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Título
100 ORPHEU
Organizadores
Dionísio Vila Maior
Annabela Rita
Imagem da Capa
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ISBN
978-989-8801-37-1
Depósito Legal
XXXXXX/16
Impressão
xxx
Execução Gráfica
Hugo Carvalho | Edições Esgotadas, Lda
© 2016
Dionísio Vila Maior
Annabela Rita
Todos os direitos reservados.
Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia
no âmbito do Projeto UID/ELT/00077/2013
100
ORPHEU
Palavra prévia
[…] “Orpheu” não acabou. “Orpheu” não pode acabar. Na mitologia dos antigos, que
o meu espírito radicalmente pagão se não cansa nunca de recordar […] há a história
de um rio, de cujo nome apenas me entrelembro, que, a certa altura do seu curso, se
sumia na areia. Aparentemente morto, ele, porém, mais adiante […] surgia outra vez à
superfície, e continuava, com aquático escrúpulo, o seu leve caminho para o mar. Assim
quero crer que seja […] a revista […] “Orpheu”.
Em 2015, um grupo de trabalho reavivou (mais uma vez) esse “rio”, delineando
cuidadosamente, laborando intensamente, organizando diversos seminários,
colóquios, exposições e congressos internacionais, dezenas de iniciativas que
comemorassem o centenário do Orpheu. E consideramos ter sido com um elevado
sentido de responsabilidade que, 100 anos depois do lançamento da revista
Orpheu, este grupo de trabalho acabou por despertar esse outro “rio” — não de
“noturna consistência”, não lidiamente sossegado, antes multicolor, polifónico e
pluridiscursivo — como, aliás, convém.
Assim se publicam diversos contributos que refletem sobre uma plêiade de escritores
e artistas cuja produção foi marcada profundamente por uma experimentação
estética e literária: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros,
António Ferro, Amadeo de Sousa-Cardoso, Santa-Rita Pintor, Luís de Montalvor,
Ronald de Carvalho, Alfredo Pedro Guisado, Armando César Cortes-Rodrigues,
Ângelo de Lima, Raul Leal, e outros que, balizados pelo timbre das obras que estes
legaram à posteridade, aprofundaram a descontinuidade moderna, numa cadeia de
acontecimentos que ainda hoje persistem na memória coletiva luso-brasileira.
Referindo-se ao grupo do Orpheu, disse Eduardo Lourenço: “Tudo o que eles
tocam, levanta voo à nossa frente”. Descreveu, desse modo, o impacto que o grupo
modernista português vem exercendo sobre a produção artística e literária da
contemporaneidade com a publicação da revista Orpheu. Defini-lo perentoriamente
como “autêntica revolução poética, sem paralelo na história literária portuguesa” foi
um acerto visionário, de modo que estamos ainda a colher os frutos dessa viragem,
disseminados muito para além da lusofonia.
Procurando celebrar esse centenário (com as honras que também à [re]leitura
convidam), o CLEPUL, o LEPEM e o Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre
Manuel Antunes responderam de pronto — com a intensidade consentida pela paixão
e amor profundos pela Literatura, pelas Artes, pelas Humanidades (reservando-nos,
todos nós, o direito de homenagear, diversamente, aqueles que questionaram,
clarificando, uma memória coletiva).
Aos que nos apoiaram e acompanharam, deixamos aqui exarados a saudação, o
agradecimento e a promessa de reencontro em 2017, no 100/Futurismo, continuando
a aventura da revisitação e da reinvenção da nossa memória coletiva, percurso iniciado
em Lisboa e em São Paulo (com a nossa colega Lilian Jacoto). À Fundação Millennium
BCP, na pessoa do seu Presidente, Dr. Fernando Nogueira, estamos profundamente
penhorados pelo apoio cúmplice que viabilizou esta edição. À Fundação Calouste
Gulbenkian e ao Centro Cultural de Belém, agradecemos, penhorados, o acolhimento
do encontro científico central no calendário comemorativo. Menção saudosa e grata
deixamos lavrada a Vasco Graça Moura, que presidia ao Centro Cultural de Belém no
início do projeto celebratório. Louvamos todos os membros da organização do vasto
programa comemorativo, destacando na pessoa do Dr. Luís Pinheiro, o nosso sempre
disponível e eficaz executivo, a constância da ação. A todos, pois, o nosso bem-haja!
Perguntar-se-á: Quanto de coletivo terá essa memória coletiva? Quanto de amena
perversidade (ou não) terão a mitificação da História e a comemoração de uma
revista que definitivamente balizou? Se dúvidas houvesse acerca da representatividade
e do benefício estruturante da consciência histórica para a sobrevivência de uma
coletividade, bastaria recordar que o próprio conceito de coletividade linguística integra
em si uma imagem dinâmica — imagem esta que só se concretiza enquanto consciência
transformada em discurso, ato e obra realizada. E é, no fundo, essa consciência que (de
acordo com Pessoa) permitirá ao homem atingir aquela «vitalidade» que, em 1912, ele
emprestava à «exuberância de alma» de uma comunidade, à sua «capacidade de criar
[…] novos moldes, novas ideias gerais».
É, afinal, essa “exuberância”, essa “capacidade criativa” com que os órficos
sinalizaram a literatura portuguesa que, com este livro, relembramos — procurando,
por um lado, contribuir para a (re)avaliação da geração de Orpheu (preenchendo
novos “lugares” de leituras) e, por outro, dar razão às palavras de Pessoa publicadas
em 1935, no nº 3 da revista Sudoeste, quando dizia: “[…] Orpheu acabou. Orpheu
continua”.
Guilherme Pobre
França, José-Augusto 245
Índice 11
Os Caminhos da Heteronímia
Guimarães, Fernando 355
O Sensacionismo é um Não-Existencialismo
Hipólito, Nuno 367
Orpheu… e depois?...
Leão, Isabel Ponce de 389
12 100 Orpheu
Conferência
Lourenço, Eduardo 443
Orpheu e a Guerra
Martins, Patrícia Soares 489
O Mito do Orpheu
Saraiva, Arnaldo 619
Amadeo e Orpheu
Soares, Marta 643
Campos Triunfal
Zenith, Richard 741
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro,
poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?»
Orietta Abbati
Universidade de Turim
1 Basta pensar na colaboração neste número do poeta Ângelo Lima, ou na “novela vertígica” Atelier, de Raul Leal.
16 100 Orpheu Orietta Abbati
Qual é então a posição que, na Tábua, Pessoa atribui à poesia Manucure? Citando-a
entre as colaborações do amigo em jornais e revistas, com referências pontuais
a Orpheu 2, inclui-a entre os poucos «aproveitáveis», rotulando-a logo de seguida
como «poema semi-futurista (feito com intenção de blague)». Insere-a também na
projetada publicação final, «apesar de blague», não sem deixar de enfatizar, mais uma
vez e sem parênteses, a confiabilidade duvidosa.
A impressão imediata é de uma, mesmo se involuntária ou talvez não,
desvalorização daquela que foi sucessivamente considerada entre os poucos
exemplos de poesia futurista, aliás, citando F. Cabral Martins, «Manucure talvez
seja, se exceptuarmos K4 O Quadrado azul, Saltimbancos e o Manifesto Anti-Dantas,
de Almada, o texto português mais próximo do cânone do Futurismo» (1994: 279).
Sem pretensões de entrar na questão da sua assimilação, ou da sua órbita, mais ou
menos rigorosa, à volta da vanguarda marinettiana6, deve-se notar que Manucure,
talvez levando consigo esses epítetos, constituidores de um peritexto, que, de alguma
forma se tornou uma parte integrante do título, com um aviso ao leitor, de fato aparece
numa posição excêntrica ou marginal em toda a obra poética de Sá-Carneiro, quase
um corpo estranhado e ao mesmo tempo estranho, que mereceu da crítica a seriedade
circunscrita da citação «apesar de blague».
Neste contexto, torna-se necessário apresentar algumas considerações adicionais.
É sabido que o autor de Mensagem nunca foi um entusiástico estimador de
Marinetti e do futurismo e, embora reconhecendo que a ligação entre a sua poética
e Sensacionismo e «(…) a atitude enérgica, vibrante, cheia de admiração pela Vida,
pela Matéria e pela Força que tem lá fora representantes com Verhaeren, Marinetti»
(PESSOA, F., 1966: 126) existe, defende, especialmente por meio da prosa desinibida
e provocadora de Álvaro de Campos, na carta ao pai do Futurismo que deveria
acompanhar o envio de uma cópia de Orpheu, a superioridade do -ismo sensacionista
encarnado pelo engenheiro, como se pode ler:
Para mim as vossas palavras em liberdade não fazem sentido. Apenas admito as
minhas sensações e, utilizando a Vossa expressão, na arte apenas admito as sensações
em liberdade. (...) Não há senão a arte das sensações (...) É a essa escola sensacionista
que eu adiro. Essa escola sou eu. (PESSOA, F., 2012: 253).
7 Na mesma carta explica Pessoa: «porque a ideia patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus
propósitos, avulta agora em mim; (...) é uma consequência de encarar à sério a arte e a vida» (Ibidem).
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 19
8 Logo nos primeiros dias em Paris escreve ao amigo da alma, Fernando Pessoa: «Tenho andado muito com o
Guilherme de Santa-Rita. É um tipo fantástico, não deixando no entanto de ser interessante» (SÁ-CARNEIRO,
M. de, 2001: 13). Em outra carta de 31 de janeiro de 1912 afirma: «Respeitantemente ao Santa-Rita, a minha
opinião difere muito da sua e da do Veiga Simões: Não me parece um caso de Hospital mas – vai talvez pasmar
um caso de Limoeiro. [...] É na verdade uma personagem interessante, mas lamentável e desprezível».(id.: 26)
20 100 Orpheu Orietta Abbati
porque não sei o endereço. Para centralizar, mande você. Não lhe parece melhor?»
(SÁ-CARNEIRO, M. de, 2001: 188). Respira, sem dúvida, um ar diferente do lisboeta,
apesar da sua condição marginal, como, de resto, uma outra carta a Pessoa testemunha,
quando escreve «Na galeria Sagod, o templo cubista futurista de que lhe falei já numa
das minhas cartas comprei ontem um volume: I poeti futuristi. (…) vou-lho mandar
em presente. Já lá descobri uns Fu fu… cri-cri (…) muito recomendáveis. Vamos a
ver...» (id.: 190). Na mesma missiva, surge todo o interesse de Sá-Carneiro pela revista
internacional de literatura Poesia, de que não tem mais notícias por causa da guerra,
sugerindo ao amigo «Se a revista existisse – nós poderíamos muito possivelmente ser
colaboradores» (ibid.).
Estas rápidas referências revelam, então, um real, sério e interessado envolvimento
de Sá-Carneiro que não poderia não se reverberar na sua poesia, da qual Manucure
se apresenta como a melhor realização. Isto para dizer que a Europa tão sonhada,
mesmo envolvendo a vida pessoal do poeta, se estabelece plenamente nesta
longa poesia, fundindo-se numa hibridação fecunda, e pregnante de toda a arte
sacarneiriana.
Os elementos peritextuais, acima de tudo, a partir do título Poemas sem
suporte que anuncia a poesia publicada em Orpheu 2 juntamente com a Elegia e
pela dedicação a Santa-Rita Pintor; longe de tirar a seriedade ao texto, este, pelo
contrário, circunscreve o âmbito que surge como uma síntese justa e eficaz, com
referência à liberdade dinâmica das palavras na poesia modernista, de evocação
futurista, e integração naquela ineludível expressão da vanguarda artística do início do
século XX, do pintor Português, cujo papel é reconhecido oficialmente e redimido
pelo autor Dispersão.
A adição posterior da frase pessoana «feito com intenção de blague», por sua vez,
possui a intenção de estabelecer os limites dentro dos quais este poema se move,
condicionando, portanto, uma abordagem séria também à leitura do mesmo. No
entanto, nas palavras de Eduardo Lourenço, «uma “blague” pode pôr – ou traduzir – os
mesmos problemas de um ato ‘sério’» (2003: 54), efetivamente é necessário ter esse
aspeto em conta, juntamente com as reflecções supracitadas, para devolver ao texto
de Sá-Carneiro o adequado espaço estético literário reservado às grandes Odes de
Álvaro de Campos, em particular, em relação à grande Ode Marítima, a que se junta
em Orpheu 2.
Em primeiro lugar, no projeto modernista da revista, a blague funciona como
imediato ato visível de rutura. O facto de ter sido premeditado ou fruto de sensações
inquietas que a poesia sempre traduz, é um tema que merece outras reflexões.
Certamente a própria escolha do título, implica também a assunção do que
efetivamente o mito de Orpheu significa, ou seja, citando ainda Eduardo Lourenço,
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 21
9 Continua ainda E. Lourenço: «A importância única da geração de Orpheu reside nessa aceitação sem limites
da seriedade da poesia, ou, se se prefere, da poesia como realidade absoluta» (ibid.).
22 100 Orpheu Orietta Abbati
Assim prossegue o primeiro segmento do texto até ao verso 20, num movimento
centrípeto que tudo reconduz ao eu, delineando, em verso livre, uma síntese perfeita
da vida parisiense de Sá-Carneiro, repetidamente contada ou encenada, quer em
outros poemas, quer na correspondência. Contudo, na estrutura desta longa poesia
encontramos traços da sua função bivalente, uma vez que ela aparece como um
prelúdio para os versos seguintes, quando, como o volano de Álvaro de Campos, põe
em movimento a capacidade imaginativa sensorial, mudando-lhe, porém, a direção
com a qual inicia um vórtice centrífugo, onde o mesmo sujeito entrará a fazer parte
num processo de dispersão e anulação total.
Em poucas palavras, com Manucure, Sá-Carneiro constrói o espaço ideal para
realizar, em nome da radicalidade absoluta, a totalidade da sua poética. Doseia de
forma gradual, mas crescente, o vocabulário e os topoi sempre presentes na estética
decadentista e simbolista, declinados numa atmosfera não mais estagnante, mas
previamente carregada de uma força cinética que anuncia a «arte fluida», também
tematizada no conto Asas, como os seguintes versos o demonstram:
Todo este conjunto leva a uma evolução gradual mas rápida para uma maior
inclusão da estética futurista e cubista, com que o eu poético parece finalmente
encontrar-se em perfeita comunhão, como depois de uma verdadeira unção divina, o
que faz com que ele declare:
(...)
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variável sempre
E livre – em mutações contínuas
Em insodáveis divergências...
brilhar com luz própria, lado a lado, com o mesmo valor das outras grandes Odes de
Álvaro de Campos, como, aliás, o autor de Dispersão auspiciava, sugerindo a Pessoa a
divulgação de, pelo menos, aquele junto a Chuva oblíqua.
Mesmo estruturalmente, a Ode Marítima e Manucure possuem elementos que
destacam um certo paralelismo, e as diferenças, na verdade reforçam ainda mais
o valor de cada texto, mostrando em contraluz a individualidade e procedimentos
diferentes que os dois poetas portugueses encenam para chegar a um epílogo, orientado
em ambos, para o negativismo, para a queda e a derrota, de ordem metafísica, na
consciência comum do vácuo do sentido de tudo.
Atlântica e lisboeta é a postura do sujeito poético em Ode Marítima, cujo percurso
se desenvolve num ciclo solar onde a poderosa e imaginativa máquina colocada
em movimento pelo volano, enlaça, em pleno sensacionismo, o inteiro e imenso
espaço-tempo marítimo, entre as horas do amanhecer e as do anoitecer no porto da
cidade portuguesa, para depois encontrarmos o poeta ainda imóvel no cais, imerso
num sentimento de angústia, de tristeza, e «no silêncio comovido da minha alma»,
como recita Álvaro de Campos; parisiense e circunscrita pelo espaço fechado de um
café protegido da luz solar, também Manucure, encena a própria ideia de dinamismo,
num espaço esse também fluído e móvel. No entanto, mais do que uma simples
viagem, trata-se de uma explosão multidirecional de sensações, na plena assunção
do lema futurista de palavras em liberdade, não gratuitas, mas com uma intenção
metafísica, traduzida em expressão estética, da pesquisa, da experiência totalizante,
num verdadeiro «sentir tudo de todas as maneiras» da Beleza pura, daquela «[…]
Arte com força centrífuga» sonhada pelo artista russo Zagoriansky no conto Asas
(SÁ-CARNEIRO, M. de, 1999: 118).
No entanto, enquanto que Álvaro de Campos deixa parar o volano e, lucidamente
desiludido, conforma-se com a impossibilidade do seu esforço titânico, Sá-Carneiro,
corre em direção ao seu fim, acabando por ficar disperso entre as palavras explodidas
e fragmentadas, já não sendo úteis para dizer a beleza, para dizer a poesia, para
criar então a realidade, condenando ao definitivo silêncio o dândi anacrónico e
incongruente, do qual a última mise en scène, Manucure, como extremo gesto poético,
se desenvolve no palco de um obscuro café de Paris.
Somando ainda estas reflexões a outras feitas até aqui, podemos afirmar que um
olhar mais distante permite ver nesta poesia «sem suporte», quanto a sua «intenção de
blague» seja aparente ou pelo menos redutora, embora também exista nos termos em
que «[...] o desejo de provocação do público [...] estava desde logo inscrito no código
genético do fazer vanguardista» (VASCONCELOS, R., 2015: 164). De facto, Sá-Carneiro
nela desenha literalmente, quase em timelapse fotográfico, o percurso seriíssimo,
da própria experiência estética. Na arte e poesia futurista e de vanguarda europeia,
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 25
Bibliografia Final
Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1966). Páginas Íntimas e de Auto – Interpretação. Eds.
COELHO, Jacinto do Prado e LIND, Jorge Rudolf. Lisboa: Ed Ática.
PESSOA, Fernando (1999). Correspondência 1905-1922. Ed.. SILVA, Manuela
Parreira da. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2000). Crítica, Ensaios, Artigos e entrevistas. Ed. MARTINS,
Fernando Cabral. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2012). Prosa de Álvaro de Campos. Ed. PIZARRO, Jeronimo,
CARDIELLO, António. Lisboa: Babel-Ática.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1999). Céu em Fogo. Ed. MARTINS, Fernando Cabral.
Lisboa: Assírio & Alvim.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (2001). Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando
Pessoa. Ed. SILVA, Manuela Parreira da. Lisboa: Assírio & Alvim.
Bibliografia Passiva
DE MARCHIS, Giorgio (2007). O silêncio do Dândi e a morte da Esfinge. Lisboa: IN/
CM.
GUIMARÃES, Fernando (1999). O Modernismo português e a sua poética. Porto:
Lello Editores.
JÚDICE, Nuno (1986). A era do Orpheu. Lisboa: Editorial Teorema.
LOPES, Óscar (1994). A busca de sentido. Lisboa: Editorial Caminho.
26 100 Orpheu Orietta Abbati
1 Em texto que pode ser datado de 1915 e tem no espólio pessoano da Biblioteca Nacional de Lisboa a cota
87A-19, Fernando Pessoa denuncia o equívoco: “O termo ‘modernista’ que por vezes também se aplicou aos
artistas de Orpheu, não lhes pode também ser aplicado, por isso que não tem significação nenhuma, a não ser
para designar – porque assim se designou – a nova escola pragmatista e exegética dos Evangelhos, nascida
adentro da Igreja Católica, e condenada pelo Papa, por excessivamente tendente a procurar a verdade.” Apud
Teresa Rita Lopes, Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, 1993, p. 263.
28 100 Orpheu Luís Machado de Abreu
2 Ver a sua exposição em Marc Angenot, Les Grands Récits Militants des XIXe et XXe Siècles Religions de
l’humanité et sciences de l’histoire. Paris, L’Harmattan, 2000.
A desabar catedrais..., ou o outro modernismo 29
todo o século XIX andou à procura de uma nova religião, para responder a uma
civilização que tinha entrado no domínio material do mundo e para responder
também ao pensamento filosófico, expresso por Schopenhauer, segundo o qual o
mundo não tem sentido, é uma vontade cega (LOURENÇO, E., 2015: 9).
nem uma sequer das divindades criadas sucessivamente pelo espírito humano
lhes poder bastar hoje; precisam de todas ao mesmo tempo, e ainda de algo mais,
porque o seu pensamento vai para além dos deuses. […] a verdadeira ‘palavra
sagrada’ não é uma palavra solitária, mas a sinfonia de todas as vozes que, juntas,
ressoam sob a abóbada celeste (GUYAU, M., 1890: 320-321).
3 Sobre o tema ver o erudito estudo de Vítor Aguiar e Silva, “A construção da categoria periodológica de
Modernismo na literatura portuguesa”, in: Luís Machado de Abreu (Coord.), Diagonais das Letras Portuguesas
Contemporâneas. Aveiro, Fundação João Jacinto de Magalhães, 1996, pp. 17-35.
4 Da vastíssima literatura sobre esta corrente modernista sublinho a obra já clássica de Émile Poulat, Histoire,
dogme et critique dans la Crise Moderniste. Paris, Casterman, 1962 (Obra reeditada em 1995 pela Albin
Michel) e de Pierre Colin, L’audace et le soupçon La crise du modernisme dans le catholicisme français
(1893-1914). Paris, Desclée de Brouwer, 1997.
A desabar catedrais..., ou o outro modernismo 31
BIBLIOGRAFIA
1- Introdução
Esta comunicação tem três objetivos simples. Por um lado, mostrar a importância
que a obra teórica, gráfica e pictórica de Kandinsky teve para Amadeo; por outro,
como as experiências dos movimentos de vanguarda foram absorvidas pela sua
pintura. Especificamente, como a sonoridade da cor e das formas é um processo de
libertação do exterior, de ida para o interior, para as profundezas1.
A procura da musicalidade, dos sons, do ritmo das formas, da vibração das cores
está presente desde os tempos de absorção e de aprendizagem que Amadeo passou
em Paris. A aceleração, a estilização e o alongamento das figuras, a sua suavidade
e delicadeza, associadas a movimentos e ritmos harmónicos e a um brilho intenso,
produzem pinturas dominadas pelos jogos de cores e cadências. Sem romper com
1 Agradeço reconhecida ao Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão/Fundação Calouste Gulbenkian
a autorização graciosa da reprodução das pinturas de Amadeo de Souza-Cardoso, e, de uma maneira especial,
à Senhora Dra. Ana Vasconcelos e Melo pelas facilidades concedidas.
36 100 Orpheu Maria Teresa Amado
2- Mil cordas
Como Bartok, Stravinsky e outros artistas da sua geração, Amadeo faz recolha de
canções. O pintor recria nas suas telas o espírito da arte popular e dos seus artistas.
São eles os detentores desta arte que os exprime. O que Amadeo tenta ainda captar é
a transmissão simultânea de uma vivência e de uma memória cultural que ultrapassa
a própria música. Surgem assim, entre 1915 e 1916, óleos, aguarelas, desenhos que se
concentram no instrumento musical: mostram guitarras, violinos, cavaquinhos. As
cordas têm valor simbólico para o pintor: a sua vibração desperta diretamente a alma,
«o instrumento das mil cordas»:
A cor é um meio para exercer uma influência direta sobre a alma. A cor é a tecla; o olho o
martelo. A alma, o instrumento das mil cordas. O artista é a mão que, ao tocar nesta e naquela
tecla, obtém da alma a vibração justa. A harmonia das cores baseia-se exclusivamente no
2 Os poemas, os desenhos e as gravuras da obra gráfica Klänge foram criados por Kandinsky entre os anos de
1908 e 1912, ano da publicação do álbum em Munique.
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 37
princípio do contacto eficaz. A alma humana tocada no seu ponto mais sensível responde.
A este fundamento chamaremos o princípio da Necessidade Interior. (KANDINSKY, V.,
2013: 21).
3 Pintura (Vida dos Instrumentos), 1915. Óleo sobre tela. 100 x 60cm. Museu Municipal Amadeo de
Souza-Cardoso.
38 100 Orpheu Maria Teresa Amado
aqui que Amadeo ensaia diversos níveis de profundidade. A parte inferior tem formas
mais indefinidas.
Cordas, molas, configurações metálicas, tubos, sinos são formas que ganham um
estatuto especial, de vida e autonomia nas composições de Amadeo.
No mesmo ano, Amadeo pinta dois óleos que intitula também Vida dos
Instrumentos. As Mil cordas marcam a presença nas telas, tal como vão marcar nos
outros quadros aqui apresentados. Observa-se uma grande semelhança nas formas e
no alinhamento espacial entre o óleo da figura 2 e a aguarela anteriormente analisada.
Mas a composição é mais complexa.
A partir de um eixo de simetria, Amadeo desloca o centro de gravidade do quadro
para direita e para cima. As guitarras têm uma base mais estreita e, por isso, embora
as cores contribuam para uma sensação de expansão, inspiram instabilidade. O
contraponto está no círculo azul e violeta, que absorve luz, som ou talvez tempo.
Também, do lado esquerdo e destacado, está o elemento dinâmico da pintura,
elemento que é, aliás, um leitmotiv dos seus quadros: o zig-zag, ou o braço mecânico
que comanda os instrumentos.
A sua verticalidade metálica é reforçada pela cor branca envolvente, estática. A
extremidade do braço, uma mão mecânica ou um espelho, é direcionada para fora,
absorve do exterior e comanda o núcleo de direita; interceta vários planos, criando
extensão e profundidade.
espaço do quadro com tons vai ser usada posteriormente, em 1917, como processo
de criação típico de Amadeo quanto à sucessão de inúmeros planos e sentido de
profundidade, por outras palavras, quanto ao fundo dos seus quadros.
4- Trou de la serrure
Trou de la Serrure PARTO DA VIOLA Bon ménage Fraise avant garde é o nome dado
por Amadeo a este óleo no catálogo da exposição realizada no Porto e em Lisboa, em 1916.
Trou de la Serrure insere-se num conjunto de 5 telas não figurativas, todas de
1916, de intensas e humorísticas sugestões, sinestesias; são pinturas aparentemente
leves, brincalhonas, alegres e otimistas. Viola e Morango7, Violino e Cereja8 podem
ser considerados dois pequenos estudos do óleo Luxúria do Violino, IMAN, Oscilação
Vermelha Cá dentro e ao ar livre9. São obras que transmitem a sugestão de sensações
– som, cor, paladar, sensualidade – atraídas para o interior, pelo IMAN. Esta última
pintura aproxima-se, plástica e iconologicamente, de Trou de la Serrure. Quanto à tela
Pato Violino Insecto, ela «grita» sons dissonantes e vibrações em contraponto com a
musicalidade do violino10.
Aparentemente Trou de la serrure PARTO DA VIOLA Bon ménage Fraise avant
garde é uma obra que comunica alegria e despreocupação no seu movimento: através
de simples sinestesias sonoras e cromáticas, a boa convivência chega-nos de dentro
para fora, e talvez também em via contrária. A profusão do título e a tendência para
o vanguardismo do autor prepara-nos para a abundância de sequências e de planos,
que é uma característica desta grande composição. Pela força da palavra, “trou de la
serrure”, obriga à orientação – O Buraco da Fechadura. Numa composição tão vasta
e variada, focaliza-se o olhar e descobre-se o círculo de cor clara, quase branca, com
um ponto escuro no centro, um olho no coração de um violino amarelo, instrumento
que quer expandir-se, mas está limitado: pela grande espessura das linhas curvas
vermelhas e pela abertura da caixa da viola, que permite ver o frio azul interior.
Neste contexto, o orifício central destaca-se. Num plano bem mais profundo, mais
indefinido, mas em ressonância, ele espreita e encontra o olho interior, uma metáfora
do buraco da fechadura. Há movimento, indicado pelas três linhas horizontais, cordas
que intercetam este plano mais profundo.
11 Dentro do conjunto Canção Popular são conhecidas quatro telas, a primeira, Sem título, datada de 1915-16,
é uma composição muito simples: a figura da boneca ocupa quase todo o espaço pictórico. As outras são
de 1916, Canção popular, Canção popular e o Pássaro do Brazil, e Canção popular a Russa e o Fígaro. Estas
três pinturas já integram nas suas composições as características “janelas/olhos” de Amadeu, revelando uma
melhoria progressiva quanto à sua elaboração plástica.
42 100 Orpheu Maria Teresa Amado
12 «A composição grande pode ser formada por composições menores, completas em si mesmas, ainda que
exteriormente possam parecer opostas, mas, mesmo através desta sua oposição, concorrem para o conjunto
da grande composição, de que fazem parte integrante. Deste modo, os vários objetos de um quadro (reais,
parcial ou totalmente abstratos) encontram-se dependentes de uma grande forma única. A transformação
profunda que recebem submete-os a esta forma; eles serão esta forma. A ressonância de uma forma isolada
enfraquece. Ela é apenas um dos elementos constitutivos da grande composição formal».
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 43
13 «No caso de um indivíduo altamente evoluído, o acesso à alma é de tal modo direto, a alma é tão aberta a
todas as sensações, que qualquer excitação faz reagir instantaneamente o olho – reação que lembra o eco ou
a ressonância de um instrumento de música cujas cordas estimuladas pelo som de um outro instrumento
vibrem em uníssono. Homens com uma sensibilidade assim apurada são como bons violinos com muito uso,
que ao mais pequeno toque vibra intensamente».
44 100 Orpheu Maria Teresa Amado
6- Conclusão
14 Há fósforos colados no canto inferior direito, sobre um pequeno pedaço de madeira e pintados de branco
sujo, quase impercetíveis – aliás, na mesma posição dos incendiários fósforos do quadro Entrada.
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 45
Bibliografia
3. Webgrafia
Nuno Amado
FLUL
estado anárquico, anárquico pelo próprio excesso de «forças vivas» em acção, conflito
e evolução interconexa e divergente» (PESSOA, F., 1999: 120-121). A ser assim, é
razoável afirmar que se tratam de duas crises diferentes, ainda que uma esteja na
origem da outra: a crise de indisciplina interior motivada por não saber o que fazer
com a heteronímia transformou-se, com a disciplina que a veio corrigir, numa crise
de incompatibilidade com os outros.
Essa correcção parece alcançada, ou perto disso, a 4 de Dezembro, pois Pessoa
fala a Côrtes-Rodrigues no seu «curioso estado de espírito actual» e anuncia «uma,
não menos curiosa, evolução que se tem dado em mim ultimamente» (PESSOA, F.,
1999: 134). É, aliás, possível precisar o dia em que essa evolução teve início. Num
manuscrito datado de 21 de Novembro de 19141, Pessoa diz que tomou «de vez a
decisão de ser Eu, de viver á altura do meu mister», e que reentrou de vez «na posse
plena do meu Genio e na divina consciência da minha Missão» (PESSOA, F., 2009:
117), exactamente algumas das coisas que diria a Côrtes-Rodrigues apenas dois meses
mais tarde. Pouco depois, acrescenta: «um raio hoje deslumbrou-me de lucidez.
Nasci» (PESSOA, F., 2009: 118). No final do manuscrito, de resto, Pessoa lembra-se
de registar a importância de notificar Côrtes-Rodrigues a respeito desta resolução, o
que torna inequívoca a relação entre a mudança que ocorreu naquele dia e o estado de
espírito resoluto que transparece na carta de 19 de Janeiro: «é o C[ôrtes] R[odrigues]
quem, de todos, melhor e mais dentro me comprehende. Diser-lhe isto» (PESSOA, F.,
2009: 119).
A 19 de Janeiro, a crise de que Pessoa fala já «não é de incompatibilidade [consigo]
próprio», como fora antes. Como faz questão de explicar a Côrtes-Rodrigues, «a
minha, gradualmente adquirida, auto-disciplina, tem conseguido unificar dentro
de mim quantos divergentes elementos do meu carácter eram susceptíveis de
harmonização» (PESSOA, F., 1999: 139). A explicação anterior é de tal forma
categórica quanto à evolução de que Pessoa falara anteriormente que é difícil ignorar
a diferença. No início de 1915, o problema de orientação artística que o aparecimento
dos heterónimos tinha criado fora vencido, e Pessoa sabia agora exactamente o que a
esse respeito se lhe impunha.
Em certa medida, a carta de 19 de Janeiro é norteada pela distinção entre actividades
artísticas sinceras e actividades artísticas insinceras: por actividades sinceras entende
1 Este manuscrito tem sido publicado ora como entrada de diário, opção tomada por Richard Zenith em
Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal (2003), ora como parte de um conjunto mais amplo
de textos sobre teoria estética, que é como o publica Jerónimo Pizarro em Sensacionismo e outros Ismos (2009).
Creio, no entanto, que a proximidade àquilo que Pessoa haveria de dizer a Côrtes-Rodrigues na carta de 19 de
Janeiro é flagrante e que tanto o tom, como os termos que Pessoa usa para descrever a sua evolução interior
permite pensar no texto como o ponto de partida, se não mesmo o rascunho, dessa carta.
Palhaçadas e Coisas Sérias 51
todas aquelas que resultam da «consciência cada vez maior da terrível e religiosa
missão que todo o homem de génio recebe de Deus com o seu génio» (PESSOA,
F., 1999: 140); actividades insinceras, inversamente, são todas aquelas que associa
à «ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e de um
plebeísmo artístico insuportável, de querer épater», ou seja, «tudo quanto é futilidade
literária, mera-arte», coisas que gradualmente lhe iam soando «cada vez mais a oco e
repugnante» (PESSOA, F., 1999: 140). Tudo isto aponta para o facto de, alguns meses
antes do lançamento de Orpheu, Pessoa estar inclinado a seguir um rumo diferente
daquele que viria de facto a seguir, com esse lançamento e com tudo o que lhe sucedeu.
A atitude plebeia que associava agora ao grupo de poetas do qual acabaria por
ser o máximo representante leva-o, por exemplo, a perder o entusiasmo inerente «à
ideia do lançamento do Interseccionismo», a enjeitar a publicação do «Manifesto
‘escandaloso’», a perceber o grau de insinceridade que havia em «coisas feitas para
fazer pasmar», em coisas «que não contêm uma fundamental ideia metafísica, isto é,
por onde não passa, ainda que como um vento, uma noção da gravidade e do mistério
da Vida», em tudo aquilo que, em suma, não é «escrito dramaticamente» (PESSOA, F.,
1999: 142), como o é a obra de cada um dos heterónimos. À excepção do que escrevera
nos últimos nove meses em nome de Caeiro, Reis e Campos, Pessoa parece renunciar
a tudo aquilo que de mais importante criara até à altura: «não são sérios os Paúis,
nem seria o Manifesto interseccionista de que uma vez lhe li trechos desconexos»
(PESSOA, F., 1999: 142-143), diz Pessoa a Côrtes-Rodrigues. O paulismo e o seu
sucedâneo, o interseccionismo, duas das vertentes da sua obra sobre as quais fundara
mais expectativas e que, não muito tempo antes, muito animavam a correspondência
com Sá-Carneiro, inserem-se assim na categoria de coisas insinceras de que Pessoa
tenta aqui desculpar-se. Em coisas como essas - remata Pessoa - «a minha atitude
para com o público é a de um palhaço» (PESSOA, F., 1999: 143).
Compare-se novamente o que é dito nesta carta com o que Pessoa escreveu no texto
de 21 de Novembro de 1914 em que descreve o seu renascimento deslumbrante. Tal
como na carta, o que Pessoa considera desprezível, neste texto, é «a idéa do reclame,
e plebêa sociabilização de mim, do Interseccionismo» (PESSOA, F., 2009: 117); tal
como na carta, também no texto a mudança de atitude decorre de estar «de volta da
minha viagem de impressões pelos outros» e de reentrar de vez «na posse plena do
meu Genio e na divina consciência da minha Missão» (PESSOA, F., 2009: 117); tal
como na carta, também no texto é descrita a libertação da influência dos outros e,
por conseguinte, uma recuperação da posse de si: «o ultimo rasto de influencia dos
outros no meu caracter cessou com isto. Recobrei – ao sentir que podia e ia dominar
o desejo intenso e infantil de ‘lançar o interseccionismo’ – a tranquila posse de mim»
(PESSOA, F., 2009: 117).
52 100 Orpheu Nuno Amado
O que é preciso ter é, além de cultura, uma noção do meio internacional, de não ter a alma
(ainda que obscuramente) limitada pela nacionalidade. Cultura não basta. É preciso ter a
alma na Europa. Escrever ao Sá-Carneiro expondo a nova orientação que é preciso tomar.
(PESSOA, F., 2009: 29)
Palhaçadas e Coisas Sérias 53
Ter ou não ter Europa na alma, eis então o que faz Pessoa balançar. A ideia é
retomada no rascunho de uma carta a Sá-Carneiro que Manuela Parreira da Silva,
com boas razões, situa algures em 19132. Aí, Pessoa apresenta um contraste exemplar
entre a mediocridade de alguns dos mais aclamados escritores portugueses da época
e a escrita do seu interlocutor: «v. escreve europeiamente! V. escreve sem ver a pátria,
e a sua obra, que eu creio genial, esbarra com o provincianismo constante da nossa
atitude. Para nós o universo está entre Mesão e Vila Real de Santo António.» (PESSOA,
F., 1999: 102). Ter Europa na alma, aquilo que faz com que Pessoa, pelo menos a
partir de Maio de 1913, manifestamente se afaste da Renascença e se aproxime de
Sá-Carneiro, parece ser então, em certa medida, fugir a ser provinciano.
A história desta fuga compreende, entre outras coisas, a adesão ao paulismo que
tanta histeria haveria de provocar em Sá-Carneiro, pelo que a mudança de opinião de
Pessoa a respeito da estética paúlica tem de ser um momento-chave de tal história.
Numa carta de dia 20 de Julho de 1914, Sá-Carneiro acusa a recepção de uma carta
na qual Pessoa terá associado o estado de alma do amigo a uma certa artificialidade.
Seja o que for que Pessoa lhe tenha dito, Sá-Carneiro concorda que já não tem estados
de alma, revela que nada sabe quanto à sua «vida artística», mas defende-se dizendo
que «esta mesma artificialização, este mesmo embalsamamento a salva, porque a fixa»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 131). É talvez possível especular, interpretando as palavras
com que se defende, que Pessoa se tenha queixado da artificialidade de Sá-Carneiro, e
que este tenha sentido necessidade de explicar a utilidade artística dessa artificialidade.
Mais ainda, é talvez possível especular, principalmente porque Sá-Carneiro emprega
o termo, que Pessoa tenha associado essa artificialidade precisamente ao paulismo:
«era desnecessário repetir-me a sua sinceridade dentro dela [a carta recebida], por
causa da literatura com que a ungiu. Eu nunca duvido dela em você – e foi-me mesmo
deveras grato esse paulismo intermediário...» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 131). O que
estou, de algum modo, a insinuar é que Pessoa terá sugerido que a atitude paúlica, a
que atribuiria agora uma artificialidade indesejada, deveria ser encarada como uma
atitude meramente intermediária. Assim se explica também, parece-me, o termo que
Sá-Carneiro emprega, algumas linhas depois, ao recomendar que Pessoa enviasse
uma colaboração para a revista Labareda, que surgira no Porto no início de Junho:
«Você é claro que faz muito bem em mandar para lá ultrapaulismo, mas bem ultra!»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 132).
2 Percebe-se, por aquilo que Pessoa diz no rascunho da carta, que Sá-Carneiro fizera publicar um artigo que
poderia valer-lhe algumas represálias. Segundo Manuela Parreira da Silva, é possível que Pessoa se estivesse
a referir ao artigo «O Teatro-Arte», publicado no jornal O Rebate, a 28 de Novembro de 1913, no qual
Sá-Carneiro «critica fortemente alguns dos visados» (PESSOA, F., 1999: 423) por Pessoa neste rascunho,
nomeadamente João de Barros, Joaquim Manso e Júlio Dantas.
54 100 Orpheu Nuno Amado
Desdobre-se você como se desdobrar, sinta-de-fora a como quiser, o certo é que quem pode
escrever essas páginas, se não sente, sabe genialmente sentir, aquilo de que me confessa mais
e mais cada dia se exilar. Saber sentir e sentir, meu Amigo, afigura-se-me qualquer coisa de
muito próximo. (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 123)
em você, meu Amigo, é isso só: não sente já ânsia de conhecer cidades, Europa, progresso,
porque tudo isso você viajou, hiperviajou, hiperconhece, hiperpossui ao escrever a sua
admirável obra. (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 123-124)
apenas alguns meses mais tarde, de Orpheu? Por outras palavras, para que servem
palhaçadas a que se deixou de achar graça? A carta de 19 de Janeiro de 1915 a
Côrtes-Rodrigues é, a esse respeito, mais uma vez esclarecedora:
Será talvez útil – penso – lançar essa corrente como corrente, mas não com fins meramente
artísticos, mas, pensando esse acto a fundo, como uma série de ideias que urge atirar para
a publicidade para que possam agir sobre o psiquismo nacional, que precisa trabalhado
e percorrido em todas as direcções por novas correntes de ideias e emoções que nos
arranquem à nossa estagnação. (PESSOA, F., 1999: 141)
Bibliografia Final
Porque a tradição é um movimento. Em princípio, não existe nenhum trabalho criativo que
não seja experimental, nesse sentido de que ele supõe vigilância sobre o desgaste dos meios
que utiliza e que procura constantemente recarregar de capacidade de exercício. A linguagem
encontra-se sempre ameaçada pelos perigos da inadequação e da invalidez. É algo que, no seu
uso, se gasta e refaz, se perde e ajusta, se organiza, desorganiza e reorganiza – se experimenta.
Como diria um poeta, essa é a própria lição das coisas (HELDER, H., 1964: 6).
12/9/70
Estou em casa de Fernando Pessoa com A. Digo: Fernando Pessoa já morreu. A. diz: não,
vais ver. Fernando Pessoa aparece: magro, com óculos, vestindo um fato cinzento. A.
apresenta-me: não sei se conhece… Conheço sim, diz Fernando Pessoa, já ouvi falar muito.
Fita-me com uma intensidade quase insuportável. Fala comigo um pouco e depois diz: Sim,
disseram-me que você era muito intelectual – e rindo – imagine o que isso pode significar
para mim… Ajoelho junto dele e beijo-lhe as mãos. Então ele projecta-se sobre mim como
se fosse uma sombra ou uma nuvem (HATHERLY, A., 1982: 28).
Ora, Fernando Pessoa é, por assim dizer, a ponta brilhante do enorme icebergue que é a poesia
portuguesa do século XX – icebergue por ser uma espécie de montanha semi-submersa de
poetas ilustres que, salvo raríssimas excepções, permanece ignorada e por isso urge divulgar.
Com efeito, nenhum poeta (ou artista) nasce no vácuo […]. Isto é: há sempre uma herança,
um suporte, seja ele conscientemente assumido ou não (HATHERLY, A., 1995: 175).
Assim, ora como sombra, numa atitude persecutória infinita, ora deslocada para
a esfera celestial; ora assumida ora denegada, a presença de Pessoa e seus colegas
d’Orpheu exerce evidente fascínio sobre Hatherly e seus colegas do Experimentalismo,
basta ver o depoimento dela na edição especial da revista Colóquio/Letras, por ocasião
do aniversário de Orpheu, em 1975:
Na literatura portuguesa moderna quase tudo o que não foi de vanguarda foi esse
sentimentalismo. Basta compararmos o Orpheu com a Presença ou o Surrealismo com
a Poesia Experimental com outras tendências suas contemporâneas para o verificarmos.
A sessenta anos de distância, o significado histórico do Orpheu é maximamente o de
ter sido um movimento de vanguarda. É assim que ele faz parte de nossa experiência
contemporânea. A sua sobrevivência é a sua permanência na nossa memória antológica
onde tudo se torna contemporâneo. Mas, se fosse necessário falar da influência directa
das obras que escreveram os poetas dominantes do Orpheu, eu diria que quando, numa
determinada zona da criatividade, se atinge com uma obra ou um grupo de obras uma
realização inultrapassável dentro do seu próprio espaço, a partir daí todas as verdadeiras
tentativas criadoras se voltam sempre para novos objectivos, novos sentidos. Essa é a sua
máxima competência criadora (HATHERLY, A., 1975: 8).
Orpheu na PO.EX: A tradição em movimento 65
Aqueles a quem ela se refere como os “poetas dominantes do Orpheu” são os que
mais encontram lugar na sua obra: Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Sá-Carneiro
e Almada Negreiros. São eles, aliás, que aparecem fundidos em “Algarismos Alfinete”,
de Saltette Tavares, no segundo caderno da PO.EX:
Fragmento
Bibliografia
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68 100 Orpheu André Luiz do Amaral
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Acerca de gênio e loucura:
especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de
outros autores
1. A associação entre gênio e loucura, ainda que não exatamente nestes termos,
pode ser vista em diversos autores, não apenas modernos, mas também antigos.
Em que pese a diferenças, por exemplo, entre o conceito de gênio na Antiguidade
Clássica e o conceito de gênio após o Iluminismo, tomando-se estes dois momentos
como balizas importantes, certas conexões autorizam a pensar em uma tradição de
longa duração, aproximando as ideias em questão. Apenas para ficar com algumas
passagens de relevo, falarei um pouco sobre traços da relação entre gênio e loucura
em autores anteriores a Fernando Pessoa e Artaud, representantes de posições
modernistas a respeito do problema, os quais, sobretudo, o primeiro, merecerão uma
atenção especial. Entre os outros autores estarão, de um lado, Platão e o enciclopedista
70 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim
2. Começo com um breve comentário sobre o Íon, de Platão. Neste diálogo, cuja
redação pode ser situada no século IV a. C., Sócrates, interrogando o rapsodo que
dá nome ao texto, discute o caráter divino do poeta, afirmando ser ele, na tradução
portuguesa de Victor Jabouille, «uma coisa leve, alada, sagrada» (PLATÃO, 1988: 51),
que «não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da
razão» (ibid.). A formulação é bastante atraente, sobretudo para os próprios poetas,
além de ser de remota tradição, associada a antigos mitos, a crenças sobre quem seriam
os portadores das palavras essenciais de uma comunidade, intermediários entre os
homens e os deuses. Segundo ela, o poeta, para alçar o voo que o faz ser mais do que
os homens comuns, aproximando-se das divindades, precisa perder a razão. Tomado
por um poder alheio a si mesmo, um sopro que o habita, sem que saiba como, tem ele
a função de dar a conhecer à sua comunidade mistérios de ordem sobrenatural.
Embora desprovido de arte, de ciência, o poeta se apresentaria, em mais de um texto
de Platão, efetivamente, como um ser especial, dotado de uma origem divina. Ainda que
esta não tenha sido suficiente para defender a presença do poeta na República, na obra
mais expressiva do filósofo grego, a ideia permaneceria. Acompanhando o raciocínio
de Ernst Robert Curtius sobre o Fedro, ter-se-ia, em Platão, com efeito, a exposição
pioneira da «teoria da loucura divina do poeta» (CURTIUS, E., 1979: 505), a qual, com
«outros atributos da mitologia antiga» (ibid.), chegaria à Idade Média e a atravessaria.
Saltando algumas porções de centenas de anos, mas não esquecendo a recuperação
humanista ou renascentista de muitas das obras mais conhecidas dos autores gregos
e latinos, bastante influentes nos séculos XVI e XVII, uma sorte de teoria do gênio
se encontra já relativamente sistematizada entre os iluministas franceses, com o
verbete da Enciclopédia dedicado ao assunto. Nele, hoje atribuído a Jean-François de
Saint-Lambert, relaciona-se o termo a uma forma de talento singular, mais ligado à
criação do que à compreensão e não reduzível às normas do bom gosto, que regem
ou deveriam reger a conduta dos demais indivíduos. Sublinha-se, então, uma clara
tendência de cisão entre a pessoa que se julga ter um talento superior e a ordem
estabelecida, destacando-se um necessário desconcerto, assim como a incompreensão
dos contemporâneos. Sugere-se a existência de singularidades irredutíveis, não
integráveis pacificamente ao conjunto da sociedade, marcadas pela recusa ou pela
dissonância em relação às instituições e práticas representativas da ordem, pilares
da normalidade. Fala-se, ainda, significativamente, no poder do excesso, associado à
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 71
1 A tradução, desta e de outras passagens, seja em francês, seja em inglês, corre por minha conta. No rodapé,
apresento os originais: Eis o texto da Enciclopédia: «Les hommes de génie forcés de sentir, [...] portant à l’excès
leurs desirs, leurs esperances, [...] me paraissent plus fait pour renverser ou pour fonder les états que pour les
maintenir».
72 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim
2 É em um trecho do poema «Adieu», fechando Une saison en enfer, que se diz: «Il faut être absolument
moderne».
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 73
autor)3, defendendo o desvio em relação ao «bom caminho» (id.: 83)4, assim como
a execração dos ancestrais5, julgados versificadores, mas não verdadeiros artistas.
Fazendo jus ao epíteto de poeta maldito, sem recuar diante da extravagância, com
postura provocativa, afim ao desejo de chocar, o autor se propõe a transformar a
própria alma em algo monstruoso6, a se tornar um crápula, avesso às leis de seu tempo
e de sua civilização. Somente forçando os limites de si mesmo, tornando-se «o grande
doente, o grande criminoso, o grande maldito» (id.: 89)7, o poeta acredita poder
chegar ao contato com «as coisas inauditas e inomináveis» (ibid.)8, meta última para
todos aqueles que se queiram, em sua perspectiva, «poetas do novo» (RIMBAUD, A.,
1999: 92)9 (grifos do autor), suficientemente fortes para «descobrir uma linguagem»
(id.: 91)10.
3 Tal desregramento se apresenta como condição para se chegar ao desconhecido: «Il s’agit d’arriver à l’inconnu
par le dérèglement de tous les sens».
4 No idioma de Rimbaud: «la bonne ornière».
5 Reivindica-se a liberdade, para os novos poetas, de execrar os ancestrais: «[...] libre aux nouveaux! d’execrer
les ancêtres [...]» (RIMBAUD, A., 1999: 87) (grifo do autor).
6 É o que afirma o poeta, na segunda das cartas ditas do vidente, em maio de 1871: «Il s’agit de faire l’âme
monstruese» (id.: 88).
7 Em francês, no original: «le grand malade, le grand criminel, le grand maudit».
8 Em francês: «les choses inouïes et innommables».
9 No texto original: «poètes du nouveau».
10 Na língua de Rimbaud: «Trouver une langue».
74 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim
11 O texto original é escrito em inglês: «thinks more accurately, feels more deeply, wills more
instantly».
12 Em inglês: «imaginative».
13 No original: «strongly creative».
14 No inglês de Pessoa: «profoundly original».
15 No texto de Pessoa: «simply incapable of adaptation».
16 Veja-se o original: «Men of genius both see more clear and dream more than common men».
17 No inglês de Pessoa: «a greater desire to comprehend».
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 75
Em alguns textos, exploram-se sintomas como uma certa «mania de dúvida» (id.: 48)18,
da qual se observariam vários traços presentes na constituição do gênio. Dá-se
realce, neste ponto, a características como a hesitação e a indecisão, consequências
de um constante interrogar a si mesmo, um «colocar a si mesmo muitas questões»
(id.: 51)19, as quais se acompanham da «ansiedade para achar [...] resposta» (ibid.)20.
Na perspectiva do autor, são comuns, entre os homens de gênio, assim como entre
indivíduos que apenas sofrem da mania de dúvida, mas sem a contrapartida criativa
que caracteriza os primeiros, elementos como a insanidade e o nervosismo, os quais
resultam, entretanto, não da falta de um intelecto privilegiado, mas de um «abuso
dos poderes de raciocínio» (ibid.)21, do «exaggero de uma faculdade» (PESSOA, F.,
2006: 137).
Com estas colocações, volta-se à natureza da ligação, no homem de gênio, entre
a consciência e a imaginação, a primeira sendo responsável pela clareza de visão,
conquistada, não raro, a duras penas, com a insistência do pensamento, a segunda
mais relacionada à parte criadora do fenômeno, à «invenção»22 (id.: 153) (grifo do
autor). O gênio, nesta perspectiva, que inclui a importância da ideia de originalidade,
não poderia existir sem a atividade que torna manifesta a criação23, a qual, por sua
vez, remete, novamente, à loucura24. Pessoa, mencionando Carlyle e Blake, afirma que
a «parte creadora do genio é a parte de loucura» (id.: 65) (grifo do autor). Em outro
fragmento, este já apontando para a ação dos homens de gênio sobre a sociedade
de seu tempo, implicando uma abertura ao futuro, afirma-se que «os creadores de
impulsos sociaes são os creadores da sem-razão» (id.: 64).
Aos homens de gênio, com efeito, é atribuída a ligação com o futuro, sendo eles vistos
mesmo como homens «do futuro» (id.: 61). Segundo Pessoa, estas figuras sentiriam
«antes dos outros homens a direcção de uma sociedade» (id.: 71) (grifo do autor),
5. Resta-me, pois, agora, amarrar alguns fios de contato entre Fernando Pessoa e
os autores de quem falei alguma coisa, ao longo do texto. As afinidades com Artaud,
para começar, são bastante evidentes, confirmando a ideia de que fazem os dois
parte de um mesmo universo de valores e posições, próprios dos modernistas da
primeira metade do século XX, os quais prolongam ainda formas de pensar advindas
da centúria anterior. Não apenas ambos os autores, efetivamente, discorrem sobre os
perigos que o gênio representaria para a sociedade de seu tempo, como concebem
a positividade deste perigo, a importância de uma ação convulsionante, sem a qual
o mundo, necessitando de transformação, não deixaria de ser o que é. Em ambos,
de modo significativo, ressalta a ideia de uma lucidez própria do homem de gênio,
superior, em muitos sentidos, à inteligência do homem comum, menosprezado tanto
em um quanto no outro autor, os quais, não raro, identificam-no com o burguês,
senhor dos negócios do mundo moderno, marcado, segundo Artaud, pela «inércia
burguesa» (id.: 9), pelo «conformismo larvar da burguesia» (id.: 10).
Pessoa, entretanto, repare-se, mostra-se mais meticuloso do que Artaud, no
conjunto dos seus raciocínios, fazendo distinções que este último não explora, seja
a que respeita à diferença entre o gênio e a simples loucura, seja aquela atinente à
separação entre o gênio e o criminoso, próximos, em sua conduta antissocial,
mas distintos no que tange ao poder de criação e à sua manifestação, de caráter
positivamente social, presente em um, e ausente no outro. Neste caso, as afinidades de
Artaud parecem ser mais evidentes com Rimbaud, e não, propriamente, com Pessoa,
cuja análise da constituição do homem de gênio, informada mesmo por referências
médicas e filosóficas, vai mais além.
Sob outro aspecto, se Pessoa explora a ligação com o futuro que seria própria
do gênio, Artaud fala em suas «faculdades de adivinhação» (id.: 9), os dois, neste
sentido, aproximando-se também de figuras tão díspares quanto são Kant e Rimbaud.
Naturalmente, o filósofo alemão não aprovaria o desregramento ou a monstruosidade
de que fala o poeta francês, indícios de um necessário afastamento em relação ao
gosto, bem como de uma postura mais radical, excessiva, do que equilibrada.
Relembre-se, todavia, que já em Kant se destaca a importância assumida pela ideia
de originalidade, articulada à recusa das «regras ou [...] formas prontas da tradição»
(SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado), conectada à oposição «ao espírito de imitação»
(KANT, I. apud SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado), da mesma forma que se realça
o caráter de exemplaridade daquilo que cria o homem de gênio, fornecendo modelos
para os que vêm depois, no futuro. Se, para Rimbaud, novos poetas, desde que se
disponham a enfrentar o tortuoso caminho da busca pelo desconhecido, começam
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 79
«pelos horizontes onde outro foi abatido» (RIMBAUD, A., 1999: 89)26, para Kant, os
produtos do gênio, embora «inimitáveis», constituem «os únicos meios de orientação
para a posteridade» (SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado).
Quanto a outros autores de que falei, é evidente a relação que existe entre Hegel e
Baudelaire, em particular, no que tange à posição que a fantasia assume, no processo
criativo, em ambos, como faculdade essencial. Para além disso, embora mais aberto à
articulação entre a produção poética e o mistério ou a magia, alijados de um mundo
controlado pela racionalidade, Baudelaire, como Hegel, não concebe a existência de
verdadeira poesia sem que o poeta tenha domínio do seu fazer, sem que se experimente
uma funda concentração do intelecto, voltado para o «trabalho» (FRIEDRICH, H.,
1991: 39), a «construção sistemática» (ibid.), a «construção formal» (ibid.) do poema.
Neste sentido, a afirmação de Hegel, de que seria «disparate acreditar que o autêntico
artista não sabe o que faz» (HEGEL, G., 1999: 283), refutando Platão, encontraria
ressonância na estética do poeta francês. Em particular, neste ponto, ambos também
se aproximariam de Pessoa, o qual não nega a importância do intelecto no processo de
composição poética, como quando, elogiando aquele que afirma ser o «maior homem
de génio» (PESSOA, F., 2006: 439) (grifos do autor) da Península Ibérica do século
XIX, Antero de Quental, claramente com ele se identificando, afirma se tratar de «um
dos mais conscientes, talvez o mais consciente poeta que jamais existiu» (id.: 438).
No que diz respeito ao iluminista Saint-Lambert, por sua vez, a oposição entre o
que se vê em seu verbete, na Enciclopédia, de um lado, e os alemães Kant e Hegel,
de outro, faz com que se possa dar relevo à posição intermediária de Pessoa.
Aproximando-se do francês, o poeta não pretende aderir às restrições da noção de
gosto, ainda associadas ao belo e à perfeição, adotando, ao mesmo tempo, a perspectiva
da cisão marcante entre o homem de gênio, em sua firme singularidade, e o vulgo,
incapaz de compreender aquele que estaria destinado a alterar o estado de coisas de
seu mundo, abrindo as portas para o futuro. As menções de Saint-Lambert a elementos
como a irregularidade ou o caráter «selvagem» (SAINT-LAMBERT, J.-F., 2013: não
paginado)27 dos produtos do gênio, a referência aos «edifícios atrevidos que a razão
não arriscaria habitar» (ibid.)28, de fato, parecem mais próximas de Pessoa, e mesmo
de Rimbaud, do que de Kant e Hegel, com os quais, entretanto, o enciclopedista, assim
como o poeta de Orpheu, não deixa de compartilhar algumas posições. Dentre estas,
vale destacar, por exemplo, a percepção da importância da imaginação, ou da fantasia,
Bibliografia
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“Orpheu” Regabofe Tiroliro
José Blanco
Resumo: A leitura das notícias e dos artigos publicados nos jornais da época (de que Mário de
Sá-Carneiro fez um caderno de recortes), revela que, ao lado da maioria de reacções negativas,
mais ou menos violentas e insultuosas, houve opiniões favoráveis aos colaboradores do Orpheu,
não apenas em Lisboa mas também em localidades da periferia, bem como na Galiza.
Orfeu, revista trimestral de literatura. Um grupo de novos escritores acaba de lançar uma
revista trimestral, Orfeu, que é uma espécie de resumo das várias correntes modernas na nossa
literatura. Mesmo que se não concorde com a orientação geral dos colaboradores da nova
revista, tem de se lhes reconhecer talento e iniciativa, coisas infelizmente raras entre nós,
sobretudo em assuntos destes. O primeiro numero de Orfeu, que temos sobre a nossa mesa,
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 85
contém variada colaboração das mais caracteristicas figuras de entre os novos. Inclui versos
de Mario de Sá-Carneiro, Ronald de Carvalho, Alfredo Pedro Guisado, e Côrtes Rodrigues, e
insere duas poesias futuristas (as primeiras, cremos, que aparecem entre nós) do malogrado
[sic] Alvaro de Campos. Em prosa, além da exquisita introdução de Luis de Montalvôr,
director da revista, ha um drama num acto de Fernando Pessoa. A capa de Orfeu, do lápis
de José Pacheco, é curiosissima.
Estes elogios foram sol de pouca dura. Logo três dias depois, em 30 de Março,
o jornal A Capital publicava, com grande destaque, um artigo verdadeiramente
assassino, dando o mote para a longuíssima série de diatribes que iriam ser lançadas
pela Imprensa sobre o Orpheu. Os títulos fizeram história:
“Orpheu”. Com este título acaba de ser posta à venda uma revista trimestral de literatura, que
em Portugal é dirigida pelo sr. Luiz de Montalvor e no Brazil pelo sr. Ronald de Carvalho.
Todos os colaboradores do seu primeiro número são aquelles que se convencionou chamar
novos, e aos novos a quem anima uma seiva ardente e um desejo intenso de crear procuram
dar a ultima e derradeira nota do pensamento, a mais moderna e a mais “rafinée”. Entre
esses novos encontram-se Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Alfredo Pedro Guisado, Alvaro de
Campos e outros. Na capa vê-se um curioso desenho de José Pacheco. Longa vida.
É uma empreza bastante arriscada esta que um grupo de moços poetas tentou ao publicar
o “Orpheu”. Não é uma literatura banal a que encontrámos dispersa pelas 83 páginas do
volume, mas uma literatura “para raros apenas”, como diria Eugénio de Castro.
E tanto assim, que logo toparam os seus fundadores com uma decidida má vontade da parte
dos litteratelhos, que em cenaculos baratos dizem a ultima palavra d’Arte, arranchando a má
língua às mezas dos cafés ou às portas das livrarias.
Sentiram esses litteratos gá-gás arrripiarem-se os nervos ao deffrontarem a audacia deste
grupo de cultores do Bello. Certo jornal [A Capital] (…) não viu nas paginas da revista uma
sombra de talento, ou uma nesga de Belleza; fingiu não conhecer os nomes, já affirmados em
anteriores trabalhos, de Mario de Sá-Carneiro, o altissimo poeta da “Dispersão”, o estylista
incomparável da “Confissão de Lucio”; de Fernando Pessoa, que nas páginas d’“A Aguia”
escreveu um profundo estudo sobre a “Poesia Portugueza”; de Luiz de Montalvor, ainda
ha pouco regressado do Brazil, onde escriptores de mór nome e os novos principiantes o
consagraram e lhe deram as maiores provas d’estima e de admiração; de Almada Negreiros,
o caricaturista da nova geração e que ora se affirma um artista da penna.
Fingem ignorar tudo isto os escribas que querem uma Litteratura só para elles. Continuem
os jovens poetas a sua obra e deixem fallar quem falla. Acaso se confundiu alguma vez o
grito da águia com o grasnar da gralha?
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 87
Na capital do Algarve, a revista Alma Nova, criada um ano antes pelo jornalista
Mateus Martins Moreno e que se intitulava “revista mensal ilustrada de arte, sciencias
e literatura”, publicou no seu número de Abril, na rubrica “Por Lisboa. Crónicas
de Arte”, um extenso artigo sobre o Orpheu. Com inteligência, sensibilidade e
objectividade, o seu autor, A. Bustorff, elogiava a revista e os textos nela publicados,
embora levantasse dúvidas sobre os poemas de Mário de Sá-Carneiro, que “por
excesso de Interseccionismo, descambam em Charadismo”. O Autor guardava os mais
francos elogios para Fernando Pessoa e para o seu O Marinheiro, sobre o qual fazia
um pertinente comentário:
Fernando Pessôa [sic], no Marinheiro parece querêr traduzir-nos o mais completo estado de
abstracção em que as almas podem cair. As interrogações seguem-se e acumulam-se num
alheamento de Vida e de Realidade, cavalga-se o Sonho, vai-se além do Real, penetra-se o
Além-Vida… Essa historia encantada do marinheiro perdido em longinqua ilha e levado
pelas saudades da pátria a criar em sônho uma pátria nunca possuída, é, na verdade,
sentidissima. Como o marinheiro integrando-se no seu sonho até fazer da Irrealidade
Realidade, tambem nós, seguindo a historia, fomos por ela possuidos, caindo numa
abstracção doentia e aniquiladora. Era este o fim do senhor Fernando Pessôa? Se o era,
realisou-o por completo.
Porque é blague com certeza, essa “Ode Triunfal”. Blague que colocada na boca dum
nevrótico, dum neurasténico e espírito desordenado como esse hipotético engenheiro
Alvaro de Campos, toma o carácter e merece os louvores inerentes a uma página de
psiquiatria completissima. Por ela felicitamos o seu autor-editor, senhor Fernando Pessoa.
Merece-o.
O autor deste ainda hoje notável texto era um jovem que acabara de fazer vinte
anos e se chamava, de seu nome completo, António Júdice Bustorff Silva. Viria a
ser, anos mais tarde, um dos dois mais famosos advogados portugueses do século
XX, juntamente com o seu rival José de Azeredo Perdigão, que foi o primeiro e o
grande Presidente da Fundação Calouste Gubenkian. Azeredo Perdigão, se não fez
propriamente parte do grupo do Orpheu – era um jurista, não era um escritor – estava
ligado por íntima amizade a alguns dos seus membros, nomeadamente a Alfredo
Pedro Guisado e a António Ferro, que vemos nesta fotografia.
A foto faz-nos pensar em como era jovem a gente do Orpheu. Em 1915, António
Ferro tinha 20 anos de idade; Ronald de Carvalho e Almada Negreiros, 22; Alfredo
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 89
Uma grande obra, com efeito, se propõe erguer esse grupo gentil de inteligencias, que
não pretende Forma mas pretende Essencia, que não anseia Altura mas que busca
Motivo e Côr.
Adivinha-se em toda aquela Realisação o Verbo ignorado e obscuro duma Sinceridade!
Não ha linhas de Colorido nem perfumes de Violeta a engrinaldar em Destaque esse Mundo
90 100 Orpheu José Blanco
Nesse “Orpheu” tão discutível e tão perturbador não encontro só joio. De momento a
momento encontro vislumbres de Arte e pensamentos apreciáveis. É possivel que esses
que têm uma teoria para a escola que pretendem estabelecer, a introduzam em Portugal,
depois de facetada e de purificada dos sem valor que nada mais fazem do que ocupar
espaço.
Apareceu ha dias nas montras das livrarias uma revista literaria, Orpheu de nome, orgão de
meia duzia de preopinantes, que resolveram lançar neste país o futurismo das letras, dar nas
vistas e irritar os indigenas. Mais ainda que os disparates poeticos que a obra contém me
irrita a campanha indecente que as gentes do meu país fizeram aos homens que ali lançam
as suas produções literarias.
A “Capital” de Lisboa tratou os escreventes de imbecis e mais coisas feias e o Sr. Camacho
da “Lucta” mandou a Rilhafoles perguntar ao dr. Julio de Mattos se tinham o juizo todo.
Que diabo, não compreendo porque tamanho reboliço com estes homens de letras quando,
p’la província qualquer sapateiro se julga com o direito de dedilhar a lira d’Orfeu no
intervalo de duas tombas.
De resto, vá de dizer que Orpheu, ao pé de muita coisa disparatada mas que o autor pôde
julgar excelente, tem produções de gente ajuizada, melhores algumas do que muitas
assinadas por criaturas que criticam a revista.
Aquilo é bonito e, palavra d’honra, eu gosto de muitas coisas que lá vêm. Vi lá mesmo
um bocado de prosa do sr. Fernando Pessoa – O Marinheiro – que é um primor de arte e
literatura.
Mas ha quem não goste porque a revista prospera e este país é um coio de invejosos onde
ninguém pode medrar nas letras sem o perigo de levar um coice do primeiro fazedor de
prosa que aparece a um canto…
E o que é verdade é que este grupo de rapazes audaciosos, se algo mais não conseguiu para
o bem próprio e das letras pátrias, pelo menos deu nas vistas e irritou o indigena, coisa que
não pode deixar de merecer o meu aplauso e a minha simpatia profunda.
Pois venha de lá o 2º. Orpheu, para ver outra vez no ar as ferraduras dos críticos literários
do meu país.
Filho de emigrantes galegos em Lisboa, Alfredo Pedro Guisado teve desde cedo
uma ligação muito estreita com a Galiza, mantendo uma rede de relações e contactos
com escritores e intelectuais galegos. Colaborador habitual do semanário El Tea, já
antes de 1915 numerosas produções literárias suas tinham sido publicadas na Galiza.
Não é de estranhar, portanto, que o primeiro número do Orpheu tenha sido desde
logo conhecido na Galiza e merecido referências críticas nos jornais galegos.
Uma das primeiras apareceu no jornal El Eco de Santiago, assinada por Juan Barcía
Caballero, médico de profissão e homem de letras, de 63 anos de idade, respeitado
autor de poesias e prosas de gosto bastante conservador
Finalmente, num outro jornal de Vigo não identificado por Mário de Sá-Carneiro,
um crítico que assina apenas com as iniciais R.R., contesta a opinião generalizada na
Imprensa portuguesa de que o Orpheu era uma “rapaziada”:
E exclama no final:
Y hemos de terminar este brevísimo trabajo, dando un fuerte y sincero hurrah! a esos rebeldes
artistas que com tanta valentia y arrogancia vuelven los ojos hacia lo porvenir, despreciando
com una sarcástica sonrisa bajezas, odios y desplantes de cuatro miserables sapos.
Aqui chegados, pergunta-se: mas que tem tudo isto a ver com o título deste texto
– “Orpheu – Regabofe Tiroliro”? Eis a explicação: esta insólita expressão está ligada à
consagração popular definitiva do Orpheu, através da sua subida ao palco do teatro
de revista.
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 95
É pena que não seja possível ouvir a música que Thomás Del-Negro e Bernardo
Ferreira compuseram para esta divertida letra de Ernesto Rodrigues, Felix Bermudes
e João Bastos, talvez a melhor das muitas paródias a que o Orpheu deu origem. Mas
é possível imaginar que os jovens autores do grupo do Orpheu tenham ido ver a
revista – e tenham achado graça à brincadeira…
Orpheu da Arábia
A temática arábico-islâmica no Modernismo português
Fabrizio Boscaglia
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
1 Pessoa e outros autores citados neste artigo utilizam, na maior parte dos casos, o substantivo e adjetivo ‘árabes’
conforme um costume das Letras portuguesas, num sentido abrangente e cientificamente pouco rigoroso,
para falar dos muçulmanos e da Civilização Islâmica em geral, e não apenas dos naturais da Arábia ou dos
arabófonos (cf. BOSCAGLIA, F., 2015: 44). Sobre a «designação cómoda e genérica» de «Árabes» nas Letras
e na historiografia portuguesas, veja-se a voz «Árabes na Península» no Dicionário de História de Portugal de
Joel Serrão (1984-2000, vol. 1: 166).
100 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia
Segundo Mora, este «elemento arabe» (ou «spirito arabe» ou «arabismo») tinha ficado
latente durante as Cruzadas e a Inquisição católicas («eterno ponto morto do christismo
peninsular») e estava a reemergir na cultura nacional através do Sensacionismo
(PESSOA, F., 2009: 222-223), graças ao renovado contexto político e cultural
determinado pela implantação da República Portuguesa (1910), nomeadamente pelo
intrínseco anticatolicismo desta: «Os sucessivos sucessos revolucionários portuguezes
acabaram por destruir o catholicismo como fé real. [...] Com isso ficou preparada a
emergencia do outro elemento da nossa psyche, até ahi latente: o elemento arabe.»
(PESSOA, F., 2002: 223).
A convicção de a República ser essencialmente «anti-catholica» deve-se a uma série
de medidas («leis anti-catholicas») tomadas logo após a implantação da mesma, que
culminaram na promulgação da Lei da Separação entre Estado e Igreja (1911). Este é o
âmbito político e cultural em que Mora situa a ação dos sensacionistas: «Nascidos com a
geração que estabeleceu a Republica, são, no fundo, anti-catholicos» (PESSOA, F., 2009:
223-226).
Para melhor contextualizar estes elementos, considero necessário referir previamente
alguns elementos da presença arábico-islâmica na história e na história cultural
portuguesas2. Antes e durante o nascimento e o estabelecimento do Reino no contexto
das Cruzadas e da chamada Reconquista (1139), os muçulmanos administraram uma
grande parte das terras lusas (711-1249), deixando um relevante legado literário,
cultural e civilizacional no nascente Reino de Portugal. A partir do século XVI,
logo após a expulsão de muçulmanos e judeus (1496) e com o início da Inquisição
(1536), consolida-se nas Letras portuguesas um processo de parcial ocultação e
menosprezamento deste legado, também condicionado pelo clima religioso e cultural
das novas Cruzadas contra os Otomanos (conquistadores de Constantinopla em 1453).
Com efeito, a literatura e o discurso cultural nacionais irão incorporar durante muito
tempo uma representação estereotipada do muçulmano enquanto o outro, infiel e
inimigo, que consubstanciará aspetos do mito e da narração identitária da portugalidade
ainda no século XX (cf. VAKIL, A., 2003: 257-260). Exemplo paradigmático disto são as
menções aos «Mouros enganosos» e ao «malvado Mouro» n’ Os Lusíadas de Camões (I,
101, 1; II, 7, 6). Apesar disto, durante os séculos das Cruzadas e da Inquisição existem
também alguns casos de arabofilia e de reconhecimento do legado arábico-islâmico em
Portugal, nomeadamente nos romances e nas lendas populares e ainda na dramaturgia
do século XVI (ALVES, A., 2009: 75).
4 Tradução de Pedro Serra. No original: «dominating, restructuring, and having authority over the Orient»;
«a style of thought based upon an ontological and epistemological distinction made between “the Orient”
and (most of the time) “the Occident.”»; «aberrant, undeveloped, inferior»; «rational, developed, humane,
superior»; «dogmas»; «exist in their purest form today in studies of the Arabs and Islam» «despite or beyond
any correspondence, or lack thereof, with a “real” Orient» (SAID, E., 1979: 2-6, 300-301).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 103
6 Algumas referências textuais inerentes a este debate são fornecidas por Kamila Koncová (2011: 28-31).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 105
Fado e Saudade foram reconduzidas pela Arabística portuguesa7 aos vestígios árabes
da língua portuguesa: ‘saudade’, vindo da palavra árabe sawdā’, ‘melancolia’; e ‘fado’,
de hadū, ‘cantilena de caravana’.
Estas vertentes etimológicas e conceptuais poderão ser utilizadas numa abordagem
comparativa e hermenêutica dos textos de Teixeira de Pascoaes (1987 [1919]: 51-52)
sobre a Saudade enquanto essência psíquico-espiritual da raça portuguesa: «[a]
melancolia árabe e o Panteísmo do norte, definiram, num meio concordante, a alma
dos lusíadas, que se contém no seu primordial e original sentimento da Saudade.». A
oportunidade de se citar Pascoaes neste contexto é justificada pelo facto de Orpheu
se situar, também e em concreto no percurso biobibliográfico de Pessoa, como aquela
revista que, ao distanciar-se do Saudosismo, também se colocava num diálogo crítico
e ativo com ele, como é evidente nesta passagem de Pessoa, escrita por volta de 1917,
possivelmente como comentário a Arte de Ser Português8 de Pascoaes (1915):
Tal como Pascoaes, outro artista natural de Amarante foi Amadeo de Souza-Cardoso,
pintor cuja participação no Orpheu era planeada para o número 3 da revista, que
não chegou a ser publicado na altura. Numa carta enviada à sua futura esposa
Lucie Meynardi Pecetto, em 1910, Amadeo escrevia: «Ha tormentos dentro de mim,
alegrias momentaneas, estados de uma alma complicada. É o sangue arabe que me
gira cá dentro, o sangue visionario, fervendo sem cessar, supersticioso, profundamente
tragico.». Noutra carta dirigida à sua amada, lê-se: «Ontem em Aveiro tinha grandes
desejos de te ter commigo. Aveiro é todo penetrado de canaes do mar, a paysagem é de
um horizonte infinito, a cidade branca como uma mesquita arabe.» (SOUZA-CARDOSO,
A., [1890-1988]: ASC 12/09, 12/04).
Uma veia arábico-islâmica na auto-observação psicológica do próprio Amadeo
bem como na caraterização da paisagem portuguesa é reconhecida pelo artista neste
momento de intimidade e privacidade transposto para carta. Elementos da temática
arábico-islâmica na obra Amadeo são evidentes no caderno de desenhos XX Dessins
9 A palavra árabe qaṣīdah indica um tipo de poema árabe, que pode chegar a ter mais de cem versos.
10 Os referidos poemas foram publicados por Franz Toussaint sob o título «Kacidas mauresques du X.e siècle».
11 Espaço deixado em branco pelo autor, por razões gráficas e estéticas.
12 O manifesto intitula-se Exposição Amadeo de Souza-Cardoso.
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 107
Em minarête
mâte
bate
leve
verde neve
minuette
de luar.
14 A temática arábico-islâmica em Almada Negreiros foi objeto de uma minha comunicação no Colóquio
Internacional “Almada Negreiros: un trait d’union tra arti e culture” (Universidade de Pisa, junho de 2015).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 109
15 Nos textos sensacionistas, Pessoa (2009: 189) utiliza a «palavra internacionalismo, ou sua synonyma
cosmopolitismo».
16 Pessoa (1980: 223) afirma que o «cosmopolitismo europeu» é uma das «bases da nossa civilização».
110 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia
[Os sensacionistas têm] a vantagem typica do spirito arabe: a universal curiosidade activa,
com que acceitam as influencias de todas as bandas, lhes aprofundam o sentido, lhes reunem
os resultados e finalmente as transformam na substancia do seu proprio spirito. (PESSOA,
F., 2009: 223)
17 Repare-se que a 1 de julho de 1917 o sensacionista Fernando Pessoa publicou – enquanto «Director de
Orpheu» – o poema «A casa branca nau preta» (escrito a 11 de outubro de 1916) no jornal O Heraldo de Faro
(n.º 388).
18 Leia-se: «Não há compulsão na religião.» (II, 256).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 111
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Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 113
Resumo: A revista Orpheu é uma publicação ímpar na história cultural Portuguesa, a sua
brevidade é sintomática do nosso modo de estar. É contudo sobre Fernando Pessoa que este
texto incide. Defendemos que não é possível uma compreensão ampla de Pessoa sem analisar a
importância da Filosofia na sua obra. Para sustentar esta afirmação: «Numa curta comunicação
e numa dezena de páginas, não ousarei mais que utilizar uma pequena comparação e apontar
alguns fragmentos e apenas de uma das suas obras, O Livro do Desassossego. Convoquei dois
filósofos para estabelecer esse diálogo, Cioran e John Gray.»
Fernando Pessoa, este nome ultrapassa há muito qualquer radicação num texto,
numa ação, num livro ou mesmo na obra, com todas as vantagens e riscos de tal
metamorfose. Podemos falar de Pessoa, ter sobre ele uma opinião e nada conhecer ao
certo da sua obra. Algo transcendeu em muito o autor e o seu trabalho.
Corremos o risco de quando dele falamos ou o analisamos, referir, não já Pessoa
e a sua obra, mas o meu Pessoa, o teu Pessoa, o Pessoa do grupo y ou do grupo x, o
116 100 Orpheu João Maurício Brás
Numa curta comunicação e numa dezena de páginas, não ousarei mais que utilizar
uma pequena comparação e apontar alguns fragmentos e apenas de uma das suas
obras, O Livro do Desassossego. Convoquei dois filósofos para estabelecer esse diálogo,
Cioran, John Gray.
As citações de Pessoa que utilizo referem-se, portanto, unicamente a esse livro. A
minha conceção tem pouca ou nenhuma relevância, mas como amador considero o
Livro do Desassossego o seu registo autobiográfico por excelência e que só poderia ser
literário. Refira-se que a autobiografia de Pessoa teria que ser algo de essencialmente
mental, «sendo a vida essencialmente um estado mental». O Livro do Desassossego é
uma autobiografia mental de um escritor.
«A vida só se tornará suportável no seio de uma humanidade a que não reste nenhuma
ilusão, uma humanidade completamente desenganada e feliz por o estar.»
«Onde estão as minhas sensações? Desvaneceram-se…em mim, e o que é isso senão a soma
dessas sensações?».
à sua morte em 1995. Ambos escritores e pensadores geniais, marginais no seu tempo,
mas depressa canónicos e eternamente condenados ao mal-entendido da apropriação
pelos pares, às emoções dos leitores e aos dogmas à peça dos académicos.
Pensadores subjetivos e fragmentários. Escreveram primeiro que tudo para
expressar um tremendo desacordo com a vida e tiveram em comum a capacidade
de expressar esse desacordo, que adquire corpo, principalmente nas suas existências,
através das palavras, se bem que ambos desconfiassem das palavras.
Lucidez, desengano, tédio, um pensar orgânico e visceral, a impotência de agir, a
sabedoria mais que o conhecimento, a importância e problematização da clarividência,
o horror e fascínio de ser humano, a inanidade do sentido e da vida, são lugares
primordiais que ambos percorrem de modo muito idêntico. A consciência dolorosa das
nossas alienações, as limitações da nossa condição, o Shakesperiano asco perante a nossa
fragilidade, a dor da diferença e a necessidade de um saber como suportar a vida, em
que cada um encontra o seu conjunto de estratégias vitais, são programáticos em ambos.
São autores demasiado singulares, Pessoa será sempre e unicamente Pessoa, e o
mesmo sucede com Cioran, mas o estado mental, o modo de estar e ver têm muito
em comum. Sendo a respetiva singularidade um traço fundamental assim como o seu
pensar subjetivo, como alcançaram o respetivo reconhecimento?
O pensador subjetivo parte do que sente, do que vive, dos seus caprichos e
transtornos, mas alcança, pela intensidade da experiência particular, aspetos universais
do estar humano. O particular eleva-se ao universal, porque toca o fundo da vida2.
Também Fernando Pessoa, como Cioran, se insere numa longínqua tradição3.
Aquela que de Theognis a Beckett revela muitas dúvidas sobre a legitimidade do ser
humano e sobre as visões predominantes do mundo, ordenado, quotidiano, arrumado
e vigente, o tal mundo tributável. «É outra vez o horror de sempre, – o dia, a vida, a
utilidade fictícia, a atividade sem remédio (…). Sou eu outra vez, tal qual não sou»
(PESSOA, F., VOL II, 1982: 325).
Como viver quando se alcança essa “pavorosa ciência do ver”? Que já não é apenas
sobre um pessoa, lugar ou situação concreta, mas que adquire a ressonância da
própria condição humana? Como viver ainda? E viver, é principalmente na nossa
mundividência, ação.
O Ocidente moderno tem um dos seus pilares fundamentais no culto da ação. É
o agir que realiza e transforma. Sem a ação não há progresso. O êxito, o sucesso, o
mérito advêm principalmente da ação.
2 Fundo da vida primordial, originário, deveriam constituir as características do que se chama verdade.
3 Por exemplo, para Homero, o homem é o ser mais desgraçado de todos aqueles que respiram e existe, para
Platão a vida é desventura, e melhor teria sido para o homem não existir.
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 119
4 Pessoa quis agir, mas algo se impõe à vontade de agir. Veja-se o exemplo da Mensagem, e a tese original de
Onésimo Almeida, em Pessoa, Portugal e o Futuro (Gradiva, 2014), a estratégia de criar e utilizar mitos como
guia para ação, no que é um projeto político baseada numa teoria pragmática da verdade.
120 100 Orpheu João Maurício Brás
5 A entrevista referida foi publicada originalmente no jornal espanhol El País de 25 de outubro de 1990.
6 O tédio é um problema de saúde pública, não interessa aos poderes instituídos, nunca foi bom para a ação.
Parece algo muito literário, mas seria devastador, uma maré de tédio, populações abúlicas, meditativas,
críticas, questionadoras e distanciadas e separadas da vida que vivem sem porquê. Uma multidão lúcida
da sua condição, abúlica por opção, crítica e cética sobre as grandes ilusões humanas, seria o fim quer da
civilização frenética, quer da ideia de homem moderna e ocidental.
7 Se, em Pessoa e Cioran a impotência para agir e o tédio não estão explícitos nos muitos milhares de páginas
escritos, surgem contudo de modo implícito em todas elas. Constituem um fundo criativo e estruturador.
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 121
*
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 123
qualquer excesso biologista, antes coloca razoabilidade face aos delírios egocêntricos
da nossa espécie, e aos consequentes devaneios que vivemos como se de verdades se
tratassem. Não somos o princípio e o fim de tudo, nem o sentido do mundo se esgota
em nós, nem tão pouco somos o centro do universo.
O que acabei de expressar, são lugares comuns, mas na verdade vivemos encerrados
na nossa espécie, no nosso universo verbal, nas nossas logomaquias e mitologias, ou
seja vivemos baseados em falsas crenças.
John Gray cita Pessoa no Sobre os Humanos e Outros animais: «Se considero com
atenção a vida que os homens vivem, nada encontro nela que a diferencie da vida que
vivem os animais. Uns e outros são lançados inconscientemente através das coisas e do
mundo; uns e outros se entretêm com intervalos; uns e outros percorrem diariamente
o mesmo percurso orgânico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem
vivem para além do que vivem. O gato espoja-se ao Sol e dorme ali. O homem espoja-se
à vida, com todas as suas complexidades, e dorme ali. Nem um nem outro se liberta
da lei fatal de ser como é.» (GRAY, J., 2007: 117).
Somos animais como quaisquer outros, a nossa superioridade assenta numa
auto-ilusão, somos os melhores no nosso mundo, como as espécies animais são
melhores no mundo delas. Claro que podemos tentar libertar-nos dos nossos
constrangimentos naturais, não só já no plano da crença, seja nas ideologias religiosas
ou laicas, pois temos a tecnologia, mas sabemos como são funestas essas aventuras e
têm principalmente um carácter não essencial, mas instrumental e reversível. Como
podemos discutir a “superioridade” de uma espécie a partir exclusivamente da visão
dessa própria espécie?
Uma das principais teses de John Gray diz-nos que a modernidade e os ideais
iluministas, as crenças laicas, não passam de reapropriações do cristianismo. A
modernidade e mesmo os seus movimentos mais revolucionários são a continuação
da religião por outros meios. O homem é principalmente um criador de mitos. Lemos
em Pessoa: «Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade,
pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como
deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.» (PESSOA, F., VOL I, 1982: 38)
Este é apenas um exemplo das possibilidades filosóficas que decorrem dos textos de
Pessoa, autor que permite continuar a dialogar com outros deste século e certamente
dos próximos, marca da profundidade de um pensamento fundamental.
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 125
Bibliografia
Marco Bucaioni
Università della Tuscia, Viterbo
Não é novidade alguma que Fernando Pessoa obteve fortuna editorial, crítica e
de público na Europa e no mundo. A Itália, não constituindo excepção nisto, é aliás
um dos países em que o maior poeta português do século XX atraiu mais atenção
por parte dos tradutores, das editoras e dos académicos. É quase redundante,
neste contexto, citar a incontornável figura do professor e escritor Antonio
Tabucchi, notabilíssima figura de intelectual quer em Portugal, quer em Itália, e
com certeza a pessoa que mais contribuiu para a “exportação” da figura e da obra
de Fernando Pessoa para Itália. Com igual certeza podemos e temos que afirmar
que Tabucchi, especialmente nos últimos anos, não esteve sozinho nesta tarefa de
tradução pessoana para italiano: muitos outros académicos, tradutores e editores
trabalharam e trabalham para continuar a desvendar os mil e um recônditos cantos
do fragmentário legado pessoano em Itália.
Aliás, hoje em dia já temos grandes contingentes de “pessoanos” italianos,
talvez mais numerosos do que outros contingentes estrangeiros, muitos dos quais
radicados e a trabalhar em Lisboa em directo contacto com o espólio e com o
“espírito” pessoano, para contribuir para esta eterna e inesgotável “leitura” de
Fernando Pessoa.
Se também é verdade que a obra de Fernando Pessoa foi recebida de forma irregular
e nem sempre paralela aos avanços da crítica pessoana portuguesa (assimetrias estas
objecto do trabalho de muitos dos acima referidos pessoanos), nem por isso podemos
128 100 Orpheu Marco Bucaioni
dizer que Pessoa seja um autor pouco conhecido na península mediterrânica, sendo
talvez o único autor português, a par do Prémio Nobel Saramago, conhecido pelo
vasto público italiano.
Em consequência disto, a parte da obra em verso de Fernando Pessoa que
podemos chamar poesia modernista, quase toda contida na obra do heterónimo
engenheiro Álvaro de Campos, já tem uma história de traduções e de edições
diferentes em Itália.
As duas mais importantes, contudo, são a tradução do próprio Antonio Tabucchi,
contida parcialmente dentro da célebre antologia pessoana Una sola moltitudine
(TABUCCHI, A., 1978), e depois publicada em separado, na sua totalidade (até à data),
no volume Poesie di Álvaro de Campos (TABUCCHI, A., 1993) e a mais recente de Piero
Ceccucci e Orietta Abbati, incluída na antologia de bolso em dois volumes da poesia
pessoana, debaixo do título Il mondo che non vedo, e publicada pela BUR (que contém
poesia ortónima) (CECCUCCI, P., 2009) e Un’affollata solitudine (que contém poesia
heterónima), também publicada pela BUR (CECCUCCI, P., 2012). Existem outras
publicações que contêm parcialmente ou inteiramente (até à data) a obra de Campos1.
A razão pela qual, contudo, as primeiras duas edições citadas são consideradas mais
importantes é simples: são as únicas duas edições publicadas por chancelas prestigiadas
de projecção nacional, e que efectivamente se encontram a todo o momento no
mercado, tendo-se encarregado a Adelphi de reimprimir e distribuir quer a antologia
quer a publicação independente com a poesia de Campos continuamente desde a sua
primeira publicação. Nesta comunicação vão ser analisadas as duas traduções da Ode
Marítima de Tabucchi e de Ceccucci/Abbati, tomando este poema como simbólico de
toda a produção de Campos, sendo o maior do ponto de vista material e um dos mais
significativos e marcantes do período modernista português.
A mesma sorte não tiveram, misteriosamente (ou não), os autores que, na segunda
década do século XX, integraram o cenáculo literário a que Pessoa pertencia: José de
Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro. Certo é que o principal e mais conceituado
promotor da fama de Pessoa em Itália, o acima referido Antonio Tabucchi, não fez
muito para que o público italiano ganhasse conhecimento destas duas figuras (o
que aconteceu, em geral, com o resto da literatura portuguesa tout-court). Em geral,
parece que, mesmo os que dedicaram uma parte consistente da sua actividade ao
estudo e/ou à tradução de Fernando Pessoa, concentraram-se muito nele, ignorando
o resto, o que, considerando a vastidão, a heterogeneidade e a profundidade do legado
pessoano, talvez seja mais do que justificável.
1 A primeira foi a de Luigi Panarese, Poesia di Fernando Pessoa, Milano, Lerici Editori, 1967.
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de tradução d’A Cena do Ódio ... 129
Pelo que diz respeito a Almada Negreiros, um possível obstáculo à sua tradução e
publicação no estrangeiro pode ter sido o facto de ainda não terem passado os setenta
anos desde o falecimento do autor, necessários para que, segundo a lei portuguesa, os
direitos de autor, e os conseguintes direitos de tradução, revertessem para o domínio
público, desincentivando desta forma as eventuais iniciativas editoriais. Seja como for,
tivemos que esperar até ao ano passado (2014) para ver em volume duas publicações
com o nome de Almada Negreiros em Itália: o romance Nome de Guerra, traduzido
com o título Nome di battaglia por Andrea Ragusa e a recolha Prosa d’avanguardia,
que contém uma selecção da prosa polémica e vanguardista de Almada Negreiros,
juntamente com alguns textos de ficção (A Engomadeira) (organizado por Valeria
Tocco, com tradução de Valeria Tocco, Andrea Ragusa, Mauro La Mancusa) (ambas
publicadas pelas Edizioni dell’Urogallo de Perúgia). No plano editorial da mesma,
consta para este ano a publicação do volume da poesia, contendo toda a obra poética
de Almada, com tradução de Manuel Masini, de Andrea Ragusa e de quem escreve.
Antes destas publicações, as únicas obras de Almada disponíveis em Itália eram uma
publicação separada d’A Invenção do Dia Claro (ALMADA NEGREIROS, J., 2000)
e uma recolha de manifestos do modernismo português, organizada e traduzida
por Valeria Tocco (TOCCO, V., 2002), de que constavam os seguintes manifestos
almadianos: Manifesto Anti-Dantas e per esteso, Ultimatum futurista alle generazioni
portoghesi del XX secolo.
Ambas as traduções da Ode Marítima (no caso da de Antonio Tabucchi, quer a
contida em Una sola moltitudine, quer a outra) são publicadas em edição bilingue.
Pelo que diz respeito à tradução de Antonio Tabucchi, aqui referir-nos-emos à edição
de 1993.
Ambas as traduções são, como era de esperar, muito cuidadosas e competentes.
Numa primeira leitura, temos que sublinhar como, de modo geral, as duas traduções
são muito parecidas uma com a outra, não apresentando superficialmente grandes
diferenças. Olhando mais de perto, surgem algumas soluções diferenciadas aos
problemas cuja solução menos simples se apresenta ao tradutor italiano.
Sendo o português e o italiano duas línguas que pertencem à mesma subfamília
do ramo kentum das línguas indo-europeias, isto é, a das línguas românicas, muito
frequente é o caso de haver palavras ou frases inteiras numa das duas línguas que
têm um correspondente quase literal na outra, isto é, em que se usam palavras ou
fragmentos que têm claramente uma origem comum. Regra geral, os dois tradutores
têm a tendência para acompanhar este andamento, usando sempre que possível
palavras cujo material morfemático remonta claramente à origem comum. Nestes
casos todos, que porventura são a maioria estatística do português para o italiano, os
dois tradutores têm tendência para comportar-se da mesma forma.
130 100 Orpheu Marco Bucaioni
A maioria das divergências entre as duas traduções encontra-se, por outro lado,
nos restantes casos: os que obrigam o tradutor italiano a buscar uma palavra ou uma
frase que não têm correspondência directa etimológica em português.
Um dos casos mais interessantes é certamente o da tradução do português cio. Esta
palavra, usada quer no seu sentido literal, quer no figurativo, é uma das palavras-chave
da Ode Marítima e, num certo sentido, da poesia de Campos e da Geração de Orpheu
tout-court. Pela primeira vez, de facto, canta-se explicitamente a sexualidade, nas suas
vertentes até promíscuas e ferais, em clara oposição à estética que ainda prevalecia na
altura2. Mais em particular, se a Ode Marítima toda pode ser vista como uma grande
vaga poético-narrativa que anuncia, prepara e alcança o seu clímax para só depois
nas últimas páginas voltar ao “sentado” (desas-)sossego inicial, o conceito de cio («do
mundo, ebriedade do diverso!») talvez seja o verdadeiro motor que inicia a acção toda
e a alimente até ao pretendido clímax.
A escolha de Tabucchi para a sua tradução recai no italiano fregola, que
correctamente traduz o estado de excitação e de disponibilidade para o acasalamento
de certos mamíferos; e, tal como o português, pode ser usado também em sentido não
literal3. Mantendo esta escolha feliz na esmagadora maioria dos casos em que aparece
a palavra cio, contudo, Tabucchi decidiu por três vezes optar por uma tradução
diferente: temos duas vezes foia (TABUCCHI, A., 1993: 83/95) e uma vez calore
(idem: 93), dentro da expressão «gata com cio», que assim fica «gatta in calore». De
facto, é mais comum, em italiano, usar esta palavra, quando, no dia a dia, queremos
referir-nos ao estado dos mamíferos supracitados. É evidente que a palavra calore não
podia ser utilizada no resto dos casos, especialmente se sem referência explícita a um
animal, pois ela também traduz a palavra portuguesa calor, e acabaria portanto por
engendrar ambiguidade na versão italiana. O que é menos evidente são as razões que
devem estar por trás da escolha de foia, por duas vezes, sem que haja nada que force a
abandonar a escolha maioritária.
2 Na medida em que o Campos da Ode Marítima chega a desejar ser chicoteado, violado e até rasgado pelas
mãos e pelos corpos dos seus piratas de sonho, ousando cantar a violação das mulheres, Almada responde
cantando sodomia e lesbianismo, entre outras práticas sexuais, em Mima Fataxa e referindo-se várias vezes
a sensações explicitamente sexuais n'A Cena do Ódio. Além da superfície, porém, estes poemas e as demais
odes maiores de Campos são percorridos por um “cio” não necessariamente material, enquanto “histérico
entusiasmo” para com os vários aspectos da vida e da actividade modernas, como a navegação moderna, o
comércio, as grandes cidades e o cosmopolitismo em geral.
3 «Fregola, [fré-go-la], s.f., 1 Stato di eccitazione degli animali che si ripete con regolarità periodica in
concomitanza con la fase della riproduzione: essere, andare, entrare in f.; avere la f., ‖ SIN. calore, estro, 2
fig. Bramosia, voglia ardente e ostinata: ora gli è venuta la f. dell'automobile, ‖ Mania: la f. della pulizia».
(Dicionário Hoepli).
«fregola[fré-go-la] s.f., 1 Eccitazione sessuale degli animali durante il periodo della riproduzione SIN foia:
andare in f.; estens. volg., stato di sovreccitazione sessuale, 2 fig. Desiderio eccessivo, smania di qlco. SIN
frenesia: avere la f. di fare qlco.» (Dicionário Sabatini Coletti).
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de tradução d’A Cena do Ódio ... 131
4 «Estro […], 4 BIOL Nelle femmine dei Mammiferi, il periodo dell'ovulazione che le rende predisposte
all'accoppiamento e alla riproduzione: e. venereo» (Dicionário Hoepli).
«Estro 1 Esaltazione creativa dell'artista, del poeta, sinonimo: ispirazione: e. musicale, 2 Bizza, capriccio: gli è
venuto l'e. di scrivere, 3 biol. e. sessuale, nelle femmine dei mammiferi, attivazione del desiderio» (Dicionário
Sabatini Coletti).
132 100 Orpheu Marco Bucaioni
navios. Certo é que nenhum dos tradutores escolhe traduzir à letra pois existiria uma
palavra que se refere exactamente a uma nau em italiano: caracca5. Por outro lado,
certo é, também, que a esmagadora maioria dos italianos não conhece esta palavra, ao
contrário do que se pode dizer do seu correspondente português e dos portugueses.
De qualquer forma, admira um pouco que, no contexto deste longo poema dedicado à
vida marítima, cheio de nomes específicos de vários tipos de embarcações e de vários
objectos de bordo, todos traduzidos com o máximo cuidado por todos os tradutores,
sem necessariamente recorrer a palavras de uso e compreensão comuns noutros
sítios, agora de repente se faça uma escolha em tal sentido6. A escolha de caravelle por
naus tem o mérito claro de ligar desde logo à época dos Descobrimentos, usando uma
palavra de uso comum em italiano. Navi, pelo contrário, sendo mais parecido com
o original por causa do som, não tem qualquer conotação histórica, sendo o que os
linguistas chamam de versão não marcada do substantivo.
Outra coisa interessante a assinalar é a diferente tradução da palavra negro, referida
a ser humano. Enquanto Tabucchi tem «negri» e «negre» (TABUCCHI, A., 1993: 85),
Abbati/Ceccucci têm «neri» e «nere» (CECCUCCI, P., 2012: 403), mais em linha com
o politicamente correcto da altura.
Depois desta rápida revista, é claro que, para qualquer italiano, a palavra fregola
é mais prontamente e menos ambiguamente identificada como cio do animal, com
valor sexual, e portanto da forma pretendida por Álvaro de Campos. Sendo a tradução
de Tabucchi anterior à de Ceccucci, não percebemos a exigência desta mudança.
No caso de Almada Negreiros, esta análise concentrar-se-á em dois poemas: Mima
Fataxa – Sinfonia Cosmopolita e Apologia do Triângulo Feminino e A Cena do Ódio, sendo
os dois poemas longos mais iconoclastas e vulcânicos dentro da obra poética deste autor.
O texto de Almada é muito diferente da poesia de Campos. De alguma forma,
Almada usa palavras mais “difíceis” do que Campos, ao menos do ponto de vista
do tradutor. É evidente o gosto pelo exótico, pelo marginal, pelo pouco usual, que leva
Almada a fazer escolhas lexicais que nos levam continuamente a uma pesquisa incessante.
5 «caracca, [ca-ràc-ca], s.f. (pl. -che), ST Grossa nave a vela, da guerra o da carico, munita di due o tre alberi,
con un castello a prua e uno a poppa e armata di cannoni, usata dai Portoghesi e dai Genovesi dal XIV al XVII
sec». (Dicionário Hoepli).
«caracca [ca-ràc-ca] s.f. (pl. -che), Grande nave a vela con due o tre alberi, due castelli, armata di cannoni,
usata da genovesi e portoghesi nei secc. XIII-XVI». (Dicionário Sabatini Coletti).
6 O mesmo problema teve que ser encarado e resolvido pela tradutora do célebre romance As Naus de António
Lobo Antunes, Vittoria Martinetto, que acabou por fazer a mesma escolha de Abbati/Ceccucci, embora num
contexto muito diferente, como é o de um título, em que há em jogo outras forças (interesse do editor, questões
comerciais, etc...), mas mesmo assim em contra-tendência com os tradutores para alemão e para inglês, que
fizeram a mesma escolha de Tabucchi, chamando ao romance (por exemplo, em alemão): Die Rückkehr der
Karawellen (O Retorno das Caravelas).
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de tradução d’A Cena do Ódio ... 133
Nos dois casos em questão, embatemos com um Almada mais experimental, mais
exigente do que o Campos da Ode Marítima. Se, por um lado, Ceccucci assinala na sua
introdução (CECCUCCI, P., 2012: LXXXIV) que Fernando Pessoa muitas vezes joga
com a língua, torcendo a gramática para os seus fins, e assim dificultando a tarefa do
tradutor; Almada parece querer pegar na língua e renová-la, negando as mais elementares
regras gramaticais, na fúria iconoclasta que lhe é própria, e que talvez represente a melhor
realização da quintessência modernista, no seio da Geração de Orpheu.
Sendo esta a premissa geral, deverá o tradutor aceitar o compromisso fundamental
de desconstrução linguística, não hesitando em repropor na língua-alvo soluções que
na língua-fonte são interpretáveis como “erros gramaticais”, de ordem sintáctica ou
fraseológica, ou neologismos.
Muito poderia ainda ser dito sobre as escolhas dos vários tradutores de Álvaro de
Campos e sobre as possibilidades para uma tradução da poesia de Almada Negreiros.
No entanto, da análise já efectuada das traduções publicadas, o que ressalta é, em ambos
os casos, uma preocupação de rigor e a tentativa de, sempre que possível, seguir de
muito perto o texto. Da tradução mais recente transparece, a certos passos, uma certa
preocupação em actualizar o registo, particularmente no que diz respeito a termos
mais eruditos, o que nem sempre acontece, havendo por exemplo recurso a um tipo de
vocabulário que caíra em desuso já aquando da publicação desta tradução.
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134 100 Orpheu Marco Bucaioni
Le langage lui est apparu l’instrument de la fiction : il suivra la méthode du langage […]
Enfin, la fiction lui semble être le procédé même de l’esprit humain – c’est elle qui met en jeu
toute méthode, et l’homme est réduit à la volonté (MALLARMÉ, S., 1998 : 504)
Modernismo. Basta lembrar a peça A Alma, composta com António de Ponce Leão
em 1913, ilustração do teatro de «arquitectura interior» teorizado no mesmo ano por
Sá-Carneiro no artigo «O Teatro-Arte (Apontamentos para uma crónica)» publicado
em 1913 no jornal republicano Rebate.
Não sendo pela sua originalidade absoluta que O Marinheiro se alinhou ao lado
dos outros meteoritos do número inaugural de Orpheu – sendo que Fernando Pessoa
cogitara publicá-la na Renascença, conforme o evidencia uma carta a Álvaro Pinto
de Maio de 1914 (Pessoa, 1986: 144) – afigura-se especialmente relevante dar todo
o peso às palavras do autor quando justifica a sua escolha por uma «tragedia que
se passa apenas nos sonhos [ser] contida dentro de uma sobriedade externa difícil
de encontrar fora da Grécia antiga» (PESSOA, F., 2009: 47), sintetizável na equação
perspectiva mental/rarefacção formal. É na verdade o princípio duma «teatralidade
sem teatro», na justíssima expressão de Eduardo Lourenço, enquanto princípio basilar
da criação heteronímica que está aqui patente e que nos leva a pensar que temos em
Orpheu o grande momento de afirmação da originalidade de um processo criativo
onde a alteridade e a pluralidade são fenómenos da linguagem em exercício radical.
É a linguagem que assume a função essencial de pôr os heterónimos em relação
dialógica de linguagem e de pensamento como o têm mostrado os trabalhos de Dionísio
Vila Maior (VILA MAIOR, D., 1994, 2012). É no fundo o que podem alegorizar as
veladoras, cujos discursos se constituem naquilo que se pode designar com Dominique
Maingueneau de cenografias de enunciação (MAINGUENEAU, D., 2004: 190-202), na
confluência das quais surge a figura do marinheiro, toda de ficção, out of the world, mas
com poderosa força de realidade e de concretude, à imagem dos heterónimos.
Derrogando dicotomias seculares (vida/morte, realidade/sonho, visível/invisível,
Pessoa opera através da heteronímia uma união íntima entre os dois sentidos da
experiência humana – racional e existencial, o que lhe permite outrossim experimentar
diferentes modos de sentir e de pensar. O palco mental também é experimental e torna-se
assim experiência vital, fonte e meio de conhecimento que permite corporizações
numerosas e contrárias e, em última análise, justifica o gesto do poema enquanto
fazer – poiein –, enquanto «cálculo» e enquanto «acaso», enquanto invenção de novas
formas.
Não se trata, na perspectiva de Diaz, de justificar a obra pela vida, mas antes de
acrescentar ao estudo da literatura como jogo ou invenção a possibilidade de
identificação da personalidade literária que a concebeu, que não se confunde com
o perfil social e psicológico do autor, mas entretece com este uma «liaison intime»
(Idem: 104), tanto mais a partir do século XIX em que a literatura se tornou uma
«aventura existencial», conforme explica o autor a partir de vários exemplos da
Literatura francesa, com destaque para Proust. Afinal, é o homem quem cede a
palavra ao artista, e nesse desdobramento em suma bastante teatral, o que escreve
permanece em ressonância com aquele num encontro híbrido de singularidade e
de distanciamento, de ficção e de dicção, como propôs Gérard Genette (GENETTE,
G., 1994) que transcende o homem e in fine a própria obra. Este processo dinâmico
prossegue na leitura, num devir contínuo que permite aquela «coalescência de vários
tempos numa dada unidade de tempo», como disse Manuel Gusmão (GUSMÃO, M.,
2011: 546), e que faz do poema, no sentido lato, aquela «construção antropológica
aberta» (Idem: 182) que dá ao leitor a «possibilidade […] se transformar [e] de ser
transformado por aquilo que lê» (Idem: 186). Do ponto de vista hermenêutico,
esta abertura, já preconizada por Umberto Eco e as teorias da recepção de Jauss e
Iser nos anos oitenta, contracena com o Barthes do Plaisir du texte (BARTHES, R.,
1973), que mais explicitamente manifesta a viragem da famigerada «mort de l’auteur»
(Barthes, R., 1968) para o novo paradigma da leitura e do leitor, na crítica do
último quartel do século XX. Desta sorte, a leitura literária rompeu com as pretensões
objectivistas do formalismo, aspecto já apontado pelo Barthes de Critique et Vérité
aludindo à «eternidade» da obra de arte literária, realizada no movimento dinâmico
da leitura, assente na linguagem e por isso num processo de inovação semântica que
ultrapassa e de certo modo contradiz as interpretações literais, porquanto releva do
«segundo grau» e até do «sonho»:
[U]ne œuvre est «éternelle», non parce qu’elle impose un sens unique à des hommes
différents, mais parce qu’elle suggère des sens différents à un homme unique, qui parle
toujours la même langue symbolique à travers des temps multiples : l’œuvre propose,
l’homme dispose.
Tout le lecteur sait cela, s’il veut bien ne pas se laisser intimider par les censures de la lettre :
ne sent-il pas qu’il reprend contact avec un certain au-delà du texte, comme si le langage
premier de l’œuvre développait en lui d’autres mots et lui apprenait à parler une seconde
langue ? C’est ce qu’on appelle rêver. Mais le rêve a ses avenues, selon le mot de Bachelard,
et ce sont ces avenues qui sont tracées devant le mot par la seconde langue de l’œuvre. La
littérature est exploration du mot. (BARTHES, R., 1966: 51-52)
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 141
em não se reflectir que na literatura – visto que a sua matéria, a linguagem, é o veículo de
todas as emoções, sobretudo das mais profundas, das que não podem caber na acção, das
que excedem a capacidade da vontade – se reflectem os temperamentos, isto é as somas das
emoções mais profundas, dos que por ela se exprimem (LOPES, T. R., 1990: 55)
1 Como é o caso da medicina narrativa, movimento nascido nos Estados Unidos na tripla dimensão de
investigação, formação e prática médica por acção de Rita Charon (ver Charon, R., 2006. Narrative Medicine:
Honoring the Stories of Illness. Oxford, Oxford University Press). Em Portugal, desenvolve-se actualmente
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 143
Bibliografia
Bibliografia activa:
PESSOA, Fernando (2012). Histórias de um raciocinador. Lisboa: Assírio &Alvim.
PESSOA, Fernando (2010). O Marinheiro [Introdução, estabelecimento de texto e
notas de Claúdia F. Souza]. Lisboa: Edições Ática.
PESSOA, Fernando (2009). Sensacionismo e Outros ismos. Edição de Jerónimo
Pizarro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
PESSOA, Fernando (2006). Escritos sobre Génio e Loucura, edição crítica de
Fernando Pessoa, vol. VII, Tomos I e II. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda.
PESSOA, Fernando (1980) Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Edições
Ática.
PESSOA, Fernando (1982). Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Lisboa:
Edições Ática.
no âmbito do Projecto interdisciplinar «Narrativa & Medicina» sediado no Centro de Estudos Anglísticos
da FLUL, tendo dado origem a vários trabalhos. Entre os mais recentes, ver FERNANDES, Isabel (2015).
«Leituras holísticas: de Tchékhov à Medicina Narrativa» Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu,
vol.19 no. 52 (Jan./Fev.), pp. 71-82 e CABRAL, Maria de Jesus (2015). «O que me diz este corpo? Contributos
do modelo teatral para a Medicina Narrativa», in Barbosa, António (ed.). Narrativa e Bioética. Lisboa, Centro
de Bioética da Faculdade de Medicina, da Universidade de Lisboa, pp. 105-116.
144 100 Orpheu Maria de Jesus Cabral
Bibliografia passiva:
Barthes, Roland (1978) Leçon. Paris: Editions du Seuil.
Barthes, Roland (1973). Le Plaisir du texte. Paris: Éditions du Seuil.
Barthes, Roland (1966). Critique et vérité. Paris: Éditions du Seuil.
Cabral, Maria de Jesus (2012). «Théâtre(s) sous un crâne: Mallarmé et
Pessoa (d’Igitur au Faust, tragédie subjective)», in CABRAL, Maria de Jesus,
DOMINGUES, João da Costa, (Res) sources de l’Extravagance, Carnets IV, pp.
191-210. URL http://carnets.web.ua.pt.
Cabral, Maria de Jesus (2010). «‘Uma grande sombra que sente e se não vê’:
Belkiss nos trilhos da Literatura dramática simbolista», Máthesis, nº 19, Viseu,
pp. 77-95.
Cabral, Maria de Jesus (2007). «Mallarmé, Maeterlinck, un théâtre d’entre-deux»,
Les Cahiers Stéphane Mallarmé, vol. 4. Oxford, Berlin: Peter Lang, pp. 5-46.
Damasio, António (1994). O Erro de Descartes. Lisboa: Europa América.
Diaz, José-Luis (2011). L’Homme et l’œuvre. Paris: PUF.
Genette, Gérard (1991). Fiction et diction. Paris: Editions du Seuil.
Gladieu, Marie-Madeleine, Pottier, Jean-Michel, TrouvÉ, Alain (2013).
L’Arrière-texte : pour repenser le littéraire. Peter Lang, ThéoCrit, vol. 8.
Gusmão, Manuel (2011).Tatuagem e Palimpsesto. Lisboa: Assírio & Alvim.
Krabbenhoft, Kenneth (2011). Fernando Pessoa e as doenças do fim de século.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Lopes, Maria Teresa Rita (1977). Fernando Pessoa et le drame symboliste héritage
et création. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian / Centro Cultural Português.
Lopes, Teresa Rita (1990). Pessoa por Conhecer – Textos para um Novo Mapa.
Lisboa: Estampa
LOURENÇO, Eduardo (1987). «Pessoa: une théatralité sans thêatre», Arquivos
do Centro Cultural Português, vol. XXIII, Lisboa-Paris: Fundação Calouste
Gulbenkian, pp. 753-758
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 145
Piero Ceccucci
Universidade de Florença
O verdadeiro rosto de Orpheu não pertence nem aos que o inventaram nem aos que,
fascinada ou distraidamente, experimentaram a necessidade de o contemplar. Pertence
à forma mesma do presente sempre outro e sempre futuro, à sua específica maneira
de exorcisar o seu próprio enigma ou de o ignorar ignorando-se. Desse presente ou
presente-futuro poderá até descer sobre Orpheu aquele “esquecimento” que é o tributo de
tudo o que existe ao que não existe. Todavia, nem nesse esquecimento (para outros que
não nós) Orpheu perderá a sua imperdível figura. Ela mesma emprestou voz humana, tanto
quanto nela cabe, à visão da existência como “esquecimento”. E quem o esquecer nela se
lembrará (LOURENÇO, E., 1975: 9).
2 Foi publicado em 1984, primeiro numa edição fac-similada das Edições Nova Renascença, depois, numa
cuidada crítica textual pela mão de Arnaldo Saraiva, pelas Edições Ática, em julho do mesmo ano. Para
informações mais detalhadas sobre as primeiras edições de Orpheu 3, vd. a «Avant-propos», ainda de Arnaldo
Saraiva, colocado no espaço paratextual das edições em questão, nas pp. III-XLIV.
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 149
uma prosa breve, compacta, que é por sua vez uma estampa de cigana. A cena é ainda
romântica: um muro branco de cemitério, em que se apoia esbeltamente a figura exótica:
Mulher-objeto, mulher-animal, mulher-desejo, a sua descrição obedece de perto ao
cânone romântico. E até usa aqui o poeta-pintor, na descrição do seu corpo – corpo de
beleza estranha, corpo escuro e ferino de mulher-natureza – estilemas que são do mais
óbvio cariz romântico (Id.: 50-51).
3 Na elaboração destas breves notas, utilizarei para os dois textos e para todas as citações, que irei efetuando, a
ortografia em vigor no tempo de Orpheu.
150 100 Orpheu Piero Ceccucci
Não só em ‘Mima-Fataxa’, mas em outros textos ainda aflora, por toda a parte, de
modo muito nítido, todo um conjunto de estilemas românticos, como, por exemplo,
para citar um entre muitos outros, em Sèvres Partido, no qual – não obstante
eloquentes referências simbolistas, já encerradas no título, evocadas pelo narrado
inscrito no desenho de uma fina porcelana despedaçada – transitam nítidos elementos
românticos de entoação fabulosa, como, por exemplo, no texto seguinte:
A amazona negra era bela como o sol e triste como o luar, e ninguém acredita mas era
pastora de galgas. Figura negra muito esguia, cipreste procurando vagas na margem do
caminho.[...] Sobre a relva, na sombra arrendilhada das folhas amarelecidas dos plátanos
onde os repuxos do tanque cuspiam lágrimas de vidro, a Amazona negra sonhava o seu
Príncipe encantado e a galga do dia dormia quieta, estendido o focinho no ventre d’Ela.
(NEGREIROS, J. de A., 1993: 69)
4 O poeta não inseriu o texto “Silêncios”, que se publica na edição Obras Completas – Vol. I, cit., p. 67; e que,
como recorda Ellen W. Sapega, talvez composto em 1913, tinha sido publicado em Portugal Artístico, n° 1,
Março de 1914.
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 151
para além do título, pelo nome do autor, precedido pela indicação da própria
qualificação profissional de desenhador, a que faz eco iterativamente à de pintor posta
ao lado da assinatura: «José de Almada Negreiros – Pintor» (NEGREIROS, J. de A.,
1990: 39)5 do texto, que segue a «Introdução» no l° volume da INCM, de Jorge de Sena
(SENA, J. 1982)6 – mas também a presença em muitas figuras encenadas (os Pierrots,
os Arlequins), imbuídas dos sucos, no estilo linear, claro e exacto, do Cubismo de
Picasso, quase a querer sublinhar com orgulho a sua escolha de vida profissional para
as artes plásticas.
De resto, o mesmo título de Frizos, que acolhe e apresenta o conjunto dos rápidos
contos, como segmentos constitutivos de um único quadro pictórico, convoca um dos
elementos mais caros à gramática do imaginário iconográfico do Simbolismo plástico,
remetendo para um signo ornamental da antiga arte arquitetónica grega7.
O lema, assumido pelo autor, não se limita, porém, a uma simples referência de
intenção decorativa, embora importante na estratégia comunicativa simbolista, tanto
em literatura como nas artes figurativas, mas apresenta-se, tout de abord, para uma
maior e mais pontual significação e descodificação do discurso poético veiculado,
como vontade de dissociar o signo, inscrito na imagem, do seu sentido codificado
para o transformar em visão alegórica, enunciativa de uma vasta e polivalente gama
de significados alusivos ou evocativos, como o sentido do belo, inscrito no lema
frizo, que emoldura a cena envolta em símbolos ambíguos e inesgotáveis, como os
do ornamento em si, do luxo, dos ouros, das pedras preciosas, das joias, dos tecidos
requintados, das sedas, que em Itália – para dar um exemplo – tinham encontrado
um inimitável cantor em Gabriele D’Annunzio, portador de um hedonismo sensual
e caprichoso (D’ANNUNZIO, G., 1982: 55-56)8, enquanto, para dar um outro rápido
9 Embora a crítica mais recente tenda a circuncrever a influência do futurismo italiano sobre a Scena do
Ódio, não podemos não reconhecer que estudos autorizados, muitas vezes nos anos em que o texto apareceu
154 100 Orpheu Piero Ceccucci
Zutt! Bruto-parvo-nada
Que Me roubaste tudo:
‘té Me roubaste a Vida
E não Me deixaste nada!
Nem Me deixaste a Morte!
Zutt! Poeira-pingo-microbio
Que gemes pequenissimo gemidos gigantes,
Gravido de uma dor propheta colossal!
Zutt! Elefante-berloque parasita do não presta!
Zutt! Buguganga-cellulode-bagatella!
Zutt! bêsta!
Zutt! bacaro!!
Zutt! merda!!! (NEGREIROS, J. A. de, 1984: 62-63)
em edição completa, tenham sido realizados por reconhecidos estudiosos do Modernismo português, que
enquadraram o poema em questão, mesmo não ignorando a presença de outras correntes de vanguarda, no
ventre da poética futurista. Alguns nomes entre outros: José-Augusto França, Fernando Cabral Martins, Rui
Mário Gonçalves.
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 155
(exemplar, dizia eu, esta estrofe), pois, nela o sujeito, tanto na vincada anáfora Zutt
que, no som onomatopeico evocado pelo silvo de um chicote, acentua a função
reiterada da linguagem ultrajante e particularmente depreciativa, codificada pelo
Futurismo europeu, gritando o seu raivoso ódio, carregado de insultos, contra o
«bruto-parvo-nada» burguês, encenando a técnica enunciativa das palavras em
liberdade e da desestruturação da sintaxe.
Além, no entanto, da arrogância do impropério, o estilo breve no seu discurso
poético, como na própria vanguarda europeia, incluindo obviamente o Futurismo,
exterioriza-se em linguagem inovadora e alegórica, transformando-se em ato
performativo de militância, não privo de uma sua poesia própria ou expectativa
plástica. Projetado para tingir, marcar o evento literário, representado por Orpheu, a
Scena do Ódio, como poema de vanguarda destinado à comunicação e ao envolvimento
de um destinatário, tudo a classificar e definir como alvo, privilegia a palavra e os
sintagmas, que se tornam cifra escritural autónoma, paroxística, que se irradia, nos
clarões de um istantâneo de um ápice, de uma figura, em todas as suas possibilidades
evocativas.
Paradigma disto é o próprio incipit do poema:
10 «The first step the poet must take is to create himself, and the anti-social individual. It may be characterized
as a swaggering, chest-thumping posture os egocentric self-inflation.» Vd. MCNAB, G., 1979: 41-42.
156 100 Orpheu Piero Ceccucci
11 «[…] será convergente e divergente da de Fernando Pessoa, entre Mito regressivo e utopia messiânica, alfa e
omega da modernidade portuguesa. […] Nasce daqui a fuga para uma teleologia trans-histórica, a afirmação
do primado da Poética sobre a Política, do Mito sobre a História» [tradução minha].
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 159
Coisa esta, que Almada tinha demonstrado ter compreendido bem, quando precisou:
Bibliografia
Bibliografia Ativa
NEGREIROS, José Almada de (1935). «Portugal no mapa da Europa», in:
Sudoeste, n° 1, Lisboa, Junho de 1935. Reproduzido in: NEGREIROS, Almada
de (1992). Obras Completas (Ensaios, Vol. V). Lisboa: INCM, pp. 65-67.
NEGREIROS, José Almada de (1965). «Orpheu 1915-1965». In: NEGREIROS,
José Almada de (1993). Obras Completas, Vol. VI – Textos de Intervenção.
Lisboa: INCM, p. 174.
NEGREIROS, José Almada de (1984). A Cena do Ódio (Edição Crítica de Arnaldo
Saraiva). Lisboa: Edições Ática.
NEGREIROS, José Almada de (1990). «Frizos – Sevres Partido». In: Obras
Completas – Vol. I – Poesia. Lisboa: INCM, p. 69.
PESSOA, Fernando (2000). Crítica – Ensaios, Artigos e entrevistas (org Fernando
Cabral Martins). Lisboa: Assírio e Alvim.
160 100 Orpheu Piero Ceccucci
Bibliografia Passiva
D’ANNUNZIO, Gabriele (1982). «Lettera a Maffeo Barberini Sciarra Colonna».
apud M.M. Lamberti, 1870-1915: i mutamenti del mercato e le ricerche degli
artisti, in Stora dell’Arte italiana, Parte seconda. Dal Medioevo al Novecento.
Volume terzo. Il Novecento, Torino: Einaudi, pp. 55-56.
FRANÇA, José-Augusto (1989). «Préface a ‘La scène de la haine’: Un poème-exorcisme».
In: La scène de la haine, Paris: Librairie José Corti, pp. 7-14.
HATHERLY, Ana (1975). «60 anos do Orpheu». In: Colóquio/Letras, n° 26, Lisboa:
Ed. Fundação C. Gulbenkian, pp. 5-22.
LOURENÇO, Eduardo (1975). «60 anos do Orpheu». In: Colóquio/Letras, n° 26,
Lisboa: Ed. Fundação C. Gulbenkian, pp. 5-22.
LOURENÇO, Eduardo (1985). «Almada ensaísta?». In: Almada, Actas do Colóquio
sobre Almada Negreiros, Lisboa Outubro de 1984. Lisboa: Edições Fundação
Calouste Gulbenkian, pp. 79-85.
MACNAB, Gregory (1975). «Sobre duas “intervenções” de Almada Negreiros». In:
Colóquio/Letras, n°35, Lisboa, Edição Fundação C. Gulbenkian, pp. 32-40.
MACNAB, Gregory (1979). «The Poet Strikes Back: Almada-Negreiros in the Cena
do Ódio». In: Luso-Brazilian Review, Vol. 16, n 1, University of Wisconsin Press,
pp. 41-52.
MAGALHÃES, Isabel Allegro de (1987). «Almada. ‘Mima-Fataxa’ em dois tempos».
In: Colóquio/ Letras, n° 95, Lisboa: INCM, pp. 49-59.
MARINHO, Maria de Fátima (1998).«Frisos ou o Desgosto de Colombina».
In: Almada Negreiros: A Descoberta como Necessidade, Actas do Colóquio
Internacional, Porto 12-14 de Dezembro de 1996, Porto: Edição Eng. António
de Almeida, pp. 391-400. (Artigo reproposto em Colóquio/Letras, n° 149/150,
Lisboa: Edições Fundação Gulbenkian, 1998, pp. 63-71).
RIVAS, Pierre (1989). «L’écho du silence», Postface a NEGREIROS, J. Almada de. La
Scène de la haine. Paris: Librairie José Corti, pp. 84-85.
SAPEGA, Ellen W. (1992). «Os Limites da Narrativa Almadiana: da Influência
simbolista em ‘Frisos’ à Experiência Futurista de ‘Saltimbancos’». In: Ficções
Modernistas: Um Estudo da Obra em Prosa de José de Almada Negreiros
1915-1925. Lisboa: ICALP, pp. 21-29.
SENA, Jorge (1982). «Almada Negreiros Poeta». In: Nova Renascença, n° 7, Vol.
2. apud: NEGREIROS Almada de (1990). Obras Completas – Vol. I – Poesia.
Lisboa: INCM, pp. 9-33.
SILVA, Celina (1994). «Nos Labirintos – Frisos». In: Almada Negreiros. A Busca de
uma Poética da Ingenuidade. Porto: Edição Fundação Eng. António de Almeida,
pp. 102-103.
Elementar, meu caro Lúcio!
A leitura que proponho hoje para A Confissão de Lúcio nasceu de um ensaio que
escrevi há alguns anos1 e que tinha por centro de interesse o conceito de voluptuosidade.
Ainda hoje este me parece ser esse o sintagma gerador das mais variadas relações
semânticas dessa primorosa novela de Mário de Sá-Carneiro, ela mesma tão exemplar
do contexto decadentista finissecular que deixou marcas indeléveis nos artistas do
entrante século XX. A hipótese inicial permitiria ler a obra como um «ensaio sobre
a voluptuosidade» que se desdobrasse em três tempos: a teorização, a encenação e a
experimentação.
No que tange aos personagens da novela, composta de não mais de seis actantes
de maior ou menor importância em termos consequentes para a trama, uma figura
feminina, na mais pura tradição orgíaca das bacantes, emerge da cena intelectual de
uma Paris fin-de-siècle para desencadear, contra todas as convenções, o conceito de
arte da volúpia ou da volúpia como arte, muito antes que do simples exercício da
voluptuosidade na arte.
Do lado oposto da luxúria, dos amplexos brutais, dos beijos úmidos, das carícias
repugnantes e viscosas, essa voluptuosidade é a experiência da con-fusão radical dos
sentidos que escapam, aliás, a qualquer configuração referencial, por se constituírem
antes como intangibilidades que ligam, num mesmo excesso, a sensorialidade e a
espiritualidade, o desejo e a morte, Eros e Thanatos, como opostos que coabitam.
A «americana», como fica conhecida, é, portanto, a Diotima de Sá-Carneiro, para
quem a espiritualização da volúpia seria o estágio mais sublime da beleza ideal, ou em
palavras suas, dos «desejos espiritualizados em beleza». Numa fascinante pedagogia,
dela se ouve a lição da volúpia das correspondências sinestésicas em que se cruzam
impressões de planos diversos: o físico e o moral, o concreto e o abstrato, o sedutor
e o terrificante, identificados pela voluptuosidade do fogo, pela perversidade esguia da
água, pelos requintes viciosos da luz.
O segundo passo dessa inusitada personagem feminina seria o de transformar
o conceito que veiculara verbalmente em grande festa. Mas festa aurática, nunca
grotesca, festa de apagamento dos limites, em que o mundo masculino do dandysmo
mergulha como simples espectador de uma incorpórea fisicalidade de refinadíssimos
sentidos. A festa é uma cena de teatro de fulguração homoerótica, com mulheres
a funcionarem como actantes secundárias dos excessos experimentados pela
«americana», aquela afinal sobre quem todos os olhares convergem e cujo orgasmo
final metaforiza-se como desaparecimento e morte. Diz o texto: «... Até que por fim,
num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre
as águas douradas – tranquilas, mortas também»2 (CL: 45).
Enfim, como a demonstração de uma tese que se preparara em conceito e
mise-en-scène, os factos que se seguem à cena dessa festa triunfal constituiriam a fase
da experimentação, na escala individual, dos êxtases e dos mistérios que compõem
o enredo da narrativa confessional de Lúcio. Passar do inefável para a linguagem é
possivelmente o seu modo de tentar perceber com outras categorias – que não as da
racionalidade – o exercício dessa erótica transgressora.
A experiência homoerótica feminina – maravilha / mirabilia para espectadores eleitos
– é o que dará suporte à experiência de afeto dos dois protagonistas masculinos – Lúcio e
Ricardo de Loureiro – cuja atração mútua, travestida de amizade, só logrará completar-se
com o advento algo surpreendente de um terceiro elemento – já agora feminino – que
será o modo de normalizar, ou de normatizar, uma transgressão sexual através de uma
outra transgressão de base psicótica que consiste na produção de um suplemento de
personalidade, de um desdobramento da psique na imagem de um duplo de si.
2 SÁ-CARNEIRO, Mário. A Confissão de Lúcio. Lisboa, Assirio & Alvim, 1998. Todas as citações serão a partir
de agora indicadas com as letras CL seguidas do número da página.
Elementar, meu caro Lúcio! 163
3 FREUD, S., 2010: 352 («O inquietante»). Em algumas traduções o título aparece como «O estranho».
4 Cf Otto Rank. Don Juan et le Double. http://classiques.uqac.ca/classiques/rank_otto/don_juan/rank_
donjuan_double.pdf
164 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira
«Ah! meu querido Lúcio [...] como eu sinto a vitória duma mulher admirável, estiraçada
sobre um leito de rendas, olhando a sua carne toda nua...esplêndida...loira d’álcool! A carne
feminina – que apoteose! [...] E lembra-me então um desejo perdido de ser mulher – ao
menos para isto: para que num encantamento pudesse olhar as minhas pernas nuas, muito
brancas, a escoarem-se, frias, sob um lençol de linho».
5 Cf. Hoffman, «L'histoire du reflet perdu», tomo II, cap. III, dos Contos fantásticos. Mas seria um excelente
desenvolvimento da pesquisa revisitar autores brasileiros como Machado de Assis ou Guimarães Rosa. Em
ambos os casos, «O espelho», de Papéis avulsos, e o conto medial das Primeiras estórias, com o mesmo título
do anterior, podem bem fundamentar em metáfora a perquirição sobre a identidade do sujeito.
Elementar, meu caro Lúcio! 165
Porém, refletindo melhor, descobri que em realidade o meu amigo não me dissera nada
disto. Apenas eu – numa reminiscência muito complicada e muito estranha – me lembrava,
não de que verdadeiramente ele mo tivesse dito, mas de que, entretanto, mo devera ter dito
(CL: 77).
6 Sobre esse epifenômeno, Otto Rank (1932) refere, entre outros tantos exemplos mais ou menos contemporâneos
da novela de Sá-Carneiro, o filme «O Estudante de Praga» de Hans Heinz Ewers, em que Balduin, depois de
um pacto fáustico, aceita que lhe roubem a sua sombra até que ela reiteradamente reaparece diante dele como
seu duplo macabro, destituindo-o dos seus afetos. Ao perceber que já não é capaz de ver a sua imagem no
espelho, atira no fantasma e morre do mesmo tiro. Já no conto «Le Horla» de Maupassant, o personagem sem
causa aparente (o que redobra a angústia e o sentimento de absurdo) se expõe a alucinações sucessivas ao se
sentir perseguido por uma espécie de fantasma de si próprio, vê sua própria imagem desaparecer no espelho
do quarto, e, ao tentar eliminar a figura incorpórea pelo fogo, destrói inutilmente a casa, torna-se o assassino
dos criados que ali ficaram aprisionados, até concluir que, contrariamente a si mesmo, exposto humanamente
à morte a cada instante, Le Horla, «corpo feito só de Espírito, não precisava temer nem os males, nem os
ferimentos, nem as enfermidades, nem a destruição prematura».
Elementar, meu caro Lúcio! 167
«Uma noite, porém, finalmente, uma noite fantástica de branca, triunfei! Achei-A... sim, criei-A!...
criei-A... Ela é só minha – entendes? – é só minha!... Compreendemo-nos tanto, que Marta é
como se fora a minha própria alma. Pensamos da mesma maneira; igualmente sentimos.
Somos nós-dois... Ah! e desde essa noite eu soube, em glória soube, vibrar dentro de mim
o teu afeto – retribuir-to: mandei-A ser tua! Mas, estreitando-te ela, era eu próprio quem te
estreitava... Satisfiz a minha ternura: Venci! E ao possuí-la, eu sentia, tinha nela, a amizade
que te devera dedicar – como os outros sentem na alma as suas afeições. Na hora em que a
achei – tu ouves? – foi como se a minha alma, sendo sexualizada, se tivesse materializado. E
só com o espírito te possuí materialmente! Eis o meu triunfo... Triunfo inigualável! Grandioso
segredo!...»
Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem
mais ter ação sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido
o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos
fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem.
As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou – apenas – os desencantados que,
muita vez, acabam no suicídio. (CL: 12)
Se se crê nele como narrador, é esta a história. Acontece que essa sua experiência
de rememoração vem comprometida pela referência confessada a uma supressão
momentânea de sua própria lucidez no momento do crime e, nesse sentido, por uma
incapacidade de julgamento imparcial e objetivo. Acumulam-se no seu discurso
significantes dignos de nota, tais como assombro e mistério; outros ainda em que ele
próprio se define como aterrado, possesso de medo, olhos fora das órbitas, cabelos erguidos;
ou que revelam que, diante da cena climática, a sua opção fora a de precipitar-se para
fora, numa carreira louca. (CL: 122-3). A tudo isso acrescente-se, no que tange à técnica
narrativa, um hiato composto visualmente por duas linhas de pontos de suspensão,
evidente momento de espera a que se segue, como num ato falho, a confissão de sua
alucinação: «– Quando pude raciocinar, juntar duas idéias, em suma quando despertei
deste pesadelo alucinante que fora só a realidade, a realidade inverossímil – achei-me
preso num calabouço do Governo Civil [...]» (CL: 123 grifos meus). Leve-se portanto
em conta a dúvida sobre a sua incapacidade de julgamento.
Há ainda um outro detalhe singular – uma pista para um thriller policial – que
ajuda a comprometê-lo imageticamente com a morte de Marta/Ricardo, e que vem
à tona, malgré lui, através de um gesto passível de leitura psicanalítica e revelado por
seu próprio discurso. Detalhe não desprezível, Lúcio, escritor impotente, escrevera
uma peça de teatro, que ele tinha ainda por inacabada mas cuja encenação teria sido
prometida para os palcos de Lisboa, o que apontaria assim para um seu possível triunfo.
Às vésperas da primeira representação, imbuído de uma fúria de inspiração
aparentemente inexplicada, Lúcio anuncia ao metteur en scène uma nova proposta
de desenlace para a peça. O que essa peça é, o que essa alteração representa não
ficamos a sabê-lo com clareza para além do fato de, na primeira versão, morrer
o personagem do escultor, e de a segunda versão – que Lúcio julgava «uma ideia
belíssima, grande, que [o] entusiasm[ava]» (CL: 115) – ter sido julgada pelo
empresário «um disparate».
O facto é que Lúcio recusa a montagem já feita e, como não consegue persuadir
o metteur en scène da superioridade da sua nova versão, lança o manuscrito da sua
obra – cujo título é A Chama – para dentro de uma fogueira, destruindo-a: a Chama
na chama, como uma espécie de fatalidade tautológica. Falha o artista incompleto por
170 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira
mesma Marta uma fulguração de que ele fora incapaz de se apropriar. Ricardo a
triunfar em Marta. Marta a escoar pelos dedos de Lúcio, como mera «reminiscência
longínqua», logrando tão somente com ela uma aventura passageira, o que é, aliás,
uma reverência intertextual à «passante»9 de Baudelaire, a ponto de o poema das
Flores do mal – demasiado conhecido para exigir que o leiamos para evocá-lo – poder
servir, quase verso a verso, como uma interpretação da fugacidade de sua experiência
afetiva: fugitiva beleza, majestade, fausto, nobreza, agilidade, relâmpago e noite, olhar
lívido onde nasce o furacão, dor que fascina e prazer que mata. Diante dela, Lúcio – tal
como o poeta das «Correspondências» – de repente renasce, ao mesmo tempo que dela
tudo ignora, ela que ele teria amado, ela que o sabia.
Ouçamos o texto:
Com efeito, ainda hoje, às tardes maceradas, eu não sei evitar uma reminiscência longínqua,
a saudade violeta de certa criaturinha indecisa que mal roçou a minha vida. Por isso só:
porque ela me beijou os dedos; e um dia, a sorrir, defronte dos nossos amigos, me colocou
em segredo o braço nu, mordorado, sobre a mão... E depois logo fugiu da minha vida,
esguiamente, embora eu, por piedade – doido que fui! – ainda a quisesse dourar de mim
num enternecimento azul pelas suas carícias (CL: 108)
9 «La rue assourdissante autour de moi hurlait. / Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse, / Une
femme passa, d’une main fastueuse / Soulevant, balançant de feston et l’ourlet. // Agile et noble, avec sa jambe
de statue. / Moi je buvais, crispé comme un extravagant, / Dans son œil, ciel livide où germe l’ouragan, / La
douleur qui fascine et le plaisir qui tue. // Un éclair… puis la nuit ! – Fugitive beauté / Dont le regard m’a fait
soudainement renaître, / ne te verrai-je plus que dans l’éternité ? // Ailleurs, bien loin d’ici ! trop tard peut-être !
/ Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, / o toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais !»
O fascínio do poema de Baudelaire «A une passante» (Les Fleurs du Mal) gerou outras cenas poéticas nele
inspiradas como «A débil» de Cesário Verde, aquela com quem o poeta se compraz, não pela suavidade
que fascina e pelo prazer que mata, mas por intuir nela o poder nascido de uma inteireza moral, de uma
força natural e de uma pureza rural, elementos capazes de contaminar positivamente a doença de uma
metrópole ameaçadora. Tão diversas e tão similares, são ambas passantes, fugazes, alumbramentos, como em
reminiscência Marta aparecera para Lúcio.
Acentue-se aqui, como um parêntesis, que Baudelaire e Cesário Verde eram dois poetas que estavam
evidentemente no horizonte das expectativas literárias de Sá-Carneiro, de tal modo que não parece aleatória a
evocação da «passante» e da «débil» na composição «criaturinha indecisa que mal [lhe] roçou a vida».
172 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira
10 «C’est un autre amour qui ébranle Don Juan, et celui-là est libérateur. Il apporte avec lui tous les visages du
monde et son frémissement vient de ce qu’il se connaît périssable» (CAMUS, A., 1966: 102).
174 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira
Bibliografia
Como introdução ao tema, pretende-se aqui traçar uma síntese da situação portuguesa
no contexto da Primeira Grande Guerra, em planos diversos mas complementares:
contexto geral da política interna; conflitos militares em Moçambique e em Angola;
relações diplomáticas até ao corte com o Império Alemão; reflexos da guerra antes e
depois da intervenção militar de Portugal na guerra europeia; negociações diplomáticas,
no contexto do conflito europeu e africano, sendo que, no que respeita a África, a situação
portuguesa assumiu desde logo, no caso do conflito de Maziua em Moçambique (24 de
agosto de 1914) e de Naulila em Angola (17 de novembro de 1915), uma intervenção
direta, mesmo antes da declaração de guerra e do rompimento das relações diplomáticas
com a Alemanha e da participação na guerra europeia.
Recorde-se que, em 1915, no plano interno, assistimos ao final do mandato
presidencial de Manuel de Arriaga, mandato iniciado em setembro de 1911 e que é
interrompido, por renúncia de Arriaga, em maio de 1915, dando lugar a um espécie de
presidência interina, chamemos-lhe assim, de Teófilo Braga, de junho a novembro de
1915, data em que Bernardino Machado toma posse como Presidente da República.
E em 1915 tivemos entretanto 5 ministérios: Vítor Hugo de Azevedo Coutinho,
(governo a quem os inimigos políticos chamavam “Os Miseráveis de Vítor Hugo”),
Pimenta de Castro (que os inimigos qualificavam como ditadura militar), José de
Castro e em 29 de novembro de 1915, o início do governo de Afonso Costa, já no
mandato de Bernardino Machado. Mas, como vimos, o ano político foi entretanto
marcado e dominado, ainda antes da formalização do estado de guerra com a
Alemanha, pelo início das hostilidades com o Império Alemão em Moçambique e
em Angola. As relações diplomáticas não se rompem imediatamente porque não
176 100 Orpheu Duarte Ivo Cruz
Os heterónimos de Pessoa, conhecemos todos muito bem. Mas vale a pena lembrar
que Violante de Cisneiros era o escritor Armando Cortes Rodrigues.
Este número do Orpheu contém a seguinte informação:
Mauro Dunder
USP /CAPES 1
No texto que abre sua narrativa, Lúcio Vaz é categórico: “A minha confissão é um
mero documento” (SÁ-CARNEIRO, M. de, 1988: 6). Em que pese a relação entre a
afirmação e a trajetória da revelação ontológica (como a compreende Heidegger) do
protagonista, bem como a noção de narrativa como representação que envolve o texto
ficcional e as especificidades que envolvem a questão da identidade portuguesa no
projeto de Orpheu, a leitura de A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro traz
à baila algumas reflexões sobre como se constroem, ao longo da trama do romance,
um conjunto de imagens reveladoras sobre o pensamento português, não apenas a
1 Doutor em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo. Investigador aceito pela Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra para Pós-Doutoramento, sob supervisão do Prof. Dr. Carlos Reis.
Membro do Grupo de Pesquisa “Literatura Portuguesa de Autoria Feminina” (USP/CNPq). Professor Assistente
do curso de Letras das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). A participação no congresso 100 Orpheu
terá sido totalmente custeada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
180 100 Orpheu Mauro Dunder
Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou melhor,
não estudando. Vagabundo de minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha
vida e de todos igualmente desistido – sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande
capital. Logo me embrenhei por meios mais ou menos artísticos, e Gervásio Vila-Nova,
que eu mal conhecia de Lisboa, volveu-se-me o grande companheiro de todas as horas
(SÁ-CARNEIRO, M., 1988: 7).
de uma vida dentro do pensamento europeu, como se Portugal não fosse, de facto, parte
desse continente. Dono de um exotismo calcado em uma postura superficial, pretenso
“cidadão do mundo”, Gervásio Vila-Nova renega, por oposição, o “cidadão português”,
quando se nos dá a conhecer como um artista moderno, cuja identidade é marcada pelo
contraditório, pela valorização do “erro”, pela intensidade com que se nega o tradicional.
Ao dizer que “Gervásio Vila-Nova era aquele que nós olhamos na rua, dizendo:
ali, deve ir alguém” (Id.: 7), o narrador institui o conceito moderno de sujeito: aquele
que se destaca, que confronta, que não se enquadra nas acepções sociais, culturais
e políticas tradicionais. Logo, na linha de pensamento que ora se propõe, Gervásio
Vila-Nova, por ser “alguém”, não cabe em um país cujo orgulho da história é norte
para o pensamento e o comportamento, individual e coletivamente.
Outra afirmação que o narrador faz acerca da trajetória de Gervásio Vila-Nova
relaciona-se com uma questão fulcral na história de Portugal. Segundo Lúcio Vaz,
Gervásio “não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar” (Id.: 8). A
noção cubista de fragmentação, metaforizada pela imagem de “se despedaçar”, ao
mesmo tempo em que remete à crise do sujeito, confrontado com um mundo em
transformação ao qual é necessário adaptar-se, por meio da quebra de certezas que
sustentavam a relação desse sujeito com o universo em que se insere, sugere também,
no plano nacional, a imagem invertida do que se passa com o império colonial
português – em movimento que se prolongará, a rigor, até depois da Revolução dos
Cravos (1974). O sistema colonial falhou exatamente porque não teve a coragem de
se despedaçar, ou, por outro lado, foi um falhado porque não reconheceu quando – e
como – se despedaçou.
Nesse sentido, torna-se relevante notar que, por um lado, a narrativa de A confissão
de Lúcio transcorre nos últimos cinco anos do século XIX e, por outro, foi escrito em
1913. Esses parâmetros aproximam a narrativa de dois relevantes eventos históricos,
os quais também estão ligados à ideia de esfacelamento, de “se despedaçar”.
A trama se passa na sequência do período marcado pelo ultimatum inglês de 1890,
evento que pode ser interpretado como um dos maiores sinais da crise pela qual passa
– e seguirá passando até depois de 1974 – o sistema colonial português, baseado em
conceitos de posse e poder herdados do período das grandes navegações. Como já
se disse, os efeitos do ultimatum foram bastante devastadores para a concepção de
nação que Portugal carrega, no mínimo, desde o século XV – a de grande império,
de povo predestinado a constituir o “Quinto Império”, sonhado por Dom Manuel,
encampado por Dom Sebastião e pelo povo português ao longo de sua história –,
a ponto de ser considerado pelo filósofo Eduardo Lourenço um trauma fundador, ao
lado da própria criação do Reino, no século XII, e da perda da soberania, após a morte
de Dom Sebastião, em 1580.
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 183
mística, uma vez que foram eventos em torno dos quais pairam questões cuja solução
teria vindo, ao olhar português, da interferência de uma esfera do maravilhoso,
categoria literária ligada à ação de forças externas, de caráter metafísico. Com
o ultimatum, Portugal vê-se diante de uma situação em que tal ação externa não
se apresenta, o que provoca, quando pouco, uma fratura na visão do país sobre si
mesmo.
Quanto ao ano de escrita de A confissão de Lúcio, está há apenas cinco anos do
“Regicídio”, ponto crucial para o desaparecimento do sistema monárquico português,
e a três da instauração da República, em um dos momentos mais críticos da
história recente do país. Desse modo, a própria vinculação do texto do romance às
tendências de vanguarda, especialmente aos princípios fragmentários do Cubismo
e ao viés onírico e inconsciente do Surrealismo, constituiria uma manifestação da
proposta ideológica da geração de Orpheu, qual seja a de desconstrução de toda uma
história, na qual, recorrentemente, a concepção de “vanguarda” esteve relacionada a
um elemento místico, pautada por uma atitude de eterna retomada de um passado
supostamente glorioso, o qual encapsula os valores que, em tese, deveriam sempre
orientar o progresso nacional.
Na esteira desse pensamento, ainda que revestida da ideia de fragmentação do
sujeito, multiplicidade de pontos de vistas e, consequentemente, de possibilidades de
verdade, típica das tendências de vanguarda que permearam a arte da Modernidade,
a constante menção de Lúcio Vaz à nebulosidade e ao mistério que envolviam seu
sentimento por Ricardo e Marta não deixa de apontar para uma das características
do pensamento português que a geração de Orpheu, especialmente Fernando Pessoa,
resgatou mais rigorosamente: a ideia de que a verdade dos eventos esconde-se atrás
de uma bruma de encantamento pode também ser atribuída à maneira como o
povo português interpreta sua história e a formação de sua identidade. A noção de
que o inexplicável, o maravilhoso, como categoria filosófica, permeia os fatos mais
relevantes da história de Portugal, ecoa também em A confissão de Lúcio, como um
dos elementos mais significativos na construção do ponto de vista que o narrador
revela a respeito da realidade em que se insere.
Outro aspecto de A confissão de Lúcio que chama atenção e se relaciona
diretamente com a questão da visão portuguesa sobre o próprio país – e com as
bases do que Miguel Real chamou de complexo pombalino – está em uma espécie de
xenofobia às avessas, uma xenofilia que o romance deslinda, por meio da trajetória
de suas personagens. É em Paris, por exemplo, que Lúcio Vaz vai buscar livrar-se do
brumoso ambiente que lhe provocava o sonho, o inexplicável que lhe encampava a
realidade:
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 185
Entanto, agora já não podia duvidar: vencera. Atravessara a Praça da Concórdia, monumental
e aristocrática, tilitante de luzes...
De novo, ungindo-me de Europa, alastrando-me de sua vibração, se encapelava dentro
de mim Paris, o meu Paris, o Paris dos meus vinte e três anos... (SÁ-CARNEIRO, M. de,
1988: 65)
A sala enchera-se entretanto de uma multidão bizarrada e esquisita. Eram estranhas mulheres
quase nuas nos seus trajos audaciosos de baile, e rostos suspeitos sobre as uníssonas e negras
vestes masculinas de cerimónia. Havia russos hirsutos e fulvos, escandinavos suavemente
louros, meridionais densos, crespos – e um chinês, um índio. Enfim, condensava-se ali bem
o Paris cosmopolita – rastaquouère e genial (Id.: 15)
superioridade, como a “americana fulva” (sob esse ponto de vista, uma voz autorizada),
que assim se manifesta a esse respeito: “Meus amigos, creiam-me, não passam de
uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam
aparentar” (Id.: 11).
Ainda com relação a essa espécie de “complexo de inferioridade”, Gervásio Vila-Nova,
personagem representativa de uma arte pautada pela ruptura de tradições, ainda que
ela implique a existência de uma manifestação artística vazia de sentido, na óptica da
lógica formal, apresenta uma crítica ferina à maneira como Portugal enxerga a arte
que produz. Ao citar a declaração de Fonseca, um “pobre pintorzinho da Madeira”,
Vila-Nova define claramente a oposição sobre que se centra sua visão de sua terra: “o
Fonseca diz que é um ofício acompanhar-me. E uma arte difícil, fatigante. (...) Sim,
concordo que a minha companhia seja fatigante. Vocês têm razão” (Id.: 10). Ao que
segue o comentário do narrador, em discurso indireto livre:
Em que pese a ironia da descrição feita por Vila-Nova, tornam-se evidentes traços
do discurso que despreza Portugal, em certa medida: o “pintorzinho da Madeira”,
“pensionista do Estado”, “olhando nostalgicamente o espaço”, remete à imagem de
um artista desconectado das tendências renovadoras por que passa a arte europeia,
vivendo em uma espécie de ranço do passado, ideia que se reforça pela caracterização
final: um “santo rapaz”.
Nota-se, sobretudo, nessa passagem, a ideia de uma arte incapaz de aderir às
tendências do pensamento europeu, civilizado, superior, em que o artista é, ao mesmo
tempo, sujeito e objeto de uma ruptura a qual Portugal, país “não-europeu”, é incapaz
de perceber e promover.
Nesse sentido, é fundamental refletir acerca da divergência, manifestada por sutil
ironia, entre a visão do narrador e a de Gervásio Vila-Nova, no tocante à noção de escola
literária, conceito esse que aponta para uma tradição consolidada na leitura que se faz
dos movimentos artísticos. Logo no início do romance, Gervásio declara-se admirador
e seguidor do Selvagismo, cujos traços característicos consistiam na destruição da
forma física, em uma estética baseada no uso de “diversos papeis e tintas de várias
cores” (Id.: 9), assim definida por Lúcio Vaz, conforme descrição de Gervásio
Vila-Nova:
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 187
Também – e eis o que mais entusiasmava o meu amigo – os poetas e prosadores selvagens,
abolindo a ideia, “esse escarro”, traduziam as suas emoções, unicamente em jogo silábico,
por onomatopeias rasgadas, bizarras: criando mesmo novas palavras que coisa alguma
significavam e cuja beleza, segundo eles, residia justamente em não significarem coisa
alguma... (Ibid.)
Sinto tantas afinidades com essas criaturas... como também as sinto com os pederastas...
com as prostitutas... Oh! é terrível, meu amigo, terrível...
Eu sorria apenas. Estava já acostumado. Sabia bem o que significava tudo aquilo. Isto só:
arte. (Id.: 11-12)
De Paris, amo tudo com igual amor: os seus monumentos, os seus teatros, os seus bulevares,
os seus jardins, as suas árvores... Tudo nele me é heráldico, me é litúrgico.
[...]
As ruas tristonhas da Lisboa do sul, descia-as às tardes magoadas rezando o seu nome: O
meu Paris... o meu Paris...
E à noite, num grande leito deserto, antes de adormecer, eu recordava-o – sim, recordava-o
– como se recorda a carne nua de uma amante doirada!
[...]
Só posso viver nos grandes meios. Quero tanto ao progresso, à civilização, ao movimento
citadino, à actividade febril contemporânea!... Porque, no fundo, eu amo muito a vida. Sou
todo de incoerências. Vivo desolado, abatido, parado de energia, e admiro a vida, entanto,
como nunca ninguém a admirou!
Europa! Europa! Encapela-te dentro de mim, alastra-me da tua vibração, unge-me da
minha época!...
Lançar pontes! lançar pontes! silvar estradas férreas! erguer torres de aço!... (Id.: 26-27).
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 189
Bibliografia
Bibliografia Activa
MARQUES, Oliveira A. H. O. (2009). Breve História de Portugal. Lisboa: Presença,
7ª edição.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1988). A confissão de Lúcio. Porto: Justiça e Paz.
Bibliografia Passiva
BAKHTIN, Mikhail (2003). Estética da criação verbal. Trad.: Paulo Bezerra. São
Paulo: Martins Fontes, 4ª edição.
BAKHTIN, Mikhail (1988). Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
Trad.: Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: HUCITEC/Editora da
UNESP.
HEIDDEGER, Martin (2006). Ser e tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 5ª edição.
LOURENÇO, Eduardo (2009). O labirinto da saudade. Lisboa: Gradiva, 6ª edição.
REAL, Miguel (2008). A morte de Portugal. Coleção Campo da Actualidade. Porto:
Campo das Letras, 2ª edição.
Entre o “Orpheu” e a “A Águia”, entre Fernando Pessoa
e Teixeira de Pascoaes
Renato Epifânio
Movimento Internacional Lusófono
1. Comecemos por dizer o óbvio: o Orpheu foi, de facto, uma revista marcante.
Foi uma espécie de cometa que atravessou e revolveu o panorama cultural da
época – em apenas dois números, publicados nos dois primeiros trimestres de
1915. O terceiro já não viria a ser publicado, por razões financeiras, pandemia que,
década após década, tem vitimado dezenas, senão centenas, de projectos culturais
meritórios num país com um público culto tão escasso (cada vez mais escasso?)
como o nosso.
Tendo sido uma espécie de cometa, não foi, longe disso, um «fogo fátuo», tal a
influência que exerceu nas décadas seguintes. Foi a primeira grande expressão, em
Portugal, de uma vanguarda modernista que, agregou, entre outros, nomes como
Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada-Negreiros ou Santa-Rita Pintor,
nomes que ficaram para sempre associados à chamada «geração d’Orpheu».
Foi, para além disso, o que para nós é particularmente significativo, uma revista
de escala luso-brasileira. Pelo menos do ponto de vista institucional, já que veio à luz
com dois directores: Luiz de Montalvôr, em Portugal, e Ronald de Carvalho, no Brasil.
Saliente-se também a presença do então jovem António Ferro como editor da revista,
o mesmo António Ferro que virá depois a ter o papel proeminente que se conhece
durante o Estado Novo, desde logo no plano cultural, onde continuou a contar com
a participação e o apoio dessa geração. Também por isso, 100 anos depois, o Orpheu
continua a confundir os espíritos mais obtusos…
192 100 Orpheu Renato Epifânio
Para estes, como é sabido, o mundo é sempre simples e deve continuar a ser visto a
preto e branco. À luz dessa grelha, o Estado Novo foi a negação da cultura em geral e
da modernidade em particular. Decerto que sim, em alguns aspectos. Noutros, porém,
e não menores, foi com o Estado Novo que essa modernidade anunciada pelo Orpheu
se veio a afirmar – refira-se apenas, como exemplo maior, a obra de Almada Negreiros
apoiada pelo regime. O que concluir daqui? Desde logo, que o mundo, felizmente, é
sempre mais complexo do que julgam aqueles para quem o mundo deve continuar a
ser visto a preto e branco.
uma literatura, como a deles [da “Renascença”], que se faz panteista, que préga naturalmente
o regresso á vida simples, á vida patriarcal, ao campo, que nos aconselha a voltar para traz,
quando as outras nações teem toda a sua atenção posta no futuro, encarando-o altivamente,
não na atitude do Desterrado, mas em atitude de marcha, essa literatura é uma excrescência
do passado, não póde viver2.
É certo que, no âmbito desse mesmo Inquérito, houve quem tivesse rebatido essa
perspectiva «passadista» da “Renascença”, como alegadamente aparecia expressa na
revista A Águia, órgão por excelência do movimento. Eis, nomeadamente, o caso de
Jaime Cortesão, que, de resto, não apenas rebate Júlio de Matos3, como apresenta,
alimentar um estado mórbido, ajudar a definhar mais a raça”, é antes elevar a Raça á consciencia activa
das suas mais altas virtudes, é levantá-la ás suas mais sublimes culminancias, arrebatá-la no impeto da
sua antiga audacia, erguendo‑lhe a vontade pelos seus mais genuinos sentimentos para as realisações do
Futuro».
4 Cf. Ibid.: 165: «um dos fins que se propõe a “Renascença Portuguesa” é precisamente combater o estrangeirismo,
revelar ao nosso Povo o Espirito Lusitano, e quando igualmente ninguem de boa fé pôde afirmar que o grupo
de escritores da “Renascença Portuguesa” sofra de qualquer influência estrangeira».
5 Cf. Ibid.: 187.
6 Cf. Ibid.: 177-178: «A “Renascença Portuguesa” tem, portanto, um fim e um alto critério filosófico e religioso
que a dirige e anima. E ao mesmo fim e ao mesmo critério obedece a nova Poesia portuguesa, que representa a
primeira afloração do espírito da Raça. Sim: há um renascimento literário iniciado pelos poetas que mencionei
na minha resposta ao inquérito da República. E o numero e o valor dêstes poetas são o bastante para se poder
afirmar que existe, no momento actual, uma nova alma pátria que é a antiga alma renovada e plenamente
revelada, ainda no seu aspecto transcendente e poético, mas que amanhã será perfeito pensamento definido
e fecunda actividade. Há uma nova alma lusitana revelada pela nova Poesia. E só não reconhecem esta
consoladora verdade os velhos espíritos empedernidos em velhos preconceitos e alguns novos espíritos (aliás
de valor) afastados da sua Raça, porque não sabem ou não querem reagir contra o meio português adulterado
por alguns séculos de subordinação a Roma e a Paris».
7 Cf. Ibid.: 180.
8 Cf. Ibid.: 198. Não escamoteando as já referidas divergências internas – ainda nas palavras de Proença: «no
fim de alguns numeros — muito poucos — o que veio a predominar na Aguia não foi o lado intelectual da
Renascença, mas a sua falange emotiva, mística, amorosa de sonho e de misterio. Por culpa dos elementos
do sul, a Poesia tinha tomado posse da Aguia, da primeira pagina até á ultima; por culpa dos elementos do
sul, a Renascença Portuguesa falhara completamente na sua missão./ O “saudosismo” a que se refere o snr.
dr. Julio de Matos foi assim um elemento sur-ajouté e de modo algum orgânico e primitivo da Renascença
Portuguesa./ Manda porém a inteira justiça que se diga que nêsse “desvio” da orientação de uma sociedade
não cabem só graves responsabilidades á inércia culposa dos meridionais; o snr. dr. Teixeira de Pascoais,
logo no 1.º numero, por um evidente equivoco (que do mais é incapaz a sua belissima alma, cheia de tão
profunda emoção e de tão humana simpatia) acentuava já êsse desvio nestas palavras do editorial: “É
na Saudade revelada que existe a razão da nossa Renascença; nela ressurgiremos, porque ela é a própria
194 100 Orpheu Renato Epifânio
Sou um dos directores da revista trimestral de literatura Orpheu. Não sei se V. Ex.ª
a conhece; é provável que não a conheça. Terá talvez lido, casualmente, alguma das
referências desagradáveis que a imprensa portuguesa nos tem feito. Se assim é, é possível
que essa notícia o tenha impressionado mal a nosso respeito, se bem que eu faça a V. Ex.ª
a justiça de acreditar que pouco deve orientar-se, salvo em sentido contrário, pela opinião
dos meros jornalistas. Resta explicar o que é Orpheu. É uma revista, da qual saíram já
dois números; é a única revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde
a Revista de Portugal, que foi dirigida por Eça de Queirós. A nossa revista acolhe tudo
quanto representa a arte avançada; assim é que temos publicado poemas e prosas que vão
do ultra-simbolismo ao futurismo. Falar do nível que ela tem mantido será talvez inábil, e
possivelmente desgracioso. Mas o facto é que ela tem sabido irritar e enfurecer, o que, como
V. Ex.ª muito bem sabe, a mera banalidade nunca consegue que aconteça. Os dois números
não só se têm vendido, como se esgotaram, o primeiro deles no espaço inacreditável de
três semanas. Isto alguma coisa prova – atentas as condições artisticamente negativas
do nosso meio – a favor do interesse que conseguimos despertar. E serve ao mesmo
tempo de explicação para o facto de não remeter a V. Ex.ª os dois números dessa revista.
Caso seja possível arranjá-los, enviá-los-emos sem demora.9
Tanto por aquilo que diz, esta carta é igualmente significativa por aquilo que
omite: falamos ainda, claro está, da revista A Águia, onde Fernando Pessoa publicou
os seus primeiros textos, em 1912: “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente
Considerada”, “Reincidindo…” e “A Nova Poesia Portuguesa no Seu Aspecto
Psicológico”. Saliente-se que, na citada carta, Fernando Pessoa refere-se ao Orpheu
como «a única revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde a Revista
de Portugal, que foi dirigida por Eça de Queirós» – ou seja, Fernando Pessoa dá aqui
Raça original e criadora”./ Isto era a antítese do espirito que animava os elementos do sul; poderiam êstes
ter feito entrar o movimento na trajectória que lhe competia; a sua inércia porém era absoluta; por isso,
dentro em pouco, a Renascença ficou limitada aos seus elementos “saudosistas” e o tom predominante na
revista foi o tom “saudosista”./ O autor destas linhas, e alguns outros do sul, muito poucos, que tinham
querido actuar, desligaram-se então completamente da Renascença, ainda que continuando a auxiliar a
sustentação da Revista, que tem publicado, dentro do seu espirito, coisas realmente interessantes» [ibid.:
123-124].
9 PESSOA, F., 1998.
Entre o “Orpheu” e a “A Águia”, entre Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes 195
Veja a Tabacaria: não passa duma brincadeira. Que poesia há ali? Não há nenhuma, como
não há nada… nem sequer cigarros!… Fernando Pessoa tentou intelectualizar a poesia e
isso é a morte dela. É roubar o espontâneo à Alma Humana, isto é, o que ela tem de Alma
Universal ou de poder representativo da realidade. Veja o poema (o poema?!) que começa
‘o que nós vemos das coisas são as coisas’… Isto não é poesia, nem filosofia, nem nada.”. E,
por isso, chegou a considerar Pessoa como um “não poeta” – nas suas palavras: “Repare:
não digo que foi mau poeta. Digo que não foi poeta, isto é, nem bom nem mau poeta. E se
foi poeta, foi-o só com exclusão de todos os outros, desde Homero até aos nossos dias…” –,
inclusive, como um mero “ironista” que, enquanto tal, não se deve tomar a sério11.
4. Como já defendemos num outro texto12, não entendemos estas palavras como
um sintoma de despeito ou de ressentimento. De modo algum. Pelo contrário,
consideramos que, vindas de Pascoaes, estas são palavras inteiramente justas, por
mais injustas que, em absoluto, as possamos considerar. E isto porque, atendendo ao
Poeta que Pascoaes foi, Pessoa só poderia aparecer-lhe como um «não poeta», nem
sequer como um «meio poeta». Para o Poeta que Pascoaes foi, poeta integralmente
poeta, não poderia haver, de resto, «meios poetas». Ou se era integralmente poeta,
como, de facto, Pascoaes foi, ou, muito simplesmente, não se era…
E porque foi Pascoaes integralmente poeta? A nosso ver, por uma simples mas
ainda assim suficiente razão: porque acreditava, integralmente, naquilo que escreveu,
naquilo que dizia. Quando falava, por exemplo, dos deuses ou dos anjos, Pascoaes,
com efeito, acreditava neles, no seu discurso, acreditava tanto no seu discurso que
acreditava que, através dele, essas entidades passavam realmente a existir. Realmente.
Como se, de facto, o discurso poético fosse um discurso realmente divino, realmente
criador. Como se, de facto, ao serem nomeados poeticamente, mesmo as entidades
mais fantasmáticas passassem realmente a existir. Ao lermos as suas obras, ao
lermo-las em voz alta, sobretudo, também nós acreditamos, ainda que apenas por uns
momentos, nisso, nesse poder criador.
Ora, em Pessoa, isso não acontece. Pessoa era demasiado “filosófico” – diremos
mesmo, demasiado “inteligente” – para acreditar integralmente no seu discurso.
Entre ele e o seu discurso havia sempre uma “cisão”, uma “distância”, uma “distância
crítica”, que impossibilitava essa crença. Mesmo nos seus poemas mais arrebatados,
como a Mensagem, essa distância paira, como uma ubíqua sombra. Não conseguimos,
de resto, imaginar Pessoa a ler em voz alta a sua Mensagem. No princípio, no meio
ou no fim, haveria sempre, fatalmente, um sorriso de ironia, que, por mais leve que
fosse, destruiria, por completo, o poema. Em Pascoaes, ao invés, mesmo quando ele
é irónico, não há ironia, essa ironia. E, por isso, muito justamente, Pessoa era, para
Pascoaes, um “não poeta”.
Bibliografia
1 – INTRODUÇÃO
autor). Essa observação nos interessa na medida em que nos remete diretamente ao
poema de Campos.
Ao longo de todos os versos da “Ode marítima”, o eu-lírico dirige seu olhar para
o “elemento” mar e por ele se deixa envolver. Mais adiante, transfere o olhar de fora
para dentro de si e assume a vida marítima com a invenção do mar imaginário, rico
em fantasias e movimento, a configurar a unidade da natureza universal. Sozinho, a
avistar do cais deserto um paquete que se aproxima do porto, sua imaginação cria asas
e abre um leque de possibilidades que ganha dinamismo à proporção que o volante
interior deixa de ser racional e começa a girar lentamente.
“Tela anímica onde tudo acontece”, eis o que se configura a alma do eu-lírico neste
momento. José Ney Costa Gomes avança neste pensamento ao afirmar que “aqui o ser
que olha e vê o faz com a alma, inventa-se, cria-se como sujeito (independente, apesar
de fundido à paisagem)” (GOMES, J., 2009: 96). Acompanhemos, portanto, como
procede tal invenção ou criação em pormenor.
Quando o volante ganha vida, o olhar, antes voltado para o paquete e outras
embarcações, mergulha na memória de tempos passados e, curiosamente, entre o cais
e o navio que parte, irrompe sobre o eu-lírico uma saudade de um cais de outrora, o
Cais Absoluto, de onde partiu para o mundo exterior, “fora do Espaço e do Tempo”.
Esse momento único, situado entre o cais e o navio, constitui o cerne da ideia de
intervalo, tão cara à poesia pessoana. Nesta cena intervalar, caracterizada como
uma espécie de redução fenomenológica, tudo acontece: o ruído dos guindastes, as
chegadas de comboios de mercadorias, o bulício a bordo dos navios até a fuga para
as águas eternas das Grandes Navegações, onde se pôde viver intensamente o espírito
das descobertas e do “mistério de cada ida e cada chegada”.
O não-lugar, inerente à concepção de intervalo, é que dá ensejo a que o eu-lírico
anseie por viver a experiência que o espaço proporciona, com todos os seus desafios e
aventuras, medos e angústias. Assim, como ressalta Yi-Fu Tuan, “para experienciar no
sentido ativo, é necessário aventurar-se no desconhecido e experimentar o ilusório e o
incerto. Para se tornar um experto, cumpre arriscar-se a enfrentar os perigos do novo”
(TUAN, Y., 2013: 18). Porém, ainda o momento não é chegado e o eu-lírico retoma
o seu posto a observar o paquete que entra no cais, ao mesmo tempo em que novo
impulso é dado ao volante interior, agora de forma mais acelerada.
A comoção toma conta do poeta que vislumbra não mais o paquete a entrar,
mas os navios abstratos e os navios vistos de perto, com suas especificidades e
características. Por meio das sensações múltiplas, vividas pelos órgãos dos
sentidos, o eu-lírico se imiscui na vida marítima que invade o seu sangue com
sedução. Seguindo, assim, a linha do pensamento de Tuan, o eu-lírico se estende
para o mundo: “Toda a vida marítima! Tudo na vida marítima!/ Insinua-se no
200 100 Orpheu Márcia Manir Miguel Feitosa
Embora seja o engenheiro naval que é, o que “beija com a alma as máquinas”,
Álvaro de Campos, a esta altura do poema, revela um desejo passadista da antiga vida
dos mares. A aparente contradição o poeta tenta justificar pela Distância Absoluta
em que se encontra em relação à história das grandes navegações. Qual Alberto
Caeiro, seu companheiro do “drama em gente”, anseia pela autenticidade, pela origem
primeira da Natureza, isto é, pelos mares ainda desconhecidos e pouco explorados
pela humanidade. O que era distante, por conseguinte, se torna próximo. O eu-lírico
passa então a alimentar o que Dardel aponta como a “Geografia Heroica”, a que
“manifesta um interesse pela Terra como realidade geográfica, uma inquietude sobre
o espaço a percorrer e a explorar, uma primeira geografia da aventura, da viagem
como exploração e proeza” (DARDEL, E., 2011: 73). Oniricamente, vivencia o apelo
do “delírio das coisas marítimas” e se transporta, graças ao balanço incansável do
volante, para dentro do universo das águas, a penetrar na própria essência geográfica
do ser-estar-no-mundo, sua geograficidade portanto, na esteira do pensamento de
Dardel.
“O mergulhar nas águas deste mar significa”, nas palavras de Marion Ehrhardt,
“um volver ao estado informe da pré-existência, um suspender de todas as tensões
e contrastes” (EHRHARDT, M., 1964: 180). Esse mergulho, ou melhor, essa
“viagem” constitui o cerne da “Ode marítima” e sobre ela teceremos nossas reflexões
subsequentes.
“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode marítima” ... 201
Segue-se, embalada pela interjeição “eh”, uma série de estrofes de invocação das
gentes do mar, experientes homens que se aventuraram para o “Mar Absoluto”, a
fim de “realizar o impossível”. O desbravar o espaço, “a imensidade imensa do
mar imenso”, na verdade, significa a busca pelo lugar experienciado, o “centro de
significados construído pela experiência” (TUAN, Y., 1975: 152). O que o poeta
almeja é a vivência de todos os homens dos mares, dos mais simples homens dos
mastros aos mais violentos e sagazes negociantes e exploradores. Da saudação
entusiasta a todos eles assoma a vontade vulcânica do eu-lírico de a eles se unir, num
afã desenfreado de realizar ações múltiplas, de modo a adquirir o que foi impossível
em terra firme. Verbos como “querer”, “encontrar”, “cuspir”, “sentir”, “despir”, “salgar”,
“fustigar”, “flagelar”, etc. povoam o imaginário do poeta e impelem uma grande
velocidade ao poema, tal como o volante imprimiu à sua alma desde a “partida” do
cais deserto.
O ápice de semelhante ebulição se dá com a tentativa de experienciar intensamente
a “febre da pirataria antiga”: desde as canções de marinheiros, inspiradas ainda em
Stevenson, até a guerra em alto mar, eivada de sangue e selvageria. Aliás, a cor vermelha
e seus matizes predominam por várias estrofes, tingindo o mar de fogo e de morte.
Curioso destacar que Álvaro de Campos objetiva compor uma orquestra sinfônica
quando adentra de corpo e alma na vida que gira em torno da pirataria, de tal modo
que ora é a vítima, ora o algoz, ora ainda – e de forma mais contundente – Deus, não
o magnânimo e onipotente, mas o “monstruoso e satânico”.
202 100 Orpheu Márcia Manir Miguel Feitosa
O que podemos evidenciar, neste conjunto de estrofes em que o poeta faz apologia
da pilhagem e da carnificina, é o que Tuan denomina de “topofilia”, não no sentido
primeiro que implica os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente
material, antes a emoção humana mais forte com o lugar, isto é, quando o lugar ou
o meio ambiente se torna “o veículo de acontecimentos emocionalmente fortes ou é
percebido como um símbolo” (TUAN, Y., 2012: 136). A partir do momento em que o
eu-lírico elege o mar de domínio da pirataria como sendo o seu locus, institui a marca
simbólica de tudo o que isto pode significar no contexto do poema: um sentimento
de afeto muito grande pelos piratas e corsários portugueses que, como é sabido,
viveram sua Época de Ouro no século XV, quando exerceram a supremacia dos
ataques no Atlântico e no Mediterrâneo. Para Campos, tal experiência se sobrepõe
à vivenciada pelos descobridores, na medida em que instaura a anarquia e a aversão
aos atos civilizatórios, os quais coíbem o espírito do homem e o afastam do ritmo da
modernidade, afeita à velocidade e ao estilo esfuziante e torrencial, à maneira de Walt
Whitman.
O que incomoda sobremaneira o poeta de Tavira é a sua condição de engenheiro
ao mesmo tempo prático e sensível, estático e débil diante da “grande dinâmica
estridente, quente e sangrenta”. O que o incomoda é o modo de ser de sua geração,
nomeadamente moralista e conservadora:
José Augusto Seabra reforça o papel desempenhado pelo volante neste momento
exato da ode, argumentando que, “se o volante funciona ainda, é agora ao contrário,
numa cadência cada vez mais lenta e doce, como a das velhas canções de embalar”
(SEABRA, J., 1982: 134); canções estas que ganham corpo e voz no poema, a comporem
a memória do passado distante e feliz. “Nas coisas menores mais familiares”, pontua
Freya Stark, citada por Tuan,
a memória tece as alegrias mais intensas e nos mantém à sua mercê por intermédio de
ninharias, algum som, o tom de uma voz, o odor de piche e de algas marinhas no cais. […]
Este certamente é o significado de lar – um lugar em que cada dia é multiplicado por todos
os dias anteriores (STARK, F. apud TUAN, Y., 2013: 176-177).
3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Bibliografia
Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1966). Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (2014). Poesias heterónimos. Introdução e organização de
Auxilia Ramos e Zaida Braga. Porto: Porto Editora.
“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode marítima” ... 205
Bibliografia Passiva
DARDEL, Eric (2011). O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. Trad.
Wetther Holzer. São Paulo: Perspectiva.
EHRHARDT, Marion (1964). O mar na “Ode marítima” de Fernando Pessoa.
Munster Westfalen: Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung.
GOMES, José Ney Costa (2009). Alma à janela: perfil intensivo de Álvaro de
Campos. Tese de Doutorado, FFLCH- USP.
MOURÃO-FERREIRA, David (1983). Larbaud, Pessoa, Antero: o recurso à ode
como forma de modernidade. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian/ Centre
Culturel Portugais.
PACHECO, Duarte (1905). Esmeraldo de situ orbis. Lisboa: Sociedade de Geografia
de Lisboa, Typografia Universal.
SEABRA, José Augusto (1982). Fernando Pessoa ou o poetodrama. São Paulo:
Perspectiva.
TUAN, Yi-Fu (1975). “Place: an experiential perspective”. The Geographical
Review. New York, vol. 65, nº 2, pp. 151-165.
TUAN, Yi-Fu (2012). Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio
ambiente. Trad. Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel.
TUAN, Yi-Fu (2013). Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. Lívia de
Oliveira. Londrina: Eduel.
Orfeu
O mito, a arte, a religião e o mistério
ORFEU, é um nome grego que chegou aos nossos dias, envolto num verdadeiro
mistério, mesmo que a figura que o corporiza, figure em poemas de autores reais, e
se apresente como a inspiradora de textos místicos, que temos a maior dificuldade
em decifrar no seu significado e alcance. Perguntamo-nos sempre: será que o orfismo
foi mesmo objecto de crença e praticado por devotos. E é nesta interrogação, a que
não se pode responder com qualquer certeza, que reside o encantador mistério que
tem vindo a seduzir artistas e poetas, figurando Orfeu em inúmeros poemas da
Antiguidade e mesmo no Portugal do século XX.
A mitologia órfica lembra-nos a textura de uma perfeita teia de aranha, que ora
se alonga, ora se encolhe, sem jamais nos permitir compreender a realidade da sua
estranha imagem que aparece em textos que vão desde a épica homérica aos tempos
de Bizâncio, sem jamais nos dar a chave que abra os esconsos da sua misteriosa
existência tão importante para a inteligência e sensibilidade do ser humano.
Os mitógrafos variam de opinião quanto à sua genealogia. Consultámos a Biblioteca
de Apolodoro, dos séculos I-II a.C., e o mitógrafo grego diz-nos que ele nascera
de Calíope, a Musa, e de Oiagro, contra a opinião de outros que o dizem filho de
Polímnia, a Musa da Música, talvez pelo simples motivo de Orfeu ser um encantador
da Natureza e dos seres que a ela pertencem, por fazer sair harmónicos sons pela
forma arrebatadora como tocava a sua lira.
Ao longo das descrições que dele se ocupam através da vida helénica e até romana,
é pela força irresistível da música que ele consegue as maiores proezas. A arte musical
era a força invencível que ele dominava como arma, facto que chama a atenção
das gerações antigas e das modernas. Por isso além de figurar em epopeias, que
celebram os seus feitos, os Argonautas, escritas nas línguas grega (Apolónio de Rodes
e Pseudo-Orfeu) e latina (Valério Flaco), também em seu nome, inventado ou não,
chegaram até nós fragmentos e Hinos, dedicados aos deuses, como senhor que era
dos mistérios ligados à vida e à morte. Tratar-se-á do Orfismo que apresenta íntimas
semelhanças com o Pitagorismo, sem que o seu deus seja necessáriamente Apolo,
mas sim Diónisos, de preferência, ao qual o Pseudo-Orfeu dedica na ed. de Quandt
(Berlim, 1955) o hino 30 (pp. 24-25) sem que insista como a teologia sua rival, na
208 100 Orpheu Raul Miguel Rosado Fernandes
transmigração das almas, mas sim no ascetismo (ou seja exercícios espirituais) que
proporcionem a entrada dos crentes nas Ilhas dos Bem-Aventurados, ou seja no céu,
ou no paraíso (jardim=parádeisos) divino.
Os princípios catequéticos que nos resume M. H. Rocha Pereira (p. 237) pregam
“– a abstenção de derramamento de sangue; – o vegetarianismo; – a doutrina de que
o corpo é a prisão da alma (que Sócrates, na sua Apologia, invocará, sem que se saiba,
pelo que penso, que haja qualquer ligação com as doutrinas de Orfeu); – a crença na
purificação do pecado, por meio de certos ritos, neste mundo e no outro, etc.) o que
não nos força a pensar na transmigração, segundo pessoalmente penso, contrariando
assim as dúvidas de Rocha Pereira que a este propósito cita, no volume dedicado à
Cultura Grega (p. 236 s.v. Orfismo), a sentença erudita de Willamowitz Moellenforf
que acusa os Modernos de falarem excessivamente dos Órficos. Lança contudo a
acusação ao interrogar o leitor perguntando-lhe: “Quem é que procedeu assim na
antiguidade?” Por muito erudito que o sábio alemão seja, também não lhe podemos
responder que ninguém o fez, visto que a sua música até as feras, as rochas e as Sereias
domava.
Entre os Gregos referem-se à sua existência, natureza e poderio, vários poetas,
entre os quais, Íbico que o intitula “o glorioso Orfeu” (frg. da p. 141, Hélade, ed.
2003, Rocha Pereira), e Simónides, que nos comunica a sensação dos que a sua
música e canto ouviam: “Inúmeras, as aves voavam / sobre a sua cabeça / e os peixes,
em pé, saltavam das águas de anil do mar, / ao som do seu belo canto.” E acrescenta
noutro passo: “Não se ergueu então o sopro do vento que abala as folhas, / para
impedir que a voz doce como o mel / aderisse aos ouvidos humanos” (frgs, da p. 179,
ed. 2003, Rocha Pereira).
O hino 30 a Diónisos, a quem dedica incenso resinoso, começa por invocá-lo
dedicando-lhe vários epítetos que sugerem o tom ribombante da sua presença divina,
a sua profícua presença astral, o ter sido trazido à existência antes de todos, as suas
duas existências, engendrado três vezes, e, como sempre acontece em preces deste
tipo, intitulando-o religiosamente por “senhor Báquico”. É uma espécie de ladainha
que temos diante dos olhos, em que se enumeram todas as qualidades do deus.
Ovídio nas Metamorfoses, já no séc. II (trad. de Paulo Farmhouse Alberto) da nossa
era, refere-se insistentemente a Orfeu, esse mágico vate e músico da Trácia, nos cantos
X e XI, em que vai em busca, para depois a perder, de Eurídice, a sua amada, que só
poderia fazer sair do Tártaro, se olhando para trás, a não procurasse com o seu olhar
apaixonado. Na versão de Ovídio, Eurídice tinha sido mordida no calcanhar por uma
serpente, e estava para sempre e para ele perdida. O canto do vate é romanticamente
manejado por Ovídio, cuja prece se dirige a todos os deuses: “Ó deuses deste mundo
situado sob as terras / no qual voltamos a cair todos quantos nascemos mortais, / se é
Orfeu - O mito, a arte, a religião e o mistério 209
lícito e permitis falar a verdade ….. não desci aqui para ver as trevas do Tártaro, / nem
para acorrentar as três goelas desse vosso monstro, / o rebento de Medusa…. / A razão
da vinda é a minha esposa, a quem uma serpente / ao ser pisada, injectou veneno / Por
estas paragens repletas de pavor / ….rogo: / tornai a tecer o destino apressadamente
cortado de Euridíce…. / Mas se os destinos me negam este favor pela minha esposa, /
estou decidido a não voltar: rejubilai com a morte dos dois.” Eis o estilo plangente do
igualmente libertino autor da Arte de Amar.
Mais plangente e completo é o episódio criado por Virgílio no canto IV das Geórgicas
que concebe Eurídice como Ninfa Dríade (dos bosques) que Aristeu perseguia e mata,
e ao descer aos infernos será Orfeu que a irá buscar, com a condição quase infantil
de se não voltar para a ver. Tudo acontece ao contrário e a ninfa morre e as forças
infernais não lhe permitirão levá-la para a vida.
A morte de Orfeu também será conhecida em várias versões, uma vez que os poetas
antigos, que eram teólogos também, introduziam nas histórias dos entes mágicos e
sagrados as versões que porventura lhes chegavam ou mesmo que inventavam.
Uma das versões mais correntes é a de que teriam sido as mulheres trácias, suas
conterrâneas, que o teriam despedaçado, não conseguindo evitar que a cabeça da
vítima chegasse a Lesbos, onde os habitantes lhe ergueram um túmulo, que deu à ilha
a potencialidade de vir a ser o centro da poesia lírica.
Outras versões religiosas, ligam os seus despojos à Trácia ficando sempre a eles
ligada a arte da poesia e do canto mágicos. Dentro desta visão, constava que a sua
lira fora transportada para o céu, e a sua alma para os Campos Elíseos, onde, vestido
de túnica branca, ele cantava para os Bem-aventurados, era versão dionisíaca do céu.
Daí o terem-no os antigos ligado aos mistérios de Elêusis, localidade que ainda hoje
encontramos a uns quilómetros de Atenas.
A sua fama e mito chegaram até nós, integrados em cantos épicos, um deles até
com o seu nome como autor, Os Argonautas, ou em hinos de origem religiosa, dos
quais já antes escolhi o dedicado a Diónisos.
As aventuras da Argo (Argus em Latim e velho bacalhoeiro português, que ainda vi),
vão passar-se sob o comando de Jasão na Cólquida, que convida Orfeu a acompanhar
a sua tripulação (Pseudo-Orfeu, Argonáuticas, v. 60, segs.) uma vez que sabia que os
poderes mágicos da sua música e do seu canto podiam fazer frente a todos os perigos
que lhe surgissem pelos caminhos marítimo ou terrestre. É o caso das SEREIAS que já
tinham aparecido nas aventuras homéricas de Ulisses, e que Orfeu enfrenta na viagem
à Cólquida, em busca do VELO DE OURO, descrevendo o encontro da primeira
pessoa (v. 1276 e segs.): “Eu cantava, gritando a alta voz, um hino maravilhoso……e
então, quando eu tocava, dos altos nevados, as Sereias ficaram chocadas pelo encanto
e deixaram de cantar. Uma deixou cair das mãos a flauta e a outra a lira, e lançaram
210 100 Orpheu Raul Miguel Rosado Fernandes
gemidos terríveis, uma vez que a morte, o seu horrível destino tinha chegado. Do alto
da rocha onde estavam, lançaram-se no abismo do mar agitado, e os seus corpos e a
sua figura orgulhosa transformaram-se em rochedos.”
Eis um rápido episódio que demonstra a força mágica de Orfeu, sem entrar
imediatamente na lenda espantosa e cruel da paixão de Jasão e Medeia, que Eurípides
consagrou de maneira inesquecível, e que até acabou no cinema num filme em que era
a Diva Calas, a grega, que interpretava o papel da cruel e imortal Medeia.
O mito dos Argonautas vai ser igualmente tratado na Grécia e em Roma, mas nem
todos os poemas se encontraram.
O mais conhecido é o de Apolónio de Rodes, nascido em Alexandria e depois
forçado a exilar-se em Rodes, no séc. III a.C., no reinado dos Ptolomeus e na presença
de Calímaco, cujo princípio “Um livro grande é um grande mal”, ele não seguiu,
consagrando o seu poema épico, a Jasão, a Orfeu e às suas mágicas proezas pela música
e canto, e igualmente aos amores de Jasão e de Medeia. Cria um mundo mítico, que
nunca sabemos onde acaba, mas que prendia e encantava o seu público decadente da
Grécia ptolomaica.
Roma, não tem para nos apresentar um poema de alta qualidade, embora já tivesse
conhecido Vergílio e o perseguido Ovídio, cujas poesias até hoje são respeitadas e
apreciadas, pelo ritmo conseguido e pela criatividade.
Nem por isso a fama da lenda de Orfeu foi esquecida e o seu nome aparece longo
à entrada do Inferno na Divina Commedia de Dante, canto IV, v. 139 e segs.: “e vidi
il buono acoglitor del quale, / Dioscoride dico; e vidi Orfeo, / Tulio e Lino e Seneca
morale…”. E se consultarmos a longa série de obras que celebraram a memória do
mítico vate, em Gilbert Highet, The Classical Tradition, Greek and Roman Influences
on Western Literature, Nova Iorque, 1957, veremos que o mito não foi esquecido: a
sua versão mais antiga, em pleno renascimento, vai ser em Mântua para a corte dos
nobres, na peça teatral, Orfeo, levada à cena em 1471, por Ângelo Policiano, que não
descura a acção dramática e apaixonada de Orfeu e Eurídice o que fará perdurar a
sua influência nos anos posteriores, como na época das “Luzes” a que se seguiu a
Revolução Francesa, quando Macaulay afirma com desdém num escrito dirigido a
Frederico da Prússia: “Prometeu e Orfeu, Elísio e Aqueronte … e todos os outros
arrebiques, que, tal qual um vestido atirado por uma bela orgulhosa à sua criada de
quarto, foi com desprezo abandonado pelo génio para as mãos da mediocridade.” De
facto os temas clássicos estavam a sofrer um tremendo abanão. Havia quem chamasse
a Homero, um ordinário, e a Ésquilo, um louco (p. 357).
Passada a revolução vemos André Chénier, um ex-revolucionário, a escrever elegias
em que o nome e a figura de Orfeu aparecem, uma vez que o poeta traduziu poemas
do Grego e do Latim (p. 403).
Orfeu - O mito, a arte, a religião e o mistério 211
Apesar da força dos antigos clássicos vir a reviver na nobre Inglaterra, onde
podemos ler o Ulisses de Joyce e a sua descida aos infernos, quando do enterro do Sr.
Dignam em Dublin, de Orfeu não há nenhuma obra que a ele se dedique inteiramente,
ele que também desceu aos infernos devido à força da sua arte.
Foi a França que devido à extrema sensibilidade de Anouilh faz reanimar o mito
de Eurídice, em vestes da época, uma vez que a heroína morre, e Orfeu seu marido
desce pela força da música aos infernos e é lhe concedida a graça de trazer a mulher
para o mundo dos vivos, desde que para ela não olhe. Mas olha e como castigo vai
ser dilacerado e devorado pelas Ménades da Trácia. Na peça de Anouilh, Orfeu, é um
violinista de café, e Eurídice é trazida pelo Senhor Henri, que lhe transmite a única
condição para que ela fique em seu poder: que não pergunte quais foram os seus
amantes (tipicamente francês), o que ele não consegue, e, por isso, a perde de novo.
Muito mais haveria a dizer, mas como diz o velho Horácio “tempus fugit” e foge
mesmo, mas permite-nos chegar ao ORPHEU de Lisboa, como estação final deste
combóio, de linha não férrea incansável. E o que é o ORPHEU lisboeta?
Data de 1915, e na lembrança do mistério órfico, artistas portugueses lançaram-se
com enorme sucesso, na criação artística do MODERNISMO, tal como em 1922
poetas e pintores se lançarão em São Paulo, lá tão longe no Brasil, na semana da arte
moderna.
Os nossos modernistas ainda hoje vivem, não só nas estantes das bibliotecas, mas
nas paredes onde penduramos os seus quadros. E quem não gostaria de ter ou mesmo
só ler um livro dos seus, ou um quadro dessa extraordinária geração?
Ainda me lembro que num dos anos da década de 1950 a minha professora
Marina Pestana, me comunicava que um poeta português de nome Fernando Pessoa,
começava a ser considerado muito perto de Camões, e que em breve iria gozar de
estatuto de celebridade igual.
Prestei-lhe a atenção que a Dra. Marina merecia, e comecei a interessar-me,
encantado pelo canto órfico, que eu nem sabia o que era, pois só anos depois e já a
estudar na universidade, vim a conhecer Pessoa e Sá-Carneiro, e fui ensinado por
docentes que dominavam o modernismo português. Não desci aos infernos em busca
de Eurídice, mas li os poetas e fiquei como que encantado pela música de Orfeu que
eles tocavam. Gostando dos clássicos e românticos, deixei-me levar pelas paisagens
que eles atravessavam e pelos sortilégios e mistérios que eles me faziam ouvir e
imaginar, pois mesmo quando ensinei em Nova Iorque, transmiti o seu encanto aos
meus alunos de todas nacionalidades.
É dessa altura que encomendei os sete livros de uma edição em sete volumes, hoje
segundo me consta esgotada e quase preciosa, dos Textos Universais, Centro Editorial
Português, Porto, s.d., OS MODERNISTAS PORTUGUESES, Escritos Públicos,
212 100 Orpheu Raul Miguel Rosado Fernandes
Ao longo dos sete volumes, em que até acaba por aparece o nome de Prado Coelho,
que a muitos de nós ensinou, percorre-se o caminho da metamorfose que se operou
na letras portuguesas, que entraram por uma via mais europeia e mais “sensacionista”
daquela época, que em breve chegará ao surrealismo, influenciada sem dúvida
essencialmente pela literatura francesa.
Joel Serrão cita Alfredo Guisado, um dos muitos que estiveram activos naquele
milagre sensacionalista, o qual diz: “Orfeu foi a porta de pesado bronze que se fechou
para sempre e para lá da qual ficou definitivamente o passado literário da nossa terra,
os seus continuadores e os seus admiradores.” (p. 27)
De qualquer forma, como em todos os grandes movimentos inovadores, não houve
só admiradores, mas também detractores, que ficaram indignados com tanta ousadia.
Ainda conheci pessoalmente alguns, mais conservadores ou totalmente conservadores,
que andaram pelas livrarias a rasgar os livros modernistas e a lançar-lhes fogo,
quando podiam, mas tinha já sido em vão o seu esforço, e os modernistas venceram
nesta batalha, e ainda hoje são eles que lemos, muito naturalmente acompanhados
pelos nossos livros de culturas antigas e bem portuguesas, que nem por isso deixaram
perder o valor estético que sempre as impuseram ao nosso gosto literário. Nada
fica igual nestes movimentos, mas o HOMEM esse permanece igual a si próprio e
Orfeu - O mito, a arte, a religião e o mistério 213
entregando-se em épocas ao longo da sua já velha história, ao que mais lhe agrada,
na época em que viveu, e nas outras, em que não viveu, mas que do ponto de vista
mais antigo obedecem a ritmos e imagens que são trascendentais. E a isso nem o
tal HOMEM consegue fugir, fica sempre cativo do que o impressiona e agrada. Pois
não era e é ele, segundo a versão platónica de PROTÁGORAS: “a medida de todas as
coisas”? Das que foram e das que estão para existir, pensamento, já na Grécia antiga,
considerado demasiado ateu e materialista, porque lá faltam os deuses.
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo,
entre sonho e real
Roberta A. P. de F. Ferraz
Universidade de São Paulo / FAPESP
1 Embora consideremos o aleatório do nome da revista, já que não há indícios textuais suficientes que nos
autorize a afirmar a sua extrema pertinência e adequação, esta nossa leitura d’O Marinheiro, como exercício
poético do negativo da escrita, abre-nos uma inevitável compreensão de que, sim, o nome não poderia ser
outro...
218 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz
Nesta ‘ética da inação sonhadora’ nos deparamos com uma das figuras mais
recorrentes da obra pessoana: a figura antiga (grega e medieval) do Destino enquanto
‘roda da Fortuna’, imageticamente representada por uma roda inexorável a girar,
independente da vontade e da ação humanas. Assim como, fatalmente, a noite sucede
ao dia, fatalmente nossa morte nos assiste. Existir consciente da vanidade da vida
pede, no exercício poético de Pessoa, que se consiga (pelo esforço ou pela resignação)
inverter esta lei natural, desconsiderando o apego às instâncias daquilo que se pode
ler como real (matéria, ação, vida desperta) e “desmanchando o Universo”, como
ensina Soares, fazer-se senhor do/no sonho.
Voltando ao artigo pessoano, se “a arte moderna é a arte do sonho”, podemos,
partindo desta premissa, investigar muitas coisas acerca da elasticidade e utilização
do próprio conceito de ‘moderno’. Por exemplo: na reação moderna ao moderno, que
o poeta propõe via sonho, haveria – diz-nos ele – três caminhos possíveis ao artista,
no que concerne à relação, na arte, entre SONHO E REAL: o primeiro seria, como ele
diz, “entregar-se ao mundo exterior, deixar-se absorver por ele, tomando dele a vida
oca e ruidosa (...)” (PESSOA, F., 1966: 156) – esta seria a via seguida por Nietzsche
e Whitman, entre outros; o segundo caminho deu-se com “pôr-se ao lado, (...), num
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 219
Tudo é o sonho dum pobre tolo. E o pobre tolo é também um sonho, um sonho de Deus que
não encarnou inteiramente. Por isso, ele anda envolto numa auréola, e tem a leveza duma
nuvem...
2 E continua: “Fumo das fábricas, gritos de sirenes, velocidades – sois atitudes da Matéria, impostas pelo espírito
imitativo e simiesco (...). // Eu fui dado à luz elétrica deste século; o denso fumo industrial satura-me os
pulmões; o ruído mecânico faz sangrar os meus ouvidos – e eu não compreendo, não assimilo esta Vertigem,
que é de ferro! // Fumos das fábricas, gritos das sirenes, velocidades, qual a vossa entoação espiritual, o vosso
significado? Qual o sentido das palavras – Força, Vitória, Actividade, que modernos vates apregoam? Sois
ocas palavras de metal... a bruta matéria a tornar-se nublosa, a incompreender-se. / Hulha negra feita nuvem
de fumo. // Poetas, deixai cantar o vosso coração. A inteligência conhece a Liturgia, mas ignora a Divindade. //
Cantai os Fantasmas e os Anjos; cantai os obreiros da nova Redenção – os que trabalham, em névoa de alma,
o Relâmpago futuro. / Cantai o que não existe... O resto é cinza. (idem: 44)
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 221
Somos o sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos nossos limites
materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a
faculdade mitológica de idealizar todas as cousas.
(...)
A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e
ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne
e o Verbo.
(...)
E aí tendes um pobre tolo sentimental, uma caricatura elegíaca. (PASCOAES, T., 2000: 19-20)
Preso numa cruz formada pelo elo tragicômico de carne e verbo – substância e
ausência – o poeta-cantor elabora a sua musa que, com o passar das obras, vai
tornando-se mais e mais complexa: a SAUDADE. Musa-metáfora – arte poética – de um
amor lúgubre, a Saudade será o cais buscado por meio de um canto órfico-alquímico,
que se esboça com todo o fôlego, na sutileza do negativo, sutileza que complexifica,
refina e adensa:
A incerteza, a hesitação, o querer e não querer, o partir e ficar, o vaivém da sorte, como diz o
poeta, é a própria atividade universal cindida em duas forças contrárias que se neutralizam
mutuamente e se condensam, originando um ponto definido na imensidade indefinida, uma
luz acesa nas trevas, um grito no silêncio – a Criação! Tudo é lembrança e esperança: duas
forças contraditórias e hesitantes no seu ímpeto criador. Hesitam, equilibram-se, casam-se e
originam o Existente – uma autoescultura da Saudade. (PASCOAES, T., 2000: 21-22)
é e não é; desperta e devaneia; foge não sabe para onde e, afinal, está sempre no mesmo sítio;
está ali, sentado numa pedra, mas o sonho não se desfaz absolutamente. Há horas em que
se torna mais intenso; pretende resistir, viver, e envolve a cabeça do tolo que se perturba e
magica além dos astros. (...) O tolo é desmaio, silêncio e um medo enorme ao seu fantasma,
tão destacado e vivo, diante dele! Sempre diante dele!
222 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz
É um fantasma, só memória. Anda descalço e em cabelo; e por isso é tolo e meio poeta.
Põe-se a evocar o Passado; e esta evocação é uma névoa que lhe transtorna o juízo e escurece
as cousas que se ilimitam e aumentam de tamanho, como aparições prodigiosas. (...) Vive no
meio de vozes que lhe falam, mas não as compreende. São confusas, distantes: – uma nuvem
musical que se condensa em lágrimas espectrais; uma nuvem que o absorve por completo e
onde ele boia, abstrato e doloroso – tão abstrato que não é ninguém! tão doloroso e sensível
que é todas as almas deste mundo e do Outro Mundo!
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 223
(...) Os monstros não largam o pobre tolo, a debater-se, aflito, entre um rochedo e uma
nuvem, o que existe e não vive e o que vive mas não existe.
(...) O pobre triste não dorme; sonha. Sonha de dia e tem a ilusão da realidade; e tem, de
noite, sonhando, a realidade da ilusão. Possui, em alto grau, estes dois sentidos da Realidade,
como todos os malucos que avistam as duas faces da medalha. É que ele existe e vive. E existe
de tal modo, que penetra na própria substância dos rochedos. (PASCOAES, T., 2000: 50-52)
Para além da insistência do vazio e sua inquietude, para qual ambas as obras nos
levam, cumpre ressaltar que, apesar do sim da saudade, o resultado final não é de
todo afirmativo, já que, como o dissemos, o corpo deste sim, desta afirmatividade
que a Saudade encarna, é a própria ausência. Não se trata, reiteramos, da conclusão
satisfeita numa identidade ou unidade salvífica localizada numa origem ou num
além-morte. Pascoaes o sabe: a saudade pode mostrar-se um inteligentíssimo
xeque-mate às intrínsecas ameaças de finitude, mas de maneira alguma conclui o
jogo. Ele o sabe porque a saudade só é enquanto se canta, na ponte do poema, no
corpo desse doloroso verbo escuro, voz em gangorra que, assim como conquista e
celebra, perde e põe a perder, novamente, o já sempre perdido. Em São Paulo, por
exemplo, biografia escrita em 1934, Pascoaes escreve: “Ninguém atinge a meta na
corrida. Não há destinos concluídos. O acabado é quimera. Há esboços” (PASCOAES,
T., 2002: 236). Experiência poético-ontológica que o crítico M. Blanchot, em seu texto
“O pensamento trágico”, assim apresenta:
Onde tudo é indeciso só se pode viver num desvio perpétuo, pois ater-se a uma coisa suporia
que há algo de determinado a que se ater, suporia portanto uma separação nítida de sombra
e de claridade, de sentido e de não-sentido e, por fim, de felicidade e de infelicidade, mas
como um é sempre o outro e o sabemos, mas numa espécie de ignorância que nos dissuade
sem nos esclarecer, não buscamos senão preservar a incerteza e obedecer-lhe, inconstantes
por uma falta de constância inerente às próprias coisas, não nos apoiando em nada porque
não há apoio em nada, e essa ligeireza responde à verdade de nossa existência ambígua que
é rica apenas de sua ambiguidade, a qual cessaria tão logo quisesse realizar-se: ela nunca é
mais do que possível (BLANCHOT, M., 2007: 28)
física do pobre tolo sobre a ponte, olhando a natureza em toda sua diversidade, plasmado
ali como um ‘túmulo de pé’, não seria melhor compreendida se abarcando esse reverso do
vazio que vê a personagem, absorta nessa inelutável cisão do ver... Como se ele, parado,
olhando a paisagem movente, olhasse para um imenso volume do vazio, vazio que lhe
devolve o olhar, movendo-o assim (o sujeito) ao ‘trabalho’ do sentido inelutável da perda:
o poema. Este arfar-entre, este jogo do visível/invisível, é o ritmo que Pascoaes labora
para impregnar, em texto, o sentido pleno da ausência que ele chamou de Saudade. A
saudade acaba por ser (ou querer ser) esta forma hesitante, em que não apenas se evita o
vazio, a dominação do vazio, a negação; como que, muito habilmente, fá-lo evitando o
pleno, a verdade do sentido, o apaziguamento. Nas palavras de Didi-Huberman:
(...) diante de um túmulo, a experiência torna-se mais monolítica, e nossas imagens são mais
diretamente coagidas ao que o túmulo quer dizer, isto é, ao que o túmulo encerra. Eis por que
o túmulo, quando o vejo, me olha até o âmago – e nesse ponto, aliás, ele vem perturbar minha
capacidade de vê-lo simplesmente, serenamente – na medida mesma em que me mostra que
perdi esse corpo que ele recolhe em seu fundo. Ele me olha também, é claro, porque impõe
em mim a imagem impossível de ver daquilo que me fará o igual e semelhante desse corpo
em meu próprio destino futuro de corpo que em breve se esvaziará, jazerá e desaparecerá
num volume mais ou menos parecido. Assim, diante da tumba, eu mesmo tombo, caio na
angústia – a saber, esse ‘modo fundamental do sentimento de toda situação’, essa ‘revelação
privilegiada do ser-aí’, de que falava Heidegger... É a angústia de olhar o fundo – o lugar – do
que me olha, angústia de ser lançado à questão de saber (na verdade, de não saber) o que
vem a ser meu próprio corpo, entre sua capacidade de fazer o volume e sua capacidade de se
oferecer ao vazio, de se abrir. (DIDI-HUBERMAN, G., 1998: 38)
Se, como vaticinou Pessoa, “o maior poeta da época moderna será o que tiver mais
capacidade de sonho”, além de uma galáxia toda de exímios sonhadores de nossa frugal
fragilidade e hesitação, podemos, sem dúvidas, saber ler que o par Pascoaes-Pessoa nos
revela um dueto cuja força nos legou uma das mais excitantes constelações literárias
do negativo. O negativo como poder sonhador, a voz que move, não montanhas, mas
fantasmas de montanhas, vastidões de vácuos, uma plenitude que, para sorte nossa,
não nos deixa ceder ao tédio, à movimentação anestesiante e histérica de um mundo
que, como o deles, segue demandando que saibamos responder a ele, cantando com
nossa voz a centelha de Orfeu cuja cabeça, depois de morto, rolando por um rio, seguiu
chamando na morte a sua amada morta, resistindo ao esquecimento.
A Saudade não será, portanto, cais nenhum que receber qualquer marinheiro
desejado ou seus despojos. Pascoaes o dirá: “O tolo é um mar e boia em pleno mar”
(PASCOAES, T., 2000: 58). É apenas, durante a viagem, enquanto se boia, aquela
paisagem abstrata e infinita, entranhada e comovente, que se faz poema, num esforço
da voz em sustentá-la, esforço, lembramos, trágico e cômico, tragicômico, cuja figura
por excelência é a do pobre tolo. Pascoaes o sabia e o disse ao longo de todo o seu
romance da saudade: o canto é poderoso porque é frágil.
Pascoaes e Pessoa, em diferentes graus, são ambos viajantes de um mundo cuja
representação libertou-se de suas margens, sonhadores de um devir em deriva,
escrevendo o negativo de qualquer conquista, em intimidade ardente com o que
hoje se faz legado nosso: o desejo de seguir resistindo, pela poesia, na poesia, a toda
ameaça de menos sonho, menos loucura, menos intensidade. A poesia como frágil
desejo de antídoto da banalidade. Tudo para que, seguindo o mote pascoaesiano, “a
raça dos tolos não se extinga, nesse mundo do Bom Senso e da Razão” (PASCOAES,
T., 2000: 22), para que, ardentes, sigamos, resistentes e resilientes, bailando contra toda
força normativa e banalizadora, resistindo ao cadáver nosso, convidando o perder e
226 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz
o morrer à nossa boca de leitores insaciáveis num mundo muitas vezes entristecido
pela saciedade banal de todos os dias. E fechamos, convocando os pobres tolos, com
Pascoaes:
O tolo arde, embriaga-se de fumo e canta como os pássaros noturnos. Põe-se a cantar, e
aparece-lhe a morte. Dança e vê, junto dos pés, a boca aberta dum sepulcro. E canta e dança
em volta dum sepulcro: uma dança de velhos ritos funerários. O pobre tolo já morreu. Esta
figura em que ele se mostra, à luz do sol, é feita duma substância espectral e fabulosa: uma
sombra, orelhuda e lanzuda, que ergue as mãos e põe os ouvidos em íntima comunicação
com as estrelas. Ergue as mãos, canta e dança embriagado, e deita fumo pela boca. E fuma, e
fumega, e torna a fumegar. Esconde-se num eclipse total (...) E o pobre tolo dança, em volta
do seu túmulo, com a sombra da sua infância (PASCOAES, T., 2000: 122)
Bibliografia
Bibliografia Ativa
PASCOAES, Teixeira de (2000). O pobre tolo. Lisboa: Assírio & Alvim.
PASCOAES, Teixeira de (1993). O Homem Universal. Lisboa: Assírio & Alvim.
PASCOAES, Teixeira de (2002). São Paulo. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (1992). Livro do Desassossego (Recolha e transcrição dos
textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização
de Jacinto do Prado Coelho). Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1998). Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PESSOA, Fernando (1966). Páginas de Estética e Teoria Literária. Org. Jacinto do
Prado Coelho. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1968). Textos Filosóficos – Vol. I (Estabelecidos e prefaciados
por António de Pina Coelho). Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando. http://arquivopessoa.net/textos/4518 (09/02/2011)
Bibliografia Passiva
BLANCHOT, Maurice (2007). A conversa infinita – a experiência limite. São Paulo:
Escuta.
DELEUZE, Gilles (1996). O mistério de Ariana. Lisboa: Vega.
DIDI-HUBERMAN, G. (1998). O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34.
LOPES, Silvina Rodrigues (2012). A estranheza-em-comum. São Paulo: Lumme
Editor.
Antecedentes do microconto em Portugal:
Almada Negreiros e os seus Frizos1 2
1 Respeitar-se-á, sempre e quando se proceda à citação direta da obra de Almada Negreiros em questão, a grafia
usada na 2ª edição publicada pelas Edições Ática (Lisboa, 1971).
2 Os resultados deste trabalho são fruto do financiamento do Programa de FPU do Ministerio de Educación,
Cultura y Deporte do Governo de Espanha.
228 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira
The short-short is clearly a subgenre of the short story, but there are notable distinctions,
mostly of degree.
[…] Because of its miniaturist commitment, the short-short form is not notable for bold
actions, even though something always happens; the short-short fiction tends to be a story
of manners, of key moments in the relationship of two protagonists, the vehicle for modern
myth, fable, or excursions into horror. (HALL, J. B., 1986: 234)
Lo que aquí llamo cuento ultracorto, como ya señalé, tiene una extensión que no rebasa las
doscientas palabras. […]
En el estudio de estos minicuentos es necesario considerar, además de la brevedad extrema,
los siguientes elementos característicos:
a) Diversas estrategias de intertextualidad (hibridación genérica, silepsis, alusión, citación
y parodia)
b) Diversas clases de metaficción (en el plano narrativo: construcción en abismo, metalepsis,
diálogo con el lector) (en el plano lingüístico: juegos de lenguaje como lipogramas,
tautogramas o repeticiones lúdicas)
c) Diversas clases de ambigüedad semántica (final sorpresivo o enigmático)
d) Diversas formas de humor (intertextual) y de ironía (necesariamente inestable).
(ZAVALA, L., 2004: 98-99)
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 229
Miniconto é um tipo de conto muito pequeno, digamos que com no máximo uma página,
ou um parágrafo. Alguns dizem que ele é o primo mais novo do poema em prosa, outros
apontam as fábulas chinesas como origem, de certo é que desde meados do século XX o
conto tem experimentado – com sucesso – formas extremamente breves a partir de textos
de gente como Cortázar, Borges, Kafka, Arreola, Monterroso e Trevisan. (SPALDING, M.,
2007: 1)
Aliado a este novo conceito que detém uma vasta terminologia a ele associada e
que, insistimos, não é um fenómeno totalmente estranho e desgarrado da poética
da brevidade na História da Literatura, há uma série de características e tendências
que se reiteram em ser-lhe atribuídas: falamos da presença dos elementos que
conformam uma narração (tempo, espaço, personagens, narrador e ação), da
extensão hiperbreve – que não deve ultrapassar uma página impressa3 (no caso
da publicação em papel) –, do recurso à elipse, à unidade de efeito e à velocidade
no desenlace narrativo, da presença de ambiguidade semântica e de uma alta
capacidade de sugestão, do encadeamento de processos de hibridação e incorporação
de elementos pertencentes a outros domínios literários e extraliterários, da fácil
propensão a jogos intertextuais, da incorporação de estratégias que cabem dentro de
uma estética da provocação como é a ironia, a paródia e a ruptura das expectativas
leitoras.
A questão da classificação quanto ao género literário a que pertence a obra Frizos
tem sido levantada várias vezes, pelo seu carácter heterogéneo:
Quando apareceu nas páginas de Orpheu, Frisos não trazia qualquer subtítulo que indicasse
o género do texto e, do subtítulo que o acompanha, só podemos colher o facto de o autor
se considerar um «desenhador», antes de um escritor. Na mesma época, porém, Fernando
Pessoa refere-se a Frisos como uma série de «contos» e, nos anos seguintes, a crítica tem
empregado várias classificações para descrever este conjunto de pequenos textos em prosa.
Em 1970 e em 1985, vemo-los incluídos no volume de «Poesia» das Obras Completas de
Almada Negreiros e, em outros lugares, são considerados como poemetos, poemas em
prosa, parábolas, prosas poéticas ou prosas.
(SAPEGA, E. W., 1992: 18)
3 Não é casualidade o facto de, entre a vastíssima terminologia aplicada a este conceito no âmbito anglo-saxónico e
hispânico, existirem termos como sudden fiction, flash fiction, ficción súbita ou cuento instantáneo: constituem,
eles mesmos, chamadas de atenção para o carácter extremamente sucinto destes textos, cujo conteúdo total,
em termos idílicos, deve ser captado de modo instantâneo.
230 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira
4 Não sendo nosso objetivo expor e desenvolver as atuais discussões sobre a catalogação do microconto no sistema
literário, queremos apenas fazer menção a teóricos do microconto, como David Roas, que consideram este
discurso literário uma variante do conto, o que faz com que as suas diferenças com respeito a este último sejam
medidos pela magnitude das propriedades que se costumam outorgar ao conto literário (ROAS, D., 2010: 9-42).
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 231
O Echo
Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!
Talvez que fosse á caça; quer fazer surprezas com alguma côrça branca lá da floresta.
Era p’lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Teve mêdo: mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E uma voz de mulher tambem,
tambem chamou Adão.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma!
E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe.
– Outra que não Ella chamára também por Elle. (NEGREIROS, A., 1971: 72)
Como é percetível, este texto começa com a apropriação da voz de uma das
personagens, Eva, fazendo com que o aparente vazio de omnisciência com respeito à
ação narrada produza um efeito de inquietação no leitor. O laconismo, expresso em
frases muito curtas e na enunciação concisa das ações das personagens intensificam
a aura de mistério. Do mesmo modo, a utilização de personagens do imaginário
coletivo, como Adão e Eva (e nos textos “Ciúmes” e “A Sésta”, das personagens
Colombina e Pierrot da Commedia dell’Arte italiana), permite ao narrador poupar
descrições e contextualizações, confiando nos conhecimentos prévios do leitor e
propiciando o foco na ação. Em nenhum momento, o corpo da narrativa faz menção
explícita ao eco, mas sim à voz de uma outra mulher, jogando, através do discurso
indireto livre, com a ingenuidade da personagem feminina. Se não fosse pelo título,
o leitor poderia inferir que estaríamos perante um texto de reescrita subversiva de
uma obra canónica, procedimento recorrente no microconto contemporâneo.
Este é apenas um exemplo de que a escolha tanto do título de cada texto
hiperbreve como da própria obra não é gratuita. Por um lado, Frizos, remete-nos
para a natureza transferível e total que uma obra literária pode adquirir, o que já
de si mostra como Almada Negreiros foi na sua época um visionário, sabendo
aproveitar as propriedades pictóricas de artes visuais e traduzi-las para o âmbito
5 Para um aprofundamento do tema, sugere-se a consulta de ZAVALA, Lauro (ed.) (1996). «Ernest Hemingway.
El principio del iceberg». Teorías del cuento III. Poéticas de la Brevedad. México D.F.: Universidad Nacional
Autónoma de México, pp. 19-26.
232 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira
literário, conferindo-lhe à sua obra uma essência ainda mais híbrida. Tal como
Graça Videira Lopes expõe:
O que Almada faz, pois, nas pequenas narrativas experimentais de “Frisos” é uma inversão
dos termos: ao contrário da prática tradicional, onde a pintura (nomeadamente a histórica
e figurativa) parte de uma narrativa e lhe serve de ilustração, nesta sequência de “Frisos” são
as narrativas literárias que glosam poeticamente imagens visuais, ou que as “ilustram” (se
tal verbo pudesse ter algum sentido aqui). (LOPES, G. V., 2005: 4-5)
Esse efeito é visível através da perceção de que a ação de cada texto se move
maioritariamente de uma forma unidirecional e sequencial, dando a sensação de
observação contemplativa por parte do narrador. Por outra parte, a maior parte dos
títulos que compõem Frizos, “Ciúmes” (1971: 71-72), “O Echo” (1971: 72), “Sèvres
Partido” (1971: 72-73), “Mima Fataxa” (1971: 73-75), “A Sombra” (1971: 75-76), “A
Sésta” (1971: 75-76), “Ruínas” (1971: 77-78), “Primavera” (1971: 78-79), “Trevas”
(1971: 79-80), “Canção” (1971: 81), “A Taça de Chá” (1971: 82) não só funcionam
nalguns dos casos como a chave para decifrar o significado e a mensagem primordiais,
como também poderiam muito bem, pela eleição de sintagmas nominais breves,
ser títulos de pinturas ou esboços, ideia que o próprio autor faz questão de recalcar
quando assina e faz corresponder a sua obra ao “desenhador José Almada Negreiros”.
Ora, também os microcontos tendem a delegar protagonismo e relevância ao título,
tal e como o afirma Irene Andres-Suárez:
[...] la importancia del título – elemento clave que guarda una relación dialéctica con el
texto, orienta la lectura y subraya los elementos significativos que conviene tener en
cuenta –, y también del inicio y del cierre (abundan los finales sorpresivos y/o enigmáticos).
(ANDRES-SUÁREZ, I., 2012: 24)
A carga simbólica em textos como “Trevas” (1971: 79-80) assume dimensões muito
significativas, quando conceitos e imagens como “punhaes”, “pinheiros esgalgados”,
“lençoes de linho”, “azas brancas de garças caídas por faunos caçadores” e “Noite”
concorrem na obtenção e sugestão de uma atmosfera tenebrosa e de sobressalto. Este texto,
embora reconheçamos que o valor descritivo constranja a força e velocidades narrativas,
é pertinente para entender como uma unidade de efeito consistente pode fazer alterar
as expectativas leitoras, processo também ele muito frequente nos microcontos. A ideia
principal que é veiculada em “Trevas” é a de que o narrador se encontra num espaço que
se assemelha a um cenário de história de terror: “De dia não se via nada, mas p’la tardinha
já se apercebia gente que vinha de punhaes na mão, devagar, silenciosamente, nascendo
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 233
A lua é uma laranja d’oiro num prato azul do Egypto com pérolas desirmanadas. E as
silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na briza eram um bailado de estatuas de sonho
em vitraes azues. Mãos ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se. (1971: 80)
Bibliografia
Bibliografia Activa
ÁLVARES, Cristina e Maria Eduarda KEATING (org.) (2012). Microcontos e
outras microformas. Alguns ensaios. Centro de Estudos Humanísticos da
Universidade do Minho: Edições Húmus.
ANDRES-SUÁREZ, Irene (2012). Antología del microrrelato español (1906-2011).
El cuarto género narrativo. Madrid: Ediciones Cátedra.
COSTA, Rui e André SEBASTIÃO (selecc. e org.) (2008). Primeira Antologia de
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236 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira
Ettore Finazzi-Agrò
Sapienza Universidade de Roma
Vamos começar onde tudo acaba; vamos começar pelo estabelecimento duma
identidade plural: “Nós, os de Orpheu”. Uma afirmação peremptória da qual
descende uma pergunta que poderíamos formular assim: de que modo e seguindo
quais caminhos é que um conjunto bastante heterogéneo de artistas chegou a
identificar-se numa comunidade, num sujeito coletivo? A assunção de um “nós”,
mais do que um cimento estético efetivo ou uma reivindicação geracional, parece,
com efeito, a suposição de uma identidade compartilhada que sobrevive no tempo
e ao tempo, apesar do desaparecimento súbito de alguns, do afastamento de outros,
da dispersão que corroeu as relações pessoais, da deriva anti-moderna que arrastou
vários membros do grupo originário para fora do projeto de renovação estética e
ideológica que estava na base do programa inicial.
O programa inicial, justamente. Mas como circunscrever e compreender o que
se encontrava e, ao mesmo tempo, se escondia na fundação do grupo de Orpheu e
que, cruzando práticas artísticas diversas e escolhas poéticas às vezes incompatíveis,
desembocou numa identidade coletiva? A resposta talvez possa ser procurada
no breve texto assinado por Luís de Montalvor que funciona como introdução ao
primeiro número duma revista que se furta ao padrão das revistas ou de qualquer tipo
de publicação periódica. Lemos, de facto, no incipit:
238 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò
Temos, desde logo, uma opção que não consiste apenas numa recusa dos modelos
anteriores, mas que se manifesta através duma escolha estilística peculiar. De facto, o
andamento aparentemente anómico, irregular e antigramatical do discurso procura
manifestar, de imediato, uma diferença irredutível sobre a qual construir um novo e
extravagante modelo discursivo.
E esse vagar fora das normas consolidadas é, com efeito, imediatamente confirmado
no período seguinte:
Como se vê, a disposição sintagmática da frase tenta romper com qualquer modelo
lógico-discursivo ao mesmo tempo que reafirma a coerência incoerente do projeto
estético, vinculado a um “volume de Beleza” logo “nosso”, característico e coeso, do
qual “se engalanar”.
A questão à qual a apresentação duma nova revista deveria responder parece, até
aqui, iludida, levando o leitor a interrogar-se sobre a razão que empurrou os jovens
artistas a escolher uma figura da mitologia clássica para intitular uma publicação, que
deveria ser periódica e, sobretudo, inovadora e anti-tradicional. Se compararmos, de
facto, o texto de Montalvor com aqueles de outros manifestos das vanguardas europeias,
a escolha do título ficaria fora de foco: nenhuma apresentação dum novo ismo, nenhuma
projeção para um futuro de subversão dos cânones estéticos clássicos (por exemplo, para
Marinetti: “um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que
a Vitória de Samotrácia”3), e sim o esconder-se desse discurso, que fica todavia irregular
e anti-normativo, atrás duma simbologia bastante corriqueira, tirada dum modo de
pensar a arte certamente passadista, atrás dum nome mítico, o de Orfeu, que desde
sempre é uma marca e uma metáfora do poético. Mas a apresentação continua assim:
1 Luís de Montalvor, “Introdução”. Orpheu, ano 1 (1915), n. 1, pp. 11-12. Na reprodução desse texto “inaugural”
decidi manter a grafia original.
2 Ibidem.
3 Tirei a tradução do Manifesto futurista do livro de Gilberto Mendonça Teles (1983: 91).
A palavra em exílio Orpheu e o desejo de comunidade 239
Puras e raras suas intenções como seu destino de Beleza é o do: — Exilio!
Bem propriamente, ORPHEU, é um exilio de temperamentos de arte que a querem como a um
segrêdo ou tormento…4
Nestas frases encontramos, talvez, tanto a razão de ser do título escolhido, quanto
finalmente a base que fundamenta a atribuição do discurso a uma identidade coletiva.
Porque, em primeiro lugar, o Orfeu a quem é intitulada a revista – apesar da influência
aparente do quadro Orfeu nos infernos, composto por Santa Rita Pintor por volta de
1909 ou mesmo antes, mas reproduzido apenas em 1917 no interior de Portugal
Futurista 5 – não é o emblema mitológico da poesia e do caráter apolíneo da arte,
mas é o nome que, no orfismo, encobre e significa uma série de crenças místicas e de
práticas dionisíacas – como, aliás, o próprio Luís de Montalvor esclarece logo a seguir:
7 Veja-se, a respeito do tema do exílio em Pessanha, o importante livro de Paulo Franchetti (2001).
8 TELES, G. M., 1983: 92.
9 Veja-se, a esse respeito, o estudo de Salvatore Natoli (1999: 195-199).
A palavra em exílio Orpheu e o desejo de comunidade 241
Orpheu, aberta por uma “justificação” de autoria, desta vez, de Augusto Santa-Rita na
qual se retoma a ideia, que já encontrámos em Luís de Montalvor: a dum desterro em
direção à Beleza e contra a “massa amorpha de um povo de inconscientes emotivos”
que se apoderou do espaço pátrio.10
Falei em “comunidade de exilados” e, mais em particular, numa comunidade de
artistas que não têm comunidade ou que compartilham apenas aquele “nada em
comum” de que falou magistralmente Georges Bataille. A questão que fica todavia em
aberto é como conciliar tudo isto com a reivindicação de um sujeito coletivo, de um
“nós” a abrigar vozes e personalidades diferentes. Acho que o problema não poderá
ser resolvido atribuindo àquela identidade plural apenas um valor emblemático
ou um estatuto conjetural, mas analisando em concreto como essa comunidade de
desterrados consiga constituir-se num grupo coeso. Porque há, no exílio, pelo menos
uma oportunidade: a de se livrar do peso da herança cultural, a de inventar uma
tradição a partir do desenraizamento, a de se encontrar, enfim, e de se reconhecer no
alheamento. Entenda-se bem: a condição do exilado é sempre ligada a uma situação
de solidão existencial, de angústia dependente da perda de todas as referências
espácio-temporais e socioculturais (como bem mostrou um ilustre exilado como
Edward Said nos seus livros11), mas a esta condição trágica e aparentemente sem
remédio corresponde, todavia, uma liberdade de inventar o seu próprio discurso e o
seu próprio percurso, dentro de uma realidade alheia na qual viver, embora de modo
sofrido e apartado, uma vida eventual – como aconteceu, por exemplo, com Joseph
Conrad, que habitou a sua expatriação como apropriação, como hipótese duma nova
pátria dentro de uma língua nova e estrangeira, tentando preencher o vazio da sua
identidade originária, irremediavelmente perdida.
Seria preciso, na perspetiva de uma reinvenção de si mesmos no alhures, considerar as
duas figuras mais destacadas do grupo de Orpheu: Mário de Sá-Carneiro e, naturalmente,
Fernando Pessoa. O primeiro, desterrado numa Paris que o não reconhece e que lhe é,
no fundo, estranha, apesar da sua condição de capital da cultura ocidental, onde ele, a
contragosto e sempre mais ciente do seu anonimato, tenta levar adiante os seus estudos
de Direito; o segundo, retornado do seu “exílio” sul-africano com uma bagagem de
conhecimentos ligados à cultura de língua inglesa e que não consegue se reconhecer
na sua verdadeira pátria, estudante falhado e falido, também ele, dum curso superior de
Letras. Para ambos, então, o desterro é algo de real – embora de duração mais limitada
em relação, por exemplo, a Camilo Pessanha –: uma experiência dolorosa e concreta
10 Cf. Exílio. Revista Mensal de Arte, Lettras e Sciencias, n. 1 (1916), Lisboa: Contexto (Ed. fac-similar: 1982).
11 Veja-se, em particular, o conjunto de ensaios que Edward W. Said (2000). Um dos autores mais lembrados e
estudados nesse livro do grande crítico palestino é, não por acaso, Joseph Conrad.
242 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò
à qual eles procuram dar respostas diferentes, não compartilhando, todavia, a mesma
sensação de isolamento e saudade presente nos poemas de Clepsidra.
O “nós” funciona, nesse sentido, como identificação no afastamento, como
lugar indeterminado de encontro e, ao mesmo tempo, como instância imaginária
de dissolução e salvação do eu dentro dum “grupo ou ideia”, nas palavras de Luís
de Montalvor. Para Sá-Carneiro e Pessoa, de facto, o poder agregador da prática
artística passa por um aparente “ausentar-se” de si mesmos, para fugir à Norma
e ao Poder dum discurso imposto, para tentar dizer aquilo que deveria ficar fora do
alcance das palavras usuais e consumidas pelo uso. O exílio real confunde-se, assim,
com o imaginário, levando os dois – junto com outros membros de Orpheu – a criar
uma espécie de dimensão poética própria, ligada à capacidade de deslocar-se e de
desdizer-se12. Poder-se-ia afirmar que eles adotam, no fundo, uma atitude que os
leva a contrastar e a resistir com teimosia a qualquer forma de integração ou de
normalização, jogando os signos contra si mesmos e instituindo, como escreveu
Roland Barthes, “no próprio coração da língua servil, uma verdadeira heteronímia
das coisas”13.
A obrigação ao exílio torna-se, portanto, uma opção pelo auto-exílio, primeiro
dentro de um “nós” constituindo uma comunidade artística e depois – diante do
fracasso e da dispersão dessa comunidade, diante da impossibilidade de levar adiante
a experiência de Orpheu, para além do segundo número – no interior de um “nós”
inventado. E se Mário de Sá-Carneiro, por um lado, “Rei exilado” e “vagabundo”, vai
enfrentar a trágica incapacidade de ser eu e outro ao mesmo tempo, de sustentar a sua
pessoal “ponte de tédio”, optando pela definitiva supressão de si mesmo; Pessoa, por
seu lado, vai continuar acreditando na possibilidade de existir na pluralidade, de viver
como um e muitos, de ser um “nós” heteronímico, de criar, enfim, sozinho “toda uma
literatura”, fugindo ao servilismo da língua, inventando uma comunidade poética na
qual, novamente, experimentar um exílio que seja, ao mesmo tempo, afastamento e
aproximação de um ideal de Beleza e Completude. Uma comunidade, aliás, que ele vai
fazer coincidir com aquela que se tinha constituído num tempo pretérito e perdido,
numa revista que ele tentou ressuscitar quase até ao fim da vida, quando já aquela
hipótese de grupo naufragara no silêncio e na inviabilidade, ao ponto de fechar um
breve artigo seu, publicado numa outra revista (Sudoeste) e à véspera da morte, com a
frase: “Orpheu acabou. Orpheu continua”.
12 Como se sabe, são estas, fundamentalmente, as “forças” da grande literatura, na visão magistral de Roland
Barthes: “s’entêter”, “se déplacer” (até chegar à abjuração) e “jouer les signes” (Leçon. Paris: Seuil, 1978, pp.
25-28).
13 Ibidem, p. 28.
A palavra em exílio Orpheu e o desejo de comunidade 243
14 Como se sabe, na obra de Michel Foucault o termo “dispositivo” é várias vezes evocado mas nunca definido
com clareza. À tarefa de circunscrever o(s) significado(s) dessa palavra utilizada pelo filósofo francês, se
deram primeiro Gilles Deleuze (1989) (Qu’est-ce qu’un dispositif?) e mais recentemente Giorgio Agamben
(2006), (Che cos’è un dispositivo?), com dois ensaios que têm, por acaso, o mesmo título.
244 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò
enfim, diante duma história realmente trágica e duma ideologia fracassada. Em vez
do “nosso volume de Beleza” atingido graças a um exílio compartilhado, temos, com
efeito, a procura individual e impossível duma via de fuga, tanto existencial quanto
estética, em relação a um desterro que já não é a condição para a constituição de um
grupo aristocrático de artistas que se reconhecem na sua originalidade, mas a situação
desoladora em que se encontra o eu poético – “homem da mansarda” que, no seu
isolamento, longe e fora de qualquer “nós”, na consciência do seu não ser nem querer
ser nada, olha para um mundo que lhe é definitivamente estranho e irreversivelmente
estrangeiro.
Bibliografia
José-Augusto França1
O colaborador mais evidente do fatídico n.º 2 do Orpheu foi Santa-Rita Pintor. Não
só a ele Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro dedicaram a sua própria colaboração
no número, como é ele quem tem os quatro grandes extratextos que revelam uma
nova personalidade na criação artística portuguesa. Também se deve a um dos
grandes colaboradores desse segundo n.º do Orpheu, Raúl Leal, o primeiro texto de
interpretação de Santa-Rita Pintor, daí a ano e meio na revista Portugal Futurista.
Pouco se sabe da vida breve de Guilherme Santa-Rita, nascido em Lisboa, em 1889,
e aqui falecido em 1918, em abril. Fora bolseiro para Paris, em abril de 1910, como
escolar das Belas-Artes de Lisboa, mas não ingressou na Escola parisiense, tendo
falhado provas de admissão. Perdeu a bolsa nacional em 1912, por conflito com o
embaixador da recente República Portuguesa, o jornalista militante João Chagas; ele,
Santa-Rita, que se gabava de monárquico, admirador do D. Carlos artista, pronto a
escrever sobre a obra dele e havia de investir no desejo da restauração do regime
que lhe daria “poder” e deveria ser acompanhado pelo regresso dos jesuítas que
a República expulsara e pela reinstauração da Inquisição… Sabemo-lo por cartas
de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, de 1915, já Santa-Rita regressara a Lisboa, em
setembro do ano anterior, por causa da guerra e aqui se movia no âmbito da Orpheu,
sempre em referência a Sá-Carneiro, que lhe dedicara os seus “Poemas sem Suporte”,
no n.º 2 da revista. Já vamos ver o que ela representou para Santa-Rita.
Outra via de informação sobre estes anos da vida do pintor vem de uma biografia
que, desde 1922, o pintor Henrique Vilhena consagrou a seu primo, o pintor Manuel
Jardim, que cruzou amistosamente Santa-Rita em Paris e depois em Portugal, mas à
distância de Coimbra para Lisboa, e aí não sem um mal-entendido que ficou registado
em correspondência trocada e que tem a ver com as respetivas carreiras ou desejo
delas, como veremos. Ainda de Vilhena, há um artigo tardio que ficou a meio, na
revista Átomo, de 1950. Mais informação vem de outros contemporâneos, de Paris e
da Lisboa dos anos ditos “futuristas”, que também em Paris foram ou desejaram ser os
de Santa-Rita, ali espetador da primeira exposição que, em 1912, os pintores italianos
apresentaram e que Aquilino Ribeiro reportara para a Illustração Portugueza, de
1 Gravação por Rui Sousa (CLEPUL-FLL) e transcrição por Sofia Santos (CLEPUL-FLL), a quem os
organizadores muito agradecem.
246 100 Orpheu José Augusto França
descrever saborosamente, em 1930, nas suas memórias 14, Cité Falguière. Como já
em 1921, no Diário de Lisboa, ele ali falaria de vários companheiros (Manuel Bentes,
Francis Smith, Armando de Basto, o seu caro Amadeo – ainda “impressionista” e
caricaturista, mas que “se a morte o não vence seria hoje o maior pintor português”). E
de Modigliani também ele fala, porque foi Modigliani que o levou a ouvir a conferência
de Marinetti: e foi ali, na conferência de Marinetti, que ele, Diogo de Macedo, pela
única vez fala em Santa-Rita. Em 1942, Macedo voltaria a falar no pintor, visto em
1917, numa panorâmica ordenada (a primeira de todas) dos primórdios do nosso
Modernismo na revista Aventura.
Em Lisboa, o caso Orpheu levantou escândalo jornalístico, politicamente assanhado
por Pessoa, como sabemos – é verdade que logo arrependido, como os seus amigos
– menos Santa-Rita, que açulou Raúl Leal, o mais sincero de todos eles… Mas foi
o pintor o alvo preferido nas colunas do Século Cómico, de 8 de julho (1915), num
desenho de Stuart de Carvalhais e numa poesia trocista de Belmiro Acácio de Paiva,
pseudónimo de Acácio de Paiva, um gazetista apreciado, que o punha “em foco”
imitando versos de Sá-Carneiro, de invenção tipográfica: “Santa-Rita, Rita Santa, pó,
pó! (…) / (…) le nez dan le cou”, caricaturado por isso mesmo. Oitenta e nove artigos
ou alusões a Orpheu ficavam registados nas colagens de um caderno recolhido no
espólio de Fernando Pessoa, na Biblioteca Nacional. Mas Orpheu chegou também ao
Teatro de Revista, ainda em 1915, no então Éden, dos Restauradores, em A Parceria
O Diabo a Quatro, com Satanás a endoidecer por ter lido a revista. Orpheu n.º 3 não
houve, só provas tipográficas, de algumas páginas, recuperadas em edição em 1983.
Santa-Rita não levou avante o seu projeto, que afligia Sá-Carneiro e Pessoa protelava
evasivamente em suas correspondências, ele que também lhe dedicara em Orpheu a
sua “Ode Marítima”. Mas o pintor continuara a agir no minúsculo meio que era o do
Chiado – que a exposição de Amadeo, anunciada como futurista (embora de modo
algum o fosse em suas obras), a dois passos, no Calhariz da Liga Naval, que então
agitara em dezembro de 1916, com a bênção batismal de Almada Negreiros. Amadeo
deveria ter sido o artista destacado em hors-textes correspondentes no n.º 3 da revista
de Sá-Carneiro, mas não, certamente, no Orpheu que fosse ou que tivesse podido ser
de Santa-Rita... E uma grave altercação entre os dois pintores se registou então na
Brasileira, a vias de facto, de que o frágil Santa-Rita saiu agredido por um Amadeo
robusto e exasperado pelas suas provocações, provocações; habituais, ao que consta no
anedotário desta brevíssima época. Se em vão Santa-Rita, em 1915, projetou realizar
três conferências futuristas na cola da sua participação no Orpheu, uma delas sobre a
“Torre Eiffel e o Génio do Futurismo”, outra teria sido combinada com Sá-Carneiro que
falaria sobre “As Esfinges e os Guindastes. Estudo sobre o Bimetalismo Psicológico”,
Raúl Leal dissertaria sobre “Teatro Futurista no Espaço”, sem mais nota sobre qualquer
248 100 Orpheu José Augusto França
delas ou sobre a organização, nem de um festival teatral a ela mais ou menos ligado,
com a colaboração do casal Delaunay, que a guerra trouxera também em 1915, no seu
caso ao Norte de Portugal, e que havia, ela, a russa Sónia Delaunay, de ter convívio e
projetos com Amadeo. Ainda uma hipótese conferência sobre “A Arte e a Heráldica”
foi anunciada, da autoria de Manuel Jardim, então regressado de Paris a Coimbra e
que protestou veementemente contra a notícia divulgada em fins de junho, que não
convinha a carreira mais pacata que pretendia conduzir na sua cidade natal, e não sem
opinar contra a gente de Orpheu. Também Francisco Franco e ainda então Amadeo se
encontravam previstos no improvável conjunto.
Mas em abril de 1916, a revista monárquica extremista, A Ideia Nacional, dirigida
por Homem Cristo Filho – um polemista que viria a pretender ter carreira no fascismo
italiano depois de começar a tê-la com o Sidonismo, em 1918 –, apesar da colaboração
que recebia de Almada, como de Soares, Jorge Barradas e Stuart Carvalhais e da direção
artística de Pacheko, atacava os futuristas, “fautores da desordem e da revolução”,
“novos arautos da anarquia”, “sem fé, nem pátria”, que mereciam ser “corridos à
gargalhada, quando inofensivos”, senão “a chicote quando insolentes e perigosos”; o
que lhe valeu uma resposta prudente de Santa-Rita, a garantir “o caráter absolutamente
nacionalista da sua doutrina, o seu carácter absolutamente antianárquico”, tal como
o de Marinetti, cujo trabalho caracteriza nestas expressões. Ele que na sua “vida de
trabalho artístico, de esforço constante e consciente”, “todos de anos para cá, adentro
do futurismo”, afirmava: “Futurista declarado em Portugal há um, que sou eu!”.
Mas logo depois, Almada Negreiros havia de publicar o texto mais escandaloso
de todo o processo do Futurismo nacional, pela personalidade oficiosa que punha
em cena o dramaturgo, poeta e cronista Júlio Dantas, que estreou em outubro,
no Teatro D. Maria, uma peça intitulada “Soror Mariana”, no seu jeito e talento
tardo-românticos (“talento de coisinhas”, escreveu Fialho de Almeida sobre o autor),
devidamente aplaudida, mas pateada por Almada na sala, o que o fez ir prestar contas
à esquadra vizinha (Almada que já criticara Dantas na revista Teatro, dois anos antes).
Depois dessa consequência policial, chegado a casa, na mesma noite, Almada redigiu
o famigerado “Manifesto Anti-Dantas e por extenso”, opúsculo que, por informação
numa carta sua a Sónia Delaunay, só terá sido publicado em maio de 1916, numa
edição logo comprada, em atacado, pelo visado, circulando reduzidamente, ficou
espécie bibliográfica raríssima, mas com largo eco mitológico: “Morra o Dantas!
PUM!” [sic], ficou na memória literária pelos anos fora e até hoje, como se comemora
o seu centenário – não do Dantas mas do Orpheu.
Menos a peça troçada no texto, era o seu autor que interessava a Almada e a todos
os de Orpheu, porquanto Dantas, que produzira teses de formatura em Medicina,
como um estudo sobre os “Pintores e Poetas [internados do hospital psiquiátrico] de
Guilherme Pobre 249
cort[ou] de um gesto”... Uma fotografia no-lo mostra vestido com um fato de macaco
de corte clownesco, que passou à posteridade.
As coisas passaram-se mais ou menos assim, numa sala meio cheia de curiosos
dos cafés Chiado e da Baixa, alguns estudantes, com uma popular e vistosa mundana
(negra, ao que parece) contratada para o efeito. O diário A Capital, que já perseguira
Orpheu nas suas colunas, dedicou uma crónica anónima facciosa à sessão, mas atenta
a todas as anedotas que se produziram no seu decurso – tal como os organizadores
desejavam, para marcar o evento. E, nesse sentido, Almada agradeceu à redação,
felicitando também, e “de uma só vez, o público de Lisboa pela brilhante apoteose de
que [foi] alvo”, bem como pelas “extraordinárias aptidões futuristas” que esse povo
português revelara ao ter entendido a intervenção. E Almada anunciava já uma nova
sessão: “espectáculo prático e positivo de Futurismo, em que se resolvam à vista do
público as energias mais assombrosamente cerebrais e as mais fisicamente record” e
que contaria numa segunda parte com “uma comédia futurista” em que participariam,
“interseccionistamente”, os melhores números de variedades atualmente em Lisboa e
ainda outros elementos “espontaneamente civis”. A tal anúncio, a imprensa trocista
acrescentou uma tourada e um filme, ao mesmo tempo que a Illustração Portugueza
chamava “doidos varridos” e “desequilibrados cerebrais” pela pena do tal Acácio de
Paiva, que já troçara de Santa Rita dois anos antes. Chamava isso a Almada e a todo o
grupo, com um destaque muito especial, e anónimo, de uma paródia da conferência
de Almada no Século Cómico. Isso mesmo pretendia Almada Negreiros e, sobretudo,
no caso, Santa-Rita, que preparava o seu futuro de guru do Futurismo em Portugal
que a sua revista Portugal Futurista havia de consagrar meses depois.
Tudo isto está por escrito e repetido por mim e por outros no quadro do Modernismo
português, em letras e artes. Célebres de um lado, as Letras, mais tarde as de outro, as
Artes, no ciclo mais estrito da sua polémica, deu a Amadeo de Souza-Cardozo (mas só
em meados dos anos de 1950, por descuido da geração que o sucedeu e António Ferro
protegeu) o lugar cimeiro que lhe é historicamente devido, mas deixou na penumbra
mais ou menos lendária Santa-Rita Pintor, o herói do Portugal Futurista. A revista
vinha a seu tempo, ano e meio após a falência de Orpheu e seguindo-se a outras duas
também efémeras em Lisboa, a Exílio e a Centauro, de abril a outubro de 1916, ficando
ambas no n.º1. Só um dos colaboradores do Orpheu apareceu em ambas as revistas,
Fernando Pessoa, e os outros eram variados no Exílio – aliás dirigido por um irmão
de Santa-Rita, em mais relações fraternas, o poeta mais ou menos decadentista e
mundano Augusto Santa-Rita, considerado aliás modernista por António Ferro, em
1929, e que viria a ter nome conhecido na Literatura Infantil – e na Centauro, dirigida
por Luís de Montalvor, do grupo do Orpheu, que lhe deu também Camilo Pessanha e
Raúl Leal. Em Faro, um jovem pintor de 20 anos, com bens de fortuna, Carlos Filipe
Guilherme Pobre 251
Porfírio, fez publicar, desde 1917, nos seus princípios, num jornal Heraldo, poesias
de intenção futurista, algo provincianas, mas também transcrever o grande poema
“Litoral”, de Almada Negreiros, ao mesmo tempo que hesitava na pintura que ele
próprio queria fazer. Subindo a Lisboa, a ele se ligou Santa-Rita para ter a sua revista
editada, pondo-o nominalmente na direção. Porfírio seria pintor expressionista
em 1922 numa pequena exposição, depois pintor decorador em Paris até 1939 e
ainda em 1945 e 1949, regressado a Portugal, pôde realizar duas longas-metragens,
pretensiosas, inteiramente nulas, “Sonho de Amor” e “Um Grito na Noite”, que só
em Cinemateca se podem ver (felizmente). No Portugal Futurista de Santa-Rita,
ele terá sido apenas uma vítima inocente, como entenderia Sá-Carneiro, entretanto
suicidado em Paris, vítima de si próprio. Santa-Rita, no seu meio familiar de boa
burguesia – pai funcionário e poeta amador, bem como o irmão, como vimos, e avó
materno e padrinho, conselheiro e Par do Reino, chamado Cau da Costa –, fizera
bem classificada pintura nas Belas-Artes de Lisboa, fora e deixara de ser bolseiro em
Paris, mas lá, logo em janeiro de 1911, mandou como prova de trabalho uma cópia
da Olympia, de Manet, que não deixou boa impressão no júri, ele que se formara na
sua tese em Lisboa com “Édipo e Antígona”, de boa aprovação académica. E foi José
de Figueiredo, que ia a seguir ser diretor do Museu de Arte Antiga, quem diretamente
lhe censurou a má ideia que tivera em copiar tal quadro (no qual há quem entenda
ter começado a pintura moderna no Ocidente). Essa pintura pode ver-se numa sala
na Academia Nacional de Belas-Artes, de que José de Figueiredo seria, em 1935,
presidente inaugural, na sua restauração, mas só muito depois do falecimento do
pintor.
Acamaradando em Paris, nesta altura, com Manuel Jardim, como sabemos, ambos
haviam sido influenciados pela criação manetiana que Jardim havia de assumir
como melhor destino da sua própria malograda pintura, é um ponto para avaliar o
entendimento de Santa-Rita, logo em fim de 1910, após Édipos e Antigonas escolares,
de uma nova situação da pintura, antes de ele próprio mergulhar no labirinto parisiense,
que em 1912 seria almejadamente futurista. A cópia de Santa-Rita, realizada com
suficiência técnica e entendimento do problema pictural posto, no “acordo tonal
usado dos àplats do nu banal”, para além do escândalo da imagem clássica, colocada
em tempos de vivência moderna, baudelairiana, como se diria (que não em Lisboa). É,
como se sabe, das raras obras que Santa-Rita que existe, pois, ao morrer em 1918, ele
pediu à família que tudo destruísse, e mesmo antes, ao seu amigo Saavedra Machado,
que o contou publicamente. Antes de “Olympia”, porém, existe “Orfeu nos Infernos”,
de cerca de 1907, espécie de brincadeira escolar, largamente brochada, com caricaturas
dos professores de Lisboa que, cerca de 1917, ele ainda vendeu ao seu amigo Alberto
Monsaraz, que durante muito tempo o conservou e é hoje curiosidade por demais
252 100 Orpheu José Augusto França
valorizada. Mas de 1912 resta outro quadro, no Museu do Chiado, que tem especial
importância na história da pintura moderna portuguesa. Não assinado e datado, no
verso, de 1910 por mão que não será a do pintor, esta cabeça “cubo-futurista”, tem
sofrido justa discussão crítica por alguma similitude com pinturas de Severini, com
quem Santa-Rita terá tido proximidade em Paris. Oferecido pelo pintor a Manuel
Jardim e pelos seus herdeiros cedido à Secretaria de Estado que sucedeu ao SNI, no
fim do Estado Novo, o quadro passou atualmente para o Museu do Chiado, assim se
salvando como “ícone polémico da Modernidade num país que não podia tê-la...”.
Pintura primeira da sua espécie, assim o escrevi e repito, contando bem os passos
cronológicos de Amadeo de Souza-Cardoso, que, em 1912, data mais provável da tela
de Santa-Rita, ainda não assumira a posição criativa original: cubista sim, e órfica,
nunca definidamente “futurista”), que admiravelmente explodira na sede das últimas
pinturas de 1916/17, na Fundação Gulbenkian. “Esta agressiva cabeça de ave, máscara
africana nos seus bicos, olhos encovados no movimento elíptico do desenho, uma
espécie de vórtice que só dois planos, por similitude cubistas, interrompem e um sinal
de ouvido em caixa de violino pontua, fora de propósito formal ou antropomórfico”;
esta pintura, “no seu jogo de volumes e grafismos”, é uma peça notável dos anos 1910
europeus e uma peça única na pintura portuguesa. Peça milagrosa, considerado o
quadro moroso em que ela poderá ter-se desenrolado, que, em 1918, se acabaram com
a morte de Santa-Rita e de Amadeo, a poucos meses de distância.
No Portugal Futurista foram reproduzidas quatro obras de Santa-Rita, mas não
esta. E perguntar-se-á porquê, tendo em conta a sua estratégia de carreira. Vemos
lá o “Orpheu nos Infernos”, com um comentário laudatório inconsequente, em
que se fala de “fisiognomia mefistofélica”, em que o pintor aprovou ou fez redigir;
“Perspectiva Dinâmica de um Quarto ao Acordar”, de 1912; “Cabeça = Linha –
Força. Complementarismo Orgânico”, de 1913; e “Abstração Congénita e Intuitiva
(Matéria Força)”, de 1915. Se a primeira “obedece a um sistema futurista ortodoxo na
dinamização espacial, em que as ondas de vibração dos objetos têm um tratamento
de ordem cubista” (escrevi-o em 1974), a outras duas peças inscrevem-se no tempo,
entre ou depois, das obras que tinham sido reproduzidas no Orpheu e que no Portugal
Futurista tinha sido definitivamente assumida. Para Santa-Rita era o extremo limite
das suas forças criativas e físicas também, que pouco mais ele duraria, até abril do
ano seguinte, já em “estado gravíssimo de saúde”, como Manuel Jardim escreveu,
informado pelo Professor Vilhena.
Mas a via de colaboração de Santa-Rita no Portugal Futurista foi outra e
indireta, quer pelo seu retrato fotográfico de página inteira, quase a abrir a revista,
convenientemente encenado, quer por dois textos que se lhe referiam de Bettencourt-
Rabelo e de Raúl Leal, que no Orpheu publicara o alucinado texto “Atelier (novela
Guilherme Pobre 253
vertígica)”, como que predisposto para o que da arte de Santa-Rita havia de entender.
E fora no n.º 2 da revista de Sá-Carneiro que o pintor tivera a primeira entrada em
cena, como anunciada “colaboração especial do futurista Santa-Rita Pintor”, com
fotogravuras de “quatro hors-textes duplos”, na medida em que se dobravam a sua
dimensão, de papel couché, nos cadernos do volume. São datados de Paris, “annos”
de 1912 e 1913, dois deles, e 1914, realizados a carvão ou traço de guache branco e
com técnica cubista dos papiers collés. Os originais desapareceram, em incalculável
a perda do património artístico português, porque se trata de quatro peças senão
fundamentais – porque nada fundamentaram ou teriam podido fundamentar em
Portugal – de extrema originalidade no quadro europeu do Futurismo, que delas não
tomou conhecimento historiográfico ou estético, nas mais autorizadas e mesmo mais
recentes pesquisas sobre o grande movimento italiano. Ignorado para sempre (?):
terei sido o único historiador deste período dos anos 1910 a assinalar a presença de
Santa-Rita Pintor, em 1987, numa História da Arte Ocidental – tentada para além das
grandes vias esculturais em que ela tem sido estabelecida na lei dos centros maiores de
produção e da sua pesquisa universitária ou da sua indústria editorial.
Evoquemos primeiramente (como Santa-Rita evidentemente desejava, em
atitude provocatória) os títulos destes trabalhos, que ultrapassam em proposição
ou reformulação teórica (embora inspirados em teses de Boccioni) o quadro
estético do Futurismo italiano: “Decomposição Dinâmica”, “Síntese Geometral”,
“Compenetração Estática”, designam atuações ou reflexões plásticas, em situações
alegadas, respetivamente, de “interseccionismo plástico”, “sensibilidade radiográfica”
ou “litográfica”, ou “mecânica”, que dificilmente poderemos distinguir no exame
das próprias obras. Devendo, porém, entender-se (como escrevi) que se trata de
uma “atitude conceptual”, que ainda assim se não nomeava. A “Decomposição
Dinâmica” (declarada na peça de 1912) é o de uma mesa, adicionado (com o sinal
“+”) a “estilo de movimento” e a obra deixa perceber, em planos geometricamente
opostos, a mesa modelo desfeita. Por que a fez Santa-Rita reproduzir após as
outras três obras, quanto a sua leitura formal e a sua datação a situam à cabeça
do discurso histórico proposto? Trata-se, na sua realidade, de uma proposta
demonstrativa de “interseccionismo plástico”, enquanto as outras três peças, dadas
como demonstrações de “sensibilidades”, provocadas gráfica ou mecanicamente, se
referem a cabeças-modelo. “Estojo científico de uma cabeça”, marcada com insistência
no fator “luz”, pelo “aparelho ocular” + “sobreposição dinâmica visual + reflexo de
ambiente” que se multiplicam (“X”) pela “luz” (é a primeira reprodução de 1914); ou o
seu “interior” “compenetrado”, identificado com o seu “complementarismo congénito
absoluto” (e tem sido a obra mais reproduzida por facilidade de identificação formal);
ou a sua “Síntese geometral [de uma cabeça], multiplicada [“X”] por “infinito plástico
254 100 Orpheu José Augusto França
que viera à Capital, apresentado por Carlos Porfírio no Café Martinho (ao lado do
Teatro Nacional) a Santa-Rita e logo por ele foi convidado para “redacteur-en-chef ”
da sua revista, que “nos ia pôr em contacto com a Europa!”. Não o foi, nem editor
responsável, posto atribuído a um anónimo (se existente) C. Ferreira. Mais tarde,
em 1928, ele recordaria num livro de crónicas e memórias, O Mundo das Imagens,
o fascínio sofrido, tal como e principalmente, conta ele, o sofreu Almada Negreiros.
Depois ainda, em 1929, Bettencourt lançaria um magazine medíocre que ficou no
primeiro número, chamado Lisboa Galante, sem mais notícia até morrer, em 1969.
O autor de outro texto consagrado da revista era Raúl Leal: “L’Abstraccionisme
Futuriste. Divagation outrephilosophique – Vertige à propos de l’oeuvre géniale de
Santa Rita Pintor, “Abstraction Congénitale Intuitive (Matière-Force)”, la suprème
réalisation du Futurisme” refere-se à obra que vimos mal reproduzida na revista.
Era “L’Abstraction Futuriste” que o autor declarava alcançada nesta obra: Santa-Rita
“concebeu em síntese a irrealização integral de toda a teoria futurista sobre a vida!”.
Raúl Leal teria correspondência com o próprio Marinetti, a quem ele queria converter
às suas teorias, mais teosofistas, a certa altura. Trinta e nove vezes a palavra ‘Vertige’
é avançada neste breve texto de duas páginas, redigido em excelente francês, que o
“Vertiginisme” está mais para além do “mais o Futurismo pode dar”, “concebendo
então perfeitamente o “concrét-en-abstrait” – Vértige, “où il n’ya a rien de physique”. E
nisso “Santa-Rita Pintor “est un futuriste outré, son génie est la quintessence du GÉNIE
FUTURISTE!”. Raúl Leal (que, em 1924, se ocuparia também d’“a luxuriosa loucura de
Deus”, em Mário Eloy, falando do seu “ultra-Futurismo” – que já está historiada – e ainda
nos anos 1950 ele se debruçaria sobre o Realismo em convívio com Mário Cesariny) foi
o único dos grandes de Orpheu a ter, na altura, voz significativa a favor de Santa-Rita,
numa admiração sincera e fascinada, que ainda quarenta anos mais tarde se manifestará
em artigos da revista Tempo Presente, no n.º 3, em 1959, a insistir na “ética pessoal e
dignificadora” do seu “grande Amigo e admirável Artista”. Pouco depois, na mesma
publicação, Raúl Leal revelará uma magna obra com que Santa-Rita então sonhava: “O
Papão”. Tratar-se-ia de grandes pinturas a fresco, no Mosteiro dos Jerónimos, “desenhos
coloridos informes (…), que dessem imediatamente a forte impressão alucinatória
desse mundo astral, apavorante, expresso em abstrato, que evocassem (…) o mundo
abismicamente espectral que perturbava exaltadamente as imaginações delirantes dos
nossos antigos navegadores…”. Estamos em 1917, durante a congeminação desta grande
obra, de que Raúl Leal teria guardado a lembrança. “Soberbo sonho pictural”, Santa-Rita
levou-o consigo ao morrer logo três meses depois da publicação de Portugal Futurista.
“– Serão febres de África, senhor Doutor?” – “Ah, o Senhor Santa-Rita está em África”,
acudiu o médico desesperado com o complexo quadro clínico do moribundo. “– Não,
nunca lá fui…”. Foi a última anedota que sobre Santa-Rita correu em Lisboa…
256 100 Orpheu José Augusto França
mesmas histórias estropiadas ainda existia”. Porque tinha sido com ele, Santa-Rita, e
com Amadeo que Almada fizera juramento de estudar os painéis de Nuno Gonçalves,
rapando então, à navalha, os cabelos como “selo do nosso pacto!”. Assim se esboçou
– não pode saber-se com que grau de consciência dos outros dois comparsas – o que
viria a ser o leit-motiv da criação almadina.
Não foi diretamente Santa-Rita que Almada teve que falar, ele que lhe dedicará,
e a Amadeo, a conferência sobre o “Modernismo”, realizada em 1926, mas em seu
nome o fez quando, em 1932, à vinda de Marinetti (“académico do Fascismo italiano”)
a Lisboa, trazido por António Ferro (então a preparar-se para o Secretariado da
Propaganda Nacional, com a sua proposta de “Política do Espirito”), “em habilidades
do seu programa pessoalíssimo” – palavras do Almada –, veementemente protestou
nas colunas do Diário de Lisboa contra o “ameno sarau mundano para deleite dos
pompiers nossos amigos”, realizado ante os três mais categorizados inimigos do
Futurismo em Portugal e que eram, além do António Ferro– editor menor do Orpheu
–, que trouxera o Marinetti, e de Adães Bermudes, presidente da Sociedade Nacional
de Belas-Artes, onde a sessão teve lugar, também, academicamente, Júlio Dantas,
o fantasma de 1915, “em memória dos nomes heroicos do Futurismo português”,
Almada Negreiros falou em palco.
Estamos em 1932. Vinte anos depois do centenário do Orpheu e cinquenta anos
depois do episódio Marinetti, alguém, um jovem José António Sampaio (que não
conheço), nas páginas da revista portuense Nova Renascença, em 3 de março de
1983 (n.º7), chamou à atenção para Santa-Rita, num artigo bem informado no seu
entusiasmo e que provocou reação imediata de João Gaspar Simões, no Comércio
do Porto (3 março 1983). Gaspar Simões que, achando ser “pecha dos portugueses
exaltar o valor dos que pouco ou nada fazem para, assim, pôr em cheque o valor dos
que muito realizam”, recusou a “reabilitação” dessa “espécie de símbolo clownesco do
modernismo órphico, que representa um dos maiores vícios da mentalidade nacional:
a inércia”, deste Santa-Rita; que “nada nos legou, além de um fabulário anedótico” e
cuja obra “nada representa, nada é”. Não será, com certeza, a última manifestação de
um desentendimento crítico fundamental que, na pena de quem se assumia como
a revista presença, “Nós, a presença”, 1935) – na altura a publicação de referência do
Modernismo da geração anterior – tem particular gravidade, no mesmo momento
em que Fernando Pessoa, nas páginas do lado da revista Sudoeste SW, de Almada
Negreiros, assinava como “Nós, os de Orpheu”, entre os quais Santa-Rita (não é
mencionado), para ele a “alta sensibilidade moderna”, “inteligentíssimo e muito
pitoresco”, do convívio havido em Lisboa, em 1915. Quanto a Santa-Rita, escreveu,
em setembro de 1915, “Orpheu não acabou, Orpheu não pode acabar”. Tratava-se de
surgir outra vez, à superfície, mais adiante.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu?
Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro
(com publicação de carta inédita a António Quadros)
1 CIDH – Cátedra Infante Dom Henrique para os Estudos Insulares Atlântico e a Globalização/Universidade
Aberta/CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
2 Sobre este campo de pesquisa e análise, têm já vindo a lume diversos estudos e propostas de sistematização.
Recordamos aqui a nossa recente obra coletiva, onde apresentamos um elenco bibliográfico para dar a
conhecer este vasto território de investigação (FRANCO, J. E. e CALAFATE, P., 2012).
260 100 Orpheu José Eduardo Franco
Açores numa futura e profetizada regeneração de Portugal, num tempo em que o país
se reabilitaria da hiper-diagnosticada decadência dos últimos séculos e da perda do
lugar cimeiro no xadrez das nações, ou da posição de liderança mitificada e situada na
Idade de Ouro proto-moderna que teria ocorrido há cinco séculos.
É bem conhecida a contribuição de uma desconcertante autora açoriana na
segunda metade do século XX para a literatura portugalófila, reivindicando uma
recentração do Portugal futuro, que se redimirá da Idade de Ferro em que persiste,
no eixo insular representado em ilhas açorianas (São Miguel e Santa Maria). A
irreverente escritora Natália Correia metamorfoseia assim a utopia do Quinto
Império de Vieira numa perspetiva feminina. É, na verdade, mais no Quinto Império,
na versão mística e esotérica de Pessoa e de Agostinho da Silva, que Natália Correia
assenta a sua ideia, acentuando a sua inscrição no profetismo joaquimita – que
anunciava a Idade do Espírito Santo identificada com essa anunciada plenificação
da História – sob égide portuguesa, tendo como eixo de partida as ilhas açorianas:
“Consideremos que os homens que acham os Açores, e dão nomes às suas ilhas
são da confiança do Infante, por conseguinte impregnados da mística pentecostal
adoptada pela Ordem de Cristo que recebe dos Templários e dos Franciscanos. É
caso, pois, para perguntarmos se logo nos nomes que deram às duas primeiras ilhas
achadas – Santa Maria e São Miguel – não teremos um pórtico para a formação
de uma comunidade que testemunharia os primeiros passos expansionistas para a
fundação do Reino do Espírito Santo na história, projeto que seria o motor místico
dos rasgos descobridores do Infante”3.
Além desta inscrição insular do ponto de partida para a regeneração da humanidade,
Natália Correia oferece como novidade a perspetiva feminista do Quinto Império, ou
seja, esta será uma idade feliz na terra porquanto orientada por valores característicos
do universo feminino. O fundamento é dado através de uma afirmação ontoteológica
axiomática que considera a terceira pessoa da Trindade Divina como o lado feminino
de Deus, que inspirará a consumação da História4.
O outro aspeto peculiar que nos interessa aqui sobremaneira é o papel refundador
do Portugal futuro e do mundo novo que o nosso país protagonizará, realizado a partir
do arquipélago açoriano e do seu eixo místico-profético, constituído por Natália como
ponto de partida para que se opere uma renovatio temporum da história da humanidade.
Se é mais conhecida na cultura açoriana a afirmação de uma literatura e de uma
identidade própria, assim como a sua contribuição distinta e distintiva para a identidade
nacional, quer diferenciando-se desta quer complementando-a com vantagem,
água”, do regresso à “tellus mater”8, com quem se tem uma relação filial, de devoção,
de imitação e de desejo de regresso à ilha-mãe-natal, como uma espécie de fatalidade9.
Gilbert Durand, noutro ângulo, considera que “todas as imagens da terra e da água
contribuem para constituir uma ambiência de volúpia e de felicidade que constitui
uma reabilitação da feminidade”. Por isso, “o eterno feminino e sentimento de natureza
caminham lado a lado na literatura”10. Como já escrevemos noutro estudo, “a ilha detém
um capital simbólico de que decorrem potencialidades utópicas poderosas. A ilha é ao
mesmo tempo o lugar do paraíso, mas também a possibilidade da sua recuperação, isto
é, a possibilidade de uma nova criação”11. A ilha é também associada à noção de lar, de
aconchego materno, de casa íntima, do descanso, da regeneração da alma e do corpo,
a morada do amor, da harmonia, da liberdade e até da libertação dos sentidos, espaço
protegido da história turbulenta e fraturante dos continentes”12.
O campo simbólico da ilha representa uma realidade unificante e unificada, um
símbolo de agregação. De acordo com os dados da psicologia arquetípica de C. G. Jung,
o território insular insere-se no conjunto de símbolos de unidade13. A ilha é o lugar
recatado, separado, sagrado, onde, longe da confusão, se realiza a unificação do disperso.
É o lugar privilegiado de intermediação entre o humano e o divino14. Em suma, o
potencial simbólico do genus locii insular faz desta geografia simbólica o lugar de paz, de
fraternidade, no fundo, “um lugar capaz de Deus”. Talvez por isso mesmo o conceito de
Utopia ideado por Thomas More situe numa ilha a construção de uma sociedade ideal15.
Um desses autores madeirenses que pensou Portugal, tendo como pano de fundo
a sua origem insular, foi o hoje desconhecido Vasco da Gama Rodrigues. Funcionário
público, mas apaixonado pelo mundo das Letras e da História, conviveu com poetas
que vinham do Círculo do Orpheu, nomeadamente Fernando Pessoa, e partilhou das
suas preocupações relativamente ao Portugal em estado de nevoeiro de então. Nascido
a 27 de janeiro de 1909 no Paul do Mar, fez a formação liceal na capital madeirense
e viveu em Moçambique, mas acabou por se radicar em Lisboa, onde se tornou
funcionário do Secretariado Nacional de Informação. Como funcionário público
16 O etnónimo “Atlantes” designa na acepção de Vasco da Gama Rodrigues os habitantes da Atlântida, ou os que
descenderão deste ilha-continente que emergirá do Atlântico, que serão os cidadãos construtores do Portugal
e do novo mundo futuro. Todavia, o nome próprio “Atlante” tem uma ressonância mítica que remete para
o gigante assim denominado na mitologia grega como um dos Titãs, filho de Jápeto e Climanes. Era quem
tinha sido encarregado por Zeus para segurar as colunas celestes onde assenta a Terra. Por seu lado, existe
outra tradição em versão feminina, que faz das Atlantes as filhas de Atlante, as quais alvo de um rapto pelo
rei do Egito, Bursiris, e depois devolvidas a seu pai por Hércules que as resgatou. Outra tradição ainda chama
Atlantes aos habitantes da Mauritânia no território ocidental de África, que teria sido governado por Atlas.
264 100 Orpheu José Eduardo Franco
“A Lusitânia é o lugar do fogo sagrado da Terra, o Lar eterno do Povo da Luz. Éden do Mundo,
original e criador, tornou-se o alvo da cobiça, ambição e inveja de todos os contrários, ou
seja, de quem é natural ou pertence ao paralelo oposto e, portanto, ausente de Luz.”18
que debruçado na sua Ponte-Cais olhando fixo o cristalino do Mar avista ali, diante de si,
num só ponto, os quatro pontos cardeais, a par da vitória daqueles Argonautas contra todos
os Titães e contra o próprio Mestre da Morte e dos Infernos e, por fim, como prémio, o
mundo-terra a seus pés.
Portanto, os Portugueses – os homens dos portos – vencedores do Mar Tenebroso e
descobridores dos quatro caminhos do Mundo, foram os construtores, os instituidores, os
fundadores do império.”21
21 Ibidem: 25.
22 Ibidem: 27-28.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 267
“Reino de Mar, abrange todo o oceano desvendado pelo Argonauta, por aquele que,
ardendo em fé, deixou certa vez o porto de Portugal em busca do sagrado vaso do amor
imortal João – o Prestes. Ilha encoberta, diluída sobre todo o espaço da Terra, é a Pátria do
Ar – o Terceiro grau o Ar –, a Essência Quinta mergulhada em sonhos isentos de manchas,
sombras e terra, o centro autêntico da inteligência da redenção universal, o núcleo do
Coração generoso do Homem sem limite nem lugar. [...] Ora os Lusitanos, os homens dos
portos, os descobridores do mar vivo e da Ilha Encoberta – a Pátria da Essência Quinta –
como todos os discípulos da última pessoa da Trindade, chamam-se ATLANTES”23.
23 Ibidem: 35.
24 Podemos estabelecer alguma aproximação a um outro autor madeirense, Abel Tiago Vasconcelos e Sousa,
que tinha escrito em 1924 uma obra teleológica com o nome Sinais dos Tempos, onde preconiza, eufórico com
as pioneiras viagens áreas de cruzamentos dos ares entre continentes de Gago Coutinho, que Portugal e o seu
Quinto Império passará pelo domínio dos ares, através do desenvolvimento da tecnologia aeronáutica sob a
liderança portuguesa. Ver SOUSA, A. T. V., 1924.
268 100 Orpheu José Eduardo Franco
A teologia da história de Joaquim de Flora e a sua teologia das três idades ou três
estados da história da humanidade está bem patente no esquema hermenêutico de
Vasco da Gama Rodrigues, o qual estrutura a obra publicada em 1972, As Três Taças. A
deriva histórica do Ocidente é apresentada como uma evolução em tensão dramática de
afirmação espiritual em ordem a uma consumação numa Idade do Espírito vencedor.
Figuras-símbolo são usadas para representar as idades da história que preparam a
terceira e última idade. As pessoas da Trindade Divina são as primeiras configuradoras
divinas das três idades humanas, marcadas pelo ritmo do ciclo triádico da Idade de
Vasco da Gama Rodrigues completa na obra póstuma Cristo das Nações a sua
hermenêutica, fazendo da história portuguesa uma história crística. Portugal e a
sua teologia da história seria uma metonímia da vida e do destino de Cristo, uma
espécie de encarnação da missão e sentido da vida de Cristo. Se Cristo e os seus gestos
aconteceram para a redenção do género humano, Portugal encarnaria como povo
essa missão, para a consumação da transfiguração da humanidade numa idade final
da história, desocultando o mundo que vivia nas trevas e dando-lhe o sentido e a
realização final.
À semelhança de conteúdos de outras tradições profético-nacionalistas, como o
caso conhecido da tradição moderna da Polónia28, país que também se via “como
Cristo das Nações”, Vasco da Gama Rodrigues identifica a missão de Portugal com a
missão de Cristo, ou mais ainda, Portugal seria o instrumento para consumar à escala
universal a missão do Salvador. Portugal, qual povo eleito da Nova Aliança, de que o
povo de Israel era prefiguração, seria o instrumento para universalizar a redenção de
Cristo agora proporcionada a todo o género humano. Esse processo teria começado
com as viagens de descobrimento e missionação planetária no século XV e aguardava
agora a plenificação na Terceira Idade do Mundo29.
Vasco da Gama Rodrigues, através do recurso a elementos de várias tradições
e correntes, mas acentuando a sua óptica insular, resultante da sua marcada
proveniência insular, propõe um futuro glorioso para Portugal, que o liberte da
sombra em que vive, e cumpra de forma plena a missão que a sua origem e a sua
história determinam.
Este poeta insular recusa, apesar da abordagem do seu pensamento poder numa
determinada óptica indicar isso mesmo, que o apodem de sebastianista ou o inscrevam
em correntes ideográficas de Portugal nas quais não se revê. Numa carta inédita a
António Quadros, que aqui reproduzimos em anexo, Vasco da Gama Rodrigues
reivindica para si o estatuto de poeta que canta o Amor e anuncia o Reino do Amor,
que não é outra coisa do que o Reino do Espírito Santo, a Idade do Espírito, a idade
final da História. Com efeito, o Amor é o cerne da sua ideia de Portugal, o motor
íntimo da história de Portugal, e não qualquer sebastianismo ou astrologismo. António
Quadros, na sua emblemática obra sobre a poesia e filosofia sebastianista portuguesa,
tentou colocar-lhe rótulos que desagradaram a Rodrigues. Definiu a sua obra poética
como “inteiramente uma filosofia mítico-profética da história”, “excessivamente
dominada pela linguagem cifrada”, apresentando-o como “astrólogo”, que “tende mais
a uma conceituosa geometria esotérica do que a uma poética”30. Gama Rodrigues não
concordou com esta análise e escreveu-lhe a manifesta o seu desagrado, pedindo que
revisse a sua proposta de avaliação e classificação da sua poesia patriótica (Ver carta
anexa).
O “Agora” deste poeta insular é, segundo entendemos, o mesmo grito do “É hora” de
Fernando Pessoa e participa neste escopo bem português de reforçar a sua identidade
histórica através do apelo do futuro para superar a ideia de insuficiência do presente.
Atualiza a utopia portuguesa do Quinto Império, mas inscrevendo-a plenamente
na tradição teleológica joaquimita, projetando a Terceira Idade da História, sob
égide portuguesa e assente no influxo recriador do Paráclito como o dispensador da
plenitude do amor.
Anexo
Carta Inédita de Vasco da Gama Rodrigues a António Quadros
Informado como fui por um amigo de que você tinha dedicado alguma atenção no
seu recente livro acerca do sebastianismo à obra de poesia por mim publicada, tive a
curiosidade e o interesse de verificar o que a experiência de homem de 74 anos poderia
causar no pensamento reflexivo de um homem de 60. Creio que é esta a sua idade.
Além disso, convivemos há cerca de um vinténio. Perdoe-me você a discordância que
manifesto perante o seu modo de interpretar o sebastianismo como denominador
comum dos portugueses ilustres que publicaram obras sobre este tema ou sobre temas
convergentes. Com efeito, parece-me que o seu ponto de vista se situa tão alto, é tão
geral, que engloba no mesmo mundo teorias, pessoas e obras completamente díspares e
que, por mais que pense, julgo não terem como eixo o mito sebástico. Estão neste caso,
por exemplo, Teixeira de Pascoais, José Régio e Fernando Pessoa, para só me referir a
alguns que você cita na sua obra. Com efeito, mostram tão radicais diferenças que não é
possível determinar o seu denominador como o sebastianismo em que comungariam. As
afinidades entre estes poetas são realidade, mas Teixeira de Pascoais aspira à saudade –
que é uma deusa feminina e mergulha por entre as sombras; José Régio oscila indeciso
entre um Cristianismo não Católico e uma ideia de Deus que se lhe afigura longínqua
relativamente a este mundo; quanto a Fernando Pessoa, você estudou-o longamente
para poder concluir, como concluiu, das suas radicais diferenças em relação àqueles dois
poetas.
31 Carta patente no Espólio de António Quadros, obtida por gentileza de Rosa Canarim Fina. Transcrição feita
por Joana Balsa de Pinho e José Eduardo Franco.
272 100 Orpheu José Eduardo Franco
Outro exemplo. A obra por mim publicada nada tem que ver com o sebastianismo e o
António Quadros sabe bem que nela se anuncia o Reino do Amor, o Reino do Paracleto.
Assim, não consigo entender como pode envolver esta obra na comparação com a obra
publicada por Fernando Pessoa. De resto, como você sabe a comparação é usada como
processo mágico de que resulta o mais ou menos, processo este muito utilizado pelo
jornalismo vulgar, dado que representa a forma inferior da imaginação. O António
Quadros certamente há de aceitar que um poeta preferira à comparação a analogia.
Muito estranhei também o ter-me apodado do astrólogo quando você tratava de uma
obra poética. Como sabe, a astrologia é atualmente uma profissão remunerada que,
se não é reconhecida pela Universidade, é publicitada, porém, pelos jornais. Requer,
portanto, que quem a pratique receba remuneração e é frequentemente associada ao
charlatanismo.
Se alguma vez a minha amizade me fez dar-lhe indicações das relações dos astros
com a vida humana e particularmente com a sua não há entre as pessoas que comigo
convivem o reconhecimento de tal profissão. De facto, nunca foi essa a minha intenção e
prática. Por isso, peço-lhe que se tiver outra oportunidade para se referir à obra por mim
publicada, se lhe refira como a obra publicada por um poeta. Na sua opinião boa ou má.
Assim, só peço o mesmo que você concedeu a quem comigo comparou: Fernando Pessoa
fazia horóscopos e ninguém disse que ele era astrólogo.
Um abraço do amigo que o lê com muita atenção,
Bibliografia
Nas palavras de Fernando Pessoa, «Só duas nações – a Grécia passada e Portugal
futuro – receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as
outras. Chamo a atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa
e Atenas estão quase na mesma latitude» (PESSOA, F., 2000: 197). A influência do
helenismo é perceptível em diversos momentos da produção literária pessoana. Aqui
selecionamos Ulysses1, poema integrante da primeira parte de Mensagem. Parece-nos
merecedor de especial atenção o texto de Roman Jakobson sobre poema pessoano
referido, que ressalta a presença mítica do rei de Ítaca em Lisboa e lembra-nos que:
“O herói da estrofe central, Ulisses, – cujo desembarque lendário na embocadura do
Tejo se deve apenas a um vínculo paronomástico entre seu nome e Lisboa, e cuja
existência tem, ela mesma, um caráter mítico” (JAKOBSON, R. 1970: 100-101).
1 Utilizaremos a grafia Ulysses para registrar o título do poema pessoano e Ulisses para o nome do herói grego,
a fim de distingui-los.
276 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas
Importa-nos destacar que a mítica passagem do herói grego2, por terras lusitanas
é, ao mesmo tempo, rememoração do passado e comemoração do devir português.
Em Ulisses está concentrada a reminiscência do mito referido na fundação da pátria
e, concomitantemente, a expectativa sebastianista pelo vindouro Quinto Império
português, pois, assegura António Apolinário Lourenço nas palavras seguintes:
O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi feito, e ajuda-o a
eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado do seu empreendimento. Por
que hesitar ante uma expedição marítima, quando o Herói mítico já a efetuou num tempo
fabuloso? Basta seguir o exemplo (ELIADE, M., 2007: 125).
2 A este nível, atente-se na possibilidade de “ir assim reatar o fio da tradição grega perdida”, mencionada por
Dionísio Vila Maior n’As lições de Fernando Pessoa (VILA MAIOR, D., 2012: 273).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 277
3 Mircea Eliade afirma que “A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a
mais lata, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo
primordial, o tempo fabuloso dos ‘começos’” (ELIADE, M., 2007: 11).
278 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas
4 Afirma o mitólogo que “A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação,
quando você passa da infância para as responsabilidades do adulto, da condição de solteiro para a de casado.
Todos esses rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel que você passa a desempenhar,
com o processo de atirar fora o que é velho para voltar com o novo, assumindo uma função responsável.
Quando um juiz adentra o recinto do tribunal e todos se levantam, você não está se levantando para o
indivíduo, mas para a toga que ele veste e para o papel que ele vai desempenhar” (CAMPBELL, J., 2008: 12).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 279
7 Cf. o percurso do herói nos comentários do pesquisador Junito Brandão (BRANDÃO, J. S., 2000).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 281
Ulisses constitui aquilo que alguns críticos contemporâneos definiriam como um “discurso”
da civilização ocidental; para os historiadores, um ‘imaginário’ ‘de longa duração’ - em
outros termos, um arquétipo mítico que se desenvolve na história e na literatura como um
constante logos cultural. Parafraseando Bernard Andrae, Ulisses representa a ‘arqueologia’
da imagem europeia do homem (BOITANI, P., 2005: XIV).
Incluída, pois, na obra pessoana como um livro sui generis, Mensagem, a mais portuguesa
das obras de Pessoa, é válida por seu alto nível poético por sua primorosa estrutura
e pela captação total da alma portuguesa, heroica e mítica, saudosista e messiânica
(BERARDINELLI, C., 2004: 132).
8 Assim é descrito o herói na epopeia homérica que narra sua jornada: “Mas nunca com os olhos eu vi nada
que se comparasse/ Com o amável coração do sofredor Ulisses. /Que feitos praticou e aguentou aquele
homem forte (…) Nós os dois estávamos desejosos de nos levantarmos/ e de sairmos; ou então de responder
lá de dentro. /Mas Ulisses impediu-nos e reteve-nos, à nossa revelia (…) E assim salvou todos os Aqueus”
(HOMERO, 2006: 264-268).
282 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas
a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido’. Revivendo a fé no Quinto Império, Pessoa
inventou uma razão de ser, um destino, fugindo à angústia dum quotidiano absurdo,
genialmente expresso por ele e Álvaro de Campos (COELHO, J. P., 1983: 106-107).
9 A respeito da invenção de uma razão ou destino para fingir e fugir do quotidiano absurdo, mencionado no
fragmento do texto de Jacinto Prado Coelho, escreve Fernando Pessoa: “Sendo assim, não evoluo: VIAJO (por
um lapso na tecla das maiúsculas, saiu-me, sem que eu quisesse, essa palavra em letra grande. Está certo, e
assim deixo ficar). Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me
na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de
fingir que se pode compreendê-lo” (PESSOA, F., 2006: 22).
10 Cf. a afirmação de Eduardo Lourenço: “É da realidade que o mito se alimenta, é no mito que a realidade se
torna significante” (LOURENÇO, E., 2000: 21).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 283
ULISSES
Com recurso ao oximoro, fica aqui perfeitamente insinuada a natureza utópica do grande
sonho veiculado pelo poeta neste livro: o Quinto Império. Como referimos na ‘Introdução’,
ele próprio afirma no inquérito promovido por Augusto da Costa e recolhido no seu livro
Portugal, Vasto Império que o principal meio para levantar moralmente uma nação é a
exploração insistente de um grande mito nacional (LOURENÇO, A. A. In: PESSOA, F.,
2008: 82).
11 Ao analisar Mensagem, Agostinho da Silva ressalta que “a missão de Portugal não poderá ser outra senão a de
resgatar o que a Europa fez e de salvar a seus próprios olhos” (SILVA, A. da, 1958:18).
284 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas
pelos desejos do povo e de seu representante, o poeta, que recria e reconta o mito12,
adaptando-o às suas necessidades e à sua época, como fizeram Homero e Fernando
Pessoa.
A estrofe seguinte possui igualmente grande interesse para o entendimento da
aludida concepção mítica no texto de Fernando Pessoa. Se anteriormente identificamos
no poema uma devoção familiar aos conceitos e dogmas helénicos e cristãos no que
se refere à divindade, a segunda estrofe apresenta-nos o herói navegador Ulisses que,
– durante sua itinerância e aventuras na viagem de retorno à Ítaca – teria miticamente
fundado a cidade de Lisboa. Iniciar a segunda estrofe do poema com Este é anunciar
e, simultaneamente, ocultar o mito a respeito do qual escreve. Deve o leitor terminar
a leitura da estrofe e ter conhecimento prévio da mítica presença de Ulisses na costa
lusitana para associar Este ao herói grego. Deve ainda o leitor ter acesso aos elementos
míticos que denotam as reminiscências da narrativa mítica que afirma ser Ulisses o
fundador da cidade.
Enfim, Fernando Pessoa escreve sobre o herói grego para aqueles que saberiam
entender seus versos e – como ele – desejassem restaurar a memória da fundação da
capital portuguesa. Acreditamos que seja esta a mensagem de Mensagem, ou seja, a
sua proposta de restauração nacional, a partir do resgate e revalorização das tradições,
valores, costumes, mitos e crenças do imaginário pátrio. Recuperamos aqui o excerto
anteriormente referido, no qual António Apolinário Lourenço cita Fernando Pessoa:
“ele próprio afirma que (...) o principal meio para levantar moralmente uma nação é a
exploração insistente de um grande mito nacional” (LOURENÇO, A. A. in PESSOA,
F., 2008: 82). Portanto, associando a memória mítica do herói grego que retorna
à sua pátria com o desejado regresso de D. Sebastião, Fernando Pessoa enfatiza a
importância da reconstrução nacional, no caso dos dois mitos.
Realce-se o facto de ambos serem reis que frequentaram – e frequentam – o
imaginário coletivo de seus povos e igualmente de outros povos: Ulisses em Portugal,
D. Sebastião nas visões do sebastianista Antônio Conselheiro, líder da revolta
popular em Canudos, que criou um reino mítico para D. Sebastião em terras
brasileiras. São mitos messiânicos – ulisseano e sebastianista – transformados em
profecias pela necessidade popular de acreditar em um salvador que reinstaurará
uma era de glórias. “Esta multiplicidade de formas, o mesmo é dizer, de linguagem,
permite que a profecia tenha vários graus de significação, em que o que a um nível
é ‘verdade’ a outro é ‘erro’” (SEABRA, J. A., 1988: 83). É verdade para o povo que
12 Cf. Agostinho da Silva: “Portugal porá, como seu alicerce, o que de mais fundamental a Europa poderá ter
dado ao mundo: com Ulisses, a ideia de que o mito é mais importante do que a realidade, de que o poder vir
a ser é o substracto do que é, de que as coisas morrem à medida que são” (Ibid.: 19).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 285
aguarda a volta do seu rei – tanto Ulisses era aguardado pelo povo de Ítaca, quando
D. Sebastião pelos lusitanos. É erro, para os cépticos. Assim sendo, os graus de
significação são distintos como são distintas as relações que os indivíduos mantêm
com as profecias e narrativas míticas.
Neste contexto, justifica-se refletir sobre as palavras de José Clécio Basílio Quesado
a respeito da produção literária pessoana e a inserção nela destes elementos míticos
e oníricos:
Sonho, mito ou loucura são, pois, elaborações discursivas do inconsciente que o poeta toma
como formas de promover a ausência da realidade, procurando trabalhar não sobre o dado
concreto mas sobre a formulação imaginária que se produz como descontinuidade do real.
Daí a retomada do passado da infância como fuga do presente, ou a busca do nada como
negação da própria existência, ou, enfim, Qualquer coisa que não a vida (QUESADO, J. C.
B., 1976: 80).
Mito, vida que não passa na vida que passa - e toda passa -, lenda a escorrer da realidade.
Foi para Ulisses, incarnação da primeira viagem iniciática da nossa alma futuramente grega,
como ele a sonhava, que o autor de Mensagem compôs os versos famosos (LOURENÇO,
E., 1986: 9-10).
13 Cf. o comentário de Jacinto Prado Coelho: “Pois na Mensagem é a redução a um pensamento que descarna,
espectraliza as personagens da História nacional” (COELHO, J. P., 1983: 108).
14 Leia-se o que Marcel Detienne escreve sobre o herói Fundador: “As cidadezinhas, recém-implantadas, vão
dar a si mesmas, na geração seguinte, um culto de tipo político: o de seu Fundador, heroizado após sua morte”
(DETIENNE, M., 2013:47).
15 Cf. Agostinho da Silva (SILVA, A. da, 1958:27-28) e Jean-Pierre Vernant (VERNANT, J.-P., 2002:200).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 287
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LOURENÇO, Eduardo (1986). Fernando, Rei da Nossa Baviera. Lisboa, Imprensa
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A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 289
Stélio Furlan
Universidade Federal de Santa Catarina
Especular, refletir: toda a atividade do pensamento me remete aos espelhos. Segundo Plotino,
a alma é um espelho que cria as coisas materiais refletindo as idéias de uma razão superior.
Talvez seja por isso que eu preciso de espelhos para pensar: só consigo concentrar-me
quando em presença de imagens refletidas, como se minha alma tivesse necessidade de um
modelo para imitar toda vez que exercita a sua virtude especulativa. (O adjetivo assume
aqui todos os seus significados: sou ao mesmo tempo um homem que pensa e um homem
que tem negócios, além de ser colecionador de aparelhos ópticos.)
Tão logo levo um caleidoscópio ao olho, sinto que minha mente, ao ver os fragmentos
de cores e linhas heterogêneas agruparem-se e comporem figuras regulares, encontra
imediatamente o procedimento a ser seguido — mesmo que seja apenas a revelação
peremptória e lábil de uma construção rigorosa que se desfaz a menor batida de unha nas
paredes do tubo, para ser substituída por outra em que os mesmos elementos convergem
num conjunto diferente (CALVINO, I., 2002: 165).
292 100 Orpheu Stélio Furlan
3 Todas as citações do cosmopoema Ode Marítima [1915] foram colhidas em GALHOZ, Maria Aliete. Orpheu
2. Edição fac-similada, Edições Ática, Lisboa, s/d. pp. 69-106. Doravante, nas citações faremos indicação
apenas do número da página(s).
294 100 Orpheu Stélio Furlan
Na página seguinte:
Pessoa está em toda a parte e em nenhuma. Nós só podemos interinar o mito criado pela
sua obra ou recusá-lo. Seja como for, esse mito tornou-se uma das referências chaves do
século XX, fazendo, por assim dizer, corpo, com o seu próprio mito de século explodido
(Idem: 12).
Heteronímia como ficção de autognose 297
como Pessoa esta absoluta perdição do sentido do nosso destino, enquanto mundo moderno,
e isto bastaria para que o autor da Tabacaria se tivesse convertido não apenas no mito que é
para nós, mas numa das referências-chaves da Cultura contemporânea. De uma maneira ou
de outra, o homem moderno comparticipa desse sentimento de radical solidão e de absurdo
que pouco a pouco emergiu com o processo de isolamento e de inumanidade da civilização
actual (Idem: 19).
Campos prefere ficar no cais, vendo os paquetes que entram e saem do Tejo, meditando no
“mistério alegre e triste de quem chega e parte” [...] transpondo o cais em que está para a
esfera dos símbolos, visionando um “Cais absoluto”, fora do espaço e do tempo, donde viemos
porventura quando nascemos, onde também haverá gente anónima que sofre o mistério de
partir e de chegar [...] De novo o tédio envolve o poeta, crucificado na monotonia dum
existir ocioso. O espectáculo da própria inércia, os sonhos malbaratados, a inconsequência
298 100 Orpheu Stélio Furlan
de tudo fazem-no odiar-se a si próprio, ser grotesco, rei de opereta, “palhaço sem riso, o
bobo com o grande fato de outro [...]” (COELHO, J. P., 1973: 125-126).
E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Actual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.
[…] modulação desse sentimento intenso de fusão com o mundo, ou melhor, com a natureza,
acompanhado de não menos intensa consciência de sua precariedade, alegria na tristeza,
tristeza na alegria. Em suma, uma modulação daquela particular maneira de sentir a vida
que os portugueses resumem na palavra-mito da sua cultura, a saudade (LOURENÇO, E.,
2001: 38-39).
Os versos de Ode Marítima ressumam uma Náusea amplificada pela impotência diante
do que chama o «peso actual» dos tempos modernos. O que justifica, talvez, o atemporal
mergulho simbolista numa “aventura indefinida”. Porém, depois da “fúria marítima”, uma
súbita brisa gelada dissipa a virulência das sensações trágicas e, de certo modo, pacifica-o:
Um calafrio arrepia-me.
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais
longe, de mais fundo,
De repente – oh pavor por todas as minhas veias! –,
Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu
Heteronímia como ficção de autognose 299
Por uma epifania ele queria dizer uma súbita manifestação espiritual, seja na vulgaridade
da fala ou do gesto ou em uma fase memorável da própria mente. Ele acreditava que toca ao
homem de letras registrar essas epifanias com extremo cuidado, vendo que elas próprias são
os mais delicados e evanescentes momentos (JOYCE, J., 2012: 16).
Antes de Joyce, Pessoa escreve epifanias, no caso, feito corrente de ar que anima o
sujeito poético a retornar às «cousas modernas e úteis». Ao apelar para o sensorial,
o frio repentino ganha correspondência de revelação metafísica, pois faz com que o
sujeito lírico desperte e retorne do “Cais Absoluto” para o cais comum da “Civilização
quotidiana”, para o pragmatismo antilírico das coisas imediatas.
E então, o sujeito poético torna a vestir a alma com os trajes da civilização, como se
após a apoteótica exaltação, feita de fúria, de ímpeto, da ideia de ser tudo, só restasse
o trânsito desconcertado, menos humilde do que humilhante, da vitalidade do Sonho
para a realidade comezinha cotidiana, um real que resiste ao avesso do sonho: o
utilitarismo pragmático, industrial, comercial da vida.
Homem do Sul, nascido à beira-mar, amou o mar e as viagens: e celebrou-as. Nas suas
odes, o mar é a história de Portugal: é a aventura do desconhecido, a obstinação, a ousadia
de um pequeno povo, mas também a violência colonizadora, o Eldorado falhado, a perda
da inocência. Mas amou principalmente a ideia da viagem. Autodefinia-se cosmopolita.
De facto, tinha a alma de um vagabundo prisioneiro na pele de um burguês sonhador. Os
seus críticos dizem-nos que de manhã descia até ao porto de Lisboa e passeava pelo cais
de Alcântara para ver surgir no horizonte os barcos que tinham atravessado o oceano. De
pé, no cais, à espera da sua “viagem” [Ode marítima], cantou com maiúsculas a Viagem e a
Distância, o “Cais Absoluto por cujo modelo inconsciente imitado” os homens construíram
os cais nos seus portos, “o grande Cais Anterior, eterno e divino”. Mas evocou também [...] os
veleiros e os Mares do Sul, o cordame, o alvoroço dos portos exóticos, a maresia, os piratas
4 Vale registrar que, para a compreensão desse artifício poético, faz-se necessário investigar a contribuição de
Cesário Verde à tessitura poética fernandina.
Heteronímia como ficção de autognose 301
e os velhos marinheiros. E ilhas rosadas com palmares oleográficos. Os lugares das suas
viagens eram lugares geométricos, cabem no espaço do conceito e do desejo (TABUCCHI,
A., 1984: 48).
Força é dizer que, do tratamento dado àquele fascínio bem português de uma
ficção poética de viagens, ressuma um ar do tempo. Da versificação exuberante
ao conteúdo semântico afetado por longas enumerações de imagens pulsantes ou
pela “sequência ininterrupta de imagens novas”, passando pelo culto à beleza da
velocidade, pela tematização dos rumores e odores urbanos e marítimos, num tempo
prenhe de tumulto e labirinto, Pessoa-Campos rubrica a persona que melhor delineia a
modernidade à portuguesa. Nas palavras de Isabel Margato, «a fragmentação da figura
do herói, o vazio que tal realidade instaura» (MARGATO, I., s/d.), acrescente-se, o
diálogo com as vanguardas históricas, a autoproclamação de quem se instala e ocupa
ruidosa e furiosamente um lugar, a caleidoscópica poética do olhar, o cosmopolitismo
e a tematização do espaço urbano, mais a consciência distópica do seu tempo, todos
elementos que povoam dita metamorfose poética, são as margens que delineiam a
transbordante modernidade pessoana.
Como vimos, se numa primeira leitura Ode Marítima lembra os expedientes
da escrita automática surrealista, ou um texto algo desordenado que acumula
enumerações de “cousas navais”, observando a sua tessitura constata-se que não há
espaço para o improviso, pois o longo poema é estruturado de modo lógico, coerente,
graças à metáfora da máquina como fio condutor, melhor, do volante cuja gradação
ascendente e descendente instaura uma circularidade que vai do mínimo ao vasto, do
vasto ao ínfimo, do nada ao tudo e do tudo ao nada.
Trocando em miúdos, o jorro enumerativo é falsamente caótico, uma vez que
todo o conjunto de acumulações reiterativas, de onomatopeias, de aliterações, que
substituem a cadência sonora das rimas, fazem um só corpo com o sentido. Noutras
palavras, a ode não deixa de figurar uma experiência oceânica outra marcada por
nova visão de mundo oriunda do processo industrial e sugere tecer uma resposta
crítica ao desafio de Marinetti, que se indagava sobre «que tipo de literatura pode
surgir oriunda da técnica?». Nessa rede de relações, caberia perguntar ainda se acaso
o fenômeno da heteronímia, com o seu alto grau de despersonalização poética, com
a fragmentação da alma em outros personas, não seria um desdobramento lógico do
que Marinetti pontifica no Manifesto Técnico da Literatura Futurista, de 1912, cito: é
preciso «Destruir na literatura o ‘eu’?»
Diálogo com emulação, suplemento, por certo, pois, para Pessoa-Campos, associar
futurismo e Orpheu seja «a coisa mais disparatada que se pode imaginar» (PESSOA,
F., 1987: 208), como escreve em carta datada de quatro de junho de 1915. Embora
302 100 Orpheu Stélio Furlan
haja elementos que evidenciem essas remissões intertextuais de modo mais explícito
em Ode Triunfal, força é dizer que Campos se distancia do futurismo com uma Ode
Marítima em que a expressão sensacionista é exacerbada até ao espasmo (SEABRA,
J. A., 1988: 235).
Nas palavras de Nelly Novaes Coelho, mais «do que a euforia futurista de Marinetti,
as odes de Álvaro de Campos expressam a experiência quase apocalíptica do poeta
contemporâneo, ao pretender expressar um mundo que ultrapassou sua capacidade
normal de apreensão» (COELHO, N. N., s/d.). Em consequência, a avant garde prosa
dos versos de Campos integra poeticamente o ser humano na inquietante realidade
do começo do século XX.
Pessoa-Campos não se contenta com o espetáculo do mundo. Artífice do excesso de
expressão poética, ele se circunscreve no domínio de Eros, logo, encarna um princípio
de ação. Se Eros simboliza o desejo, cuja energia é a libido, a contrapelo dos demais
heterônimos, nele se corporifica uma «atitude enérgica, vibrante, cheia de admiração
pela vida». E, ao mesmo tempo, não é menos certo dizer que Pessoa-Campos exibe
a consciência do seu tempo. Assim, não se pode dizer que essa inventio poética
traduza um elogio acrítico a positivar «tempos modernos»; antes, compendiando as
preocupações de uma geração, revela-se consciência distópica, leia-se um testemunho
das contradições próprias à modernidade.
Em suma, afora incorporar aquela noção de máquina enquanto invenção astuciosa
e assimilar irônica e poeticamente os elementos da civilização industrial para
transformar a metáfora da máquina e do mecanicismo em material criativo, talvez se
possa dizer que no olhar caleidoscópico de Pessoa-Campos não se disfarça o desejo de
tornar o próprio corpus todo um cosmopoema: «ser toda a gente e toda a parte»: «Afinal»
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Uma faceta ortónima “non despicienda”
Ler a poesia ortónima d.c., isto é, de depois das edições críticas, constituiu para
mim, por vezes, experiência surpreendente em relação ao que era a leitura a.c., de
antes das edições críticas. Em minha visão, o ortónimo acabou apresentando um
perfil com notas diferentes daquele que seus primeiros editores nos deram. Era o
“fingidor”? Era o vanguardista? Sim, era o “raciocinador subtil”, exato? isso também
estava patente desde poemas de há muito publicados como “Análise” e outros. Mas
o que ficou mais claramente revelado no ortónimo das edições críticas foi que,
mesmo tendo escrito o poema “Isto” em abril de 1933, ele escreveu outros não tão
rigorosamente despersonalizados. Como dizer, por exemplo, que o eu do poema “Un
soir à Lima”(17-9-1935) escreve livre de seu enleio, não usa o coração, ou que nele o
sentir é só para quem lê? O mesmo poderia ser dito doutros poemas que têm a figura
materna como motivo inspirador ou que trazem a figura da “ama”, todos impregnados
de emotividade. Outra faceta ortónima que praticamente não se conhecia nos
poemas a.c., ou só escassamente, diz respeito ao cristianismo. Conhecíamos poemas
esotéricos, mas em relação a Cristo, à Virgem Maria, à espiritualidade cristã, isso
constituiu tal surpresa que me decidi a fazer este texto.
Principio pelo poema cujo incipit é “Senhor, meu passo está no Limiar”, de
15/16-11-19151, no qual o ortónimo dirige uma prece a um destinatário que nomeia
como Senhor, grafado com maiúscula. Pelo seu teor, este pode ser identificado
com o Ser Supremo, com o Deus cristão. O poema guarda analogia formal com
“Ascensão”, de 10-1-1913, revelado como inédito na edição Poesia. 1902-19172. Os
dois são formados por seis estrofes, compostas por decassílabos combinados com
tetrassílabos e hexassílabos, embora sejam diversas as combinações dos metros nas
estrofes. Em ambos, rimas graves e agudas são habilmente distribuídas para salientar
as palavras chaves e neles o tema é a vida de relação com a Divindade. “Ascensão”,
apesar de o poema estar em 1ª pessoa, não é uma prece, mas uma autoconfissão e
“Senhor, meu passo está no Limiar” constitui, como o 1º verso indica, diálogo com
a Divindade.
Neste, o ortónimo revela uma consciência profunda da importância da sua obra
poética num plano que transcende a esfera imanente, ao mesmo tempo em que
formula um complexo pedido de humildade. Eis as primeiras estrofes:
1 Publicado pela primeira vez na edição crítica Poemas de Fernando Pessoa, tomo II – 1915-1920, edição de João
Dionísio, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.
2 Quando não houver outra indicação, as citações da obra pessoana serão extraídas das edições organizadas por
Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. São Paulo, Companhia das Letras, vols. I, II e
III, datados, respectivamente de 2006, 2007 e 2009.
Uma faceta ortónima “non despicienda” 307
O eu do poema sabe que o seu legado será grandioso, que ele pode ser presa da auto
complacência, daí a humildade pedida como dom; sabe que a sua virtude não será
suficiente para criá-la em si. Qualifica seu ser de “mero”, pouco importante. A 2ª estrofe
enfatiza, platonicamente, que o eu é “sombra” de um “Ti” com maiúscula, a cujos pés
se encontra. Mais: que é um “desenho/De Ti em mim” e irrompe novo pedido: que o
eu ponha seu “engenho” a serviço do Ser Supremo para fazer a revelação de um Fim
também com maiúscula. Aceita e mesmo pede para ser o “mero” instrumento desse
plano que o transcende, mas que o inclui.
Chama a atenção que a prece prossiga fazendo um oferecimento da sua obra à
Divindade numa fórmula em muito parecida à de orações litúrgicas que rogam que uma
determinada ação comece em Deus e n’Ele termine. A do poema diz: “Essa obra que é
tua e em mim começa /E acaba em Ti”. A obra começa no eu, não em Deus, mas como
o eu, de antemão dissera que a obra não era dele, mas do “Senhor” – “é tua” – podemos
considerar sua formulação equivalente às tradicionais. O cuidado de explicitar que a
obra “acaba” no “Senhor” é digno de nota, pois os que se exercitam na vida espiritual
conhecem bem que esse é um dos escolhos da navegação: pode-se começar uma
obra em Deus, mas, ao longo do caminho, consciente ou inconscientemente, ir-se
desviando e afastando do Fim proposto. O ortónimo demonstra-se conhecedor desse
meandro da vida interior.
Enquanto, na 4ª estrofe, para a obra que produz utiliza a metáfora “Teu Rio”,
qualificado de “fundo”, àqueles aos quais a obra se destina, o público, o eu poético
utiliza a metáfora do “mar”, que é para onde o “Rio fundo” leva “Verdade e Lei”.
Na Bíblia, o simbolismo do mar é ambivalente. O Génesis conta que os mares,
criados por Deus, são bons. Ele povoou o mar de rica fauna não só de peixes “normais”,
mas também de grandes cetáceos e de seres colossais, apresentados, por vezes, como
símbolos das forças do mal, submissos, contudo, ao Criador. O mar, pelas grandes
dimensões, instabilidade, tempestades, se apresenta muitas vezes assustador e será dele
que, no Apocalipse, sairá o Anticristo: “A Besta de 10 chifres e 7 cabeças” (Ap., 13.1).
A obra do ortónimo, começando e terminando na Divindade, “leva” “Verdade e
Lei” com maiúsculas ao “mar”, esse imenso e instável espaço mesclado de bem e de
mal, para lá cumprir uma missão divina. Nas estrofes finais do poema o eu fala da
“névoa que sobe do alto da montanha/E ergue-se à luz”, “a Tua luz”, como especifica
o verso seguinte, em que Tua é grafado com maiúscula e fala-nos de seu desejo:
“Eu quero ser a névoa que se ergue/ Para Te ver”. Tanto no Antigo quanto no Novo
Testamento, as grandes teofanias eram precedidas e/ou acompanhadas de névoas ou
de nuvens, às vezes luminosas, às vezes brancas, significando a presença de Deus e seu
mistério. Os dois versos finais da última estrofe dizem: “A humanidade sofredora é
cega – / O resto é apenas ser...4.
Citei os versos conclusivos do poema por considerá-los importantes para o
entendimento do que vínhamos tratando. Se o “mar” é “a humanidade sofredora” e o
eu a considera “cega”, sua obra, enquanto água de “Rio fundo”, leva água da “Verdade
e da Lei” para limpá-la, purificá-la e iluminá-la. Recordemos serem numerosas as
passagens do Antigo Testamento que falam das águas puras dos rios que revitalizam
as securas ao longo das andanças do povo de Israel e são célebres o Eufrates, o Jordão,
as águas que manavam do Templo no livro de Ezequiel, bem como passagens do Novo
Testamento que falam do batismo no Jordão e do rio da vida que, no Apocalipse, brota
do trono de Deus e do Cordeiro. Fica implícito que o eu do poema não está incluído
na humanidade “cega”. Se sua obra leva “Verdade e Lei”, é que o eu as conhece e se
considera em condições de almejar erguer-se para ver o seu Senhor.
5 Salmo 129: De profundis clamavi ad te Domine. Missal Quotidiano e Vesperal. Bruges, Desclée de Brouwer&Cie,
p.887.
6 Var. sobrep. para e interior:-divino amor.
310 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez
e dele rindo – exercício tantas vezes tão grato ao ortónimo – ao mesmo tempo em
que um “Amor” não baixo, mas “alto”, vindo de outra esfera, por isso com maiúscula,
conferiu-lhe “chama espiritual e interior” e deu “nova luz ao olhar”, “cor às faces” e
mais, porque a 3ª estrofe, surpreendentemente, acrescenta que, na alegria da fé, o eu,
“alma de joelhos”, crê e adora.
Convenhamos estar a lidar com um ortónimo diferente daquele com quem
tradicionalmente lidávamos, quando lemos esses versos e os que agora cito: “Porque
Deus fez de mim o seu altar/Quando Ele me nasceu tal como sou,/ (...)// Eu tenho
Deus em mim... Em Deus existo/ Quando crê, cega, acha-o minha fé calma.../
Maria-Virgem concebeu um Cristo/Dentro em minha alma...” Versos de pura teologia
mística, que poderiam ser encontrados em poemas de santos canonizados. A última
estrofe é que apresentará uma surpresa em parte dos dois versos finais. Após dizer
que a sua alma encontra seus céus dentro de si, que está morta para si em Deus, tudo
teologicamente ortodoxo, vêm reticências e as seguintes indagações: “Mas o que é
Deus? E existe Deus?/ Isso que importa?”. Desta vez, não foi necessário fazer uma
palinódia. A contradição estabeleceu-se no interior do próprio poema, em seu fecho,
espaço de força privilegiada. Quer isso dizer que o fecho anula o que o corpo do poema
colocara? Diria que não, mas que o problematiza, colocando-o sob o signo da dúvida.
Mas será que a atitude dubitativa, polémica, questionadora constitui novidade para
o leitor do ortónimo e de Pessoa, de modo geral? Nos primeiros textos recolhidos no
Poesia.1902-1917, do ortónimo, encontramos os poemas:
“Agnosticismo Superior”
“Lirismos”
7 Trata-se da 6ª estrofe do poema cujo incipit é “O céu ‘stá lúcido e tranquilo” (I, p.153).
8 Pareyson, L. Verdade e interpretação, p.228-229.
312 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez
dentre as árvores ao “sol pôr, “talvez, seria feita A Cruz”, querendo significar que
não se tratava de uma cruz qualquer, mas d’A Cruz redentora, merecendo portanto
esse destaque. Principia, neste soneto, a manifestar-se a temática da cruz, que
encontraremos noutras composições da década de 30.
Note-se também que, no mesmo dia em que datou o soneto da fuga para o Egito,
datou também e possivelmente mesmo teria escrito o poema: “Quando Cristo, Rei
da Lei,/ Voltou ser, após os três/Dias que Deus deu ou fez,/Viu logo nascer do chão/
Quem lhe roubasse o caixão/E disse: Já me enganei./Adeus, vou morrer de vez!” Será
que esse poema-blague, talvez para neutralizar o efeito piedoso do soneto, merece o
pomposo nome de palinódia? Mas, que o procedimento de dar uma no cravo e outra
na ferradura aqui se manteve, é verdade.
O ortónimo data de 20-1-1933 um de seus mais belos sonetos, em versos
decassílabos, no qual, nesse movimento pendular que o caracteriza, vemo-lo num
extremo de fé e de positividade. Ei-lo:
Se ainda permanecesse dúvida a respeito, esse soneto não revelaria uma vigorosa
faceta mística no ortónimo, já que só um místico o poderia ter escrito? Não há nele
tal envolvimento com a figura de Cristo paciente, que o poema não fica a dever a
314 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez
um suicídio tardo,/Um desejo de dormir que ainda vive.” (II, p. 282 e 283). Trata-se de
um poema desabusado, que mais parece Álvaro de Campos do que ortónimo. Ele faz
lembrar o de16-3-1934, que transcrevo:
lhes tira a gravidade e os reveste de certa ironia. Num verso alexandrino, o eu sintetiza
esse itinerário, não necessariamente cronológico, que, ao fim e ao cabo, ocupou-o
bastante, encheu-lhe o tempo, “mas nunca o [seu] meu coração.” Este último dado é
fundamental e importa não esquecê-lo.
Comido do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, “a maçã diabólica” de querer
igualar-se a Deus, o eu perdeu radicalmente seus “dias serenos”, dias de inocência,
daí sucederem-se as interrogações: “De que é que me deserdou a verdade?” “(...) sou
outro, mas quanto?!” Mal houve tempo de formulá-la quando, surpreendentemente,
irrompe o verso chocante: “Oh a saudade/Da Igreja Católica!” Ironia, dirão alguns.
Talvez, mas, pelo contexto do poema, não parece, apesar de ele fazer “Católica” rimar
com “diabólica” – e ao chamar a atenção para isto, eu mesma forneço armas aos que
iriam levantar esse argumento contra minhas colocações.
A 4ª e última estrofe confirma a leitura que estamos fazendo. Em seu presente, o eu
perdeu a integridade, é como “mó” “que caísse mal”, está quebrado. Não é só Álvaro de
Campos que vê sua alma partir-se “como um vaso vazio”; também o ortónimo vê-se
partido, ele que, “em pequeno”, “seguia, magnanimamente só/ Sem nada fatal”. Indo ao
dicionário Houaiss, encontramos para magnânimo aquele “que, a despeito de todos
os riscos e perigos, age ou pensa desinteressadamente com vistas a servir alguém ou
a encarnar um ideal; generoso; bondoso”. O “pequeno”, que vivia coberto por uma
“redoma” vivia desinteressadamente “só”, generosamente “só”, “sem nada fatal”, donde
se conclui que, em seu presente, ele provavelmente está acompanhado, por um grupo
talvez, e oprimido por previsões funestas.
Semelhante ao poema analisado é o que principia com o verso “Na paz da noite,
cheia de tanto durar”, editado no Poesia.1931-1935 imediatamente a seguir ao que
acabamos de tratar, e datado de Abril de 1934, segundo a nota, à p. 589. Nele, após
confidenciar que leu muitos livros em vão, pois vê que há “paz” na noite acabada, mas
não no seu coração, acrescenta algo significativo: “Criança, era outro... Naquele em
que me tornei,/ Cresci e esqueci./ Tenho de meu agora um silêncio, uma lei./ Ganhei
ou perdi?” (III, p. 262). No poema anterior, a expressão utilizada foi “em pequeno”;
neste, “criança, era outro...”. Dois versos pentassílabos resultam do confronto entre o
passado e o presente: “Cresci e esqueci.” e “Ganhei ou perdi?”. A leitura do primeiro
pentassílabo parece-me desfavorável ao primeiro verbo, pois o resultado de crescer foi
esquecer, logo seu presente não está sendo bom. Quanto ao segundo pentassílabo, a
indagação também merece resposta negativa para o “ganhei”, porque no presente do
eu não há “paz”, ele só tem de seu “um silêncio” e “uma lei”. Ao crescer, perdeu.
Será que ainda se faria necessário tratar de dois outros poemas que, se estivessem
menos lacunares e/ou discutíveis, seriam excepcionais para nossa linha de reflexão,
“O Rei” e “Mãe de Deus”, ambos de 31-7-1935? Reproduzirei aqui apenas a fixação
Uma faceta ortónima “non despicienda” 319
que Carlos Pitella-Leite fez de “O Rei” como soneto, em sua tese de doutorado11, que
foi a fixação do texto que me pareceu a mais convincente, e dele tratarei num breve
comentário:
275. “O Rei”
O Rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei coroaram-nO de espinhos
E por trono Lhe deram uma cruz.
11 Pequenos infinitos em Pessoa: uma investigação filológico-literária pelos sonetos de Fernando Pessoa. Tese
de doutorado (importante) defendida e aprovada no Departamento de Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro em 28 de março de 2012. Há variantes significativas deste soneto entre as leituras
de Carlos Pitella-Leite e a leitura deste mesmo poema não visto como soneto pelas editoras da Companhia das
Letras.
320 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez
12 Cf. texto de GARCEZ, Maria Helena Nery. “Uma poética grávida de impactos”. Vide Bibliografia.
13 Cf. texto de GARCEZ, Maria Helena Nery. “Uma noite em Durban”, aguardando publicação pela Revista do CLEPUL.
Uma faceta ortónima “non despicienda” 321
Mencionemos ainda os poemas “Virgem Maria”, que embora não trate da mãe do
eu poético, trata da mãe num sentido amplo: “Mãe de quem não tem mãe, no teu
regaço/ Poisa a cabeça a dor universal/ E dorme, ébria do fim do seu cansaço.../E tens
na mão, usado e nunca imundo,/ O pequenino lenço maternal/ Com que enxugas as
lágrimas do mundo.”, de 21-8-1935, (III, p. 435). O “Mater desiderata”, poema sem data,
dedicado a sua mãe, cujo título é uma criação do eu poético à maneira da ladainha
de Nossa Senhora, tão elevado é o amor que à mãe ele dedica. Curiosamente, neste
poema, ele descarta o argumento dos que procuram consolá-lo com a ideia de que irá
encontra-la na “reencarnação”, respondendo: “Mas é a mesma que eu quero,/Essa é
que eu choro em dor...”. Ele prefere a ressurreição: “Quem quero é minha mãe,/A mãe
que tive aqui.” (III, p. 548).14
Concluindo, penso que com as revelações trazidas pelas publicações das poesias
completas do ortónimo é preciso rever posições
No tabuleiro pessoano há o jogo heteronímico e há também a figura do ortónimo.
Não me parece que a visão dos heterónimos tenha mudado tanto quanto a do
ortónimo. Para que o jogo pessoano decorra fidedignamente, é preciso que cada peça
esteja bem definida e seu ethos (como diria Mariella Augusta Pereira em sua tese15)
bem configurado, mesmo se ele for complexo e/ou contraditório.
Dantes, em relação ao ortónimo, fazia-se muito finca-pé no distanciamento, no
vanguardismo, no sentir com a imaginação e não com o coração, no esoterismo e, de
fato, nele tudo isso existe. O mito daquele cerebral, do distanciado que sentia só com
a imaginação e não usava o coração, do “novelo embrulhado para dentro” mostrou-nos,
porém, em poemas d.c., que muitas vezes ele também usa muito o coração, que há
graus naquele distanciamento e o mito está se ajustando mais à realidade. O esoterismo
existe, mas não só. Na poesia ortónima lida cronologicamente, vamos assistindo a
uma progressiva aproximação da figura de Cristo até à adesão extática (e uso extática
com x intencionalmente) manifestada no soneto “O Rei”. Do cristianismo, ele adere
a Cristo e a Cristo crucificado. Também fica clara uma forte ligação entre a fé e a
educação recebida no âmbito familiar, mais concretamente sob a influência materna.
Vê-se, portanto, que o ethos do ortónimo não estava bem caracterizado.
14 Para terminar a sequência, como não citar um poema muito lacunar, mas significativo da importância que
o ortónimo, desde muito cedo, 1-7-1910, atribuía à figura materna, o inédito “Harlot’s song”, que nos traz a
figura de uma rameira do Bairro Alto, sem freguesia, e cantando uma triste canção? Ao ouvi-la, o eu tece
considerações sobre os caminhos da vida e, na estrofe final, fecha assim o poema: “E o mistério de tudo é tão/
Visível na tua vida e fado absurdo/Que esqueço até a compaixão/ E fico [ ] e surdo/E dolorido, como quem /
Pensasse, ó triste, ser tua mãe...” (I, p.100-101).
15 Pereira, Mariella Augusta. A heteronímia: metamorfoses retórico-poéticas. Ethos e pathos nas Ficções do
interlúdio. Tese de doutorado defendida e aprovada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo em 11/07/2014.
322 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez
Parece até que o duvidador venceu. Seria? I do not know what tomorrow will bring.
Fica em aberto.
Bibliografia
Introdução
“Chuva Oblíqua” uma necessidade de garantir a sua identidade, a sua autonomia, a sua
existência em relação ao mestre dos heterónimos. É o que é possível depreender da
análise feita por Yvette Centeno acerca desse conjunto de poemas. No seu estudo do
poema, a autora comenta que o poeta anseia por uma Totalidade, por um regresso a
uma unidade mítica perdida, a um estado de indiferenciação, que se afirma a cada parte
do poema, mas que “não se concretiza de modo irreversível” (CENTENO, Y., 1976: 78).
A princípio pode parecer estranho supor que tenha havido, na constelação pessoana,
um discurso que se opusesse às inquietações metafísicas tão presentes na obra de Pessoa.
Se por um lado, na poética de Alberto Caeiro, nega-se a visão metafísica decorrente de
um transcendentalismo panteísta, por outro, com “Chuva Oblíqua”, restabelece-se uma
nova visão metafísica decorrente de uma poiese iniciática, não apenas saudosista. Há de
se considerar, nas palavras de Eduardo Lourenço, a obra de Fernando Pessoa como toda
ela atravessada por questões esotéricas: “A poesia ocultista cobre o espaço inteiro da vida e
da obra de Pessoa” (LOURENÇO, E., 1981: 175); “Não há em toda a poesia de Fernando
Pessoa nada mais afirmativo que a pulsão ocultista” (id.: 1981: 176, destaques do autor);
“A visão ocultista permite a Pessoa integrar positivamente o obstáculo des-realizante por
excelência, a Morte, [...] como transparência suprema e supremo repouso” (id.: 1981: 177).
Nesta comunicação, a partir do exame das imagens, dos símbolos, das metáforas,
do processo de autognose, do componente lúdico (próximo do fingimento de
“Autopsicografia”), do plano rítmico e da sinfonia iniciática que, tal como nas
correspondências de Baudelaire, “canta o transporte do espírito e dos sentidos”, discuto
a arquitetura imaginária de Pessoa como resposta ao dinamismo das sensações da
modernidade.
1. Caleidoscópio de sensações
1 Conforme Boaventura de Sousa Santos (1992: 107), Portugal esteve sempre na semiperiferia do sistema
capitalista, pois se encontrava em posição central com relação às colónias, porém, em situação periférica em
relação aos grandes centros de produção capitalista. Mesmo com o fim do Império colonial, Portugal mantém
essas características políticas, sociais, económicas e culturais de intermediação entre o centro e a periferia do
capitalismo.
328 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra
O poema “Chuva Oblíqua VI” apresenta duas paisagens: uma real e presente e outra
sonhada e ausente – a infância. A primeira é composta pelo maestro que “sacode a
batuta” para iniciar uma música “lânguida e triste” ou “triste e vaga”, que transporta o
eu-lírico para “a minha infância”, em um determinado marco temporal: “aquele dia/
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal” (PESSOA, F., 2005a: 217). O aspeto
verbal de duração do verbo “brincar” sugere uma prolongação da ação de jogar uma
bola multicor contra um muro branco:
primeiro sentir os symbolos, sentir que os symbolos teem vida ou alma – que os symbolos
são gente. Mais tarde virá a interpretação mas sem esse sentimento a interpretação não
vem. Os rituais, entre outros fins, teem o de fazer sentir ao iniciado pela solemnidade e o
332 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra
deslumbramento a vida dos symbolos que lhe communicam. Quem tenha em si o poder de
sentir prompta e instinctivamente a vida dos symbolos não precisa de iniciação ritual [...]
(Esp. 54 A-97 apud CENTENO, Y., 1985a: 72-3).
aspeto psicológico dos sonhos diurnos e noturnos e das percepções nas vigílias, os
autores do Dicionário de Símbolos consideram o preto como “ausência de toda cor,
de toda luz. O preto absorve a luz e não a restitui. Evoca, antes de tudo, o caos, o
nada, o céu noturno, as trevas terrestres da noite, o mal, a angústia, o inconsciente e
a Morte”(id.: 742).
Conforme Yvette Centeno, no seu estudo sobre a série poemática “Chuva Oblíqua”,
no poema I, “A sombra (o inconsciente) apoderou-se da alma do poeta. Saberá ele
integrá-lo, torná-lo luminoso?” (CENTENO, Y., 1976: 85); no poema III, “[...] o
elemento noturno, negativo, será destruidor”(id.: 87); no poema VI, “O negro não
se reúne no branco [...] Mas a cor amarela, do jockey, que se modifica no sentido
do negro, e não do branco, indica o retrocesso que se opera [...]” (id.: 91). “Sombra”,
“inconsciente”, “noturno”, “negativo”, “retrocesso” são algumas das imagens relativas
à cor preta, segundo Yvette Centeno, que corresponde às imagens apontadas pelo
Dicionário de Símbolos.
Como se vê, em “Chuva Oblíqua VI”, todo o palco das sensações é desmoronado, o
que permite conjeturar que o Interseccionismo ainda não será a resposta perfeita que
Fernando Pessoa dará ao vazio, evidente no poema “Como inútil taça cheia”, escrito
em 19 de agosto de 1930.
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HALL, Stuart (1999). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
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Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 337
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105-150.
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de
Ângelo de Lima e Dino Campana
Barbara Gori
Universidade de Pádua
Palavras-chave: Ângelo de Lima; Dino Campana; Poesia órfica; Poesia modernista; Simbolismo.
Resumo: De Ângelo de Lima (1872–1921) conhecemos quarenta e três poesias, incluindo as
que foram publicadas no segundo número da revista Orpheu. Este corpus, embora limitado,
estimula-nos não só pela qualidade dos seus versos, mas também por um paralelismo que
nasce espontaneamente: o simbolismo moderadamente modernista de Lima situa-se numa
ótica parecida com a do grande poeta “louco” italiano Dino Campana (1885–1932), cuja obra
é mais ou menos contemporânea de Lima, tal como o triste fim num manicómio e o tema da
busca do próprio Eu através da “viagem” – quer real quer unicamente poética – num “além”
espacial e temporal. Ambos esquizofrénicos, ambos presos por comportamentos socialmente
inaceitáveis, ambos adeptos das correntes modernistas, mas ancorados ao Simbolismo, Lima e
Campana são dois poetas visionários, alucinados, loucos, órficos, vagabundos, ou, pelo menos,
foi esse o modo como as respetivas críticas literárias os definiram, embora nenhuma dessas
definições seja capaz de iluminar claramente a poética destes dois autores que viveram na
passagem do século XIX para o XX.
1 O poeta dedica ao pai uma poesia, A meu Pai, da qual emerge um sentido intenso de solidão e de saudade por
aquela família perdida, mas nunca esquecida (Lima, Â. de, 2003: 41).
340 100 Orpheu Barbara Gori
Ângelo tinha apenas onze anos, razão pela qual se atribuiu a este um caso de loucura
hereditária –, no caso do poeta toscano, um conflito mais concreto.
Ambos deixam os estudos incompletos (Ângelo de Lima os de arte; Dino Campana
os de química e matemática) e essencialmente por inconstância na aplicação, muito
provavelmente devida às precárias condições mentais. Os distúrbios que afligem os
dois poetas são muito parecidos: mania de perseguição, síndrome maníaco-depressiva,
crises de alucinação, aos quais se acrescenta uma certa propensão para o alcoolismo,
mais marcada no lusitano, e certamente a sífilis, que talvez seja a causa da loucura do
italiano2. Manifestam-se nos dois em idade jovem; são internados várias vezes e a cerca
de dezasseis anos de distância, mais ou menos com a mesma idade, entram pela última
vez no manicómio, de onde não mais sairão. Ambos levam uma vida errante: além do
ano passado em África, segundo consta em serviço militar voluntário, de Ângelo de
Lima recordam-se as deslocações à pátria, sobretudo a Lisboa e Porto, mas também
ao Algarve, sem nunca iniciar uma atividade laboral definida e, muitas vezes, sem
uma direção certa. Da mesma forma, Dino Campana faz da viagem uma modalidade
de sobrevivência, em Itália, Europa, América do Sul, financiado esporadicamente pela
família, mas sobretudo arranjando-se com as mais variadas profissões, mesmo as mais
humildes (Mongini, F., 2007: 69).
Regressemos à produção literária: as principais publicações dos nossos poetas –
para Lima3, os oito poemas incluídos no segundo número da revista Orpheu, para
Campana a coletânea poética dos Canti Orfici – saem respetivamente em 1915 e em
1914, a poucos meses uma da outra. A identidade “órfica” não é de maneira nenhuma
casual: é uma componente essencial da busca poética em ambos os autores. Os dois
vão beber à poesia simbolista francesa, de Rimbaud a Mallarmé; ambos são “tocados”
pelo verbo futurista – recorde-se que o Manifesto de Marinetti é de 1909 – mas só
de maneira superficial, dado que a sua “viagem poética” é totalmente de outro tipo.
Digamos que a ambos interessa a “musicalidade” do verso – ou do poème en prose, no
que concerne a Campana – muito mais do que o seu significado: se quiséssemos utilizar
uma só palavra para os definir, qualificá-los-íamos como poetas meta-semânticos.
Deslocar a visual do signifié para o signifiant não é, como é óbvio, só prerrogativa
deles, mas é herança do milieu cultural em que se acham.
2 Para as condições mentais de Ângelo de Lima, veja-se o Relatório redigido pelo então diretor do hospital
psiquiátrico de Rilhafoles, em Lisboa, Miguel Bombarda, onde Ângelo de Lima ficou internado de dezembro
de 1901 até à sua morte em agosto de 1921 (Bombarda, M., 2003: 133-138).
3 Sobre a colaboração de Ângelo de Lima na revista Orpheu e sobre as polémicas que esta suscitou nos ambientes
literários e jornalísticos portugueses da época, veja-se a publicação interessante e completa intitulada Orpheu
– Percursos e Ecos de um Escândalo (HILÁRIO, F., 2008).
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 341
Assim como Lima começa o seu percurso poético com estilemas claramente
tardo-românticos – e estamos a pensar nas suas primeiras poesias conhecidas, como
Dizem os sábios que já nada ignoram, Eu ontem vi-te…, Súplica, poesias que vão de
1894 a 1895 –, também Campana tem bem presentes as experiências imediatamente
anteriores, em especial a de Gabriele d’Annunzio – não é importante para o caso em
apreço se este é considerado decadente ou tardo-romântico – que nesses anos se acha
no auge da sua fama e condiciona fortemente, mesmo por antítese, toda a produção
poética das primeiras décadas do século xx italiano (Verdenelli, M. – Vincenzi, G.,
2014: 197). Outro ponto, embora externo, que une os dois poetas, é a sua colaboração
ativa em algumas das revistas literárias mais importantes da altura: para Lima A Arte
e A Geração Nova do Porto, para Campana La Voce, em especial.
Voltemos ao Orfismo que caracteriza as principais composições de Ângelo de Lima
e todo o percurso poético de Dino Campana. Se o Orfismo é um culto iniciático, a
poesia órfica é uma forma elitista de comunicação poética concedida a poucos eleitos.
A palavra poética do cantor “órfico” ultrapassa a realidade e a racionalidade, graças
à sua capacidade evocativa, chegando ao limite do mistério. Em termos práticos, o
que caracteriza a poesia órfica é a sintaxe onírica, o critério livre, isto é, a associação
e condensação típicas da dimensão do sonho. Lima chega a ultrapassar esses limites,
aplicando o conceito também aos segmentos morfolexicais. O resultado é uma escrita
que, ao pôr em discussão e ao reelaborar a função dos dois elementos constitutivos do
signo linguístico, causa não só um afrouxamento da relação rígida entre significante
e significado, como também uma autêntica hegemonia do primeiro em detrimento
do segundo, levando, por conseguinte, a uma reelaboração total do referente. Esta
alteração da relação entre signo e referente, a perda de uma correspondência motivada
entre palavras e coisas, que liberta o poeta do princípio que atribui ao significante o
papel de representar, não renova mas inova a linguagem, primeiro forçando-a até ao
extremo das suas possibilidades e depois utilizando-a em todas as possibilidades que
a “nova língua” gera. É assim que, ao ativar mecanismos de significação ilimitada e
de distorção da materialidade do objeto, a língua de Ângelo de Lima “se pluraliza”,
causando não poucos problemas de compreensão da mensagem poética. Uma
poesia povoada de palavras com várias possibilidades de interpretação, muitas vezes
resultado de conexões lógicas deformadas, cheias de mistério e incoerência, de
imagens fragmentadas e de associações inverosímeis, de automatismos aparentes e
inadequações sintácticas, com tendências evidentes para a hiper-abstração que, para
ser compreendida, necessita de um processo de descodificação e de decomposição
atento do material linguístico presente em cada nível: lexical, sintáctico, morfológico,
fonológico e métrico-estilístico. Os aspetos mais percetíveis logo de imediato desta
alteração linguística dizem respeito ao léxico, em especial os termos raros e arcaicos,
342 100 Orpheu Barbara Gori
4 De entre os termos inusuais e arcaicos, encontramos «Crastina» (Fado), «Êxul» (Thora), «Místera» (Epitáfio),
«Espasma» (Cântico Semi-Rami), todos exemplos de palavras perdidas no tempo que parecem viajar para lá dos
limites da memória do leitor, mas que adquirem uma atualidade se vistas no contexto em que se encontram.
Palavras que espoletam um processo de renovação lexical na medida em que, não possuindo nenhuma
intenção de significação, valem unicamente pela função expressiva que veiculam através das conexões e do
poder sugestivo dos sons. Pelo contrário, outros termos, que já eram arcaicos no tempo de Ângelo de Lima, são
reatualizados por meio das transformações a que são submetidos, em especial a nível de significante. «Psalma»,
por exemplo, na poesia Oh Céu, aparece no feminino, quando a palavra que existe em português, embora em
desuso, é masculina; o caso da palavra «inora», na poesia Súplica, é diverso pois gera muitas dúvidas quanto
ao seu significado: «Que o teu olhar é bálsamo que inora,//Do céu sobre este seio, em que, latente». A leitura
isolada do verso levar-nos-ia a pensar que «inora» está ligada à palavra que a precede, isto é, «bálsamo»,
assumindo um significado próximo a «inodoro», ou seja, de algo que não tem odor. Todavia, conhecendo
as práticas de formação de novas palavras usadas por Lima, outras hipóteses tornam-se possíveis, isto é, que
a palavra possa ser um neologismo construído a partir da fusão do prefixo «in» com o substantivo «dor»,
assumindo o significado de “indolor”, ou que seja um termo arcaico e popular que remete para ‘ignora’, relativo
a quem não sabe ou não conhece algo. Ambos os significados são possíveis no contexto da poesia.
5 É o caso de «Emprona» (Fado), que no contexto remete para ‘prora/prua’, «Dogaresa» (Idem), como mulher
do doge, «fulguro», na poesia Neitha-Kri, que pode ser entendido quer como substantivo, por derivação
regressiva, ou como adjetivo.
6 Quanto à métrica, Lima serve-se de uma métrica tradicional, utilizando sobretudo o decassílabo como
medida do verso (endecassílabo como o entendemos em italiano), muitas vezes na forma métrica do
soneto, respeitando quadras, tercetos e vínculos de rima. Sendo o andamento rítmico-métrico graficamente
fragmentado pelos frequentes parágrafos dentro do endecassílabo, por vezes pode dar a impressão ao leitor
de uma certa perturbação: mas é uma questão puramente visual. O caso de Dino Campana é diverso, pois ele
escreve num momento histórico-literário italiano influenciado pelo ‘versoliberismo’, cujo promotor é Lucini
(1908), pouco antes que Marinetti irrompa em cena com as suas “parole in libertà”. O impacto sobre a nova
geração de poetas é enorme e Campana adequa-se porque o ‘versoliberismo’ serve à sua busca da poesia
“pura” que significa, também, seguir o seu ritmo interior.
7 Algumas palavras aparecem mutiladas nos versos, resultado de elisões silábicas retomadas em seguida por
simples aliteração ou assonância ou de agrupamentos de sílabas casuais. Aliterações que muitas vezes se realizam
na voz lexical, com alteração gráfica do significante e que a única coisa que fazem é aprofundar a dicotomia
entre signo e referente. Atente-se nos seguintes exemplos: «Narra» (Fado), de «narração»,«Kaleiscopo» (Oh
Vida), de «caleidoscópio»,«Cintis» (Qual?...), de «cintilantes»,«Luctula» (Alva), de «luctuoso», em desuso
já na época de Lima com o significado de «lutuoso», «fúnebre», «triste»,«Anxe» (Cântico Semi-Rami), de
«anxiedade» (latino), «Cilos» (– Quantos... desde Chu-Si a Kuan-Su) de «cílios», «Desvirgada» (Cântico
Semi-Rami), o mesmo que «desvirginada», «Dista» (idem), de «distante». Os neologismos sintáticos, ao
contrário dos fonológicos, obtêm-se de combinações de elementos lexicais já existentes no sistema. Estas
inovações formam-se a partir de elementos da língua portuguesa ou são emprestados de outros sistemas
linguísticos, como no caso do latim. Este tipo de processo de formação lexical tem origem na derivação,
quer nominal quer adjetival. Vejam-se os seguintes exemplos: «Exaustinados» (Olhos de Lobas!), do latim
«exhaustione», com o significado de «esgotados» ou «extenuados»; «Lete» (Morreu o Rei D. Carlos!... – A
Cidade) adjetivo formado a partir do latim «letum» ou «letalis»; «Pristinas» (idem), adjetivo derivado de
«pristinus», com o significado de «antigas» ou «de outros tempos»; «Longido» (Ocaso) e «Longeva» (Fado)
do latim «longi» que é um elemento de formação das palavras; «Fatos» (Qual?...), do latim «fatum», que
significa «predição», «destino», «fado»; e «Fatas» (Neitha-Kri), variação no feminino necessária para rimar
com «Horas», como significado de «fatais»; «Purfictrio» (Edane), do latim «purificatio», com o significado
de «purificada» ou «purificadora». Outros neologismos lexicais passam através de processos normais de
derivação à procura de uma forma fonética e ortográfica que se harmonize bem com a língua portuguesa
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 343
com o resultado de provocar muitas vezes uma certa indeterminação de sentido: os afixos usados pelo poeta,
embora reconhecíveis em português e combinados com palavras também com valor autónomo conhecido,
produzem um significante novo com um significado imprevisível, ou seja, uma totalidade de signo não
prevista no sistema. São exemplos, por derivação prefixal, «desdeixados» (Olhos de Lobas!); «Infados»
(Canção Portuguesa); «Improfundado» (Oh Céu) e «Improfundo» (Fado); por derivação sufixal: «murchadas»
(Inês de Castro); «Olorescente» (Cântico Semi-Rami), adjetivo derivado do latim «olor» («aroma»; «odor») +
o sufixo «escente» formado por sua vez a partir do sufixo «–escer», característico dos verbos incoativos, que
indicam o início de um estado, não pertencendo «oleo» («cheirar») a este tipo de verbos; «Argentida» (Alva).
344 100 Orpheu Barbara Gori
O delle primavere
Spente, per i tuoi mitici pallori
O Regina, o Regina adolescente:
Ma per il tuo ignoto poema
Di voluttà e di dolore
Musica fanciulla esangue,
Segnato di linea di sangue
Nel cerchio delle labbra sinuose,
Regina de la Melodia:
Ma per il vergine capo
Reclino, io poeta notturno
Vegliai le stelle vivide nei pelaghi del cielo,
Io per il tuo dolce mistero
Io per il tuo divenir taciturno. […]
Em Ângelo de Lima, sobretudo pela limitação do corpus poético que nos chegou,
os exemplos são menos evidentes, embora estejam presentes; vejam-se, a título
exemplificativo, alguns versos da poesia Ocaso – Serapi-Anubi (Lima, Â. de, 2003:
73):
346 100 Orpheu Barbara Gori
– Cresce a Treva
Na Dor Silenciosa
Da Saudade das Horas Expiradas!...
– Veste a Terra nas Sombras Enlutadas
Do Deus Longido, pelos Céus, Saudosa…
Outro tema que é interessante mencionar e que aparece, embora brevemente, nos
dois autores, é a consciência da própria falta de sanidade mental, que Lima exprime
na poesia Pára-me de repente o Pensamento, onde, por meio da metáfora do cavalo
fustigado até lhe sair o sangue, se vêa sua viagem no abismo da loucura (Lima, Â.
de, 2003: 55)8:
8 Sobre o tema, veja-se também a interessante obra de Fernando Hilário, A Loucura de Ângelo de Lima (2003),
e o texto em prosa de Ângelo de Lima, Eu não estou Doudo (2003).
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 347
9 «Ho scritto. Si chiuse in una grotta/Arsenio fortissimo disegnatore/Dipinse quadri piccoli e grotteschi/E tese
l’anima in affreschi/Per desolare l’immensità/Della sua furia policroma/Attese i gnomi e le fate;/Cantava il
ruscello ecc./Io mi domando. Ha ciò senso comune/Qual cosa mi tortura e mi sospinge/All’assurdo. È il
bisogno della morte/perché su tutto chiamo distruzione?» (Campana, D., 1972: 114).
10 Bem o notava, há já cinquenta anos, um grande crítico, Carlo Bo, que escrevia: «Campana negli anni della
sua libertà ha visto continuamente avanti ai suoi occhi il fantasma di una chimera che era poi il nome stesso
della poesia: tanto quella chimera gli turbava la coscienza, tanto più sentiva l’impossibilità di raggiungere la
prima parola di un discorso componibile. […] Pari alla forza della sua passione, risulta quella della delusione,
della assunzione di vuoto che segue ogni sua azione poetica: Campana è davvero dilaniato fra queste due forze
contrarie, per cui lo vediamo sospeso» (Bo, C., 1972: XXXIV).
348 100 Orpheu Barbara Gori
[…] Quando
In una baia profonda di un’isola equatoriale
In una baia tranquilla e profonda assai più del cielo notturno
Noi vedemmo sorgere nella luce incantata
Una bianca città addormentata […]
Todavia, ambos os poetas parecem ter consciência de que uma dimensão capaz de
atenuar o seu “mal de viver”, para propor uma metáfora de Montale, é unicamente a
do além. Campana, em Poesia facile (Campana, D., 1972: 25), assim se exprime:
11 «BALAAL Ora tu vieni o bruna/Amica Lidia col silenzioso/Tuo passo inghirlandata dall’oblio/Per lo sterile
fianco e per la bocca funerea./Nelle coppe fiorite il vin scintilli/Immoto e nella notte un lungo fremere/Passi
nel cielo//LIDIA La sua bocca è un serpente che riposa/Ma il mio cuore mi brucia di mistero/Che i fianchi
lunghi e sinuosi torce/E che l’ebbrezza risolleva a volo/Nella voluta lenta la vertigine/Attorce i cuori, infino che
il delirio/Li annebbia delle lacrime di sangue./Ecco, conto i terrori della notte/Io sola m’alzo ed ai fragori strani/
Del cembalo/Rompo il silenzio e chiamo alta la bocca:/Uomini riscuotete via l’ebbrezza/Sfoderate le spade
scintillanti/E levatele in alto. In uno specchio/Abbarbagliante io sia centuplicata/Ed il mio ventre splenda come
stella [...]//CORO Le coscie bronzine s’imbiancano/E gli occhi son madreperla/I suoni lontani e monotoni/
Carezzano il cuore fanciullo/E noi berremo alle fonti/Eterne della vita come il sole/Ci scalderemo al suo seno
inesausto./Alziamoci/Il sacro triangolo, o uomini,/È aperto soffuso alla luce» (Campana, D., 1972: 94-95).
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 351
É assim que se exprime a Rainha do Egito e através destes versos ela se desenha
no âmbito daquele sacer, ou seja, a dimensão sobre-humana, de que também Lidia
é titular. Uma dimensão sobre-humana que Lima, com o avançar da sua loucura
– mas para os antigos, o conceito de “louco” e de “sagrado” pertenciam ao mesmo
campo semântico – procura ao declinar, poesia após poesia, de maneira sempre mais
fabuladora, os muitos nomes de Deus.
Por fim, a viagem poética no amor e no eros. Neste sentido, de Ângelo de Lima
pouco sabemos, exceto o que se obtém das poucas notas biográficas disponíveis, de
onde se deduz a paixão por uma suposta meia-irmã, da qual pode derivar o tema do
incesto que aparece em Semi-rami12. As suas poesias de amor são fruto de inspiração
tardo-romântica que declina depois numa espécie de “amor platónico”, em certos
momentos quase inspiradas no dolce stil novo. De resto, o conhecimento de Dante
é confirmado pelo reenvio à «selva oscura», expresso em língua italiana, na poesia
Súplica. Eros é pouco mencionado, só o incesto em Semiramide e o turbamento de
Neitha-kri.
A experiência de Campana é completamente diversa, sendo ele um habitual
frequentador de bordéis florentinos, como se deduz dos octossílabos auto-irónicos
de Prosa fetida, ambientada numa “casa” de San Frediano e de muitos outros textos.
Todavia, o consumo de Eros a pagamento é totalmente insatisfatório para o poeta
e muitas vezes remete para o seu oposto, Thanatos, como acontece na poesia
Furibondo13. É a Sibilla Aleramo, escritora “escandalosa” dez anos mais velha do que
ele, que o fará conhecer a “verdadeira” paixão amorosa, após a publicação dos Orfici,
certamente uma das mulheres mais fascinantes da época, feminista ante litteram,
autora do bestseller Una donna, romance autobiográfico em que denunciava também a
violência de que foi vítima aos 15 anos, por parte do seu futuro marido. Sendo amante
de toda a redação de La Voce, de Papini a Soffici, sente-se logo turbada pela leitura
12 Note-se que no poema a protagonista confessa ter amato sua filha, enquanto que, em geral, o mito de
Semíramis prevê que ela seja incestuosa com o filho.
13 «Abbracciata io l’avea./Mentre affannoso delle cieche ebbrezze/Sul limitare cieco brancolavo/E accelerati colpi
replicavo/Sopra la porta di eterne dolcezze:/All’improvviso sopra la mia schiena/S’alzò e ricadde martellando
sordo/E ritmico il suo piede. Fu il ricordo/Dell’attimo fuggente, nella piena/Fantastica l’appello della morte».
352 100 Orpheu Barbara Gori
dos versos do “grosseiro” oriundo de Marradi e, ipso facto, decide entrar em contacto
com ele e ir ao seu encontro, de comboio, com a explícita intenção de o seduzir. Facto
que acontece, como é óbvio, em poucas horas sem nenhuma demonstração de recusa
da parte de Campana. A história de amor entre os dois é famosíssima e dura cerca
de um ano: se Campana já se encontrava à beira da loucura, a relação serve para
o empurrar definitivamente para ela, embora Sibilla seja a primeira a levá-lo a um
psiquiatra “sério”, que não pode deixar de lhe dizer que a sífilis é a principal causa e
que ela faria melhor a abandoná-lo e a não vê-lo mais.
Com este breve contributo, tentámos delinear as correspondências intrigantes
entre dois poetas tão distantes, quer geográfica quer histórico-culturalmente no
que concerne aos países de pertença de ambos, e ainda assim tão próximos no que
concerne à dolorosíssima vicissitude humana de “alienados” numa sociedade tão
propensa a impor um “estigma de infâmia” na carne viva de quem fosse visto como
“diverso”: não nos resta senão refletir sobre o facto, incontrovertível, que outro senhal,
para usar uma expressão provençal, o da Poesia, ficou, a um século de distância, a
iluminar os nomes de Dino Campana e Ângelo de Lima, enquanto que os dos seus
perseguidores, as chamadas autoridades “constituídas”, se encontram inelutavelmente
enterrados na escuridão do tempo.
Bibliografia
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Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 353
Fernando Guimarães
Investigador no Centro de Estudos do Pensamento Português da Universidade Católica
fez para dar um sentido especial aos “nomes de gente” que iriam fundar uma expressão
poética que tende a ser considerada em si mesma, isto é, enquanto textualidade.
Vejamos… No caso do imaginado Fradique verifica-se que Antero de Quental,
Junqueiro, Eça, Guilherme de Azevedo (e outros?) procuram um estilo que é o de
Baudelaire. Os heterónimos de Pessoa criam, pelo contrário, uma dispersão de estilos,
os de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares (e muitos
outros) que convergem, no entanto, no grande e dispersivo Livro pessoano que assim
nos surge como uma unidade textual.
Precisemos um pouco mais a questão. Como se constituiu este Livro que, como
aconteceu em Mallarmé, ficou disperso, por vezes fragmentário, irrealizado na
sua totalidade? Pessoa reconhece que ser um poeta dramático representaria, como
diz expressamente na citada carta de 1931 a Gaspar Simões, “o ponto central da
minha personalidade”, porquanto haveria nele “a exaltação íntima do poeta e a
despersonalização do dramaturgo”.
Fixemo-nos nestas últimas palavras para as relacionar com que atrás se disse acerca
de Shakespeare e Browning. Se a “despersonalização do dramaturgo” é uma óbvia
referência a Shakespeare, aquela “exaltação íntima do poeta” não nos irá conduzir à
expressão lírica de um Browning (que, aliás, não é referido nesse texto)? Chegados a
este ponto, talvez fosse oportuno mostrar como os caminhos da heteronímia confluem
em outros caminhos que concorrem para que se configure a obra pessoana a partir dos
seus fundamentos, naquilo que se pode agora designar por estética textual. À poesia
dramática ou poética da alteridade, a qual temos vindo a referir, juntaríamos mais três
noções tão presentes nas reflexões de Fernando Pessoa sobre poesia: “complexidade”,
“fingimento” e “construção”. Alinharíamos, assim, os quatro caminhos que maior
realce assumem na orientação da sua obra. E seria este o método, o caminho teórico
que nos conduziria à obra ou, se se preferir, ao Livro pessoano.
Quando Pessoa, no texto que se acabou há pouco de citar, alude à “exaltação
íntima do poeta” parece, à primeira vista, estar a referir-se ao que seria a espontânea
subjetividade própria do lirismo; mas não, ela está referida, sob uma forma que se
torna diferida, ao poeta dramático que ele é (tal como Shakespeare, ao pôr na boca de
Hamlet a subjetivíssima expansão lírica do seu amor por Ofélia, sabe afinal que esse
amor não é o seu).
É aqui que radica a tão celebrada noção de “fingimento”. Ela irá ter uma má
receção por parte dos presencistas, mais interessados em apostar no que designaram
por “autenticidade” da poesia. Todavia, será nas páginas da Presença que aparece
publicado o poema “Autopsicografia” de Pessoa que, logo no seu início, consagra tal
noção: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / que chega a fingir que é
dor / a dor que deveras sente”.
358 100 Orpheu Fernando Guimarães
Almada (1981)
De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?
Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo —
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha ideia das coisas.
(Pessoa, F., 1997: 139-140)
Já repararam nos meus olhos? Reparem bem nos meus olhos, não são meus, são os olhos do
nosso século! Os olhos que furam por detrás de tudo (Negreiros, A., 2006).
Em vez de ter morrido numa cruz, por ti, antes tivesse pegado na lança que me abriu o peito,
para com ela te rasgar os olhos da cara (Negreiros, A., 2005).
1 F. Pessoa, “A nova Poesia Portuguesa no seu aspecto psicológico”, Textos de Crítica e de Intervenção,
Lisboa, Ática, 1980, p. 68: «Na obra de poesia a ideia e a forma estão ligadas numa dupla unidade, unidade
imaginativa, isto é, unidade que vem da fusão da emoção e da ideia que em sua essência é o ato de imaginar.
Ora, a imaginação depende da organização dos sentidos do indivíduo; um visual imagina de modo
inteiramente diverso que um auditivo, um indivíduo de intensa vida interior e pouca atenção ao mundo
externo, de modo diferente de ambos». (...) Pior ainda, é na poesia do sr. T[eixeira] de P[ascoaes], a perpétua
confusão entre o físico e o psíquico e entre os mais sentidos. Isso denota uma perigosa e doentia falta de
atenção às representa