se depreende da resposta de Pessoa ao Inquérito “Portugal, Vasto Império”, o mito


era a “mentira” admitida como verdade, que as sociedades necessitavam para elevar a
sua moral. Tal como Ulisses era o fundador mítico de Lisboa, D. Sebastião era o mítico
fundador do Quinto Império, cultural e espiritual. “Que mal haverá em nos prepararmos
para este domínio cultural, ainda que não venhamos a tê-lo? (...) Se falharmos, sempre
conseguimos alguma coisa – aperfeiçoar a língua. Na pior das hipóteses, sempre ficamos
escrevendo melhor” (LOURENÇO, A. A., 2009: 243).

Ao apresentar-nos Ulisses como o “fundador mítico de Lisboa” e D. Sebastião


como “o mítico fundador do Quinto Império”, como ressalta António Apolinário
Lourenço no trecho acima, Fernando Pessoa eleva imaginariamente o seu país ao
status de império cultural – como fora a Grécia – e império espiritual – como tem
sido a Cristandade. O patriotismo assume matizes messiânicos na literatura pessoana,
com nuanças de cunho fundamentalmente míticas – e não exclusivamente políticas.
Declara Fernando Pessoa: “Sou, de facto, um nacionalista mystico, um sebastianista
racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradicção com isso, muitas outras coisas”
(PESSOA, F., 1998: 251). Na figura mítica do ardiloso herói grego, Fernando Pessoa
encontra elementos que alimentarão sua obsessiva busca histórica a respeito da
emergência da nacionalidade portuguesa. Sob a ótica de Mircea Eliade, o mito é um
exemplo a ser seguido, como se lê no excerto seguinte:

O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi feito, e ajuda-o a
eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado do seu empreendimento. Por
que hesitar ante uma expedição marítima, quando o Herói mítico já a efetuou num tempo
fabuloso? Basta seguir o exemplo (ELIADE, M., 2007: 125).

Assim sendo, Ulisses, vitorioso em sua tentativa de reconstruir Ítaca quando da


guerra retornou, seria um modelo do que poderia acontecer no aguardado regresso de

2 A este nível, atente-se na possibilidade de “ir assim reatar o fio da tradição grega perdida”, mencionada por
Dionísio Vila Maior n’As lições de Fernando Pessoa (VILA MAIOR, D., 2012: 273).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 277

D. Sebastião. Assegura o mitólogo citado que “o símbolo, o mito e o rito exprimem, em


planos diferentes e com meios que lhes são próprios, um complexo sistema de afirmações
coerentes sobre a realidade última das coisas, sistema que podemos considerar como uma
metafísica” (ELIADE, M., 1992: 17). É, portanto, metafísico o retorno sebastianista, mas
real seria o ressurgimento de Portugal como nação dominante – e não mais dominada e
submissa às exigências do Ultimatum inglês e suas consequências perceptíveis no início
do século XX, época em que viveu Fernando Pessoa.
Não por acaso, escreve Mircea Eliade, que “a memória dos acontecimentos históricos
e das personagens autênticas modifica-se ao fim de dois ou três séculos, a fim de
poder participar no modelo da mentalidade arcaica, que não pode aceitar o individual
e só conserva o exemplar” (ELIADE, M., 1992: 59). Como se pode verificar, este
fragmento colabora para o entendimento do mito de Ulisses3 não apenas como a saga
de um homem, mas como representação coletiva do desejo nacional grego, latino e
português – é o exemplar, o modelo.
“Basta seguir o exemplo” (ELIADE, M., 2007: 125). O mito é o exemplo a ser
seguido por todos porque, como assevera Mircea Eliade, “O mito é que falava a
verdade: a verdadeira história já pouco mais era do que mentira. O mito tornava-se
mais verdadeiro na medida em que conferia à história um sentido mais profundo e
mais rico: ele revelava um destino trágico” (ELIADE, M., 1992: 60-61). O “destino
trágico” de Ulisses é, afastando-se da família, vencer a guerra; terminada a guerra,
enfrentar os perigos do mar; encerrada a viagem marítima, vencer os pretendentes
de Penélope; vencidos os adversários, realizar o ritual de ofertas aos deuses para
pacificá-los. E depois disso? Seu destino trágico de homo ambulus é permanecer em
busca de (auto)conhecimento, no seu mito pessoal do eterno retorno à condição de
forasteiro e conquistador.
Por sua vez, Joseph Campell compreende o mito como expressão inconsciente do
desejo humano de superar seus conflitos anteriores. Sobre o tema, escreve o mitólogo:

Os ousados e verdadeiramente marcantes escritos da psicanálise são indispensáveis ao


estudioso da mitologia. Isso ocorre porque, como quer que encaremos as interpretações
detalhadas, e por vezes contraditórias, de casos e problemas específicos,

Freud, Jung e seus seguidores demonstraram irrefutavelmente que a lógica, os heróis e os


feitos do mito mantiveram-se vivos até a época moderna (CAMPBELL, J., 1997: 6).

3 Mircea Eliade afirma que “A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a
mais lata, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo
primordial, o tempo fabuloso dos ‘começos’” (ELIADE, M., 2007: 11).
278 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas

De acordo com as proposições de Joseph Campbell, o indivíduo Ulisses faria uma


viagem mítico-simbólica no interior de sua própria natureza psicológica, à procura
de si mesmo, de equilíbrio, de conhecimento. Ao se referir ao mito de Ulisses, Joseph
Campbell ressaltou diversas vezes que a narrativa sobre o herói grego é resultante de
um complexo enredo coletivo, que objetiva a superação dos terrores irreais e atrações
ambivalentes, como supramencionados anteriormente (CAMPBELL, J., 1997: 88).
A psicanálise procura equacionar e promover a superação dos medos e conflitos.
Justamente por isso, defende Joseph Campbell o estudo e interpretação dos mitos
recorrentes durante as consultas psicanalíticas.
Poder-se-ia acreditar que – se a presença de Ulisses em Lisboa não fora física –
certamente o imaginário civilizacional e a estrutura mítica grega lá estivera presente. Se
o indivíduo não esteve em Lisboa, no momento da fundação da capital do povo lusitano,
o Ideal grego e os elementos representativos do mito de Ulisses estiveram presentes a
registrar e Fernando Pessoa a rememorar a presença imaterial de Ulisses em Lisboa.
Sob a ótica campbelleana, “O que o mito faz para você é apontar o transcendente”
(CAMPBELL, J., 2008: 19). Assim, a caracterização do mito é transcendental, pois
ultrapassa os aspectos da vida cotidiana para alcançá-los ao nível simbólico4.
Acrescenta o mitólogo norte-americano que “O começo de um mundo mítico ou
de uma tradição mítica é um arrebatamento – algo que arranca o indivíduo de si
mesmo, leva-o além de si, além dos padrões racionais” (Id.: 115). O investigador define
assim o sentimento coletivo que eterniza o mito na memória popular de uma nação:
“O despertar do assombro, do entusiasmo, é o início e, curiosamente, é o que faz as
pessoas se unirem” (Ibid). Os lusitanos primitivos e contemporâneos se uniram em torno
de uma ancestralidade grega transcendental, quando relembram seus heróis míticos.
Interessa-nos aqui unicamente vincular as ideias de Joseph Campbell ao
entendimento do mito fundacional de Lisboa. Repete Joseph Campbell a passagem
a seguir em dois de seus livros mais famosos: “Onde quer que exista uma imagem
mítica, ela foi legitimada por décadas, séculos ou milênios de experiência nessa
trajetória e constitui um modelo. Não é fácil construir uma vida própria sem dispor
de um modelo” (CAMPBELL, J., 1994: 18 e CAMPBELL, J., 2008: 18). Dos excertos
supracitados, retenhamos o facto de que entendem o mito como elemento cultural

4 Afirma o mitólogo que “A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação,
quando você passa da infância para as responsabilidades do adulto, da condição de solteiro para a de casado.
Todos esses rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel que você passa a desempenhar,
com o processo de atirar fora o que é velho para voltar com o novo, assumindo uma função responsável.
Quando um juiz adentra o recinto do tribunal e todos se levantam, você não está se levantando para o
indivíduo, mas para a toga que ele veste e para o papel que ele vai desempenhar” (CAMPBELL, J., 2008: 12).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 279

resistente à passagem do tempo. Ao permanecer na memória coletiva, torna-se um


modelo – palavra empregada pelos dois mitólogos até aqui referidos. Em consequência
do que foi acima exposto, cremos poder afirmar que Ulisses é um modelo, na concepção
em que Mircea Eliade e Joseph Campbell utilizam o vocábulo.
Ao iniciar os nossos estudos sobre os mitos nas culturas primitivas europeias,
americanas e africanas5, percebemos que o surgimento de uma nação possuía
frequentemente uma explicação mítica, com a presença da figura histórica de um
herói fundador – como ocorre com Ulisses na formação da pátria lusitana. A fantasia
de um guerreiro peregrino parece ser um mitema recorrente e, como afirma Claude
Lévi-Strauss, no excerto seguinte:

As histórias de carácter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado,


absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte. Uma
criação «fantasiosa» da mente num determinado lugar seria obrigatoriamente única – não se
esperaria encontrar a mesma criação num lugar completamente diferente. O meu problema
era tentar descobrir se havia algum tipo de ordem por detrás desta desordem aparente – e
era tudo (LEVI-STRAUSS, C., 1987: 20).

A teoria estruturalista de Claude Lévi-Strauss auxilia na conceituação do mito


como narrativa coletiva, atemporal e não cientificista, retentora de elementos
invariantes do qual o mais relevante é – no caso ulisseano – o modelo de superação6.
Citamos a seguir as palavras do antropólogo francês sobre a conservação dos mitemas,
elementos mínimos que nos fazem reconhecer a reescritura do mito como filiada à
versão anterior, mais antiga:

Estas transformações, que se operam de uma variante à outra de um mesmo mito, de um


mito a outro mito, de uma sociedade a uma outra sociedade com referência aos mesmos
mitos, ou a mitos diferentes, afetam ora a armadura, ora o código, ora a mensagem do mito,
mas sem que este deixe de existir como tal; elas respeitam assim uma espécie de princípio
de conservação da matéria mítica, em função da qual qualquer mito sempre poderá sair de
um outro mito (LÉVI-STRAUSS, C., 2008: 261).

5 Os mencionados estudos antecederam a elaboração de nossa Tese de Doutoramento em Estudos Portugueses,


intitulada “Mito e identidade nacional na poética de Fernando Pessoa: o ideal platônico d’A República e o
projeto imperial pessoano”, apresentada à Universidade Aberta de Portugal, sob a orientação do Prof. Dr.
Dionísio Vila Maior.
6 Relembramos fragmentos citados anteriormente sobre o “modelo”, na concepção de Mircea Eliade e Joseph
Campbell: “Basta seguir o exemplo” (ELIADE, M., 2007:125) e “Não é fácil construir uma vida própria sem
dispor de um modelo” (CAMPBELL, J., 1994: 18 e CAMPBELL, J., 2008: 18).
280 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas

Portanto, acreditamos que o mito de Ulisses, com algumas variações, perpassou


gerações, sendo constante memória do herói navegante conquistador de novas terras
– igualmente importante para a leitura que estamos a realizar – reconquistador
e restaurador de seu próprio país. Ressaltamos que o conteúdo da Odisseia é
compreendido por Horkheimer e Adorno (1986: 53) como uma proto-história da
subjetividade (Urgeschichte Subjektivität) e como prefiguração de toda a dialética do
Iluminismo. Como se vê, a travessia ulisseana é um mito representativo da jornada
que cada indivíduo (e a humanidade como um todo) precisa realizar para perfazer
a passagem da natureza primitiva à cultura acumulada e transmitida através das
gerações; jornada do aspecto instintivo e individualista à convivência em sociedade, da
repressão ao autodesenvolvimento.
A partir das ideias que Horkheimer e Adorno registram na obra Dialética do
esclarecimento pode afirmar-se que, no início do caminho de volta a Ítaca7, Ulisses
é ainda um sujeito em construção, incipiente e imaturo. Embora já conhecesse
aspectos civilizatórios como a divisão de trabalho – pois era o rei responsável por
liderar um povo opulento, um navegador comandante de muitos marinheiros e
naus – o herói ainda estava a completar-se. Não possuía consciência de si mesmo e
identidade una.
Desde logo, é possível compreender a viagem como o percurso no qual a
subjetividade se organizará enquanto unívoca. O pensamento mítico e primitivo
de Ulisses irá se ampliar e esclarecer, no perigoso caminho do autoconhecimento
que o sujeito precisa percorrer e conquistar gradativamente. Compreende-se que
a jornada para o aprimoramento do sujeito é individual e interior, uma vez que a
viagem transformadora [de rei de Ítaca a herói civilizador] deve ser perpetrada por
cada indivíduo em busca de si mesmo – mundo interior – e da compreensão de sua
sociedade – mundo exterior. Na figura mítica de Ulisses percebiam os gregos o retrato
do herói ideal, apesar de falho em alguns aspectos: ardiloso, mas impulsivo; resistente
às provocações dos deuses, mas ocasionalmente insubmisso. Ainda assim, um herói
com comportamento próximo à preferência grega. Realce-se, portanto, que Odisseia
será, ao lado da Ilíada, o poema nacional grego, constantemente recitado nos palácios
dos reis que conquistaram Tróia e nas festas públicas, memória (en)cantada e presença
frequente em todas as polis gregas e povos que com elas comercializavam ou foram
pelos gregos conquistados.
Nos séculos seguintes, as epopeias homéricas seriam incluídas nas bibliotecas das
famílias abastadas, além de universidades e escolas de todo o mundo ocidental. Os

7 Cf. o percurso do herói nos comentários do pesquisador Junito Brandão (BRANDÃO, J. S., 2000).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 281

versos de Homero colaboraram para a expansão do helenismo e a crescente admiração


pelos ideais civilizatórios gregos.

Ulisses constitui aquilo que alguns críticos contemporâneos definiriam como um “discurso”
da civilização ocidental; para os historiadores, um ‘imaginário’ ‘de longa duração’ - em
outros termos, um arquétipo mítico que se desenvolve na história e na literatura como um
constante logos cultural. Parafraseando Bernard Andrae, Ulisses representa a ‘arqueologia’
da imagem europeia do homem (BOITANI, P., 2005: XIV).

Do texto supracitado depreendemos o que anteriormente afirmamos: Ulisses


é exemplo civilizacional e modelo de superação. Em outras palavras, Ulisses é a
representação literária do herói mítico, presente no imaginário coletivo das civilizações
ocidentais, desde Homero8 até a contemporaneidade. Portanto, a inclusão do mito
ulisseano na Mensagem pode ser entendida como uma influência helenista no texto
pessoano, mas, sobretudo, como uma exaltação do herói grego como figura histórica
e mítica, presente na formação da nação portuguesa. Recordamos as palavras que
sobre a epopeia moderna pessoana escreveu Cleonice Berardinelli, das quais citamos
a seguir um fragmento:

Incluída, pois, na obra pessoana como um livro sui generis, Mensagem, a mais portuguesa
das obras de Pessoa, é válida por seu alto nível poético por sua primorosa estrutura
e pela captação total da alma portuguesa, heroica e mítica, saudosista e messiânica
(BERARDINELLI, C., 2004: 132).

Na procura incessante por representar poeticamente a alma portuguesa, em suas


nuances culturais multifacetadas, em Mensagem, Fernando Pessoa reflete sobre a
pátria “heroica e mítica, saudosista e messiânica” – para empregar as palavras da
autora supramencionada. Por sua vez, assegura-nos Jacinto do Prado Coelho:

No fim de contas, a Mensagem, onde os elementos épicos surgem filtrados, transfigurados,


pela contemplação lírica, não se situara muito longe do ‘clima’ d’O Marinheiro, ‘drama
estático’, onde a Segunda Veladora nos fala do marinheiro que se perdeu numa ilha remota:
‘Como ele não tinha meios de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se

8 Assim é descrito o herói na epopeia homérica que narra sua jornada: “Mas nunca com os olhos eu vi nada
que se comparasse/ Com o amável coração do sofredor Ulisses. /Que feitos praticou e aguentou aquele
homem forte (…) Nós os dois estávamos desejosos de nos levantarmos/ e de sairmos; ou então de responder
lá de dentro. /Mas Ulisses impediu-nos e reteve-nos, à nossa revelia (…) E assim salvou todos os Aqueus”
(HOMERO, 2006: 264-268).
282 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas

a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido’. Revivendo a fé no Quinto Império, Pessoa
inventou uma razão de ser, um destino, fugindo à angústia dum quotidiano absurdo,
genialmente expresso por ele e Álvaro de Campos (COELHO, J. P., 1983: 106-107).

Parece-nos, portanto, que estamos diante da recorrente imagem mítica do herói


marinheiro, frequente em diversos textos pessoanos, sempre como um arquétipo de
evasão da realidade, variante do mito ou clima, conforme mencionado por Jacinto
do Prado Coelho9. Entretanto, os elementos épicos – e acrescentaríamos, míticos
– sofrem a intervenção da conceção modernista do poeta. Os personagens dos
navegantes não são homéricos, mas pessoanos. Quer isso dizer que são modernistas e
seguem a estética órfica lusitana e não o padrão cultural grego clássico – apesar da já
mencionada influência helênica no texto pessoano.
Recordamos as palavras de Adolfo Casais Monteiro sobre o texto pessoano: “Toda
a obra de F. Pessoa é uma busca da realidade para lá das suas formas passageiras da
aparência” (MONTEIRO, A. C., 2006: 13). Assim, sob o ponto de vista do autor de
Mensagem, Lisboa é a Ulisseia – mítica terra encontrada pelo herói grego, quando
procurava a distante Ítaca. O poeta seiscentista Gabriel Pereira de Castro descreve em
sua obra a mítica fundação de Lisboa pelo rei navegador, em pleno período barroco.
Fernando Pessoa escreve Ulisses durante a vigência do modernismo. Enlaça-as um
elemento comum: a influência de Camões.
Assim sendo, acreditamos que o ortónimo apropria-se do mito ulisseano –
homérico, camoniano, castreano – e dele extrai os elementos relevantes para a
estruturação de sua Mensagem ao povo lusitano. Em suma, a transcrição que o autor
de Mensagem realiza do mito de Ulisses não é literal, não corresponde exatamente a
todas as variantes do mito. Estão ausentes no poema pessoano os episódios de Circe,
Calipso, Polifemo e até mesmo Penélope. Fernando Pessoa adapta livremente o mito
ulisseano, ao resgatar da narrativa mítica os elementos invariantes; a saber: a viagem
iniciática pelo mar desconhecido, o encontro com outros povos, a imaterialidade e
incertezas sobre as paragens do herói grego, que alimenta10 a mítica fundação de
Lisboa. Leia-se, a seguir, o poema pessoano;

9 A respeito da invenção de uma razão ou destino para fingir e fugir do quotidiano absurdo, mencionado no
fragmento do texto de Jacinto Prado Coelho, escreve Fernando Pessoa: “Sendo assim, não evoluo: VIAJO (por
um lapso na tecla das maiúsculas, saiu-me, sem que eu quisesse, essa palavra em letra grande. Está certo, e
assim deixo ficar). Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me
na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de
fingir que se pode compreendê-lo” (PESSOA, F., 2006: 22).
10 Cf. a afirmação de Eduardo Lourenço: “É da realidade que o mito se alimenta, é no mito que a realidade se
torna significante” (LOURENÇO, E., 2000: 21).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 283

ULISSES

O mito é o nada que é tudo.


O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre


A entrar na realidade,
E a fecunda-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre
(PESSOA, F., 2008: 83)

Tomamos como ponto de partida o comentário que, do poema supramencionado,


tece António Apolinário Lourenço. Sobre o primeiro verso, escreve o estudioso:

Com recurso ao oximoro, fica aqui perfeitamente insinuada a natureza utópica do grande
sonho veiculado pelo poeta neste livro: o Quinto Império. Como referimos na ‘Introdução’,
ele próprio afirma no inquérito promovido por Augusto da Costa e recolhido no seu livro
Portugal, Vasto Império que o principal meio para levantar moralmente uma nação é a
exploração insistente de um grande mito nacional (LOURENÇO, A. A. In: PESSOA, F.,
2008: 82).

Por estas palavras podemos compreender igualmente que o mito – além de se


iniciar do nada – refere-se ainda ao nada. Toda a narrativa mítica – tal qual a ardilosa
construção do cavalo de Tróia11 relatada por Homero – enfim, todo o mito é portador
de uma lacuna interna. “Pelo mito, o desejo preenche esse hiato e faz, do nada,
tudo” (PERRONE-MOISÉS, L., 2001: 117). O nada será preenchido simbolicamente

11 Ao analisar Mensagem, Agostinho da Silva ressalta que “a missão de Portugal não poderá ser outra senão a de
resgatar o que a Europa fez e de salvar a seus próprios olhos” (SILVA, A. da, 1958:18).
284 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas

pelos desejos do povo e de seu representante, o poeta, que recria e reconta o mito12,
adaptando-o às suas necessidades e à sua época, como fizeram Homero e Fernando
Pessoa.
A estrofe seguinte possui igualmente grande interesse para o entendimento da
aludida concepção mítica no texto de Fernando Pessoa. Se anteriormente identificamos
no poema uma devoção familiar aos conceitos e dogmas helénicos e cristãos no que
se refere à divindade, a segunda estrofe apresenta-nos o herói navegador Ulisses que,
– durante sua itinerância e aventuras na viagem de retorno à Ítaca – teria miticamente
fundado a cidade de Lisboa. Iniciar a segunda estrofe do poema com Este é anunciar
e, simultaneamente, ocultar o mito a respeito do qual escreve. Deve o leitor terminar
a leitura da estrofe e ter conhecimento prévio da mítica presença de Ulisses na costa
lusitana para associar Este ao herói grego. Deve ainda o leitor ter acesso aos elementos
míticos que denotam as reminiscências da narrativa mítica que afirma ser Ulisses o
fundador da cidade.
Enfim, Fernando Pessoa escreve sobre o herói grego para aqueles que saberiam
entender seus versos e – como ele – desejassem restaurar a memória da fundação da
capital portuguesa. Acreditamos que seja esta a mensagem de Mensagem, ou seja, a
sua proposta de restauração nacional, a partir do resgate e revalorização das tradições,
valores, costumes, mitos e crenças do imaginário pátrio. Recuperamos aqui o excerto
anteriormente referido, no qual António Apolinário Lourenço cita Fernando Pessoa:
“ele próprio afirma que (...) o principal meio para levantar moralmente uma nação é a
exploração insistente de um grande mito nacional” (LOURENÇO, A. A. in PESSOA,
F., 2008: 82). Portanto, associando a memória mítica do herói grego que retorna
à sua pátria com o desejado regresso de D. Sebastião, Fernando Pessoa enfatiza a
importância da reconstrução nacional, no caso dos dois mitos.
Realce-se o facto de ambos serem reis que frequentaram – e frequentam – o
imaginário coletivo de seus povos e igualmente de outros povos: Ulisses em Portugal,
D. Sebastião nas visões do sebastianista Antônio Conselheiro, líder da revolta
popular em Canudos, que criou um reino mítico para D. Sebastião em terras
brasileiras. São mitos messiânicos – ulisseano e sebastianista – transformados em
profecias pela necessidade popular de acreditar em um salvador que reinstaurará
uma era de glórias. “Esta multiplicidade de formas, o mesmo é dizer, de linguagem,
permite que a profecia tenha vários graus de significação, em que o que a um nível
é ‘verdade’ a outro é ‘erro’” (SEABRA, J. A., 1988: 83). É verdade para o povo que

12 Cf. Agostinho da Silva: “Portugal porá, como seu alicerce, o que de mais fundamental a Europa poderá ter
dado ao mundo: com Ulisses, a ideia de que o mito é mais importante do que a realidade, de que o poder vir
a ser é o substracto do que é, de que as coisas morrem à medida que são” (Ibid.: 19).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 285

aguarda a volta do seu rei – tanto Ulisses era aguardado pelo povo de Ítaca, quando
D. Sebastião pelos lusitanos. É erro, para os cépticos. Assim sendo, os graus de
significação são distintos como são distintas as relações que os indivíduos mantêm
com as profecias e narrativas míticas.
Neste contexto, justifica-se refletir sobre as palavras de José Clécio Basílio Quesado
a respeito da produção literária pessoana e a inserção nela destes elementos míticos
e oníricos:

Sonho, mito ou loucura são, pois, elaborações discursivas do inconsciente que o poeta toma
como formas de promover a ausência da realidade, procurando trabalhar não sobre o dado
concreto mas sobre a formulação imaginária que se produz como descontinuidade do real.
Daí a retomada do passado da infância como fuga do presente, ou a busca do nada como
negação da própria existência, ou, enfim, Qualquer coisa que não a vida (QUESADO, J. C.
B., 1976: 80).

Reis guerreiros – andarilhos como Ulisses e D. Sebastião, vagando por terras


desconhecidas à procura de si mesmo e do caminho de volta para seu povo. Figuras
históricas e míticas, evocadas pelo poeta modernista como proposta estética e política
de reflexão e reformulação da realidade pátria. Mensagem é – acreditamos – a tentativa
pessoana de resgate do passado irreal para a construção do devir lusitano em que
o real seja glorioso – e não apenas recordação do passado notável. Assim sintetiza
Georges Güntert:

Pessoa encontra na presença histórica de Portugal a sua própria espera na margem e a


sua saudade por novos horizontes. Ulisses, portador de um grande pensamento – conta a
lenda a seu respeito que foi ele que deu nome a Lisboa – não aportou nunca a estas costas;
nunca lhes tocaram os seus navios. Como a liberdade, a grandeza e a fama, a lenda de
Ulisses permaneceu um mito que ‘sem existir nos bastou’. Pois foram mitos que embalaram
o povo português, para o estimularem a dilatar as fronteiras do conhecido e do familiar
(GÜNTERT, G., 1982: 205).

Assim sendo, de que modo então se poderá convalidar, e reforçar, a percepção do


autor citado no excerto acima sobre a presença – real ou mítica – de Ulisses na costa
portuguesa? Nas palavras constantes no referido verso do poema de Fernando Pessoa:
“sem existir nos bastou”. Quer isso dizer que, ainda que não fosse real, é mítico e
tornado literário pelos poetas lusitanos referidos Camões, Gabriel Pereira Castro e
Fernando Pessoa. A partir destes pressupostos, acreditamos que podemos aproximar-nos
da compreensão do motivo que levou Fernando Pessoa a inserir Ulisses ao lado de
286 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas

D. Sebastião em Mensagem – um deles é um mítico rei grego, que teria visitado a


costa portuguesa; o outro é um rei-menino desaparecido e nunca esquecido. Convém
recordar que “O mito é a protoforma da história” (KUJAWSKI, G. M., 1979: 35), isto é,
o mito antecede os fatos históricos e, certamente, podem registrar ou mesmo alterar os
registros dos fatos reais, em detrimento da verdade mítica existente na compreensão
popular.
A Mensagem ao povo português é, a nosso ver, a revitalização do ser português, a
partir do crescimento do nacionalismo e a reconstrução político-cultural da pátria
lusitana13. Ainda que não seja um mito nacional, Ulisses é utilizado no poema
pessoano como ideal, exemplo e modelo do homem português. O herói grego é o herói
fundador, o pai da nação, o elemento imaginário helenista a formar o inconsciente
lusitano como povo conquistador e criador de cidades em novas terras. No trecho a
seguir, o comentário de Eduardo Lourenço sobre o poema em análise:

Mito, vida que não passa na vida que passa - e toda passa -, lenda a escorrer da realidade.
Foi para Ulisses, incarnação da primeira viagem iniciática da nossa alma futuramente grega,
como ele a sonhava, que o autor de Mensagem compôs os versos famosos (LOURENÇO,
E., 1986: 9-10).

Além de D. Sebastião14, o mito de Ulisses no poema de Fernando Pessoa remete-nos


à outra possibilidade de leitura e de aproximação temática. Uma vez que Ulisses foi
imortalizado pelo poeta grego Homero, igualmente seria lembrado como fundador
de Lisboa, através do poema pessoano. Assim sendo, a origem mítica da capital
lusitana estaria indelevelmente relacionada a um dos maiores guerreiros helênicos15.
Acreditam os poetas admiradores de Homero que toda grande obra de literatura, ou
é a Ilíada ou é a Odisseia. O Ulysses pessoano é, desse modo, a Odisseia revisitada em
reduzidíssimos versos pessoanos.
Claro está que “O assunto da Mensagem não são os portugueses ou eventos
concretos, mas a essência de Portugal e a sua missão por cumprir” (COELHO, J. P., 1983:
108). Desse modo, “O grande feito português, na visão sebastianista e messiânica
que preside Mensagem, está na iminência de vir” (GARCEZ, M. H. N., 1989: 100), de

13 Cf. o comentário de Jacinto Prado Coelho: “Pois na Mensagem é a redução a um pensamento que descarna,
espectraliza as personagens da História nacional” (COELHO, J. P., 1983: 108).
14 Leia-se o que Marcel Detienne escreve sobre o herói Fundador: “As cidadezinhas, recém-implantadas, vão
dar a si mesmas, na geração seguinte, um culto de tipo político: o de seu Fundador, heroizado após sua morte”
(DETIENNE, M., 2013:47).
15 Cf. Agostinho da Silva (SILVA, A. da, 1958:27-28) e Jean-Pierre Vernant (VERNANT, J.-P., 2002:200).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 287

vir-a-ser, o devir português. Explicaria isso o seguinte verso de Fernando Pessoa no


poema O Infante, que integra a segunda parte de Mensagem: “Senhor, falta cumprir-se
Portugal”. Por estas palavras e ideias supracitadas, acreditamos que a Mensagem
de Fernando Pessoa ao povo português é, de fato, o incentivo à revalorização do
passado mítico lusitano, para a construção de um futuro pentaimperial. Retomamos
o fragmento citado como epígrafe do presente texto: “A pátria fugira da terra para
a região aérea da poesia e dos mitos” (MARTINS, J.P. O., 1882:69). Parece-nos que
Fernando Pessoa compreendia Portugal como uma pátria física, inserida nos debates
das questões políticas europeias do início do século XX. Compreendia igualmente que
o seu país possuía uma estrutura imaginária e metafísica, em que dialogava o poético
e o mítico. A Mensagem pessoana é o registo escrito deste diálogo, transposição da
memória coletiva e valores do seu povo.

Bibliografia

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Heteronímia como ficção de autognose

Stélio Furlan
Universidade Federal de Santa Catarina

Palavras-chave: Modernidade, Heteronímia, Geração Orpheu


Resumo: Este ensaio dedica especial atenção à metáfora da máquina (mékhané)
enquanto princípio construtivo vital à montagem do cosmopoema “Ode marítima”, de Álvaro
de Campos, lançado no segundo número da revista Orpheu, em 1915, no qual se configura uma
autêntica “experiência oceânica”. Identificar em que medida tal poema contribui para formação
do estatuto mítico de Pessoa enquanto poeta da modernidade é o objetivo que condiciona a
tessitura deste trabalho.

“engrenagens para montar e desmontar”


“o mundo sem centro, sem Eu”.
(Ítalo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno, 2002)

No capítulo intitulado “Numa rede de linhas que se entrecruzam”, do livro de Ítalo


Calvino Se um viajante numa noite de Inverno, há uma imagem que nos interessa:

Especular, refletir: toda a atividade do pensamento me remete aos espelhos. Segundo Plotino,
a alma é um espelho que cria as coisas materiais refletindo as idéias de uma razão superior.
Talvez seja por isso que eu preciso de espelhos para pensar: só consigo concentrar-me
quando em presença de imagens refletidas, como se minha alma tivesse necessidade de um
modelo para imitar toda vez que exercita a sua virtude especulativa. (O adjetivo assume
aqui todos os seus significados: sou ao mesmo tempo um homem que pensa e um homem
que tem negócios, além de ser colecionador de aparelhos ópticos.)
Tão logo levo um caleidoscópio ao olho, sinto que minha mente, ao ver os fragmentos
de cores e linhas heterogêneas agruparem-se e comporem figuras regulares, encontra
imediatamente o procedimento a ser seguido — mesmo que seja apenas a revelação
peremptória e lábil de uma construção rigorosa que se desfaz a menor batida de unha nas
paredes do tubo, para ser substituída por outra em que os mesmos elementos convergem
num conjunto diferente (CALVINO, I., 2002: 165).
292 100 Orpheu Stélio Furlan

Afora esse lábil, variável, mutável olhar caleidoscópico, dada multiplicidade de


perspectivas que aciona, outra imagem de Se um viajante numa noite de Inverno que
instiga é a que calha ao viajante chamado Flannery, cujo tom confessional revela sua
ambição de captar «o mundo sem centro, sem Eu». Não é muito difícil imaginar uma
leitura em paralelo com a ficção heteronímica pessoana, o grande palco da escritura.
Em sentido amplo, o que anima o nervo verbal deste ensaio consiste numa
indagação sobre como Fernando Pessoa dá conta das tensões da modernidade, de
como o poeta vivencia, incorpora e codifica tais tensões. Em recorte mais preciso,
e mais condizente à efeméride do centenário de lançamento da Revista Orpheu,
interessa a atração pela metáfora da máquina presente em Ode marítima, engenho
de Pessoa-Campos. Privilegia-se o estudo de um dispositivo cognitivo no qual a
tópica da viagem se articula à incorporação poética do mecanicismo como material
criativo, noutras palavras, na engrenagem que se torna princípio construtivo vital
à montagem desse cosmopoema, no qual se configura uma “experiência oceânica”
outra.
Não se pode discorrer sobre “experiências oceânicas”, melhor, figurações da
máquina do mundo, sem evocar, de imediato, o canto décimo de Os Lusíadas (1578),
de Luís de Camões. A poesia camoniana é, por certo, uma membrana sensível na qual
freme um ar do tempo, ou janela aberta aos ventos das inquietudes e das certezas
renascentistas. Conforme se lê nos versos de A máquina do mundo repensada, de
Haroldo de Campos, «ao bravo gama a máquina se oferta/ do mundo» (CAMPOS,
H., 2004: 21. Camões a descreve com a pena da cosmogonia ptolomaica e as tintas
da escolástica medieval e do catolicismo contra-reformista.1 A sua vez, Carlos
Drummond de Andrade, em Claro Enigma (de 1951), glosa o tema da revelação do
arquétipo do mundo para demarcar sua recusa por um sujeito poético resignado,
cético, «exausto de tanto mentar» (ANDRADE, C. D., 1998). Já Haroldo de Campos,
nos versos da já mencionada obra, recusa o viés escolástico-metafísico a favor de outro
motor do universo. Como escreve: «e o ciclo ptolomaico assim termina» (CAMPOS, H.,
2004: 32). Daí testar, no «límem do milênio», o

42.1. que a nova cosmofísica por tema


2. estatuiu: a explosão primeva o big
3. – bang – quiçá desenigme-se o dilema!2

1 Vale consultar, a propósito da complexidade do tema, o ensaio intitulado “A máquina do mundo”,


de João Adolfo Hansen (2003).
2 CAMPOS, H., 2004: 37
Heteronímia como ficção de autognose 293

Se a figuração da “máquina do mundo” em Camões e Drummond evoca uma aura


metafísica ou, no caso de Haroldo de Campos, é dela agnosticamente despojada,
como essa questão se exibe multiforme na textualidade de Fernando Pessoa?
A rigor, o método de Pessoa consiste em abrir diálogo com escritores renomados para
imprimir um deslocamento capaz de instaurar a diferença no coração da semelhança.
Com Eduardo Lourenço, «Toda a obra de Pessoa é uma disputa concreta com outra obra
sobre que se apóia para a transcender ou lhe imprimir um desvio que inteiramente a
desloca, na forma e na substância, do seu lugar matricial» (LOURENÇO, E., 2002: 238).
Por certo, à “imaginação ciumenta” de Fernando Pessoa não escapa uma tomada de
posição ante o Poema camoniano. Talvez seja forçoso perguntar se aquela figuração
cosmográfico-político-metafísica-da-grande-máquina-do-mundo camoniana não
ganharia nova corporatura nos engenhos de Álvaro de Campos. O que minimiza
o aparente despropósito é a ideia de máquina do mundo associada às “experiências
oceânicas”, entenda-se, invenção astuciosa que dá conta dos «vislumbres visionários
em que o mundo inteiro sugere presentear-se aos olhos humanos. Momento epifânico
em que todas as coisas se revelam embebidas de significação». Para pensar essa
travessia numinosa, culminante, oceânica porquanto ontológica, evoco os energéticos
versos Ode Marítima3 (de 1915), de Álvaro de Campos:

Ó coisas todas modernas,


Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
do sistema imediato do Universo!

Ou, se se quiser, aqueles versos de A Passagem das horas, também de Álvaro


Campos, «Ave, salve, viva a grande máquina do universo!»”, «Máquina universal
movida por correias de todos os momentos» (PESSOA, F., 2004: 184). Acaso estes
excertos não solicitariam uma reflexão sobre o modo pelo qual Pessoa retoma de
Camões o que Camões tomou de empréstimo a Dante... a saber, a ideia de construir
uma figuração poética reveladora da ordenação do universo?
Ora, todo ato de invenção poética diz um artifício que resulta de determinadas
operações técnicas. O artifício desse ato, como quer João Adolfo Hansen, é operado
como máquina, do grego, mékhané, “invenção astuciosa”, como também é operado na
qualidade de machina, melhor, ingenium, que em latim significa o talento intelectual
da inventio retórico-poética (HANSEN, J. A., 2003: 162).

3 Todas as citações do cosmopoema Ode Marítima [1915] foram colhidas em GALHOZ, Maria Aliete. Orpheu
2. Edição fac-similada, Edições Ática, Lisboa, s/d. pp. 69-106. Doravante, nas citações faremos indicação
apenas do número da página(s).
294 100 Orpheu Stélio Furlan

Em Fernando Pessoa a máquina, melhor, o mecanicismo é, mais do que alegoria,


um princípio construtivo por excelência de sua inventio poética. Notar que, para além
de mera reminiscência da invocação às musas como condição de possibilidade da ars
poética épica, os versos da abertura da Ode Triunfal, lançada no número inaugural da
revista Orpheu, em 1915:

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!


Ser completo como uma máquina! 

anunciam o modo pelo qual o dispositivo maquínico atuará como princípio


construtivo na arquitetura do cosmopoema em questão. E o mesmo se pode dizer do
cosmopoema Ode Marítima. Numa primeira leitura, esse poema lançado em junho de
1915, no segundo número da revista Orpheu, sugere uma apropriação aos expedientes
da escrita automática surrealista enquanto texto algo desordenado que acumula
enumerações de “cousas navais”... Contudo, aqui não há espaço para improvisos.
Parafraseando José Augusto Seabra, graças à gradação ascendente e descendente,
instauradora de uma circularidade que vai do mínimo ao vasto, do vasto ao ínfimo,
o poema ganha coesão. Ode Marítima (p. 69) se abre com um sujeito sígnico «face ao
oceano, olhando do porto o horizonte distante» (SEABRA, J. A., 1974: 133):

Sózinho, no cais deserto, a esta manhã de verão,


Ólho pró lado da barra, ólho pro Indefinido, 
Ólho e contenta-me vêr, 
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando. 
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira. [...]
Ólho de longe o paquete, com uma grande independência
de alma, 
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

O volante é o que dá unidade à diversidade desse “turbilhão de sensações


desencontradas”, pois se constitui na correia responsável pelas acelerações e
desacelerações do ritmo do poema. O volante interior do poeta, que remete
metonimicamente ao próprio navio, simboliza a vida marítima exaltada pela ode. Nas
palavras de José Augusto Seabra, o volante constitui a mola impulsionadora, o centro
regulador do poema (SEABRA, J. A., 1974: 131). Assim, à página 76 da ode publicada
no segundo número da Revista Orpheu, lê-se:
Heteronímia como ficção de autognose 295

Sôa no acaso do rio um apito, só um. 


Treme já todo o chão do meu psiquismo. 
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.

Na página seguinte:

Toma-me pouco a pouco o delírio das cousas marítimas,


Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera, 
O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos, 
E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das ágoas, 
Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na mi-
nh’alma 
E a aceleração do volante sacode-me nítidamente.

E, mais adiante (pp. 78-79):

Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre. 


Sinto corarem-me as faces. 
Meus olhos conscientes dilatam-se. 
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança, 
E com um ruído cego de arruaça acentua-se 
O giro vivo do volante.

A mencionada aceleração do volante solda-se ao ritmo do poema, que ganha


agilidade graças à constância das aliterações, das anáforas, das acumulações
reiterativas, enfim, processos repetitivos que criam a ilusão de uma continuidade
sonora. E o ritmo do poema se intensifica até que esta situação narrativa leve a uma
ruptura, o que se pode chamar de o esfacelamento do eu:

Parte-se em mim qualquer cousa. O vermelho anoiteceu. 


Senti de mais para poder continuar a sentir. 
Esgotou-se-me a alma, ficou só um éco dentro de mim. 
Decresce sensivelmente a velocidade do volante. 
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos. 
Dentro de mim ha só um vácuo, um deserto, um mar noc-
turno. 
E logo que sinto que ha um mar nocturno dentro de mim, 
Sobe dos longes dêle, nasce do seu silêncio, 
296 100 Orpheu Stélio Furlan

Outra vez, outra vez, o vasto grito antiqüíssimo. 


De repente, como um relâmpago de som, que não faz baru-
lho mas ternura, [...]

Curioso notar que a aceleração do volante, correia contínua na roda da máquina,


associada a um excesso de sensações, abre uma fenda no tempo, que permite ao sujeito
poético ouvir um “vasto grito antiqüíssimo”: é a voz do passado e dos antepassados
o que ameniza o torpor e a dolência do poeta imerso no nevoeiro da modernidade.
Esse vasto grito antiquíssimo nos leva a pensar numa vida jogada na obra, na
heteronímia como gesto. Em sentido amplo, o processo de despersonalização
dramática, o “drama em gente” heteronímico aponta além das máscaras, para
caminhos. Vale lembrar que Pessoa descendia de famílias oriundas dos primórdios
da nacionalidade, umas do norte, outras do centro, outras do sul de Portugal. Em
consequência, compreender a heteronímia como ficção de autognose implica pensar
que o desejo de outrar-se, de fazer valer a pena a máxima “sermos tudo”, se alia à
demanda de “um conceito português da vida”, melhor, vincula-se à codificação da
alma nacional.
Assim, esse esforço de engendração poética resulta no aparecimento dos três
principais heterônimos, a saber, Ricardo Reis, nascido no Porto; Álvaro de Campos,
em Tavira (no Algarves, sul de Portugal); e Alberto Caeiro, que nasceu na imaginação
de Pessoa em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Nesse sentido,
ler a ficção heteronímica como personas, olhares, rostos vários de uma imagística
nacional outra, marcada pela vocação universalista da alma lusitana, é o que a nosso
ver permite maior rendimento teórico.
A propósito da ficção heteronímica, não poderia deixar de mencionar o ensaio
“Fernando Pessoa ou o não-amor”, publicado em Fernando rei da nossa Baviera, no qual
Eduardo Lourenço afirma que Pessoa gestou todo um elenco de «criadores-criaturas
ou criaturas-criadores de universos poéticos autónomos, constituindo entre eles uma
espécie de constelação ou galáxia sem outro centro ou sujeito que o eu ausente. A sua
obra é a glosa desta ausência feita poema» (LOURENÇO, E., s/d.: 57). Nesse sentido,
a textualidade pessoana, todo um conjunto de obras-fragmentos, passa a ser definida
como a dramaturgia poética do Eu capaz de metonimicamente traduzir um ar do
tempo:

Pessoa está em toda a parte e em nenhuma. Nós só podemos interinar o mito criado pela
sua obra ou recusá-lo. Seja como for, esse mito tornou-se uma das referências chaves do
século XX, fazendo, por assim dizer, corpo, com o seu próprio mito de século explodido
(Idem: 12).
Heteronímia como ficção de autognose 297

Noutras palavras, a fragmentação do eu encena um contexto, metaforicamente


dizendo, o nevoeiro da modernidade, sendo que, ainda com Eduardo Lourenço,
nenhum poeta da modernidade soube exprimir

como Pessoa esta absoluta perdição do sentido do nosso destino, enquanto mundo moderno,
e isto bastaria para que o autor da Tabacaria se tivesse convertido não apenas no mito que é
para nós, mas numa das referências-chaves da Cultura contemporânea. De uma maneira ou
de outra, o homem moderno comparticipa desse sentimento de radical solidão e de absurdo
que pouco a pouco emergiu com o processo de isolamento e de inumanidade da civilização
actual (Idem: 19).

Se o modernismo português não foi um movimento homogêneo, mas coexistência


multímoda de diferentes “ismos”, Álvaro de Campos é o que melhor dramatiza o
mosaico de poéticas então vigentes e todo um carnaval de sensações. Por certo que se
trata de um sujeito sígnico. Não existe fora da linguagem. É um efeito de real, decorrente
de um artifício. Em consequência, Álvaro de Campos aprofunda a virtualidade de
um acontecimento verbal. Mas é mediante tal virtualidade que Pessoa-Campos aufere
uma carnação ao ímpeto avant garde de libertar a escrita literária das convenções
e das regras. De fazer valer a liberdade de concepção, de pesquisa estética sem, no
entanto, abrir mão da consciência/consistência artesanal.
Em Ode Marítima, a metáfora do volante atua como seu centro regulador, o que
assegura coesão ao poema. Por volante leia-se uma pesada roda, cuja inércia atua como
força reguladora do movimento de um maquinismo. Pode significar também a correia
contínua na roda das máquinas. Álvaro de Campos não só transforma a máquina em
matéria do poema, como também faz dela a metáfora de seu engenho poético.
Curioso notar que ao longo dos versos de Ode Marítima, o engenheiro Álvaro
de Campos, a contrapelo do tom entusiasta de Ode Triunfal, lançada no número
inaugural da Orpheu, em março de 1915, no qual se exibe amador da futurista “beleza
da velocidade”, sugere agora um cansaço ante a civilização tecnocrática. E a poesia
da viagem, com Jacinto do Prado Coelho, transforma-se na grave poesia do cais,
carregada de sonho e sentido.

Campos prefere ficar no cais, vendo os paquetes que entram e saem do Tejo, meditando no
“mistério alegre e triste de quem chega e parte” [...] transpondo o cais em que está para a
esfera dos símbolos, visionando um “Cais absoluto”, fora do espaço e do tempo, donde viemos
porventura quando nascemos, onde também haverá gente anónima que sofre o mistério de
partir e de chegar [...] De novo o tédio envolve o poeta, crucificado na monotonia dum
existir ocioso. O espectáculo da própria inércia, os sonhos malbaratados, a inconsequência
298 100 Orpheu Stélio Furlan

de tudo fazem-no odiar-se a si próprio, ser grotesco, rei de opereta, “palhaço sem riso, o
bobo com o grande fato de outro [...]” (COELHO, J. P., 1973: 125-126).

Significativa é a passagem em que cede à evocação nostálgica da “época lenta e


veleira das navegações perigosas”:

E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Actual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.

É como se houvesse se desencantado com a ausência, no código estético futurista,


daquela dor mansa à portuguesa, mescla de saudade e melancolia, configuradora, nas
palavras de Eduardo Lourenço, da vocação lírica da cultura portuguesa. No ensaio
“Portugal como cultura”, Eduardo Lourenço define a coloração coletiva do psiquismo
lusitano pela

[…] modulação desse sentimento intenso de fusão com o mundo, ou melhor, com a natureza,
acompanhado de não menos intensa consciência de sua precariedade, alegria na tristeza,
tristeza na alegria. Em suma, uma modulação daquela particular maneira de sentir a vida
que os portugueses resumem na palavra-mito da sua cultura, a saudade (LOURENÇO, E.,
2001: 38-39).

Os versos de Ode Marítima ressumam uma Náusea amplificada pela impotência diante
do que chama o «peso actual» dos tempos modernos. O que justifica, talvez, o atemporal
mergulho simbolista numa “aventura indefinida”. Porém, depois da “fúria marítima”, uma
súbita brisa gelada dissipa a virulência das sensações trágicas e, de certo modo, pacifica-o:

Um calafrio arrepia-me. 
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais
longe, de mais fundo, 
De repente – oh pavor por todas as minhas veias! –, 
Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu
Heteronímia como ficção de autognose 299

dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar! 


Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida […]

Se há a incorporação dos princípios construtivos herdados do futurismo,


evidencia-se aqui uma viragem na direção do Sensacionismo teorizado pelo próprio
Pessoa, para o qual a «única realidade da vida é a sensação»  e  «a  consciência da
sensação»  é a  «única realidade em arte». E mais: esse cosmopoema, que dá conta
da inserção do indivíduo no todo da civilização oriunda da técnica, não recusa um
momento epifânico, equidistante ao teorizado por James Joyce. Vale retomar um
fragmento de Stephen Hero (de 1944), já bastante conhecido dos leitores:

Por uma epifania ele queria dizer uma súbita manifestação espiritual, seja na vulgaridade
da fala ou do gesto ou em uma fase memorável da própria mente. Ele acreditava que toca ao
homem de letras registrar essas epifanias com extremo cuidado, vendo que elas próprias são
os mais delicados e evanescentes momentos (JOYCE, J., 2012: 16).

Antes de Joyce, Pessoa escreve epifanias, no caso, feito corrente de ar que anima o
sujeito poético a retornar às «cousas modernas e úteis». Ao apelar para o sensorial,
o frio repentino ganha correspondência de revelação metafísica, pois faz com que o
sujeito lírico desperte e retorne do “Cais Absoluto” para o cais comum da “Civilização
quotidiana”, para o pragmatismo antilírico das coisas imediatas.

A minha imaginação higiênica, forte, prática, 


Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e úteis, 
Com os navios de carga, com os paquêtes e os passageiros, 
Com as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, ver-
dadeiras. 
Abranda o seu giro dentro de mim o volante.

E então, o sujeito poético torna a vestir a alma com os trajes da civilização, como se
após a apoteótica exaltação, feita de fúria, de ímpeto, da ideia de ser tudo, só restasse
o trânsito desconcertado, menos humilde do que humilhante, da vitalidade do Sonho
para a realidade comezinha cotidiana, um real que resiste ao avesso do sonho: o
utilitarismo pragmático, industrial, comercial da vida.

Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como gentlemen, 


São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões, 
Como gente perfeitamente consciente de como é higiênico respirar o ar do mar.
300 100 Orpheu Stélio Furlan

E, irônico, aceitando resignado e altivo seu destino, despede-se:

Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio 


Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês, 
Muito sujo, como se fôsse um navio francês, 
Com um ar simpático de proletário dos mares, 
E sem dúvida anunciado ontem na última página das gazetas.[...]
Boa viagem! Boa viagem! 
Boa viagem, meu pobre amigo causal, que me fizeste o favôr 
De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos, 
E restituir-me à vida para olhar para ti e te ver passar. 
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto... 

Entre partidas e chegadas, achegamentos e distanciações, o mecanismo do poema


é montado. Numa palavra, gradações. Se, no início dele, há um paquete que chega, ao
final há um navio que parte. Ao longo de Ode Marítima, a circunavegação ontológica
de Álvaro de Campos é atravessada por um excesso de sensações, mas todo ele
orquestrado pelo rigor operacional e pela disciplina interna. Se o heterônimo Ricardo
Reis é exemplo clássico do poeta da contensão, Álvaro de Campos é o que disciplina
o excesso.4
Como vimos, se com o conjunto da ficção heteronímica Pessoa dramatiza a
multifacetada vida lusitana, Álvaro de Campos é o que melhor encarna as seduções
e os abismos do contemporâneo “é o século XX”. Nas palavras de Antonio Tabucchi:

Homem do Sul, nascido à beira-mar, amou o mar e as viagens: e celebrou-as. Nas suas
odes, o mar é a história de Portugal: é a aventura do desconhecido, a obstinação, a ousadia
de um pequeno povo, mas também a violência colonizadora, o Eldorado falhado, a perda
da inocência. Mas amou principalmente a ideia da viagem. Autodefinia-se cosmopolita.
De facto, tinha a alma de um vagabundo prisioneiro na pele de um burguês sonhador. Os
seus críticos dizem-nos que de manhã descia até ao porto de Lisboa e passeava pelo cais
de Alcântara para ver surgir no horizonte os barcos que tinham atravessado o oceano. De
pé, no cais, à espera da sua “viagem” [Ode marítima], cantou com maiúsculas a Viagem e a
Distância, o “Cais Absoluto por cujo modelo inconsciente imitado” os homens construíram
os cais nos seus portos, “o grande Cais Anterior, eterno e divino”. Mas evocou também [...] os
veleiros e os Mares do Sul, o cordame, o alvoroço dos portos exóticos, a maresia, os piratas

4 Vale registrar que, para a compreensão desse artifício poético, faz-se necessário investigar a contribuição de
Cesário Verde à tessitura poética fernandina.
Heteronímia como ficção de autognose 301

e os velhos marinheiros. E ilhas rosadas com palmares oleográficos. Os lugares das suas
viagens eram lugares geométricos, cabem no espaço do conceito e do desejo (TABUCCHI,
A., 1984: 48).

Força é dizer que, do tratamento dado àquele fascínio bem português de uma
ficção poética de viagens, ressuma um ar do tempo. Da versificação exuberante
ao conteúdo semântico afetado por longas enumerações de imagens pulsantes ou
pela “sequência ininterrupta de imagens novas”, passando pelo culto à beleza da
velocidade, pela tematização dos rumores e odores urbanos e marítimos, num tempo
prenhe de tumulto e labirinto, Pessoa-Campos rubrica a persona que melhor delineia a
modernidade à portuguesa. Nas palavras de Isabel Margato, «a fragmentação da figura
do herói, o vazio que tal realidade instaura» (MARGATO, I., s/d.), acrescente-se, o
diálogo com as vanguardas históricas, a autoproclamação de quem se instala e ocupa
ruidosa e furiosamente um lugar, a caleidoscópica poética do olhar, o cosmopolitismo
e a tematização do espaço urbano, mais a consciência distópica do seu tempo, todos
elementos que povoam dita metamorfose poética, são as margens que delineiam a
transbordante modernidade pessoana.
Como vimos, se numa primeira leitura Ode Marítima lembra os expedientes
da escrita automática surrealista, ou um texto algo desordenado que acumula
enumerações de “cousas navais”, observando a sua tessitura constata-se que não há
espaço para o improviso, pois o longo poema é estruturado de modo lógico, coerente,
graças à metáfora da máquina como fio condutor, melhor, do volante cuja gradação
ascendente e descendente instaura uma circularidade que vai do mínimo ao vasto, do
vasto ao ínfimo, do nada ao tudo e do tudo ao nada.
Trocando em miúdos, o jorro enumerativo é falsamente caótico, uma vez que
todo o conjunto de acumulações reiterativas, de onomatopeias, de aliterações, que
substituem a cadência sonora das rimas, fazem um só corpo com o sentido. Noutras
palavras, a ode não deixa de figurar uma experiência oceânica outra marcada por
nova visão de mundo oriunda do processo industrial e sugere tecer uma resposta
crítica ao desafio de Marinetti, que se indagava sobre «que tipo de literatura pode
surgir oriunda da técnica?». Nessa rede de relações, caberia perguntar ainda se acaso
o fenômeno da heteronímia, com o seu alto grau de despersonalização poética, com
a fragmentação da alma em outros personas, não seria um desdobramento lógico do
que Marinetti pontifica no Manifesto Técnico da Literatura Futurista, de 1912, cito: é
preciso «Destruir na literatura o ‘eu’?»
Diálogo com emulação, suplemento, por certo, pois, para Pessoa-Campos, associar
futurismo e Orpheu seja «a coisa mais disparatada que se pode imaginar» (PESSOA,
F., 1987: 208), como escreve em carta datada de quatro de junho de 1915. Embora
302 100 Orpheu Stélio Furlan

haja elementos que evidenciem essas remissões intertextuais de modo mais explícito
em Ode Triunfal, força é dizer que Campos se distancia do futurismo com uma Ode
Marítima em que a expressão sensacionista é exacerbada até ao espasmo (SEABRA,
J. A., 1988: 235).
Nas palavras de Nelly Novaes Coelho, mais «do que a euforia futurista de Marinetti,
as odes de Álvaro de Campos expressam a experiência quase apocalíptica do poeta
contemporâneo, ao pretender expressar um mundo que ultrapassou sua capacidade
normal de apreensão» (COELHO, N. N., s/d.). Em consequência, a avant garde prosa
dos versos de Campos integra poeticamente o ser humano na inquietante realidade
do começo do século XX.
Pessoa-Campos não se contenta com o espetáculo do mundo. Artífice do excesso de
expressão poética, ele se circunscreve no domínio de Eros, logo, encarna um princípio
de ação. Se Eros simboliza o desejo, cuja energia é a libido, a contrapelo dos demais
heterônimos, nele se corporifica uma «atitude enérgica, vibrante, cheia de admiração
pela vida». E, ao mesmo tempo, não é menos certo dizer que Pessoa-Campos exibe
a consciência do seu tempo. Assim, não se pode dizer que essa inventio poética
traduza um elogio acrítico a positivar «tempos modernos»; antes, compendiando as
preocupações de uma geração, revela-se consciência distópica, leia-se um testemunho
das contradições próprias à modernidade.
Em suma, afora incorporar aquela noção de máquina enquanto invenção astuciosa
e assimilar irônica e poeticamente os elementos da civilização industrial para
transformar a metáfora da máquina e do mecanicismo em material criativo, talvez se
possa dizer que no olhar caleidoscópico de Pessoa-Campos não se disfarça o desejo de
tornar o próprio corpus todo um cosmopoema: «ser toda a gente e toda a parte»: «Afinal»

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio  


De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh’alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,  
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,  
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,  
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,  
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,  
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!5 

5 PESSOA, F., 2004: 228. Grifos meus.


Heteronímia como ficção de autognose 303

Bibliografia

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304 100 Orpheu Stélio Furlan

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Uma faceta ortónima “non despicienda”

Maria Helena Nery Garcez


USP

Palavras-chave: Ortónimo e edições completas; Ortónimo e cristianismo; Ortónimo e Igreja


Católica; Ortónimo e seu ethos; Ortónimo e despersonalização.
Resumo: Ler a poesia do ortónimo nas edições crítica/completas foi, por vezes, experiência
surpreendente. Poemas, na maioria inéditos, trouxeram novos elementos concernentes à sua
formação, à poética da despersonalização e à sua relação com o cristianismo, fazendo com que
o ethos do ortónimo apresentasse facetas novas quando confrontado à imagem que as edições
tradicionais legaram. Conclui-se que urge revisar e completar o ethos do ortónimo.

Em 1981 defendi a tese de livre-docência Alberto Caeiro/“Descobridor da


Natureza”? na Universidade de São Paulo, tese que meu caro amigo e insigne figura
dos estudos pessoanos, Arnaldo Saraiva, empenhou-se em tornar livro, em 1985,
pelo Centro de Estudos Pessoanos do Porto, pelo que lhe sou profundamente grata.
Naquela obra, refleti sobre a figura do heterónimo Alberto Caeiro como aquele que
estava incumbido da “nova Revelação” (documento 71 A-2), era o “Mestre” dos
demais heterónimos e cuja missão seria a de promover a renascença do paganismo,
“O Movimento Pagão Portuguez” (documento 26-6). Inseri-o, então, na tradição da
poesia da natureza e pude surpreender que sua obra estabelecia polémico diálogo
com um poema/cântico, do século XIII, célebre na tradição cristã, e portador de
uma consagrada visão da natureza. Meu trabalho foi mostrar, através das estruturas
linguísticas, como a poesia Alberto Caeiro era uma paródia do “Cântico do Sol”
de São Francisco de Assis e o anúncio de uma conceção de natureza que se queria
pagã em oposição à visão cristã do Cântico. Penso ter mostrado a existência dessa
paródia, mas ter mostrado também as numerosas vezes em que estruturas linguísticas
utilizadas na poesia Caeiro incorriam nos pretensos “defeitos” que o heterónimo
criticava no Cântico e atribuía à mundividência cristã da natureza e dela desejava
eliminar.
Desta vez, desejo ocupar-me da poesia do ortónimo e achei que, à medida que
for fazendo reflexões sobre esta outra figura do jogo pessoano, seria interessante ter
presente aquele contexto.
306 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

Ler a poesia ortónima d.c., isto é, de depois das edições críticas, constituiu para
mim, por vezes, experiência surpreendente em relação ao que era a leitura a.c., de
antes das edições críticas. Em minha visão, o ortónimo acabou apresentando um
perfil com notas diferentes daquele que seus primeiros editores nos deram. Era o
“fingidor”? Era o vanguardista? Sim, era o “raciocinador subtil”, exato? isso também
estava patente desde poemas de há muito publicados como “Análise” e outros. Mas
o que ficou mais claramente revelado no ortónimo das edições críticas foi que,
mesmo tendo escrito o poema “Isto” em abril de 1933, ele escreveu outros não tão
rigorosamente despersonalizados. Como dizer, por exemplo, que o eu do poema “Un
soir à Lima”(17-9-1935) escreve livre de seu enleio, não usa o coração, ou que nele o
sentir é só para quem lê? O mesmo poderia ser dito doutros poemas que têm a figura
materna como motivo inspirador ou que trazem a figura da “ama”, todos impregnados
de emotividade. Outra faceta ortónima que praticamente não se conhecia nos
poemas a.c., ou só escassamente, diz respeito ao cristianismo. Conhecíamos poemas
esotéricos, mas em relação a Cristo, à Virgem Maria, à espiritualidade cristã, isso
constituiu tal surpresa que me decidi a fazer este texto.
Principio pelo poema cujo incipit é “Senhor, meu passo está no Limiar”, de
15/16-11-19151, no qual o ortónimo dirige uma prece a um destinatário que nomeia
como Senhor, grafado com maiúscula. Pelo seu teor, este pode ser identificado
com o Ser Supremo, com o Deus cristão. O poema guarda analogia formal com
“Ascensão”, de 10-1-1913, revelado como inédito na edição Poesia. 1902-19172. Os
dois são formados por seis estrofes, compostas por decassílabos combinados com
tetrassílabos e hexassílabos, embora sejam diversas as combinações dos metros nas
estrofes. Em ambos, rimas graves e agudas são habilmente distribuídas para salientar
as palavras chaves e neles o tema é a vida de relação com a Divindade. “Ascensão”,
apesar de o poema estar em 1ª pessoa, não é uma prece, mas uma autoconfissão e
“Senhor, meu passo está no Limiar” constitui, como o 1º verso indica, diálogo com
a Divindade.
Neste, o ortónimo revela uma consciência profunda da importância da sua obra
poética num plano que transcende a esfera imanente, ao mesmo tempo em que
formula um complexo pedido de humildade. Eis as primeiras estrofes:

1 Publicado pela primeira vez na edição crítica Poemas de Fernando Pessoa, tomo II – 1915-1920, edição de João
Dionísio, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.
2 Quando não houver outra indicação, as citações da obra pessoana serão extraídas das edições organizadas por
Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. São Paulo, Companhia das Letras, vols. I, II e
III, datados, respectivamente de 2006, 2007 e 2009.
Uma faceta ortónima “non despicienda” 307

Senhor, meu passo está no Limiar


Da Tua Porta.
Faze-me humilde ante o que vou legar...3
Meu mero ser que importa?

Sombra de Ti aos meus pés tens, desenho


De Ti em mim,
Faze que eu seja o claro e humilde engenho
Que revela o teu Fim.

Depois, ou morte ou sombra o que aconteça


Que fique, aqui,
Esta obra que é tua e em mim começa
E acaba em Ti.

Sinto que leva ao mar Teu Rio fundo


- Verdade e Lei –
O resto sou só eu e o ermo mundo...
E o que revelarei. (...)
15/16-11-1915 (I, p.351)

O eu do poema sabe que o seu legado será grandioso, que ele pode ser presa da auto
complacência, daí a humildade pedida como dom; sabe que a sua virtude não será
suficiente para criá-la em si. Qualifica seu ser de “mero”, pouco importante. A 2ª estrofe
enfatiza, platonicamente, que o eu é “sombra” de um “Ti” com maiúscula, a cujos pés
se encontra. Mais: que é um “desenho/De Ti em mim” e irrompe novo pedido: que o
eu ponha seu “engenho” a serviço do Ser Supremo para fazer a revelação de um Fim
também com maiúscula. Aceita e mesmo pede para ser o “mero” instrumento desse
plano que o transcende, mas que o inclui.
Chama a atenção que a prece prossiga fazendo um oferecimento da sua obra à
Divindade numa fórmula em muito parecida à de orações litúrgicas que rogam que uma
determinada ação comece em Deus e n’Ele termine. A do poema diz: “Essa obra que é
tua e em mim começa /E acaba em Ti”. A obra começa no eu, não em Deus, mas como
o eu, de antemão dissera que a obra não era dele, mas do “Senhor” – “é tua” – podemos
considerar sua formulação equivalente às tradicionais. O cuidado de explicitar que a

3 Palavra dubitada: legar.


308 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

obra “acaba” no “Senhor” é digno de nota, pois os que se exercitam na vida espiritual
conhecem bem que esse é um dos escolhos da navegação: pode-se começar uma
obra em Deus, mas, ao longo do caminho, consciente ou inconscientemente, ir-se
desviando e afastando do Fim proposto. O ortónimo demonstra-se conhecedor desse
meandro da vida interior.
Enquanto, na 4ª estrofe, para a obra que produz utiliza a metáfora “Teu Rio”,
qualificado de “fundo”, àqueles aos quais a obra se destina, o público, o eu poético
utiliza a metáfora do “mar”, que é para onde o “Rio fundo” leva “Verdade e Lei”.
Na Bíblia, o simbolismo do mar é ambivalente. O Génesis conta que os mares,
criados por Deus, são bons. Ele povoou o mar de rica fauna não só de peixes “normais”,
mas também de grandes cetáceos e de seres colossais, apresentados, por vezes, como
símbolos das forças do mal, submissos, contudo, ao Criador. O mar, pelas grandes
dimensões, instabilidade, tempestades, se apresenta muitas vezes assustador e será dele
que, no Apocalipse, sairá o Anticristo: “A Besta de 10 chifres e 7 cabeças” (Ap., 13.1).
A obra do ortónimo, começando e terminando na Divindade, “leva” “Verdade e
Lei” com maiúsculas ao “mar”, esse imenso e instável espaço mesclado de bem e de
mal, para lá cumprir uma missão divina. Nas estrofes finais do poema o eu fala da
“névoa que sobe do alto da montanha/E ergue-se à luz”, “a Tua luz”, como especifica
o verso seguinte, em que Tua é grafado com maiúscula e fala-nos de seu desejo:
“Eu quero ser a névoa que se ergue/ Para Te ver”. Tanto no Antigo quanto no Novo
Testamento, as grandes teofanias eram precedidas e/ou acompanhadas de névoas ou
de nuvens, às vezes luminosas, às vezes brancas, significando a presença de Deus e seu
mistério. Os dois versos finais da última estrofe dizem: “A humanidade sofredora é
cega – / O resto é apenas ser...4.
Citei os versos conclusivos do poema por considerá-los importantes para o
entendimento do que vínhamos tratando. Se o “mar” é “a humanidade sofredora” e o
eu a considera “cega”, sua obra, enquanto água de “Rio fundo”, leva água da “Verdade
e da Lei” para limpá-la, purificá-la e iluminá-la. Recordemos serem numerosas as
passagens do Antigo Testamento que falam das águas puras dos rios que revitalizam
as securas ao longo das andanças do povo de Israel e são célebres o Eufrates, o Jordão,
as águas que manavam do Templo no livro de Ezequiel, bem como passagens do Novo
Testamento que falam do batismo no Jordão e do rio da vida que, no Apocalipse, brota
do trono de Deus e do Cordeiro. Fica implícito que o eu do poema não está incluído
na humanidade “cega”. Se sua obra leva “Verdade e Lei”, é que o eu as conhece e se
considera em condições de almejar erguer-se para ver o seu Senhor.

4 Antes do poema o autor escreveu: Ao visionar as ideias finais da m[inha] filosofia.


Uma faceta ortónima “non despicienda” 309

Imediatamente a seguir a um poema como este, chama a atenção o de 12/12/1915,


escrito nem um mês após o que acabamos de analisar, intitulado “O barco abandonado”.
Neste, deparamos com um ortónimo em que tudo é incerteza, dúvidas, interrogações:
“De que serve a vida?/Para que a dor?/ (...) //Vamos indo, indo,/ Sem se definir (...)
// Lá iremos ter.../ Lá – parte nenhuma/ vida que viver.../ Sussurro de espuma...”, até
chegarmos à 11ª e 12ª estrofes, em que: “Tudo é como é/Sem que seja nada.../ Quem
me dera a fé/ E o sol sobre a estrada! // O rio não tem ponte. A alma não tem cor... O
sol, que desponte/ Mas nunca o amor...”. (I, p.352-3) É como se o ortónimo sentisse a
necessidade de fazer a palinódia do poema escrito vinte e sete dias antes: não vão “os
que me leem” pensar que acredito no que escrevi no anterior...
Passemos ao mencionado poema “Ascensão”, de 10-1-1913. Inédito até a edição
de 2006, esse poema ombreia o ortónimo com poetas de inspiração espiritualista do
século XX. Cristã, pura e simplesmente, ou cristã gnóstica se assim se quiser, essa
outra faceta completa e enriquece o nosso conhecimento do génio Fernando Pessoa.
Penso tratar-se de poema que revela um conhecimento de experiências de não
principiantes na vida da oração mental cristã. Místicos como Teresa d’Ávila ou João
da Cruz, ao tratarem de fenómenos espirituais, falam de um grau mais adiantado da
vida interior em que o praticante da oração mental já adentrou tanto no exercício da
presença de Deus, que ela deixou de ser uma prática pontual, que se faz pela repetição
de atos e vai se tornando mais duradoura até que chega um momento em que a alma
experimenta a inabitação de Deus em seu interior como uma presença que se faz
contínua. É este o chamado dom da inabitação divina na alma orante, de que, sem
assim nomeá-lo, o ortónimo fala em seu poema “Ascensão”.
Vejamos o 1º verso: “Quanto mais desço em mim mais subo em Deus...” (I, p. 165).
Descer em si mesmo faz pensar na experiência abissal do salmo 1295, em que o eu
que clama por Deus o faz das profundezas do abismo interior; faz pensar também
no solilóquio de Sto. Agostinho noverim me noverim te, profundas experiências de
autoconhecimento à luz da magnitude do conhecimento da Divindade, experiências
de humildade e de elevação, experiências místicas. “Um abismo chama outro abismo”
é aforismo tirado do salmo 42, 7 e bastante citado na mística cristã.
O prosseguimento do poema confidencia a sua trajetória: “Sentei-me ao lar da
vida e achei-o frio,/Mas pus tão alta fé nos sonhos meus/ Que ardente rio/Do puro
Compreender e alto Amor, /Da chama espiritual e interior6/ Deu nova luz ao meu
alheio olhar/ E às minhas faces cor...”. Desgostoso da frieza do puro exercício racional

5 Salmo 129: De profundis clamavi ad te Domine. Missal Quotidiano e Vesperal. Bruges, Desclée de Brouwer&Cie,
p.887.
6 Var. sobrep. para e interior:-divino amor.
310 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

e dele rindo – exercício tantas vezes tão grato ao ortónimo – ao mesmo tempo em
que um “Amor” não baixo, mas “alto”, vindo de outra esfera, por isso com maiúscula,
conferiu-lhe “chama espiritual e interior” e deu “nova luz ao olhar”, “cor às faces” e
mais, porque a 3ª estrofe, surpreendentemente, acrescenta que, na alegria da fé, o eu,
“alma de joelhos”, crê e adora.
Convenhamos estar a lidar com um ortónimo diferente daquele com quem
tradicionalmente lidávamos, quando lemos esses versos e os que agora cito: “Porque
Deus fez de mim o seu altar/Quando Ele me nasceu tal como sou,/ (...)// Eu tenho
Deus em mim... Em Deus existo/ Quando crê, cega, acha-o minha fé calma.../
Maria-Virgem concebeu um Cristo/Dentro em minha alma...” Versos de pura teologia
mística, que poderiam ser encontrados em poemas de santos canonizados. A última
estrofe é que apresentará uma surpresa em parte dos dois versos finais. Após dizer
que a sua alma encontra seus céus dentro de si, que está morta para si em Deus, tudo
teologicamente ortodoxo, vêm reticências e as seguintes indagações: “Mas o que é
Deus? E existe Deus?/ Isso que importa?”. Desta vez, não foi necessário fazer uma
palinódia. A contradição estabeleceu-se no interior do próprio poema, em seu fecho,
espaço de força privilegiada. Quer isso dizer que o fecho anula o que o corpo do poema
colocara? Diria que não, mas que o problematiza, colocando-o sob o signo da dúvida.
Mas será que a atitude dubitativa, polémica, questionadora constitui novidade para
o leitor do ortónimo e de Pessoa, de modo geral? Nos primeiros textos recolhidos no
Poesia.1902-1917, do ortónimo, encontramos os poemas:

“Agnosticismo Superior”

Foi-se do dogmatismo a dura lei


E o criticismo não foi mais feliz.

“Nada sei” o Agnóstico enfim diz...

Eu menos, pois nem sei se nada sei.


15-11-1907 (p.40)
Uma faceta ortónima “non despicienda” 311

“Lirismos”

Não achei dita na crença,


Na descrença não n’a achei;
Qualquer delas que me vença
Na mesma dor ficarei;
Qu’rendo crer quando em descrença,
Descrente ao acreditar,
Em perpétua malquerença
Ao meu perpétuo hesitar.
28-12-1908 (p.56)

Motivo recorrente na poesia ortónima é a insistência sobre as mais variadas formas


e modos de dizer o “não saber”. Nesse “agnosticismo” que qualifica de “superior”, ele
se preocupa com advertir os leitores sobre a sua condição de radicalidade. “Lirismos”,
por sua vez, é uma esparsa exemplar; poderia até ser camoniana, na auto descrição
de um eu em motu perpetuo, pendular, entre crença e descrença. Se o termo fosse
mais bem soante, poderíamos dizer que, além de o poeta ser um fingidor, ele é um
“duvidador”. O que pensar, então, do poema inédito de 30-10-1912, que, embora
lacunar, apresenta, a esse respeito, estes versos fortemente expressivos: “Ateu no
próprio ardor divino/A meio de cantar meu hino/ ‘Sfrio e duvido do meu céu”.7 ?
(I, p. 153). Vem a propósito um trecho de uma reflexão do filósofo Luigi Pareyson,
que insiro: “(...) com a fé, o homem pode atingir a verdade e gozá-la com confiante
abandono, numa plenitude de conhecimento e de vida como nenhuma outra forma
de saber pode assegurar, mas o faz com uma escolha que não pode se realizar de uma
vez por todas, de modo definitivo e seguro, e que deve, pelo contrário, repetir-se a
cada instante, com uma luta intrépida e um contínuo triunfo sobre a dúvida. A fé
une paradoxalmente securitas e insecuritas, a plenitude da posse e a necessidade da
confirmação, a tranquilidade do sucesso e a precariedade da aposta, a serenidade da
descoberta e a inquietude da busca (...)”8. O que vemos no caso do ortónimo é uma
ingente precariedade da aposta, uma aposta retirada quase no mesmo instante em
que é formulada e vice-versa.

7 Trata-se da 6ª estrofe do poema cujo incipit é “O céu ‘stá lúcido e tranquilo” (I, p.153).
8 Pareyson, L. Verdade e interpretação, p.228-229.
312 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

De repente, porém, irrompe este soneto, de 23-3-1930:

Vieram com o ruído e com a espada


Senhores do destino após vencer
E uma após outra foi cada mulher
Os sucessores esconder da estrada.

Eram soldados, com a ordem dada


E vinham sobriamente recolher
O sangue das crianças a morrer
Nos escombros da própria casa achada.

Mas longe, sobre o asno do destino,


Levava a Mãe piedosa aquela dor
Futura que era agora o seu Menino.

Apertava-o ao peito, sob a vaga luz


Que toldava mais as árvores ao sol pôr.
De uma, talvez, seria feita A Cruz.
23-3-1930 (II, p.359)

Principio comentando que, inspirado no episódio da infância de Jesus, conhecido


como a matança dos inocentes e a fuga da Sagrada Família ao Egito, este poema
poderia ilustrar um cartão de Natal. Ele é plástico e piedoso, embora possa ter sido
criado na “inquietude da busca”. Ele anuncia a década de 30.
É composto por decassílabos heróicos, com esquema rímico abba nos quartetos,
cdc ede nos tercetos, e emprego de rimas graves nas rimas a dos quartetos e agudas
nas rimas b, que são mais dramáticas. Nos tercetos, habilmente rima-se “destino” com
“Menino”, incluindo-se entre as duas sonoridades –ino do – c, a rima aguda –or de
“dor”, significando que o destino daquele “Menino” estava imerso em “dor”. No 2ª
terceto, temos “luz” rimando com “Cruz”, mostrando que esta era a meta final do “sol
pôr” da vida do “Menino”. Perícia e sensibilidade extremas demonstrou o ortónimo
ao construir o soneto, também no momento em que, se no 1º terceto se aponta
para a Sagrada Família já livre dos soldados perseguidores, nos narra, contudo, em
perspectiva e com afeto, que: “Levava a Mãe piedosa aquela dor/Futura que era agora
o seu Menino.” Atente-se para a veneração que revela o uso da maiúscula para o
substantivo Mãe. Atente-se, ainda para o emprego da maiúscula para o artigo definido
A, no interior do verso final, não precedido de ponto final, quando diz que de uma
Uma faceta ortónima “non despicienda” 313

dentre as árvores ao “sol pôr, “talvez, seria feita A Cruz”, querendo significar que
não se tratava de uma cruz qualquer, mas d’A Cruz redentora, merecendo portanto
esse destaque. Principia, neste soneto, a manifestar-se a temática da cruz, que
encontraremos noutras composições da década de 30.
Note-se também que, no mesmo dia em que datou o soneto da fuga para o Egito,
datou também e possivelmente mesmo teria escrito o poema: “Quando Cristo, Rei
da Lei,/ Voltou ser, após os três/Dias que Deus deu ou fez,/Viu logo nascer do chão/
Quem lhe roubasse o caixão/E disse: Já me enganei./Adeus, vou morrer de vez!” Será
que esse poema-blague, talvez para neutralizar o efeito piedoso do soneto, merece o
pomposo nome de palinódia? Mas, que o procedimento de dar uma no cravo e outra
na ferradura aqui se manteve, é verdade.
O ortónimo data de 20-1-1933 um de seus mais belos sonetos, em versos
decassílabos, no qual, nesse movimento pendular que o caracteriza, vemo-lo num
extremo de fé e de positividade. Ei-lo:

Cabeça augusta, que uma luz contorna,


Que há entre mim e o mundo que me faz
(Porque em espinhos a auréola se torna?)
Ansiar a minha morte e a tua paz?

A tua história – Pilatos ou Caifás


Que tem? São sonhos que o narrar transtorna.
Não é esse o Calvário a que te traz
Tua sina onde todo o fel se entorna.

Não. É em mim que se o Calvário ergueu.


É em meu coração abandonado
Que Ele, cabeça augusta, alto sofreu.

Quem na Cruz onde está ermo e pregado


O pregou? Foi Romano ou foi Judeu?
Bate-me o coração. Meu Deus, fui eu!
20-1-1933 (III, p. 146)

Se ainda permanecesse dúvida a respeito, esse soneto não revelaria uma vigorosa
faceta mística no ortónimo, já que só um místico o poderia ter escrito? Não há nele
tal envolvimento com a figura de Cristo paciente, que o poema não fica a dever a
314 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

composições de místicos que o celebraram, um São Francisco de Assis, um São João


da Cruz?
O eu defronta-se – real ou mentalmente – com uma imagem de Cristo, somente
a cabeça ou um crucifixo e, ato contínuo, com Ele principia emocionado diálogo, a
quem trata com intimidade, tuteando-O. A abertura do soneto revela, na adjetivação,
grande reverência, “cabeça augusta”, respeito majestático, que se deve ao sagrado;
alude a seguir à luz da auréola que, em seu olhar, embargado pela comoção, se funde
à lembrança da coroa de espinhos. A visão dessa “cabeça augusta” causa-lhe impacto
tão grande que ao vê-la ele anseia a morte para si e a paz para Cristo.
Prosseguindo o seu diálogo que é também oração, ele pergunta-lhe, usando da
indagação retórica, no 2º quarteto, se seus algozes foram exatamente “Pilatos ou
Caifás”, se seu “Calvário” foi precisamente aquele espaço da Palestina onde se passou
a crucifixão, para responder com o monossílabo peremptório com que inicia o 1º
terceto: “Não”, ponto final. Com clareza contundente, prossegue “É em mim que se o
Calvário ergueu”. Ao afirmar que o espaço de seu “coração abandonado” foi o lugar
em “que Ele, cabeça augusta, alto sofreu”, assume que seu coração foi o locus horrendus
dessa “alta” tortura e execução. Daí o terceto conclusivo a ostensivamente declarar que
não se trata de saber se quem o pregou na “Cruz” foi “Romano ou Judeu”, pois quem
o pregou, ele o assume em 1ª pessoa, “fui eu!”.
Salientemos que o soneto se fecha com o pronome “eu”, com toda a intensidade da
rima aguda. Salientemos ainda que ao considerar seu coração o “Calvário” da execução
de Cristo e ao chamar para si o ato de pregar Jesus na “Cruz”, tais procedimentos não
deveriam ser entendidos como referidos apenas ao eu do poema. Não está esse eu a
dizer que o “Calvário” onde a “Cruz” se ergueu não aconteceu num tempo e lugar
pontuais, mas acontece em qualquer tempo e lugar nos corações dos que ignoram
Cristo, vivem como se Ele não existisse, julgam-nO, condenam-nO e crucificam-nO
em seus corações?
No soneto da fuga ao Egito, o ortónimo já principiara a introduzir a presença da
Cruz. Neste soneto que ora nos ocupa, ele se alinha entre os que mais profundamente
meditaram na Paixão de Cristo, os místicos da Cruz, Francisco de Assis, Catarina de
Sena, Henrique Suso, Johannes Tauler, Luís de La Palma, João da Cruz, Pe. Manuel
Bernardes, embora nem todos os citados tivessem sido poetas. Muitos desses, em seus
escritos, chegaram a conclusões semelhantes.
Num poema de 28-8-1927, cujo incipit é: “Não venhas sentar-te à minha frente,
nem a meu lado;”, o eu ortónimo, em dado momento afirma: “Deitei fora entre urtigas
o que era a minha fé,/Escrevi numa página em branco, “Fim”. Tal declaração ocorre
na 3ª estrofe, mas na 6ª, ela ganha em contundência: “Pus o meu Deus no prego.
Embrulhei em papel pardo/As esperanças e as ambições que tive,/ E hoje sou apenas
Uma faceta ortónima “non despicienda” 315

um suicídio tardo,/Um desejo de dormir que ainda vive.” (II, p. 282 e 283). Trata-se de
um poema desabusado, que mais parece Álvaro de Campos do que ortónimo. Ele faz
lembrar o de16-3-1934, que transcrevo:

Eu, que vendi a alma a meio diabo


E a quem, no Carnaval do sem-remédio,
A Sorte pôs, furtivamente, o rabo
Multicolor e mole do meu tédio –

Eu, que não sou ninguém de tanto ser,


E a cuja face a dúvida arrojou
Farinha, a fé que tive que perder,
Água, o desgosto de ficar quem sou –

Eu, assim mesmo, ainda sei mudança,


E, lançado no abismo de aqui estar,
Lembro os meus amplos tempos de criança
E como era rápida a esperança...
Deixem-me ouvir o coração parar!...
16-3-1934 (III, p. 246)

Desabusados dissemos que eram os versos do de 1927. Neles, o “Eu” lamentava


de forma amarga o abandono da fé, a perda das esperanças e das ambições; tudo
parecia estar acabado. Desabusado é também o início do poema de 1934. Este,
construído como uma tripla declaração que o “Eu” faz a respeito de si, principiando
cada estrofe com este mesmo pronome, vai além. É verdade que o “Eu” declara que
vendeu a alma, mas foi “a meio diabo”, o que poderia não ser tão grave como se fosse
ao diabo inteiro. É verdade que a sua vida se tornou um irremediável “Carnaval”,
com maiúscula, no qual a “Sorte”, também com maiúscula, conseguiu introduzir
o “rabo multicolor e mole”– não está escondida nesse “rabo” a imagem do “meio
diabo”? – de seu “tédio”. Essa autoconfissão, feita nos quatro decassílabos da 1ª
estrofe, prossegue nos outros quatro decassílabos da 2ª, em que o “Eu” se acusa de
não ser mais ninguém de tanto se despersonalizar e outrar, de ter uma face sobre
a qual a “dúvida” – atenção! – arrojou “farinha” – “a fé que tive que perder”-, a
“água” – “o desgosto de ficar quem sou –”. “Farinha” e “agua”, matérias básicas para
fazer a máscara do “Carnaval” de que fala a 1ª estrofe. E qual o agente da fabricação
da máscara de que resultou “o desgosto de ficar quem sou”? A nossa já conhecida
“dúvida”.
316 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

A 3ª estrofe de decassílabos, também principiada por “Eu”, vem, contudo, introduzir


outra perspectiva nesse estado de coisas. “Eu, assim mesmo, ainda sei mudança” e
não é por acaso que remete aos tempos de criança; formalmente, o poema rompe
com o esquema de quartetos de decassílabos e se constrói em quintilha. Há algo
novo. Lembrar os “amplos tempos de criança” é desejar sair do esquema em que
tinha entrado é querer ainda ser capaz de mudança. Contudo, a perspectiva que se
lhe acenava para sair desse Carnaval afigura-se “sem-remédio” ao ver-se “lançado no
abismo de aqui estar” e não lhe ser mais possível alçar-se; amargamente, a “mudança”
que sabe, é apenas a de “ouvir o coração parar”.
Se dissemos doutro poema que nele havia palinódia, ouso dizer que neste, de
algum modo, também existe uma palinódia, mas uma palinódia de sua poética da
despersonalização e do seu outrar-se. O ortónimo chega a reconhecer que é “ninguém
de tanto ser” e que se ressente do desgosto de “ficar quem sou”, a ponto de desejar seu
fim por não achar mais caminho de volta a outros tempos mais amplos e nos quais a
esperança estava à mão.
Façamos agora um recuo no tempo, e lembremos o poema de versos livres “Entre
as tuas joias há um anel antigo,” de 1-3-1917. Nele, a propósito desse anel, “com uma
gema dos gnósticos, talismã”, o ortónimo, na 2ª estrofe, faz uma confidência, que diz
respeito não estritamente ao eu poético, mas que, estando em 1ª pessoa do plural,
assume um aspecto coletivo, como se estivesse fazendo um diagnóstico geracional
ou, pelo menos, de um grupo dentro de uma geração. Ei-la: “Nós dissemos à fé da
nossa infância: Vai-te./ Esquecemos o que aprendemos com os beijos de mãe./ Hoje
não somos felizes, nem grandes, e vem/ Sobre nós um tédio”. Porta-voz dessa geração
ou grupo, ele é claro e, em seu presente, o balanço a que chega sobre esse processo
não é positivo sob nenhum ponto de vista; a conclusão é que nenhum deles chegará
a porto algum. A indagação que, então, levanta é: “Quem nos virá dizer as palavras
que Cristo/Deixou secretas no fundo divino do seu coração?/ Sofrer...Toda a nossa
vida dia a dia é isto.../ Quem nos consolará, sendo ele a Consolação?...”(I, p.420-421).
Retornemos aos anos 30 e prossigamos as reflexões a partir do surpreendente
poema:

A Igreja Católica9 cobriu como uma redoma


Meus dias serenos.
Chamo-lhe agora, com razões, a Igreja de Roma.
Sei mais ou sou menos?

9 Var. sobrep. a Católica: materna.


Uma faceta ortónima “non despicienda” 317

Kabbalahs, gnoses, mistérios, maçonarias


Tudo tive na mão
Na busca ansiosa que enche minhas noites e dias.
Mas nunca o meu coração.

De que é que me deserdou a verdade?10


A maçã diabólica
Comi-a, e sou outro, mas quanto?! Oh a saudade
Da Igreja Católica!

Qualquer cousa de mim quebrou-se, como uma mó


Que caísse mal.
Em pequeno eu seguia, magnanimamente só
Sem nada fatal.
20-4-1934 (III, p.261)

Surpreendente é a palavra e não creio seja necessário explicitar razões. Sempre


haverá quem leia o poema acima transcrito como irónico, mas não parece que, neste
caso, tal leitura subsista.
Informa a edição que variante para “Católica” seria “materna”, informação de
interesse, dada a importância que tudo quanto se relaciona com a função de mãe
desempenha na obra do poeta; talvez por isso mesmo o ortónimo tenha evitado fixar
no texto esse adjetivo. Observemos também que, no presente da escrita do poema, o
nome pelo qual ele chama a Igreja Católica é “Igreja de Roma”, fazendo questão de com
isso manifestar não lhe reconhecer o caráter de universalidade. Observemos ainda
não ser nada lisonjeira a comparação da Igreja com uma “redoma” que lhe “cobriu”
seus “dias serenos”, pois viver assim preservado pode significar não ter discernimento
nem gozar do maior dom divino, a liberdade. Mas, imediatamente a seguir a essa
sequência, surge a instigante questão: “Sei mais ou sou menos?”
“Sei mais” agora do que sabia na época da “redoma” dos “dias serenos” e/ou por isso
“sou” mais agora que parece que “sei mais” do que então? Será que o que “sei” agora,
que não estou numa “redoma”, não me faz ser “menos” do que eu era então? Afinal, o
que, efetivamente, importa: saber mais ou ser mais?
Acabados os “dias serenos”, já fora da “redoma”, teve acesso aos saberes que desejou
conhecer: “kabbalahs, gnoses, mistérios, maçonarias”, todos arrolados num plural que

10 Var. subp. para o verso: De que fui deserdado pela verdade?


318 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

lhes tira a gravidade e os reveste de certa ironia. Num verso alexandrino, o eu sintetiza
esse itinerário, não necessariamente cronológico, que, ao fim e ao cabo, ocupou-o
bastante, encheu-lhe o tempo, “mas nunca o [seu] meu coração.” Este último dado é
fundamental e importa não esquecê-lo.
Comido do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, “a maçã diabólica” de querer
igualar-se a Deus, o eu perdeu radicalmente seus “dias serenos”, dias de inocência,
daí sucederem-se as interrogações: “De que é que me deserdou a verdade?” “(...) sou
outro, mas quanto?!” Mal houve tempo de formulá-la quando, surpreendentemente,
irrompe o verso chocante: “Oh a saudade/Da Igreja Católica!” Ironia, dirão alguns.
Talvez, mas, pelo contexto do poema, não parece, apesar de ele fazer “Católica” rimar
com “diabólica” – e ao chamar a atenção para isto, eu mesma forneço armas aos que
iriam levantar esse argumento contra minhas colocações.
A 4ª e última estrofe confirma a leitura que estamos fazendo. Em seu presente, o eu
perdeu a integridade, é como “mó” “que caísse mal”, está quebrado. Não é só Álvaro de
Campos que vê sua alma partir-se “como um vaso vazio”; também o ortónimo vê-se
partido, ele que, “em pequeno”, “seguia, magnanimamente só/ Sem nada fatal”. Indo ao
dicionário Houaiss, encontramos para magnânimo aquele “que, a despeito de todos
os riscos e perigos, age ou pensa desinteressadamente com vistas a servir alguém ou
a encarnar um ideal; generoso; bondoso”. O “pequeno”, que vivia coberto por uma
“redoma” vivia desinteressadamente “só”, generosamente “só”, “sem nada fatal”, donde
se conclui que, em seu presente, ele provavelmente está acompanhado, por um grupo
talvez, e oprimido por previsões funestas.
Semelhante ao poema analisado é o que principia com o verso “Na paz da noite,
cheia de tanto durar”, editado no Poesia.1931-1935 imediatamente a seguir ao que
acabamos de tratar, e datado de Abril de 1934, segundo a nota, à p. 589. Nele, após
confidenciar que leu muitos livros em vão, pois vê que há “paz” na noite acabada, mas
não no seu coração, acrescenta algo significativo: “Criança, era outro... Naquele em
que me tornei,/ Cresci e esqueci./ Tenho de meu agora um silêncio, uma lei./ Ganhei
ou perdi?” (III, p. 262). No poema anterior, a expressão utilizada foi “em pequeno”;
neste, “criança, era outro...”. Dois versos pentassílabos resultam do confronto entre o
passado e o presente: “Cresci e esqueci.” e “Ganhei ou perdi?”. A leitura do primeiro
pentassílabo parece-me desfavorável ao primeiro verbo, pois o resultado de crescer foi
esquecer, logo seu presente não está sendo bom. Quanto ao segundo pentassílabo, a
indagação também merece resposta negativa para o “ganhei”, porque no presente do
eu não há “paz”, ele só tem de seu “um silêncio” e “uma lei”. Ao crescer, perdeu.
Será que ainda se faria necessário tratar de dois outros poemas que, se estivessem
menos lacunares e/ou discutíveis, seriam excepcionais para nossa linha de reflexão,
“O Rei” e “Mãe de Deus”, ambos de 31-7-1935? Reproduzirei aqui apenas a fixação
Uma faceta ortónima “non despicienda” 319

que Carlos Pitella-Leite fez de “O Rei” como soneto, em sua tese de doutorado11, que
foi a fixação do texto que me pareceu a mais convincente, e dele tratarei num breve
comentário:

275. “O Rei”
O Rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei coroaram-nO de espinhos
E por trono Lhe deram uma cruz.

O olhar fito do Rei a si conduz


Os olhares fitados e vizinhos
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
As pálpebras descidas de Jesus.

O Rei fala, e um seu gesto tudo prende,


O som da sua voz tudo transmuda.
E a sua viva majestade esplende;

Meu Rei morto tem mais que majestade:


Fala a Verdade nessa boca muda;
Essas mãos presas são a Liberdade.
31-7-1935 (p. 239 da tese)

Chama-me a atenção, em primeiro lugar, ser o ortónimo o emissor desse poema e


por duas vezes ele usar o possessivo “meu” ao falar do “Rei”, incluindo-se entre seus
súditos: “Ao meu Rei” e “Meu Rei”, principalmente quando lembramos que sobre a
Cruz de Jesus, Pilatos mandara pôr o letreiro “Este é Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus”
(João, 19,19). Trata-se de uma adesão declarada. Chama-me poderosamente a atenção
que ele tenha escolhido para a exaltação de Jesus como seu Rei a contemplação de
Jesus crucificado, confirmando, na esteira de Francisco de Assis, a preferência pela
temática da cruz. Sua “coroa de oiro é luz”, sobrepondo-se à coroa de espinhos que lhe
puseram “os seus mesquinhos” e de “por trono” Lhe terem dado uma cruz.

11 Pequenos infinitos em Pessoa: uma investigação filológico-literária pelos sonetos de Fernando Pessoa. Tese
de doutorado (importante) defendida e aprovada no Departamento de Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro em 28 de março de 2012. Há variantes significativas deste soneto entre as leituras
de Carlos Pitella-Leite e a leitura deste mesmo poema não visto como soneto pelas editoras da Companhia das
Letras.
320 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

Chama-me a atenção o tom devoto, compassivo, o considerar-se, dentre os que


fitam Jesus, aquele a quem “as pálpebras descidas de Jesus” mais fitam, por haver
talvez entre ambos uma compreensão profunda na dor, uma enorme solidariedade.
Chama-me a atenção que o ortónimo diga que “o Rei fala”, embora no penúltimo
verso, ele irá dizer de sua “boca muda”. O Rei fala com seu ser, com o que ele é, e,
embora não se ouçam palavras, diz o 1º terceto que o som da sua voz muda tudo, altera
tudo. O último verso do 1º terceto é luminoso: “E a sua viva majestade esplende”. Na
contemplação extática do eu ortónimo – uso extática com x – numa circunstância
em que menos se poderia esperar, a de estar diante de um crucificado, resplandece
a “viva majestade” de Jesus. Ele o vê com olhos de Fé e de Amor. Daí principiar o 2º
terceto com maior carga afetiva pelo uso do possessivo “Meu Rei morto tem mais que
majestade”. Desta feita, neste ortónimo de 1935, já não há lugar para um poema-blague.
Curiosamente, não retrata Jesus nem na Ressurreição, nem na Ascensão aos Céus.
Retrata-o na Cruz, é nela que ele o vê vitorioso e majestático e daí os dois magníficos
versos finais, com maiúsculas para Verdade e para Liberdade. Aquilo que tinha sido
ceticamente posto em dúvida no diálogo de Jesus com Pilatos – “O que é a verdade?”
é proclamado no penúltimo verso pela “boca muda” do crucificado e confirmado pelo
espantoso achado do verso final – “essas mãos presas são a Liberdade”, um oxímoro de
força extraordinária. Aliás, a melhor caracterização que encontrei, para a poética de
Pessoa, publiquei-a num texto de já alguns anos: ela é uma poética da liberdade12 – esse
valor que é para ele de importância suprema. É isso o que ele vê nas mãos presas do
crucificado, manifestando que Ele se deixou crucificar porque quis, soberanamente,
não por ter sido aprisionado. Importante também é atentar para a data do poema,
31-7-1935.
A esta altura, queria acrescentar uma reflexão sobre a figura da mãe na poesia
ortónima.
Já no Poesia.1902-1917 encontra-se um poema de 1916, sem indicação se inédito
ou já publicado. Trata-se daquele cujo incipit é: “Minha mãe, dá-me outra vez” (I, p, 398).
Nomeia o que deseja ganhar de novo como o seu “sonho”, mas na hora de explicar-lho
diz tudo quanto o “sonho” não é e não encontra termo adequado para dizer o que ele
é. Usa da ontologia negativa porque o que ele deseja é de uma ordem outra, inefável,
uma espécie de paraíso experimentado na infância, no amor de mãe, no aconchego
familiar, tal como mais tarde exprimirá magnificamente no poema ortónimo nuclear
“Un soir à Lima”, de 17-9-1935, que poetiza a experiência de um êxtase ocorrido num
serão familiar em Durban13.

12 Cf. texto de GARCEZ, Maria Helena Nery. “Uma poética grávida de impactos”. Vide Bibliografia.
13 Cf. texto de GARCEZ, Maria Helena Nery. “Uma noite em Durban”, aguardando publicação pela Revista do CLEPUL.
Uma faceta ortónima “non despicienda” 321

Mencionemos ainda os poemas “Virgem Maria”, que embora não trate da mãe do
eu poético, trata da mãe num sentido amplo: “Mãe de quem não tem mãe, no teu
regaço/ Poisa a cabeça a dor universal/ E dorme, ébria do fim do seu cansaço.../E tens
na mão, usado e nunca imundo,/ O pequenino lenço maternal/ Com que enxugas as
lágrimas do mundo.”, de 21-8-1935, (III, p. 435). O “Mater desiderata”, poema sem data,
dedicado a sua mãe, cujo título é uma criação do eu poético à maneira da ladainha
de Nossa Senhora, tão elevado é o amor que à mãe ele dedica. Curiosamente, neste
poema, ele descarta o argumento dos que procuram consolá-lo com a ideia de que irá
encontra-la na “reencarnação”, respondendo: “Mas é a mesma que eu quero,/Essa é
que eu choro em dor...”. Ele prefere a ressurreição: “Quem quero é minha mãe,/A mãe
que tive aqui.” (III, p. 548).14
Concluindo, penso que com as revelações trazidas pelas publicações das poesias
completas do ortónimo é preciso rever posições
No tabuleiro pessoano há o jogo heteronímico e há também a figura do ortónimo.
Não me parece que a visão dos heterónimos tenha mudado tanto quanto a do
ortónimo. Para que o jogo pessoano decorra fidedignamente, é preciso que cada peça
esteja bem definida e seu ethos (como diria Mariella Augusta Pereira em sua tese15)
bem configurado, mesmo se ele for complexo e/ou contraditório.
Dantes, em relação ao ortónimo, fazia-se muito finca-pé no distanciamento, no
vanguardismo, no sentir com a imaginação e não com o coração, no esoterismo e, de
fato, nele tudo isso existe. O mito daquele cerebral, do distanciado que sentia só com
a imaginação e não usava o coração, do “novelo embrulhado para dentro” mostrou-nos,
porém, em poemas d.c., que muitas vezes ele também usa muito o coração, que há
graus naquele distanciamento e o mito está se ajustando mais à realidade. O esoterismo
existe, mas não só. Na poesia ortónima lida cronologicamente, vamos assistindo a
uma progressiva aproximação da figura de Cristo até à adesão extática (e uso extática
com x intencionalmente) manifestada no soneto “O Rei”. Do cristianismo, ele adere
a Cristo e a Cristo crucificado. Também fica clara uma forte ligação entre a fé e a
educação recebida no âmbito familiar, mais concretamente sob a influência materna.
Vê-se, portanto, que o ethos do ortónimo não estava bem caracterizado.

14 Para terminar a sequência, como não citar um poema muito lacunar, mas significativo da importância que
o ortónimo, desde muito cedo, 1-7-1910, atribuía à figura materna, o inédito “Harlot’s song”, que nos traz a
figura de uma rameira do Bairro Alto, sem freguesia, e cantando uma triste canção? Ao ouvi-la, o eu tece
considerações sobre os caminhos da vida e, na estrofe final, fecha assim o poema: “E o mistério de tudo é tão/
Visível na tua vida e fado absurdo/Que esqueço até a compaixão/ E fico [ ] e surdo/E dolorido, como quem /
Pensasse, ó triste, ser tua mãe...” (I, p.100-101).
15 Pereira, Mariella Augusta. A heteronímia: metamorfoses retórico-poéticas. Ethos e pathos nas Ficções do
interlúdio. Tese de doutorado defendida e aprovada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo em 11/07/2014.
322 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

Se, no tabuleiro pessoano, o heterónimo Alberto Caeiro é fundamental na proposta


para uma instauração do neopaganismo, se ele era o grande Pan que renasceu (Cf.
doc.121-99), se “para nos dar a substância absoluta do pagão tinha Caeiro que ser
mais pagão que os pagãos, mais puramente que elles...” pensemos como se torna
mais forte a afirmação de Pessoa quando escreve a Casais Monteiro “pus no Caeiro
todo o meu poder de despersonalização dramática”. Seria, então, um contrassenso
perguntarmos se o ortónimo de alguns poemas d.c., como no muito significativo,
“Un soir à Lima”, constitui sua personalização máxima? Por vezes esse ortónimo não
constitui um contraponto ao heterónimo Alberto Caeiro e vice-versa?
Faço notar ainda que sobre as dimensões do ortónimo aqui tratadas houve, durante
muito tempo, um silêncio, que deu azo ao nascimento e fortalecimento daquela figura
mítica incompleta de que tratamos, talvez porque grande parte dos poemas que li e
comentei estavam manuscritos, eram de difícil leitura e não foram publicados. Talvez.
À medida que vamos chegando aos anos da década de 30 e nelas adentrando,
porém, esse eu que sente não só com a imaginação vai aparecendo cada vez mais e
uma nostalgia das raízes ganha corpo no poema “Un soir à Lima”, enquanto o mítico
“raciocinador exacto” vai cedendo mais espaço “à criança que fui”, embora o poema
em que explode o desejo desse retorno termine em nostalgia:

“Mas, mãe, não haverá


Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é ilusão.
Un Soir à Lima...

Quebra-te, coração... 17-9-1935 (p.448-9)

Parece até que o duvidador venceu. Seria? I do not know what tomorrow will bring.
Fica em aberto.

Bibliografia

GARCEZ, Maria Helena Nery (1985). Alberto Caeiro/“Descobridor da Natureza?”.


Porto: Centro de Estudos Pessoanos.
GARCEZ, Maria Helena Nery (2007). “Uma poética grávida de impactos”. In:
BUENO, Aparecida Fátima et ALII. História, memória e perspectivas. São
Paulo: Alameda Casa Editorial, pp.265-275.
Uma faceta ortónima “non despicienda” 323

PAREYSON, Luigi (2005). Verdade e interpretação. Tradução de Maria Helena


Nery Garcez e Sandra Neves Abdo. São Paulo: Martins Fontes.
PESSOA, Fernando (2006). Poesia. 1902-1917: edição de Manuela Parreira da
Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. São Paulo: Companhia das Letras.
PESSOA, Fernando (2007) Poesia. 1918-1930: edição de Manuela Parreira da
Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. São Paulo: Companhia das Letras.
PESSOA, Fernando (2009). Poesia. 1931-1935 e não datada: edição de Manuela
Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. São Paulo: Companhia
das Letras.
PEREIRA, Mariella Augusta (2014) – A heteronímia: metamorfoses
retórico-poéticas. Ethos e pathos nas Ficções do interlúdio. Tese de doutorado
defendida e aprovada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo em 11/07/2014.
PITELLA-LEITE, Carlos (2012). Pequenos infinitos em Pessoa: uma investigação
filológico-literária pelos sonetos de Fernando Pessoa. Tese de doutorado
defendida e aprovada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
em 28/03/2012.
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa:
Um convite para pensar a modernidade

Fernando de Moraes Gebra


Universidade Federal da Fronteira Sul

Palavras-chave: Modernismo; Vanguarda; Interseccionismo; Heteronímia; Duplo.


Resumo: Na conhecida carta sobre a génese dos heterônimos escrita a Adolfo Casais Monteiro,
Fernando Pessoa comenta que os seis poemas de “Chuva Oblíqua” significaram uma maneira
de garantir a sua autonomia, a sua identidade e a sua existência em relação a Alberto Caeiro.
Nesta comunicação, a partir do exame das imagens, dos símbolos, das metáforas, do processo
de autognose, do componente lúdico (próximo do fingimento de “Autopsicografia”), do plano
rítmico e da sinfonia iniciática, discuto a arquitetura imaginária de Pessoa como resposta ao
dinamismo das sensações da modernidade. Leio “Chuva Oblíqua” como um importante pilar
de sustentação do palco heteronímico, no qual as sensações são interseccionadas e permitem a
construção da base da pirâmide heteronímica.

Introdução

Na conhecida carta sobre a génese dos heterónimos a Adolfo Casais Monteiro,


apesar de ser um texto com elementos ficcionais, Fernando Pessoa escolhe o dia 8
de março de 1914 para ser o “dia triunfal da minha vida” (PESSOA, F., 1999a: 343),
pois é a essa data que o poeta atribui o aparecimento do seu heterónimo Alberto
Caeiro: “aparecera em mim o meu mestre” (ibid.) Surge, então, no palco pessoano
das várias máscaras literárias, “um poeta bucólico, de espécie complicada” (ibid.),
que apresenta uma cosmovisão e uma estética literária diferentes do ortónimo. Este
último, nos dizeres de Carlos Reis, “continua a existir na sua condição de sujeito
poético autónomo” (REIS, C., 1990: 185). Alberto Caeiro pode ser compreendido,
ao negar quaisquer especulações filosóficas e metafísicas, como uma reação ao
transcendentalismo panteísta que emanava dos poetas de A Águia.
Linhas adiante na referida carta, Fernando Pessoa revela o contraponto à estética de
Alberto Caeiro que são os seis poemas que compõem a “Chuva Oblíqua”, de Fernando
Pessoa ele mesmo: “Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando
Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência
como Alberto Caeiro” (PESSOA, F., 1999a: 343). Haveria, portanto, na escrita de
326 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra

“Chuva Oblíqua” uma necessidade de garantir a sua identidade, a sua autonomia, a sua
existência em relação ao mestre dos heterónimos. É o que é possível depreender da
análise feita por Yvette Centeno acerca desse conjunto de poemas. No seu estudo do
poema, a autora comenta que o poeta anseia por uma Totalidade, por um regresso a
uma unidade mítica perdida, a um estado de indiferenciação, que se afirma a cada parte
do poema, mas que “não se concretiza de modo irreversível” (CENTENO, Y., 1976: 78).
A princípio pode parecer estranho supor que tenha havido, na constelação pessoana,
um discurso que se opusesse às inquietações metafísicas tão presentes na obra de Pessoa.
Se por um lado, na poética de Alberto Caeiro, nega-se a visão metafísica decorrente de
um transcendentalismo panteísta, por outro, com “Chuva Oblíqua”, restabelece-se uma
nova visão metafísica decorrente de uma poiese iniciática, não apenas saudosista. Há de
se considerar, nas palavras de Eduardo Lourenço, a obra de Fernando Pessoa como toda
ela atravessada por questões esotéricas: “A poesia ocultista cobre o espaço inteiro da vida e
da obra de Pessoa” (LOURENÇO, E., 1981: 175); “Não há em toda a poesia de Fernando
Pessoa nada mais afirmativo que a pulsão ocultista” (id.: 1981: 176, destaques do autor);
“A visão ocultista permite a Pessoa integrar positivamente o obstáculo des-realizante por
excelência, a Morte, [...] como transparência suprema e supremo repouso” (id.: 1981: 177).
Nesta comunicação, a partir do exame das imagens, dos símbolos, das metáforas,
do processo de autognose, do componente lúdico (próximo do fingimento de
“Autopsicografia”), do plano rítmico e da sinfonia iniciática que, tal como nas
correspondências de Baudelaire, “canta o transporte do espírito e dos sentidos”, discuto
a arquitetura imaginária de Pessoa como resposta ao dinamismo das sensações da
modernidade.

1. Caleidoscópio de sensações

Para Fernando Pessoa, nas iniciações esotéricas, os rituais estabelecem a dimensão


do sagrado e têm como função o despertar da visão psíquica do sujeito, a partir de
uma comunicação marcada por símbolos, que devem ser primeiramente sentidos
para que posteriormente sejam integrados pelo próprio sujeito:

Todos os symbolos e ritos dirigem-se, não à inteligência discursiva e racional, mas à


intelligencia analogica. Por isso há absurdo em se dizer que, ainda que se quizesse revelar
claramente o occulto, se não poderia revelar, por não haver para elle palavras com que se
diga. O símbolo é naturalmente a linguagem das verdades superiores à nossa intelligencia,
sendo a palavra naturalmente a linguagem d’aquellas que a nossa intelligencia abrange, pois
existe para as abranger (Esp. 54 B-20 apud CENTENO, Y., 1985b: 70-1).
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 327

Para o poeta, símbolo e iniciação são formas de comunicação com o cosmos.


Tal iniciação é marcada por um ritual, através do qual são conferidos ao sujeito
conhecimentos que ele jamais obteria pela sua inteligência discursiva e racional, pois a
iniciação contém símbolos que constituem uma linguagem das verdades superiores à
nossa inteligência racional, mas entendidas pela nossa inteligência analógica. O oculto
não pode ser revelado, já que a linguagem simbólica é inacessível à racionalidade.
A integração do símbolo no sujeito faz parte do seu processo de autoconhecimento,
muito presente na Geração de Orpheu. Esta, para além das intenções programáticas de
escandalizar o “lepidóptero” burguês, na expressão de Mário de Sá-Carneiro, dentro
de um contexto vanguardista, assenta no processo de autognose como necessário
para o conhecimento de outros pontos de vista acerca de uma determinada questão.
Esse processo não se faz sem experimentações, sem o exame das várias facetas de um
mesmo objeto. A ilusão de um conhecimento totalizador do mundo abarcado pela
consciência do ser humano, que tinha no discurso científico a resposta para as suas
inquietudes, é posta em causa. O mundo já não pode ser visto pelo prisma positivista,
entendido da seguinte maneira por Carlos Reis:

O Positivismo afirmara certezas que dogmaticamente procurava impor (por exemplo:


a possibilidade de explicar global e coerentemente a sociedade e o lugar que nela
ocupa o indivíduo). Mas quando essas certezas entram em crise, explodem os “ismos”
que em fim-de-século são algo mais do que uma manifestação de elitismo cultural; eles
correspondem também à impossibilidade de circunscrever a relação do sujeito com os
outros e com o mundo nos limites de um olhar dominante ou de uma ideologia definitiva.
O sujeito encontra-se em crise e a sua linguagem será simultaneamente a instância de
manifestação dessa crise e a sede em que ela tentará resolver-se (REIS, C., 1990: 188).

A rapidez das informações, a urbanização acelerada, a industrialização e a primeira


grande guerra vieram a romper na Europa com as formas de representação artística
herdadas da época do Renascimento. O indivíduo já não pode valer-se da ciência como
uma bússola que forneça orientações precisas acerca desse mundo, que se encontra
caótico. O pensamento lógico-racional, de herança cartesiana, iluminista e positivista, já
não dá conta dos múltiplos fenómenos de um contexto urbano-industrial mais complexo.
Mesmo num país como Portugal, situado na semiperiferia do sistema capitalista 1, o caos

1 Conforme Boaventura de Sousa Santos (1992: 107), Portugal esteve sempre na semiperiferia do sistema
capitalista, pois se encontrava em posição central com relação às colónias, porém, em situação periférica em
relação aos grandes centros de produção capitalista. Mesmo com o fim do Império colonial, Portugal mantém
essas características políticas, sociais, económicas e culturais de intermediação entre o centro e a periferia do
capitalismo.
328 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra

resultante da República fornece condições ao artista para o estabelecimento de novos


pontos de vista. “Sentir tudo de todas as maneiras” (PESSOA, F., 1999b: 344): o verso
do heterónimo Álvaro de Campos, do poema “Passagem das horas”, parece oferecer os
métodos de percepção e interpretação dessa realidade multifacetada.
Dos heterónimos pessoanos, Álvaro de Campos parece ser o que mais febrilmente
vive os paradoxos dessa realidade de sensações, simultâneas e descontínuas, e que se
encontram presentes nos poemas da série “Chuva Oblíqua”, de Fernando Pessoa. Há
de se lembrar que, embora apresentem diferentes tendências estéticas e ideológicas, os
heterónimos estabelecem vasos comunicantes entre si, na polifonia e entrecruzamento
de vozes discursivas, o que permite verificar a multiplicidade de sensações da poética
de Álvaro de Campos também presente na série “Chuva Oblíqua” do ortónimo, razão
pela qual me detenho um pouco mais nesse heterónimo para, em seguida, analisar a
estrutura interna de “Chuva Oblíqua VI”.
Como comentado anteriormente, Álvaro de Campos vive de maneira intensa e
febril os paradoxos de uma realidade urbano-industrial multifacetada. Entretanto,
esse heterónimo não consegue equacionar esses paradoxos, pois na dialética do sentir/
pensar (também presente na poética de Alberto Caeiro), Campos parece priorizar a
entrega do sujeito às sensações de maneira subjetiva. Essa poética difere-se, por
exemplo, da do heterónimo Ricardo Reis, pelo facto de Campos preferir ser invadido
por um turbilhão de sensações a ter um controle equilibrado sobre elas, tal como
propõe Reis em sua concepção catártica da literatura, advinda de uma cultura
ancestral, com uma visão estoicista e epicurista da realidade.
É no contexto de Orpheu e não tanto da posterior Athena (em que Ricardo Reis se
faz bem atuante), que Álvaro de Campos apresenta uma atuação mais significativa.
No primeiro número da Orpheu publicam-se, deste último heterónimo, os poemas
“Opiário” e “Ode Triunfal”. No segundo número da revista, apresenta-se outro importante
poema: a “Ode Marítima”. Estas duas odes constituem um louvor à modernidade, a
ponto de o eu-lírico incorporar na teia do seu discurso os movimentos alucinatórios
da modernidade: “Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!/ Forte espasmo retido
dos maquinismos em fúria!/ Em fúria fora e dentro de mim,” (PESSOA, F., 1999b:
306). Tanto a “Ode Triunfal” como a “Ode Marítima” constituem verdadeiros cantos
ao tempo presente, vivenciado na sua plenitude e no seu dinamismo com diversidade
de elementos. O ritmo frenético dessa modernidade sentida na sua plenitude dissolve
o sujeito nas engrenagens dos maquinismos, a ponto de a sua linguagem imitar os
ruídos das máquinas, como ocorre na “Ode triunfal”. O sujeito vive, pois, de maneira
intensa a modernidade, mas é devorado por ela, tal como ocorre com o protagonista
de Tempos Modernos, de Charles Chaplin.
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 329

2. O interseccionismo e o caráter mítico da infância

Por um lado, o mundo encontra-se multifacetado, por outro, o sujeito também


não se apresenta mais estável e dotado de uma identidade coerente. A instabilidade e
a incoerência parecem fazer parte desse sujeito “composto não de uma única, mas de
várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas”(HALL, S., 2006:
12) A obra de arte, nesse sentido, para dar conta dessas mudanças estruturais desses
tempos modernos, passa por importantes experimentalismos que resultam numa
desrealização, entendida por Anatol Rosenfeld como a rutura da perspectiva e do
mimetismo (ROSENFELD, A., 1996: 76). A realidade empírica, no Expressionismo,
passa a ser usada apenas para “facilitar a expressão de emoções e visões subjetivas
que lhe deformam a aparência” (ibid.); no Surrealismo, “fornece apenas elementos
isolados, em contexto insólito, para apresentar a imagem onírica de um mundo
dissociado e absurdo” (ibid.); no Cubismo, é “apenas ponto de partida de uma redução
a suas configurações geométricas subjacentes” (ibid.).
Podendo ser aproximado do Cubismo pela simultaneidade das sensações, o
Interseccionismo de Fernando Pessoa constitui uma importante vanguarda que
responde ao dinamismo dessas sensações. Para Pessoa, um dos processos para se
realizar o Sensacionismo é o Interseccionismo, isto é, “o sensacionismo que toma
consciência do facto de que toda sensação é realmente várias sensações misturadas”
(PESSOA, F., 1998: 442). Vale lembrar que, ao teorizar o Sensacionismo, Pessoa afirma
a sensação como “base de toda a arte” (id.: 448) e que essa deve ser intelectualizada:
“A consciência dessa consciência da sensação, de onde resulta uma intelectualização
de uma intelectualização, isto é, o poder de expressão” (ibid.). Entretanto, “[...]
quando a sensação passa a ser intelectualizada, resulta que se decompõe” (ibid.),
decomposição próxima do Cubismo e que poderá realizar-se no Interseccionismo. A
elaboração estética dessa vanguarda consiste em olhar uma paisagem atravessada por
um sonho sem que um anule o outro. Ambos coexistem, uma paisagem é atravessada
(interseccionada) pela outra, gerando uma estrutura duplicada nas categorias do
discurso: o eu “liberto em duplo” do primeiro poema da série “Chuva Oblíqua”
também duplica as coordenadas espácio-temporais. Conforme Carlos Reis,

[...] se o Interseccionismo compreende um processo de representação que secciona e intercala


planos convergentes do espaço e do tempo representados, ele permite também afirmar um
sujeito “liberto em duplo” e, por isso, muito próximo da fragmentação heteronímica (REIS,
C., 1990: 184).
330 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra

O poema “Chuva Oblíqua VI” apresenta duas paisagens: uma real e presente e outra
sonhada e ausente – a infância. A primeira é composta pelo maestro que “sacode a
batuta” para iniciar uma música “lânguida e triste” ou “triste e vaga”, que transporta o
eu-lírico para “a minha infância”, em um determinado marco temporal: “aquele dia/
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal” (PESSOA, F., 2005a: 217). O aspeto
verbal de duração do verbo “brincar” sugere uma prolongação da ação de jogar uma
bola multicor contra um muro branco:

Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado


O deslizar de um cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo... (PESSOA, F., 2005a: 217)

O brinquedo bola apresenta uma estrutura duplicada: de um lado, encontra-se


o desenho de um cão verde, do outro, há dois desenhos relacionados: um jockey
amarelo montado num cavalo azul. Verde, amarelo e azul: três cores importantes
que são percebidas como símbolos pelo eu-lírico no seu processo iniciático de
desdobramento e fragmentação. O verde, do desenho do cão, “situado entre o azul
e o amarelo”, atuante como um “mediador entre o calor e o frio, o alto e o baixo”,
traz de volta a esperança nos ciclos das estações e relaciona-se ao despertar das
águas primordiais (CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A., 2005: 938-939). Pode estar
relacionado, também, à juventude eterna prometida aos eleitos (id.: 940). No poema,
é o verde a cor responsável pelo movimento giratório das sensações, como se essas
fossem passar, durante o processo ritualístico, por um ciclo de morte e renascimento.
O amarelo, da figura do jockey, tal como o verde, relaciona-se à juventude: “É ele
o veículo da juventude, do vigor, da eternidade divina” (id.: 40). Entretanto, pode
também relacionar-se com a morte, já que, se estou a falar de ritual, é necessário
fazer morrer para renascer. Assim, o amarelo anuncia também o outono, o declínio
(perceptível na última estrofe do poema), a velhice, a aproximação com a morte, na
metáfora do “despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos”, também na última
estrofe. Além disso, o amarelo “extravasa sempre dos limites em que o artista desejou
encerrá-la” (ibid.), multiplicando as sensações por todo o poema.
E, por fim, o azul, a mais profunda, a mais imaterial das cores, é “o caminho do
infinito, onde o real se transfigura em imaginário” (id.: 107). No poema de Pessoa, é
a cor do cavalo, cujo simbolismo “estende-se aos dois polos (alto e baixo) do Cosmo”
(id.: 211). Segundo o Dicionário de Símbolos, “o cavalo passa com igual desenvoltura
da noite ao dia, da morte à vida, da paixão à ação. Religa, portanto, os opostos numa
manifestação contínua” (ibid.). Na estrutura ritualística do poema, o cavalo azul é
responsável pela travessia do sujeito pela paisagem real – o concerto musical – e pela
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 331

paisagem sonhada – a infância. O ausente (infância) torna-se presente no imaginário,


passagem realizada pelo simbolismo que encerra a cor azul do cavalo desenhado na
bola.
O Dicionário de Símbolos reforça a ideia de passagem, ao citar o romance Alice
no fundo do espelho, de Lewis Carroll: “passar para o outro lado do espelho” (id.:
107), ou ainda, do consciente para o inconsciente, tal como propõe o eu-lírico de
“Chuva Oblíqua I”, quando enuncia que a paisagem desdobrada “passa para o outro
lado de minha alma... (PESSOA, F., 2005a: 214)”. Em “Chuva Oblíqua VI”, a bola,
ao ser atirada “à minha infância”, “Atravessa o teatro todo que está aos meus pés”
(id.: 218), o que me convida a deter-me um pouco mais no simbolismo da travessia,
em direção às componentes mais recalcadas da nossa personalidade. No ensaio “A
viagem”, Benedito Nunes descreve como o motivo da travessia faz parte da estrutura,
da temática e das intenções morais dos contos de Guimarães Rosa, o que me permite
estender essas reflexões para os poemas de Fernando Pessoa. Nunes atribui sentido
existencial à viagem, relacionando-a à abertura do espaço, ao desvelar do mundo,
à aprendizagem da vida, entre outros significados responsáveis pela construção
identitária do indivíduo que é, ao mesmo tempo, “objeto e sujeito da travessia, em
cujo processo o mundo se faz” (NUNES, B., 1976: 179).
O espaço abre-se, pois, ao sujeito poético. O muro passa a dissolver sua estrutura
sólida, ainda que provisoriamente, integrando-se ao imaginário do sujeito, a partir
do posposto adjetivo “branco”. Na segunda estrofe, a infância é apenas recordada:
“Lembra-me a minha infância, aquele dia/ Em que eu brincava ao pé dum muro de
quintal” (PESSOA, F., 2005a: 217). Trata-se apenas de um “muro de quintal”, no qual
é lançada a bola multicor. No momento em que ocorre a travessia de espaços e a
intersecção das paisagens, o muro já vem apresentado com a cor que carrega, como
se percebe nos seguintes versos: “De repente entre mim e o maestro, muro branco,”
(ibid.); “Todo o teatro é um muro branco de música” (id.: 218).
O branco pode ser entendido como a cor do candidato, do Neófito do poema, uma
cor de passagem, de iniciação, processo marcado por morte e renascimento, sendo
a cor do “que se reergue e que renasce, ao sair vitorioso da prova” (CHEVALIER, J.,
GHEERBRANT, A., 2005: 143). Cor iniciadora, o branco possibilita a “transfiguração
que deslumbra e desperta o entendimento, ao mesmo tempo em que o ultrapassa” (id.:
144). Para Fernando Pessoa, o símbolo deve ser, pois, primeiramente sentido para que
posteriormente seja entendido e integrado pelo próprio sujeito:

primeiro sentir os symbolos, sentir que os symbolos teem vida ou alma – que os symbolos
são gente. Mais tarde virá a interpretação mas sem esse sentimento a interpretação não
vem. Os rituais, entre outros fins, teem o de fazer sentir ao iniciado pela solemnidade e o
332 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra

deslumbramento a vida dos symbolos que lhe communicam. Quem tenha em si o poder de
sentir prompta e instinctivamente a vida dos symbolos não precisa de iniciação ritual [...]
(Esp. 54 A-97 apud CENTENO, Y., 1985a: 72-3).

Nas iniciações esotéricas, os rituais estabelecem a dimensão do sagrado e têm


como função o despertar da visão psíquica do sujeito, a partir de uma comunicação
marcada por símbolos. Dessa forma, a aquisição de um determinado conhecimento
não ocorre apenas de forma intelectual, mas também de forma sensitiva, por meio
do simbolismo da iniciação, o que justifica a afirmação de Pessoa de que “sem esse
sentimento a interpretação não vem”.
O processo de autognose na poética pessoana, além de relacionado à intelectualização
das sensações, tal como proposto no ensaio sobre o Sensacionismo, apresenta uma
componente lúdica, de jogo, de fingimento, como é possível depreender da leitura
de “Autopsicografia”. O componente lúdico de “Chuva Oblíqua VI” encontra-se
representado pela brincadeira de atirar a bola multicor contra o muro branco,
permitindo a fusão das cores do brinquedo no branco que contem todas as cores. O
próprio brinquedo contem componentes lúdicos, pois apresenta dois desdobramentos,
já que são dois lados e, num dos lados, duas cores, cuja simbologia acabo de descrever.
A partir do lúdico e do imaginário, o eu-lírico liberta-se da realidade material e
vivencia a intersecção das paisagens. Com estrutura morfossintática semelhante
aos poemas anteriores da série “Chuva Oblíqua”, o “liberto em duplo” (PESSOA, F.,
2005a: 214) do primeiro poema transfigura-se em “De repente entre mim e o maestro,
muro branco” (id.: 217). Ora, o muro, elemento da paisagem sonhada e ausente,
movimenta-se entre o eu lírico e a paisagem observada – o concerto musical. E a
partir desta intersecção, outras poderão ser identificadas ao longo do poema, tal como
o verso composto por parênteses: “(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)”
(id.: 218). Neste verso, acelera-se o movimento da bola que emerge da paisagem
ausente e se torna presente entre o eu-lírico e a paisagem real do concerto.
No plano rítmico, é possível dividir o poema em três partes: a primeira, composta
pelas três primeiras estrofes; a segunda, da quarta à sexta; a terceira, composta pela
última estrofe. Nas três primeiras estrofes, inicia-se o movimento da bola (paisagem
sonhada) e da música (paisagem real), que passam a atravessar/interseccionar as
paisagens na quarta estrofe, quando, “De repente”, o muro branco se desloca para a
paisagem real e se interpõe “entre mim e o maestro” (id.: 217). Quando o eu-lírico, no
tempo da infância, atira a bola multicor contra o muro do quintal, o poema começa a
assumir um movimento de vai e vem, imitando, na sua estrutura rítmica, o movimento
deslizante da bola: “Vai e vem a bola, ora um cão verde, /Ora um cavalo azul com um
jockey amarelo...” (ibid.).
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 333

Conforme Yvette Centeno, “Entre a batuta do maestro e a bola branca ergue-se


irremediável o muro do quintal. E de um ou outro lado deste muro sempre Fernando
Pessoa se perderá” (CENTENO, Y., 1976: 91). A simbologia do muro relaciona-o à
“separação entre os outros e eu” (CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A., 2005: 626), o
que permite referendar a proposta de Centeno de que a heteronímia ajusta-se muito
mais à divisão, à separação dolorosa do que à conjunção e à unificação alquímicas,
posições sustentadas por Gaspar Simões e Georg Rudolf Lind, de que Centeno faz
questão de discordar (CENTENO, Y., 1976: 84). Conforme Chevalier e Gheerbrant,
“O muro é a comunicação cortada, com a sua dupla incidência psicológica: segurança,
sufocação; defesa, mas prisão” (CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A., 2005: 626).
A partir da terceira estrofe, as sensações são multiplicadas: “... a minha infância/
Está em todos os lugares [...]” (PESSOA, F., 2005a: 217). O ritmo do movimento (bola
e música) acelera-se: “Tão rápida gira a bola” (id.: 218). Na quarta estrofe, a ação
do eu-lírico de atirar a bola “de encontro à minha infância” (ibid.) funciona como
um acelerador do movimento que adquire um fluxo aparentemente ilimitado, ao
atravessar toda a estrofe sem pausas, o que se percebe pelos enjambements dos versos,
isto é, o primeiro verso da estrofe espraia-se até o oitavo. Na quinta estrofe, o ritmo
ainda é frenético, pois o cão verde e o cavalo azul com o jockey amarelo continuam a
correr “atrás da minha saudade / Da minha infância” (ibid.).
Com a utilização da palavra “saudade”, algo parece romper-se nessa sinfonia
iniciática. Na sexta estrofe, destaca-se a expressão “memórias da minha infância”(ibid.),
homologável à “minha saudade/ Da minha infância”, uma vez que memória e saudade
sugerem uma conscientização do eu-lírico acerca da impossibilidade de se recuperar
o tempo perdido.
Na última estrofe, o movimento desacelera-se e o concerto termina, como pode
ser observado nas seguintes expressões: “música cessa”, “muro que desaba”, “bola rola”,
“despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos”, “o maestro, jockey amarelo, tornando-se
preto”, “pousando a batuta”, “fuga dum muro”, “curva-se”, “desaparece-se”, “costas abaixo”
(ibid.). O movimento é de queda: “a bola rola”. Nessa homofonia marcada pelo fonema
vocálico /o/, arredondado, e pelo fonema consonantal /l/, imita-se o deslizamento da
bola. Esta desliza-se, rolando em movimento descendente. Fecha-se o telão multicor;
como soem ocorrer nas imagens de um filme, as imagens simultâneas apagam-se e a
tela torna-se preta, ausente de cor.
A ausência de cor é uma das tantas aceções que o Dicionário de Símbolos regista
para a cor preta, apresentando um duplo aspeto: “Enquanto imagem da morte, da
terra, da sepultura, da travessia noturna dos místicos, o Preto está também ligado à
promessa de uma vida renovada, assim como a noite contém a esperança da aurora
[...]” (CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A., 2005: 743, destaques dos autores). No
334 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra

aspeto psicológico dos sonhos diurnos e noturnos e das percepções nas vigílias, os
autores do Dicionário de Símbolos consideram o preto como “ausência de toda cor,
de toda luz. O preto absorve a luz e não a restitui. Evoca, antes de tudo, o caos, o
nada, o céu noturno, as trevas terrestres da noite, o mal, a angústia, o inconsciente e
a Morte”(id.: 742).
Conforme Yvette Centeno, no seu estudo sobre a série poemática “Chuva Oblíqua”,
no poema I, “A sombra (o inconsciente) apoderou-se da alma do poeta. Saberá ele
integrá-lo, torná-lo luminoso?” (CENTENO, Y., 1976: 85); no poema III, “[...] o
elemento noturno, negativo, será destruidor”(id.: 87); no poema VI, “O negro não
se reúne no branco [...] Mas a cor amarela, do jockey, que se modifica no sentido
do negro, e não do branco, indica o retrocesso que se opera [...]” (id.: 91). “Sombra”,
“inconsciente”, “noturno”, “negativo”, “retrocesso” são algumas das imagens relativas
à cor preta, segundo Yvette Centeno, que corresponde às imagens apontadas pelo
Dicionário de Símbolos.

3. A “dança de mágoas” e a fragmentação heteronímica

Como se vê, em “Chuva Oblíqua VI”, todo o palco das sensações é desmoronado, o
que permite conjeturar que o Interseccionismo ainda não será a resposta perfeita que
Fernando Pessoa dará ao vazio, evidente no poema “Como inútil taça cheia”, escrito
em 19 de agosto de 1930.

Como inútil taça cheia


De que ninguém bebeu,
Transborda de dor alheia
Meu coração que foi meu.

Sonhos de mágoa figura


Só para ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se enternece a fingir.

Ficção de um palco sem tábuas


Vestida de papel-seda
Dança uma dança de mágoas
Para que nada suceda (PESSOA, F., 2005b: 383).
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 335

Da mesma forma que em “Autopsicografia” o coração é metaforizado em “comboio


de corda”, com a função de “entreter a razão”, em “Como inútil taça cheia”, o processo
comparativo ocorre em três direções: “taça cheia” (primeira estrofe), “sonhos de
mágoa” (segunda estrofe) e “ficção num palco sem tábuas” (terceira estrofe). O coração
finge-se na sua plenitude (“taça cheia”) a transbordar de “dor alheia”, as dores dos
outros, no processo de alteridade que se ergue pela estética do fingimento, do tornar-se
outro, como fica evidente nos versos “Meu coração que foi meu”, “Sonhos de mágoa
figura” e “Que se temeu a fingir”. Afirma-se, nesse poema, a estética do fingimento ou,
ainda, a metamorfose do eu em outros eus, a ponto de o coração transbordar de “dor
alheia”.
O poema apresenta muitas imagens do vazio: “De que ninguém bebeu” (ou a
variante sobreposta “Ninguém ergue da mesa”), “Meu coração que foi meu” (ou a
variante sobreposta “Meu coração de tristeza”), “Ficção num palco sem tábuas”.
Fundamental é a imagem do “palco sem tábuas” que pode ser entendida como o
palco heteronímico do “drama em gente”, o palco do sonho que se ergue para receber
essa dança das mágoas dos vários heterónimos. A plenitude (o tudo) contrapõe-se
ao vazio, como “a carroça de tudo pela estrada de nada”, imagem da “Tabacaria”, de
Álvaro de Campos (PESSOA, F., 1999b: 362). Plenos são a “taça cheia” que “transborda
de dor alheia”, os “sonhos de mágoa” e a “dança de mágoas”, que se opõem ao vazio das
figuras “meu coração que foi meu” e ao “palco sem tábuas”.
Entendo o problema do vazio no sentido atribuído por Leyla Perrone-Moisés, ao
relacionar, pela abordagem psicanalítica, o processo da heteronímia ao preenchimento
de um vazio de um sujeito que se vê falhado. Dito de outra forma, ocorre “a multiplicação
do mesmo em outros, mas o desencadeamento de uma alteridade tal que a volta ao
Um se torna impossível” (PERRONE-MOISÉS, 2001: 35). Seguindo essa linha teórica,
é possível rastrear na poética de Fernando Pessoa – tanto na do ortónimo como na
dos heterónimos – inúmeros exemplos da consciência desse fracasso. Em “Tabacaria”,
de Álvaro de Campos, por exemplo, o verso “Falhei em tudo.” (PESSOA, F., 1999b:
363) é homologável aos três primeiros versos do referido poema: “Não sou nada. /
Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada”(id.: 362). O quarto verso sugere um
contraponto: “À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo” (ibid.).
O palco da heteronímia pessoana reveste-se de uma ficcionalização de sensações
– abstratas, portanto – que não precisa de suporte de uma realidade lógico-racional
para se sustentar, já que se ergue no palco dos sonhos – espaço da plenitude – uma
vez que o tempo da infância torna-se irrecuperável, expondo um sujeito dividido.
A atitude lúdica de sonhar possibilita a construção da arquitetura imaginária de
Pessoa. Neste contexto, o interseccionismo surge a partir do pressuposto de um olhar
simultâneo de duas paisagens – uma real e presente, outra sonhada e ausente. Este é o
336 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra

pilar importante de sustentação do palco do “drama em gente” delineado em “Chuva


Oblíqua VI”, no qual as sensações interseccionadas permitem a construção da base
da pirâmide heteronímica, revelando processos estético-literários explorados por
Fernando Pessoa durante os anos de Orpheu e que o acompanham durante toda sua
travessia poético-ritualística.

Bibliografia

Bibliografia ativa
PESSOA, Fernando (1999a). Correspondência: 1923-1935. (Organização Manuela
Parreira da Silva). São Paulo: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (1999b). Obra poética. (Organização, introdução e notas de
Maria Aliete Galhoz). Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PESSOA, Fernando (1998). Obras em prosa. (Organização, introdução e notas de
Cleonice Berardinelli). Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PESSOA, Fernando (2005a). Poesia (1902-1917). (Edição Manuela Parreira da
Silva; Ana Maria Freitas; Madalena Dine). Lisboa: Assírio & Alvim. (Obras
de Fernando Pessoa, 20).
PESSOA, Fernando (2005b). Poesia (1918-1930). (Edição Manuela Parreira da
Silva; Ana Maria Freitas; Madalena Dine). Lisboa: Assírio & Alvim. (Obras
de Fernando Pessoa, 21).

Bibliografia passiva
CENTENO, Yvette (1976). “Fragmentação e totalidade em “Chuva Oblíqua”, de
Fernando Pessoa”. In:______. 5 Aproximações. Lisboa: Ática, 1976. p.71-92.
CENTENO, Yvette (1985a.) Fernando Pessoa e a filosofia hermética: fragmentos do
espólio. Lisboa: Presença.
CENTENO, Yvette (1985b). ______. Fernando Pessoa. O amor. A morte. A
iniciação. Lisboa: A Regra do Jogo.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain (2005). Dicionário de símbolos. 19ª ed.
(Coord. Carlos Sussekind). Trad. Vera da Costa e Silva et alli. Rio de Janeiro:
José Olympio.
HALL, Stuart (1999). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A.
LOURENÇO, Eduardo (1981). “A existência mítica ou a porta aberta”. In: ______.
Fernando Pessoa revisitado: leitura estruturante do drama em gente. 2ª ed.
Lisboa: Moraes. pp.169-183.
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 337

NUNES, Benedito (1976). A viagem. In: ______. O dorso do tigre. São Paulo:
Perspectiva. pp.173-179.
PERRONE-MOISÉS, Leyla (2001). Aquém do eu, além do outro. São Paulo:
Martins Fontes.
REIS, Carlos (coord.) (1990). “Fernando Pessoa e o Modernismo português:
unidade e diversidade”. In:______. Literatura portuguesa moderna e
contemporânea. Lisboa: Universidade Aberta. (Textos de base, 6). pp.182-206.
ROSENFELD, Anatol (1996). Texto/contexto I. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1992). “A semiperiferia europeia”. In:______.
O estado e a sociedade em Portugal (1974-1988). Porto: Afrontamento. pp.
105-150.
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de
Ângelo de Lima e Dino Campana

Barbara Gori
Universidade de Pádua

Palavras-chave: Ângelo de Lima; Dino Campana; Poesia órfica; Poesia modernista; Simbolismo.
Resumo: De Ângelo de Lima (1872–1921) conhecemos quarenta e três poesias, incluindo as
que foram publicadas no segundo número da revista Orpheu. Este corpus, embora limitado,
estimula-nos não só pela qualidade dos seus versos, mas também por um paralelismo que
nasce espontaneamente: o simbolismo moderadamente modernista de Lima situa-se numa
ótica parecida com a do grande poeta “louco” italiano Dino Campana (1885–1932), cuja obra
é mais ou menos contemporânea de Lima, tal como o triste fim num manicómio e o tema da
busca do próprio Eu através da “viagem” – quer real quer unicamente poética – num “além”
espacial e temporal. Ambos esquizofrénicos, ambos presos por comportamentos socialmente
inaceitáveis, ambos adeptos das correntes modernistas, mas ancorados ao Simbolismo, Lima e
Campana são dois poetas visionários, alucinados, loucos, órficos, vagabundos, ou, pelo menos,
foi esse o modo como as respetivas críticas literárias os definiram, embora nenhuma dessas
definições seja capaz de iluminar claramente a poética destes dois autores que viveram na
passagem do século XIX para o XX.

Não é simples comparar Ângelo de Lima e Dino Campana devido ao nível


qualitativo diverso e à importância diferente que ambos têm em contextos literários
nacionais – e europeus para Campana. Todavia, muitos são os pontos em comum: das
perturbações psíquicas ao plano meramente biográfico e às referências estilísticas,
assim como – e isto é importante – às temáticas presentes no âmbito poético de
ambos. Embora Ângelo de Lima seja treze anos mais velho do que Dino Campana,
grande parte da sua produção poética situa-se grosso modo no mesmo período, que
vai de 1905 a 1915.
Ambos entram em conflito com a figura paterna. No caso de Lima, um conflito
mais virtual – isso por a figura paterna1 desempenhar um papel-chave não só por
ser poeta, como também por ter morrido louco num manicómio quando o filho

1 O poeta dedica ao pai uma poesia, A meu Pai, da qual emerge um sentido intenso de solidão e de saudade por
aquela família perdida, mas nunca esquecida (Lima, Â. de, 2003: 41).
340 100 Orpheu Barbara Gori

Ângelo tinha apenas onze anos, razão pela qual se atribuiu a este um caso de loucura
hereditária –, no caso do poeta toscano, um conflito mais concreto.
Ambos deixam os estudos incompletos (Ângelo de Lima os de arte; Dino Campana
os de química e matemática) e essencialmente por inconstância na aplicação, muito
provavelmente devida às precárias condições mentais. Os distúrbios que afligem os
dois poetas são muito parecidos: mania de perseguição, síndrome maníaco-depressiva,
crises de alucinação, aos quais se acrescenta uma certa propensão para o alcoolismo,
mais marcada no lusitano, e certamente a sífilis, que talvez seja a causa da loucura do
italiano2. Manifestam-se nos dois em idade jovem; são internados várias vezes e a cerca
de dezasseis anos de distância, mais ou menos com a mesma idade, entram pela última
vez no manicómio, de onde não mais sairão. Ambos levam uma vida errante: além do
ano passado em África, segundo consta em serviço militar voluntário, de Ângelo de
Lima recordam-se as deslocações à pátria, sobretudo a Lisboa e Porto, mas também
ao Algarve, sem nunca iniciar uma atividade laboral definida e, muitas vezes, sem
uma direção certa. Da mesma forma, Dino Campana faz da viagem uma modalidade
de sobrevivência, em Itália, Europa, América do Sul, financiado esporadicamente pela
família, mas sobretudo arranjando-se com as mais variadas profissões, mesmo as mais
humildes (Mongini, F., 2007: 69).
Regressemos à produção literária: as principais publicações dos nossos poetas –
para Lima3, os oito poemas incluídos no segundo número da revista Orpheu, para
Campana a coletânea poética dos Canti Orfici – saem respetivamente em 1915 e em
1914, a poucos meses uma da outra. A identidade “órfica” não é de maneira nenhuma
casual: é uma componente essencial da busca poética em ambos os autores. Os dois
vão beber à poesia simbolista francesa, de Rimbaud a Mallarmé; ambos são “tocados”
pelo verbo futurista – recorde-se que o Manifesto de Marinetti é de 1909 – mas só
de maneira superficial, dado que a sua “viagem poética” é totalmente de outro tipo.
Digamos que a ambos interessa a “musicalidade” do verso – ou do poème en prose, no
que concerne a Campana – muito mais do que o seu significado: se quiséssemos utilizar
uma só palavra para os definir, qualificá-los-íamos como poetas meta-semânticos.
Deslocar a visual do signifié para o signifiant não é, como é óbvio, só prerrogativa
deles, mas é herança do milieu cultural em que se acham.

2 Para as condições mentais de Ângelo de Lima, veja-se o Relatório redigido pelo então diretor do hospital
psiquiátrico de Rilhafoles, em Lisboa, Miguel Bombarda, onde Ângelo de Lima ficou internado de dezembro
de 1901 até à sua morte em agosto de 1921 (Bombarda, M., 2003: 133-138).
3 Sobre a colaboração de Ângelo de Lima na revista Orpheu e sobre as polémicas que esta suscitou nos ambientes
literários e jornalísticos portugueses da época, veja-se a publicação interessante e completa intitulada Orpheu
– Percursos e Ecos de um Escândalo (HILÁRIO, F., 2008).
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 341

Assim como Lima começa o seu percurso poético com estilemas claramente
tardo-românticos – e estamos a pensar nas suas primeiras poesias conhecidas, como
Dizem os sábios que já nada ignoram, Eu ontem vi-te…, Súplica, poesias que vão de
1894 a 1895 –, também Campana tem bem presentes as experiências imediatamente
anteriores, em especial a de Gabriele d’Annunzio – não é importante para o caso em
apreço se este é considerado decadente ou tardo-romântico – que nesses anos se acha
no auge da sua fama e condiciona fortemente, mesmo por antítese, toda a produção
poética das primeiras décadas do século xx italiano (Verdenelli, M. – Vincenzi, G.,
2014: 197). Outro ponto, embora externo, que une os dois poetas, é a sua colaboração
ativa em algumas das revistas literárias mais importantes da altura: para Lima A Arte
e A Geração Nova do Porto, para Campana La Voce, em especial.
Voltemos ao Orfismo que caracteriza as principais composições de Ângelo de Lima
e todo o percurso poético de Dino Campana. Se o Orfismo é um culto iniciático, a
poesia órfica é uma forma elitista de comunicação poética concedida a poucos eleitos.
A palavra poética do cantor “órfico” ultrapassa a realidade e a racionalidade, graças
à sua capacidade evocativa, chegando ao limite do mistério. Em termos práticos, o
que caracteriza a poesia órfica é a sintaxe onírica, o critério livre, isto é, a associação
e condensação típicas da dimensão do sonho. Lima chega a ultrapassar esses limites,
aplicando o conceito também aos segmentos morfolexicais. O resultado é uma escrita
que, ao pôr em discussão e ao reelaborar a função dos dois elementos constitutivos do
signo linguístico, causa não só um afrouxamento da relação rígida entre significante
e significado, como também uma autêntica hegemonia do primeiro em detrimento
do segundo, levando, por conseguinte, a uma reelaboração total do referente. Esta
alteração da relação entre signo e referente, a perda de uma correspondência motivada
entre palavras e coisas, que liberta o poeta do princípio que atribui ao significante o
papel de representar, não renova mas inova a linguagem, primeiro forçando-a até ao
extremo das suas possibilidades e depois utilizando-a em todas as possibilidades que
a “nova língua” gera. É assim que, ao ativar mecanismos de significação ilimitada e
de distorção da materialidade do objeto, a língua de Ângelo de Lima “se pluraliza”,
causando não poucos problemas de compreensão da mensagem poética. Uma
poesia povoada de palavras com várias possibilidades de interpretação, muitas vezes
resultado de conexões lógicas deformadas, cheias de mistério e incoerência, de
imagens fragmentadas e de associações inverosímeis, de automatismos aparentes e
inadequações sintácticas, com tendências evidentes para a hiper-abstração que, para
ser compreendida, necessita de um processo de descodificação e de decomposição
atento do material linguístico presente em cada nível: lexical, sintáctico, morfológico,
fonológico e métrico-estilístico. Os aspetos mais percetíveis logo de imediato desta
alteração linguística dizem respeito ao léxico, em especial os termos raros e arcaicos,
342 100 Orpheu Barbara Gori

provenientes sobretudo do léxico clássico4, os termos anómalos e os neologismos,


especialmente as palavras macedónia e metaplasmas5, as irregularidades sintáticas
e as escolhas métrico-estilísticas, rítmicas e de rima6. Entre os muitos processos
linguísticos produtivos em Ângelo de Lima7, talvez sejam as palavras macedónia as

4 De entre os termos inusuais e arcaicos, encontramos «Crastina» (Fado), «Êxul» (Thora), «Místera» (Epitáfio),
«Espasma» (Cântico Semi-Rami), todos exemplos de palavras perdidas no tempo que parecem viajar para lá dos
limites da memória do leitor, mas que adquirem uma atualidade se vistas no contexto em que se encontram.
Palavras que espoletam um processo de renovação lexical na medida em que, não possuindo nenhuma
intenção de significação, valem unicamente pela função expressiva que veiculam através das conexões e do
poder sugestivo dos sons. Pelo contrário, outros termos, que já eram arcaicos no tempo de Ângelo de Lima, são
reatualizados por meio das transformações a que são submetidos, em especial a nível de significante. «Psalma»,
por exemplo, na poesia Oh Céu, aparece no feminino, quando a palavra que existe em português, embora em
desuso, é masculina; o caso da palavra «inora», na poesia Súplica, é diverso pois gera muitas dúvidas quanto
ao seu significado: «Que o teu olhar é bálsamo que inora,//Do céu sobre este seio, em que, latente». A leitura
isolada do verso levar-nos-ia a pensar que «inora» está ligada à palavra que a precede, isto é, «bálsamo»,
assumindo um significado próximo a «inodoro», ou seja, de algo que não tem odor. Todavia, conhecendo
as práticas de formação de novas palavras usadas por Lima, outras hipóteses tornam-se possíveis, isto é, que
a palavra possa ser um neologismo construído a partir da fusão do prefixo «in» com o substantivo «dor»,
assumindo o significado de “indolor”, ou que seja um termo arcaico e popular que remete para ‘ignora’, relativo
a quem não sabe ou não conhece algo. Ambos os significados são possíveis no contexto da poesia.
5 É o caso de «Emprona» (Fado), que no contexto remete para ‘prora/prua’, «Dogaresa» (Idem), como mulher
do doge, «fulguro», na poesia Neitha-Kri, que pode ser entendido quer como substantivo, por derivação
regressiva, ou como adjetivo.
6 Quanto à métrica, Lima serve-se de uma métrica tradicional, utilizando sobretudo o decassílabo como
medida do verso (endecassílabo como o entendemos em italiano), muitas vezes na forma métrica do
soneto, respeitando quadras, tercetos e vínculos de rima. Sendo o andamento rítmico-métrico graficamente
fragmentado pelos frequentes parágrafos dentro do endecassílabo, por vezes pode dar a impressão ao leitor
de uma certa perturbação: mas é uma questão puramente visual. O caso de Dino Campana é diverso, pois ele
escreve num momento histórico-literário italiano influenciado pelo ‘versoliberismo’, cujo promotor é Lucini
(1908), pouco antes que Marinetti irrompa em cena com as suas “parole in libertà”. O impacto sobre a nova
geração de poetas é enorme e Campana adequa-se porque o ‘versoliberismo’ serve à sua busca da poesia
“pura” que significa, também, seguir o seu ritmo interior.
7 Algumas palavras aparecem mutiladas nos versos, resultado de elisões silábicas retomadas em seguida por
simples aliteração ou assonância ou de agrupamentos de sílabas casuais. Aliterações que muitas vezes se realizam
na voz lexical, com alteração gráfica do significante e que a única coisa que fazem é aprofundar a dicotomia
entre signo e referente. Atente-se nos seguintes exemplos: «Narra» (Fado), de «narração»,«Kaleiscopo» (Oh
Vida), de «caleidoscópio»,«Cintis» (Qual?...), de «cintilantes»,«Luctula» (Alva), de «luctuoso», em desuso
já na época de Lima com o significado de «lutuoso», «fúnebre», «triste»,«Anxe» (Cântico Semi-Rami), de
«anxiedade» (latino), «Cilos» (– Quantos... desde Chu-Si a Kuan-Su) de «cílios», «Desvirgada» (Cântico
Semi-Rami), o mesmo que «desvirginada», «Dista» (idem), de «distante». Os neologismos sintáticos, ao
contrário dos fonológicos, obtêm-se de combinações de elementos lexicais já existentes no sistema. Estas
inovações formam-se a partir de elementos da língua portuguesa ou são emprestados de outros sistemas
linguísticos, como no caso do latim. Este tipo de processo de formação lexical tem origem na derivação,
quer nominal quer adjetival. Vejam-se os seguintes exemplos: «Exaustinados» (Olhos de Lobas!), do latim
«exhaustione», com o significado de «esgotados» ou «extenuados»; «Lete» (Morreu o Rei D. Carlos!... – A
Cidade) adjetivo formado a partir do latim «letum» ou «letalis»; «Pristinas» (idem), adjetivo derivado de
«pristinus», com o significado de «antigas» ou «de outros tempos»; «Longido» (Ocaso) e «Longeva» (Fado)
do latim «longi» que é um elemento de formação das palavras; «Fatos» (Qual?...), do latim «fatum», que
significa «predição», «destino», «fado»; e «Fatas» (Neitha-Kri), variação no feminino necessária para rimar
com «Horas», como significado de «fatais»; «Purfictrio» (Edane), do latim «purificatio», com o significado
de «purificada» ou «purificadora». Outros neologismos lexicais passam através de processos normais de
derivação à procura de uma forma fonética e ortográfica que se harmonize bem com a língua portuguesa
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 343

mais estranhas, pois indicam um processo de redução lexical em virtude do qual as


duas bases estão destituídas de parte dos seus elementos para formarem uma nova
unidade lexical. De entre estas vale a pena lembrar o neologismo «Imesto» na poesia
Deus, que resulta da força anafórica e do poder do verso «Teu Gesto Imenso Gerou a
Vida...», no elogio poético que o sujeito poético faz a Deus. Da fusão de duas entidades
autónomas e reconhecidas na língua («gesto» e «imenso»), neste caso através de uma
relação de intersecção invertida, dado que o poeta não reproduz a ordem em que tais
palavras se apresentam no verso, obtém-se uma palavra original, que corresponde à
criação de uma só unidade significante: «Imesto» (LIMA, Â. de, 2003: 69):

– Eras nos Tempos


Antes da Idade!...
Teu Gesto Imenso Gerou a Vida...
E, após teu Gesto...
– Supremo, Imesto...
Depós..., – é a Noute da Imensidade!...

Campana, pelo contrário, mantém-se nos confins gramaticais tradicionais: com


efeito, as suas modalidades estilísticas preveem um uso institucional da metáfora, da
iteração de lexemas-chave, da fruição quase sem diferença do verso propriamente
dito e do poème en prose. Neste contexto, a aliteração não é só utilizada com função
eufónica, mas também e sobretudo semântica. Um exemplo, de uma famosa poesia
dos Orfici, é a poesia La Chimera, cujo título é igualmente significativo a nível de
poética, como indício temático (Campana, D., 1972: 17):

Non so se tra rocce il tuo pallido


Viso m’apparve, o sorriso
Di lontananze ignote
Fosti, la china eburnea
Fronte fulgente o giovine
Suora de la Gioconda:

com o resultado de provocar muitas vezes uma certa indeterminação de sentido: os afixos usados pelo poeta,
embora reconhecíveis em português e combinados com palavras também com valor autónomo conhecido,
produzem um significante novo com um significado imprevisível, ou seja, uma totalidade de signo não
prevista no sistema. São exemplos, por derivação prefixal, «desdeixados» (Olhos de Lobas!); «Infados»
(Canção Portuguesa); «Improfundado» (Oh Céu) e «Improfundo» (Fado); por derivação sufixal: «murchadas»
(Inês de Castro); «Olorescente» (Cântico Semi-Rami), adjetivo derivado do latim «olor» («aroma»; «odor») +
o sufixo «escente» formado por sua vez a partir do sufixo «–escer», característico dos verbos incoativos, que
indicam o início de um estado, não pertencendo «oleo» («cheirar») a este tipo de verbos; «Argentida» (Alva).
344 100 Orpheu Barbara Gori

O delle primavere
Spente, per i tuoi mitici pallori
O Regina, o Regina adolescente:
Ma per il tuo ignoto poema
Di voluttà e di dolore
Musica fanciulla esangue,
Segnato di linea di sangue
Nel cerchio delle labbra sinuose,
Regina de la Melodia:
Ma per il vergine capo
Reclino, io poeta notturno
Vegliai le stelle vivide nei pelaghi del cielo,
Io per il tuo dolce mistero
Io per il tuo divenir taciturno. […]

Aqui, junto com reminiscências evidentes da poesia de d’Annunzio, notam-se


logo algumas características técnicas do Campana versificador: o recurso assíduo ao
enjambement, à aliteração propriamente dita («fosti, la china eburnea/fronte fulgente
o giovine»), à quebra do continuum métrico de versos tradicionais (heptassílabos,
octossílabos, endecassílabos) com um blank verse quase whitmaniano de quinze
sílabas («vegliai le stelle vivide nei pelaghi del cielo»), que na realidade é composto
por dois heptassílabos (o primeiro dos dois cola é esdrúxulo) e, por conseguinte, pode
ser definido tout court como verso alexandrino. Mas voltemos ao valor semântico da
aliteração: aqui é evidente, por exemplo, no fonema /s/ que conota a tripla posição
na ponta dos versos esangue – sangue – sinuose, para em seguida ser imediatamente
retomado com o nexo /st/ em stelle e mistero. No plano conotativo há uma intersecção
de campos semânticos: o propriamente físico e vital do lexema sangue e o espiritual
e órfico dos lexemas stelle e mistero, através do adjetivo sinuose, que pode indicar um
movimento “em espiral” de conjunção entre “terra” e “cielo”, e que todavia se refere à
palavra “labbra”, de onde sai o espírito vital (verbum), perno da nossa duplicidade de
seres terrenos e, ao mesmo tempo, espirituais. No plano temático, é interessantíssimo
o facto de Campana se definir “poeta notturno” – convém não esquecer que o célebre
Notturno de d’Annunzio, que iniciará o filão da “prosa noturna” deste escritor, será
composto só dois anos depois da publicação dos Orfici (Gurioli, E., 2012: 105).
Com efeito, “Notte” é uma das palavras-chave que servem para entender a poética de
Campana, tal como a de Ângelo de Lima. Significativamente, é a longa prosa poética
intitulada La notte a abrir o livro dos Canti Orfici, que se concluem, circularmente,
com o sintagma «la notte tirrena», que encerra a última poesia.
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 345

Para o português, a Noite, ou mais frequentemente a Noute, é igualmente lexema


e conceito fundamental: a noute é o confim para lá do qual existe Deus, ou os deuses
ou qualquer que seja o nome que os homens lhes dão, o Eterno, a Imensidão. Este
conceito é repetido várias vezes durante o itinerário poético de Ângelo de Lima e é
também colocado em posição central numa das suas poesias talvez mais significativas,
publicada em 1915 na revista Orpheu 2, Neitha-kri (Lima, Â. de, 2003: 84):

– Ó Noute minha Mãe na Immensidão!


– Ó Noute Grande, pelos Céus Senhora...
– Scintil d’Estrelas n’Essa Solidão...
– Eu, Sobre a Terra, Sou a Vencedora!...

É a invocação da Rainha do Egito, que os históricos chamam Nikotris e que viveu


há quase 3000 anos. Noite, portanto, como porta do Mistério e do Divino, e irmã da
Morte, um topos poético muito frequente, em Portugal como na Itália, basta citar
Foscolo e Antero de Quental; topos que, em Il canto della tenebra de Campana, assume
um tom evocativo de elevada sugestão, desta vez ainda mais graças à iteração de
palavras-chave (Campana, D., 1972: 20):

La luce del crepuscolo si attenua:


Inquieti spiriti sia dolce la tenebra
Al cuore che non ama più!
Sorgenti sorgenti abbiam da ascoltare
Sorgenti, sorgenti che sanno
Sorgenti che sanno che spiriti stanno
Che spiriti stanno a ascoltare...
Ascolta: la luce del crepuscolo attenua
Ed agli inquieti spiriti è dolce la tenebra:
Ascolta: ti ha vinto la Sorte:
Ma per i cuori leggeri un’altra vita è alle porte:
Non c’è di dolcezza che possa uguagliare la Morte
PiùPiùPiù […]

Em Ângelo de Lima, sobretudo pela limitação do corpus poético que nos chegou,
os exemplos são menos evidentes, embora estejam presentes; vejam-se, a título
exemplificativo, alguns versos da poesia Ocaso – Serapi-Anubi (Lima, Â. de, 2003:
73):
346 100 Orpheu Barbara Gori

– Cai a Tarde serena harmoniosa!...


– Como a oração de Targitas Douradas
D’estas Horas de Voto, Consagradas
De serapida à Transe Majestosa!

– Cresce a Treva
Na Dor Silenciosa
Da Saudade das Horas Expiradas!...
– Veste a Terra nas Sombras Enlutadas
Do Deus Longido, pelos Céus, Saudosa…

Outro tema que é interessante mencionar e que aparece, embora brevemente, nos
dois autores, é a consciência da própria falta de sanidade mental, que Lima exprime
na poesia Pára-me de repente o Pensamento, onde, por meio da metáfora do cavalo
fustigado até lhe sair o sangue, se vêa sua viagem no abismo da loucura (Lima, Â.
de, 2003: 55)8:

Pára-me de repente o Pensamento…


– Como se de repente sofreado
Na Douda Correria… em que, levado…
–Anda em Busca… da Paz… do Esquecimento

– Pára Surpreso… Escrutador… Atento


Como pára… um Cavalo Alucinado
Ante um Abismo… ante seus pés rasgado…
– Pára… e Fica… e Demora-se um Momento…

Vem trazido na Douda Correria


Pára à beira do Abismo e se demora

E Mergulha na Noute, Escura e Fria


Um Olhar d’Aço, que na Noute explora…

– Mas a Espora da dor seu flanco estria…


– E Ele Galga… e Prossegue… sob a Espora!

8 Sobre o tema, veja-se também a interessante obra de Fernando Hilário, A Loucura de Ângelo de Lima (2003),
e o texto em prosa de Ângelo de Lima, Eu não estou Doudo (2003).
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 347

Paralelamente, Dino Campana exprime o mesmo conceito na poesia Ho scritto. Si


chiuse in una grotta 9, poesia em que o verso «cosa che mi tortura e mi sospinge» remete
também para o impulso de atingir a poesia absoluta, impulso sempre frustrado10.
Ângelo de Lima é necessariamente mais modesto, até pela sua vicissitude pessoal;
nele as menções à sua poesia são raras, e quase casuais, se se exceptuar a famosa
dedicatória aos amigos de Orpheu, na poesia Edd’oraAddio… – Mia Soave! (LIMA,
Â. de, 2003: 90):

– Estes Versos Antigos Que Eu Dizia


Ao Compasso Que Marca o Coração
Lembram Ainda?... – Lembrarão um Dia...
– Nas Memorias Dispersas Recolhidas
Sequer, na Piedosa Devoção
D’Algum Livro de Cousas Esquecidas?...

O tema da viagem, no espaço e/ou no tempo, real ou fantasiado, é comum


aos dois poetas. Uma viagem como modalidade de sobrevivência, dissemos ao
início, para Dino Campana. Locus deputatus para as fugas mentais à opressão do
internamento coacto, para além das grades do manicómio, para Ângelo de Lima: o
que equivale a dizer um modo de sobrevivência. Para lá da necessidade, para ambos
sufocante, das convenções sociais da época – recorde-se que Lima é condenado a
detenção psiquiátrica perpétua por ter blasfemado em público e Campana é preso
e “institucionalizado” mais do que uma vez, como se diz hoje, mais ou menos pelas
mesmas, fúteis razões –, a sua liberdade é confiada a itinerários reais ou hipotéticos
além, além do mar, além das montanhas, além do “senso comum” do discurso
poético-narrativo, além até do amor, e de um Deus de quem não se conhece
precisamente a identidade, de uma divindade que aparece confinada numa Igreja
dogmática e hierarquizada.

9 «Ho scritto. Si chiuse in una grotta/Arsenio fortissimo disegnatore/Dipinse quadri piccoli e grotteschi/E tese
l’anima in affreschi/Per desolare l’immensità/Della sua furia policroma/Attese i gnomi e le fate;/Cantava il
ruscello ecc./Io mi domando. Ha ciò senso comune/Qual cosa mi tortura e mi sospinge/All’assurdo. È il
bisogno della morte/perché su tutto chiamo distruzione?» (Campana, D., 1972: 114).
10 Bem o notava, há já cinquenta anos, um grande crítico, Carlo Bo, que escrevia: «Campana negli anni della
sua libertà ha visto continuamente avanti ai suoi occhi il fantasma di una chimera che era poi il nome stesso
della poesia: tanto quella chimera gli turbava la coscienza, tanto più sentiva l’impossibilità di raggiungere la
prima parola di un discorso componibile. […] Pari alla forza della sua passione, risulta quella della delusione,
della assunzione di vuoto che segue ogni sua azione poetica: Campana è davvero dilaniato fra queste due forze
contrarie, per cui lo vediamo sospeso» (Bo, C., 1972: XXXIV).
348 100 Orpheu Barbara Gori

O tema da viagem é central na poesia de Dino Campana: esta é vista como


metáfora existencial e poética, porque exprime a ânsia de explorar e de conhecer,
juntamente com o desassossego e o tormento do poeta. Nos Canti Orfici este tema
é desenvolvido em dois tópicos fundamentais: o “diário” em prosa de La Verna e o
poema Viaggio a Montevideo. Ambos os trechos são provavelmente fruto de uma
experiência real: a “peregrinação” a pé da sua terra Marradi aos terrenos franciscanos
do Casentino, e a viagem a Argentina e Uruguai realizada entre 1908 e 1909. Esta
viagem aparece em recolhas póstumas, tais como o Quaderno.
Para Ângelo de Lima, como se viu, o tema da viagem só em mínima parte é
enfrentado depois de experiências concretas, se exceptuarmos a poesia Aos Mortos
de Coolela, dedicada aos soldados portugueses mortos naquela localidade africana
e, sem dúvida, inspirada na sua permanência, como militar, nessas terras distantes.
Muito mais importantes são as viagens, no tempo e no espaço, realizadas com a
fantasia. Uma em especial chama a atenção pela semelhança das atmosferas e a
identidade dos lugares relativamente a uma poesia de Campana. Trata-se do soneto
1500, que reevoca o primeiro desembarque de Pedro Álvares Cabral e dos seus
homens, empurrados pelos ventos oceânicos, para aquela terra que em seguida foi
chamada Brasil, em 22 de abril de 1500 (Lima, Â. de, 2003: 54):

Sobre as ondas, Tranquilas, do Oceano


Pousa, Serena, a Nau de Brancas Velas…
– Traz, no flanco, o Vestígio das Procelas
– Pousa no Mar, n’um Gesto soberano…

– Breve, um Batel ligeiro, ousando o Arcano


Desce da Nau, às Terras, – Que Singelas
Na Candidez de Núpcia – de Donzelas
Erguem a Flora – ao Sol Meridiano…

Gentes – crestadas pelo Vento Amargo,


Saltam, nas praias do País Fecundo…
– Trazem os Gestos dos Heróis da Argo…

– Contendo-os – calmo – com o Olhar Profundo


– Cabral – desdobra a Voz – n’um Gesto Largo…
– E na Lei Pátria, Envolve, um Novo Mundo!...
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 349

Quase o mesmo espanto face a um novo, virgem desembarcadouro, se lêem alguns


versos deViaggio a Montevideo (Campana, D., 1972: 37):

[…] Quando
In una baia profonda di un’isola equatoriale
In una baia tranquilla e profonda assai più del cielo notturno
Noi vedemmo sorgere nella luce incantata
Una bianca città addormentata […]

Todavia, ambos os poetas parecem ter consciência de que uma dimensão capaz de
atenuar o seu “mal de viver”, para propor uma metáfora de Montale, é unicamente a
do além. Campana, em Poesia facile (Campana, D., 1972: 25), assim se exprime:

Pace non cerco, guerra non sopporto


Tranquillo e solo vo pel mondo in sogno
Pieno di canti soffocati. Agogno
La nebbia ed il silenzio in un gran porto.

In un gran porto pien di vele lievi


Pronte a salpar per l’orizzonte azzurro
Dolci ondulando, mentre che il sussurro
Del vento passa con accordi brevi.

E quegli accordi il vento se li porta


Lontani sopra il mare sconosciuto.
Sogno. La vita è triste ed io sono solo.

O quando o quando in un mattino ardente


L’anima mia si sveglierà nel sole
Nel sole eterno, libera e fremente.

São muitas as ideias presentes neste soneto: a tranquilidade alcançada no sonho


«pieno di canti soffocati», de onde resulta evidente a impossibilidade de atingir a
poesia absoluta, a beleza do presságio da viagem naquelas «vele lievi pronte a salpare»,
a realidade que, dura, se impõe: «Sogno. La vita è triste ed io son solo». Da mesma
forma, Ângelo de Lima propõe o mesmo topos da ascensão “in più spirabil aere”, para
usar palavras de Manzoni, como solução para os insolúveis problemas existenciais
(Lima, Â. de, 2003: 46):
350 100 Orpheu Barbara Gori

Alma que da minh’alma se aproxima


E me desperta do meu sonho em meio
E nos prenda e nos cinja o doce enleio
Como a dois lírios prende e enlaça em vime.
E assim desta existência que me oprime
Pois que já n’ela achar o Bem não creio
Vamos subamos lado a lado ao seio
Infinito do Deus Calmo e Sublime!

Falamos aqui de um Ângelo de Lima que ainda não se adentrou na dimensão


do Mito, uma viagem que supera a fronteira espácio-temporal e explora, de modo
fragmentário e a-racional, os abismos obscuros de épocas quase pré-históricas e de
personagens no limite da história e da lenda (Semíramis, a rainha de Egito Neitha-kri).
Nikotris (Neitha-kri) havia já inspirado, nas páginas do primeiro número de Orpheu,
Alfredo Pedro Guisado – que, com uma metátese, a chama Nitokris; pode-se pressupor
que Lima elaborou o seu poema com base na sugestão produzida pela leitura das
poesias de Guisado. Para Semiramis (ou, como a chama Lima, Semi-rami) o modelo
não é, como poderia parecer, a famosa ópera de Rossini inspirada nas vicissitudes da
soberana dos Assírios, mas provavelmente o drama La Hija del Aire de Calderón de la
Barca, ou talvez até o livro do século xv, La città delle donne de Christine de Pizan, em
que a rainha é descrita de maneira muito positiva, diversamente da maior parte dos
textos onde se fala dela. Onde encontrar em Campana uma referência semelhante?
Talvez no Convito romano-egizio, trecho poético “plurivocálico”, em que aparece a
Lidia morena11. Em contextos históricos e míticos diferentes, mesmo as duas figuras
femininas, Neitha-kri e Lidia, se podem comparar: símbolos do Poder feminino, que
nasce da Noite e a domina. Ambas virgens, ambas consagradas a um poder superior
no qual se identificam (Lima, Â. de, 2003: 83-84):

Das minhas Coxas no meu Star de Hierata


Que Antros Ardentes e que, Amor, Dilata

11 «BALAAL Ora tu vieni o bruna/Amica Lidia col silenzioso/Tuo passo inghirlandata dall’oblio/Per lo sterile
fianco e per la bocca funerea./Nelle coppe fiorite il vin scintilli/Immoto e nella notte un lungo fremere/Passi
nel cielo//LIDIA La sua bocca è un serpente che riposa/Ma il mio cuore mi brucia di mistero/Che i fianchi
lunghi e sinuosi torce/E che l’ebbrezza risolleva a volo/Nella voluta lenta la vertigine/Attorce i cuori, infino che
il delirio/Li annebbia delle lacrime di sangue./Ecco, conto i terrori della notte/Io sola m’alzo ed ai fragori strani/
Del cembalo/Rompo il silenzio e chiamo alta la bocca:/Uomini riscuotete via l’ebbrezza/Sfoderate le spade
scintillanti/E levatele in alto. In uno specchio/Abbarbagliante io sia centuplicata/Ed il mio ventre splenda come
stella [...]//CORO Le coscie bronzine s’imbiancano/E gli occhi son madreperla/I suoni lontani e monotoni/
Carezzano il cuore fanciullo/E noi berremo alle fonti/Eterne della vita come il sole/Ci scalderemo al suo seno
inesausto./Alziamoci/Il sacro triangolo, o uomini,/È aperto soffuso alla luce» (Campana, D., 1972: 94-95).
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 351

De um Ardor Fulguroso... porque Turvo...


De que Imanência... de que Imanescente?...
– Ó Noute minha Mãe na Imensidão!
– Ó Noute Grande, pelos Céus Senhora...
– Cintil d’Estrelas n’Essa Solidão...
– Eu, Sobre a Terra, Sou a Vencedora!...

É assim que se exprime a Rainha do Egito e através destes versos ela se desenha
no âmbito daquele sacer, ou seja, a dimensão sobre-humana, de que também Lidia
é titular. Uma dimensão sobre-humana que Lima, com o avançar da sua loucura
– mas para os antigos, o conceito de “louco” e de “sagrado” pertenciam ao mesmo
campo semântico – procura ao declinar, poesia após poesia, de maneira sempre mais
fabuladora, os muitos nomes de Deus.
Por fim, a viagem poética no amor e no eros. Neste sentido, de Ângelo de Lima
pouco sabemos, exceto o que se obtém das poucas notas biográficas disponíveis, de
onde se deduz a paixão por uma suposta meia-irmã, da qual pode derivar o tema do
incesto que aparece em Semi-rami12. As suas poesias de amor são fruto de inspiração
tardo-romântica que declina depois numa espécie de “amor platónico”, em certos
momentos quase inspiradas no dolce stil novo. De resto, o conhecimento de Dante
é confirmado pelo reenvio à «selva oscura», expresso em língua italiana, na poesia
Súplica. Eros é pouco mencionado, só o incesto em Semiramide e o turbamento de
Neitha-kri.
A experiência de Campana é completamente diversa, sendo ele um habitual
frequentador de bordéis florentinos, como se deduz dos octossílabos auto-irónicos
de Prosa fetida, ambientada numa “casa” de San Frediano e de muitos outros textos.
Todavia, o consumo de Eros a pagamento é totalmente insatisfatório para o poeta
e muitas vezes remete para o seu oposto, Thanatos, como acontece na poesia
Furibondo13. É a Sibilla Aleramo, escritora “escandalosa” dez anos mais velha do que
ele, que o fará conhecer a “verdadeira” paixão amorosa, após a publicação dos Orfici,
certamente uma das mulheres mais fascinantes da época, feminista ante litteram,
autora do bestseller Una donna, romance autobiográfico em que denunciava também a
violência de que foi vítima aos 15 anos, por parte do seu futuro marido. Sendo amante
de toda a redação de La Voce, de Papini a Soffici, sente-se logo turbada pela leitura

12 Note-se que no poema a protagonista confessa ter amato sua filha, enquanto que, em geral, o mito de
Semíramis prevê que ela seja incestuosa com o filho.
13 «Abbracciata io l’avea./Mentre affannoso delle cieche ebbrezze/Sul limitare cieco brancolavo/E accelerati colpi
replicavo/Sopra la porta di eterne dolcezze:/All’improvviso sopra la mia schiena/S’alzò e ricadde martellando
sordo/E ritmico il suo piede. Fu il ricordo/Dell’attimo fuggente, nella piena/Fantastica l’appello della morte».
352 100 Orpheu Barbara Gori

dos versos do “grosseiro” oriundo de Marradi e, ipso facto, decide entrar em contacto
com ele e ir ao seu encontro, de comboio, com a explícita intenção de o seduzir. Facto
que acontece, como é óbvio, em poucas horas sem nenhuma demonstração de recusa
da parte de Campana. A história de amor entre os dois é famosíssima e dura cerca
de um ano: se Campana já se encontrava à beira da loucura, a relação serve para
o empurrar definitivamente para ela, embora Sibilla seja a primeira a levá-lo a um
psiquiatra “sério”, que não pode deixar de lhe dizer que a sífilis é a principal causa e
que ela faria melhor a abandoná-lo e a não vê-lo mais.
Com este breve contributo, tentámos delinear as correspondências intrigantes
entre dois poetas tão distantes, quer geográfica quer histórico-culturalmente no
que concerne aos países de pertença de ambos, e ainda assim tão próximos no que
concerne à dolorosíssima vicissitude humana de “alienados” numa sociedade tão
propensa a impor um “estigma de infâmia” na carne viva de quem fosse visto como
“diverso”: não nos resta senão refletir sobre o facto, incontrovertível, que outro senhal,
para usar uma expressão provençal, o da Poesia, ficou, a um século de distância, a
iluminar os nomes de Dino Campana e Ângelo de Lima, enquanto que os dos seus
perseguidores, as chamadas autoridades “constituídas”, se encontram inelutavelmente
enterrados na escuridão do tempo.

Bibliografia

Bibliografia Ativa
Campana, Dino (1972). Canti Orfici e altri scritti. Milano: Mondadori.
Lima, Ângelo de (2003). Poesias Completas. Organização, prefácio e notas de
Fernando Guimarães. Lisboa: Assírio&Alvim.

Bibliografia Passiva
Bertolani, Lorenzo (2014). Felice di essere povero ignudo. Firenze: Meridiana.
Bo, Carlo (1972). Prefazione a Dino Campana, Canti orfici e altri scritti. Milano:
Mondadori, pp. XXXI-XXXV.
Bombarda, Miguel (2003). «Relatório sobre o Estado Mental de Ângelo de
Lima». In: De Lima, Ângelo de, Poesias Completas. Organização, prefácio e
notas de Fernando Guimarães. Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 133-138.
Gurioli, Enrico (2012). Barcheamorrate. Bologna: Pendragon.
Hilário, Fernando (2008). Orpheu – Percursos e Ecos de um Escândalo. Porto:
Edições Universidade Fernando Pessoa.
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 353

Hilário, Fernando (2003), A Loucura de Ângelo de Lima. Porto: Edições


Universidade Fernando Pessoa.
Lima, Ângelo de (2003). «Eu não estou Doudo». In: Idem. Poesias Completas.
Organização, prefácio e notas de Fernando Guimarães. Lisboa: Assírio&Alvim,
pp. 127-129.
Mongini, Franco (2007). Il genio tra nevrosi e follia. Milano: Utet.
Verdenelli, Marcello e Vincenzi, Giampaolo (2014). Le vostre parole sono
come luce di stella dolce e lontana. Roma: Aracne.
Os Caminhos da Heteronímia

Fernando Guimarães
Investigador no Centro de Estudos do Pensamento Português da Universidade Católica

Palavras-chave: heterónimo; complexidade; fingimento; construção; objetividade textual.


Resumo: A heteronímia em Fernando Pessoa concorre com outras noções fundamentais da
sua poética, desde a noção de complexidade à de fingimento, para que nela se configure uma
objetividade expressiva que corrija, como nos diz, o “sentimento difuso” que o Modernismo e,
genericamente, a modernidade irão recusar.

Porquê este título: os caminhos da heteronímia? Lembremo-nos que no Orpheu,


pela primeira vez, surgiu em toda a sua força um dos heterónimos de Fernando Pessoa.
Trata-se de Álvaro de Campos que nesta revista publica as suas emblemáticas “Ode
Triunfal” e “Ode Marítima”. Mas caminhos porquê? Caminho, em latim, é via. Viator
é o caminhante, o mensageiro. Fernando Pessoa, que traz consigo uma mensagem
(Mensagem é o título de um dos seus futuros livros), irá dar especial ênfase a tal
ideia, chegando a utilizar maiúsculas quando em 1935 escreve à máquina uma carta a
Adolfo Casais Monteiro: “Não evoluo, VIAJO […], vou mudando de personalidade”.
Eis nessa longínqua noção de viator, que se tornará no volatilis, isto é, no que voa,
o anúncio do que será uma poesia que levará Pessoa a dizer também numa carta, esta
de 1931, dirigida a João Gaspar Simões: “Voo outro – eis tudo”. Estamos lançados
pela palavra caminho – que é viagem e voo – para a questão dos heterónimos. A
heteronímia traduz-se, portanto, na referência autoral ao outro, ao “outro nome”.
Mas mais do que isto. A heteronímia revela-nos um caminho diferente; se
passarmos de uma abordagem etimológica que vai da palavra latina à palavra grega
correspondente – methodos –, ficar-nos-ia a suspeita de que esse caminho é também
um método, um desenvolvimento teórico. Ele não é só a referência a vários autores
imaginados que entre si dialogam no interior de uma teia ou ficção biográfica que
Pessoa ao longo do tempo teceu; é, sobretudo, um desenvolvimento ou criação
teóricos que conduzem a uma textualidade que a si mesma se objetiva através do
recurso à alteridade. Da narrativa – que se evidencia muitas vezes biograficamente
– passamos para essa teoria da alteridade tal como ela se revela na própria expressão
poética. Ora essa expressão poética irá passar não só pelos caminhos da heteronímia,
mas também por outros caminhos – aliás bem conhecidos, mas que, a pouco e pouco,
356 100 Orpheu Fernando Guimarães

iremos explicitar –, os quais se complementam entre si na própria realização da obra


de Pessoa.
Ele, que tantas vezes se serve do paradoxo, criou uma situação duplamente paradoxal
porque chega a passar de um plano que é o da criação poética para outro plano, este
de natureza teórica. Inventando múltiplas personalidades – ou, como também se diz,
máscaras –, propõe-nos um caminho em que a obra de arte se despersonaliza, de
modo que as máscaras passam a ser as de nenhum rosto. A dispersiva mas também
aparente subjetivação, sustentada biograficamente por múltiplos enredos, acaba por
converter-se no que será a própria objetividade textual. Poderíamos, então, dizer que
de um primeiro nível, o da narrativa ou enredo, desenvolvido por Pessoa em torno
das várias instâncias autorais, se deriva para um segundo nível, o de uma poética
da alteridade. Por outras palavras ainda: dá-se um desvio que vai de um nível, o da
paratextualidade, para outro, o da textualidade.
Note-se desde já que esta poética da alteridade, que Pessoa vai usar dispersiva e
recorrentemente, foi usada entre nós no século XIX por alguns escritores simbolistas,
desde Carlos de Mesquita, que inventa um Jeronymo Freire e um Bartholomeu de
Fragoa, a Raul Brandão, com K. Maurício, tendo estes “outros nomes” a particularidade
de se referirem um deles a um pintor e os outros a dois ficcionistas, mas não a poetas.
No entanto, tendo em vista a poesia dessa altura, Sanches da Gama dá-nos um livro
de natureza paródica com a assinatura – em que perpassa uma alusão aos nomes de
Mallarmé e Rimbaud – de Estephanio Rimbó. Outro caso, anterior aos simbolistas,
situa-se igualmente no nosso século XIX com a invenção de Fradique Mendes, a que
mais adiante nos referiremos…
Seja como for será na literatura inglesa que Pessoa vai procurar os melhores
exemplos para esta poética da alteridade. Desde logo em Shakespeare. São bem
conhecidas as passagens onde, em várias das suas notas dispersas, a ele se refere. Mas
quase ficou por referir o papel que Robert Browning desempenhou. Todavia, numa
dessas notas, Pessoa chega mesmo a aludir a estes dois nomes. Assim defende a ideia
de que o estilo não define “a unidade do homem; só o que no estilo há de intelectual
o denota. Assim é em Shakespeare, em que o relevo inesperado da frase, a subtileza
e a complexidade […] são a única coisa que aproxima o falar de Hamlet do de Lear,
o de Falstaff do de Lady Macbeth. E assim é Browning […]. Certos estados de alma,
pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos, tenderão a
definir para ele uma pessoa fictícia que os sentisse sinceramente”.
Alcançam-se aqui dois registos: o da poesia dramática propriamente dita, com
Shakespeare, e o da poesia dramática expressa liricamente, com Browning. Fernando
Pessoa no texto que se citou fala em estilo. Aproveitemos esta noção para evocar agora
o já referido nome de Fradique Mendes, para se compreender melhor o desvio que se
Os Caminhos da Heteronímia 357

fez para dar um sentido especial aos “nomes de gente” que iriam fundar uma expressão
poética que tende a ser considerada em si mesma, isto é, enquanto textualidade.
Vejamos… No caso do imaginado Fradique verifica-se que Antero de Quental,
Junqueiro, Eça, Guilherme de Azevedo (e outros?) procuram um estilo que é o de
Baudelaire. Os heterónimos de Pessoa criam, pelo contrário, uma dispersão de estilos,
os de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares (e muitos
outros) que convergem, no entanto, no grande e dispersivo Livro pessoano que assim
nos surge como uma unidade textual.
Precisemos um pouco mais a questão. Como se constituiu este Livro que, como
aconteceu em Mallarmé, ficou disperso, por vezes fragmentário, irrealizado na
sua totalidade? Pessoa reconhece que ser um poeta dramático representaria, como
diz expressamente na citada carta de 1931 a Gaspar Simões, “o ponto central da
minha personalidade”, porquanto haveria nele “a exaltação íntima do poeta e a
despersonalização do dramaturgo”.
Fixemo-nos nestas últimas palavras para as relacionar com que atrás se disse acerca
de Shakespeare e Browning. Se a “despersonalização do dramaturgo” é uma óbvia
referência a Shakespeare, aquela “exaltação íntima do poeta” não nos irá conduzir à
expressão lírica de um Browning (que, aliás, não é referido nesse texto)? Chegados a
este ponto, talvez fosse oportuno mostrar como os caminhos da heteronímia confluem
em outros caminhos que concorrem para que se configure a obra pessoana a partir dos
seus fundamentos, naquilo que se pode agora designar por estética textual. À poesia
dramática ou poética da alteridade, a qual temos vindo a referir, juntaríamos mais três
noções tão presentes nas reflexões de Fernando Pessoa sobre poesia: “complexidade”,
“fingimento” e “construção”. Alinharíamos, assim, os quatro caminhos que maior
realce assumem na orientação da sua obra. E seria este o método, o caminho teórico
que nos conduziria à obra ou, se se preferir, ao Livro pessoano.
Quando Pessoa, no texto que se acabou há pouco de citar, alude à “exaltação
íntima do poeta” parece, à primeira vista, estar a referir-se ao que seria a espontânea
subjetividade própria do lirismo; mas não, ela está referida, sob uma forma que se
torna diferida, ao poeta dramático que ele é (tal como Shakespeare, ao pôr na boca de
Hamlet a subjetivíssima expansão lírica do seu amor por Ofélia, sabe afinal que esse
amor não é o seu).
É aqui que radica a tão celebrada noção de “fingimento”. Ela irá ter uma má
receção por parte dos presencistas, mais interessados em apostar no que designaram
por “autenticidade” da poesia. Todavia, será nas páginas da Presença que aparece
publicado o poema “Autopsicografia” de Pessoa que, logo no seu início, consagra tal
noção: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / que chega a fingir que é
dor / a dor que deveras sente”.
358 100 Orpheu Fernando Guimarães

Esta noção de fingimento, que ao implicar a de despersonalização, põe em questão


o próprio subjetivismo poético, acaba por defluir para o de “complexidade”. Esta noção
foi desenvolvida por Pessoa na revista dos saudosistas A Águia numa série de artigos
que, publicados em 1912, se intitulam genericamente “A nova poesia portuguesa”.
Uma dessas novidades – que putativamente estaria na obra dos saudosistas, mas que
parece enquadrar-se melhor numa modernidade que se ia entrevendo – consistia na
relação que se estabeleceria entre emocionalização e intelectualização. Ela passava
pela tal complexidade, consistindo esta na necessidade de, na linguagem poética,
ocorrer necessariamente a “intelectualização de uma emoção” e a “emocionalização
de uma ideia”.
Finalmente, a “construção”. A narrativa dos heterónimos conduziu à admissão de
um grande texto que representa a obra de Pessoa na sua globalidade ou, retomando
a noção de procedência mallarmeniana, o Livro. Ora essa totalidade pressupõe a
existência de um “grande Construtor” ou um “Mestre da Construção” que, na opinião
defendida por Pessoa, foi Milton. Ele será apresentado reiteradamente como sendo
“o grande Mestre da Construção em poesia. Pessoalmente, confesso que a minha
tendência é cada vez mais a de colocar Milton acima de Shakespeare como poeta”.
Ao nome do poeta inglês, ir-se-á juntar o do filósofo grego Aristóteles, porque
ele defendeu que a obra de arte deve pertencer a um todo, a uma estrutura, a um
organismo. “O passo discutido de Aristóteles, de que a obra de arte é comparável a
um animal, deve sem dúvida ter este sentido”, eis a afirmação de um dos heterónimos
pessoanos, António Mora que tantas vezes discutiu com Ricardo Reis, cuja poesia,
aliás num contexto que é o da modernidade, soube encontrar aquele sentido de
organização clássica. Assim se orienta a obra de Pessoa para uma poesia objetiva que
se afasta “da retórica oca e do concomitante sentimentalismo difuso”.
Os caminhos da heteronímia correspondem a um círculo que se sobrepõe a outros
círculos. Eles são as conceções poéticas insistentemente defendidas por Pessoa,
como é o caso da noção de poesia dramática ou “drama em gente”, do fingimento, da
complexidade entendida como relação entre emoção e conceptualização, da defesa
de natureza construtiva existente na obra de arte. Fernando Pessoa criou, assim, uma
estética dos nomes que conduz a poesia à sua própria objetividade textual.
Fernando Pessoa e Almada Negreiros:
olhares que se cruzam sem se intersectarem

Marisa das Neves Henriques


Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra

Palavras-chave: Abel Manta; Almada Negreiros; binómio audição-visão; Fernando Pessoa.


Resumo: O desenho de João Abel Manta intitulado “Pessoa e Almada” capta a essência dos
dois órficos de forma admirável. Ora, é justamente a partir dele que se enceta uma breve
reflexão sobre a sensibilidade estética de cada um dos autores modernistas, no que de
singular e pessoal se pode destrinçar no destino de Fernando Pessoa, auditivo, e de Almada
Negreiros, visual.

Num interessante desenho a carvão de Abel Manta, os rostos em perfil de Almada


Negreiros e de Fernando Pessoa aparecem unidos numa sublime esfera (figura 1),
partilhando, no que diz respeito à visão, o mesmo hemisfério. Embora cada um
dos autores ocupe metade desse mundo suspenso entre a realidade e o sonho, entre
o halo etéreo e o grande fôlego criativo, os seus olhares assumem claramente um
sentido oposto. Ao olhar de Almada, fincado no horizonte, um pouco duro até,
representando o autor na fase septuagenária, contrapõe-se o olhar tímido e quase
incorpóreo de um Pessoa intemporal, aparentemente atento ao «lado de fora de
dentro» e à «visão interior». Absorto nos seus pensamentos, talvez tomado pelo
cansaço que convida os olhos a semicerrarem-se para ouvir melhor a música
divina, Fernando Pessoa não olha; antes parece «fitar o mistério e sem querer /
Compreender-lhe o horror!», ao sentir «o mundo / Fechado a laços de compreensão»
(PESSOA, F., 1988: 21).
Sem dúvida que é mais denso este desenho a carvão de Abel Manta que a
montagem realizada para a capa do Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo
Português (Martins, 2008). Aí os olhares de Sá-Carneiro, de Pessoa e de Almada
Negreiros procuram pontos de fuga diferentes, embora o do autor de “Caranguejola”
e o de Fernando Pessoa se aproximem. Almada, de perfil, num esgar trocista, parece
interpelar o século e verberar os seus anacronismos. Mas, é pouco justo (e chega a ser
redutor) este instantâneo.
360 100 Orpheu Marisa das Neves Henriques

Figura 1. João Abel Manta, Pessoa e

Almada (1981)

Ao contemplar o desenho, vem-nos, quase de imediato, à memória o texto pessoano


publicado em Portugal Futurista que, a partir da interrogativa inicial, fazia assomar
um enigma parecido com o que – em 1981 – o artista plástico ilustrava a carvão:

De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?

Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo —
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha ideia das coisas.
(Pessoa, F., 1997: 139-140)

Instaura-se entre os olhos e quem os usa (ou instrumentaliza) um processo


fenomenológico que, para assinalar complementaridades, dissocia o corpo
relativamente à alma que o habita, e dissocia o homem que apenas sente do poeta. Se
Fernando Pessoa e Almada Negreiros: olhares que se cruzam sem se intersectarem 361

a penumbra é fértil palco de desdobramento heteronímico, é com Alberto Caeiro que


ver assume o valor de ideia-síntese celebrada por Álvaro de Campos na “Ode Mortal”
(«Viste com a tua cegueira perfeita, sabes o não ver... / Porque o que viste com os teus
dedos materiaes e admiraveis / Foi a face sensivel e não a face physiognomica das
coisas») (Campos, A. de, 1997: 230).
À força de muito intelectualizar e de sentir duas vezes, o criador concebe, numa
projeção do ser, o universo (interior) como «nódoa esbatida», tornando-se por demais
evidente que a visão física se deixa contaminar pelo pensamento e pela fantasia,
intervindo por isso, neste exercício, o visual e o auditivo, de que Fernando Pessoa fala
num dos seus primeiros textos doutrinários1.
Assim, parece haver na pergunta «Quem continua vendo / Enquanto estou
pensando?» uma sugestão hologramática, de alteridade, que não despreza a operação
sensitiva primeva em favor da cosa mentale, tornando possível ver e ouvir os «passos
tristes», sabendo ainda que é na interioridade que eles ressoam, num caminho
ou numa escada que o peito pode guardar com recato e que a poesia veicula com
requintes distanciados do real e de qualquer calçada de pedra. Pessoa identificar-se-á,
por certo, então com esse «indivíduo de intensa vida interior e pouca atenção ao
mundo externo» que descreve no seu ensaio de 1912, num retrato consentâneo com o
que João Abel Manta nos apresenta.
Por seu turno, a agudeza do olhar de Almada Negreiros, bem representada no
desenho em análise, parece reconstituir conhecidas interpelações almadianas,
que fazem da metáfora da visão uma forma privilegiada de conhecimento e de
clarividência:

Já repararam nos meus olhos? Reparem bem nos meus olhos, não são meus, são os olhos do
nosso século! Os olhos que furam por detrás de tudo (Negreiros, A., 2006).

Em vez de ter morrido numa cruz, por ti, antes tivesse pegado na lança que me abriu o peito,
para com ela te rasgar os olhos da cara (Negreiros, A., 2005).

1 F. Pessoa, “A nova Poesia Portuguesa no seu aspecto psicológico”, Textos de Crítica e de Intervenção,
Lisboa, Ática, 1980, p. 68: «Na obra de poesia a ideia e a forma estão ligadas numa dupla unidade, unidade
imaginativa, isto é, unidade que vem da fusão da emoção e da ideia que em sua essência é o ato de imaginar.
Ora, a imaginação depende da organização dos sentidos do indivíduo; um visual imagina de modo
inteiramente diverso que um auditivo, um indivíduo de intensa vida interior e pouca atenção ao mundo
externo, de modo diferente de ambos». (...) Pior ainda, é na poesia do sr. T[eixeira] de P[ascoaes], a perpétua
confusão entre o físico e o psíquico e entre os mais sentidos. Isso denota uma perigosa e doentia falta de
atenção às representações que na psyche se formam dos dois distintos «mundos». Dizer que uma serra está
«coroada de neve e de silêncio» implica uma incapacidade em distinguir o carácter totalmente diferente dos
fenómenos «neve» e «silêncio», um dos quais é visual e o outro auditivo, no modo como são percebidos [Texto
inicialmente publicado em A Águia, 2ª série, nº 9, 11 e 12. Porto: Set., Nov. e Dez. 1912.]
362 100 Orpheu Marisa das Neves Henriques

O olhar surge aqui como pro-vocação, gume afiado que reclama a conquista
do presente, numa sede de lúcida clareza que A Invenção do Dia Claro anuncia. À
semelhança do poeta, Almada Negreiros também distingue os seres humanos em
função da sua vocação sensorial2. Colocando os dois perfis virados um para o outro
(figura 2), talvez se compreenda a justeza do atributo de auditivo quando aplicado a
Pessoa e o de visual a Almada Negreiros.

Figura 2. Pessoa e Almada (1981)

colocados de frente um para o outro.

A sede de clarividência e a perseguição da epifania em todo o seu esplendor, bem


como o horror à cegueira, expresso em textos como o “Manifesto Anti-Dantas” e “A
Cena do Ódio”, são reveladores da acuidade do “Menino de Olhos de Gigante”. Já
Fernando Pessoa traz à luz do dia uma lucidez intelectiva que, às vezes, se traduz
numa fuga ao real e na negação do que surge diante dos olhos, quando evoca um
elemento perturbador ou demasiado trivial. Ver pode afigurar-se um gesto material (ao
aspirar ao visível e ao palpável), correspondendo, de acordo com o semi-heterónimo
Bernardo Soares, a um movimento do «espírito do corpo» que dialoga com «a alma
do cérebro»:

Não posso ser materialista, (...) porque não posso estabelecer uma relação nítida — uma
relação visual, direi — entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra cor
qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus
que não existem. Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa

2 Almada Negreiros, “Arte e Artistas”, O.C. – Textos de Intervenção, Lisboa, IN-CM, 1993, p. 72-73: «Dos
nossos cinco sentidos, os dois primeiros, Ver e Ouvir, são o bastante para marcar nos indivíduos duas espécies
que imediatamente se diferenciam. (...) De modo que primeiro Ver, segundo Ouvir (...). O natural pois é
serem cinco os sentidos e nenhum a menos em cada indivíduo. Mas ao compararmos os indivíduos entre si
destacamos logo duas grandes espécies distintas: os visuais e os auditivos. E a razão é porque nos indivíduos
em comum os seus sentidos têm outras funções além das naturais. (...) Este facto [o predomínio de um dos
sentidos] sugere imediatamente a ideia de especialidade. É a organização do melhor sentido do indivíduo. É
a sua vocação. É a parte melhor pelo todo. O seu melhor quinhão pelos menos dotados.»
Fernando Pessoa e Almada Negreiros: olhares que se cruzam sem se intersectarem 363

ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que
depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajeto, do veículo em
que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do
corpo uma relação de convívio em que podem surgir discussões (Soares, B., 2005: 309).

Noutro trecho, Bernardo Soares confessará mesmo que nada observa diretamente,
usando um vidro de permeio, aspeto que o singulariza face ao comum dos mortais:

Sou como um ser de outra existência que passa indefinidamente interessado através desta.
Em tudo sou alheio a ela. Há entre mim e ela como um vidro. Quero esse vidro sempre
muito claro, para a poder examinar sem falha de meio intermédio; mas quero sempre o
vidro.
Para todo o espírito cientificamente constituído, ver numa coisa mais que o que lá está é ver
menos essa coisa. O que materialmente se acrescenta, espiritualmente a diminui.
Atribuo a este estado de alma a minha repugnância pelos museus. O museu, para mim, é a
vida inteira, em que a pintura é sempre exata, e só pode haver inexatidão na imperfeição do
contemplador. Mas essa imperfeição, ou faço por diminui-la, ou, se não posso, contento-me
com que assim seja, pois que como tudo, não pode ser senão assim (Soares, B., 2005: 309).

Seria esse mesmo vidro que Fernando Pessoa usava, qual Janus bifronte, na sua
criação, lançando a desconfiança a olhares a nu e sem mediação? Foi por esse motivo
que atribuiu a Pantaleão, figura modesta da sua galeria de personae, a afirmação «Sou
um visual. O que na memória trago, trago-o visualmente, se susceptível é de assim ser
trazido. Mesmo ao querer evocar em mim uma qualquer voz, um perfume qualquer,
não evito que antes que ela ou ele me vislumbre no horizonte do espírito, me apareça
à visão rememorativa a pessoa que fala, a coisa donde o perfume partiu.» (Pessoa,
F., 1990: 157)? Não assinar com o seu nome permitia-lhe, nesse caso, não subscrever
a ideia, mas ensaiá-la, através de outro...
Recuperemos uma vez mais a esfera desenhada por João Abel Manta. No artigo
«Cuidado com a Pintura!» Almada Negreiros serve-se do valor geométrico da esfera
que, de acordo com as suas palavras, representa a «noção precisa de um todo e das
partes que o formam em conjunto», escolhendo-o para chegar a uma definição de Arte:

A Arte é um todo, dominando toda a vida seja qual for o aspeto debaixo do qual ela seja
vista. Diversamente de todas as outras especialidades do mundo social, a Arte não é como
elas apenas um setor especializado fazendo parte de um todo, a Arte é essencialmente o
todo da vida visto debaixo de um aspeto (Negreiros, A., 1993: 107).
364 100 Orpheu Marisa das Neves Henriques

Neste sentido, Almada e Pessoa, cujos percursos se cruzaram durante a aventura


de Orpheu representariam diferentes pontos de vista sobre a arte, marca distintiva
que Merleau-Ponty esclarece e que o desenho de Abel Manta capta: «A visão não é
um certo modo do pensamento ou da presença de si: é o meio que me é dado de estar
ausente de mim mesmo, de assistir de dentro à fissão do Ser, no final da qual, somente,
me fecho sobre mim» (Merleau-Ponty, M., 2006).
Estaríamos por isso diante de uma ausência que convida ao descentramento, de
que Almada é protagonista aderindo a um conceito de arte total, e, no outro lado da
esfera, assistiríamos ao ensimesmamento de Fernando Pessoa para quem a fruição
de todos os sentidos pressupõe o seu estatuto autónomo e, só às vezes, admite
cruzamentos sinestésicos. Vale a pena lembrar que o poeta esquissara um plano de
elaboração de manifestos «Contra a musica, a pintura, a esculptura e a architectura»
e «Contra as artes», proclamando, ainda que entre parênteses «A literatura a única
Arte»3.
Longe de uma leitura impressionista, em 1965 Almada Negreiros reconhecia
nos companheiros de Orpheu uma “mesma não identidade”, mas também uma
única circunstância («…muito estranhamente diferentes uns dos outros» e «todos
suspensos do mesmo fio…»). Em Fernando Pessoa via o seu oposto, um auditivo por
índole, cuja estilística se sobrepunha à sua poética4. Sem, no entanto, desenvolver
esta ideia, talvez Almada entendesse que o estilo pessoano radicava na emergência
de uma individualidade difícil de rebater por qualquer conceito de geração ou de arte
dialógica, até porque, imerso na teoria do Sensacionismo, o criador dos heterónimos
não ambicionava transpor os limites da literatura.
O sentido da poética modernista elaborada por Almada e a possibilidade de
o elegermos simbolicamente como representante da sua geração interartística
interceptam-se de certa forma com um magnífico texto de Agamben intitulado «O
ser especial», de que citamos algumas linhas:

A espécie não subdivide o género, expõe-no. Assim, desejando e sendo desejado, o ser
faz-se espécie, torna-se visível. E ser especial não significa o indivíduo, identificado por esta
ou por aquela qualidade que lhe pertence de forma exclusiva. Significa, pelo contrário, ser
um qualquer, ou seja, um ser que é, indiferentemente e genericamente, cada uma das suas
qualidades, que adere a elas, sem deixar que nenhuma o identifique. (…)

3 F. Pessoa, Caderno de notas de Fernando Pessoa [março de 1914- junho de1916], 20r, disponível na Biblioteca
Nacional Digital, no Espólio Fernando Pessoa (http://purl.pt/1000/1/cadernos/index.html).
4 Sobre este aspecto, veja-se o nosso Antes de um Manual de Pintura e Caligrafia: uma poética modernista por
Almada Negreiros, Coimbra, CLP-Nota de Rodapé Edições, 2015.
Fernando Pessoa e Almada Negreiros: olhares que se cruzam sem se intersectarem 365

Especial é, de facto, um ser – um rosto, um gesto, um acontecimento – que, não se


assemelhando a algum, se assemelha a todos os outros (Agamben, G., 2006: 80).

Esta definição ajusta-se em grande medida ao pensamento e à obra do Narciso do


Egipto que, ao negar aos órficos o estatuto de “espécime de estandardização”, incita
os «indivíduos sem nomes próprios nem apelidos» a representarem a colectividade,
asseverando que «cada um deve ser como toda a gente». Ao invés de salientar o que
é privativo em cada especialidade artística, Almada Negreiros sugere que os vários
saberes sejam colocados ao serviço de cada coerência pessoal. Daí que a procura da
identidade dos discípulos de Orpheu o incite a defender uma arte plural em que, sem
quebrar a unidade, inclui as melhores lições da poesia e da pintura, bem como os seus
principais mentores e colegas de tumulto.
Se quisermos falar de uma arte poética modernista criada a várias mãos,
reconhecemos que Almada foi esse «ser especial» que Agambem esquissa, a ponto de
deixar que a sua obra não fosse apenas silenciosamente atravessada pela influência de
inúmeros colaboradores, mas funcionasse antes como uma inscrição do seu talento,
cultivando para sempre em nós a memória dos seus rostos.
Como é natural, esta dimensão gregária não retira a Almada a sua genialidade
nem tão pouco o seu modo peculiar de estar na Arte. Aliás, ao longo dos anos, ele
soube adquirir “a vincada forma pessoal” e o “acentuado polimorfismo” que Pessoa
lhe cobrara numa crítica feita em 1913.
Mas a «disciplina individual, o domínio absoluto da personalidade», vindos a
lume na apresentação dos Bailados Russos, conjugam-se perfeitamente com o pacto
que firmou com pintores e poetas. Com efeito, Almada Negreiros proporcionou
o encontro e fez-se oráculo de Orpheu. Assumindo-se como um “ser qualquer”,
“semelhante a todos os outros”, liberto de tudo, reconstituiu a poética do modernismo
português e escreveu na primeira linha o nome dos companheiros. Encontrou-se com
Fernando Pessoa, os seus olhares cruzaram-se, mas sem se interceptarem, como João
Abel Manta regista de forma magistral em 1981.

Bibliografia

Bibliografia ativa
Negreiros, José de Almada (1993). Obras Completas – Textos de Intervenção.
Lisboa: IN-CM.
Negreiros, José de Almada (2005). A Invenção do Dia Claro, edição
fac-similada. Lisboa: Assírio & Alvim.
366 100 Orpheu Marisa das Neves Henriques

Negreiros, José de Almada (2006). A Conferência n.º 1 (Lisboa, Maio de 1920),


in Manifestos e Conferências. Lisboa: Assírio & Alvim.
Pessoa, Fernando, Caderno de notas de Fernando Pessoa [março de 1914- junho
de1916], disponível em http://purl.pt/1000/1/cadernos/index.html
Pessoa, Fernando (1980). “A nova Poesia Portuguesa no seu aspecto psicológico”,
Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática.
Pessoa, Fernando (1988). Fausto - Tragédia Subjectiva, texto estabelecido por
Teresa Sobral Cunha, prefácio de Eduardo Lourenço. Lisboa: Presença.
Pessoa, Fernando (1990). Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa,
Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa.
Pessoa, Fernando (1997). Álvaro de Campos. Livro de versos, edição de Teresa
Rita Lopes. Lisboa: Estampa.
Pessoa, Fernando (2005). Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith.
Lisboa: Assírio & Alvim.

Bibliografia passiva
Agamben, Giorgio (2006). Profanações, trad. de Luísa Feijó. Lisboa: Livros
Cotovia.
Henriques, Marisa das Neves (2015). Antes de um Manual de Pintura e
Caligrafia: uma poética modernista por Almada Negreiros. Coimbra-Paris:
Centro de Literatura Portuguesa - Nota de Rodapé Edições.
Merleau-Ponty, Maurice (2006). O olho e o espírito, trad. de Luís Manuel
Bernardo. Lisboa: Vega.
O Sensacionismo é um
Não-Existencialismo

Nuno Hipólito
IEMO Grupo Interdisciplinar de Estudos Pessoanos e Modernistas

Palavras-chave: Filosofia; Sensacionismo; Existencialismo; Sartre; Wittgenstein.


Resumo:É de conhecimento comum – da leitura literal deixada sobretudo em diários – que a
filosofia teve uma notória influência num jovem Fernando Pessoa, desejoso de conhecimento
e direcção. Até hoje essa influência tem sido considerada como circunscrita ao período de
1906-08, tempo em que frequenta o Curso de Letras e a casa do seu tio Henrique Rosa. No
entanto vemos como Pessoa nunca deixa de pensar filosoficamente, sobretudo enquanto escreve
no Livro do Desassossego ou cria correntes literárias como o Sensacionismo. A importância de
revelar uma filosofia Pessoana nada tem a ver com a reafirmação do seu génio, muito menos
traz consigo o propósito de mais uma vez por em causa a origem dos heterónimos. Tem, isso
sim, o objectivo claro de colocar à disposição dos investigadores contemporâneos, pistas claras
para ultrapassar os limites da filosofia da linguagem que, desde Wittgenstein, têm sufocado o
livre-pensamento na Europa.

No dia 29 de Outubro de 1945, no Club Maintenant em Paris, o filósofo Francês


Jean-Paul Sartre realizou uma conferência intitulada «O Existencialismo é um
Humanismo»1 defendendo o Existencialismo contra as críticas dos seus já fortes
oponentes – nomeadamente Marxistas e Católicos. Não seria a última vez que
Sartre sentiria a necessidade de defender as suas teorias porque, no próprio ano
da sua morte – 1980 - seriam publicadas no jornal Le Nouvel Observateur uma
série de entrevistas2 com Benny Lévy que constituem, para muitos, uma quase
inteira negação dos conceitos-base do Existencialismo ateísta. A base dessa

1 Sartre, J. P., 1946.


2 Cf. Le Nouvel Observateur, 10, 17 e 24 de Março de 1980. Embora constituam ainda objecto de debate intenso
entre os seguidores da obra de Sartre, estas entrevistas são geralmente consideradas como uma síntese mais
ou menos aproximada das últimas ideias do pensador Francês, que parece ter ficado satisfeito com a polémica
causada pelas mesmas.
368 100 Orpheu Nuno Hipólito

defesa? A questão da esperança, ou melhor, a falta dela nos sistemas filosóficos


individualistas.
A esperança está relacionada directamente com a acção e mais propriamente com
o resultado primordial da acção: a ansiedade ou a angústia. Sartre parece ter chegado
à conclusão que o seu Existencialismo – uma teoria que defende a total liberdade do
ser em se definir a si mesmo, baseando-se no princípio da existência antes da essência
– não deveria obrigatoriamente condenar o homem ao desespero dessa mesma
liberdade ilimitada que, inevitavelmente, não proporcionava só por si o resultado
final esperado.
O Existencialismo não foi só de Sartre, mas foi Sartre que o desenvolveu tecnicamente
e lhe deu relevância e credibilidade. Antes dele, Kierkegaard e Nietzsche tinham-lhe
dado início e génio. Vejamos que o Existencialismo não é uma escola do Pós-Guerra,
antes uma teoria que nasce na viragem do Século XIX para o Século XX. Kierkegaard
morre em 1885 e Nietzsche em 1900. Enquanto escola de pensamento, o Existencialismo
revolta-se contra o papel do individuo diluído e oprimido pela sociedade e pela religião
e só depois se desenvolve para dar o papel principal ao próprio indivíduo – desta forma
impondo o subjectivismo ao objectivismo da escola Positivista.
Levando em consideração o tardio (e ainda hoje paradoxal) “arrependimento” de
Sartre na direcção de Levinas, o Existencialismo permanece, no Pós-Guerra, uma
presa fácil para as escolas Analíticas Inglesas e Austríacas devido ao vácuo moral e
ético em que deixa o indivíduo. A Europa em reconstrução aceita mais rapidamente
o abraço reconhecido, mas apertado, do Positivismo do que a aventura angustiante
e literária do Existencialismo ateísta. Kierkegaard tinha chamado a atenção para a
angústia do indivíduo, Nietzsche tinha tentado sanar essa angústia niilista matando
a importância de Deus em favor do homem; a Sartre caberia a função ingrata de
solucionar o que seria uma moral ateísta sem Deus e sem o “outro”. Entretanto o novo
Positivismo trazia um novo Deus – a ciência – e a filosofia, erodida pela lógica de
Wittgenstein, perdia cada vez mais utilidade e força.

II

Pessoa podia, em teoria, ter sido exposto às ideias Existencialistas e Analíticas do seu
tempo. Os principais membros dessas escolas escrevem no período em que o próprio
Pessoa escreve ou então imediatamente antes. Assim Falava Zaratustra, de Friedrich
Nietzsche é publicado em Inglês, em 1895. Principia Mathematica de Alfred North
Whitehead e Bertrand Russell aparece em 1910 e o Tractatus Logico-Philosophicus de
Ludwig Wittgenstein é traduzido para Inglês em 1922. No início dos anos 30 surgem
O Sensacionismo é um Não-Existencialismo 369

as primeiras traduções Inglesas de Søren Kierkegaard e pré-existencialistas como


Heidegger começam a chegar a Portugal3.
No entanto, e apesar de se conhecer a sua insaciável curiosidade, de todos os
filósofos citados, apenas se encontram escritos de Pessoa sobre Nietzsche. Pessoa
tê-lo-á conhecido sobretudo através de compêndios de filosofia que possuía na sua
biblioteca – leituras portanto secundárias, embora se contenda que chegou a ler pelo
menos Assim Falava Zaratustra na tradução para Espanhol4. Nada se encontra sobre
Wittgenstein ou Kierkegaard. Sobre Russell, referências mínimas, como por exemplo
na obra de Cyril Joad, uma primeira edição de 1928 intitulada Great philosophies of the
world. De resto, apenas um vestígio completo da escola lógica na biblioteca pessoal:
uma obra de Alfred North Whitehead publicada em 1911 e intitulada An introduction
to mathematics5.
A falta de obras filosóficas destes autores na sua biblioteca pessoal, embora apenas
prova circunstancial, serve para ilustrar um interesse na filosofia pura ou teórica
que foi apenas passageiro. Bem sabemos que Pessoa lia muitos livros em ambiente
de biblioteca, sobretudo na sua juventude, e que vendia ou trocava outros livros que
possuía, mas restaram, julgo eu, aqueles essenciais até ao final da sua vida – e entre
eles, quase nenhuns de filosofia pura, senão compêndios6.
Parece evidente que o interesse de Pessoa pela filosofia pura foi – tecnicamente
falando – restrito no tempo e relativamente pouco aprofundado. Esse interesse
toma-lhe menos de dois anos, entre Outubro de 1905 e Junho de 1907, altura em
que com 17 anos, frequenta o Curso de Letras pouco depois de ter chegado a Lisboa
da África do Sul. Como era hábito nele, o interesse por novas ideias foi intenso mas
curto, tendo até percebido que a filosofia pura poderia ser um obstáculo à sua poesia:
«Tenho de ler mais poesia, de modo a neutralizar um pouco o efeito da filosofia pura»
(PESSOA, F., 1908: 32)7.
Esta frase-chave tirada de um diário e escrita a 26 de Março de 1906 será reforçada
em 1909:

3 Cf. REAL, M., 2011: 301 e ss.


4 Cf. COELHO, A. P., 1971: 155; AZEVEDO, A., 2005: 13 e ss; «Nietzsche» in Dicionário de Fernando Pessoa e
do Modernismo Português, Caminho, 2008; RIBEIRO, N., 2011: 49 e ss.
5 Cota: CFP 5-33
6 Para o confirmar, basta uma consulta ao conteúdo filosófico da sua biblioteca, disponível em formato digital
em http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/bdigital/index/classe/2.htm
7 PESSOA, F., 2003: 32.
370 100 Orpheu Nuno Hipólito

Eu era um poeta animado pela filosofia, não um filósofo com faculdades poéticas. Eu adorava
admirar a beleza das coisas, delinear – imperceptivelmente através do assombrosamente
pequeno - a alma poética do universo.

A poesia está em tudo – no mar e na terra, no lago e na margem do rio. Está na cidade
também – não o neguem – isto é evidente para mim, aqui sentado: há poesia nesta mesa,
neste papel, neste tinteiro; há poesia no ruído dos carros nas ruas, em cada minuto, cada
momento comum, no movimento ridículo do trabalhador, que, no lado oposto da rua pinta
a placa do talho (PESSOA, F., 1906: 22)8.

III

Como se pode defender um Pessoa-filósofo quando se prova facilmente que ele


não desempenhou qualquer papel na discussão filosófica contemporânea? Os seus
escritos filosóficos puros são pouco mais do que resumos de um universitário de
primeiro ano, sem qualquer nexo comunicante entre si.
Estas dúvidas levar-nos-ão, desde logo, a perguntar o que era a filosofia para
Fernando Pessoa. Ele responde-nos, ainda em 1908, dizendo:

«O problema central da filosofia é a filosofia que a si própria se põe como problema.» Por
que precisamos de filosofia?
A ideia fundamental do ser, ou da realidade, ou da verdade, eis o que procuramos na
Filosofia. A Filosofia é a demanda do ser. O que é o Ser, o que é a realidade? Este é o problema
da filosofia9 (PESSOA, F., 1908: 52).

É espantoso que estas duas ideias, a do “problema central da filosofia ser a própria
filosofia” e a “colocação do ser enquanto principal demanda da filosofia” nunca tenham
sido analisadas devidamente pela exegética Pessoana. Isto porque a primeira antecipa
os problemas enfrentados pela filosofia no pós-Guerra perante a ameaça da lógica e a
segunda fornece pistas para o que será realmente “um poeta influenciado pela filosofia”.

Não há dúvidas que Pessoa se assume ao longo da sua obra como um escritor da
existência mas não um filósofo existencialista stricto sensu. Aliás, a partir de 1909
dificilmente se diria que ele mantenha sequer um interesse concreto em filosofia pura.

8 PESSOA, F., 1986: 22. A tradução é nossa do original em inglês.


9 PESSOA, F., 1989: 52.
O Sensacionismo é um Não-Existencialismo 371

Ele rapidamente percebeu que a filosofia pura não lhe traria respostas, intuindo que a
razão dessa impotência poderia residir no uso dado à linguagem, ou mais amplamente
à linguagem poética. Ora, Pessoa nunca se deixou de interessar pela análise linguística,
pelo contrário – é um tema central e contínuo na sua obra.
O que não foi ainda analisado plenamente foi a transferência de interesse e
energia, da filosofia para a poesia e como ambas se complementam nas suas teorias
linguístico-literárias, sobretudos no seu “ismo” principal: o Sensacionismo. Veremos
como essa transferência terá estado na origem das principais aventuras ontológicas
de Fernando Pessoa através dos seus heterónimos, tendo culminado num sistema
filosófico que nada já tinha de filosofia pura, mas antes era uma total e coerente teoria
do pensamento poético.
Se “a poesia está em tudo” é através da poesia que se chegará a tudo. Mas como?
Wittgenstein tinha já questionado a conexão consciência-realidade, interpondo a
linguagem entre as duas e impondo rígidas regras lógicas a essa mesma linguagem,
que exigiam o silêncio quando nada podia ser dito10.

IV

Antes de esclarecermos o papel da poesia no sistema filosófico Pessoano, devemos


começar por analisar como Pessoa se propôs à “demanda do ser” – que ele indicara
como principal dever da filosofia.
Toda a obra de Pessoa é de base ontológica, desde logo porque se baseou na criação
de personagens que não eram ele e que, como ele próprio disse, retiravam dele as suas
qualidades para o deixar como o resto dessa mesma subtracção. Assim escreve Pessoa
a Casais Monteiro no início de 1935:

[…] pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo
Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de
Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais
Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando
Pessoa, impuro e simples11! (PESSOA, F., 1935)

10 A passagem em questão é a seguinte: “Sobre o que não se pode falar, deve-se fazer silêncio.” Cf.
Wittgenstein, L., 1922: 90. E em correlação: “Os limites da minha linguagem denotam os limites do
meu mundo”, ob.cit., 5.6, p. 74. Em ambos os casos é nossa a tradução do Inglês.
11 Cf. PESSOA, F., 1999: 337 e ss.
372 100 Orpheu Nuno Hipólito

De forma similar, a vida de Pessoa resumia-se muitas vezes a uma dramatização


de si mesma, transformando-o num interior sem exterior. Citando agora o Livro do
Desassossego:

Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária,


mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele
é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora. E, se o escritório
da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde
moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que
mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem
aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim,
esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de
todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução12. (PESSOA,
F., 350)

Existia, no seu quotidiano, uma distinção clara entre o que ele era e o que ele fazia,
se quisermos, entre a sua existência e a sua essência. A Rua dos Douradores, por
coincidência ou não, a rua mais escura da baixa Lisboeta, simboliza o Universo e no
Universo há lugar para a Vida e para a Arte, para o real e para o ideal.
Não é de estranhar que ele pudesse aparecer aos amigos ou conhecidos como um
dos heterónimos, porque eles afinal nada mais eram do que uma parte dele; como o
emprego itinerante nos escritórios, dentro e fora de horas, também era. Pessoa apenas
deu um nome mais concreto ao que nós todos sentimos também de forma incompleta
– emotividade, frieza ou racionalidade, Campos, Caeiro ou Reis.
No que nos interessa analisar, nomeadamente como esta cisão na personalidade
origina uma forma inovadora de filosofar, aproximamos a despersonalização
Pessoana primeiro à duplicidade dentro-fora, interior-exterior. A explosão de
personalidades-outros em Pessoa representa essencialmente a fuga da dor da
realidade, tendo Pessoa calado o mais fundo de si em favor de outras vozes que não a
sua. Não há verdade no exterior, apenas no interior, porque é no interior que todos os
nossos sonhos vivem e se conquistam. A vida sonhada é uma vida em que o sonhador
constrói a sua verdade, a sua realidade.

12 PESSOA, F., 2010 (Tomo I): 350.


O Sensacionismo é um Não-Existencialismo 373

Vimos que a “demanda do ser” se consegue pela despersonalização. Não ser


ninguém é ser tudo de todas as maneiras, experienciar o mundo de todas as formas
e sentir todas as coisas de todas as formas. No entanto essa realização, essa operação
ocorre através de uma virtualização da realidade exterior, usando o sonho.
O ajudante de guarda-livros que passa os dias a descriminar quantidades em livros
enormes no armazém de fazendas, faz parte de um absurdo maior do que ele próprio
– é o absurdo de haver a necessidade de termos empregos e funções. Mas, quando
sonha a realidade, ele é o autor do Livro do Desassossego e tudo lhe é possível. O seu
afastamento do mundo é radical, ao ponto de, progressivamente o mundo interior
se sobrepor ao mundo exterior e ele mesmo se torna nada mais do que um elemento
dessa construção infinita.
Todas as coisas no mundo exterior têm um paralelo interior. A realidade torna-se
sonho; a acção, inacção; a posse, cansaço; o amor, contemplação. E a forma como o
mundo interior é construído é pelo uso de uma linguagem própria.
O absurdo do mundo é tentarmos perceber o absurdo do mundo. Em vez disso,
Pessoa deixa-nos a hipótese de refazermos o mundo, cada um de nós à nossa maneira.
Sim, isso implica que nos afastemos do mundo exterior para o mundo interior, mas,
no sentido em que nenhum mundo faz sentido, porque é que o mundo exterior é
melhor do que o mundo interior?
A defesa do mundo interior segue um princípio de vitalidade individual, de
empowerment do individuo à maneira existencialista, mas de forma extrema: para que
ele possa viver a vida e não ser vivido por ela. É uma máxima não muito distante do que
dizia Sartre quando colocava a existência antes da essência, decretando a necessidade
da liberdade de escolha. Em Pessoa essa liberdade manifesta-se pelo sonho, porque
sonhar é agir no interior com um sucesso impossível de alcançar no exterior. Sonhar
é ser livre porque sonhar é uma libertação da realidade que nos oprime. Mas como
podemos aprender a viver assim? Pessoa recomenda uma “educação sentimental” como
primeiro passo, portanto uma educação do sentimento, do resultado próximo das
sensações exteriores; o “sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente”.
Qual o objectivo desta maximização das “coisas mínimas”? É simples – a negação do
“mais” que é o total do mundo exterior corresponde a um ascetismo, a uma recusa
de tudo o que o mundo exterior oferece, exigindo que o indivíduo controle os seus
desejos e os seus impulsos.
374 100 Orpheu Nuno Hipólito

O primeiro passo a ser dado pelo sonhador é então o afastamento. O próprio Pessoa
diz que a “liberdade é a possibilidade do isolamento”13. O segundo passo? Evitar o
sofrimento conhecendo-o intimamente. O último passo – o terceiro como na tradição
alquímica – é a depuração da sensação pela inteligência para que tome uma forma
literária. Podemos resumir todos estes passos num único: o pensamento mata a acção
e a literatura dá forma visível a essa morte.
A necessidade da escrita em Pessoa parece então surgir da necessidade de analisar
as suas sensações para as transformar em sonhos. E cada pequena sensação poderá
estar na origem de um grande sonho e, por consequência, de um grande texto como
“Na floresta do Alheamento” ou “Viagem nunca feita”.

VI

No fundo da realidade sonhada está a sensação. Mas a realidade interior pode ser
resumida e constituir-se apenas de sensações ínfimas de si mesma? A resposta a esta
questão é dada no enquadramento do Sensacionismo Pessoano.
Estes são os três princípios do Sensacionismo:

1. Todo o objecto é uma sensação nossa.


2. Toda a arte é a conversão duma sensação em objecto.
3. Portanto, toda a arte é a conversão duma sensação numa outra sensação14. (PESSOA, F.,
168)

Ao dizer que “todo o objecto é uma sensação nossa” e que “toda a arte é a
conversão de uma sensação em objecto”, Pessoa parece estar a dar-nos um manual
para a desconstrução da realidade em si mesma em objectos transferíveis de fora
para dentro. Ele acredita que é possível pegar em sensações exteriores (os objectos) e
transformá-las em sensações interiores (a literatura). Será necessário transferir toda
a realidade exterior para a realidade interior? Não. O objectivo não é compreender o
Universo, porque o Universo é incompreensível, mas antes construir o nosso próprio
Universo.
O Sensacionismo é assim o método da filosofia Pessoana, a forma de processar a
realidade para encontrar significados, em busca de uma verdade individual. Há que

13 Cf. PESSOA, F., 2010 (Tomo I): 434.


14 PESSOA, F., 1966: 168.
O Sensacionismo é um Não-Existencialismo 375

salientar que a verdade é sinónimo dessa mesma individualidade – cada um de nós


constrói o seu Universo interior e dentro dessa realidade inviolável, a verdade tomará
um sentido variável de acordo com o indivíduo que a imagina. O que distingue o
Sensacionismo, para além da sua singularidade artística, é esta infinita variedade no
que diz respeito à verdade.
O que representa isto para o indivíduo quando comparamos o Sensacionismo
com o Existencialismo? Primeiro, o Sensacionismo não pretende ser uma filosofia
no sentido clássico do termo. Quando encarado dentro do sistema mais amplo que o
embarca, ele serve objectivos iguais mas distintos do Existencialismo. As declinações
do Existencialismo acabaram por ser movimentos sociais, prolongando o sentimento
individualista para a luta de classes; como se fosse realmente possível “pensar o
homem a partir do zero”. A realidade das coisas é que o Existencialismo falhou a partir
do momento em que forneceu a liberdade ao homem, porque o deixou sem ordem
social ou moral. A filosofia não-existencialista parte de alguns princípios comuns,
nomeadamente estabelecendo que o homem existe livre e determina a sua própria
liberdade através de decisões individuais, mas essas decisões não são necessariamente
feitas em sociedade. Aliás, a decisão essencial será apenas uma: a decisão de deixar
de viver, no sentido em que esta “morte para o mundo” significa uma “morte para o
mundo exterior”.
O que se apresenta ao mundo? Apenas uma máscara, ou mesmo várias máscaras,
dependendo das necessidades. Criam-se outros que vivem por nós, enquanto nós
somos sinceros e nós mesmos apenas no nosso mundo interior. Um mundo que
não é imaginado do nada, mas feito da realidade transposta do exterior através do
Sensacionismo.
A existência do ser no mundo exterior exige novos conceitos. Um deles será o que
vamos chamar de “corpo estético”. Pessoa diz mesmo: “Vivo-me esteticamente em
outro”15.
O objectivo alto do Livro do Desassossego é a teorização de uma vida plenamente
estética, no sentido em que o ser é um ser-para-si-mesmo e simultaneamente um
ser-para-o-mundo. Ontologicamente estas duas dimensões sobrepõem-se, mas
a primeira é claramente a dominante. No entanto, e como é bom de perceber, é
impossível ter uma existência puramente estética – nós existimos materialmente e
expressamo-nos materialmente. Esse sonho, de uma existência puramente estética é,
no entanto, presente em toda a obra de Pessoa – e em certa medida é o que ele pretende
construir com a sua coterie de heterónimos, semi-heterónimos e pseudónimos.

15 PESSOA, F., 2010 (Tomo I): 35.


376 100 Orpheu Nuno Hipólito

VII

O que é o Sensacionismo? É uma “filosofia estética”, é o próprio Pessoa que o


diz16. O Sensacionista, enquanto homem superior, cansou-se da realidade comum
e abdicou dela. Ficou-lhe um tédio imenso dessa mesma realidade, que se projecta
numa decisão consciente de literalmente deixar de existir. O Sensacionista, porém, vai
mais longe do que o Existencialista que se deixa consumir pelo tédio. O Sensacionista
sonha a realidade que o cansa e desenha a sua própria realidade. A operação cognitiva
não é racional, é emocional; precisamente porque nada de concreto se pode realizar
no mundo exterior.
Se pudéssemos voltar por momentos à conferência de Sartre compreenderíamos
agora melhor as críticas que lhe foram colocadas. Na verdade Sartre sentia que o
Existencialismo não tinha defesa possível, precisamente por sentir a necessidade de o
defender. Ele falhara porque não tinha solucionado um problema insolúvel: o que se
faz com a liberdade total para que não se acabe no anarquismo?
Pessoa propõe-nos uma alternativa.
Essa mesma liberdade é uma liberdade individual mas apenas a ser exercida de
forma individual, ou seja, sobre o próprio indivíduo que a reclama. A forma como ela
é exercida apenas tem um objectivo, o de reconstruir o mundo exterior em forma de
mundo interior, usando as sensações e o sonho como métodos. A escolha de deixar
de viver no mundo exterior, substituindo-nos por máscaras de nós mesmos, anula
a necessidade de existir uma moral ou qualquer outro princípio de vida. Por outro
lado, mesmo a realidade metafísica se torna possível de ser vivida, por ser interior
– o Sensacionista dirá: “o Deus sou eu”; porque, em essência, ele é o criador do seu
próprio Universo.
O não-existencialismo assenta assim em bases individualistas e na decisão pessoal
em recusar a realidade exterior em favor da realidade interior. O processo de transição
fora-dentro opera-se através da literatura, usando a linguagem poética enquanto
única linguagem possível como veículo artístico de transformação de objectos em
literatura pelo sonho.
Perante as correntes lógicas e nomeadamente Ludwig Wittgenstein, Pessoa apresenta
o que seria uma filosofia pós-existencialista e pós-analítica, que podia ser encimada
pela máxima: “Se os limites da minha linguagem delimitam os limites do meu mundo,
o meu mundo não tem limites porque se tornou a minha própria linguagem”.

16 Cf. PESSOA, F., 1966: 156.


O Sensacionismo é um Não-Existencialismo 377

Bibliografia

Bibliografia Activa
PESSOA, Fernando (1986). Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas.
Lisboa: Publ. Europa-América.
PESSOA, Fernando (1989). À Procura da Verdade Oculta, Lisboa: Publicações
Europa-América, 2ª edição.
PESSOA, Fernando (1999). Correspondência 1923-1935. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2003). Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão
Pessoal. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2010). Livro do Desasocego. Lisboa: INCM.
PESSOA, Fernando (1966). Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Lisboa: Ática.

Bibliografia Passiva
AZEVEDO, António (2005). Pessoa e Nietzsche. Lisboa: Instituto Piaget.
COELHO, António Pina (1997). Os Fundamentos filosóficos da obra de Fernando
Pessoa. Lisboa: Verbo.
SARTRE, Jean-Paul (1946). L’Existentialisme est un humanisme. Nagel.
BLANCO, José (2008). Pessoana. Lisboa: Assírio & Alvim.
WITTGENSTEIN, Ludwig (1922). Tratactus Logico-Philosophicus. London:
Kegan Paul, Trench, Trubner.
REAL, Miguel (2011). O Pensamento Português Contemporâneo 1890-2010.
Lisboa: INCM.
RIBEIRO, Nuno (2011). Fernando Pessoa e Nietzsche: O pensamento da pluralidade.
Lisboa: Verbo.
RIBEIRO, Nuno (2012). Fernando Pessoa, Philosophical Essays: A critical edition.
New York: Contra Mundum Press.
Do desassossego ou a geometria do abismo

Lilian Jacoto
Universidade de São Paulo

Palavras-chave: Fernando Pessoa; Livro do Desassossego; geometria do abismo; negatividade;


ironia.
Resumo: O artigo propõe uma leitura geometrizada da obra pessoana, apontando, num suposto
projeto totalizante, duas linhas ou vetores que caminham em sentidos opostos, quais sejam: a
construção de uma positividade neopagã, representada pela visão presumidamente direta da
poesia de Alberto Caeiro; e a geometria do abismo, expressão cunhada por Bernardo Soares,
no Livro do Desassossego, como princípio desestruturante de sua escrita, mediante um olhar
desamparado da (in)finitude. Neste segundo vetor, a retórica da negatividade é princípio que
refrata a pontualidade do sujeito na obra pessoana, e sua direção caminha para uma matriz
de dissolução que é, afinal, a essência do Desassossego. Levando-se em conta as implicações
filosóficas do fragmento como forma, apontar-se-ão os movimentos de uma visão em abismo,
na paisagem quiasmática do poço-céu a expressar um ethos poético trágico, refratário e irônico.

A Circe do Abysmo tenta como nenhuma outra mulher (Fernando Pessoa)

Os dois números que fizeram existir a Revista Orpheu, há cem anos, expressam, na
conjugação de suas linhas estéticas, uma dualidade típica dos momentos de transição,
quando o velho e o novo devem coexistir para que o contraste grite e se estabeleça,
para que o novo exista em fricção e abertura, mas sobretudo pra que seja uma resposta
a questões que a antiga arte não dava mais conta de equacionar.
Responder ao seu tempo foi uma preocupação aguda do modernismo. E Fernando
Pessoa obrou suas respostas, tanto na concepção do Orpheu junto a Sá-Carneiro,
quanto no conjunto da obra que só em parte editou. Com Haquira Osakabe1
compartilhamos a intuição de que o conjunto da obra pessoana (tomado na sua
infinitude) carregue uma intencionalidade de responder à Decadência que contagiou
a cultura europeia desde os oitocentos, e que ainda ecoava, sobremaneira em Portugal,
numa arte afetada de um histerismo mal compreendido e mal curado dos traumas
históricos e políticos ainda muito recentes. O Mal, entretanto, era de outra natureza,

1 OSAKABE, H., 2014.


380 100 Orpheu Lilian Jacoto

insondável, e seu mistério colocava em xeque uma genealogia do saber tomada, em


sua generalidade, como cultura do Esclarecimento.
Passar além da dor resume, talvez, esse projeto responsivo, pessoano e, de modo
geral, modernista. Mas, se por um lado faz renascer uma ideia de paganismo como
forma de suplantar um ethos sacrificial cristão (e a poesia de Caeiro será aqui um
modelo a seguir), Pessoa também empreende um movimento cosmogônico em
direção oposta, em direção a um abismo incontornável que a um tempo o ameaça e
fascina.
Bastaria comparar dois poemas que já estabelecem essa polaridade a partir de
duas formas radicalmente diferentes de olhar para as coisas. No poema II de O
Guardador de Rebanhos (PESSOA, F., 1986: 204), os versos de Caeiro ensinam o que
o poeta pretende que seja um olhar direto para o mundo, quase que uma ausência do
pensamento, como se não houvesse nenhuma intermediação entre sujeito e paisagem,
a ponto de o olhar, em símile, imitar a nitidez de um girassol em dia esplêndido, com
seu giro instintivo e quase mecânico na rotação da luz:

O meu olhar é nítido como um girassol.


------------------------------------------------------
Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

No poema de Caeiro, o girassol é imagem e reúne, amalgamados, o olhar cuja


nitidez se pode comparar à da flor vista em plena luz do dia, como também o objeto
que esse olhar desvela, com sua “luz” também direta, incisiva. Essa forma de olhar que
amalgama sujeito e objeto em pleno acordo da imagem é a afirmação da poesia como
caminho terapêutico para a melancolia que a fissura do pensamento provoca, com seu
poder disjuntivo e refratário.
Ora, se mudarmos o ponto de vista agora para o Pessoa ortônimo, esse olhar
encontra seu anverso no poema “Abismo” (PESSOA, F., 1986: 111), que citamos abaixo
na íntegra, para que se possam compreender justamente as dobras que o pensamento
realiza sobre a paisagem vista:
Do desassossego ou a geometria do abismo 381

Olho o Tejo, e de tal arte


Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando —
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,


Vácuo, o momento, o lugar. Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,


E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus..

E súbito encontro Deus.

Esse outro olhar que rapidamente se transforma em devaneio é a imposição de uma


subjetividade desagregadora que vê pensando, que toma consciência da dualidade
eu-mundo, numa distração do objeto e observação analítica do processo, instaurando
a distância irônica (interrogante, autoconsciente) que inibe a sensação, que refrata
a visão de uma paisagem subitamente estranha ao sujeito, condenando-o a uma
espécie de exílio em que o mundo “fica mais que exterior”. De tal arte essa dobras se
multiplicam (e a disfunção do pensamento é justamente o ser ele um polo difusor de
imagens internas, correlações, memórias, raciocínios) que a própria subjetividade se
dispersa e desintegra, suspendendo todos os nexos, inclusive o da linguagem, o da
capacidade de nomeação... Eis a força dispersora do abismo que dá título ao poema,
essa sequência de fissuras que exila o sujeito do mundo e da linguagem. Mas, no caso
do Pessoa ortônimo, a dispersão do olhar é também uma espécie de ascese, pois esse
fundo vazio em que cai o sujeito faz aparecer, súbita e involuntariamente, a imagem
de Deus, imagem incognoscível por estar a consciência ausente. O abismo é enfim
a distância imensurável entre o sujeito que olha e o rio que corre independente e
indiferente a esse olhar.
382 100 Orpheu Lilian Jacoto

Estabelecendo pontos e vetores, por linhas e cruzamentos na vasta matéria que o


poeta deixou inconclusa, imitemos, como leitores, a pessoana obsessão geométrica,
a sua leitura abstratizante do mundo pelos excessos do pensamento2. E vemos, nessa
geometria hipotética, um universo que, para além dos muitos centros, se polariza
em dois eixos de superação da dor: o neopagão, em cujo centro resplandece a figura
presumidamente solar, o projeto apolíneo de Caeiro; e o não-lugar, a abertura ao
infinito, em que o desassossego se instaura como inquietude vertiginosa. Uma
“fenomenologia do imenso” constitui esse outro eixo dionisíaco, em que, através da
arte, contemplamos a finitude sem morrer.
Se entendermos a sensação visual como a linha que interliga os sujeitos da escrita na
constelação autoral do universo pessoano, tomando cada um como ponto dimanador de
sentidos, perceberemos com mais nitidez essa polaridade Caeiro-Soares a se estabelecer
no sentido literal do que chamamos mundividência. No poema 7 do Guardador de
Rebanhos, o mestre ensina o contentamento com os limites físicos do seu campo de
visão, na aldeia cujo horizonte não é obnubilado pelos edifícios:

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...


Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura... (PESSOA, F., 1986: 208)

Caeiro contenta-se com a extensão que seu olhar permite alargar para além do corpo,
de modo que o horizonte visível, o seu campo de visão, é-lhe suficiente para conhecer
o conhecível. Tanto se lhe basta para dizer que sabe a verdade e é feliz. De outro lado,
segundo a lógica do mestre, a visão emparedada das ruas, dos becos e largos da baixa
lisboeta, onde o semi-heterônimo Bernardo Soares transita diariamente, fá-lo pequeno e
menor. Um ser diminuto e pobre, num sistema de valores em que “a nossa única riqueza
é ver”. Soares, por sua vez, ao delimitar sua existência, enuncia-se diametralmente avesso
à positividade visual de Caeiro: “Sou os arredores de uma vila que não há”3...
No eixo da negatividade como inóspito lugar, ou ainda, num não-lugar em que
se exilou a fusão Guedes-Pessoa e Mário de Sá-Carneiro até 1915; e onde após 1916,

2 Como bem definiu João Gaspar Simões: “Não era um místico Fernando Pessoa – o caminho místico
considerava-o incerto e lento -, também não era um perfeito mago – o caminho mágico repugnava à sua
inteligência. Era, todos o sabemos, uma alta inteligência abstrata. E, assim, ei-lo na sua operação favorita:
tornar abstrato o concreto, fazer geométrica a realidade, consubstanciar no espírito o que no mundo é da
ordem dos fenômenos materiais.” (1950, pp. 578-579)
3 Trata-se do fragmento número 262, da edição do Livro do Desassossego organizada por Richard Zenith
(1999), do qual trataremos mais adiante.
Do desassossego ou a geometria do abismo 383

com o suicídio do último, Bernardo Soares os reúne como voz, constrói-se um


ethos complexificado pela incapacidade de contentar-se, em sossego, com a visão da
paisagem circundante. Ocorre que, ao contrário do aparente contentamento caeiriano,
Soares é a percepção dolorosa de que olhar a paisagem ao redor não o livra de um
sentimento constante de angústia e exclusão. Para o semi-heterônimo (essa visão
dobrada da paisagem é o que aproxima deveras Soares do ortônimo), o ensinamento
de Caeiro exerce o efeito de paz instantânea, fugaz livramento, mas não praticável
cotidianamente na existência intervalar que lhe é fadada. A leitura que Soares faz do
poema 7 de O Guardador de Rebanhos é, assim, um dos raros momentos de algum
repouso do LD:

Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas
frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho da sua
aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por
isso a aldeia é maior que a cidade...
(...) Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me
de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à
minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um
esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.
«Sou do tamanho do que vejo!» Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus
nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. «Sou do
tamanho do que vejo!» Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas
até às altas estrelas que se reflectem nele, e, assim, em certo modo, ali estão.
E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com
uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. «Sou do tamanho do que vejo!» E
o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.
(PESSOA, F., 1999: 80-81 [frag. 46])

Entretanto, esse luar que obnubila a visão do horizonte, borrando seus limites, é
já a força abissal que não deixa durar muito o sossego trazido pela lição do mestre.
Afinal, o livro infinito de Soares é em si a expressão dessa impossibilidade de
contentar-se nos limites formais de uma vida que é pura textualidade. A própria
unidade de expressão alojada nos fragmentos do LD já aponta a ambição de
extravasar os limites do texto como corpo, fissurando a finitude da forma, abrindo
vazios que trazem, ao horizonte estreito da baixa lisboeta, a ilimitação dos abismos.
A imagem do abismo aparece com toda a sua carga de desalento no fragmento 262.
Repare-se como toda a positividade da cidade e do sujeito que a vê repentinamente
dá lugar ao vazio:
384 100 Orpheu Lilian Jacoto

Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo,
que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. Quando brilhou o relâmpago,
aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim
não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que
reencarnar, reencarnei sem mim, sem ter eu reencarnado. (PESSOA, 1999: 257-258)

Este início instaura sem rodeios um drama existencial do sujeito em confronto


súbito com sua negatividade. Um insight devastador que o desaloja do mundo, da
cultura, do próprio nome. O sujeito sente roubada a sua autenticidade num mundo
pré-formatado e em que ele não escolheu existir. Soares é aquele que escancara a
ferida, a fratura do sujeito, a fenda do discurso que então se coloca em abismo. A
partir daí, sucedem-se imagens da queda vertiginosa em que o mundo circundante se
transforma num alçapão de ilusões de cujo fundo falso tudo desaba em espiral:

Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem
direcção, infinitupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de
vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas que
são mais giro que águas bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo - vão casas,
caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem
fundo. 
E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do
abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse
centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem
muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.
E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem ao menos a humanidade de diabos a
rirem, a loucura grasnada do universo morto, o cadáver rodante do espaço físico, o fim de
todos os mundos flutuando negro ao vento, disforme, anacrónico, sem Deus que o houvesse
criado, sem ele mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo. 

Poder saber pensar! Poder saber sentir!

Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer... (PESSOA, F., 1999: 258)

É improvável que encontremos, na arte, imagens mais dramáticas do desamparo.


A atitude de olhar o abismo supõe um desejo de sair de si próprio, do confinamento
do eu, pela estratégia perigosíssima de abolir os limites dessa mesma subjetividade,
tomando-a como vórtice, queda infinita, processo sem volta. Dessa forma o abismo
é imagem que coloca em xeque noções de liberdade e confinamento que se atrelam
Do desassossego ou a geometria do abismo 385

à noção de subjetividade. O olhar do abismo confronta, assim, dois infinitos que se


olham: o eu e o mundo4.
No excerto citado, a imagem do alçapão que subitamente se abre revela o processo de
escrita como gesto abissal: colocar-se em abismo é, assim, perder a base de sustentação
do mundo, a fonte originária, o fundamento. Com Nietzsche a inaugurar a Escola
da Suspeita no fragmento, o fundo do mundo moderno é sem fundo.5 Colocar-se
no vórtice da negatividade, nesse mundo moderno, equivale portanto a abrir, no seu
chão ilusório em que pisamos, a fenda do infinito. Foucault, ao analisar a ausência do
fundamento na Psicanálise, como uma das grandes narrativas do mundo moderno,
estabelece uma relação de contiguidade entre essa ausência de fundamento e o
sem-limites da loucura.
Essa ausência de fundamento potencializa sua carga dramática no desfecho do
fragmento, quando o sujeito menciona o fato de não ter conhecido a mãe, que morrera
muito cedo... A sensação de desamparo da queda relaciona-se a essa ausência da matriz
da vida e ao conhecimento muito precoce da morte, o que teria exilado a criança da
própria infância. São fatos de uma biografia vocacionada, desde o princípio, à angústia.
É possível ainda dizer que, no LD, o infinito dispõe-se à espreita de todo vão textual.
Noutro fragmento antológico, sob o título sugestivo de LITANIA, Soares postula
que “Nós nunca nos realizamos. / Somos dois abismos — um poço fitando o Céu.”
(1999:54). A condensação do fragmento faz reverberar o silêncio que o circunda,
como se a própria imagem ali descrita se espraiasse pelos espaços brancos do papel.
O leitor demora-se ali, como se fora esse um dois mais extensos fragmentos do LD.
Dessa imagem de abismos especularizados (poço e céu), podem-se extrair as
potencialidades de sentido de uma imago-mundi. Enquanto o poço evoca a paradoxal
infinitude do círculo murado a expandir-se num fundo invisível, o céu é também
abismo na medida em que se afasta de nós pela dimensão que nos dá de seu próprio
desconhecimento. Reparemos que ambos os abismos se abrem, ao sujeito que espreita,
a partir de um campo visual circular, em cujo centro está o sujeito observador. Nesse
sentido, Alberto Caeiro delimita uma zona de segurança com “sou do tamanho do
que vejo”, enquanto Bernardo Soares excede-a, como se dissesse “sou do tamanho do
que não vejo, e isso me apavora, me desampara”. Lembremos também que a angústia,
segundo Heidegger, diferente do medo, é um sentimento que nos acomete diante do
indeterminável, e não incorreríamos em erro ao supor que a angústia seja o sentimento
que impregna todo o Livro, tornando-se inclusive o motor de uma escrita em abismo.

4 Sobre a fenomenologia do abismo, veja-se o trabalho de Anabela Ferreira Prova Canas (2010).
5 Vide a esse respeito o memorável texto de Foucault “Nietzsche, Freud e Marx” (1967).
386 100 Orpheu Lilian Jacoto

Também, com Bachelard, na assunção das imagens do poço e do céu como devaneios
do infinito, aprendemos que o ser é paradoxalmente infinito na visão que se delimita
pelo giro do olhar, de modo que o horizonte do visível seja, via de regra, circular.
Somos, com Caeiro, do tamanho do que vemos, e o que vemos é o mundo que está
ao redor. Assim temos o indivíduo (de)limitado pelo seu campo de visão; mas, com
Soares, também pelo que foge a esse campo, isto é, pelo abismo que o excede, estando
esse sujeito, portanto, no centro daquilo que é a precária ausência de si mesmo.
Na especularidade quiasmática da imagem do poço que contempla o céu, expressa-se
a reciprocidade entre o sujeito que olha e o ser contemplado. Afinal, o poço nos atrai e
chama, como se estivéssemos no fundo já, convidando-nos ao mergulho em nós mesmos,
na profundidade que de nós desconhecemos; olhá-lo é um (re)conhecimento que forja
uma subjetividade no objeto, o que dá à paisagem uma dimensão fantasmática. E se
entendemos a gnose como um processo de conhecer-se por imagens, à beira do abismo
o eu olha e é olhado; do mesmo modo em que, no desassossego, olhar é ver para dentro.
Afinal o abismo à beira do qual vive Soares, em seu vazio centro, é o que traz, ao
projeto pessoano, a fenda da escrita. Sem ter a exclusividade desse papel, Soares vem
trazer a suspeita do sujeito e da linguagem, que ele sabe impotente para superar a
negatividade, o lugar impossível em que habita, em infinita queda, apesar da paisagem
urbana quase palpável que seu olhar evoca, mas que se lhe mostra, ao cabo, um fundo
falso de realidade (DUARTE, L. P., 2011: 15). Em cada fragmento, fica expressa a
falência da presunção da totalidade, sendo, por isso mesmo, talvez, a face pessoana
mais próxima da ideia de um infinito.
E é justamente na debilidade desse sujeito em queda infinita que ressuma sua força
humana superior, tal qual a águia de Zaratustra, cuja força e altura do voo advêm do
abismo que traz dentro de si6.
Segundo Lélia Parreira Duarte (2011: 15), a vida do texto que se elabora em função
do abismo e da falta camufla a morte. Mas não é isso exatamente o que se dá no LD,
onde “só é forte quem desanima sempre” (PESSOA, F., 1999: 132). Ali não se trata de
escamotear a dor, de equiparar-se a Deus, de libertar-se do Fatum. No desassossego
experienciamos a queda no infinito, na mesma medida em que vemos, a todo
instante, a imagem da nossa finitude. Uma “prosa suicidária”, como denominara
Eduardo Lourenço, toda feita de paradoxos (LOURENÇO, E., 2008). Nela caímos
infinitamente sem cair, nela morremos a todo instante sem morrer. Dionisíaca e
abstrata, a geometria do abismo é também um caminho - lúcido e dramático - de
passar além da dor.

6 “O que vê o abismo, mas com olhos de águia; o que  se prende  ao abismo com garras de águia: é este o
valoroso.” (NIETZSCHE, F., 2002.)
Do desassossego ou a geometria do abismo 387

Bibliografia

Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1999). Livro do Desassossego (org., introdução e notas de
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Bibliografia Passiva
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Fontes Editores.
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fragmento. Lisboa: Assírio & Alvim.
BATAILLE, George (1986). L’expérience intérieur. Paris: Éditions Gallimard.
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SIMÕES, João Gaspar (1950). Vida e obra de Fernando Pessoa: história de uma
geração. Lisboa: Bertrand.
Orpheu… e depois1?...

Isabel Ponce de Leão


Universidade Fernando Pessoa

100 anos depois, olho o Horóscopo de Orpheu: “revela, pouco mais ou menos, o
que a vida vê […]. A vida é essencialmente acção, e o que o horóscopo indica é a acção
que há na vida do nativo” (Pessoa, 1989: 158).
Se titulo o presente texto com palavras de Fernando Pessoa é por me parecer que
Orpheu é essencialmente ação. É a revista que mudou e continuará a mudar o rumo da
arte em Portugal. Não que essa mudança tenha sido abrupta e com data marcada – há
muito que se vinha anunciando no movimento da Renascença Portuguesa, mormente
com a publicação na revista A Águia do artigo “A nova poesia portuguesa” (1912)
de Fernando Pessoa – mas houve um momento que a firmou – “26 de Março às 7
p. m. 1.º número vendido” –, diz o horóscopo, e desconheço qualquer momento ou
um outro horóscopo indicador do seu terminus. Por isso “Orpheu acabou. Orpheu
continua” (PESSOA, F., 1976: 407).

1 O presente texto foi a base de intervenções várias em Portugal e no Brasil no ano das comemorações do
Centenário da publicação da Revista Orpheu.
390 100 Orpheu Isabel Ponce de Leão

A revista, cujo centenário da publicação se comemora, não foi e não é um projeto


propriamente geracional2 como comummente se diz e Luís de Montalvor afirma na
sua “Introdução”, outrossim o génio de Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e
Almada Negreiros tendo este ajudado a prolongar os desígnios órficos no tempo. Foi
e é, acima de tudo, “uma das duas coisas interessantes em Portugal – a paisagem e o
Orpheu. Tudo quanto está de permeio é palha podre usada […] Mas, graças a Deus,
não há instinto do sensível na literatura moderna, de modo que abandono a paisagem
e começo e acabo com Orpheu” (PESSOA, 1976: 453). Ficou, de facto, o Orpheu, “uma
espécie de individualidade autónoma, uma entidade duplamente literária”. (Morna,
1982: 13). Preservando cada um dos colaboradores a sua personalidade, combinam-na
“no texto único em que todos acreditam, uma alta e rara consciência da complexidade
que define o estatuto do que é literário” (MORNA, F. F., 1982: 14), dele fazendo um
local de embate e de labuta dos vários movimentos da modernidade. Sentados a uma
mesa da Brasileira ou do Martinho da Arcada, “os de Orpheu” (PESSOA, F., 1976:
407) partilham o mesmo laboratório sem que o trabalho siga o mesmo processo.

2 Entendendo geração como um grupo de artistas contemporâneos e coetâneos que, citando Carlos Ceia,
“comungam dos mesmos ideais, respondem aos mesmos desafios históricos, partilham a mesma estética e
que muitas vezes procuram construir uma obra com características comuns”, não posso considerar que haja
em torno de Orpheu uma geração, tal como a definiu W. Dilthey, porquanto não se manifestem afinidades
estético-ideológicas nem o desejo de afirmação grupal quer em termos culturais quer sociais. Bem pelo contrário
são recorrentes as discrepâncias entre Fernando Pessoa e Santa-Rita ou mesmo Almada Negreiros apesar do
objectivo comum de escândalo “à força de se ultrapassarem uns aos outros, de romperem todos os limites e de
se atolarem no caprichismo subjectivista, quando não nas serventias ideológicas, os vanguardismos, sejam eles
quais forem” (Quadros, 1988:123). Apenas existia um desejo de mudança num relativamente escasso número de
pessoas, direi, uma elite, que não enforma uma geração antes se gere pelo individualismo.
Orpheu… e depois? 391

Os dois números publicados – prefiro deixar o terceiro (póstumo) para uma


discussão mais longa – são a prova inequívoca não de uma necessidade de rutura, que
a não houve, apesar de resolutamente anunciada pela tríade acima referida, mas de
uma necessidade de mudança que gere o equilíbrio entre os elementos de rutura e de
continuidade ou melhor dito entre traditio e revolutio. Necessidade também de “criar
uma arte cosmopolita no tempo e no espaço” (PESSOA, F., 1976: 407). Necessidade
ainda de afirmar que os países “pela primeira vez intelectualmente, existem todos
dentro de cada um, em que a Ásia, a América, a África e a Oceânia são a Europa e
existem todos na Europa” (PESSOA, F., 1976: 408). A grande novidade de Orpheu
reside, justamente, na desnacionalização da arte, no desejo que esta acumule “dentro
de si todas as partes do mundo” (PESSOA, F., 1976: 408). Estão lançadas as raízes
para a “arte-todas-as-artes” (PESSOA, F., 1976: 408) e, sibilinamente, num estado
de semi-inconsciência, Fernando Pessoa e os seus “cúmplices”, perseguindo o
inquestionável binómio Arte / Sociedade, antecipam a ideia de aldeia global que é
hoje a nossa realidade. Não que os outros continentes convirjam nesta Europa mais
ou menos decadente que teima em não abandonar o seu jeito de prima dona, mas
que todos eles se conluiem, quer material quer intelectualmente, para o progresso da
humanidade.
Que os dois números de Orpheu foram suficientes para que esta mudança se
operasse? Rotundamente, não. “Orpheu acabou. Orpheu continua” (PESSOA, F., 1976:
407). Estes dois números foram tão só a génese da arte moderna “onde a dolência
e o misticismo asiático, o primitivismo africano, o cosmopolitismo das Américas,
o exotismo ultra da Oceânia e o maquinismo decadente da Europa convergiram”
(PESSOA, F., 1976: 408).
“Orpheu acabou”? (PESSOA, F., 1976: 407). Sim, se considerar apenas a publicação
dos 2 números da revista em 25 de Março e 28 de Junho de 1915. Em carta a Armando
Cortes-Rodrigues, escrita em Lisboa e datada de 4 de Março de 1915, Fernando
Pessoa anuncia a publicação de uma revista trimestral de literatura e descobre
pormenorizadamente o conteúdo e os autores das cerca de 80 páginas que constituem
o Orpheu 1. Mostra mesmo vontade de “aguentar a revista até, pelo menos, ao 4.º
número, para que ao menos um volume fique formado” (PESSOA, F., 1976: 412).
Em 4 de Abril de 1915 escreve pletórico ao mesmo destinatário afirmando: “Foi um
triunfo absoluto […]. Somos o assunto do dia em Lisboa; sem exagero lho digo. O
escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente – mesmo extraliterária
– fala do Orpheu” (PESSOA, F., 1976: 414). A revista esgotou. O êxito do primeiro
número foi total. De igual modo o Orpheu 2, com textos de Álvaro de Campos e de
Mário de Sá-Carneiro muito próximos da estética futurista, chegou a ser considerado
pornográfico pelo “lepidóptero burguês”, logo a ser mal falado mas, por tal, bem
392 100 Orpheu Isabel Ponce de Leão

publicitado nos periódicos mais ortodoxos. O anunciado Orpheu 3 só postumamente


se consumou apesar de Fernando Pessoa o ter anunciado numa outra carta datada de
4 de Setembro de 1916 a Cortes-Rodrigues (PESSOA, F., 1976: 416) e de ter escrito
a Camilo Pessanha solicitando-lhe colaboração para “uma revista, da qual saíram já
dois números” e que “tem sabido irritar e enfurecer, o que […] a mera banalidade
nunca consegue que aconteça” (PESSOA, F., 1976: 418), dando-lhe conta também
do conteúdo desse projectado número. Atendendo-se tão só aos números da revista
publicados, Orpheu quedou-se com 2 números – ou 3 a considerar o póstumo. Logo
Orpheu, a revista, acabou porque era excessiva e, por tal, incompreendida; porque
os custos editoriais deixaram, por razões várias, de ser sustentados pelo pai de
Mário de Sá-Carneiro; porque a produção dos seus colaboradores autonomizou-se
ultrapassando os limites de uma publicação periódica.
Mas “Orpheu continua” (PESSOA, F., 1976: 407). Continua na exemplaridade das
obras de Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros e, – porque
não? –, Ângelo de Lima, Amadeo de Sousa Cardoso, Raul Leal, Ronald de Carvalho,
Côrtes-Rodrigues, Alfredo Pedro Guisado, Santa-Rita Pintor, Luís de Montalvor
e tantos outros que, embora me recuse imbuí-los de um consciência geracional,
absorveram e cultivaram o espírito de Orpheu produzindo “a arte avançada”
(PESSOA, F., 1976: 418) e, enquanto “portugueses escrevendo para a Europa, para
a civilização inteira” (PESSOA, F., 1976: 422), “uma arte assim cosmopolita, assim
universal, assim sintéctica […] [que] em vez de ter regras como as artes do passado,
passe a ter só uma regra – ser a síntese de tudo” (PESSOA, F., 1976: 428); uma arte
que relate o que verdadeiramente o seu criador sente, “sem procurar ajustá-la à
compreensão dos outros, nem subordiná-la a qualquer critério estético” (PESSOA,
F., 1976: 410).
“Orpheu continua” (PESSOA, F., 1976: 407). Continua vivo interpretado e
explicado também, pelas revistas literárias que se lhe seguiram. Algumas houve que,
sendo embora um retrocesso em relação às inovações órficas porque decadentistas
e paúlicas – Centauro (1916), Exílio (1916) – não prescindiram da colaboração de
Luís Montalvor, Fernando Pessoa ou Cortes-Rodrigues, numa total abertura aos
“engraçadinhos” de Orpheu.
Outras – Portugal Futurista, Contemporânea e Athena – continuaram de forma
diversificada o legado de Orpheu defendendo o modernismo e considerando a
cultura “o aperfeiçoamento subjectivo da vida” (PESSOA, F., 1924: 5).
De Portugal Futurista (1917) sai apenas um único número, imediatamente
apreendido pela censura, cheio de vontade de atirar “uma pedrada no charco”
através de uma arte provocatória na senda de futuristas estrangeiros como Marinetti
e Maiakovski.
Orpheu… e depois? 393

Nela colaboram, sobretudo, Almada Negreiros, Álvaro de Campos e Santa-Rita


Pintor, mais pela ressonância que a publicação fez na adesão às vanguardas do que
propriamente por se assumirem futuristas. Não o foram, de facto, ainda que tenham
produzido obras desse pendor e prolongado a ideia de arte cosmopolita preconizada
por Orpheu que iria desembocar e provocar todos os –ismos da modernidade e da
pós-modernidade.
A Contemporânea (1922-1926) afasta-se da matriz futurista, mas mantem-se
vinculada ao presente e tem como objetivo “civilizar gente”.
394 100 Orpheu Isabel Ponce de Leão

Evidencio, particularmente, a sua preocupação com a complementaridade das


artes, nivelando-as e anunciando já o que a presença viria a demonstrar: “A arte é
uma – idêntica a si própria num quadro e num bailado, num busto e num filme, numa
sinfonia e num poema” (RÉGIO, J., 1930: 6). Sobre a revista escreve Pessoa em carta a
Cortes-Rodrigues datada de 04.08.1923: “V. tem visto a Contemporânea? É, de certo
modo a sucessora de Orpheu. Mas que diferença! que diferença! Uma ou outra cousa
relembra esse passado; o resto, o conjunto…” (PESSOA, F., 1976: 415). Nela convivem
modernistas e não modernistas; contudo, colaboradores como Almada Negreiros,
Amadeo de Sousa Cardoso, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Álvaro de
Campos ou Mário de Saa garantem que “Orpheu continua” (PESSOA, F., 1976: 407).
Athena (1924-1925), dirigida pelo próprio Fernando Pessoa e Ruy Vaz faz a
apologia da harmonia através da arte de tendências abstraccionistas enquanto “estádio
supremo da ciência. […] É pois ao nível da abstração que a arte e a ciência, ambas
se alçando, se conjugam, como dois caminhos no píncaro para que ambos tendam”
(PESSOA, F., 1924: 8).

Contrapondo-se à euforia futurista agiliza a consciência da pluralidade e da


relatividade tão grata aos órficos: “Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com
inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única central
realidade que não está em nenhum e está em todos.” (PESSOA, F., 1976: 81). Aí
encontramos colaboração de Fernando Pessoa, Raul Leal, Mário de Sá-Carneiro e
Alberto Caeiro que continuaram a cultivar a arte suprema enquanto “resultado da
harmonia entre a particularidade da emoção e do entendimento, que são o homem e
Orpheu… e depois? 395

o tempo, e a universalidade da razão, que, para ser de todos os homens e tempos, é de


homem, e de tempo nenhum” (PESSOA, F., 1976: 255).
Em qualquer uma das revistas atrás mencionadas não há uma vinculação ao Orpheu
antes a demonstração inequívoca que só existem porque Orpheu existiu e abriu as
portas a múltiplas sensibilidades que os seus colaboradores ajudaram a divulgar e
perpetuar.
Uma referência especial é devida à revista presença (1927-1940) por ter sido aquela
que, verdadeiramente, ensinou a ler a produção órfica.

De facto, os presencistas, encontrando afinidades com os órficos, apoderaram-se


da sua herança para a prolongar e explicar. Apesar de todas as enormes diferenças
conceptuais manifestas entre as duas revistas, o Orpheu ficou a dever à presença
uma espécie de reabilitação e, muito particularmente, a divulgação dos seus mestres
maiores. É José Régio que afirma em “Da geração modernista” ser Sá-Carneiro “o
nosso maior intérprete da melancolia moderna, e um dos grandes poetas portugueses
de qualquer tempo”, ter Fernando Pessoa “estofo de Mestre […] [e ser] o mais rico
em direcções dos nossos chamados modernistas” e ser “com Almada Negreiros que
o nosso lirismo reencontra o seu fundo virginal, volta a beber da água da bica – e se
alarga” (RÉGIO, J., 1927: 1). O panegírico e o estudo dos órficos continua em “Ainda
uma interpretação do modernismo” também de Régio, “Modernismo” assinado
por João Gaspar Simões ou “Mário de Sá-Carneiro” da autoria de Adolfo Casais
Monteiro. Não se quedando pelos textos teóricos, os presencistas divulgaram tábuas
bibliográficas e produção poética e em prosa dos órficos, algo marginalizados por
396 100 Orpheu Isabel Ponce de Leão

o serem, sem que isso constituísse menosprezo para os nomes já consagrados no


âmbito da literatura portuguesa. Tanto a obra de Ângelo de Lima como a de Raul
Leal, entre outras, são, sobretudo, divulgadas pela presença. Assinale-se que, aquando
do falecimento de Fernando Pessoa, lhe é dedicado todo o n.º 48 da revista presença
ocupando a capa o retrato do poeta assinado por Almada Negreiros.

Devendo-se a lucidez e a inovação ao grupo de 1915, cabe ao de 1927 o mérito de


ter compreendido essa alucinante aventura. O mundo de Orpheu é o do cataclismo
radical, destruidor do vazio, confuso na distinção de deuses e demónios; o da presença
é o da tentativa de, das ruínas, fazer renascer o objecto de adoração que, enquanto não
encontrado, aparece transfigurado no prazer e na angústia da procura. Dois mundos
que se complementam.
Se da parte de presença houve a tentativa de explicar e reabilitar o Orpheu, outras
revistas tentaram mesmo prolongar os seus desígnios.
Cancioneiro (1930) é um volume coletivo de poesia lançado aquando do controverso
1.º Salão de Independentes e dedicado à memória dos considerados percursores
do modernismo: Cesário Verde, Camilo Pessanha, Ângelo de Lima e Mário de
Sá-Carneiro. Nele colaboram órficos e presencistas – e.g. Álvaro de Campos, Luís de
Montalvor, Almada Negreiros e Régio, Casais Monteiro, Edmundo de Bettencourt
– manifestando tendências várias, que vão do simbolismo ao ludismo poético, e
partilhando temas e motivos que dão consistência à ideia presencista de que a arte
não tem barreiras desde que original e sincera.
Momento (1932-1933) reitera a consagração dos órficos e dos presencistas, dos
modernistas, portanto, através da publicação da sua produção e de artigos críticos,
desenvolvendo, tal como já tinha feito a presença, actividades paralelas como saraus,
recitais e tertúlias. Luís de Montalvor, Fernando Pessoa, António Navarro, Miguel
Torga entre muitos outros são alguns dos colaboradores.
Orpheu… e depois? 397

Sudoeste: Cadernos de Almada Negreiros (1935) tem características diferentes.

Assume continuar os ideários órficos, particularmente no que diz respeito ao


cosmopolitismo cultural mas agora acrescenta também o político, através de uma
página claramente programática:

De facto, os dois primeiros números privilegiam o ensaísmo cultural e político,


tendo o terceiro uma matriz mais literária. Neste último são vários os colaboradores
do Orpheu e da presença. É justamente no terceiro número que é publicado o texto de
Fernando Pessoa “Nós os de Orpheu” que termina com a expressão com que titulei este
398 100 Orpheu Isabel Ponce de Leão

trabalho. Nele se assume como coordenador do número, juntamente com Almada,


afirmando que aí aparece colaboração de todos quantos publicaram “na revista extinta
e inextinguível a que ambos pertencemos” (PESSOA, F., 1935: 3) – Orpheu – excepção
feita àqueles cuja distância geográfica foi impeditiva de contacto atempado. Refere-se
aos brasileiros Ronald de Carvalho e Eduardo Guimarães e ao “desterrado” (PESSOA,
F., 1976: 415) açoriano Cortes-Rodrigues. Ao publicar poemas de todos os órficos dá
particular atenção ao extraordinário soneto em que Ângelo de Lima “descreve a sua
entrada na loucura” numa tentativa de “fazer lembrar quem, não sendo nosso, todavia
se tornou nosso” (PESSOA, F., 1935: 3) até porque comungou da mesma ambiciosa
loucura:

Pára-me de repente o pensamento


Como se de repente refreado
Na doida correria em que, levado
Ia em busca da paz do esquecimento

Pára surpreso, escrutador, atento


Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado,
Pára e fica, e demora-se um momento.

Pára e fica, na doida correria


Pára à beira do abismo, e se demora
E mergulha na noite, escura e fria

Um olhar de aço, que esta noite explora.


Mas a espora da dôr seu flanco estria,
E ele galga e prossegue sob a espora… (LIMA, Â., 1935: 4)

Depois…, Orpheu continua, Pessoa o escreveu em Sudoeste; continua enquanto


“soma e síntese de todos os movimentos literários modernos”, como afirmou Álvaro
de Campos; continua como balão de ensaio da pós-modernidade; 100 anos depois
continua porque “Os portugueses estão sempre fazendo revoluções” (PESSOA, F.,
1976: 452). O Horóscopo do Orpheu é por demais demonstrativo da sua acção “à prova
de Portugal” (PESSOA, F., 1976: 453). Por isso continua nos –ismos pós-modernos
que nele foram gerados.
No Porto, em Fevereiro de 2015
Orpheu… e depois? 399

Bibliografia

Ceia, Carlos (s/d). “Geração Literária”. E-Dicionário de Termos Literários. [Em linha].
Disponível em <http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&
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Lima, Ângelo (1935). “Soneto”, in Sudoeste, n.º 3.
Lourenço, Eduardo (1974). Tempo e Poesia. Porto: Inova.
Morna, Fátima Freitas. (1982). A poesia de Orpheu. Lisboa: Editorial
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Pessoa, Fernando (1989). Textos filosóficos e esotéricos. Mem Martins:
Publicações Europa-América.
Ponce de Leão, Isabel. (1996). Imagens da Vida (presença: poesia e artes
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Quadros, António (1988). O Primeiro Modernismo Português. Mem Martins:
Publicações Europa-América.
Régio, José. (1927). “Da geração modernista”, in presença, n.º 3.
Régio, José. (1930). “Divagação à roda do primeiro salão de independentes”, in
presença, n.º 27.
Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos
intermédios = o sorriso do Desenho no tempo de Orpheu e tudO

Sandra Leandro
Universidade de Évora
IHA, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa
CLEPUL - FLUL

Palavras-chave: Santa-Rita Pintor; Almada Negreiros; Desenho humorístico; Ases da Paleta;


Sanita Pintor.
Resumo: Parte significativa do campo inaugural do modernismo nas Artes Visuais em
Portugal, proveio do desenho humorístico que revelou a força e a debilidade da sua linguagem
em exposições como os salões dos Humoristas em 1912 e 1913, e em periódicos como O Seculo
Comico, entre outros. Ao procurar a acção dos artistas e a recepção gráfica a Orpheu, começou
a agigantar-se a persona de Santa-Rita Pintor que se encarregara de desestabilizar o discurso
normativo, mas não se interessara pela empresa satírica do desenho humorístico. Uno aqui
Santa-Rita à figura neo-dadaísta de Sanita Pintor, membro dos Ases da Paleta, grupo surgido
em 1989. Estruturado de forma tripartida com os três momentos que compõe uma ode, este
artigo centra-se na invenção de mitos, esplêndidos na sua «vontade de espantar».

À Lira
A Herberto Helder

I – Estrofe
A(s) cena(s) do(s) ódio(s)

Há oiro dentro de mim a pontapé,


Em barra, em pó, em joias medievais,
Capacetes de gelo-catedrais,
Loiça da China, sacos de café.

Sou topázio, sou bote de rapé,


Anfora de oiro fino entre cristais;
No meu peito estrelado há mil ideiais
Incompreensiveis para um jacaré.
Em campos de latão minha alma ajoelha;
402 100 Orpheu Sandra Leandro

(Canta em mim um hangran de longa


Crista,
Debicando no milho). Segurelha!
… Gosta o leitor do que lhe ponho á vista?
Se não gosta, desculpe a minha telha
- São versos á maneira futurista.

Bramão de Almeida, O Seculo Comico, (3 Jun. 1915) 2.

As quadras assinadas por Eduardo Bramão de Almeida (1887-?) n’O Seculo


Comico, em 3 de Junho de 1915, convergiam para uma palavra polémica nos inícios
da década de 10: FUTURISMO. Esse termo transportava consigo um sentido que
tinha cativado Santa-Rita Pintor que inconvenientemente se afirmara em frase que
ficou célebre: «Futurista declarado em Portugal há um, que sou eu» (FRANÇA, J.-A.,
1991: 55).
Comecei por elaborar um levantamento da recepção gráfica dos jornais
humorísticos a Orpheu e verifiquei que não foi extensa. Debrucei-me então sobre as
imagens satíricas daquele tempo, contudo, foi a atitude de Santa-Rita (e por aliança e
contraste a de Almada Negreiros) que de forma não programada tomou inadvertida e
imperiosamente a dianteira deste trabalho, deitando por terra a maioria dos Narcissos
intermédios que inicialmente considerei tratar.
Guilherme Augusto Cau da Costa de Santa-Rita, «Guilherme pobre», «adivinhão
latino», Santa-Rita Pintor, ou, como construir um mito? Inseriu o ofício no nome,
pois a partir de determinada altura só dessa indústria de nomear necessitava. Pintar,
pintasse quem vê... Natural de Lisboa, nasceu em 31 de Outubro de 1889, foi aluno
da Escola de Belas-Artes com inscrição em 1901 e frequência efectiva em 1902
(CHAVES, J. M., 1989: 13). Bolseiro do Estado em Paris a partir de 1910 (id.: 14),
nunca expôs obras modernas em Portugal, nem em França. É sobretudo através das
publicações Orpheu 2 e Portugal Futurista que se tem ideia vaga de alguns trabalhos
(GONÇALVES, R.-M., 1993: 67).
Pintor quase sem obra, pediu pouco antes de morrer a seu irmão Augusto de
Santa-Rita (1888-1956) para reduzir a cinzas os seus trabalhos e em cinza tinha
publicado… Todavia, nem todo o anedotário que dele se contava e conta teve
existência real. Mistificador de génio, recusava ser, como observou Rui-Mário
Gonçalves, um «operário das artes» e já depois de Orpheu absteve-se «de escrever no
Portugal Futurista e de discursar no palco do Teatro República, enquanto convencia
outros a falarem dele (Bettencourt, Almada, Raul Leal)» (GONÇALVES, R.-M., 1993:
66). Persuadiu-me a mim também.
Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos intermédios = o sorriso do Desenho no tempo ... 403

O amigo mais próximo de Santa Rita foi Almada Negreiros (1893-1970), que
sempre me habituei a ver como «artista total» (DEUS, A. D., 1997: 117). Esse convívio
estreitou-se quando deflagrou a Grande Guerra e Santa-Rita teve que regressar de
Paris. Nas palavras de Sarah Affonso (1899-1983), Almada considerava Santa-Rita «o
mistificador mais completo!» (NEGREIROS, M. J. A., 1993: 24) e uma das «pessoas
mais inteligentes que tinha conhecido! Duma imaginação fortíssima e com uma
concepção de arte muito avançada. Mas era mais um intelectual, mais uma atitude.
Um teórico de arte» (id.: 25).
Passados longos anos sobre a aventura de Orpheu, perguntaram a Almada como se
tinha constituído o grupo. Ele respondeu: «Quando as pessoas têm a mesma desgraça
juntam-se»… Fernando Pessoa e Almada Negreiros travaram conhecimento por
consequência da exposição individual de caricaturas de Almada na Escola Internacional,
em Março de 1913. Pessoa publicou n’A Águia um artigo sobre a arte da sátira em que
faria menção definitiva a Almada Negreiros, detectando o «polimorfismo da sua arte»
e a frase que despertaria a curiosidade do Desenhador: «Que Almada Negreiros não
é um génio manifesta-se em não se manifestar». Procurando Pessoa para o esclarecer,
o Poeta referiu-lhe não ter visto sequer a exposição. Amigo do caricaturista Adolfo
Rodríguez Castañé1, Fernando Pessoa escreveu tendo em conta o que se comentava e
o que teria visto em periódicos e exposições colectivas (GONÇALVES, R.-M., 1993:
60). Foi o início de uma amizade e Almada integraria Orpheu, tal como José Pacheko
e Santa-Rita Pintor.
Regressando à frase «Quando as pessoas têm a mesma desgraça juntam-se»,
Almada «Poeta de Orpheu, Futurista e Tudo», sabia por dentro como a arte podia
servir para conceber um mundo alternativo num ambiente hostil e o mundo
desmultiplicava-se na época em diversas cenas de ódios (fig.1). «Narciso do Egipto»,
abandonando o «seu campo de desenhador humorístico – que daí a um mês voltaria a
ser, no salão portuense [Exposição de Humoristas e Modernistas]» (FRANÇA, J.-A.,
1986: 190), Almada assinou a sua prosa no número 1 de Orpheu como «desenhador
José de Almada Negreiros» (ibid.). Se tantas vezes o humor é uma sublimação da
tristeza, não estranha que ao perguntarem a Almada que papel tinha a caricatura e o

1 Adolfo Rodríguez Castañé (1887, Madrid- Lisboa, 1963) de origem espanhola, veio muito jovem residir para
Lisboa. Discípulo de Jorge Colaço, exibiu trabalhos nos Salões de Humoristas Portugueses (1912, 1913),
«executando ilustrações para publicidade nessa década. Foi autor do único retrato pintado em vida de Fernando
Pessoa, em 1912. Colaborou em várias revistas e jornais. Tem muitas pranchas de histórias aos quadradinhos em
O Século - Supplemento Humorístico assim como no Pim-Pam-Pum!, verdadeiro suplemento do jornal O Século
[…]. Ilustrou alguns livros e participou na rara colecção infantil Biblioteca Tamariz, ao lado de Tom e de Stuart
Carvalhais — […].realizados pela Sociedade de Propaganda da Costa do Sol, dirigidos e com texto de Augusto
de Santa-Rita. Monopolizou o sector gráfico do suplemento Pim-Pam-Pum! na primeira metade da década de
30 do século passado, mas consigo detectar a sua presença até meados do ano 1940» (SÁ, L. de, 2009).
404 100 Orpheu Sandra Leandro

humor na arte, a sua frase tenha sido lapidar: «Foi o elo com que se passou do século
XIX ao XX».

Fig.1 - Alonso2 - Cenas de ódios: «O pão nosso… de

cada dia» in O Thalassa, (7 Maio 1915).

Baudelaire (1821-1867) vincou a ideia de que, para se fazer arte, é preciso ser
artista, ou seja, o modo de ser sobrepõe-se na criação artística aos modos de fazer. Este
património inextinguível da visão romântica do artista, enlaçada na modernidade,
tem em Santa-Rita Pintor uma das suas mais fascinantes encarnações. Aparentemente
e ao contrário de Almada, não estava empenhado na empresa satírica do desenho
humorístico, nem participou nas suas exposições. Podia-se objectar que estava em
Paris (1912, 1913), contudo, outros artistas também lá se encontravam e não deixaram
de estar presentes… A partir de certo momento desinteressou-se também da prática
oficinal da pintura. Ele era uma atitude. A sua arte era sobretudo a vida e o seu modo
de ser, introduzindo um humor protodadaísta (GONÇALVES, R.-M., 1993: 71). A
maioria dos seus contemporâneos não lhe perdoou.
Como observou José-Augusto França, Santa-Rita Pintor tinha vinte e três
anos em 1912, quando viu, em Paris, a exposição dos futuristas italianos e aderiu

2 Alonso, foi o pseudónimo de Joaquim Guilherme Santos Silva, caricaturista que se estreou em 1891 no
Charivari, jornal humorístico do Porto. Natural de Lisboa onde nasceu em 15 de Abril de 1874, faleceu em
30 de Julho de 1948, em Sintra. Foi professor na Escola António Arroio, decorador ilustrador e autor de
banda desenhada e caricatura. Dono de «uma capacidade narrativa intrínseca, imbuída de humor acessível e
mordaz, num traço redondo, decorativo, entre alegorias e metáforas de irreverência irónica. O seu estilo está
na transição entre o raphaelismo final (com influências da arte nova) e o modernismo» SOUSA, Osvaldo de –
A caricatura política em Portugal. Lisboa: Edição Salão Nacional de Caricatura, 1991, não paginado. Além d’O
Século os seus trabalhos foram publicados no Passatempo, Os Arautos, A Paródia, Os Ridículos, O Thalassa,
Almanaque Ilustrado de O Zé, Renovação, A Batalha, Os Grotescos, O Espectro, Charivari, O Palco, A Paródia,
Os Serões, entre outros. Trabalhou para a Companhia N. Editora. Foi galardoado com uma 2ª medalha na
secção de caricatura da Sociedade Nacional de Belas-Artes; (SOUSA, O., 1999: 58); (DEUS, A. D., 1997:
113-114); (SÁ, L.; DEUS, A.D., 1999: 15).
Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos intermédios = o sorriso do Desenho no tempo ... 405

entusiasticamente ao movimento. Com Homem Cristo Filho (1892-1928) ouviu várias


vezes Marinetti (1876-1944) na Galeria Bernheim Jeune (FRANÇA, J.-A., 1991: 55),
cujo manifesto traduziu e publicou mais tarde n’O Açoriano Oriental (ALMEIDA,
B.P.).
Na Cidade Luz, privou com Mário de Sá-Carneiro que ia dando notícias epistolares
a Fernando Pessoa, referindo Santa-Rita como «um tipo fantástico», (FRANÇA,
J.-A., 1991: 55), «ultramonárquico», «imperialista», cada vez mais intolerável»,
«insuportavelmente vaidoso» - que já «se dizia pintor futurista», em 12 (FRANÇA, J.-
A., 1991: 54). Na sua correspondência, Sá-Carneiro chegou a designá-lo como «inimigo
íntimo» (CHAVES, J. M., 1989: 16), lastimando a sua companhia extremamente
fatigante. A personagem mefistofélica de Gervásio Vila-Nova no romance Confissão
de Lúcio, é baseada no Pintor; o poema «Manucure», é-lhe dedicado. Por vezes, não
conseguia deixar de se render a este criador desconcertante que o deixava assombrado.
Afinal a loucura era um dos seus temas obsessivos. Stuart Carvalhais3 desenhou
Santa-Rita Pintor e Mário de Sá-Carneiro, c.1912, a avançarem de costas na folha,
registando com o seu traço sintético e desta vez espesso de pincel, uma sugestão de
Bucha e Estica.

Fig.2 - Stuart Carvalhais – [Santa-Rita Pintor e Mário de

Sá-Carneiro], c.1912.

3 José Herculano Stuart Torrie de Almeida Carvalhais nasceu em 7 de Março de 1887. Por volta de 1905 deu
entrada no atelier de Jorge Colaço. Em 1906 viu publicado pela primeira vez um desenho seu n’O Século:
suplemento ilustrado. Stuart teve sempre um modo muito próprio de sintetizar a forma e uma notável capacidade
de desenhar de um modo expressivo e rápido. Participou no importante Primeiro Salão dos Humoristas em
1912, exposição decisiva para o desenvolvimento do modernismo em Portugal. Foi editor da revista A Satira e
publicou trabalhos n’O Zé, na Gargalhada, A Lanterna, a Ilustração Portugueza, o Imparcial. Partiu para Paris
onde foi desenhador de um dos mais importantes jornais do tempo o Ruy Blas, colaborando também no Le
journal, Excelcia, Pages Foles, Cris de Paris, Le Rire, Sourire. Participou no II Salão dos Humoristas. Foi o autor da
célebre dupla de banda desenhada Quim e Manecas, considerada por muitos como a primeira banda desenhada
portuguesa. Além de caricaturista e ilustrador foi pintor, figurinista, cenógrafo e fez alguns trabalhos no domínio
cinematográfico. Faleceu em 2 de Março de 1961 (PACHECO, J., s.d.: passim).
406 100 Orpheu Sandra Leandro

Sá-Carneiro deixaria referência a três pinturas de Santa-Rita, em 12:

uma representando um WC (que, segundo o pintor se gabava, “só dez pessoas no mundo
podiam não só compreender como ver”), outros intitulados “Portugal” e “Ruído num
Quarto sem Móveis” – estando este na base de uma enganadora notícia enviada para a
revista “Teatro” de Lisboa, em 13, que o dizia escandalosamente exibido no Salon des
Indépendants e reproduzindo, como falso documento, um quadro de Picabia, vingança de
jornalista [Eduardo Freitas] inimigo do pintor… (FRANÇA, J.-A., 1991: 54).

Rui-Mário Gonçalves fez sobressair uma significativa confissão de Santa-Rita a


Rebelo de Bettencourt: a originalidade era para ele «uma necessidade moral e física
de ser outro eu» (GONÇALVES, R.-M., 1993: 65). Personalidade fascinante cuja
aparência e magreza de galgo sublinhavam a sua singularidade, deslocando uma
palavra no tempo poderia dizer que era um performer permanente.
Regressou a Lisboa em 1914,

propondo-se então editar, com procuração do autor, os manifestos de Marinetti (…) – e com
a intenção de “fazer a (sua) obra e de impor(-se) socialmente”, esperando sempre “o regresso
da monarquia para dominar”, dirigir um museu, fazer regressar os Jesuítas e reinstaurar a
Inquisição…(FRANÇA, J.-A., 1991: 55).

É frequente ignorar-se o posicionamento político de determinados artistas


modernistas, certamente por se tornar incómodo, e não estar de acordo com as
tendências políticas daqueles que os tomaram por bandeira mais tarde. Seriam
algumas destas afirmações somente boutades?
Quando Orpheu ficou sem meios económicos para prosseguir, foi Santa-Rita, para
consternação de Mário de Sá-Carneiro, que quis dar continuidade à revista (CHAVES,
J.M., 1989: 17). Apesar da sua colaboração no número 2, Santa-Rita não deixava de
estar à parte. No terceiro número que tanto desejava ver publicado, revelou uma
enorme admiração por Picasso, referindo a Sá-Carneiro que gostaria que nele fossem
publicadas «apenas reproduções de obras suas e do pintor espanhol, não esquecendo
certamente o que neste há, mais do que em qualquer outro cubista, de sentido do
humor e da caricatura» (GONÇALVES, R.-M., 1993: 70).
Após o suicídio de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa escreveu a Cortes
Rodrigues explicando que, no Orpheu 3, seriam publicados «quatro hors-textes do mais
célebre pintor avançado português – Amadeo de Souza-Cardoso» (GONÇALVES,
R.-M., 1993: 72). Como era previsível, Santa-Rita não aprovou, não queria deixar
de ser o centro das atenções da vanguarda plástica portuguesa. Enquanto o Portugal
Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos intermédios = o sorriso do Desenho no tempo ... 407

Futurista não foi publicado não sossegou. Sublinhe-se a descodificação que Bernardo
Pinto de Almeida apresenta da célebre fotografia de casaco aos quadrados legendada
como «Santa Rita Pintor o grande iniciador do movimento Futurista em Portugal»
(p.5) ali publicada:

A admirável encenação clownesca que Santa Rita faz de si mesmo nas páginas de Portugal
Futurista. Em que em vez de obras prefere a afixação da própria imagem num gesto de
irrisão, niilista e cómico que lembra de algum modo o retrato famoso de Duchamp
enquanto Rrose Sélavy por Man Ray, mesmo se não é de mulher que aparece travestido,
mas de louco, na pobre intimidade do seu quarto atelier. Imagem-performance, ela conduz o
Futurismo português para um rasgo que é pré-dadaísta pela atitude e que nem os italianos
em Paris tinham ousado. Na sua genial identificação do artista com o louco, o que explode
é uma sensibilidade que tem a força destrutiva da securização identitária que se lê também
no Ultimatum de Pessoa/Campos. O deslocamento para o espaço de uma subjectividade
que renega a normopatia e a afirmação radical de uma diferença que, depois, raras vezes se
ousou em Portugal até aos Surrealistas a que Mário Cesariny mais tarde daria um cunho
neo-dadaísta prévio mesmo ao surto americano do fim da década de 50 que anunciou
Fluxus. Nesse auto-retrato de pura provocação, o artista cuja obra é ele mesmo afirma no
seu próprio corpo as marcas ambíguas de uma inscrição deste num espaço de clausura,
prisão ou manicómio, que projecta o País de então na sua dimensão mais fantasmagórica
e claustrofóbica. Espécie de histerização clownesca do corpo que o faz contemporâneo do
provocador humor Dada, ele é um dos momentos mais altos do Futurismo europeu, mesmo
se tardio em relação com o surto primeiro, mas antecipatório de outros sentidos que o
Modernismo em breve tomaria na Europa. Nessa Europa a que Santa Rita, precocemente
falecido não haveria de voltar. (ALMEIDA, B. P.).

Simulacro, espectro, consumido pelo éter, Santa-Rita faleceu em 29 de Abril de


1918. Tinha-se consumado a sua obra, o resto podia transformar-se em cinzas,
mesclando o preto e branco do seu casaco…

II – Antiestrofe
Santa-Rita caricaturado e Almada caricaturista

Não são abundantes os desenhos humorísticos visando as polémicas que Orpheu


gerou. Foi a estética gráfica futurista com o seu engenho tipográfico, que acendeu
parte da troça, procurando transformar-se em graça visual. Iremos apresentar alguns
exemplos, dois mais frequentados, outros menos conhecidos, ou mesmo sepultados
408 100 Orpheu Sandra Leandro

nas páginas dos periódicos. Farei igualmente menção às notícias escritas nesses
jornais humorísticos, iniciando a referência por um artigo não assinado, com o título
«O Orfeu»:

Não podemos hoje dar, com o desenvolvimento que desejávamos, noticia do aparecimento
da publicação trimestral O Orfeu, cujo primeiro numero temos á vista. Fica para o proximo
numero, se algum dos nossos redatores encarregados das criticas literarias conseguir lêr o
folheto até ao fim sem percalço de maior. Quatro dos nossos companheiros de trabalho que
tentaram a empreza, recolheram ao hospital com terriveis indícios de apoplexia fulminante
ás primeiras linhas; mais tres tiveram tal destempero intestinal que de momento a momento
correm a despejar-se. Veremos se algum insiste e é capaz de arcar com a tarefa. Tambem, se
der tão grande prova de resistência bem se póde dizer que comete maior proeza do que se
atravessasse agora os Dardanelos! (O Seculo Comico, (8 Abr. 1915) 3).

Também n’O Seculo Comico (fig.3) acusando a «rapaziada do “Orfeu”» de tudo


fazer para se tornar conhecida, transcreveu-se parte da Manucure com a animação
tipográfica que lhe é própria.

Fig.3 – A Manucure n’O Seculo Comico.

A constante alusão à loucura, às reações que os textos provocavam e à tipografia é


mais uma vez motivo, no texto que transcrevo:
Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos intermédios = o sorriso do Desenho no tempo ... 409

«”0””Orfeu”»
Pessoas de mau humor – e quasi não há agora de outras, por causa da carestia dos géneros
– receberam o Orfeu, revista trimestral de literatura, como um inimigo pessoal. O menos
que chamaram aos colaboradores foi doidos; mas a vontade de lhe trincarem os fígados é
evidente. Ora nós, que de principio tambem nos sentimos insultados, mudámos de parecer.
Infelizmente o Seculo Comico é de exíguas dimensões para o que desejaríamos transcrever;
nem alguns dos versos dos poetas do Orfeu cabem na largura d’estas paginas. Comtudo,
ficaríamos mal com a nossa consciencia se não nos penitenciássemos do movimento de
repugnância primitivo pela transcrição de qualquer das maravilhas do Orfeu. Ai vai uma
lasca: “Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas! / Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
/ Eh-lá-hô recomposições ministeriais! / Parlamentos, políticos, relatos de orçamentos,
/ Orçamentos falsificados! / (Um orçamento é tão natural como uma arvore / E um
parlamento tão belo como uma borboleta!)” / É do sr. Alvaro de Campos esta joia» (O
Seculo Comico, (22 Abr. 1915) 2).

No jornal humorístico O Zé, em 1915 (fig. 4) surgiu uma notícia dando conta do
aparecimento do número 2 de Orpheu «é destinada a irritar o indigena, aumentar a
clientela ao sr. Julio de Matos e dar que fazer aos tipografos»:

Fig.4 – Orpheu 2 n’O Zé.

Também n’O Zé, 1915, mas sem referência explícita e directa a Orpheu surge
uma página que evoca o tipo de composição futurista, num texto carregado de
«Vivóóóóóó»’s não deixando de terminar com vários «Tapum»…
410 100 Orpheu Sandra Leandro

Num dos desenhos humorísticos mais conhecidos, voltamos a encontrar Stuart


Carvalhais (fig.5) que, em desenho linear e sem sombras, servindo-se jocosamente
de uma panóplia de signos futuristas, definiu o longo crânio de Santa-Rita.
Hipoteticamente inspirado nos “cabeçudos” títulos das colagens e desenhos sintéticos
do Pintor, como por exemplo: Estojo scientifico de uma cabeça + aparelho ocular
+ sobreposição dynamica visual + reflexos de ambiente x luz. (SENSIBILIDADE
MECHANICA.), 1914, era acompanhado por um texto trocista de Belmiro,
pseudónimo de Acácio de Paiva (1863-1944) composto tipograficamente à futurista.

Fig.5 – Stuart Carvalhais – Em foco: Santa Rita Pintor

(do Orfeu) n’O Seculo Comico (8 Jul. 1915) 2.

Deve-se a Almada o desenho humorístico, mais forte e celebrado (fig.6) tratando-se


aqui da recepção gráfica de Orpheu à crítica. Com o seu traço firme pôs «de quatro
patas no chão um académico-fera que Orfeu, dedilhando a lira, domava…» (FRANÇA,
J.-A., 1991: 59). Se a fera de quatro era Júlio de Matos, Júlio Dantas, ou qualquer
outro, não importa, importa sim apreciar que era a representação do que considerava
retrógrado. Com o célebre manifesto que escreveria em 1916, Almada colocaria Júlio
Dantas em má posição (até hoje) e do mesmo modo classificou Alberto de Sousa
(1880-1961), como o Dantas do desenho.
Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos intermédios = o sorriso do Desenho no tempo ... 411

Fig.6 - Almada Negreiros –

Orpheu a domar um

académico-fera. O Jornal, (13

Abr. 1915).

Em 1916, n’O Seculo Comico, Belmiro revelava que ainda não tinha esquecido a
aventura de Orpheu (fig. 7). Considerando Augusto Santa-Rita, poeta e irmão do
Pintor, também filiado na escola futurista que o versejador enjeitava, «a lira de arame
ferrugento» de Orpheu soava, para sua surpresa, com «o poder da arte e do talento»
em Augusto Santa-Rita. Note-se que não se aplicaram quaisquer animações futuristas
nem no desenho, nem na tipografia. Era coisa séria.

Fig.7 – Em foco: Augusto Santa Rita n’O Seculo Comico

(17 Jul. 1916) 3.


412 100 Orpheu Sandra Leandro

III – EPODO
Elos de uma cadeia…

Como lidar com a herança de Orpheu? Pensando em transmissão é impossível não
lembrar Jean Cocteau e a sua pungente película Le testament d’Orphée de 1959. Olhando
Orpheu, cujo centenário celebramos, e considerando um dos seus protagonistas, é
impossível não recordar o que Ernesto de Sousa (1921-1988) rodou entre 1969-1983
em Filmando Almada, Um Nome de Guerra. Porém, a proposta que quero evocar surgiu
em 1989, passados (por acaso) 100 anos do nascimento de Santa-Rita Pintor:

Na Galeria Quadrum está patente ao público até ao dia 11 de Fevereiro uma exposição dos
artistas Amadeu de Sousa Veloso, Sanita Pintor, Palmada e Maluca. A exposição intitula-se
«Os Ases da Paleta» e reúne quatro jovens de Leiria que pela primeira vez apresentam as
respectivas obras em Lisboa. Dizem-se seguidores críticos do movimento homeostético (o
que quer que isso seja) e já participaram em diversas exposições paroquiais e em ginasiais
de diversos pontos do País. Os quatro regionalistas pretendem que o público se envolva nas
suas obras (Arquivo Pedro Portugal).

Manuel João Vieira (n. 1962) encarnou Sanita Pintor, Fernando Brito (n. 1958)
teve por pseudónimo Palmada, Pedro Portugal (n.1963) deu vida a Amadeu de Sousa
Veloso, e João Paulo Feliciano (n. 1963) era Maluca. Dos «quatro regionalistas»
nenhum deles de Leiria, três integravam os Homeostéticos - Pedro Portugal, Manuel
João Vieira, e Fernando Brito - movimento artístico pós-paradoxológico surgido em
1982 (GABINETE DE ALTOS ESTUDOS HOMEOSTÉTICOS, 2004).
Afirmavam-se de Leiria, com a intenção que o Manifesto dos Ases da Paleta
explicitava: «Pela 1ª vez em Lisboa, artistas da provincia (sic) dão cartas!» (Arquivo
Pedro Portugal), mas também como nos esclareceu Pedro Portugal: «porque na época
classificámos a região portuguesa epítome da fabricação organizada do mau-gosto».
Em geral, as notas de imprensa reforçavam o lado paródico. O jornal O Diabo advertia:
«Dulce d’Agro inaugurou na sua Galeria Quadrum uma colectiva. […] Preços: entre
500 escudos e 80 contos. Como se vê, esta Galeria já está a festejar o Carnaval» (O
Diabo (24 Jan. 1989), arquivo Pedro Portugal).
Reapoderando-se de mitos, criando o seu próprio espaço mito-paralógico,
considerando possivelmente a sua área de actuação ocupada e ocultada pelos vultos
que parodiavam, talvez encarando como pouco legítimos aqueles que os pretendiam,
ou não, validar, os Ases da Paleta afirmavam no seu Manifesto: «A ARTE DOS
ASES DA PALETA é um afastamento em relação à critica,(sic) á (sic) teoria, é uma
aproimação (sic) ao grande público!» (Arquivo Pedro Portugal).
Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos intermédios = o sorriso do Desenho no tempo ... 413

No breve artigo que escreveu, João Pinharanda, crítico de arte, fez referência
ao «desejo de cortar a pilinha aos críticos» que os Ases da Paleta afirmavam ter,
expressando-o veementemente no seu Manifesto, a que pretendo voltar noutro artigo.
Atentemos na sua descrição:

Apresentaram uma performance na inauguração da “instalação-exposição” que teve


“alguma graça mas pouco ritmo” (…) valendo-lhe a intervenção inesperada da própria
directora da galeria no sentido de impedir a leitura do manifesto de intenções, mas uma
lista de “boutades” – algumas também com graça (esmeraram-se no que aos críticos
respeitou). As obras apresentadas são (sic) diversa índole e o mais interessante do
conjunto: garrafões de vinho («15 litros de sangue de artista»), um quadrado de garrafinhas
de água («Beba Arte»), uma «fotografia» feita de reproduções kitsch com moldura de
metal, móveis tornados escultura um ready-made feito com a obra de um dos próprios
artistas. Citações, paródias, ironias acerca do que em Portugal e internacionalmente se
vai fazendo. Entendidas todas as intenções não se percebe se estas excedem a capacidade
de serem enquadradas por uma atitude coerente (paródica / irónica mas não cómica) ou
se pelo contrário encontra o seu modo certo de afirmação em acções deste tipo e não
passam, afinal, de intenções menores, anedócticas. O trajecto de alguns (ou de todos, se
bem que em diferentes registos) dos membros do grupo faz-nos optar (optimisticamente)
pela primeira hipótese. Quando todas as provocações são reabsorvidas pelos sistemas
comerciais e críticos, o regresso à provocação primária de um teatrinho de adolescentes
não irá adiantar muito ao projecto de uma arte reflexiva, corrosiva, que eticamente
insista em desmontar os mecanismos desses mesmos sistemas» (João Pinharanda, JL (24
Jan. 1989), arquivo Pedro Portugal).

Glosando a trindade modernista Amadeo, Santa-Rita e Almada, os Ases


acrescentaram outro nome (bem próximo do grande público que a adquiria) o(a)
pintor(a) Maluca, o que reforça consciente, ou inconscientemente, um grau de loucura
que, para o bem e para o mal, quase sempre recai nos artistas.
Centremo-nos no nome de Sanita Pintor. Teria o seu baptismo origem na
representação de um WC por Santa-Rita?... «que, segundo o pintor se gabava, “só dez
pessoas no mundo podiam não só compreender como ver”»? Inventou-se por soar
semelhante, fazer sorrir, escatologizar o meio que se considerava infecto? Pelo gozo
da paródia fecal que andavam a fazer? Por acaso? Porque apeteceu?
414 100 Orpheu Sandra Leandro

Fig. 8 – Maluca, Palmada e Sanita Pin-

tor, 1989. Polaroid Pedro Portugal.

Importa-me unir sobretudo a mais ou menos encenada e controlada loucura de


Santa-Rita Pintor, com a de Sanita Pintor, um dos muitos avatares de Manuel João Vieira,
agregando determinadas imagens associadas à loucura. Da Imagem-performance do
Portugal Futurista, onde se vê Santa Rita enquadrado por uma moldura vazia, para a
Imagem-performance destes três Ases fotografados por um outro (fig.8), num cenário
que é o verso de uma tela, que jogo e que distância vai? - «Não vimos de lado nenhum;
não vamos para lado nenhum; estivemos sempre CÁ!» - Exclamam no Manifesto.
Somos sempre os mesmos. O absurdo e a loucura é sempre resgatada, como forma
de espantar.
Concentremos o olhar em Sanita Pintor com um funil na cabeça e na vária
parafernália que lhe diz respeito na mesa. Evoquemos os funis de Hieronymus
Bosch (c.1450-1516); recordemos os funis que SAM inventou neo-dadaisticamente
explicando: «Pousado na cabeça de um louco, um funil é o sinal. A coerência. Uma
coerência tão coerente que o louco já não precisa de ser louco: basta-lhe o funil»
(SAM, s.d.: [p.3]). O funil para tentar chegar, ou romper o Céu; para não se bater com
a cabeça com tanta força quando nos dispararem para lá em forma de estrela, o que
louca e/ou lucidamente já se sabia serem em terra cadente ou decadente.
Orfeu foi aos infernos resgatar Eurídice. Na construção do seu mito e encenação,
Santa-Rita Pintor afirmava ter pintado Orpheu nos infernos em 1907… E Sanita
Pintor? (Quase) termino como um excerto inédito de seu punho e letra intitulado
«SINCERINDARTE (DA SINCERIDADE EM ARTE». Transcrevo apenas o fim
elucidativo, deixando espaço para a imaginação quanto às eloquentes palavras
anteriormente empregues, sem olhar para trás:

Palavras de um rigor rustre (sic) e de uma fealdade abençoada, como orgia / da torrencial
aritmética do / mimetismo frater/anal / reivindicamos esta tradição / sempre renascida da
Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos intermédios = o sorriso do Desenho no tempo ... 415

ternura / corajosa que assume a / arte como esposa /mãe / amante / puta / filha / avó / e tia
(Arquivo Pedro Portugal).

Bibliografia

Bibliografia Activa
Arquivo Pedro Portugal.
O Jornal (1915). Lisboa: Boavida Portugal.
O Século Cómico: suplemento humoristico de O Século (1915-1916). Lisboa:
Alexandre Augusto Ramos Certã.
O Zé: semanário de caricaturas e humoristico (1915-1916). Lisboa: Estevão de
Carvalho.

Bibliografia Passiva
ALMEIDA, Bernardo Pinto de. «Santa Rita Pintor (1889 - 1918)» in Arquivo
Virtual da Geração de Orpheu http://www.modernismo.pt/index.php/
santa-rita-pintor-1889-1918 [25 Fev. 2015].
NEGREIROS, Maria José Almada (1993). Conversas com Sarah Affonso. Lisboa:
Publicações Dom Quixote.
CHAVES, Joaquim Matos (1989). Santa Rita vida e obra: precisões e considerações.
Lisboa: Quimera.
DEUS, António Dias de (1997). Os comics em Portugal: uma história da banda
desenhada. Lisboa: Cotovia; Bedeteca.
FRANÇA, José-Augusto (1986). Amadeo de Souza-Cardoso o português à força &
Almada Negreiros o português sem mestre. Lisboa: Betrand Editora.
FRANÇA, José-Augusto (1991). A arte em Portugal no século XX. Lisboa: Betrand
Editora.
GABINETE DE ALTOS ESTUDOS HOMEOSTÉTICOS (2004). 6=0. Porto:
Fundação de Serralves.
GONÇALVES, Rui-Mário (1993). História da Arte em Portugal: pioneiros da
modernidade. Lisboa: Publicações Alfa.
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Orpheu em tempo de guerra(s)

Teresa Rita Lopes

Já não é a primeira vez que lembro que Orpheu não representa Modernismo
nenhum. O que não é razão para não o celebrar. Parafraseando Almada Negreiros:
“todos os dias faz anos que se inventaram as palavras, celebremos todos os dias o
aniversário das palavras”, proponho um brinde: “celebremos todos os dias o aniversário
da Poesia”. Também poderia dizer que todos os dias faz anos que se inventou a Poesia.
O que não convém é repetir a ideia-feita de que Orpheu foi órgão de algo chamado
modernismo português - que, aliás, fica sempre por definir.
Vamos por partes.
Dizer Orpheu remete-nos logo para Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e
Almada Negreiros (já agora, que este centenário sirva, ao menos, para os chamados
órgãos de comunicação social não chamarem ao último Almeida Negreiros, como às
vezes acontece).
Comecemos pelo mais velho, Pessoa.
Recordemos as suas primeiras composições, em português, por ele publicadas: os
artigos na revista Águia, (em Abril, Maio e Novembro de 1912) sobre “A nova poesia
portuguesa”, e a carta a Adolfo Coelho, no jornal República, em Setembro do mesmo
ano, sobre o mesmo assunto; “Na Floresta do Alheamento”, trecho do anunciado Livro
do Desassossego, na mesma revista, em 1913; o poema “Pauis”, na revista Renascença,
em 1914 (escrito em 1913).
Entretanto, Pessoa escrevera “O Marinheiro”, em 1913, que tentou publicar na Águia,
sem sucesso – o que concorreu para o seu afastamento da Renascença Portuguesa, de
que essa revista era órgão.
A estética subjacente a todas estas obras é inegavelmente a simbolista. Aliás, pouco
depois, na sua febre dos ismos, partilhada com Sá-Carneiro, Pessoa irá elencar, nas
suas notas, um “Neo-Simbolismo português”.
A tal “nova poesia portuguesa”, para que profetizava um “Super-Camões” (a
que também chamou “Supra-Camões) e de que dava como exemplo versos dos
colaboradores da dita revista: Teixeira de Pascoais, Mário Beirão e Jaime Cortesão,
também tinha raízes na estética simbolista - temperada aqui com nacionalismo.
E a poética que Pessoa começou a praticar e a enunciar, nas cartas trocadas
com Sá-Carneiro, então em Paris, ia no mesmo sentido. A palavra chave dessa
correspondência era “ampliação”, no sentido de busca de uma além-realidade. Num
418 100 Orpheu Teresa Rita Lopes

artigo publicado em Abril de 1913, na Águia, sobre uma exposição de caricaturas de


Almada Negreiros, Pessoa, nitidamente desdenhoso dessa forma de arte, define a única
arte que considera como a que “procura tornar o seu objecto superior a si-próprio,
busca nele uma qualquer espécie de além-ele”1. O lema “encontrar em tudo um além”
– traduzindo o repúdio, comungado pelos simbolistas, do Realismo – já fora por
Pessoa usado para definir a poesia dos Renascentes, os citados poetas da “nova poesia
portuguesa”, também superlativada como “novíssima”.
Diga-se, de passagem, que Pessoa, ao escrever estes artigos na Águia, era já animado
pelo espírito profético – curiosamente por ele aí atribuído a Pascoais – que o acompanhou
a vida toda ao desejar e anunciar um Desejado para a pátria-língua-portuguesa. Quer
se tratasse da poesia dos Renascentes quer, mais tarde, da dos de Orpheu, o que
verdadeiramente contava para ele era o advento não só dessa poesia mas do tal Quinto
Império da cultura a que nos caberia emprestar a língua.
Vale a pena esmiuçar as longas e laboriosas, por vezes fastidiosas, considerações do
jovem Pessoa nesses artigos da Águia – em que já era anti-católico e anti-monárquico
mas também aí declaradamente contra a república desnacionalizada de Afonso Costa,
Brito Camacho e António José de Almeida – para o entendermos já então animado
pelo ímpeto de sempre: “o fim criador-de-civilização de toda a obra artística” e “a ideia
patriótica” – que assume, numa carta a Côrtes-Rodrigues, no início do ano de Orpheu
(19.1.1915) em que se confessa desinteressado do Interseccionismo e do seu intuito
“d’épater”- de “um plebeísmo insuportável”. Diz mesmo que o projetado “Manifesto
interseccionista” não seria “sério”, como também não o era o poema “Pauis” – na
origem de Paùlismo, o primeiro nome da escola.
O seu confessado (nessa carta) “espírito religioso” sentiu necessidade de se abrir
com esse amigo, o único que compreenderia essa sua dimensão – diz ele. E torna a
referir a exigência de Além (assim maiusculado) da arte que para ele conta.
Os primeiros poemas que começa a enviar a Sá-Carneiro ainda são obra desse
“espírito religioso” – embora anti-católico e, como sempre, adverso de todas as igrejas
organizadas - que bem se enquadrava na Renascença Portuguesa.
Num diário de 1913 (22.2) relata que se tinha irritado “interiormente” com um
colega de Café que estava a “estrangeirar”, comentando:
“uma visão do quanto com que a Renascença Portuguesa tem que lutar para
erguer isto”. Era, de facto, com o nacionalismo militante dos Renascentes que Pessoa
fundamente se identificara, logo nos primeiros tempos da nossa – segundo ele –
estrangeirada República. Mas o desprezo que Sá-Carneiro lhes votava e o facto de

1 PESSOA, F, 1946: 37.


Orpheu em tempo de guerra(s) 419

não lhe terem publicado “O Marinheiro” levou-o a romper com eles e com a Águia.
É, contudo, significativo que nos textos escritos, mais tarde, sobre o extinto Orpheu,
ainda se exprima com os mesmos termos usados na Águia sobre a então considerada
“novíssima” poesia, colocando-se no mesmo papel que nitidamente aí se atribuía de
“criador de cultura”. A verdade é que era sobretudo isso que para ele fundamente contava.
Mário de Sá-Carneiro não entendia minimamente o seu nacionalismo místico: para
ele, como confessa numa novela, Portugal era uma casa bafienta de que só lhe apetecia
fugir!
O “drama estático” “O Marinheiro” é a expressão máxima da filiação simbolista de
Pessoa: mediu-se, para o escrever, com Maeterlinck, papa do Simbolismo no teatro,
tentando ser mais papista do que ele: fazer “mais nebuloso” e “subtil”. Álvaro de Campos,
numa carta a um editor inglês propondo uma antologia do Sensacionismo, reconheceu
o êxito do desafio: “Maeterlinck’s best nebulosity and subtlety is coarse and carnal by
comparason”.2 (“Vaga” e “subtil” disse também Pessoa ser a “nova poesia portuguesa”.)
O encontro com Sá-Carneiro, alimentado durante a vasta correspondência trocada
ente 1912 e 1916, dá-nos notícia do comum anseio de criarem uma escola literária.
Pessoa assina um dos poemas de então acrescentando-lhe a sua pessoal filiação: “da
escola interseccionista”.
O primeiro ismo a aparecer foi o “Paùlismo”, a partir do poema “Pauis”, que Pessoa
publicaria na revista Renascença, em 1914 (escrito em 1913). Repare-se que o seu ideário
é em tudo semelhante ao simbolista. “Encontrar em tudo um além” conviria, aliás, como
lema, não só aos neo-simbolistas portugueses da nova escola como aos antigos colegas
da Águia, de quem, entretanto, Pessoa se afastara. Sá-Carneiro faz-se eco, numa carta,
de um irónico comentário de Pessoa sobre o seu patrono: Pascoais sofre de “pouca
arte”!
Os poemas que Sá-Carneiro começa então a enviar regularmente ao amigo também
comungam do ideário e do estilo simbolista: recordemos, como simples exemplo, a
“Epígrafe” de Indícios de Ouro:
“A sala do castelo é deserta e espelhada. /[…] A cor morreu - e até o ar é uma ruína…
/ Vem de Outro tempo a luz que me ilumina - / Um som opaco me dilui em Rei…”
É a mesma atmosfera maeterlinkiana em que “O Marinheiro” se desenrola.
É claro que ambos os textos, apesar da influência que acusam, eram já dignos dos
génios que os seus autores revelaram ser (não direi o mesmo de “Pauis” nem de “Na
Floresta do Alheamento”). Por isso permanecem vivos, ao abrigo do tempo e da sua
circunstância.

2 LOPES, T. R., 1985: 120.


420 100 Orpheu Teresa Rita Lopes

Pessoa assume então a batuta de chefe de escola: aconselha, por carta, um amigo,
Lebre e Lima, a conhecer o “estilo alheio”, o da sua “Floresta do Alheamento” – assim
designado pelos “rapazes do grupo”, esclarece…Entretanto, ele e Sá-Carneiro
oficializam o Paùlismo” como a “primeira dimensão” do que Pessoa chamará,
mais tarde, englobantemente, Sensacionismo. A “segunda dimensão” será o
Intersecionismo, seguindo também uma estética nitidamente pós-simbolista ou
decadentista.
Entretanto, acontece o parto heteronímico! Mário de Sá-Carneiro, embora sedento
de modernidade e já admirador dos seus cultores internacionais, em Paris (acredita no
génio de Picasso, de quem, diz, todos riem!), não acusa, nas produções dos primeiros
tempos, influência dessas novas modas, embora delas dê notícia: até envia revistas a
Pessoa sobre o Futurismo, já então muito “badalado” e discutido.
Vai ser precisamente Pessoa, de formação clássica mas práticas simbolistas, quem
vai dar forma de poema a esse ismo, e mesmo escrever o chef-d’oeuvre da escola
futurista – é o que diz Sá-Carneiro na carta em que saúda a receção da “Ode Triunfal”,
em Junho de 1914, assinada pelo recém-nascido Álvaro de Campos.
Tudo vai mudar no universo pessoano com o aparecimento da verdadeira heteronímia
(no dizer de Pessoa, os heterónimos são apenas três: Campos, Caeiro e Reis).
Convém, contudo, notar que o primeiro heterónimo moderno a aparecer foi
Alberto Caeiro – no tal “dia triunfal” de 8.3.1915 que Pessoa ficciona na célebre carta
a Casais Monteiro mas em que, afinal, só se manifestou com dois poemas; Campos
irrompeu três meses depois, em Junho, com a “Ode Triunfal” e Ricardo Reis logo
a seguir. Vários pessoanos têm “engolido” a ficção do “dia triunfal”, a começar por
João Gaspar Simões, apesar das cartas de Sá-Carneiro serem explícitas em relação às
diferentes datas do aparecimento dos três heterónimos.
Depois desse nascimento nada mais foi como antes. É importante sublinhar que a
verdadeira modernidade foi trazida para o universo pessoano por esses três inovadores.
Modernos, os três? Porque não? Mesmo Ricardo Reis foi moderno porque recria as
odes clássicas horacianas com verdadeiro espírito moderno, da mesma forma que
pretendia actualizar o Paganismo helénico.
Há algo de que nunca ninguém falou a propósito do Modernismo português,
que também nunca adequadamente é definido: é da importância do impulso
“anti-cristista” que acompanhou Pessoa durante toda a vida, desde que, ao regressar
a Portugal, assumiu interiormente a identidade judaica dos seus parentes paternos. A
partir de então empenhou-se numa verdadeira “cruzada” contra o Cristismo, assim
por ele chamado. Inicialmente apelidou de Novo Paganismo esse “movimento”, que
encontrará a sua expressão literária plena na personagem Alberto Caeiro, criada para
ser o filósofo (mais que o poeta) do também chamado Neo-paganismo. O seu poeta
Orpheu em tempo de guerra(s) 421

seria mesmo Ricardo Reis. E o seu teorizador a “personalidade literária” que não
chegou a heterónimo, António Mora.
Não se pode perder de vista que é a luta contra o Cristismo que está na origem
do nascimento de Caeiro e, por isso, da verdadeira modernidade de Pessoa – diz
ele que com o cultor do verso livre, Walt Whitman, no horizonte - paralelamente
ao Futurismo que fez nascer Campos, quando Pessoa se quis medir com Marinetti
(Numa carta a Armando Côrtes-Rodrigues, Pessoa refere-se ao “Álvaro-futurista”).
Recordemos que, na mesma atitude de desafio, Pessoa escrevera “O Marinheiro”, um
ano antes, medindo forças com Maeterlinck. Pessoa que, rapazinho débil, sempre
fora, na escola, péssimo desportista, adorava estes combates a medir forças!
Reagindo, por carta, à criação de Caeiro, Sá-Carneiro interroga Pessoa sobre a sua
integração no Paulismo e, algo dececionado com a negativa do amigo, resigna-se a
entender que ele não possa, de facto, entrar para a nova escola…
Mas convém também lembrar que, no tal “dia triunfal”, Pessoa escreveu em seu
próprio nome os poemas “Chuva Oblíqua”, que apelidou de “poemas interseccionistas”,
com que queria exemplificar o novo processo usado: em vez de se limitar a “pintar” a
paisagem do seu estado de alma, como em “Pauis, resolveu intersecionar a paisagem
exterior com outra, interior. Na carta a Casais Monteiro em que ficciona o dito “dia
triunfal”, apresenta esses poemas como um “regresso a si próprio” - reacção à sua
“inexistência como Caeiro”… E isto já não me parece ficção: Pessoa, autor desses
poemas, na sua própria pessoa, era, então, o chefe da escola intersecionista e desse
estilo - que Caeiro viera pôr em causa.
O que aconteceu foi que Pessoa se tornou então, definitivamente, no palco de si mesmo,
onde diferentes correntes estéticas irão contracenar. E Orpheu vai ser, semelhantemente,
o estrado onde vão desfilar os cultores do Neo-Simbolismo decadentista - que o
Paulismo e o Intersecionismo se apuraram a criar - mas também os seguidores da nova
escola Futurista: Álvaro de Campos e Sá-Carneiro, nas composições feitas com esse fim.
Pessoa dirá, mais tarde, que “Manucure” foi uma blague: de facto, Sá-Carneiro não se
soube, como Pessoa, despersonalizar numa personagem futurista: limitou-se a fazer,
nesse poema, em “Apoteose” e em “16”, meros pastiches.
Almada só mais tarde desabrochará: também “Cena do Ódio”, em Orpheu 3, não
passará de um pastiche de um poema futurista.
É preciso não perder de vista que Pessoa se apresenta, no palco em que Orpheu
também se transformou, encarnando diferentes papéis, isto é, estéticas opostas:
a Decadente, em que o Intersecionismo se insere, com a série “Chuva Oblíqua”,
assumida em seu próprio nome, e a estética moderna, à maneira futurista, com as
odes de Campos, “Triunfal” e “Marítima”. Mas também Álvaro de Campos fez questão
de desfilar na passerelle com a pose decadente que, numa “Crónica de vida que passa”,
422 100 Orpheu Teresa Rita Lopes

publicada no Jornal, em Março de 1915, ao mesmo tempo que Orpheu 1, Pessoa


apresentava como a dos “novos”:
“Trabalhemos ao menos – nós, os novos – por perturbar as almas, por desorientar
os espíritos. […] Construamos uma anarquia portuguesa. Escrupulizemos no doentio
e no dissolvente. E a nossa missão, a par de ser a mais civilizada e a mais moderna,
será também a mais moral e a mais patriótica.”
Para assim escrupulizar “no doentio e no dissolvente”, Pessoa escreveu o poema
“Opiário”, já depois da “Ode Triunfal”, para mostrar como era Campos antes de se
tornar futurista.
Existe, no espólio, um texto de crítica a Orpheu 1, seguramente saído da pena
de Pessoa fingindo ser um jornalista português, bastante revelador: por um lado,
do papel por ele assumido de criador de uma escola literária nova, não copiada do
estrangeiro - como se o estilo Decadente fosse original! – e, por outro lado, de que
assumia que o Álvaro de Campos era futurista – embora “seja futurismo equilibrado,
como nunca se vira”.3
Diz neste pretenso artigo – nunca publicado – que, com excepção da referida “Ode
Triunfal”, “todos os outros autores, que se mostram ao público em Orpheu, entram na
nossa definição”- a que pretendeu anteriormente dar da “corrente literária que de há
pouco se vem esboçando em Portugal”. A definição que dela apresenta é vaga: “uma
corrente literária que não só engloba todas as correntes do tempo – o que já em si seria
uma coisa grande e, em Portugal, uma coisa nova - mas as excede e se apresenta com
um caráter absolutamente novo, em relação a qualquer outra corrente ou obra, dentro
ou fora do seu país de origem.”4
Da mesma forma que, nos artigos sobre “A Nova Poesia Portuguesa”, nunca chegou
a caracterizar a sua novidade, também aqui o não fez em relação à dita nova “corrente
literária”…Limita-se a exaltá-la, embora vá dizendo que “engloba todas as correntes
do tempo”…O que chamará adiante, neste escrito, “uma nova forma literária, uma
nova visão da Realidade e da Vida, uma nova forma de dar expressão às sensações
e pensamentos”, será definida por Luiz de Montalvôr, (co-director de Orpheu 1),
no artigo de fundo da revista que dirigirá um ano depois, Centauro, precisamente
intitulado “Tentativa de um ensaio sobre a decadência”, assim iniciado: “Somos os
descendentes do século da Decadência”.5 Aí afirma acertadamente Montalvôr que
“A flor da arte decadente do século passado foi o simbolismo.” Da Decadência sua

3 Espólio pessoano na B.N. 87- 43 e 44.


4 Ibidem.
5 Centauro: 7.
Orpheu em tempo de guerra(s) 423

contemporânea diz que “é para nós o símbolo com que vestimos o estado de alma
colectivo de exilados da Beleza! Ser-se decadente é ser-se doente espiritualmente, é
ser-se superior! A arte é a doença imortal dos pálidos de Deus e da Beleza…”6
Pessoa associa-se a esta revista com a série de poemas “Nos Passos da Cruz”.
Esse sentimento de “exílio” anima outra revista do mesmo ano de 1916, dirigida por
Augusto de Santa-Rita (irmão de Santa-Rita pintor), precisamente intitulada Exílio,
em que Pessoa colabora com “Hora Absurda”. (Aliás, Pessoa teve o plano, nunca
realizado, de também assim intitular um livro de poemas destes primeiros tempos.)
É ele que encerra a revista com um artigo sobre o “Movimento Sensacionista” (a
pretexto da crítica de dois livros integrados nessa corrente) em que proclama a vitória
desse movimento, iniciado com Orpheu. Acutilantemente crítico, Pessoa define
Sensacionismo como a “primeira manifestação de um Portugal-Europa”, denunciando
“a estreiteza crónica” e a “tísica espiritualidade” dos seus colegas de há quatro anos,
na Águia, órgão da Renascença, ridicularizando, da mesma penada, o “neo-huguismo
(grande embora) do atual chefe honorário da intelectualidade portuguesa”. (Será
que visa Pascoais ou Guerra Junqueiro?) E, em tom de trombeta, afirma do dito
Sensacionismo: “Hoje é já uma vitória; amanhã será uma nacionalidade.”
É evidentemente difícil levar a sério este “triunfo” – que ele pretendia futuramente
nacional…Nem Pessoa se levaria inteiramente a sério ao escrever tais exageros.
Mas era a guerra declarada, não a que então amotinava a Europa, mas a que os
“Novos” - que Pessoa, na citada crónica, em O Jornal, aceitara representar - tinham
desencadeado contra os Velhos, representados tanto por Pascoais como por Junqueiro,
“grande embora”, concede Pessoa…À grandiloquência de ambos opunham os Novos
os murmúrios do seu tédio e das maleitas das suas “almas doentes” (refervidíssima
expressão, até título de alguns poemas). Mas o que mais interessava, como na guerra,
era o triunfo, muito mais importante que a justeza da estratégia e a constituição dos
exércitos …E esse, Pessoa reclamava-o.
Ao falar de Orpheu, há que ver, de alto, o que significou, abrangendo também com
o olhar do entendimento as mencionadas revistas, seus arredores. Se não levarmos
em conta a circunstância em que foram criadas e nos obstinarmos em analisá-las só
literariamente, não as entenderemos - e teremos que admitir apenas, com mágoa, que
não sobreviveram à sua circunstância. Nelas sobreviveram - ah sim! - os que, como
génios, viveram: Pessoa e Sá-Carneiro (Almada só desabrochou depois).
Mas há que levar em conta outro colaborador de Orpheu 3, C. Pacheco, que durante
quase um século foi considerado heterónimo pessoano, com o longo poema “Para

6 Ibidem: 8.
424 100 Orpheu Teresa Rita Lopes

além doutro oceano”. Assim aparece ainda na edição desse número da revista, deixado
em provas tipográficas, publicado por Arnaldo Saraiva em 19847. Sempre desconfiei,
no que não estive sozinha, que esse C. Pacheco, co-organizador da revista Renascença
em que Pessoa publicara “Paúis”, era criatura real, mas só disso tive a certeza quando,
em 2011, me apareceu a neta, Ana Rita Palmeirim, (que já tem longamente escrito
sobre o avô) com o rascunho desse poema. Dei então “O seu a seu dono”, título do
artigo que escrevi no Jornal de Letras.8
Esse poema, em verso livre, é dedicado a Alberto Caeiro e, de facto, para ele nos
remete o seu estilo. Tem que ter valor, para ter sido tomado como de Pessoa durante
tanto tempo. Além de Campos, é o único colaborador de Orpheu a assumir um estilo
verdadeiramente moderno.
O que também nunca foi levado em conta é outra guerra, travada nos bastidores
de Orpheu: ao mesmo tempo que os Decadentes “escrupulizam” na rebuscada
expressão das suas “almas doentes”, os Neopagãos, recentemente criados no
universo pessoano, reagem e condenam, considerando essa arte “degenerada” fruto
do adoecimento dos espíritos que o Cristismo trouxera à civilização. A cruzada
neopagã era encabeçada pelo Mestre Alberto Caeiro que, à maneira grega –
explicitou Pessoa – filosofava em poesia: Reis escreverá mesmo que ele era mais
filósofo que poeta. Ricardo Reis tinha um ajudante, só prosador e que não recebeu
o baptismo de heterónimo: António Mora – o verdadeiro teórico do Neopaganismo.
Paralelamente a Orpheu, Pessoa preparava uns “Cadernos de reacção pagã”- que já
encarava intitular Athena, dez anos antes da sua concretização como revista - que
seriam o órgão do movimento neo-pagão.9
O que é verdadeiramente curioso é que estes neopagãos “guerreavam”, na sombra,
o decadentismo de Orpheu, nomeadamente o Sensacionismo. Veja-se o que diz
Ricardo Reis, num texto sobre a poesia de Caeiro, que opõe à desses degenerados
“subtilizadores de sentimentos”:
“Nada, como os seus versos, vive tão longe dos modernos inventores de sensações,
dos subtilizadores de sentimentos simples, dos que mastigam a própria alma até a
terem que desconhecer – polpa amorfa de sensações indefinidas.”10

7 Lisboa, Ática, 1984.


8 Em Junho de 2011, reproduzido no dossier consagrado a Coelho Pacheco, em que também constam outros
artigos de Teresa Rita Lopes e Ana Rita Palmeirim, na antologia de artigos da revista Modernista: Modernista,
Lisboa, edição IEMO, 2013.
9 Notícias desenvolvidas sobre o Neopaganismo e seus cultores em LOPES, T. R., 1990, em vários artigos dos
dois volumes.
10 REIS, R., 2003: 58.
Orpheu em tempo de guerra(s) 425

Mais adiante, neste texto, atribui “à nossa sensibilidade cristianizada” a morbidez


destes hábitos.
Para Ricardo Reis todas os colaboradores de Orpheu, Decadentes ou Sensacionistas,
enfermariam do mesmo mal: dirá mesmo (seguramente com Campos no pensamento)
que o excesso de entusiasmo é uma forma de histeria – doença, portanto. E condena
abertamente Orpheu, apesar de lhe chamar carinhosamente “nosso”:
“A estes autores modernos convém aquela designação de sensacionistas, que alguns
poetas do nosso Orpheu escolheram para designar-se. São pessoas que não têm outro
intuito artístico que não o de exporem as suas sensações. E isto sem mesmo aquela
disciplina rudimentar que deriva do emprego das formas convencionais da literatura
em verso.”11
Noutro texto sem atribuição, (inédito, creio) mas aparentemente do mesmo autor,
ou do outro prosador neo-pagão António Mora, pode ler-se condenação semelhante,
ao exortar à terapia das virtudes do “pagão” contra “o requinte doentio” dos “débeis
que o Cristianismo governa”:
“Abdicar das facilidades que o requinte doentio da expressão ministra aos subjugados
do triunfo; submeter o impulso a exprimir os seus pensamentos a uma condição de
estágio, enquanto se aperfeiçoam; não olhar à fama mas à perfeição; postergar o
aplauso, em proveito do conseguimento – doutrina é esta que só em palavras pode
aprazer aos débeis que o cristianismo governa. […] Cultivar este ascetismo sem
compensações no sentimento, esta disciplina sem prémio de mando, não é tarefa que
apraza muito aos degenerados homens do nosso degenerado tempo.”12
Esses “degenerados” assumem, defendem e exibem a sua Decadência num texto,
nunca publicado, aparentemente destinado a um anunciado “Manifesto”, em Orpheu:
“Apraz aos espíritos dedicadamente doentes descer até à propaganda para incutir
quanto possível nas almas amorfas, que são quase todas, o veneno gentil dos devaneios
prolongados. Esta cultura, consciente daquelas atitudes que instituem a Decadência,
que tanto devem desagradar aos sargentos normais de todas as patentes, não deve ser,
como se fosse uma ideia reles e sã, incutida, espalhada com argumentação e retórica.
Toda a argumentação, pelo encadeado e dirigido do seu movimento, lembra uma
marcha o que é parecido demais com a criatividade útil para poder agradar a uma
alma de artista. Toda a retórica, por muito que tenha o intuito da insinceridade, tem
sempre um sabor a entusiasmo, um avinagrado a vida que desgosta e desorienta o
espírito naturalmente talhado apenas para os misteres aristocráticos de sonhar e não

11 Ibidem: 60 e 61.
12 Espólio 3 B.N., 55ª-32. Inédito (creio).
426 100 Orpheu Teresa Rita Lopes

aderir (variante: concordar). Por isso hoje, mais do que nunca, importa aos superiores
abusar do paradoxo e do absurdo, petrarquizar sobre o abominável e minar em ritmos
lentos e dolências a mole estrutura das intenções de agir.”13
A personagem que monologa em “Opiário” é o poeta “dedicadamente doente” que,
num poema posterior, o próprio Campos reconhece ter sido, dirigindo-se ao Mestre
Caeiro: “Provera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele / Poeta decadente
estupidamente pretensioso, / Que poderia ao menos vir a agradar”14.
Compraz-se, em “Opiário”, na enfermidade da sua “alma doente”: “É antes do ópio
que a minha alma é doente”, “Sou um convalescente do Momento”, “Sou doente e fraco”,
“Estes nervos são a minha morte”, “Não fazer nada é a minha perdição”, “nunca fiz mais
do que fumar a vida”. E, já a beirar o Surrealismo, este Poeta Decadente auto-retrata-se
com a exótica flor do absurdo a brotar-lhe da cabeça: “O absurdo, como uma flor da tal
Índia / que não vim encontrar na Índia, nasce / no meu cérebro farto de cansar-se”.
O absurdo é um ingrediente desta escola, abundantemente cultivado pelo autor
do primeiro Livro do Desassossego, contemporâneo de Orpheu (sim, porque há três
Livro(s) do Desassossego e três autores, embora nunca assim considerados – mas isso
são contos largos a que me vou abandonar noutro sítio).
Basta auscultar a alma desse primeiro autor do Livro para sentirmos que o
seu ritmo, assim como a sua expressão, são o oposto do contemporâneo “Álvaro
futurista”. É com o autor da referida crónica, contemporânea de Orpheu1, e com as
“almas doentes” dos poetas decadentes, “estupidamente pretensiosos” aí revelados,
nomeadamente o poeta decadente de “Opiário” que plenamente se identifica.
Nos palcos simultâneos de Orpheu e da obra pessoana travaram-se, afinal, várias
guerras: a dos Novos de Orpheu contra os Velhos da Renascença Portuguesa; a
dos Decadentes contra os Futuristas, os verdadeiros modernos, e vice-versa; a dos
Neo-pagãos contra os degenerados herdeiros do Cristismo, quer se auto-intitulassem
decadentes ou sensacionistas. A esta última categoria pertencia Pessoa ele próprio, o
chefe de escola do Sensacionismo, com seus diferentes ismos, mas também Álvaro
de Campos, apesar dos seus arroubos futuristas (“produtos românticos, nós todos”,
reconhece ser, num poema, por isso inevitavelmente da estirpe cristista, como Pessoa
declarou ser o Romantismo).

CONCLUSÃO: Curiosamente, o que predomina em Orpheu não é o estilo moderno


– “moderno” quer dizer inovador, em ruptura com o passado. É o Decadente, praticado

13 Inédito (creio.) Sê-lo-á aqui ou na revista Colóquio, em que acabo de também o inserir num artigo, se a sua
publicação preceder a deste livro.
14 CAMPOS, Á., 2013: 338 (poema de 15.4.1928).
Orpheu em tempo de guerra(s) 427

por Pessoa em “Pauis” e “Na Floresta do Alheamento”, as duas composições a partir das
quais a nova escola foi baptizada como “Paulismo” e “estilo alheio”. (Talvez Pessoa se
lembrasse, quando se arvorou em chefe de escola, que também o Impressionismo, na
pintura, assim tinha sido designado a partir de um quadro de Monet: “Impressions”).
Da mesma forma que esses dois textos ficaram inevitavelmente datados na obra
pessoana (Pessoa confessa na citada carta a Côrtes-Rodrigues que “Pauis” não é
“sério”), igual sorte tiveram os dos seus seguidores. Quem se debruça hoje sobre as
produções dessas “almas doentes” senão para as arrumar na prateleira das modas
revolutas? Ah! mas algo pode tornar interessante a exibida pose do poeta decadente:
lembrarmo-nos que, nos bastidores, Caeiro, o Grande Curandeiro, o xamã da tribo,
apregoava mezinhas!
Para alcançarmos o pleno entendimento – isto é, a plena fruição - do universo
pessoano, temos sempre que montar o estrado onde os seus textos evoluem e
interagem, encarnados pelas diferentes personagens do seu “drama em gente”. E o
mesmo aconselho que se faça em relação a Orpheu.
O melhor balanço da festejada revista deixo que seja Pessoa a fazê-lo, num texto
que não me lembro de ver citado:
“É só pelo inferior - o banal, o factício, o extravagante – que agimos sobre a nossa era.”
E apresenta o caso de dois grandes, Victor Hugo e Shakespeare, que foram apreciados
no seu tempo pelas suas fraquezas, não pelas suas verdadeiras qualidades: Hugo pela
“sentimentalidade falsa e fruste, pela declamação oca e pomposa, pela verbosidade
cantante”, Shakespeare pelo “seu golpe de espírito, extravagante e grotesco”, “como
entre nós hoje é um revisteiro”. E compara com o que se passou com “o nosso Orpheu”:

“Nós do Orpheu fazíamos, em nossa literatura, a expressão de estados complexos e


contraditórios da alma, e o fazíamos através duma linguagem complexa e contraditória
também, em que, para devidamente se exprimirem ideias anormais, se empregava uma
sintaxe anormal, epítetos que ninguém diria tinham que ver com os substantivos que
adjectivavam, e outros fenómenos assim. Ninguém sentiu a nossa verdade – a realidade
de sensibilidade que, nova e nossa, trazíamos: o que todos sentiram foi a extravagância
da expressão. E tivemos então os que riam de nós por nos não perceberem; e tivemos
os que nos seguiram por nos não perceberem também. Estes últimos imitavam em nós
precisamente o que em nós era exterior e por vezes acidental – o mesmo de que os outros
riam.” Mais adiante, conclui, magistralmente: “Age-se sobre ela [a própria época] não direi
pela inferioridade, mas, por certo, pela inferioridade da nossa superioridade.”15

15 Esp. Pessoano 76ª-36.


428 100 Orpheu Teresa Rita Lopes

Pessoa gostava de citar Goethe que escreveu que um homem de génio só pertence
ao seu tempo pelos seus defeitos – consideração que poderíamos usar para fazer o
rescaldo de Orpheu.
Quando Pessoa diz “nós,” no referido texto, pensa em quem? Não certamente
nos que não perceberam e por isso imitavam “o mesmo de que os outros riam” (“o
que em nós era exterior e por vezes acidental”). Este “nós” engloba apenas Mário de
Sá-Carneiro, Álvaro de Campos e Pessoa ele-próprio. Os outros foram, quase todos,
os que apenas imitaram “a extravagância da expressão”.
Afigura-se-me, por isso, indispensável, separar os que imitaram dos que criaram,
para desfazer equívocos – e, sobretudo, não andarmos por aí a querer convencer os
nossos estudantes de que tudo o que Orpheu apresenta é para ser estudado como
a Mensagem e Os Lusíadas. Nas guerras sempre latentes entre Velhos e Novos é
evidente o papel que nos será reservado…Convém que essas históricas revistas do
nosso histórico Modernismo, que continuamos a não saber o que é, não sejam por
eles integralmente deitadas para o lixo das velharias, com o Pessoa e o Sá-Carneiro lá
dentro…(É o mesmo que - como dizem os franceses – deitar fora a água do banho e a
criança avec…). Bem basta que o ensino da Mensagem esteja a ter, em muitos casos, o
mesmo papel de vacina que teve o dos Lusíadas, para mim, menina, através da divisão
de orações… Só anos depois do efeito passar consegui voltar ao nosso épico com
olhos de entender e amar.

Bibliografia

CAMPOS, Álvaro de (2013). Poesia, edição Teresa Rita Lopes. Porto: Porto
Editora.
Centauro (1982), edição fac-similada. Lisboa: Contexto, 1982.
LOPES, Teresa Rita (1985). Fernando Pessoa et le drame symboliste: héritage et
création. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian.
LOPES, Teresa Rita (1990). Pessoa por Conhecer. Lisboa: Ed. Estampa.
Modernista: Modernista (2013). Lisboa: edição IEMO.
PESSOA, F. (1946). Páginas de Doutrina Estética, selecção, prefácio e notas de
Jorge de Sena. Lisboa: Editorial Inquérito.
REIS, Ricardo (2003). Prosa, ed. Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio
&Alvim.
O modelo de cidade nos textos do Grupo de Orpheu,
de 1915 a 1917

Maria de La Salette Loureiro

Palavras-chave: Modernidade; Metrópole; Vanguardas; Máquina; Sujeito.


Resumo: Considerada por Eduardo Lourenço como símbolo da modernidade e por outros
autores como modelo de funcionamento de todas as vanguardas, a cidade, na sua dimensão
de metrópole, está presente nos textos produzidos pelos nomes mais importantes do grupo
do Orpheu, publicados ou não nas revistas Orpheu e Portugal Futurista, entre 1915 e 1917.
Com efeito, encontramos em vários textos do grupo um modelo urbano que corresponde a
um progresso técnico sem precedentes, que tem na máquina e nas multidões o seu expoente
máximo, que altera a dimensão, a forma e a vida das cidades e arrasta consigo a transformação
do homem. Os textos que referimos ilustram a situação do homem no turbilhão da cidade
moderna e exemplificam como a grande metrópole é o lugar ideal para «Sentir tudo de todas
as maneiras» e para o sujeito se diluir na multidão, aceder ao anonimato, perder a identidade,
«devir outro», quiçá «devir heterónimo». Paralelamente, surge também um novo conceito de
poesia e de Belo.

A cidade representada nos textos literários e nas obras artísticas das vanguardas do
início do século XX representa uma ruptura com o modelo da cidade tradicional e
apresenta-se como uma emanação da sociedade industrial, à qual vai buscar os seus
símbolos mais significativos: a máquina e as multidões. Entende-se aqui a cidade não
apenas como um lugar, mas antes como «la mémoire, les révolutions, les fondations,
les crises, ses murs, ses places, l’art d’y vivre encore ou de la déserter, les pouvoirs qui
s’y exercent, sans mesure semble-t-il, les hommes et les choses»1.
Este novo modelo de cidade engendra um novo tipo de homem e convoca um novo
conceito de poesia, os três factores que analisamos nesta comunicação.
O modelo citadino de que falamos aqui é obviamente a Metrópole que, segundo
L. Mumford, estende a lógica dos mecanismos da produção industrial a todos os
domínios da acção humana, sem qualquer excepção, pois «todas as bem-sucedidas
instituições da metrópole repetem, em sua própria organização, o gigantismo sem

1 AAVV, 1977: 9.
430 100 Orpheu Maria de La Salette Loureiro

meta do todo» (MUMFORD, L., 1982: 573). Também Manfredo Tafuri corrobora
esta opinião, ao considerar que «Não é apenas o poeta […]: é antes toda a cidade,
objectivamente estruturada como máquina funcional para a extracção de mais valia
social, que reproduz, nos próprios mecanismos de condicionamento, a realidade
dos modos de produção industrial» (TAFURI, M., 1985: 58). Paralelamente, para
este autor, «As vanguardas históricas surgem e sucedem-se seguindo a lei típica da
produção industrial: a sua essência é a contínua revolução técnica. Para todas as
vanguardas – e não apenas pictóricas – a lei da montagem é fundamental» (id.: 59).
A nosso ver, o elemento-símbolo que comanda o ritmo da «Ode Marítima», o
volante, acelerando e desacelerando, é a este título significativo2.
A cidade, agora Metrópole, adquire, assim, um papel fundamental na Modernidade,
configurando-se como o seu mito mais significativo, na opinião de Eduardo Lourenço
(LOURENÇO, E., 1987: 183). Na verdade, o progresso técnico, toda a convulsão
social gerada pela industrialização e consequente urbanização nutriram a Literatura e
as Artes a partir de meados do século XIX, e, assim, «A metrópole, lugar da alienação
absoluta, é, não por acaso, o centro das elaborações de vanguarda» (TAFURI, M.,
1985: 12).
Com efeito, a vida moderna, sobretudo das grandes capitais, instituiu-se como tema
de muitas das obras que mais prestígio obtiveram, bem como de alguns movimentos
culturais de vanguarda, gerando atitudes de empatia entusiástica ou de rejeição radical,
já designadas também de «Modernolatria» e «Desespero Cultural»3 (BERMAN, M.,
1989: 148), visões antitéticas, que se encontram já na obra de um dos grandes nomes
do início da Modernidade, Baudelaire, conforme constata Marshall Berman.
Uma das características da vida moderna é a experiência da multidão, do «bain
de multitude», que W. Benjamin chama de «expérience du choc»4 (BENJAMIN,
W., 1971: 234) que proporciona o anonimato, o isolamento, mas também uma
«ineffable orgie» uma «bebedeira», que permite ao poeta adoptar «comme siennes
toutes les professions, toutes les joies et toutes les misères que la circonstance lui
presente» (BAUDELAIRE, C., 1980: 170). Para o poeta francês, «Le poète jouit de
cet incomparable privilège, qu’il peut à sa guise être lui-même et autrui. Comme ces
âmes errantes qui cherchent un corps, il entre, quand il veut, dans le personnage de

2 Cf. GIL, J., s.d.: 77 e ss.


3 Cf. Pintus Hulten (1966). Modernolatry. Estocolmo: Modena Musset e Fritz Stern (1961). The Politics of
Cultural Despair: A Study into the Rise of the Germanic Ideology. University of California, referidos por
Marshall Berman.
4 BENJAMIN, W., 1971: 122-138 (cap. «Paris, capitale du XIX siècle») e 224-274 (cap. «Sur quelques thèmes
baudelairiens»).
O modelo de cidade nos textos do Grupo de Orpheu, de 1915 a 1917 431

chacun» (ibid.). Neste sentido, a cidade surge assim como o lugar privilegiado do
desdobramento do Sujeito, portanto, da despersonalização. Também para este autor, o
progresso técnico, característico da modernidade, contém em si próprio os germes da
destruição (id.: 418), confirmando a ideia de Marx, segundo a qual, nesta época, tudo
está impregnado do seu contrário (apud LOUREIRO, L. S., 1996: 44-45).
No que respeita à «experiência do choque» causada pelas multidões, uma
característica da condição urbana, W. Benjamin considera que a aquisição de
automatismos amortece o choque, tal como o operário fabril adapta os seus
movimentos às exigências da máquina, tornando-os automáticos (apud BENJAMIN,
W., 1971: 251-253). Na mesma linha se situa Tafuri, ao considerar que «agora o
problema é ensinar a não ‘sofrer’ esse choque, mas a absorvê-lo, a interiorizá-lo como
inevitável condição de existência» (TAFURI, M., 1985: 61).
Acresce que «a metrópole moderna gerou também um novo tipo de heroísmo. Os
heróis tornaram-se anti-heróis. O maravilhoso foi substituído. Vem da vida quotidiana
da cidade, conforme reconhecerá mais tarde Almada Negreiros, no seu «Ultimatum»
(LOUREIRO, L. S., 1996: 45).
Como referem vários autores5, a grande metrópole e as guerras que assolaram a
Europa na primeira metade do século XX projectam-se nos movimentos de vanguarda
e reflectem-se nas visões eufóricas ou disfóricas da cidade que as Artes nos oferecem.
Neste sentido, Marshall Berman considera que os temas que definem o Modernismo são:

a glória da energia e o dinamismo modernos, os estragos da desintegração e do niilismo


modernos, a estranha intimidade entre eles; a sensação de estar aprisionado numa vertigem
em que todos os valores se confundem, explodem, decompõem, recombinam; uma incerteza
fundamental sobre o que é essencial, o que é válido, até mesmo o que é real; a combustão
das esperanças mais radicais, no meio da sua radical negação (BERMAN, M., 1989: 133).

Seguindo uma perspetiva marxista, este autor demonstra que todas estas
características brotam dos movimentos e pressões da vida económica moderna (ibid.).
Assim, «Num mundo em que «Tudo o que é sólido se dissolve no ar!»6, o que resta
ao Sujeito? Enfrenta tudo isso, integra-se na voragem, maquiniza-se, épouse la foule,
ou refugia-se na sua Torre de Marfim?» (LOUREIRO, L. S., 1996: 50).
O caminho apontado por Baudelaire indica que o artista deve mergulhar «dans
la foule comme dans un immense réservoir d’électricité», devendo, portanto, utilizar

5 Cf. Zéraffa, M., 1977 e KRISINSKI, W., 1977; também TADIÉ, J.-Y., 1992.
6 Título do livro de Berman, que reproduz uma frase do Manifesto Comunista, de Marx e Engels.
432 100 Orpheu Maria de La Salette Loureiro

e recriar os produtos gerados pelos avanços técnicos e científicos, sugestão que será
concretizada pelas vanguardas artísticas do século XX:

na pintura cubista, na colagem e na montagem, no cinema, na corrente da consciência


do romance moderno, no verso livre de Eliot, Pound e Apollinaire, no futurismo, no
vorticismo, no construtivismo, no dadaísmo, nos poemas que aceleram como automóveis,
nas pinturas que explodem como bombas (BERMAN, M., 1989: 159).

Em suma, os dramas gerados pela cidade grande serão combatidos «pelas


vanguardas do século XX, que procuram anular o Sujeito individual, optando por
uma atitude de abdicação, de capitulação e não de resistência (Veja-se Bernardo
Soares7 e A. de Campos, na sua face lunar)» (LOUREIRO, L. S., 1996: 51-52), pois «A
salvação já não se encontra na ‘revolta’ mas na rendição incondicional» (TAFURI,
M., 1985: 53).
Neste sentido, as vanguardas submetem-se à ideologia do trabalho e defendem que
apenas uma Humanidade que «se reconhece como parte de um Plano Global, e como
tal aceite funcionar como engrenagem de uma máquina global, pode resgatar a própria
‘culpa original’» (TAFURI, M., 1985: 53), (apud LOUREIRO, L. S., 1996: 51-52).
No caso do Futurismo, lembramos que, nos seus Manifestos e nas suas obras, este
refere explicitamente a cidade, as multidões, os trabalhadores, a máquina. Com efeito,
para os Futuristas italianos, a cidade é o lugar onde se realizará o Homem Moderno,
o Homem do Futuro e é também o palco onde têm lugar as «experiências futuristas».
Ela é vista como Cidade-Espectáculo, com as suas luzes artificiais, as montras, os
reclamos luminosos, o intenso movimento das multidões, os ruídos variados, as cenas
de violência, de prazer, o erotismo, etc.; ela é Cidade-Trabalho, com toda a agitação e o
ritmo do trabalho industrial, motivo presente já no 1º Manifesto; é uma Cidade-Utopia,
«um imenso estaleiro, tumultuoso, ágil, móvel, dinâmico em todos os aspectos e a casa
futurista (como) uma gigantesca máquina», que se caracteriza pela transitoriedade e
pela caducidade. «Cada geração deverá fabricar a sua cidade», escreve Sant’Elia8. O
símbolo que melhor a caracteriza é o andaime (apud LOUREIRO, L. S., 1996: 53).

7 «Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite, mas há três maneiras de o fazer, [...]. Quando essa
alma, porém, verifica que lhe [é] impossível tal realização, que não tem forças para a conquista de todas as
partes do Todo, tem dois outros caminhos que siga ‒ um, a abdicação inteira, a abstenção formal, completa,
relegando para a esfera da sensibilidade aquilo que não pode possuir integralmente na região da actividade e
energia. Mais vale supremamente não agir que agir inutilmente, fragmentariamente, imbastantemente, como
a inúmera supérflua maioria inane dos homens» (PESSOA, F., 1986: 269-270).
8 A. Sant'Elia (1979). «A Arquitectura Futurista». Antologia do Futurismo Italiano. Lisboa: Editorial Vega, pp.
153-4.
O modelo de cidade nos textos do Grupo de Orpheu, de 1915 a 1917 433

Segundo a análise de Blumenkranz-Onimus, ela é também o local de diluição do


Sujeito, de dissolução do EU, o que não gera qualquer angústia, pois, para eles, o
indivíduo é imanente à cidade, integrando-se ambos no movimento universal do
cosmos. Também M. Zéraffa considera que «A l’égard du kaléidoscope urbain, le
futurisme, le construtivisme, le dadaïsme n’éprouvent pas l’aversion qui caractérise
les romanciers et plusieurs poètes» (ZÉRAFFA, M., 1977: 15).
Entre nós, na época de Orpheu, nos vários textos reunidos sob o título «Sobre
‘Orpheu’, Sensacionismo e Paulismo», é Fernando Pessoa que analisa os três pontos
que acima enumerámos: 1) o estádio civilizacional que a Europa atravessava, com o
inerente modelo de cidade; 2) o tipo de Homem que lhe corresponde; 3) «a relação
entre a arte moderna e a vida moderna» (PESSOA, F., 1966: 193).
Segundo esses textos, a chamada «Hora Europeia» (id.: 167), «Hora de fogo e
de treva» (id.: 165), caracteriza-se pelos avanços da ciência e da técnica e das suas
aplicações na indústria, de que resulta o aumento da actividade comercial. A estes
elementos acrescenta-se «O aumento das facilidades de transporte, o exagero
das possibilidades do conforto e da vantagem, o acréscimo vertiginoso dos meios
de diversão e de passatempo» (PESSOA, F., 1966: 164). Estes aspectos promovem
intercâmbios vários e geram o chamado internacionalismo ou cosmopolitismo (id.:
197), de que já falava Marx, que alarga o estado de espírito provocado pelo progresso
industrial e comercial a todos os países, mesmo aqueles que ainda não atingiram o
mesmo nível de desenvolvimento.
De todos estes fatores combinados, resulta uma mentalidade acentuadamente
mercantilista, em que predomina o «amor ao luxo» e a «degradação moral» (id.:
196). Com efeito, este estádio civilizacional, ao influenciar as emoções e o psiquismo
individual, gerou um novo tipo de homem, pois:

‒ todas essas circunstâncias, combinadas, entrepenetradas, agindo quotidianamente,


criaram, definiram, um tipo de civilização em que a emoção, a inteligência, a vontade,
participam da rapidez, da instabilidade e da violência das manifestações propriamente,
diariamente típicas do estádio civilizacional. Em cada homem moderno há um neurasténico
que tem de trabalhar. A tensão nervosa tornou-se um estado normal na maioria dos
incluídos na marcha das cousas públicas e sociais. A hiperexcitação passou a ser regra (id.:
164).

Neste contexto, o ser humano, integrando em si os elementos que constituem a


complexidade da vida moderna, tornou-se «passento» e Álvaro de Campos poderá
ser o seu paradigma:
434 100 Orpheu Maria de La Salette Loureiro

Em cada alma giram os volantes de todas as fábricas do mundo, em cada alma passam todos
os comboios do globo, todas as avenidas de todas as grandes cidades acabam em cada uma
das nossas almas. Todas as questões sociais, todas as perturbações políticas, por pouco que
com elas nos preocupemos, entram no nosso organismo psíquico, no ar que respiramos
psiquicamente, passam para o nosso sangue espiritual, passam a ser, inquietamente, nossas
como qualquer cousa que seja nossa (id.: 167).

Pessoa sintetiza os dois primeiros pontos que indicámos, mostrando as contradições


que afetam o primeiro:

Temos a decadência proveniente da falência de todos os ideais passados e mesmo


recentes. Temos a intensidade, a febre, a actividade turbulenta da vida moderna. Temos,
finalmente, a riqueza inédita de emoções, de ideias, de febres e de delírios que a Hora
europeia nos traz (ibid.).

Conclui, por isso, que, neste estado de coisas, à Arte se apresentam dois caminhos
possíveis:

1) ou cultivar serenamente o sentimento decadente, escrupulizando em todas as cousas que


são características da decadência ‒ [...];
2) ou, fazendo por vibrar com toda a beleza do contemporâneo, com toda a onda de
máquinas, comércios, indústrias (...) (id.: 167-8).

A segunda hipótese corresponde ao modelo de cidade que aqui tratamos e


encontramo-la em Orpheu, Portugal Futurista e outros textos da mesma época.
Apesar de, como escrevemos noutro lugar (LOUREIRO, L. S., 1996), a cidade
de Lisboa ocupar um espaço muito significativo na obra de Almada Negreiros e
Fernando Pessoa, neste caso, sobretudo nos textos de Álvaro de Campos e Bernardo
Soares, a capital portuguesa, devido ao atraso civilizacional do país, não se enquadra
no modelo referido e, por isso, está praticamente ausente dos textos manifestamente
vanguardistas do grupo de Orpheu. Prova disso é o facto de a «Ode Triunfal», de
Álvaro de Campos, ser datada de Londres, e o conto «K4 Quadrado Azul», de Almada
Negreiros, ser datado de «LISBOA 1917 LONDRES 1920» (NEGREIROS, J. A.,
1989: 35), tendo estes elementos paratextuais a função de mostrar bem «a distinção
do viver em Londres e do viver em Lisboa» (id.: 21). A este respeito, Melo e Castro
explica que «O futuro futurista é, em Portugal, um futuro-desejo, mais que um
futuro-modelo de desenvolvimento» (CASTRO, E. M., 1980: 45).
O modelo de cidade nos textos do Grupo de Orpheu, de 1915 a 1917 435

É na «Ode Triunfal» e na «Ode Marítima», publicadas em Orpheu 1 e 2,


respetivamente, e em outros textos da fase sensacionista, de Álvaro de Campos, em
«Manucure», de Mário de Sá-Carneiro, publicada em Orpheu 2, fugazmente, no
«Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX», de Almada Negreiros,
publicado no Portugal Futurista, que encontramos várias características que integram
o modelo de cidade referido inicialmente, perspectivado como realidade fora de
Portugal ou como desejo a concretizar-se num futuro ambicionado. Este modelo é
em grande parte coincidente com aquele que é apresentado nos vários Manifestos do
Futurismo Italiano.
Quanto a Almada, é no «Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século
XX» que intima os portugueses à criação desse modelo, apelando:

É preciso criar e desenvolver a actividade cosmopolita das nossas cidades e dos nossos
portos.
É absolutamente necessário resolver o maravilhoso citadino da nossa capital até ser a maior
ambição dos nossos dialectos e das nossas províncias.

Mário de Sá-Carneiro desenvolve esse modelo em «Manucure», mas na sua ficção, já


antes da experiência de Orpheu afirma a sua febre do Novo e o seu amor «ao progresso,
à civilização, ao movimento citadino, à actividade fabril contemporânea!...», que o
protagonista de A Confissão de Lúcio encontra em Paris (p. 83). As suas cidades são
«rútilas de Europa, largas, pejadas de trânsito e movimentos ‒ rendez-vous cosmopolitas,
farfalhantes de acção» (SÁ-CARNEIRO, M., 1992: 251). E, como escrevemos noutro
lugar (LOUREIRO, L. S., 1996: 269), «é já em textos de 1906 que encontramos o seu
apreço fervoroso pelos Grandes Meios, bem como a indicação de uma série de valores
que a eles estão ligados e que ele coloca ao mesmo nível:

Eis pelo que sempre cataloguei, excitantemente e a par, os corpos nus, esplêndidos; as
cidades tumultuosas de Europa ‒ os perfumes, os teatros rutilantes, atapetados a roxo ‒ as
paisagens de água, ao luar ‒ os cafés de ruído, os restaurantes de noite, as longas viagens
‒ o murmúrio contemporâneo das fábricas, das grandes oficinas ‒ a loucura e as bebidas
geladas ‒ [...]9.

Em «Manucure», o sujeito poético rende-se à «beleza futurista das mercadorias!», a


todo o aparato das embalagens, com as suas inscrições, agora emocionantes e artísticas,

9 - Conto incluído no livro Céu em Fogo, p. 68.


436 100 Orpheu Maria de La Salette Loureiro

e a toda a actividade de importação e exportação, com grandes movimentações nos


cais e nas gares.
Os seus olhos «futuristas, «cubistas, «interseccionistas», «ungidos de Novo»,
extasiam-se com toda a revolução tipográfica, elevada também à categoria de nova
estética, e a sua alma entra em euforia «com os novos tamanhos e formas de caracteres,
a pontuação, as vinhetas, os reclamos das páginas dos anúncios, e tudo o mais que a
indústria tipográfica permite» (LOUREIRO, L. S., 1996: 279).
Como se pode constatar, encontra-se em «Manucure» um novo conceito de Beleza
e de poético, que brota da nova cidade, dos novos elementos que a constituem e do
movimento veloz que os anima. É a «Beleza-sem-Suporte», que se concretiza na
«Beleza Numérica», na «beleza alfabética pura», na «estética futurista ‒ up-to-date
das marcas comerciais,/ Das firmas e das tabuletas!...», que se derrama na página
em branco, em colagens e onomatopeias, que antecipam a poesia visual e concreta
dos anos 60.
No que respeita ao amor pelas grandes cidades, como o próprio reconhece em carta
a Fernando Pessoa, só mesmo o Álvaro de Campos da «Ode Triunfal» o ultrapassa
(SÁ-CARNEIRO, M., 1992: 222).
Com efeito, à época de Orpheu, é sobretudo Álvaro de Campos que se encarrega
de construir e cantar o novo modelo de cidade de forma mais completa, mostrando
a sua complexidade, as suas contradições internas e os efeitos que produz sobre os
citadinos, bem como as alterações dos conceitos de Belo e de poético.
Apesar de já nos textos da fase decadentista encontrarmos o apreço pelas grandes
cidades, é efectivamente na fase sensacionista que este poeta vibra com a Cidade
Grande e toda a sua agitação febril. É desse «Momento estridentemente ruidoso e
mecânico» (PESSOA, F., 1993: 92), que nos fala uma parte significativa da poesia deste
heterónimo de Pessoa, dividido entre Caeiro e a técnica (id.: 288), entre a euforia e
a depressão, a vitória e a derrota, portanto, não aderindo plenamente ao progresso
cantado, que lhe provoca uma contradição interior.
Como já escrevemos em estudo anterior, «Campos envaidece-se da sua época,
das ‘coisas modernas e úteis, /[...]/ Com as fortes coisas imediatas, modernas,
comerciais, verdadeiras’. Maravilha-se com a ‘vida marítima moderna,/ Toda
limpeza, máquinas e saúde!’, com ‘Todos os elementos da actividade comercial
de exportação e importação/ Tão maravilhosamente combinando-se/ Que corre
tudo como se fosse por leis naturais,/ Nenhuma coisa esbarrando com a outra!’.
Extasia-se com a vida mundana, intelectual e sentimental, com a aproximação de
raças e a anulação das distâncias, permitidas pelos novos meios de comunicação,
ultra-rápidos e ultra-luxuosos, possibilitando ao Homem a realização de muito mais
sonhos no mesmo espaço de tempo» (LOUREIRO, L. S., 1996: 116).
O modelo de cidade nos textos do Grupo de Orpheu, de 1915 a 1917 437

O Momento civilizacional é nos apresentado nos textos sensacionistas, de forma


febril, torrencial e vertiginosa. Perante o leitor desfilam os novos e velozes meios de
transporte, movidos «a vapor, a gás, a óleo, a electricidade». Os novos processos de
construir, bem como alguns dos seus resultados («túneis, canais, Panamá, Kiel, Suez!»)
e os novos processos de matar («Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos,
aeroplanos!») também não são esquecidos (apud LOUREIRO, L. S., 1996: 113).
Nesta sua face/ fase sensacionista, Álvaro de Campos exprime, assim, a «intensidade,
a febre, a actividade turbulenta da vida moderna» (PESSOA, F., 1966: 167) e «A sua
emoção vulcânica, a sua violência de sensação» (LOPES, T. R., 1990: 237) adequam-se
à «riqueza inédita de emoções, de ideias, de febres e de delírios que a Hora europeia
nos traz» (PESSOA, F., 1966: 167).
Em termos teóricos, a relação de Campos com o Progresso e com a cidade assume
um caráter de naturalidade. Para ele, uma árvore e uma máquina equivalem-se e o
mesmo se passa com uma cidade e uma aldeia, mas a sua preferência é confessadamente
pela Máquina e pela Cidade: «A minha sensibilidade predispõe-me a sentir a machina
mais do que a árvore, a cidade mais do que o campo» (LOPES, T. R., 1990: 466).
Porém, apesar do tom exaltado e efusivo do canto de Campos, a sua metrópole
é-nos apresentada como partilhando do caráter dialético da Modernidade. Este canto
mostra os contrastes entre a opulência e a miséria, o progresso técnico-científico e a
regressão social. O sujeito poético surge-nos igualmente dividido entre uma adesão
entusiástica a este novo mundo e uma atitude de reserva e aflição, às vezes, com
alguma nostalgia de um mundo mais próximo da natureza, como acontece na «Ode
Triunfal».
A situação do homem no meio dos ritmos da cidade parece-nos magistralmente
ilustrada pelo excerto de «Passagem das Horas» que a seguir reproduzimos, e, em
nosso entender, é um bom exemplo dos «poemas que aceleram como automóveis»,
de que fala Berman:

Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol na rua,


Aros caixotes trolley loja rua vitrines saia olhos
Rapidamente calhas carroças rua atravessar rua
Passeio lojistas “perdão” rua
Rua a passear por mim pela rua por mim
Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá
A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos das montras,
O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua
O meu passado rua estremece camião rua não me recordo rua
Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim
438 100 Orpheu Maria de La Salette Loureiro

Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua


Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés
Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,
Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua
Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo (PESSOA, F., 1993: 175-6).

Como se pode verificar, «O movimento ‘novo’ vem, pois, revolucionar a perceção


da realidade e interferir no psiquismo do poeta» (LOUREIRO, L. S., 1996: 86).
Constata-se, então, que, como em toda a modernidade, também esta adesão de
Campos à máquina e ao progresso é ambivalente e contraditória. De facto, «ela nunca
se realiza plenamente. Ela acontece quase sempre envolta em raiva, tornada espasmo,
histerismo» (LOUREIRO, L. S., 1996: 118), como, aliás, bem cedo analisaram J. Prado
Coelho e Eduardo Lourenço. Para o primeiro, o Canto da Máquina, da Energia e do
Progresso é uma atitude forçada, forjada pela imaginação e pela inteligência (apud
COELHO, J. P., 1980: 62). O segundo chamou-lhe o «des-cantor» da Máquina, da
Electricidade, e outras incarnações do Moderno (apud LOURENÇO, E., 1981: 87).
Porém, é o próprio Campos que esclarece num texto teórico: «Creio na machina
porque tenho que a acceitar do mesmo modo que a arvore» (LOPES, T. R., 1990:
462), confirmando a ambivalência que está já presente na abertura da «Ode Triunfal».
Nos versos «À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica/ Tenho febre e
escrevo. (PESSOA, F., 1993: 87), os vocábulos «dolorosa» e «febre» mostram o carácter
negativo experimentado ao nível da sensibilidade. O mesmo acontece no verso «Ao
ruído cruel e delicioso da civilização de hoje» (id.: 92), onde os adjectivos exprimem
a contradição referida.
Esta atitude é acentuada quando, na «Saudação a Walt Whitman», o sujeito poético
denuncia o «carácter artificial, externo, do exaltante canto à Máquina e ao Progresso»
(LOUREIRO, L. S., 1996: 121) e considera esse elogio como «uma doença que dá
pelo nome de ‘mal de Whitman’, a ‘universalite’, uma ‘doença de saúde’ de que o autor
americano foi o ‘primeiro doente perfeito’» (ibid.).
Assim, em Campos, de um lado, temos a exaltação da grande cidade com as suas
luzes, a dimensão, o ruído, o bulício, a «foule» (PESSOA, F., 1993: 88), «rio multicolor
anónimo» (id.: 91); temos o consumismo da época, decorrente dos grandes progressos
industriais, com todas as suas consequências positivas e negativas (apud LOUREIRO,
L. S., 1996: 82); temos algumas figuras caras ao pendor provocatório futurista (ibid.).
Mas, do outro lado, temos a degradação moral e económica, que se verifica nos
escândalos e na corrupção da política e da alta finança (PESSOA, F., 1993: 89); temos
«à gente ordinária e suja’, com o seu rosário de misérias, engendradas também pela
O modelo de cidade nos textos do Grupo de Orpheu, de 1915 a 1917 439

Cidade Grande: os roubos, a pobreza, a prostituição, os palavrões, o trabalho duro, as


condições infra-humanas, com que o poeta se comove» (LOUREIRO, L. S., 1996: 83).
Em suma, a grande cidade, lugar de multiplicidades, simultaneidades e coexistência
dos contrários, é o contexto ideal para Campos «sentir tudo de todas as maneiras» e
«Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos» (PESSOA, F., 1993: 165).
Como era previsível e se depreende do texto de Pessoa acima citado, o progresso
técnico e científico e toda a vida moderna produziu alterações nos conceitos de
poético e de Belo.
De acordo com a nova estética vanguardista, estes conceitos alargam-se agora
indefinidamente, na senda, aliás, de Cesário Verde e de Walt Whitman.
No que concerne ao conceito de poético, ele estende-se agora à própria cidade,
como afirma Pierre Sansot em Poétique de la Ville: «il naissait, de l’affairement, une
poésie spécifique de la ville: la cité, comme une articulation de rythmes, comme un
faisceau d’actions, comme une fête frénétique où aucun rouage ne demeure en repos»
(SANSOT, P., 1988: 172).
Mas é o próprio Pessoa que muito cedo assume esta opinião, quando afirma:

«Há poesia em tudo ‒ na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a na cidade
também ‒ [...] há poesia na trepidação dos carros nas ruas; há poesia em cada movimento
ínfimo, vulgar, ridículo, de um trabalhador que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um
talho» (PESSOA, F., 1966: 14).

Poeticamente, como seria de esperar, é Álvaro de Campos que assume estes


novos conceitos. É ele que nos fala da «Poesia do impeto e do giro, / Da vertigem e
da esplosão, / Poesia dynamica, sensacionista, […] (PESSOA, F., 1993: 192), que nos
informa de que «Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas / Com a sua
poesia também» (id.: 123), e que nos desafia, propondo-nos: «Venham dizer-me que
não há poesia no comércio, nos escritórios! / Ora, ela entra por todos os poros... Neste
ar marítimo respiro-a» (id.: 124).
Em conclusão, pensamos que a nossa análise demonstra que há nos textos do
grupo de Orpheu um novo modelo de cidade, a metrópole, que dá origem a um novo
tipo de homem e se projecta nas Artes e nas Letras, gerando novos conceitos de Belo
e de poesia.
440 100 Orpheu Maria de La Salette Loureiro

Bibliografia

Bibliografia Ativa
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Portugal Futurista (1990). Lisboa: Contexto Editora.
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O modelo de cidade nos textos do Grupo de Orpheu, de 1915 a 1917 441

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Conferência

Eduardo Lourenço1

Eu escrevi algumas coisas há vários anos sobre Fernando Pessoa, mas sempre com
o sentimento de que estava flagelando as águas de um rio, com os excessos, impotente.
Porque o rio dele é de uma outra natureza, um rio paradoxalmente silencioso, na
verdade, difícil e impossível… não de ouvir o ruído, mas de estar à altura desse ruído
que ele produz. Creio que Fernando Pessoa – ele que sofreu tantas influências, o que
já foi dito aqui por muitos dos que intervieram no nosso colóquio – teve a sorte, ou
o destino (que lhe concedeu essa possibilidade), de frequentar um universo diferente
do nosso na sua educação escolar. E o que ele encontrou aí – grandes poetas ingleses,
particularmente românticos, entre outros – foi uma das figuras mais ilustres – senão
a mais ilustre, tirando os grandes nomes da Antiguidade – chamado Shakespeare. Ele
é um filho de Shakespeare. E mesmo não só um filho de Shakespeare pela imersão,
pelos traços que os textos deste autor – que ele deveria conhecer mais ou menos de
cor, como conhecia também um pouco os de Mallarmé – deixaram na sua obra; é
que a obra de Pessoa é, de facto, uma obra shakespeariana. Se tivéssemos de escolher
algumas das imortais figuras de Shakespeare, incluiríamos um Hamlet e um momento
hamletiano por excelência, que é o momento em que ele entra em cena, com um livro
na mão, e Polónio pergunta-lhe o que é que ele está lendo… Como todos sabem, a
resposta famosa foi: “Words, words, words…”, palavras, palavras, palavras…
Ora, é justamente este o problema: Pessoa é uma figura hamletiana, mesmo
biograficamente falando. Não teve um pai assassinado, como Hamlet, mas teve um
pai que perdeu cedo, jovem, e não teve uma mãe que o traiu, propriamente dito,
mas que o fez simbolicamente: levou-o com ela para África e, como todos sabemos,
depois do seu regresso a Portugal, esteve dela separado durante muito tempo. Sempre
fiquei muito admirado com o facto de que a obra que me influenciou mais num certo
momento – além da publicação das obras de Pessoa na famosa antologia de Casais
Monteiro – tivesse sido, como naturalmente é comum a todos nós pessoanos, a obra
de Gaspar Simões, mesmo através dos tempos. Seja quais forem os defeitos que se
lhe possam atribuir por quem seja mais exigente e tem outro tipo de sensibilidade, a
verdade é que foi ele quem colocou a chave de interpretação biográfica, psicológica e

1 Gravação por Rui Sousa (CLEPUL-FLL) e transcrição por Sofia Santos (CLEPUL-FLL), a quem os
organizadores muito agradecem.
444 100 Orpheu Professor Eduardo Lourenço

de sensibilidade na sua relação com a mãe e nos problemas de distância, ou distância


inventada por ele próprio; a ponto de que n’ O Livro do Desassossego, como sabemos,
se declara órfão, um pouco para ficar com um destino semelhante, fraterno, ao do seu
amigo morto, Sá-Carneiro. E depois há Ofélia, a terceira personagem: essa irreal e real
ao mesmo tempo, mas que torna difícil a passagem rápida dessa inscrição simbólica
do tipo biográfico, imaginário, para um poeta de Orfeu que ele foi, com outros seus
companheiros. Porque Orfeu é um poeta da tragédia – a do amor perdido –, mas ao
mesmo tempo da aventura única de poder descer aos Infernos para recuperar esse
amor perdido, morto. Mas a primeira figura de Orfeu, que foi ontem evocada, o seu
perfil, é o símbolo, a encarnação, da poesia mesma, da música, do canto, das artes em
geral; sobretudo do canto como celebração. É um perfil não de criador da realidade,
mas que tem o dom divino de dar à realidade um charme, um encanto, uma sedução
que faz dele a encarnação do mito da Poesia, da Música, das artes em geral. É paradoxal
que os jovens de Orfeu – partindo, como sabem, da ideia de Montalvor – se tenham
assim rotulado. Como é que assim se intitula uma revista que passou a ser logo a
partir do primeiro e segundo números a encarnação de uma nova fase da cultura
poética moderna e mesmo uma expressão exasperada e publicitária do espírito da
Modernidade? Modernidade essa que foi inventada por nós enquanto tal, enquanto
figura literária a propósito, não só da poesia anterior, sobretudo, representada por
Baudelaire, autor que já tem em conta aquilo é que característico da Modernidade, do
espírito novo, e que na sequência das revoluções modernas, sobretudo da Revolução
Francesa, representava um pouco o espírito do Ocidente em geral, tornando-se depois
num único espírito. Juntamente com Baudelaire, poderemos falar de um poeta como
Rimbaud, para quem também a exigência de ser moderne era capital, mais exasperada
e mais violenta, mais contestatória, mais selvagem – “misticamente selvagem”, como
disse Claudel – do que a do próprio Blaudelaire. Regressando a Orpheu, a verdade
é que é interessante pensar que estes poetas vocalizaram o grito da Modernidade,
entre nós título do mito intemporal, do mito que em si próprio não é moderno no
sentido baudelairiano ou de Rimbaud, e todavia acertaram na escolha do título
da revista. Porque aquilo que Orpheu representa é qualquer coisa que está fora de
qualquer temporalidade histórica, cultural, como nós nos representamos nas nossas
classificações estéticas ou culturais ou históricas. Na verdade, a essência de Orpheu é,
pura e simplesmente, a daquele que, pela sua história, pelo seu amor por Eurídice e
pelo drama que vai imaginar ou encarnar depois da sua morte, se torna expressão da
condição humana em geral, de seres para a morte que nós somos; é mesmo o único
combate, que nem pode ser verdadeiramente pensado e dito, porque fica fora daquilo,
é da ordem da razão – embora a razão, pela sua vontade de tudo compreender, seja
incapaz de ler aquilo que é o mistério dos mistérios, sobretudo ao quanto esse mistério
Conferência Professor Eduardo Lourenço 445

diz respeito, àquilo que nos define mais profundamente, que é a relação de amor que
nos constitui, como nossa identidade virtual infinita.
Agora, paradoxalmente, em termos míticos e, ao mesmo tempo, biográficos,
esse Orpheu – pelo menos para quase todos eles – era um Orpheu sem Eurídice.
Talvez para Almada Negreiros se possa imaginar uma Eurídice possível, mas para
os outros não: todos eles tiveram uma grande dificuldade em viver esse laço, ao
mesmo tempo natural e cultural característico do Ocidente, tal como ele é vivido na
nossa civilização judaico-cristã (ou ex-civilização judaico-cristã, já não sei… mas até
agora era assim). A verdade é que esse mito do amor tal como a nossa civilização o
imaginou, o construiu, o ofereceu, e em volta do qual praticamente não só a Poesia
mas toda a ficção gira, é único, não há outro tema; provavelmente nunca haverá
outro. A verdade é que nenhum dos poetas de Orpheu parece ter tido um problema
fundamental da sua existência que o confrontasse com o outro, como duplo de
si mesmo, ou espelho, em todo o caso, de si mesmo. Nós não recebemos a nossa
identidade, nós somos nós, nos chamamos a nós próprios. No texto bíblico – que
é o texto por excelência do Ocidente até hoje –, é o homem criado por Deus que é
encarregado de nomear tudo quanto o cerca, todas as coisas da Criação, mas não se
nomeia a si mesmo, é chamado, é nomeado, como feito terra, mas essa nomeação é
feita por Deus. A nossa nomeação enquanto seres humanos é aquela que nos vem
do outro. Provavelmente, o problema, ao mesmo tempo de ordem subjetiva e de
ordem poética, de todos, ou quase todos, os nossos poetas de Orpheu foi o de não
se terem sentido nomeados por outra entidade que os confirmasse na sua própria
identidade irredutível e única. Mas daí até se inventar uma entidade que possa ser
considerada como verdadeira, autêntica, que correspondesse, ainda numa perspetiva
bíblica, àquilo que nós somos como imagem, como absoluto de Deus, vai uma grande
distância. Mas essa crise identitária é, de facto, ao mesmo tempo, não a crise de um
momento particular da nossa civilização enquanto moderna, mas qualquer coisa que
sucedeu ao longo dos séculos.
Um dos grandes filósofos (ainda que discutíveis) que maior influência exerceu
sobre essa tribo especial que são os filósofos (particularmente no Ocidente), chamado
Heidegger, disse que a questão fundamental da nossa cultura até hoje foi não só o
que ele chamou o esquecimento do ser, mas também o facto de que deixámos de
poder, ou de saber, dar um nome àquilo que é o nosso próprio fundamento, aonde
estamos enraizados, àquilo que nós somos; se não somos, vivemos numa espécie de
vertigem do que somos, vertigem de nos confrontar com qualquer coisa que não tem
nome mas que nós nomeamos chamando ‘nada’. Durante muitos séculos, fugimos a
esta espécie de vertigem, até que houve um momento estranho – que é um momento
quase shakespeariano, porque é em Shakespeare que se encontra a expressão –, depois
446 100 Orpheu Professor Eduardo Lourenço

do momento em que a Civilização Ocidental conhece um novo Nascimento (por isso


mesmo é que se chamou Renascimento – quer dizer pura e simplesmente outra vez o
seu momento helénico, o seu momento de plenitude), que essa nova luz se obscurece,
porque os conflitos na área do poder, na área da crença, se tornam, de facto, no nosso
próprio presente. O próprio Camões, um pouco antes de Shakespeare, havia intuído
a mesma perturbação de ordem metafísica, espiritual, histórica, subjetiva, de todas as
ordens, e chamou a isso o “desconcerto do mundo”. Como disse Shakespeare, a nossa
essência, enquanto seres temporais, é temporal; não é correr como um rio num tempo
e perder-se sem substância. Essa essência é constituída por momentos, por instantes e
que cada um desses instantes é uma espécie de eternidade, quase sem substância. Mas
é para esse retorno sobre nós mesmos que nós aspiramos.
Um pouco mais tarde, no Ocidente, essa impressão do Absoluto vivido como crença
sofreu a sua primeira ocultação ou transformação, a que nós chamamos a Reforma,
que é a emergência de uma reivindicação do que nós somos como indivíduo na sua
relação com o Absoluto. Deus deixa de ser uma entidade quase familiar, concreta,
visível. A Humanidade pensa que tem em si a capacidade de se salvar a si mesma,
desígnio para o qual ela teria nascido, teria aparecido, mas a exigência do tempo era
mais profunda: era a exigência de que nós não temos em nós próprios a capacidade
da salvação. Por conseguinte, naquilo que somos como seres racionais, naturais, não
há a capacidade de reimaginar uma nova eternidade ou uma criação semelhante
à do Paraíso de onde fomos expulsos, segundo o mito bíblico. Deus deixou de ser
aquela referência em volta da qual tudo se organizou e passou a ser uma espécie de
aposta sem regras, que tem o nome de fé, no sentido pauliniano do termo. Agora essa
aposta é muito mais aprofundada, porque esse Deus luterano não é um deus sobre o
qual nós possamos ter qualquer espécie de certeza, é um deus um pouco como o dos
místicos romanos, absolutamente transcendente, de uma transcendência absoluta,
impensável, que não é o Pai dos homens, que nos deixa só diante de uma aposta,
quase antecipada à maneira de Pascal, em que nós não sabemos a partir de então que
Deus é o fundamento de tudo e a realidade de tudo. E é na sequência desta revolução
do espírito moderno – uma espécie de reivindicação da autonomia humana como
criadora da História, como sujeito da história do mundo, como única certeza que
verdadeiramente interessa possuir e que nos confere a nossa própria identidade, que
é a consciência de nós próprios, nós como consciência, nós como sujeito do mundo
– que acontece o que nós chamamos de revolução cartesiana, o triunfo do homem
como razão, mas sobretudo como sujeito que impregna todas as suas conquistas
daquilo que ele próprio é.
Na verdade, a Geração de Orpheu (particularmente Pessoa) representa um novo
tipo de espírito que assiste pouco a pouco a uma espécie de lenda, mas cada vez mais
Conferência Professor Eduardo Lourenço 447

vivida num passado de que um deus está obscurecendo, até que chega o momento em
que este Deus, que durante tantos séculos era a única coisa verdadeiramente importante
para a humanidade da Europa (e não só), passou a ser declarado como algo que já
não enformava a nossa existência, a nossa cultura, a nossa política, que desaparece
primeiro na ordem de poder, o poder não sagrado ou sacralizado, como nos reis. Mas
isso fazia parte quase de um arsenal arcaico – curiosamente, nas formas mais arcaicas
do poder, o rei nunca estava seguro de conservar a sua cabeça; muitas das vezes era a
vítima de um certo número de poderes, era sacrificado. Historicamente, e já na nossa
civilização ocidental, os reis começam a ser contestados a partir do Renascimento,
mas só com a Revolução Francesa é que, efetivamente, o sujeito da contestação do
poder, sob a forma absoluta, tem uma forma já moderna, propriamente dita. Carlos I
de Inglaterra ainda foi guilhotinado por razões religiosas; Luís XVI, o Rei, a ideia da
realeza, foi guilhotinado em nome do povo francês. É uma grande mudança.
É muito curioso que Almada – aquele que ainda não tem uma mitologia adequada
ao papel que ele teve na nossa cultura –, já na sua juvenil intervenção na cena poética
e criadora portuguesa, especialmente n’ “A Cena do Ódio”, mencione Zaratustra. Nos
finais do século XIX, morre Nietzsche (que está outra vez muito na moda com o filme
sobre o famoso episódio de Turim), uma figura incontornável da nova modernidade
europeia, e mesmo mundial, porque não fez uma contestação de todos os grandes
referentes religiosos que nós conhecemos, mas, diretamente, uma recusa da nossa
referência suprema de um deus encarnado, de um deus crucificado... e chamou a isso
a “morte de Deus”. Mas foi suficientemente lúcido para pensar que nessa morte de
Deus o que estava verdadeiramente contido era a morte do homem, como senhor do
seu próprio destino, capaz de se salvar. Os primeiros anos dos séculos XIX e XX foram
anos em que os famosos textos de Nietzsche foram extremamente populares e mesmo
esta forma de protesto que conhecemos dos diversos manifestos na ordem cultural são
de origem nietzschiana. Se lerem O Anti-Cristo, numa passagem famosa em que ele
se refere a diversos *(passagem não entendida) culturais daquela época, que ele trata
exatamente como Pessoa vai tratar do mandado de despejo aos mandarins da Europa
(lembro-me que ele intitula, não sei se por anti-feminismo, uma grande romancista
romântica francesa mais conhecida por um caso com o Chopin, George Sand – por
“vaca leiteira”). E todos os nossos autores foram muito escassos por esta ideia.
Na verdade, nós tínhamos tido entre nós não um pré-Nietzsche, mas alguém
que tinha marcado na cultura portuguesa um corte, uma rutura, de consequências
extraordinárias; foi o primeiro autor (e ele próprio teve consciência disso) a inaugurar
uma espécie de cisão com os tempos anteriores, exatamente pela mesma razão – uma
razão demais banal – de perda da fé tradicional. Refiro-me naturalmente a Antero.
Há bocado, ouvi alguém perguntar se havia algum relacionamento entre a Geração
448 100 Orpheu Professor Eduardo Lourenço

de 70 e a Geração de Orfeu. Se houve!... Mas não somos nós que o dizemos; quem o
disse foi o jovem Pessoa no seu primeiro escrito, um pequeno ensaio sobre “A Nova
Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada”. Depois de fazer uma evocação da
poesia anterior, relativa a Pascoaes, declara que a poesia portuguesa vai conhecer um
período extraordinário, uma nova fase no imaginário português e – numa expressão
curiosa, já pré-futurista, se pode dizer – que essa genealogia começa no Antero e
que irá até eles, os modernos, os de Orpheu. Portanto, Pessoa tem a consciência de
que há uma paternidade cultural de outras gerações anteriores e que ele próprio se
coloca no fim dessa linha e no princípio de outra. Naturalmente que o que aqui nos
importa é que seja no princípio de outra. Ora, mas por mais imaginação, por mais
dons proféticos que nós possamos atribuir ao poeta dos Sonetos, ele nunca poderia
imaginar que meio século mais tarde alguém se inventaria uma espécie de genealogia
diferente, em que à morte do sujeito tradicional iria responder com uma invenção de
sujeitos poéticos e substituir a identidade perdida que a si própria se domina e se dá
sentido por uma multiplicidade de sujeitos (que agora vejo que nas últimas exegeses
é multiplicada indefinidamente, o que me parece absurdo porque a heteronímia são
aqueles quatro e não outros, por definição intrínseca e imposta pela leitura mesma do
Pessoa, que deveria saber do que estava a falar).
E assim entrámos naquilo que vai assegurar duradouramente até hoje – num tempo
que nós não podemos prever – essa criação que tem precedentes virtuais no passado mas
não desta maneira de forma extraordinária, tão inédita, que é a criação dos heterónimos.
E é verdade que do Orpheu, hoje, como referência para nós, como resultado da dispersão
da ordem psicológica – que era tão sensível que deu o título à poesia de Mário de Sá
Carneiro –, sucede uma espécie de nova criação, como se o poeta, essa nova espécie de
poeta, se concedesse a si próprio os dons divinos de criar outros seres semelhantes a ele
para substituir aquele que ele não sentia ser ou não sabia ser até hoje.
Nós não podemos dizer nada que Pessoa já não tenha dito de tantas maneiras
diferentes, porque, de facto, nós somos submetidos sem cessar à sua autorização, ou
desautorização, depende da escolha. Eu digo o que é, finalmente, o mais importante:
é que o lado orfaico, no que diz respeito particularmente a Pessoa, é esse. É evidente
que a novidade, a excentricidade, por assim dizer aparente em todo o caso, da sua
famosa criação heteronímica deixou na sombra tudo aquilo que não é heteronímico
neste poeta. Mas, na verdade, a raiz profunda da poesia de Fernando Pessoa é mesmo
o Ultra-Simbolismo; é a ideia que ele tem de que a exceção ao Mestre, ao Caeiro, é
uma exceção para se defender daquilo que é a sua visão mais profunda das coisas: de
que a nossa realidade, no sentido psicológico do termo e em todos os outros sentidos,
é uma realidade que tem como essência o facto de não ser real, de ser uma espécie
de fantasma. Não é só na ordem do seu apetite infinito pelo texto dos outros que
Conferência Professor Eduardo Lourenço 449

Fernando Pessoa é o maior vampiro das Literaturas Universais: é o facto que ele se
concebia como alguém que tinha tecido uma outra espécie de mundo. E isso não é
uma invenção total, é uma espécie de versão moderna de um dos mitos mais famosos
de Platão, o Mito da Er, que supõe que os homens seguirão o seu destino antes de
encarnarem e que nascer é o esquecimento dessa escolha, mas que ela permanece
latente e que eles estão aqui como sombras daquilo que já foram noutros sítios, como
fantasmas, de algum modo. Isso está praticamente em tudo o quanto ele escreveu. E
há um texto preciso:

Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo,


E a noite chega sem que eu saiba bem,
Quero considerar-me e ver aquilo
Que sou, e o que sou o que é que tem.

Olho por todo o meu passado e vejo


Que fui quem foi aquilo em torno meu,
Salvo o que o vago e incógnito desejo
De ser eu mesmo de meu ser me deu.

Como a páginas já relidas, vergo


Minha atenção sobre quem fui de mim,
E nada de verdade em mim albergo
Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

Como alguém distraído na viagem,


Segui por dois caminhos par a par.
Fui com o mundo, parte da paisagem;
Comigo fui, sem ver nem recordar.

Chegado aqui, onde hoje estou, conheço


Que sou diverso no que informe estou.
No meu próprio caminho me atravesso
Não conheço quem fui no que hoje sou.

Serei eu, porque nada é impossível,


Vários trazidos de outros mundos, e
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por estar aqui?
450 100 Orpheu Professor Eduardo Lourenço

Serei eu, porque todo o pensamento


Podendo conceber, bem pode ser,
Um dilatado e múrmuro momento,
De tempos-seres de quem sou o viver?

O que é que se pode acrescentar a isto? Nada.


De Pessoa a Sophia: um Diálogo Intertextual de Reunificação do Ser.

Helena Malheiro
Universidade Aberta, Clepul

Palavras-chave: Dispersão; unidade; multiplicidade; reunificação; ser;


Resumo: Os poemas que Sophia dedica a Pessoa constroem-se sobre a sombra e a presença
ausente daquele que foi “viúvo de si próprio”.
No magistral poema “Cíclades” assistimos assim a uma incomparável evocação de Pessoa,
onde, através do paralelismo com o herói homérico, Sophia leva ao paroxismo “as múltiplas
navegações” da sua ausência prolixa e arrasadora, mitificando de forma inequívoca e singular
aquele que viajou dentro de si à exaustão sem ter encontrado nenhum porto onde apaziguar a
“saudade de pedra” de uma unidade irremediavelmente perdida.

O diálogo intertextual de Sophia com Pessoa tece-se através de uma poderosíssima


mas contraditória presença, toda ela simultaneamente repleta da devastadora ausência
intrínseca ao próprio autor do “drama em gente”1. Os poemas que Sophia dedica a
Pessoa erguem-se sobre a presença ausente daquele que ousou “não ser ninguém”:

Teu canto justo que desdenha as sombras


Limpo de vida viúvo de pessoa
Teu corajoso ousar não ser ninguém
Tua navegação com bússola e sem astros
No mar indefinido
Teu exacto conhecimento impossessivo

Criaram teu poema arquitectura


E és semelhante a um deus de quatro rostos
E és semelhante a um deus de muitos nomes
Cariátide de ausência isento de destinos
Invocando a presença já perdida

1 Esta conferência retoma a investigação da nossa tese de Doutoramento, publicada com o título O Enigma de
Sophia: da Sombra à Claridade.
452 100 Orpheu Helena Malheiro

E dizendo sobre a fuga dos caminhos


Que foste como as ervas não colhidas
(ANDRESEN, S. M. B., 1999: 129)

Este poema do Livro Sexto, justamente intitulado “Fernando Pessoa”, constrói-se


inteiramente sobre a existência perdida daquele que foi “viúvo de pessoa” e se
fragmentou à exaustão. Com efeito, esta “cariátide de ausência” não sustenta a
identidade daquele que foi, e permanecerá, no entanto, “um deus de quatro rostos”,
“um deus de muitos nomes”, em cujo “canto justo” a poetisa se revê. Aquele que
navega “sem astros / No mar indefinido” é bem diferente de Sophia e da sua luminosa
navegação essencial. Porque, se o poeta é como ela, um “emissário de um deus
desconhecido” a quem as palavras acontecem, um sacerdote do Absoluto que entregou
a sua vida à incansável demanda de um “exacto conhecimento impossessivo”, ele
não deixa de ser aquele que abdica da vida e que assume a dispersão como prova
irrevogável da falência de uma unidade perdida que a poetisa não cessará nunca de
procurar. Será para a Grécia, para o espaço privilegiado da reunificação elemental
com o tempo genesíaco, que Sophia irá trazer Pessoa, como se lhe quisesse mostrar o
caminho da unidade, como se ali, naquele lugar primordial e “antigo”, a essência do
mundo o pudesse “reunir” a si próprio.
No belíssimo poema “Em Hydra, evocando Fernando Pessoa”(Dual), a poetisa
murmura o seu “ambíguo nome”, o seu nome de máscara - Odysseus/Ulisses/Persona
- que com o herói homérico se confunde. Com efeito, já em Mensagem, o próprio
Pessoa descrevia Ulisses como se a si próprio se descrevesse:

O mito é o nada que é tudo.


[........................]
Este que por aqui aportou
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou
(PESSOA, F., 1972:25)

Por outro lado, é interessante notar que, se Personna significa máscara no teatro
romano, a palavra Odysseus em grego significa ninguém. Neste poema de Sophia,
a figura de Pessoa “emerge de repente” para a acompanhar na sua mítica viagem de
demanda da unidade perdida:
De Pessoa a Sophia: um Diálogo Intertextual de Reunificação do Ser 453

Quando na manhã de Junho o navio ancorou em Hydra


.......................................................................
Murmurei o teu nome
O teu ambíguo nome

Invoquei a tua sombra transparente e solene


....................................................................
Segundo a lei de máscara do teu nome

Odysseus – Persona
Pois de ilha em ilha todo te percorreste
.......................................................
A tua ausência emerge de repente a meu lado
………………….
E vem comigo pelas ruas onde procuro alguém
....................................................
Há nas coisas de Hydra uma claridade que é tua
Há nas coisas de Hydra uma concisão visual que é tua
..............................................................
O teu destino deveria ter passado neste porto
Onde tudo se torna impessoal e livre
Onde tudo é divino como convém ao real
(ANDRESEN, S. M. B., 1996: 144-146)

Neste poema, a dupla figura representada por Pessoa/Ulisses, eleva-se à categoria


de um deus, espelhando toda a admiração que a poetisa por ele nutre, para projectar
sobre o seu destino uma nova claridade, uma nova nitidez, que assim o reúna dentro
de si, naquele lugar mítico onde “tudo é divino como convém ao real”. Assistimos
assim a uma evocação de Pessoa/Odysseus/Persona, cujo ambíguo nome de máscara
duplica ainda mais o poeta múltiplo e o confunde com o mítico viajante Ulisses. Esta
errância andreseana que funde Pessoa ao supremo viajante grego para percorrer os
inúmeros eus em que a sua vazia presença se divide, continua no poema “Cíclades”(O
Nome das Coisas) de forma exaustiva e arrebatadora:

A claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença


O teu nome emerge como se aqui
O negativo que foste de ti se revelasse
454 100 Orpheu Helena Malheiro

Viveste no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti próprio
Viúvo de ti próprio
.........................................................
Esquartejado pelas fúrias do não-vivido
À margem de ti dos outros e da vida
Mantiveste em dia os teus cadernos todos
Com meticulosa exactidão desenhaste os mapas
Das múltiplas navegações da tua ausência –
....................................................
E tinhas muitos rostos
Para que não sendo ninguém dissesses tudo
Viajavas no avesso no inverso do adverso
..................................................................
Porém obstinada eu invoco –ó dividido –
O instante que te unisse
E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste
.................................................................
Invoco-te como se chegasses neste barco
E poisasses os teus pés nas ilhas
...............................................................
Chamo por ti – reúno os destroços as ruínas os pedaços –
Porque o mundo estalou como pedreira
E no chão rolam capitéis e braços
Colunas divididas estilhaços
E da ânfora resta o espalhamento de cacos
Perante os quais os deuses se tornam estrageiros
………………………………………
Pudesse o instante da festa romper o teu luto
Ó viúvo de ti mesmo
E que ser e estar coincidissem
No um da boda

Como se o teu navio te esperasse em Thasos


Como se Penélope
Nos seus quartos altos
Entre seus cabelos te fiasse (id.: 177-178)
De Pessoa a Sophia: um Diálogo Intertextual de Reunificação do Ser 455

A expressão “viúvo de pessoa” do primeiro poema analisado ecoa agora em “viúvo


de ti próprio”, neste poema em que “a claridade frontal do lugar” evoca Caeiro.
Através da nitidez do olhar do “Guardador de Rebanhos”, Sophia procura apreender a
harmonia e a unidade das coisas, mas é sobretudo a presença arrasadora de Campos que
se espraia pela obra da poetisa, nomeadamente nos poemas citados, onde as repetidas
alusões à navegação, ao navio e à viagem, nos conduzem à excessiva e fragmentada
errância do ser que é a sua genial Ode Marítima. É interessante notar a irrepreensível
intertextualidade que funde de forma inequívoca o “espalhamento de cacos” do
malogrado “Apontamento” de Campos com os estilhaços das colunas e da ânfora
andreseanos, entrelaçando os dois poetas numa mesma procura da unidade perdida.
É este “viajante incessante do inverso”, “esquartejado pelas fúrias do não vivido”, que
se revela na paisagem harmoniosa da Grécia como o negativo de si próprio, invocado
de forma obstinada pela poetisa, para assim poder chegar à claridade e à inteireza do
mundo primordial, onde a demiurga o quer reunir e celebrar.
No final do poema, Sophia expressa assim um desejo irrefutável e simultaneamente
irrealizável: o da chegada de Pessoa às ilhas, que tal como a chegada de Ulisses a Ítaca
e a Penélope, reunisse “o dividido” dentro de si, para abraçar aquele instante em que
finalmente se unisse ao mundo numa total coincidência entre o ser e o estar. Existe
portanto uma assimilação de Sophia e da sua poesia unificante e luminosa a Pessoa, ou de
Pessoa a Sophia, naquele que Eduardo Lourenço considera “o mais profundo retrato de
Pessoa que alguma vez foi tentado” e “um dos mais altos poemas da língua portuguesa”:

nas últimas obras de Sophia, a presença de Pessoa surge com uma insistência enigmática,
como se Sophia sentisse a necessidade de integrar a sua sombra imersa ou a plenitude
inversa que ela instalou na consciência poética contemporânea.[...] Jamais se revisitou por
dentro, a aventura sem fim de Pessoa, poesia e vida confundidas, como nesse admirável
poema “Cíclades”. (LOURENÇO, E., 1985: IV-VI)

No magistral poema “Cíclades” assistimos assim a uma incomparável evocação


de Pessoa, onde, através do paralelismo com o herói homérico, Sophia leva ao
paroxismo “as múltiplas navegações” da sua ausência prolixa e arrasadora, mitificando
de forma inequívoca e singular aquele que viajou dentro de si à exaustão sem ter
encontrado nenhum porto onde apaziguar a “saudade de pedra” de uma unidade
irremediavelmente perdida.
Com efeito, e ao contrário de Pessoa, se a poesia de Sophia parte por vezes de uma
negativa ausência, repleta de sombra, vinda ainda da “rouquidão do Caos”, ela encaminha-se
sempre, no entanto, para o esplendor do Cosmos e a harmonia de uma unidade perdida e
reencontrada, que advêm do encontro com o Sagrado e a plenitude do Ser.
456 100 Orpheu Helena Malheiro

Até mesmo na “Homenagem a Ricardo Reis”, em Dual, apesar da poetisa se


identificar com o tom clássico, pagão e fatalista, desse heterónimo pessoano, que
considera “irmão do que escrevi”, como facilmente se comprova pela explícita
evidência do jogo intertextual, não deixa de, no entanto, sublinhar a passividade e a
negatividade daquele que “inflexível assiste” à sua “própria ausência”:

Alheio o passo em tão perdida estrada


Vive, sem seres ele, o teu destino.
Inflexível assiste
À tua própria ausência.
(ANDRESEN, S. M. B., 1996: 123-124)

Este diálogo intertextual onde inequivocamente se projecta a sombra pessoana,


longe de desvalorizar o texto andreseano contribui ainda mais para enriquecer as
obras destes dois poetas que assim indubitavelmente e reciprocamente se iluminam.
Fernando Pessoa e Sophia de Mello Breyner Andresen têm ambos a mesma
concepção da literatura como Poema Universal, esse “ditado” transcendente que
torna o poeta um Mensageiro do Absoluto. É precisamente a existência imanente e
sagrada da poesia que só se dá a conhecer a alguns eleitos que Sophia celebra no
poema “Liberdade”(O Nome das Coisas):

Sílaba por sílaba


O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos
(id.: 205)

Neste poema está bem patente o carácter absoluto que a poetisa atribui à poesia. A
poesia é uma dádiva dos deuses e restabelece a aliança perdida entre o ser e o universo.
Através dela, o poeta procura “a ordem intacta do mundo / A palavra não ouvida”2.
Esta concepção “de que fazer versos é estar atento e de que o poeta é um escutador”,
culmina em “Arte Poética IV” (Dual) e em “Arte Poética V” (Ilhas). Com efeito,
nestes dois textos fundamentais, Sophia enuncia a forma inexplicável como a poesia
“acontece”, como “o poema aparece feito, emerge, dado” como “um ditado” que o
poeta escuta e nota. Resta-lhe apenas “encontrar” o poema “suspenso”, “imanente”.

2 Sophia de Mello Breyner Andresen, “Antinoo”, Geografia, OP III, p.67.


De Pessoa a Sophia: um Diálogo Intertextual de Reunificação do Ser 457

O poema acontece assim de forma mágica e encantatória e a poetisa limita-se a ouvi-lo


com atenção e a transcrevê-lo, tal como Fernando Pessoa, para quem os poemas
igualmente e repentinamente aconteciam:

Fernando Pessoa dizia: «Aconteceu-me um poema.» A minha maneira de escrever


fundamental é muito próxima deste «acontecer». O poema aparece feito, emerge, dado[..].
Como um ditado que escuto e noto. […] Encontrei a poesia antes de saber que havia
literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si
mesmos, por si mesmos, que eram como um elemento do natural, que estavam suspensos,
imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir.
Desse encontro inicial ficou em mim a noção de que fazer versos é estar atento e de que o
poeta é um escutador.[...]
O meu esforço é para conseguir ouvir o «poema todo» e não apenas um fragmento.[...] É
preciso que eu deixe o poema dizer-se. [...] (id.: 166-169)

Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas
julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome
deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares
mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. […]
(id.: 349-350)

De facto, encontramos esta mesma “despersonalização” em Pessoa, a mesma


afirmação do poeta como mediador e emissário do Absoluto, o qual, em alguns
sonetos de “Passos da Cruz”, declara:

II
Há um poeta em mim que Deus me disse
.............................................................
XI
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E a oculta mão colora alguém em mim.
.............................................................
XIII
Emissário de um rei desconhecido
Eu cumpro informes instruções de além
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
458 100 Orpheu Helena Malheiro

Soam-me a um outro e anómalo sentido...


(PESSOA, F., 1973: 37)

O poeta é aquele que transmite o inefável, as “informes instruções de além”, é


aquele que tem por missão encontrar as palavras que restabelecem a aliança “de antes
de tempo e espaço e vida e ser” - o tempo “antigo”, como diria Sophia – a aliança entre
“a oculta mão” e o presente visível pessoanos. Também para Sophia, o poeta desvenda
o Sagrado através da palavra:

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada


........................................................................
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
(ANDRESEN, S. M. B., 1996: 199)

O poema é pois a própria “respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele
próprio” e só a poesia permite a visão total e unificadora da oculta essência do Ser, o
“aparecer total exposto inteiro”, a “veemência do visível” que a poetisa nunca cessará
de procurar obstinadamente:

Ali vimos a veemência do visível


O aparecer total exposto inteiro
E aquilo que nem sequer ousáramos sonhar
Era o verdadeiro
(id.: 255)

A Verdade aparece a Sophia com a veemência de uma aparição e a inteireza de uma


unidade perdida no caos do tempo, com a obstinação com que ruma ao primeiro dia
criado através da solenidade de uma “viagem antiquíssima”:
Estava o anel da noite solenemente posto no meu dedo
E a navegação do silêncio continuou sua viagem
[antiquíssima
(id.: 47)
De Pessoa a Sophia: um Diálogo Intertextual de Reunificação do Ser 459

Descobrimos nesta viagem ecos do “grito antiquíssimo” que nasce igualmente do


silêncio em Campos:

E logo que sinto que há um mar nocturno dentro de mim,


Sobe dos longes dele, nasce do seu silêncio,
Outra vez, outra vez, o vasto grito antiquíssimo.
(PESSOA, F., 1993: 164-165)

Descobrimos também a mesma solenidade eufórica com que este fundamental


heterónimo pessoano se extasia perante “O Cais absoluto!“, “O Grande Cais Anterior,
eterno e divino!”, o “Grande Cais, como os outros cais, mas o Único”, na sua grandiosa
Ode Marítima, cais primordial que lhe devolveria a unidade de um Eu fragmentado à
exaustão. Com efeito, tal como para Pessoa, a viagem representa para Sophia, não só
a liberdade e a euforia da descoberta dos intermináveis meandros do subconsciente,
mas sobretudo um caminho iniciática e a procura de um tempo incólume e genesíaco
que os dois poetas querem recuperar para chegar à tão almejada unidade e escapar
assim à fragmentação de um presente dividido.
É esta a missão do poeta: desocultar a essência escondida do mundo, a unidade
que se esconde por trás de um real dividido e de um eu exilado e fragmentado. Num
poema de ecos muito pessoanos, a autora concentra numa estrofe exemplar o destino
mítico dos descobridores do mundo:

Distância da distância derivada


Aparição do mundo: a terra escorre
Pelos olhos que a vêem revelada.
E atrás um outro longe imenso morre.

(ANDRESEN, S. M. B., 2001: 107)

Esta “distância” que faz aparecer o mundo traz ecos daquela que Pessoa convoca em
“Prece”: “E outra vez conquistemos a Distância - / Do mar ou outra, mas que seja nossa!”3
Por outro lado, a imagem da aparição do mundo em que “a terra escorre / Pelos
olhos que a vêem revelada” convoca indubitavelmente os dois poemas que Pessoa
dedica ao Infante em Mensagem:

3 PESSOA, F., 1972: 73.


460 100 Orpheu Helena Malheiro

Tem aos pés o mar novo e as mortas eras


O único imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.
(PESSOA, F., 1972: 49)

E a orla branca foi de ilha em continente,


Clareou, correndo, até ao fim do mundo
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
(id.: 57)

Neste último poema, a imagem da terra como aparição é novamente sugerida em


todo o seu esférico esplendor por Pessoa. Tanto em Pessoa como em Sophia, notamos
a mesma plasticidade inebriante das imagens que chega de forma surpreendente e
avassaladora à encantada descoberta do mundo.
Esta é a viagem mítica que não depende do tempo e que faz emergir o inolvidável
futuro do passado.
Através de uma imagética transbordante e de um sensacionismo exacerbado,
Pessoa e Sophia revelam ao mundo o segredo de um real escondido pelos séculos
através do poder encantatório da palavra.
Num poema de Dia do Mar intitulado “Os Poetas”, que inexplicavelmente não
figura na sua Obra Poética posterior, eis como a autora muito sugestivamente descreve
estes mediadores visionários do Absoluto:

Solitários pilares dos céus pesados,


Poetas nus em sangue, ó destroçados
Anunciadores do mundo
Que a presença das coisas devastou.

“Viúvo de si próprio”, destroçado pelo não vivido, fragmentado pelos múltiplos


rostos que inventou para si mesmo à exaustão, Fernando Pessoa renasce em Sophia
que obstinadamente percorre um longo, sombrio e órfico caminho para chegar à
essência, à transparência irradiante e cristalina do “nome das coisas”. Eis a poesia
como viagem iniciática de restituição ontológica à unidade e à verdade do Ser:

..........................................
Trago o terror e trago a claridade
E através de todas as presenças
De Pessoa a Sophia: um Diálogo Intertextual de Reunificação do Ser 461

Caminho para a única unidade.


(ANDRESEN, S. M. B., 2001: 46)

Assistimos assim a um paradoxo genial em que a existência de Pessoa se torna


ausência na obra de Sophia e que a poetisa tenta obstinadamente corrigir, ao reclamar
para o poeta do “múltiplo poema” e do “canto inumerável”4, uma presença tão forte
que com ela se unisse, na divina ascensão dos “quartos altos” onde Penélope os tecesse,
fundindo-os numa poesia da essência que ultrapassa a divisão de um real exilado.

Bibliografia

Bibliografia Activa:
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (2001). Obra Poética I. Lisboa: Caminho,
(1990).
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1999). Obra Poética II. Lisboa: Caminho,
(1991).
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1996). Obra Poética III. Lisboa: Caminho,
(1991).
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1994). Musa. Lisboa: Caminho.
PESSOA, Fernando (1993). Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Edições Ática.
PESSOA, Fernando (1972). Mensagem. Lisboa: Edições Ática (1934).
PESSOA, Fernando (1973). Poesias. Lisboa: Edições Ática.

Bibliografia Passiva:
LOURENÇO, Eduardo (1985). «Para um retrato de Sophia», Prefácio a Antologia,
Lisboa: Moraes Editores.
MALHEIRO, Helena (2008). O Enigma de Sophia: Da Sombra à Claridade. Lisboa:
Oficina do Livro.

4 Sophia de Mello Breyner Andresen, “Fernando Pessoa”, Musa, Lisboa, Caminho, p.45.
«Um peso de mândria sobre mim»:
Sá-Carneiro inacabado

Giorgio de Marchis
Università Roma Tre

Palavras-chave: Sá-Carneiro; Inacabado; Inédito; Teatro; Arsène Lupin.


Resumo: A correspondência de Mário de Sá-Carneiro revela os bastidores dum processo criativo
que se pode considerar febrilmente eufórico e não raro caraterizado por uma impressionante
facilidade de escrita que se acompanha a um autêntico frenesim editorial. Contudo, é também
possível reconhecer nas cartas deste autor projetos que o poeta de Dispersão nunca levou a
cabo. Através da análise da correspondência e dos manuscritos do autor, o artigo propõe-se
refletir sobre as obras abandonadas por Mário de Sá-Carneiro, apresentando o esboço inédito
duma peça juvenil que o autor dir-se-ia ter abandonado.

O gosto pelo ineditismo nunca teve Mário de Sá-Carneiro entre os seus mais
fervorosos adeptos. Imune à fradiquista «síndrome do silêncio» (REIS, C., 1997: 674),
para o autor de Céu em fogo poder-se-ia talvez diagnosticar uma forma aguda de
frenesim editorial, que o empurra a publicar os seus textos, a desejar levar ao palco
as suas peças e até a querer exibir-se no espaço público como autor das suas obras.
Tirando os poemas reunidos em Indícios de Ouro, que o suicídio do poeta tornaram
inevitavelmente póstumos, são, de facto, relativamente poucos os textos que, na
maturidade, Sá-Carneiro escreveu mas deixou inéditos.
Assim, para Mário de Sá-Carneiro é totalmente incompreensível a demora
pessoana em publicar os seus versos. E eis o que escreve ao amigo em Lisboa a 3 de
fevereiro de 1913:

O que é preciso, meu querido Fernando, é reunir, concluir os seus versos e publicá-los não
perdendo energias em longos artigos de crítica nem tão-pouco escrevendo fragmentos
admiráveis de obras admiráveis mas nunca terminadas. É preciso que se conheça o poeta
Fernando Pessoa, o artista Fernando Pessoa – e não só o crítico – por lúcido e brilhante que
ele seja (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 40).
464 100 Orpheu Giorgio De Marchis

Publicar, publicar, escrever e publicar… Ao fim e ao cabo, a urgência de escrita e a


febre editorial dum autor que afirma querer publicar um livro cada ano1, que em maio
de 1913 confessa que «infantilmente» gostaria de ver uma obra sua num palco2 e que,
a 29 de dezembro desse mesmo ano, declara a Luís de Montalvor: «o que eu quero é
que falem dos meus livros» (SÁ-CARNEIRO, M., 1977: 55), bem se resume no convite
ao jovem poeta António Ferro que, a 3 de março de 1913, tinha sido incitado, nestes
termos, a não se deixar vencer pelo momentâneo desalento: «Mande versos! Escreva!
Reaja! Escreva!!…» (TORIELLO, F., 1987: 136).
É impressionante, de resto, a lucidez com que Mário de Sá-Carneiro pensa e
organiza a sua literatura num projeto que é sempre público (independentemente da
capacidade do público de aceitar as suas obras). A 4 de maio de 1913, por exemplo, –
poucas semanas depois de ter considerado a sua escrita poética «puro diletantismo»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 56) e quando ainda poucos poemas do seu primeiro livro
de versos tinham sido escritos – já o autor entrevê «uma plaquette aonde, sob esse
título [Dispersão], elas se reúnam sem títulos; separadas unicamente por números»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 74).
Da mesma maneira, quando Mário de Sá-Carneiro é obrigado a encarar a falência
dum dos seus textos, esta urgência de publicação manifesta-se duma maneira ainda
mais evidente. O exemplo mais interessante, neste sentido, – e que já tive ocasião de
analisar noutra circunstância (DE MARCHIS, G., 2007) – é a prosa poética Bailado,
que uma «comissão de amigos», composta por Ponce de Leão, Correia d’Oliveira e
Fernando Pessoa, em abril de 1913, condena pela sua excessiva estranheza. Mário
aparentemente admite o malogro da obra mas, ao mesmo tempo, teima em querer
salvar a sua «beleza errada» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 67), um tema, este da beleza
errada, determinante para toda a interpretação sacarneiriana do Modernismo:

há no Bailado algumas frases que sinceramente eu acho muito, muito belas. São as mesmas
que você destaca, é sobretudo a parte que antecede o final: “Numa incerta nostalgia” até
“Vivo em roxo e morro em som”. E é esta a tortura: como salvar essa beleza? Porque
o Bailado, como bailado, está inteiramente, mesmo mais do que inteiramente falhado.
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 68).

1 «Andava ultimamente muito desolado por ver o meu tempo ir passando e as forças me faltarem para escrever
o livro que quero publicar cada ano – isto é, para escrever o meu volume de 1913.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001:
35).
2 «Confesso-lhe que, infantilmente, gostava muito de ver uma obra minha num palco.» (SÁ-CARNEIRO, M.,
2001: 93)
«Um peso de mândria sobre mim»: Sá-Carneiro inacabado 465

Para «salvar essa beleza», o autor encastoará várias frases desta prosa nos poemas
Inter-Sonho e Álcool e, mesmo tendo condenado Bailado em 1913, nunca renunciará à
possibilidade de publicar o texto, ao ponto de chegar a escrever o conto Asas, inserido
em Céu em Fogo, propositadamente para publicar o inédito Bailado e recuperar outra
prosa poética, Além3.
Lendo a sua correspondência, dir-se-ia que, para Mário de Sá-Carneiro, a obra,
uma vez concluída, exige a sua publicação.
Existe, contudo, também outra vertente da escrita sacarneiriana. Se é verdade
que são poucas, pouquíssimas, as obras que, uma vez terminadas, ficaram inéditas
por expresso desejo do seu autor, muitos são os textos que Sá-Carneiro deixou
inacabados ou que apenas esboçou ou praticamente nem sequer chegou a começar.
Esta tendência a “inacabar”, do meu ponto de vista, caracteriza o autor de A Confissão
de Lúcio, tanto quanto o desejo de publicar e, para analisar este aspecto da sua oficina
criativa, apresentarei um exemplo juvenil deste Sá-Carneiro inacabado; antes, porém,
limitando-me à fase projetual da produção em prosa, tenciono propor aquela que se
poderá considerar uma bibliografia sacarneiriana potencial, feita de textos aos quais
faltou para existir apenas um pouco mais de azul, um golpe d’asa; falarei, em suma,
dum “quasi Sá-Carneiro” que inevitavelmente transmite aos seus leitores a tristeza das
coisas que não foram.
Os três períodos parisienses da maturidade de Sá-Carneiro apresentam fases
criativas e projetuais completamente diferentes. A primeira fase – de outubro de 1912
até finais de junho de 1913 – é, neste sentido, claramente eufórica «(…) a melhor
quadra da minha vida literária», escreve o autor em março, reconhecendo nela «uma
enorme facilidade de trabalho, como nunca senti.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 55).
Pertence a esta primeira fase o esboço da novela Gentil Amor, que Mário destinava a
um volume que nunca chegou a existir onde, a 1 de abril de 1913, tencionava reunir,
sob o título Perturbadoramente, esta novela, a Confissão de Lúcio e uma peça que
apresenta ao amigo com um título provisório, Irmãos, que o autor considerava porém
inadequado. Seja como for, é provável que Sá-Carneiro tenha chegado a concluir
Irmãos e, sem dúvida, confiava muito na qualidade desta peça, considerando o seu
segundo ato – de onde Luís de Montalvor tirará uma frase que aparece como
epígrafe no seu poema A Vida de 1913 – «uma das coisas mais belas que tenho
escrito.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 65).
O teatro no primeiro semestre de 1913 ocupa ainda um lugar de eleição na escrita
sacarneiriana e, a 14 de maio, o poeta confessa a Fernando Pessoa querer «muito

3 «Quero mesmo escrever as Asas neste volume por causa do Além e Bailado, ultrapederasta assim o volume.»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 154).
466 100 Orpheu Giorgio De Marchis

escrever uma peça A Força (que é um estudo da Desilusão em que em tempos lhe
falei), colaborando com o Ponce que tem belas qualidades de autor dramático»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 93). Concordando com Luiz Francisco Rebello, que
demonstrou como A Força não pode ser Alma – outra peça que Sá-Carneiro escreverá
junto com António Ponce de Leão durante as férias grandes desse ano – temos
forçosamente que incluir também A Força entre as obras que não foram.
O principal projecto de 1913 que não se concretiza é, porém, uma plaquette – «o
mais elegante possível, é claro» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 36) que, a 21 de janeiro
de 1913, Sá-Carneiro imagina intitulada Além – Sonhos e constituída por sete, breves,
pedaços de prosa: O Homem do Ar, O Homem dos Sonhos, A Orgia das Sedas, O
Fixador de Instantes, Asas, Mistério e Além. É um livro que, nestes termos não chega a
ser publicado em outubro de 1913, como desejava o seu autor, apesar de aparecerem
em “A Águia” e “A Renascença” alguns contos mais tarde reunidos no volume Céu em
Fogo. Limito-me a salientar como, pelo menos numa primeira fase, muito incipiente,
de projetação desta obra – que Sá-Carneiro julga conveniente orientar para o vago e
para o infinito, ciente do facto que se trata de projetos difíceis de resumir e impossíveis
de explicar em poucas palavras – à influência pessoana, talvez seja possível acrescentar
também sugestões vindas do convívio parisiense com Santa-Rita Pintor que, como
escreve Mário, «em literatura, quer em prosa, quer em verso, não admite a sombra
duma ideia (…) só admite coisas que se não possam narrar» (SÁ-CARNEIRO, M.,
2001: 14).
Nesta fase eufórica, surgem também ideias que não vão além duma fase meramente
projetual; é o caso do conto Aquele que estiolou o génio, que apresenta uma interessante
evolução, chegando Sá-Carneiro a ventilar a hipótese de trabalhar em verso o tema, de
maneira a incluí-lo como poema em Dispersão4. Ou ideias sem título que Sá-Carneiro,
a 21 de abril de 1913, transcreve telegraficamente ao amigo como possíveis novelas:
os dois homens que, sem se conhecerem, se reconhecem na rua, para «dar a ideia das
coisas incertas que na vida por vezes vivemos» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 70) e «a
estranha obsessão dum homem que ama uma mulher que se lhe entrega toda, mas
que ele não pode possuir inteiramente porque a sua beleza se lhe afigura móvel, nunca
fixada.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 70), onde se entrevêem sugestões que aparecem
no poema Como eu não possuo e na peça Alma, também escritos nesse ano. Ou ainda
aquela «ideia nova» que Sá-Carneiro relata na carta de 31 de maio:

4 «Sobre Aquele que estiolou o génio. Esta ideia de conto, tratado até cientificamente, volveu-se-me de uma forma
bizarra, poética. (…) Você vai ver pelo excerto que adiante mando como poeticamente eu pretendo traduzir
estas coisas, que no conto seriam tratadas de fora. Peço muito que me diga o que antevê, pelos excertos, da
poesia total e se acha que a deva executar ou não. A executá-la há-de ser assim neste corte, nesta maneira, nesta
orientação. Caso contrário renunciarei a tratar o assunto em poesia.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 81 e 82).
«Um peso de mândria sobre mim»: Sá-Carneiro inacabado 467

Um indivíduo cuja ânsia é de criar mistérios só pelo perturbador que um mistério é. Assim
contará crimes só para ter a glória de todo o mundo andar ansiante por descobrir o mistério.
(Crimes dum género especial: Suponhamos: o roubo da Jucunda – isto para exemplificar
grosseiramente qual a minha ideia.) Este homem por fim será morto, despedaçado, pelo
mais grandioso mistério que conseguiu criar.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 96).

Lendo as cartas que Mário de Sá-Carneiro escreve durante a primeira estadia


parisiense, compreendem-se, portanto, as suas considerações sobre cérebro-escritor
que aparecem numa carta datada 21 de janeiro de 1913:

É curiosa esta função do cérebro-escritor. De tudo quanto em si descobre e pensa faz novelas
ou poesias. Mais feliz que os outros para quem as horas de meditação sobre si próprio são
horas perdidas. Para nós, elas são ganhas. Menos nobres só. O desperdício é nobre. O
interesse vil. E o artista mais interesseiro do que o judeu. Tudo – cenários, pensamentos,
dores, alegrias – se lhe transforma em matéria de arte!... Ganha sempre! (SÁ-CARNEIRO,
M., 2001: 34)

A segunda fase parisiense (junho 1914 – finais de agosto de 1914) é bem menos
fecunda. O poeta reconhece estar a atravessar um momento «literariamente inactivo»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 115) e introduz um elemento de auto-análise muito
relevante que, voltará a aparecer nos últimos meses antes do suicídio: a ideia da
necessidade dum “prémio” para escrever, um incentivo imprescindível que, agora,
começa a tornar-se insuficiente. O escritor continua a escrever poemas e novelas, mas
não faltam os projetos que Sá-Carneiro abandona. É o caso da Novela Burguesa –
que, a 18 de julho de 1914, o poeta imagina como a inversa de A Confissão de Lúcio
contada por um burguês, onde um artista olhará a vida burguesa como se essa vida
fosse a exceção e a sua a generalidade – e dum conto, Elegia (anteriormente chamado
Triste amor), que o autor, a 6 de outubro do mesmo ano, decide não escrever para Céu
em Fogo e destinar a um futuro livro que nunca chegará a existir. A tanta literatura
hipotética ou apenas imaginada, teremos que acrescentar Paris da Guerra – uma espécie
de diário íntimo interseccionista sobre a atmosfera parisiense desses dias, imaginado
em agosto de 19145 e que acabará por reduzir-se àquela única e malfadada crónica, A
Batalha do Marne, publicada em dezembro de 1915 na “Ilustração Portugueza” – e

5 «lembrei-me longinquamente de escrever um livro intitulado: Paris da Guerra aonde iria anotando as
impressões diárias: mas interseccionadamente: falando dos fluidos a que me referi na minha última carta, da
tristeza de que falo nesta etc. Compreende? Tenho de resto muitos episódios a tratar assim.» (SÁ-CARNEIRO,
M., 2001: 137).
468 100 Orpheu Giorgio De Marchis

uma resenha de O Génio Peninsular de Ribeira i Rovira, destinada em setembro a


ser cosmopolitamente publicada em catalão no “El Poble” de Barcelona6.
A terceira e última fase parisiense (11 de julho de 1915 – 26 de abril de 1916)
apresenta uma sempre maior dificuldade de escrita, que se traduz numa vocação
à incompletude e à irrealização. A 10 de agosto de 1915, pouco interessado em
escrever Mundo interior, envia este assunto «doutro género» a Fernando Pessoa:

um homem que (através dum enredo outonal e romântico) lute ardentemente para
merecer uma mulher: luta pela vida, luta material para ter os meios de fortuna, para poder
sustentar, no fim de contas, a mulher – luta por questões de família – luta mesmo, talvez – e
possivelmente a preço de infâmias – para obter o amor dessa mulher afastando um rival.
Este homem conseguirá enfim tudo. Mas então suicidar-se-á ou fugirá. (SÁ-CARNEIRO,
M., 2001: 189).

Assim como não escreve este conto, também não desenvolve os breves resumos
de possíveis novelas que, entre agosto e outubro de 1915 descreve a Fernando
Pessoa mas considera mero «treino imaginativo»: Para lá7, Pequeno Elemento
no Caso Fabrício8 e O Cúmplice. Apenas uma obra, Novela Romântica, parece
interessar Mário de Sá-Carneiro entre agosto de 1915 e fevereiro de 1916: «Coisa
esquisita: suponha você um Lúcio, um Inácio de Gouveia – enfim um dos meus
personagens-padrões lançado em pleno período romântico, vivendo um enredo
ultra-romântico: um Antony interseccionista, numa palavra.» (SÁ-CARNEIRO, M.,
2001: 194). Neste caso, Sá-Carneiro, ao longo de várias cartas, descreve um cenário
bem mais pormenorizado e, em janeiro de 1916, chega a considerar a escrita desta

6 «O mesmo eterno R. i R. na sua lepidopteria pediu-me para eu escrever um artigo sobre O Génio Peninsular
livro recém aparecido em edição da Renascença. Não tenho remédio, é claro, senão escrevê-lo. Mas tem piada.
Porque será publicado em Catalão no El Poble!... Seja como for sempre um pouco cosmopolita… Ah! e é claro
que unjo o artigo de paulismo, olá se o unjo!...» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 149).
7 «Suponha você um homem de perfeito juízo, perfeitamente normal quanto a si próprio – mas que na sua vida
não encontrasse senão circunstâncias inesperadas, fenomenais, irrisórias, estrambóticas, inexplicáveis – que
o envolvessem continuamente? A realidade da vida deste homem seria pois uma realidade destrambelhada,
louca. E como essa realidade era a vida desse homem – esse homem, sem culpa nenhuma, de perfeito juízo:
não o poderíamos em verdade chamar um doido? Creia que o meu caso é um pouco o deste hipotético figurão.
E aqui tem você uma talvez futura novela minha: Para lá? Análise psicológica muito pessoal e, sobretudo, da
minha crise presente.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 202-203).
8 «Outro projecto: uma novela género Prof. Antena (mas muito menos importante). Título: Pequeno elemento
no caso Fabrício. O Fabrício é um homenzinho que de repente se encontra outro, perfeitamente outro. É
dado como doido, claro. O fim da novela, a processos Antena, é sugerir uma explicação real para este sarilho.
Noutra carta lhe explicarei o assunto. Note que não é nenhum caso de desdobramento à Eu-Próprio o Outro.
Trata-se dum homenzinho que de súbito aparece outro – em alma, claro: ele próprio concorda diante dum
espelho que aquele que ele diz ser é louro e gordo: enquanto o espelho lhe reflecte um magro e trigueiro.»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 203).
«Um peso de mândria sobre mim»: Sá-Carneiro inacabado 469

novela «a melhor terapêutica» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 255) para a sua situação,
solicitando ao amigo o envio da carta onde lhe resumira o assunto, porque perdeu
os apontamentos.
Entre as coisas que não foram, além, claro, do terceiro número de “Orpheu”,
poder-se-iam lembrar também As esfinges e os guindastes: estudo do bi-metalismo
psicológico, palestra anunciada no segundo número da revista e prevista para a
rentrée, e um breve texto solicitado por Carlos Ferreira para um livro de opiniões
portuguesas sobre o rei Alberto da Bélgica9, mas não há dúvida que o último projeto
que Sá-Carneiro parece realmente querer levar a cabo é Novela Romântica acerca da
qual, ainda a 5 de fevereiro de 1916, declarava: «Esta novela interessa-me imenso –
estou ansioso por escrevê-la: mas não quero principiar antes de ajustados os mínimos
detalhes.» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 265).
É sem dúvida possível recuar no tempo à procura de outros projetos literários não
concluídos por Mário de Sá-Carneiro. Graças a duas cartas enviadas ao amigo Luís de
Montalvor, sabemos que, nos poucos meses que viveu em Coimbra, por exemplo, o poeta
chegou a rabiscar «umas linhas de prosa» (SÁ-CARNEIRO, M., 1977: 45) e a planejar
uma «poesia naturalista» sobre a «a vida maçadora, impossível» (SÁ-CARNEIRO, M.,
1977: 42) na Lusa-Chatice.
Porém, antes de concluir, considero interessante apresentar um texto de Mário de
Sá-Carneiro, juvenil e inédito, que provavelmente o autor não concluiu e acabou por
abandonar.
Trata-se dum manuscrito constituído por 20 páginas e 11 folhas de 13,5 cm x 21
cm, não datado e não assinado mas que me parece sem dúvida sacarneiriano, pelo
menos é de Sá-Carneiro a mão que escreve. O manuscrito contém o título da obra,
uma lista de seis personagens, o nome dum ator, a descrição do cenário, as primeiras
4 cenas completas e a indicação das duas personagens que entrarão na quinta cena. É
evidentemente uma peça e intitula-se: YW. 248 K. Grande drama policial condensado
em 1 acto.

9 «Esta aqui um rapaz que eu conheço há mto tempo, do Liceu, chamado Carlos Ferreira, agente comercial
(…) que ultimamente publicou em Lisboa um livro sobre a invasão alemã, e que prepara outro de opiniões
portuguesas sobre o rei Alberto! Acho a ideia patusca: que se importará o rei – que deve ter tanto mais em
que pensar – com as opiniões dos portugueses… Enfim, isso é com o autor. Ele pediu a minha opinião e a sua.
Mando-lhe o papel pa a consulta, juntamente, e rogo muito ao papá que não deixe de escrever umas rápidas
lérias, em francês, claro, pois eu gosto muito que, no mesmo livro, apareçam as nossas respostas: papá e
menino. Não deixe por isso de escrever. Duas palavras bastam. Peço-lhe instantemente e rogo mto que se não
esqueça de maneira alguma deste meu pedido.» (SÁ-CARNEIRO, M., 1992: 68).
470 100 Orpheu Giorgio De Marchis

Figura 1. YW. 248 K. primeira página.

O manuscrito – atualmente na posse dum colecionista português – por várias


razões parece-me conter o esboço, incompleto, duma peça juvenil escrita por Mário
de Sá-Carneiro. Neste momento estou a preparar a edição crítica do manuscrito e, por
enquanto, limito-me a fornecer algumas informações sobre o texto.
O manuscrito, escrito com uma caneta de aparo a tinta preta, dum ponto de
vista genético apresenta várias correções com segmentos apagados e, nalguns casos,
substituídos com versões alternativas. No verso da primeira folha, na metade inferior
da página, aparecem uma contas que dizem respeito ao enigma matemático decifrado
na peça. Como para outros manuscritos juvenis de Mário de Sá-Carneiro, a grafia
é de fácil leitura, os erros ortográficos são frequentes e há um certo descuido em
relação à acentuação e à pontuação. Estamos perante um texto escrito dum jato que
provavelmente ainda o autor não destinava a uma circulação, mesmo limitada aos
amigos do Liceu.
Do ponto de vista do conteúdo, trata-se dum Sá-Carneiro insólito, que explora
uma veia cómica e paródica. Este «grande drama policial», que curiosamente o autor
faz decorrer em Paris, em 1915, é, de facto, todo construído à volta do roubo dumas
ligas duma bailarina chamada Miss Boston; um crime que permite revelar ao doutor
Watson, «o segundo detetive do mundo», o seu talento na difícil arte da dedução
científica – arte que a peça com algum humor caricatura. As personagens, como já
disse, são seis e permitem fazer algumas considerações acerca da possível paternidade
da obra e da sua datação: O Dr. Watson, Miss Boston, o seu marido Raffles, a criada
Julieta, Sherlock Holmes e Arsénio Lupin!
Agora, tendo em conta que Maurice Leblanc criou a personagem de Arsénio Lupin
em 1905 (a primeira aventura do «ladrão de casaca», L’arrestation d’Arsène Lupin,
«Um peso de mândria sobre mim»: Sá-Carneiro inacabado 471

apareceu no dia 15 de julho de 1905 na revista parisiense “Je sais tout”), o manuscrito
não pode ser anterior a esta data. Temos, evidentemente, que considerar a hipótese
deste «grande drama policial condensado em 1 acto» ser apenas uma tradução ou uma
adaptação dum original francês – já que entre 1908 e 1911, três foram as peças francesas
levadas ao palco inspiradas nas aventuras do gentleman-cabrioleur10. Nenhuma delas,
porém, apresenta afinidades temáticas com o texto esboçado no manuscrito. Além
disso, como é sabido, Maurice Leblanc não foi autorizado por Conan Doyle a usar
as suas personagens e decidiu contornar o problema, criando para a primeira edição
em livro das aventuras de Lupin, Arsène Lupin gentleman cambrioleur (Paris, 1907),
o Doutor Wilson e Herlock Sholmès, evidente homenagem paródica à celebérrima
dupla detetivesca inventada pelo escritor inglês11. Agora, o manuscrito sacarneiriano
tem, entre as suas personagens, Sherlock Holmes e o Doutor Watson – os originais,
portanto, não as caricaturas – o que leva a considerar o texto sacarneiriano de alguma
maneira autónomo face a possíveis antígrafos franceses12.
Além disso, relevante é também a presença da personagem Raffles – que é o
nome dum outro ladrão literário da Belle Époque, Arthur J. Raffles, neste caso inglês,
criado em 1899 por Ernest William Hornung13. As aventuras de Raffles, hoje pouco
conhecidas, nas primeiras duas décadas do século XX tiveram muito sucesso e foram
sem dúvida uma fonte de inspiração também para Maurice Leblanc. Enfim, quem
escreveu YW. 248 K. apreciava a literatura detetivesca da sua época e, apropriando-se
de personagens alheias, criadas por outros autores, «was following a well-established
tradition within the detective/crime fiction genre, namely cross-referencing in order to
increase the status of one’s own hero» (DRAKE, D., 2009: 112); agora, se é verdade que
Mário de Sá-Carneiro, a 21 de abril de 1913, parece desconhecer Estudo em Vermelho

10 A 28 de outubro de 1908, no teatro Athénée, foi representada a peça em 4 atos Arsène Lupin de Francis de
Croisset e Maurice Leblanc; dois anos mais tarde foi levado ao palco do Teatro do Châtelet, Arsène Lupin
contre Herlock Sholmès, uma peça em 4 atos de Victor Darlay et Henry de Gorsse, e, poucos meses mais tarde,
Leblanc escreve a peça Une Aventure d'Arsène Lupin  noticiada no “Comoedia”de 17 de setembro de 1911,
revista de que, como é sabido, Mário de Sá-Carneiro era assinante.
11 «In June 1906, possibly at the instigation of Lafitte, Leblanc wrote Holmes into a Lupin short story entitled
Sherlock Holmes arrive trop tard (…). Following letters from Conan Doyle’s lawyers, Leblanc was obliged to
change Holmes’ name, and in subsequent publications of the story he appears as Herlock Sholmès. Sherlock
Holmes/Herlock Sholmès, now accompanied by his faithful friend, not Watson but Wilson, features in La
Dame blonde and La Lampe juive, which were published between November 1906 and October 1907 and
appeared in book form as Arsène Lupin contre Herlock Sholmès in 1908. Holmes/Sholmès appeared again in
the novel L’aiguille creuse, published in Je sais tout between November 1908 and May 1909 and in book form
under the same title in June 1909» (DRAKE, D., 2009: 110)
12 De resto, parece pouco provável que, entre 1905 e 1906, Sá-Carneiro assinasse a recém criada revista “Je sais
tout”.
13 O nome desta personagem apresenta ligeiras diferenças ao longo do texto – Rafles, Raflles, Raffles – mas é
provável que Sá-Carneiro se tenha apropriado da personagem criada por Hornung.
472 100 Orpheu Giorgio De Marchis

de Conan Doyle, também é verdade que não faltam referências a romances policiais
na correspondência dum autor a quem a leitura no “Matin” dos Mistérios de New
York, poucas semanas antes de suicidar-se, dava «muito prazer» (SÁ-CARNEIRO,
M., 2001: 261).
Finalmente, o nome de Garcia Perez – o único ator indicado, a quem caberia o
papel do Doutor Watson – permite colocar a peça no meio teatral e estudantil do Liceu
São Domingos, onde Mário de Sá-Carneiro, como declarou o mesmo Rogério Garcia
Perez, sobressaia graças ao seu conhecimento dos teatros franceses e à possibilidade
de ler jornais e revistas parisienses de que Mário era assinante – e no manuscrito em
questão Raffles faz uma explícita referência ao Folies Bergère e à revista “Comoedia”...
Agora, sem dúvida este manuscrito não apresenta nenhuma afinidade temática
e formal com peças como Amizade e Alma. Trata-se dum exercício dramatúrgico
claramente anterior, que, do meu ponto de vista, podemos considerar uma tentativa,
inacabada, ligada à atividade teatral do Grupo Dramático do Liceu de São Domingos,
no qual Mário participou como ator cómico e como autor de uma revista de costumes
populares e académicos.
Se eu tivesse, portanto, que propor uma possível datação para este manuscrito
colocá-lo-ia entre a viagem a Paris no verão de 1907 e o mês de dezembro de 1909,
quando o poeta começa a escrever Amizade. E não resisto à tentação de lembrar
que, em junho de 1907, se publicava em Paris o primeiro volume de aventuras do
heroi criado por Leblanc, Arsène Lupin gentleman cambrioleur. Imagino Mário, com
dezassete anos de idade, que, numa livraria parisiense, compra essa novidade, lê
o livro com o mesmo prazer com que poucos meses antes do seu falecimento lerá
Os Mistérios de Nova York e, de volta a Lisboa, tenta levar ao palco as aventuras do
elegante ladrão francês.
Se assim fosse, mesmo inacabado, este texto seria uma das primeiras tentativas
(senão a primeira em absoluto) de adaptação para o teatro da personagem de Arsène
Lupin. Infelizmente, porém, limito-me a imaginar porque eu, ao contrário do
sacarneiriano doutor Watson, não posso afirmar que o deduzi cientificamente…

Bibliografia

Bibliografia Ativa
SÁ-CARNEIRO, Mário (s/d). YW. 248 K. Manuscrito inédito.
SÁ-CARNEIRO, Mário (1977). Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Luís de
Montalvor/Cândida Ramos/Alfredo Guisado/José Pacheco. Leitura, selecção e
notas de Arnaldo Saraiva. Porto: Limiar.
«Um peso de mândria sobre mim»: Sá-Carneiro inacabado 473

Sá-Carneiro, Mário (1992). Cartas a Maria e outra correspondência inédita.


Leitura, fixação e notas de François Castex e Marina Tavares Dias. Lisboa:
Quimera.
Sá-Carneiro, Mário (1995). Juvenília dramática. Introdução de Manuela
Nogueira. Nota de Maria Aliete Galhoz. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa
da Moeda.
SÁ-CARNEIRO, Mário (2001). Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa.
Edição de Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio e Alvim.

Bibliografia Passiva
CASTEX, François (1971). Mário de Sá-Carneiro e a génese de “Amizade”. Coimbra:
Almedina.
CASTEX, François (1985). «Un conte inédit de Mário de Sá-Carneiro. Biographie
ou autoportrait?». In: Revista da Universidade de Coimbra, 31, pp. 149-157.
DE MARCHIS, Giorgio (2007). O silêncio do dândi e a morte da esfinge. Edição
crítico-genética de Dispersão. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
DRAKE, David (2009). «Crime Fiction at the Time of the Exhibition: the Case of
Sherlock Holmes and Arsène Lupin. In: Synergies, 2, pp. 105-117.
REIS, Carlos (1997). «Fradique Mendes (Carlos)». In: Biblos, II. Lisboa: Verbo, p.
674.
REBELLO, Luiz Francisco (1987). «Nota Introdutória». In: SÁ-CARNEIRO,
Mário – LEÃO, António Ponce de. Alma. Original em 1 Acto. Lisboa: Rolim,
pp. 7-24.
RUAUD, André-François (2011). Arsène Lupin, une vie. Montélimar: Les Moutons
Électriques.
TORIELLO, Fernanda (1987). La ricerca infinita. Omaggio a Mário de Sá-Carneiro.
Bari: Lusitania.
A loucura e o génio de Orpheu

Fernando Cabral Martins


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa

Palavras-chave: Modernismo; Vanguarda; Loucura; Fernando Pessoa; Mário de Sá-Carneiro;


Orpheu.
Resumo: Uma discussão da importância estratégica, simbólica e temática da loucura no
contexto da produção da revista Orpheu e, depois, no quadro da obra essencial de alguns dos
modernistas portugueses.

A Vanguarda provoca no público seu contemporâneo a sensação de que houve


um enlouquecimento colectivo dos artistas que a si mesmos se descrevem como
avançados. Além disso, as alterações da representação mimética nas artes visuais
pode ser sentida como uma espécie de dissolução psíquica. A libertação das regras do
razoável é uma queda perigosa no campo do irracional e do inconsciente.
Ora, a circunstância de Orpheu é, precisamente, a da Vanguarda – onde a loucura é
a marca de um excesso e de uma crise. De um excesso em relação aos limites da razão
e do sentido, e de uma crise em relação aos protocolos milenares da representação.
No entanto, a temática da loucura pode ganhar um inequívoco sinal positivo, se
considerarmos que Almada Negreiros e Fernando Pessoa, por exemplo, muitas vezes
fazem o elogio, ao longo da sua obra, de uma loucura criadora. Esta é já uma outra
loucura, ou então é a mesma de outra perspectiva. Nela se transpõe para a linguagem
da experimentação e da coragem temerária, quer dizer, para a linguagem da estética
e da política, aquela mesma palavra que constitui o insulto escandalizado do público
burguês, apegado às tradições, perante as rupturas da Vanguarda. A loucura para os
modernistas deixa de ser considerada uma doença, passa a ser afirmada como um valor.

A) OS MALDITOS E OS VANGUARDISTAS

Tudo começa com Baudelaire, e com o spleen que constitui o coração das Flores
do Mal. Mais tarde, quando é constituída a personagem-emblema do Decadentismo,
o Des Esseintes do romance de Huysmans À Rebours, de 1884, define-se a noção da
476 100 Orpheu Fernando Cabral Martins

nevrose essencial da modernidade. A nevrose é o resultado do desacerto radical entre


uma cidade moderna burguesa, cujo valor essencial é o lucro, e os antigos valores
aristocráticos da arte. O tema decadentista da torre de marfim, tão glosado na lírica
fim-de-século, não significa senão esse afastamento depressivo do mundo, essa
marginalização e autodestruição física dos poetas.
Há, em Portugal, um poeta maldito que, tal como Verlaine, acaba nos hospícios e nos
asilos, e que é o estranho e poderoso poeta chamado Gomes Leal. A sua figura, tanto
como a sua poesia, há-de ser uma referência importante para a geração surrealista dos
anos 40 e 50 do século XX português. Nele, a presença de comportamentos designados
como de insanidade mental é a tradução de uma incompatibilidade com o meio
social e cultural. Gomes Leal é um exemplo perfeito do decadentista, precisamente
porque faz explodir a coerência ideológica, ele que sempre fora poeta satânico,
convertendo-se ao catolicismo no preciso momento da revolução republicana. Ele
muda de ideias quando não é suposto, afasta-se do rumo dos seus próximos, pratica
a liberdade de ser como lhe apetece. Ora, divergir do rumo da maioria, não dar conta
de si a ninguém, é o caminho directo para ser declarado louco. Aliás, Gomes Leal
está na senda da Vanguarda de um modo nítido, pois tem poemas (por exemplo,
“Nevrose Nocturna”) em que, extraordinariamente, coincide com Lautréamont. Mas,
e esse é o ponto que parece relevante, a existência de uma poética do excesso, de
um “desregramento de todos os sentidos” como queria Rimbaud, na poética desses
visionários a que também se chama “malditos”, eis o que só pode ser explosivo, do
ponto de vista cultural e artístico.
Depois, no caso de Orpheu, a quebra não é entre uma arte de elite e uma arte
popular, entre uma arte que reivindica a sua autonomia e uma arte de massas, segundo
uma teoria geralmente aceite do que hoje chamamos Modernismo. A quebra é, antes,
entre dois tipos de filosofia política da arte: aquele que concebe as experiências
artísticas de ruptura como merecedoras de crédito, e aquele que permanece apegado
a um decálogo conservador das normas da racionalidade.
Não é por quaisquer razões de falta de preparação ou de inteligência que os
leitores de Orpheu não compreendem a arte dos novos poetas e dos novos pintores.
Simplesmente, recusam-se a compreender. E nem sequer o exemplo de Ângelo
de Lima, que é um simbolista que se torna vanguardista de um momento para o
outro, é capaz de tornar evidente que o gesto da Vanguarda apenas leva às últimas
consequências o gesto do Decadentismo finissecular.
De qualquer modo, quando em 1924 vier a ser lançado o primeiro manifesto do
Surrealismo, as questões do irracional e do extravagante já não se vão colocar como
simples formas de provocação. Por exemplo, num numéro da revista surrealista
Feuilles Libres, desse mesmo ano de 1924, é publicado um conjunto de escritos de
A loucura e o génio de Orpheu 477

internados em hospitais psiquiátricos. Depois, Salvador Dali propõe uma teoria da


paranóia-crítica, ao mesmo tempo que Antonin Artaud, também futuro interno de
hospício, conduz a poesia para o exterior da razão. A afirmação da loucura – da loucura
do sentido – torna-se central para a arte. É da mesma ordem do sonho visionário.

B) A LOUCURA POLITICAMENTE CONSIDERADA

No marcante Vocabulário da Filosofia de Lalande, que sai em primeira edição em


1926 mas tem sido reeditado até hoje (e que cito pela edição de 1983), são definidos
cinco tipos de loucura: - a das grandezas; - a da perseguição; - aquela a que chama
loucura circular, e que hoje designamos habitualmente por bipolaridade; - e duas outras
formas que são a loucura moral e a loucura da dúvida. Ora, estas duas últimas são
perversões dos “sentimentos normais de moralidade”, e da “impossibilidade de chegar
a afirmações ou decisões firmes”, isto tudo sem que a “inteligência dos factos” seja
atingida. Estas são formas de loucura que atacam especificamente a impossibilidade
de fundar valores e a de acreditar em princípios claros de bem e de mal. Lalande não o
faz, mas poderia acrescentar uma sexta loucura, que seria a loucura artística, situada
neste preciso momento em que o século XX descarrila e toma a forma de Vanguarda.
No fundo, o que está presente nesta análise é um entendimento da representação
mimética e do sentido claro como um princípio de racionalidade, entendendo-se
todo o desvio dessa representação e desse sentido como uma perversão.
O final do século XIX é particularmente permeável aos discursos normalizadores
de psiquiatria, e o nome de Max Nordau torna-se notável pela sua associação do
Simbolismo a uma doença mental, a uma degenerescência da boa e são razão, de modo
mais ou menos directo. Daí que sejam dois médicos, Júlio Dantas e Júlio de Matos,
as vozes principais a intervir aquando de Orpheu. Na verdade, move-os a consciência
de que a arte e a literatura são muito importantes para a configuração psicológica
dos leitores, para a definição dos seus mundos e dos seus valores. Assim, julgam
necessário atacá-la directamente e expô-la como indutora de perigosas tendências,
tentando esvaziar de energia as suas ideias motrizes, e recusando liminarmente a sua
autonomia.
Investidos na qualidade de defensores da sanidade mental da burguesia culta, Júlio
Dantas e Júlio de Matos lutam contra os “doidos” de uma arte extravagante. A 30 de
março de 1915, sai na primeira página do diário A Capital um artigo, “Literatura de
manicómio”, em que se defende a ideia de que os poetas de Orpheu são “casos de
paranóia”. A 11 de abril, «Arte exótica: os poetas do “Orfeu” e os alienistas. Fala Júlio
de Matos» (A Luta). No dia 17, «Rilhafolescamente… : A humanidade avança… mais
478 100 Orpheu Fernando Cabral Martins

200 anos e a o mundo será um grande manicómio» (O Povo). No dia 19, Júlio Dantas
publica o seu célebre artigo artigo «Poetas Paranóicos» (Ilustração Portuguesa), em
que enuncia como sistomas de alienação mental a “extravagância” e a “incoerência”,
que são alterações dos princípios clássicos da composição.
Três meses mais tarde, logo a seguir à publicação do segundo número, A Capital
publica a 28 de junho um artigo intitulado “Artistas de Rilhafoles”. E, a 5 de julho, sai
em O Mundo outro artigo com o título “Literatura de Manicómio Astral”.
Ora, quando se considera o coro bem-pensante das reacções da imprensa a
Orpheu, deste conjunto de diagnósticos de loucura associada aos poetas e pintores
da nova geração resulta o Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros, em 1916, que
vai constituir uma manifestação de alegre desmesura de quem leva a provocação às
suas últimas consequências. O tom e o alcance do Manifesto Anti-Dantas é tornado
inevitável pelo próprio teor dos ataques produzidos por Júlio Dantas na polémica de
Orpheu. O ataque à figura do médico, dramaturgo e escritor prestigiado não procura
apenas pagar os diagnósticos infamantes que ele tinha publicado, mas configura-se
como um manifesto de afirmação geracional.

C) A ARTE ENTENDIDA COMO FORMA DE LOUCURA

De resto, Pessoa escreve, por exemplo, e traduzo de um apontamento em inglês, que


“O próprio facto de ser poeta exclui a normalidade”. Mas isto tem a ver apenas com o
facto de a poesia ser a consciência essencial do humano – pois, como escreve noutro
passo, “A loucura, longe de ser uma anormalidade, é a condição normal humana”
(Génio e Loucura, I, pp. 122 e 154).
Mais tarde, no texto de uma entrevista que deve ser dos anos 30 (e que só é
publicada pela 1.ª vez na revista Colóquio 48, em abril de 1968), Pessoa rememora o
que foi a preparação da revista, e refere-o espontaneamente a questões de saúde
mental: “Sá-Carneiro gostou muito que eu o definisse como um histero-epilético
e a mim mesmo como um histero-neurasténico; dou mais, aliás, pela segunda
classificação do que pela primeira. Quando se tratou, porém, de encaixar entre as
psiconevroses criaturas de uma saúde mental tão indecente como o Alfredo Guisado ou
o Cortes-Rodrigues, a psiquiatria – ou, pelo menos, a minha – foi abaixo. ‘São rapazes de
muito talento, mas infelizmente são normais’, queixou-se então o Sá-Carneiro”. Lê-se aqui
o que poderia ser um diagnóstico do foro psiquiátrico do Orpheu, simplesmente virado
do avesso e afirmado como uma qualidade.
Na mesma entrevista dos anos 30, lê-se ainda esta análise: “– Comecemos por
distinguir três coisas que habitualmente se confundem quando se fazem referências
A loucura e o génio de Orpheu 479

ao Orpheu ou aos “poetas do Orpheu”. Por Orpheu entende-se umas vezes a revista
com aquele nome, de que saíram só dois números, em março e junho de 1915; outras
vezes os que estiveram ligados a ela, ainda que como simples espectadores próximos
ou amigos, e sem que nela influíssem ou colaborassem; outras vezes ainda, os que
escreveram subsequentemente em estilo semelhante ou aproximado ao dos que de
facto colaboraram no Orpheu.”
Esta análise é importante porque manifesta a natureza colectiva da poética de
Orpheu. Apesar das singularidades de Pessoa, Sá-Carneiro, Ângelo de Lima, Raul
Leal, etc., há uma unidade que é cimentada pela própria marginalização de que são
vítimas, pela acusação de serem todos mais ou menos “doentes mentais”. Mas, por
outro lado, essa “doença” é caracterizada como de natureza estilística. É, pois, de um
enlouquecimento do estilo ou da escrita que é questão, é como se o próprio cerne
da actividade poética tivesse saído de vez das calhas da razão. É a consequência
portuguesa de Rimbaud, por exemplo, e da Vanguarda que continua a obra inicial de
Rimbaud, e a consequência do seu célebre “desregramento de todos os sentidos”. Um
pouco mais perto da raiz, é a vontade que se lê em Baudelaire de “mergulhar no mais
fundo abismo para descobrir o Novo”.
Assim, além de uma alteração qualitativa das relações entre os artistas e o seu
público, a loucura órfica vanguardista também contém um método de trabalho, e ela
é, em si mesma, um programa estético.

D) O CASO ÂNGELO DE LIMA

Os nomes dos poetas vanguardistas de Orpheu que provocam maior efeito nos
leitores, sobretudo por via do que é percebido como uma deliberada afirmação da
loucura, são Raul Leal, Sá-Carneiro e Álvaro de Campos. Mas a proposta mais radical
é a de Ângelo de Lima. No caso deste poeta, que está efectivamente internado há largos
anos num hospital psiquiátrico de Lisboa, além dos processos estilísticos insólitos e
da fragmentação do discurso poético, é a própria razão que se vê retirada de cena. Não
são só as regras do razoável que são infringidas, são também os trâmites habituais do
representável. Com Ângelo de Lima, qualquer leitor sabe que se está a aventurar numa
terra desconhecida, onde tudo é possível. Trata-se de uma experiência dos limites, e
de uma experiência-limite.
É curioso notar, a este respeito, um certo folheto publicitário do Orpheu 2 (agora
republicado no volume Sobre Orpheu e o Sensacionismo) em que se anuncia a
colaboração nesse número do “futurista Santa Rita Pintor” e ainda a publicação de
um Manifesto da Nova Literatura, “redigido por Fernando Pessoa”. E, depois, a nota
480 100 Orpheu Fernando Cabral Martins

que sai no Orpheu 2 a justificar a sua não inclusão: “O Manifesto da Nova Literatura,
que havia sido anunciado como devendo fazer parte do n.º 2 de ORPHEU, não é
nele inserto nem o acompanha. É motivo disto a circunstância de que, envolvendo
a confecção desse manifesto o desenvolvimento de princípios de ordem altamente
científica e abstrata, ele não pôde ficar concluído a tempo de ser inserto.” Esta nota,
com toda a evidência, procura um caminho sério e racional de comunicação, que se
opõe ao tom mais tipicamente vanguardista do anúncio feito por Sá-Carneiro, inserto
nesse mesmo n.º 2, de uma conferência intitulada “As Esfinges e os Guindastes:
Estudo do Bi-Metalismo Psicológico”. Neste último caso, a própria extravagância do
tema condiz com o tom humorístico, e, ao contrário das outras três conferências que
são anunciadas no mesmo n.º 2, essa conferência proposta sobre a relação entre as
esfinges e os guindastes sugere ser uma blague e pouco mais que uma blague.
Mas este projecto de um Manifesto da Nova Literatura proposto por Fernando
Pessoa, com “o desenvolvimento de princípios de ordem altamente científica e
abstrata” que é aí anunciado, se tem um tom vagamente irónico, não deixa também de
afirmar a vontade de contrariar a aparência de blague generalizada que a revista parece
oferecer. Sobretudo quando recordamos que Fernando Pessoa já tinha desenvolvido,
três anos antes, nos artigos sobre a “Nova Poesia Portuguesa” publicados em 1912
na revista A Águia, “princípios de ordem altamente científica e abstrata”. Uma tal
instrução sugerida por Pessoa parece ter como objectivo tornar, de algum modo,
possível que um leitor desprevenido se aventure pela poesia de Ângelo de Lima, que
aceite percorrer aquele conjunto precioso de textos que a revista inclui, apesar de
se apresentar do modo mais inesperado, semeado com uma ortografia extravagante,
em que até se pode encontrar, nos seus vários poemas, mas sobretudo em “Edd’ora
Addio... – Mia Soave!...”, a criação de uma linguagem que lembra a língua zaoum dos
futuristas russos, ou algumas experiências dadaístas. Essa, aliás, é a útima perversão,
ou a mais furiosa das loucuras, pois não são apenas o sentido e a representação que
se esvaem, é já a própria língua que se dissolve, tornando-se possíveil a aparição de
novas palavras e de uma nova sintaxe.
Em suma, esse Manifesto da Nova Literatura, de Fernando Pessoa, anunciado para
o Orpheu 2, não será tanto para ser entendida enquanto projecto programático, mas
antes como um gesto, ou uma sugestão, em ligação directa ao cronótopo lisboeta
e português, que deve ser interpretado – nesse contexto preciso de comunicação
poética – como uma chamada de atenção para o específico trabalho de arte que
Orpheu leva a cabo, procedendo segundo um método preciso, como se fosse uma
ciência experimental. A extravagância poética é compensada com a ideia de novidade
científica.
A loucura e o génio de Orpheu 481

E) O CASO ÁLVARO DE CAMPOS

O Orpheu 2 é lido no seu tempo como sintomático da mais estrita loucura literária.
Quer dizer, a metáfora da loucura é de tal modo saturante que quase deixa de ser
metáfora. Reproduzo, como exemplo disso, a notícia dada pelo jornal A Luta de 2 de
julho: “Orpheu – É o n.º 2. A loucura em marcha. Não já um átrio da loucura, mas a
doidice plena, a loucura no seu zénite. Abre o número com versos doidos de um poeta
que há anos está internado em Rilhafoles. Os que se seguem, se não estão deveriam
estar.”
De um ponto de vista da defesa das formas dominantes, são sobretudo estranhos,
no Orpheu 2 – além dos “Poemas Inéditos” de Ângelo de Lima e de “Manucure” de
Mário de Sá-Carneiro – os desmesurados poemas assinados por Álvaro de Campos e
Fernando Pessoa. Quer “Ode Marítima” quer “Chuva Oblíqua” têm um virtuosismo
e um fôlego poéticos a tal ponto evidentes que não chega a haver bem a percepção,
por parte dos leitores estupefactos, de que sejam frutos da insanidade mental, ou de
que tenham, como a Manucure, uma manifesta vontade de épater le bourgeois, ou de
ostentar o processo formal ao ponto de obrigar à rejeição do leitor. De facto, as críticas
da imprensa escolhem sistematicamente o poema de Sá-Carneiro, e “Chuva Oblíqua”
não é sequer citado. Quanto à “Ode Marítima”, de uma das raras vezes que é citada, é-o
de modo fascinado. É em A Capital, num artigo de 28 de junho: “A trapalhada mais
extraordinária e mais assombrosa que encerra o novo número do Orpheu é a ‘Ode
Marítima’ de Álvaro de Campos. Torna-se forçoso reconhecer que há nela qualquer
coisa de superior ao resto e que o seu autor tem talento apesar da maluqueira. Não
queremos com isto dizer que se possa considerar a ‘Ode Marítima’ um lavor artístico.
De modo nenhum! Mas parece-nos que a sua leitura permite apreciar com mais
segurança a fisio-psicologia, tão profundamente mórbida, daqueles a que chamam
os paúlicos.”
Álvaro de Campos é, com efeito, um caso especial entre todos. E aquele adjectivo,
“assombrosa”, serve, sem dúvida, para reconhecer o impacto da “Ode Marítima” e a
sua dimensão. Mesmo o olhar mais desatento e mais adverso é impressionado pela
evidência do génio.
Álvaro de Campos exemplifica, também, que a alegoria da catástrofe que transporta
a revista e a geração literária e artística à sua volta é um modo comum de dar
sentido aos caminhos da Vanguarda, tal como o Manifesto do Futurismo em 1909 a
desencadeou. É que são os próprios poetas modernistas, enquanto tais, que se medem
com os lampejos e os medos de demência. Sá-Carneiro, por exemplo, já publicara,
em 1912, no livro Princípio, uma novela, “Loucura...”, em que se constrói um caso de
violência extrema sobre os alicerces de uma consciência moderna agónica do tempo.
482 100 Orpheu Fernando Cabral Martins

É que a demência que assola o homem moderno não é apenas um tema literário ou
artístico, e aquela “dissociação da sensibilidade” de que fala T. S. Eliot no seu célebre
artigo sobre os Poetas Metafísicos, em 1921, não se resume a uma mera condição
poética. Os próprios psiquiatras referem a dissociação da sensibilidade – ou seja, a
separação entre o pensamento e a emoção, entre o intelecto e a sensação – como um
sintoma de dementia praecox (SASS: 357). Esta forma de demência é apontada para a
história psicológica do homem moderno, mas replica o que Max Nordau julgava ser
uma criação doentia dos Decadentistas.
De todo o modo, esta dissociação da sensibilidade é tratada por Fernando Pessoa
como um dos temas maiores da sua obra, e Ricardo Reis, por exemplo, será um
heterónimo quase por inteiro dedicado a uma longa glosa da descoincidência entre
o pensar e o sentir. Tal como, por outro lado, Alberto Caeiro tem toda a importância
que o lugar de Mestre lhe atribui no “drama em gente”, exactamente porque ele é capaz
de ensinar a resolver a dissociação da sensibilidade, isto é, curar essa forma moderna
de dementia.
Quanto a Álvaro de Campos, ele fala, na Ode Triunfal, dos “nervos doentes da
Matéria”, e expõe assim uma visão do mundo contemporâneo que não se refere já
apenas a uma doença individual de seres concretos atingidos por um qualquer mal
interior. E essa condição civilizacional definida como os “nervos doentes da Matéria” é
uma ampliação considerável do ponto de vista psiquiátrico. Álvaro de Campos formula
com essa expressão um tipo de relação entre o homem e o mundo que é dolorosa e
violenta, e essa relação existe porque o desenvolvimento industrial e tecnocientífico
assim a reconfigurou. Estes “nervos doentes” referem um tipo de enlouquecimento
que é o da sociedade industrial, o das grandes urbes contemporâneas e o das
comunicações de massa. A loucura que o poema recebe e transforma em poesia é a
loucura exterior. Tudo o que faz o poema é revelar a loucura da matéria tornando-a
clara, organizada, e taribuindo-lhe um sentido. A poesia, neste sentido, e a própria
arte de Vanguarda como um todo, oferecem uma poderosa terapêutica para a “doença
dos nervos” do mundo moderno, uma resolução artística das dúvidas e das cisões, das
contradições impossíveis de resolver, do som e da fúria sem fim.
Finalmente, são precisamente aqueles que sentem a “doença dos nervos da Matéria”
que são acusados de serem doidos, o que mostra que andam mais depressa que os seus
contemporâneos, e que são, portanto, de Vanguarda. Mas, para além de serem antenas
sensíveis ao que o mundo tem de novo e de violento, os artistas de Vanguarda são os
que preparam a arte futura, aquela que se chama a Arte Moderna. São aqueles que
dão sentido à experiência colectiva e reformulam as possibilidades de expressão, são
aqueles que reconstituem as forças mentais, que desenham os novos instrumentos de
compreensão e de representação.
A loucura e o génio de Orpheu 483

Os grandes modernistas portugueses, sobretudo Almada Negreiros e Fernando


Pessoa, fazem repetida e explicitamente elogios da loucura. A Mensagem, único
grande livro publicado por Pessoa, é um vasto elogio da loucura. O próprio mito do
Sebastianismo assenta na ideia de uma loucura salvadora. Lê-se assim no poema de
Mensagem em que se apresenta “D. Sebastião, Rei de Portugal” deste modo eloquente:

Louco, sim, louco, porque quis grandeza



Qual a Sorte a não dá.

Acontece, portanto, que há por parte dos poetas de Orpheu uma irónica assunção
das acusações dos críticos de Orpheu, com, ao mesmo tempo, uma inversão do seu
sentido. O que implica também o reconhecimento da loucura como uma forma
crítica do mundo. Num poema de Almada Negreiros dos anos 30, intitulado
“Reconhecimento à Loucura”, lê-se:

Já alguém sentiu a loucura


vestir de repente o nosso corpo?
[...]
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?

O que está aqui implicado é, nada mais nada menos que o reconhecimento
modernista da loucura como a verdadeira, única transformação do mundo.

F) A PERDA DE SENTIDO

Álvaro de Campos é o grande acontecimento de Orpheu: ele é a experiência directa


da loucura enquanto a existência, a experiência, a alucinação de um outro mundo
dentro deste. Para o sublinhar, há no n.º 2 aquele sensato ponto de interrogação
colocado a seguir ao nome, no índice, “Violante de Cysneiros”. Enquanto que o nome
dessa figura misteriosa é acompanhado de um sinal que sugere a blague, ou até a
burla, o nome de Álvaro de Campos aparece limpo de quaisquer sinal.
Álvaro de Campos, o louco que é ao mesmo tempo o grande construtor de
odes, serve, entre outras coisas, para dar unidade aos dois números que entre si se
distinguem tanto. Na cortina que separa a sua colaboração no Orpheu 1, ainda é
mencionado que se trata de “duas composições de / Álvaro de Campos / publicadas
por / Fernando Pessoa”, estando o nome de Pessoa grafado num corpo de letra maior
484 100 Orpheu Fernando Cabral Martins

que o de Campos. Mas no Orpheu 2 a cortina que precede a sua colaboração tem
escrito com toda a clareza “Ode Marítima / por / Álvaro de Campos”. Ou seja, é como
se aquela figura de poeta autónomo nascesse e se impusesse aos nossos olhos.
Mas esta existência de papel está associada desde o princípio à neurastenia e ao
tédio, à febre, à violência interior, à mais explosiva imaginação. Sempre inconveniente
e provocatório, incompatibiliza-se com todos os jornalistas com quem troca
correspondência. Mas a sua loucura torna-se, a pouco e pouco, qualquer coisa como
uma metáfora.
No poema Lisbon Revisited (1923), Álvaro de Campos escreve:

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.


Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.

Neste momento, a capacidade de organização mental de que Álvaro de Campos


é capaz traduz-se nesta equação extraordinária, segundo a qual o modo adequado
de poder continuar a trabalhar e a produzir consiste em dividir-se interiormente,
uma parte de si completamente integrada – o técnico –, e outra parte completamente
marginalizada – o doido. A sua resposta aos desafios à racionalidade que há no mundo
moderno consiste em perder a totalidade interior, a unidade psíquica, e, em última
análise, em cindir-se, em perder a razão.
Mais tarde, num poema de 1924, Álvaro de Campos há-de esclarecer esse sentido
de uma loucura outra, que parece, a dado passo, não se distinguir de uma espécie
de razão, e que faz lembrar aquela “grande razão” de que fala Nietzsche – e de que
hão-de falar os surrealistas – que é uma espécie de loucura que não tem lugar nos
compêndios de psiquiatria, e não tem remissão nem repouso:

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém.


Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco

Cerca de dez anos mais tarde, Álvaro de Campos escreve um poema em que diz:
“Tenho a loucura exactamente na cabeça.” É um poema que termina com estes versos:

Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o.
Com esforço, mas era para bom fim.
Ao menos era para um fim.
E assim como sou não tenho nem fim nem vida…
A loucura e o génio de Orpheu 485

Aqui, a loucura que ele tem “exactamente na cabeça” define-se de um modo nítido.
É um efeito preciso, localizável, quase físico. E, no final do poema, percebe-se que ele
coincide com o tema da perda do sentido: “não ter um fim”. Diz que, “assim como
sou”, não existe fim nem vida, sequer. A vida, para merecer esse nome, tem de fazer
algum sentido, ainda que mínimo. Este não ter um “fim”, noutro poema de 1928,
exprime-se pelo verso “Fui, como ervas, e não me arrancaram.”
Toda a questão para Álvaro de Campos se fulcra no tema da perda de sentido,
que é, por outro lado, o tema da morte de Deus. É essa, afinal, a sua interpretação
possível para o tema da loucura. Pelo menos, é assim muito claramente para Bernardo
Soares, que escreve num trecho do Livro do Desassossego: “É toda a falta de um Deus
verdadeiro que é o cadáver vácuo do céu alto e da alma fechada. Cárcere infinito –
porque és infinito, não se pode fugir de ti!”. Assim, habitar um universo sem Deus é
habitar um universo sem saída, claustrofóbico. É essa exactamente a loucura, o nada
ter um fim, o nada ter sentido.

G) A QUESTÃO HETERONÍMICA

A preocupação de Fernando Pessoa com a temática da loucura, a que chama


“a sombra mórbida que veio e continua sobre nós” (Génio e Loucura, p. 437), é
permanente ao longo da sua escrita. Essa preocupação prende-se também com a
importância conferida à nova ciência nascente da psicanálise. De uma forma mais
orientada, na sua juventude interessa-se pela análise psiquiátrica de Max Nordau
a propósito do Simbolismo-Decadentismo, escrevendo muito sobre a questão do
génio e da loucura. O tom geral do tratamento desta questão é a especificação de
um enquadramento científico para a experiência artística, e é, também, a tentativa
de desconstruir a pressão do Simbolismo-Decadentismo e das suas aporias, como o
afirma repetidamente. E continuará toda a sua vida a tentar usar a ciência da psique
como instrumento de teoria e de ficção.
Encontra-se em 1918, por exemplo, o seguinte fragmento, que Pessoa destina a um
livro que se intitularia “Génio e Loucura” – e que cito aqui porque, já a seguir, serão
importantes as definições que apresenta: “A epilepsia favorece os homens dotados
para a acção, a histeria os dotados para a emoção, os estados neurasténicos os dotados
para o pensamento” (Génio e Loucura, p. 152).
Ora, em 1935, na Carta sobre a Génese dos Heterónimos, a heteronímia, cujo
nascimento está cronologicamente ligado a Orpheu, é explicada na sua génese
poética aos seus leitores, por intermédio daquele seu correspondente especial que
é Casais Monteiro. Nessa carta fundamental, a raiz da heteronímia é associada a um
486 100 Orpheu Fernando Cabral Martins

quadro clínico psiquiátrico específico: “A origem dos meus heterónimos é o fundo


traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou,
mais propriamente, um histeroneurasténico.” Estes não são traços que desenhem
uma psicose propriamente dita, embora sugiram uma sensação de determinação
temperamental, ou de desequilíbrio, que relacionam – como no caso da questão
antiga da correlação génio-loucura – a tendência para criar autores imaginários com
um quadro mental fora da normalidade.
Mas a questão heteronímica é menos uma questão importante do ponto de vista
teórico, ou sistémico, e é mais uma ficção que, na obra de Pessoa, se entrelaça com
todas as outras ficções que cada texto poético ou ensaístico cria de per si. Apesar
da ofuscante presença do desdobramento heteronímico, nas suas múltiplas variantes
de intensidade, o facto poético essencial da obra não reside nessa arquitectura. Este
exemplo da sua autodefinição é claro a este respeito: precisamente, essa autodefinição
como histero-neurasténico, que é a primeira e a fundadora para toda a construção
ficcional que se lhe segue, não é outra coisa senão uma resolução final da dissociação
da sensibilidade. É que essa síntese histero-neurasténica é também a síntese, como se
lê no texto de 1918 atrás citado, entre a emoção - que é favorecida pelo traço histérico
– e o pensamento – que é favorecido pelos “estados neurasténicos”. Logo, é também a
síntese entre emoção e pensamento, e a tradução em vocabulário científico do verso
fulcral de todo o Pessoa que é “O que em mim sente está pensando”.
Pelo que a loucura, ou o que dos seus traços a razão determina como eficazes,
pode ser afinal ser um tema poético que se aproxima do ideal mesmo que habita
toda a sua obra, e que consiste em se libertar das prisões do autismo simbolista e
das dilacerações da razão e do coração. Portanto, esse tema é ainda o fundo em que
assenta o ensinamento do mestre Caeiro, aquele Sensacionismo que lida tão bem com
a perda de sentido que é a nossa condição antropológica. Eis Caeiro, em 1919:

Para mim, graças a ter olhos só para ver,


Eu vejo ausência de significação em todas as cousas;
Vejo-o e amo-me, porque ser uma cousa é não significar nada.
Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação.

E, assim, Alberto Caeiro faz da perda de sentido o próprio caminho para a


libertação e a felicidade.
A loucura e o génio de Orpheu 487

Bibliografia

Bibliografia Activa
PESSOA, Fernando (2006). Escritos sobre Génio e Loucura, 2 vol., ed. Jerónimo
Pizarro. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

Bibliografia Passiva
ELIOT, T. S. (1992). Ensaios Escolhidos, ed. e trad. Maria Adelaide Ramos. Lisboa:
Cotovia.
LALANDE, André (1983). Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie
(1926), 14.ª ed. Paris: PUF.
SASS, Louis A. (1992). Madness and Modernism. Nova Iorque: Basic Books.
Orpheu e a Guerra

Patrícia Soares Martins


Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Num texto publicado um mês após o desaparecimento do escultor Gaudier-Brzesca,


morto em Neuville St. Vaast a 5 de Junho de 1915, com 23 anos de idade, Ford
Madox Ford começa por falar ironicamente nos críticos ingleses 1. Defende que a
experiência artística é um valor em si mesmo e alega que independentemente do
seu conseguimento (ou não) no plano estético, a revista Blast, orgão dos vorticistas,
deve ser valorizada por aquilo que é: uma aventura e uma experiência. Com estas
palavras, Ford Madox Ford pretende responder à acusação da crítica aos artistas de
vanguarda que compara a velejadores desportivos navegando no cais enquanto que
os tipos sujos dos barcos de grande porte que rumam a nordeste se aventuram no alto
mar (“What fine fellows those yatchesmen are, in comparison with the dirty-looking
chaps whose ship is visible on the horizon, bound for the North-West passage”). Para
Ford Madox Ford os ironicamente designados “eye-openers” (abridores de olhos)
da crítica, falando dos velejadores da modernidade, nada teriam entendido. A sua
argumentação consiste em dizer que tais críticos desconhecem o sentido da palavra
experiência, a não ser que por tal se entenda qualquer coisa relacionada com carvão
(“since any experiment must turn inevitably to red-hot coals in their poor hands and
their poor heads”) e que, como nunca arriscam nada, é também pouco provável que
alguma vez lhes aconteça o absoluto desastre que vitimou o seu amigo Gaudier2.
Ford Madox Ford, escritor do círculo dos vorticistas, editor de Pound e de Lewis
e mais tarde de Joyce e de Hemingway, amigo de Conrad, foi também soldado e
ferido na guerra. Neste seu texto estabelece-se, ainda que subtilmente, uma relação
de equivalência entre a experiência artística e os desastres da guerra, conduzida por
uma mesma voragem na qual a vida e a morte se interceptam. Mas há mais do que
essa verificação. Há ainda, no modo como textualmente se vai estabelecendo essa
equivalência, a insinuação de que os que criticam as vanguardas não participam
na guerra senão pelo carvão, não pelas ideias. Ou seja, Ford Madox Ford escreve
como se a guerra dividisse também no campo artístico os críticos e os defensores da

1 Publicado inicialmente na revista The Outlook, a 31 de Julho de 1915.


2 O texto de Ford Madox Ford é citado parcialmente no livro de Ezra Pound, Gaudier-Brzeska - A Memoir, p. 17
490 100 Orpheu Patrícia Soares Martins

modernidade. Esta foi, aliás, a posição dos futuristas na guerra, para quem ela era a
“grande experiência”. Foi também a posição de um grande teórico da modernidade
como Apollinaire. Esta mesma ideia dividiu os mais importantes representantes da
geração de Orpheu, como os dois manifestos publicados em Portugal Futurista em
1917 claramente dão a entender: o de Almada a favor da posição de Portugal na guerra,
o de Álvaro de Campos (ao qual, pela sua especificidade teremos de dar mais atenção)
comparando a política europeia a um “Maelström de chá morno”3 e condenando a
guerra pelas suas causas e pelos seus objectivos, vendo-a como “a falência de todos
por causa de tudo”4.
Em Portugal, cuja participação na guerra foi tardia e em menor escala, não abundam
os testemunhos directos da frente de batalha. De entre os intelectuais mais destacados
da geração anterior à de Orpheu, Jaime Cortesão ou Raul Proença tomaram partido
pela participação portuguesa e marcaram com as suas ideias da guerra como expiação
e renascimento o movimento da Renascença Portuguesa. Raul Brandão, nas suas
Memórias, apesar da amizade pessoal com os dirigentes da ala Republicana (que, também
por pressão da carbonária, foram os responsáveis políticos pela participação de Portugal
na guerra, faz o retrato da República como uma sucessão de governos fracos) e explica
como essa decisão foi contestada internamente, fracturando a sociedade civil e dividindo
entre si tanto os monárquicos como os republicanos. Aquilino, que se encontrava em
Paris no momento em que se soube que Portugal iria enviar um contingente militar,
escreveu por esses dias páginas repletas de perplexidade e de apreensão, onde repete que
a sociedade civil não está preparada para a guerra e afirma que os ambiciosos políticos
que representam Portugal no estrangeiro procuram apenas obter dessa forma a simpatia
dos dirigentes europeus dos países envolvidos no conflito e que tardam em reconhecer
a recém-criada e ameaçada República portuguesa. Aquilino lamenta a sorte dos seus
“pobres, ignorantes e pacíficos labregos”, enviados para a frente de batalha sem qualquer
preparação militar prévia, eles que tanta falta fazem na pátria para cultivar a terra.5
A guerra deflagrou em 1914, em pleno fervilhar das manifestações de vanguarda
e abateu-se sobre a nova geração à qual os poetas e artistas de Orpheu pertenceram.
Aparentemente, tratou-se de um conflito que, embora latente, foi desencadeado por
uma série de decisões ao nível político que correspondiam a estratégias militares e
jogadas de antecipação com vista a obter rapidamente os objectivos pretendidos, pelo
que o sentimento quase geral foi de surpresa e de incredulidade. Ezra Pound, no seu
livro sobre Gaudier, dá conta do choque que a guerra representou, interrompendo

3 PESSOA, F., 2009: 252.


4 Idem. Ibidem.
5 RIBEIRO, A., 2014: 59.
Orpheu e a Guerra 491

abruptamente o ímpeto criativo das vanguardas: lembra-nos que, três semanas após a
publicação do primeiro número de Blast, a guerra a todos arrastou no seu turbilhão.
No pós-guerra o cenário das artes é já outro e o movimento em torno de Orpheu
estava extinto, não tendo sobrevivido à dispersão que ela provocara e à morte de três
dos seus nomes principais, Mário de Sá-Carneiro, que se suicida em Paris em 1916,
Guilherme de Santa-Rita e Amadeo de Souza Cardoso, vitimados respectivamente
pela tuberculose e pela gripe espanhola em 1918.
A suposição de uma espécie de continuidade natural entre a guerra e as práticas
artísticas de vanguarda, nos primeiros tempos da mobilização, parece suficientemente
documentada quando pensamos no caso de Gaudier enviando das trincheiras um
último manifesto para a revista Blast, ou no caso de Apollinaire compondo os seus
caligramas no “Front”, na qualidade de artilheiro e depois de oficial de cavalaria.
Com efeito, apesar da dureza das condições que descreve na correspondência com
Madeleine, os caligramas ditos da guerra dão continuidade ao tipo de composições
poéticas e visuais ou ideogramas líricos que publicara entre 1913 e 1914 na revista
de arte e de crítica que então dirigia, Les Soirées de Paris. Com esses poemas visuais
Apollinaire procurava dar poeticamente a ideia de simultaneidade, na sequência da
simultaneidade tipográfica dos manifestos de Marinetti.
Quer no caso de Apollinaire, que descreve em Caligrammes a guerra como
um “fogo de artifício de aço”6 quer no de Gaudier-Brzeska, amigo de Amadeo de
Souza-Cardoso,7 quer ainda no de Mário de Sá-Carneiro, encontramos o testemunho
da guerra directa ou indirectamente vivida sem que isso altere as práticas de
vanguarda e as concepções de antes da guerra. É porque uma continuidade entre a
guerra e as formas é pressuposta que Amadeo de Souza Cardoso, em carta de 1915
a Robert Delaunay, escreve: “Que charmosa é a guerra […] confesso-lhe o meu
pesar em estar tão longe. Gostaria de a sentir mais próxima e vivê-la directamente.
[…] Precisamos de alguma coisa mais forte – sou militarista!”8
Mário de Sá-Carneiro, por sua vez, numa carta a José Pacheco, compara a atmosfera
da cidade à que procurou descrever no seu conto “O Homem dos Sonhos”: “Paris da
Guerra é hoje, à noite – cidade do Homem dos Sonhos. Tudo mistério em volta: vago,

6 APOLLINAIRE, G., 1925: 101 (“Fête”).


7 De Souza-Cardoso que compara a outros artistas agrupados na exposição a que o seu texto se refere, diz
Gaudier Brzeska: “Souza-Cardoso comes nearer to my feelings. He has much colour as Kandinsky and a richer
kind in his “Musicien de Nuit”. A exposição em causa esteve patente ao público em Junho de 1914 na galeria
Holland Park Hall. A crítica de Brzesca foi publicada em The Egoist nessa mesma ocasião com o título “The
Allied Artists’ Association Ltd”, e foi transcrita por Pound, op cit, pp.31-35
8 Citado em AAVV, 1915: 314.
492 100 Orpheu Patrícia Soares Martins

bulício, harpejos… Uma maravilha”9. E em duas cartas enviadas no princípio de Agosto


a Pessoa descreve a atmosfera de Paris nos primeiros dias da mobilização, dizendo-lhe
que há “qualquer coisa mais no ambiente tremulante, o movimento dos veículos
parece-me outro, mais contínuo, mais soturno… Enfim, qualquer fluído ondeia na
atmosfera além do ar – tenho em sinceridade essa impressão”. Comunica-lhe também
a sua intenção de escrever um livro, Paris da Guerra, onde pensa vir a anotar as suas
impressões diárias, “mas interseccionadamente”. 10
Orpheu publicará, no seu primeiro número, vários poemas de Indícios do Ouro,
escritos respectivamente em Paris, Lisboa e Barcelona, imediatamente antes e depois
da declaração de guerra. Num poema intitulado “Taciturno”, com a data de Agosto de
1914, a atmosfera a que alude na carta a Pessoa é criada por intermédio de imagens
sombrias: “ouro sinistro”, “sons de bronzes medievais”, “capacetes de ferro”, “manhãs de
armas (…) em arraiais de olvido”. O sujeito sente-se como que cercado: “No meu mundo
interior cerraram-se armaduras”. Preso, assiste ao tumulto dos seus sentimentos, entre
a humilhação, o tédio e o remorso: “humilhações a liz”, “basílicas de tédio”, remorços
que “são terraços sobre o mar…”. 11 O tom geral destes poemas é de renúncia: “Os roxos
fins de Império em meu renunciar” (“Taciturno”) e de total desorientação: “Ande irei
neste sem-fim perdido” (“Ângulo”), “E o meu coração gira: é uma roda de cores… / Não
sei onde vou, nem vejo o que persigo…/ Já não é o meu rastro d’oiro que ainda sigo…/
Resvalo em pontes de gelatina e de bolores…/ Hoje, a luz para mim é sempre meia-luz”
(“Nossa Senhora de Paris”). Sente-se neles fisicamente a atmosfera da guerra como no
poema “Apoteose”: a ânsia e o pranto, o sono inquieto, os sonhos como pesadelos de que
não se acorda, a estagnação e o fim: “Ó pântanos de Mim – jardim estagnado…”.
Mário de Sá-Carneiro escreveu ainda uma entrevista inventada na qual declara
ao suposto jornalista de “A Restauração” que do ponto de vista do “artista” a vitória
da Alemanha lhe parecia desejável, apesar de todo o seu amor pela França: “os meus
nervos d’artista sentiriam muito mais douradamente, ainda que sangrentamente, a
vitória das águias germânicas”. 12 Num outro texto, intitulado “A Batalha do Marne” e
publicado na Illustração Portuguesa, a 20 de Dezembro de 1915, evoca, com distância
e ironia, as circunstâncias em que se travou a batalha. Em seguida, apresenta uma
descrição do cemitério em que o campo de batalha que se tornou, quando um ano
depois o visita e observa o movimento das mães, mulheres e noivas dos combatentes

9 Idem: 250
10 SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 135-136.
11 Orpheu, edição fac-similada, Contexto, 1994, p.9
12 .Mário de Sá-Carneiro “Paris e a Guerra – ‘A Restauração’ entrevista o escritor Mário de Sá-Carneiro, há
pouco chegado de Paris. As suas impressões sobre ‘A Cidade’ nos dias de mobilização” (2010: 653).
Orpheu e a Guerra 493

ornando as lápides com flores e grinaldas, comparando-o, pelo colorido, a uma


romaria. Este texto, que foi aliás publicado com alterações pelos editores da revista, merece
ser lembrado sobretudo pelo seu carácter dissonante, quando comparado com o tom
propagandístico das crónicas de Júlio Dantas e o tom geral da revista, que era de total
alinhamento com as posições tomadas pelo governo em matéria de política externa.
Não é fácil explicar a defesa da Alemanha por Mário de Sá-Carneiro e a sua
colaboração em Dezembro de 2015 na Illustração só pode tratar-se de um equívoco,
como aliás ele próprio refere em carta a Pessoa. A sua atitude parece ter sido
sempre pautada pela total rejeição do ideário subjacente àquela publicação, embora
ele não tenha nunca, como foi o caso de Pessoa, tornado pública a sua dissensão
com o governo de Afonso Costa. Raul Leal, monárquico, como Sá-Carneiro terá
eventualmente sido e como Guilherme de Santa-Rita dizia ser, publicou em nome
de “Raul Leal – Collaborador de Orpheu” um manifesto contra o governo, intitulado
“O Bando Sinistro”, distribuindo-o num combóio da Linha de Cascais a 3 de Julho,
data do acidente de Afonso Costa (ao qual alude também Álvaro de Campos no
conhecido episódio da carta à Capital).13 Raul Leal ter-se-á exilado em Espanha entre
1916 -1917 e, de acordo com uma carta de Pessoa a Côrtes-Rodrigues datada de 4 de
Setembro de 1916, terá pensado alistar-se no exército Francês após uma tentativa de
suicídio. Poderemos por certo atribuir esse exílio auto-imposto a uma aversão pelo
governo de Afonso Costa e seus apoiantes, provavelmente os mesmos de que fala
Mário de Sá-Carneiro em “Manucure”, descrevendo-os como “os amigos como quem
ando às vezes - / trigueiros, naturais, de bigodes fartos -/ Que escrevem, têm partido
político /E assistem a congressos republicanos “14. No ano em que se discute a entrada
de Portugal na guerra, 1915, ano da concepção e realização de Orpheu, o alvo era
sobretudo a lepidópteria de que Almada faz símbolo Júlio Dantas em 191615.
Os poemas que Pessoa consagra à guerra encontram-se distribuídos entre os seus
vários heterónimos, pelo que qualquer sentido que se lhes atribua deve ter em conta
o diálogo implícito entre eles. Mas procurar determinar qual foi a posição de Pessoa
perante a guerra implica necessariamente o confronto desses textos com os textos
de carácter sociológico e político que escreveu; estes últimos, ainda que se admitisse
que é possível traçar entre eles e os primeiros uma linha nítida de demarcação, o que
não sucede sempre, não configuram, no seu todo, um pensamento sistemático ou
crítico, são lacunares, contraditórios, por vezes meros esboços pensados para virem

13 Cf. AAVV, 1915: 373.


14 SÁ-CARNEIRO, M. 2007): 37 (“Manucure”).
15 Almada Negreiros, “Manifesto Anti-Dantas”, Manifestos e Conferências, ed. de Fernando Cabral Martins,
Lisboa, Assirio & Alvim, 2006.
494 100 Orpheu Patrícia Soares Martins

a constituir textos futuros. Os textos de Pessoa onde está causa o envolvimento de


Portugal na guerra 16, visam sobretudo questionar aquele envolvimento, nos termos
em que se deu, instigado pela política externa do governo de Afonso Costa.
Qualquer estudo sobre este assunto mais centrado no caso de Pessoa, que não é de
modo algum generalizável a Orpheu, deverá interrogar o modo como na sua obra se
cruzam, de modo complexo, os muitos fios de uma reflexão sobre o imperialismo e os
conflitos sociais nas novas sociedades democráticas do início do século XX, a teoria
antropológica de finais do século XIX, nomeadamente na vertente do primitivismo, as
teorias de Max Nordau, Otto Seck e Oswald Spengler, sobre as causas da decadência
da civilização ocidental e, finalmente, a filosofia hermética. Estes aspectos são muitas
vezes objecto de um tratamento ficcional e são maioritariamente aqueles heterónimos
cuja obra ficou em esboço, por se não lhe ter dado continuidade ou por ter sido
objecto de uma atribuição diferente mais tarde, que de um modo mais explícito
trabalham nesse turbilhão de ideias: Charles Anon, Thomas Crosse (sobretudo a
filosofia hermética e as contemporâneas ciências psicológicas), Alexander Search (a
degenerescência, a antropologia, o pensamento do primitivismo), António Mora ou o
Barão de Teive (o pensamento do império, o paganismo), etc.
Convém no entanto dizer o seguinte: se Pessoa atribui a António Mora a tarefa de
se pronunciar sobre o advento do neo-paganismo e se, de entre todos os heterónimos,
é o mesmo António Mora que mais se pronuncia sobre a guerra, isso deve-se a que os
dois assuntos aparecem necessariamente interligados no seu pensamento. Alguns dos
textos que Mora assina são reflexões que parecem decorrer de uma ciclópica tentativa:
a de diagonosticar, também na qualidade de médico e de frequentador de um sanatório
(conforme se sabe da sua “biografia” forjada: a figura aparece pela primeira vez no conto
“A Casa de Saúde de Cascais”), a doença da civilização ocidental, o “cristismo”, de que
a actual guerra é a manifestação imediata. “O fundo germânico actual é pagão. É o
livre-exame pagão que criou o protestantismo alemão. O movimento alemão, donde
brota o romantismo, é uma re-helenização da Europa.”17 escreve, mas é também verdade
que os elementos pagãos da cultura alemã actual que resultaram de uma desadaptação ao
cristismo, apoiam-se ainda em elementos deste último, nomeadamente, o imperialismo
e o cosmopolitismo. Ainda que por aquele resíduo cristão a Alemanha não seja para
Mora um modelo a seguir, a cultura alemã representa no entanto uma reacção nítida
à atitude cristã e no caso de uma vitória na guerra o que nela subsiste do “eterno

16 Por exemplo, as várias versões conhecidas de uma carta nunca enviada publicadas sob o título genérico
“Carta a um herói estupido” em PESSOA, F., 1978: 193-206
17 PESSOA, F., 2013: 221 (“Dissertação a favor da Alemanha”).
Orpheu e a Guerra 495

ideal grego”18 poderá vir inspirar no plano político a reconstrução do antigo conceito
de cidade-estado numa Europa unificada sob o seu domínio. Na qualidade de pagão
moderno, Mora não pretende no entanto tomar parte activa no conflito, tanto mais
que, a seu ver, uma derrota da Alemanha precipitaria de outro modo um reencontro
da Alemanha com o seu paganismo original pelo correlativo enfraquecimento do seu
espírito imperialista que é a doença da nacionalidades fortes. Quer no caso de uma
vitória, quer no de uma derrota desta, será sempre no âmbito da cultura alemã que
se dará o regresso à realidade concreta em detrimento da noção abstracta e idealista
da mesma. O pensamento de Kant, impregnado de cristianismo e responsável pela
centralização da realidade na alma, teria afastado a Alemanha dos princípios pagãos
que subsistiam originariamente na sua cultura, mas cujo regresso se anuncia já na
guerra em curso.
Curiosa é também, pelo que nos ensina da posição de Pessoa sobre o imperialismo,
a condenação por Mora da hipocrisia dos franceses dos ingleses, respectivamente,
“os mercadores de escravos da Argélia, e os bárbaros da Índia e do Transval”19, que
apontam as crueldades germânicas com os dedos cheios de sangue. Ela terá uma
equivalência em “Ultimatum” onde se fala de um Portugal com “vergonhas naturais
em África”, cuja participação na guerra se explica sobretudo pela necessidade de
preservar o império colonial.
Naquele momento da Europa que antecede a guerra, momento a que a crítica
Marjorie Perloff se referiu como futurista por excelência20, nem Pessoa, nem
Apollinaire dispensavam a tradição literária e artística, como pretendiam os futuristas
ou como se pode ler em alguns manifestos vorticistas de Blast, nomeadamente os
assinados por Wyndham Lewis. Nem Pound, apesar de em muitos aspectos ter estado
mais próximo do movimento futurista do que quis admitir.21 Pound comparava a
escultura modernista de Brzeska com as antigas esculturas de pedra dos Egípcios
e com os antigos bronzes da China. Este exemplo é elucidativo do facto de Pound,
como aliás, Pessoa, ter sempre tido dificuldade em admitir que o novo, o inaudito, o
inesperado, fossem, por si mesmo, um valor em arte.
Pessoa manifestava já em privado uma certa distância relativamente ao que
descrevia como os excessos das vanguardas, nomeadamente a rejeição do passado

18 Idem: 225
19 Idem: 210
20 PERLOFF, M., 2003.
21 Marjorie Perloff escreve que a relação do vorticismo e do futurismo é mais estreita do que certas afirmações
de Pound contra Marinetti deixam entender uma vez que estas teriam sido ditadas sobretudo pela atitude
nacionalista agressiva das vésperas da guerra.
496 100 Orpheu Patrícia Soares Martins

artístico e a ênfase posta no novo como um valor em si mesmo. Já a obra de Mário


de Sá-Carneiro é definida pelo modo como vai de uma estética simbolista, por
assimilação de elementos próprios às várias escolas do momento, no sentido da
vanguarda. Enquanto teórico errático do movimento em torno da publicação de
Orpheu, Pessoa demarcou-se rapidamente de uma pretensa fase paúlica na qual grande
parte dos membros do grupo se reconheciam e em particular, Mário de Sá-Carneiro,
Alfredo Guisado, Cortes Rodrigues e Luís Montalvor, talvez por o paulismo consistir
numa espécie de ultra-simbolismo no qual os traços simbolistas, eventualmente
transformados por excesso ou defeito, eram ainda reconhecíveis. Pessoa, por sua vez,
prefere quase logo a designação de interseccionismo (que ao contrário daquele ismo
anterior remetia para movimentos realmente existentes, nomeadamente, o cubismo
ou o orfismo) e acabará por propor a designação de “sensacionismo”, definindo-o
pela particularidade de admitir ou mesmo suscitar a contribuição de todas as
tendências da arte de todos os tempos e lugares. Num texto nunca publicado, o
sensacionismo é a “Grande synthese” que prova claramente “que o Século XX vem
depois dos séculos que vieram antes”, sendo portanto capaz de uma arte em que não
fique de fora o esoterismo ritual da literatura egypcia, o mysticismo transcendental
da India antiga, o poder constructivo, harmónico, organizador da Hellade”, etc.22 A
sua preocupação de definir um programa sensacionista para Orpheu explica-se pela
necessidade de conciliar programaticamente as várias tendências que a revista acolhia
(diversidade à qual correspondia, no que lhe dizia respeito, a própria heteronímia) o
que procurava acentuar pela estratégia editorial de publicar, no primeiro número, um
poema próximo, pelo seu tema, do futurismo, “Ode Triunfal” e um poema próximo
simbolista/decadentista, “Opiário”23. Mas tal necessidade vinha também de um
reconhecimento prévio do carácter planetário da arte que defende. A arte moderna,
escreve, deve ser “maximamente desnacionalizada – acumular em si todas as partes
do mundo”. Razão pela qual, escreve também, “symbolismo, futurismo ou cubismo
[são] movimentos designatórios de escolas e correntes estreitas e fechadas”24 Pessoa,
Apollinaire e Pound convergem na defesa de uma arte cosmopolita, aberta a todo o
tipo de influências, de todas as latitudes, do presente e do passado.
Como escreveu Meyer Schapiro, em 1937 num importante texto sobre sobre a arte
abstracta25, um crítico como Ruskin podia ainda defender que apenas na Europa se

22 PESSOA, F., 2009: 76


23 Estes aspectos editoriais e o que eles nos ensinam sobre Orpheu são apontado por Fernando Cabral Martins
em particular em O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro
24 PESSOA, F., 2009: 76.
25 Referimo-nos a Meyer Schapiro (2013).
Orpheu e a Guerra 497

pode encontrar uma arte antiga digna desse nome. Com a autonomia do estético
que resulta, entre outros factores, da crise da representação e do abstracionismo, a
arte das Américas, da Ásia e da África, antes desconsiderada, é agora exibida como
uma prova de que a sensibilidade e o pensamento precedem a representação do
mundo. Neste contexto, está fora de questão uma representação dos horrores da
guerra usando os mesmos meios artísticos que as vanguardas procuravam enterrar.
Quando Gaudier-Brzeska, após três meses nas trincheiras escreve “As minhas ideias
sobre a escultura permanecem inalteradas”, está a ser fiel ao espírito das vanguardas.
Mas na realidade, uma das consequências da guerra parece ter sido provar, ao contrário
do que afirmava Marinetti, não o triunfo da arte de vanguarda, mas o regresso de uma
concepção representativa da arte: Em Ultimatum, Álvaro de Campos desmentindo
Marinetti, escreve: “Agora a arte é o ter ficado Rodin”26.
Marinetti, num manifesto aos estudantes italianos em 1915, apelava à participação
na guerra como modo de pôr fim, pela força, ao esteticismo nas artes, consequência de
um intelectualismo de ideias de origem germânica, antipatriótico e internacionalista,
que causa uma estúpida hipertrofia cerebral, ensina o perdão, anuncia a paz
universal num mundo em que a única guerra admissível é a das ideias. O futurismo,
pelo contrário, pretendia introduzir brutalmente a vida na arte (“vuole introdurre
brutalmente la vita nell’arte”) combater o ideal de uma estética “estática, decorativa,
efeminada, preciosa”, opondo-lhe “o instinto, a força, a coragem, o desporto e a
guerra”. Marinetti apresenta a simbiose da arte e da guerra numa imagem: “Le mani
sporche per aver scavata la trincea, pronte alla penna, al remo, al timone, al volante,
allo schiaffo, al pugno, al fucile”27. Parece claro que este compromisso com a vida,
com a acção, visava em primeiro as concepções estéticas das gerações anteriores e
em particular as do simbolismo (Marinetti cita Baudellaire, Mallarmé, Verlaine,
Carducci, Pascoli, D’Annunzio). O texto termina com seguintes palavras elucidativas:
“Il Futurismo dinamico e agressivo si realiza oggi pienamente nella grande guerra
mondiale che – solo – previde e glorificò prima chè scopiasse. La guerra attuale è il
piu bel poema futurista apparso finora.”28
Dois anos depois da publicação deste manifesto de Marinetti, o Ultimatum de
Álvaro de Campos, publicado em 1917 em Portugal Futurista, sobretudo na sua
primeira parte, que consiste numa enumeração de tudo o que se pretende abolir,
incluindo nomes de políticos europeus e dignatários da guerra e de escritores

26 PESSOA, F., 2009: 251.


27 Marinetti, “Manifesto aos Estudantes Italianos” de 1915, lettere.uniroma2.it/…/guerra%20sola%20igiene.pdf
(data da consulta, 16-3-2015).
28 Idem.
498 100 Orpheu Patrícia Soares Martins

simbolistas/ decadentistas ou de escritores de folhetins ou outra forma de literatura


de massas, em suma, toda uma “arrière-garde” que a guerra teria feito passar para a
linha da frente, parece desmentir Marinetti quanto aos efeitos da guerra nas artes. E
contrasta também, pelos mesmos motivos, com o de Almada, Ultimatum às gerações
Portuguesas do Século XX. Já na segunda parte do manifesto, onde Campos procura
destruir a ficção teológica na qual consiste o “dogma da personalidade”, estranhamente
combinada com uma estética não-aristotélica, deparamos com uma perspectiva
simultaneamente saudosista e messiânica onde o gosto pelo indefinido se mescla com
a tonalidade agressiva dos manifestos por intermédio de uma alegorização do oculto.
Há uma dimensão utópica da guerra na obra de Almada, que é, talvez, de entre
os escritores do primeiro modernismo português, aquele que mais registou os seus
efeitos na sociedade portuguesa, nas suas novelas, em particular em “A Engomadeira”
e no seu romance Nome de Guerra. Mas é justamente num dos seus textos mais
programáticos, K4 o Quadrado Azul que, na enumeração final, se lê essa utopia na
qual a guerra e a arte se ligam:

ice.berg s.o.s titanic titan-tan tan-tan tantania lusitania s.o.s wanderbilt u35 berlim kronprinz
prussia kaiser 300 hp+42 krupp canet 72 joffre 38 goritza 914 neo-salvar-sen europa
super-dreadnought monitor alta-tensão perigo de morte ∞ martinica panama exposition
universelle tour Eiffel coupe internationale des motor-cars mercedes benz the cruzaders
rugby jeffriesjohnson duncan scott polo-sul petrogrado nijinski polonia marne front poilus
reims kodak nordisk gallito & belmonte carranza zeis zeppelin taube tank zenith quadrado
azul viva k4 bravo salvas morteiro terra estampido rachar marte funeraes mysterio herança
fortuna beleza gloria viva quadrado azul José de Almada-negreiros europa.29

É ainda essa dimensão utópica da guerra que encontramos no seu manifesto


de 1917, Ultimatum futurista às gerações portuguesas do século XX, um manifesto
claramente composto por “revelação de Marinetti”, como escreve o autor.30 Por um
lado o que se procura é, através do teatro, a interacção com o público, pelo que foi
concedida à plateia do Teatro República onde decorria a Conferência Futurista
a orientação de interromper o conferente sempre que o desejasse, “atingir (…) a
expressão da intensidade da vida moderna, sem dúvida de todas as revelações a que é
mais distante de Portugal”. 31 Por outro lado, quando o conferencista declara, citando

29 NEGREIROS, J. A., 2000: 9.


30 NEGREIROS, J. A., s/d: 35 (“Primeira conferência Futurista de José de Almada Negreiros – Compte-Rendu
pelo conferente”).
31 Idem, Ibidem.
Orpheu e a Guerra 499

Marinetti, que “A guerra é a grande experiência”, ou usa expressões como “sublime


brutalidade”, na qual ecoa a ideia de insuflar brutalmente a vida na arte, como
pretendia aquele, o que procura é sacudir a sociedade portuguesa, despertando-a
do marasmo cultural e da “impotência da criação” que nela se perpetua desde antes
da proclamação da República mas que a República agravou. Há um momento em
que o sentido da argumentação encrava. Por um lado, para Almada, “Portugal está
a dormir desde Camões” 32. Por outro, a resposta não pode nem deve vir da tradição
histórica, que distingue da “tradição da pátria”. Ou seja, se o diagnóstico está feito, a
solução não pode vir da História onde a geração anterior a procurava: terá de vir de
diante, e não detrás. Almada propõe um salto patriótico através da participação de
Portugal na guerra, inventando um heroísmo moderno que substitua a mitologia da
pátria própria dos espíritos decadentes, aquilo a que chama “O atavismo alcoólico
e sebastianista de beira-mar”33. Assim se descobre também o segundo alvo deste
manifesto, as concepções do saudosismo português.
O modo como a guerra se inscreve em alguns textos de Pessoa, em poemas como
“Ode Marcial” de Campos, no conhecido poema de Ricardo Reis sobre os jogadores
de xadrez, ou em alguns poemas do ortónimo, nomeadamente “O Menino de sua
Mãe”, de tonalidade bem diversa, evidenciam uma posição quase em negativo da de
Almada. Em alguns poemas de Pessoa ortónimo, escritos entre 1914 e 1915, como
“Sobre essas Landes” (1914), “A Revolução” (de 1915), “Gládio” (os dois poemas com
esse título de 1915), ou “Saque da Cidade” (1915) encontramos inequívocas menções
à guerra mas o tom geral é de alegoria e de mistério. No início da guerra, em Setembro
de 1914, Pessoa escreve dois poemas messiânicos, nos quais D. Sebastião é como
que uma imagem de Cristo. Em “O Regresso” (datado de 7 de Setembro de 1914),
anuncia-se a vinda de D. Sebastião, o Encoberto, e exprime-se o desejo de que a “sua
manhã espiritual apareça outra vez”, entre referências à guerra e aos cavaleiros que
o seguem. Num outro poema datado do início da guerra, “Quando virás destronar
Cristo? / Ó Encoberto?”, D Sebastião é expressamente “Cristo de Portugal, senhor /
D. Sebastião”, representado como um cavaleiro sobre um cavalo branco num reino de
névoa, uma figura que parece diluir-se na paisagem ou existir apenas como um nome
que se espalha como névoa, como transparência, ou mesmo vazio: “Nossa paisagem
é o teu nome /Que se derrama/ Por sobre a nossa eterna forma /de forma humana”34.
Poemas escatológicos como este, onde se fala da “Besta do Apocalipse” e da “nova

32 Idem: 37
33 Idem: 37
34 PESSOA, F., 2005: 235.
500 100 Orpheu Patrícia Soares Martins

cidade de Deus” reconquistada, resgatada da bruma como uma visão de Jerusalém


celeste, são também evocações da guerra, nos quais o “gládio” é simultaneamente o
distintivo dessa figura crística e o símbolo de um gesto redentor da pátria desvanecida.
Tratando-se de um período marcado por escritos de carácter hermético, pelo sentido
do oculto e a consciência do abismo, progressivamente nele vai tomando forma
aquele estilo que virá a ser designado por paúlico; nele se combinam a criação de
ambientes oníricos, um acentuado gosto pelo indefinido e pelo mistério de um para-lá
hermeticamente selado, ao mesmo tempo que se retomam figuras da lírica tradicional,
como o pescador (em “Pescador que recolhes a esta hora”) ou lendárias, como silfos ou
gnomos (em “Canção”), ou Ashvero, o Judeu errante (“Sem saber como nem porquê
medito”). Neste último poema, a reflexão sobre a errância de Ashvero, toma uma
dimensão cósmica na qual o tempo das civilizações que se sucedem parece obedecer
a um movimento acelerado e contínuo (evocando de um modo formalmente muito
diferente algo que também acontece nas grandes Odes de Campos, nomeadamente
em “Ode Triunfal”) que neste poema é análogo de um movimento cíclico da matéria
no vácuo ou no abismo do universo. Esse movimento de rotação, “Átomos, células
cansadamente / sem nexo ou fim movendo-se, rodando“, movimento ao qual se pode
dar o nome de “civilização” ou progresso, mas que não passa de “prolixa vacuidade”,
é descrito como um vórtice cuja energia consiste apenas nesse rodar cego e eterno:
“Instante a instante o giro se completa / do círculo que nunca começou”, “tudo um
vórtice de Nada feito / um abismo findo num abismo”. Este poema torna claro como o
que os vorticistas pensaram sob a figura do vortex, na sua versão de stasis ou de kinesis,
às quais fizeram corresponder estéticas diferenciadas, é em Pessoa abismo, maëlstrom,
nada. Esta poética do espaço terá um novo capítulo nos poemas interseccionistas que
se iniciam em Orpheu com “Chuva Oblíqua”, que corresponde a uma estética não
representativa ou, nos termos de Álvaro de Campos, não-aristotélica.
Não é possível dizer que estes poemas sejam sobretudo, ou sequer indirectamente,
poemas sobre a guerra. Em alguns dos casos apontados, nomeadamente os que
se constroem a partir da figura do Encoberto, chama a nossa atenção sobretudo a
coincidência das datas. Ainda que a guerra em causa seja mais imediatamente
Alcácer Quibir e que poemas como estes remetam para o livro futuro que será
Mensagem, não podemos deixar de sublinhar essa coincidência: se o nacionalismo,
o sentimento de identidade nacional, através da construção de uma ideia de pátria,
foi, em parte, uma consequência da guerra, os poemas desta fase, como aliás o drama
estático O Marinheiro, publicado em Orpheu 1 e, posteriormente, Mensagem, foram
aparentemente suscitados por uma aflitiva ausência de pátria. Há neles uma pátria e
um império que se procura erguer das cinzas mas num gesto ele próprio já exangue e a
partir dos elementos mais descarnados: as insígnias, a heráldica (o brasão e as quinas
Orpheu e a Guerra 501

de Mensagem), os mitos pátrios e as profecias do Bandarra. Tudo se passa como se


neles se velasse um corpo que jaz morto e arrefece. Não sendo possível filiar esta
poética a um movimento ou a uma tendência específica da arte das vanguardas, parece
no entanto evidente que eles reproduzem a seu modo algumas das suas invenções,
acolhendo-as na sua esfera própria. É exactamente nesse sentido que não poderia
haver uma “poesia da guerra” em Pessoa, porque independentemente do modo como
em termos psicológicos o conflito foi sentido pela pessoa real que os escreveu, o
poeta procurava não uma representação mas um testemunho da sua época. Como os
textos em que se refere às grandes Odes de Campos como uma construção assente no
ritmo, nas grandes massas sonoras em movimento, parece evidente que cada texto de
cada heterónimo em particular, obedece a uma lógica interna própria, com a qual se
procura captar o mundo a partir da vitalidade (ou da falta dela) que a cada uma dessas
poéticas parcelares corresponde.

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“Lápis e linhas para desenhar uma flor de nome Almada”

Isabel Cristina Mateus


Universidade do Minho, Cehum

Há imagens que ficam tatuadas na nossa memória sem uma razão aparente. Na
minha ficou, sem que tenha ainda descoberto a misteriosa razão, a imagem de um
programa televisivo com o estranho nome de Zip Zip e de um homem não menos
estranho de nome Almada Negreiros. Era eu criança, andava nos primeiros anos da
escola, num tempo em que as crianças raramente viam televisão, ocupadas como
estavam então as crianças a ser crianças, sem preocupações de atingirem o topo da
excelência e dos rankings ou de virem a ser futuros empresários de sucesso. Sei apenas
que essa imagem me fez ficar presa ao ecrã.
Lembro-me do corpo esguio, do rosto anguloso, marcado pelas rugas, da linha
fina e curva que nele fazia as vezes de lábios. Da estranheza das suas palavras
cheias de ressonâncias, pairando no ar, enigmáticas, cortantes. Lembro-me dos
silêncios profundos, misteriosos como florestas ou um rumor de búzio. Lembro-me,
sobretudo, de uns olhos grandes e penetrantes, escondidos por trás dos óculos, da
força magnetizante do seu olhar. Creio que foi esse olhar que me fez ficar parada em
frente do ecrã, sentada sobre o tapete da sala, pernas cruzadas, como se viajasse num
tapete mágico para um mundo desconhecido.
Só anos mais tarde viria a descobrir quem era o mago dos olhos grandes saído
das mil e umas noites televisivas para hipnotizar o meu olhar de criança. Evocar esse
olhar mágico que para sempre me marcou é, antes de mais, a minha forma de prestar
homenagem a Almada e o ponto de partida para uma ou duas breves notas de reflexão.
No prefácio que escreveu para a edição do primeiro volume das Obras Completas
de Almada Negreiros, Jorge de Sena afirmou em tom provocador que “uma das
necessidades absolutas (…) da poesia portuguesa” do século XX é “descobrir o Orpheu
de 1915, de vez em quando”1. Desde logo, pelo que Orpheu significara de desconhecido,
de complexo e de mudança radical no panorama literário português2, mas também
pelo que de futurante, de desafiador (de mais projectivamente desafiador, diria)
Orpheu continha. Se essa era já uma necessidade absoluta no século XX, muito mais

1 SENA, J., 1985: 9.


2 Para um balanço recente e bem informado sobre a mudança que Orpheu significou no contexto cultural
português, cf. DIX, S., 2015.
504 100 Orpheu Isabel Cristina Mateus

necessária se torna neste momento em que celebramos o seu centenário, num novo
século e num novo milénio.
Procurando corresponder ao desafio lançado por Jorge de Sena, proponho assim
(re)descobrir Orpheu a partir da deslocação da perspetiva habitual, aquela que
tem como centro do enfoque a figura de Fernando Pessoa e o fulgor da sua criação
heteronímica. Não para questionar ou de algum modo pôr em causa o lugar de Pessoa
na aventura órfica, mas para nela recentrar a figura de Almada. Uma mudança de
perspetiva que nos permite de alguma forma interrogar sobre que leitura faríamos
hoje de Orpheu se nele tivesse ocupado um lugar central (mais central) o poeta e
artista plástico Almada Negreiros? Que caminhos de modernidade trilharia Orpheu?
É certo que a não-centralidade de Almada Negreiros na geografia de Orpheu não
se terá ficado apenas a dever ao brilho ofuscante de Pessoa. Ela deve-se igualmente
à estranheza da linguagem almadiana, ao escândalo e à irreverência iconoclasta
do futurista que ousou afrontar, em mais de um momento, o lepidóptero burguês,
deve-se à redução de um autor multifacetado à faceta de artista plástico, como se
deve ao facto de Almada não ter sabido (ou não ter querido) gerir a sua produção
artística, de nunca se ter preocupado com a publicação da sua obra poética muito
menos com a teorização, divulgação ou marketing literários (ao contrário de Pessoa).
Deve-se ainda ao facto de um poema central do modernismo português, A Cena
do Ódio, que deveria ter saído no terceiro número de Orpheu (não editado), só ter
sido publicado na íntegra já tardiamente, em 1958, na antologia Líricas Portuguesas,
organizada, justamente, por Jorge de Sena. Isto apesar de Pessoa ter definido Almada
Negreiros, logo em 1915, como um “homem de génio em absoluto, uma das grandes
sensibilidades da literatura moderna”.3
Tomo assim como ponto de partida para esta reflexão a leitura de Jorge de Sena, para
quem Almada Negreiros foi aquele que “desde o início representava uma linguagem
nova”4, o mais ousado e coerentemente vanguardista de todos os de Orpheu, aquele
que, pela sua própria actividade artística plural, melhor corporizava o diálogo
perfeito entre as letras e as artes plásticas. No momento em que o vendaval Orpheu
varria a sociedade e o panorama cultural português, inaugurando um Modernismo
cosmopolita, “uma arte-todas-as-artes”5, desnacionalizada, marcada pela rasura de
fronteiras entre géneros e pelo hibridismo de linguagens, Almada Negreiros era já o
nome que mais se aproximava desse ideal.

3 PESSOA, F., 1991: 220-221.


4 SENA, J., 1985: 13.
5 PESSOA, F., s/d:114.
“Lápis e linhas para desenhar uma flor de nome Almada” 505

Note-se que o modernismo, que então se afirmava dificilmente, se constituía como


um movimento estruturado, com um programa estético definido em torno de uma
ideia mobilizadora, sendo antes uma complexa mistura de passado, presente e futuro.
Luiz de Montalvor, pseudónimo do poeta cabo-verdiano editor de Orpheu, apresenta
a revista como um “exílio de temperamentos de arte”6, declarando aos quatro ventos
da memória e da revista Centauro, no ano seguinte, a ligação umbilical de Orpheu
às estéticas finisseculares: “somos os descendentes do século da Decadência”7, dirá
então, numa afirmação que pode parecer-nos hoje paradoxal; Mário de Sá-Carneiro,
poeta em quem é bem patente a marca das estéticas finisseculares, nomeadamente
do decadentismo, é um modernista que se desconhece, alguém que, no dizer de
Jorge de Sena, levou a linguagem do passado, a linguagem do “pós-simbolismo ao
absurdo”, até ao ponto do indizível, ao drama profundo de uma personalidade
cindida em dois pólos que se entredevoram, ao suicídio como negação do futuro.
Fernando Pessoa há-de descobrir-se plural, assistindo no palco do presente ao
seu drama-em-gente, seja na contemplação estética de Bernardo Soares, seja sob a
forma do carpe diem do “clássico” Ricardo Reis (ou da sensação sem pensamento lá
dentro, no caso de Caeiro, o guardador de rebanhos) seja sob a forma do cansaço
em que naufraga o engenheiro naval, passada a euforia futurista das máquinas e dos
transatlânticos.
Ao contrário dos seus companheiros da aventura órfica, cindidos entre um “eu” e
um “outro” ou dispersos numa existência plural, Almada Negreiros procura afirmar
orgulhosamente a unidade de um “eu”, criar uma linguagem verdadeiramente nova,
uma linguagem coerentemente sua, para lá do género literário ou do suporte artístico
em que se expresse, numa radical atitude de rutura com o passado, com os olhos, esses
olhos grandes que eram os seus, postos na invenção do futuro.
Almada traz desta forma para Orpheu um projeto de futuro que é, neste
contexto, único, e essa é uma primeira nota que gostaria de sublinhar. Um futuro
que não se confunde com a espetacularidade sonante do fogo-de-artifício futurista
ou vanguardista, com o desejo “incendiário” de destruição de todas as formas de
academismo ou de ortodoxia, como de algum modo o “Manifesto Anti-Dantas”
(também de 1915) parecia indicar. Um futuro que vai para além do anunciado no
“Ultimatum futurista às gerações portuguesas do século XX”, publicado em 1917
no Portugal Futurista, cuja linguagem bélica temperada de darwinismo é tanto uma
forma provocadora de agitar, de acordar um povo “a dormir desde Camões”, como

6 Orpheu 1, “Introdução” (s/d: 11).


7 Luiz de Montalvor, “Tentativa de um ensaio sobre a Decadência”. In: Centauro (1982: 7).
506 100 Orpheu Isabel Cristina Mateus

sobretudo uma provocadora forma de o seu autor exigir, enquanto português, “uma
pátria que [o] mereça” e de exortar os portugueses a “criar a pátria portuguesa do
século XX”8. O futurismo foi um breve fogacho em Almada, como o foi, de resto, nos
outros companheiros de Orpheu.
Não admira, por esse motivo, que nas comemorações dos cinquenta anos da revista,
Almada tenha sublinhado o facto de “os de Orpheu” serem meros companheiros do
acaso, sem uma verdadeira identidade de grupo ou artística, de comum tendo apenas
“uma mesma não-identidade” ou um “mesmo escorraçar comum que a vida nos fazia.9”
Uma ideia que retoma na entrevista do Zip Zip10 (a que entretanto voltei) ao referir-se
a uma “mesma desgraça”, a desgraça de se encontrarem “todos suspensos do mesmo fio
de nos faltar território”. Ao mesmo tempo que vê em Orpheu um “monólogo” plural,
uma não-identidade, Almada esforçar-se-á desde o início (importa sublinhá-lo)
por construir e afirmar a identidade singular da sua voz. Isso mesmo no-lo dirá em
“As quatro manhãs”, texto que se configura como autobiografia deste “eu” poético:
“Quando cheguei aqui / o que havia estava no fim/ e o que estava no fim e o que
estava por vir /andava disperso pelo sonho de alguns.” “Eu tive d’inventar-me um
génio discretíssimo”11.
Diria que o projeto mais vanguardista de Almada passa por este inventar-se um génio
discretíssimo e com ele o inventar-se uma linguagem pessoalíssima, diferentíssima,
nascida de uma voz singularíssima e da destruição do passado, da destruição do que
nesse passado era convenção, norma artística, solidez racional ou conforto burguês.
Um projeto de construção de uma genealogia e identidade artísticas no qual terá um
papel fundamental o “martelo” niilista, como lembra o próprio Almada em carta
dirigida ao redator do Diário de Lisboa na sequência do comício do Chiado Terrasse:
“Quando entrei em casa, a seguir ao comício intelectual, abri o Zarathrusta, Frederico
Nietzsche tinha entretanto escrito com o próprio punho: “tu deves ser o martelo, eu pus
o martelo na tua mão!

-Para quê, Zarathrusta? Para quê, o martelo?


-Pour cesser d’être des hommes qui nient pour devenir des hommes qui benissent”12

8 NEGREIROS, A., 1993: 37. Publicação original, Portugal Futurista (1982: 36; 38).
9 “Orpheu”. In: NEGREIROS, A., 1993: 169.
10 Cf. www.youtube.com/watch?v=xEfcJowGZgs
11 NEGREIROS, A., 1985: 187-190. O poema tem a indicação de que foi composto de 1915 a 1935.
12 NEGREIROS, A., 1993: 51. Diário de Lisboa, 21 de Dezembro de 1921.
“Lápis e linhas para desenhar uma flor de nome Almada” 507

O vanguardismo de Almada vai assim muito para lá do epidérmico escândalo epocal


ou do ímpeto destruidor do martelo niilista, antes se apresenta como um projeto de
edificação a partir do nada ou da raiz, um projeto profundo e coerente, transversal
aos diversos suportes e linguagens artísticas que utilizou. Nele se torna patente não
apenas um experimentalismo que é uma das marcas de água do modernismo mas
também (e talvez sobretudo) a “sofisticada complexidade” deste “eu” e de uma voz
que procura construir a sua unidade de texto para texto, de forma rizomática, um “eu”
des-subjectivado que não se confunde com a persona do autor:

“Quando digo Eu não me refiro apenas a mim, mas a todo aquele que couber dentro do jeito
em que está empregado o verbo na primeira pessoa”13.

Nesta concentração do “eu”, neste ensaio permanente de si próprio, há-de


ver Eduardo Lourenço a marca de um “anti-Pessoa”, o avesso de Pessoa e da sua
fragmentação plural. Uma vontade de afirmação, de nietzscheano “poder” que é
também uma forma diferente de invenção da Modernidade:

Existo, logo sou.Para afirmar com tal violência o seu eu – como o faz, quase adolescente,
no frenético Ultimatum Futurista –, para se instalar no centro do mundo, era preciso, antes,
ter sido negado com simétrica violência. Em suma, era preciso ter sentido, por assim dizer,
na carne, aquele Ódio teatral e teatralizado que dedica a uma sociedade que o negava por
orfandade ou abandono. Almada ressentiu, antes de reflectir, que 1+1= 1, isto é, que a vida é
solidão radical de que não se pode sair senão saltando a pés juntos por cima dela, convertendo
a noite em dia, dizendo “sim” ao mundo por conta própria. (…) Pessoa podia passar a vida
a regressar ao “outrora feliz” que, afinal, sempre tinha tido; Almada parece ter passado a sua
a inventar a infância roubada, a constituir o lugar matricial da ingenuidade, a imaginar o
diálogo maternal abolido, apenas começado. Em suma, sem o saber muito bem e sabendo-o
cada vez melhor, Almada apoiado no seu mito pessoal, transfigurá-lo-á em invenção da
Modernidade enquanto vontade de origem e de originalidade, já inscrita, de diversa maneira,
por Rimbaud e Nietzsche na dinâmica da cultura europeia14.

Vontade de edificação depois dos destroços do martelo, de afirmação de um Eu


como potência criadora. Ainda que, à semelhança de Pessoa, o texto de Almada nos
remeta para a dimensão teatral enquanto princípio estruturante desta escrita, para

13 NEGREIROS, A., 1985:166.


14 NEGREIROS, A., 1992: 12.
508 100 Orpheu Isabel Cristina Mateus

aquilo que Gustavo Rubim chamou a “permanente encenação” que nela se joga, onde
o “lugar do sujeito é desde sempre o lugar dos outros e onde, por isso mesmo, não se
pode nem se deseja ser mais que actor e personagem”15.
Invenção ou inventar-se são assim palavras-chave do projeto de Almada, aquelas
que melhor dizem ou traduzem a ideia de construção do novo depois da destruição
niilista. Inventar-se significa, neste contexto, construir-se de raiz uma identidade
poética, atribuir-se uma genealogia e uma geografia familiares, como aquela que
transparece dos quadros-fragmentos que compoem “A Invenção do Dia Claro”
(1921), onde Almada se inventa a mãe que (quase) não conheceu, a memória de uma
cumplicidade que não chegou a existir, a infância e um tempo que não viveu, uma
casa a que não pertenceu. Um lugar matricial.

“Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer
coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva
exactamente para a nossa casa como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça! quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo
tão verdade!”16

Inventar-se significa para Almada atribuir-se uma geografia, um que é mais um


espaço cultural identitário, uma matriz, do que um território geográfico concreto,
ele que tão cedo conheceu na pele a experiência do exílio e da desterritorialização.
Nascido numa roça de S. Tomé, aportando em Lisboa ainda criança, órfão de mãe
e, em certa medida, de pai, internado com o irmão num colégio de Campolide,
desterritorializado, a geografia que Almada se inventa é uma geografia de afetos
a partir da sua condição de exílio, uma geografia que coincide com a cartografia
histórica de um Portugal aprendido de cor, quero dizer, com o coração (a sua
Histoire du Portugal par coeur, mistura de desenho, poesia, narrativa, comentário
pessoal é disso um bom exemplo) ou com os imagótipos de uma portugalidade
revisitada e original e à qual não faltam as varinas e os cais de Lisboa; ou ainda com
o imaginário popular de O Menino d’Olhos de Gigante, onde as fontes, os bosques
e o luar de Sintra se fundem e confundem com os quatro elementos cosmogónicos
(ar, luz, água, fogo, terra), a arché dos filósofos pré-socráticos. Uma cartografia
pessoal onde ocupam ainda um lugar fundamental a geometria e o número que
tanto fascinam Almada.

15 RUBIM, G., 1990: 3.


16 NEGREIROS, A., 1985: 164.
“Lápis e linhas para desenhar uma flor de nome Almada” 509

Inventar-se significa, desta forma, criar-se uma linguagem diferente, capaz de dizer
a pureza de um mundo original, mesmo se este “eu” tem plena consciência de que
todas “as palavras já foram inventadas”. Para Almada, “Nós não somos do século de
inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar
outra vez as palavras que já foram inventadas”17.
O que significa depurar as palavras, de as libertar do peso semântico depositado por
séculos de racionalismo, de corroer e fazer explodir pelo “ódio” futurista a bienséance
linguística,” as convenções sociais e artísticas, as narrativas tradicionais, a começar
pela narrativa histórica, como acontece em A Cena do Ódio18:

“Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas /e que nunca descobriste que eras
bruto,/ e que nunca inventaste a maneira de o não seres…/ Tu que consegues ser cada vez mais
besta/ e a este progresso chamas Civilização! /Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus
olhos,/ vai inchando a tua ambição-toiro/ ‘té que a barriga te rebente rã.”

Para Almada, trata-se de encontrar palavras que desconstruam a ciência dos livros
(“E de que serve o livro e a ciência /se a experiência da vida/ é que faz compreender
a ciência e o livro?”), que promovam o des-pensamento como única via de acesso à
vida e ao mundo. Trata-se de re-aprender a olhar o mundo, de re-inventar as palavras
que permitem dizer a respiração da terra, das fontes, das árvores como se fosse a
primeira vez; de descobrir ou inventar a inocência da linguagem (numa espécie de
primitivismo que então ia rasgando novos caminhos nas artes plásticas) através de
uma aproximação à oralidade, à criatividade popular, nomeadamente desconstruindo
ou reescrevendo aforismos, rimas e imagens, dotando essa linguagem de uma
densidade e profundidade poética e simbólica inesperadas que exigem decifração,
adesão e colaboração interpretativa do leitor. Essa a griffe indelével e única da sua
escrita: a invenção de uma linguagem tão simples e ao mesmo tempo tão intensa
como o gesto infantil de desenhar uma flor:

“Pede-se a uma criança que desenhe uma flor. A criança vai sentar-se no outro canto da sala
onde não há mais ninguém. Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa
direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras

17 NEGREIROS, A., 1985: 158


18 Esta dimensão explosiva da escrita de Almada será retomada por uma escritora como Natália Correia que,
no turbilhão da Revolução de Abril,  confessa a sua admiração pelo poeta de “A Cena do Ódio” nestes termos:
“Na instância destes pensamentos, recordo-te, Almada Negreiros, querido mestre unanimista. (...) Prometo-te,
Mestre, tudo fazer para pôr no seu lugar, o chão, as patas desta maré-cheia de mentiras com que estão a dar corda
ao “thánatos” colectivo de um povo que só no unânime do Eros se identifica” (CORREIA, N., 2015: 80).
510 100 Orpheu Isabel Cristina Mateus

mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais. Depois a criança vem
mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as
de uma flor! Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração
e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no
papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são
aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!”19

Esta linguagem de linhas, não-verbal, não-sequencial, desarrumada, até certo


ponto a-gramatical, para dizer uma flor leva-nos de volta a Almada artista plástico
cujo “eu”, como a flor desta criança, se inventa e constrói nas linhas, umas mais
carregadas, outras mais leves da sua escrita. De uma escrita feita a lápis e pincel,
como um esboço de mundo depois dos destroços do martelo, e que surge neste
texto, significativamente, com uma epígrafe de Matisse, também ele pintor de
muitas outras linhas e flores. Frases-linhas, frases-desenho, desenho de palavras
porque, diz Eduardo Lourenço, o desenho é, em Almada, “o lugar de encontro
original do olhar sem conceito e do mundo (…) a evidência suprema e, mesmo,
única”20. O lugar do des-pensamento, essa espécie de clareira mágica a partir da
qual se descobre e se re-inventa o mundo.
A escrita de Almada, incluindo nesta designação a pintura, irá assim
experimentar ou mesmo antecipar, alguns dos “ismos” principais da vanguarda
europeia, dando provas da sua vocação inaugural: do expressionismo (realçado
por Jorge de Sena no prefácio já ciatado) ao simultaneísmo de Delaunay, do
futurismo ao cubismo, visível na construção fragmentária de muitos dos seus
textos poéticos, narrativos ou pictóricos. Para não falar do surrealismo anunciado
em certos momentos oníricos da novela A Engomadeira ou no caos associativo que
configura o folheto K4 Quadrado Azul que David Mourão-Ferreira classificou como
“um dos primeiros exemplos, se não o primeiro, na ordem cronológica, de “escrita
automática” em língua portuguesa. Encarado hoje, à distância de quase setenta anos,

19 “A Invenção do Dia Claro” (NEGREIROS, A., 1985: 171-172).


20 NEGREIROS, A., 1992: 16. A este respeito, Eduardo Lourenço acrescentará o seguinte: “Que seja sobre arte,
política, amor, civilização, Europa, Portugal, sempre o discurso-Almada tenderá a mostrar que o importante
na nossa relação com esses temas é descobrir a palavra-única que os resume e por detrás dela a ingenuidade
paradisíaca que a anula como fonte de perplexidade ou dúvida. O nosso Robinson- Almada navegou sempre
da modernidade exterior de Picasso para a modernidade sem tempo de Douanier Rousseau. Não é difícil
descortinar aqui uma secreta afinidade com a vocação mítica de Alberto Caeiro que, como se sabe – ou não se
sabe a sério- é o anti-Pessoa de Pessoa. O pensar mais profundo é, para ambos, o de des-pensar o mal pensado,
para que possamos regressar assim ao ponto zero do nosso contacto original com a realidade, contacto que
não teríamos perdido se a não tivéssemos reduzido a conceito, pensando-a.” (LOURENÇO, E., 1992: 16-17).
“Lápis e linhas para desenhar uma flor de nome Almada” 511

esse texto impõe-se-nos, primacialmente, como um implacável veredicto quanto à


impossibilidade de narrar”21.
Termino sublinhando o facto de a escrita almadiana poder ter trazido a Orpheu
(não tivesse ele sido o monólogo que foi) não apenas um diálogo privilegiado e
desafiador com a vanguarda das artes plásticas, essa mesma que Virginia Woolf22
dissera ter mudado a nossa forma de ver o mundo, mas também entre as artes plásticas
e a literatura, afinal um dos traços mais marcantes da modernidade artística que
Orpheu de certa forma deixou por cumprir: Santa Rita Pintor (que fez parte do grupo
de Orpheu) e Amadeo Souza-Cardoso (que não chegou a integrá-lo), por exemplo,
ficaram de alguma forma na sombra, quer pela dispersão estética que caracterizou
o “grupo”, quer pelo fulgor hegemónico de Pessoa. De tal maneira que o pintor de
Manhufe, um dos pintores mais vendidos na exposição Armory Show (International
Exhibition of Modern Art) de 1913, em Nova Iorque, só seria descoberto em Portugal
aquando da exposição Amadeo - Diálogo de Vanguarda, organizada pela Fundação
Gulbenkian, em 2006. Uma grande exposição da obra de Amadeo chegará finalmente,
pela primeira vez, em 2016, às galerias do Grand Palais, em Paris, de onde partirá em
itinerância pelo mundo, regressando a Nova Iorque, um século depois.
O projecto de invenção da linguagem a que Almada procede constituiu uma
poderosa forma de questionar a cultura europeia que nos molda e de a repensar, não
só a partir da rutura com a razão ocidental e com a linguagem da tribo (para utilizar
aqui a expressão de Mallarmé), mas também a partir de uma linha, coordenada
ou geografia diferente: a partir do sul a que Portugal pertence e de uma perspetiva
periférica que ganha hoje renovados contornos de atualidade no debate em torno
do(s) Modernismo(s) e da questão da identidade nacional ou “lusófona” em relação
a uma “centralidade” ou “identidade” europeias. No fundo, a direcção simbólica que
Almada ousará indicar nos seus cadernos Sudoeste, de 1935. Mesmo se, como nos
demonstrará matematicamente, na sua “Teoria dos Opostos”, através da fórmula
1+1= 1, essa direcção não é senão, afinal, uma “Direcção Única”, aquela que aponta
para a diferença e para a necessidade de afirmação de cada uma das identidades na
construção de um futuro europeu comum:

21 MOURÃO-FERREIRA, D., 1989: 139.


22 Virginia Woolf referir-se-á a esta mudança, em termos enigmáticos, numa célebre conferência proferida
em Maio de 1924 na Universidade de Cambridge: “And now I will hazard a second assertion, which is more
disputable perhaps, to the effect that on or about December 1910 human character changed. I am not saying
that one went out, as one might into a garden, and there saw that a rose had flowered, or that a hen had laid
an egg. The change was not sudden and definite like that. But a change there was, nevertheless; and since one
must be arbitrary, let us date it about the year 1910”. (Woolf, 1995: III, 421-422). Sobre a nota de Virginia
Woolf veja-se o nosso estudo “Sob o signo de Goya:diálogo(s) ibérico(s) em torno do Modernismo(s)”,
(MATEUS, I. C., 2011: 79).
512 100 Orpheu Isabel Cristina Mateus

“Cada português terá que ser mais português do que nunca em face do espanhol mais espanhol
do que nunca e sobretudo, portugueses e espanhóis teremos que ser mais portugueses e
espanhóis do que nunca, em face do alemão mais alemão do que nunca, do inglês mais inglês
do que nunca, do francês mais francês do que nunca, do italiano mais italiano do que nunca,
do russo mais russo do que nunca, enfim, de todo e qualquer povo mais nacional hoje do que
ontem, mais ele mesmo hoje do que nunca”.23

Talvez o caminho e a direção apontados por Almada ganhem hoje redobrada


importância.
Finalmente, não quero terminar sem deixar de sublinhar o notável sentido de
humor e a luminosidade da escrita de Almada, bem como a sua indomável vontade de
vida, a sua capacidade de deslocar ou inverter perspetivas, de inventar e criar raízes no
futuro. Ele que foi sempre, no dizer de Eduardo Lourenço, “uma árvore ao contrário,
com as folhas no lugar das raízes” ainda que a sua vocação, a sua “direcção única”,
tenha sido a de “converter as folhas em raízes e assim, de algum modo, como o herói de
Paris-Texas, de Wim Wenders, de caminhar com obstinação para a sua origem, para
esse lugar onde tinha sido concebido e donde tinha sido expulso, lugar ao mesmo tempo
pontual e infinito, onde o individual se articula com o universal, o problemático com o
pontual, o evidente com o enigmático”. 24
A leitura de Almada, nos seus diversos registos e suportes, evoca todavia, na minha
memória de leitora, uma outra personagem inesquecível: Cosimo de Rondó, de Italo
Calvino, em O Barão Trepador. Também ele expulso da mesa familiar (ainda que pelas
mãos do destino), Almada subirá, não apenas a essa árvore invertida (que, de resto,
ele mesmo plantou), como dela fará a sua morada, o seu posto de observação sobre
os outros e sobre o mundo, o ninho seguro onde ganha asas e se lança em pleno voo
o seu olhar de águia.
Talvez tenha sido, afinal, o estranho rumor dessa árvore que um dia encantou o
meu olhar de criança.

23 Sudoeste, 1 (1982: 5).


24 NEGREIROS, A., 1992: 11.
“Lápis e linhas para desenhar uma flor de nome Almada” 513

Bibliografia

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Negreiros, Almada (1985). Obras Completas, Vol. I (Poesia). Lisboa: Imprensa
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Negreiros, Almada (1993). Obras Completas, Vol. VI (Textos de Intervenção).
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Mateus, Isabel Cristina (2011). “Sob o signo de Goya: diálogos ibéricos em
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Portugal Futurista (edição fac-similada; pref. de Nuno Júdice). Lisboa: Contexto,
1981.
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Almada, Obras Completas, Vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Zip Zip, Programa RTP, 24 de Maio de 1969, 1ª emissão, entrevista de Raul Solnado
a Almada Negreiros (www.youtube.com/watch?v=xEfcJowGZgs)
O Contributo de Armando Côrtes-Rodrigues
para a revista Orpheu

António Manuel de Andrade Moniz


Docente aposentado da FCSH-UNL
Investigador do CHAM – UNL/UAç e do CLEPUL

Área temática: 2 – Tradição e Vanguarda no Modernismo Português.


Palavras-chave: modernismo, “Orpheu”, interseccionismo, heteronímia.
Resumo: Propomo-nos avaliar o contributo de Armando Côrtes-Rodrigues para os dois
números da revista Orpheu, de acordo com o projeto modernista sugerido pelo líder Fernando
Pessoa, sem deixarmos de evidenciar a correlação tradição versus vanguarda:

Vai entrar imediatamente no prelo a nossa revista, “Orpheu” […]. Não nos falte. Seria para
nós um grande desgosto que a revista aparecesse sem v. colaborar. Naturalmente teremos
ocasião de publicar umas 6 páginas suas […]. Mande quanto original v. possa, excedendo
bastante o necessário […]. Mande o mais interseccionista que tiver” (Carta de 19 de
Fevereiro de 1915).

Efetivamente, a colaboração de Côrtes-Rodrigues, no primeiro número, contempla a


estética preconizada pelo seu amigo e líder de escola, como a intersecção dos planos
emocional e espiritual, terrestre e celeste, na “Abertura do Livro da Vida”; ou a dos
planos do Eu e do Outro, em “Poente”; ou a dialética “luz/escuridão”, em “Agonia”; ou
o contraste entre o pulsar da vida peregrinante e a “calma” do “frio esquecimento”, em
“Só”; ou a transfiguração do “Não-Ser em Outro Ser”, em “Outro”.
O heterónimo feminino Violante de Cysneiros, anonimamente atribuído no número
dois da revista, mas com ressonâncias da poesia de Côrtes-Rodrigues, também segue
as pisadas do Mestre Fernando Pessoa, nos vários destinatários referenciados: Álvaro de
Campos, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Alfredo Guisado, Côrtes-Rodrigues
e a própria autora. Numa sensibilidade feminina, onde a estética do corpo tem voz
poética, ergue-se gritantemente a dialética do espaço e do tempo, do terreno e do
metafísico, do passado e do presente, do sonho e da realidade, do Eu e do Outro, do
Não Ser e do Ser.
516 100 Orpheu António Manuel de Andrade Moniz

Introdução

Propomo-nos avaliar o contributo de Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971)


para os dois números da revista Orpheu, de acordo com o projeto modernista sugerido
pelo líder Fernando Pessoa, sem deixarmos de evidenciar a correlação tradição versus
vanguarda:

Vai entrar imediatamente no prelo a nossa revista, “Orpheu” […]. Não nos falte. Seria para
nós um grande desgosto que a revista aparecesse sem v. colaborar. Naturalmente teremos
ocasião de publicar umas 6 páginas suas […]. Mande quanto original v. possa, excedendo
bastante o necessário […]. Mande o mais interseccionista que tiver” (PESSOA, F., 1959,
96-97).

A colaboração do poeta açoriano em tal revista é justificada num documento


manuscrito, datado de Junho de 1945, no trigésimo aniversário da publicação do seu
primeiro número, carta cujo destinatário não é identificado, e arquivada na Biblioteca
Pública e Arquivo Regional dos Açores, em Ponta Delgada (ACR, Cx 4-44). Ainda
que sem as formalidades do género epistolográfico, tal manuscrito explicita que se
dirige a um destinatário anónimo:

Digo-lhe isto para demonstrar o valor de todas essas notas e cartas que forneci a Joel
Serrão para que as publicasse precedidas de um ensaio completo sobre a personalidade de
Fernando Pessoa. Se as tivesse comigo, dar-lhe-ia pormenores muito mais interessantes do
que tudo o que lhe posso dizer agora (Ib., 2).

O documento começa por historiar os cinco anos de convívio (1910-1915), numa


“amizade cada vez mais íntima” com Fernando Pessoa, quando ainda era estudante
do antigo Instituto Superior de Letras, em Lisboa: “Dessas conversas nasceu o
movimento do Orfeu e a possibilidade daquela revista, da qual saíram apenas dois
números” (CÔRTES-RODRIGUES, A., 1945, 1).
Reportando o escândalo cultural provocado por tal revista, o poeta açoriano alude
à alcunha “entêrro da Arte” com que a batizaram e ao sucesso comercial de ambos
os números, os quais “se esgotaram facilmente pelo escândalo que a revista causou
nos arraiais pacatos da literatura oficializada” (Ib.). Os termos desse escândalo são
reportados a partir de um notório ostracismo:

Fomos apontados a dedo, troçados nas revistas do ano e olhados com certa desconfiança
pelos frequentadores dos cafés, tantas vezes “A Capital” reclamava a nossa presença em
O Contributo de Armando Côrtes-Rodrigues para a revista Orpheu 517

Rilhafoles. Lisboa inteira saboreou êsse escândalo de meia duzia de rapazes que se atreveram
a abrir uma janela para entrar ar fresco e sol na atmosfera bafienta da literatura de então
(Ib., 3).

Do grande poeta Fernando Pessoa, o amigo açoriano não se coíbe de emitir


um juízo de apreciação muito positivo, quanto à sua personalidade, ainda que
misteriosa, reconhecendo-lhe o indiscutível protagonismo na revista e na geração
do Orpheu:

Ele é que que foi, de facto, a alma, o espírito criador de todo o movimento de Orfeu. Ninguém
mais simples, mais acolhedor, menos dogmático do que êle, de uma tolerância que bem
podia servir de exemplo em certos partidarismos de escolas literárias. Mas ao mesmo tempo
ninguém mais misterioso do que êle, o grande poeta incompreendido, ganhando a vida a
escrever à máquina nos escritórios comerciais (Ib, 5).

A colaboração no Nº 1 de Orpheu

A colaboração de Armando Côrtes-Rodrigues para os dois números de Orpheu


representa um esforço de sintonia com o vanguardismo modernista protagonizado
pelos seus amigos de Lisboa, designadamente Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
Efetivamente, na citada Carta, o seu mestre faz menção explícita a uma das correntes
estéticas por si criadas, a partir de “Chuva Oblíqua”, o intersecionismo, uma das mais
vanguardistas da geração do primeiro modernismo, juntamente com o paulismo,
corrente conhecida a partir do primeiro verso do poema “Pauis”, enviado, entre outros,
pelo poeta ao amigo açoriano, na Carta de 19 de Janeiro de 1915. No entanto, Maria
Galhete Galhoz, reconhece a orientação paulista dos poemas de Alfredo Guisado e
Côrtes-Rodrigues:

um paulismo claramente eclético, fundindo o formalismo paúlico de Sá-Carneiro –


ouropéis barrocos e sensualismo mágico – com a formulação conceptual de Fernando
Pessoa – descarnado em matéria e inquiridora de incógnitas. O que ambos constroem é
uma exuberância de imagens, sem compromisso com uma nuclear carga poética, e cuja
cuidada beleza se dispersa por isso mesmo (GALHOZ, M. A. D., 1971, XLI).

No entanto, a referida crítica literária circunscreve a “esteira do interseccionismo, e


na imitação de um semifuturismo” à colaboração de Sá-Carneiro para o Orpheu (Ib.,
XLII).
518 100 Orpheu António Manuel de Andrade Moniz

A par do projeto de uma antologia do intersecionismo, Pessoa, entre as várias


referências a tal corrente, contrasta-a, juntamente com o paulismo, com a tripla
heteronímia de Caeiro, Reis e Campos, na qual pôs

[…] um profundo conceito da vida, diverso em todos os três, mas em todos gravemente
atento à importância misteriosa de existir. E por isso não são sérios os Paúis, nem o seria o
Manifesto interseccionista de que uma vez lhe li trechos desconexos. Em qualquer destas
composições a minha atitude para com o público é a de um palhaço. Hoje sinto-me afastado
de achar graça a esse género de atitude (PESSOA, F., 1959, 76).

O contraste é explicitado a partir de uma “ideia patriotica”, “uma consequência de


encarar a sério a arte e a vida”, uma “noção-do-dever” de “quem olha religiosamente
para o espectáculo triste e misterioso do Mundo” (Ib.), numa escolha estética que
não contempla “fins meramente artísticos, mas “uma série de ideias que urge atirar
para a publicidade para que possam agir sobre o psiquismo nacional, que precisa
ser trabalhado e percorrido em todas as direcções por novas correntes de ideias e
emoções que nos arranquem à nossa estagnação” (Ib., 74).
De qualquer modo, o Intersecionismo não parece ser um mero capricho vanguardista,
na medida em que cruza a complexidade da unidade biológica do ser humano: o físico
e o psicológico, o espaço exterior e o interior. Talvez por isso Pessoa tenha insistido
com Côrtes-Rodrigues para contribuir com os seus poemas intersecionistas.
Efetivamente, a colaboração de Côrtes-Rodrigues, no primeiro número de Orpheu,
para além do barroquismo das imagens paúlicas, contempla a estética preconizada
pelo seu amigo e líder de escola, como a intersecção dos planos emocional e espiritual,
na “Abertura do Livro da Vida”:

Litanias liturgicas de febre de paixão,


Crepusculos de fogo ardendo em sentimento,
Columnas de Além-Sonho, arcos de commoção,
Claustros de Archi-Tristeza aonde o Pensamento
Vive longe do mundo, em funda adoração… (CÔRTES-RODRIGUES, A., 1989, 63);

ou a intersecção dos planos terrestre e celeste no mesmo poema:

De onde a nau da minha Alma


Parte pela noite calma
A caminho do Alêm.
E eis a grande rota seguida em Mim sómente,
O Contributo de Armando Côrtes-Rodrigues para a revista Orpheu 519

P’ra que parta do mundo e chegue até aos céus,


E onde Tu e Eu iremos lentamente
Da Vida para Deus (Ib.,).

No poema “Poente”, podemos verificar a intersecção dos planos do Eu e do Outro:

As minhas sensações—barcos sem velas—


Erram de mim. Occaso rôxo. Scismo.
Meus olhos de Não-ver-me são janellas
Dando sobre o abysmo.
Abysmo d’Outro Ser (Ib.,64).

Em “Agonia”, ressalta a dialética “luz/escuridão”:

Meus olhos espectraes de comoção,


Olhos de Alma olhando-se a Si,
Nimbam de luz a longa escuridão
Da Vida que vivi (Ib., 65).

Em “Só”, é patente o contraste entre o pulsar da vida peregrinante e a “calma”


do “frio esquecimento” (Ib., 66), enquanto é nítida a transfiguração do “Não-Ser em
Outro Ser”, no poema “Outro”, à semelhança de Pessoa e seus heterónimos:

Fui Outro e, Outro sendo, Outro serei,


Outro vivendo a mystica belleza
Por esta humana fórma que encarnei,
……………………………………..
O meu Ser é Não-Ser em Outro-Ser (Ib., 67).

2. A colaboração no Nº 2 de Orpheu

Côrtes-Rodrigues colabora no Nº 2 de Orpheu, não em nome próprio, mas com o


heterónimo feminino Violante de Cysneiros.

No citado documento manuscrito, Côrtes-Rodrigues revela a identidade autoral relativa


a tal heterónimo, a pessoa responsável pela sua escolha e a consequência positiva do
anonimato autoral dos poemas publicados em tal nome: Fui o único açoreano que pertenceu
520 100 Orpheu António Manuel de Andrade Moniz

ao movimento de Orfeu e colaborei nos dois números dessa revista, mas no segundo com o
nome de Violante de Cisneiros, nome aliás escolhido por Fernando Pessoa para uma série
de poesias líricas que lhe apresentei, o que me livrou no exame das fúrias do Dr. Adolfo
Coelho contra os poetas futuristas (CÔRTES-RODRIGUES, A., 1945, 6).

Tal colaboração, anonimamente atribuída pela redação da revista, mas com


ressonâncias da poesia de Côrtes-Rodrigues, também segue as pisadas do Mestre
Fernando Pessoa, nos vários destinatários referenciados: Álvaro de Campos, Fernando
Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Alfredo Guisado, Côrtes-Rodrigues e a própria autora.
Numa sensibilidade feminina, onde a estética do corpo tem voz poética, ergue-se
gritantemente, em intersecção, a dialética do espaço e do tempo, do terreno e do metafísico,
do passado e do presente, do sonho e da realidade, do Eu e do Outro, do Não Ser e do
Ser. Seguindo o processo criador da heteronímia, bebido em Pessoa, Côrtes-Rodrigues
consegue interpretar com grande mestria a alma feminina, não desdenhando travestir
e assumir um papel protagonístico que já no início do século XX caracterizava a luta
pela emancipação das mulheres no Ocidente, neste caso através da voz da poesia.
No primeiro poema dedicado a Álvaro de Campos, a dialética luz/trevas é esboçada
a partir da imagem simbólica do farol, identificado com o próprio Eu, assinalando, na
treva noturna, os limites da terra às embarcações marítimas, metonímia da labuta
humana. A omnipresença esmagadora dessa treva é, assim, suavizada pela luz do
“Pharol de Mim”, que se torna o único real. E é a consciência da dignidade feminina
que lhe permite descobrir-se, numa “sensação infinita”, como “Pharol de Mim”:

Só o pharol é real!
A treva nunca tem fim,
Ó sensação infinita,
- Sou já só Pharol de Mim! (Ib., 123).

A vida, processo de sedução (“Toda a minh’Alma se prende / Naquella forma se prende


/ Naquella forma de graça”), é relativizada, no segundo poema dedicado ao mesmo
mestre, pelo seu caráter limitado e efémero. Apesar do movimento de libertação da
Alma (“Bate as asas – esvoaça”), fica confinada à sombra de uma simples “Linha que
passa”:

A vida é só o Espirito
Que vai da propria Linha
Á sombra d’elle num traço (Ib., 124).
O Contributo de Armando Côrtes-Rodrigues para a revista Orpheu 521

Assim, na dialética Vida/Morte, a Vida é confundida no mesmo Espaço no


momento da Morte, aniquiladora e definitiva:

Quando a Morte fôr vizinha,


Fundidas no mesmo Espaço
Será tudo a mesma Linha (Ib.).

Partindo do pressuposto metafísico de que



Espaço e Tempo são Pontes
Que Deus tem no seu regaço,
Pontes que ligam de Auzente
Infinito e Eternidade,

o Tempo é relativizado em função do Espaço:

Para além d’aquelles montes


Existe apenas Espaço! (Ib.).

O sensacionismo e o presentismo de Pessoa e Caeiro acabam por invadir e


absolutizar o poema:

Só sensações são Presente,
Só nellas vive a Verdade.
Passado nunca passou,
Futuro não o terei:
Pois sempre Presente sou
No que Fui, Sou e Serei (Ib.).

No poema dedicado a Sá-Carneiro, a bordadora, evocando a aparente trivialidade


de alguns poemas barrocos, pica “a ponta dos dedos” com “a agulha com que
bordava”, manchando de sangue, na metáfora das “papoulas rubras”, a “seda toda de
branca”. A imagem simbólica do sangue indicia o martírio quotidiano da bordadora,
como tantas na época, imagem que é reforçada pela vivência da sua solidão,
paradoxalmente contrabalançada pela relação com o mistério do sofrimento alheio:
“Mas tão sós e tão alheias” (Ib., 125). Lembrando o poema de Pessoa “Ela canta,
pobre ceifeira”, canto que “alegra e entristece”, pois “Na sua voz há o campo e a
lida, / E canta como se tivesse / Mais razões p’ra cantar que a vida”, o sangue da
522 100 Orpheu António Manuel de Andrade Moniz

bordadora é transfigurado em “papoulas rubras”, num hino à labuta, como com a


ceifeira.
A sensibilidade feminina, na voz da própria bordadora, que conta o episódio,
ultrapassa a mera subjetividade para se cruzar solidariamente com o mundo das
restantes trabalhadoras.
O poema dedicado a Fernando Pessoa vai ao encontro da problemática tão
pessoana da interseção entre o Eu e o Outro, geradora do fenómeno da heteronímia,
através do cruzamento entre o sonho próprio com o do outro:

Só o meu longe de passado


É como um sonho sem fim
Que o outro tenha sonhado (Ib.).

O silêncio, acompanhado do gesto resignado do cruzar de braços, contrasta com


a “voz dolorida”, evocando esse sonho “Dentro de Mim”. As imagens náuticas do
“marinheiro” e da “Ilha Perdida” reforçam a “verdade da vida” que esse sonho evoca:

Marinheiro! Ilha perdida!


E o meu sentido a sonha-lo
É a verdade da vida (Ib.).

No poema dedicado ao Sr. Alfredo Pedro Guisado, o sujeito feminino revê-se na


figura dançarina de Salomé: “em curva e de pé”, despertando sentidos com o seu
corpo. A imagem, tão caracteristicamente feminina, do espelho, evoca o “presente”
do seu “olhar”, bem como a pluralidade dos sentidos, em contraste com o passado. A
ânsia ontológica (“sentido de Ser-Me”), identificada com o mistério do Eu, perpassa
nesta “performance” balética da existência metafísica:

Todo o meu corpo pedaços


Dos espelhos dos sentidos…
Dancei… Dancei… E o ver-Me
Toda de curva e de pé
Era o sentido de Ser-Me.
Presente no meu olhar,
Eu fui outra Salomé
Feita de Mim a dançar (Ib., 126).


O Contributo de Armando Côrtes-Rodrigues para a revista Orpheu 523

Viver, sentir, olhar e sonhar o mundo é o registo da vida, expressa pelo sujeito
feminino, no poema dedicado ao Sr. Armando Côrtes-Rodrigues. Mas, em contraste
com este registo, o sonho desempenha uma função real dentro de si própria:

Só em Mim me concretiso,
E o Sonho da minha vida
Nesse sonho o realiso,
E sempre de Mim Presente,
Todo o Meu ser se limita
Em Eu Me Ser Real (Ib.).

Finalmente, no poema (“De ha dois anos”) dedicado a si própria, Violante Cysneiros


evoca as suas mãos esguias, com as suas unhas “côr de rosa” e os seus “dedos em
i”, simbolizando a altiva e reivindicativa diferença identitária. Esta consciência não
deixa de ser expressão da luta pela emancipação feminina, despontando no dealbar
do século XX. Ao polir essas mãos esguias com a pomada usada pelo interlocutor
(presumivelmente masculino), recorda ansiosamente a imagem do sorriso da sua
boca. No entanto, e apesar desta cumplicidade afetiva, o sujeito feminino não se coíbe
de afirmar a distância que os separa:

Mas os meus dedos em i


Dizem a longa distancia
Que vae de Mim para Ti (Ib., 127).

Conclusão

O contributo de Armando Côrtes-Rodrigues para os dois números, publicados em


1915, da revista Orpheu representa um notável esforço, em sintonia com o seu mestre
e seus amigos de escola literária, para uma afirmação vanguardista, na linha do que
preconizava Fernando Pessoa, ao identificar a revista como “a ponte por onde a nossa
Alma passa para o futuro” (PESSOA, F., 1959, 101). Como identifica Fernando Cabral
Martins, Orpheu “é sinédoque de Modernismo, revista-signo de momento, cujo
nome passa a identificar uma geração e uma poética” (MARTINS, F. C., 1994, s.p.).
No entanto, esta identificação geracional, associada à literatura, é ultrapassada por
Luís Montalvor, na “Introdução” ao Nº 1 da revista: “A photographia de geração, raça
ou meio, com o seu mundo immediato de exhibição a que frequentemente se chama
literatura […] deixa de existir no texto preocupado de ORPHEU” (MONTALVOR,
524 100 Orpheu António Manuel de Andrade Moniz

L., in MARTINS, F. C., 1994, 5). Pelo contrário, considera a revista “um exílio de
temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento” (Ib.), de
acordo com um “ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecer-nos” (Ib.).
De qualquer modo, como sublinha José Augusto Seabra, em referência ao Orpheu
mítico, paira sobre ele o “destino trágico, de que a liberdade é face”, como um “número
iniciático e fatal”: “Dir-se-ia que, adiando o olhar derradeiro sobre Eurídice, ele se
interditou e ao mesmo tempo assumiu, diferindo-a, a própria morte, inscrevendo o
infinito no finito” (SEABRA, J. A., 1983, III).
Côrtes-Rodrigues, assumindo, já em 1945, a diversidade de estilos que marcou a
sua obra, não deixa de a reconhecer como sua, ainda que inspirada em específicos
momentos e preocupações. A dupla colaboração prestada à revista Orpheu
inscreve-se na estética vanguardista que se enquadra na fase juvenil, em consonância
com os ideais compartilhados com os amigos da sua geração. O ideal cimeiro da
escrita poética domina e resume todo o seu labor:

Entendo com Jean Wahl que “la poésie est la plus haute du journal d’un poète». Assim tenho
escrito todos os meus livros. Cada um representa um momento determinado da minha
sensibilidade. E quando olho para trás e penso no que publiquei e ainda tenho escrito em
casa, tomo sempre para mim aquelas palavras de Moreau: “Dieu m’est témoin que suis un
vrai poète. Malheureusement je ne suis que cela” (CÔRTES-RODRIGUES, A., 1945, 9-10).

Bibliografia

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PESSOA, Fernando (1959). Cartas a Armando Côrtes-Rodrigues. Lisboa: Editorial
Inquérito.
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Efemérides: e depois de Orpheu?
– recepções, repercussões, reverberações

Marisa Mourinha
Università Degli Studi di Perugia

Palavras-chave: Orpheu; Fernando Pessoa; Almada Negreiros; Mário de Sá-Carneiro; Luís de


Montalvor.
Resumo: Em 1935, reflecte Almada Negreiros que o Orpheu fora «uma consequência fatal de
determinados portugueses». Mas quais são as consequências do Orpheu? Que significou aquela
«revista extinta e inextinguível», que deu nome a uma geração, e marcou de forma definitiva o
século XX português?
Se, por um lado, os de Orpheu imprimem ao modernismo português a sua marca distintiva,
por outro lado a ambição e a vocação do projecto não se esgotam aí: da Águia à Renascença,
do Portugal Futurista ao Sudoeste, um percurso pela cena cultural portuguesa, que havia de
encontrar, depois, nas páginas da Presença, a definição crítica de um pensamento literário.

Uma época não é apenas uma questão de tempo


mas essencialmente um sentido do novo no eterno.
(NEGREIROS, J. A., 2006: 155)

Portugal, Março de 1915: no recanto mais ocidental da Europa, um grupo de


artistas publica o primeiro número daquilo que viria a ficar para a história como o
primeiro marco do modernismo em Portugal, e um acontecimento ainda sem igual no
panorama literário português. Em Junho do mesmo ano, sairia um segundo número.
O terceiro número, anunciado para Outubro, nunca chegaria a sair1. Orpheu acabou.
Orpheu continua?
Ao mesmo tempo, pela Europa, grassava a guerra, começava a tomar forma o
primeiro contacto com um novo tipo de terror; a primeira guerra trouxe aquilo a que
se convencionou chamar a “surpresa técnica”: inventáramos novas formas de matar.
A humanidade assistira já à violência, e ao avanço da técnica; mas a técnica ao serviço
da destruição surpreendeu-nos.

1 Em 1984 a Ática publica um volume compilado por Arnaldo Saraiva, com o nome de Orpheu III.
526 100 Orpheu Marisa Mourinha

Em Março de 1915, o mundo já tinha visto Proust – mas não Eliot; já tinha visto
Joyce – mas não Breton. Já se afundara o Titanic, mas não o Lusitania2. Em Março de
1915, a Grã-Bretanha impõe um bloqueio naval à Alemanha; partem os primeiros
navios para o ataque aos Dardanelos. Em Abril do mesmo ano dá-se o primeiro
ataque com gás. Em Maio, a Itália entra na guerra. Ao mesmo tempo, já haviam sido
publicados os principais manifestos futuristas: Marinetti funda, em 1905, a revista
Poesia, em Milão; o seu Manifesto Futurista é publicado em 1909 pelo Le Figaro.
Fernando Pessoa vinha d’A Águia, onde se estreara em 1912. Sobre isto, escreve
Cleonice Berardinelli, a partir da análise da troca de correspondência entre Pessoa e
Sá-Carneiro:

[…] apesar da posição em que se põe, afastado anos-luz do companheiro, Sá-Carneiro


permite-se chamar-lhe a atenção, quando dele discorda, sempre no intuito de indicar-lhe
o melhor. Desde 1912, quando sai na Águia a série de ensaios intitulados “A nova poesia
portuguesa”, aflige-se com o facto de que “para o público”, o outro seja “apenas o crítico
Fernando Pessoa” (CFP, 36). Dois meses depois insiste: “É preciso que se conheça o poeta
Fernando Pessoa, o artista Fernando Pessoa – e não o crítico só – por lúcido e brilhante que
ele seja” (CFP, 64). (BERARDINELLI, C., 1988: 49)

Mas o caminho que o Pessoa-artista estava a percorrer afastava-o paulatinamente


da Águia: em 1913 escreve o «drama estático» O Marinheiro, influenciado pelo teatro
de Maeterlinck; em 1914, publica na revista Renascença o famoso poema «Impressões
do Crepúsculo», de cujo primeiro verso seria retirado o nome da corrente paúlismo.
Chegou a tentar, como recorda José Augusto Seabra (SEABRA, J., 1996: 199),
fazer publicar pela Águia trabalhos dos seus amigos, mas a ruptura acabou por
ser inevitável. Numa carta a Álvaro Pinto (dirigente da Renascença e secretário da
Águia), citada por Seabra, escreve Pessoa: «A mera análise comparada dos estados
psíquicos que produzem, uns o saudosismo e o lusitanismo, outros obra literária no
género da minha e da (por exemplo) de Mário de Sá-Carneiro, me dá como radical
e inevitável a incompatibilidade de aqueles para com estes». (id.: ibid.) A estes
projectos, o que faltava era «um pouco de Europa na alma», como dirá Sá-Carneiro
numa carta, aparentemente citando o próprio Pessoa, num estudo que este lhe enviara
(SÁ-CARNEIRO, M., apud PEREIRA-RUIVO, A., 2004: 68).

2 Du côté de chez Swann sai em 1913; a primeira edição de Prufrock and Other Observations sai em 1917; Joyce
começa a publicar em 1907, mas o primeiro marco importante é Dubliners, que sai em 1914; o primeiro
Manifesto Surrealista é de 1924; o Titanic afundou em 1912, o Lusitania foi afundado por um torpedo em Maio
de 1915, e este episódio revestiu-se de grande importância simbólica.
Efemérides: e depois de Orpheu? – recepções, repercussões, reverberações 527

É neste contexto que surge a revista Orpheu, como resposta a esta sede de Europa – a
revista esteve para chamar-se Europa:

Lusitânia foi uma primeira proposta, Europa aquela que, segundo Pessoa, “esteve mais
próximo de realizar”, no formato de “uma revista pequena”, para a qual terá iniciado um
Manifesto (Pessoa, 1986: 1324).
A ansiedade em torno do tema torna-se cada vez mais intensa na mesma medida em que os
de Orpheu vão descobrindo em si e nas suas obras a força e coesão necessárias ao projecto.
A 20 de Junho de 1914 Sá-Carneiro conclui que “depois de tudo isto, meu Amigo, mais
do que nunca urge a Europa!... “(Sá-Carneiro, 2006: 109). Sensivelmente um mês mais
tarde, em carta de 27 de Julho, Guisado evidencia essa ansiedade crescente: “Quando forem
necessários os 1.500 você bem sabe que é só dizer. A Europa é absolutamente necessário que
saia e o mais breve possível” (Pessoa, 1996: 206). (SOUSA, R., 2011: 36)

A intenção, desde o início, era agitar; o projecto nunca se pensou duradouro, como
se percebe deste excerto de uma carta de Sá-Carneiro a Pessoa: «A sua ideia sobre a
revista entusiasma-me simplesmente. É, nas condições que indica, perfeitamente
realizável materialmente, disso mesmo me responsabilizo. Claro que não será uma
revista perdurável. Mas para marcar e agitar basta uma meia dúzia de números»
(SÁ-CARNEIRO, M., apud SOUSA, R., 2001: 36).
Pessoa chegou aliás, a certo ponto, a considerar produzir simplesmente uma antologia:

No início de Outubro, em carta a Côrtes-Rodrigues, Pessoa ainda chega a apresentar um


ligeiro desvio ao projecto, propondo “em vez de uma revista interseccionista, contendo o
manifesto e obras nossas” que lançassem “um volume, uma Antologia do Interseccionismo”
que permitisse intervenção e ao mesmo tempo evitasse o possível fiasco financeiro da
revista. (id.: ibid.)

Provavelmente em 1915, Pessoa escreve a Camilo Pessanha, pedindo autorização


para publicar poemas seus no terceiro número da revista; admitindo que Pessanha,
estando em Macau, não estivesse a par de todos os pormenores da vida cultural
lisboeta3, Pessoa apressa-se a explicar o projecto, nestes termos:

3 «Sou um dos directores da revista trimestral de literatura Orpheu. Não sei se V. Ex.ª a conhece; é provável que
não a conheça. Terá talvez lido, casualmente, alguma das referências desagradáveis que a imprensa portuguesa
nos tem feito. Se assim é, é possível que essa notícia o tenha impressionado mal a nosso respeito, se bem que
eu faça a V. Ex.ª a justiça de acreditar que pouco deve orientar-se, salvo em sentido contrário, pela opinião dos
meros jornalistas». (PESSOA, F., 1999: 184-185)
528 100 Orpheu Marisa Mourinha

Resta explicar o que é Orpheu. É uma revista, da qual saíram já dois números; é a única
revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde a Revista de Portugal, que foi
dirigida por Eça de Queirós. A nossa revista acolhe tudo quanto representa a arte avançada;
assim é que temos publicado poemas e prosas que vão do ultra-simbolismo ao futurismo.
Falar do nível que ela tem mantido será talvez inábil, e possivelmente desgracioso. Mas o
facto é que ela tem sabido irritar e enfurecer, o que, como V. Ex.ª muito bem sabe, a mera
banalidade nunca consegue que aconteça. Os dois números não só se têm vendido, como
se esgotaram, o primeiro deles no espaço inacreditável de três semanas. Isto alguma coisa
prova – atentas as condições artisticamente negativas do nosso meio – a favor do interesse
que conseguimos despertar. (PESSOA, F., 1999: 184-185)

À parte a indisfarçável vaidade que Pessoa tem no trabalho de Orpheu, este


excerto testemunha ainda outra coisa: a sua consciência do carácter transversal do
projecto («acolhe tudo quanto representa a arte avançada (…) do ultra-simbolismo
ao futurismo»), que é afinal o que faz dele um projecto maior e mais conseguido
que outros – sintoma que é de indesmentível diletantismo: Orpheu, como reflectirá
Almada mais tarde, foi «uma consequência fatal de determinados portugueses»
(NEGREIROS, J. A., 1935), que de comum entre si não tinham mais – e não é nada
pouco – do que algumas ideias originais e uma indómita vontade de se fazerem
ouvir.
Luiz de Montalvor, no editorial («Introducção») do número que dirige, começa
com uma frase algo críptica, que diz «O que é propriamente revista em sua essência
de vida e quotidiano, deixa-o de ser Orpheu, para melhor se engalanar do seu título e
propor-se» (AA.VV., 1915: 1). Continua, reclamando o direito de se «desassemelhar
de outros meios»; ou seja: as primeiras palavras que «os de Orpheu» dirigem ao mundo
são para avisar que esta não vai ser uma revista como as outras, «puras e raras» que
«são as suas intenções»:

Bem propriamente, Orpheu é um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um


segredo ou tormento... Nossa pretensão é formar, em grupo ou ideia, um número escolhido
de revelações em pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em
Orpheu o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos. (id.: ibid.)

Orpheu é assim um lugar de exílio, porto seguro para sujeitos cuja sensibilidade os
distingue dos demais... Em vez de Europa, nome que estabelecia e enfatizava a ligação
com o resto do mundo, o grupo acaba por escolher o nome de Orfeu (e, recordemos,
que foi uma ideia do próprio Montalvor), onde ressoa o exílio, o tormento, a hipótese
de descida aos infernos... mas também o «princípio aristocrático» de que esta élite
Efemérides: e depois de Orpheu? – recepções, repercussões, reverberações 529

se sentia investida – e, acima de tudo, este é um nome com espaço para «o seu ideal
esotérico», a dimensão iniciática que o projecto acaba por ter.
A codificação que, trinta anos depois, fará Almada, coloca a tónica na questão da
vanguarda, sentindo-se parte desta élite artística e intelectual cujo papel se resumia
muito a fazer-se ouvir: «Orpheu era uma consequência fatal de determinados
portugueses, desligando-se dos outros portugueses, porém ligados entre si pela
mesma fé na élite de Portugal» (NEGREIROS, J. A., 1935: 1)
O texto de Almada Negreiros no Diário de Lisboa (1935) é importante porque
possui já alguma distância – e é interessante verificar o quanto, vinte anos depois,
ainda ressoa as mesmas premissas expostas no primeiro número por Montalvor;
além de que parece ser esta primeira efeméride que a sociedade oferece a Orpheu:
assinalando os vinte anos da saída do primeiro número da revista, o director do
Diário de Lisboa (onde de resto já há anos Almada e os seus tinham voz) dirige um
convite «ao colaborador de Orpheu que assina estas linhas» (id.: ibid.). E, como Pessoa
fizera anos antes, ao escrever a Camilo Pessanha, também Almada “explica” Orpheu;
mais elíptico que Pessoa, nunca chega a dizer textualmente «é uma revista»; mas ecoa,
como Pessoa fizera vinte anos antes (nomeadamente nas cartas a Cortes Rodrigues
e a Camilo Pessanha), o escândalo, para eles conotado com êxito, que o projecto
provocara na sociedade de então: «O escândalo que o aparecimento de Orpheu
produziu no público, foi e ficou inédito na vida literária portuguesa. Portugal leitor,
de norte a sul, delirava de regozijo, exactamente como se cada português tivesse sido
o achador daqueles loucos à solta!» (id.: ibid.)
«Loucos à solta» era exactamente a imagem que queriam dar «os de Orpheu» –
sobretudo depois que Pessoa e Sá-Carneiro tomaram em mãos a direcção; sintoma
disso é a inclusão, no segundo número, do soneto de Ângelo de Lima, que, como dirá
Pessoa em 1935, «não sendo nosso, todavia se tornou nosso» (AA.VV., 1935: 3).
Focando-se no escândalo que provocou a revista, detém-se Almada a analisá-lo:

Foi essa a reacção mais viável encontrada pelos leitores de Orpheu para justificar o incómodo
que a revista lhes causou lá em seus ripanços.
Não tinha sido tão conscientemente que fizéramos tais rivais. Não os tínhamos adivinhado
tão concretos. Pelo contrário, julgávamos os erros que atacávamos e a rotina que queríamos
romper como defeitos de nós todos, mais do que apenas de alguns que se sentiram lesados
no seus prestígios.
Mas, não é verdade que parece extraordinário uma revista literária ter o condão de fazer
saltar dos seus respectivos buracos tanta gente sensata, indignada com tal emprego das
palavras?!
[...]
530 100 Orpheu Marisa Mourinha

Mais extraordinário parecerá ainda quando se disser que Orpheu era exclusivamente
literário, que não tinha o mais pequeno vislumbre político, que não era como os jornais e
revistas literárias portuguesas da actualidade, nas quais é afinal a política que se mascara de
letras – Orpheu era honradamente literário!
Sem programa, a não ser o de reunir autores, assim se fez Orpheu. Todos autores e sem
chefes, o que de verdade só é possível entre gente de Arte.
[...]
A razão de Orpheu era profundamente aristocrática, não no seu efémero sentido de sangue,
mas na sua verdadeira essência de valores. (NEGREIROS, J. A., 1935: 1)

Com efeito, as reacções foram veementes e imediatas, desde a polémica n’A Capital4
que Pessoa celebra em carta a Cortes-Rodrigues5, à – chamemos-lhe assim – polémica
Dantas: em Abril desse ano (ou seja, pouco depois da saída do primeiro número do
Orpheu), sai na Ilustração Portuguesa um artigo assinado por Júlio Dantas6, com o
título «Poetas Paranóicos»:

Alguns rapazes, com muita mocidade e muito bom humor, publicaram, há dias, uma revista
literária em Lisboa. Essa revista tinha apenas de notável a extravagância e a incoerência de
algumas, senão de todas as suas composições. Como a recebeu a imprensa diária? Com o
silêncio que merecia? Com as duas linhas indulgentes e discretas que é de uso consagrar
às singularidades literárias de todos os moços? Não. A imprensa recebeu essa revista
com artigos de duas colunas – na primeira página. A imprensa fez a essa revista um tão
extraordinário réclame, que a primeira esgotou-se e já se está a imprimir a segunda. Ora
semelhante atitude está longe de ser inofensiva ou indiferente. Em primeiro lugar, consagra
uma injustiça fundamental; em segundo lugar, favorece e prepara uma selecção invertida.
Eu bem sei que o réclame a certas obras é às vezes feito à custa da veemente suspeita de
alienação mental que pesa sobre os seus autores. Mas neste caso, como em outros muitos, é
justo confessar que os loucos não são precisamente os poetas, mais ou menos extravagantes,
que querem ser lidos, discutidos e comprados; quem não tem juízo é quem os lê, quem os
discute e quem os compra. (DANTAS, J., 1915: 481)

Sobre este assunto, diz Clara Rocha:

4 Ver, por exemplo, “Os poetas do Orpheu”. In A Capital, Lisboa, 6 de Julho de 1915.
5 Carta a Armando Côrtes-Rodrigues de 4 de Abril de 1915 (PESSOA, F., 1985: 63).
6 Júlio Dantas licenciara-se em Medicina com uma tese intitulada Pintores e poetas de Rilhafoles, publicada em
1900 pela Livraria Editora Guimarães, Libânio e C.ia.
Efemérides: e depois de Orpheu? – recepções, repercussões, reverberações 531

Madness had great symbolic weight for the 1915 generation and was a constant theme in the
work of its major poets, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, and Almada Negreiros.
It was used not only as a clownish metaphor of avant-garde iconoclasm, but also as a more
profound sign of the crisis of the modern subject. (ROCHA, C., 2013: 420)

A autora continua, citando referências à loucura na poesia de Campos e na prosa
de Sá-Carneiro e analisando, depois, mais em detalhe, a poesia de Ângelo de Lima;
mas não menciona este poema de Almada Negreiros («Reconhecimento à Loucura»),
que diz mais do que qualquer página de crítica:

Já alguém sentiu a loucura


vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
[...]
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?

Tu Só, loucura, és capaz de transformar


o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.
(NEGREIROS, J. A., 2005: 156-157)

Se o projecto de Orpheu teve a força que teve foi, quanto a nós, pelo que não teve
de programático; foi por ser, como diz Almada no texto do Diário de Lisboa acima
citado, «exclusivamente literário», «honradamente literário».
532 100 Orpheu Marisa Mourinha

Orpheu acabou? Orpheu continua: embora o número 3 nunca tenha visto a luz do
dia, o arco do ímpeto modernista (ou moderno, sem -ismos) estava assestado: em
1916, é dado à estampa o Manifesto Anti-Dantas7; em 1917 sai o primeiro (e único)
número de Portugal Futurista.
Por muitos considerado o terceiro efectivo número de Orpheu8, Portugal
Futurista reunia participações de Santa-Rita Pintor, Almada Negreiros, Amadeu de
Souza-Cardoso; traduções de Marinetti, Boccioni, Carrà, Russolo e Severini; textos
em francês de Raul Leal, Apollinaire e Blaise Cendrars; poemas de Sá-Carneiro
(cuja morte não o impede de participar do projecto); e Fernando Pessoa tem uma
participação dupla, com «Episódios» e «Ficções do Interlúdio» (ortónimos), e o
«Ultimatum», assinado por Álvaro de Campos. Também aqui, à semelhança do que
sucedia com Orpheu, «há diversas tendências que se sobrepõem, confundem, ou até
divergem» (SENA, J., 1988: 77).
Ainda em 1915, arranca a Contemporânea, de José Pacheco, cuja publicação se
interrompe abruptamente, para depois encontrar uma estabilidade, publicando
regularmente entre 1922 e 1926. Sobre ela, dirá Pessoa, numa carta de 1928 a
Cortes-Rodrigues: «É, de certo modo, a sucessora de Orpheu. Mas que diferença!
Que diferença!» (apud LOURENÇO, 1988: 28)
Na revista Athena, dirigida por Fernando Pessoa e Ruy Vaz (e da qual saíram
apenas cinco números, entre Outubro de 1924 e Fevereiro de 1925), serão publicados
textos de autores modernistas (alguns dos quais autores de Orpheu – aliás o número
dois é dedicado a Sá-Carneiro), mas também muito material do próprio Pessoa, tanto
literário como crítico – que ele assina, quer como ortónimo, quer como Campos
(já publicado em Orpheu, teve desde o início também uma produção ensaística ou
crítica), publicando também poemas dos seus heterónimos Reis e Caeiro. De Athena
dirá Seabra (SEABRA, 1996: 206) ter sido «uma metástase» de Orpheu.
Sudoeste teve o seu primeiro número em Junho de 1935, e o seu sub-título
(«Cadernos de Almada Negreiros») não deixava margem para dúvidas quanto à
paternidade e à filosofia do projecto. Inicialmente previsto como mensal, o segundo
número acabou por sair só em Outubro. O número 3, de Novembro, volta a encarnar

7 NEGREIROS, J. A., 2006: 7


8 Mas Pessoa não desistira do projecto de fazer sair um terceiro número de Orpheu: «Numa carta de 11 de Julho
de 1917 dirigida a José Pacheco, Pessoa pede ao amigo que se encontre consigo para tratarem das “páginas de
resguardo” e para discutirem assuntos ligados à publicitação e distribuição. Informa-o ainda de que “o Serra
(empregado da tipografia do Falcão) pediu que lhe dessem mais umas folhas de papel para Orpheu, para tirar
mais uns seis ou sete exemplares a mais”. As referências à “Cena do Ódio” e ao facto de estar “preparando o
Álvaro de Campos que falta concluir” tornam demasiado evidente que esta carta se refere a um Orpheu 3 em
estado avançado de preparação». (SOUSA, R., 2011: 49)
Efemérides: e depois de Orpheu? – recepções, repercussões, reverberações 533

o espírito de Orpheu, vindo a público com um festival de colaborações que vão de


Fernando Pessoa a Gaspar Simões. O sub-título «Cadernos de Almada Negreiros»
dá lugar a um outro: «Revista portuguesa». Este número 3 (e derradeiro), assume-se
como uma homenagem ao Orpheu, e abre com um texto de Pessoa intitulado «Nós,
os de Orpheu», em que ele se refere à «revista extinta e inextinguível a que ambos
pertencemos» (AA.VV., 1935: 3). Este texto, muito curto e que, de um modo geral, não
é nem lírico nem programático, limitando-se a elencar as participações e a justificar
as ausências, concentra apesar de tudo no seu título e na frase que acabamos de citar,
uma ideia fundamental de pertença dos autores ao projecto – mais que do projecto
aos autores: Orpheu não é nosso, somos nós que somos de Orpheu9.
João Gaspar Simões reage a isto mesmo, intitulando a sua intervenção (id.: 22)
«Nós ‘A Presença’», e explicando que Orpheu e Presença são «movimentos que entre si
se distinguem pela razão de o primeiro não ter existido senão enquanto existiu, num
momento dado, uma revista com esse nome; e o segundo por ter existido e continuar
existindo independentemente das individualidades que se dão por seus elementos
constitutivos» (id.: ibid.). De facto, como ele próprio salienta, «Presença define,
criticamente, um pensamento literário. (…) Pode dizer-se que a Presença definiu uma
estética» (id.: ibid.). Gaspar Simões não o diz, mas poderia dizer-se que o Orpheu
definiu uma estética – ou uma constelação delas; e, acima de tudo, que mais que definir,
criticamente, encarnou-a(s). Se o Orpheu não pode existir sem aqueles indivíduos
que participaram dos seus números um e dois, o facto é que aqueles indivíduos – e,
sobretudo, as suas obras – continuaram a fazer-se ouvir, mesmo depois de extinta a
revista. Prova disso é este número de Sudoeste em que, vinte anos depois, surgem –
lado a lado com os nomes do chamado presencismo – de novo, textos de Pessoa, Álvaro
de Campos, Almada Negreiros – e mesmo Ângelo de Lima e Sá-Carneiro, entretanto
desaparecidos.
De resto, d’os de Orpheu, muitos não viveram para ver esta efeméride: na página
do Diário de Lisboa em que Almada escreve o seu texto comemorativo, vê-se uma
lista de nomes, encimadas por uma coroa de louros e uma lira; naquela lista de doze
nomes, cinco estão já marcados com uma cruz que indica terem já falecido (Ronald
de Carvalho, Mário de Sá-Carneiro, José Pacheco, Santa-Rita Pintor, Ângelo de Lima);
e nós, que lemos hoje esta lista, não podemos deixar de notar com um arrepio que
também Pessoa viria a morrer ainda naquele ano de 1935.
O nome de Orpheu acabou por se tornar símbolo desta geração (até porque «uma
geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca

9 Já Almada Negreiros em 1916 assinava o Manifesto Anti-Dantas «Poeta de Orpheu, Futurista e tudo»
(NEGREIROS, J. A., 2006: 7)
534 100 Orpheu Marisa Mourinha

o foi» (NEGREIROS, J. A., 2006: 9), cuja marca foi de tal modo profunda que o seu
eco continuou a reverberar ao longo do século – e depois disso.
Almada, no seu texto de 1935, coloca, como já vimos, a questão em termos nacionais:
«Orpheu era uma consequência fatal de determinados portugueses». E continua: «As
suas personalidades vinham já esclarecidas o bastante para uma dignidade comum,
por isso mesmo éramos portugueses sem sermos nacionalistas, nem regionalistas,
nem indigenistas. Queríamos apenas o mais difícil dos títulos portugueses: sermos
portugueses simplesmente!» (NEGREIROS, J. A., 1935: 1) Esta postura – que pode
facilmente ser lida à luz da tendência futurista para o ímpeto patriótico – não deixa
de ser curiosa, tanto mais que se tratava de um projecto luso-brasileiro. Mas Almada
não vê contradição, e ele próprio explica, mais à frente:

Outra característica de Orpheu era o europeísmo.


Dirão: como pode ser se estavam em Orpheu dois brasileiros? Dois americanos?! Isto mesmo
ajuda-vos a responder. E na resposta fica também demonstrada a independência que dissemos
já dos colaboradores de Orpheu.
Ronald de Carvalho, precisamente o escritor brasileiro, colaborador de Orpheu, escreve nos
Estudos Brasileiros: “O nosso dever é destruir o preconceito europeu... Deixemos de pensar
em europeu. Pensemos em americano”. Isto quer dizer: o que para o português representa o
europeísmo, é evidentemente para o brasileiro o americanismo. (id.: 7)

Nós diríamos que, da expressão «destruir o preconceito europeu», que cita


Almada, o menos importante é a questão do “europeu”; palavra de ordem para todos
os movimentos modernistas (sobretudo no primeiro modernismo) é justamente –
destruir. Não só o preconceito como a maioria dos conceitos. O chamado primeiro
modernismo é de combate, de contestação. E Orpheu não podia ter ambição maior
do que – causar escândalo, reacção; agitar. Nesse sentido Orpheu acabou – visto que
já ninguém se escandaliza. Mas continua – continuam, mais que os dois números da
revista, as obras dos que dela participaram, a recordar-nos todos os dias que «Isto de
ser moderno é como ser elegante: não é uma maneira de vestir mas sim uma maneira
de ser» (NEGREIROS, J. A., 2006: 156).

Bibliografia

Bibliografia Activa
AA.VV. (1915) Orpheu - Revista Trimestral de Literatura (Março de 1915). Lisboa:
Orpheu, Lda.
Efemérides: e depois de Orpheu? – recepções, repercussões, reverberações 535

AA.VV. (1935) Sudoeste, n.º 3 (Novembro de 1935). Lisboa: Edições SW.


NEGREIROS, José de Almada (1935). «Orpheu – um aniversário». In Diário de
Lisboa, Suplemento Literário, nº 4418, 8 de Março de 1935.
NEGREIROS, José de Almada (2005). Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim.
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PESSOA, Fernando (1999). Correspondência 1905-1922. Lisboa: Assírio & Alvim.
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edição de Joel Serrão. Lisboa: Livros Horizonte.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (2001). Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando
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Bibliografia Passiva
BERARDINELLI, Cleonice (1988). «Ínclita geração, altos artistas». In
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DANTAS, Júlio (1915). «Poetas Paranoicos». In Ilustração Portuguesa. Lisboa, 19
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LOURENÇO, Eduardo, et al., (1988). Fernando Pessoa no seu tempo. Lisboa:
Presidência do Conselho de Ministros, Secretaria de Estado da Cultura,
Biblioteca Nacional.
PEREIRA-RUIVO, Albertina (2004). «La genèse du sensationnisme. Lettres de
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O Modernismo no Romance Português, ou o Terceiro Modernismo como
Modernismo Tardio

Marcelo G. Oliveira
Universidade Europeia / CLEPUL

Palavras-chave: Literatura portuguesa do século XX; Periodização; Terceiro modernismo;


Modernismo tardio; Romance.
Resumo: O presente ensaio procura aferir as consequências das profundas transformações
verificadas no romance português a partir da década de 1950 para a periodização da literatura
portuguesa do século XX, nomeadamente para a consideração de diversas fases no tempo de
vigência do modernismo enquanto um período alargado que, iniciando-se na segunda década
do século, se prolongaria até aos anos 70.

Como periodizar o modernismo? Naturalmente, a questão pressupõe a existência


de algo a que possamos chamar modernismo, bem como a própria necessidade de
periodização. A este respeito, seria possível citar a dupla negativa de Fredric Jameson
– «Não podemos não periodizar» (JAMESON, F., 2002: 29) –, mas fiquemo-nos pelas
palavras de Vítor Manuel Aguiar e Silva: «A rejeição da pertinência e da relevância
da periodização literária deriva tanto de um anarquismo epistemológico […] como
de um idealismo que concebe os textos literários como insularidades irredutíveis»
(AGUIAR E SILVA, V. M., 2010: 403). De facto, algo uniu a produção dos membros de
Orpheu – de alguns mais do que doutros, como bem sabemos –, algo que a distingue
da literatura que a precedeu e que progressivamente faria sentir a sua influência ao
longo do século XX.
A utilização do termo modernismo para designar esse algo encontra-se hoje bem
documentada, bem como a sua relação com o conceito de vanguarda, que contribuiu
para o seu reajustamento conceptual após os influentes estudos de Matei Calinescu
e Peter Bürger na década de 70 do século passado. Como bem salienta Aguiar e
Silva, porém, já José Régio, que, com os principais mentores da presença, implantou
definitivamente o conceito de modernismo no léxico historiográfico da literatura
portuguesa, tivera a intuição, «a nosso ver acertadíssima, de que entre o Modernismo
(superior, clássico, na sua terminologia) e as Vanguardas [como o Dadaísmo, o
Futurismo e o Expressionismo] não existe uma fronteira nítida, pois que entre ambos
há intersecções, tangências, osmoses» (AGUIAR E SILVA, V. M., 1995: 160). De facto,
538 100 Orpheu Marcelo G. Oliveira

pese embora a eclética diversidade presente no seu âmbito – não há um mas vários
modernismos, como a própria heteronímia pessoana bem demonstra –, o termo
modernismo viria a impor-se enquanto categoria ex post facto abarcando ambas as
tendências.
A mera utilização de um termo que tem na sua base o conceito de moderno, por
seu lado, aponta para questões importantes ao nível da periodização. A longa história
do conceito, herança do latim tardio, e da sua relação com a literatura, tal como
seminalmente exposta por Hans Robert Jauss (JAUSS, H. R., 2005), aponta para o facto
de, a um novo período, corresponder necessariamente a emergência de uma nova
configuração temporal. Assim sendo, e enquanto categoria periodológica, o termo
modernismo, antes de mais, apontaria não para correntes ou práticas específicas mas
para uma distinta articulação de temporalidades – uma configuração que, retomando
os termos da célebre formulação de Baudelaire, pode ser descrita como uma tensão
antitética entre a noção de eterno, de imutável e a transitoriedade e efemeridade da
vida moderna. Com efeito, embora equacionando esse eterno de formas distintas,
tanto o modernismo em sentido restrito como as vanguardas conduziriam a uma
consciência intensificada do presente justamente por manterem a relação antitética já
anteriormente patente na conceção de modernité de Baudelaire.
A distinção entre modernismo e vanguarda no âmbito do próprio modernismo
revela-se, na verdade, crucial para a sua periodização, nomeadamente para a
distinção entre um primeiro modernismo, associado aos membros de Orpheu, e
um segundo, tradicionalmente ligado à presença. Embora a consideração de uma
«contra-revolução» operada pelos membros desta, para utilizar a clássica expressão
de Eduardo Lourenço (LOURENÇO, E., 1987: 143), seja, naturalmente, excessiva –
como, de resto, viria a ser reconhecido pelo próprio autor (LOURENÇO, E., 2003:
93) –, os impulsos vanguardistas do primeiro modernismo ficariam em grande
medida adormecidos durante o que Fernando Guimarães considera ser um «período
intervalar que corresponde aproximadamente ao tempo que decorre entre os anos 20
e 40» (GUIMARÃES, F., 2004: 12), aspeto desde logo patente na conhecida apreciação
negativa de José Régio de movimentos vanguardistas como o Futurismo, o Dadaísmo
ou o Expressionismo.
A referência de Fernando Guimarães a este «período intervalar» surge no âmbito
de uma consideração sobre as possibilidades abertas pelo primeiro modernismo que
seriam posteriormente retomadas por uma «segunda vanguarda», ou seja, por uma
terceira fase do modernismo cujos contornos começariam a tornar-se nítidos na
«década de 50» e para a qual a influência do tardio movimento surrealista português
teria sido fulcral. Óscar Lopes havia já explicitamente considerado este «terceiro
modernismo», associando-o ao «heterogéneo vanguardismo do pós-guerra» (LOPES,
O Modernismo no Romance Português, ou o Terceiro Modernismo como Modernismo Tardio 539

O., 1990: 92) e a ele se referindo, numa outra passagem do mesmo texto, como o
modernismo «dos anos 40-50-60» (LOPES, O., 1990: 88). Luís Adriano Carlos, por
seu lado, vinculará o conceito à geração dos Cadernos de Poesia, que estabeleceria
uma relação não mediada com o modernismo inicial de Orpheu (CARLOS, L. A.,
2002: 240-242) cujas repercussões se fariam sentir, «em todas as suas derivas, dos
mestres de 40 aos epígonos de 70» (CARLOS, L. A., 2004: xv).
Também Ana Hatherly, adotando a perspetiva alargada de Malcolm Bradbury e
James McFarlane, proporia a consideração deste «terceiro modernismo» nos seguintes
termos:

Se, adoptando essa perspectiva alargada, considerarmos então de novo o 1º e o 2º


Modernismos do caso português, talvez a proposta de Eduardo Lourenço de “separar
sem dor esses falsos irmãos siameses que mutuamente se prejudicam” possa ser inclusive
ultrapassada, pois a questão da sua compartimentação esbater-se-á ante o reconhecimento
de um movimento único - o Modernismo em diferentes fases.
Nesse caso, seria então possível reconhecer não só esses dois pontos do percurso português
mas também ainda um terceiro, que poderia bem ser encarnado pela obra de Jorge de Sena,
onde se encontram fundidos valores que decorrem de um e de outro e que concorrem para
uma terceira realidade: aquela que marca precisamente o fim das gerações de Orpheu e
Presença. (HATHERLY, A., 1995: 33-34)

A referência a fases ou momentos distintos no âmbito de um período alargado patente


nas quatro abordagens converge, em termos gerais, com a consideração do modernismo
como um «megaperíodo» proposta por Fernando J. B. Martinho – ainda que este
considere «discutível a introdução de uma nova categoria», a de terceiro modernismo
(MARTINHO, F. J. B., 2008: 850) –, um período que, iniciando-se sensivelmente com
a publicação de Orpheu, se prolongaria até à década de 70, quando «uma significativa
alteração da situação periodológica no sentido de um progressivo afastamento da
‘tradição de ruptura’» possibilitaria a consideração de um novo «período» ao qual
se teria «imposto a designação de pós-modernismo» (MARTINHO, F. J. B., 2004:
332). Como salientado pelo próprio autor, o acentuar de continuidades inerente à
consideração deste megaperíodo «não implica, é evidente, o esquecimento das curtas
durações, a que, dentro do modernismo poético português, corresponderiam, por
exemplo, os vários ismos do primeiro modernismo, movimentos como o da Presença,
o neo-realismo, o surrealismo, o experimentalismo» (MARTINHO, F. J. B., 2004:
333). Creio, porém, que a ponderação de diferentes fases – conceito distinto quer do
de movimento quer do de geração – implícita nas categorias de primeiro e segundo
modernismo, por permitir a consideração de diferentes formas de heterogeneidade,
540 100 Orpheu Marcelo G. Oliveira

tais como as exibidas pelos membros de Orpheu e da presença, bem como a apreciação
de eventuais mutações em percursos autorais individuais, revela uma acuidade crítica
e um potencial produtivo que não devem ser subestimados.
Salvo observações pontuais, comum a todas as propostas acima referidas é a sua
manifesta ênfase na poesia, em claro detrimento da prosa de ficção. Ao considerarmos
a produção ficcional deste longo período, particularmente no que respeita ao romance,
a legitimidade de uma distinta categoria periodológica com base no conceito de
modernismo, associável nomeadamente às décadas de 1950, 1960 e 1970, ganha
nitidez. Essa fora já, de resto, a intuição inicial de Eduardo Lourenço no seu clássico
ensaio «Uma Literatura Desenvolta, ou os Filhos de Álvaro de Campos», inicialmente
publicado em O Tempo e o Modo em Outubro de 1966, pese embora a desconsideração
do termo «neomodernismo» para qualificar as obras em apreço (LOURENÇO, E.,
1994: 258). Debruçando-se sobre a literatura produzida em Portugal de 1953 (data de
publicação de A Sibila, de Agustina Bessa Luís) a 1963 (Rumor Branco, de Almeida
Faria), com especial foco para a produção ficcional, Eduardo Lourenço salienta a
vitalidade e desenvoltura desta «Nova Literatura», referindo-se ao fenómeno singular
que constitui o aparecimento no período analisado de «um número considerável de
obras particularmente brilhantes […] obras de um tom e de uma estrutura afins»
(LOURENÇO, E., 1994: 256). Sucessores desse «terramoto espiritual em contínua
expansão que se chamou Álvaro de Campos» (LOURENÇO, E., 1994: 260), os
autores referidos (entre eles Agustina Bessa-Luís, Ruben A., José Cardoso Pires,
Fernanda Botelho, Augusto Abelaira, Almeida Faria ou Maria Judite de Carvalho),
revelariam como característica comum uma «neutralidade ética inegável, ou antes,
indiferença ética profunda» perante os «valores que informam a nossa efectiva e ainda
actuante mitologia espiritual portuguesa» (LOURENÇO, E., 1994: 266). Embora A
Sibila represente para Eduardo Lourenço a afirmação clara desta nova literatura, o
momento de viragem, segundo um texto posterior, teria tido lugar alguns anos antes,
em 1949, com a publicação de Mudança, de Vergílio Ferreira, placa giratória que inicia
o afastamento do autor da matriz neorrealista que caracterizara os seus romances
anteriores e que o aproxima do existencialismo que distinguirá a sua obra futura,
abrindo um novo caminho para a literatura portuguesa de meados de novecentos
(LOURENÇO, E., 1994: 103).
O retomar de uma tradição iniciada pela geração de Orpheu servirá igualmente de
ponto de partida para a apreciação que Nelly Novaes Coelho e Maria Lúcia Lepecki
farão da ficção produzida em Portugal a partir da década de 50, salientando, porém, a
importância fundamental do movimento surrealista para o aparecimento dessa nova
literatura. Nas palavras de Nelly Novaes Coelho:
O Modernismo no Romance Português, ou o Terceiro Modernismo como Modernismo Tardio 541

Meteórico mas decisivo na abertura de novos caminhos, o Surrealismo faz a sua aparição
em Portugal em 1947 (simultaneamente com o ressurgimento do Surrealismo de Bréton em
Paris), através de um grupo de pintores, poetas e críticos, que se dissolveu dois anos depois,
após a realização da Exposição Surrealista em Lisboa.
É nesse momento que o «jogo», como elemento-chave da criação contemporânea, reentra
na prosa narrativa portuguesa, retomando certa linha interrompida no Modernismo de
1915: a da prosa da geração do Orpheu, com o Almada Negreiros de A Engomadeira, K4
Quadrado Azul, «Saltimbancos», etc., ou com o Mário de Sá Carneiro de Céu em Fogo e A
Confissão de Lúcio. (COELHO, N. N., 1973: 69)

As perspetivas de Eduardo Lourenço, Nelly Novaes Coelho e Maria Lúcia Lepecki


convergem, assim, ao reconhecer uma herança modernista na ficção que se impõe a
partir dos anos 50, retomando caminhos abertos pela geração de Orpheu que tinham,
todavia, sido negligenciados no período intermédio, dominado pela influência da
presença e do neorrealismo. Idêntica posição revela, na verdade, Fernando Guimarães,
que salienta, tal como Nelly Novaes Coelho e Maria Lúcia Lepecki, a importância do
movimento surrealista para o aparecimento dessa nova ficção:

Com efeito, só na década de 50 uma nova viragem se desenhará. Para isso contribuiu a
irrupção, aliás tardia em Portugal, do movimento surrealista. A complexidade perseguida
pelos presencistas no campo psicológico transformar-se-á, com o Surrealismo, em
complexidade da própria função imaginativa, a qual, em parte sob o seu impulso, se há-de
converter, ao acompanhar as derivas da escrita, num discurso assumidamente transgressivo,
marcando, assim, o aparecimento de uma nova vanguarda que se fixa num experimentalismo
conseguido mediante a fuga ao estatuto das formas ficcionais ou, como acontece sobretudo
na poesia, do campo unilateralmente significativo da linguagem. (GUIMARÃES, F., 2004: 12)

A referência à vanguarda é significativa, pois indica precisamente as tendências do


modernismo de Orpheu negligenciadas tanto pelos membros da presença como pelo
neorrealismo. Se atendermos à produção ficcional do período, torna-se fácil constatar
que a revolução estética do modernismo inicial não teve uma repercussão imediata
no romance (ao contrário do que sucederia noutros países). Com efeito, não será
demais recordar que, a nível internacional, o movimento que efetua o afastamento
das coordenadas realistas/naturalistas do romance de oitocentos é precisamente o
modernismo (Kafka, Joyce, Musil, Woolf, Faulkner), e não o pós-modernismo. Em
Portugal, contudo, essa renovação ficaria adiada dadas as parcas incursões no género
pelos membros do primeiro modernismo. Uma referência deve ser, no entanto, feita
a essa obra magistral que é Húmus, de Raul Brandão, o primeiro romance português
542 100 Orpheu Marcelo G. Oliveira

a afastar-se claramente da sombra tutelar de Eça, bem como a Nome de Guerra,


de Almada Negreiros, pese embora a sua publicação tardia, em 1938. No início da
década, obras como Elói, ou Romance numa Cabeça, de João Gaspar Simões, e Jogo
da Cabra Cega, de José Régio, abririam novos caminhos ao romance nacional, sem,
contudo, romper definitivamente com a herança queirosiana, mantendo-se dentro
dos limites ditados pela exclusão dos experimentalismos de vanguarda da sua estética
modernista.
O neorrealismo, por seu lado, surgindo na esteira de um realismo social que
despontara na década de 20, com obras como as de Aquilino Ribeiro e Ferreira de
Casto, revelará desde Gaibéus, de Alves Redol, uma primazia do conteúdo que, em
termos formais, e pese embora uma maior preocupação estética em certos autores, o
levará a se situar numa linha de continuidade face à tradição realista/naturalista de
oitocentos. O seu sentido de futuro, bem com a sua vontade manifesta de intervenção
na sociedade, poderiam aproximá-lo de certos movimentos de vanguarda – aspeto
inclusivamente patente nos fortes ataques dos seus membros ao esteticismo da presença.
Mas, dados os seus pressupostos ideológicos, o neorrealismo nunca pretendeu
a transfiguração genesíaca da sociedade a partir da arte inerente às vanguardas
históricas. O materialismo histórico e dialético evidenciava uma plena consciência
da desagregação sofrida pelo homem na modernidade, mas contrapunha-lhe um
futuro onde a opressão e as contradições inerentes à sua situação histórica seriam
superadas. Apesar da inegável influência do neorrealismo nas décadas seguintes, esse
horizonte viria a ser severamente abalado pela permanência do regime salazarista
após o fim da Segunda Guerra Mundial, em cujo desfecho muitas esperanças haviam
sido depositadas. O que Mudança, de Vergílio Ferreira, irá instituir é precisamente
uma dúvida fundamental quanto a esse futuro, uma incerteza primordial radicada
numa falha mais profunda do que aquela revelada pela situação histórica onde as
personagens se encontram inseridas. Em O Anjo Ancorado, de 1958, o protagonista
de José Cardoso Pires significativamente afirmará:

A malta em 45 tinha o romantismo das certezas. Encontrava-se na grande volta da História


e a História havia de ser dela. A que veio a seguir já não. Considera-se traída pelo passado
e pelo futuro prometido. Tem o realismo da dúvida: assiste e interroga-se. (PIRES, J. C.,
1999: 79)

Efetivamente, o que se instalará na literatura portuguesa a partir dos anos 50 será


uma incerteza radical quanto a esse futuro, levando a uma reconfiguração temporal
de que a nova ficção será reflexo e testemunho. O que caracterizaria essa fase seria
a predominância de textos onde essa incerteza radical intrínseca ao modernismo se
O Modernismo no Romance Português, ou o Terceiro Modernismo como Modernismo Tardio 543

torna manifesta, reflexo de uma configuração temporal onde o eterno se revela como
o polo antitético de um presente incerto e transitório onde o sentido de totalidade se
encontra ausente. Com efeito, o que encontramos nas obras dos escritores que efetuam
a viragem do romance português na década de 50 é precisamente a constatação
dessa ausência e a resultante busca de um sentido no mundo suspenso que lhes é
apresentado, demanda que ocorrerá a par de uma aguda consciência da manifesta
improbabilidade de o encontrar. Conscientes da queda anunciada pelo modernismo
inicial, eles persistiriam, todavia, com o esforço de procura de uma unidade de
antemão sentida como definitivamente perdida, encetando uma inovadora busca por
novas formas de expressão que afastariam definitivamente o romance português da
sua herança oitocentista.
Num outro estudo (OLIVEIRA, M. G., 2012), denomino de modernismo tardio
o período correspondente a esta nova fase. Mas talvez seja conveniente recordar que
o termo – ao filiar as obras abrangidas no modernismo, salientando o seu carácter
necessariamente diverso face à produção dos membros de Orpheu justamente
por lhes serem posteriores1 – não implica, de todo, uma fase degenerescente do
modernismo. Pelo contrário, o que então se verifica é a uma verdadeira profusão
de obras profundamente inovadoras que transformarão definitivamente o romance
nacional. Dada a consideração, por certos autores, do neorrealismo como um
terceiro modernismo, a designação «modernismo tardio» – de resto, a mais
utilizada a nível internacional após a ascensão do pós-modernismo – afigura-se a
mais adequada, nomeadamente ao permitir uma frutífera reapreciação da produção
literária portuguesa das décadas em apreço e a sua mais nítida diferenciação tanto de
tendências anteriores como posteriores.
Em termos periodológicos, a consideração desta fase, que se prolongaria até à
década de 70, converge com a apreciação de um terceiro modernismo poético nos
estudos anteriormente referidos. Os anos 40, anos da Segunda Guerra Mundial e
do seu desenlace, com a continuação da influência da presença, a implantação do
neorrealismo, o despontar de nomes associados aos Cadernos de Poesia e a fulgurante
irrupção do movimento surrealista em Portugal, seriam o caldeirão de onde surgiria
uma literatura profundamente inovadora que, sem responder a rótulos simplistas,
marcaria de forma indelével as décadas seguintes: primeiro tentativamente, nos anos
50, uma década mais inclinada «a continuar» do que «a romper» (ANTUNES, M.,
1987: 182); depois, nos anos 60, acentuando as tendências mais transformacionais do
seu intrínseco modernismo.

1 A própria institucionalização da obra de Pessoa, com a sua publicação pela Ática, a partir de 1942, assinalaria
de modo indiscutível o carácter póstumo da situação cultural que então se vivia.
544 100 Orpheu Marcelo G. Oliveira

A «revalorização da textualidade» (MARTELO, R. M., 2006: 132) não ocorrerá


apenas na poesia, aspeto que, na realidade, aproxima o modernismo tardio português
de certas propostas de Fredric Jameson – nomeadamente no que respeita ao conceito
de «contingência», um conceito que aponta para a incerteza fundamental inerente ao
modernismo. O seu ressuscitamento pelo existencialismo no pós-guerra ajudaria a
explicar o relevante papel de Vergílio Ferreira no aparecimento desta nova ficção ao
fixar um dos seus pressupostos fundamentais. A dialética entre a forma e o conteúdo
inassimilável que Jameson deteta como manifestação da contingência a nível
representacional no modernismo tardio – contrastando com um uso mais temático
no modernismo inicial – virá também a manifestar-se de forma nítida em vários
escritores portugueses que se afirmam a partir de 1950. Diria, aliás, que o percurso
destes autores tenderá a revelar a progressão de um uso mais temático da contingência
para a sua progressiva incorporação formal, conseguida, nomeadamente, através de
mecanismos de autorreflexividade e de autorreferencialidade, como patentes em
inúmeros autores da década de 60.
Em termos periodológicos, a consideração de diferentes fases num período alargado
pressupõe o surgimento de novas dominantes que não anulam a sua heterogeneidade.
Além disso, haverá sempre que considerar tanto a existência de manifestações prévias
ao seu pleno despontar como a sua ressonância após o aparecimento de uma nova
fase. Atendendo ao exposto, creio que quatro fases podem ser consideradas no
período de vigência do modernismo, correspondentes ao primeiro modernismo,
ao segundo modernismo, ao neorrealismo e ao modernismo tardio. A inclusão do
neorrealismo torna-se necessária devido ao incontornável papel desempenhado pelo
movimento na literatura de meados do século, ainda que o seu inabalável sentido de
futuro o afaste necessariamente do modernismo (pese embora o sentido antitético da
sua oposição à situação social então vigente, criador de áreas de sobreposição com o
modernismo tardio).
Em grande medida, é da querela entre o presencismo e o neorrealismo que
emergirá o modernismo tardio. As reações serão, naturalmente, diversas, com cada
escritor a evidenciar um posicionamento específico face à nova situação que então
se configura. Os matizes apresentados irão cobrir o espectro que se estende da mais
modernista deambulação do nosso arcaico passado na paisagem que então se institui
à mais futurante «desenvoltura» de uma nova geração no crucial espaço da cidade.
Subjacente a todas as manifestações destes filhos de Álvaro de Campos, porém, está a
configuração temporal do modernismo, de que Orpheu foi, inegavelmente, o primeiro
verdadeiro veículo na nossa literatura.
O Modernismo no Romance Português, ou o Terceiro Modernismo como Modernismo Tardio 545

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“Orpheu ou «a única ponte entre Portugal e a Europa»”

Ana Nascimento Piedade


Universidade Aberta

Palavras-chave: Orpheu; arte moderna; ecletismo; cosmopolitismo; ser e destino pátrios.


Resumo: O ecletismo modernista que modelou a idealização de Orpheu preconiza uma arte
moderna essencialmente cosmopolita, sintética e universal, a única capaz de reflectir “essa
vocação mediadora e como que profética”, típica da nação portuguesa, e, através dela, de realizar
uma perspectivação europeia do modo-de-ser literário nacional. É neste preciso âmbito que
se procurará discernir sentidos da “fixação emotiva” que mobilizou os poetas de Orpheu para
o ser e o destino pátrios, interrogando o que, faz agora um século, pretenderam alguns dos
nossos mais notáveis e subversivos “sonhadores de um Portugal-outro”.

1.
Pode dizer-se, citando um pouco obliquamente Fernando Pessoa,1 que a estética
modernista portuguesa, se não começou em absoluto, pelo menos se desenvolveu
e aprofundou essencialmente com a amizade entre este poeta e outro: Mário de
Sá-Carneiro.
A correspondência enviada pelo autor de Dispersão – na sua maior parte de Paris – é
um importante testemunho dessa amizade “leal e forte” que, para além de uma relação
ímpar, verdadeira correspondência de almas que lhes permitia compreenderem-se
sem esforço, viabilizou a definição e a consolidação das inúmeras opções estéticas que
tornaram efeverscente a segunda década do século XX.
Os dois volumes que compõem estas cartas, trocadas ao longo de três anos e
meio,2 documentam esse percurso estético seguido em conjunto pelos dois poetas,
permitindo-nos acompanhar toda a gestação do modernismo e dos vários ‘ismos’

1 Mais propriamente Álvaro de Campos, autor do “Prefácio para uma Antologia de Poetas Sensacionistas” que
se inicia assim: “O Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
Provavelmente é difícil destrinçar a parte de cada um na origem do movimento e, com certeza, absolutamente
inútil determiná-lo. O facto é que ambos lhe deram início” (PESSOA, F., s/d: 155).
2 Entre 20 de Outubro de 1912 e 18 de Abril de 1916. Nesta correspondência, Sá-Carneiro vai anotando em
pormenor estados de alma relacionados com o projectar da sua obra, fragmentos ou primitivas versões desta,
novidades sobre o agitado meio cultural parisiense que transmite a Pessoa, comentários aos textos, opiniões e
acontecimentos de que, de Lisboa, Pessoa lhe dá notícia.
548 100 Orpheu Ana Nascimento Piedade

em que este vertiginosamente se foi multiplicando, bem como as peripécias que


envolveram a preparação e edição dos dois/três números da revista Orpheu.
A estes dois fenómenos poéticos de natureza bem diversa que são Pessoa e Sá-Carneiro,
importa juntar um outro: o poeta-desenhador-pintor Almada Negreiros. Como disse
Pessoa, Almada, “mais novo do que os outros, não só em idade como também em
espontaneidade e efervescência”, não deixou no entanto por isso “de ser um homem
de génio”. Quanto a Sá-Carneiro, foi o poeta cuja imaginação foi “uma das mais puras
na moderna literatura.”
Não obstante ser aceite considerar os três como os principais responsáveis
pela criação e modelação da consciência modernista, quer dizer, esse conjunto
de valores estético-literários e de pressupostos filosófico-culturais atribuídos a
Orpheu, a contribuição de cada um deles foi, como se sabe, substancialmente
diferente. Para o que mais interessa aqui destacar, Pessoa sobressai como a
personalidade mais relevante do ponto de vista da iniciativa teórica de todas
essas “forças vivas”, em contínua e febril “ultrapassagem de inédito”, que foram
os ‘ismos’ 3.
Não é fácil estabelecer entre eles uma sucessão linear ou uma hierarquização
clara. Tanto nos textos de Pessoa, como nos de Sá-Carneiro, que se declara
«seu confrade em paúlismo e lugar-tenente interseccionista»4, frequentemente
aparecem as mesmas designações usadas em acepções diferentes ou trocadas
relativamente à eventual data do seu aparecimento. Esta espécie de estado
anárquico, é explicável pela própria natureza da aventura modernista. Por um lado,
os ‘ismos’ surgem, na sua forma vertiginosa e efémera, como experimentações
desordenadas, tentativas indisciplinadas de substituição dos critérios estéticos
existentes e de produção de outras expressões literárias mais adequadas à nova
noção do mundo, da arte e até da vida. Por outro lado, o espírito mistificador,
excêntrico, paradoxal e contraditório dos novos poetas, contribuindo
propositadamente para o carácter fragmentário e, por vezes, enigmático, que a
cada passo os textos apresentam, é responsável pela consagração do «reinado da
incoerência» na sua prática literária.

2.
A primeira manifestação pública – embora não publicamente assumida enquanto
tal – sintomática de que alguma coisa iria mudar radicalmente no panorama das letras

3 O autor de «Mensagem» ressente-se de toda esta agitação dispersiva, caracterizando-a como «excesso de
forças vivas em acção, conflito e evolução interconexa e divergente» (PESSOA, F., 1985: 34).
4 SÁ-CARNEIRO, M., 1978: 158.
“Orpheu ou «a única ponte entre Portugal e a Europa»” 549

nacionais, foram os importantes artigos de 1912, sobre “A Nova Poesia Portuguesa”,


publicados por Fernando Pessoa na revista A Águia.5
Partilhando o tom de exaltação messiânica dos saudosistas,6 Pessoa preconiza
nesses textos a urgência de criar o “supra-Portugal de amanhã”, anunciando que
se prepara no país “um período de criação literária como poucos o mundo tem
tido”, e isto porque “a actual corrente literária portuguesa [...] é das que precedem as
grandes épocas criadoras das grandes nações de quem a civilização é filha”.7
Na realidade, Pessoa movia-se então num incerto contexto de compromisso
entre a ligação a alguns dos valores literários representados por Teixeira de Pascoaes
e a “Renascença Portuguesa”, e a emancipação face a eles que inexoravelmente se
aproximava para dar lugar à radical transformação da arte e da cultura portuguesas
que “Orpheu” queria e iria ser.
Nestes hábeis ensaios, em que parece só referir-se à poesia da “Renascença
Portuguesa” quando anuncia a absoluta e completa novidade do que designa, de
modo um tanto ambíguo, como “actual corrente literária portuguesa”, o jovem
crítico estava, no fundo, a esboçar também os fundamentos programáticos e os
pressupostos metafísicos que viriam a configurar a revolução da linguagem poética
que Orpheu pretendia protagonizar, diferenciando-os da, nessa altura proeminente,
poética saudosista e seus antecedentes simbolistas.
Sintetizemos, a partir do enunciado pessoano, um breve exemplo. Considerada
“no seu aspecto psicológico”,8 a nova poesia portuguesa assemelha-se por certos
traços à poesia simbolista afastando-se dela, no entanto, por não partilhar do
mesmo “carácter degenerativo” que a caracteriza.
Ambas são completamente subjectivas, são, como explica Pessoa, poesias de
alma e de vida interior, de análise, portanto, de sensações e de ideias. Contudo,
elas distinguem-se porque “a nova poesia portuguesa, [...] é também uma poesia
objectiva”.9 Mas não só, já que, “ao voltar-se para o exterior – praticando, de forma
“sintética”, a observação da natureza, [est]a nova poesia realiza ainda o “máximo
de equilíbrio entre subjectividade e objectividade, pois consegue ser, ao mesmo

5 Publicados, respectivamente, em A Águia, 2ª série, nº 4 e 5, Porto, Abril e Maio de 1912 e A Águia, 2ª série, nº
9, 11 e 12, Porto, Set., Nov. e Dez. de 1912.
6 Por sua vez sintonizado com o messianismo republicano então na ordem do dia.
7 PESSOA, F., 1986: 24 e 34.
8 Em “A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico”, Pessoa propõe-se “perscrutar” qual a estética da
nova poesia, sublinhando que por estética “se não quer dizer as suas teorias de arte [...] mas o seu modo de ser
literário, a sua alma literária”. Cf. a análise deste texto pessoano que desenvolvemos em A Questão Estética em
Mário de Sá-Carneiro, Lisboa, Universidade Aberta, 1994, capítulo III, pp. 112-116.
9 PESSOA, F., 1986: 42.
550 100 Orpheu Ana Nascimento Piedade

tempo e com intensidade quase semelhante [...] poesia da alma e da natureza.”10


Por outro lado, ambas são “vagas” e “subtis”11, porém, só a nova poesia contém uma
“ideação complexa”12 cuja característica “mais notável – o encontrar em tudo um além –,
prossegue o poeta-crítico, supõe sempre ou uma intelectualização de uma emoção, ou
uma emocionalização de uma ideia”, sendo “desta heterogeneidade que a complexidade
lhe vem.”13
Será então esta “fusão de elementos absolutamente opostos14 ainda que
complementares, na qual com facilidade se reconhecem traços relevantes que
posteriormente definirão o Interseccionismo e o Sensacionismo, que configura o que
Pessoa chama a “estranha e nítida originalidade” da nova poesia, distinguindo-a da
poética simbolista e de todas as outras.

3.
A segunda década do século XX foi, como se sabe, um período de intensa criatividade
em que a par de uma exigência de abertura e sintonia com as novas referências europeias,
se procurava uma assimilação desse esprit nouveau que mantivesse a especificidade da
alma literária nacional.
Recorde-se que a revista Orpheu se deveria afirmar como “a soma e síntese de todos
os movimentos literários modernos”15, europeus e portugueses naturalmente, surgindo
assim como o momento culminante de concretização de todos os ideais e teorias que
os órficos vinham ensaiando em prol desse “marvellous synthetic movement”, como lhe
chama Álvaro de Campos no “Prefácio” que redige em inglês “para uma Antologia de
Poetas Sensacionistas”.16
Ora, a “tarefa” do Movimento Sensacionista é, segundo Pessoa, “a da reconstrução
da literatura e da mentalidade nacionais”17, o que, entre outros aspectos, nos remete
para o fim criador-de-civilização de que esta Arte se declarava portadora. Tratava-se, por
outras palavras ainda de Pessoa, de revolucionar profundamente toda a literatura lusa,

10 “A nova Poesia Portuguesa no seu aspecto psicológico”, Id.: 44.


11 Id.: 40-41.
12 “Ideação complexa [é] a que traduz uma impressão ou sensação simples por uma expressão que a complica
acrescentando-lhe um elemento explicativo, que, extraído dela, lhe dá um novo sentido.” Id.: 42.
13 Id.: 41, itálico meu.
14 Id.: 56.
15 “Prefácio para uma Antologia de Poetas Sensacionistas”, in PESSOA, F., s/d: 155. Redigido em inglês e
traduzido por Tomás Kim. [Setº/Outº 1916].
16 “maravilhoso movimento sintético”. Ibid.
17 PESSOA, F., 1986: 75.
“Orpheu ou «a única ponte entre Portugal e a Europa»” 551

de modo a reformar “aqueles sectores da consciência nacional susceptíveis de serem


atingidos e transformados pela influência literária” e, simultaneamente, de gizar “um
corpo realmente coerente de pensamento e arte concebível apenas como português.”18
Quer dizer, para abolir o tradicionalismo e atenuar o provincianismo tipicamente
portugueses, “Orpheu” pretendia instaurar uma nova “visão do mundo” que cultivasse
“o antagonismo para com a estupidez, a rotina e a incultura”19 dominantes e provocasse
um verdadeiro “despertamento nacional”20. Por isso, conforme refere numa conhecida
carta a Cortes-Rodrigues, a missão poética e a vocação patriótica não poderiam senão
‘agir’ em conjunto, tal como duas faces de uma mesma moeda. Haveria assim que,
acrescenta Pessoa, “agir sobre o psiquismo nacional que precisa [de ser] trabalhado
e percorrido em todas as direcções por novas correntes de ideias e emoções que nos
arranquem à nossa estagnação”21,
Daí que a caracterização do seu patriotismo, de “patriota de uma espécie nova”
como se auto-designa, se formule de forma paradoxal, isto é, como um “Nacionalismo
cosmopolita”22 inseparável da própria identidade estética e cultural do projecto Orpheu.

4.
Para os poetas órficos, “ter um pouco de Europa na alma” - frase que Sá-Carneiro
destaca entusiasticamente numa das suas Cartas atribuindo-a a Pessoa - funcionava
praticamente como uma divisa pela qual todos os actos estéticos deveriam ser concebidos
com “carácter europeu”. Significativamente, Europa era, nessa altura, “a região civilizada
que da[va] o tipo e a direcção a todo o mundo”23, e tinha sido também o nome que
os dois amigos tencionavam dar a uma revista que em conjunto planeavam,24 ainda
antes de, no início de 1915, terem aceite o desafio de Luís de Montalvor para editarem a
revista trimestral chamada Orpheu25.

18 “Sobre a moderna Literatura Portuguesa”, 1914 ?, in PESSOA, F., s/d: 119-120.


19 Pessoa Inédito, 1993: T.129 [1925 ?].
20 PESSOA, F., s/d: 121.
21 PESSOA, F., 1985: 45.
22 Este Nacionalismo cosmopolita, apelidado de “supremo” quando confrontado com o “N. tradicionalista –
o inferior e o N. integral – o médio”, é aquele que “integra todos os elementos cosmopolitas” e por isso
“distingue esses períodos culminantes da vida das nacionalidades.” Pessoa Inédito, T. 179, [1912-1915].
23 “- O que quer Orpheu?”, in PESSOA, F., s/d: 113-114.
24 Lusitânia tinha sido outra hipótese de nome.
25 [...] “É certo que ambos nós havíamos projectado várias revistas, mas, sempre por qualquer razão, os projectos
haviam esquecido. O que esteve mais próximo de se realizar foi o de uma revista pequena, intitulada “Europa”,
que abriria por um manifesto, de que escrevi apenas uns quatro parágrafos, com colaboração ocasional de
Sá-Carneiro [...].” “Como nasceu «Orpheu»”, in PESSOA, F., 1986: 70.
552 100 Orpheu Ana Nascimento Piedade

Fernando Pessoa fundamentava este querer-ser-europeu afirmando, por exemplo:


“o que é preciso ter é além de cultura, uma noção do meio internacional, de não ter
a alma (ainda que obscuramente) limitada pela nacionalidade. Cultura não basta.
[– concluía -] É preciso ter a alma na Europa.” A importância desta resolução é
confirmada pelo anotação que deixa na mesma folha e em que escreve: “Escrever ao
Sá-Carneiro expondo a nova orientação que é preciso tomar”.26
Ora, esta “nova orientação”, que exigia uma perspectivação europeia do “modo de ser
literário” português, incluía em si uma dupla meta, fundamental para a compreensão
do movimento modernista e do seu carácter vanguardista. Tratava-se do desejo de
universalidade, que apontava a superação das limitadas fronteiras portuguesas,
e, simultaneamente, de uma vontade de ruptura com a literatura do passado, que
sugeria uma viragem rumo ao futuro e despertava o fascínio por tudo quanto fosse
inteiramente novo.
Mário de Sá-Carneiro, numa carta enviada em 1913 ao “querido amigo”, é o
primeiro a manifestar a necessidade de “[...] tornar conhecidos no mundo os
poetas portugueses de hoje, fazer saber que num canto amargurado e esquecido da
Europa, uma poesia grande e nova se começa a desenvolver, rasgando horizontes
desconhecidos, perturbadores e belíssimos”.27
Cerca de um ano depois, Fernando Pessoa, confirmando a euforia profética dos
tempos em que, na revista A Águia, anunciara o “inevitável aparecimento” do “Grande
Poeta” que desloca[ria] para segundo plano a figura até então primacial de Camões”28,
afirmará da geração de Orpheu:

Não somos portugueses que escrevem para portugueses; [...] somos portugueses que
escrevem para a Europa, para toda a civilização; nada somos por enquanto, mas aquilo
que agora fazemos será um dia universalmente conhecido e reconhecido. [...] Não pode
ser de outra maneira, realizamos condições sociológicas cujo resultado é inevitavelmente
esse. Afastamo-nos de Camões, de todos os absurdos enfadonhos da tradição portuguesa e
avançamos para o futuro.29

Para além da exigência de absoluta originalidade e de pleno cosmopolitismo,


“Orpheu” representava, como aqui se vê, uma importante afirmação transnacionalista

26 “Ter a alma na Europa”, in Pessoa Inédito, 1993: T.180 [1912-1916].


27 SÁ-CARNEIRO, M., 1978: 46.
28 PESSOA, F., 1985: 23.
29 “Sobre a moderna Literatura Portuguesa”, 1914?, in PESSOA, F., s/d: 121-122.
“Orpheu ou «a única ponte entre Portugal e a Europa»” 553

e continha uma renovadora e agressiva dimensão «futurante». A legitimar esta


orientação projectiva que o radical corte com passado pressupunha, surgia ainda um
nacionalismo muito especial, absolutamente distinto do nacionalismo saudosista seu
contemporâneo, romanticamente «fixado» num passado mítico de cujo ressurgimento
fazia depender a salvação pátria.
Imbuídos de um novo espírito, liberto dos «fantasmas» da dependência e de
qualquer sentimento de inferioridade face ao estrangeiro, os poetas modernistas
propunham-se criar aquilo que todos os outros movimentos literários30 não haviam
conseguido, ou seja, uma “consciência definidamente portuguesa do universo”31,
mas indo ainda mais longe. Partindo de uma consciência nacional agora plenamente
renovada porque capaz de constituir-se como “critério autónomo unificador”,
haveria que ousar uma passagem efectiva à prática e “entrar em actividade europeia
mediante o contacto com outras culturas”, realizando uma “síntese” que ordenasse
e seleccionasse positivamente aqueles “abundantes e mutuamente contraditórios
contactos culturais”.32 Só assim poderia “Orpheu” atingir a complexa essência da arte
moderna, verdadeira “arte-todas-as-artes”, segundo Pessoa, onde se juntam, fundem
e interseccionam todas as partes do mundo.33
O Modernismo português incluiu em si o projecto de uma estética aberta,
essencialmente expansiva, eclética e disponível a tudo quanto se mostrava diferente,
estranho e exótico. Dela faziam parte uma extrema plasticidade e versatilidade,
características positivas da alma portuguesa que aparecem recriadas pelos poetas
órficos na tendência para a diversificação estética expressa, sobretudo, pelo delírio
sensacionista do «ser tudo de todas as maneiras». Implicando uma dispersão e
um desdobramento sistemático em todas as práticas culturais e potencialidades
civilizacionais possíveis, esta experiência de pluralidade será a principal regra -
embora paradoxalmente anárquica - compatível com a “a única coisa interessante em
Portugal, para além da paisagem, ou seja, «Orpheu»34.

5.
Em suma, os órficos consubstanciaram valores e atitudes fundamentais da
modernidade, tendo sido entre os portugueses testemunhos privilegiados da crise

30 À excepção dos saudosistas, sublinha Pessoa.


31 “Sobre a moderna Literatura Portuguesa”, 1914?, in PESSOA, F., s/d: 120.
32 PESSOA, F., s/d: 120-121.
33 Id.: 113-114.
34 Id.: 154.
554 100 Orpheu Ana Nascimento Piedade

geral de toda a civilização ocidental então em curso. Por isso, o mais amplo alcance
da missão indisciplinadora de Orpheu consistiu em criar civilização fazendo arte, e
fazê-la sobretudo em função de uma irrequieta busca de libertação dela mesma e
do ser-artista. Tal revelava a consciência, natural para o artista moderno e presente
nos nossos novos poetas, da implicação essencial existente entre a arte e a vida. Para
além disto, também a radicalidade da sua opção pela arte, essa “aceitação sem limites
da seriedade da poesia”, como disse Eduardo Lourenço, fez “a importância única da
geração do «Orpheu».”35
O seu «sê plural como o universo» reflecte a fragilidade e o niilismo de toda a
consciência moderna, verdadeiramente uma «consciência infeliz» ao descobrir a
absoluta imprevisibilidade essencial de tudo e, ainda, o sentimento de incerteza
infinita que a possibilidade - cada vez mais precária - de pensar a divindade ou
qualquer unidade não pode deixar de provocar.

Bibliografia

Pessoa Inédito (1993) (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes).


Lisboa: Livros Horizonte.
PESSOA, Fernando (1985). Cartas a Armando Cortes-Rodrigues. Lisboa: Livros
Horizonte.
PESSOA, Fernando, (s/d). Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1986). Textos de Intervenção Social e Cultural (Introdução,
Organização e Notas de António Quadros), volume II. Lisboa: Publicações
Europa-América.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1978). Cartas a Fernando Pessoa, volume I. Lisboa:
Ática.
LOURENÇO, Eduardo (s/d). Tempo e Poesia. Porto: Inova.

35 LOURENÇO, E., s/d: 57-58.


Pessoa(s) por trás das quadras

Maria da Graça Gomes de Pina


Università degli Studi di Napoli “l’Orientale”

Palavras-chave: quadras; anti-modernismo; ludismo.


Resumo: Parece quase impossível pensar que Fernando Pessoa pudesse ter-se interessado
por composições poéticas tão singelas como as quadras ao gosto popular, e ainda assim,
sobretudo nos últimos dois anos da sua vida, temos uma grande quantidade deste tipo de
produções. O que possa ter levado o nosso Autor a dedicar-se a este género de composição
poética permanece e, creio, permanecerá ainda por muito tempo um mistério: estaria Pessoa
a modelar mais um heterónimo, desta vez, um pouco mais próximo do seu povo e da sua
forma de expressão popular ou, pelo contrário, estaria ele a pôr em causa a função literária do
modernismo até aí defendida? Com esta proposta de comunicação não pretendo fixar as causas
que possam ter impelido Pessoa a escrever quadras, mas analisar as poucas quadras em que o
tema principal é um sujeito feminino nomeado, isto é, as que são dedicadas a nomes próprios
de mulheres, de onde emerge a capacidade altamente jocosa – sem contudo deixar de reenviar
para a metafísica do seu Autor – de fazer interagir qualidades e modos de expressão populares
com a soturnidade que caracteriza o pensamento poético pessoano.

Por vezes, é difícil aceitar que alguém que consideramos sisudo, ou melhor, alguém
de quem se convencionou que era ‘pessoa’ unicamente cerebral, pudesse revelar uma
extraordinária veia de ludismo e jocosidade. Em boa verdade, a opinião massiva
que se tem de Fernando Pessoa é a de um pensador muito sério que passou a sua
vida a raciocinar sobre a vida, retirando dela máximas e/ou pensamentos de teor
fundamentalmente intelectual. Por essa razão é surpreendente embater-se numa
‘pessoa’ que escreve composições poéticas que remetem para aquela área do cérebro
que parece ser a que menos tem a ver com o raciocínio puramente formal.
Não obstante, é o que se poderia deduzir da seleção realizada por Georg Rudolf Lind
em 1965 – obra em seguida republicada –, isto é, um conjunto de quadras ao gosto
popular que deixam ver uma ‘pessoa’ diferente do Pessoa, chamemo-lo, ‘metafísico’.
Este não me parece o momento para demandar as motivações do Autor, nem
tampouco é profícuo para provar que se possa tratar de abandono da especulação
metafísica, cansaço do pensamento, ludicidade, ou de outras causas. O que posso fazer
é tentar entender por que razão Fernando Pessoa regressa, sobretudo nos últimos dois
556 100 Orpheu Maria da Graça Gomes de Pina

anos da sua vida, àquela variedade notável e incrível de modos lúdicos de abordar
o saber popular (embora eu queira tratar somente a temática do feminino),
aquele mesmo saber que parecia ter sido posto definitivamente de parte por ele,
após ter-se-lhe dedicado na juventude. Estaria Fernando Pessoa a modelar mais
um heterónimo, desta vez, um pouco mais próximo do seu povo e da sua forma de
expressão popular ou, pelo contrário, estaria ele a pôr em causa a função literária do
modernismo até aí defendida?
Fosse qual fosse a sua ‘verdadeira’ intenção, aqui não pretendo fixar as causas
que possam ter impelido Pessoa a escrever quadras (estaria a trabalhar sobretudo
de fantasia!), mas analisar as poucas em que o tema principal é um sujeito feminino
nomeado, isto é, as que são dedicadas a nomes próprios de mulheres, de onde emerge
a capacidade altamente jocosa – sem contudo deixar de reenviar para a metafísica
do seu Autor – de fazer interagir qualidades e modos de expressão populares com a
soturnidade que caracteriza o pensamento poético pessoano.
O envelope que Georg Rudolf Lind acabou por descobrir naquele famoso baú
do qual parecem sair não os males de Pandora, mas a fantasia de Pessoa (ambos,
porém, guardando no fundo a esperança), continha algumas singelas quadras de
1907 e de 1908, o que significa composições de um jovem autor que tudo deixava
entrever menos uma tendência a um pensamento infundido de metafísica, sobretudo
para quem nunca tivesse tido contacto com o poeta. Todavia, a grande maioria das
quadras encontradas, quando datadas, são dos últimos dois anos de vida do Autor, a
saber, 1934 e 1935, ou seja, de um período em que os heterónimos pessoanos estavam
amplamente formados e definidos.
Tudo isto levanta, como é óbvio, alguns problemas de difícil solução, para não
falar da impossibilidade de conseguir enquadrar esse novo estilo no corpus pessoano.
Razão pela qual Lind afirma que:

Não há dúvida que a quadra popular, na sua singular manifestação portuguesa, representa
uma das formas primárias, em cujo domínio o cantor popular e o poeta culto se podem
reencontrar. Compondo quadras, Fernando Pessoa quis entreter-se, certamente, pondo mais
uma máscara, desta vez a do poeta popular, e renunciando deliberadamente à expressão
individualista da sua alma proteica (PESSOA, F., 1965:10).

Contrariamente às palavras de Georg Lind, considero que não se pode falar de


uma renúncia in toto «à expressão individualista da sua alma proteica», pois esse
individualismo pessoano mantém-se vivo e expande-se na multiformidade de cada
um dos seus heterónimos. Mesmo quando, nas quadras que escolhemos para serem
analisadas, trata características nominais e constrói trocadilhos e forças de expressão
Pessoa(s) por trás das quadras 557

em torno delas, o nosso Autor não deixa de unir precisamente o individualismo com
a multiformidade que contradistingue o seu pensamento.
Poderíamos chamar a isto um jogo da velhice, vendo-o como o entendia o
Ateniense – personagem das Leis de Platão –, quando afirmava que dar a volta às leis
era um divertimento saudável idóneo à terceira idade (III 685A), pois que nessa altura
a alma já estava bem definida e educada.
Todavia, as leis podem ser muitas (e não falo só das normas políticas pelas quais
se rege a sociedade humana), tanto assim é que, no caso em apreço, as podemos
interpretar também como leis no que concerne à composição poética.
Levando ao extremo esta analogia, o que Fernando Pessoa estaria a fazer é pôr em
ato um simples jogo da velhice, daqueles que deliciam e intrigam os espíritos bem
consolidados e educados, isto é, operar uma remodelação das normas de construção
– possivelmente – e de funcionalidade – certamente – das quadras.
Contudo, a analogia poderia tornar-se ainda mais esquizofrénica, se pensarmos que
nas quadras selecionadas, 9 no total, o Autor não só parodia os nomes de mulheres,
como também extrai, com esse jogo, algumas características que revelam quer o
castiço da construção poética popular, quer o matiz culto da poesia lírica. Dessas nove
quadras, quatro são dedicadas unicamente ao nome Maria, duas a Dona Rosa, uma a
Maria das Dores, uma a Maria da Graça e uma a Maria da Piedade.
Ora, é sabido que o nome Maria representa na cultura portuguesa, e não só, o
nome por excelência do sexo feminino. Até há bem poucas décadas, era inusual
encontrar em Portugal mulheres que não tivessem o nome Maria inserido algures
entre os seus nomes próprios, e se não o tinham, decerto alguma parente próxima o
possuía. De maneira que, sendo a mulher por antonomásia Maria, mesmo quem não
tenha esse nome acaba por ser Maria igualmente. Portanto, quando Pessoa escreve
três quadras dedicadas a Maria, na verdade está a dedicá-las a todas as mulheres e ao
mesmo tempo a retirar delas aspetos curiosos do que chamamos feminilidade. Eis os
primeiros três casos. Reservo o quarto para o fim deste excurso.

Maria, se eu te chamar,
Maria, vem cá dizer
Que não podes cá chegar.
Assim te consigo ver (p. 50).

Quero lá saber por onde


Andaste todo este dia!
Nunca faz bem quem se esconde...
Mas onde foste, Maria? (p. 65)
558 100 Orpheu Maria da Graça Gomes de Pina

Olha o teu leque esquecido!


Olha o teu cabelo solto!
Maria, toma sentido!
Maria, senão não volto! (p. 68)

Estas três quadras centradas no nome de ‘Maria’ tocam, a meu ver, três aspetos
diferentes da relação homem-mulher.
Na primeira, o Autor foca sobretudo o desejo que o sujeito poético tem de voltar
a ver a mulher que cobiça, onde, todavia, a reciprocidade do desejo de rever-se é
deixada em aberto de propósito, pois, como se mostrará, estas quadras pretendem,
de certa forma, chamar a atenção para uma malícia ínsita e própria do sexo feminino.
O jogo de significantes reside portanto na contraposição entre os verbos vir e chegar.
O sujeito poético pede a Maria que venha dizer-lhe, ao seu chamamento, que não
pode vir, mas para lho comunicar, terá de vir igualmente. O paradoxo da significação,
tão ao gosto do pensamento pessoano, serve justamente para, através de um simples
trocadilho, mostrar que, por meio do engano linguístico, se cria a oportunidade de
rever a pessoa desejada, mesmo que esta possa não querer encontrar-se com o sujeito
poético! Possibilidade essa dada pelo verbo conseguir que exprime a realização do
objetivo primário, isto é, ver Maria de novo: «Assim te consigo ver».
A segunda das quadras dedicadas a Maria foca o desinteresse (como se verá, só
aparente) do sujeito poético pelo paradeiro de Maria. Um desinteresse que inicia por
uma expressão bastante ríspida em relação às andanças dela – «Quero lá saber» – e
que deixa intuir um grande ressentimento relativamente ao que ela possa ter feito
estando ausente. De maneira que o terceiro verso da quadra – «Nunca faz bem quem
se esconde...» – poderia ser uma espécie de ‘manipulação’ do provérbio Quem se
esconde de mim não é bom para mim (MACHADO, J. P., 2011: 544), porém, só parte
dele abraça o sentido do verso, pois o sujeito poético, apesar de acusar Maria de não
agir bem por não o fazer às claras, acaba, no final, por revelar a imensa curiosidade
pelo seu paradeiro, que ao início se mascarava de puro desinteresse.
A terceira, e por ora última, quadra a Maria, mais do que tocar a nota do desejo
ou da acusação, como penso que fazem as anteriores, fala de um encontro, muito
possivelmente secreto, entre amantes. Os primeiros dois versos iniciam com a
chamada de atenção a Maria, dada pela repetição anafórica do imperativo Olha, talvez
por um descuido atribuído à distração: o leque esquecido e o cabelo solto são indícios de
que Maria se encontra em desalinho e podem, por conseguinte, fazer com que alguém
perceba a razão que a levou a achar-se naquele estado. Por esse motivo, o sujeito poético
reprova-a por estar distraída e por não prestar a devida atenção a pormenores altamente
reveladores. Com efeito, diz-lhe «toma sentido!» e ameaça-a de não regressar.
Pessoa(s) por trás das quadras 559

As três quadras a Maria mostraram-nos, creio, de que maneira Fernando Pessoa


integrou um certo topos da figura feminina. Como afirmei ao início, o nome
Maria é um sinónimo de ‘mulher’, e por meio desta antonomásia o Autor modela
o feitio feminino baseando-se em algumas características atribuídas desde sempre
às mulheres, ao mesmo tempo que as reinventa, como se criasse um ‘heterónimo
semântico’, passe-se a aberração linguística, para as descrever.
Da figura Maria=mulher, transita-se para os casos concretos, em que, pela
referência a nomes compostos – como Maria da Piedade, Maria da Graça e Maria das
Dores –, Pessoa complexifica a psicologia do carácter feminino.

És Maria da Piedade,
Pois te chamaram assim.
Sê lá Maria à vontade,
Mas tem piedade de mim (p. 70).

Tu és Maria da Graça,
Mas a que graça é que vem
Ser essa graça a desgraça
De quem a graça não tem? (p. 70)

Tu és Maria das Dores,


Tratam-te só por Maria.
Está bem, porque deste as dores
A quem quer que em ti se fia (p. 82).

Os três exemplos detetados, todos centrados na comunhão de dois nomes próprios


– o primeiro dos quais Maria e o segundo um substantivo abstracto (Piedade, Graça)
ou um comum (Dores) –, representam, a meu ver, mais um passo na direção do que
poderia ser visto como uma transformação dos ditames modernistas ou até uma
reformulação do seu objetivo. Isto porque, segundo Eugénio Lisboa (1986: 23),

O modernismo não veio, ao contrário do que se tem pensado, liquidar com brutalidade
uma literatura que se academizava. Não é esse o papel das revoluções em arte: elas não
trazem em si uma função de morte, mas sim uma função de vida. O regresso à infância é
um símbolo de começo e não um signo de fim.

De maneira que virar-se para as quadras populares representa, parece-me, o que


Eugénio Lisboa entendia por «regresso à infância», isto é, um voltar a olhar para o
560 100 Orpheu Maria da Graça Gomes de Pina

ponto de partida ou para as origens. Fernando Pessoa faz precisamente isso: serve-se
da estrutura das composições mais próximas do cancioneiro popular, como se quisesse
regressar à infância da poesia portuguesa. Será que, ao fazê-lo, está a abandonar a
linha de pensamento modernista pela qual sempre se norteou, ou está simplesmente
a melhorá-la e a torná-la mais abrangente? Propendo para a segunda hipótese, pois
considero que de certa forma regressar a esse tipo de composição poética é mais
um modo que o Autor encontrou para se reinventar. Mas não só se reinventa como
inventa também o modo de olhar para o feminino, no caso em apreço.
Quem são, portanto, estas Marias de quem se fala? Trata-se, a meu ver, de mais três
aspetos do género feminino que ganham conotações particulares quando conectadas
ao sentido do segundo nome em apenso a ‘Maria’.
O primeiro caso, o da piedade, e o terceiro, o das dores, são duas quadras que
aparentemente contêm uma mensagem que aponta para a exposição dos atributos
corriqueiros que se costumam dar à mulher vista como femme fatale. O último verso
da quadra dedicada a ‘Maria da Piedade’ – «Mas tem piedade de mim» –, que apela
para a magnanimidade de um gesto de Maria, deixa entrever precisamente esse aspeto
impiedoso do agir feminino. Falo de apelo porque é por meio deste que o sujeito
poético caracteriza Maria. Esta hipótese pode ser validada pelo verso anterior – «Sê
lá Maria à vontade» –, em que se pede a Maria que se mantenha tal, isto é, que guarde
a sua condição feminina, mas que não se sirva do seu atributo para a conservar, ou
melhor, de um atributo, dizia, que é usado para chamar a atenção justamente para o
seu valor contrário, isto é, a ausência de piedade em Maria.
Na mesma esteira segue a quadra dedicada a Maria das Dores. Também aqui o
sujeito poético aponta para a malícia feminina, especificamente no que diz respeito
ao facto de esta ser a causa do seu mal. As dores que Maria leva no seu nome acabam
por ser as mesmas que o sujeito poético sente pela confiança depositada mas não
respeitada: «[...] porque deste as dores / A quem quer que em ti se fia». De facto,
concordando no penúltimo verso «Tratam-te só por Maria. / Está bem, [...]» que
Maria seja só Maria, está a citar a mesma mensagem que passara na quadra dedicada a
Maria da Piedade, isto é, que abandone o seu segundo atributo, continuando, porém,
a ser Maria à vontade.
Fernando Pessoa dedica a Maria da Graça a última quadra que leva o nome Maria
unido a uma característica. Trata-se de uma composição bastante complexa porque
faz interagir os vários níveis de significação que o termo graça pode ter. Ligado ao
nome Maria, como explicitado no primeiro verso, ganha claramente o sentido de favor
divino. Maria da Graça é mais um dos nomes que o Catolicismo cunhou para marcar
os vários atributos da Virgem. Contudo, no segundo verso, resvala-se do sentido de
favor divino para o de benefício. O sujeito poético pergunta-se que benefício pode
Pessoa(s) por trás das quadras 561

obter de alguém que é a causa da desgraça de quem não tem a graça. Todavia, o último
verso é ambíguo, propositadamente ambíguo, não só porque o sentido de graça pode
ser plurívoco, como também é plurívoca a pessoa que a graça não possui. De facto, no
verso, a pessoa que não tem a graça pode ser entendida, a meu ver, quer como a Maria
da Graça do verso inicial, e assim a quadra se ligaria às outras duas supramencionadas,
onde o Autor realiza a inversão do significado das características a atribuir a Maria,
isto é, Piedade e Dores (Maria não tem piedade e Maria causa dores), razão pela qual
Maria da Graça não a teria e isso representaria uma desgraça, ou então, a pessoa a
quem falta a graça pode ser exatamente a que deseja Maria da Graça. Seja qual for a
interpretação pela qual optarmos, não faz uma grande diferença na substância, pois o
propósito de parodiar sobre o feitio feminino é plenamente alcançado.
Das quadras construídas para um nome próprio sobram-nos as duas dedicadas a
Dona Rosa.

Dona Rosa, Dona Rosa,


De que roseira é que vem,
Que não tem senão espinhos
Para quem só lhe quer bem? (p. 76)

Dona Rosa, Dona Rosa,


Quando eras inda botão
Disseram-te alguma cousa
De a flor não ter coração? (p. 77)

Em ambas o sujeito poético aproveita as características essenciais da flor para


mostrar como é Dona Rosa: uma rosa tem espinhos, nasce botão, vem de uma roseira
e não tem coração. Atributos todos da flor que acabam por se tornar significativos
na descrição da mulher chamada Rosa. A Dona Rosa da primeira quadra pode ser
unida à da segunda. Ambas são a condensação das características da flor que, por
excelência, representa o amor e a paixão. Todavia, no caso em apreço, esses atributos
espelham precisamente as qualidades que o sujeito percebe como negativas: por
exemplo, Dona Rosa pica quem lhe quer bem, como o fazem as rosas que apanhamos
e podamos, razão pela qual mostra não possuir as características, amor e paixão, da
flor cujo nome ostenta e de que é homónima.
Guardei para último a quadra dedicada ainda a Maria. O motivo prende-se com
o facto desta composição poética ser, na minha opinião, a transposição lúdica mais
próxima das cantigas de amigo.
562 100 Orpheu Maria da Graça Gomes de Pina

«Mau, Maria!» – tu disseste,


Quando a trança te caía.
Qual «Mau, Maria», Maria!
«Má, Maria!» «Má, Maria!» (p. 112).

Contrariamente ao que acontece nas três quadras anteriores dedicadas apenas ao


nome Maria (pp. 50, 65 e 68), nesta temos, a meu ver, a perceção física real da presença
de Maria. O sujeito poético fá-la pronunciar, por meio do discurso indireto, o primeiro
verso – «“Mau, Maria!” – tu disseste», – e esse aspeto distingue-a das outras quadras,
em que Maria se encontra silente. Nas anteriores, embora a sua presença possa ser
aceite como efetiva (cf. os versos «Mas onde foste, Maria» ou «Maria, toma sentido!»,
por exemplo), aqui podemos pensar que ela realmente se acha junto do sujeito poético.
Não só estaria presente, como interage com ele, criando a possibilidade de pôr em ato
o trocadilho entre a expressão idiomática “Mau, Maria” e o adjetivo qualificativo “má”
que lhe é atribuído, o qual deixa bem ver a intenção do Autor, isto é, realçar o jogo
cénico das partes em conflito, mas em que se põe em cheque também a valência do eu.
Em jeito de conclusão, podemos perguntar-nos quem, quantas e quais são as
‘pessoas’ por trás das quadras. Todavia, encontrar uma resposta satisfatória para esta
pergunta implica não esquecer que o autor das mesmas é um ser proteico e como
tal toda e qualquer manifestação poética sua visa a construção e a reelaboração de
novos modos de pensar e atuar a poesia. Com efeito, podemos afirmar que por meio
das quadras, de certa maneira Fernando Pessoa estabelece mais um diálogo (Vila
Maior, D., 1994: 155-216) com os outros eus que povoam a sua produção poética.
Não podemos asseverar que com esse diálogo se chegaria a criar mais um heterónimo,
embora se possa pensar que existem todas as premissas para uma situação do género
se dar. O que me parece que não se deve absolutamente ignorar é que Fernando Pessoa
vê e pensa a quadra como mais um modo jocoso, válido também, de fazer poesia,
um divertissement do intelecto e da alma, em que todavia os traços do seu estilo não
deixam de reaparecer sob uma forma mais próxima do popular, pois, segundo Pessoa
(PESSOA, F., 1986: 1020),

Que este processo de fazer arte cause estranheza, não admira.


Pessoa(s) por trás das quadras 563

Bibliografia

Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1965). Quadras ao gosto popular. Texto estabelecido e
prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Edições
Ática.
PESSOA, Fernando (1986). Obra Poética e em Prosa. Organização de António
Quadros. Porto: Lello & Irmãos, vol. II.
PESSOA, Fernando (1999). Quadras populares. Selecção e introdução de Luísa
Freire. Lisboa: Assírio & Alvim-Câmara Municipal de Lisboa.

Bibliografia Passiva
LISBOA, Eugénio (1986). Poesia Portuguesa: do «Orpheu» ao Neo-Realismo.
Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 2a edição.
PLATONE (2005). Le Leggi. Traduzione di Franco Ferrari e Silvia Poli. Milano:
BUR.
PRISTA, Luís (1998). «Sombras e sonhos na fixação de quadras de Pessoa».
Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. N. 11. Lisboa: Colibri,
pp. 197-213.
RUSSO, Mariagrazia (2001). «Il colore e i suoi significati nell’opera di Fernando
Pessoa». In: CANCELLIER Antonella; LONDERO, Renata (a cura di). Atti
del XIX Congresso Associazione Ispanisti Italiani “Le arti figurative nelle
letterature iberiche e iberoamericane”. Padova: Unipress, pp. 275-90.
MACHADO, José Pedro (2011). O grande livro dos provérbios. Alfragide: Casa das
Letras, 4a edição.
SARAIVA, António José; LOPES, Óscar (2001). História da Literatura Portuguesa.
Porto: Porto Editora, 17a edição.
VILA MAIOR, Dionísio (1994). Fernando Pessoa: heteronímia e dialogismo.
Coimbra: Livraria Almedina.
VILA MAIOR, Dionísio (1996). Introdução ao Modernismo. Coimbra: Livraria
Almedina.
Intersecionismos:
Pessoa, o símbolo e o oculto

Antônio Donizeti PIRES


UNESP/Araraquara; UnB – Cátedra Archai UNESCO; Bolsista CAPES/FCT

Palavras-chave: Modernismo; Vanguarda; Tradição; Simbolismo; Ocultismo.


Resumo: Ao equacionar as interseções de Fernando Pessoa (1888-1935) com o Simbolismo e
o Ocultismo, não se pretende afirmar, absolutamente, que a sua obra se encontre deslocada
da sua época e contexto, ou que o poeta seja um epígono daquele movimento estético, ou que
sejam simplistas os seus estudos e explorações das várias dimensões do Oculto. Ao contrário:
tais aspetos têm sido aclarados pela melhor crítica pessoana, em Portugal e no exterior, sempre
preocupada em re-avaliar e re-dimensionar a herança plural que o poeta plasmou no “drama
em gente” da heteronímia e na aventura revolucionária de Orpheu, que embora provocasse,
através da postura de vanguarda, a necessária rutura com a tradição, ainda assim a conserva
problematizada pelo complexo intelectualismo poético de Fernando Pessoa. Diante do exposto,
pretende-se refletir sobre tal intersecionismo iluminador, explorado por Pessoa durante toda a
vida, em conjunção e/ou em atrito com outras conexões e interseções que caracterizam a sua
obra polifónica e polissémica.

A redundância e a repetição são inevitáveis em qualquer abordagem à obra de


Fernando Pessoa, pois parece que nesta nada mais há a descobrir/revelar que a crítica –
guiada e confundida pelo poeta, para o bem e para o mal – já não tenha esquadrinhado
nesses anos todos em que ele foi gradativamente alçado ao posto de mito maior da
literatura portuguesa do século XX – o que condiz, aliás, com o criador de mitos que
Pessoa o foi, sobretudo em relação à própria obra. Pois já se tornou lugar-comum
afirmar que ele é o maior poeta português do século XX, o supra-Camões que viria
para resgatar a poesia da Pátria da mediocridade e da decadência. Este supra-Camões,
buscado por Pessoa “em febre de ânsia” e em si mesmo encontrado, multiplica-se
numa série constelar de outros eus e busca “sentir tudo de todas as maneiras”, além de
transitar entre o passado e o presente, a vanguarda e a tradição, a consciente dedicação
ao ofício poético e o conhecimento maçónico e esotérico. No entanto, se esse novo
supra-Camões resgata a poesia portuguesa da vulgaridade, o mesmo talvez não se
dê em relação à Pátria, que em real e secular decadência será mitificada nos poemas
de Mensagem. Mitificada não como o epílogo amargo das Grandes Navegações, mas
566 100 Orpheu Antônio Donizeti Pires

como a Pátria possível, construída num mundo “que não tem tempo ou espaço” e
onde vivem os mitos, os heróis, os profetas, o Poeta, o mar primordial da Poesia.
O presente trabalho, portanto, não propõe uma nova interpretação da aventura
heteronímica do poeta, já bastante esmiuçada, mas tão somente frisa como esse
“drama em gente”, ou “poetodrama” (para usarmos os achados do crítico-poeta
José Augusto Seabra), vivendo a sua particularíssima Saison en enfer, exacerbou o
conflito com os Outros que habitam e infiltram as frinchas do Eu, num paroxismo
da máxima de Rimbaud “Je est un autre”. Hugo Friedrich, ao acentuar a aceleração
do processo de desumanização do Eu na poesia do autor francês, é como se se
referisse a Fernando Pessoa ao afirmar que o eu-lírico de Rimbaud apresenta uma
“multiplicidade dissonante de vozes [...] [e] pode vestir todas as máscaras, estender-se
a todas as formas de existência, a todos os tempos e povos” (FRIEDRICH, H., 1991:
69). Tal multiplicidade, penso eu, pressupõe a noção de “Alquimia do verbo” e certo
“Desregramento consciente de todos os sentidos”, conquanto estes adquiram em
Pessoa conotações muito diferentes, diversas e distantes do uso que os surrealistas,
por exemplo, fizeram das antecipações de Rimbaud.
A seu modo, pois, o jogo poético assumido pelo lisboeta, a sua desintegração,
desumanização e despersonalização num complexo e dramático lance de dados talvez
possam ser lidos como a resposta radical de Pessoa à crise de amplo espectro que
está na essência mesma da modernidade. Crise de amplo espectro que vincara os
românticos alemães, Poe, Baudelaire e os melhores simbolistas, na sua tentativa de
apreensão analógica das realidades fugidias, ainda que a ironia – como contraponto
da analogia (pensando-se em Octavio Paz), ou como consciência da crise e da
impossibilidade humana de totalidade – rasure sempre a possibilidade intuitiva de
conhecimento e verdade.
Por isto, frise-se que os muitos aspetos da vasta galáxia pessoana – em que a prática
e a teoria da poesia, da prosa e do drama acentuam a plena inserção do poeta na
modernidade, bem como a consciência do fazer poético e o apreço pela palavra e pela
linguagem –, evidenciam também as suas raízes no fecundo chão simbolista. Assim,
este breve ensaio tentará seguir algumas águas sulcadas pela poliédrica nau pessoana,
talvez bêbada como o barco de Rimbaud, mas em segura busca do Livro absoluto
(ainda que em desassossego), tão sonhado por Mallarmé.
Portanto, em termos crítico-históricos, as complexas ressonâncias simbolistas na
poesia de Fernando Pessoa, temáticas, formais ou estéticas, já foram apontadas por
estudiosos do naipe de Eduardo Lourenço, Fernando Guimarães ou António Quadros.
Este último observa que “tem sido notado por críticos e historiadores da literatura
o hibridismo do movimento órfico: o simbolismo e o decadentismo constituem
importantes linhas de força e delas não são completamente independentes os mais
Intersecionismos: Pessoa, o símbolo e o oculto 567

modernistas, como Sá-Carneiro ou Pessoa” (QUADROS, A., 1989: 21). Ressalta


Fernando Guimarães, em Simbolismo, Modernismo e vanguardas, que a ênfase posta
nos aspectos mais polêmicos e inovadores do Modernismo em Portugal “contribuiu
também para esquecer as muitas linhas que unem tal movimento a uma renovação
que, por volta de 1890, os poetas simbolistas anunciavam e, em alguns aspectos,
conseguiram efetivamente” (GUIMARÃES, F., 1992: 5). O Modernismo, para este
autor, não representa uma ruptura total com a tradição, mas uma sutura, isto é, uma
linha de junção com o Simbolismo.
Eduardo Lourenço é ainda mais contundente na sua avaliação, ao ressaltar Pessoa
um dos únicos poetas simbolistas autênticos (ao lado de Pessanha e Mallarmé – e
Cruz e Sousa, acrescento eu), e o caráter “falsamente plural” de toda a sua obra:

No sentido mais cru do termo, Fernando Pessoa é o poeta da Depressão – histórica,


psicológica, metafísica e psiquiátrica – que teve no Simbolismo de que é, em última análise,
com Mallarmé e Pessanha, a única expressão genial, a sua versão poética. Os manuais
ensinam-nos, e não é errado, que a poesia simbolista representou a tentativa de roubar à
música os seus poderes. Sem dúvida, mas essa música era já “poesia” ou se se prefere, poética
da Depressão absoluta que assolou a cultura do Ocidente desde os meados do século XIX até
aos princípios do século XX. [...] é à luz, agora soberana, do Livro do desassossego que todo
o texto – falsamente plural – de Fernando Pessoa deve ser relido. [Pois o Livro é] [...] um
retábulo simbolista pouco conforme ao mito-Pessoa de um vanguardismo estridente e todo
exterior, mas talvez esse mito seja mais do nosso engano que da sua verdade. Toda a sua vida
foi simbolista. Nem há na literatura do Ocidente mais completa expressão do Simbolismo.
O Modernismo foi a sua e nossa ficção (LOURENÇO, E., 1986: 15-19; aspas e grifo do autor;
negrito meu).

Por seu turno, a problemática relação de Pessoa com sua época e com a heterodoxa
herança recebida está bem crivada nos seus textos doutrinários, como no conhecido
manuscrito de 1913 (presumivelmente) recolhido em Páginas de estética e de teoria e
crítica literárias, livro organizado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho:

A arte moderna é arte de sonho. [...] Na Idade Média e na Renascença, um sonhador, como
o Infante D. Henrique, punha o seu sonho em prática. [...] Hoje o mundo exterior humano
é desta complexidade tripla e horrorosa [democracia, industrialismo e imperialismo]. Logo
no limiar do sonho surge o inevitável pensamento da impossibilidade. [...] O Mistério
morreu na vida [...] Desde que a arte moderna se tornara a arte pessoal, lógico era que o seu
desenvolvimento fosse para uma interiorização cada vez maior – para o sonho crescente,
cada vez mais para mais sonho (PESSOA, F., 1966: 156-157; grifo do autor; negrito meu).
568 100 Orpheu Antônio Donizeti Pires

Adiante, Pessoa ressalta o duplo caráter musical e visual do poeta moderno, numa
afirmação que justifica plenamente a sua produção da época, “O marinheiro” ou “Na
floresta do alheamento”: “o ‘quadro’, a ‘paisagem’ é de sonho, na sua essência, porque
é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior” (id.: 158;
aspas e grifo do autor). Por isso, conclui, “o maior poeta da época moderna será o que
tiver mais capacidade de sonho” (id.: 160).
O mesmo texto apresenta os três caminhos que, na visão de Pessoa, foram
seguidos pela nova arte: a imersão na natureza e na vida (Whitman); a evasão, seja
pelo medievalismo (Rossetti, Verlaine), seja para lugares distantes e exóticos (Poe,
Baudelaire, Eugênio de Castro); e, em terceiro lugar, “[...] metendo esse ruidoso
mundo, a natureza, tudo, dentro do próprio sonho – e fugindo da ‘Realidade’ nesse
sonho. É o caminho português (tão caracteristicamente português) – que vem desde
Antero de Quental cada vez mais intenso até à nossa recentíssima poesia” (id.: 159;
grifos e aspas do autor).
O poeta de Orpheu elenca ainda as três características básicas do Simbolismo:
“uma decadência do romantismo; [...] um movimento de reação contra o cientismo;
um estádio na evolução (ou princípio duma evolução) de uma nova arte” (ibid.), e
acrescenta que “quem quiser compreender o simbolismo tem de contar com a sua
tripla natureza” (ibid.).
No mesmo livro há outros textos do poeta sobre a matéria, como um fragmento
em inglês, datilografado (talvez de 1914), intitulado “Clássicos, românticos e
decadentes”, em que se lê “simbolista” como sinônimo de “decadente”. Pessoa, apesar
de várias outras afirmações contraditórias e/ou negativas sobre o Simbolismo,
reconhece, em Páginas íntimas e de autointerpretação (citado por Fernando
Guimarães):

Descendemos de três movimentos mais antigos – o simbolismo francês, o panteísmo


transcendental português e a miscelânea de coisas contraditórias e sem sentido de que o
futurismo, o cubismo e outras correntes afins são expressão ocasional, embora, para ser
exacto, descendamos mais do espírito do que da letra desses movimentos (PESSOA, F. apud
GUIMARÃES, F., 1992: 39).

Guimarães aponta, a seguir, as três características que Pessoa evidencia na poesia


moderna: o vago, a sutileza e a complexidade. Características estas que, muito
claramente, fincam raízes no fértil solo simbolista. O poeta, ao colocar em realce as duas
últimas, a sutileza e a complexidade, reafirma a presença delas em suas experiências
paúlicas, intersecionistas, sensacionistas, heteronímicas. E oferece, em carta a Adolfo
Rocha (datilografada; datada de junho de 1930), reproduzida em Páginas de estética e
Intersecionismos: Pessoa, o símbolo e o oculto 569

de teoria e crítica literárias, o que entende por “intelectualização duma emoção”, bem
explicada em cinco passos ao destinatário da carta:

1) Toda a arte se baseia na sensibilidade; 2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível; 3)


Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que
decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal [em prol da universalidade
ou generalidade que o indivíduo traz em si, e que é perceptível pela inteligência e/
ou pela sensibilidade de outrem]; [...] 4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a
intelectualização direta e instintiva da sensibilidade [a inspiração, ou seja], o encontrar por
instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual; b) a reflexão crítica
sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela ‘inspiração’ a
um produto inteiramente objectivo; 5) do trabalho de intelectualização, em cuja operação
consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista:
a) o inspirado ou espontâneo; b) o reflexivo e crítico, que elabora, por necessidade orgânica,
o já elaborado (PESSOA, F., 1966: 70-71; aspas do autor; negrito meu).

Voltando às heranças heterodoxas do heterodoxo Pessoa, reproduz-se abaixo outro


fragmento seu, citado por António Quadros, em que se verifica a relação seletiva do
poeta de Orpheu com a tradição da poesia portuguesa do século XIX:

Com Antero de Quental se fundou entre nós a poesia metafísica, até ali não só ausente,
mas organicamente ausente, da nossa literatura. Com Cesário Verde se fundou entre nós a
poesia objectiva, igualmente ignorada entre nós. Com Camilo Pessanha a poesia do vago e
do impressivo tomou forma portuguesa (PESSOA, F. apud QUADROS, A., 1989: 72; negrito
meu).

A referência a esses três tipos de poesia (de um lado, a poesia metafísica e a poesia
do vago e do impressivo, subjetivas; de outro, a poesia objetiva) é de suma importância
para se compreender a síntese a que chegou Fernando Pessoa: a fusão do objetivo e do
subjetivo; a intelectualização da sensação; a reflexão como parâmetro para a inspiração.
Enfim, como práticas do legado simbolista na obra pessoana podemos aduzir as
blagues vanguardistas do Paulismo e do Intersecionismo e alguns poemas que lhe
são correspondentes (“Impressões do crepúsculo – II”, “Hora absurda”, a série “Chuva
oblíqua”), ou o drama estático “O marinheiro” e a primeira fase do Livro do desassossego.
O Paulismo, primeira das blagues vanguardistas de Pessoa, deriva de “pauis”,
palavra que abre a segunda parte do poema “Impressões do crepúsculo” (“Pauis de
roçarem ânsias pela minh’alma em ouro... / Dobre longínquo de Outros Sinos...”),
escrito em 29 de março de 1913 e publicado no número único da revista A Renascença
570 100 Orpheu Antônio Donizeti Pires

– fevereiro de 1914. O Paulismo, que encontra a sua melhor definição no citado poema,
consiste num refinamento dos processos simbolistas, explorando a um só tempo,
desde o título, o vago, o complexo, o sutil, o evanescente, o indefinido. Dentre outras
características da estética paúlica, logo abandonada por Pessoa, estão: a violação da
sintaxe; a confusão do subjetivo e do objetivo – que terá outros desdobramentos no
Intersecionismo –; a associação livre de ideias; o uso das reticências e a suspensão de
pensamentos e sensações; o abuso das maiúsculas, que traduzem a carga espiritual de
certas palavras (“Tempo”, “Imperfeição”, “Foi”, “Eu” etc.); o vocabulário revelador do
tédio, do vago, da dilaceração existencial, do anseio por outros mundos. A segunda
parte de “Impressões do crepúsculo”, paúlica, em versos livres e rimas emparelhadas
(com exceção dos quatro últimos versos, onde as rimas se alternam), choca o leitor
porque, além da temática inusitada, destoa bastante da primeira parte do poema
(republicada em Athena 3, 1924), em quatro quartetos de versos redondilhos maiores e
sistema de rimas cruzadas nos versos pares: “Ó sino da minha aldeia, / Dolente na tarde
calma, / Cada tua badalada / Soa dentro da minh’alma” (PESSOA, F., 2012: 9-10). Um
outro exemplo paúlico pode ser apontado no poema “Hora absurda” (id.: 17-21), escrito
em 4 de julho de 1913 e publicado no primeiro e único número da revista Exílio (abril
de 1916), em que se lê o famoso verso: “Eu fui amado em efígie num país para além
dos sonhos...”
Já o Intersecionismo, definido por Pessoa como “o sensacionismo que toma
consciência de cada sensação ser, na realidade, constituída por diversas sensações
mescladas” (PESSOA, F. apud HATHERLY, A., 1979: 77), apresenta a mistura
consciente de presente e passado, sonho e realidade, paisagem interior e paisagem
exterior, abstrato e concreto etc., numa exacerbação de processos metafóricos,
sinestésicos e analógicos que partilha da exploração das correspondências caras
aos poetas simbolistas. Com a ressalva de que o Pessoa intersecionista está mais
preocupado em captar a complexidade de suas sensações pessoais, paradoxais, vagas
e fugidias, e menos as correspondências entre o mundo real, sensível, e o mundo
celeste, ideal, inteligível. Por outro lado, a desconstrução e reconstrução do real aparente
e a captação fragmentária do eu e do mundo (tão caras à modernidade) podem ser
comparadas aos processos da montagem cinematográfica e da colagem cubo-futurista,
preocupados com a exploração geométrica, poliédrica e multidimensional da vida,
do eu, do mundo e da pessoa humana. Como exemplo, a série de seis poemas
“Chuva oblíqua”, escritos na noite do dia triunfal de 8 de março de 1914, logo após
os “trinta e tantos poemas” (PESSOA, F., 1990: 53) do “Guardador de rebanhos”, e
cuja redação significou, conforme o poeta, “o regresso de Fernando Pessoa Alberto
Caeiro a Fernando Pessoa ele só” (ibid.). Outros exemplos intersecionistas, já se
disse, são o drama estático “O marinheiro” (escrito em 1913; publicado em Orpheu 1,
Intersecionismos: Pessoa, o símbolo e o oculto 571

1915) e aquela fase inicial do Livro do desassossego que foi considerada por Jorge de
Sena, segundo Leyla Perrone-Moisés, “[...] simbolista e esteticista, anterior à criação
dos grandes heterônimos” (PERRONE-MOISÉS, L., 1986b: 11-12). Conquanto,
em minha opinião (seguindo empós da senda aberta por Eduardo Lourenço), seja
simbolista todo o Livro do desassossego (composto por Vicente Guedes, por Bernardo
Soares ou pelo próprio Fernando Pessoa, que no desassossego trabalhou a vida toda).
“Livro-caixa, livro-sensação” (MOISÉS, M., 1998: 139-143); ou “livro em potência,
livro em plena ruína, livro-sonho, livro-desespero, antilivro” (ZENITH, R., 1999: 13),
o Livro do desassossego, em sua complexa, poliédrica e intercambiável estrutura de
poemas em prosa redondos e completos, reflexões estéticas, aforismos, esboços de
diário, narrativas em gérmen, fragmentos inconclusos etc., escrito numa prosa
impecável, clássica e ao mesmo tempo inovadora, decerto é mais um passo na busca
do Livro puro, espiritual e absoluto, tão sonhado por Mallarmé. Embora, ressalte-se,
tal pureza espiritual e absoluta não é mais possível no caso pessoano, uma vez que o seu
Livro-símbolo, analógico, sintético de todo um percurso vivencial ético e estético, está
um tanto vincado pela ironia e pela fragmentação alegórica do mundo moderno, se
quisermos encarar a outra face de Jano que foi o seu tempo de vanguarda e crise.
De todo modo, Paulismo e Intersecionismo (eivados, menos ou mais, de recortes
simbolistas, saudosistas e vanguardistas) são exemplos pessoais do Sensacionismo tão
explorado e teorizado por nosso poeta: o “sentir tudo de todas as maneiras” de Álvaro
de Campos, cujas “sensações vivíssimas” compõem um “outro mundo” (PESSOA, F.,
1986a: 98; 104): um mundo de poesia, de sonho, de alquimia verbal e de um contundente
e personalíssimo desregramento (racional) de todos os sentidos. É nesta perspectiva,
pois, que a sensação já aparece explorada – e também teorizada, mesmo sutilmente –
pelos poetas românticos e simbolistas. Embora cumpra salientar, no caso de Pessoa, a
sua contradição inerente, que exacerba os autores novecentistas: poeta da sensação e
do sonho, do mundo interior e dos abismos da in/consciência, ainda assim a razão e a
reflexão vincam profundamente a poesia plural e polissêmica desse novo Orfeu.
Novo Orfeu que teve, pois, uma vivência estreita com o Símbolo: em maiúsculas,
agora, porque adentramos um terreno sagrado para o Pessoa, que propriamente
escreveu sobre os graus e os degraus do símbolo e sobre os muitos modos de
ocultismo, esoterismo ou hermetismo, três palavras que, sabemos todos, detêm
certa similaridade semântica ao designar, genericamente, o conjunto de tradições e
interpretações filosóficas das doutrinas e religiões que buscam desvendar o sentido
oculto, sobrenatural, místico, das realidades essenciais (espirituais), ao mesmo tempo
em que procuram conservar tal sentido mistérico (e escatológico, em alguns casos) e
o revelar apenas a iniciados privilegiados. Conquanto o hermetismo, como também
se sabe, seja mais específico, pois se baseia na prática e no estudo da filosofia oculta e
572 100 Orpheu Antônio Donizeti Pires

da magia a partir dos ensinamentos atribuídos a Hermes Trismegisto (Hermes Três


Vezes Máximo), forma sincrética do tradicional deus Hermes grego com o deus Toth
da antiquíssima religião do Egito, país que foi terreno fértil para praticamente todas
as correntes esotéricas e ocultistas aí nascidas ou vindas de Babilónia, da Pérsia, do
Oriente Próximo, do Extremo Oriente etc. Tais livros atribuídos a Hermes Trismegisto,
os “escritos herméticos”, perfazem um total de 18 obras, sendo os principais a Tábua
de esmeralda e o Corpus hermeticum. Nestes pode-se ler acerca das sete principais
leis herméticas que, de um modo ou de outro, foram do conhecimento de Fernando
Pessoa. São elas: Lei do mentalismo (O todo é mente); Lei da correspondência (O
que está em baixo é como o que está em cima, e vice-versa); Lei da vibração (Tudo é
movimento; tudo vibra e se move); Lei da polaridade (Tudo é duplo; tudo tem dois
polos; tudo tem o seu oposto); Lei do ritmo (Tudo é fluxo e refluxo); Lei do gênero
(Tudo é masculino e feminino; todos os planos da criação contêm os dois gêneros);
Lei da causalidade (Toda causa tem seu efeito, e vice-versa).
Chama a atenção o atribuir-se a um mito a criação ou a revelação de uma religião ou
de um saber oculto, mas isto foi bastante comum nas civilizações antigas (ou ao menos
foi uma forma de explicar como se chegou a tais ou quais conhecimentos, já que “O mito
é o nada que é tudo”). Isto é, ele não existe na realidade, de facto, mas é uma realidade
simbólica ou abstrata ou mental ou espiritual que ajuda a compreender, por exemplo,
a fundação de Lisboa por Ulisses; ou explica o brotar, entre os índios brasileiros, de
preciosidades como o guaraná e a mandioca; ou esclarece fenómenos naturais como
o vento e as suas direções, a chuva, as estações do ano. Isto é, o mito não existe na
realidade, mas além dos bens reais e palpáveis que concede à Humanidade, doa-lhe
também aqueles conhecimentos secretos e quase inatingíveis sobre Deus, a Alma, o
Além, a Salvação etc. Em termos religiosos, aliás, o nosso Hermes não foi o único a
ser guindado a semeador de segredos e enigmas para a Humanidade, pois o próprio
Orfeu passa por ter sido fundador de um culto de mistérios que leva o seu nome, o
Orfismo – que não pode ser confundido, absolutamente, com o que se convencionou
chamar, na literatura portuguesa, de primeiro Modernismo. Não obstante, entre os
órficos o malicioso e brincalhão deus Hermes acaba por adquirir um atributo sério
e sagrado, pois agora se torna Hermes Psicopompo, ou seja, condutor da alma dos
mortos ao Hades. Muito interessante, no caso do mito de Hermes, o acúmulo de
predicados: de mensageiro, criador da lira, folgazão, protetor dos comerciantes, das
encruzilhadas e dos ladrões, passa a Psicopompo e a Trismegisto, e continua presente
para todos aqueles que, por gosto, necessidade ou temperamento estejam a estudar
os ofícios ocultos que nos transmitiu de um passado longínquo, perdido na bruma
dos tempos. O mito de Orfeu continua presente de modo similar, pois talvez não seja
possível considerar um poeta da estirpe de Pessoa sem a menção às coisas órficas, por
Intersecionismos: Pessoa, o símbolo e o oculto 573

mais obscuras que estas nos pareçam em termos de um pensamento órfico-poético


moderno e em termos do significado e da função do próprio poeta moderno. O que
é ser um poeta? O que é ser um poeta órfico? A dimensão esotérica e maçónica faz
de Fernando Pessoa um poeta mais órfico do que outros autores modernos que, a seu
modo, também se embaralharam com as coisas de Orfeu?
Para que tais especulações não nos levem ainda mais longe, esclareça-se já que o
estudo do oculto ou esotérico marcou a vida inteira de Fernando Pessoa e incluiu
Maçonaria (da qual fez parte, segundo se crê), Irmandade Rosa-Cruz, Cabala,
Alquimia, Astrologia, Magia, Hermetismo, Gnosticismo, Maniqueísmo, Catarismo
e inclusive a lenda e o simbolismo do Santo Graal e questões gerais sobre Profecia
(pense-se no sapateiro Bandarra e no padre António Vieira). A investigadora da
matéria, Yvete K. Centeno, é quem chega a esta lista a partir dos livros da biblioteca
pessoana, “[...] sublinhados e anotados à margem [...]” (CENTENO, Y. K., 1997: 359).
Centeno, pois, tem-se dedicado há décadas ao estudo desse assunto específico na obra
de Fernando Pessoa, com a publicação de vários livros, mas para o momento tenho em
vista apenas o posfácio “O pensamento esotérico de Fernando Pessoa”, que ela redigiu
para a edição crítica de Mensagem. Poemas esotéricos (1997a), coordenada por José
Augusto Seabra.
No posfácio, dado o fascínio do poeta pelo oculto, Centeno preocupa-se em agrupar
os textos pessoanos (já publicados e/ou do espólio) por cada tema que ele tratou,
uma vez que “Não se pode entender o pensamento esotérico de Fernando Pessoa
sem um estudo mais cuidadoso dos seus textos herméticos” (Ibid.). A autora assinala,
em suma, o sincretismo que perpassa o pensamento esotérico do poeta, vincado
pela “[...] busca da palavra, iniciática tanto quanto poética e transformada no puro
desassossego de que nos foi dando conta” (Ibid.). Na obra literária também sincrética
do escritor (penso eu), a busca da palavra poética (sinônimo de criação) é o que conta
de fato para Pessoa, que esposaria “[...] uma visão mística da linguagem” (Id.: 362)
calcada na visão analógica, e cuja exploração da simultaneidade da heteronímia (que,
por outra parte, corresponde à simultaneidade típica da arte de vanguarda) indicaria
certa similaridade com a iniciação:

A criação literária é, para Fernando Pessoa, uma das faces do mistério iniciático. [...] Trata-se
para ele de dar corpo a vários corpos, a partir de um corpo só, de dar voz a várias vozes, a
partir de uma só voz. A iniciação, única e sempre a mesma, que encontramos no pensamento
filosófico como na atividade literária, é a do desdobramento que na criação se verifica desde
o primeiro ser, o Adão primordial de gnósticos, kabalistas, alquimistas [...] Desdobramento,
multiplicação, que só depois de assumidos e esgotados permitem a unidade (Id.: 361).
574 100 Orpheu Antônio Donizeti Pires

Em larga medida, pode-se concordar com a ideia da estudiosa sobre o sincretismo


do pensamento esotérico de Pessoa – “[...] dificilmente explicável [porque raiado] numa
multiplicidade de sentidos só comparáveis aos múltiplos da heteronímia” (Id.: 364),
embora Centeno não associe tal sincretismo filosófico ao orfismo e tampouco à obra
poética completa do artista de Orpheu, também sincrética conforme aqui se aduz. Seja
como for, Pessoa propõe, segundo a autora, “[...] a poesia como gnose” (Id.: 366), e ainda
que tenha privilegiado a busca individual, interna, esforçou-se por “[...] não a desgarrar
de um certo destino mítico, lido na coletividade e sobre o qual tece as considerações que o
levam da Ordem do Templo à Ordem de Cristo de Portugal, e à que denominará Terceira
Ordem de Portugal” (Id.: 375). Na poesia, tal esforço se cristaliza no livro Mensagem,
sobretudo. Enfim, a autora faz uma observação importante, com a qual se pode concordar
na íntegra: “Que o interesse do poeta é real, obsessivo e permanente, podendo ser datado
da juventude até à morte, é um fato indiscutível. Mas daí não poderá sempre inferir-se
que ele foi um criador, nem mesmo um renovador no âmbito de todas as doutrinas por
que se interessou” (Id.: 389). Sim, pois o esotérico Pessoa, na qualidade de manipulador
e intérprete de símbolos ocultistas (conforme ele faz em relação à Rosa e à Cruz, por
exemplo), está a lidar com símbolos de validade atemporal e universal (praticamente
alegorias, e não símbolos), e que são muito diferentes dos símbolos pessoais criados pelo
artista ou tomados por ele de empréstimo de tradições ocultistas milenares (conforme
se tem no Graal, nos 14 sonetos de “Passos da cruz” ou na assimilação do mito de Eros e
Psique ao ritual iniciático). Pois a vida, diz o poeta (Esp.53B-79, citado por Centeno), é
uma “symbologia confusa” (PESSOA, F. apud CENTENO, Y., 1997: 372) – uma “floresta
de símbolos”, diria Baudelaire, que requer um poeta-tradutor apto para a decifrar –, pois
tudo é fugidio, movimento e transformação: para o incauto e apressado, “O caminho dos
symbolos é perigoso, porque é [em aparência] fácil e sedutor” (Ibid.; Esp.53B-80).
O sentido de símbolo buscado por Fernando Pessoa, obviamente, ultrapassa o
sentido comum aceite nos estudos literários, embora o circunde de perto porque
nos dois casos há evidente polissemia, de acordo com a definição linguística: o
símbolo difere do signo por se caracterizar, em linhas gerais, pela motivação, pela
conotação e pela plurissignificação, ao passo que o signo é sempre arbitrário e
denotativo. Entretanto, para a “inteligência analógica” (Id.: 368; Esp.54-75) de Pessoa
há gradações na leitura e na compreensão dos vários sentidos do símbolo: “[...] literal,
alegórico, moral, espiritual e divino. Para concluir que ‘numa cadeia racional, tudo é
um’ (Esp.54-91)” (CENTENO, Y., 1997: 369), conforme enfatiza Centeno. Gradações
que mimetizam os passos da iniciação esotérica, em três níveis: Neófito, Adepto e
Mestre. O número três, frise-se, sempre explorado por místicos e herméticos de
variada procedência, também gozou da afinidade de Pessoa, segundo se constata na
tríade principal da heteronímia.
Intersecionismos: Pessoa, o símbolo e o oculto 575

Finalmente, num apontamento solto, sem data, publicado pela primeira vez na Obra
poética, o intérprete de símbolos Fernando Pessoa preconiza as cinco qualidades que,
a seu ver, são necessárias para a exegese esotérica: as quatro primeiras são a simpatia,
a intuição, a inteligência e a compreensão. A quinta e última parece apontar para o
coração da própria matéria hermético-poética (a “alquimia do verbo”, em suma):

A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que
é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e Conversação
do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira
como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo (PESSOA, F., 1997b: 43-44).

Benedito Nunes, o outro estudioso da filosofia ocultista de Fernando Pessoa, vê


em Mensagem (1934) mais uma das tantas máscaras usadas pelo poeta, e a partir da
chave proposta acima, ressalta o caráter ocultista de que se reveste essa obra seminal
de Pessoa:

Os eventos e as figuras da história marítima portuguesa são, em Mensagem, elevados a um


plano mítico, através do qual o poeta procura recompor o traçado de uma outra e diferente
história, transcendente e espiritual, que a primeira simboliza. E nisso o poeta estava de
acordo com o esquema platônico a que obedece a interpretação ocultista, segundo a qual a
história, com os seus acontecimentos singulares, no espaço e no tempo, é uma transliteração
imperfeita de desígnios eternos que se cumprem temporalmente, mas cujo sentido está
predeterminado nas altas esferas que os provocaram (NUNES, B., 1976: 240; negrito meu).

Nunes, à luz do ocultismo, também estuda alguns poemas pessoanos em que o


princípio fundamental da teoria mística das correspondências é explorado, uma vez
que o poeta sempre exclama: “Ah, tudo é símbolo e analogia!” (Primeiro Fausto, VI). O
paraense debruça-se ainda sobre o que considera poemas esotéricos, doutrinários e/
ou de iniciação, tais quais: “Além-Deus” (1913), “Eros e Psyche” (1934) e “No túmulo
de Christian Rosenkreutz”. A estes três, Centeno acrescenta, ao lado de Mensagem
e “Quinto Império”, outros nove poemas fundamentais: “Passos da cruz” (1916),
“Episódios/A múmia” (1917), “Abdicação” (1920), “Natal” (1928), “Gomes Leal”
(1928), “O último sortilégio” (1930), “Do vale à montanha” (1932), “Na sombra do
monte Abiegno” (1932) e “Iniciação” (1935). As datas de composição dos poemas
(todos do ortônimo) evidenciam que Pessoa se preocupou pela vida afora com a
matéria ocultista, e a explorou poeticamente de um ponto de vista pessoal, interno,
de iniciação individual, e de um ponto de vista externo, coletivo, imiscuindo-se
aos destinos da Pátria portuguesa. Num caso ou noutro, a dificuldade é inerente à
576 100 Orpheu Antônio Donizeti Pires

jornada, conforme professa o poeta em Esp.54A-6: “Todo homem, que talhar para
si um caminho para o Alto, encontrará obstáculos incompreensíveis e constantes”
(PESSOA, F. apud CENTENO, Y. K., 1997: 365). Ou outros “[...] ternos que o farão,
como Orpheu, volver o erro do olhar para o vedado Averno.” (Ibid.; negrito meu).
À guisa de conclusão, talvez devêssemos chamar à cena o Sr. Álvaro de Campos
e pedir vistas dos fumos decadentistas de seu poema “Opiário”, escrito no Canal de
Suez, em março de 1914, a bordo do navio que o trazia de volta da viagem que fizera
ao Oriente. Pensando bem, talvez seja melhor saltarmos uns 20 anos e, de olhos e
ouvidos atentos aos debates estéticos entre ortônimo e heterônimos, saborearmos a
deliciosa ironia de Campos para com Fernando Pessoa nos versos iniciais de outro
poema do engenheiro, datado de 18 de dezembro de 1934: “Símbolos? Estou farto
de símbolos... / Mas dizem-me que tudo é símbolo. Todos me dizem nada. Quais
símbolos? Sonhos. –” (PESSOA, F., 1986a: 67).

Bibliografia

Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1966). Páginas de estética e de teoria e crítica literárias. Textos
estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho;
tradução dos textos ingleses por Jorge Rosa. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1986a). Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1986b). Livro do desassossego. Seleção e introdução de Leyla
Perrone-Moisés. São Paulo: Brasiliense.
PESSOA, Fernando (1988). Poemas dramáticos. Poemas ingleses. Poemas franceses.
Poemas traduzidos. Anotações de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
PESSOA, Fernando (1990). Alguma prosa. Organização e prefácio de Cleonice
Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
PESSOA, Fernando (1997a). Mensagem. Poemas esotéricos. Edição crítica
coordenada por José Augusto Seabra. Paris/São Paulo: ALLCA XX/Scipione
Cultural.
PESSOA, Fernando (1997b). O eu profundo e os outros eus. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
PESSOA, Fernando (1999). Livro do desassossego. Organização de Richard Zenith.
São Paulo: Companhia das Letras.
PESSOA, Fernando (2012). Ficções do interlúdio 1914-1935. Edição de Fernando
Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2.ed.
Intersecionismos: Pessoa, o símbolo e o oculto 577

Bibliografia Passiva
CENTENO, Yvete K. (1997). O pensamento esotérico de Fernando Pessoa. In:
PESSOA, Fernando. Mensagem. Poemas esotéricos. Edição crítica coordenada
por José Augusto Seabra. Paris/São Paulo: ALLCA XX/Scipione Cultural,
pp.359-395.
FRIEDRICH, Hugo (1991). Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades.
GUIMARÃES, Fernando (1992). Simbolismo, Modernismo & vanguardas. Porto:
Lello & Irmão.
HATHERLY, Ana (1979). O cubo das sensações e outras práticas sensacionistas
em Alberto Caeiro. In: HATHERLY, Ana. O espaço crítico – do Simbolismo à
vanguarda. Lisboa: Caminho.
LOURENÇO, Eduardo (1986). Fernando rei da nossa Baviera. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda.
MOISÉS, Massaud (1998). Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo:
Cultrix.
NUNES, Benedito (1976). Fernando Pessoa. In: NUNES, Benedito. O dorso do
tigre. São Paulo: Perspectiva.
PAZ, Octavio (1974). Los hijos del limo: del romanticismo a la vanguardia.
Barcelona: Seix Barral.
QUADROS, António (1989). O primeiro Modernismo português: vanguarda e
tradição. Mem Martins: Europa-América.
SEABRA, José Augusto (1991). Fernando Pessoa ou O poetodrama. São Paulo:
Perspectiva.
SEABRA, José Augusto (1988). O heterotexto pessoano. São Paulo: Perspectiva/
EDUSP.
Os poetas do Orpheu em tradução bangla

Rita Ray
Jadavpur University

Palavras-chave: Divulgação; literatura bangla; comparação; tradução; antologia.


Resumo: Em 1913, bengali ou bangla foi galardoada com o primeiro Nobel da literatura num idioma
asiático. Os bengalis entraram em contacto com as literaturas inglesa e francesa já no século XIX.
Enquanto a primeira fazia parte do currículo académico (a Índia foi uma colónia inglesa durante dois
séculos), a língua e literatura francesas também terão tido larga difusão a partir de Chandernagore,
um enclave francês. Mas Bengala, apesar de ter contado com a presença portuguesa durante mais de
dois séculos, nunca pertenceu à coroa portuguesa. Portanto não é de estranhar que os intelectuais
bengalis desconhecessem a literatura portuguesa. Em 1995, uma antologia de poemas de seis poetas
modernos foi publicada em tradução bangla. Entre os seis poetas apresentados, figuraram dois
poetas de Orpheu, nomeadamente Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Outra estratégia boa
para divulgar a literatura moderna de Portugal será comparar o movimento d’Orpheu com a revista
Kallol (palavra que significa «o som das vagas»), que foi publicada entre 1923 e 1935.

O porto que sonho é sombrio e pálido 


E esta paisagem é cheia de sol deste lado... 
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio 
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
(Fernando Pessoa, “Chuva oblíqua I”, 1914)

Ao fim do dia vem a noite


como o som de orvalho; a águia apaga o cheiro
do sol das suas asas
Quando se apagam as cores todas da terra então
se forja um manuscrito
de contos reluzentes com as cores de pirilampos;
Os pássaros todos voltam a casa - desaguam
os rios todos no mar - acabam os negócios todos
desta vida
Resta apenas a escuridão para ficar
frente a frente com Banalata Sen.
(Jibanananda Das, “Banalata Sen”, 1934)
580 100 Orpheu Rita Ray

Em janeiro de 1991 o primeiro curso livre de português teve o seu início em


Calcutá, ou Kolkata como agora a cidade se chama. Desde o início, ou mesmo antes
do início, o problema era o motivo para a aprendizagem dessa língua. Ainda faltavam
alguns anos antes da popularização dos call centres. O único motivo para aprender
uma língua estrangeira, pelo menos em Kolkata, era a cultura e a literatura que aquela
língua apresentava. Portanto, o português era «o idioma dos piratas», sem qualquer
valor cultural. As chamadas línguas cultas, e em consequência, muito procurados
entre os aprendizes de línguas estrangeiras, eram francês, alemão, russo e espanhol.
Não é de estranhar, então, que o curso de português tivesse atraído poucos alunos.
Era claro que, para mudar esta situação, seria preciso divulgar a literatura portuguesa
entre os bengalis. Tendo em conta a predileção dos bengalis para a poesia, traduzir a
poesia moderna portuguesa para o bangla pareceu ser o meio mais adequado. Com
este fim, uma antologia de poemas de seis poetas foi preparada e publicada em 1995.
Entre os seis figuraram dois poetas de Orpheu, nomeadamente Fernando Pessoa e
Mário de Sá-Carneiro. A antologia também incluiu uma pequena história crítica da
poesia moderna portuguesa com a ênfase sobre o papel de Orpheu como precursor do
modernismo na literatura portuguesa.
Passados quase 20 anos, a situação não é muito diferente. Embora o autor português
mais conhecido seja José Saramago, o nome de Pessoa ainda não é muito conhecido
no meio literário e académico de Calcutá, mas à parte disso os bengalis não sabem
nada mais da literatura portuguesa. Uma boa estratégia para mudar a situação seria,
talvez, comparar o movimento d’Orpheu com um semelhante movimento na literatura
bangla coevo. O caso adequado é o da revista Kallol («o som das vagas») que vigorou
entre 1923 e 1935. Este trabalho pretende mostrar as semelhanças e dissemelhanças
que os dois movimentos – o de Orpheu e o de Kallol – tinham entre si. Para este fim,
baseia-se no material já disponível sobre o primeiro.
O movimento de Kallol foi a primeira tentativa, na literatura bangla, de abraçar o
modernismo europeu e, como Orpheu, foi precursor do modernismo na literatura
bangla. Os poetas deste grupo, como os d’Orpheu, procuraram novas ideias artísticas
que pudessem representar melhor a sua realidade. No caso dos jovens portugueses
o motivo era «para irritar o burguês, para escandalizar» e para os jovens bengalis o
motivo era para fugir do humanismo de Rabindranath Tagore. Os autores portugueses
procuraram inspiração junto a vários «ismos» provenientes sobretudo da França e da
Itália. Os autores bengalis refugiram-se na filosofia de Friedrich Nietzsche e Karl Marx
e nas literaturas europeias, sobretudo no neo-realismo norueguês. Todavia o resultado
em ambos casos era o mesmo – conseguiram escandalizar o burguês. Contudo Kallol
teve mais sorte do que Orpheu. Apesar dos constrangimentos financeiros, conseguiu
ter uma publicação ininterrupta durante quase seis anos – ou seja, 70 números.
Os poetas do Orpheu em tradução bangla 581

Enquanto Orpheu nem chegou a ver o seu terceiro número publicado. Mas a verdade
é que as duas revistas estabeleceram a base do modernismo nas duas literaturas,
nomeadamente a bangla e a portuguesa respectivamente.
Como base, Orpheu não tinha nenhuma ideologia – pelo menos declarada. Luís
de Montalvor escreveu na «Introdução» de Orpheu: «Bem propriamente, Orpheu, é
um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento...»1.
Vamos primeiro examinar o início de Kallol. Tudo começou com a fundação, em
Kolkata, em 1921, do Four Arts Club (Clube de quarto artes, nomeadamente para a
literatura, a música, o artesanato e a pintura) para promover o modernismo nas artes.
O contexto da fundação deste clube era o das crises políticas e intergeracionais. O
movimento de não-cooperação de Gandhi estava em curso e, como consequência,
milhares de indianos que participaram neste movimento, foram encarcerados. No
ano seguinte, Kazi Nazrul Islam, o poeta rebelde muçulmano que tinha lutado na
Grande Guerra, foi preso por ter publicado literatura marxista. Para protestar, ele
iniciou uma greve da fome. Em resposta, o Four Arts Club deu o início à «revolta
vitalista» em literatura (SENGUPTA, A. K., 1950: 49). O clube fechou as portas em
1923. No mesmo ano, em abril, os fundadores do clube começaram a publicar a revista
literária Kallol, que começou por ser uma revista mensal de contos mas também
incluía crónicas, traduções, recensões e poemas. Kallol continuou a ser publicada até
janeiro de 1929 e veio a ser, eventualmente, o porta-voz da geração que nasceu no
finissecular Bengala e viu o mundo mudar radicalmente. Os dois directores da revista
eram dois jovens relativamente pobres – Gokul Chandra Nag (1895 – 1925) e Dinesh
Ranjan Das (1888 – 1941). Nag era um licenciado da Governmente Art College, que
já tinha publicado contos e estava na via de completar um romance. Durante o dia
trabalhava numa florista, que era o sítio de encontro para muitos jovens intelectuais
e literatos; também trabalhava como artista e ator na indústria novata de filmes. Por
seu turno, Das era empregado numa loja de objectos desportivos. O grupo que os
dois fundaram foi sujeito a vigilância, em 1924, pelo Calcutta Criminal Investigation
Department (departamento de Investigação Criminal). Todavia, a revista tinha uma
influência destacável sobre a vida intelectual bengali. Do movimento literário, a que
Kallol deu início, surgiram muitos escritores, sobretudo poetas, importantantes da
época pós-tagoreana. Entre eles são Jibananda Das (1899 – 1954), que é o maior vulto
na poesia bangla depois de Rabindranath Tagore, e Buddhadeb Bose (1908 – 1974),
poeta, romancista e teórico da literatura bangla muito importante a partir dos anos
trintas do século passado, que também fundou a sua própria editora Kavita Bhavan

1 Orpheu Nº 1, p. 5: http://www.gutenberg.org/files/23620/23620-8.txt
582 100 Orpheu Rita Ray

(expressão que significa «residência de poema») com o fim de publicar obras de poetas
jovens e pouco conhecidos. Foi ele que fundou, em 1956, o primeiro departamento da
literatura comparada da Índia, na Universidade de Jadavpur.
Kallol declarou-se como uma revista fundada por «alguns jovens» (koyjon yubak)
e eis a abertura do poema, escrito colectivamente pelos membros do conselho de
diretores: «Sou o som da vaga, apenas o som da onda, sem sono à deriva». A mudança
geracional era de uma imaginação imperial para uma imaginação internacional
(MANJAPRA, K., 2011: 339). Através desta mudança, a geração que nasceu entre o
fim do século XIX e o início do século XX procurou fugir da sombra de Rabindranath
Tagore, primeiro Nobel na literatura da Ásia, bem como encontrar um caminho para
uma «radical revolta intelectual» (id.: 339) contra o reino britânico. Para os de Kallol,
o entusiasmo pela literatura estrangeira significava um lugar para experimentações
artísticas além do quadro imperial. Os jovens carentes de Kallol não dispunham de
meios para viajar além-mar mas havia amigos e parentes no estrangeiro que lhes
enviaram livros, relatos e cartas. Foi através desses que a geração dos jovens escritores
de Kallol ganharam acesso à literatura e ao pensamento modernistas para além do
currículo ensino colonial dos colonizadores ingleses. Talvez o mais significativo
destes contactos tenha sido o indólogo Kalidas Nag (1891 - ?), irmão mais velho de
Gokul Chandra Nag, que naquela altura estava a preparar a sua tese de doutoramento
sob a orientação de Sylvain Lévi em Paris. Com a sua ajuda, os dois directores de
Kallol entraram em contacto com Lévi e Romain Rolland. Kalidas traduziu partes
do romance experimental de Romain Rolland, Jean Christophe, do francês para o
bangla e a tradução foi publicada em Kallol. Coincidentemente, na mesma altura,
algumas livrarias mais frequentadas da cidade começaram a importar traduções da
literatura mundial. Por esta conjuntura de razões durante os seis anos em que Kallol
apareceu, houve ensaios e traduções dedicados a pelo menos 31 artistas modernos
do estrangeiro, a maioria deles de nações europeias ou pequenas ou derrotadas na
Grande Guerra, bem como da Rússia e do Japão. Apenas três eram britânicos. Esta
seleção era em forte contraste com o cânone literário da educação colonial britânica
que dava ênfase sobre Shakespeare, Milton, Wordsworth, Keats, Shelley, Browning,
Tennyson e Shaw no nível universitário (id.: 345). Além da avaliação e da crítica,
Kallol também se estabeleceu como um meio de tradução da literatura moderna do
mundo para o bangla. A secção “Correio” (Dakghar) proclamou em 1926: «A tradução
bengali está activa. Ela faz revelar algo novo no original2.» O desenvolvimento de uma
colecção da literatura mundial em tradução bangla permitiria eventualmente uma

2 «Dakghar», Kallol, 1926, 560 apud Manjapra, K., 2011: 348.


Os poetas do Orpheu em tradução bangla 583

ligação direta com o mundo exterior, dando cabo à necessidade do inglês como a
língua intermediária. A indústria bangla de tradução literária atingiu o seu apogeu
nos anos 20 do século XX e foi nesta época que a ênfase sobre traduções fiéis ao
contrário a adaptações se tornou mais comum.
Juntamente com a publicação de traduções da literatura mundial, Kallol fomentou
as tentativas de prosas e poemas experimentais por parte de jovens escritores bengalis.
Estes escritores mostraram uma disponibilidade para se rebelarem na literatura
e para transgredir a divisão presumível entre géneros e culturas bem como uma
abertura a novas tendências na estética e no valor. Como já foi dito acima, quase
todos os escritores importantes da época pós-tagoreana começaram a sua carreira
em Kallol. Além de Buddhadeb Bose e Jibananda Das, que já foram mencionados,
outros eram Kazi Nazrul Islam (1899 – 1976), Premendra Mitra (1904 – 1988) e
Achintya Kumar Sengupta (1903 – 1976). A publicação de Kallol deu origem a furor
e escândalo e a razão principal era a preocupação dos jovens escritores com sexo e
as relações interpessoais de homens e mulheres. A leitura das obras de Freud e Jung
contribuíram de uma maneira destacável para esta preocupação. Mais tarde, um dos
romances de Buddhadeb Bose, Rat bhore brishti (Chuva ao longo da noite), chegou a
ser proibido, em 1967, por motivos de obscenidade e em 1927 Jibananda Das perdeu o
seu emprego como professor de inglês numa das faculdades de Kolkata por ter usado
uma palavra obscena num dos seus poemas. Mas foi Jibananda que veio a ser a maior
figura na poesia pós-tagoreana bangla com a sua própria dicção, ritmo e vocabulário.
Faleceu em 1954, com 55 anos, atropelado por um elétrico. Durante a sua vida viu a
publicação de cinco livros de poemas mas, como Pessoa, deixou uma arca cheia de
mais poemas e sobretudo obras em prosa – romances e contos que não chegou a
publicar durante a vida.
Como no caso de Orpheu, havia outras revistas literárias que seguiram Kallol –
Uttara  (1925), Pragati  (1926),  Kalikalam  (1926) e  Purbasha  (1932). Mas nenhuma
delas conseguiram ter um êxito tão duradouro como o de Kallol. Dinesh Ranjan
Das, que sozinho continuou a publicar esta revista mensalmente sem qualquer apoio
depois da morte precoce de Gokul Chandra Nag em 1925, viu-se obrigado a parar
depois de ter contraído uma enorme dívida.
Vejamos agora como se pode comparar Orpheu com Kallol, começando pela
situação socio-política de cada país. Portugal descartou a monarquia e tornou-se
numa república em outubro de 1910, isto é, exatamente quatro anos e seis meses antes
da publicação do número inaugural da revista que ia ser o prenúncio do primeiro
modernismo português. Portanto, o espírito geral do país era uma exaltação, um
fervor, uma esperança que a promessa de um futuro radioso fosse cumprida. Em
Bengala, que naquela altura fazia parte na íntegra da Índia, a situação era justamente
584 100 Orpheu Rita Ray

oposta: em 1857, após a primeira guerra da independência indiana que falhou, o


país passou a fazer parte do Império Britânico de Rainha Vitória. Antes disso foi
governado pela East India Company, com capital em Kolkata. Portanto, Kolkata era a
sede da cultura e da educação. A raison-d’être do ensino britânico na Índia era criar
escrivões. Porém, esta intenção por parte dos colonizadores virou-se contra eles.
Os membros das classes média e alta, armados com a edução inglesa, começaram
a reclamar pela independência. Foi neste cenário que em 1905 Bengala foi dividida
em base da religião – oeste onde os hindus eram a maioria e leste que ficou para
os muçulmanos. A divisão seguia aproximadamente a mesma linha que hoje divide
West Bengal do Bangladesh. O motivo de Lord Curzon era reprimir o movimento
nascente da independência bem como aplicar a velha política de dividir para reinar.
Como era de esperar, havia um grande furor contra esta divisão que deu origem ao
movimento de Swadeshi (que quer dizer “da pátria própria”), englobando o boicote
das mercadorias da origem britânica. Não foram apenas os políticos mas também a
massa que participaram no Swadeshi. Em 1911, a divisão de Bengala foi revogada mas
a capital do país foi mudada de Kolkata para Delhi. Três anos mais tarde eclodiu a
primeira Grande Guerra em que mais de um milhão de soldados e obreiros indianos
serviram na Europa, na África e no Médio Oriente, tendo 62.000 morrido e outros
67.000 ficado feridos. Havia uma solidariedade com a nação colonizadora por parte
dos políticos. Quando a Guerra acabou havia a expectativa de uma recompensa
em forma da concessão de autonomia ao país. Porém, tal expectativa foi renegada.
Começou, então, nos anos vinte, a fase final da luta indiana pela independência. Era
desse pano de fundo em que apareceu Kallol e, como foi já dito acima, a leitura e a
aproximação da literatura mundial refletia essa aspiração independentista por parte
dos jovens escritores bengalis.
Por outro lado, o que Fernando Pessoa e os seus companheiros de Orpheu queriam
era que a cena literária e artística ficassem a par da do resto da Europa. Neste caso,
também, com o de Kallol, as tendências vindas do estrangeiro desempenharam
um grande papel. Foi Mário de Sá-Carneiro, que se radicou em Paris para estudar
direito na Sorbonne, que mantinha Pessoa a par das novas tendências. Além disso, o
regresso dos intelectuais emigrados por causa da primeira Grande Guerra traduzia na
introdução de novas ideias de vanguarda surgidas no resto da Europa. Entre elas as
mais relevantes para o orphismo era as do cubismo e futurismo (Ordoñez, A., 1994
apud BARRETO, E. J. P. F., 2004: 63). Como o próprio Pessoa disse: «Simbolismo
Francês, Transcendentalismo Panteísta Português e a miríade de coisas contraditórias
e sem sentido das quais o futurismo, cubismo e similares são expressões» (BARRETO,
E. J. P. F., 2004: 64). A geração de Orpheu, tal como a de Kallol, estava à procura da
própria voz. No caso bengali, a luta era para sair da sombra de Tagore; no caso
Os poetas do Orpheu em tradução bangla 585

português, não havia nenhuma luta mas uma tentativa para a síntese. Conforme
Eduardo José Paz Ferreira Barreto:

Paradigma da modernidade portuguesa, Fernando Pessoa continua a senda das correntes


literárias anteriores, através da adaptação de seus conceitos às novas tendências. Segundo
ele, as “mais altas correntes literárias” seriam aquelas que intentassem “sintetizar as correntes
passadas e acrescentar-lhes qualquer elemento, isto é, sintetiza-las através de um critério
novo, de uma nova visão das coisas3”4.

Portanto, o que Orpheu, e as revistas que lhe sucederam, nomeadamente Centauro,


Exílio e Ícaro, Portugal Futurista, Contemporânea e Athena tencionaram fazer era
realizar assimilação para dar origem a um vanguardismo nas letras e artes de Portugal.
E nisso é que a sua meta coincidiram a com de Kallol, Kalikalam e Pragati.

Bibliografia

Este trabalho deve muito a um ensaio e uma tese de doutoramento, nomeadamente:


BARRETO, Eduardo José Paz Ferreira (2004). Fernando Pessoa e Orpheu: Mitos
da modernidade – Gênese do Real Através da Poesia. Rio de Janeiro: Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
MANJAPRA, Kris (2011). «From Imperial to International Horizons: A
Hermeneutic Study of Bengali Modernism». In Modern Intellectual History,
8, pp 327-359 doi:10.1017/S1479244311000217

Outros:
GHOSH, Tapobrata (1995). «Literature and Literary Life in Calcutta: The Age of
Rabindranath». In: CHAUDHURI, Sukanta (org.). Calcutta, The Living City,
Vol II. Kolkata: Oxford University Press, pp. 229–230.
SENGUPTA, Acintya Kumar (1950). Kalloler Yug: Kolkata.
SINGHA RAY, Jibendra (2008). Kalloler Kal: Kolkata: Dey’s Publishing (1973).

3 PESSOA, Fernando. Obras em prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1993. P. 352 apud BARRETO, E. J. P. F.,
2004.
4 BARRETO, E. J. P. F., 2004: 75.
Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán1

Rosario Mascato Rey


GIVIUS – Universidade de Santiago de Compostela

Palavras-chave: Pessoa; Valle-Inclán; Atlantismo; Celtismo; Iberismo; História cisatlântica.


Resumo: Consciente dos reptos a que se enfronta sua terra natal, a Galiza, o atlantismo constitui
um dos eixos sobre os quais Ramón del Valle-Inclán interpreta que deve girar o futuro da
mesma, especialmente no que diz respeito à inclusão identitária da Galiza na comunidade,
tradição e história da Lusitânia. O atlantismo, presente também na teoria estética e identitária
doutros autores galegos como Vicente Risco ou Ramón Otero Pedrayo, adquire em Valle-Inclán
traços diferenciais, que o achegam em maior medida à interpretação do fenómeno proposta
por Fernando Pessoa. Entre os papeis deste último, atopam-se uns rascunhos, datados por
volta de 1913, em que o poeta português anota um projeto de tratado sobre o conceito. No
caso do dramaturgo galego, são várias as declarações nessas mesmas datas em que afirma o
seu interesse por uma ideia que tem para ele três funções básicas: achegar a Galiza do seu
espaço identitário e cultural natural (a Lusitânia); habilitar a Espanha como vínculo entre a
civilização greco-latina e a América; e, finalmente, contribuir para a pesquisa doutras novas
latitudes linguísticas, com a incorporação ao seu imaginário verbal, lendário e mitológico da
tradição indígena latino-americana.

Ramón del Valle-Inclán foi enquadrado pela crítica na geração literária partilhada
por Unamuno, Baroja ou Machado, representando entre eles um dos máximos
paradigmas da modernidade literária não apenas hispânica, mas também europeia.
Para além da sua profissão como escritor, desenvolveu ao longo da sua vida todo
tipo de atividades que manifestam a sua vontade de intervenção na sociedade e na
cultura do seu tempo: literato de prestígio, eloquente orador, colaborou intensamente
em jornais e revistas, desde as quais podemos fazer o acompanhamento da sua
trajetória, durante a qual desempenhou roles de jornalista, conferencista, crítico de
pintura, correspondente de guerra na frente franco-germana, Catedrático de Estética,

1 O presente trabalho faz parte das atividades de investigação desenvolvidas pela autora no seio do Grupo de
Investigación Valle-Inclán da USC e no quadro dos seguintes programas financiados pela Junta da Galiza:
Consolidación e Estruturación de Unidades de Investigación Competitivas (GPC2014/039) e Apoio á Etapa
Posdoutoral, do Plan Galego de Investigación, Innovación e Crecemento 2011-2015 (Plan I2C).
588 100 Orpheu Rosario Mascato Rey

Conservador do Património Artístico Nacional ou Diretor da Academia Española de


Bellas Artes em Roma.
O impacto internacional da sua figura tem-se analisado em relação às várias
correntes artísticas vigentes no momento, na procura de homologias vitais com
outros significativos artistas e literatos europeus e americanos, com os quais partilha
(conscientemente ou não) elementos ideológicos, estéticos e até vitais, derivados
precisamente do paralelismo das circunstâncias históricas que demarcam a trajetória
de todos eles. Assim, o nome de Valle-Inclán tem vindo a engrossar a nómina dos
Yeats, Joyce, Maeterlinck, D´Annunzio..., entre muitos outros, pelo que ao carater
inovador da sua proposta artística no âmbito literário diz respeito, mas também no
que tem a ver com os seus posicionamentos públicos relativos a questões políticas,
sociais e humanitárias, nomeadamente a partir da I Guerra Mundial, na sua faceta
(ainda por descobrir) de intelectual comprometido (Juan Bolufer, A, 2012).
É precisamente esta olhada internacional, comprometida, política e interventiva
a que pretendemos desvendar aqui em relação ao conceito que dá título ao nosso
trabalho; à procura, neste caso, das homologias existentes entre o seu ideário e o do
poeta Fernando Pessoa.
Para isto achamos de interesse recuperar aqui algumas das ferramentas terminológicas
que nos últimos anos se têm desenvolvido no campo científico da história, particularmente
no que tem a ver com a denominada institucionalização e conceitualização duma «histórica
atlântica» destinada a complementar as histórias nacionais, em processo de revisão. Neste
sentido, podem ser estabelecidas múltiplas subdivisões neste alargado conceito (história
do Atlântico Norte, história do Atlântico Sul, Atlântico branco, Atlântico preto, Atlântico
vermelho, ou mesmo, nos últimos tempos, multicor; anglófono, hispanófono, lusófono),
mas, acompanhando David Armitage, entendemos de maior utilidade uma taxonomia
adicional, de maior envergadura, que permita superar as diferenças evidentemente
nacionais, raciais ou linguísticas características dessas outras classificações. Assim,
Armitage prefere falar em três conceitos, que também não são excluintes nem fechados:
a história circum-atlântica (transnacional); a história transatlântica (internacional);
e a história cisatlântica (nacional ou regional em contexto atlântico). A primeira das
opções permite-nos pensar no vasto oceano como uma «zona identificable de cambio
e intercambio, circulación y transmisión» (Armitage, D., 2004: 13); a segunda, conta
a história do mundo atlântico «a través de comparaciones» e «asume la existencia de
naciones y estados [...] localizadas a lo largo del borde atlântico» (id.: 17); a terceira,
que é a que nos interessa destacar para o nosso estudo: «estudia lugares concretos como
localizaciones específicas dentro del mundo atlántico y trata de definir esa singularidad
como el resultado de la interacción entre la especificidad local y una red de conexiones (y
comparaciones) más amplia» (id.: 20).
Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán 589

É, por tanto, a «historia de un lugar cualquiera [...] puesto en relación con el mundo
atlántico en que se encuentra» (id.: 21). Para nós, portanto, trata-se aqui de falar da
historia de Portugal, da Galiza, da Ibéria, tal como concebida por Pessoa e Valle-Inclán
em relação com o mundo atlântico, deixando à margem (talvez para um outro estudo), a
análise referida ao relacionamento de ambos os autores com um mundo atlântico outro
que o de origem, ou o estudo comparado das suas visões deste atlantismo com aquelas
doutros autores (como é o caso de Walt Whitman; SANTOS, I. R., 2004).
E isto é assim porque, tal como explicamos abaixo, entendemos que tanto Pessoa
como Valle-Inclán se referenciam para a sua visão do Atlântico e do atlantismo nas
mesmas coordenadas geográfico-identitárias, que podemos referenciar nos conceitos
da Lusitânia e Ibéria, fulcrais em ambos os seus ideários, mas com matizes divergentes
no seu desenvolvimento poético.
Ainda que o escritor galego fosse vinte e dois anos maior do que o português,
ambos têm entre si interessantes coincidências que convém pôr de relevo, quando
menos sumariamente. Para além do facto de terem falecido com apenas um mês de
diferença, a sua obra é claramente devedora dos princípios do misticismo, esoterismo
e teosofia de entresséculos; em muitos aspetos, os seus escritos fazem-se eco das teses
da filosofia intuicionista do francês Henri Bergson; do ponto de vista poético
Valle-Inclán partilha a problemática identitária pessoana, que no seu caso se
manifesta tanto na criação de máscaras poéticas como na inventio da personagem
do Marqués de Bradomín – sempre considerado como alter ego ficcional do autor –.
Da mesma maneira, é impossível entender a trajetória literária de ambos os dois sem
as suas intervenções no mundo da imprensa, fonte inesgotável de recursos para o
estudo da sua ideologia e obra; a que devemos somar ainda a descoberta dum grosso
legado manuscrito em que se reúnem papeis de tipo pessoal, reflexões e anotações
ao lado de obra inédita, ainda pendente, em ambos os casos, de arrumação e análise
pormenorizada -apesar de algumas chaves terem sido já esboçadas2.
Mas estes paralelismos também se estendem à sua própria experiência do Atlântico
como viajeiros, se bem em eixos diferenciados. Pessoa, pela sua parte, no seu trânsito
infanto-juvenil de norte para sul; Valle-Inclán, entre as margens este-oeste. Assim, se em
Pessoa só podemos falar em duas grandes viagens oceânicas, para Valle-Inclán serão três.
O poeta luso irá para África do Sul, particularmente, para a cidade de Durban:
a primeira viagem com ida (pela Madeira) em 1896 e regresso em 1901 (com
paragens em Lourenço Marques, Zanzíbar, Dar-es-Salaam, Port Said e Nápoles,
que deixaram especial pegada na obra de Álvaro de Campos); a segunda, de 1902

2 Para o caso de Ramón del Valle-Inclán, veja-se Santos Zas, M., 2013a.
590 100 Orpheu Rosario Mascato Rey

(via Las Palmas de Gran Canaria) em 19053. Daí em diante, a crítica especula com
hipotéticas, e em qualquer caso breves, fugidas a Portalegre, o Algarve, Évora ou
Alcobaça, e eventuais visitas a Sintra, Cascais ou Estoril; às quais deverá ser somada
ainda a manifesta possibilidade de viajar à Inglaterra, nunca realizada. Enfim, um
Pessoa urbanista, pegado à Baixa lisboeta (Taibo, C., 2010: 183-194), e escassamente
interessado noutra viagem que não seja, em palavras de Bernardo Soares, uma
«circum-navegação»: aquela «que tem por fim voltar ao mesmo sítio» (PESSOA, F.,
2003: 360), especialmente num sentido subjetivo, interior.
Valle-Inclán, por sua parte, atravessou o Atlântico até em três ocasiões, em que
conseguiu visitar a maior parte dos países americanos: o México, onde permanece entre
abril de 1892 e março de 1893 (García-Velasco, J., 2000); Argentina, Uruguay,
Paraguay e o Chile na segunda delas, de abril a novembro de 1910, como assessor
artístico da Compañía Teatral de María Guerrero e Fernando Mendoza (Garlitz,
V. M., 2000); e, em 1921, México (outra vez, entre setembro e novembro; Schneider,
2000), Cuba (Santos Zas, M., 2001) e Estados Unidos (Juan Bolufer, A.,
2008), na viagem de regresso. Mas, a diferença de Pessoa, Valle-Inclán foi viageiro
incansável, e também teve oportunidade de visitar a França (e particularmente a
fronte de guerra franco-germana) em 1916, ou a Itália de Mussolini entre 1933 e 1935,
datas em que exerceu, como já dissemos, de Diretor da Academia de Bellas Artes da
España em Roma. Em qualquer caso, o percurso atlântico foi determinante desde
época recente na sua conceção do mundo e da literatura, em que a visão americana
teve especial impacte, muito particularmente na redação de dois dos seus textos mais
conhecidos:   A Sonata de Estío (1903) e Tirano Banderas. Novela de tierra caliente
(1927). Mas não se limitou esta experiência ao puramente literário. Também teve eco
na conceção do que denominará a «civilización atlántica», que em 1916 definia da
seguinte maneira:

Nuestra civilización recogió en Grecia toda la fuerza primitiva de la India; el Mediterráneo


fue el mar civilizado de Roma, hasta que España heredera de ese pasado greco-latino fundó
la civilización atlántica con el descubrimiento de América. La civilización atlántica tiene su
punto de apogeo en el esplendor de Inglaterra, nueva Jano que domina con su mirada la
magnificencia de dos mundos. Inglaterra perecerá como perecieron los imperios de Grecia
y Roma y España, porque una vez conseguido el fin para que vivieron, su materia muere
y queda el perfume imperecedero e imborrable de su espíritu. Inglaterra perecerá; pero
nunca a manos de Alemania, sino fatalmente a manos de los Estados Unidos de América,

3 A estas podemos ainda acrescentar duas breves estadias do poeta no Algarve (a finais de 1901) e
na Ilha Terceira dos Açores (em Maio de 1902) (Taibo, C., 2010: 179-183).
Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán 591

que están en la ruta del sol. Y una nueva aurora se encenderá en el Japón al ocaso del sol
americano, y entretanto florecerá la civilización del mar Pacífico... (apud Dougherty,
D., 1983: 79; itálicos nossos)4

Esta ideia valleinclaniana é devedora da adscrição do escritor, especialmente a


partir destas datas, à corrente classicista que impera na Europa a partir da I Guerra
Mundial sob a liderança dos académicos e intelectuais franceses (Hanna, M., 1996).
Visa-se a recuperação das raízes greco-latinas do continente com a finalidade de
construir uma alternativa ao barbarismo germânico. Valle-Inclán, testemunha
de exceção durante a sua visita à fronte de guerra franco-alemã nesse ano (como
documenta Santos Zas, M., 2008 e 2013b), não faz mais do que aplicar à sua
teorização estética e identitária os parâmetros da filosofia do espírito de tradição
greco-latina, dominante entre as forças aliadas do momento. E, da mesma maneira,
começará a partir deste momento a gestação da sua conceção da Ibéria românica,
com a que acabaria por questionar a ideia da hegemonia espanhola sobre o Atlântico,
na procura dessa «civilización máxima», a que em datas próximas se referia Pessoa.
De facto, grande parte desta composição, dessa civilização atlântica valleinclaniana,
parece estar recolhida também nas notas que o poeta luso elabora para o seu projeto
de Manifesto do Atlantismo, por volta de 1913:

O ATLANTISMO
Hegemonia Ibérica.
A concepção atlântica da vida.
O imperialismo espiritual.
Germanofilia de alma, anglofilia de corpo.
(Admiremos os construtivos, os criadores, ainda que seja de coisas inferiores; não os
ponhamos ao nível dos meros arrastadores da vida pelo acaso dos acasos!)
Inutilidade e malefício das nossas colónias.
Sebastianismo.
Expansão atlântica — Ibéria, Irlanda, Ultramar americano.
(Esta concepção, presente já, por uma intuição nocturna, no alto espírito atlântico do Walt
Whitman.) Atlantismo da Raça.
(Foi pelo Atlântico que fomos à procura da glória, à criação da Civilização Maior. É pelo
Atlântico, mas em alma e espiritualização, que devemos ir em demanda da Civilização
máxima!)

4 Para as citações de textos dos anos vinte e trinta, respeitamos a disposição ortográfica e puntuação das edições
utilizadas.
592 100 Orpheu Rosario Mascato Rey

Absorção artística.
Misticismo.
Roma, Londres, Paris — os inimigos.
Anticatolicismo, anticristianismo.
Repaganização — paganismo transcendental.
Antidemocratismo, individualismo aristocrático.
[Somos contra Roma, porque Roma veio destruir no paganismo a visão lúcida da vida.
Somos contra Inglaterra, porque Inglaterra veio destruir, [...]. Somos contra França, porque
a França veio, com o seu democratismo e o seu liberalismo plebeu, destruir os restos de
paganismo que havia entre nós.]
Sensacionismo (e Interseccionismo) (Pessoa, F., 1979: 76; itálicos nossos)

Pessoa e Valle-Inclán reconhecem a importância da civilização clássica como


geradora dessa outra civilização de futuro, num continuum que se estende do
Mediterrâneo ao Atlântico. Mas em quanto Valle-Inclán assume franceses e ingleses
como depositários dessa mesma civilização, e ignora por completo a barbárie
germana derivada do conflito bélico, Pessoa admira o imperialismo espiritual próprio
da Alemanha desses anos.
Observa-se que, enquanto Valle-Inclán desenvolve uma uchronia de caráter
universalista, que passa pelo desenvolvimento da civilização atlântica e a sua extensão
no Pacífico, como mecanismo que permita encerrar o círculo da história greco-latina,
Pessoa vai desenvolver a ideia do sebastianismo e a relação com as colónias como um mito
messiânico que visa reforçar a identidade portuguesa, cuja plasmação mais significativa
é o poemário Mensagem, editado em 1934: este é o texto onde melhor se reflete o revival
mítico do Quinto Império, desaparecido em termos materiais, mas latejante na alma
poética da voz lírica, que assume − assinala Ramalho Santos − a ideia da viagem como
parte da consciência da modernidade, particularmente articulada através de uma
procura utópica em que se misturam elementos da tradição hermética e do misticismo
religioso (2004: 103), às que caberia acrescentar − em nossa opinião − rasgos claros
da filosofia intuicionista de entresséculos. Walt Whitman é, neste sentido, o referente
poético de Mensagem, em opinião de Ramalho Santos, dado que, como explicitamente
assinala Pessoa no seu projeto de manifesto, ele é o poeta da «raça atlântica».
Mas, esse império espiritual português, que também o é da língua e da literatura
portuguesas, está ancorado, porém, em duas tradições históricas complementares
entre si, que neste caso apenas têm sido exploradas e que achegam Pessoa à conceção
proposta, por uma parte, pelo próprio Ramón del Valle-Inclán e, por outra, pelo
galeguismo histórico: o iberismo -de corte atlântico- e o celtismo, cifrados no seu
manifesto de 1913 nos nomes da Ibéria e a Irlanda.
Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán 593

Escreve Pessoa nas suas notas políticas:

... Spain, far from being a unified country, is not even, in the proper sense of the word,
a country at all. It is, at the least, four countries -what is generally called `Spain´ within
Spain (that is to say, Castile and the other provinces where Spanish is the language, though
highly dialectal in some of them), Catalonia, the Basque provinces and Galicia. In two cases
-Catalan and Basque- the language diverge more from Spanish than does Portuguese, which
anyone who reads Spanish can read without learning it, whereas that does not apply to
the other two cases; in the third case, Galician, the differences are almost the same as with
Portuguese, Galician being, as a matter of fact, an undeveloped Portuguese (Pessoa, F.,
2015: 153).

Esta mesma ideia está presente em Valle-Inclán, desde 1908, em que começa
a escrever os seus artigos sobre pintura. Neles esboça a sua teoria da existência de
quatro geografias e sensibilidades diferentes na Península Ibérica, originadas durante
o processo de romanização: a Cantábrica, a Bética, a Tarraconense e a Lusitânia. Esta
teoria estética chegou ao ponto da sua máxima elaboração nos anos 30, em que adquire
definitivos matizes políticos, até ao ponto de reclamar o status de Estado para a ditas
regiões ibéricas, tal como assinalava em conversa com António Ferro, publicada no
Diário de Notícias:

Assusta-o a ideia duma republica federal? Pois, muito bem... Há outra finalidade, a
fragmentação da península em quatro países completamente opostos, sem ligações políticas,
com uma indenpendencia igual à que têm hoje, Portugal e Espanha. Regressemos ao golpe
de vista dos romanos que viram a Peninsula, geograficamente, como ela deve ser vista. As
grandes linhas da Peninsula romana, com menos divisões, com mais síntese: a Cantabria, a
Lusitania, a Tarraconense e a Bética. A Cantabria, toda a zona do ferro compreendida entre
o Cabo Finisterre e os limites das Vascongadas. Capital: Bilbao, unica cidade viva da cabeça
de Espanha. A Tarraconense, toda a região mediterrânea. Capital: Barcelona... A Bética, a
região africana da Espanha, com a sua fisionomia propria, inconfundível. Capital: Sevilha.
Lusitania seria todo o Portugal e quase toda a Galiza, Vigo, Pontevedra, Orense, até Lugo,
todo esse caminho dos rios suaves e líricos da Península, dos rios-poetas... Capital: Lisboa, a
cidade atlántica da Península. A fragmentação não agradaria a Portugal? (apud Mascato
REY, R., 2013a: 77-78)

Contudo, esta consideração da Galiza como parte da geografia lusitânica, e


portanto, subsumida nessa capitalidade atlântica de Lisboa, não foi a única projeção
que Valle-Inclán desenvolveu da ideia do atlantismo galego-português, já que durante
594 100 Orpheu Rosario Mascato Rey

parte da sua trajetória também optou pela posta em valor doutro dos elementos de
repertório definitórios da identidade galega com respeito a essa visão atlântica da
vida: o celtismo.
Em 1921, durante a sua viagem a Nova Iorque, Valle-Inclán é entrevistado para o
jornal The New York Evening Post, e interpelado pelas suas origens, comenta:

You must know, said Don Ramón, that Spanish Galicia, where I was born, is pure Celtic, quite
as much as Ireland. Many of the place names are Irish: my own means simply «of the Valley
Clan». [...] There are the same superstitions, the same awe and reverence for natural forces.
All through my childhood the servants told me Celtic stories [...]. The Galician character has
all the Irish traits. The land abounds in Druid monuments. (Storm, M., 1921: 11)

Não era esta a primeira vez que Ramón del Valle-Inclán recorria à ideia do
celtismo como elemento mito fundacional da galeguidade. Provavelmente o melhor
dos exemplos seja o seu poema «Del Celta es la victoria», dedicado ao violinista
galego Manuel Quiroga Losada só três anos antes, em 19185. Este poema constitui
um dos melhores exemplos da vontade do escritor por construir uma imagem da
Galiza atlântica, alheia à tradição mediterrânea fundacional da nacionalidade
espanhola (Mascato REY, R., 2013b: 278). E, neste sentido, Valle-Inclán coincide
no seu discurso com autores fulcrais do nacionalismo galeguista da altura, como
Vicente Risco, Otero Pedrayo ou Daniel Rodríguez Castelao6. Todos estes produtores
integram o Grupo Nós e promovem a revista do mesmo nome7, desde a qual tratavam,
em essência, de recuperar para a Galiza a mesma capacidade de autoafirmação que
Pessoa procurava no Sebastianismo e no Quinto Império, com umas possibilidades
de realização que, mais cedo que tarde, se mostraram igualmente utópicas, mas em
que os membros de Nós se reafirmavam no primeiro número da publicação, em 1920:

5 O texto, do qual se conserva um exemplar manuscrito entre o arquivo do músico depositado no Museu de
Ponte-Vedra, foi posteriormente editado pelo escritor nos seus poemários El Pasajero (1920) e Claves Líricas
(1930), sob o título «Rosa matinal». Para uma transcrição dele, acompanhada do correspondente estudo,
veja-se Mascato REY, R., 2013b: 278-281).
6 Sobre a ideia de atlantismo neste último, veja-se o trabalho de Domínguez (2014), que igualmente recorre à
taxonomia da Armitage.
7 Isabel García Piqueras resume os dois processos essenciais para a construção identitária galega durante o
primeiro terço do século XX: duma parte, o enxebrismo e, doutra, a europeização. Isto é, a combinatória
da capacidade de criação especificamente galega (determinada pela arqueologia, o folklore ou a etnografia
do país) com a superação do isolamento da Galiza, através da sua vinculação direta com outras culturas
europeias, particularmente aquelas de substrato céltico (1997: 144). Para a historiografia da articulação da
identidade galega em volta do conceito de celtismo -em grande parte construído por Manuel Murguía-,
remetemos aqui tanto para a Historia de Galicia, do professor Ramón Villares, como para o artigo do mesmo
autor especificamente referido a este assunto (Villares, R., 2001).
Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán 595

É a ansia qu´oxe sinte Galizia de vivir de novo, de voltar ó seu ser verdadeiro e inmorrente,
a evidencia lumiosa do mañán, o que nos fai sair (...). Os colaboradores de Nós poden ser o
que lles pete (...) con tal de que se poñan por riba de todo o sentimento da Terra e da Raza,
o desexo coleitivo de superación, a orgulosa satifaición de seren galegos (Nós, 1920: 1)

Este atlantismo do nacionalismo galego entende que a Galiza e Portugal são duas
terras com uma história, língua e tradições em comum, sobre o qual construir essa
nova civilização, cujo referente de oposição é o mediterraneismo representado, como
bem assinalava o poeta português, por Castela e os seus territórios adjacentes:

A misión histórica de Galiza e Portugal é de opoñer ao mediterraneísmo, o atlantismo:


fórmula da era futura. Tras de nós, España enteira ata agora infestada de mediterraneísmo,
co seu século de ouro, co seu conceptismo especioso, coa súa faramallosa retórica, coa súa
énfase grandilocuente, incorpórase toda ela á civilización atlántica (Risco, V., 1994: 45).

Ora, sobretudo, o atlantismo de Nós passava pela reivindicação da filiação com


esses outros territórios europeus de origem celta: a Bretanha francesa, a Normandia,
e, de maneira preferencial, a Irlanda, que representava a consecução dos objetivos
políticos pretendidos pelos nacionalistas galegos. Assim fica estabelecido no artigo
«Os poetas atlánticos», assinado por Ramón Otero Pedrayo em 1925:

Poetas bretóns, normandos, flamengos, vascos, gaélicos, ingreses, irlandeses, poetas que
en francés, en inglés, en céltigo, en tantos idiomas ampriamente espallados pol-o mundo
ou homildemente apegados á terra da patria, gerdades (sic) um ecoar salgado do Atlántico,
todos sodes -ás veces sen querelo- fillos da grande raza espiritual dos Fisterres, da raza
cósmica y eterna, da úneca que garda un ollar sinxelo e creador baixo as mais difrentes
e compretas culturas. Portugal e Galiza ven en vós bardos irmaus dos seus. Por isso
adicámoslles estas lembranzas imperfeitas e probes, mais cheas de simpatía que nasce da
comunidade espiritual que xunta ós que miramos a diaria morte do sol no hourizonte
mistereoso do Océano oucidental (Otero Pedrayo, R., 1925: 2).

Retomando Valle-Inclán, convém esclarecer que, a partir de 1921, ele estabelece


nas suas declarações uma dicotomia clara entre romanização e celtismo, dando ao
primeiro elemento uma potencialidade de reafirmação identitária de carácter mais
universalista, sobretudo porque percebe o classicismo greco-latino como uma fonte
carregada de autoridade histórica, en quanto o celtismo, apesar de se ter convertido
num dos eixos sobre os quais se fundamenta parte do desenvolvimento da modernidade
europeia (Antliff, M., 1992; Castle, G., 2001), carece de tradição e de veracidade.
596 100 Orpheu Rosario Mascato Rey

Assim, em 1925, não hesitaria em negar a utilidade da tese celtista para o desenvolvimento
da Galiza, como confessa ao redator do jornal viguês El Pueblo Gallego:

Don Ramón rechaza el celtismo y todas sus pretensiones literarias que pretenden desplazar
nuestro espíritu situándolo en un ambiente exótico. Para el gran amigo de Casanova, la
raza es la lengua. Somos romanos, más romanos que ninguno de los otros hombres de
Iberia, no por más romanizados, sino por menos desromanizados. Por no haber sentido
la influencia de diversas inmigraciones como otros pueblos después de la romanización
(apud Valle-Inclán, J. J., 1995: 272-273)

Estas últimas palavras valleinclanianas refletem, em último termo, o mesmo


propósito que Pessoa apontava no texto, muito citado, de Bernardo Soares: «A minha
pátria é a língua portuguesa».
Em frente ao celtismo, Valle contrapõe portanto um atlantismo, que longe de
ser entendido como referente de analogia, pensando en países como a Irlanda ou
a Bretanha, deve ser interpretado nessa chave latina dominante na Europa a partir
da Grande Guerra, e, para o caso particular da Península Ibérica, o escritor galego
propõe a Lusitânia e a língua portuguesa ou «latín galaico» (Mascato REY, R.,
2013a: 53-58) como referente de reintegração da Galiza. Um referente, insistimos, no
qual não é menor a «capitalidade atlántica» de Lisboa.
O facto desta proposta iberista ser partilhada no campo cultural espanhol por autores
como Juan Valera ou Miguel de Unamuno, todos eles devedores por outra parte do
historiador português Oliveira Martins, debilita o posicionamento de Valle-Inclán no
campo literário galeguista, onde desde 1920 começara a sofrer ataques alegando a sua
falta de compromisso com o projeto identitário do incipiente nacionalismo galego8.
O atlantismo é, portanto, para Pessoa e Valle-Inclán um elemento que reforça a
identidade estética e política da Galiza e Portugal (ou a Lusitânia, se se preferir). Mas,
para além disto, para ambos supõe também uma via de exploração poética. Assim,
se para Pessoa, como comentávamos, a língua é a pátria, a Valle-Inclán a conceção
atlântica do seu trabalho literário também lhe permite explorar novas latitudes
linguísticas, com a incorporação ao seu imaginário verbal, lendário e mitológico, da
tradição indígena latinoamericana. Neste sentido, a vinculação de Valle-Inclán com
os grandes movimentos literários internacionais estabelece-se, além do mais, pela sua

8 Estes ataques estendem-se, para além de à questão linguística, à evolução estética e artística do autor, para
aos movimentos de vanguarda europeus do momento (o cubismo ou expressionismo), discutidos por certos
sectores do galeguismo da altura como alheios à identidade literária galega focada desde uma perspetiva
política mais tradicionalista (Mascato REY, R., 2013a: 53-58).
Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán 597

conceção estética e política da ideia de língua (verbo). Em oposição ao castelhano


castizo cultivado por alguns dos seus contemporâneos espanhois, o escritor galego
dedicou grande parte da sua trajetória ao desenvolvimento dum novo idioma, já não
só literário, mas também que desse acolhimento às dicotomias do mundo moderno:
uma ferramenta para superar as fronteiras cronológicas, geométricas e históricas,
e expressar a summa espiritual, mística e artística dos povos que fazem parte do
seu imaginário identitário, como fica refletido no seu tratado estético La Lámpara
Maravillosa, datado em 1916:

Toda mudanza substancial en los idiomas es una mudanza en las conciencias, y el alma
colectiva de los pueblos, una creación del verbo más que de la raza. Las palabras imponen
las normas al pensamiento, lo encadenan, lo guían y le muestran caminos imprevistos, al
modo de la rima.
Los idiomas nos hacen, y nosotros hemos de deshacerlos. Triste destino el de aquellas razas
enterradas en el castillo hermético de sus viejas lenguas, como las momias de las remotas
dinastías egipcias, en la hueca sonoridad de las Pirámides. Tristes vosotros, hijos de la Loba
Latina en la ribera de tantos mares, si vuestras liras no quebrantan todas las cadenas con
que os aprisiona la tradición del Habla. ¡Y más triste el destino de vuestros nietos, si en lo
porvenir no engendran dialectos suyos, ciclos de una nueva conciencia en la lengua de los
Conquistadores. (Valle-Inclán, R., 1916: 78-79).

Mas neste caso estaríamos já a falar da ideia valleinclaniana de uma civilização (e


língua) circum-atlântica, no sentido apontado por Armitage, que entendemos merece
uma atenção pormenorizada que excede, em muito, os limites destas páginas.
Em resumo, Pessoa e Valle-Inclán partilham a ideia do Atlântico como uma
comunidade civilizacional gerada em território ibérico, e particularmente em
território galaico-português, através da qual se reforçam precisamente as identidades
desses espaços como entidades nacionais (particularmente no caso do Portugal
sonhado por Pessoa). Para o vate luso, essa «alma do Argonauta», a «alma atlantica»
(sic) que, em Mensagem, o poeta reivindica como parte dum «mar que não tem
tempo ou spaço» (sic) (Pessoa, F., 1934: 63 e 66), é uma uchronia que tão só pode ter
realização poética, através dos seus versos. Para Valle-Inclán, o verbo do futuro é uma
encarnação da evolução desses povos das ribeiras atlânticas numa civilização extensa,
máxima e alheia à dos Conquistadores. O certo é que, num e noutro caso, fica ainda
muito por ler e analisar a este respeito entre os vários documentos custodiados nos
legados dos dois produtores em foco.
598 100 Orpheu Rosario Mascato Rey

Bibliografia

Bibliografia ativa
Nós. Boletín mensual da cultura galega (1920). «Primeiras verbas». Ourense, 30 de
Outono, pp. 1 e 2.
Otero Pedrayo, Ramón (1925). «Os poetas atlánticos». Nós. Boletín mensual
da cultura galega. Ourense, 15 de Novembro, núm. 23, pp. 2-3.
Pessoa, Fernando (1934). Mensagem. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira
Pessoa, Fernando (1979). Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional.
Lisboa: Ática.
Pessoa, Fernando (2003). Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão
Pessoal. Fernando (Richard Zenith, ed.) Lisboa: Assírio & Alvim.
Pessoa, Fernando (2015). Sobre o fascismo, a ditadura militar e Salazar. Lisboa:
Tinta-da-China
Risco, Vicente (1994). Teoria do nacionalismo galego. Vigo: Galaxia.
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Not Stop for a Minute. Inspiration Gone If He Does, Says Don Ramon, Who
Is Here For a Rest», The New York Evening Post, 7 de Dezembro: 11
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General Española de Librería.
Valle-Inclán, Joaquín e Javier (1995). Ramón del Valle-Inclán. Entrevistas,
conferencias y cartas. Valencia: Pre-Textos.

Bibliografia pasiva
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74, 4, pp. 655-668.
Armitage, David (2004). «Tres conceptos de historia atlántica». Revista de
Occidente. (Outubro), 281, pp. 7-28.
Castle, Gregory (2001). Modernism and the Celtic Revival. Cambridge:
Cambridge University Press
Domínguez, César (2014). «`Eu son fillo dunha Patria descoñecida´: Do
Atlántico negro ao Atlántico verde a través da diáspora galega. Castelao
(cunhas notas sobre Whitman e Lorca)». Grial. Revista Galega de Cultura.
202. 52 (abril-xuño), pp. 64-71
Dougherty, Dru (1983). Un Valle-Inclán olvidado: entrevistas y conferencias.
Madrid: Fundamentos.
García Piqueras (1997). «La revista Nós y el vínculo atlantista». Revista de
Filología Románica, 14.2, pp. 143-149.
Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán 599

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Margarita Santos Zas, Luis Iglesias Feijoo, Javier Serrano Alonso e Amparo
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600 100 Orpheu Rosario Mascato Rey

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en homenaxe ó profesor Xosé Manuel Pose Antelo. Santiago de Compostela:
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Villares, Ramón (2014). Historia de Galicia. Vigo: Mar Maior.
Mensagem em moldura epocal1

Annabela Rita
CLEPUL-FLUL
Instituto Fernando Pessoa & Academia Lusófona Luís de Camões (SHIP)
Presidente/Comissão Científica do 100/Orpheu

Palavras-chave: Mensagem; Pessoa; Literatura; Cultura; Exposição; Retórica.


Resumo: Este trabalho visa observar a obra Mensagem na sua inscrição epocal,
assinalando o modo como a sua dispositio retórica está em sintonia com a que
informa a estratégia de definição identitária nacional nos palcos europeus e mundiais,
estratégia que responde ao desafio da crítica internacional e ao sentimento de
decadência nacional.

O meu livro “Mensagem” chamava-se primitivamente “Portugal”. Alterei o título porque o


meu velho amigo Da Cunha Dias me fez notar — a observação era por igual patriótica e
publicitária — que o nome da nossa Pátria estava hoje prostituído a sapatos, como a hotéis a
sua maior Dinastia. ‘Quer V. pôr o título do seu livro em analogia com “portugalize os seus
pés?”’ Concordei e cedi, como concordo e cedo sempre que me falam com argumentos. Tenho
prazer em ser vencido quando quem me vence é a Razão, seja quem for o seu procurador.
Pus-lhe instintivamente esse título abstracto. Substituí-o por um título concreto por uma
razão...
E o curioso é que o título “Mensagem” está mais certo — àparte a razão que me levou a pô-lo
— do que o título primitivo.
Fernando Pessoa (1979: 53)2

1 Este texto é uma versão resumida (e tão expurgada de notas) da comunicação apresentada, que será publicada
na sua versão original no meu próximo livro (Do que não existe, no prelo). Remeto para lá a fundamentação
de muitas das minhas observações neste texto, uma vez que as constrições de espaço a isso obrigam.
2 http://arquivopessoa.net/textos/1298
602 100 Orpheu Annabela Rita

Preambularmente…

Em contraluz ao sentimento de decadência que, desde meados do séc. XIX,


domina o imaginário europeu, sombreando a realidade convulsionada pelo debate
sobre a partilha de África e pelas Guerras Mundiais e, no plano nacional, pelo
ciclo do Ultimato, regicídio e 1ª República, vemos esboçar-se uma tendência para
definir identidades nacionais através de uma estratégia comunicativa argumentativa:
a comunicação europeia (campanha de regime) tende a desdobrar argumentos,
expondo-os, através da ilustração. Assistimos a uma exposição, exibição e enumeração
de lugares, exemplos, casos, ao serviço da elaboração ou do reforço identitários. No
plano histórico, no científico-tecnológico (as maravilhas da civilização!) como no
estético. Aposta na visibilidade, mas também na complementaridade da sua vivência,
portanto, na espectacularidade apresentacional que permite a transição persuasiva do
logos ao pathos. A luz contrariando o désenchantement du monde (Marcel Gauchet) na
representação que o mundo de si faz no seu teatro.
Portugal inscreve-se nessa tendência geral, como tentarei demonstrar. Fá-lo em
resposta e reacção a factores exógenos e endógenos.
Dos mapas (“Portugal não é um país pequeno!”) às exposições (inter)nacionais, vemos
a representação nacional a adquirir a terceira e a quarta dimensões para se oferecer, a
prazo e/ou para a posteridade, na temporalização da visita, do percurso de observação,
interpretação e rememoração, além de parecer responder, ripostar, argumentativamente,
a estímulos contemporâneos ou anteriores, na clivagem interna ou relativamente
ao exterior. Como os outros Impérios Coloniais em tempo de crepúsculo dos deuses,
também oferece o seu, através da combinatória da selecção, representatividade,
sinédoque, síntese, símbolo e exemplo. Com alguma singularidade, mais do que só
buscar, mostrar e impor o seu lugar no mundo, declara-se e anuncia-se como Mundo
inscrevendo o Mundo em si: a Exposição do Mundo Português (1940) consagra em título
essa diferença e autonomia feitas de noção de totalidade, de completude.
Como na história da terra, a história de Portugal também tem um génesis
embebido de mito (Tubal, Ulisses, Cristo…) e um horizonte imaginário em que
se esboçam hipóteses e sonhos de porvir: por isso, combina núcleos expositivos
que traçam a rota da evolução por ciclos e temas dominantes da acção comunitária
numa teleologia que a Filosofia Portuguesa explorará. Na literatura, desenvolve-se a
legenda: Mensagem (1934) complementa essa hermenêutica da identidade nacional
e responde a esse políptico de S. Vicente (1470-80) redescoberto e controverso,
bebida a lição do tempo que Os Lusíadas (1572) exprimem no seu diálogo com os
Jerónimos (séc. XVI).
Mensagem em moldura epocal 603

… e avançando

Desde meados do séc. XIX, o fascínio com a ciência e as artes conduziu ao


deslumbramento pelas suas mostras: as exposições universais corresponderam a esse
desejo de reunir, antologiar e catalogar, sistemicamente, as cristalizações do progresso,
do “admirável mundo novo” em que todos se sentiam a participar. E essas exposições
deixaram pavilhões ou outros vestígios, incluindo museus que recolheram muitos dos
seus materiais e prolongaram o seu gesto. A lista é impressionante, de quase centena
e meia.
Nesse itinerário de exposições, os impérios coloniais procuraram destacar-se, numa
guerra pela supremacia da visibilidade, impondo a sua realidade e representações,
exibindo as insígnias da heterogeneidade que os constituía e tentando familiarizar as
metrópoles e os outros países com ela, encarada e feita encarar como prova da sua
superioridade humana, cultural, política e militar. Foram as Exposições Coloniais,
muitas delas com as “exibições etnológicas” depois designadas por zoos humanos.
Portugal, além de participar em exposições no estrangeiro (Paris, Bulawaio, etc.),
organizou as suas para exibir ao mundo o seu Império, legitimando-o e reivindicando,
também através desse gesto, o respeito pelos direitos conquistados no terreno desde
que, no séc. XV, Pêro da Covilhã  encontrou o Preste João (que buscara desde 1487),
figura de que Francisco Álvares dará notícia em A verdadeira Informação das Terras
do Preste João (1540).
Desse mesmo século XV nos chegaram os Painéis de São Vicente de Fora (1470-80),
de Nuno Gonçalves, descobertos no final do séc. XIX, que o Estado Novo reconduzirá
à sua propaganda e, com eles, o providencialismo que representavam. Matéria
manipulada e dourada pela propagando do regime…
A Conferência de Berlim (1884-85) decide, em sede da diplomacia europeia sobre
territórios e regras de domínio e exploração que, na prática, pouco tinham em conta as
multiplicadas expedições portuguesas que conduziram ao sonho do mapa cor-de-rosa
(1886). 1890 afronta Portugal com o Ultimato inglês, fazendo viver um sentimento
de fim de ciclo nacional e de “degenerescência da raça”, que Junqueiro exprime em
Finis Patriae, mas de que A Portuguesa, de Alfredo Keil, quer despertar-nos, num
levantar-se do chão que as Exposições Coloniais encenam na sua sucessão e que o
Acto Colonial português (1930) consagra, demonstrando a legenda “Portugal não é
um país pequeno” do mapa atribuído a Henrique Galvão e publicado na Exposição
de 1934, reproduzido em postal pelo Secretariado de Propaganda Nacional exposto,
também, no Pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris em 1937, mostra
esses objectivos.
604 100 Orpheu Annabela Rita

Basta observar as publicações da altura que a Hemeroteca Municipal de Lisboa


disponibilizou em versão digital para se evidenciar a convergência de iniciativas do
regime na construção de uma imagem nacional de império forte e pluricontinental.
Na década de 30, a importância da exposição, da visibilidade, emerge com uma
força e premência inquestionáveis: as representações conquistam a cena e validam
e legitimam-se como provas, demonstrações, ilustrações de poder e de existência,
princípio de realidade sobrepondo-se ao verdadeiro real. É o tempo de propaganda
moderna dos regimes e dos estados.
Significativa dessa importância de visibilidade para reforço de posição e de
identidade é a criação do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), em 1933, a
que sucedeu, em 1945, o Secretariado Nacional de Informação (SNI), que teve um
papel fundamental na concepção e no desenvolvimento de uma campanha interna
e externa de representação e de divulgação de um ideário nacionalista no Estado
Novo.
No domínio artístico, entre 1935 e 1951, o SPN promoveu as Exposições de Arte
Moderna (14 edições anuais até 1951, excepto em 1937 e 1950), com a participação
dos principais nomes da 1ª e 2ª geração de artistas modernistas, renovando a vida
artística nacional, contra o tradicionalismo naturalista que dominava os Salões
da SNBA.
Nas exposições científico-culturais, o SPN foi responsável pelas participações
nacionais nas grandes Feiras Internacionais (Paris, 1937; Nova Iorque e S. Francisco,
1939) e na organização da Exposição do Mundo Português (1940), celebração da
fundação, da independência e do império nacionais com a Alemanha em marcha
sobre a Europa.
Folheemos alguns indicadores da importância da promoção da imagem de
Portugal aquém e além-fronteiras.

Aquém-fronteiras

Lembremos os Concursos para o Monumento ao Infante D. Henrique em Sagres,


provocando interesse e polémica, fazendo convergir o debate e o confronto estéticos.
Um dos requisitos era que não podia “restringir-se a uma figura ou a um grupo
escultórico que a esmagadora grandeza do local amesquinharia, devendo antes jogar
com grandes massas em que a arquitectura predomine sobre a escultura.”3 

3 Cf. http://doportoenaoso.blogspot.pt/2010/09/os-planos-do-porto-dos-almadas-aos.html
Mensagem em moldura epocal 605

Em 23 de Junho de 1933, é empossada a Comissão do Concurso para o Monumento


ao Infante D. Henrique em Sagres. Candidatam-se 15 equipas com projectos, em
geral, de c. de 100m de altura, com a figura do Infante associada a símbolos da Pátria
e das Descobertas. O resultado do concurso, em Março de 1935, causou polémica,
contestação e anulação, com sucessivas retomadas e anulações.

Além-fronteiras

Observemos, brevemente, alguns indicadores dessa importância da mostra e


da exibição no plano da campanha propagandística do Estado Novo em algumas
participações portuguesas em exposições na década de 30 do séc. XX.
Em 1929, Portugal participa nas duas Exposições de Espanha: a de Barcelona e
a de Sevilha. Em 1931, a Exposição Colonial de Paris é a afirmação dos impérios
coloniais europeus, em particular, o francês, com excepção da Grã-Bretanha e da
Alemanha, consequência da I Guerra Mundial.
Em 1935, com a equipa do SPN já formada com a adesão dos principais artistas
plásticos após o I Salão de Arte Moderna (1935), António Ferro, desencadeia
a acção de propaganda do Estado Novo, mostrando as realizações do Regime,
enaltecendo a figura de Salazar e as diferentes vertentes da sua “política do espírito”.
Também na Exposição de Paris (Exposition Internationale des Arts et Techniques
dans la Vie Moderne), de 1937, Portugal participa com uma sólida operação de
propaganda.  A  Feira Mundial de Nova Iorque, sobre “O mundo de amanhã”, foi
planeada a partir de 1935 com o objetivo prospectivo: antever a tecnologia e a cidade
actuais olhada pelas futuras gerações4. Em contramão relativamente ao espírito
futurista da Exposição, Portugal apresenta um Pavilhão com símbolos identitários,
preparando a Exposição do Mundo Português e não aderindo, considerando o
mundo de amanhã na continuidade das gerações. E avançamos para o Pavilhão
de Portugal na Exposição Internacional de Nova Iorque 1939, projecto de Jorge
Segurado (1898-1990).
Encerremos, aqui, a revisão e olhemos para outros factores que compõem a
moldura epocal.

4 “Os olhos da feira estão no futuro – não no sentido de perscrutar o desconhecido nem na tentativa de
prever os eventos do amanhã e a forma das coisas do futuro, mas no sentido de apresentar uma nova
concepção do presente encarado a partir do amanhã; alcançar uma ideia das forças e ideias que vão
prevalecer e do mesmo modo as máquinas.” [Panfleto oficial da Feira: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Feira_Mundial_de_Nova_Iorque_de_1939-40].
606 100 Orpheu Annabela Rita

Outras molduras

Ao longe, os ecos das múltiplas guerras novecentistas faziam-se ouvir. O


séc. XX fragmentava-se entre guerras mundiais (1914-18 e 1939-45), a Guerra
Fria (1945-91) e a tentação conciliatória (Organização das Nações Unidas, ONU,
em 1945). Após a I Guerra Mundial, desapareceram três impérios europeus
(alemão, austro-húngaro e russo) e o turco-otomano e começa a Grande Depressão
(de 1929 até à II Guerra)… um “Crepúsculos dos Deuses”. No imaginário português,
a braços também com a instabilidade governativa e a crise económica, apenas
a  primeira travessia aérea do Atlântico Sul  por Gago Coutinho  e  Sacadura Cabral,
em 1922, brilha, mas, mesmo assim, com um brilho embotado pelas comemorações
do 1º Centenário da Independência do Brasil, potência emergente abrilhantada pela
Semana de Arte Moderna de São Paulo e crítica do passado através de Casa-Grande
& Senzala (1933) de Gilberto Freyre.
No plano das inovações técnico-científicas, o século abre com a primeira mensagem
transatlântica sem fios (Marconi) (1901) e o alargamento da electrificação de Lisboa
(1902) e avança numa caminhada vertiginosa que a I Guerra impulsionará. Sinais
luminosos que não dissolvem a névoa depressiva, às vezes dramática, da existência
confrontada com os seus limites e o seu absurdo.
É nesta moldura complexa e contraditória, em que o deslumbramento pela
ciência e pela técnica é sombreado pela tragicidade das guerras, da conflitualidade
política, da carência e da doença, que vemos desenvolver-se o sentimento de
decadência irremissível contra o qual que se esboçam tentativas de insuflar ânimo
transversalmente às comunidades, convocando lugares e referências que a memória
colectiva tende a iluminar como mecanismo compensatório. E convocação é, de facto,
a palavra e o fenómeno. Vejamos alguns exemplos. Começaremos por duas visitas
virtuais, avancemos para duas Exposições e terminemos no políptico pessoano.

1. Visita virtual

Na revisitação da memória, verifica-se a descida aos infernos seguida de uma


imagem emergente renovadora, de acordo com o modelo existencial crístico: na
viagem, colhe-se o graal do renascimento…
No séc. XIX, tive já ocasião de demonstrar como esse ciclo se cristaliza em algumas
obras (Pátria, 1896, é disso exemplo acabado com a imagem final da tríade das
três idades do homem e a configuração da criança como novo Artur empenhando,
surpreso, a Excalibur), mas também no diálogo entre elas balizado entre a refundação
Mensagem em moldura epocal 607

romântica e o decadentismo finissecular (em especial, entre as Viagens garrettianas e


a Pátria junqueiriana).
Observemos duas revisitações da memória colectiva nacional que se configuram
em jeito do que hoje designamos por visitas virtuais. Ao longo delas, somos iniciados
na hermenêutica das exposições que nos fazem percorrer.
No séc. XV, os Painéis de S. Vicente oferecem-nos uma representação nacional
identitária, reunindo os grupos comunitários em torno de um projecto comum, missão
nacional que a figura central, na sua duplicação com o livro fechado e o livro aberto
(do enigma ou mistério ao apocalipse ou revelação), assinala e anuncia, evocando esse
outro Evangelho Português de que Fernão Lopes nos fala na Crónica de D. João I e, mais
atrás, o Milagre de Ourique iconografara em aparição e promessa, missão que faz a
ponte entre os Juramentos reais (re)fundadores (de D. Afonso Henriques, controverso,
e de D. João IV). É um políptico apresentacional, representativo, evocador, mas a
convocação está implicada no livro empunhado e, em nome dela, a vara de comando
do santo eleva-se… assinalando a hora da realização comunitária nacional. Pintura
que é, composição organizada em torno de uma imagem em reflexo, oferece-nos
tudo imediata e instantaneamente, mas o nosso olhar, percorrendo-a, tece a leitura de
temporalidade e esta de história…

1.1. Finis Patriae (1890)

Quatro séculos depois, a esses painéis respondem outros polípticos nacionais, no


caso, de verbo feitos: Finis Patriae (1890) e O Heroísmo (1923), a literatura e o ensaísmo
(aqui, a oratória, mas, também, a hermenêutica da arquitectura). O imaginário
nacional entretece-se no diálogo das Artes, das Musas… imagem, pintura…
Com Guerra Junqueiro, encerramos o século XIX sentindo-nos num funeral
pátrio. Finis Patriae é esse itinerário enlutado, ressentido, que desenha a cartografia
da catástrofe comunitária numa polifonia dramática em que falam, sucessivamente,
os diferentes grupos sociais, profissionais e etários (os camponeses, operários e
pescadores, mas também os marginais, os condenados), os lugares residenciais
(choupanas, pocilgas, casebres, mas também as cadeias) e os institucionais (hospitais,
escolas, cadeias), os padrões de memória (fortalezas, monumentos, estátuas), enfim,
até que a bouche d’ombre (não a de Victor Hugo, mas a de Junqueiro) se modula e
vibra na “voz na treva”. Por fim, o regresso ao berço do futuro evocado na abertura: “À
Mocidade nas Escolas”.
Trata-se de uma Via Crucis em 12 etapas, com uma moldura que cumpre mais 3
(a Introdução começa com 18 citações, passa a referências a textos diplomáticos
608 100 Orpheu Annabela Rita

e legislativos5 e conclui com mais uma citação de Oliveira Martins, historiador de


eleição na obra) e que intercala a composição a várias vozes entre duas dedicatórias
ou interpelações “À Mocidade nas Escolas”.
Por fim, a imagem da morte anunciada e o anúncio do seu renascimento, como no
itinerário crístico. A enumeração do desmantelar de um país, em jeito de exposição
dos seus grupos, extrai dos vestígios de heroicidade a força anímica da renovação6.
O legado à Mocidade, a herança transmitida e ensinada nas Escolas é esta mensagem:
a Pátria reviverá! Anúncio d’a hora a vir.

1.2 O Heroísmo (1923)

Em 1923, a convite da Academia Brasileira de Letras e por sugestão de Coelho Neto,


Júlio Dantas proferiu três conferências no Teatro Lírico do Rio de Janeiro.7 Uma delas,
“O heroísmo”, sobre “as virtudes guerreiras do povo português”, constitui o análogo
do que hoje consideraríamos uma autêntica visita virtual (na nossa imaginação) ao
panteão épico do Mosteiro da Batalha. Longa e comovente hipotipose que nos insere
no local e nos faz percorrê-lo, acordando nele, como no palácio da Bela Adormecida,
os jazentes heróis de outrora.
A Arquitectura, como afirma Bruno Zèvi (em Saber Ver a Arquitectura), distinguindo-a
da Escultura (que se contorna), é percorrida e trabalhada na nossa imaginação: assim
se observa e se faz observar. E a observação, vivida de corpo inteiro, em movimento,
convivendo com e entre a paisagem e a imaginação, conduz à emoção, à mobilização… à
acção comunitária, cívica, de cidadão. A palavra torna-se, neste sentido, performativa…
A justificação desta (re)visita(ção) de Júlio Dantas é a memória comunitária,
o sentimento de coesão e família dos que herdaram “o solar da grande família
portuguesa que se espalhou pela terra; os detentores da tradição; a antiga casa nobre
que religiosamente guarda os pergaminhos da estirpe; o arquivo onde repousam os
livros de nobreza, as cartas de brazão, os tombos heráldicos de um povo que há quatro
séculos, debruçado de uma pequena janela gótica sobre o mar, conseguiu projectar a
sua sombra no mundo inteiro”.

5 O Ultimatum de 11 de Janeiro de 1890, os Decretos dictatoriais de 29 de Março de 1890, o Tratado de 20 de


Agosto de 1890 e o Modus Vivendi de 19 de Novembro de 1890.
6 Lembro: “Por terra, a túnica em pedaços, /Agonizando a Pátria está. / Ó Mocidade, oiço os teus passos!... /
Beija-a na fronte, ergue-a nos braços, /Não morrerá! // /…/ // Rasga o teu peito sem cautela, / Dá-lhe o teu
sangue todo, vá! / Ó Mocidade heróica e bela, / Morre a cantar!... morre... porque ela / Reviverá!”.
7 DANTAS, J., 1923.
Mensagem em moldura epocal 609

Da grande angular…

A cartografia composta é a da monumentalidade onde se cristalizou e exprime essa


patrimonialidade imaterial que é a nossa mitologia e história colectivas: “Catedrais,
mosteiros, torres, castelos, muralhas, cruzeiros, pedras-de-armas, tudo nos fala desse
heroísmo cheio de ideal.”
Na paisagem nacional, Júlio Dantas desenha, primeiro, o mapa do corpo nacional
(Benedict Anderson) em que nos reconhecemos, a grande angular que vai do Minho
à Índia, corpo repartido, disperso, onde faz reconhecer a acção e o pensamento
comunitários, da fundação à expansão: Alcobaça, Tomar, Sagres, Diu, Ormuz.
Depois, esboça e assinala nesse mapa-corpo-espírito, as figuras e referências que
“acordam, como clangores de guerra, como tropéis de batalha, as sombras do nosso
passado de glória” (sic).

… ao zoom…

Feita a cartografia dessa monumentalidade onde se plasma o nosso imaginário,


Júlio Dantas elege o Mosteiro da Batalha, abadia ogival de Santa Maria da Vitória,
como “imagem” “perfeita”, “síntese completa” da “alma heróica do povo”, “corpo de
pedra, trabalhado como uma jóia, onde se abriga a alma sagrada das três maiores
epopeias portuguesas”, cada uma delas com o seu núcleo museológico, “santuários
heróicos” de Portugal no mundo:

1. a capela do Fundador, com a “multidão cavalheiresca de Aljubarrota”, a ‘Távola


Redonda’ de D. João I, do ‘São Graal’ de Nun’Álvares, à cavalgada mística, ao
torneio guerreiro, ao champ drap d’or;
2. as Capelas Imperfeitas de D. Manuel com “a epopeia do oceano, o ciclo das
navegações, a luta contra o Mar Tenebroso, o sonho da Índia, o esplendor da
sciência náutica, a revelação de mundos, a criação de impérios”;
3. na casa do Capítulo da Batalha, o soldado desconhecido falecido tragicamente
em França, em La Lys, a epopeia da Flandres, o Inferno de Barbusse na II
Guerra Mundial.

… aos travellings…

Entre eles, deslocamo-nos, atravessamos o espaço, “atravessamos /…/ o enorme


claustro” como Bruno Zèvi descreve (em Saber Ver a Arquitectura), deixando que os
passos ritmem a nossa imaginação, produzam, que a visão se projecte na imaginação.
610 100 Orpheu Annabela Rita

E a visita começa como nas velhas narrativas de viagens, livros de maravilhas que
deslumbraram a velha Europa, com o registo da surpresa e da emoção (“comoção
religiosa”) e com o comentário recorrendo à comparação com que se sublinha e
demonstra a diferença, a singularidade, a portugalidade.
Depois, passa à visão de conjunto, ainda exterior, do conjunto em díptico (“De
um lado, o mosteiro /…/; do outro, dominando tudo, a igreja abacial /…/”). O
tempo verte-se em espaço e este representa-o numa espécie de friso cronológico
destacado, o século entre a batalha e a descoberta, a independência e o império
e assinala nesse século o progresso da História nacional, no exercício de uma
pedagogia da hermenêutica, uma didáctica da observação para o olhar mais
ingénuo, através da qual partilha as sucessivas emoções que a observação nos vai
fazendo experimentar.

… aos conjuntos, grupos e…

A luz coada, as emoções, tudo promove esse efeito de presença comovente,


mobilizador e cuja ambiguidade (entre a nossa visita ao passado ou a dos ancestrais ao
nosso presente) instaura um tempo diferente, de confusão epocal, histórica, esse tempo
que constitui a mais forte matriz do sentimento comunitário. No vasto painel, começa
o reconhecimento com as identidades a organizarem-se no espaço na cronologia dos
acontecimentos, promovendo a emergência da consciência proprioceptiva a partir da
auto-descrição.

… aos acontecimentos…

Na cronologia, destaca-se uma madrugada, início da batalha de Aljubarrota,


acontecimento decisivo entre ciclos, início do século destacado no friso.

… às figuras na paisagem…

E Aljubarrota desenvolve-se com pormenor diante de nós, “arrast[a]-se pela


Charneca” e pelo dia, em duas fases: a do protagonismo de Nun’Álvares, sua “alma”, e
a do protagonismo de D. João I, “gigante” que nela se avulta.
Mensagem em moldura epocal 611

… à perspectiva panorâmica de um ponto de observação…

Percorrido o monumento, chega-se ao seu posto de observação (lugares


intermédios, limiares entre o dentro e o fora, como Bachelard os encara), enfrentando
o presente, a contemporaneidade do observador.

… ao observador mirando-se no espelho do tempo

Depois, “atravessamos” o templo, passando pelos outros núcleos, folheando a


História e os seus protagonistas, desde a Fundação, passando pela epopeia dos
Descobrimentos e chegando à da Flandres, da Grande Guerra. Das grandes angulares
aos zooms, os corpos movem-se, os rostos ganham expressão… o ouvinte (mais
tarde, leitor) emociona-se, analisa-se e questiona-se como descendente, herdeiro da
portugalidade assim desenhada… “sent[indo], claramente, que pela [sua] apagada
voz não fala apenas um homem, fala uma multidão, fala toda uma pátria fremente e
agradecida, — fala Portugal inteiro!”.

2. Exposições

Poucos anos depois, na mesma década, sob o impacto do sopro mobilizador e


animador que assinalei no verbo ensaístico de Dantas e no literário de Junqueiro,
sopro informado de História e de Mito, sopro de memória monumentalizada na
paisagem nacional, resistindo e reagindo ao ambiente de desânimo e catástrofe, outras
iniciativas se pensam e se esboçam. E se, como recomenda a Retórica, a afirmação
deve ser demonstrada para persuadir, nada melhor do que a ilustração, prova provada
que faz “ver claramente visto”.
A exposição, revisitando, demonstrando e reforçando a memória nacional, oferece-se à
visita: são complexos arquitectónicos montado como resumo/antologia de um mundo
para ser visitado, percorrido, avaliado, confirmado, reflectido. Apresentacional
como o políptico de Nuno Gonçalves, mas temporalizado pela sua espacialização,
quadridimensionalizado no seu visionamento. A exposição destina-se a ser vivida
para simular a revivência dos sentimentos imaginados de outrora: é a estratégia do
logos ao pathos…
Após a I Guerra Mundial, mas no início da II, Portugal celebra, conjuntamente, a
sua Fundação (1140) e a sua Restauração (1640), evidenciando o Estado Novo como
herdeiro desse passado glorioso, numa ideia de 1929 do embaixador  Alberto de
612 100 Orpheu Annabela Rita

Oliveira assumida por Salazar em 1938, na sequência da participação portuguesa nas


grandes Exposições Internacionais de Paris (1937), Nova Iorque e S. Francisco (1939).
No quadro de um ambiente celebratório nacionalista, evidenciam-se iniciativas
expositivas visando públicos diferentes, embora reunindo-os numa imagem
populacional abrangente e ocupando Coimbra e Lisboa, a cidade ‘académica’ e a
cidade de referência política: infantil e adulto. Refiro-me, em especial, ao parque
temático Portugal dos Pequenitos e à exposição do Mundo Português. Os projectos
têm como objectivo comum, demonstrar, patrimonial e historicamente, Portugal
no Mundo e o Mundo que o império reúne, exibindo as referências maiores da sua
patrimonialidade material e imaterial: os obreiros, as acções e projectos, a construção,
os mapas, as culturas e as suas expressões/concretizações. O Império e a sua História
corporificam-se para se imporem aos seus e aos outros, para se fazerem ver, sentir,
ouvir, percorrer… (re)viver na imaginação estimulada, excitada, emocionada dos
visitantes. Da cartografia que oferece a imagem biplanificada, erguem-se conjuntos
urbanísticos, corporificando mais convincentemente Portugal.

Portugal dos Pequenitos (Coimbra, 1938-40-50)

Em  1938, com o impulso de Bissaya Barreto e o projeto do arquiteto  Cassiano


Branco, começa a ser construído o Portugal dos Pequenitos como parque com
edifícios representativos da vida (urbana e rural) e da monumentalidade nacionais
em escala reduzida, abrindo-se ao público em 8 de Junho de 1940.
A sua construção teve três etapas e, actualmente, o parque apresenta sete áreas
complementares a que se juntam três museus temáticos.

Mundo Português (Lisboa, 23/junho/1940 - 2/dezembro/1940)

Mirando-se no Tejo  e desdobrando-se diante do  Mosteiro dos Jerónimos, a


exposição do Mundo Português foi uma revisitação da História de Portugal e dos
seus Heróis, numa organização teatral centrada numa monumental Praça do Império
(atual  Jardim da Praça do Império), ladeada a  nascente  e  poente  por dois grandes
pavilhões: o Pavilhão de Honra e de Lisboa (de Luís Cristino da Silva) e o Pavilhão dos
Portugueses no Mundo (do próprio Cottinelli Telmo).
Na Belém de um Império a haver agora decadente, oficiava-se, séculos depois,
o ritual celebratório da obra feita, desdobrando-lhe as figuras na paisagem, face ao
espelho de água a que se fizeram as naus de outrora.
Mensagem em moldura epocal 613

1934 é ano do primeiro ensaio desse ofício que se emoldura em graálico Palácio de
Cristal (a Exposição Colonial Portuguesa do Porto) e é o ano de uma Mensagem ao
país, a de Pessoa, que lhe revisita o imaginário e o folheia em exposição organizada em
livro, álbum de mitos simbolizados, figurados, ilustrados, catalogados e sistematizados
em núcleos temáticos, ciclos históricos… convocados. Muitas das figuras respondem
a interpelações de outrora (no tónus épico evocador do camoniano, nos Castelos de
Finis Patriae e da Mensagem, etc.).
A convocação, em ambos os casos, visa quebrar o encantamento estiolante de uma
desesperança cinzentista que parecia dominar um povo que acreditara encontrar na
República a solução da decadência e que sobrevivia ao trauma da convulsão que ela
trouxera8. Povo que se sentira desprezado e desrespeitado desde antes do regicídio,
trucidado nos combatentes da I Guerra Mundial, afundado no sentimento da decadência
e da falta de horizontes, anelante de um sinal de esperança. “É a hora!” é o sopro conclusivo
dessa convocação, a invectiva, a ordem à fraternidade para o início de um novo ciclo no
meio das representações do velho, desse Portugal de Varões e epopeia que se encontrara
com o Preste João e que tinha sonhado o V Império. Exclamação religiosa na instauração
de um novo tempo. Ao lado, atrás, nesse 1910 em que os Painéis de Nuno Gonçalves se
instalaram no Museu, levantara-se o estandarte de uma águia que se tornará nova, outra9,
mas com a memória da antecessora.

3. Políptico literário.

Na psicanálise mítica do Império, Pessoa joga o seu lance, na concepção geral da


obra e na de uma obra em particular.
À distância de quase meio milénio, Pessoa responde ao políptico de S. Vicente,
também considerado Políptico da Esperança10. Ao lado, o pacto de estudo dos painéis
entre Almada Negreiros, Amadeu de Sousa Cardoso e Santa Rita Pintor.

8 Já Guerra Junqueiro sentira essa necessidade revitalizadora e convocara em Finis Patriae os ‘génios do lugar’ e do
futuro configurados pela “Mocidade nas Escolas”: “Por terra, a túnica em pedaços, /Agonizando a Pátria está. /
Ó Mocidade, oiço os teus passos!... /Beija-a na fronte, ergue-a nos braços,/ Não morrerá! // Com sete lanças os
traidores / A trespassaram, vede lá!... /Ó Mocidade!... unge-lhe as dores, / Beija-a nas mãos, cobre-a de flores, / Não
morrerá!” [http://nautilus.fis.uc.pt/personal/marques/old/very-old/junqueiro/work/finis_patriae.html]
9 Em Diálogos em Roma, Francisco de Holanda fala d’“A tábua dos famosos pintores modernos a que eles
chamam «águias»”, com os grandes do Renascimento (Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, Andrea Mantegna,
Rafael, Ticiano, etc.), lista em que Nuno Gonçalves surge em 21º lugar ("O pintor português, ponho entre
os famosos, que pintou o altar de S. Vicente de Lisboa.", HOLANDA, F., 1984: 137). Já no séc. XXI, surge A
Nova Águia. Revista de Cultura para o Século XXI [http://novaaguia.blogspot.pt/], lançada em 2008 pelo MIL
– Movimento Internacional Lusófono.
10 Cf. http://paineis.org/C10.htm
614 100 Orpheu Annabela Rita

Nuno Gonçalves oferecera-nos a representação de uma sociedade centrada num


projecto nacional entre um livro do Apocalipse (Revelação) e a vara de comando
empunhados por um mesmo santo em (as)simétrica reflexão, arauto e líder. Corte
epistemológico na História de um país em pose para se dizer ao futuro, em fé e prece.
Seis painéis desenhando um arco de sentido em torno de uma mensagem (de)cifrada
numa teleologia da História, numa hermenêutica da Cultura.
Desse ritual de investidura nacional em nome de um projecto lavrado em livro
e assinalado pela vara do poder, ambos em mão sagrada, religados por ela, resulta,
logicamente, uma acção. No caso, a acção será militar e marítima, além-fronteiras,
além-mar no norte de África: é a aventura narrada Tapeçarias de Pastrana (último
quartel do séc. XV)11.
Em 1915, José de Figueiredo e Reynaldo dos Santos associam os Painéis e as
Tapeçarias, cada conjunto com seis painéis, como representativos de um discurso
iconográfico triunfal de estado, cavaleiresco e guerreiro, ao serviço de uma ideologia
governativa, expansionista, imperial. E essa fraternidade renovar-se-á em 2010, na
exposição “A Invenção da Glória: Afonso V e as Tapeçarias de Pastrana” (2010, no
MNAA, em Lisboa), realizada no âmbito das comemorações dos 25 anos da adesão
de Portugal e Espanha à Comunidade Económica Europeia.
Depois, perspectivando esses episódios e os subsequentes, Os Lusíadas (1572)
falarão do projecto nacional e da saga dos descobrimentos de um ponto mais avançado
da História nacional.
Saltando no tempo, vemos Fernando Pessoa responder a Nuno Gonçalves e aos que
se lhe seguiram com a representação de um Povo em História através de uma galeria
de retratos que constituem o seu livro como políptico poético-simbólico. No centro,
na sequência de dois arautos, anunciada por eles, ergue-se a escrita de si, de si em ti
e de ti em si, do que escreve em nome da comunidade e do que a sagra: Screvo meu
livro à beira-mágoa… e o verbo cria o seu mundo, exprimindo e actualizando a profecia
fundadora, instituindo-a presente.
O evangelho pessoano emerge de uma moldura em que confluem a vertigem
das exposições e a miragem do projecto nacional convocado em pose nos Painéis:
os  Primitivos Portugueses  são contemporâneos da  Exposição do Mundo Português,
favorecendo a tese do “lusitanismo da arte portuguesa” (João Couto), que José de
Figueiredo teoriza, defendendo a existência de uma escola portuguesa de pintura (cf.

11 Conjunto de  tapeçarias  de grandes dimensões (11 metros por 4 metros), em  lã  e  seda, celebratórias da
conquista de  Arzila (O Desembarque, O Cerco e O Assalto)  e  Tânger (Entrada)  (1471) pelas forças de
D. Afonso V de Portugal com legendas, além de duas outras, ainda não restauradas, sobre a conquista de
Alcácer Ceguer (1458).
Mensagem em moldura epocal 615

ANDRÉ, P.; HENRIQUES, L. L.; MARTINHO, L. I.; APOLINÁRIO, S.; COSTA, R.


R., 2013).12

3.1 Da heteronímia

No quadro da mitologia identitária de Portugal como País e Povo eleito, assente nas
pedras angulares dos juramentos reais (RITA, A., 2012: 155-173)13 Fernando Pessoa
desenvolve uma obra cujo modelo encontra o que se agiganta em ponto de fuga no
cânone ocidental: a Bíblia, o Livro dos Livros (BLOOM, H., 1997; CALVINO, I., 1994;
RITA, A., 2014). E não está alheado da estratégia sua contemporânea de construção
de imagem identitária através de exposições.
Deixando de lado a controvérsia sobre a sua génese e explicação (para a qual
Pessoa também contribuiu fortemente), a verdade é que a progressiva, hesitante e
redesenhada multiplicação heteronímica tem dois modelos na sua anterioridade:
• por um lado, o bíblico, na complexa definição do seu cânone textual (desde
as traduções, às versões, à selecção e atribuição de autoria dos textos e dos
apócrifos);
• por outro, a própria literatura portuguesa, onde a redefinição da portugalidade
estética se vai processando, como se exprime em exemplos como o de Garrett,
no seu Bosquejo  da História da  Língua Portuguesa  e da  Poesia  Portuguesa
(1826).

E há uma genealogia em que ambas se fundem: a profética. Comum a ambas,


desenvolve-se a genealogia que, em Portugal, tem a sua expressão religiosa-filosófico-política
em António Vieira (Chave dos Profetas) e a popular em Bandarra, abrindo espaço
para a literária do Screvo meu livro à beira mágoa… do Mensageiro ao Rei Regressado,
Desocultado.
Em suma, a inscrição da obra pessoana numa tradição literária assim encarada,
metamórfica, multímoda, heterogénea, feita de continuidades e de descontinuidades,
de contradições e de diálogo interno, teria de passar por uma conformação genética a
esses modelos: na confluência de ambas as linhagens (ELIOT, T. S., 1919), ela surgiria
como o exemplo, ilustração, case study acabado da moldura que o integra.

12 Paula André, Luís Louzã Henriques, Luísa Isabel Martinho, Sónia Apolinário e Rui Reis Costa. Modos de ver
e de dar a ver os Painéis de São Vicente: http://midas.revues.org/256.
13 Reproduzo ambos os textos em “A Imaculada Conceição e a legitimação da nacionalidade”, comunicação
inserida no meu livro Focais Literárias (2012).
616 100 Orpheu Annabela Rita

Assim, a obra do nosso autor


• também tem, como ambas as linhagens referidas (nacional e religiosa,
ocidentais), um texto fundador e controverso, pedra angular do edifício do
mito autoral: a Carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos,
de 13 de Janeiro de 193514;
• e tem uma dispositio de exposição com legenda autoral de heteronímia
conformando diferentes registos estéticos, sem deixar de criar a repetição e
contradição em algumas atribuições e versões textuais. Estratégia, afinal de se
exibir com estranheza, com singularidade…

3.2 Da Mensagem

Em resposta a um inquérito, Fernando Pessoa disse que “Há só uma espécie de


propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação — a construção ou
renovação e a difusão consequente e multímoda de um grande mito nacional.”15
“O pormenor, como tudo, tem a sua hora.”16 Em 1934, Pessoa tenta revitalizar esse
velho “reino que era uma sombra animada por um único sonho: o Sebastianismo”,
na formulação de Oliveira Martins citada por Guerra Junqueiro em 189017. Pessoa
agarra o sonho e trá-lo para a sua contemporaneidade, num procedimento realizador,
construtor de realidade.
De Portugal a Mensagem, a mudança é significativa: a representação cede à
revelação. O verbo organiza a primeira em função da perspectiva apocalíptica. A

14 Cf. http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=4292
15 “IV - Sim ou não o moral da Nação pode ser levantado por uma intensa propaganda, pelo jornal, pela revista
e pelo livro, de forma a criar uma mentalidade colectiva capaz de impor aos políticos uma política de grandeza
nacional? Na hipótese afirmativa, qual o caminho a seguir?
Há só uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação — a construção ou
renovação e a difusão consequente e multímoda de um grande mito nacional. De instinto, a humanidade
odeia a verdade, porque sabe, com o mesmo instinto, que não há verdade, ou que a verdade é inatingível. O
mundo conduz-se por mentiras; quem quiser despertá-lo ou conduzi-lo terá que mentir-lhe delirantemente,
e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir a si mesmo e se compenetrar da verdade da mentira
que criou. Temos, felizmente, o mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa.
Nosso trabalho é pois mais fácil; não temos que criar um mito, senão que renová-lo. Comecemos por nos
embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o encarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente
e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera
estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da Nação o fenómeno
imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá
regressado El-Rei D. Sebastião”. Cf. PESSOA, F., 1979: 100) [http://multipessoa.net/labirinto/portugal/14].
16 PESSOA, F., 1993 [http://arquivopessoa.net/textos/2041].
17 [http://nautilus.fis.uc.pt/personal/marques/old/very-old/junqueiro/work/finis_patriae.html]. Cf. sobre este
assunto: tese de Onésimo Teotónio de Almeida em Pessoa, Portugal e o Futuro (1987), Porto, Gradiva, 2014
Mensagem em moldura epocal 617

heráldica dos tempos (as três “Partes”), dos lugares/elementos (terra, mar/água
e ar) e dos respectivos protagonistas, símbolos e referências numa composição de
diversos núcleos com crescendos internos, esboçando movimentos ondulatórios que
se impulsionam recíproca e sucessivamente. Políptico, exposição, convocação de
símbolos (a epopeia, narrativa do tempo, cede à heráldica, sistémica, centrada no
brasão, no timbre). A linhagem e a chave de uma série dos profetas, de diferentes grãos
da voz sibilina, oracular (da poesia cifrada de Bandarra à filosofia de Vieira), vertida
pelo poeta, último intérprete dessa genealogia mediúnica no livro à beira-mágoa.
Depositário do saber, arauto (codificador e leitor) da mensagem de um Rei oculto
(Artur, Sebastião e outros), velador e desvelador desse conhecimento, ser-nevoeiro,
só ele se pode transformar, em súbita epifania, na própria revelação, instituindo um
novo ciclo anunciado na profecia que veiculava, correspondendo à performatividade
mágica do verbo: porque É a Hora! Fiat lux! No timbre, o Grifo atravessando os
tempos dos homens e dos deuses.
Como no início… o Verbo, o Homem, a História e o Mito!  

Bibliografia

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ZÈVI, Bruno (1996). Saber ver a arquitetura. São Paulo: Martins Fontes.
O Mito do Orpheu

Arnaldo Saraiva

“Depois da grande ferroada que foi o Orpheu, Lisboa ficou aturdida durante
séculos”.
Não sabemos se os séculos vindouros confirmarão o juízo e a profecia que em
1990 saíram da boca de Mário Cesariny1. O que sabemos é que Lisboa – quer dizer,
Portugal – conheceu em 1915 um terremoto bem distinto do de 1755, provocado não
pela fúria da natureza mas por uma revista literária e artística que a lisboeta Tipografia
do Comércio acabara de imprimir em 24 de Março, uma revista de que só saíram
dois números, cada qual com cerca de 80 páginas, e que só teve 17 colaboradores,
15 escritores e dois artistas plásticos; e sabemos que depois da centena de críticas
impressas que em poucas semanas logo suscitou, depois dos livros e dos ensaios que
ao longo de décadas estudiosos como João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro,
Eduardo Lourenço, Jacinto do Prado Coelho, Maria Aliete Galhoz, Fernando
Guimarães, Nuno Júdice e tantos outros lhe foram dedicando, ainda hoje continua
a exercer grande fascínio junto de elites culturais de vários países e ainda justifica os
livros, as homenagens, as exposições, os documentários, os colóquios, os debates, as
conferências que celebram o seu centenário.
Já por várias vezes e de distintos modos tinham sido assinalados alguns aniversários
do Orpheu; lembro, por exemplo, que, na passagem dos 20 anos, o Diário de Lisboa
(8/3/1935) lhe dedicou o seu suplemento literário, que abria com um texto e um
desenho de Almada Negreiros; a passagem dos 30 anos celebrou-a o jornal República
(20/5/1945) publicando colaboração inédita dos então “cinco únicos sobreviventes” de
Orpheu; a passagem dos 50 anos justificou o estudo e a memória do “desdobrável” de
Almada Negreiros 1915 Orpheu 1965; na passagem dos 60 anos a Câmara Municipal
de Gaia e a Casa Museu Teixeira Lopes organizaram uma exposição, de que se fez
um catálogo que abria com o meu estudo: “A génese de Orpheu e do modernismo
português e brasileiro (novos elementos para o seu estudo)”, e realizaram uma sessão
coletiva, finda a qual julgo ter convencido Alberto de Serpa, que a ela assistiu, a
disponibilizar para publicação as “provas” que tinha do Orpheu 3; a Colóquio/Letras
publicou, na passagem do mesmo aniversário, um inquérito sobre “o significado

1 Jornal de Letras, Artes e Ideias, 20 de fevereiro de 1990.


620 100 Orpheu Arnaldo Saraiva

histórico de Orpheu” a que responderam Ana Hatherly, Eduardo Lourenço, Eugénio


de Andrade, Fernando Guimarães, Jorge de Sena, José-Augusto França, José Blanc de
Portugal e Vergílio Ferreira2.
Era de prever que as celebrações do Orpheu iam ganhar no ano em curso bem
maior relevância – mas não só por causa dos investimentos que costumam merecer
efemérides tão redondas como um centenário; também pela espantosa vitalidade ou
energia que ainda carrega o nome de Orpheu, que para o mundo lusófono ou lusógrafo,
mas não só, evoca e sinaliza, mais do que um dos mais complexos e fecundos mitos
que a Grécia mater nos legou, uma revista, por sinal efémera, e uma geração que têm
um lugar distinto e fecundo entre as correntes modernistas internacionais, e que os
pós-modernismos não puderam ignorar ou desvalorizar.
Aqui e agora, talvez fosse bom lembrar o que disse Almada Negreiros quando se
celebraram os 50 anos de Orpheu: “Toda homenagem, mesmo no melhor dos casos,
não pode deixar de ser nunca senão desastre. Homenagem não é senão conveniência
do homenageante”3. O homenageante de hoje tem obviamente o direito, além da
necessidade, dessa conveniência – mas deveria evitar a inconveniência da comum
retórica evocativa ou invocativa e do esvaziamento ritualístico. A minha esperança
é que as celebrações do centenário do Orpheu favoreçam a reflexão sobre o que nos
aproxima e afasta dos homens que o inventaram, sobre o que houve de positivo ou
negativo no seu esforço para evitar um “Portugal a entristecer” – como aquele em que
afinal também nós estamos -, sobre a ação que com lucidez e sacrifício desenvolveram
para que os portugueses fossem respeitados e dignificados na Europa e no mundo,
para que a nossa nação fosse uma escola ao serviço da supernação futura, ou tão
só para cumprir uma alta missão ao serviço da humanidade. Esperemos desde logo
que as celebrações do centenário estimulem a publicação de livros que, como os que
acabam de organizar e lançar em Portugal Steffen Dix - 1915 O Ano do Orpheu4 - e, no
Brasil, Carlos Felipe Moisés –Orpheu 1915-20155, deem do Orpheu uma visão ampla
e aprofundada, ou que estimulem a publicação criteriosa de textos inéditos, que
ainda há, e de dispersos (que se impõe coligir) de modernistas maiores ou menores,
e a publicação de ensaios originais. Porque, há que dizê-lo, à volta de Pessoa e dos
seus companheiros desfilam hoje multidões de diluidores ou de repetidores, e de
repetidores de repetidores.

2 Nº 26, de Julho de 1975.


3 1915 Orpheu 1965, Lisboa, Ática, p.6.
4 Lisboa, Tinta da China, 2015.
5 Campinas, Unicamp, 2015.
O Mito do Orpheu 621

Pela parte que me toca poderia anunciar – até por que nos desabituámos de ver
anúncios desses em jornais, rádios e televisões, que quase só têm tempo e espaço para
boçalidades futebolísticas, banalidades políticas, passatempos idiotas e cançonetas ou
cançonetistas pimba – que publiquei há pouco Os Órfãos do Orpheu 6 ; e noutro volume
intitulado “Para o Túmulo de Fernando Pessoa” e Outras Prosas7 recolhi as prosas
dispersas, tão desconhecidas, de um dos principais responsáveis pelo aparecimento
do Orpheu, de que foi inicialmente diretor. Refiro-me, claro, a Luís de Montalvor, cujo
Livro de poemas também revelei em 1998, e de que publicarei mas tarde as cartas que
recebeu e escreveu, muitas das quais inéditas.
Mas nesta oportunidade gostaria de propor algumas reflexões que prolongam ou
aprofundam as que deixei no livro Os Órfãos do Orpheu.

1) O nome do Orpheu

A ideia de se revelarem ou firmarem por meio de uma revista, meio de comunicação


intermediário entre o peso do livro e a leveza do jornal ou do folheto, que nos finais do
séc. XIX ganhara o gosto de velhos e novos leitores, às vezes atraídos pelas ilustrações,
muitos jovens autores portugueses, como outros estrangeiros, a tiveram; a ideia de
uma revista como seria o Orpheu começou a definir-se quando Pessoa se desligou
da Águia, e foi sendo incubada quando Pessoa e Sá-Carneiro projetaram as revistas
Lusitânia – de que em fevereiro de 1913 já havia um “plano completo” - e Europa –
para que em 1914 ele já escrevera parágrafos de um manifesto. Projetos que rejeitaram
desde logo por terem os limites que os nomes Lusitânia e Europa insinuavam. Mas o
nome da revista que à partida conceberam como cosmopolita veio do Brasil, o que
parece simbolicamente relevante, trazido por Luís de Montalvor, que desde os fins de
1912 aos de 1914 conviveu no Rio de Janeiro com jovens poetas que também sentiam
a necessidade do mesmo tipo de revista, como pode deduzir-se de uma nota da revista
carioca Fon-Fon! de 26 de abril de 1913 (“Todos estes belos espíritos que surgem /…/
precisam iniciar um movimento em que o seu destaque seja decisivo e benéfico”) e
da evocação que Montalvor fez do seu convívio carioca com Ronald de Carvalho:
“Data dessa época a gestação, o plano, in mente, da fundação de uma revista eclética,
repositório vivo, documentário incisivo dos vários modos de ser, dos anseios, das
curiosidades estéticas da gente nova”8.

6 Porto, Fundação Engº António de Almeida, 2015.


7 Lisboa, Ática, 2015.
8 Modernismo Brasileiro e Modernismo Português, Campinas, Unicamp, 2004, pp.594-595.
622 100 Orpheu Arnaldo Saraiva

Ronald de Carvalho permite alguma dúvida sobre a responsabilidade da escolha


do nome da revista: “Sabes que esse é o meu, antes, o nosso Orfeu, cuja primeira
semente floriu ao pé das ondas de Copacabana”- escreveu ele em carta a Montalvor de
Março de 1915; e em carta de Abril de 1915 também falou do “nosso Orfeu”.
Mas Montalvor pareceu claro a garantir que foi ele o padrinho: “revista esta que
mais tarde eu batizei com o título de Orpheu” 9.
Fernando Pessoa confirmou a importância que Montalvor teve para o nome e para
a para o arranque da revista: “Em princípio de fevereiro de 1915 (se me não engano)
regressou do Brasil Luís de Montalvor, e uma vez, em fevereiro (creio), encontrando-
se no Montanha comigo e com o Sá-Carneiro, lembrou a ideia de se fazer uma
revista literária trimestral - ideia que tinha tido no Brasil, tanto assim que trazia para
colaboração alguns poemas de poetas brasileiros jovens, e a ideia do próprio título da
revista - Orpheu”10 .
A verdade é que o documento em que aparece escrito pela primeira vez o título de
Orpheu não se deve a Montalvor nem a Ronald de Carvalho, mas a Fernando Pessoa,
que em 19 de fevereiro de 1915 anunciou a Armando Côrtes Rodrigues: “Vai entrar
imediatamente no prelo a nossa revista, Orpheu”11.

2) A grafia do nome Orpheu

Fernando Pessoa escreveu Orpheu, com ph. Mas em tempos que já eram, imagine-
se, de acordos e desacordos ortográficos, não faltava quem escrevesse com f, mesmo
entre os colaboradores da revista. Ronald de Carvalho, por exemplo, usou sempre essa
grafia nas cartas a Montalvor. Recorde-se aliás o que Almada Negreiros escreveu no
Diário de Lisboa de 8 de Março de 1935: que no Orpheu até a ortografia era a de cada
autor.
Pensando que o nome da revista veio do Brasil não é difícil entender a preferência
pela grafia com ph – porque toda a imprensa do Rio a usava então, quer na referência
ao mito, quer na referência a espetáculos de música ou dança, quer em nomes
individuais. Fica assim algo desfavorecida a hipótese da sugestão arcaizante (somada
à da sugestão do mito grego) que alguns viram nessa grafia, ou a de que o padrinho
ou os padrinhos dela tinham imitado os da revista coimbrã de 1912, Dionysos, com
y grego.

9 Id., p.595.
10 Id., p.100.
11 Fernando Pessoa, Correspondência 1905-1922, edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim,
1999, p.148.
O Mito do Orpheu 623

3) O Tempo de Orfeu.

De acordo com o testemunho de Carlos Maul, que na sua casa de Copacabana


acolheu Montalvor, este “Tinha em mente realizar um poema intitulado «Orfeu», de
revivescência do mito helénico”12, que nunca concluiria.
É provável que o nome, o tema ou motivo de Orfeu já o tivesse levado de
Portugal, quem sabe se trabalhado ou conjeturado com a ajuda de ventos culturais
que sopravam de França e de que Montalvor muito gostava, como aliás inúmeros
seus contemporâneos fora de França. Esses ventos não eram só literários (Orfeu foi
celebrado por inúmeros autores franceses, como Nerval, Lecomte de Lisle, Valéry,
Apollinaire…), porque podiam ser também visuais (Gustave Moreau, Ingres,
Raoul Dufy….) e musicais, mesmo que com origens fora de França (Gluck, Liszt,
Offenbach…), e podiam ser religiosos ou esotéricos, soprados até por seitas órficas,
que em 1909 terão determinado o título da famosa obra de Salomon Reinach,
Orpheus-Histoire Générale des Religions.
Não por acaso, encontramos o nome de Orfeu em obras de amigos cariocas de
Montalvor, alguns dos quais foram convidados para colaborar no Orpheu: Ernâni
Rosas, que por sinal dedicou aos que chamou “irmãos de Salomé” - Montalvor,
Mário de Sá-Carneiro e a Ronald de Carvalho - o seu livro Poema do Ópio (1918),
incluiu neste livro o soneto datado de 16 de Dezembro de 1913 que começa assim:
“Trago de Hamlet a dúvida sombria, / de Orfeu o canto e a lira melodiosa”; Eduardo
Guimaraens publicou na revista Fon-Fon de 23 de Dezembro de 1915 um soneto
intitulado “Orpheu”; e Homero Prates publicou em 1923 o livro que intitulou Orfeu.
Quatro anos antes, o poeta Olavo Bilac, que sem dúvida marcou o poeta da Mensagem,
deixara no livro Tarde (1919) o célebre poema “A morte de Orfeu”:

Luz da Grécia, pontífice de Apolo,


Orfeu, despedaçada a lira ao colo,
A carne rota ensanguentando o solo,
Tombou…E abriu-se em músicas o chão…13

Curiosamente, no discurso com que em 1916 o saudou numa homenagem em


Lisboa, Guerra Junqueiro falara nos “novos Orfeus” do Brasil. Que não seriam
certamente o “Orpheu do silogismo” que alguém quis ver mais ou menos por essa

12 O Rio da Bela Época, Rio de Janeiro, Livraria S. José, 1967, p.165.


13 Olavo Bilac, Obra Reunida, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1996, p. 266.
624 100 Orpheu Arnaldo Saraiva

altura no orador, jurista e polemista Rui Barbosa, ou o “Orpheu do seringal” que o


poeta Humberto de Campos quis ver no irapuru:

Dizem que o irapuru, quando desata


A voz – Orpheu do seringal tranquilo –
O passaredo, rápido, a segui-lo
Em derredor agrupa-se na mata14.

Mas a imprensa carioca da década 10-20 publicou outros poemas inspirados em


Orfeu, como os de Ludgero Alves Cabral (O Malho) e de Francisco Ricardo (O País),
antecessores de outros textos bem mais memoráveis, como A Invenção de Orfeu, de
Jorge de Lima, o Orfeu Negro, de Vinicius de Moraes, ou o famoso “Exergo” de Murilo
Mendes (“Orfeu Orftu Orfêle / Orfnós Orfvós Orfêles”15)– sem esquecer poetas mais
recentes como Adriano Espínola, Geraldo Carneiro e Rodrigo Petronio, estudados
por António Donizeti Pires16.
Na imprensa carioca também comparecia com alguma frequência o nome
“Orpheu”, fosse a propósito de um concerto em que por exemplo se tocou ou cantou
Gluck, ou de algum ballet, protagonizado por exemplo por Isadora Duncan, ou de
alguma lenda, oferecida em folhetins, ou da inauguração de uma loja teosófica (na
Rua do Catete, 287, em 30 de Setembro de 1919), ou fosse até a propósito de alguma
pessoa, como “o sr. e a srª Orpheu” (num jornal de 11 de Abril de 1915), ou como os
senhores Orpheu da Silva Rodrigues, Orpheu Frederico Cunha e Eugénio Orpheu,
ao que parece autor de uma serenata que, dizia o jornal, só pelo nome já garantia
a boa execução. (Oh, também encontrei no jornal carioca O País a de 1 de Janeiro
de 1912 a referencia a um aluno do colégio Pedro II chamado Fernando Pessoa –
que obviamente ninguém confundiria com o Fernando Pessoa que assinava várias
traduções da obra em 24 volumes que nesse ano ou no início do seguinte começou a
vender-se no Brasil com o título Biblioteca Internacional de Obras Célebres).
Diga-se a propósito, para surpresa ou espanto geral, que os quatro diretores de
Orpheu – Montalvor, Ronald, Pessoa, Sá-Carneiro - já em 1914 marcavam presença
na cultura brasileira, e tinham estabelecido relações entre si.

14 Poeira,2ª série (1911-1915), Porto, impresso na Empresa Literária e Tipográfica para a Editora Leite Ribeiro
& Maurillo, (1917), p.203.
15 Convergência, S Paulo, Livraria Duas Cidades, 1970 (ou: Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, Editora
Nova Aguilar, 1994, p.625). Antes desses dois versos finais o “exergo” – datado de “Roma 1964” - tem estes:
“Lacerado pelas palavras-bacantes / Visíveis tácteis audíveis / Orfeu / Impede mesmo assim sua diáspora /
Mantendo-lhes o nervo & a ságoma”.
16 “Perfis de Orfeu na poesia brasileira recente”, in Texto Poético, Vol.11, 2011.
O Mito do Orpheu 625

4) A capa do Orpheu (nº1)

Poucos se debruçaram até hoje sobre o grafismo da capa do primeiro número de


Orpheu, como se esse grafismo fosse irrelevante num tempo de renovação das artes
gráficas, que se via também em revistas como A Rajada (1912), trabalhada por Correia
Dias, ou como se fosse indiferente o facto de o Orpheu ter como colaboradores Luís de
Montalvor – que seria o responsável pelo grafismo impecável da sua revista Centauro
(1916) e, mais tarde, das edições da Ática -, Almada Negreiros, Santa Rita Pintor e,
em projecto do n.º3, Amadeo de Souza- Cardoso, cujos admiráveis “hors-texte” foram
descobertos há pouco por Marta Soares.
Da capa do 1º número disse José-Augusto França que era “simbolista”, como
Fernando Pessoa (certamente) disse da capa do número dois – com uma capa bem mais
simples, por razões de economia – que era uma “brilhante composição do arquiteto
José Pacheco”17.Mas a capa do primeiro Orpheu é na verdade híbrida, já que não lhe
faltam motivos modernistas. Nela notaremos duas partes bem distintas: a de cima,
pictórica, e a de baixo, verbal; a de cima desenhada e pintada, a de baixo manuscrita,
mas com letra desenhada, ainda que uma e outra tenham exigido a zincogravura que se
guardou. Notaremos o quadro ou quadrado superior de bordos irregulares- como um
esquiço de arquiteto (e José Pacheco era arquiteto), com um fundo azul limpo, por cima
ou atrás de um fundo preto também de recorte irregular, talvez para sugerir a oposição
céu/inferno, ou luz /trevas; notaremos a simetria e dissimetria de dois enormes círios
acesos, insinuando também a oposição da luz e da escuridão, mas trabalhando com
a simbólica do fogo e da cera, da energia e da dissolução, da memória e da perda.
Notaremos a figura central feminina (Eurídice?) com a grande mancha oval do cabelo,
que pode associar a feminilidade à sexualidade, e a nudez frontal, todavia virtualis
(pureza, inocência, abertura), não criminalis (luxúria, vaidade, exibicionismo);
notaremos a sua postura vertical, de pé, mas parada, como quem quisesse expor-se
completamente, ou impedir uma passagem com os braços abertos em cruz, que quase
ligam aos círios como o traço de um H maiúsculo (Homem ?); e notaremos a ausência
do homem (Orfeu). Mas notaremos ainda sob o canto direito inferior do quado a
assinatura horizontal e desaticulada do artista, que dificilmente se leria como “José
Pacheco”, e quase parece “José Pintor” e, anormalmente, na base inferior, a largura
maior do que o quadro, entre dois pontos dissimétricos em relação aos dois círios, o
título ou a palavra em tipo manuscrito Orpheu, com a cauda que faz pensar no grego
ou no latim Orpheus, e com um traço firme, mas elegante, e ligeiramente ascendente.

17 A afirmação vem, anónima, no “Serviço da redação” que abria o n.º 2 de Orpheu.


626 100 Orpheu Arnaldo Saraiva

Maria Aliete Galhoz, que é hoje, com Eduardo Lourenço, a decana dos estudos
pessoanos e que nos anos 50 do século passado foi quem mais teve de se haver com
a letra de Fernando Pessoa, disse-me estar convencida que é deste - e não de José
Pacheco – a grafia do título na capa de Orpheu 1. Parece-me difícil admitir que José
Pacheco dividisse com outrem a responsabilidade da capa, que aliás tem semelhanças,
até na cadente cauda final, com a da revista Contemporânea, dirigida pelo mesmo José
Pacheco. Mas também me parece evidente a relação do grafismo do título do Orpheu
com o grafismo que Pessoa usa na referência ao Orfeu em três ou quatro manuscritos;
imitaria ele o que escreveu José Pacheco, ou foi este a imitar a letra de Pessoa? De
qualquer modo, temos de notar que Pessoa, tão presente em textos e dedicatórias da
revista, também estaria de algum modo presente logo no grafismo do título.

5) A recepção do Orpheu no Brasil

Projetada no Brasil, projetada como revista para Portugal e para o Brasil, a revista
Orpheu só se valeu da colaboração de 2 brasileiros, numa desproporção enorme; o
diretor brasileiro do 1º número foi afastado e substituído, apressadamente, e talvez
sem nenhuma explicação direta dos novos diretores, que na explicação pública nem
se preocuparam em referir o seu nome, como se só devessem uma explicação ao outro
diretor substituído; veja-se o que diz o já referido “Serviço da redação” com que abria
o n.º2:

Várias razões, tanto de ordem administrativa, como referentes à assunção de


responsabilidades literárias perante o público, levaram o comité redatorial de ORPHEU
a achar preferível que a direção da revista fosse assumida pelos atuais diretores, não
envolvendo tal determinação a mínima discordância com o nosso camarada Luís de
Montalvor, cuja colaboração, aliás, ilustra o presente número.

Tudo leva a crer que nem foi enviada para assinantes brasileiros, que Ronald de
Carvalho supostamente angariara, a revista que, inesperadamente, se esgotou em
Portugal em duas semanas. Porque nunca foi encontrada notícia ou rasto de algum
exemplar que tivesse pertencido a Ronald ou a outro escritor brasileiro. E até há
pouco só me fora dado saber - por um recorte guardado num caderno de Mário de
Sá-Carneiro - de um perdido exemplar que chegou a uma revista carioca, que deu
o Orpheu como uma “publicação que honra sobremaneira os centros intelectuais
portugueses e brasileiros,” por isso lhe desejando “o mais brilhante futuro”, e que até
louvou o seu papel de “superior qualidade”, garantindo que podia “mesmo sofrer o
confronto” com duas das mais cotadas publicações parisienses.
O Mito do Orpheu 627

Supunha eu que esta era a única referência da imprensa brasileira de 1915


ao Orpheu; mas descobri recentemente que outra publicação carioca, o Correio
da Manhã, publicou em 15 de Outubro de 1915 a longa crónica intitulada “Novo
Orpheu”- que no entanto foi enviada de Lisboa … e pelo português Sousa Costa,
nascido em 1879, bacharel de direito pela Universidade de Coimbra, escritor de várias
espécies textuais, e camilianista. Nessa crónica, o autor começa por dizer que não
sabe “se já chegou ao Brasil o eco da música do novo Orpheu – o verdadeiro”, pois
o outro, o da Grécia, “não está averiguado se existiu”; e garante que “para a história,
para o mais luzido dos seus altares, entrou já, e não conta senão três meses, o Orpheu
atual”. Por este início, não seria difícil adivinhar que estávamos perante mais um dos
muitos textos que pretenderam atacar ou gozar com o Orpheu. E o que vinha a seguir
não fugia ao modelo instaurado pelo diário lisboeta A Capital, que logo em 30 de
Março de 1915 – quer dizer, 4 ou 5 dias depois da publicação da revista – em duas
colunas da primeira página, denunciava a “paranoia” dos colaboradores de Orpheu,
que pertenceriam a “uma categoria de indivíduos que a ciência definiu e classificou
dentro dos manicómios”. Sousa Costa dispensou os comentários depreciativos: “devo,
antes, para sua glória (do Orpheu) e vossa satisfação, deixar que ele fale, e vos infiltre
no cérebro a atividade clara da sua música”. Assim, passou a transcrever passagens de
colaborações do nº2 de Orpheu – da autoria de Ângelo de Lima, Mário de Sá-Carneiro
e Álvaro de Campos -, gracejando também sobre a colaboração plástica de Santa Rita
Pintor, para no fim insinuar, numa historieta, que, como dissera A Capital, se tratava
de “artistas de Rilhafoles”.
O leitores brasileiros do Correio da Manhã devem ter ficado esclarecidos sobre a
importância do Orpheu – e gratos por tão “engraçada” prosa que lhes chegara de Portugal.

6) A receção portuguesa do Orpheu

No seu prestimoso livro de 1986, A Era do Orpheu18, Nuno Júdice foi o primeiro a
dar extensa conta das reações da imprensa portuguesa à publicação da revista, creio
que usando as dezenas de recortes que Mário de Sá-Carneiro colou meticulosamente
em cadernos que confiou a Fernando Pessoa.
Como hoje é por demais sabido, tais reações só por exceção foram sérias e favoráveis,
como a que Carvalho Mourão publicou no jornal de província (de Estremoz),Terra
Nova, a 11 de Abril de 1915. Em geral eram sarcásticas, insultuosas, zombeteiras, e até,
de acordo com o que diz Júdice, “furiosas”.

18 Lisboa, Teorema, 1986.


628 100 Orpheu Arnaldo Saraiva

Embora não tenha feito o inventário de tais reações nem a sua análise sistemática,
Júdice achou por bem referir separadamente reações “no Sul” e “no Norte”, quando talvez
tivesse sido mais pertinente referir em separado as reações “em Lisboa” e “na província”.
No entanto pôde afirmar, sem provas nem argumentos relevantes, que “o acolhimento
feito na província a Orpheu era bem mais positivo do que o que se verificava na capital”19.
No que concerne ao Norte, Júdice sinalizou referências de O Primeiro de Janeiro de:
- 7 de Abril (Guedes de Oliveira, “Carta de Lisboa”)
-13 de Abril (anónimo, “Orfeu”)
-3 e 4 de Julho (2 partes, anónimo, “Cartas do país”)
-9 de Julho (João Neiva, “Carta de Lisboa”)

Mas não assinalou, curiosamente, a primeira referência, logo a 30 de Março: uma


“Carta de Lisboa”, datada aliás de 28 de Março, e assinada por Guedes de Oliveira.
Notar-se-á o interesse com que o jornal ou os seus jornalistas receberam o Orpheu; a
rapidez com que esta chegou ao conhecimento do público nortenho; e o teor depreciativo
ou irónico das referências, idêntico ao de A Capital, ao da capital, de onde algumas delas
eram enviadas. Assim, podemos ler que:

-“Um grupo de novos /…/ resolveu despertar a atenção pública para algumas
extravagâncias, geralmente de péssimo gosto, e, na sua maioria, sem sombra de valor
de arte”
- “a lira deste Orpheu não mostra sonoridade nem grandeza”
- “a crítica mostra-se implacável com os colaboradores da original revista, que começou
a produzir exemplares curiosos, no género de literatura de manicómio”
- “são sublimes de poesia futurista estes berros em é, e em ó, e em y!”

Mas Nuno Júdice também ignorou uma crónica de Simões de Castro intitulada “O
caso do Orpheu” e publicada no jornal portuense A Tarde, de 15 de Abril, que é um
documento invulgarmente interessante para a teoria da receção da revista. O jornalista
começa por dizer que “não esmoreceu ainda nas gazetas o ardoroso furor de discutir
o caso da revista Orpheu, que os cronistas são unânimes em considerar como um
documento patológico”. E depois de lembrar que entre os colaboradores da revista “há,
sem dúvida, rapazes de talento, temperamentos originais e brilhantes que não podem ser
tratados do modo chocarreiro por que se trata o poeta Sevilha ou o poeta Camarão”, passa
a zurzir os críticos e os jornalistas incultos, “preguiçosos” e “desocupados”, das esquinas

19 Op.cit., p.74.
O Mito do Orpheu 629

e dos cafés, que, farejando o escândalo e a polémica para vender mais, “apareceram nas
folhas a denunciar o crime horrendo dos blagueurs do Orpheu, em rotundos artigos de
coluna, entrevistas, inquéritos”, e fizeram da revista “o assunto do dia nesta boa terra
de pacóvios”. Mas quando pensávamos que ele iria exaltar as virtudes da revista ou dos
seus colaboradores, eis que se limita a assinalar “o seu bizarro futurismo”, “uma blague
de criaturas de espírito” que quiseram “em hora de bom humor, épater o meio com
uma dúzia de excentricidades espetaculosas, o que, seja dito de passagem, conseguiram
plenamente”. E a conclusão da crónica era brilhante: “muitos dos críticos do Orpheu
escreveram a sério muito pior do que os colaboradores do mesmo Orpheu – a brincar”.

Como vemos, o Orpheu foi mais do que a “grande ferroada” a que se referiu Almada
Negreiros: foi, repito, um terremoto cultural, um claríssimo divisor ou clarificador
entre mentalidades portuguesas fechadas e abertas, acomodadas e inquietas, boçais
e criativas. O espantoso é que esse terremoto tenha sido produzido só com palavras
e quase só com palavras de poesia: para lá da poesia, nos dois Orpheu, que não
incluíram nenhum ensaio ou crítica, só houve uma peça de teatro – O Marinheiro,
de Fernando Pessoa -, só houve um texto em prosa, aliás a típica prosa enrolada,
caudalosa e vertiginosa (“novela vertígica”) de Raul Leal (Pessoa não quis publicar na
revista nenhuma página do Livro do Desassossego), e só houve a poesia prosaica ou
prosa poética dos “Frisos” de Almada Negreiros (a que no nº 3 se acrescentariam os
textos de Albino de Meneses, Augusto Ferreira Gomes e Castelo de Morais).
Para que tal acontecesse era necessária a conjugação de génios literários como os
de Pessoa, Sá-Carneiro e Almada; mas era também necessário o empenho, a entrega
e a coragem de que dão conta as cartas de Mário de Sá-Carneiro e de Pessoa, que
encararam a publicação do Orpheu como um dever ou uma missão urgente a cumprir
ao serviço de Portugal e até da humanidade.
Uma vez cumprida essa missão, ainda que parcialmente, percebe-se com clareza
a euforia que deles se apossou. Porque o Orpheu foi bem mais do que a bofetada
que os futuristas quiseram dar no rosto ou no gosto de homens ou de intelectuais,
escritores, jornalistas, rotineiros, preconceituosos, mesquinhos, sem generosidade,
sem inquietação, sem imaginação; foi a coragem e a ousadia do inconformismo, o
triunfo da liberdade criativa, a vontade de inventar um país novo, não só uma nova
literatura, de revitalizar uma língua de séculos – que foi a única usada na revista,
por portugueses e por brasileiros, em textos linguisticamente ortodoxos ou tão
heterodoxos como os de Raul Leal e, sobretudo, Ângelo de Lima. Isso terá levado
Fernando Pessoa a escrever que valia a pena aprender português só para ler o Orpheu.
630 100 Orpheu Arnaldo Saraiva

A polémica que suscitou o Orpheu foi ainda mais extensa e fecunda do que a do Bom
Senso e Bom Gosto, por não se limitar a ideias ou a ideologias, já que implicava a ideia
mesma da criação e da liberdade da criação. O espantoso é que os agentes de tal revolução
poderiam à partida parecer condenados à apagada e vil tristeza que o país ou a sua
condição existencial auguravam. Na verdade, eles eram testemunhas em plena juventude
de dramas e tragédias de um Portugal a entristecer, de lutas fratricidas entre republicanos
e monárquicos e até de assassinatos de um rei e de um presidente, ou de uma Europa onde
nascera e se travava a primeira Guerra Mundial. Mas não esqueçamos que quase todos
eles se viram também envolvidos em dramas e tragédias pessoais: a orfandade de pai ou
de mãe (Pessoa perdeu o pai quando mal completara os 5 anos, Côrtes Rodrigues perdeu
a mãe quando ainda não fizera um ano, Sá-Carneiro quando ainda não fizera 2 anos,
Almada perdeu-a com 3 anos…); a falta de suporte familiar, tão sentida por Sá-Carneiro
depois da morte da mãe e mais ainda quando o pai foi para Moçambique, e por Pessoa
quando regressou da África do Sul, ou por Almada, quando cortou com o pai, mas ainda
mais notada no vagabundo Raul Leal ou no isolado – no asilado – Ângelo de Lima; a falta
de apoio afetivo ou conjugal (Pessoa, Sá-Carneiro, Raul Leal…); a falta de dinheiro, que
impediu a publicação do 3º nº de Orpheu e gerou graves e repetidas aflições, sobretudo de
Sá-Carneiro e de Pessoa, mas também de Raul Leal depois que desbaratou uma fortuna;
as ameaças de perturbações mentais, que tanto preocuparam o neto da avó Dionísia, que
levaram Ângelo de Lima ao manicómio, que geraram os delírios ou vertigens de Raul
Leal, que isolaram ou marginalizaram Albino de Meneses; as mortes prematuras, por
suicídio (Sá-Carneiro), por doença anómala (Pessoa), por acidente automobilístico (que,
curiosamente, atingiu, em tempos e lugares diversos, os dois primeiros diretores do Orpheu,
Ronald de Carvalho, no Rio em 1935, e Luís de Montalvor, em Lisboa 1947). Note-se
que 30 anos depois da publicação do Orpheu já só viviam 5 dos seus 17 colaboradores –
Almada, Guisado, Côrtes Rodrigues, Ferro e Montalvor; e este morreria dois anos depois.
Homens “sem suporte” - e no Orpheu só colaboraram homens, não constituindo
excepção o colaborador com o ambíguo nome de Violante de Cysneros -, eles
encontraram na revista o seu lugar simbólico de segurança, de afirmação ou de triunfo.
O poeta americano Frank O´Hara evocou num seu poema a sua condição de menino
órfão, tímido e solitário, que todavia poderia dizer mais tarde:

And here I am, the /E agora aqui estou, o


center of all beauty! centro de toda a beleza!
writing these poems! escrevendo estes poemas!20

20 Do poema “Autobiographia literaria”, in The Select Poems of Frank O’Hara, Nova York, Randon House, 1974.
O Mito do Orpheu 631

Claro que no Orpheu não há só literatura da melhor e literatura de vanguarda;


ao lado da mais ousada modernidade, por exemplo de Álvaro de Campos, podemos
encontrar colaborações com claras marcas simbolistas, parnasianas, decadentistas.
A génese do Orpheu mostra bem algumas dificuldades, atrasos, hesitações, recuos
e os avanços do seu projeto; mas também evidencia a coesão do grupo que o fez,
o dinamismo dos seus diretores principais, a excitação que culminou no momento
epifânico do dia 24 de Março de 1915, e que mais tarde traduziriam afirmações como
as de Almada Negreiros -“foi o primeiro grito moderno que se deu em Portugal”21-, de
Alfredo Guisado - “Orpheu transformou, aformoseou, modernizou, colocou dentro
da Europa a paisagem abandonada da nossa vida literária”22, ou de Fernando Pessoa:
“Há apenas duas coisas interessantes em Portugal – a paisagem e o Orpheu”; “Pode ser
disparate, embora seja verdade, dizer que há mais imprevisto e interesse no Orpheu do
que na presente guerra”23.
Esse imprevisto e interesse talvez Pessoa o previsse no que ela transportava de
energia mítica. A literatura mundial já tinha, desde o século VI antes de Cristo, o mito
de Orfeu, que da Grécia transitou para outros lugares, gerando até páginas de literatura
tão inesquecíveis como as da Eneida de Vergílio, as dos Sonetos de Orfeu de Rilke e a
Invenção de Orfeu de Jorge de Lima; e pena foi que Pessoa não tivesse concluído o seu
Orfeu e Eurídice, de que se guardam passagens manuscritas, um rascunho. Esse mito,
decerto um dos mais complexos que se conhecem, pode ser decomposto em vários
motivos ou submitemas: o do filho de Apolo e de Calíope, o músico Orfeu, com harpa
ou com lira, encantador de pessoas, de animais e de coisas; o da bela ninfa Eurídice;
o da paixão com que ele a persegue, para a não perder para Aristeu; o da queda dela,
que morre mordida por uma cobra, e vai para o reino dos mortos; o do desespero e
da fidelidade de Orfeu, que quer recuperar a amada e entra no Hades, vencendo ou
convencendo com a sua música os guardas e donos dos infernos; o da permissão e do
interdito diabólico (Eurídice seguiria atrás dele, mas ele não podia olhar para trás); o
da violação do interdito, ou do olhar fatal – que levaria Orfeu à perda de Eurídice e
da alegria de viver, e do seu próprio juízo, passando a deambular pelos bosques; o das
mulheres ciumentas que se riam dele e acabariam por matá-lo e esquartejá-lo.
Não há uma história, mesmo abreviada, do mito de Orfeu na literatura portuguesa
ou de língua portuguesa, como a que na vizinha Espanha Pablo Cabanas elaborou

21 Diário de Lisboa, 6 de Março e 1935.


22 O Diabo, 12 de Janeiro de 1936.
23 Escrito em inglês num texto sobre “Portuguese Sensationists”; v. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação,
Lisboa, Edições Ática, 1966, p. 154 e p.156.
632 100 Orpheu Arnaldo Saraiva

já em 1948: El Mito de Orfeo en la Literatura Española24. No Brasil foi publicado em


1990 um modesto livro organizado por Sílvia Maria S. Carvalho, intitulado Orfeu,
Orfismo e Viagens a Mundos Paralelos25, UNESP, que nem alude ao Orpheu português.
Mas quando se escrever essa história a revista Orpheu terá de ocupar nela um lugar
de relevo, na medida em que ela própria já tem, cem anos depois, uma longa e bela
história, e porque, como provará o ano de 2015, ela continua bem viva na memória
portuguesa.
Tal vitalidade vem-lhe do facto de também ela se ter tornado um mito – o mito não
já de Orpheu mas do Orpheu. Eduardo Lourenço assinalou antes de mais ninguém a
dimensão mítica da revista, a sua “mitologia activa”26, e do grupo que a fez, garantindo
que ela “se tornou um mito” não apenas para nós, porque “foi um mito igualmente
para os mais lúcidos dos seus colaboradores”27. (Lembremos que Pessoa dera o Orpheu
como “a ponte por onde a nossa Alma passa para o futuro”28). Estamos aliás perante
um dos mais fascinantes mitos portugueses, que não tem a tragédia do mito de Pedro
e Inês nem a utopia do mito de D. Sebastião.
Foi Dumézil que disse que os mitos – que, se não valem como literatura, têm a
melhor tradução na literatura - são narrativas densas e abertas, fontes de recônditas
energias. E é por demais conhecida a formulação de Pessoa: “O mito é o nada que
é tudo”. Mas Pessoa também confessou que a sua maior aspiração era a de ser um
criador de mitos. E foi-o. Hoje a cultura portuguesa pode beneficiar da existência e
vitalidade de dois novos mitos: o mito do Orpheu e o mito ou os mitos de Pessoa; e
nós poderemos continuar a falar, como Pessoa, na revista “extinta e inextinguível”29, e
a dizer, como ele: “Orpheu acabou. Orpheu continua”30.

24 Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1948.


25 São Paulo, Editora UNESP, 1990.
26 Colóquio/Letras, nº26, Julho de 1975, p.9.
27 Tetracórnio, Fevereiro de 1955.(Texto re-publicado em Tempo e Poesia, Porto, Editorial Inova,1974,p.55.
28 Correspondência 1905-1922, carta a Armando Côrtes Rodrigues, ed. de Manuela Parreira da Silva, Lisboa,
Assírio & Alvim, 1999, p. 155.
29 Sudoeste, n.º3, novembro de 1935, p.3.
30 Id., ibid.
A Poesia Pictórica de Alberto Caeiro

Gilvan José da Silva Filho


Universidade Federal de Sergipe

Christina Bielinski Ramalho


Universidade Federal de Sergipe

Palavras-chave: Impressionismo; Sensacionismo; O guardador de rebanhos; Alberto Caeiro.


Resumo: O presente trabalho busca estabelecer relações entre a fenomenologia de
Merleau-Ponty, a estética do Sensacionismo e a obra “O Guardador de Rebanhos” (1911-1912),
do heterônimo Pessoano Alberto Caeiro, analisando o quanto a imagética elaborada nos
poemas que integram a obra configura uma experiência estética pictural suficiente para
fundamentar a visão de mundo que caracteriza o universo caeiriano. Além da observação do
repertório lexical relacionado à cor, às alusões a objetos e ao impacto impressionista da obra, a
análise buscará identificar, na expressão poemática, o possível diálogo com o campo conceitual
das duas propostas.

Em teoria, Caeiro defende que o real é a própria exterioridade, as sensações primeiras


dadas pelo mundo das sensações. Proclama-se antimetafísico, é contra a interpretação
do real pela inteligência porque, no seu entender, essa interpretação reduz as coisas a
simples conceitos. Embotando o que é visto e permitindo a subjetivação das sensações
primeiras. Caeiro se faz reconhecer por um certo objetivismo visualista, para ele
uma flor não tem beleza, tem cor e forma apenas, a beleza é o nome que damos para
aquilo que nos agrada, seu interesse pela natureza e o ritmo lento denotam no autor
uma identificação com o modelo estético seguido pelos impressionistas em suas
telas. Também é possível identificar aproximações do sensacionismo caeiriano à
fenomenologia da percepção, principalmente no que se refere aos aspectos da visão
e linguagem. Embora seja complexo tentar encaixar a poesia de Caeiro em qualquer
sistema filosófico preciso e acabado é interessante confrontá-la com estes sistemas.
Neste sentido, tentaremos demonstrar uma proximidade entre as perspectivas
de Caeiro e Merleau-Ponty no movimento que realizam em direção ao que, na
fenomenologia, entende-se por “mundo vivido”. O movimento de apresentação das
relações com o mundo através das sensações realizado pela poesia de Caeiro é, num
certo sentido, mais radical do que aquele realizado pela filosofia de Merleau-Ponty.
634 100 Orpheu Gilvan José da Silva Filho, Christina Bielinski Ramalho

Caeiro pratica uma fenomenologia, não partindo da consciência, mas da sensação.


Ele toma conhecimento da natureza, do mundo, através das sensações e não através
da consciência.
Dentro do conceito de intertextualidade daremos ênfase às práticas de referência e
alusão como as práticas dentro da intertextualidade que mais se aproximas ao objeto
de nosso estudo.

Cianuresco recorre aos cinco componentes da obra literária para diferenciar influência
de imitação e tradução, são eles: tema (compreendido como matéria e organização da
narração), forma ou molde literário (o gênero); recursos estilísticos expressivos, as
ideias e sentimentos (ligados à camada ideológica) e finalmente a ressonância afetiva. O
fenômeno da influência limita-se à absorção de um ou outro desses aspectos. (Nitrini,
1997: 161).

Percebemos também que Caeiro utiliza uma linguagem para se aproximar


dessa mesma experiência que o impressionismo proporciona. Isso nos leva a crer
que, indiretamente, Fernando Pessoa foi tingido levemente pela influência deste
movimento para montar seu mestre heterônimo. Porém, não enxergamos aqui
a influência como falta de originalidade, tão pouco como continuidade de algo
terminado. Utilizando também os conceitos de influência com base nos estudos de
literatura comparada analisaremos de que maneira a poesia de Alberto Caeiro se
aproxima do impressionismo.
Embora Fernando Pessoa fosse um erudito e que tinha um acesso indireto à cultura e
as vanguardas francesas via correspondências que trocava com Mario de Sá-Carneiro,
o que poderia ter possibilitado seu conhecimento sobre os impressionistas,
acreditamos que o contato indireto do poeta com os conceitos do impressionismo se
deu pela poesia de Cesário Verde. Dentre as muitas características presentes na obra
de Cesário, uma das mais significativas encontra-se no estilo impressionista do autor
que conseguia captar em seus poemas um instante fugidio da realidade e descrevê-lo
de tal forma a transformá-lo em um verdadeiro quadro. Conscientemente ou não,
Cesário mantinha em sua poesia o ritmo, as cores, a sensação, a visualidade de uma
cena real, o que fez com que atualmente fosse designado por muitos críticos como
um poeta-pintor ou poeta visual. Isso porque o autor consegue ir além da significação
das palavras, e desperta no leitor a nítida sensação de estar diante de uma expressão
poética que ultrapassa as fronteiras da escrita e chega até o plano pictural.
Fernando Pessoa não escondia a admiração que tinha pelo poeta impressionista
citando-o não apenas na voz de Alberto Caeiro como também em seus escritos sobre
estética literária.
A Poesia Pictórica de Alberto Caeiro 635

Ao entardecer, debruçado na janela, e sabendo de soslaio que há campos em frente, leio até
me arderem os olhos o livro de Cesário Verde (Alberto Caeiro)
Com quem se pode comparar Caeiro? Com bem poucos poetas. Não, diga-se desde logo,
com aquele Cesário Verde a quem ele se refere como a um antepassado literário, embora um
antepassado antecipadamente degenerado. Cesario Verde exerceu sobre Caeiro a espécie de
influência que pode ser chamada de simplesmente provocadora inspiração, sem transmitir
qualquer espécie de inspiração. (Op. 127).

E não apenas em citações diretas que encontramos a influência de Cesário na


poesia de Caeiro, mas também no estilo de escrever, como observa Bernadinelli sobre
a utilização do advérbio de modo entre o poeta ortônimo e os heterônimos:

Diante da grande percentagem encontrada em Fernando Pessoa, procedemos à sua


discriminação por volume estudado e concluímos que o poeta ortônimo raramente emprega
o advérbio, Ricardo Reis, formando ao lado da maioria usa-o sobriamente, enquanto
Alberto Caeiro o faz numa frequência comparável à de Cesário Verde (Bernadinelli,
C., 2004: 21).

É sabido que utilizamos o advérbio de modo para situar os objetos no tempo e no


espaço dentro de nosso discurso tal qual no impressionismo onde se pretendia situar
os objetos dentro de uma perspectiva daquele que vê e do que é visto. Então, “como
explicar que Caeiro e Cesário Verde se aproximem um do outro, afastando-se dos
demais? Por uma comum preocupação da realidade – natural em Cesário, buscada
em Caeiro? (Bernadinelli, C., 2004: 21).
Após situar a influência de Cesário Verde na poesia de Alberto Caeiro, buscaremos
agora as aproximações entre os conceitos do Sensacionismo onde Caeiro é o principal
representante e o impressionismo.
A teoria do Sensacionismo ajuda a esclarecer o nascimento dos heterónimos. A
criação deles não é de modo algum arbitrária – a pequena parte de jogo e mistificação
que nela pode haver é contrabalançada por uma inteligência superior que soube
muito bem enquadrar Caeiro, Reis e Campos nas correntes europeias da época.
Aproximando a modernidade dos sensacionistas à modernidade das correntes
artísticas da época. “os principais nomes do impressionismo foram fieis a um ideal de
modernidade que incluía a imagem do realmente visto como parte do mundo comum
e abrangente do espetáculo, em oposição à inclinação da época pela história, mitos e
mundos imaginados”. (Schapiro, M., 2002: 22)
O mesmo ideal de modernidade foi compartilhado por Fernando Pessoa e seus
companheiros da revista Orpheu. Pessoa, porém, vai mais além criando o movimento
636 100 Orpheu Gilvan José da Silva Filho, Christina Bielinski Ramalho

estético que nomeou como Sensacionismo. E para que o mesmo tomasse forma, criou
seus principais heterônimos: Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, cada um com
uma perspectiva diferente em relação ao Sensacionismo, sendo Caeiro o que mais
trabalha as sensações da visão. Os princípios do Sensacionismo são:

“1 – Todo o objeto é uma sensação nossa; 2 – Toda a arte é uma conversão de uma sensação
em objeto; 3 – Portanto, toda a arte é a conversão duma sensação em outra sensação”. [...]
“A base do Sensacionismo é a substituição do pensamento pela sensação, não só como base
de inspiração, mas como meio de expressão”. [...] Para Caeiro, no entanto, o Sensacionismo
significa a sensação das coisas como são, sem acrescentar a isto quaisquer elementos de
pensamento pessoal, convenção, sentimento ou qualquer outro lugar da alma”. (Pessoa,
F., 1974: 129-130).

Os princípios do impressionismo não se distanciavam tanto da ideia do


Sensacionismo, visto que, “no impressionismo a reprodução da realidade, de
maneira impessoal, objetiva, exata, minuciosa, constituía a norma realista; para o
impressionista, a realidade ainda persiste como foco de interesse, mas, ao contrário, o
que pretende é registrar a impressão que a realidade provoca no espírito do artista, no
momento mesmo em que se dá a impressão. O mais importante no Impressionismo
é o instantâneo e único, tal como aparece ao olho do observador. Não é o objeto, mas
as sensações e emoções que ele desperta. Não se trata de apresentar o objeto tal como
visto, mas como é visto e sentido num dado momento.” (Coutinho, A., 1990: 223).
Assim como na literatura, a pintura impressionista não se preocupa com a visão
conceitual da realidade. Não é uma pintura intelectual ou moldada por conceitos
estéticos. Ela se limita a representar a impressão do pintor, isto é, o efeito mais ou
menos pronunciado que a ação dos objetos exteriores produz sobre os órgãos dos
sentidos; é a visão particular que o artista vai representar na tela e não mais o que ele
sabe das coisas, nem o que sua formação lhe ensinou. O que importa são os diferentes
pontos de vista do observador. Assim, não há na natureza cores permanentes: existe
uma constante mutação. As formas das coisas são criadas pela luz e não pelas linhas. É
uma arte das sensações, isto é, procura registrar os objetos através de impressões que
a paisagem causa ao expectador.
Essa nova maneira de compor uma pintura consiste em exprimir pura e simplesmente
a impressão tal como foi experimentada materialmente; o artista impressionista é o
pintor que se propõe a representar os objetos segundo suas impressões pessoais, sem
se preocupar com as regras geralmente admitidas.
Vejamos alguns exemplos de como a poesia de Caeiro se aproxima do
impressionismo e de que forma ela pode nos auxiliar em compreendê-lo.
A Poesia Pictórica de Alberto Caeiro 637

V
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada...

IX
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

XXIV
O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,


Saber ver sem estar a pensar,

Nos poemas do guardador de rebanhos notamos de uma maneira poética essa


experiência de mundo através das sensações, principalmente no que condiz ao olhar.
Os poemas de Caeiro falam dos objetos surgindo e se dispondo diante do olhar, numa
percepção reveladora de mundo, semelhante aos impressionistas ao pintar um quadro.
Em detalhe, temos o poema II que pode ser lido como um tratado dos princípios
básicos do impressionismo e sensacionismo. Onde o mundo é apresentado pelo poeta
do modo como as coisas atingem os seus sentidos, principalmente a visão.

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
638 100 Orpheu Gilvan José da Silva Filho, Christina Bielinski Ramalho

Sei ter o pasmo comigo


Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...


Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...


Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,


E a única inocência é não pensar.

Para os impressionistas, o que eles pintavam era o que exatamente estava sendo
visto. Não uma pintura das ideias, dos conceitos, perspectivas e normas. Mas uma
pintura das sensações, No entanto, este nascimento é rapidamente abafado pelo
pensamento e pelo conhecimento sobre o mundo “de que vale uma sensação se há
sempre uma razão exterior para ela?”.
Quando o pintor não estabelece uma linha divisória entre sentido e experiência ele
não vê os detalhes, ao observar detalhes, a sensação parte para um plano secundário
e entrega os sentidos à razão, às coisas pré-concebidas.
Não há na poesia de Caeiro nenhuma proposta de cunho idealista e nem política.
Caeiro apenas observa a natureza e tenta traduzi-la em palavras da maneira como ela
se mostra através de suas sensações. No impressionismo a pintura apenas tenta captar
as formas e as cores tal quais são vistas, da maneira que são vista por seu espectador.
No entanto, Caeiro explora essa percepção, libertando a visão de qualquer referência
significativa que se interponha entre o ser e o mundo.
Da mesma forma, Caeiro constrói sua poesia sensacionista. Vertendo versos em
palavras que se objetivam a partir das sensações, do que é visto. Falando das coisas
A Poesia Pictórica de Alberto Caeiro 639

como elas são. Olhando-as sem subjetivação, sem a borra de conceitos filosóficos
ou outra ciência. Caeiro fala da realidade esculpida pela palavra poética, mas da
realidade dita pelas sensações. Ele não apenas traça o contorno dos temas ditados
pelo que é visto, mas também oferece como material sensível a língua trabalhada. É
isso o que Caeiro repete em todos os seus poemas. O pensamento ou a consciência
das coisas surgidas pela aprendizagem intelectual introduzem elementos estranhos no
percebido, fazendo-nos crer que uma flor ou uma paisagem pode nos trazer tristeza
ou alegria; mas a flor é apenas flor, a nuvem é apenas nuvem e tristeza ou alegria não
são coisas. Não se deve misturar o objetivo com o subjetivo. “Toda coisa que vemos,
devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a
vemos” (Caeiro, OP. 108).
Da mesma forma, nas telas impressionistas não havia a intenção de educar, comover
ou moralizar o expectador como nos estilos anteriores, a exemplo do classicismo e
romantismo. Mas apenas tentar causar a mesma sensação no expectador que o autor
da tele sentiu ao observar a paisagem.
Quanto às aproximações do poema com o impressionismo no que se refere
à estrutura do texto temos algumas particularidades tanto no campo das palavras
quanto no campo da leveza da escrita e leitura. As expressões: “olhar nítido como um
girassol” e “olhando para a esquerda e para a direita”, nos dão a noção de perspectiva
e espacialidade existentes no impressionismo. A imagem do girassol representa
o respeito à luminosidade usada pelo artista para conceber a obra. As palavras:
momento, nunca, nascer e eterno, nos dão o sentido de tempo, o tempo efêmero do
impressionismo. O poema como um todo, constrói-se como um olhar para a natureza,
em momentos e cenas recortadas. À medida que descreve sua atividade de observador
o eu - poético registra impressões que se entrecruzam em diferentes momentos.
Assim como os impressionistas reproduziam a imagem do que era realmente
visto como parte do mundo comum, Alberto Caeiro fez poemas que estimulavam
o exercício da percepção visual, porque na descrição dos objetos transpareciam
aspectos da ordem da cor, da luminosidade, da forma etc. Nossa visão deixou de
reparar na originalidade da paisagem que constantemente está ali diante de nós. No
impressionismo, o pintor deixa de lado os detalhes criados pelo pensamento, pelo
mundo concebido pelo conhecimento e revela a natureza, regatando a origem das
coisas que nos parece tão distante. Buscar essa origem das coisas, ver o mundo como
uma criança ao nascer é justamente o que Caeiro faz a partir de uma visão natural e
simples da vida, de uma existência consciente de que os objetos aparecem a nós como
fenômeno visível antes mesmo de serem um conceito ou um nome.
Caeiro em todo poema do Guardador de Rebanhos, tenta desvincular-se
da atividade racional e mostrar apenas a existência visível das coisas, não está
640 100 Orpheu Gilvan José da Silva Filho, Christina Bielinski Ramalho

preocupado em falar sobre as coisas ou explicá-las. Sutilmente, em seu esforço


conceitual, mostra a problemática da percepção como uma relação entre sujeito e
mundo anterior á racionalidade e intelecção, demonstra o esforço de se conceituar
o que chama de experiência primordial. A partir das sensações percebemos os
tipos de significações que surgem desse contato direto com o mundo, a experiência
perceptiva de Alberto Caeiro nos parece mais radical e transparente num primeiro
momento quando o poeta expõe a crença de que pensar é não ver, logo, pensar é
não compreender. Assim, o abandono da razão sugere que não há significação nas
coisas. A percepção por si só pode representar o mundo. Mas se não há significação
nas coisas, e a linguagem são signos decodificados, como não utilizar a linguagem?
Nesta linha de pensamento, Caeiro recusa até mesmo o nome das coisas, porém, ele
também se utiliza da linguagem poética para falar do mundo. Tanto para o pintor
impressionista quanto para Caeiro, o trabalho realizado com a pintura e com a poesia
é uma espécie de contato com a percepção. Os dois não querem separar a sensação e
o pensamento, não querem separar as coisas fixas que nos aparecem ao olhar de sua
maneira de aparecer, querem pintar a matéria ao tomar forma, a ordem nascendo por
uma organização espontânea. A experiência dos dois, nesse caso, não estabelece uma
linha divisória entre sentido e inteligência, não quer fazer cisão entre sentir e pensar
e pensar para se sobrepor em detrimento do outro, mas revelar a ordem espontânea
das coisas percebidas e a ordem humana já preestabelecida nas ideias e nas ciências.
O impressionista tenta mostrar em seus quadros, como a paisagem nos é revelada pela
percepção em seu estado nascente, ele quer pintar o mundo primordial “como uma
criança que ao nascer, reparasse que nascera deveras”, por isso seus quadros parecem
a natureza à sua origem. Assim como no impressionismo, Caeiro tenta descortinar o
mundo para revela-lo como presente e visível. O importante é ver, e nada mais.

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PESSOA, Fernando (1980). Fernando Pessoa: o eu profundo e os outros eus. 20ª ed.
RJ, Nova Fronteira
PROENÇA Filho, Domício (1973). Estilos de época na literatura através de textos
comentados. RJ/SP, Liceu, 4ª ed.
SCHAPIRO, Meyer (2002). Impressionismo: reflexões e percepções. Trad. Ana Luíza
Dantas Borges. São Paulo, Cosac & Naify.
Amadeo e Orpheu

Marta Soares
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Palavras-chave: Amadeo de Souza-Cardoso; Orpheu; Historiografia; Fernando Pessoa; Almada


Negreiros.
Resumo: Amadeo de Souza-Cardoso é comummente integrado nos capítulos sobre a revista
Orpheu. Contudo, a inclusão do pintor na historiografia de Orpheu carece de problematização
e desenvolvimento. Nesta comunicação, propõe-se um diálogo entre a obra de Amadeo e a
produção literária da revista norteado pelo enaltecimento sinestésico do sensacionismo,
movimento projectado por Fernando Pessoa e Sá-Carneiro. Por fim, expõem-se os resultados
de uma investigação no espólio de Amadeo de Souza-Cardoso com particular pertinência
para a história de Orpheu 3, o número da revista que contaria com a colaboração plástica de
Amadeo e que, por motivos financeiros, viu a sua publicação gorada.

I.
Para Orpheu
(…)
Ver, ouvir, cheirar, gostar, palpar — são os únicos
mandamentos da lei de Deus.
Os sentidos são divinos
porque são a nossa relação com o Universo,
e a nossa relação com o Universo Deus.
(PESSOA, F., 2009: 177)

Figura 1 - Amadeo de Souza-Cardoso, Título Desconhecido

(Guitarra e Máscara), c. 1917

© Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian


644 100 Orpheu Marta Soares

Um quadro (Fig. 1) de Amadeo de Souza-Cardoso foi escolhido para iniciar


o vídeo de divulgação deste congresso. É uma tela de título desconhecido, um dos
últimos quadros do pintor. Do fundo cacofónico emerge uma guitarra (a sangrar) e
uma máscara africana ligadas por varas.
De que forma pode este quadro relacionar-se com Orpheu? É pela via da máscara1?
É pela fragmentação da composição? Se é a figura da máscara que norteia a escolha,
o que torna este quadro particularmente relevante para Orpheu? Amadeo tem uma
vasta série de obras onde a máscara surge com maior impacto. Se é a fragmentação da
composição que potencia uma aproximação à fragmentação do sujeito, outras telas de
Amadeo (como Parto da Viola, Entrada, Coty, Máquina Registadora)2 seriam válidas.
Não procuro com este prelúdio defender que apenas a análise das obras legitima
a inclusão de Amadeo de Souza-Cardoso na história de Orpheu, nem insinuar que a
escolha do quadro para o vídeo é aleatória (um vídeo de divulgação não será o meio
mais apropriado para justificações e dissertações). Tomo o vídeo como arranque para
problematizar o lugar de Amadeo em Orpheu. E sublinho que sem esse questionamento
e sem a tentativa de sondar a obras do pintor com maior ambição, arriscamo-nos a
reduzi-lo a um nome prestigiante da cultura portuguesa contemporânea, a um nome
que deve constar em todos os eventos pela sua fama nacional, a um nome que, por
motivos biográficos e vanguardistas, associamos a episódios da tertúlia na Brasileira
do Chiado.

II.

Incluir Amadeo de Souza-Cardoso na história de Orpheu é bastante consensual.


O pintor é regularmente mencionado nas edições de Orpheu (sobretudo naquelas
editadas pela Ática); pode ser ou não ser referido nos estudos literários, campo onde
se destaca um pertinente capítulo de António Quadros, que detectou traços pessoanos
numa entrevista de Amadeo (QUADROS, A., 1989: 307); e é frequentemente integrado
no capítulo de Orpheu na historiografia da arte portuguesa (França, J.-A. 1986 [1957],
2009 [1974], 1991 [1979], 2004; Gonçalves, R.-M., 1988; Almeida, B. P., 2002 [1993],
Silva, R. H., 1999; Leal, J.C. 2013). É de notar que, na narrativa de José-Augusto
França, o lugar de Amadeo oscila: tanto é o grande pintor de Orpheu (ultrapassando

1 Refiro-me ao poema de 35 Sonnets: “How many masks wear we, and undermasks…”.
2 À excepção de Trou de la serrure Parto da Viola Bon Ménage Fraise Avant-Garde (Fig. 2) que tem um título
documentado, as restantes obras enumeradas são intituladas postumamente em função das inscrições
(Entrada ou Coty) ou em função das figuras (máquina registadora) mais relevantes.
Amadeo e Orpheu 645

Santa-Rita, que efectivamente publicou na revista e que estava sediado em Lisboa)3,


como está votado a um isolamento em Manhufe que barra a comunicação com os
artistas lisboetas4.
A partir dos anos 80, assiste-se a um aparecimento de estudos interdisciplinares
sobre Orpheu – os de Fernando Alvarenga, que pouco espaço confere às obras de
Amadeo (ALVARENGA, F., 1984), e os de Helmut Wohl, que identifica pequenas
afinidades entre Amadeo e Sá-Carneiro (WOHL, H., 1982: 182). Amadeo e
Sá-Carneiro seriam igualmente equiparados por Rui-Mário Gonçalves ao nível das
sinestesias (GONÇALVES, R.-M., 1988; 79).
Em 2007, Ricardo Daunt e Ermelinda Ferreira (ambos autores brasileiros)
arriscaram afinidades mais complexas entre as obras de Amadeo, Pessoa e Mário
de Sá-Carneiro. Daunt comparou Procissão Corpus Christi com Na Floresta do
Alheamento, baseando-se no sensacionismo e no interseccionismo (DAUNT, R.,
2007). Ermelinda Ferreira elencou vários quadros de Amadeo para o diálogo com
Sá-Carneiro, prescindindo de uma base sensacionista (FERREIRA, E., 2007).

III. Parto da Viola para Orpheu

Parto da Viola (Fig. 2) é um possível ponto de partida para a relação entre Amadeo
e Orpheu. Através do título, Amadeo destaca um buraco da fechadura, uma viola de
arco e um morango. Estes três detalhes podem apontar para experiências sensoriais
(o gesto de espreitar pelo buraco da fechadura representaria a visão, a viola a audição,
o morango o gosto). Tendo em conta a valorização das sensações no sensacionismo
(movimento projectado por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro que tende a
conotar-se com a revista Orpheu), estes elementos do quadro de Amadeo activam a
possibilidade da pintura entrar no debate da representação da sensação, um debate
pictural que remonta a outras cronologias – é visível na natureza-morta de Jacques

3 «Não tanto Santa-Rita, com quem rapidamente se zangaria, mas os próprios poetas do Orpheu, a quem
visitou entusiasmado, iam exercer sobre ele uma influência nova, levando-o a um movimento que, num
élan colectivo de camaradagem, podia canalizar-lhe as revoltas pessoais. Decidido a expor com eles, tratado
como uma bandeira necessária para completar a empresa pelo lado artístico, Amadeo foi o pintor futurista do
momento, muito mais do que Santa-Rita, seu rival menos produtivo, ou menos facilmente produtivo, que aliás
o diminuirá nas páginas do Portugal Futurista (...).» (FRANÇA, J.-A., 1991 [1979]: 29) [Itálicos acrescentados]
4 «Isolado, numa solidão que pesa cada vez mais, e que acaba por ter que ver com os seus próprios companheiros
da fugaz aventura lisboeta que parecem tê-lo esquecido, uma vez longe das tertúlias da capital – Amadeo
evolui a par daquilo que iria dar sentido maior à arte do pós-guerra, este “dadaísmo” ferozmente anti-cubista,
do parentesco futurista sem teoria acreditável, de parentesco expressionista também, por necessidade de
revolta.» (FRANÇA, J.-A., 1986 [1957]: 131)
646 100 Orpheu Marta Soares

Linard (Les Cinq Senses, c. 1638), ou nas alegorias da Visão e do Olfacto, de Brueghel,
O Velho. Já no contexto modernista, Le Gouter, de Metzinger, ou Il Profumo, de
Russolo, continuam essa via.

Fig. 2 - Amadeo de Souza-Cardoso, Trou de la serrure

Parto da viola Bon ménage

Fraise avant-garde, c. 1914-1916

© Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian

No quadro de Amadeo, o buraco da fechadura funde duas experiências sensoriais.


Ao contrário do vidro ou do espelho (reduzidos ao domínio da visualidade, porque
abafam ou simplesmente não estão associados ao som), o buraco da fechadura é
uma fenda por onde se espreita ou por onde se escuta. Assim, entramos na vertente
sinestésica sublinhada pelo sensacionismo5.
Amadeo incorpora sonoridades nos quadros através de inscrições verbais (as notas
“SOL”, escrita ao contrário em Parto da Viola, e “LA”, visível quer em Entrada, como
no quadro que abre o vídeo do congresso (Fig. 1), letras de canções (em Canção
d’Açude Poema em Cor)) e da figuração (pela representação de instrumentos musicais
e de intérpretes). Desta forma, a tela remete mentalmente para sons, mas continua a
ser incapaz de os reproduzir como um instrumento ou como a voz humana, continua
a ser incapaz de os reproduzir enquanto sensação sonora.
Nos músicos e nos instrumentos de Amadeo, há intervalos que permitem pensar os
limites da pintura na representação dos signos e das cenas musicais. Não há arcos nem
cordas nos instrumentos. Os arcos são uma linha praticamente invisível, ou totalmente
inexistente; as cordas, quando existem, estão dispersas pela composição. Música Surda
perde o gesto de execução de Título Desconhecido (Músicos): uma mão agarra o violino
enquanto a outra repousa inerte. Com a ausência das peças e dos gestos que produzem
som, Amadeo pode fornecer indícios da impossibilidade do tratamento musical na
pintura ou da necessidade de colmatar esses intervalos com a imaginação.

5 «Todas as formas da sensação teem estados diversos comparados aos trez estados da materia. Assim temos
passagem da sensação do solido para o liquido: A côr já não é côr, é som e aroma. / A passagem do liquido
para o solido - O aroma endoideceu, upou-se em côr, quebrou.» (PESSOA, F., 2009: 114)
Amadeo e Orpheu 647

Tal como Amadeo, Camilo Pessanha seria um colaborador de Orpheu 3. Uma leitura
comparada de Parto da Viola com o poema “Os Violoncelos”, que Pessoa manifestou
interesse em publicar na revista (PESSOA, F., 1999 [1915]: 185), pode aproximá-los ao
nível do animismo dos instrumentos musicais – expresso na invocação às “arcadas do
violoncelo” que choram. Uma subtil antropomorfização observa-se no humanizado
da viola de Amadeo, no pormenor do disco-olho embutido no tampo e na indicação
do nascimento de uma viola de arco (ou de uma viola em trabalho de parto). Também
a fragmentação das peças – “despedaçam-se, as cordas” – domina no poema e no
quadro, onde circulam cordas, buracos “f ” e peças de uma guitarra.

IV. O lugar da pintura em Orpheu

Depois do entusiasmo comparativo suscitado por Parto da Viola, é necessário


travar um pouco esse impulso – testar as resistências e compreender melhor a
integração de Amadeo (ou melhor, o lugar da pintura) em Orpheu. Deste modo,
ganham importância os discursos de Almada Negreiros e de Fernando Pessoa.
Enquanto Almada produz um discurso altamente favorável à inclusão da pintura
na história de Orpheu (reivindicação que se intensifica ao longo do tempo),6 Pessoa
assenta o sensacionismo num pressuposto da superioridade da literatura:

Por concretisação abstracta da emoção entendo que a emoção, para ter relevo, tem
de ser dada como realidade, mas não realidade concreta, mas realidade abstracta.
Por isso não considero artes a pintura, a escultura e a architectura, que pretendem
concretisar a emoção no concreto. Há só trez artes: a metaphysica (que é uma arte),
a literatura e a musica. E talvez mesmo a musica... (PESSOA, F., 2009: 172)

Reagindo contra os obstáculos colocados à pintura e, sobretudo, reagindo contra


uma crítica literária que descura o lugar da pintura em Orpheu,7 Almada parece
convocar Amadeo para uma batalha contra a literatura:

6 Até este momento nada mais disse que Orpheu tinha sido o nosso encontro actual das letras e da pintura.
É tudo o que queria ter dito. A continuar seria isto mesmo no resultado do Orpheu. Nenhuma geração post
Orpheu se acusa no da pintura não separada do seu encontro com as letras. Orpheu continua. (NEGREIROS,
J. de A., 1997: 1088).
7 “Seria escusada esta notificação se a crítica ao Orpheu alguma vez tivesse dado conta do encontro actual das
letras e da pintura, o qual é no Orpheu o seu evidente sentido mesmo.” (NEGREIROS, J. de A., 1997: 1092).
648 100 Orpheu Marta Soares

LITERATURA. Vocábulo pejorativo. Criação francesa (parisiense). Ignora-se se esta


criação é dos próprios literários se de pintores. Literatura dizia-se em geral do texto escrito
ou dicção impecável gramatical e sintacticamente composto, e simulando conceito, mas
sem propriedade de mover cordéis quotidianos. Exemplo: Amadeo de Souza-Cardoso e
um conhecido escritor estavam no Marão. O escritor descrevia a paisagem relatando uma
batalha imaginária a ferir-se à vista de ambos. A terminar perguntou: E você que acha? Ao
que Amadeo respondeu: PAISAGEM. (NEGREIROS, J. de A., 1997: 1098-1099).

Embora uma primeira leitura pareça extrair da resposta de Amadeo uma defesa da
inefabilidade da imagem, rapidamente se detecta que a anedota não é uma competição
profissional pela representação do mesmo referente. Aquilo que Amadeo contraria não
é uma descrição verbal da paisagem, mas sim um acréscimo, a narrativa épica que o
escritor (muito provavelmente Pascoaes) escreveu nas montanhas do Marão. A resposta
do pintor aproxima-se, assim, de mecanismos modernistas de fuga à narrativa e à
palavra, encaradas como ameaça num campo puramente visual, propenso a pesquisas
e abordagens formalistas que tendem a valorizar a abstracção (MITCHELL, W.J.T.,
1989).
Perante uma vasta produção que coincide com a estadia de Amadeo de
Souza-Cardoso em Portugal (1914-1918) e o contacto com elementos de Orpheu,
é notável a sua preocupação com os títulos. Muitos são longos, bilingues e podem
remeter para a mesma história (como Crime Abismo Azul Remorso Físico e Mulher
Decepada Brisement de la Grace Croisée de Violence Nouvelle) ou para um tópico em
desenvolvimento (como O Larápio do Quadrado Encarnado e A Ascensão do Quadrado
Verde..., em que uma figura abstracta dialoga com a figuração; e Luxúria do Violino...,
Parto da Viola..., Vida dos Instrumentos, dedicados ao animismo dos instrumentos
musicais). O título Promontório cabeça indigo MARES D’OSSIAN rose orange (Fig. 3)
estabelece uma explícita relação com um excerto de Illuminations, de Rimbaud:
Du détroit d’indigo aux mers d’Ossian, sur le sable rose et orange qu’a lavé le ciel
vineux viennent de monter et de se croiser des boulevards de cristal habités incontinent
par des jeunes familles pauvres qui s’aliment chez les fruitiers. Rien de riche. – La
ville ! (RIMBAUD, A., 2010 [1886]: 231)
Na tradução portuguesa de Cesariny:

Do estreito de índigo aos mares d’Ossian, na areia rosa e laranja que o céu vinhento lavou,
acabam de erguer-se e de cruzar-se avenidas de cristal imediatamente ocupadas por
jovens famílias pobres que se alimentam do que compram nas lojas de hortaliça. Nada de
grandioso. – A cidade! (RIMBAUD, A., 1972 [1886]: 70).
Amadeo e Orpheu 649

Fig. 3 – Amadeo de Souza-Cardoso, Promontório cabeça

indigo MARES D’OSSIAN rose orange, c. 1915-1916.

Colecção particular

Ao formar o título, Amadeo extrai palavras da frase original, tornando-a altamente


fragmentária e enumeradora. Três palavras são cores (índigo, rosa e laranja). Deixaram
de ser atributos do estreito ou da areia para preencherem planos justapostos que
dominam a composição. A costa inglesa, as avenidas “de cristal” e as famílias pobres
foram elididas. No entanto, os números inscritos (13 ou 130) numa circunferência
atrás da máscara e outras duas pequenas circunferências alaranjadas, no canto inferior
direito, assemelham-se a moedas, assinalando, subtilmente, o comentário à pobreza e
à riqueza que o texto admite.
Assim, ao contrário de Pessoa (que defendia a superioridade da literatura) e de
Almada (que no excerto sobre Amadeo e Pascoaes encena uma recusa da literatura
na paisagem), Amadeo pode, através da sua pintura, deixar entrever uma articulação
harmoniosa entre o texto e a imagem. Esta conjugação entre artes poderia ser
igualmente aplicável a Almada Negreiros, mas não é a interdisciplinaridade da obra
de Almada que está em jogo aqui. Em causa está a capacidade da obra de Amadeo se
descolar do discurso que Almada projectou em torno do pintor.

V. Os 4 hors-textes de Orpheu 3?

Em Orpheu 1915-1965, Almada afirma que tem na sua posse as fotografias dos
quadros de Amadeo que seriam reproduzidos em Orpheu 3 (NEGREIROS, J. A., 1997
[1965]: 1087). Almada poderia ter satisfeito a nossa curiosidade no cinquentenário
de Orpheu, revelando os títulos dos quadros ou publicando essas fotografias. Ao
suspender a revelação, mantém Amadeo no núcleo das colaborações indefinidas da
revista: «Os queridos companheiros de Orpheu não estão todos nos dois números
saídos incluindo o terceiro quase impresso.» (id.: 1084).
É provável que não fosse do interesse de Almada precisar as obras. Tanto na
conferência “Cuidado com a Pintura!” (NEGREIROS, J. de A., 2006 [1934]: 219-235),
650 100 Orpheu Marta Soares

como na homenagem a Amadeo em Amarante (NEGREIROS, J. de A., 2006 [1969]:


325-329), o comentário verbal dos quadros é evitado: «apenas me interessam os
artistas em pessoa, os próprios autores. Não tenho mesmo tempo neste momento para
dar atenção a pincéis, a tubos nem a quadros» (NEGREIROS, J. de A., 2006 [1934]:
231). Apesar desta fuga às obras, é possível que Almada cite subtilmente quadros de
Amadeo de Souza-Cardoso. No Manifesto da Exposição na Liga Naval de Lisboa,
refere-se ao «Parto da (...) Inteligência» de Amadeo (NEGREIROS, J. de A., 2006
[1916]: 19) evocando, talvez, Parto da Viola; em Orpheu 1915-1965, a pergunta “o que
se comemora não é a pontaria que Orpheu logo levanta de entrada?” (NEGREIROS, J.
de A., 1997 [1965]: 1084) pode remeter para a transformação dos discos simultâneos
de Robert Delaunay em alvos de insectos, nas obras de Amadeo, e para a inscrição
“ENTRADA” num famoso quadro de 19178. Se quisermos ir mais longe, é possível
entrever na fórmula almadiana “1 + 1 = 1” e a adjectivação “azul ímpar 1”, em K4
O Quadrado Azul, a interpelação de Par Ímpar 1 2 1, de Amadeo. Se considerarmos
a obra plástica de Almada, o desenho em homenagem a Amadeo pode revisitar o
animismo do instrumento de Parto da Viola. Em vez de um instrumento com um
olho no tampo e um perfil humanizado, o desenho de Almada exibe a figura humana
rodeada de instrumentos musicais. A gravidez avançada da figura feminina parece
responder ao trabalho de parto do título de Amadeo.

*****

Após uma consulta atenta do catálogo raisonné da pintura de Amadeo de


Souza-Cardoso (FREITAS, H., 2008), constatamos que três quadros (Arabesco
Dinâmico, Par Ímpar 1 2 1 e Parto da Viola) são acompanhados por fotografias
contemporâneas de Amadeo anotadas no verso. No catálogo, a fotografia de Arabesco
dinâmico merece o seguinte comentário:

poderá ter servido de base para a edição das 12 Reproductions [álbum publicado por
Amadeo em 1916] (...). No verso verifica-se a indicação gráfica do título da obra nesta
publicação. A pintura reproduzida nesta fotografia ainda não apresenta o letrismo a pochoir.
Estes elementos pictóricos foram acrescentados à obra numa data posterior. As inscrições
na margem inferior da fotografia não parecem ser da autoria do artista (FREITAS, H., 2008:
307).

8 Sobre a apropriação dos discos simultâneos e o quadro de título desconhecido [“Entrada”], leia-se (LEAL, J.
C., 2012; 2013).
Amadeo e Orpheu 651

Estas três fotografias suscitam interesse pelo registo dos quadros ainda sem
inscrições com pochoir, pelas anotações dos títulos, pela assinatura, datação e
numeração. No topo do verso da fotografia de Parto da Viola, lê-se, a lápis, “nº 2”. Par
Ímpar corresponde a um “nº 4”...
Quando se cruza esta informação com o espólio de Amadeo de Souza-Cardoso na
Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, o resultado é surpreendente.
Num dossier de reproduções de obras de Amadeo, há um pequeno núcleo de
fotografias que terão sido encomendadas pelo pintor aquando da preparação das
exposições de 1916 e do álbum 12 Reproductions. Quatro delas estão numeradas (de
1 a 4) e anotadas no verso.

Fig. 4 – Espólio BA ASC 09/10 Fig. 5 – Espólio BA ASC 09/11

© Biblioteca de Arte da © Biblioteca de Arte da

Fundação Calouste Gulbenkian Fundação Calouste Gulbenkian

Fonte: Catálogo Raisonné:

Amadeo de Souza-Cardoso: Pintura

Fig. 6 – Espólio BA ASC 09/08 Fig. 7 – Espólio BA ASC 09/13

© Biblioteca de Arte da © Biblioteca de Arte da

Fundação Calouste Gulbenkian Fundação Calouste Gulbenkian

Fonte: Catálogo Raisonné:

Amadeo de Souza-Cardoso: Pintura


652 100 Orpheu Marta Soares

A numeração destas quatro fotografias (todas publicadas em 12 Reproductions) não


coincide com a ordem do álbum9 (à excepção da fotografia nº 3 - Oceano vermelhão
azul cabeça...), nem com a ordem do catálogo das exposições de Amadeo em 191610.
Excluída está, igualmente, a hipótese de servirem de base para o catálogo da exposição
de Barcelona planeada com o casal Delaunay. Amadeo não chegou a expor em
Barcelona, mas a selecção encontra-se documentada numa carta a Robert Delaunay11.
Ao comparar estas anotações com a legenda dos hors-textes de Santa-Rita publicados
em Orpheu 2, detectam-se semelhanças impressionantes. Não só os longos títulos de
Amadeo, «à maneira dos títulos futuristas que Santa-Rita empregava nas páginas do
Orpheu» (FRANÇA, J.-A., 1986 [1957], 106), como a assinatura e a datação são dignas
de atenção. Amadeo acrescenta à assinatura “= Pintor”, entrando em diálogo (talvez
em tom de provocação) com Santa-Rita. No caso de Amadeo, o sinal igual não só
separa o seu nome da profissão (contrariando o uso do epíteto por Santa-Rita), como
pode lembrar os sinais matemáticos inseridos nos títulos de Santa-Rita (+, x). No
topo destas afinidades, está a datação, que segue exactamente a mesma formatação de
Orpheu: “Paris anno data”.

Fig. 8 – Legendas dos hors-textes de Santa-Rita Pintor Fig. 9 – Detalhes das anotações de Amadeo de

Fonte: Orpheu, nº 2 Souza-Cardoso.

BA ASC 09/10, ASC 09/11,

ASC 09/08, ASC 09/13.

9 Em 12 Reproductions, Arabesco Dinâmico… (aqui nº 1) passa a nº 5; Parto da Viola… (aqui nº 2) passa a nº 8;


Par Ímpar 1 2 1 (aqui nº 4) passa a nº 1. (SOUZA-CARDOSO, A. de., n. d.).
10 No catálogo, Arabesco Dinâmico… corresponde ao nº 78, Parto da Viola… ao nº 69, Oceano vermelhão azul
cabeça… ao nº 97, Par Ímpar 1 2 1 ao nº 75. (SOUZA-CARDOSO, A. de., 1916).
11 Carta de Amadeo de Souza-Cardoso a Robert Delaunay, 16 de Maio de 1916. «Fait-on l’exposition Barcelone?
Voici, en tous cas, les mesures des toiles, titres et prix. 1. Moulins (…) 2. Moulins fil télégraphique (…) 3.
Moulins roue dentée (…) 4. Meunier (…) 5. Fenêtre bleue.» (SOUZA-CARDOSO, A. de., 1981 [1916]: 133).
Amadeo e Orpheu 653

A reforçar esta teoria dos hors-textes de Orpheu 3, existem três fotografias de


quadros de Amadeo no espólio de Almada12. Foram autografadas por Amadeo e
datadas de 18 de Dezembro de 1916 (data da oferta a Almada aquando da estadia de
Amadeo em Lisboa). O autógrafo dessas três fotografias (Arabesco dinâmico, Parto da
Viola e Tête Ocean) é idêntico (pela curva do d) à caligrafia da assinatura de Amadeo
nas fotografias do espólio da Biblioteca de Arte. Dois quadros coincidem com a
selecção do espólio de Amadeo, falta um quadro e Tête Ocean faz tremer ligeiramente
a amostra de Amadeo.
Perante os riscos e o caos de anotações do “hors-texte nº 3” do espólio da Biblioteca
de Arte, torna-se prudente a hipótese de Amadeo ter seleccionado inicialmente uma
máscara em aguarela (Oceano vermelhão azul cabeça...) e de a ter substituído por uma
peça análoga, por outra máscara em aguarela. Nesse caso, é possível argumentar que
Tête Ocean minaria a coerência da selecção inicial ao encurtar o título. No entanto,
assumindo que Tête Ocean é variação ou estudo preparatório de Promontório cabeça
indigo MARES D’OSSIAN, quadro a cera que cita explicitamente Rimbaud, mantém-se
uma conexão velada com o potencial literário dos títulos. Amadeo confessava a sua
predilecção por Rimbaud13 e faria sentido citá-lo numa revista literária. Por outro
lado, é preciso ter em conta que nem todas as fotografias de Amadeo que surgirem
no espólio de Almada têm de coincidir, forçosamente, com os quadros que seriam
publicados na revista Orpheu. As fotografias funcionariam como uma meio de
divulgação da obra ou gesto de cortesia na altura e dificilmente seriam publicadas as
reproduções autografadas do espólio de Almada.

Fig. 10 - Amadeo de Souza-Cardoso, Tête Ocean, c. 1915

© Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian

12 Tratam-se de fotografias coladas nas páginas em branco de um catálogo de Robert Delaunay localizado por
Sara Afonso Ferreira. Esta documentação foi-me gentilmente cedida por Sara Afonso Ferreira e Mariana
Pinto dos Santos.
13 No catálogo das suas exposições de 1916 (SOUZA-CADOSO, A. de, 1916) e na correspondência com os
Delaunay: “Rimbaud est dans ma chambre” (SOUZA-CARDOSO, A. de. 1981 [1916]: 134-135).
654 100 Orpheu Marta Soares

Destaca-se, por fim, a clave de sol invertida14 no título de Parto da Viola (nunca
publicada – nem em 12 Reproductions, nem nos catálogos das exposições de 1916).
A sua ausência pode sugerir uma dificuldade tipográfica (curiosa, tendo conta a
reprodução bem sucedida dos grafismos inseridos no título de Arabesco dinâmico) ou
um acréscimo desta nota de Amadeo que se destinava a outra publicação, suspensa...
Esperemos que esta selecção, que reúne altas probabilidades de resolver o mistério
da colaboração plástica de Orpheu 3, contribua para a problematização do lugar de
Amadeo de Souza-Cardoso em Orpheu. É importante alertar para a qualidade da
amostra (bastante superior à de Portugal Futurista) e para a coerência da mesma (pelos
títulos). Num primeiro nível, reage (em última análise, provoca) à obra de Santa-Rita,
adoptando traços do repertório plástico da revista. Mas os títulos de Amadeo não
se resumem aos “esplendores mecano-geométricos” futuristas de Santa-Rita mais
evidentes em Arabesco dinâmico. Eles apontam para ambiguidades, destacam
elementos da tela ou verbalizam a cor. Realçam, com a palavra, a fragmentação e
outros sentidos da imagem. Noutro nível, que escapa à escolha de Amadeo, Parto da
Viola congrega a possibilidade de construir uma aproximação ao sensacionismo.

Bibliografia

Bibliografia Activa
AA.VV. (1989 [1915]). Orpheu: Edição facsimilada. Lisboa: Contexto.
AA.VV. (1990 [1917]). Portugal Futurista. Lisboa: Contexto.
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14 Para uma interpretação mais completa da clave sol em Parto da Viola, leia-se (SOARES, M., 2014: 15). Numa
troca de e-mails, Mariana Pinto dos Santos adiantou outra leitura para a clave de sol invertida. Cito, com a
autorização da investigadora: «Teríamos assim no título de Amadeo uma propositada ambiguidade em que
o próprio título representa algo: a pauta é a pauta em si, suporte de notação musical, e é objecto, as cordas da
guitarra. A clave de sol em espelho pode adicionar ainda mais um patamar de leitura: do buraco da guitarra
emergem os sons, ao vê-la ao contrário estamos a olhar de dentro para fora, através das cordas da guitarra que
são também pauta; nós estamos dentro da guitarra, o quadro é o seu interior, a caixa de ressonância. Quando
olhamos para fora é como se espreitássemos pelo buraco da fechadura. O quadro é uma caixa de ressonância
e olha para fora de si, para o exterior — o sentido é inverso do que se poderia pensar quando se evoca o "trou
de la serrure", isto é, não olhamos para dentro do quadro como que por um buraco de fechadura, ele é que nos
olha assim.» [E-mail enviado a 17-02-2015, 17:54].
Amadeo e Orpheu 655

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for Portuguese and Brazilian Studies.

Agradecimentos

Parte desta comunicação é produto de uma recente investigação no espólio de


Amadeo de Souza-Cardoso.
Estou profundamente convencida de que o sucesso desta investigação desenvolvida
entre Janeiro e Março de 2015 beneficiou do acompanhamento imediato e constante
da Mariana Pinto dos Santos, da cedência de documentação do espólio de Almada
disponibilizada pela Sara Afonso Ferreira, e do apoio incondicional de toda a equipa
da Biblioteca de Arte, especialmente o da Dr.ª Constança Rosa.
Agradeço também à professora Raquel Henriques da Silva, ao Richard Zenith e à
Sílvia Laureano Costa, pela sua disponibilidade em visitar o espólio de Amadeo e pelo
entusiasmo com que acolheram a minha teoria.
Contextos de Orpheu nas páginas de Fon-Fon!

Rui Sousa
CLEPUL

Palavras-chave: Fon-Fon!; Orpheu; Contexto Modernista; Ronald de Carvalho; Eduardo


Guimaraens.
Resumo: Este trabalho procura dar a conhecer algumas aproximações que se podem estabelecer
entre a revista brasileira Fon-Fon! (1907-1958) e o contexto em que emergiu o Modernismo
português, sobretudo tendo em conta as várias menções que no periódico se fizeram, tanto
a colaboradores de Orpheu, como a muitos dos grandes percursores portugueses que foram
relevantes na formação das principais figuras associadas à revista portuguesa e mesmo ao
contexto do movimento da Renascença Portuguesa, com o qual conviveu, sobretudo por
contraste. Serão tidos em conta, também, alguns exemplos que evidenciam as semelhanças
entre a fixação da imagem e algumas das ideias a respeito da poesia dos dois elementos do
grupo de Fon-Fon! que ficaram para sempre ligados ao Modernismo Português: Ronald de
Carvalho e Eduardo Guimaraens.

No final de Dezembro de 1912, no número de dia 28 da revista brasileira Fon-Fon!,


importante órgão cultural do Rio de Janeiro da época, era dada à estampa uma
notícia referindo a presença de Luís Ramos no Brasil, menos de um mês depois da
sua chegada. Inaugurava-se assim o contexto em que decorreu um pilar importante
do percurso que conduziria à criação de uma revista integrando alguns dos mais
singulares poetas das novas gerações portuguesa e brasileira. Como sabemos, Orpheu
foi, pelo menos parcialmente, um conceito desenvolvido a partir dos dois lados
do Atlântico e, pelo menos em alguns aspectos, com espírito e intuitos comuns. O
próprio título que um século depois ainda se recorda vigorosamente, depois de outras
possibilidades terem sido discutidas (PESSOA, F., 2009: 23-25), terá vindo na bagagem
de Luís de Montalvor, nome pelo qual ficaria literariamente célebre Luís Ramos. Disso
nos dá conta, por exemplo, um importante texto de Fernando Pessoa, publicado pela
primeira vez no número 48 da Colóquio. Revista de Letras e Artes:

Em principios de 1915 (se me não engano) regressou do Brasil Luiz de Montalvor, e uma
vez, em Fevereiro (creio), encontrando-se no Montanha commigo e com Sá-Carneiro,
lembrou a idéa de se fazer uma revista, trimestral – idéa que tinha tido no Brasil, tanto
658 100 Orpheu Rui Sousa

assim que trazia alguns poemas de poetas brasileiros jovens, e a idéa do próprio titulo da
revista – “Orpheu” (apud Castex, F., 1968: 59).

A par de Ronald de Carvalho, Montalvor pode ser considerado um dos mais


relevantes elos de ligação entre o momento cimeiro do Modernismo Português e o
contexto em que se desenvolveu o Modernismo Brasileiro, se o entendermos numa
perspetiva mais alargada, não limitada ou circunscrita ao momento da Semana
de Arte Moderna de 1922, em São Paulo – na qual, de resto, Ronald também
participaria.
A Fon-Fon!, revista que começara em 1907 com o evidente intuito de seguir de perto
as transformações inerentes a uma perceção coletiva do emergir da vida moderna,
foi um dos periódicos privilegiados no que respeita ao encontro de escritores e
artistas ligados aos dois Modernismos. A coincidência entre a consciência poética
que reunia as novas gerações de poetas dos dois lados do Atlântico e o propósito
de se manifestarem por via de uma revista são evidentes testemunhos de uma certa
tentativa de diálogo luso-brasileiro, distinta da que seria concretizada nas páginas de
periódicos contemporâneos, como A Águia ou Atlântida, mas não menos significativa.
São evidentes algumas aproximações entre os esboços de revistas (ou antologias)
projetadas por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro desde os primeiros tempos
do seu diálogo, e que se alargariam aos demais poetas órficos, e o esboço de uma
coesão que desse voz às novas gerações de poetas brasileiro. A própria exigência de
uma identidade plural, um dos grandes contributos da revista modernista portuguesa,
conforme se compreende nas repetidas leituras dos seus intervenientes, encontra
correspondência em páginas do periódico brasileiro a que nos referiremos. É bastante
vincado o mesmo encontro das duas faces de Jano por via das quais a revista Orpheu
se modelaria: por um lado, o entendimento quanto às exigências, ao discurso e aos
propósitos; por outro, a diversidade das colaborações. O exuberante jogo de contrastes
de que são espelho as capas dos dois números de 1915, que não deve ser reduzida a
uma simples mudança de horizontes por parte do grupo órfico, mas à decisiva e tão
original recusa de um programa único, exemplifica com visual rigor a aceitação de
um passado comum – que não se obscurece ou procura apagar mas que se vai lendo
criticamente, como objeto de trabalho para novas e mais aprofundadas incursões e
inovadoras pesquisas – e, paralelamente, a apologia da individualidade criadora, em
plena conexão com o tempo histórico que se vivia, e que não deixava de se sujeitar à
severidade de um olhar autonomamente crítico.
Na introdução a Fon-Fon! Buzinando a modernidade (2008), Cesar Maia lembra
que “o título da revista, inspirado no som de uma buzina de carro [...] não poderia ser
mais sugestivo para anunciar, na capital do país, a chegada do século XX com todas as
Contextos de Orpheu nas páginas de Fon-Fon! 659

suas mudanças” (BRAGA, R. S., 2008: 5)1. Procurando manter um permanente diálogo
com os meios cosmopolitas europeus, nomeadamente aqueles que se centravam em
Paris, e acompanhando em simultâneo a transformação do Rio de Janeiro em função
das novas tecnologias, transportes, modelos culturais e comportamentais, Fon-Fon!
era também um dos palcos principais para o encontro de uma ambiciosa geração de
jovens poetas particularmente atentos aos ecos do Velho Continente. Álvaro Moreira
descreve exemplarmente esse Grupo da Fon-Fon!:

A geração do Fon-Fon! era tida por simbolista. Na verdade era maníaca. Se os dois adjetivos
não qualificam o mesmo substantivo, a diferença deve ser essa. Cada um dos iniciadores e
dos incorporados, sem nenhuma combinação, adorava o Outono, o Poente, o Incenso, [...]
os Pierrots de Willettem, a Boêmia de Puccini, os Noturnos de Chopin, Bruges com todos
os canais, Paris com todas as canções... Geração estrangeira. Estávamos exilados no Brasil.
Achávamos tudo ruim aqui. [...]. (MOREIRA, Á., 2007: 66)

No núcleo desses poetas encontravam-se pelo menos alguns dos que colaboraram
em Orpheu ou, pelo menos, foram pensados para a ponte estabelecida por intermédio
de Montalvor2. Referimo-nos a nomes como Mário Pederneiras, um dos fundadores
da Fon-Fon!, Felippe d’Oliveira, Olegário Mariano, Homero Prates, Rodrigo Otávio
Filho, Carlos Maul, Álvaro Moreira e, mais especificamente, a Eduardo Guimaraens,
Ronald de Carvalho e ao próprio autor da “Introducção” do primeiro número de
Orpheu. No caso dos dois brasileiros, a participação na revista carioca começou a
verificar-se desde muito cedo3. No número de 15 de julho de 1911, Ronald de Carvalho
estreava-se com o soneto “Ardentias...”; já o poeta do Rio Grande do Sul, aquando da
primeira estadia no Rio de Janeiro, no decorrer da qual estabelecera contacto com a
Geração de Fon-Fon! e com Luís Ramos, publicaria o primeiro poema, “Melodia de
outomno”, a 5 de outubro de 19124.

1 Existe um pdf em rede: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204434/4101430/memoria22.pdf


2 Conforme, de resto, pode documentar-se pelas cartas trocadas entre os dois diretores do primeiro número
de Orpheu, compiladas por Arnaldo Saraiva no seu pioneiro trabalho Modernismo Brasileiro e Modernismo
Português: subsídios para o seu estudo e para a história das suas relações (SARAIVA, A., 2004).
3 Para uma leitura mais completa do percurso dos dois poetas no momento de Orpheu, cf. os dois trabalhos que
lhes dedicámos na recente recolha de ensaios 1915 – O Ano de Orpheu (DIX, S., 2015: 255-269 e 353-368). A
introdução de Steffen Dix a esse volume, “O Ano de 1915. Um Mundo em Fragmentos e a Normalização dos
Extremos”, é também particularmente relevante para uma abordagem ao ambiente em que se desenvolveram
os poetas brasileiros e portugueses a que nos referimos.
4 Os números da revista Fon-Fon!, que referiremos a partir da data em que foram publicados, podem ser
consultados em linha: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_anos.htm.
660 100 Orpheu Rui Sousa

A citada descrição de Álvaro Moreira deixa perceber que, em termos de


mundividência, a relação dos poetas de Fon-Fon!, enquanto grupo, em particular
no que respeita à relação estabelecida com o cosmopolitismo europeu e com a
leitura que faziam do Brasil como espaço de exílio, não andaria muito longe do
contexto que motivou o encontro entre Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro,
José de Almada Negreiros, Alfredo Pedro Guisado, Armando Côrtes-Rodrigues,
José Pacheko, Guilherme de Santa-Rita, Raul Leal e Amadeo de Souza Cardoso
– como o evidencia, por exemplo, a entrevista que o autor de A Invenção do Dia
Claro deu ao Zip Zip, em 19695.
Antes de mais, atentemos no extenso interesse destes jovens poetas pela tradição
literária portuguesa que esteve na génese da poética dos órficos, e que Fon-Fon!
também documenta. Personalidades como Antero de Quental, Eça de Queirós,
Cesário Verde, Fialho de Almeida, Gomes Leal, Visconde de Vila Moura, António
Carneiro, Eugénio de Castro, António Nobre, Raul Brandão, João Barreira, António
Patrício, Teixeira de Pascoaes, João de Barros, Júlio Dantas, Alberto de Oliveira ou
Correia Dias, entre outros, são mencionados, por vezes com grande destaque, nas
páginas da revista carioca. Um notável e representativo elenco, ao qual parecem faltar
apenas Almeida Garrett – só referido em números da década de 20 – e, sobretudo,
o importante vulto de Camilo Pessanha, deixando portanto perceber que, pelo
menos no momento que antecedeu e acompanhou o emergir do grupo de Orpheu
em Portugal, as ligações dos poetas brasileiros à tradição portuguesa eram não só
muito expressivas como também coincidentes com o ambiente intelectual vivido em
Portugal6. Vejamos alguns exemplos.
No número de 3 de agosto de 1912, numa nota dedicada a João de Barros, futuro
diretor da revista Atlântida e um dos mais relevantes defensores da aproximação
luso-brasileira da sua geração, dizia-se: “Elle é bem o representante de uma geração
nova que em Portugal appareceu após Cezario Verde e Antonio Nobre, em haustos
de renascimento, trazendo um novo credo de alegria victoriosa e uma desperta
energia constructora a animar seu estro moço com um fervor adolescente de
dyonisismo fagulhante”. Os dois poetas seriam, de facto, decisivos na renovação
da poesia portuguesa, sendo considerados por Pessoa, em vários textos de reflexão
literária, como alguns dos seus grandes mestres. E, relativamente ao segundo,

5 https://www.youtube.com/watch?v=xEfcJowGZgs
6 Para uma leitura da importância da tradição portuguesa no desenvolvimento da poética dos de Orpheu,
cf., por exemplo, os seguintes textos de Paula Morão: “Na senda de Orpheu – alicerces e consequências”
(Morão, P., 2011a: 13-28) e “Portuguese Precursors of the First Modernist Generation” (MORÃO, P., 2011b:
12-23).
Contextos de Orpheu nas páginas de Fon-Fon! 661

recorde-se por exemplo a significativa homenagem de Sá-Carneiro, no poema


“Anto”. A confluência verifica-se, também, no modo como Victorio de Castro, no
texto “Natural”, publicado a 5 de abril de 1913, se referia a Cesário, aproximando-se
do vocabulário do poeta de Dispersão: “Vou buscar o livro de Cesario. Os seus
versos acordam em mim qualquer cousa de acre e de bizarro...”.
Também Gomes Leal seria evocado num poema homónimo de Telles de Meirelles,
publicado a 14 de junho de 1913, que o transportava para a contemporaneidade,
como “Um grande poeta do seculo XX, perseguido e a morrer de fome...”. E a 11
de outubro do mesmo ano, também João Barreira, escritor simbolista e um dos
mais singulares cultores do poema em prosa em língua portuguesa, merecia da
parte de M. P. (Mário Pederneiras) uma extensa nota de leitura ao seu mais célebre
livro, Gouaches (1892), que denunciava os motivos típicos do neo-simbolismo de
que Orpheu também é um assinalável documento: “A sua Arte é toda uma tortura:
na creação da Phantasia, na exposição dos typos, na psychologia dolorosa e até
na phrase e na propria execuão da idéa. (...)”. E, apesar de ter consciência das
dívidas de Barreira para com Flaubert, Fialho ou Eça de Queirós, o proeminente
simbolista brasileiro acentuava, ainda, que “esta pequena Biblia de Arte, que vive
nas Gouaches, basta pra sagral-o em Artista superior, integral e independente. Hoje
é um esquecido, talvez, da turba litteraria e do favoritismo da imprensa, que pouco
lhe adianta naturalmente”. Palavras que poderiam ser recuperadas no que respeita
aos poetas órficos e à sua preocupação de equilíbrio entre a consciência da tradição
cultural em que emergiram, e que já apontava para uma exigência de originalidade,
e a intenção de produzir algo de singular, que aprofundasse a arte dos percursores
e sobretudo que contrastasse com a arte aplaudida pela imprensa. O próprio
respeito e admiração que os jovens poetas da Geração de Fon-Fon! dedicaram a
Mário Pederneiras aproxima-se do interesse que os grandes nomes do Simbolismo
português, como Ângelo de Lima e Camilo Pessanha, mereceram por parte dos de
Orpheu, partilhando com eles as páginas de um projeto que se pretendia integrador
e que fazia desse ideal de síntese uma singular proposta de inovação no quadro
dos movimentos vanguardistas europeus, conforme o demonstram muitos textos
pessoanos publicados em Sensacionismo e outros Ismos (ed. Jerónimo Pizarro, 2009)
ou, mais recentemente, em Sobre Orpheu e o Sensacionismo (ed. Richard Zenith e
Fernando Cabral Martins, 2015).
Finalmente, vejamos o impacto que artistas plásticos como António Carneiro e
Correia Dias conheceram no Brasil, evidenciando a confluência entre as diferentes
artes, um dos pilares estruturantes da singulardade de Orpheu e uma das imagens de
marca de Fon-Fon!, cuja preocupação com a qualidade das capas e da composição
662 100 Orpheu Rui Sousa

gráfica das páginas é evidente7. A 4 de abril de 1914, anunciava-se a chegada ao Rio de


Janeiro de Correia Dias, capista de A Águia e amigo de Fernando Pessoa, que chegaria
a ser referido como potencial colaborador de Orpheu e que, mais tarde, se casaria com
Cecília Meireles:

Correia Dias, cuja visita ao Brazil estava annunciada desde o outro anno, chegou emfim ao
Rio... Vem de Coimbra... Recebeu em Lisbôa o applauzo de todos os criticos, ao aprezentar
os seus trabalhos no salão da Illustração Portugueza. É um artista novo, com uma maneira
muito individual, um traço fino, extranho (...).
E aos nossos amigos, que são todos os nossos leitores, recommendamos o espiritual artista
da moderna geração de Portugal.

Repare-se que, além de reveladora do entusiasmo que o intercâmbio cultural entre


os dois países parecia motivar no Brasil da época, esta notícia destaca dois aspetos
relevantes: a originalidade da sua obra, motivada pela “maneira muito individual”
e pelo caráter “extranho” da sua criação, e o facto de estar integrado no universo
da “moderna geração de Portugal”. A importância atribuída ao artista é, de resto,
reforçada menos de um mês depois, quando a 2 de maio foi o responsável pela capa
de Fon-Fon!, revista que publicaria várias notícias sobre as suas exposições em terras
brasileiras, sempre com sucesso considerável.
Também a presença de António Carneiro no Brasil, na mesma altura, é assinalada,
como o demonstra a nota do número de 27 de junho de 1914, que se concentra na
construção de uma figura de artista:

Há ainda typos raros de mystica doçura, de expressão serena, de gestos tão neves que nem
se lhes move a sombra que o sól dá a cada um e a cada coisa na terra, e assim são, dir-se-hia,
por amor da harmonia que os cerca e para não serem causa de que ella se desfaça num só
momento. A voz com que dão vida ao pensamento, parece que chega a nós por modos extra
naturaes, tão branda sôa e atravessa o ar em torno sem ruido quasi.

São também muito importantes as confluências no que respeita ao entendimento


que dos dois lados do Atlântico se tinha relativamente ao panorama da poesia
contemporânea e da necessidade de uma renovação, sobretudo quando entendida em

7 A este respeito, cf., por exemplo, a recente edição facsimilada de Orpheu 1915-1965, texto fundamental no
qual Almada Negreiros acentua a importância do encontro entre as diferentes expressões artísticas, em torno
de personalidades como Pessoa, Sá-Carneiro, Amadeo ou Santa Rita Pintor, sendo o próprio Almada o mais
expressivo representante desse programa intrinsecamente modernista (NEGREIROS, A., 2015).
Contextos de Orpheu nas páginas de Fon-Fon! 663

função de uma revista capaz de reunir as iniciativas dos jovens poetas inovadores.
Embora não se conheça se os importantes textos que marcaram a estreia editorial de
Fernando Pessoa, em 1912, tiveram algum impacto no Brasil, A Águia, o orgão da
Renascença Portuguesa em que foram publicados, não era de todo desconhecida. A
6 de setembro de 1913, Mário Pederneiras (M. P.) criticava o panorama literário
português da época, aproximando-se dos comentários trocados entre Pessoa e
Sá-Carneiro, nas missivas do mesmo ano de transição. A 25 de março, por exemplo,
Sá-Carneiro insiste na “possível monotonidade” (Sá-Carneiro, M., 2001: 60)
da poesia de Mário Beirão, autor d’ O Último Lusíada, e a 14 de maio, Pessoa – em
palavras resgatadas pelo autor de A Confissão de Lúcio – descreve a Renascença como
“uma corrente funda, rápida, mas estreita” (Sá-Carneiro, M., 2001: 88). Ora, logo
no início do seu comentário, Pederneiras estabelece um contraste significativo entre o
“moderno movimento poético de Portugal”, como primeiro lhe chama, e a “moderna
geração de poetas portuguezes”, dando a entender que, apesar de jovens, as principais
figuras da poesia portuguesa do tempo não eram suficientemente representativas do
que ele entendia por “moderno”; Pederneiras lê-os como uma geração carente de “um
poeta forte, que emocione pela amplitude do assumpto, nem pelo rigor da fórma”
e critica, também, o tom predominante na poesia do movimento saudosista, típico
de uma poesia “triste, extremamente triste, cantando maguas, chorando o passado,
evocando a languidez das recordações”, na esteira de António Nobre, mas sem
qualquer preocupação em dar continuidade às importantes vozes poéticas de Cesário
Verde e de Eugénio de Castro, referências dos poetas de Orpheu.
Cumpre assinalar também que, no mesmo ano de 1913, período em que se
projetava em Portugal uma publicação coletiva capaz de representar uma nova escola
e encarnar uma voz crítica, no Brasil exigia-se idêntica atitude renovadora, capaz de
congregar as vozes dispersas dos jovens poetas. A 26 de abril, lê-se em Fon-Fon!:

A actual geração literaria, precisa movimentar-se e dar á sua passagem pelas nossas letras
um cunho de vitalidade e de competencia.
Todos estes bellos espiritos que surgem, com um brilhantismo offuscante e com um intenso
valor incontestavel, precisam iniciar um movimento em que o seu destaque seja decicivo e
benefico. (...)
Sempre tivemos, num inicio de geração, um natural periodo de lutas, congregadas numa
revista especial, onde dominavam os superiores do agrupamento, e onde se acolhiam todos
aquelles que vinham para apostolisação da nova Crença.
Hoje não ha uma revista desta especie. E todas as que surgem visam apenas a popularidade
da Rua, sem o necessario exclusivismo de um jornal de doutrina.
A geração actual está, portanto, em divida, neste ponto, com o nosso movimento literario.
664 100 Orpheu Rui Sousa

Parece-nos não dever ser afastada a hipótese de se sugerir que a revista idealizada
por Montalvor e Ronald seria de algum modo uma tentativa de cristalizar a
reação de alguns dos poetas do grupo a que estavam associados a esta e a outras
invetivas do periódico. Não faltam de resto, ao repto de Pederneiras, algumas linhas
estruturantes do conteúdo discursivo dos bastidores de Orpheu: (1) a perceção de
que, por via de publicação coletiva, a nova geração poderia exprimir-se mais ampla
e significativamente, face à dispersão das energias dos que nelas se conjugavam;
(2) o incentivo à coordenação em torno de alguns vultos mais relevantes, possíveis
iniciadores de uma nova escola; e (3) a necessidade de ser ultrapassado o mero
escândalo da “popularidade da Rua” e a consequente efemeridade das manifestações
artísticas carentes de um projeto coeso. Na sequência de cartas de Pessoa para
Côrtes-Rodrigues, de setembro de 1914 a janeiro de 1915, também são frequentes as
passagens em que se sublinha a necessidade de algo mais do que a pura provocação.
Na célebre carta de 19 de janeiro, por exemplo, é clara a exposição, por parte de
Pessoa, de um entendimento da própria obra em que são evidentes intuitos muito
mais abrangentes do que aqueles que chegaram a nortear projetos anteriores a Orpheu,
nomeadamente uma provocatória Antologia do Interseccionismo.
Outro fenómeno que se evidencia nas páginas de Fon-Fon! e que se assemelha ao
que acontece em Orpheu é a proliferação de anúncios de projetos editoriais nunca
concluídos ou dados à estampa. Recordem-se, entre outros, os casos de Fernando
Pessoa, que, logo em Orpheu 1, anunciava um dos muitos esboços de obras dispersos
pelo seu espólio, Arco de Triunfo, mas também as sugestivas conferências de Santa
Rita Pintor, de Manuel Jardim, de Raul Leal e de Mário de Sá-Carneiro, referidas nas
páginas de Orpheu 2 e que, como sugere Fernando Cabral Martins, funcionam no
âmbito da performatividade inerente ao espírito dos modernistas portugueses – e,
como veremos, também recorrente na construção da imagem de Ronald de Carvalho
enquanto autor. O ensaísta salienta que “Tudo se passa como se essas conferências
se cumprissem no simples acto do seu anúncio, por uma pura performatividade que
pudesse prescindir de mais texto” (MARTINS, F. C., 2012: 138).
O mesmo procedimento ocorre nas páginas de Fon-Fon! No número de 29 de
março de 1913, a revista voltava a dedicar atenção privilegiada a Luís de Montalvor,
classificando-o como um dos “poetas novos” e citando-o já de acordo com o
pseudónimo que o tornaria célebre. Nesta nota, refere-se O Lusíada encantado,
um livro em preparação e descrito como um “tour de force neste momento pleno
da literatura portuguesa”. Na nota, figura a estrutura do livro, constituído por doze
partes, cujos títulos são delineados, tal como a atmosfera enigmática que rodeava a
sua preparação: “Conseguimos que Luiz nos mostrasse um excerpto que fosse do seu
livro, e foi da confusão de notas rabiscadas n’um caderno que extrahimos alguns versos
Contextos de Orpheu nas páginas de Fon-Fon! 665

da Elegia da Chimera”. Curiosamente, o título desses versos aproxima-se do título


definito da recolha de versos de Eduardo Guimaraens, A Divina Quimera, publicada
em 1916, portanto no contexto de Orpheu e em sintonia com a anunciada participação
do poeta em Centauro8. Também o poeta rio-grandense, de resto, estaria ligado a pelo
menos um livro pré-anunciado nas páginas de Fon-Fon! e que nunca seria ultimado. A
26 de abril, no mesmo número em que como observámos se referia a urgência de uma
publicação coletiva que desse consistência à jovem geração de poetas, era anunciada a
leitura do livro de versos de Guimaraens, Do Ouro, do Sangue e do Silencio, que desde 12
de outubro de 1912 figurava nas páginas da revista como volume ao qual se extraíam os
poemas publicados pelo poeta9. No número seguinte, a 3 de maio, esse livro é o suporte
para o enquadramento de Guimaraens enquanto expoente de uma nova geração de
poetas, na sua maioria provenientes do Rio Grande do Sul:

Há por todas aquellas paginas magnificas, que a intimidade carinhosa do poeta nos permittiu
lêr, a fulguração quente e luminosa de Ouro novo; o sabor acre e impressão escarlate do
Sangue vivo e, por fim, o encanto socegado, longo e suggestivo do Silencio.
Eduardo Guimaraens é um poeta pessoal, possuindo uma nitida visão esthetica da Arte
difficil do Verso e sabendo movimentar e impor a emoção que detalha ou o sentimento que
analysa.
Esta é, aliás, a característica preciosa da moderna geração de poetas riograndenses, que
vamos conhecendo agora. Cada um tem o seu geito, o seu feitio, e a sua nota pessoal.

Uma vez mais, a originalidade como característica fundamental para o


reconhecimento do valor da nova poesia e dos que lhe davam corpo e a complexa
conjugação entre emoções e sentimentos, e o subsequente processo de detalhe e
análise, ou seja, de intelectualização – um motivo que Pessoa utiliza para definir as
características da nova poesia portuguesa10 – são traços decisivos do retrato de um
dos vários poetas brasileiros que, aparecendo ou não em Orpheu, estiveram na órbita
da preparação da revista.

8 Cf. (SARAIVA, A., 2004: 336-337).


9 Alguns meses depois, aquando da polémica com José Oiticica a que nos referiremos, será também mencionado
um outro livro de Eduardo que nunca passou da publicidade, Poemas Suaves e Ardentes.
10 Este motivo, presente nos textos de 1912 publicados nas páginas de A Águia, percorrerá uma parte considerável
da reflexão poética de Pessoa e remonta pelo menos ao contexto de fixação mítica de um dos precursores da
modernidade literária portuguesa, Antero de Quental. Na apresentação dos seus Sonetos Completos, Oliveira
Martins afirmava: “É sabiamente um poeta na mais elevada expressão da palavra; mas ao mesmo tempo é a
inteligência mais crítica, o instinto mais prático, a sagacidade mais lúcida, que eu conheço. É um poeta que
sente, mas é um raciocínio que pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa” (Quental, A., 2002: 62).
666 100 Orpheu Rui Sousa

Ronald de Carvalho é, contudo, o caso mais paradigmático deste período


transfigurador, conhecendo mesmo o que, com as devidas distâncias, se assemelha a
um “dia triunfal”. Na notícia de janeiro de 1913 por via da qual Fon-Fon! se despedia
do seu colaborador regular, anunciando a sua viagem para Paris, lê-se: “Ronald parte
em Março para a Europa e de lá nos enviará o seu primeiro livro de versos – Poema
da Luz, obra forte, de assumpto bebido em todas as manifestações da nossa bizarra
Natureza (...)”. Um ano mais tarde, Mário Pederneiras (M. P.), numa recensão a Luz
Gloriosa, entretanto publicado em Paris, expõe o percurso que conduziu de um
projecto a outro:

Depois de installado em Pariz, Ronald, uma noite, no socego do seu apartamento, releu o
seu livro, cuidadosaente, despreoccupadamente.
Releu-o e não gostou; achou-o falho e cheio de impressões extranhas.
Longe do applauso incondicional das coteries litterarias e das amizades pessoaes, do elogio
facil da imprensa e de estimulos extemporaneos, sosinho, isolado em terra extranha, a idade
mais sazonada, o espirito mais educado pela bôa leitura sã e digna, o Poeta avaliou bem a
inutilidade que representava o esforço daquelle livro, sem feição individual, nem segura
nota de emoção real. Acabou de relel-o, retirou-lhe duas ou tres poesias que lhe pareciam
melhores e atirou ao fogo, resolutamente, o resto dos versos que deviam constituir o seu
livro (...).
No dia seguinte, Ronald de Carvalho, começou a trabalhar no novo livro, que foi a sua
grande preoccupação, durante o tempo em que esteve na Europa.
Este livro ahi está, impondo-se como um trabalho superior, uma obra original e emotiva.

Esta nota indicia que o contacto com a capital europeia da cultura, num clima de
absoluto exílio e interiorização, tão caro aos órficos, potenciou um espírito novo, capaz
de converter o autor de uma obra de assuntos bebidos “em todas as manifestações da
nossa bizarra Natureza” num representante por excelência dos “Poetas Modernos”
que em Paris pululavam. De facto, Luz Gloriosa constitui um dos primeiros livros
publicados por um (futuro) colaborador da revista Orpheu – são também de 1913
A Liberdade Transcendente, de Raul Leal, e Rimas da Noite e da Tristeza, de Alfredo
Pedro Guisado. O exemplar dedicado pelo poeta a Fernando Pessoa motivaria,
como é conhecido, a única missiva conhecida do poeta português para aquele que,
anos mais tarde, seria o único colaborador de Orpheu a marcar presença na célebre
Semana de Arte Moderna de 1922. Essa carta, aliás, apresenta indícios de que Pessoa
terá apreciado a poesia de Luz Gloriosa, sobretudo – como se poderá verificar pelo
Contextos de Orpheu nas páginas de Fon-Fon! 667

exemplar que consta da sua biblioteca11 – nos poemas da segunda secção da obra,
“Vida Silenciosa”.
Antes de finalizar esta exposição de alguns dos muitos aspectos em que Fon-Fon! se
assume como um interessante interlocutor dos futuros desenvolvimentos do projeto
de Orpheu – a que não é alheia também a publicação do poema “Vontade de Dormir,
de Mário de Sá-Carneiro, no número de 24 de janeiro de 1914, colaboração potenciada
provavelmente pela amizade entre Montalvor e os representantes de ambos os grupos
em desenvolvimento – parece-nos interessante apresentar um texto de Eduardo
Guimaraens, no qual figura um amplo entendimento e apologia da individualidade
poética. Trata-se de “Palavras a um Novo”, publicado em 25 de outubro de 1913. Se é
verdade que este texto se afasta de algumas das principais teses pessoanas a respeito
do fenómeno poético, nomeadamente no que respeita à recusa da aniquilação de
um Eu individual, será importante reter algumas das suas ideias, nomeadamente
a supremacia dos grandes poetas relativamente às correntes literárias e a recusa da
subjugação da arte a qualquer moral ou doutrina exterior. Para Eduardo Guimaraens,
o que fica da arte verdadeira é “o que havia da alma do artista, feita emoção, feita
imagem, feita rythmo”, o que aponta tanto para um subjectivismo devedor da
tradição romântica, que os de Orpheu encarariam com evidentes reservas, como para
a supremacia do imaginário, do sonho e da musicalidade. A apologia, por parte do
poeta da Divina Quimera, da ideia de que “em arte, não ha theoria possivel, não ha
idéas centraes dominantes, scientificas ou não, a obedecer” poderia perfeitamente
ser subscrita por Pessoa, por exemplo nos apontamentos, provavelmente de 1913, a
respeito do processo pelo qual “a arte moderna se tornara a arte pessoal”, exigindo
“uma interiorização cada vez maior – para o sonho crescente, cada vez mais para
mais sonho” (PESSOA, F., 1967: 156). Nos conselhos ao jovem interlocutor ao qual se
dirige o texto “Palavras a um Novo”, o sonho adquire também assinalável destaque:
“tudo está, a principio, em ler, ler muito, ler tudo [...]. Sentir o que leias, sobretudo.
É preciso, depois, que vivas. Eu te direi: vive, ama, soffre. Sonha, acima de tudo! Sê o
mais possível tu mesmo: porque a maior parte do mal está em aniquilar a noção do
Eu. Toda a tua poesia será immediatamente original”. Parece existir uma deliberada
aproximação entre os planos do sonho e da identidade, que propicia uma outra forma
de compreender a noção do Eu, que já não é a do subjetivismo romântico expresso
enquanto experiência simples, mas uma projeção de um mundo onírico adquirido
no contacto do sujeito com o mundo exterior e depois trabalhado poeticamente.
Para se ter uma noção do alcance deste texto, bastará, mesmo sem aprofundarmos a

11 Consultável em http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/bdigital/8-93/2/8-93_item2/index.html.
668 100 Orpheu Rui Sousa

polémica com José Oiticica por ele desencadeada, ter em conta que a 29 de novembro
Mário Pederneiras (M. P.), num texto em que promove as vozes poéticas que entende
estarem implicadas na renovação da poesia brasileira, adota as considerações de
Eduardo Guimaraens como síntese desse projeto:

O nosso Verso ficara na sumptuosidade parnasiana ou na repetição de velhas formas


romanticas extinctas. Só era Poeta quem se norteasse por esse rumo consagrado. (...)
A actual geração de Poetas veio mostrar que ha também Poetas e magníficos Poetas, sem
que seja preciso atar-se a qualquer uma dellas.
Eduardo Guimaraens disse, com uma precisão admiravel que não ha escolas que fiquem;
ficam os Poetas que são bons e os livros que tem merito. Foi o que aconteceu com o
romantismo, com o parnasianismo e ha de acontecer com a geração de hoje.

O ataque de Orpheu às formas estabelecidas e à moral socialmente consagrada


definiu-se precisamente tendo como horizonte este ponto de vista, opondo à
omnipresença de modelos e de fórmulas tidas como ultrapassadas uma comum
necessidade de reunir num gesto com grande impacto cultural distintas expressões
artísticas consideradas modernas ou pelo menos ainda relevantes. Como anunciava
Pessoa na importantíssima carta dirigida a Camilo Pessanha, “a nossa revista acolhe
tudo quanto representa a arte avançada; assim é que temos publicado poemas e prosas
que vão do ultra-symbolismo até ao futurismo” (PESSOA, F., 2009: 383). Estamos
no âmbito da “série infindável de ismos” que Almada, em 1965, apresentava como
característica nuclear de Orpheu (NEGREIROS, A., 2015: 24) e que, quanto a nós,
parece ser equacionada, de diferentes formas, nas páginas da revista Fon-Fon!, entre
1913 e 1915, período que, como é unanimemente assumido, se pode considerar
crucial para o Modernismo Português.

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Alberto, Orpheu, Álvaro: pontes

José Luiz Foureaux de Souza Júnior


Universidade Federal de Ouro Preto / Universidade de Coimbra / Capes

Palavras-chave: Recepção; Leitura; Poesia; Homoerotismo; Literatura Portuguesa.


Resumo: Este trabalho tem como objetivo construir pontes para ligar as relações de amizade
de dois poetas portugueses do final do século XIX: António Nobre e Alberto de Oliveira. O
ponto de partida é a leitura da correspondência de António Nobre (totalmente publicada).
Nessa correspondência, aparecem indícios de que em cartas escritas por seu amigo, Alberto
de Oliveira, laços estreitos até de amizade íntima que vai além do intercâmbio intelectual e
literária entre ambos. A leitura é amparada pela perspectiva de “pacto homosocial”, como
apresentado por Eve Sedgwick Kosofski em seu livro Between men. O trabalho se encaixa no
âmbito alargado dos estudos de Literatura Comparada, sobretudo os circunscritos à Estética da
Recepção, o que corresponde a análise e renovação de exercício crítico de releitura a partir de
gêneros literários diversos como a epistolografia de escritores representativos.

A grandeza do homem consiste em que ele é uma ponte e não um fim;


o que nos pode agradar no homem é ele ser transição e queda.
Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra

Considerei subscrever esta comunicação ao tema “O legado de Orpheu” por acreditar


que, de fato, a epistolografia exigiria um recorte muito estreito para as possibilidades
que vislumbro a partir do processo de investigação que venho desenvolvendo e
que envolve a correspondência de António Nobre e Alberto de Oliveira. Na visada
retrospectiva que proponho aqui, esta correspondência é o ponto de chegada de
minhas elucubrações. O ponto de partida é o conjunto de considerações que faço a
partir de um trecho de carta escrita por Fernando Pessoa, passando por considerações
acerca de abordagem panorâmica do conjunto de propostas da Revista Orpheu, em
seu primeiro número.
Orfeu, filho da musa Calíope e Apolo ou Eagro, rei da Trácia, poeta talentoso;
quando tocava sua lira, os pássaros paravam de voar para escutar e os animais
selvagens perdiam o medo, as árvores se curvavam para pegar os sons no vento. Um
os argonautas, salvou os demais tripulantes quando seu canto silenciou as sereias.
672 100 Orpheu José Luiz Foureaux de Souza Júnior

Apaixonou-se por Eurídice. Casou-se com ela. Mas Eurídice era tão bonita que,
pouco tempo depois do casamento, atraiu um apicultor chamado Aristeu. Quando
ela recusou suas atenções, ele a perseguiu. Tentando escapar, ela caiu, pisou numa
serpente que a mordeu e morreu. Por causa disso, as ninfas, companheiras de Eurídice,
fizeram todas as suas abelhas morrerem. Orfeu ficou transtornado de tristeza. Levando
sua lira, foi até o mundo inferior, para tentar trazê-la de volta. A canção pungente e
emocionada de sua lira convenceu o barqueiro Caronte a levá-lo vivo pelo rio Estige.
A canção da lira adormeceu Cérbero, o cão de três cabeças que vigiava os portões. Seu
tom carinhoso aliviou os tormentos dos condenados. Encontrou muitos monstros
durante sua jornada e os encantou com seu canto. Finalmente, Orfeu chegou ao trono
de Hades. O rei dos mortos ficou irritado ao ver que um ser vivo tinha entrado em
seu domínio, mas a agonia na música de Orfeu o comoveu, e ele chorou lágrimas de
ferro. Sua esposa, a deusa Perséfone, implorou-lhe que atendesse o pedido de Orfeu.
Assim, Hades atendeu seu desejo. Eurídice poderia voltar com Orfeu ao mundo dos
vivos, sob uma única condição: que ele não olhasse para ela até que estivessem sob a
luz do sol. Orfeu partiu pela trilha íngreme que levava para fora do escuro reino da
morte, tocando músicas de alegria e celebração enquanto caminhava, para guiar a
sombra de Eurídice de volta à vida. Ele então quase no final do tenebroso túnel olhou
para se certificar de que Eurídice o acompanhava e não a viu. Hades e Perséfone os
seguiam e como ficou estabelecido que ele não poderia olhar para Eurídice até chegar
ao fim do túnel, Hades a tomou novamente. Em desespero, Orfeu se tornou amargo.
Recusava-se a olhar para qualquer outra mulher, não querendo lembrar-se da perda
de sua amada. O Orfismo, comportamento ambíguo de aconselhar sem poder usufruir
do próprio conselho, vem daí, ao que parece. Orfeu morre sob a fúria das Mênades
que o mataram a golpes de dardo, jogando seu corpo no Hebro, aos pedaços e, ainda
assim, cantando. As nove musas reuniram os pedaços de Orfeu e o enterraram no
monte Olimpo. Na morte, Orfeu se uniu a Eurídice.
Uma lição, dentre outras, que fica do enredo do mito pode ser a da ideia de desejo
que persiste, mesmo em condições nada viáveis, o que reforça a natureza própria do
desejo. De índole instintual, o desejo não escolhe data e local, cor ou textura, preferência
ou circunstância. Ele está ali e, se a mão de Lacan não conduz a erro, é pela linguagem
que ele se manifesta de maneira mais contundente. Para além disso, é talvez na e pela
linguagem poética que essa contundência atinge foro de intransponibilidade. Há que
ressaltar que, de maneira genérica, estou considerando a carta como um texto poético,
em seu sentido mais largo – o que é discutido por Sophia Angelides e Marie-Claire Grassi,
por exemplo. Tópico este que vou tomar como pressuposto, por questão de tempo.
Outra lição é a da sedução. Fenômeno ou processo – dependendo do direcionamento
que a utilização desse conceito segue – fica claro que o canto de Eurídice seduz pela
Alberto, Orpheu, Álvaro: pontes 673

beleza, quebrando todas as resistências. Esta sedução, acaba por fazer com que o
poeta, por ansioso que estava, deixe de cumprir o que mandou a divindade e se vire
para, ele também seduzido pelo desejo, tentar ver sua amada. O vaticínio se cumpre.
Ele perde de vez a chance de voltar a viver com Eurídice. O encontro só se realizará
na morte, o que pode causar certas diferenças interpretativas muito instigantes que
também serei obrigado a deixar de lado aqui.
Num e noutro caso, o relato do mito me leva a pensar no destino da revista Orpheu
como proposta estética de revolução, mudança, renovação. Para tanto, farei uma
pequena digressão sobre dois trechos de cartas que, a meu ver, ilustram o espírito
anunciado pela letra de Orpheu, em seu nascedouro. Atente-se para o fato de que
se trata aqui de apresentação sumária e introdutória, um projeto, que vem sendo
desenvolvido e que deseja encontrar satisfação em sua demanda.
Merecem ainda destaque duas expressões presentes no relato do mito. A primeira,
“trilha íngreme que levava para fora do escuro”, é expressão que pode remeter a uma
leitura do perímetro afetivo que circunda a correspondência entre António Nobre e
Alberto d’Oliveira – uma das consequências da abordagem aqui apresentada. Esse
perímetro só pode ser desenhado por conta da “abertura” que a revista propunha
ensejar no cenário cultural de Portugal, quando de seu aparecimento. A segunda
expressão, “comportamento ambíguo de aconselhar sem poder usufruir do próprio
conselho, vem daí, ao que parece”, pode remeter a uma análise do fim da revista, por
todos os motivos que se lhe possam atribuir, sem destaque para nenhum. O caráter
“ambíguo” marca de novo o direcionamento do olhar homoerótico que é utilizado
para ler os trechos de cartas aqui arrolados.

Momento 1

Mário de Sá-Carneiro se mata, em Paris, no dia 26 de Abril de 1916, Fernando


Pessoa, apesar disso, não desistiu do terceiro número de Orpheu. Em 4 de Setembro
desse ano, escreveu a Côrtes-Rodrigues que a revista deveria sair ainda nesse mês:

Vai sair Orpheu 3. É aí que, no fim do número, publico dois poemas ingleses meus, muito
indecentes, e, portanto, impublicáveis em Inglaterra. Outra colaboração do número: Versos
do Camilo Pessanha (a propósito não cite isto a ninguém), versos inéditos do Sá-Carneiro,
A Cena do Ódio do Almada-Negreiros (que está actualmente homem de génio em absoluto,
uma das grandes sensibilidades da literatura moderna), prosa do Albino de Meneses (não
sei se v. conhece) e, talvez, do Carlos Parreira, e uma colaboração variada do meu velho e
infeliz amigo Álvaro de Campos.
674 100 Orpheu José Luiz Foureaux de Souza Júnior

Orpheu 3 trará, também quatro hors-texte do mais célebre pintor avançado português -
Amadeu de Sousa Cardoso.
A revista deve sair por fins do mês presente. Para a mala que vem já lhe poderei dar notícias
mais detalhadas. (PESSOA, F., 1999: 220-221)

Neste trecho, desejo destacar a informação de que Fernando Pessoa tenciona


publicar o que ele chama de “dois poemas ingleses meus, muito indecentes”. Sabe-se
que acabaram por aparecer publicados alhures. Mas Álvaro de Campos, um de seus
heterônimos, afirma ser, ele mesmo um caso de “temperamento feminino” que conta
“com uma inteligência masculina”, em uma de suas páginas íntimas. Isto quer dizer
alguma coisa. A frase implícita, de sabor poético, não pode ser lida como simples
retórica. Já em algumas Odes, o engenheiro naval se considera “uma inversão sexual
frustre”.
Interessante a afirmação de Pessoa. Por que os poemas são impublicáveis em
Inglaterra mas o podem ser em Portugal? Guardadas as devidas proporções, pensar
o contrário pareceria muito mais plausível. Pareceria, não fosse a afirmativa feita sob
a égide da revista Orpheu que, entre outras coisas, a seu modo, propunha a quebra
de grilhões estéticos, sociais e (até) morais, vindo a ensejar novos horizontes de
expectativas para a Literatura Portuguesa no início do século 20. A referência a Almada
Negreiros aqui é, a meu ver, mais uma confirmação inconteste do espírito que animou
a publicação. De qualquer maneira, salta aos olhos a referência ao heterônimo: “meu
velho e infeliz amigo”!
Álvaro de Campos revela certa avidez recalcada por evadir-se em seu desejo
não satisfeito como nos versos “Eu podia morrer triturado por um motor / Com
o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída”. Na “Saudação a Walt
Whitman”, em lugar do acento social que Garcia Lorca teria empregado, o heterônimo
atesta uma semelhança entre seu desejo ainda indizível e o do “grande pederasta”
saudado, revelando uma “vontade (…) / De ser a cadela de todos os cães e eles não
me bastam”. O requinte de Campos é mais uma vez a chancela do recalcamento que o
sufoca, e a outros sujeitos de então.
Na voz poética de Álvaro de Campos, particularmente na “Ode Triunfal” e na
“Ode Marítima”, vemos encenada a emergência desse novo modelo de masculinidade,
estabelecida sobre a crise dos valores sociais e estéticos portugueses e europeus –
haveria melhor argumento para a “realização” do projeto órfico (em dois dos sentidos
do termo) que a revista protagoniza e leva à concretização nos números publicados?
Nesses poemas, se concentra um novo sujeito homoeroticamente manifesto: ele não
quer ser mulher, como em “Manicure”, de Sá-Carneiro, mas quer ver-se tomado,
possuído pela força da masculinidade, não representada por si mesmo, mas pelo
Alberto, Orpheu, Álvaro: pontes 675

mundo moderno. Mais uma vez, o espírito vanguardista e revolucionário, para não
dizer transgressivo da revista, se explicita.

Momento 2

António Nobre escreve a Alberto d’Oliveira, em 24 de Outubro de 1890. Ele está a


caminho de Paris a bordo do navio Britannia. Vale lembrar que o estado de espírito
de Nobre não era dos melhores. Por um lado, havia sido reprovado por duas vezes
seguidas nos exames em Coimbra, não podendo conseguir aí o diploma de Bacharel
em leis. Por outro, a separação do “amigo mais querido”1, que ficou em terras
portuguesas, o que criou o horizonte de expectativas das cartas que trocaram. Desta
carta, destaco a seguinte passagem:

(...) sois, talvez, gêmeos, mas não sois com certeza patrícios, por que o teu corpo de Purinho,
desengonçado e cor de leite, foi batizado na concha de pedra da Igreja de Santo Ildefonso,
o desse monstro do Britannia, sólido e negro, tem o seu nascimento arquivado, nalguma
babilónica oficina de Liverpool. Contudo, há esta coincidência mas eu não consinto que a
tua pilinha-morango, toque nem de leve o vergalho deste paquete. (CASTILHO, G., 1982:
116)

O poeta faz, neste passo da carta, uma comparação entre o navio em que viaja
e o corpo de Alberto de Oliveira. Uma comparação reveladora. Para além disso,
muito além aliás, a carta apresenta uma série de três pares comparativos constituídos
pelo poeta “da torre”, envolvendo seu amigo e o navio em que viajava. O primeiro
par aponta para a coincidência entre o ano de nascimento de Alberto de Oliveira
e o de inauguração do Britannia, 18732. São “gêmeos”, como diz Nobre, apesar de
nacionalidades diferentes. Dada a particular oscilação de António Nobre em relação
a seus sentimentos quando se trata dos ingleses, de cara, evidencia-se a preferência
pela própria identidade cultural, o que vai ficar cada vez mais evidente nos pares
comparativos seguintes.

1 Coloco a expressão entre aspas, não porque alguém a tenha citado – e creio que tenha sido – mas porque é
usada aqui e ali, e por mim mesmo, para identificar Alberto de Oliveira.
2 NA verdade, trata-se do ano de naufrágio do navio que foi inaugurado dez anos antes. Pode ter sido uma
gralha na edição das cartas. Como não tive acesso ao original – dado que não constitui objeto primordial
de minha investigação – levo a cabo a informação obtida na internete: http://en.wikipedia.org/wiki/SS_
Britannia, acesso em 10/02/2015.
676 100 Orpheu José Luiz Foureaux de Souza Júnior

Na primeira assertiva do segundo par comparativo, António Nobre opõe “o corpo


de Purinho, desengonçado e cor de leite” a “monstro do Britannia, sólido e negro”.
Os adjetivos em contraposição explícita revelam dobras semânticas insuspeitadas,
quando observados/lidos sob a o enfoque da lente do homoerotismo: “desengonçado”
opõe-se a “sólido”, deixando entrever a delicadeza do afeto que aproxima e une os dois
poetas, não sem deixar entrever a intimidade física entre eles. O sentido dicionarizado
de “desengonçado”, aqui, é abandonado para ceder espaço a uma acepção envolvida
por afeto, carinho, que ressalta, ainda uma vez, a delicadeza da relação já referida.
Na sequência, “cor de leite” opõe-se a “negro”. O cromatismo, em primeira instância,
apela para a dicotomia totalidade/nulidade se se considerar o pressuposto da Física,
que apresenta o branco como a presença de todas as cores e o negro como a sua
ausência. Daí para a simbologia que as duas cores ensejam e sustentam é um passo: a
pureza e a sujidade, a inocência e o vício, o dia e a noite, o permitido e o condenado.
Num breve excurso a esta argumentação, cabe destacar a brancura referida pelo
poeta sem sua comparação. Isto porque, em outras alturas da correspondência, há
referência ao leite como líquido de celebração da amizade afetuosa partilhada por
António Nobre e Alberto de Oliveira: torna-se quase um ícone. Ora, se o caráter
simbólico for aqui (também) viável, seria aceitável associar a substância do leite como
elo que traz à tona o sêmen, muitas vezes identificado terminologicamente à mesma
substância. Esta inferência coloca-se a anos luz de distância de qualquer insinuação
de sodomia/pederastia, como variante (ainda que possível) do pacto homossocial
estabelecido, mesmo que inconscientemente. No diapasão desta nota, a Psicanálise dá
o tom, fazendo com que a plausibilidade da associação seja respaldada pelo axioma
lacaniano que toma a linguagem como modus operandi do inconsciente.
A segunda assertiva da mesma comparação aponta para outra dicotomia: sagrado/
profano. A “concha e pedra de Santo Ildefonso” é o par opositivo de “nalguma
babilónica oficina de Liverpool”. Ora, a “concha de pedra” opõe-se à “babilónica
oficina”. A primeira recebe, aconchega, acolhe; a segunda produz, apresenta, lança.
O adjetivo “babilónica” é o significante que dispara o discurso comparativo de
oposição entre o sagrado e o profano. De mais a mais, a mesma oposição serve para
reforçar o caráter afirmativo da valorização do relacionamento entre os dois poetas,
conforme atestado nesta correspondência. Uma vez mais, por vias transversas, o
pacto homossocial é celebrado.
Por fim, o terceiro par comparativo. António Nobre renega a identificação
completa entre o navio e seu amigo: a “pilinha-morango” é oposta ao “vergalho”. Pila
é substantivo comum que pode ser sinônimo de pênis, sobretudo coloquialmente.
Este significado coloquial se aplica também a “vergalho”. O diminutivo do primeiro
aprofunda o sentimento carinhoso e delicado devotado pelo autor da carta a seu
Alberto, Orpheu, Álvaro: pontes 677

amigo. A força fonética do segundo termo confirma a ideia representada pelo navio
nas comparações feitas por António Nobre.
O “sabor” da comparação – no sentido barthesiano deste substantivo – não deixa de
ser sugestivo: assim, “morango” funciona como índice identificador, uma espécie de
predicativo do sujeito. Por um lado, a delicadeza da fruta que se revela no adocicado
e no líquido associados ao paladar e, por outro, a cor que identifica, indiretamente, a
“adolescência” de Alberto de Oliveira; ratificando, uma vez mais e definitivamente, a
delicadeza percebida, devotada e celebrada na/pela relação entre os dois poetas.

Ponto quase final

Uma pergunta caberia aqui: como associar estas linhas ao que representou a revista
Orpheu em seu tempo de aparecimento e seu legado? Acredito que a resposta pode
ser simples. O primeiro número da revista traz uma “introdução”, de autoria de Luis
de Montalvor que pode servir de ponte para a(s) outra(s) possível(is) resposta(s) à
questão final que coloco. No sentido de ser veículo de mudança, diz o autor do texto
da “Introdução” que a revista “propondo-se, vincula o direito de em primeiro lugar se
desassemelhar de outros meios, maneiras de formas de realisar arte, tendo por notavel
nosso volume de Beleza não ser incaracteristico ou fragmentado, como literarias
que são essas duas formas de fazer revista ou jornal.” Já aqui a nota da diferença na
manifestação de certo espírito inconoclasta é perceptível.
Mais adiante, diz Montalvôr que “Puras e raras suas intenções como seu destino de
Beleza é o do:—Exilio! Bem propriamente, ORPHEU, é um exilio de temperamentos
de arte que a querem como a um segrêdo ou tormento…”. Nas reticências que fecham
este período e em seu conteúdo, percebe-se uma das notas que marcam os comentários
acerca dos trechos de carta aqui feitos – sobretudo ligadas aos termos “segredo” e
“tormento”. “Isto explica nossa ansiedade e nossa essencia!”, continua Montalvôr,
reafirmando o que eu já afirmei aqui.
De mais a mais, a julgar pelo que Fernando Pessoa diz acerca dos poemas que
desejou publicar no número 3 da revista e o que António Nobre exara nas linhas
de uma carta, já saudosa ainda que em princípio de viagem, o espírito de Orpheu,
a revista, remete ao incurável sofrimento de Orfeu, o mito, deixando os sujeitos
alienados de seu desejo, mas ansiosos por sua satisfação. A expressão artística pode
ser considerada um dos instrumentos de concretização desta mesma satisfação.
De uma forma ou de outra, o que resulta como elemento estrutural para a resposta
à pergunta acima mencionada é o fato de que o caráter homoerótico que atormenta,
tanto a voz heterônima de Fernando Pessoa, quanto a agonia em êxtase da saudade
678 100 Orpheu José Luiz Foureaux de Souza Júnior

de António Nobre, no contexto da virada de século em Portugal, só se faz possível,


acredito eu, com o auxílio mais que luxuoso da publicação de Orpheu. As cartas, ao
fim e ao cabo, funcionam como uma das “pontes”, como prenunciado no título desta
comunicação.
Sintomaticamente, a revista não enseja realizar todos os seus desejos, enquanto
expressão da busca de solução para impasses e dificuldades no âmbito da produção
artístico-cultural lusitana. O mito, de certa forma, sobrepõe-se à publicação. Esta
falece… números depois de publicada por primeira vez. O encontro de Orfeu e
Eurídice deu-se, segundo um dos relatos do mito, após a morte do poeta. Em certa
medida, a liberdade e a efetividade da discussão dos temas aqui expostos são o
sinal do falecimento da publicação em sua materialidade, mas da permanência em
seu ideário e na herança cultural – no sentido mais amplo deste termo – de suas
proposições eternizadas, por exemplo, nos trechos aqui apresentados, ainda que de
maneira sumária.

Bibliografia

ANGELIDES, Sophia (2001). Carta e Literatura: correspondência entre Tchekhov e


Gorki. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
CASTILHO, Guilherme de (1982). António Nobre: correspondência. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da moeda.
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INÁCIO, Emerson da Cruz Inácio (2004). «Outros Barões assinalados: a emergência
do discurso gay na produção literária portuguesa contemporânea». In: VIII
Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Coimbra: Centro de
Estudos Sociais: Faculdade de Economia: Universidade de Coimbra.
MONTALVÔR, Luis de (1915). «Introducção». In: Orpheu. Lisboa: Typographia
do commercio, v. 1.
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Lisboa, Publicações Dom Quixote.
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Assírio & Alvim, p. 220-221. A Armando Côrtes-Rodrigues.
TIN, Emerson (org.) (2005). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha,
Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio. Campinas: Editora da UNICAMP.
Mar Alto, de António Ferro, no contexto teatral da Lisboa dos anos 20

Ana Isabel Vasconcelos


Universidade Aberta e Centro de Estudos de Teatro da FLUL

Palavras-chave: António Ferro, Mar Alto, Teatro séc. XX, Censura teatral.
Resumo: A representação da peça Mar Alto, de António Ferro, foi alvo de contestação tanto
no Brasil, onde subiu pela primeira vez ao palco em novembro de 1922, como em Portugal,
onde foi apresentada no final do ano seguinte no Teatro de São Carlos e logo proibida pelo
governador civil de Lisboa. Os poucos estudos realizados sobre esta receção descuram a inserção
da obra na produção teatral da época bem como a análise dos contextos culturais, português e
brasileiro, em que a mesma foi apresentada. Estas duas vertentes de enquadramento contextual
parecem-nos promissoras no que se refere à revelação de aspetos cruciais para melhor
entendermos o lugar ocupado por esta produção dramática de António Ferro, considerada
atípica no panorama espetacular do início dos anos 20.

Como tem sido inúmeras vezes referido, implicamos António Ferro na publicação
da revista Orpheu devido ao facto de o seu nome figurar como editor do 1.º número,
não se tendo registado qualquer colaboração conteudisticamente percetível1. No que
diz respeito ao teatro, é com a peça Mar Alto que Ferro figura como dramaturgo nas
histórias de teor generalista que tratam do teatro português, embora as investigações
que estão em curso, nomeadamente no âmbito de trabalhos académicos, apontem
para a existência de outros escritos teatrais que urge recuperar.
Depois de ter sido estreada no Rio de Janeiro e em São Paulo, na companhia teatral
Lucília Simões-Erico Braga, Mar Alto subiu à cena em Lisboa, a 10 de julho de 1923,
ou seja, 8 anos depois da publicação de Orpheu, numa altura em que o seu autor é já
uma figura destacada no panorama intelectual português2.
Oiçamos o que recorda a sua mulher, Fernanda de Castro, muitos anos depois de
ter assistido à estreia, sentada num camarote de 1.ª ordem no Teatro de São Carlos:

1 A este propósito é esclarecedor o artigo de José Barreto (2015: 215-224), intitulado «António Ferro, o ‘Editor
Irresponsável’», no qual se defende comprovadamente o «cunho superficial» da sua ligação ao grupo do
Orpheu.
2 Cf. Biografia de António Ferro publicada no site da Fundação António Quadros, onde se encontra
depositado o seu espólio. http://www.fundacaoantonioquadros.pt/index.php?option=com_content&task=
view&id=29&Itemid=59&limit=1&limitstart=2
680 100 Orpheu Ana Isabel Vasconcelos

Como o Mar Alto era uma peça pequena, embora tivesse três atos, o espetáculo principiava
com uma peça em um ato de Jacinto Benavente. Quando, depois das três pancadas de Molière,
o pano subiu, houve uns momentos de profundo silêncio, mas logo que a representação
principiou, começaram lá de cima, da geral, assobios, apitos e outras manifestações do
mesmo gosto, até que se ouviu nitidamente uma voz de homem gritar: «É pá, calem-se que
isto ainda não é do Ferro!» Até ao intervalo não houve mais incidentes. Depois é que as
coisas se complicaram: gargalhadas, impropérios, assobios, etc., etc. Entretanto, os atores,
interditos, não sabiam o que fazer. O ponto bem se esforçava, mas eles, tal era o charivari,
não ouviam nada. Quem ouvia eram os da plateia, sobretudo os das primeiras filas, que
riam e pateavam alternadamente. […] Quando o pano subiu para o 2.º ato, o espetáculo foi
mais ou menos semelhante, até ao momento em que, não se sabe porquê, o António saiu dos
bastidores e entrou palco dentro, começando a discutir violentamente com o público das
primeiras filas. […] No dia seguinte, a peça foi proibida pelo Governo Civil, por perturbar
a ordem pública (CASTRO, F., 1986: 193-4).

Na sequência deste incidente, Ferro escreveu a Lucília Simões uma carta que foi
publicada no Diário de Lisboa, em 12 de julho de 1923:

Enquanto você, anteontem, no palco de S. Carlos, assombrava a plateia com uma espantosa
criação, uma parte da plateia conseguia assombrá-la com uma espantosa má-criação.
Sinto-me responsável pelo desaire que sofreu como me sinto responsável pelos prejuízos que
trouxe à Empresa a proibição da peça numa hora em que a lotação do teatro estava quase
esgotada. […] Pois, minha boa amiga, é exatamente como lhe digo: o principal motivo da
tempestade de terça-feira foi a inveja […]. Era difícil liquidar-me na crítica de um livro, era
perigoso liquidar-me na atmosfera restrita de uma conferência […]. Na arena de um teatro,
porém, era mais fácil. Mar Alto foi a grande ocasião, o excelente pretexto. […] Você viu…
O espetáculo abriu com um episódio de Benavente e Benavente passou um mau bocado por
minha causa. Confundiram-no comigo e vá de romper em fogo. […] houve logo um tremor
de terra… Alguém, porém, mais cuidadoso, como quem deseja salvar um embuçado que vai
ser morto por engano, gritou: «Cautela, rapazes!... Ainda não é o Mar Alto!». Creio que nada
mais é preciso para demonstrar o parti-pris (in FERRO, A., 1924: s/p).

Toda esta agitação teve como consequência a imediata proibição da peça,


alegando-se os desacatos registados durante e depois da sua representação. A esta
medida decretada pelo Governador Civil reagiram os intelectuais portugueses que,
Mar Alto, de António Ferro, no contexto teatral da Lisboa dos anos 20 681

num abaixo assinado datado de 17 de julho3, protestaram contra o que consideraram


uma atitude precipitada e injustificável, recusando-se a «reconhecer à autoridade
policial competência para aquilatar da moralidade ou imoralidade de uma obra
literária» (ibid.). Segundo o testemunho de Ferro, o documento não chegou a ser
entregue, uma vez que a proibição foi anulada por decisão de uma comissão criada
ad-hoc para apreciação da mesma.
Mas, afinal, qual teria sido a razão ou as razões para que a peça fosse assim recebida?
Sabemos que não era incomum a manifestação ruidosa por parte das claques, mais ou
menos organizadas, quando havia quezílias de bastidores, e acreditamos que houvesse
má vontade, sobretudo por parte do setor mais conservador, uma vez que já tinham
chegado notícias do Brasil. Não estranhamos, assim, que toda esta perturbação se
devesse à temática abordada no texto, a qual evidenciava uma atitude audaz por parte
do autor, trazendo para cena o que foi referido por alguma crítica como «um caso
miserável de vielas» (in FERRO, A., 1924: 84).
Vejamos, brevemente, de que trata Mar Alto.
A peça encerra um triângulo amoroso, ou melhor, a inversão do clássico triângulo
amoroso, já que a relação que é «atraiçoada» não é a do casal (marido-mulher), mas
a da mulher e do seu amante. Madalena tenciona romper uma relação entra-conjugal
que mantém há tempo incerto e lhe proporciona um nível de vida mais elevado, no
momento em que o seu marido, Luís, -- personagem com obsessiva atração pelo luxo
-- se encontra a braços com uma difícil situação: cometera um roubo para oferecer
a Madalena uma joia de elevado preço. Fazendo deste nível de vida o valor máximo
das suas existências, concordam ambos numa pérfida solução que exige a inversão
da relação entre as personagens. Com a conivência de Luís, Madalena finge terminar
o casamento e vai viver para casa de Henrique, o ex-amante, passando «marido e
mulher» a manter uma relação que escondem agora de Henrique. A peça termina
com agressões verbais entre Madalena e Luís, quando esta rompe a relação com o
antigo amante e volta para casa. O desfecho desvia-se do modelo melodramático
graças à intervenção do filho, numa ação pouco verosímil num quadro estético que se
pretende aqui inovador.
Numa trama com estes contornos, facilmente percebemos que, no que respeita à
relação amorosa entre os pares, estamos longe da receita romântica por que ainda se
pautavam alguns dos textos que subiam ao palco neste período. Armando Ferreira, um
crítico da época, observava que as peças então representadas, fossem de novos autores
fossem de autores com nome firmado, não passavam do «drama rústico com Manéis e

3 A lista de assinaturas é encabeçada por Raul Brandão e entre os 53 nomes estão Alfredo Cortês, Fernando
Pessoa, Robles Monteiro, Jorge de Faria, Gustavo Matos Sequeira e José Pacheco.
682 100 Orpheu Ana Isabel Vasconcelos

Ti Anas, do drama histórico sugando as vidas de figuras mortas em 3 suculentos atos,


em parelhas de rimas, ou da esboçada pecinha de tese» (FERREIRA, A. 1923: v). Estas
chamadas peças de tese – referindo-se entre outras à de António Ferro – eram, ainda
segundo o crítico, escritas «a medo, fazendo afirmações velhas e relhas, com truques
de efeito cénico que já o bisavô Dumas utilizava…» (ibid.). E continua o crítico:

O teatro [como] forma de arte é quase desconhecido em Portugal. Vivemos emparedados


na Europa e apenas nos chegam as comédias dum francesismo pernicioso ou os dramas de
efeitos teatrais que as empresas têm como receita garantida. E têm razão. Ninguém gosta
de perder dinheiro; quando alguém lembrasse a um atarefado empresário levar à cena
uma peça em que os cenários fossem substituídos por formas geométricas sobre fundo
negro, com tonalidades de luz apropriadas ao diálogo, dir-lhe-ia: «Isso é futurismo. Eu não
empresto dinheiro a juros a malucos» (ibid.).

Esta afirmação diz bem da estética que presidia às representações e que replicava,
mesmo nestas «peças de tese», o modelo naturalista de Antoine, que havia mais de
20 anos tinha sido uma revelação em Portugal. As novas tendências cenográficas
que agora se manifestavam por toda a Europa insistiam em ultrapassar a estafada
«ilusão panorâmica», fazendo da luz e sua exploração o objeto cénico. Mas esta nova
«arte decorativa» continuava arredada das práticas dos chamados teatros públicos,
mesmo quando nestes espaços se apresentavam novos autores, dois dos quais um
crítico de renome considerou como os únicos dramaturgos que mereceriam «lugares
de destaque entre a púrria de patarecos e lesmas que grasnam e rastejam no lodaçal
dos palcos portugueses» (MADUREIRA, J., 1924: 4). Referia-se Joaquim Madureira a
Carlos Selvagem e a Alfredo Cortez, que, no mesmo ano em que é representado Mar
Alto, levaram a cena duas obras que podemos igualmente inscrever no role das tais
«peças de tese».
Como veremos, a receção buliçosa de Mar Alto, que brevemente relatámos, não
foi acontecimento único naquela época teatral. Uma semana antes de a peça de
Ferro subir ao palco do São Carlos, era apresentado, no Teatro Politeama, o segundo
drama de Alfredo Cortez, sugestivamente intitulado O Lodo. Depois de recusado
pela administração do Teatro Nacional, foi recebido pela companhia de Amélia
Rey Colaço, em récita única e por obséquio dos atores, assumindo o autor todas
as responsabilidade e encargos (SANTOS, V., 2015: 17). Atentemos no que a atriz
Adelina Abranches registou dessa noite, nas suas memórias:

Também não esqueço o que foi a primeira representação do «Lodo», de Alfredo Cortez;
noite tempestuosa, em que as palmas e a pateada se fizeram ouvir constantemente… Palavra
Mar Alto, de António Ferro, no contexto teatral da Lisboa dos anos 20 683

que nunca percebi lá muto bem por que se fez tal alarido em volta dessa peça, aquando
da estreia em récita única […] Na tal récita é que foi o bom e o bonito! A sala regurgitava
de amigos e inimigos do autor, além daquele numeroso grupo de espectadores que nunca
falta às primeiras de sensação, mormente quando lhe cheira a escândalo… Nunca senti
pateada tão retumbante e nunca vi pessoa que, com mais desassombro, a recebesse de
frente, como Alfredo Cortez! O grande dramaturgo estava muito pálido, nervosíssimo, mas
procurava dominar-se; agarrava-me o braço com toda a sua força e só sabia agradecer-me o
que eu tinha feito pela sua peça! Na plateia travavam-se discussões em voz alta. Os amigos
e admiradores de Alfredo Cortez queriam manifestar-lhe, com aplausos delirantes, o seu
sincero apreço; os inimigos e os puritanos queriam provar-lhe a sua indignação pela obra
apresentada, que reputavam ignóbil. E o charivari era ensurdecedor! Não sei como tive
nervos para representar até ao fim, sem desfalecimentos, em tal atmosfera de desagrado!
(ABRANCHES, A., 1947: 379-380)

Mas, afinal, o que tinham em comum a peça de Ferro e esta peça de Cortez para
provocarem tamanha indignação por parte não só do público como também da
maioria dos críticos?
Sublinhe-se que nem uns nem outros manifestaram qualquer estranheza
relativamente às linguagens cénicas de qualquer um dos espetáculos. O motivo de
desconforto residia nas temáticas tratadas nos textos e no recorte das personagens,
criaturas ignóbeis a quem não é dada a possibilidade de redenção. A apresentação crua
de quadros sociais e familiares que replicam relações marcadas por alguma sordidez
criam estranheza no espectador, que, reconhecendo embora a verosimilhança das
situações retratadas, partilham do ponto de vista de um crítico que considera que
«nem toda a verdade da vida se pode transferir, nua e crua, para o palco, porque nem
toda a realidade cabe nos domínios da Arte […]» (ALMEIDA, A., 1923: 57).
E que «verdade da vida» se apresentava neste texto de Cortez?
Uma casa de família na Mouraria, que inclui um espaço destinado à prostituição,
por onde vão passando algumas personagens de somenos importância, como Sara
(uma prostituta) e Marcolina (uma criada), centrando-se todo o enredo em duas
relações triangulares: Domingas e as duas filhas; e Domingas, uma das filhas (Júlia)
e Manuel Facão, um proxeneta que já vivera às custas de Domingas e a trocara, havia
algum tempo, por Júlia, filha desta. A peça demonstra a dificuldade de resgate do
indivíduo pertencente à camada social que vive ao nível do lodo, dada a assunção
de culpa e o desejo de expiação dentro do seu quadro social de referência. Embora
se vislumbre a possibilidade de «salvação», qualquer tentativa de libertação daquelas
vidas sucumbe, pois estão de tal forma imersas que elas próprias lutam para assim se
manterem.
684 100 Orpheu Ana Isabel Vasconcelos

Esclareçamos que a exposição destas «chagas sociais» em palco não era, à data,
propriamente inédita, embora os traços realistas nem sempre fossem tão acentuados.
Recorde-se, a este propósito, a crítica de Fernando Pessoa à representação, no Teatro
Nacional em maio de 1916, do drama Octávio, de Vitoriano Braga, cujo conflito assenta
na temática da homossexualidade. Numa das suas páginas sobre literatura e estética,
Pessoa refere-se a este texto como um exemplo de «peça moderna», correspondendo
às exigências de uma nova cultura. Considera o poeta que «a preocupação artística
moderna, de sugerir em vez de exprimir, obriga-nos a que concebamos o ideal dramático
neste ponto como o de que a tese, conclusão ou filosofia do drama seja sugerida pelo seu
enredo ou conjunto, e não dita por esta ou aquela personagem [...]» (PESSOA, F., 1986:
64). Esta substituição da explicitação pela alusão, tão cara aos simbolistas, é o traço que
este modernista evidencia em Octávio, como elemento distintivo de uma nova estética.
Ferro também insiste no caráter inovador do seu texto, referindo-se às
características de uma peça «moderna». Em primeiro lugar, uma peça de tese, limpa
de ações espúrias, em que tudo concorra para um mesmo fim, numa «simplificação de
processos» (FERRO, A., 1924: 61); depois, uma peça moldada num grande conflito,
com poucas personagens e apenas as que estão envolvidas nesse conflito, pois a «única
testemunha de um drama sério deve ser o público» (idem: 62); e, ainda, uma peça
inovadora pelo assunto, que deve ser inédito, e pela linguagem que deve fundir a
literatura e a sobriedade, empregar o tom coloquial, mas albergar grandes pensamentos
(ibidem). Sem dúvida que Mar Alto se inscreve neste figurino, que, enunciado desta
forma, também se ajusta aos preceitos da produção dramática naturalista, de que a
peça de Cortez acima referida é modelar. Acontece, porém, que não só já se passaram
muitos anos desde a publicação do texto português que teorizou o teatro naturalista4,
como Mar Alto se apresentou publicamente, pela primeira vez, em São Paulo, no que
foi considerado como o «ano simbólico da manifestação do modernismo no Brasil»
(TORGAL, L., 2004: 1099), o mesmo em que se realizou a Semana de Arte Moderna
naquela cidade brasileira. Sabemos ainda que, nesta sua deslocação, Ferro proferiu
várias conferências, tendo sido apresentado como um dos intelectuais pertencentes
à nova geração de modernistas. Neste contexto, é plausível que as expectativas e
também os receios relativos à peça que aí se ia estrear fossem no sentido de um texto
que rompesse com os cânones tradicionais, envolvido numa encenação quiçá de teor
futurista, um pouco à guisa não só do conteúdo mas também da forma como as suas
conferências decorriam5.

4 Referimo-nos à publicação de Júlio Lourenço Pinto, Estética Naturalista: estudos críticos, de 1884.
5 A este propósito, leia-se o subcapítulo «António Ferro e o Brasil» de Torgal (2004: 1099 e ss), em que se relata
o clima feérico das conferências, acompanhado de excertos elucidativos do teor das comunicações.
Mar Alto, de António Ferro, no contexto teatral da Lisboa dos anos 20 685

Os documentos a que pudemos aceder levam-nos a crer que a crítica paulista se


dividiu: onde uns viam imoralidade, uma «tese nojenta e bandalha», de «um dos
sacerdotes da nova seita literária cognominada Futurismo», outros viam uma «bela e
audaciosa tentativa por um teatro mais emotivo e mais realista», a «máxima expressão
da moderna teatralogia lusitana» (in FERRO, A., 1924: 80).
Na verdade, António Ferro pugnava então por dar voz e espaço ao que de
moderno nos chegava da Europa. Em janeiro de 1922, ocupando o lugar de diretor
da «Ilustração Portuguesa», anuncia um projeto seu e do modernista José Pacheco
relativo à construção de um «Teatro de Arte» no Parque Eduardo VII, destinado
especificamente a acolher as novidades artísticas que só uma elite podia apreciar.

O teatro arte é inteiramente desconhecido em Portugal. Os nossos empresários não pensam


um momento em lutar com as plateias, deixam-se vencer por elas, com uma submissão
revoltante. E é assim que em Portugal não existem os dramaturgos – Poetas: um d’Annunzio,
um Maeterlinck, um Maurice Magre… Iniciativas como a do Teatro dos Campos Elísios,
como o Teatro de Vieux Colombier, e tantos outros não se conhecem entre nós. Figuras
como as de Antoine, Gemier, Lugné Poe, se existem, não encontram o ambiente propício
para se afirmarem (ILUSTRAÇÃO, 1922: 54-55).

Considerava então que as salas de que Lisboa dispunha eram demasiado


convencionais e, ainda num número por si dirigido, volta a chamar este assunto à
colação, noticiando a adaptação de um salão da própria revista em sala de teatro,
«no género das «boites» parisienses», para «se poderem exibir as pequenas peças
num ato, para se poderem dizer conferências, para se poderem traçar os arabescos
dos bailados» (id.: 342-3). Nada disto veio a concretizar-se e o único espaço que se
inaugurou nesse ano, o teatro Maria Vitória, estava nos antípodas deste projeto, já
que comportava cerca de 1000 espectadores e dedicava-se, como se sabe, ao teatro de
revista.
Vejamos, ainda que em traços largos, quais as peças portuguesas que entremeiam
com as traduções levadas a cena nos principais teatros da capital, nos seis meses que
antecedem a representação de Mar Alto, em Lisboa. Recordemos que, para além
do Teatro Nacional então denominado Almeida Garrett, está em funcionamento o
Politeama, onde se encontra a companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, o Éden, o
São Luiz, o Avenida e o Apolo, além do Teatro de São Carlos que, a título excecional,
deu temporariamente guarida a companhias de teatro declamado, como foi o caso da
companhia de Lucília Simões-Erico Braga. Antes de Mar Alto, passaram por este palco
A ceia dos cardeais, um texto que Júlio Dantas escrevera no início do século, A casaca
encarnada, de Victoriano Braga, que Ferro considerara «uma das peças portuguesas
686 100 Orpheu Ana Isabel Vasconcelos

que melhor têm sabido dar o momento, o nosso momento, este momento decadente
e vistoso que é o casulo donde vai desabrochar uma nova moral, uns novos estatutos
sociais» (ILUSTRAÇÃO, 1922: 295), e O ramo das violetas, pequena peça de Leitão de
Barros que trata da «questão do assédio sexual por parte de homens sem escrúpulos
relativamente a mulheres de condição social inferior que eles seduzem, engravidam e
depois abandonam à sua sorte» (CAMPOS, A., 2007: 125).
A crise por que estava então a passar o Teatro Nacional teve como consequência
a extinção da sociedade artística, tendo sido este um período paupérrimo em todos
os sentidos. No que respeita à dramaturgia portuguesa, assinala-se O homem que
passa, de Leitão de Barros, a comédia A vizinha do lado, de André Brun, Viriato, de
Luna d’Oliveira, uma reposição de Frei Luís de Sousa, e a Farsa do ciúme, de Afonso
Gaio, textos que procuram não melindrar os velhos frequentadores e apostar no bom
acolhimento dos novos, já que, como observou um crítico, este teatro é de todas as
repartições públicas a única em que os funcionários não são remunerados pelo Estado,
ficando assim na completa dependência dos gostos do público (COSTA, M., 1923: s/p).
O teatro Avenida, por onde passaram, entre janeiro e julho, três companhias
(Luiza Satanela-Estevão Amarante, Aura Abranches e Palmira Bastos), pautou-se pela
representação de comédias que não deixaram história nem saudade. A Companhia
de Opereta Armando Vasconcelos ocupou, neste período, o São Luiz, pelo que aquele
género teve exclusividade naquele espaço, tendo-se o Éden também dedicado ao
teatro cantado ligeiro, à ópera cómica e à opereta.
A companhia Maria Matos-Mendonça de Carvalho, a companhia José Ricardo e a
companhia Palmira Bastos partilham a sala do Apolo durante esta época, apresentando
adaptações de dois romances de Júlio Dinis, A lei dos morgados de Costa Cascais, 30
H.P. de Leitão de Barros, Má sina de Bento Mântua, A morgadinha de Vale-Flor de
Pinheiro Chagas, na sua maioria peças já com muitos anos que evidenciavam marcas
de outro tempo. Mesmo a peça Bodas de Oiro, de Vasco de Mendonça Alves, não
escapou à feroz crítica de Mário Costa, devido ao tom melodramático da intriga e ao
tão supostamente desejado, mas estafado, final feliz.
Ocupado desde 1922 pela companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, o Politeama é o
teatro que mais diversifica as suas peças, sendo vários os textos de autores portugueses
que se representam neste período. Iniciou-se o ano com Rosas de Todo o Ano, de Júlio
Dantas, voltando o autor a este palco, pouco depois, com a sua Castro. Entretanto
foi representada A ribeirinha, da dupla João Correia de Oliveira e Francisco Lage,
e As pragas, também deste último autor. O Herdeiro, de um dos dramaturgos mais
reconhecido na época, Carlos Selvagem, subiu a cena em abril, com uma temática
considerada demasiado realista. Seguiram-se outros textos, Que pena ser só ladrão,
de João do Rio, Uma história de boneca, de Ester Leão, e A luva de Ricardina, este
Mar Alto, de António Ferro, no contexto teatral da Lisboa dos anos 20 687

publicado na revista «De Teatro», com uma ação que não foge à temática dos casos
amorosos, das rivalidades, dos casamentos de conveniência, e das infidelidades
conjugais. (CAMPOS, A., 2007: 123). De amores contrariados trata também a peça
A filha de Lázaro, escrita em coautoria por Eduardo Chianca de Garcia e Norberto
Lopes (id.: 128).
Pela variedade do repertório, qualidade do desempenho e novidade de algumas das
encenações, os espetáculos apresentados por esta companhia tinham normalmente
uma boa receção por parte do público e até da crítica. Provavelmente por esta razão,
não terá Amélia Rey Colaço e seu marido tido grandes hesitações em aceder à proposta
de Cortez para a estreia de O Lodo6, tanto mais que Zilda, dois anos antes, tinha sido
um sucesso, se bem que caldeado por algum escândalo.
Como acima recordámos, as coisas não foram nada pacíficas e o Politeama assistiu,
na noite de 2 de julho de 1923, a uma autêntica batalha campal. Cortez, tal como Ferro
e muitos dos intelectuais da época, não se deixavam intimidar pela crítica e amiúde
afrontavam os seus opositores com tomadas de posição públicas. Dias antes da estreia
deste espetáculo saiu um Manifesto assinado por quatro dramaturgos, entre os quais o
próprio Alfredo Cortez. Num extenso texto intitulado «Pelo Teatro Português, contra
os que sistematicamente o dificultam», a crítica e os periódicos que a sustentam
são afrontados e acusados de responsáveis pelo atraso em que se encontra o teatro,
pretendendo manter nos palcos «o que de mais barato e mais reles nos é exportado
do ‘boulevard’, […] e jugular à nascença esse movimento de libertação generosamente
nacionalista».

Quando nas peças abundam, num realismo cru, os motivos amorais da hora que passa, os
incestos, as torpezas, as imundices morais de que vai transbordando a vida contemporânea,
a crítica alçapremando-se em mentora da moralidade, em fiscal dos bons costumes, logo
decreta, com um enjoo pudibundo, que as peças são dissolventes, são pútridas – uma
infâmia! (BRAGA, V. et al., [1923]: s/p)

Da breve passagem que fizemos pelo repertório português coevo do Mar Alto,
confirmamos que as companhias pouco arriscavam em dramaturgias mais modernas e
a comprová-lo, não nos cansamos de apontar, está o facto de o teatro de Raul Brandão,
sobretudo O gebo e a sombra publicado em 1923 e configurando então o que se pretendia
em teoria de uma peça moderna, não ter merecido qualquer atenção.

6 Numa obra recente de Pavão dos Santos (2015: 17-19), na qual este profundo conhecedor do teatro português
transcreve longas conversas que teve com Amélia Rey Colaço, são-nos relatadas pela própria algumas
peripécias dessa noite bem como a forma como tinha preparado a personagem.
688 100 Orpheu Ana Isabel Vasconcelos

Mas, reconheçamos, Ferro não desistira de conseguir um espaço, que consistisse


numa alternativa aberta a um teatro diferente. Assim, um ano depois de inaugurado
o Tivoli, em plena Avenida da Liberdade, e ainda que concebido como cineteatro,
foi possível convencer o seu proprietário a ceder uma pequena sala, em que Ferro
e Pacheco pudessem retomar o projeto que, em 1922, não chegaram a concretizar.
Aí criaram o «Teatro Novo», nome que deram ao grupo, que, como se sabe, apenas
conseguiu apresentar duas peças: a recentíssima comédia Knock ou a vitória da
medicina, de Jules Romains, e Uma verdade para cada um, de Pirandello. A elite com
que Ferro contava não apreciou a iniciativa, não tendo ainda sido possível «implantar
a Europa em Portugal», como era então seu desejo.

Bibliografia Final

Bibliografia Ativa
FERRO, António (1924). Mar Alto. Lisboa: Livraria Portugália.

Bibliografia Passiva
ABRANCHES, Aura (1947). Memórias de Adelina Abranches apresentadas por
Aura Abranches. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade.
ALMEIDA, Avelino de (1923). «O Lodo, por Alfredo Cortez». In Ilustração
Portuguesa, n.º 908, pp. 57 e 62.
BARRETO, José (2015). «António Ferro, o ‘Editor Irresponsável’». In DIX, Stephen
(org.). 1915 – O Ano do Orpheu. Lisboa: Ed. tinta-da-china, pp. 215-224.
BASTOS, Glória e VASCONCELOS, Ana Isabel Teixeira de (2004). O Teatro em
Lisboa no Tempo da Primeira República. Lisboa: Museu do Teatro.
BRAGA, Victoriano, SELVAGEM, Carlos, OLIVEIRA, João Correia de,
CORTEZ Alfredo [1923]. Manifesto «Pelo Teatro Português contra os que,
sistematicamente, o dificultam». Lisboa: Ottosgrafica.
CAMPOS, Ana (2007). A Revista DE TEATRO. Uma visão parcial da dramaturgia
portuguesa dos anos 20. In Sinais de cena, n.º 7, junho, pp. 122-129.
CASTRO, Fernanda (1986). Do fim da memória (1906-1939). Lisboa: Verbo.
COSTA, Mário (1923). «Três peças originais». In Ilustração Portuguesa, n.º 899,
12 maio 1923, s/p.
FERREIRA, Armando (1923). «A directriz artística do teatro moderno». In De
teatro, n.º 15, Nov.-Dez., pp. V-VI.
FRANÇA, José-Augusto (1992). Os Anos Vinte em Portugal. Lisboa: Editorial
Presença.
Mar Alto, de António Ferro, no contexto teatral da Lisboa dos anos 20 689

GUERRA, Cidalisa Maria Ludovino (2002). Do fervor modernista ao desencanto


do regime instituído: António Ferro (1895-1956) ou o retrato de uma
personalidade em luta. Dissertação de mestrado em Estudos Portugueses
[texto policopiado]. Lisboa: Faculdade de FCSH-UNL.
ILUSTRAÇÃO Portuguesa (1922), n.º 831, 21 janeiro, pp. 54-55; n.º 841, 1 abril,
pp. 295-296; n.º 843, 15 abril, pp. 342-343.
MADUREIRA, Joaquim (Braz Burity) (1924). Impressões de Teatro: Zilda, O Lodo,
À la fé. Lisboa: Imprensa Libânio da Silva.
PESSOA, Fernando (1986). Páginas sobre Literatura e Estética. Organização,
notas e biobibliografia básica atualizada de António Quadros. Mem Martins:
Europa-América.
SANTOS, Vitor Pavão dos (2015). O Veneno do Teatro ou conversas com Amélia
Rey Colaço. Lisboa: Bertrand editora, pp. 16-25 e 178-9.
RIBEIRO, Luísa Maria da Silva (2015). A Luz que ilumina o Lodo: representações
existencialistas. Dissertação de mestrado em Literatura e Cultura Portuguesas
[texto policopiado]. Lisboa: Universidade Aberta.
TORGAL, Luís Reis (2004). O modernismo português na formação do estado
novo. António Ferro e a semana de Arte moderna em São Paulo. In SILVA,
F. Ribeiro (org.). Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos.
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, pp. 1085-1102.
Espetralidades do Sul: hantologie de Orpheu

Roberto Vecchi
Universidade de Bolonha

Palavras-chave: Orpheu 3; Hantologie; Espetro; Pessoa; Derrida.


Resumo: A espetralidade de Orpheu é uma dimensão menos evidente da revista. Conjugou-se
ao longo do século XX como uma sombra intermitente condicionando momentos estéticos e
críticos de diferente natureza, às vezes até em contradição recíproca. Talvez se possa pensar
numa teoria do espetro sustentada pela própria dinâmica do Orpheu, onde a natureza
anfibológica do espetro -ao mesmo tempo presente e ausente, vivo e morto- atua a partir de
uma resistência ou uma força que marcam sinais e sobrevivências, apesar de um fim nunca
assumido e sempre adiado. Orpheu inscreve-se assim plenamente naquela “hantologie”
pensada por Derrida a partir do célebre começo do Manifesto do Partido comunista de Marx.
A espetralidade do Orpheu 3 representa o retorno fracassado do mito moderno de Orpheu,
anúncio recorrente e impossível de uma reaparição fantasmática que se realiza só na dimensão
crítica e conceptual do póstumo.

«Você tem mil razões: o ORPHEU não acabou. De qualquer


maneira, em qualquer ‘tempo’ há-de continuar» (Sá Carneiro,
25 de Setembro 1915)

«Orpheu acabou. Orpheu continua», SUDESTE n.3 de 1935

Antes de tudo é, uma vez mais, uma questão de nomes. O espetro – aliás, os
espetros- já estão presentes e em multidão no nome. E são só os primeiros de uma
série quase interminável. Interminada, inclusive na nossa mesa de hoje, onde os
espetros de ORPHEU continuam a praticar o que, como Derrida aponta no livro
com que muito dialogam estas considerações, Spectres de Marx (1993), é chamada
de hantise, a frequência -ou a obsessão- espetral de um lugar: ORPHEU é parte assim
-e plenamente- de uma hantologie, termo que se pode entender, na apropriação de
Derrida, como uma ontologia do fantasma (que para o filósofo francês, mas isto não
nos interessa, é próxima, se não coincidente, da gramatologia).
Poder-se-ia observar que há sempre algum espetro, quando a citação está em jogo. A
arte de citar é espetral porque na citação há um cadáver – ou os seus despojos – insepulto
692 100 Orpheu Roberto Vecchi

que continua a alimentar uma elaboração da perda, um trabalho enlutado que se instaura
na contemplação do que foi mas também é, o fantasma de uma obra que se perdeu mas
ao mesmo tempo mantém um elo, uma relação, em termos de força “exemplar” (se a
citação for correta) com o presente:a citação é, se quisermos lembrando Mensagem,
um cadáver adiado que procria.
Mas quais os espetros do nome próprio ORPHEU? A introdução de Luís de
Montalvor do volume I é um cúmulo de dobras. No entanto, o que se afirma com a sua
força simbólica é o nome ORPHEU (sempre em maiúsculo) sobre o qual se estrutura
o esboço da nova proposta.
A evocação é de uma fantasmática plural: o nome ativa a memória mitológica de
Orfeu, mas também, na conjuntura daquele tempo, outro espírito provocado -neste
caso não só pela referência ao nome, mas também pelas descodificações que ocorrem
no texto de Montalvor (com a recorrência evidente ao termo exílio, de ORPHEU como
«exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento»,
ORPHEU, 1994, p.5)- ao espetro de uma outra modernidade, externa. Trata-se do
orfismo não tanto (ou não só) como mistério eleusino do santuário de Demetra, mas,
na pintura, como efeito do gesto pós cubista e abstratista de Apollinaire (1912) - que
agrega Duchamps, Deluanay, Picabia, Léger, os futuristas italianos – e se concentra
sobre o lado irracional, mágico, místico, do espírito, matriz de multíplices fantasmas.
No entanto, pela força do nome, é impossível não captar na opção por ORPHEU
a raiz espetral do mito clássico. Na recente entrevista de Eduardo Lourenço ao JL
sobre o centenário da revista (n.1159 de março 2015, pp. 8-9) o Professor retoma a
mitologia cultural daquele grupo evidenciando a rutura programática que se associa
à repetição do mito órfico: a consciência de que, quando Orfeu olha para trás o olhar,
é mortal. Porque é verdade que o mito de Orfeu se associa ao horizonte da morte: a
descida ao reino de Hades, o apoio de Perséfone, a libertação de Eurídice do mundo
dos mortos, sob a condição que não a poderia olhar, a infração de Orfeu que faz
com que Hades recapture novamente Eurídice, vinculando-a definitivamente à sua
condição espetral, o desmembramento do corpo de Orfeu pelas Mênades, a sua cabeça
cortada e flutuante: tudo no mito continua a evocar -a citar e re-citar- o nome próprio
do fantasma. Os espetros redundam sempre se associados ao nome de Orpheu, seja
qual for a matriz de onde é derivado -cultural ou mitológica-; um nome que sempre
se abre para o horizonte intermediário entre a vida e a morte: o reino do inacabado e
da sobre-vivência.
Poder-se-ia observar, neste elemento, o elo que conjuga de imediato o ORPHEU
à história cultural de um País, uma história que também, por sua vez, amplamente
povoada, ao longo da sua trajetória secular e traumática, de fantasmas que atravessam
a trama da sua vivência, alimentando pesadelos que não se extinguem. Temos no
Espetralidades do Sul: hantologie de Orpheu 693

pensamento crítico português (que pode remontar a Garrett - Frei Luis de Sousa-
e que tem como principal pensador atuante Eduardo Lourenço) una genealogia
fantasmática vastíssima por contemplar.
É por isso que ORPHEU, cuja inscrição é precária em todas as dinâmicas modernas,
nacionais e internacionais - como o próprio Pessoa sustentava: impropriamente
futurista, parcialmente sensacionista ou intersecionista, erroneamente modernista,
residuariamente simbolista, onde qualquer designação coletiva é inadequada a não ser
aquela, por sua vez fantasmática, de «vencidos» (MARTINS, F., 2008: 568) - encontra,
na sua inconsistência que constitui a natureza espetral, um apego na trama íntima da
ontologia portuguesa. Uma ontologia que, inclusive na sua modernização que surge
no reflexo deformado que devolve o espelho -ou a balança- da Europa, se redefine com
um ajuste de contas de espetros (a desmontagem do dispositivo do sebastianismo, a
assunção da sua condição póstuma, a espetral deriva anti europeia e, pelo contrário, a
afirmação dos fantasmas imperiais como resíduo de um luto muito pouco trabalhado
no plano coletivo, que permeia o caráter trágico da história novecentista etc.) e se
confirma como uma hantologie derridiana, isto é, uma ontologia de fantasmas.
Neste sentido, o ORPHEU não é uma exceção, um corpo estranho ou excêntrico,
de uma sombria (ou, melhor, assombrada) história de Portugal que se interseta
incindivelmente com a sua história cultural. Se quisermos, a partir desta leitura
alternativa, ORPHEU põe em jogo efetiva e visivelmente o que é um espetro e como
é que ele funciona. No sentido que, se já desde o nome surge o problema, a própria
história, aparentemente efémera mas na verdade muito extensa e ainda inacabada
de ORPHEU, mostra não só como os fantasmas são numerosos, mas também -e
sobretudo- como as funções dos espetros são multíplices.
Sempre na esteira dos Espetros de Marx, por questões sintéticas e de modo
esquemático, podemos dizer que o espetro, não o «corpo» mas a «coisa» (na leitura
do Hamlet de Shakespeare realizada por Derrida) remete antes de tudo para o luto,
para a ontologização dos restos que, para se tornarem presentes e «esconjurar» as
confusões, impõe sempre o trabalho de identificação dos despojos e da localização
dos mortos (DERRIDA, J., 1994: 17). Os outros elementos de de-composição do
«espírito» são a voz ou a língua, ou seja, o que tem o lugar do nome, marcando-o e,
enfim, a transformação que deriva do trabalho do fantasma e que o põe e decompõe,
mostrando a sua «potência» transformadora, e que se conecta, poder-se-ia dizer
através de Blanchot, com um outro conceito chave associado à espetralidade, o
conceito de «herança» (id.: 25), de transmissão de uma memória, de uma finitude, em
toda sua heterogeneidade.
Através de um arsenal crítico moldado a partir destes elementos, o filósofo
francês vasculha na multidão de espetros de Marx evidenciando o valor do
694 100 Orpheu Roberto Vecchi

convívio -portanto a possibilidade de uma «hospitalidade» como outra esfera de


interesse não só hermenéutico mas também político- com o espetro que mostra a
capacidade de relação com o outro, visto que espetros sempre estão presentes e nunca
abandonam por completo a cena.
Mas quantos e quais são os espetros de ORPHEU, se usarmos esta tecnologia
espetrogénica para abordá-los, mas colocando a Revista no lugar do filósofo
alemão? Certamente muitos e provavelmente não todos localizáveis ou plenamente
apreensíveis aqui.
No entanto -e além do nome- há um espetro que se forma nos dois números
triunfais da revista, embora o número 3 seja o suplemento (no sentido da falta que o
torna, embora de maneira virtual, possível) investido ao longo do tempo naquela que
se poderia definir como uma efetiva «espetropoiética». Porque, como se assinalou
cabalmente (MARTINS, F., 2014: 100) a dimensão do projeto de ORPHEU dilata a
sombra do número 1 (mais simbolista) no 2 mais radical (uma latência que age no
entanto na própria construção do número) assim como os dois números publicados
em 1915 são «implicados» pelo número 3 -de hipotético «compromisso» (MARTINS,
F., 2008: 568)- que não passa de um projeto interrompido. Isto cria um jogo que
poderia ser definido auto-citacional, que contribui a repetir não tanto o idêntico mas
uma alternância -uma trama- de ausência-presença que produz o efeito fantasmático,
de resíduo que não se dissolve.
Também este aspeto poder-se-ia inscrever na tensão entre ilatência e latência, entre
fragmento (de cada volume) e projeto (como um todo de série infindável mas ao
mesmo tempo delimitada de -ismos) e integrar-se na ideia de série que o ORPHEU
pela sua história foi articulando. A série como espetralidade suplementar (na verdade
fictícia, porque limitada, pelo menos publicamente, só aos dois exemplares editados).
Deste ponto de vista, ampliando o grupo de fantasmas que rodeiam ORPHEU,
é o projeto (abortado) do n. 3 que proporciona outros elementos analíticos para
uma espetrografia órfica mais articulada. A imaterialização do projeto contribui a
criar ainda hoje, em 2015, a aura fantasmática do número já a partir de agosto de
1915 quando começa a tomar uma forma provisória, desde logo marcada por uma
suspensão, uma incompletude. O corte financeiro do mecenato paterno de Sá Carneiro,
como sabemos, faz com que a concretização do projeto aborte em Setembro. Mas isto
não anula Orpheu 3 («Orpheu não acabou») que começa a circular como num plano
de possibilidades ainda por meses e por anos.
No entanto, o elemento que acentua a espetralização do ORPHEU não é só o
corpo abandonado (textual, imagético, ideal) do projeto -os índices esboçados
na correspondência entre os dois diretores, as propostas de ampliação do comité
redatorial que inclua também José Pacheco e Almada etc- mas e sobretudo o corpo de
Espetralidades do Sul: hantologie de Orpheu 695

Sá Carneiro que vai se sobrepor, vai incorporar-se no ORPHEU. O suicídio de 26 de


abril de 1916 modifica o trabalho do luto que já de certo modo se inscrevia naquela
que já se constituíra como a mitologia de ORPHEU. A morte de Sá Carneiro modifica
o luto de ORPHEU, torna a revista e o projeto de mais um número a possibilidade de
construção de um epitáfio mortuário, a inscrição que não coincide com o local do
túmulo mas simboliza o cadáver e possibilita o avançamento da elaboração da perda.
Sem ORPHEU como seria possível ontologizar plenamente os despojos do seu
principal promotor? ORPHEU proporciona um lugar onde o corpo simbólico de
Sá Carneiro poderia instalar-se e funcionar como o simulacro de um túmulo que
possibilitaria o enterro -um enterro possível- de um cadáver que pelo contrário
continua a vaguear e a lançar o seu olhar silencioso sobre os componentes, os
sobreviventes, de ORPHEU.
A incorporção imediata em ORPHEU da morte de Sá Carneiro -como se depreende
pela carta a Côrtes-Rodrigues que torna a revista o local da elaboração do luto- não
só modifica a semântica do nome, ampliando a sua potência e reativando o horizonte
da morte que desde os inícios de certo modo se configurara. Pode-se dizer que
com o Orpheu 3, depois deste evento que é um divisor de águas inclusive para uma
personalidade como Pessoa, ORPHEU assume um caráter póstumo.
Um objeto desta plasticidade encobre e nem sempre deixa entrever e valorizar as
descontinuidades e as reorientações, parecendo pela sua força algo de homogéneo e
pleno. Não é assim -e é um pouco a linha que aqui se secunda- tanto que o ORPHEU
se constitui de variados Orpheus, em coerência com a pluralidade dos seus fantasmas.
É este o limiar entre o acabado e o inacabado, o momento em que a vida do projeto
começa, para usar uma expressão de Adorno, a nutrir-se de morte. Morte não só
figural, de abandono ou desistência, mas morte também que tem a espessura não
elaborável da perda.
A constelação do póstumo, neste sentido, contribui a situar o ORPHEU nesta fase
-latente mas significativa- numa outra, nova perspetiva. É oportuno lembrar que, ao
significado do termo póstumo -literalmente o filho nascido depois da morte do pai, o
«último depois do fim»- contribui uma etimologia de Isidoro da Sevilha que conecta o
póstumo ao post humatus e remete diretamente para a nossa reflexão: o póstumo seria
o que está depois do enterro ou, como sugere Giulio Ferroni, o que se encontra depois,
o que sobrevive (FERRONI, G., 1996: 15). Neste sentido, o conjunto lexical que se
cria remete sempre e em contemporâneo para o «fim» e o «depois» que apontam para
um «a mais», um «além», uma «dimensão extrema em que ao mesmo tempo algo
sobrevive, em que, no signo do fim, se dá como uma continuação, uma herança. Este
além sempre implica uma fratura, uma quebra, uma não coincidência: em relação ao
que termina (uma vida, uma obra) sem concluir-se totalmente» (id.: 16).
696 100 Orpheu Roberto Vecchi

O ORPHEU póstumo (o pós ORPHEU?) surge assim, depois da morte de Sá


Carneiro, como uma ideia inexoravelmente conectada com a morte e o inacabado.
Mas ao mesmo tempo a uma sobrevivência («sobre-vivência», come diz Derrida em
relação ao espetro) que, no suplemento, encontra uma resignificação como outro
projeto.
Em suma, a perda trágica do seu elemento mais vital não coincide com a morte
de ORPHEU mas com a acentuação da natureza espetral do projeto, presente em
embrião, isto é, em potência, desde os primórdios, mas desde esta viragem diretamente
responsável pela nova ontologia -uma hantologie, justamente, do fantasma- que a
história retorcida do terceiro volume nitidamente projeta.
Os espetros -a reemersão de um luto imenso e inacabado- de ORPHEU talvez
possam proporcionar uma leitura alternativa ao curioso e inesgotável processo de
anúncios e contra anúncios de saída e de retomada da revista que se instaura com o
projeto do terceiro volume. Pode-se dizer que se trata de uma permanência que confere
à biografia impossível de Pessoa uma linha -ainda que ténue- de desenvolvimento
coerente e não excêntrica, numa existência que mais multidirecional não poderia ser.
Já o anúncio em setembro da saída com um índice idealizado e os quatro “hors-texte”
de Amadeo (e que já Pessoa imaginará publicado no prefácio inglês à Antologia de
poetas sensacionsitas cfr as XLIX), em 1917 com «Portugal futurista» que pode ser
visto como um espetro do grupo de espetros de ORPHEU (e a conexão direta via
Ultimatum de Álvaro de Campos com Orpheu 3); a reaparição em «Contemporânea»
-por sua vez uma evocação de Orpheu- quando Pessoa, em carta a Côrtes-Rodrigues
compara as duas revistas em 1923; as referências e as alusões não se apagam quando
já em 1935 no famoso n.3 de outra revista «Sudoeste», com a homenagem aos 20 anos
de ORPHEU, em «Nós, os de ORPHEU», Pessoa termina com a célebre e plenamente
espetral frase «ORPHEU acabou. ORPHEU continua» e onde é anunciada, mais uma
vez, a saída em breve de Orpheu 3. E poder-se-ia acrescentar como, depois da morte de
Pessoa, há uma outra trama póstuma que se associa ao resgate das provas de Orpheu
3 de 17 e se conclui com a edição de 1984.
Nesta parataxe que evoca ORPHEU, onde a citação o mantém vivo apesar do
tempo que passa, mas não o realiza, há vários fatores por considerar. Perante o
ORPHEU como resto de cadáveres ainda desenterrados, o aspeto evidente é o lado
espetral que o próprio nome injunge: por um lado, um luto que não se completa, por
outro algo de mais complexo e subtil que se associa a uma repetição que funciona, no
entanto, positivamente dir-se-ia, como uma ritualização que se efetua numa direção
mitologizadora e de consagração do ORPHEU. Uma espécie de uso ativo do luto
que mostra consciência e lucidez em lidar com espetros. Por um lado, os espetros
de ORPHEU não deixam localizar os despojos e completar o trabalho enlutado, por
Espetralidades do Sul: hantologie de Orpheu 697

outro expõem um aspeto menos evidente do retorno recorrente -ritualizador- do espetro,


ou seja, o seu elo direto com o problema das reemergências cíclicas ou pontuais do
fantasma, da transmissão da sua sombra para o presente-futuro, numa palavra o
tema da “herança” do ORPHEU. O espetro -em virtude da mitopoiese por ele próprio
implicada, pela relação do efeito espetral com o tempo- articula portanto o seu
legado, funda em suma a sua herança. Porque a aparição do espetro problematiza o
tempo e mostra a desfasagem, a inatualidade inscrita no presente (cfr. DERRIDA, J.,
1994: 54). Aliás não se trata só da conjugação de tempos diferentes, de uma blochiana
“contemporaneidade do não-contemporâneo”, que o fantasma introduz, mas de
uma força que coliga as gerações, uma força por assim dizer, com o último Derrida,
paradoxalmente “débil”. É a força derivada de uma famosa tese sobre o conceito
de história de Walter Benjamin, a segunda, de acordo com a qual «a nós, como a
cada geração que foi antes de nós, foi entregue uma débil força messiânica («eine
schwache messianische Kraft»), a que o passado tem direito. Este direito não se elude»
(BENJAMIN, W., 1997: 23).
É esta força espetral que articula a herança do ORPHEU «entre gerações»
sucessivas (cuja definição passa a ser conceitual e não simplesmente referida a uma
contemporaneidade de nascimento dos atores). Os espetros desempenham assim um
papel não secundário em afirmar a mitologia de ORPHEU e articular, pela evocação
do fantasma, a sua herança, como “herança de um tempo nosso” (nosso também de
nós, hoje, no limiar do centenário).
A sobre-vivência dos espetros -conjurados- de ORPHEU possibilita assim a quem
os convoca e evoca um exercício crítico de fundar o simulacro de uma modernidade
que na aparência só escoa na série limitada dos dois volumes publicados. No entanto,
se a perspetiva de uma espetrogenese órfica tem algum fundamento, poderíamos
dizer que o Orpheu 3 justamente pela força da sua ausência sempre convocada, do seu
oco por preencher dissimulado como presença, não desempenha uma tarefa menos
importante: criar, por esta força paradoxal fantasmática, uma tradição douradora de
um começo efémero e circunscrito, que se dilata e dissemina em virtude de uma sombra
póstuma que só oximoricamente podemos delinear: ausência presente de restos do
passado que não se localizam e alimentam uma perda inexaurível, fim-recomeço que
não acaba mas vai além resignificando, pelo resíduo ou pelo vazio, modernidades a vir.
Deste modo, Orpheu 3 contribui de modo determinante na afirmação do ORPHEU,
vindo a constituir um componente essencial dos seus espetros.
Ora, a pergunta -já no desfecho- é, Pessoa percebe a potência desta força débil
presente nos espetros de ORPHEU? A resposta a esta questão é menos interessante
do que avaliar os efeitos deste posicionamento no jogo espetral: o que emerge de fato
é que o seu culto permanente do ORPHEU, culto do inacabado, não viola mas pelo
698 100 Orpheu Roberto Vecchi

contrário fortalece, no sentido que torna mais nítida -pelo caminho do “menos”, pela
subtração- a facies hippocratica que é, neste caso, facies não da história (à Benjamin)
ou de um fato, mas facies hippocratica, máscara mortuária, do mito. Do mito espetral
da modernidade de ORPHEU, diríamos.
Uma outra pergunta que sobre-vive a esta reconstrução talvez condicionada
por um tempo assombrado - que é o nosso, mais do que o de ORPHEU- poderia
ser assim formulada: qual é a modernidade implicada por um projeto de síntese de
tantas -na vontade dos protagonistas, todas- modernidades quando ela surge pela
força de espetros que não extinguem, mas pelo contrário reproduzem lutos e perdas?
O fantasma de ORPHEU fala à nossa contemporaneidade a partir da viseira -como
o espetro do pai que fala a Hamlet na tragédia de Shakespeare e que produz o efeito
viseira em que, como diz Derrida pensando em Marx, «somos vistos por um olhar
que sempre será impossível cruzar», o efeito de que «herdamos uma lei» (DERRIDA,
J., 1994: 15).
O que será uma modernidade como aquela que ORPHEU lança, sem que nós
possamos ver o seu corpo mas pensando que, atrás da viseira, supostamente esteja o
seu olhar?
Uma resposta icónica poderia ser aquela que, por acaso, o próprio Pessoa do Orpheu
3 nos oferece. Num quadro dominado de quedas e declínios, a imagem espetral que
surge nos poemas «Gládio e além-Deus» de Pessoa não poderia ser um sinal mais
claro. Refiro-me sobretudo ao poema de desfecho, «Braço sem corpo brandindo um
gládio», de que cito um fragmento:

... Entre o que vive e a vida


Pra que lado corre o rio? (…)
Deus é um grande Intervallo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me... E o pombal elevado
Está em torno na pomba, ou de lado (SARAIVA, A., 1984: 39)

É uma amputação que substancia a imagem espetral, que se autointerroga do outro


lado da viseira («Quem é que me vê?») e mostra como o legado de ORPHEU, esta
herança do nosso tempo, será sempre inexoravelmente marcada por uma imaginação
fantasmática e heterogénea que não consegue fechar o luto, mesmo quando ela se
transforma e se transmite de uma geração para outra.
Espetralidades do Sul: hantologie de Orpheu 699

A incompletude de uma modernidade que, articulada em figuras do inacabado,


leva «o ruído de fantasmas encadeados a outros fantasmas» (DERRIDA J., 1994: 12)
e se apoia na hantise de uma presença que, como no espetro, se conjuga sempre com
o seu outro: um mosaico de partes, de amputações, que se combinam em função de
um projeto, mas que podem, pelo terreno escorregadio da espetralidade, virar-se
bruscamente do avesso, deixando de constituir-se como inteiro.
ORPHEU acaba assim por se tornar o nosso olhar paradoxalmente retrospetivo do
século que passou e revela a espessura das camadas sombrias e trágicas que enturvam
o tempo longo que nos separa de seus vagidos dispersos que ainda ouvimos, dos seus
despojos insepultos que ainda deveríamos enterrar.
Aqui, não é só o mito então que se torna legível, mas talvez o mito deixe o terreno
a algo de mais amplo e substancial como uma filosofia da história subtil, para um País
atravessado tão profundamente pela história trágica do século passado.
ORPHEU acabou, ORPHEU continua.
Os espetros de ORPHEU, os nossos espetros.

Bibliografia

Bibliografia ativa
AA.VV. (1994). ORPHEU; Edição Facsimilada. 2.ª edição. Lisboa: Contexto
Editora.
SARAIVA, Arnaldo (1984). Orpheu 3. Lisboa: Ática.

Bibliografia passiva
BENJAMIN, Walter (1997). Sul concetto di storia. G. Bonola - M. Ranchetti (orgs.).
Torino: Einaudi.
DERRIDA, Jacques (1994). Spettri di Marx; Stato del debito, lavoro del lutto e nuova
Internazionale. Milano: Raffaello Cortina.
FERRONI, Giulio (1996). Dopo la fine; sulla condizione postuma della letteratura.
Torino: Einaudi.
MARTINS, Fernando Cabral (2014). Introdução ao estudo de Fernando Pessoa.
Lisboa: Assírio & Alvim.
MARTINS, Fernando Cabral org. (2008). Dicionário de Fernando Pessoa e do
Modernismo Português. Lisboa: Caminho.
Caeiro e Espinosa: em torno do conceito de liberdade

Paula Marçalo Viegas


Doutorada em Estudos Portugueses pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa

Palavras-chave: Caeiro; Espinosa; Liberdade; Natureza; Substância.


Resumo: A liberdade da metafísica sem metafísica de Caeiro é a alegria espinosana de ver,
com o intelecto nos sentidos, que o Ser existe e que a realidade das coisas está na sua essencial
diferença. Amar a Natureza significa para Caeiro a aceitação da sua ordo et connexio do ponto
de vista da imanência. O projeto ético de beatitude, quer para o heterónimo de Pessoa, quer
para o filósofo de ascendência portuguesa, traça-se num mapa onde a ideia de uma mente livre
é a ideia de um corpo perfeito, capaz de muitas coisas; entre elas, intuir-se modo da Substância.

Não é sem razão que Joaquim Montezuma de Carvalho lê em Caeiro «toda a lição
de Espinosa» (CARVALHO, J. M., 1992: 489) recriada por Pessoa e que Pinharanda
Gomes, em O Pensamento Português, o considera «realmente um outro Espinosa»
(GOMES, J. P., 1979: 31), filósofo de quem aceitou o monismo e o pensamento de que
«Deus é Ser» (ibid.), «uma ‘pessoa impessoal’ passível de expressão na metafísica das
árvores, cuja metafísica é uma não-metafísica» (ibid).
Sabemos como no universo especulativo de Pessoa todas as filosofias são defensáveis
por serem igualmente verdadeiras. O poeta cita, até, como única verdade a repetir pelo
movimento sensacionista em relação às coisas da arte, a ideia do pensador holandês
segundo a qual «os sistemas filosóficos estão certos naquilo que afirmam e errados
naquilo que negam» (PESSOA, F., 2009: 155). No entanto, Espinosa representa o apelo
de uma metafísica diversa, pedida por «Certas horas da Natureza» (PESSOA, F., 2006:
81). Nos Textos Filosóficos, Pessoa honra-o como mestre de pensamento, o «verdadeiro
génio, que teve o que faltou a Descartes, o arrojo e a falta de respeito pelo que está
estabelecido» (id.: 205). Nos escritos sobre génio e loucura, investigação obsidiante
dos anos de juventude, a Ética é mencionada como obra que nenhuma descoberta,
ou trabalho científico, ultrapassa no poder de motivar o homem. Serve, ainda, como
exemplo de metafísica incompreendida, exposta à irrisão do homem vulgar a quem se
tentasse ler a sua definição de Substância. Essa definição, que o filósofo entende como
potência de existir, de exteriorização, é conviva do debate pessoano com os impasses
do criticismo kantiano. O lançamento do naturalismo de Caeiro não é estranho a
este debate. O Mestre entra nele como libertador, uma espécie de cavalo de Tróia
702 100 Orpheu Paula Marçalo Viegas

do Deus sive natura espinosano. Aparece na teoria da reconstrução do paganismo


como contratese à Crítica da Razão Pura, para repor a «verdade em si […] ou seja a
Realidade-em-si cosubstancia da pluralidade-em-si» (PESSOA, F., 2002: 291).
Para António Mora, sistematizador filosófico da visão intuitiva de Caeiro,
reconstruir o objetivismo pagão, determinista, que o heterónimo representa, serve
para «atacar de frente o espírito philosophico, que data, na sua forma mais doente, de
Kant, e que pretende centralizar no homem e na consciência individual a realidade
do Universo» (id.: 139). Trata-se de aceitar a coerência interna da Natureza por uma
«formula religiosa e metaphysica que coloca a realidade suprema dentro do âmbito da
realidade visível» (id.: 257). O «Mora peripherico» (id.: 119), que Álvaro de Campos
recorda como uma «sombra com veleidades especulativas» (ibid.), que «passava a
vida a mastigar Kant e a tentar ver com o pensamento se a vida tinha sentido» (ibid.),
transforma-se no «Mora central» (ibid.) através do encontro com o pensamento de
Caeiro, extraído da frase «A Natureza é partes sem um todo» (id.: 126); frase de onde
infere depois o conceito de realidade enquanto dimensão.
Mora terá a cargo fundamentar a teoria do monismo objectivista, na pressuposição
de que a «metaphysica é a tentativa de reduzir a um monismo o dualismo do datum
fundamental da experiencia» (id.: 301), isto é, o «absoluto paralelismo do sujeito e do
objecto» (ibid.). Ao defender a religião como útil à vida, porque subordina o indivíduo
à realidade exterior, à natureza identificada com Deus, e equilibra as emoções, Mora
recorre ao «phrasear de Spinoza» (id.: 253): o que existe na experiência da natureza é o
instinto de conservação, a «tendencia, como disse Spinoza, do ser para perseverar em
ser. O instinto de conservação é portanto a Verdade» (id.: 254). A utilidade, entendida
como conatus, é o critério de verdade, mas uma verdade alheia à moral e às categorias
da lógica. A verdade, para Mora, significa existência.
O neopaganismo de um Mora anti-kantiano, de que Caeiro é o advento e a
consubstanciação, parece estruturar-se de acordo com noções centrais do frasear de
Espinosa, para quem o conatus é a verdade da existência, a afirmação da liberdade no
esforço de ir ao encontro da matéria de que se é feito. Retoma o projecto espinosano
de libertação da ordem do Ser em tudo quanto existe, em que o conatus é a potência
de afirmação da Realidade-em-si na pluralidade-em-si, a diferença cosubstância da
essência.
Aquilo que Caeiro viu com o intelecto nos sentidos foi a mesma coisa tranquilizadora
que Espinosa viu: o Ser existe. Anda connosco a toda a hora como o Deus que deve ser
conhecido enquanto Natureza, partes sem um todo, ou talvez nem todo nem partes.
O guardador de pensamentos-sensações verdadeiras representa o esforço estético de
individuação de uma mente cuja origem é a ideia de um corpo, modo de Deus e
expressão, enquanto res extensa, da sua essência. A sua poesia versa longamente o
Caeiro e Espinosa: em torno do conceito de liberdade 703

modo imediato de inteligir a existência na isonomia entre sujeito e coisa. O visível


de Caeiro, concreto e singular, não é tanto o que é visto, mas antes a não subtração
do ser ao pensamento, como bem nota Judith Balso (BALSO, J., 2006: 46). A Ética de
Espinosa prepara a mesma visão imediata das essências singulares, sem mediação
dos universais, no acordo da mente com um corpo dono da «clara simplicidade/E
saúde em existir» (PESSOA, F., 2009: 28) que o poeta quer instaurar como discurso. A
existência é a única linguagem possível. Caeiro cria-se o verbo de uma singularização
vinculada ao plano da imanência.
O poeta norteia-se pelo desejo, a cupiditas espinosana, de não trabalhar nos seus
versos «como um carpinteiro» (id.: 72) porque «a única casa artística é a Terra toda/
Que varia e está sempre boa e é sempre a mesma» (ibid.). Vê a verdade na «comum
divindade» (ibid.) da Natureza e do Eu. A Natureza, divina e não divina, é a lei, o
domínio da necessidade; embora «difícil de aceitar» (id.: 130), há o destino, o «natural
inevitável» (ibid.). Quer-se um sujeito não humano, produzido pela «química directa
da natureza» (id.: 136), escrevendo não por determinação de um arbítrio livre, mas
porque o mundo lhe acontece aos sentidos. No sistema de Espinosa, necessitarista,
a Natureza, nome de Deus e da Substância, é um só indivíduo cujas partes, todos
os corpos, variam de infinitos modos sem qualquer mutação do indivíduo total,
que é a ordem e concatenação necessária de todas as coisas. A potência do homem,
explicada pela sua essência atual, é parte da potência infinita ou da essência de
Deus como natureza; o homem, como todas as coisas singulares, conserva o seu ser
através da potência de Deus sive natura. A liberdade de Caeiro, para quem a «única
afirmação é ser» (id.: 127), «ser adequado à existência das cousas» (id.: 130), o difícil
cumprimento do seu «ser próprio e não ver senão o visível» (id.: 60) está na inteleção
desta impessoalidade ou transindividualidade. Converge com Espinosa na expressão
de Deus, ou Natureza, como radical diferença.
É com os «olhos da mente» (ESPINOSA, B., 2006: 589), com uma ciência de ver
afim da ciência intuitiva espinosana, dependentes ambas da qualidade do corpo
sentiente, que o pastor de ideias adequadas sobre o real vê que não há mistério nem
transcendência porque as coisas são «realmente o que parecem ser» (PESSOA, F.,
2009: 75). O existir da Substância dá-se na luz da realidade imediata em que ordem e
conexão das ideias se identificam com ordem e conexão das coisas. A identidade de
Ser e existência, proposta da poesia de Caeiro e da filosofia de Espinosa, compreende
o dado fundamental da experiência como paralelismo de sujeito e objeto, o que na
experiência estética de Caeiro se manifesta na tentativa de «encostar as palavras à
ideia» (id.: 82) sem precisar «dum corredor/Do pensamento para as palavras»
(ibid.). O poeta despede, como Espinosa, o nexo causal entre os dois atributos da
Substância, a Extensão e o Pensamento, para o filósofo apenas diferentes expressões
704 100 Orpheu Paula Marçalo Viegas

dela, maneiras diferentes de a perceber. Uma ideia, que para Espinosa é um corpo, é
em Caeiro uma sensação, ou melhor, uma visão da singularidade das coisas, o mais
alto grau do conhecimento na Ética.
Alberto Caeiro foi o único poeta da Natureza porque quis ser a ideia estética de um
corpo finito a viver no amor da única coisa eterna e infinita, no amor das essências
singulares, por isso livre, certo de que a sua existência decorre da essência divina
enquanto natura naturans, não inibida pela força externa de ideias tristes como a de
mistério ou de sentido oculto do mundo. O Deus-Natureza deste heterónimo quer ser
conhecido como árvores e flores, como coisas, e não como causa final, transcendente.
De tal modo que imagina, num dos Poemas Inconjuntos (id.: 103), a alegria de
conseguir chegar a Deus com o Universo intacto, tendo percebido sem pensar (porta
do erro também para Espinosa), por uma intuição de sentidos limpos de doutrinas,
que o conhecimento adequado é ver as coisas nas coisas. Atingir a liberdade, isto
é, uma natureza humana mais firme no cumprimento do seu conatus, só é possível,
para Espinosa e Caeiro, no «conhecimento da união que a mente possui com toda a
Natureza» (ESPINOSA, B., 1971: 28).
A alegria desta descoberta exige, na poesia do heterónimo e na ética de Espinosa,
um profundo estudo de desaprender as «mentiras dos homens» (PESSOA, F., 2009:
60), as ideias falsas. Requer uma existência a desenrolar-se segundo ideias de um
corpo tanto mais perfeito quanto mais livre de paixões tristes, de maus encontros
com o mundo. Chegar à ideia fonte de toda a Natureza, a fim de a partir dela produzir
todas as outras ideias, significa a cura do entendimento no abandono de sistemas
de representação construídos no amor a objetos sem qualidade. Assim, a poesia de
Caeiro é uma profissão de Inestética, tão desinteressada da arte e tão desconfiada da
imaginação e da linguagem quanto a filosofia de Espinosa.
Se, no apêndice da Parte I da Ética (ESPINOSA, B., 2006: 99), a beleza surge como
qualidade desprovida de essência, conceito relativo, dependente da afecção de quem
olha para o objeto, - só mais um entre tantos preconceitos humanos decorrentes
da visão antropomórfica, finalista, da criação, - no poema XXVI do Guardador de
Rebanhos Caeiro mostra-se tão ironista quanto Espinosa, ao escrever que a «beleza é
o nome de qualquer cousa que não existe/Que eu dou às cousas em troca do agrado
que me dão» (PESSOA, F., 2009: 60). Sem dúvida, o piano da senhora agrada, mas
o «melhor é ter ouvidos/E amar a Natureza» (id.: 44). Também os «pastores de
Virgílio […]/[…] cantavam de amor literariamente», mas, «coitados, são Virgílio,/E a
Natureza é bela e antiga» (id.: 45). A beleza será, para o poeta e para o filósofo, a força
vital de viver na região ontológica dos particulares.
Fingir «que compreende» (id.: 23) é uma via perardua, traçada numa crítica
da linguagem e da imaginação igualmente empreendida pelo filósofo holandês.
Caeiro e Espinosa: em torno do conceito de liberdade 705

Meschonnic vê na crítica de Espinosa um exercício de liberdade, uma poética


constituída na «transformação de uma forma de vida por uma forma de linguagem e
transformação de uma forma de linguagem por uma forma de vida» (Meschonnic, H.,
2002: 135). Tal como Caeiro se abriga na «paz da Natureza sem gente» (PESSOA, F.,
2009: 21), na casa branca no cimo de um outeiro, a esforçar-se por ser «um intérprete
da Natureza» (id.: 66), essa «cousa odiosa» (ibid.) que o obriga a sacrificar-se, às vezes, à
«estupidez de sentidos» (ibid.) de homens a quem quer fazer sentir mais a «existência
verdadeiramente real das flores e dos rios» (ibid.), mas não percebem a sua linguagem,
por «ela não ser linguagem nenhuma» (ibid.), assim o filósofo de Amesterdão rejeitou
a vacuidade da vida trivial, enredada na teia do inessencial para procurar a «coisa
simplicíssima» (ESPINOSA, B., 1971: 64), fonte de «alegria contínua e suprema» (id.:
21). O poeta e o filósofo movem-se, nesta reforma da existência que é uma reforma
do entendimento, entre três regimes da experiência: o da imaginação, o da razão e o
da ciência intuitiva. Sem hierarquias. As dimensões diversas de uma mesma realidade
articulam-se pela transição de ângulos de visão dentro do mesmo plano, porque a
descontinuidade iminente entre dois registos, o modal e o substancial, nos acompanha
sempre. Vivemos imersos na teia de casualidades que o mundo transcendentaliza.
A missão caeiriana de devolver ao Universo o «Universo ele-próprio» (PESSOA, F.,
2009: 83) acontece, então, na desconstrução de opiniões e crenças que colonizam o falar
humano. A negação, atitude central de quem chega para «Repor no seu lugar as cousas
que os homens desarrumaram/Por não perceberem para que serviam/Endireitar […]
As cortinas nas janelas da Sensação […]/E limpar o pó das ideias simples» (id.: 102)
quer opor uma versão melhor da imaginação, construtiva porque despersonalizada,
às más ficções do modo de existência da multidão, intra-ordem comum da Natureza.
A estética da in-significância mantém visível o limiar de interrupção entre o fulgor
e a opacidade da existência. A inteligibilidade da rede de conexões em que o nosso
esforço para ser se desenrola põe-nos a um passo dessa interrupção. Caeiro mostra
que podemos ser cegueira, mas igualmente vislumbre da expressão da Substância.
Estamos muitas vezes distantes de qualquer coisa perto.
O pastor de ideias submete o registo estético da imaginação ao registo ontológico, à
compreensão do verbo ser. Tarefa árdua, dada a ambivalência da faculdade de imaginar.
Mediadora inconstante entre o pensamento e as sensações, ela é simultaneamente
porta da cognitividade e da ilusão. Embora postule que imaginar é uma afirmação
de existência, sendo pelas afecções do corpo que tomamos consciência do Eu actual
e percebemos a modalidade fenoménica do mundo, Espinosa alerta para a falácia
de tomar essas afeções pelas próprias coisas. A primeira instância do encontro com
o mundo pode ser fonte de erros e de receios, quando sujeita às contingências, mas
também virtus, quando livre no seu exercício. Caeiro vive esse dilema. Pratica a virtude
706 100 Orpheu Paula Marçalo Viegas

de silenciar a indisciplina da imaginação, alheia à imanência de Deus sive Substância


sive Natureza, numa relação de amor/ódio quanto ao mister de poeta, reveladora da
tensão entre o que sabe da Natureza, irrepresentável para os outros, que cristalizam
as sensações da substância do mundo em imagens-ideias finitas, desconexas, e o que
concede à ilusão para os seus versos poderem partir para a humanidade.
Sente-se presa de emoções tristes, passivas, que Espinosa elenca como origem da
servidão. Por vezes diz mal aquilo que sabe, «com misturas» (id.: 82); nem sempre
sabe sentir o que sabe que deve sentir, talvez porque, como diz, nasceu «sujeito como
os outros a erros e a defeitos» (id.: 130); fica «confuso» e «perturbado» (id.: 56);
tenta aligeirar o peso do «fato que os homens o fizeram usar» (id.: 82), despir-se de
aprendizagens, desencaixotar «emoções verdadeiras» (ibid.). Raciocina para libertar
dos constrangimentos que atormentam o «homem das cidades» (id.: 67), movido
a ódio e a compaixão do poema XXXII do Guardador de Rebanhos, afetos nefastos
que conduzem a uma visão distorcida da realidade, depois imposta como modelo
universal. A mente perfeita será a ideia de um corpo subtraído às arbitrariedades do
ouvir-dizer e da experiência vaga, a alma «feita com o corpo/O absoluto corpo das
cousas» (id.: 153), «deitado na realidade» (id.: 42), a viver feliz no desprendimento
próprio de uma ideia de Eternidade, que na carta XII a Meyer Espinosa define como
«fruição infinita de existir» (ESPINOSA, B., 1988: 202).
Por isso Caeiro desativa no sujeito o que é vínculo com a sua ficção social, reduto
onde não se vive e se é vivido. Luta contra a naturalização das ideologias, uma doença
das ideias. Como escreve o poeta, um Pregador de verdades é sempre um pregador
de «verdades dele» (PESSOA, F., 2009: 144); pensar que as infelicidades se curam de
fora é miopia; os combates pela justiça social, os reformismos humanitários, são de
bondade duvidosa porque nunca sabemos se são apenas «fome da sobremesa alheia»
(ibid.) ou «orgulho e inconsciência» (id.: 136) que «quer mexer-se, fazer coisas, deixar
rasto» (ibid.). Em Espinosa, a cura da miopia humana também não pode ser imposta
de fora porque a saúde de existir engloba a consciência exata dos estados de um corpo,
dos seus afetos, de que a mente é a representação. No escólio da proposição 10 da
parte V da Ética, o filósofo aponta a contradição daqueles que mais vociferam contra
os abusos da glória e as vaidades do mundo porque são esses os mais ávidos desses
bens perecíveis.
O Deus de Caeiro, que não entende nada do que criou, se é que criou alguma coisa,
representa as ficções sobre transcendência e criação. No poema VIII do Guardador de
Rebanhos, o sonho fotográfico de Cristo a descer à terra, em fuga da morte em que
o institucionalizou a mitologia cristista, num céu falso, discordante em tudo da vida,
parece moldar esteticamente o divino com que Espinosa intelectualmente coabitou,
com trágicas implicações na vida pessoal. Numa visão do que talvez possa ser Deus,
Caeiro e Espinosa: em torno do conceito de liberdade 707

tão ou mais próxima quanto a do filósofo, a Eterna Criança acompanha-o sempre,


opondo a verdade da existência simultaneamente humana e divina aos dogmas da
religião instituída e aos pensamentos dos filósofos. A identificação da vida quotidiana
de poeta com o ser divino significa que ser divino é ser quotidianamente aquilo que
essencialmente se é na companhia de tudo. Deus é a forma de viver sub specie poesiae
e Caeiro é expressão dessa congenialidade. A Ética traça a via do amor intellectualis
Dei, desde a primeira parte, pela eliminação de praejudicia que impedem a razão de
entender o concatenamento das coisas, que a prendem a ficções inibidoras da potência
de agir, sendo a mais nociva de entre elas a doutrina finalista, segundo a qual tudo
acontece por vontade de Deus, o que é imaginar, sem inteligência das verdadeiras
causas, que o universo foi superiormente organizado em função do homem.
A coincidência de Ser e Existência, proposta fundamental da poesia de Caeiro e
da filosofia de Espinosa, é problemática porque se revela numa verdade critério de
si mesma: a de que a ideia deve falar-nos imediatamente, devendo nós através dela
compreender de imediato que compreendemos sem o auxílio de palavras. Toda a
poesia de Caeiro é uma catilinária contra os nomes. Não há vantagem em «pôr nomes
errados às cousas / Nem mesmo em lhes pôr nomes alguns» (PESSOA, F., 2009: 122).
Espinosa antipatizou tanto com os nomes, seres de razão sem essência atual, como
Caeiro. Deu conta da relatividade das denominações extrínsecas às coisas, das maneiras
de falar que confundem o seu estudo com o estudo da forma de as percebermos. Criticou
o apego dos filósofos às palavras, pois julgam as coisas pelos nomes e não o inverso.
Nos escólios das proposições 47 e 49 da Ética II, conclui que a incorrecta aplicação dos
nomes às coisas impede conhecer a essência infinita de Deus e adverte o leitor para a
necessidade de distinguir as ideias das palavras que as significam.
O nominalismo de Caeiro, para quem as coisas são um axioma, todas reais porque
diferentes, está em consonância com a premissa espinosana de que as ideias claras e
distintas dependem de conceber a existência nos seus particulares. As ideias confusas,
próprias do primeiro género de conhecimento, o da ambivalente imaginação, nascem
da indiscernibilidade de universais e particulares. No § 58 do Tratado da Reforma do
Entendimento, Espinosa alerta para que quanto menos se conhece a Natureza, mais
facilmente se ficciona. Dá como exemplo as ficções de que as árvores falam ou de
que homens se transformam em pedras ou fontes. Caeiro também satiriza os poetas
místicos, «filósofos doentes» (PESSOA, F., 2009: 62), por construírem a ficção de
que «as flores sentem» (ibid.), «as pedras têm alma» (ibid.) e «os rios têm êxtases
ao luar» (ibid.), o que não passa de uma maneira de «falar de si próprio e dos seus
falsos pensamentos» (ibid.). Pede que olhemos e abandonemos «analogias, metáforas,
símiles» (id.: 145) porque comparar uma coisa com outra é esquecê-la. Ainda no
mesmo tratado, no § 88, Espinosa associa as palavras às debilidades da imaginação de
708 100 Orpheu Paula Marçalo Viegas

que são parte, ao primeiro género de conhecimento que pode causar «muitos e grandes
erros» (ESPINOSA, B., 1971: 81) se universalizarmos ou transcendentalizarmos o seu
modo de presentificação da realidade.
A argonáutica de Caeiro conclui-se, assim, com a surpreendente descoberta de
que a Natureza não existe. É «partes sem um todo», não havendo «um conjunto
real e verdadeiro» a que «isso pertença» (PESSOA, F., 2009: 84). Num dos Poemas
Inconjuntos reformula a ideia para a necessidade de, se o homem fosse um animal
«directo e não indirecto», adquirir um «sentido de ‘total’ ou de ‘conjunto’» da
«verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes» (id.: 126). Na primeira parte do
Curto Tratado (ESPINOSA, B., 1988: 71), Espinosa enuncia o pensamento de que
a parte e o todo são nomes, não são seres atuais, apenas seres de razão, pelo que,
na Natureza, nem há partes nem todo. Quer o poeta quer o filósofo menorizam o
conhecimento racional, o das noções comuns: os fundamentos da razão, as noções
que explicam o que é comum a todas as coisas, não explicam a essência de nenhuma
coisa singular.
A lição de Espinosa não se restringe à conceção monista, imanente, do Ser
como Substância única, cuja essência envolve necessariamente a existência, a tal
Realidade-em-si cosubstancia da pluralidade-em-si que, segundo António Mora,
Caeiro veio repor; abrange ainda o serenar da fluctuatio animi pessoana na laetitia
do Mestre. A filosofia não foi um consolo para Pessoa. A sua arte, feita de emoções
intelectualizadas, centrada na ideia de perfeição, mesclou desejo, tristeza e alegria,
três afetos estruturantes no projeto espinosano de beatitude. Escreveu-se no litígio
do fascínio com o terror ante um mesmo objeto de desejo, o mistério de existir. O
seu pensamento estético é iluminado e ao mesmo tempo ensombrado pela dúvida
metafísica, indeciso quanto à contingência ou essencialidade do seu idioma. Pessoa
viveu o seu ingenium na ambivalência entre o desânimo de um pensar que enche
eternamente o tonel das Danaides e a alegria caeiriana, intuitiva, da Substância; entre
a dúvida sobre se a razão se podia provar a si mesma e a certeza de Espinosa de que
«as coisas não são sombras de ideias, nem as ideias são mais reais do que as coisas»,
mas «idênticas, da mesma ordem» (PESSOA, F., 2006: 86).
O atrativo da ontologia do herético de Amesterdão parece-nos, assim, compreensível
num espaço literário marcado pela angústia fáustica, sempre a braços com a missão
cheia da gravidade de termos de «reflectir no que diremos ao Desconhecido para
cuja casa a nossa inconsciência guia os nossos passos…» (PESSOA, F., 1985: 47),
conforme Pessoa confidenciou em carta a Côrtes-Rodrigues. A paz da visão intuitiva
caeiriana preenche, Tant bien que mal, a ânsia muito espinosana de «intellectual joy»,
«joy of comprehending, of understanding» (PESSOA, F., 2006: 102), já expressa nas
notas juvenis, em inglês, para o estudo sobre a degeneração. Heterónimo-interlúdio
Caeiro e Espinosa: em torno do conceito de liberdade 709

do desassossego, finge a alegria intelectual, libertadora, de intuir que vive sob o prisma
da eternidade na dimensão do unbeyond, percebido por Campos como território do
Mestre. Fiel a sensações-radiações do Ser, o arauto da repaganização da sensibilidade
moderna repete, com o filósofo holandês, a explicação segundo a qual é perfeito o que
é real. Cura, assim, do ceticismo, da forma mais doente do espírito filosófico, que data
de Kant.
A prosa dos versos de Caeiro conta a história de um Orfeu que olha todos os
dias de frente para Eurídice porque o mistério é ela andar sempre à superfície. Só
se desvanece quando se fecham os olhos sobre o lugar onde estamos. É o modo de a
Substância falar; o modo de falar que reparar para as coisas ensina. A lucidez vem-lhe
da «ligação direta com a Terra» (PESSOA, F., 2009: 128). A Coisa-Em-Si liberta-se nas
suas «frases simples», que Bernardo Soares, ao reler, sente como «livramento», desejo
de «afirmar uma nova personalidade larga» (SOARES, B., 2005: 80), do tamanho do
que vê e não da sua altura. É a «magia da essenciação» (PESSOA, F., 2012: 106), para
Campos. Ao apear a transcendência em favor do imanentismo, como Espinosa, afasta
o problema da causa primeira, extrínseca à autonomia de uma Natureza autocausada.
Afasta igualmente o medo pessoano do Infinito. Se, pelo sentido da imanência e da
inerência, a individualidade de Caeiro se constrói enquanto expressão da perpétua
atividade do Ser, a natura naturans espinosana, assistimos então à positividade do
Infinito na noção de causa sui. O mundo finito de Caeiro, todo coisas singulares, é uma
variação de perspetiva ou de dimensão do infinito; nele se experimenta passageiro e
eterno, numa ontologia confluente com a de Espinosa.
O verso «Passo e fico, como o Universo» (PESSOA, F., 2009: 86) traz ecos daquela
qualquer coisa da mente humana, sempre ideia de um corpo que, na parte final da
Ética, sentimos e experimentamos ser eterna.

Bibliografia

Bibliografia Activa
ESPINOSA, Bento de (1971). Tratado Sobre a Reforma do Entendimento. Lisboa:
Livros Horizonte.
ESPINOSA, Bento de (1992). Ética. Lisboa: Relógio d’Água.
PESSOA, Fernando (2002). Obras de António Mora. Edição Crítica de Fernando
Pessoa, Série Maior, vol. VI., edição de Luís Filipe B. Teixeira. Lisboa: INCM.
PESSOA, Fernando (2006). Escritos Sobre Génio e Loucura. Edição Crítica de
Fernando Pessoa, Série Maior, vol. VII, Tomos I e II, edição de Jerónimo
Pizarro. Lisboa: INCM.
710 100 Orpheu Paula Marçalo Viegas

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Os modernistas e a (des)construção do ineludível

Dionísio Vila Maior


Universidade Aberta / CLEPUL

Palavras-chave: Modernismo; Carnavalização; Guerra e crise; Gesto vanguardista;


Modernidade.
Resumo: Reflexão sobre alguns pontos centrais, no estudo do discurso estético-literário e
ideológico modernista: a relação do eu individual com o eu coletivo; a dimensão carnavalesca
do manifesto; a guerra almadiana e a (pre)visão do “homem completo”; o gesto vanguardista;
o discurso literário e a representação da crise civilizacional; a “Grande Devastação” (por
aqui se pressentindo a fundamentação de importantes matrizes teóricas que enquadram,
variavelmente, a prática estética, mas essencialmente ideológica, dos mais interventivos
modernistas portugueses); a modernidade e a “tradição oculta” de princípios humanistas
essenciais.

1. Num “discurso futurista” pronunciado numa Reunião de Artistas no Banquete


de Homenagem ao Distinto Pintor João Vaz (e publicado no Diário de Lisboa, a 15 de
Dezembro de 1921 [NEGREIROS, J. A., 1988: 57-58]), o futurista Almada Negreiros,
recorrendo às virtualidades expressivas da cadência anafórica, assevera:

Eu aprendi com os conselhos de Deus a estar só e inocente.


Eu não odeio nem estimo ninguém, eu sei exactamente o que quero!
Eu não prefiro nem desprezo nada, eu sei exactamente o que faço.
Eu não tenho desejos nem remorsos, eu sou homem do meu século, eu conheço exactamente
todos os números!
Eu não sou pessimista nem optimista, entre mim e a vida não há nenhum mal-entendido,
eu sou exactamente um homem do nosso século! (id.: 58)

É nestas palavras sintomático o valor expressivo conferido por Almada a si próprio,


por intermédio de um eu que aparece simetricamente distribuído no início de cada
frase, acabando o autor por enfatizar a caracterização de si mesmo e por conferir
um encadeamento bastante expressivo a um texto cujos intuitos autorretratistas
parecem indiscutíveis. Ora, esses intuitos sustentam-se num plano existencial que
acaba por ilustrar um posicionamento do eu perante o mundo que o rodeia. Esse
714 100 Orpheu Dionísio Vila Maior

posicionamento, por um lado, traduz-se no afastamento do eu em relação àqueles


com os quais se incompatibiliza (afastamento esse que ele aprendeu a dominar com
convicção, pois sabe «exactamente» aquilo que quer); por outro lado, manifesta-se na
assunção de uma atitude em plena sintonia com o século XX. Note-se, contudo, que,
se Almada afirma «eu sou homem do meu século» [it. nosso] (garantindo, assim, o
seu afastamento, quando exclama «eu sou exactamente um homem do nosso século!»
[it. nossos]), também não deixa de veladamente criticar os que não vivem com
intensidade a sua época, como ele o faz, querendo indicar por esse prisma que todos
(já que é do «nosso século» que se trata) deveriam (ou, por uma outra perspetiva, toda
a sua geração deveria)1 identificar-se nessa atitude.
Entretanto, importa sublinhar que o eu a que Almada com alguma frequência
recorre ao longo da sua produção literária e manifestatária deve ser assumido com
um alcance não só estritamente pessoal e individual, mas também mais abrangente e
geral. É o próprio quem o diz, n’A Invenção do Dia: «Quando digo Eu não me refiro
apenas a mim, mas a todo aquele que couber dentro do jeito em que está empregado
o verbo na primeira pessoa» (NEGREIROS, J. A., 1990: 166). Já a esta problemática
se referiu Jorge de Sena, num ensaio intitulado «Almada Negreiros poeta» (SENA, J.,
1990: 20 ss), ao defender a noção de que, neste cenário, não se trata obviamente da
«identificação romântica em que a pessoa se identifica com a subjectividade do poeta»
— vendo, aliás, nesse corte com o Romantismo uma das características do Futurismo.
E, ao assumir o eu como entidade indissociável (tanto no plano estético-literário,
como no plano empírico) de um problema cuja especificidade diz respeito não só
ao sujeito individual, mas igualmente ao Homem, visível na forma como no eu se
conglutinam todos os sujeitos (o eu é «a única palavra […] comum a todas as pessoas»,
afirma-lo-á na peça Galileu, Leonardo e Eu, de 1965 [NEGREIROS, J. A., 1993b: 232]),
ao assumir isso, dizíamos, Almada pretenderá contribuir para resolver a dialética
entre o individual e o universal e, mais uma vez, entre o individual e o coletivo.

2. Na tentativa de atingir esse objetivo, torna-se sintomático, a este propósito, a


posição crítica que, em K4 O Quadrado Azul (folheto publicado em 1917), o sujeito
— que se apresenta antes do final dessa narrativa como «Eu […], o poeta José de
Almada-Negreiros» (NEGREIROS, J. A., 1989: 35) — adota em relação ao facto

1 Note-se que a conotação aqui emprestada ao termo “geração” não é certamente a mesma com que, quatro
anos antes, no início do um outro manifesto seu (o Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século
XX), Almada se referira à «geração» do Orpheu — a «geração construtiva» (NEGREIROS, J. A., 1993a: 37)
—, à qual, segundo Luciana Stegagno Picchio, o autor atribui uma «conotação eufórica» — ao contrário do
«significado negativo» que o mesmo termo “geração” veicula no Manifesto Anti-Dantas (PICCHIO, L. S.,
1989: 234).
Os modernistas e a (des)construção do ineludível 715

de pertencer à coletividade portuguesa, quando diz: «[…] Eu, que tantas vezes
me excomungara por esta injustiça de Deus me ter feito homem, e mais ainda por
esta infâmia de Deus me ter nascido português […]» (id.: 22). É evidente que não
significa isto que Almada se fecha nos limites do seu universo individual, rejeitando
a coletividade e a Pátria portuguesas. Significa, pelo contrário, que Almada pretende
que a coletividade portuguesa se corrija, mas que também o compreenda. No mesmo
ano (1917), aliás, em Lisboa, no então Teatro República, declama, a 14 de Abril, o
seu manifesto intitulado Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX
(que publicaria depois na revista Portugal Futurista) (cf. NEGREIROS, J. A., 1993a:
37-43). Note-se como, logo desde o início do texto, também aí Almada manifesta uma
presença muito forte e muito vincada do seu eu:

Eu não pertenço a nenhuma das gerações revolucionárias. Eu pertenço a uma geração


construtiva.
Eu sou um poeta português que ama a sua pátria. Eu tenho a idolatria da minha profissão e
peso-a. Eu resolvo com a minha existência o significado actual da palavra poeta com toda a
intensidade do privilégio. […]
Eu sou aquele que se espanta da própria personalidade e creio-me portanto, como português,
com o direito de exigir uma pátria que me mereça. Isto quer dizer: eu sou português e quero
portanto que Portugal seja a minha pátria.
Eu não tenho culpa nenhuma de ser português, mas sinto a força para não ter, como vós
outros, a cobardia de deixar apodrecer a pátria.

Para além de claramente expressar algumas das suas orientações político-ideológicas


(que vincam, entre outras, um posicionamento antirrepublicano), o que, para o
presente contexto, importa realçar é o modo como Almada se caracteriza. Ao fazê-lo,
recorre a enunciados arrojados, nos quais podemos ver a manifestação desabrida
de um forte egotismo, bem evidenciado quer na reiteração anafórica da partícula
«Eu», quer no «direito», que reclama como sendo seu, de «exigir uma pátria que
[…] [o] mereça». Recorde-se, aliás, que este manifesto se encontra estruturalmente
enquadrado pelo apelo que Almada lança à «pátria portuguesa do século XX» por um
levantamento das causas da decadência de Portugal (a indiferença dos portugueses; a
falta de sentimento patriótico; a literatura piegas e sentimentalista; a predileção pelas
coisas estrangeiras) e pela tentativa de agir sobre o perfil ideológico e afetivo do(s)
seu(s) destinatário(s)).
Assim se esboçam, pois, alguns dos pontos de partida que demarcam
transversalmente o discurso manifestatário de Almada (e, é certo, de outros
modernistas, como Álvaro de Campos e António Ferro): o «egotismo aristocrático»
716 100 Orpheu Dionísio Vila Maior

(PICCHIO, L. S., 1989: 234), a «rígida ortodoxia protofuturista» (ibid.), as afinidades


quer com o «pré-fascismo de Marinetti», quer com o «amoralismo nietzschiano, na
sua feição mais […] antidemocrática» (LOPES, Ó., 1987: 558), a imposição de uma
asserção, de uma verdade, bem como a carnavalização do discurso ortodoxo e das
instituições — entendendo-se por essa carnavalização a dinâmica de “excentricidade”
que uma inversão de valores necessariamente acarreta (aspetos estes que já tivemos
oportunidade de desenvolver [VILA MAIOR, D., 2011]).

3. Mas o que igualmente se torna importante destacar é a preocupação de


Almada em encarar a guerra — não só «confronto bélico e armado», mas também, e
sobretudo, «guerra das palavras e das acções», «guerra da vanguarda» (D’ALGE, C.,
1989: 136) — como solução para a renovação de Portugal (NEGREIROS, J. A., 1993a:
38-39). Trata-se de uma “guerra” equacionada como solução vital («a guerra resolve
plenamente toda a expressão da vida»), permitindo não só fortalecer «os instintos e as
vontades», mas também despertar as capacidades criativas («acorda todo o espírito de
criação e de construção»); trata-se de uma “guerra” considerada como antitradicional,
anticonvencional e antiacadémica (“assassina” «o sentimentalismo saudosista»,
capaz de “apagar” «todos os ideais românticos e outras fórmulas literárias»), com
potencialidade para “arruinar” «todas as proporções do valor académico, todas a
convenções de arte e de sociedade», geradora de virilidade e do instinto, confirmadora
da Pátria como um valor supremo. Trata-se, em primeira e última instâncias, de uma
guerra detentora de um efeito seletivo e purificador, criadora do «elogio dos Vivos»2:

[…] É a guerra que desclassifica os direitos e os códigos ensinando que a única justiça é a
Força, é a Inteligência, e a Sorte dos arrojados.
[…] É a guerra que proclama a pátria como a maior ambição do homem. É a guerra que faz
ouvir ao mundo inteiro plo aço dos canhões o nosso orgulho de Europeus.
Enfim: a guerra é a grande experiência. Contra o que toda a gente pensa a guerra é a melhor
das seleções porque os mortos são suprimidos plo destino […].
[…] Na guerra os fortes progridem e os fracos alcançam os fortes.
Portugal é um país de fracos. Portugal é um país decadente […].

Almada apontará, depois, as causas da decadência de Portugal, já entretanto acima


referidas e, logo a seguir, as soluções para transcender essa decadência, adotando
um discurso fortemente injuntivo a que uma figuração agónica não é alheia, pela via

2 Sobre a "guerra" almadiana, veja-se LIND, G. R., 1981: 206; MCNAB, G., 1984: 108-109; LOPES, Ó., 1987: 559;
D’ALGE, C., 1989: 136 ss.
Os modernistas e a (des)construção do ineludível 717

destrutiva e pela via apologética; e é por esta segunda via que Almada elogia todas
as formas que representem a vitalidade e a modernidade, como a hora presente, o
cosmopolitismo («É preciso criar e desenvolver a actividade cosmopolita») e os
“criadores” do século XX («Edison, Marinetti, Pasteur, Elchrïet, Marconi, Picasso, e o
padre português Gomes de Himalaia»). Caberá ao povo português destruir o passado
e cantar a modernidade e a pátria portuguesa do século XX: «[…] é preciso criar a
pátria portuguesa do século XX. / Digo segunda vez: é preciso criar a pátria portuguesa
do século XX. / Digo terceira vez: é preciso criar a pátria portuguesa do século XX».
Essa possibilidade, segundo Almada, será uma realidade, se o povo português adotar
uma atitude ativa perante a vida. Se o povo português correspondesse, estaria criado
o «Homem Definitivo»; o mesmo é dizer: estaria criada «a pátria portuguesa do
século XX». Porém, isto não significa que Almada não duvide do advento desse novo
“Homem”, desse “novo povo” com uma nova mentalidade. Com efeito, a frase com
que ele acaba este Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX — «O
povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e
todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades» (id.: 43) —,
ainda que denotativamente se enquadre na crítica à sociedade portuguesa de então,
também revela, no fundo, o ceticismo de Almada perante a regeneração dessa
sociedade. Mas mais do que isso, o que interessa fundamentalmente reter é o facto de
Almada terminar o texto com uma ideia que nos remete novamente para a presença
de um eu cada vez mais fortalecido. E isso é visível pela forma como ironicamente
deprecia os «Portugueses» — sendo, afinal, o eu que acaba por prevalecer em relação
à coletividade portuguesa, já que se deduz que aquelas «qualidades», que ela não tem,
possui-as ele. Seguindo linearmente este raciocínio, seria então ele, Almada, com o
seu «organismo transbordante», o «Homem Definitivo», o «homem completo» (id.: 37).

4. Quaisquer que sejam os termos em que se aborde esta questão (o antagonismo


agónico do eu futurista relativamente à coletividade), ou em que se encare esse gesto
futurista em Almada, Álvaro de Campos, ou António Ferro — presente no plano
teórico, no texto programático, ou na produção literária —, o que não se pode negar
é que esse seu gesto (e alguns dos textos de Almada são, a esse nível, nucleares)
tem mediatamente que ver com um contexto sociocultural cujos contornos gerais
configuram um estado geral de crise de valores — crise essa que desde o final do
século XIX se vai delineando insidiosamente na civilização europeia (atingindo o seu
ápice na I Guerra Mundial) e marcando profundamente os nossos modernistas.
Não se torna por isso estranho que um Pessoa — ainda que, em 2 de setembro de
1914 (em carta enviada a Armando Côrtes-Rodrigues), se sinta distante do cenário
da guerra («lá fora é guerra», escreve [PESSOA, F., 1986a: 166]) — acabe por mostrar
718 100 Orpheu Dionísio Vila Maior

posições ambivalentes relativamente a esse acontecimento bélico mundial: em 1915


e em 1919, concorda com a noção heraclitiana da guerra como «essência de toda a
vida», da guerra como «mãe de todas as cousas» (PESSOA, F., 1986c: 295, 789 e 1056);
também em 1919 justifica a necessidade da guerra para a transformação “afetiva”
de uma «nação inteira» (id.: 770), necessidade essa, aliás, reforçada por dois outros
eus: António Mora — quando defende a não neutralidade de Portugal e fundamenta
a inevitabilidade da guerra ao inimigo de uma nação («podemos perfeitamente
combater um homem ou uma nação, cuja razão em nos ser inimigo reconhecemos»
[LOPES, T. R., 1990: 460]) — e Bernardo Soares — que ampara a noção da construção
da identidade e da consciência alteronímica provocadas pela guerra («só no amor ou
no conflito tomamos verdadeira consciência de que os outros têm sobretudo alma»
[PESSOA, F., 2010a: 214]).
Ora, o testemunho de Soares assume, neste contexto, um significado especial. E
esse testemunho vale por mediatamente apontar para a noção de crise geral em que
a sociedade se confinou, [também] nos anos imediatamente anteriores à I Grande
Guerra. Tratava-se, afinal, da crise de valores de uma época que (afirma Pessoa em
12 de Setembro de 1914, no primeiro texto ficcional por si publicado, intitulado
Crónicas Decorativas) «ganhou o duro nome de científica» (PESSOA, F., 1986b:
371). Variavelmente, aliás, Pessoa (ortónimo, ou pela voz de outros eus) aprecia
negativamente os traços que caracterizam o final do século XIX e as primeiras duas
décadas do século XX: degradação social, alienação e cansaço — escreve-o quer
pela voz do poeta e ensaísta Jean Seul de Méluret (LOPES, T. R., 1990: 202), quer,
repetidamente, pela voz de António Mora (PESSOA, F., 1966: 299-300; LOPES, T.
R., 1990: 447, 410, 458); sobrevalorização do espírito prático e da técnica em todos
os domínios (o tecnológico, industrial e militar, inclusive [PESSOA, F., 1966: 278;
PESSOA, F., 1986c: 66)]); consequente escassez imaginativa (PESSOA, F., 1986c:
96), engano civilizacional e perda do respeito pelo passado (PESSOA, F., 1986b: 761,
928) — salienta, de novo, pela voz de Bernardo Soares. Também por esse motivo
se não pode desvincular o discurso teórico, manifestatário e literário dos nossos
modernistas de algumas coordenadas contextuais que os envolveram (recorde-se
que os nossos primeiro modernistas  nascem na década de 80 e 90); acrescente-se
ainda a isso a circunstância de terem participado de quadros de referências culturais,
literárias e artísticas semelhantes, pelo que facilmente se compreenderá como muitas
das suas reflexões provam mediatamente, mas decisivamente, um sentido geral de
fragmentação estético-ideológica que envolvia a sociedade.
Esse problema, aliás, não só se encontra solidamente associado ao intenso
desassossego e ao profundo sentimento de derrotismo que contornava a Europa,
mas também obriga a não ignorar a configuração de um quadro geral de crise, onde
Os modernistas e a (des)construção do ineludível 719

prevalece a subversão das relações humanas, em concordância com a desordem


interior de um sujeito que acaba por sofrer com o desenvolvimento tecnológico e
com o aumento da insensibilidade e do calculismo. Mais: é sabido que o estado de
instabilidade e indeterminação que a incerteza ou a interrupção do equilíbrio de
um sistema, ou de um processo, provoca num indivíduo se encontra diretamente
relacionado com a inexistência de uma solução para restabelecer o equilíbrio e a
continuidade quebradas, de um modo mais ou menos temporário; mais ainda: o
estado de incerteza poderá depender tanto da não resolução de um problema anterior
à manifestação do estado de crise, como da própria resolução de um determinado
problema (resolução essa que poderá causar, portanto, uma outra situação de crise)
(FREUND, J., 1976: 106). Pessoa matizará esta ideia, ainda que por outras palavras,
quando (no fragmento «Psicopatologia de assassino ocasional e de assassino nato»,
que integra as Novelas policiárias da série ‘Quaresma, decifrador’) fundamenta
a “histero-epilepsia ocasional” do soldado (PESSOA, F., 1986b: 484), quando (nas
Crónicas da vida que passa, em 15 de abril de 1915) legitima a articulação entre o
soldado e o «fundo humano da violência e combatividade» (id.: 751), ou quando (num
fragmento de uma série de textos sobre “A opinião pública”, publicados em Acção, em
1919) vai mais longe nas suas reflexões sobre a “necessidade” da guerra, alicerçando
as noções de “progresso” e de “desenvolvimento civilizacional” sobre o sentimento de
«ódio»: «[…] o ódio», afirma, «é a fonte de toda vida psíquica»; e continua:

É do ódio entre homem e homem que a civilização nasce, é da concorrência entre homem e
homem que o progresso surge, é do conflito entre nação e nação que a humanidade recebe
o seu impulso (PESSOA, F., 1986c: 789-790).

5. Entretanto, o que acima de tudo interessa realçar é a consciência como, na


Europa ocidental, o artista dos finais do século XIX e dos inícios do século XX
reage de um modo geral, apontando a sua solução para uma época confirmada à
catástrofe.
Por um lado (e a propagação do nitzschismo, do niilismo e do anarquismo
comprovou isso mesmo), insurge-se sarcástica e libertariamente — posturas
que, em última instância, resultariam no reconhecimento capital do “sentido
de complexidade” de que fala Peter Faulkner (1977: 14), ou, pior, na agnição do
efémero: «[…] the impact of the First World War which persuaded poets of the
younger generation that western culture was mortal» (SHORT, R., 1991: 293). Afinal,
que outro sentido, que não esse, se encontrará nas palavras de Bernardo Soares,
quando afirma que «Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres
homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há
720 100 Orpheu Dionísio Vila Maior

ideal que mereça o sacrifício de um comboio de lata» (PESSOA, F., 2010a: 177)? Que
outra ilação, que não essa, se poderá retirar das palavras do menino Jesus de Alberto
Caeiro, que «tem pena de ouvir falar das guerras» (PESSOA, F., 1986a: 752), ou das
palavras de Caeiro, quando este atribui à guerra o «tipo perfeito do erro da filosofia»
(id.: 797)? Que outra conclusão, que não essa, se poderá encontrar na escolha do
modernista António Ferro, que timbrará a sua solução não com a construção de uma
estória nos moldes como Caeiro o fez, antes com o registo manifestatário, justificando
a necessidade de contrapor o jazz-band aos tempos de «treva» e «sofrimento» que um
mundo «perdido, com Deus à cabeceira», vivenciou (FERRO, A., 1987: 216, 222)?
A esse tempo, «com Deus à cabeceira», respondeu o artista e o escritor modernista,
criando «the art of modernization», «the literature of technology» — replicando ao
sentido da incerteza com a incerteza do sentido traduzido pelo «linguistic chaos» em
muito do seu discurso literário (BRADBURY, M., McFARLANE, J., 1991: 27); por outro
lado ainda, partilhando o princípio geral segundo o qual a relação do sujeito-artista,
do sujeito-escritor, com a sociedade se torna tanto menos precária quanto mais esse
mesmo sujeito se inscrever ativamente no processo de transformação, estética ou
social, do contexto que o rodeia. Essa relação manifestar-se-á, por exemplo, como já
vimos, através da exploração estético-literária da correlação eu—outros, ou de uma
atitude cuja eficácia deve ser entendida em função da repercussão ao nível do grupo
social (como, por exemplo, a que se encontra presente no discurso de intervenção ou
no discurso manifestatário e programático).
Não será por isso incorreto dizer-se que é também por aí que se pode compreender
como as componentes temáticas e pragmáticas envolvidas pelo processo de atuação
atinente ao discurso modernista, mas acima de tudo futurista, passam necessariamente
por uma expressão teórico-programática, manifestatária e estético-literária
visivelmente agónica — ou, como escreve Wladimir Krysinski: «Le récit futuriste serait
une fable symbolique qui émane de discursivités collectives, une fable para-militaire.
Sa stratégie se laisse interpréter ainsi: pour mieux convaincre, il faut préparer et utiliser
le discours comme instrument de guerre» (KRYSINSKY, W., 1980: 91). Seriam Campos
e Almada quem melhor demonstrariam esse princípio: Campos, por exemplo — na
sua Ode Triunfal —, ao valorizar literariamente o seu creófilo prazer futurista com
os «Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!» e com as «guerras»,
«tratados», «invasões» (PESSOA, F., 1986a: 881, 884), ou ainda — no seu Ultimatum
de 1917 —, figurando (pela subversão, provocação e linguagem imperativa) o seu
insulto aos «mandarins da Europa» (PESSOA, F., 1986b: 1103); Almada, por seu lado,
de modo bem explícito, quando — no texto Manha e falso prestígio. Os dois males
de que sofre a vida portuguesa, que publica no Diário de Lisboa, a 3 de novembro
1933 — declara «a guerra ao empenho, à cunha, à apresentação, ao salamaleque, à
Os modernistas e a (des)construção do ineludível 721

porta travessa, à côterie, às amizades e às inimizades pessoais, e a toda essa gama de


pechotice que medra e faz medrar a marmelada nacional» (NEGREIROS, A., 1993a:
98), ou quando — n’A Cena do Ódio — deixa transparecer, praticamente contra tudo
e contra todos, um implacável posicionamento crítico (de que se não isenta um desejo
de revitalização sociocultural); e neste poema, futurista e sensacionista, bestializa o
«Homem» que “inventou” «as Ciências e as Filosofias, / as Políticas, as Artes e as
Leis» e alveja com predicados panúrgicos o «rotundo e pançudo-sanguessugo, / […]
desacreditado burguês apinocado» (NEGREIROS, J. A., 1990: 49, 56]).
Como se sabe, o discurso das primeiras vanguardas do século XX — sobressaindo
por esse lado o Dadaísmo e o Futurismo (KARL, F. R., 1988: 22, 32, 348, 352) —
não se fica apenas pela vinculação crítica a um grupo em particular, a burguesia3;
ele estende-se a toda uma sociedade, ao seu crescente individualismo: «All such
movements or tendencies by their very nature are adversary, but for several reasons
in the decade of the war they took on qualities of demolition, not only of bourgeois
society and state, but of the very relationship between people, or between people and
objects» (KARL, F. R., 1988: 345); e o discurso futurista, em particular, será aquele que
(pelo manifesto, pela poesia, pela música, pela pintura) melhor revelará a profunda
crise civilizacional europeia, que acabaria por dramaticamente encontrar expressão
na guerra de 1914-1918, na revolução russa de 1917, no fascismo e nazismo dos anos
20 e 30 e, finalmente, na II Guerra Mundial de 1939-1945. Se a essa noção não podem
ser indiferentes os valores ideológicos que se encontram subjacentes à agressiva
crítica iconoclasta do passado e à, também, agressiva ovação triunfalista de tudo o
que represente a vitalidade, a hora presente e o cosmopolitismo, não pode igualmente
ser a ela alheia a denúncia dos males de que, a um nível mais geral, enfermavam a
humanidade (a «intrujice da Civilização e da Cultura», escrevia Almada [NEGREIROS, J.
A., 1990: 61]) — assim se intuindo e representando, no campo artístico, o irracionalismo
e o absurdo dos anos que antecederam e que marcaram a I Guerra Mundial.

3 Almada critica, ainda, a figura do burguês no artigo O Diamante; Álvaro de Campos, na Ode Triunfal, na Ode
Marítima e no Ultimatum; António Ferro, em diferentes textos seus (nas Cartas do Martinho I - O Martinho;
na Teoria da Indiferença, n’O Elogio das Horas, n’A Idade do Jazz-Band, Na feira da Europa, no “Prefácio”
da peça Mar Alto, na Carta a Lucília Simões, em Colette, Colette Willy, Colette, no Prefácio da República
Espanhola… E a figura do burguês encontra-se de igual modo presente, de forma pejorativa, em Mário de
Sá-Carneiro (no que diz respeito aos hábitos sociais, alimentares e sexuais, características psicológicas e vida
familiar daquele): em algumas cartas a Fernando Pessoa, datadas de 10 de Dezembro de 1912, 18 e 27 de Julho
de 1914; nas novelas Ressurreição, Loucura e O Incesto. Por seu lado, de igual modo pelo Pessoa ortónimo
o burguês é variavelmente referido: em textos ficcionais (como n’O Banqueiro Anarquista); em artigos de
opinião (como O caso mental português); no conjunto de fragmentos textuais com o título de Erostratus; num
texto intitulado 14 de Maio; num texto em francês sobre a “actual ditadura à Mussolini” (posterior a 2 de Julho
de 1932) (FP, PIN: 370).>
722 100 Orpheu Dionísio Vila Maior

6. Também deste modo se pressente a fundamentação de importantes matrizes


teóricas que enquadram, variavelmente, a prática estético-ideológica de alguns
dos nossos modernistas. Não o fizeram, sabemo-lo bem, de forma homogénea
e concertada. Contudo, é possível neles entender a crítica à forma inábil da
participação de Portugal na I Grande Guerra, ou os aproveitamentos políticos
que dessa participação então foram feitos. Almada referir-se-á (em 1916, no seu
Manifesto da Exposição de Amadeo de Souza-Cardoso) à «incompetência com que
Portugal participa na Guerra Europeia» (NEGREIROS, J. A., 1993a: 29); Pessoa,
por seu lado, critica a «reles entrada na guerra europeia que fizemos» (bem como
a «incompetência» e a «deselegância suprema» de alguns políticos portugueses
de então, que compararam algumas personalidades que participaram na guerra
aos grandes nomes da história de Portugal [PESSOA, F., 1986c: 560 e 559,
respetivamente]), encarando, finalmente, a «intervenção na guerra» como uma
«[…] obra, essencialmente, de comércio escuro» (id.: 580).
Por outro lado, é curioso a este propósito como Pessoa acaba também por exaltar a
atitude bélica alemã, num poema sem data, atribuído a António Mora (“Na ponta de
cada baioneta luzem os olhos de Kant”) (LOPES, T. R., 1990: 275) — uma guerra que,
segundo o mesmo Pessoa, se resume ao conflito entre «dois princípios sociológicos,
entre dois critérios de civilização» (representados, de um lado, pela Alemanha, e,
de outro, pela Inglaterra, França e Rússia), não representando as outras «pequenas
nações […], nenhuma delas, um critério civilizacional distinto [PESSOA, F., 1993:
957]); trata-se uma guerra que, até, segundo o próprio Pessoa, já começara muito
antes de 1914, a partir do momento em que a filosofia romântica inglesa “preparara
o terreno” para a «receção das ideias alemãs» (id.: 288) e indubitavelmente dera
dimensão europeia às influências alemãs; trata-se de uma guerra que, afinal, sempre
existiu, escondida, no adn civilizacional. Tendo como base a guerra mundial de
14-18, e referindo-se ao discurso da profecia da Grande Guerra feita por Daniel e
São João Evangelista, bem como aos ciclos que se repetem ao longo da história da
civilização, escreve António Mora:

Aquilo a que nós chamamos a Grande Guerra é o princípio do fim antes daquela Grande
Devastação simbolicamente profetizada pelo astrólogo Daniel e pelo Vidente de Patmos
[refere-se ao apóstolo João] […].
Esta grande luta é a manifestação no século vinte da antiga guerra que data do princípio
das cousas. […]
Ela é, em resumo, a eterna luta entre as forças da Luz e as da Treva, as lutas entre os
representantes do Espírito e os da Matéria (PESSOA, F., 1986c: 414).
Os modernistas e a (des)construção do ineludível 723

7. Atendendo, também, ao que ficou escrito, cremos, então, ser possível encadear
as observações entretanto referidas com o âmbito ideológico mais vasto da crise
civilizacional e da crise do sujeito modernista, crises essas que podem também
conceituar-se como o culminar de um processo de crítica aos valores que estariam
ligados à confirmação, no início do século XX, da modernidade segundo Jean-Marie
Domenach — para quem a modernidade não constitui propriamente um período
cronológico, antes um “estado de espírito” que se configura de forma definitiva e
explícita no século XVIII (DOMENACH, J. M., 1986: 14). Tendendo para a delimitação
de um cenário de relação próxima do Homem com o progresso da Ciência e com
o capitalismo industrial — e de afastamento crítico em relação aos alicerces das
sociedades tradicionais, equacionadas como universos sociais estabelecidos em bases
holísticas (id.: 16-17) —, esses valores (como a liberdade, a igualdade, a justiça, o
racionalismo e o progresso) acabam por ser postos em questão. Criticados, ao longo do
século XIX, pelos tradicionalistas, esses valores teriam, então, entrado em contradição
quando compreendidos num processo histórico-cultural de rutura intrínseca com os
próprios contornos ideológicos com que eram emoldurados. Segundo Domenach,
podemos encontrar algumas incoerências da modernidade, que, a esse nível, os valores
que integram o seu universo apresentam (id.: 127 ss). Uma delas é a que diz respeito
à «contradiction entre la bourgeoisie et la classe ouvrière», resultado procedente da
oposição entre o proclamar da independência do indivíduo e o reclamar do valor
de igualdade. E se essas variáveis podem ser contempladas sob o ângulo das “forças
próprias” do indivíduo ou do poder do dinheiro, viabilizadas com o triunfo da
modernidade (que renega a anterior conceção de distribuição social dos indivíduos,
de acordo com o seu nascimento ou mérito), daquela contradição terá nascido o
descontentamento social. Outra contradição da modernidade, segundo Domenach,
incide sobre a relação ambígua, e de certa forma paradoxal, entre a reivindicação de
valores como a liberdade e a igualdade e a reivindicação de valores como o direito
à diferença. Esta conciliação tornar-se-ia desde logo difícil, pela confusão que dela
eventualmente decorre — o que, por isso, e em última instância, com o regresso a uma
conceção de sociedade de tipo holista (provocada talvez, segundo ainda Domenach,
pelo geral “medo do Mesmo” a que as ideias de liberdade e igualdade conduzem), terá
permitido, ao longo do século XX, o desenvolvimento dos regimes totalitários (na
conceção mais ampla deste termo e conceito).
A aproximação das conceções alicerçadas na crítica aos valores da modernidade,
na crise do sujeito modernista e na situação europeia durante os tempos da I Grande
Guerra poderia então traduzir-se, neste contexto, na reação do homem dos finais
do século XIX e inícios do século XX a um cenário de dissolução de valores —
que passariam a ser entendidos como propostas conducentes à separação entre o
724 100 Orpheu Dionísio Vila Maior

indivíduo e a sociedade (apreendida, como já vimos, com atributos identificativos


com um certo grau de decadência). «La première réaction», diz-nos Domenach, «est
libertaire: l’individu veut se dégager des contraintes»; e acrescenta:

Un nietzschéisme vulgaire envahit l’Europe de la fin du siècle, lorsque nihilistes russes,


anarchistes et terroristes de tous les pays lancent leurs bombes contre les rois et les
politiciens (l’une d’entre elles, à Sarajevo, en juin 1914, va être l’occasion du déclenchement
de la Grande Guerre) (id.: 130).

De qualquer forma, se, cem anos volvidos após o início da I Guerra Mundial,
os nossos modernistas se confessassem terem sido incapazes de, na sua totalidade,
aceitar ou criticar a guerra que o seu tempo vivenciou, restar-lhes-ia certamente
o reconhecimento de que, afinal, os opostos por vezes se tocam, de que, afinal,
individualismo e coletivismo, sentido e absurdo, acabam, por vezes, por conduzir a
resultados semelhantes. Seria certo que à consciência desses pressupostos sobreviria
a inquietação e o ceticismo; mas não menos certo seria também a consciência da
necessidade de renascimento dos princípios que constituem «a tradição oculta de todo
o nosso estado civilizacional — os princípios guias da nossa comum mãe helénica, e
de Roma, a nossa nutriz» (PESSOA, F., 1993: 302). E se alguém, por ventura, então os
tivesse questionado sobre a sua crença nesse renascer futuro, provavelmente teriam
respondido: “Sim, mas pelos princípios, pelos princípios!”

Bibliografia

Bibliografia Ativa
FERRO, António (1927) - Viagem à Volta das Ditaduras. Lisboa: Empresa Diário
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Lisboa: Verbo.
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Lisboa: Editorial Estampa, Vol. II.
Os modernistas e a (des)construção do ineludível 725

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Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Vol. III.
NEGREIROS, José de Almada (1989) - Obras Completas — Contos e Novelas.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Vol. IV.
NEGREIROS, José de Almada (1990) - Obras Completas — Poesia, 2ª ed. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Vol. I.
NEGREIROS, José de Almada (1993a) - Obras Completas — Textos de Intervenção.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Vol. VI.
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Edições Ática.
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Vol I.
PESSOA, Fernando (1986b) - Obras de Fernando Pessoa [Introduções, organização,
biobibliografia e notas de António Quadros]. Porto: Lello & Irmão Editores,
Vol II.
PESSOA, Fernando (1986c) - Obras de Fernando Pessoa [Introduções, organização,
biobibliografia e notas de António Quadros]. Porto: Lello & Irmão Editores,
Vol III.
PESSOA, Fernando (1993) - Pessoa Inédito [coordenação de Teresa Rita Lopes].
Lisboa: Livros Horizonte.
PESSOA, Fernando (1994) - Edição crítica de Fernando Pessoa - Poemas de Ricardo
Reis [Edição de Luiz Fagundes Duarte]. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, Vol. III
PESSOA, Fernando (2010a) - Edição crítica de Fernando Pessoa – Livro do
Desasocego [Edição de Jerónimo Pizarro]. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, Vol. XII, Tomo I.
PESSOA, Fernando (2010b) - Edição crítica de Fernando Pessoa – Livro do
Desasocego [Edição de Jerónimo Pizarro]. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, Vol. XII, Tomo II.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1992a) - Obras Completas de Mário de Sá-Carneiro —
Cartas a Fernando Pessoa I, 2ª ed. Lisboa: Edições Ática.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1992b) - Obras Completas de Mário de Sá-Carneiro —
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726 100 Orpheu Dionísio Vila Maior

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Convivium Lusophone: Argenteuil, pp.133-151.
Fernando Pessoa e João Cabral:
leitores de Cesário Verde1

Solange Fiuza Cardoso Yokozawa


Universidade Federal de Goiás/UFG

Palavras-chave: Fernando Pessoa; João Cabral; Cesário Verde; Poesia moderna; Tradição.
Resumo: Acompanha-se o modo como Fernando Pessoa e João Cabral leem Cesário Verde,
elegendo-o como precursor, e também aventam-se algumas possíveis razões das restrições que
o poeta brasileiro, malgrado reivindicar a mesma tradição que o autor de Mensagem, a ele faz.

Fernando Pessoa, juntamente com outros modernistas portugueses, e João Cabral


de Melo Neto tomam Cesário Verde como um precursor2. A valorização de Cesário
por parte desses dois grandes poetas representa um momento fundamental na sua
recepção crítica tanto em Portugal quanto no Brasil. Nesse sentido, no processo
de revisão dessa recepção em Portugal, Mário Higa destaca o papel do primeiro
modernismo, particularmente Fernando Pessoa, que reverencia Cesário por meio de
Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, de modo que à medida que aumenta o prestígio
de Pessoa acresce também o do poeta oitocentista (HIGA, M. 2010: 25). Carlos Felipe
Moisés, ao recuperar a recepção de Cesário pelos poetas brasileiros, destaca sua
entrada tardia no país, tendo sido Felipe d’Oliveira seu primeiro leitor, até chegar ao
reconhecimento por Cabral: «[s]erá preciso aguardar até 1961 para que um poeta do
porte de João Cabral de Melo Neto confesse sua admiração pelo português» (MOISÉS,
C. F., 2001: 201).
O que tanto Pessoa quanto Cabral admiram na poesia de Cesário é a preferência
pela representação da realidade exterior em detrimento da pura expressão dos
sentimentos do poeta, de modo a romper com a tradição romântica.
Cesário Verde reconfigura o lirismo português, pois, nos seus poemas
propriamente modernos, a subjetividade se dá a conhecer sobretudo indiretamente,
por meio da representação de uma dada realidade concreta, seja ela urbana ou rural,

1 Trabalho vinculado a estágio pós-doutoral em desenvolvimento na FLUP - Portugal, com bolsa do CNPq -
Brasil.
2 Sobre o papel precursor de Cesário em relação aos de Orpheu, confira o artigo «Na senda de Orpheu -
alicerces e consequências», de Paula Morão (2011: 91-105).
728 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa

o que levou António José Saraiva a observar que ele «[c]omo ninguém, conseguiu
dar expressão poética à realidade objetiva e quotidiana [...] Tudo isto é dado de
forma impressionisticamente exacta, sem véus de retórica, com uma aparente
impassibilidade, numa linguagem que consegue ser corrente e comum» (SARAIVA,
A. J., 1999: 136). Ao proceder dessa forma, ainda conforme Saraiva, «[de] todos os
poeta da chamada ‘escola nova’ Cesário foi o único que conseguiu cortar com a
retórica romântica, criando uma expressão inteiramente nova, ajustada à expressão
directa de um novo conteúdo» (id.: 137).
A «aparente impassibilidade» da poesia de Cesário notada por Saraiva antecede
a despersonalização que está na base da heteronímia de Fernando Pessoa, o qual,
por sua vez, homenageia o autor de «Nós» em poemas de Alberto Caeiro e Álvaro
de Campos. Ricardo Reis, numa das tentativas de prefácio à obra de Alberto Caeiro,
escreve: «Esta obra inteira é dedicada/ Por desejo do próprio autor/ À memória de/
Cesário Verde» (PESSOA, F., 1995: 116). O próprio Caeiro, em poema de O guardador
de rebanhos, aparece lendo Cesário Verde e dele constrói um retrato crítico:

Ao entardecer, debruçado pela janela,/ E sabendo de soslaio que há campos em frente,/ Leio
até me arderem os olhos/ O livro de Cesário Verde.// Que pena que tenho dele! Ele era um
camponês/ Que andava preso em liberdade pela cidade./ Mas o modo como olhava para as
casas,/ E o modo como reparava nas ruas,/ E a maneira como dava pelas cousas,/ É o de
quem olha para árvores,/ E o de quem desce os olhos pelas estrada por onde vai andando/ E
anda a reparar nas flores que há pelos campos...// Por isso ele tinha aquela grande tristeza/
Que ele nunca disse bem que tinha,/ Mas andava na cidade com quem anda no campo/ E
triste como esmagar flores em livros/ E pôr plantas em jarros... (PESSOA, F., 1990: 205)

Alberto Caeiro, o heterônimo que valoriza a realidade mais imediata, que prefere a
sensação em detrimento do pensamento, quer-se um antilivresco, mas toma Cesário
como mestre e entrega-se à leitura de sua poesia, preterindo a ela os campos que se
oferecem à vista e nela destacando a maneira visualista. Mas a poesia com acento na
visão da realidade exterior seria, para Caeiro, uma forma de integração do ser com
a natureza, o qual nela está como uma árvore, e a poesia objetiva do seu precursor
volta-se para um meio em que a correspondência não é mais possível e a cisão é
inarredável. Como nota o próprio Pessoa em fragmento crítico a ser retomado mais
adiante, Cesário não canta nem as cidades nem os campos, mas «a ‘vida humana’,
e canta ‘nos’ campos e ‘nas’ cidades, em relação à natureza livre dos campos e à/
natureza artificial/ das cidades» (PESSOA, F., 2006: 232). Ao cantar a vida humana,
Cesário não é indiferente às fraturas sociais e às contradições que assinalam o espaço
citadino e também o campo, cujo imaginário literário de locus abstrato bucólico
Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde 729

reformulou3. Daí a tristeza que Caeiro lê em seu mestre, visualista como ele, mas que,
diferentemente dele, em lugar de ver na representação das árvores, das flores e dos
montes um ideal de poesia, representou o homem na cidade e também no campo
com as tensões sociais e estéticas que isso implica4. O poeta visualista Cesário seria,
na cidade e na perspectiva de Caeiro, uma espécie artificial, uma flor de estufa, um
inadaptado («Mas andava na cidade com quem anda no campo/ E triste como esmagar
flores em livros/ E pôr plantas em jarros...») e por isso dele se apieda: «Que pena que
tenho dele! Ele era um camponês/ Que andava preso em liberdade pela cidade.»
Caeiro foi mestre de Álvaro de Campos, que também rende homenagem a Cesário
Verde em fragmentos de «Dois excertos de ode» e «Ode marítima», respectivamente
transcritos:

Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios/ E que misterioso o fundo unânime das ruas,/
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,/ Ó do «Sentimento de um Ocidental»!
(PESSOA, F., 1990: 314)

Complexidade da vida! As faturas são feitas por gente/ Que tem amores, ódios, paixões
políticas, às vezes crimes --/ E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de
tudo isso!/ Há quem olhe para uma fatura e não sinta isto./ Com certeza que tu, Cesário
Verde, sentias./ Eu é até as lágrimas que sinto humanissimamente./ Venham dizer-me que
não há poesia no comércio, nos escritórios! (id.: 334)

O Cesário evocado em «Dois excertos de ode» é o de «O sentimento dum ocidental»,


logo, o que cantou a «gente miúda» da capital portuguesa em modernização em
contraste com o seu passado épico grandioso e findo. O fragmento de «Ode marítima»,
por sua vez, faz alusão à profissão de Cesário Verde, que, comerciante, respondia pela
correspondência da casa de ferragens da família Verde, e destaca no poeta comerciante
a representação do elemento apoético. Portanto, na poesia concreta de Cesário, o
que Campos, o heterônimo que pensa com a emoção, o sensacionista que procurou

3 Escreve David Mourão-Ferreira que com Cesário Verde o «contraste cidade-campo deixou de ser um tema
literário. Só dá por ele quem o sentir. A experiência agora é individual e inesperada; dantes fazia parte do
programa, estava inscrita no roteiro da actividade literária» (MOURÃO-FERREIRA, D., [1981]: 72). Para
acompanhar a representação da cidade e do campo na poesia verdiana, confira o livro-tese de Helder Macedo
(1975) Nós: uma leitura de Cesário Verde.
4 Adolfo Casais Monteiro nota que «na poesia de Alberto Caeiro o homem foi 'abolido'» (MONTEIRO, A. C.,
1999: 60). É evidente que Fernando Pessoa, por meio do discurso poético de Caeiro, não abole o homem, pois
basta a recorrência à linguagem, à impura linguagem dos homens, para desmentir isso. Mas essa tentativa de
elidir o homem, integrando-o à natureza, como um de seus elementos constitutivos, é um dos objetivos do
projeto Caeiro; um objetivo fundamental na busca de uma síntese integrativa com o mundo natural.
730 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa

sentir wthimanianamente tudo de todas as maneiras, que apreendeu não a coisa em


si almejada por Caeiro, mas a coisa em ti, mergulhada na subjetividade daquele que a
vê, o que o futurista Álvaro de Campos valoriza em Cesário é, em detrimento do que
Caeiro nele lamenta, a representação da vida moderna com toda a gama de elementos
que até então pertenciam à esfera dos temas não poéticos.
Além desses poemas, Fernando Pessoa escreveu um estudo crítico sobre os 22
poemas verdianos que constam na edição de Silva Pinto. O estudo crítico é constituído
por dois documentos fragmentários e lacunares, um em português e outro em inglês,
sendo os fragmentos em inglês fixados por Teresa Sobral Cunha e Jeronimo Pizzaro
Jaramilo, e ambos os documentos publicados em Cânticos do realismo e outros
poemas [seguidos de] 32 cartas. Nesse estudo, Fernando Pessoa, poeta moderno
que toma a novidade como critério de valor, procura identificar a originalidade da
poesia de Cesário Verde; originalidade que, para ele, só pode ser verdadeiramente
compreendida quando se considera o meio português romântico em que essa poesia
foi gestada e contra o qual surge como uma espécie de protesto. Assim, para o crítico, a
peculiaridade flagrante da obra de Cesário, em meio à «retórica oca e do concomitante
sentimentalismo difuso [...] da longa estrofe retumbante», consiste no «verso sóbrio
e severo», no «sentimento reprimido» e na «visão nítida das cousas» (PESSOA, F.,
2006: 227). Nas palavras de Pessoa, o autor de «Nós» «is completely objective, as no
poet has been before him, except in an odd line or other; Cesario is an objective poet
always; it is his peculiarity, his style, the essence of his individuality as poet» (id.: 237).
Embora encontre antecessores ou pontos de contato para a originalidade de Cesário,
seja na tradição portuguesa ou estrangeira, em que cita o português Guilherme Braga,
o francês Baudelaire e o poeta e naturalista inglês George Crabbe, em relação a todos
destaca as peculiaridades verdianas. Ainda que Cesário abafe o sentimento, nota
Pessoa o sentimento que há em sua poesia, a concentração de emoção em poucas
palavras. Conforme o crítico, na objetividade de Cesário, o sentimento não está
ausente, mas mudado num caráter objetivo da descrição. Nesse sentido, ao comentar
um fragmento de «Nós», observa que seu autor, em lugar de cantar os objetos como
objetos, canta-os como pontos de contato do seu sentimento com o mundo exterior.
Pessoa tem em mira, em O livro de Cesário Verde, aqueles poemas que se voltam
para a apresentação de uma dada realidade concreta, propõem «a visão nítida (...)5 das
cousas» (ibid.: 227), sem, contudo, banir a subjetividade, mas reconfigurando-a. É o
caso de «Nós», «Num bairro moderno» e «O sentimento dum ocidental», citados e/ou
comentados nos fragmentos críticos. São, pois, os poemas que se filiam ao paradigma

5 lacuna do próprio texto de Pessoa, conforme registro de Teresa Sobral Cunha em Cânticos do realismo e outros
poemas [seguidos de] 32 cartas.
Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde 731

proposto pelos textos convocados os que evidenciam, sobretudo, para Pessoa, a


modernidade e a originalidade do poeta do século XIX.
A mesma poesia objetiva, a mesma repressão do sentimentalismo, a mesma ausência
de ornamentos retóricos exaltados por Pessoa na poesia verdiana são também objeto
de elogio por parte de João Cabral, que reconhece, em entrevistas concedidas em
momentos diversos de sua vida, ser Cesário Verde o seu poeta português de eleição.
Em depoimento a Fábio Freixeiro concedido poucos dias antes de sua posse na
Academia Brasileira de Letras, em 1969, e transcrito pelo entrevistador em terceira
pessoa, diz ter Cesário - para ele uma quase exceção de objetividade na linguagem
subjetiva portuguesa - exercido sobre ele uma «influência reforçativa» (FREIXEIRO,
F., 1971: 190), pois, estando sua espinha dorsal já formada quando o leu, a influência
foi no sentido de fortalecer uma tendência já estabelecida. Em entrevista concedida
a Alice Maria para o Diário de notícias, em janeiro de 1985, e compilada por Félix
de Athayde, diz ser Cesário «o maior de todos» os poetas portugueses, o que mais
o fascina (ATHAYDE, F., 1998: 125). Em 1996, três anos antes de sua morte, em
entrevista ao Cadernos de literatura brasileira do Instituto Moreira Salles, ainda
reforça: «entre os portugueses, antigos e modernos, cito Cesário Verde. É o maior
poeta lusitano, com quem mais me identifico, por causa daquela ausência de retórica,
uma visão voltada para o mundo exterior» (MELO NETO, J. C., 1996: 29). Essa
eleição de Cesário entre todos os poetas portugueses, essa admiração sustentada até o
fim de uma vida, representa, para Cabral, o estabelecimento de uma sólida referência
na tradição lusitana.
O momento máximo da reverência cabralina a Cesário Verde é o poema seriado
«O sim contra o sim», de Serial (1961). Nesse poema-série, Cabral lê poética e
criticamente, em dupla, poetas e pintores de sua predileção, de que destaco apenas o
poema destinado a Cesário:

Cesário Verde usava a tinta/ de forma singular:/ não para colorir,/ apesar da cor que
nele há.// Talvez que nem usasse tinta,/ somente água clara,/ aquela água de vidro/ que
se vê percorrer a Arcádia.// Certo, não escrevia com ela,/ ou escrevia lavando:/ relavava,
enxaguava/ seu mundo em sábado de banho.// Assim chegou aos tons opostos/ das maçãs
que contou: rubras dentro da cesta/ de quem no rosto as tem sem cor. (MELO NETO, J. C.,
2008: 275)

Esse poema e os demais da série seguem uma estratégia recorrente em Cabral


para ler poética e criticamente outros poetas e criadores de um modo geral, isto é,
evidenciando-lhes o modus operandi, o qual, ao fim e ao cabo, termina revelando
aspectos da própria poíesis cabralina.
732 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa

Ao ler o processo verdiano de construção, a voz poética crítica declara, na primeira


quadra do poema, que a linguagem usada pelo poeta era a tinta, aproximando-o,
portanto, da pintura; o que não constitui novidade na recepção crítica de Cesário, tido
por David Mourão-Ferreira como «um pintor nascido poeta» (MOURÃO-FERREIRA,
D., [1981]: 69) e havendo várias alusões e estudos verticalizados sobre a relação dele
com a arte pictórica, notadamente o impressionismo. Com isso, Cabral aproxima
Cesário de si, na medida em que a sua poesia é extremamente plástica, sendo também
amiúde lida em clave comparativa com a pintura.
Na sequência da quadra, num procedimento recorrente em Cabral, explica-se a
metáfora da tinta usada «de forma singular» por Cesário Verde: «não para colorir,/
apesar da cor que nele há». A explicação da metáfora não só estabelece um paradoxo
(uma tinta que não colore), mas o faz por meio de outra metáfora, já que o «colorir»
aqui assume o sentido figurado de disfarçar, encobrir o lado menos agradável da
realidade.
A segunda quadra retifica, num discurso modulado e por meio de outra metáfora,
a metáfora inicial («Talvez nem usasse tinta,/ somente água clara»), associando,
inclusive, a água usada pelo poeta à água da Arcádia e, por metonímia, à poesia
árcade, de base clássica, valorizadora da simplicidade.
Na terceira estrofe, a voz poética crítica procede a uma nova explicação retificadora,
desta vez em tom peremptório, esclarecendo que, como poeta, como artista que recorre
à linguagem dos homens, Cesário não poderia escrever com água, mas «escrevia
lavando», metáfora que remete à poesia das «coisas claras», ao «mundo que nenhum
véu encobre» (MELO NETO, J. C., 2008: 45), que Cabral já pressente como ideal de
poesia desde o seu O engenheiro (1945). Portanto, na leitura de Cabral, Cesário, em
lugar de colorir, encobrir o lado menos agradável da realidade, lavava-a, deixando
esse lado mais perceptível.
A quarta e última quadra, de caráter prosaicamente conclusivo, aberta pela conjunção
«assim», remete ao produto a que chegou Cesário ao se valer do procedimento descrito
nas estrofes anteriores. A estrofe intertextualiza o poema «Num bairro moderno», de
modo que o tipo de composição verdiana cujo processo Cabral se põe a descrever
são, por metonímia, aquelas estruturadas a partir do mesmo processo desse poema,
como é o caso de «Noite fechada», «Em Petiz», «Cristalizações» e «O sentimento dum
ocidental».
Em «Num bairro moderno» (VERDE, C., 2003: 116-119), o sujeito lírico segue para
o trabalho por uma rua larga modernamente pavimentada de macadame. Entretanto,
em lugar de olhar sem ver o mundo à sua volta, como é típico de quem vai para o
trabalho, ele, qual um flâneur, tem a vista ferida pela vida que pulsa no bairro por onde
passa, centralmente por uma rapariga que, dentro de uma cesta, traz um «retalho de
Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde 733

horta», um pedaço do campo para alimentar a cidade. Humilhada por um criado,


que se recusa a pagar mais pelo produto e lhe «[a]tira um cobre lívido, oxidado,/ Que
vem bater nas faces duns alperces», a vendedora recebe a solidariedade do sujeito
lírico, cuja reação ética se faz, antes e sobretudo, por meio de uma solução estética,
isto é, transfigurando artisticamente os vegetais da «gija» da vendedora «engelhada,
feia» e de «bracinhos brancos», transformando-os, à maneira de Arcimboldo, em ser
humano. Também, atendendo a um pedido da rapariga, ajuda-a a levantar a cesta,
não sem uma autoironia, extensiva a todos os de sua classe quando fazem concessões
virtuosas aos pobres: «Eu acerquei-me dela, sem desprezo» (id.: 118), «E recebi,
naquela despedida,/ As forças, a alegria, a plenitude,/ Que brotam dum excesso de
virtude/ Ou duma digestão desconhecida».
A parte do poema verdiano aludida por Cabral remonta à estrofe em que o
sujeito lírico segue «para o lado oposto» ao da vendedora, sinalizando não apenas
o deslocamento físico do sujeito poético deambulatório, mas também a irreparável
fratura entre ele e a personagem social com quem se solidariza: «E enquanto sigo para
o lado oposto,/ E ao longe rodam umas carruagens,/ A pobre afasta-se, ao calor de
agosto,/ Descolorida nas maçãs do rosto,/ E sem quadris na saia de ramagens» (idid.:
119). O poema de Cabral retoma essa estrofe, evidenciando o contraste estabelecido
entre as faces descoloridas da pobre vendedora e o intenso colorido do conteúdo da
cesta.
Interessante é que a voz crítica do poema cabralino refere-se ao verbo «contar»
em lugar de «cantar» para dizer da representação poética que Cesário faz da face da
rapariga e do conteúdo da sua cesta («Assim chegou aos tons opostos/ das maçãs que
contou»). Na substituição de «cantar», verbo associado à gênese e à história do gênero
lírico, por «contar», a voz crítica parece reconhecer em Cesário o mesmo antilirismo,
a mesma negação cabralina para com certa tradição lírica.

*
* *

João Cabral, apesar de tomar, como Fernando Pessoa, Cesário Verde como
precursor e nele valorizar o mesmo discurso poético objetivo fundador de um
paradigma novo de poesia em língua portuguesa, ao se referir a Pessoa, fá-lo por
meio de restrições declaradas ou veladas. Isso parece se situar num quadro maior da
complexa e contraditória relação entre Cabral e a literatura portuguesa; relação que,
feita de grandes admirações e amizades, mas também de preferências e preterições
nem sempre as mais convencionais, sofreu reformulações ao longo dos anos e das
contingências. Mas não cabe discutir essa relação neste trabalho, bastando aqui notar
734 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa

que, em 1969, na já citada entrevista a Fábio Freixeiro, Cabral diz ser a literatura
portuguesa a que menos leu, lembrando-se apenas de ter lido Eça de Queiroz (o
escritor preferido pelo seu pai), Antônio Nobre e Fernando Pessoa (exclusivamente
Mensagem) (FREIXEIRO, F., 1971: 184). Considerando somente a curiosidade da
declaração em relação a Fernando Pessoa, há que se notar que o próprio Cabral, em
entrevista a Arnaldo Saraiva, em 1987, diz ter permanecido um dia em Lisboa, em
1947, quando viajava de navio para ocupar o posto de vice-cônsul em Barcelona,
ocasião em que se lembra de ter comprado o Páginas de doutrina estética, com seleção,
prefácio e notas de Jorge de Sena (MELO NETO, J. C., 2014: 66). Custa a acreditar que
o leitor dessas Páginas não tivesse se interessado também pelos primeiros volumes das
obras completas de Fernando Pessoa, sob a editoria de João Gaspar Simões e Luís de
Montalvor, este falecido um ou dois dias antes de Cabral pisar em terras portuguesas.
Ou não tivesse se interessado pela Antologia6, em dois volumes, organizada por Adolfo
Casais Monteiro, cuja importância para a jovem geração dos começos dos anos 40
teria sido capital, conforme assinala Eduardo Lourenço (LOURENÇO, E., 1986: 24).
Mas se, malgrado essas curiosidades, Cabral diz, em 1969, ter lido de Pessoa apenas
o Mensagem, declara ao Jornal do Brasil, em 1987, quando seu acervo de leituras
portuguesas e pessoanas havia declaradamente se ampliado, preferir Cesário Verde,
Miguel Torga e Camilo Pessanha à Fernando Pessoa (ATHAYDE, F., 1998: 141).
Na compilação de entrevistas de Cabral selecionadas e organizadas por Félix de
Athayde, sob o verbete «Fernando Pessoa», são reunidas declarações de 1985 e 1991
que vale a pena transcrever, pois esclarecedoras para o que neste artigo se discute:

O que acontece é que ele [Fernando Pessoa] tinha essas coisas geniais (“sentir pensando e
pensar sentindo”) [...] (Entrevista à revista Vértice, Coimbra, n. 454/5, 1985)

Fernando Pessoa, por exemplo, é o poeta mais influente na literatura brasileira. Toda a gente
faz Pessoa... (Entrevista a Maria Leonor Nunes, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa,
n.448, 05/10 fev. 1991)

Penso que [Fernando Pessoa] é um poeta extraordinário. Mas acho que, geralmente, lhe
pegam pelos aspectos menos interessantes da sua obra. É seu excesso de subjetivismo que
interessa aos brasileiros. (Entrevista a Maria Leonor Nunes, JL - Jornal de Letras, Artes e
Ideias, Lisboa, n.448, 05/10 fev. 1991)

6 Trata-se, na coleção Antologia de autores portugueses e estrangeiro, dos dois volumes de Poesia: Fernando
Pessoa, publicados em 1942 pela Editora Confluência.
Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde 735

O mal que Pessoa fez à literatura é imenso. Aquela coisa “inspirada”, caudalosa, criou uma
legião de poetastros que acreditam na inspiração metafísica [...] (Entrevista a Arnaldo Jabor,
Folha de São Paulo, Folha Ilustrada, São Paulo, 05 set. 1991)
(ATHAYDE, F., 1998: 126)

Nessas declarações, destacam-se, de um lado, o reconhecimento de Cabral em


relação à grandeza da poesia de Pessoa e a sua admiração pela centralidade do
pensamento nessa poesia, e, de outro, sua restrição para com o modismo pessoano e a
valorização, no Brasil, do seu subjetivismo e da sua inspiração. Portanto, as restrições,
mais que a Pessoa, parecem ser, sobretudo, ao que é considerado pela sua recepção
crítica no Brasil. Nesse caso, ter-se-ia, sobretudo, uma negativa indireta para com
Pessoa, pois, malgrado ele ser grande, os brasileiros valoram nele o que, para o
poeta-crítico, não constitui elemento digno de valor.
Cabral sublinha e exalta a centralidade do pensamento na poesia de Pessoa e,
ao fazê-lo, reafirma a sagacidade crítica que o caracteriza como leitor de si e de
outros artistas, pois, mesmo Alberto Caeiro, que, como Cabral, estima a visão
nítida das coisas, mas, aparentemente, nos antípodas dele, nega o pensamento,
termina revelando a força do pensamento, entrevisto na racionalização da imagem,
na análise do sentimento, nas interferências abstratas que o impedem, como já foi
exaustivamente notado pela fortuna crítica pessoana, de ser um poeta perceptivo
puro. A própria negação do pensamento em Caeiro é, na verdade, uma denegação,
que trai a pura sensação, separa-o do mundo e o aproxima dos outros hereterônimos
bem como de Cabral.
Cabral nota, como menos interessante na poesia de Pessoa, o seu excesso de
subjetivismo e a inspiração, elementos que ele próprio procurou extirpar de sua poesia.
Não vou discutir o problema da inspiração em Pessoa, que foi um construtivista
mesmo nos versos deliberadamente espontâneos de Caeiro7, nem em Cabral, cuja
negação veemente da inspiração, tão posta em relevo pelos apologistas do poeta
engenheiro que ele de fato foi, também pode ser lida como denegação e precisa ser
problematizada, para me ater à questão da subjetividade, que talvez forneça uma das
chaves para se pensar as reticências cabralinas a Pessoa.
Tanto Cabral quanto Pessoa construíram sua obra se posicionando, pela negativa,
frente à tradição romântica que entende a poesia como expressão da personalidade

7 José Augusto Seabra, que demonstrou o construtivismo de Caeiro, nota que «há nos poemas de Caeiro, sob a
exterioridade de uma justaposição arbitrária e negligente de versos livres, uma organização rítmica cuidada»
(SEABRA, J. A., 1991: 100) e que «esta construção é justamente perfeita na medida em que se esconde, por
uma discrição calculada, a fim de melhor sugerir o efeito de espontaneidade querido pelo poeta: e é aí que
reside toda a sua 'mestria'» (id.: 101)
736 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa

do poeta, mas fugiram da personalidade por caminhos diversos, realizando, portanto,


diferentes projetos poéticos, malgrado as confluências entre eles.
No caso de Pessoa, enquanto certa poesia de base romântica encontra na memória
pessoal do artista a sua base de criação, ele cria não uma, mas várias personae
com um repertório diverso de memória pessoal, desvelando o caráter fictício da
consubstanciação romântica entre viver e cantar8. Ao forjar uma memória falsa
para poetas inexistentes, ele coloca em xeque a relevância da vivência pessoal para a
elaboração de uma obra poética. A fuga da personalidade é nele alcançada por meio
da criação de personalidades.
Essa despersonalização pessoana filia-se, de certo modo, ao fingimento poético que
está na base de poemas verdianos como «Esplêndida», o que teria levado Jorge de Sena
a notar que, apesar dos elementos autobiográficos que o compõem, o lirismo de Cesário
nada tem de confessional, como se pode comprovar pela insistência do motivo do
«pobre» desprezado pela «grande dama» em poemas cujo autor empírico é um abastado
comerciante de Lisboa, com quintas em Linda-a-Pastora (SENA, J., 2001: 179).
Para lidar com esse fingimento poético em Cesário Verde, Helder Macedo recorre
ao conceito de persona junguiano (MACEDO, H., 1975: 23), o qual consiste em ser o
que na realidade não se é, mas que o próprio e os outros julgam ser. Adverte Macedo,
entretanto, que as personae de Cesário apresentam uma diferença fundamental
em relação ao drama em gente de Fernando Pessoa: «Cesário usa as ‘personae’ ou
‘eus’ fictícios dos seus poemas como factos significativos que se integram num todo
objectivo e não como projeções subjectivas de formas alternativas de ser; como tipos
sociais específicos em situações sociais específicas, reflectem os efeitos da sociedade
no indivíduo» (id.: 135).
Cabral, por sua vez, como Pessoa, também define sua poesia negando a determinação
romântica do eu em poesia. Em significativo poema de «Psicologia da composição»
(MELO NETO, J. C., 2008: 93), de 1947, a experiência pessoal não é simplesmente
negada, que a voz lírica reconhece a sua presença, mas depurada, impessoalizada,
tornando-se realidade dissipada e ausente, como «a camisa/ vazia que despi».
Nesse processo de impessoalização ou de despersonalização, a poesia que evita falar
de si e volta-se para a realidade concreta, para o mundo das coisas, se afigura como

8 Vale citar palavras do próprio Pessoa num prefácio a uma edição projetada das suas obras: «A cada
personalidade mais demorada, que o autor destes livros conseguiu viver dentro de si, ele deu uma índole
expressiva, e fez dessa personalidade um autor, com um livro, ou livros, com as ideias, as emoções, e a arte dos
quais, ele o autor real (ou porventura aparente, porque não sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o
ter sido, no escrevê-las, o médium de figuras que ele próprio criou.
«Nem esta obra, nem as que se lhe seguirão têm nada que ver com quem as escreve. Ele nem concorda com o
que nelas vai escrito, nem discorda» (PESSOA, F., 1995: 82).
Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde 737

uma saída poética para Cabral. Daí ele encontrar em poetas como Francis Ponge e
Cesário Verde influências reforçativas, que confirmaram nele o partido das coisas, o
gosto pela representação de realidades concretas.
Se, desde os românticos, o conceito de poesia que se impõe é o que a entende
como expressão do eu do poeta, logo, a poesia que desdenha essa concepção e prefere,
em lugar da expressão deliberada da subjetividade do poeta, a representação de uma
dada realidade objetiva, faz-se antilírica. Daí a pecha que Cabral assume para si de
«antilírico», autor de «antiversos».
A poesia fundada no fingimento, na criação de personalidades em Pessoa e aquela
assentada no falar de coisas em Cabral, não tem como corolário o banimento da emoção
ou da subjetividade poética. Cabral afirma, em momentos diversos de entrevistas e
poemas, que toda escrita é uma autoescrita9, que falar de coisas é uma forma outra
de falar de si10. Também, reconfigura sua poesia, centralizando nela, ainda que sem
trair seu discurso inconfundível, temas por excelência da poesia mais subjetivista,
como a memória pessoal, em A escola das facas (1980), e a mulher amada, em Sevilha
andando (1989). Pessoa, antes dele, sustenta a exigência de uma sinceridade estética,
fundada na coerência poética e que se faz em detrimento de uma sinceridade ética, de
base romântica, calcada na vida do poeta.
Mas Pessoa, diferentemente de Cabral, que procurou rasurar as marcas discursivas
da subjetividade, escrevendo inclusive um livro como Educação pela pedra (1966), em
que não há um único poema em que apareça a primeira pessoa discursiva, constrói
uma poesia cujo discurso é marcadamente subjetivo. Além disso, Pessoa, mesmo que
seja, em certo sentido, um antirromântico, é herdeiro da subjetividade tirânica dos
românticos, para os quais, conforme Hegel, «[t]udo o que é é pelo eu, e tudo quanto
existe mediante o eu pode ser também pelo eu ser destruído» (HEGEL, G.W.F., 1996:
84). Esse sujeito fichteano que tudo põe e destrói é por excelência o sujeito irônico. Se
ele é um criador livre, pois nada o prende, também não encontra uma referência que
o sustente definitivamente. É essa subjetividade titânica, mãe da ironia romântica11,
que nada tem a ver com uma subjetividade romântica epidérmica, que está na base
da criação pessoana.
Leyla Perrone-Moisés se refere à «alteridade absoluta» (PERRONE-MOISÉS, L.,
1982: 3), que talvez seja um termo mais apropriado em se tratando de Pessoa. Essa

9 Leia-se o poema «Retrato de escritor», de Educação pela pedra (MELO NETO, J.C., 2008: 336).
10 Leia-se o poema «Dúvidas apócrifas de Marianne Moore» (id.: 522).
11 Adolfo Casais Monteiro já relacionou a despersonalização pessoana e eliotiana com a ironia romântica:
«há um antecedente para as posições assumidas por Eliot e por Pessoa: é aquilo a que se costuma chamar
(paradoxalmente) ironia romântica» (CASAIS MONTEIRO, A. 199: 137)
738 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa

«alteridade absoluta» mina a possibilidade de um encontro com uma identidade


ou a existência de uma realidade. Tudo é ilusão, tudo é máscara e desemboca não
na totalidade, mas no total esfacelamento. A volta ao Uno é impossível: «tendo-se
aventurado na experiência da alteridade absoluta, [Pessoa] perdeu a possibilidade de
encontrar-se como unidade. Multiplicou-se tanto que já não podia ser alguém» (id.: 3).
No caso de Cabral, sujeito e realidade, se são questionados em sua dimensão
representativa, não são minados em sua existência. A angústia inicial do poeta,
conforme expresso pelo personagem Joaquim de Os três mal amados (1943), é por
não saber representar uma dada realidade regional, a sua, em poesia; angústia que
ele resolve quando consegue dar com sua própria linguagem, com seu inconfundível
modus operandi. Cabral representa criticamente determinada realidade socialmente
árida e injusta e o faz numa linguagem igualmente seca, que questiona a realidade e a
si própria, mas ele não põe em xeque a existência de uma realidade concreta. Também
não põe em dúvida a existência de um eu pessoal, mas almeja extirpá-lo no processo
de construção do poema, mesmo reconhecendo que se trata de uma empresa fadada
ao fracasso. Portanto, não poderia se reconhecer num projeto poético que abala a
própria existência da realidade e do eu por meio de uma subjetividade absoluta ou
de uma «despersonalização absoluta». Daí talvez Cabral, sucessor de Cesário como
Pessoa, não se reconhecer nesse seu irmão.
Fernando Pessoa e João Cabral, filhos de uma mesma língua e reivindicando o
mesmo pai poético, mas tão diferentes como a maior parte dos filhos tendem a sê-lo,
ao mesmo tempo que tão irmanados.

Bibliografia

Bibliografia Ativa
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Nova Fronteira/FBN; Mogi das Cruzes, SP: Universidade de Mogi das
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In: FREIXEIRO, Fábio. Da razão à emoção II; ensaios rosianos e outros ensaios e
documentos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, pp.179-19213.

12 Trata-se o livro de entrevistas concedidas por Cabral ao longo de sua vida, tendo sido selecionadas e
organizadas em verbetes por Félix de Athayde.
13 Entrevista com João Cabral reproduzida em 3a pessoa do discurso pelo entrevistador.
Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde 739

MELO NETO, João Cabral (2008). Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova
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MELO NETO, João Cabral (1996). «Entrevista». In: CADERNOS DE
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Moreira Sales, pp.18-31.
MELO NETO, João Cabral (2014). «Entrevista ao Jornal de Letras, Artes e Ideias
(Portugal, Espanha, Brasil... a poesia)» In: SARAIVA, Arnaldo. Dar a ver e
a se ver no extremo: o poeta e a poesia de João Cabral de Melo Neto. Porto:
CITCEM, Edições Afrontamento, pp.65-72.
PESSOA, Fernando (2006). «Estudo crítico; fragmentos». In: CUNHA, Teresa
Sobral (org.). Cânticos do realismo e outros poemas [seguidos de] 32 cartas.
Lisboa: Relógio D’Água, pp.223-240.
PESSOA, Fernando (1995). Obras em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PESSOA, Fernando (1990). Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar
VERDE, Cesário (2003). Obra completa de Cesário Verde. Org. Joel Serrão. Lisboa:
Livros Horizontes.

Bibliografia Passiva
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SP: Ateliê, pp.15-87.
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desconcerto do mundo: do Renascimento ao Surrealismo. São Paulo: Escrituras,
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CERDEIRA, Teresa Cristina (org.). Metamorfoses. Lisboa: Caminho e Cátedra
Jorge de Sena, v. 11, n. 1, pp. 91-105.
MOURÃO-FERREIRA, David [1981]. Notas sobre Cesário Verde. In:
MOURÃO-FERREIRA, David. Hospital das Letras. Lisboa: Imprensa
Nacional - Casa da Moeda.
PERRONE-MOISÉS, Leyla (1982). Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro.
São Paulo: Martins Fontes.
740 100 Orpheu Solange Fiuza Cardoso Yokozawa

SARAIVA, António José (1999). «Cesário Verde». In: SARAIVA, António José.
Iniciação à literatura portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, pp. 135-138.
SEABRA, José Augusto (1991). Fernando Pessoa ou o poetodrama. São Paulo:
Perspectiva.
SENA, Jorge (2001). «A linguagem de Cesário Verde». In: SENA, Jorge. Estudos de
Literatura Portuguesa I. Lisboa: Edições 70, pp.177-181.
Campos Triunfal

Richard Zenith
Investigador independente

Palavras-chave: Fernando Pessoa; Álvaro de Campos; Ode Triunfal; Mário de Sá-Carneiro;


Carlos Drummond de Andrade.
Resumo: Álvaro de Campos consubstanciou o espírito e a ambição da revista Orpheu, que
serviu, por sua vez, como um contexto para definir e destacar o seu génio não-aristotélico. O
heterónimo era um grito libertador para Pessoa, para a poesia portuguesa e para o leitor com
ouvidos para ouvir. Mas como é que surgiu exatamente? Qual era a sua relação, geneticamente
falando, com Alberto Caeiro e Ricardo Reis? Em que consistia o triunfalismo da sua ode
inaugural e do resto do seu percurso poético e «vivencial»? O presente trabalho tenta responder
a estas perguntas através de uma leitura atenta das cartas que Sá-Carneiro enviou para Pessoa
no verão de 1914, de alguns poemas de Álvaro de Campos (confrontados, em dois casos, com
poemas de Carlos Drummond de Andrade), de rascunhos de poemas atribuíveis a Campos ou
a Caeiro, e de documentos em prosa assinados por Pessoa e por diversos heterónimos.

Em 1990, centenário do suposto nascimento de Álvaro de Campos, foi pela


primeira vez revelado — numa edição de Teresa Rita Lopes — um dos seus mais
extraordinários poemas, notável pela sua perfeita simplicidade. Redigido em 1934,
narra como o poeta-engenheiro, ao sair de um comboio, já pensa com saudades no
seu casual companheiro da longa viagem de dezoito horas, reflete sobre a «vasta
fraternidade» que sente para com tudo o que é humano, percebe que todas as perdas
e mortes que pesam no seu coração são sinais de vida, imensa vida, e conclui com
esta frase assombrosa: «E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro»
(LOPES, T. R., 1990: 326-327).
Curiosamente, uma frase poética substancialmente idêntica — «Mundo mundo
vasto mundo, / mais vasto é meu coração» — tinha sido publicada seis anos antes num
jornal de Belo Horizonte, por um desconhecido chamado Carlos Alberto, pseudónimo
de Carlos Drummond de Andrade, então com 26 anos de idade1. O seu «Poema de

1 Drummond decerto conhecia o verso do poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) que reza assim: «Eu
tenho um coração maior que o mundo» (Marília de Dirceu). No seu poema «Mundo Grande» (ANDRADE,
C. D., 2012b: 45), voltaria ao mesmo verso, desta vez para contrariá-lo: «Não, meu coração não é maior que o
mundo. / É muito menor.»
742 100 Orpheu Richard Zenith

Sete Faces» (ANDRADE, C. D., 2012a: 19-20), que inclui os referidos versos, voltaria
a ser publicado em 1930, como primeiro poema do seu primeiro livro. A sétima e
última estrofe, ou «face», da sua auto-psico-grafia reza assim:

Eu não devia te dizer


mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

De forma semelhante, Álvaro de Campos, no seu poema de 1934 («Saí do


comboio»), diz sentir lágrimas a marejarem-lhe os olhos e também confessa: «Tudo
me comove».
O maior triunfo de Álvaro de Campos é idêntico ao de Carlos Drummond
de Andrade: uma descomunal capacidade de sentir. É a capacidade que marcou o
surgimento de Campos e que o distinguiu dos outros heterónimos e até de Fernando
Pessoa, como imediatamente percebeu Mário de Sá-Carneiro, o leitor privilegiado
do drama em gente que se desenrolou em 1914. Na carta enviada em 13 de Julho
desse ano, Sá-Carneiro, referindo-se à «Ode Triunfal», que tinha acabado de receber,
comenta: «eu, sinto que nunca poderia ter escrito a ode do Álvaro de Campos, porque
em todo o caso não amo tudo que ele canta suficientemente para assim o fixar... ‘sinto’
menos do que ele, ‘amo’ menos do que ele, ‘estrebucho’ menos do que ele as avenidas
da ópera, os automóveis, os derbys, as cocotes, os grandes boulevards... E eu amo isso
tudo portanto de tal ânsia a brasa!...» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 123). Fazendo uma
distinção entre «sentir» e «saber sentir», o remetente, que então vivia em Paris, repara
que esta segunda maneira de sentir — imaginativamente — pode até ser potenciada
no exílio, in absentia, de modo que o seu grande amigo, Pessoa, «não sente já ânsia
de conhecer cidades, Europa, Progresso, porque tudo isso você viajou, hiperviajou,
hiperconhece, hiperpossuiu ao escrever a sua admirável obra» (isto é, a «Ode Triunfal»).
Se concordarmos com a legitimidade metafórica do Dia Triunfal (8 de Março de
1914) em relação ao aparecimento de Alberto Caeiro e do seu ciclo O Guardador de
Rebanhos — «escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase», sustentou
Pessoa na sua famosa carta de 13/i/1935 —, devemos admitir a mesma verdade
simbólica para outro fenómeno redactorial acontecido logo em seguida no mesmo
dia mítico-histórico. Isto é: «Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção
nem emenda surgiu a ‘Ode Triunfal’ de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e
o homem com o nome que tem» (PESSOA, F., 2007: 422).
Quase nada desta última afirmação é literalmente verdade, a começar pela máquina
de escrever. Durante muitas décadas, não se conheceu qualquer rascunho da «Ode
Campos Triunfal 743

Triunfal», mas em 2010 foi publicado um fac-símile de uma folha manuscrita com
52 versos do poema (MOISÉS, C. F. e ZENITH, R., 2010: 71), dez versos de uma
segunda folha manuscrita foram reproduzidos e transcritos em 2012 (ZENITH, R.,
2012: 89), e existem, no verso da mesma folha, mais 13 versos divulgados apenas
em 2015 (ZENITH, R., LOPES, F. e RÊGO, M., 2015: 174). Estes 75 versos — um
pouco menos de um terço do número total — sofreram grandes alterações. Os quatro
versos que rematam o poema, na sua versão final, encontravam-se mais perto do
início; alguns versos foram divididos em dois, com conteúdos acrescentados; novos
versos e até estrofes inteiras foram posteriormente escritos e inseridos entre os versos
destes primeiros rascunhos; e várias palavras e nomes próprios deram lugar a outros.
Na «Ode Triunfal» publicada em Orpheu 1, o narrador, dirigindo-se aos «tramways,
funiculares, metropolitanos», implora: «Roçai-vos por mim até ao espasmo!», mas no
rascunho era mais explícito, dizendo, «Chegai-vos por mim e masturbai-me!»
A emenda mais significativa, no entanto, foi a supressão de um nome crucial para
a poética de Campos. Um verso do rascunho que invocava «Walt Whitman tão alto
que não pode passar pela porta!» (ZENITH, R., 2012: 89) foi convertido, na versão
definitiva, numa exclamação anónima: «Ser tão alto que não pudesse entrar por
nenhuma porta!». Num texto em prosa redigido quinze anos depois, Álvaro de Campos
recordaria a grande novidade que representou «a minha ‘Ode Triunfal’, no Orpheu I,
visto que, embora escrita perto de setenta anos depois da primeira edição das Leaves
of Grass, aqui ninguém sabia sequer da existência de Whitman, como não sabem em
geral da própria existência das coisas» (LOPES, T. R., 1990: 337). Aquando da sua
revelação pública, optou-se por esconder a sua dívida para com o poeta americano, o
que não foi difícil, pois Pessoa-Campos tinha razão quanto à ignorância dos críticos
portugueses. Nenhuma das muitas recensões de Orpheu 1 detectou a influência
whitmaniana na grande ode. Não foi sequer detectada por Mário de Sá-Carneiro.
Na sua apoteótica carta de 20/vi/1914, Sá-Carneiro garantiu: «você acaba de
escrever a obra-prima do Futurismo. Porque, apesar talvez de não pura, escolarmente
futurista — o conjunto da ode é absolutamente futurista. Meu amigo, pelo menos a
partir de agora o Marinetti é um grande homem... porque todos o reconhecem como
o fundador do Futurismo, e essa escola produziu a sua maravilha» (SÁ-CARNEIRO,
M., 2001: 108). Note-se que a maravilhosa ode ainda não se chamava «Triunfal».
Pessoa, aliás, tinha escrito na carta ao amigo que os versos nela incluídos eram apenas
alguns «excertos» de uma ode (sem nome). Sá-Carneiro discordou: «Não acho a
ode um excerto (ou excertos). Acho-a pelo contrário — tal como está — um todo
completo, perfeito em extremo, em extremo equilibrado» (109). Com efeito, os vários
versos que elogiosamente cita na carta de resposta a Pessoa não correspondem à
versão dos rascunhos, mas sim à versão definitiva, e depreende-se que tinha recebido
744 100 Orpheu Richard Zenith

praticamente a ode inteira, à excepção da primeira parte, que seguiria para Paris no
início de Julho. Pessoa ainda lhe fez alguns retoques e emendas2, mas a ode já estava
completa nesse mês de Julho.
Não sabemos se Pessoa escreveu os primeiros rascunhos poucos dias ou algumas
semanas antes da versão já revista que enviou a Sá-Carneiro, mas se a história do Dia
Triunfal for verdadeira, pelo menos na sua essência poética, o heterónimo Álvaro de
Campos terá surgido juntamente com a escrita do poema. É possível, aliás, que o eu
poético que andava por Lisboa a celebrar máquinas e a vida moderna, gritando coisas
como «Olhar é em mim uma perversão sexual!» (verso do rascunho, quase igual na
versão final) tenha sido inicialmente concebido como uma faceta cosmopolita do
tranquilo observador da Natureza chamado Alberto Caeiro. Foi Teresa Rita Lopes
quem primeiro trouxe para a ribalta a existência de odes futuristas — trechos ou inícios
de odes — atribuídas ao heterónimo que surgira já em Março de 1914. Valendo-se
de uma lista de tarefas que Pessoa elaborou para Caeiro e em que incluía não só O
Guardador de Rebanhos mas também «Cinco Odes Futuristas» e «Chuva Oblíqua»
(PESSOA, F., 2014: 205-206) a estudiosa deduziu que Caeiro começou por ser um
vasto e polivalente poeta modernista — ora bucólico, ora urbano, ora vanguardista
(LOPES, T. R., 1993: 46-48). Porém, o autor das odes futuristas acabou por se chamar
Álvaro de Campos, os poemas interseccionistas de «Chuva Oblíqua» tornaram-se
património literário de Pessoa ele-mesmo3, e Caeiro ficou com O Guardador.
Entre os papéis de 1914 deixados por Pessoa, existem três odes abortadas que foram
explicitamente destinadas ao projecto de cinco odes futuristas: 1) «E eu era parte de
toda a gente que partia» (PESSOA, F., 2002: 258), inicialmente atribuída a A. Caeiro,
nome substituído pelo de A. Campos, 2) «Ah, os primeiros minutos nos cafés de
novas cidades!» (PESSOA, F., 2002: 104), atribuída a A[lberto] C[aeiro] mas imbuída
do espírito e da linguagem poética de Campos, e 3) «Casa a Casa», sem atribuição
heteronímica e que não é obviamente de Campos. Esta última foi, aliás, publicada
no apêndice a uma edição de poemas de Caeiro (PESSOA, F., 2014: 194)4, enquanto
as outras duas surgem em várias edições da poesia de Campos. Um quarto poema,
«Uma vontade física de comer o universo» (PESSOA, F., 2002: 257), cuja atribuição
inicial a Caeiro foi alterada a favor de Campos, terá sido igualmente concebido
como uma ode futurista. Avento Abril de 1914 como o mês em que Pessoa começou

2 Por exemplo, substituiria uma referência ao «Shakespeare do século cem» (citada por Sá-Carneiro na sua
carta de 13/vii/1914) por um Eurípides dessa mesma altura hiperfuturista.
3 Estes poemas passaram primeiro para Campos, indicado como o seu autor em carta de Pessoa a Armando
Côrtes-Rodrigues datada de 4/x/1914._
4 O verso do fragmento (bnp E3/68-8v) tem um texto sobre Alberto Caeiro redigido em inglês.
Campos Triunfal 745

a trabalhar nestas odes, dado a referida lista de tarefas literárias para Caeiro ser
anterior a 7/v/19145.
As quatro odes iniciadas nessa Primavera heteronímica são ambientadas na cidade
e falam de movimentos e deslocações, com menções de navios, comboios e outros
modos de transporte. O narrador de todas elas observa a vida urbana com uma
atenção sentida que lembra o olhar de Cesário Verde. De mais a mais, este olhar e este
sentimento — à semelhança do que encontramos no poeta de «O Sentimento dum
Ocidental» — são fortemente atraídos pela realidade humana, na sua individualidade
e no seu conjunto. Passo a citar versos exemplificativos de cada uma das quatro odes
(pela ordem em que foram mencionadas no último parágrafo):

1) «A minha alma era parte do lenço com [que] aquela rapariga acenava / Da janela
afastando-se de comboio...»;
2) «O movimento, o movimento, / Rápida cousa colorida e humana que passa e fica...»;
3) «E a rapariga que cose à janela, de cabeça baixa, / Quem pode desprezar olhando-a como
se ela fosse / Um ponto sobre a capital de um grande império...»;
4) «Um novo tacto que fizesse pertencer-me, / A meu ser possuidor fisicamente, / O universo
com todos os seus sóis e as suas estrelas / E as vidas múltiplas das suas almas...».

O espírito destas odes, ou destes estudos para odes, tem muito pouco a ver com o
guardador de rebanhos, que não desejava possuir nada, não pretendia ter uma alma
ou um coração transbordante de sentimentos, nem manifestava interesse pelas vidas
alheais. Quando Caeiro se apaixonou por uma rapariga, foi por estar doente. No ciclo O
Guardador, tido por Pessoa como a fase mais puramente caeiriana, o único momento
francamente humano ocorre no oitavo poema, mas a criança brincalhona que acaba
por ir morar com Caeiro na sua casa branca é o Menino Jesus e todo o poema é uma
parábola. No terceiro poema do ciclo, o pastor de pensamentos presta homenagem a
Cesário Verde, mas manifesta pena por este ter sido constrangido a viver na cidade
em vez do campo. E alega que o poeta oitocentista olhava para as casas, as pessoas e as
ruas como se fossem árvores — alegação que me parece altamente discutível. Quanto
ao guardador, que dizia apreciar, acima de tudo, a pura e objectiva visão de todas
as coisas imediatamente ao seu alcance, temos de admitir que a sua poesia não vê
as coisas (árvores, flores, pedras) tais como são; faz antes uma apologia, constitui-se
num evangelho, que prega a superioridade de ver as coisas (árvores, flores, pedras) tais

5 A lista de tarefas é precedida por uma lista de quinze poemas de O Guardador de Rebanhos, que inclui dez
poemas sem data, cinco poemas datadas ou datáveis de entre 8 e 13 de Março, e nenhum dos seis poemas
redigidos em 7 de Maio.
746 100 Orpheu Richard Zenith

como são. É uma poesia abstrata, de certo modo platónica, na qual uma flor é uma flor
é uma flor — uma categoria e não uma flor realmente percebida ou, como acontece
em Campos, imaginariamente sentida.
Caeiro era o mestre, que ensinava a importância de ver até não poder ver mais aquilo
que existe, mas quem humanizou a lição, pondo-a em prática de modos opostos, foram
os seus dois discípulos, surgidos quase em simultâneo. Três ou quatro dias depois
de ter enviado a Sá-Carneiro a maior parte da primeira grande ode de Álvaro de
Campos, Pessoa anunciou-lhe o «nascimento» de Ricardo Reis, que também escrevia
odes, mas de um tipo completamente diferente. Enquanto as de Campos, expansivas
e excessivas, se inspiravam nas odes corais da tragédia grega, género que derivou do
ditirambo, o extasiado canto coral em honra de Dionísio, as odes ricardianas eram
mais breves e comedidas, imitadoras de Horácio na sua forma e também nas suas
temáticas, que se prendiam com a necessidade de aceitarmos o destino que nos foi
dado. Foi ainda em Junho de 1914 que Pessoa enviou para o seu amigo em Paris
um primeiro lote de odes do classicista, juntamente com uma explicação do «enredo
Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos» (referido por Sá-Carneiro na sua
carta-resposta de 27/vi/1914).
O Dia Triunfal, ao fim de três meses e meio, estava final e gloriosamente consumado.
As descrições físicas e os dados biográficos do novo e admirável trio poético seriam
desenvolvidos e aperfeiçoados ao longo de muitos anos, mas as suas personalidades, as
suas ideias e os seus estilos literários, bem como as relações entre eles, foram definidos
com nitidez em Julho de 1914. Nos primeiros dias desse mês, como para o ajudar a
assentar tudo por escrito, Pessoa inventou Frederico Reis, irmão de Ricardo e autor de
um folheto sobre a «Escola de Lisboa», basicamente constituída pelo «Mestre jovem
e glorioso» de nome Alberto Caeiro e pelos seus discípulos Ricardo Reis e Álvaro de
Campos.6 O efeito exercido pela obra de Caeiro sobre estes últimos «foi o de uma
paisagem totalmente nova que contemplassem, que lhes despertasse as almas, mas a
cada um a sua, a cada um segundo as suas tendências e faculdades». O precursor de
todos eles era, no entanto, Cesário Verde, segundo se afirma no mesmo folheto.
Assim, não é de admirar que Álvaro de Campos — ao descrever o cair da noite

6 bnp E3/146-3 a 17. O folheto, escrito em envelopes da Empreza Ibis — Typographica e Editora, foi transcrito
e publicado em Sensacionismo e Outros Ismos (PESSOA, F., 2009: 57-61) e, com muitas diferenças de leitura,
em Sobre Orpheu e o Sensacionismo (PESSOA, F., 2015: 18-25). Existe um rascunho, inédito, de uma
«Carta de Fernando Pessoa a Frederico Reis», que consiste numa recensão (inacabada) do folheto e cuja
publicação foi prevista «para Europa» (bnp E3/146-18). Europa, um projeto de revista de 1914, era muito
referida nas cartas trocadas por Pessoa e Sá-Carneiro no Verão desse ano. Na sua carta a Pessoa datada de
18/vii/1914, Sá-Carneiro escreve: «Gostaria muito, se fosse possível, conhecer o que sobre mim (e sobretudo
o interseccionismo e Caeiro & C.ª) o mano Reis escreveu.» Com efeito, o folheto de Frederico Reis também
menciona Sá-Carneiro como escritor associado à «Escola de Lisboa».
Campos Triunfal 747

sobre as ruas de Lisboa, no segundo dos seus «Dois Excertos de Odes», escritos na
mesma altura (30/vi/1914) — exclame, de repente: «ó Cesário Verde, ó Mestre» e
invoque seguidamente «O Sentimento dum Ocidental», um poema que tem tudo a
ver com os sentimentos e a materialidade viva da sua própria poesia dos primeiros
tempos.
Frederico Reis define Campos como «o poeta de Sensações e só de sensações», ou
então como um «génio febril, nervoso», que «na sua enorme Ode II triunfa de uma
vez para sempre de todos os vários futuristas por acabar, que na França, na Itália e na
Inglaterra não conseguem dizer o que querem». Visto que a «Ode Triunfal», nessa
altura, se intitulava «Ode II», é razoável conjecturar que Pessoa encarava os «Dois
Excertos de Odes» (subtitulados «fins de duas odes») como as secções concludentes de
uma «Ode I» e uma «Ode III» por completar. Metade desta conjectura é comprovada
por uma carta para Armando Côrtes-Rodrigues, datada de 4/x/1914, em que Pessoa
menciona um «trecho ‘à Noite’ da ‘Ode Triunfal N.º 3’ do Álvaro de Campos». O
trecho corresponderá, sem sombra de dúvida, ao primeiro dos «Dois Excertos de
Odes», todo ele um magnífico hino à Noite. A citada frase da carta também sugere que
o antigo projeto de «Cinco Odes Futuristas» dera lugar a «Cinco Odes Triunfais», título
confirmado por um plano de publicações datável de 1915 (PESSOA, F., 2003: 287).
Quanto à primitiva e despojada designação de «Ode II» para a «Ode Triunfal»,
reaparece num citadíssimo texto em inglês sobre o mestre Caeiro e os seus dois
discípulos, que principia «To whom can Caeiro be compared?» Foi publicado pela
primeira vez em Páginas Íntimas e de Auto-interpretação (PESSOA, F., 1966: 335) com
a data conjectural de 1917 — conjectura baseada, suponho eu, no facto de o longo
texto elucidar com tanta perfeição as prováveis influências literárias de Caeiro (Cesário
Verde, Walt Whitman e — «por oposição» — Teixeira de Pascoaes), a ascendência que
Caeiro, por sua vez, exerceu sobre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, o génio que
distingue cada um dos três poetas inventados, as semelhanças e diferenças entre eles,
etc. É este texto que nos explica (cito a tradução para português):

Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tal como são. Ricardo Reis tem
outro tipo de disciplina: as coisas devem ser sentidas, não só como são, mas também de
modo a enquadrar-se num certo ideal de medida e regra clássicas. Em Álvaro de Campos,
as coisas devem simplesmente ser sentidas.

Em toda a obra de Fernando Pessoa, não encontraremos melhor resumo das índoles
contrastantes dos três heterónimos. Os primeiros editores deste texto calcularam que
terão sido necessários três anos para o sistema heteronímico evoluir até ficar tão
claramente traçado e descritível.
748 100 Orpheu Richard Zenith

Já vimos, no entanto, que a evolução foi bem mais rápida. Em Julho de 1914, o
sistema de Pessoa e C.ª estava estabelecido, com as órbitas e as forças de atração e
de repulsão em pleno funcionamento. O longo texto em inglês que acabo de referir
será de 1915 ou mesmo de 1914 — de acordo com vários indícios, entre os quais a
designação de «Ode II» dada à que viria a intitular-se «Ode Triunfal»7. Neste sistema,
que à nascença estava intimamente ligado ao Sensacionismo teorizado por Pessoa8,
o sentir do mestre, Alberto Caeiro, é supostamente sensorial, como se a visão fosse
uma máquina fotográfica e a audição um simples gravador de sons («as coisas devem
ser sentidas tal como são»; «Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…» (O Guardador,
II). Na verdade, os seus poemas explicam continuamente que ele privilegia os cinco
sentidos, sobretudo o da visão. Afigurar-se-ia que o poeta-pastor prefere o verso
livre para poder moldar, com toda a naturalidade, as suas palavras à realidade que
descrevem, mas não é isso que acontece. O versilibrismo de Caeiro é um simulacro da
Natureza; imita a sua forma livre, espontânea, irregular. Em vez de escrever com base
na observação, a sua poesia apresenta uma ideia da Natureza.
O sentir de Campos é sensual. Importa-lhe apenas o facto de experienciar sensações,
que podem derivar de interpretações erróneas ou até de dados falsos. Desde que
sinta, seja o que for, está tudo bem («as coisas devem simplesmente ser sentidas»).
As referências ao sadomasoquismo nas suas duas odes publicadas em Orpheu têm
sido lidas, com toda a legitimidade, à luz de várias teorias de erotismo literário ou
biográfico, mas a sua função poética imediata é salientar a exigência, em Campos,
de um sentir sem barreiras. Quanto ao seu uso do verso livre, não deriva da Natureza
exterior mas sim da sua própria natureza — da sua «emoção natural», daquilo que
sente «profundamente». Estas palavras entre aspas provêm de um texto sobre o «ritmo
paragráfico», o termo que Pessoa-Campos cunhou para a cadência de grande fôlego,
ao estilo de Walt Whitman, dos seus versos (PESSOA, F., 1994: 271-272). Desprezando
as limitações da rima ou de uma métrica regular, o autor do texto conclui: «O limite
que temos é a nossa própria personalidade; é o sermos nós e não a vida inteira. É isso
o limite dentro do qual temos que trabalhar, porque não podemos trabalhar fora dele.»
A proeza de Campos é ter feito o que ele próprio julgava impossível: ultrapassar o
limite da sua personalidade. Dedicando-se a sentir tudo na vida de todas as maneiras,

7 Outro indício é a alusão ao «sad epicureanism» de Ricardo Reis, frase que se repete («epicurismo triste») no
início de um texto de Frederico Reis sobre o seu irmão e que datará de 1914 ou 1915 (PESSOA, F., 1966: 386).
Este texto e o folheto sobre a Escola de Lisboa são os únicos atribuídos a Frederico Reis.
8 O texto mais antigo sobre o Sensacionismo surge numa folha com dois poemas de Caeiro datados de 13/
iii/1914 (bnp E3/67-30 e 30a, consultável no portal da BNP: http://purl.pt/1000/1/alberto-caeiro/indices.
html [procurar em «cotas»]). Tanto o texto em inglês aqui citado como o folheto de Frederico Reis apontam
para o Sensacionismo como sendo a tendência que engloba os três heterónimos e que eles mesmos definem.
Campos Triunfal 749

de algum modo passou a ser a vida na sua totalidade. Superou-se, portanto, exatamente
como Friedrich Nietzsche aconselhava aos que tivessem a força e o génio necessários
para o fazer (e são notórias as afinidades do engenheiro com o filósofo alemão). Mais
espantoso ainda: Campos superou o seu criador, Fernando Pessoa. Esta superação
tem três aspetos, que são os três componentes do seu sentir triunfal: (1) chutzpah, (2)
imaginação sonhadora e (3) amor. Ocuparei o resto do presente ensaio com algumas
considerações sobre estes aspetos...

(1) Permito-me usar a palavra chutzpah, que é yiddish, devido às raízes parcialmente
hebraicas de Álvaro de Campos. Chutzpah significa audácia, coragem, atrevimento,
insolência… Quem possui esta qualidade diz tudo, faz tudo, sem medo ou hesitação.
Mesmo para com o seu querido mestre, Caeiro, Campos mostra-se insolente e ousado.
Vejam-se, por exemplo, os seguintes versos da «Ode Triunfal»:

Um orçamento é tão natural como uma árvore


E um parlamento tão belo como uma borboleta

Rejeitando um conceito da Natureza que exclui as produções humanas, Campos


afirma-se, logo à partida, como um poeta mais abrangente do que Caeiro. Mais
abrangente e também mais arrojado, mais dinâmico. Um dos «poemas inconjuntos» do
mestre começa: «Deito-me ao comprido na erva / E esqueço tudo quanto me ensinaram»
(PESSOA, F., 2014: 166). Ao que o seu discípulo irrequieto parece responder num trecho
de «A Passagem das Horas», que começa assim: «Estatelo-me ao comprido em toda a
vida / E urro em mim a minha ferocidade de viver...» (PESSOA, F., 2002: 213).
O chutzpah de Campos leva-o a afrontar, de forma ainda mais aberta, o homem que
o criou. Troça dele pela sua «mania (...) de julgar que as coisas se provam» (numa carta
publicada na Contemporânea, em Outubro de 1922) e chega a afirmar que «Fernando
Pessoa (...) não existe, propriamente falando» (nas Notas para a Recordação do meu
Mestre Caeiro).
A palavra chutzpah presta-se, igualmente, a definir o espírito audaz e contestatário
de Orpheu, tendo-se Álvaro de Campos revelado, como era de esperar, como o
colaborador mais escandalosamente órfico — nos três poemas que publicou na
revista e também em cartas que redigiu antes e depois da saída do segundo número
(finais de Junho de 1915). Não chegou a acabar uma missiva para Marinetti, datável
de princípios de Junho, em que não escondia o seu desprezo pelo Futurismo e por
processos marinettianos como o das «palavras em liberdade» (PESSOA, F., 2007:
114-115), mas pouco tempo depois, em 6 de Julho de 1915, redigiu e enviou para A
750 100 Orpheu Richard Zenith

Capital a conhecida carta em que se regozijava com o desastre de elétrico sofrido pelo
estadista Afonso Costa, então deitado numa cama de hospital, em perigo de vida.
Como se sabe, quase todos os colaboradores de Orpheu se dirigiram aos jornais, nos
dias seguintes, para se demarcaram do gesto de Campos. Menos conhecido é o facto de
este último ter iniciado uma segunda carta para A Capital em que reafirmava as suas
anteriores declarações sobre o desastre acontecido ao líder do Partido Democrático,
lamentando apenas «a circunstância, que infelizmente se parece confirmar, do seu
restabelecimento»9.
No plano da realidade em que nos encontramos, claro que é Campos, e não Pessoa,
que é inexistente. Se, apesar disso, afirmo que Álvaro de Campos «redigiu» e «enviou»
cartas, é por achar que Fernando Pessoa, sem a intermediação do seu heterónimo,
não teria conseguido ir tão longe. Nem nunca teria produzido, sem a voz destemida
de Campos, um manifesto com a força do Ultimatum (1917).

(2) A inexistência dos heterónimos faz com que eles estejam forçosamente exilados,
afastados da vida real. Ao ler Campos pela primeira vez, o que fazia pasmar Sá-Carneiro,
mais ainda do que a sua extraordinária capacidade de sentir imaginativamente, era
conseguir fazê-lo longe do mundo que cantava e com tão verdadeira exaltação. Nem
Pessoa (ou Campos) pretendia que fosse de outro modo. Num texto assinado por ele
e datável de 1916 ou 1917, Campos assume a sua preferência por estar na vida como
um turista:

Quero, para aproveitar a minha viagem, sentir o maior número de coisas no mais pequeno
espaço de tempo possível. Sentir tudo de todas as maneiras, amar tudo de todas as formas,
tocar e ver coisas e não lhes pegar, passar por elas e não olhar para trás — parece-me o único
destino digno dum poeta. (PESSOA, F., 1994: 232)

Esta modalidade oximorónica de viver — tocar nas coisas sem pegar nelas, passando
sempre adiante — já tinha sido experimentada por Alexander Search, mas sem um
resultado feliz. No seu poema mais comprido, «In the Street», datado de 12/xi/1907,
o alter ego inglês visualiza as famílias que habitam as casas por onde vai passando
e sente um misto de inveja e horror. Lamenta ser «the eternally excluded / From
socialness and mirth» [«o eternamente excluído / De todo o convívio e do prazer»] e
tenta imaginar-se numa dessas casas com uma mulher e filhos junto de uma lareira.

9 Rascunho da carta publicado, pela primeira vez, em Da República (1910-1935) (PESSOA, F., 1978: 171-173).
Campos Triunfal 751

Esta mera ideia provoca-lhe, porém, uma aversão instantânea. Rejeita a vida feliz dos
outros, dizendo: «The world my home, my brother men / Are prisons, chains that bind
and pen» [Os homens irmãos, o mundo meu lar, / São prisões, cadeias de prender e
atar] (PESSOA, F., 1999: 162-163). (Cito a tradução de Luísa Freire.)
No annus mirabilis de 1914, Pessoa concretizou nos heterónimos várias das coisas
que Alexander Search buscava. No caso de Álvaro de Campos, em vez de invejar a
vida dos outros, conseguiu usurpá-la e ser, imaginativamente, todos os outros. A
significativa epígrafe de «In the Street» reza assim: «But I, mein Werther, sit above
it all; I am alone with the stars» 10 (CARLYLE, Sartor Resartus). Campos, pelo
contrário, atirou-se para a vida, projetou-se nos outros, ao mesmo tempo que se
mantinha «always apart from the crowd» [sempre isolado da multidão], segundo o
supracitado texto que começa «To whom can Caeiro be compared». Sem ser ou ter
nada, tudo lhe era possível, através da técnica onírica exposta no poema «Tabacaria»
e, de forma mais sucinta, em «Pecado Original». Neste poema, Campos defende
que a «verdadeira história da humanidade» consiste não naquilo que fizemos, mas
sim naquilo que falhámos, naquilo que não conseguimos, mas que imaginámos,
sonhámos, supusemos. Lido e ponderado com atenção, o final do poema revela-nos
o génio íntimo de Campos:

Na alma, e com alguma verdade;


Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! meu Deus! meu Deus! —
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui! (PESSOA, F., 2002: 483)

(3) Para além de todos esses Césares, Álvaro de Campos foi muitas outras coisas
na imaginação, incluindo muitos Romeus. Como insistia em sentir tudo, era natural
e mesmo inevitável que sentisse também o amor, mas tentarei demonstrar que o
amor não era apenas um sentimento entre outros, mas sim o seu sentimento mais
triunfante. Comecemos pela evidência empírica. Ao contrário do que acontece na
obra de Caeiro ou Reis, os poemas e também certos textos em prosa de Campos estão
habitados por numerosas pessoas, de várias idades e classes sociais. As relações entre

10 «Mas eu, mein Werther, estou acima de tudo isso; estou sozinho com as estrelas.»
752 100 Orpheu Richard Zenith

os seres humanos intrigam este heterónimo, o único habilitado para falar, nas suas
Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro, sobre os laços afetivos que os uniam
— a Caeiro, Reis, Campos, António Mora e Fernando Pessoa —, a maneira como se
conheceram, os encontros que realizaram e as discussões que travaram... Os poemas
de Campos tematizam com alguma frequência as relações amorosas que observa ou
em que ele próprio está envolvido e, já que quer sentir de todas as maneiras, gosta
tanto de mulheres como de rapazes (contudo, parece não gostar de homens maduros,
a menos que sejam piratas rudes).
Alberto Caeiro, exceto quando estava doente, era supremamente indiferente aos
outros seres e aos afetos que os ligam. Casado com as árvores e as flores, ou com o seu
dom de filosofar sobre a forma como elas devem ser vistas, vivia satisfeito, disse o que
tinha para dizer, e morreu.
Ricardo Reis possuía os seus deuses e também as suas ideias sobre eles. As Lídias
e Cloes dos seus versos, se dermos crédito às insinuações de Campos, eram rapazes
travestidos de senhoras da Roma antiga, o que não altera em nada o seu estatuto
fantasmático de meras sombras ouvintes. (LOPES, T. R., 1990: 475) Reis só atendia
às leis do destino, devidamente espelhadas nas leis métricas a que as suas odes
horacianas obedeciam. Ao que parece, procurava através delas a paz e a liberdade
interiores. «A disciplina do ritmo é aprendida até ficar sendo uma parte da alma»
explicou o neoclassicista numa discussão com Campos (PESSOA, F., 2003: 210), e foi
decerto a propósito de pessoas como Reis que Pessoa escreveu, num texto intitulado
«Liberdade»: «Ser livre não é não ter disciplina, é não precisar de disciplina — ser
rítmico e superior»11.
Trilhando um caminho algo inverso, Álvaro de Campos, sem deuses nem leis,
gozando de uma liberdade absoluta, sentia a necessidade de algum constrangimento,
ou compromisso. Isto verifica-se tanto no plano formal, pois volta e meio sai-lhe
um soneto ou outro tipo de poema com rima e métrica regulares, como na própria
«vida» que os seus versos vão narrando. Tanto Bernardo Soares como Ricardo Reis
advertiam que o amor dos outros pesa, oprime, e parece ter sido precisamente isso —
algum peso, algum aprisionamento — que Campos precisava e procurava.
Numa das mais célebres canções gravadas por Janis Joplin, poucos dias antes da
sua morte em 1970, surge duas vezes a seguinte frase: «Freedom’s just another word
for nothing left to lose.» Kris Kristofferson, que escreveu a canção, «Me and Bobby
McGee» (e também a cantou), explicou numa entrevista, a propósito da referida frase,
que a liberdade é uma faca de dois gumes, pois pode ser dolorosa, como quando

11 bnp E3/92M-52. Ver o meu artigo «Reis Triunfal», disponível em linha, na Revista Estranhar Pessoa, n.º 1,
Outubro 1914.
Campos Triunfal 753

alguém está sozinho, sem ninguém que o mace, mas também sem ninguém para
perder12. Nothing left to lose.
Há uma frase de Álvaro de Campos que exprime uma ideia semelhante, ou
porventura a mesma. Nas Notas para a Recordação, afirma, a dada altura, que «o
amor da humanidade não nasce do egoísmo mas do cansaço dele» (PESSOA, F., 1994:
176). Isto parece significar que um egoísmo extremado — que implica uma grande
liberdade e também uma grande solidão — acaba por cansar, gerando o impulso de
procurar outros seres humanos.
Paradoxalmente, o exílio permanente de Campos («já me isolei numa grande
fábrica, entre os seus ruídos; já fugi do mundo num grande café internacional»,
garante ele no trecho das Notas que acabo de citar) é o motivo do seu amor pela
humanidade. Há um poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado em
1925, que ilustra o mesmo paradoxo e que, tal como o seu «Poema de Sete Faces»,
está em grande sintonia com a poética de Álvaro de Campos. Intitulado «Coração
Numeroso», o poema é narrado por um forasteiro — aparentemente o próprio
Drummond — que se passeia pela noite do Rio de Janeiro. Entre as numerosas luzes,
os bondes a tilintarem e as pessoas a divertirem-se na noite quente, o poeta sente-se
cansado de viver, não conhece ninguém à sua volta e contempla, por um momento,
a possibilidade de suicídio...

Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas


autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.

O mar batia em meu peito, já não batia no cais.


A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor. (ANDRADE, C. D., 2012a: 133)

A estes versos podemos justapor o coração numeroso de Álvaro de Campos,


revelado em versos como os seguintes, de «A Passagem das Horas»:

12 No programa televisivo Enough Rope with Andrew Denton, em 25/vii/2005. Consultei a seguinte transcrição:
http://www.abc.net.au/tv/enoughrope/transcripts/s1422317.htm. A canção intitula-se «Me and Bobby
McGee».
754 100 Orpheu Richard Zenith

Passa tudo, todas as cousas num desfile por mim dentro,


E todas as cidades do mundo rumorejam-se dentro de mim…

Meu coração tribunal, meu coração mercado, meu coração sala da Bolsa,
meu coração balcão de Banco,
Meu coração rendez-vous de toda a humanidade [...]. (PESSOA, F., 2002: 199)

Ainda que os vastos corações de Carlos Drummond e de Álvaro de Campos existam


apenas nos seus versos, mesmo que o seu amor não passe de bela poesia, não deixa de
ser algo enorme, potentíssimo.
É mais do que curioso que o último poema escrito em nome de Álvaro de Campos
tenha sido «Todas as cartas de amor são / Ridículas», e não foi certamente por acaso
que o poema saiu na sua voz, com o seu ritmo e a sua emoção. Supõe-se que as cartas
de amor inspiradoras do poema foram aquelas que Fernando Pessoa escreveu a Ofélia
Queiroz e sabe-se que Campos, sempre impetuoso e por vezes malicioso, intervinha
nessa correspondência, inserindo comentários parentéticos nas cartas de Fernando
e chegando a escrever uma carta inteira, em que ofereceu conselhos à namorada.
Sugiro, no entanto, que todas aquelas cartas de amor ridículas partiam de Álvaro
de Campos. Ou melhor: se não existisse o engenheiro-poeta, Fernando Pessoa não
conseguiria ter escrito nenhuma carta a Ofélia Queiroz, nem ter namorado com ela.
Proponho que, sem Álvaro de Campos, Pessoa também não poderia ter defendido o
direito de António Botto e de Raul Leal à sua homossexualidade. Como talvez não
conseguisse ter tido a coragem — a chutzpah — para se opor com veemência, na
primeira página do Diário de Lisboa, a um projeto de lei predestinado a ser aprovado
pela assembleia-fantoche de António de Oliveira Salazar. Refiro-me à lei contra as
associações secretas, aprovada por unanimidade em Abril de 1935.
A minha proposta é simplesmente esta: a poesia, tal como se realizou em Álvaro de
Campos, todo ele um grande poema, transformou Fernando Pessoa.

Bibliografia

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Lisboa: Fundação Gulbenkian.

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