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1ª Edição | Março 2016

www.edicoesesgotadas.com
geral@edicoesesgotadas.com

Título
100 ORPHEU

Organizadores
Dionísio Vila Maior
Annabela Rita

Imagem da Capa
??

Revisão Final da Obra


Ana Maria Oliveira

ISBN
978-989-8801-37-1

Depósito Legal
XXXXXX/16
Impressão
xxx
Execução Gráfica
Hugo Carvalho | Edições Esgotadas, Lda

© 2016
Dionísio Vila Maior
Annabela Rita
Todos os direitos reservados.

Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia
no âmbito do Projeto UID/ELT/00077/2013
100
ORPHEU
Palavra prévia

Numa carta datada de 21 de setembro de 1915, dirigida a Santa-Rita, escrevia Pessoa:

[…] “Orpheu” não acabou. “Orpheu” não pode acabar. Na mitologia dos antigos, que
o meu espírito radicalmente pagão se não cansa nunca de recordar […] há a história
de um rio, de cujo nome apenas me entrelembro, que, a certa altura do seu curso, se
sumia na areia. Aparentemente morto, ele, porém, mais adiante […] surgia outra vez à
superfície, e continuava, com aquático escrúpulo, o seu leve caminho para o mar. Assim
quero crer que seja […] a revista […] “Orpheu”.

Em 2015, um grupo de trabalho reavivou (mais uma vez) esse “rio”, delineando
cuidadosamente, laborando intensamente, organizando diversos seminários,
colóquios, exposições e congressos internacionais, dezenas de iniciativas que
comemorassem o centenário do Orpheu. E consideramos ter sido com um elevado
sentido de responsabilidade que, 100 anos depois do lançamento da revista
Orpheu, este grupo de trabalho acabou por despertar esse outro “rio” — não de
“noturna consistência”, não lidiamente sossegado, antes multicolor, polifónico e
pluridiscursivo — como, aliás, convém.
Assim se publicam diversos contributos que refletem sobre uma plêiade de escritores
e artistas cuja produção foi marcada profundamente por uma experimentação
estética e literária: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros,
António Ferro, Amadeo de Sousa-Cardoso, Santa-Rita Pintor, Luís de Montalvor,
Ronald de Carvalho, Alfredo Pedro Guisado, Armando César Cortes-Rodrigues,
Ângelo de Lima, Raul Leal, e outros que, balizados pelo timbre das obras que estes
legaram à posteridade, aprofundaram a descontinuidade moderna, numa cadeia de
acontecimentos que ainda hoje persistem na memória coletiva luso-brasileira.
Referindo-se ao grupo do Orpheu, disse Eduardo Lourenço: “Tudo o que eles
tocam, levanta voo à nossa frente”. Descreveu, desse modo, o impacto que o grupo
modernista português vem exercendo sobre a produção artística e literária da
contemporaneidade com a publicação da revista Orpheu. Defini-lo perentoriamente
como “autêntica revolução poética, sem paralelo na história literária portuguesa” foi
um acerto visionário, de modo que estamos ainda a colher os frutos dessa viragem,
disseminados muito para além da lusofonia.
Procurando celebrar esse centenário (com as honras que também à [re]leitura
convidam), o CLEPUL, o LEPEM e o Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre
Manuel Antunes responderam de pronto — com a intensidade consentida pela paixão
e amor profundos pela Literatura, pelas Artes, pelas Humanidades (reservando-nos,
todos nós, o direito de homenagear, diversamente, aqueles que questionaram,
clarificando, uma memória coletiva).
Aos que nos apoiaram e acompanharam, deixamos aqui exarados a saudação, o
agradecimento e a promessa de reencontro em 2017, no 100/Futurismo, continuando
a aventura da revisitação e da reinvenção da nossa memória coletiva, percurso iniciado
em Lisboa e em São Paulo (com a nossa colega Lilian Jacoto). À Fundação Millennium
BCP, na pessoa do seu Presidente, Dr. Fernando Nogueira, estamos profundamente
penhorados pelo apoio cúmplice que viabilizou esta edição. À Fundação Calouste
Gulbenkian e ao Centro Cultural de Belém, agradecemos, penhorados, o acolhimento
do encontro científico central no calendário comemorativo. Menção saudosa e grata
deixamos lavrada a Vasco Graça Moura, que presidia ao Centro Cultural de Belém no
início do projeto celebratório. Louvamos todos os membros da organização do vasto
programa comemorativo, destacando na pessoa do Dr. Luís Pinheiro, o nosso sempre
disponível e eficaz executivo, a constância da ação. A todos, pois, o nosso bem-haja!
Perguntar-se-á: Quanto de coletivo terá essa memória coletiva? Quanto de amena
perversidade (ou não) terão a mitificação da História e a comemoração de uma
revista que definitivamente balizou? Se dúvidas houvesse acerca da representatividade
e do benefício estruturante da consciência histórica para a sobrevivência de uma
coletividade, bastaria recordar que o próprio conceito de coletividade linguística integra
em si uma imagem dinâmica — imagem esta que só se concretiza enquanto consciência
transformada em discurso, ato e obra realizada. E é, no fundo, essa consciência que (de
acordo com Pessoa) permitirá ao homem atingir aquela «vitalidade» que, em 1912, ele
emprestava à «exuberância de alma» de uma comunidade, à sua «capacidade de criar
[…] novos moldes, novas ideias gerais».
É, afinal, essa “exuberância”, essa “capacidade criativa” com que os órficos
sinalizaram a literatura portuguesa que, com este livro, relembramos — procurando,
por um lado, contribuir para a (re)avaliação da geração de Orpheu (preenchendo
novos “lugares” de leituras) e, por outro, dar razão às palavras de Pessoa publicadas
em 1935, no nº 3 da revista Sudoeste, quando dizia: “[…] Orpheu acabou. Orpheu
continua”.

Coimbra/Lisboa, março de 2016


Os Organizadores
Dionísio Vila Maior e Annabela Rita
ÍNDICE

«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de


Vanguarda, «apesar de blague?»
Abbati, Orietta 15

A desabar catedrais..., ou o outro modernismo


Abreu, Luís Machado de 27

A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso


Amado, Maria Teresa 35

Palhaçadas e Coisas Sérias


Amado, Nuno 49

Orpheu na PO.EX: A tradição em movimento


Amaral, André Luiz do 61

Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato


com as de outros autores
Amorim, Bernardo Nascimento de 69

“Orpheu” Regabofe Tiroliro


Blanco, José 83

Orpheu da Arábia. A temática arábico-islâmica no Modernismo português


Boscaglia, Fabrizio 99

Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray


Brás, João Maurício 115

As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de


tradução d’A Cena do Ódio e de Mima Fataxa de Almada Negreiros
Bucaioni, Marco 127

A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional


Cabral, Maria de Jesus 135
10 100 Orpheu

Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos


poéticos almadianos no Orpheu
Ceccucci, Piero 147

Elementar, meu caro Lúcio!


Cerdeira, Teresa Cristina 161

1915: O Ano da Guerra e do Orpheu


Cruz, Duarte Ivo 175

Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em


A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro
Dunder, Mauro 179

Entre o “Orpheu” e a “A Águia”, entre Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes


Epifânio, Renato 191

“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial


da espacialidade na “Ode marítima”, de Álvaro de Campos
Feitosa, Márcia Manir Miguel 197

Orfeu. O mito, a arte, a religião e o mistério


Fernandes, Raul Miguel Rosado 207

O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real


Ferraz, Roberta A. P. de F.  215

Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos


Ferreira, Ana Sofia Marques Viana 227

A palavra em exílio. Orpheu e o desejo de comunidade


Finazzi-Agrò, Ettore 237

Guilherme Pobre
França, José-Augusto 245
Índice 11

Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues


e a sua ideografia do Portugal futuro (com publicação de carta inédita a António
Quadros)
Franco, José Eduardo 259

A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português


Freitas, Zilda de Oliveira 275

Heteronímia como ficção de autognose


Furlan, Stélio 291

Uma faceta ortónima “non despicienda”


Garcez, Maria Helena Nery 305

Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para


pensar a modernidade
Gebra, Fernando de Moraes 325

Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana


Gori, Barbara 339

Os Caminhos da Heteronímia
Guimarães, Fernando 355

Fernando Pessoa e Almada Negreiros: olhares que se cruzam sem se intersectarem


Henriques, Marisa das Neves 359

O Sensacionismo é um Não-Existencialismo
Hipólito, Nuno 367

Do desassossego ou a geometria do abismo


Jacoto, Lilian 379

Orpheu… e depois?...
Leão, Isabel Ponce de 389
12 100 Orpheu

Ode satírica + comédia dinâmica em suportes móveis x Narcisos intermédios = o


sorriso do Desenho no tempo de Orpheu e tudO
Leandro, Sandra 401

Orpheu em tempo de guerra(s)


Lopes, Teresa Rita 417

O modelo de cidade nos textos do Grupo de Orpheu, de 1915 a 1917


Loureiro, Maria de La Salette 429

Conferência
Lourenço, Eduardo 443

De Pessoa a Sophia: um Diálogo Intertextual de Reunificação do Ser.


Malheiro, Helena 451

«Um peso de mândria sobre mim»: Sá-Carneiro inacabado


Marchis, Giorgio de 463

A loucura e o génio de Orpheu


Martins, Fernando Cabral 475

Orpheu e a Guerra
Martins, Patrícia Soares 489

“Lápis e linhas para desenhar uma flor de nome Almada”


Mateus, Isabel Cristina 503

O Contributo de Armando Côrtes-Rodrigues para a revista Orpheu


Moniz, António Manuel de Andrade 515

Efemérides: e depois de Orpheu? – recepções, repercussões, reverberações


Mourinha, Marisa 525

O Modernismo no Romance Português, ou o Terceiro Modernismo como Modernismo


Tardio
Oliveira, Marcelo G.  537
Índice 13

“Orpheu ou «a única ponte entre Portugal e a Europa»”


Piedade, Ana Nascimento 547

Pessoa(s) por trás das quadras


Pina, Maria da Graça Gomes de 555

Intersecionismos: Pessoa, o símbolo e o oculto


PIRES, Antônio Donizeti 565

Os poetas do Orpheu em tradução bangla


Ray, Rita 579

Visões do Atlântico: de Pessoa a Valle-Inclán


Rey, Rosario Mascato 587

Mensagem em moldura epocal


Rita, Annabela 601

O Mito do Orpheu
Saraiva, Arnaldo 619

A Poesia Pictórica de Alberto Caeiro


Silva Filho, Gilvan José da e Ramalho, Christina Bielinski 633

Amadeo e Orpheu
Soares, Marta 643

Contextos de Orpheu nas páginas de Fon-Fon!


Sousa, Rui 657

Alberto, Orpheu, Álvaro: pontes


Souza Júnior, José Luiz Foureaux de 671

Mar Alto, de António Ferro, no contexto teatral da Lisboa dos anos 20


Vasconcelos, Ana Isabel 679
14 100 Orpheu

Espetralidades do Sul: hantologie de Orpheu


Vecchi, Roberto 691

Caeiro e Espinosa: em torno do conceito de liberdade


Viegas, Paula Marçalo 701

Os modernistas e a (des)construção do ineludível


Vila Maior, Dionísio 713

Fernando Pessoa e João Cabral: leitores de Cesário Verde


Yokozawa, Solange Fiuza Cardoso 727

Campos Triunfal
Zenith, Richard 741
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro,
poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?»

Orietta Abbati
Universidade de Turim

Palavras-chave: Sá-Carneiro; Poema; Manucure; Órfico; Vanguarda.


Resumo: A nossa reflexão visa propor uma leitura do poema Manucure como texto colocado
em posição excêntrica em relação à obra poética do autor da Confissão de Lúcio, tendo em
conta a inserção pessoana da expressão “apesar de blague” que sempre o tem acompanhado,
na Tábua biográfica de Mário de Sá-Carneiro por ele redigida, condicionando de certa forma a
apreciação crítica e a seriedade da abordagem que, em nosso parecer, este longo componimento
merece. Não foi por acaso que Manucure constituiu um texto de referência no Orpheu 2, mas
que, por vezes, tem ficado algo fora do focus da crítica sacarneiriana, que de certa maneira
considerou as palavras de Fernando Pessoa como ponto de partida. Ora, pelo contrário,
este texto apresenta-se como um dos que, parafraseando as próprias palavras de Sá-Carneiro,
contém «um pouco de Europa na alma», nisto solicitando uma fecunda leitura em diálogo
com a grande Ode de Álvaro de Campos publicada no mesmo número da revista modernista.

Se, como afirma Fernando Guimarães, «Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro


e Almada Negreiros constituem a santíssima trindade do Modernismo português»
(GUIMARÃES, F., 1999: 65), o segundo número de Orpheu mostra, sem ironia, toda
a verdade desta afirmação, evidenciando a centralidade do inventor dos heterónimos,
amplificada pela ostensiva copresença de Álvaro de Campos, e confirmando o papel
não secundário de Sá-Carneiro. O facto, aliás, de Fernando Pessoa e Sá-Carneiro
serem diretores, faz com que a revista se oriente, de maneira mais marcada do que
o primeiro número, numa linha vanguardista1, onde aparecem «alcuni dei testi
oggi considerati esemplari del Modernismo portoghese» (STEGAGNO PICCHIO
L., 2004: 239): Chuva oblíqua que, como um diamante de seis faces, brilha na sua
singularidade de alfa e ómega do intersecionismo de Fernando Pessoa; A grande Ode
Marítima do engenheiro e poeta sensacionista que desdobra a força expressiva do
verso livre de teor whitmaniano, numa síntese modernista do destino atlântico de

1 Basta pensar na colaboração neste número do poeta Ângelo Lima, ou na “novela vertígica” Atelier, de Raul Leal.
16 100 Orpheu Orietta Abbati

Portugal; e Poemas sem Suporte – Elegia e Manucure – de Mário de Sá-Carneiro que,


como verdadeiro paradigma estético do poeta, evidenciam o seu vulto em métrica
tradicional mas permeada pela atmosfera decadentista e pela estética simbolista,
no primeiro, prelúdio, contudo evidente e «anúncio do cataclismo sonoro e visual»
(MARTINS, F. C., 1994: 281) do segundo, Manucure, que revela toda a impetuosa e
dinâmica sintaxe da modernidade, certamente estimulada pelo contacto com Paris,
a capital cultural europeia que o autor de Dispersão reelabora misturando-a com
o seu peculiar vocabulário e o seu mundo poético, onde persistem indelevelmente
traços do gosto refinado de fin-de-siècle, conjugados com um residual e incongruente
dandismo, – como se constatará mais adiante – com «um pouco de Europa na alma».
Aquando do lançamento do segundo número, o clamor escandalizado do
«lepidóptero burguês», não se atenua, sobretudo em relação a Ângelo Lima, Álvaro
de Campos2 e ao «rapaz mastodôntico» Sá-Carneiro, assim definido pelo jornal A
Capital, devido a Manucure, que o jornal lisboeta comenta nestes termos: «[…] poema
que vai num crescendo indescritível de disparates» (apud JÚDICE, N., 1986: 104).
Excetuando a previsível crítica feroz da imprensa que uniu «os de Orpheu»,
identificando-os como «Artistas de Rilhafoles», deve dizer-se que a morte prematura de
Sá-Carneiro certamente terá condicionado as sortes póstumas, determinadas, em grande
parte, por Pessoa3, a quem o «amigo de alma» tinha dado carta branca4 relativamente ao
destino das poesias Indícios de Ouro, ainda inéditas, transcritas no conhecido caderno
confiado a seus cuidados «uns dias antes do suicídio» (PESSOA, F., 2000: 374).
Na qualidade, portanto, de «procurador» testamentário das vontades de Sá-Carneiro,
Pessoa redige a Tábua bibliográfica onde, traçando uma síntese do percurso poético-literário
do amigo morto em Paris, exprime, como mensagem subliminar, um juízo de valor,
estabelecendo uma ordem de prioridades ou deixando transparecer a sua preferência,
facto que se confirma de imediato no editorial elaborado, a partir do qual expunge
obras já editadas pelo autor5, para uma futura publicação definitiva, que, acrescenta,
«não será feita por enquanto, pois não há ainda público, propriamente dito para ela»
(id.: 375).

2 No artigo “Artistas de Rilhafoles” em A Capital, afirma-se, a propósito da colaboração de Álvaro de Campos


que «A trapalhada mais extraordinária e mais assombrosa que encerra o novo número de Orpheu é a Ode
Marítima» (apud JÚDICE, N., 1986: 104).
3 Sobre as implicações que a intervenção de Fernando Pessoa produziu na aproximação crítica à vida e à obra
de Sá-Carneiro veja-se DE MARCHIS, G., 2007: 7-11.
4 Escrevendo em terceira pessoa, o autor de Mensagem afirma: «Mário de Sá-Carneiro deixou a Fernando
Pessoa a indicação de publicar a obra, que dele houvesse, onde, quando e como lhe parecesse melhor», in
PESSOA, F., «Tábua bibliográfica Mário de Sá-Carneiro», in id.: 2000: 374.
5 Trata-se de Amizade e do volume de contos Princípio.
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 17

Qual é então a posição que, na Tábua, Pessoa atribui à poesia Manucure? Citando-a
entre as colaborações do amigo em jornais e revistas, com referências pontuais
a Orpheu 2, inclui-a entre os poucos «aproveitáveis», rotulando-a logo de seguida
como «poema semi-futurista (feito com intenção de blague)». Insere-a também na
projetada publicação final, «apesar de blague», não sem deixar de enfatizar, mais uma
vez e sem parênteses, a confiabilidade duvidosa.
A impressão imediata é de uma, mesmo se involuntária ou talvez não,
desvalorização daquela que foi sucessivamente considerada entre os poucos
exemplos de poesia futurista, aliás, citando F. Cabral Martins, «Manucure talvez
seja, se exceptuarmos K4 O Quadrado azul, Saltimbancos e o Manifesto Anti-Dantas,
de Almada, o texto português mais próximo do cânone do Futurismo» (1994: 279).
Sem pretensões de entrar na questão da sua assimilação, ou da sua órbita, mais ou
menos rigorosa, à volta da vanguarda marinettiana6, deve-se notar que Manucure,
talvez levando consigo esses epítetos, constituidores de um peritexto, que, de alguma
forma se tornou uma parte integrante do título, com um aviso ao leitor, de fato aparece
numa posição excêntrica ou marginal em toda a obra poética de Sá-Carneiro, quase
um corpo estranhado e ao mesmo tempo estranho, que mereceu da crítica a seriedade
circunscrita da citação «apesar de blague».
Neste contexto, torna-se necessário apresentar algumas considerações adicionais.
É sabido que o autor de Mensagem nunca foi um entusiástico estimador de
Marinetti e do futurismo e, embora reconhecendo que a ligação entre a sua poética
e Sensacionismo e «(…) a atitude enérgica, vibrante, cheia de admiração pela Vida,
pela Matéria e pela Força que tem lá fora representantes com Verhaeren, Marinetti»
(PESSOA, F., 1966: 126) existe, defende, especialmente por meio da prosa desinibida
e provocadora de Álvaro de Campos, na carta ao pai do Futurismo que deveria
acompanhar o envio de uma cópia de Orpheu, a superioridade do -ismo sensacionista
encarnado pelo engenheiro, como se pode ler:

Para mim as vossas palavras em liberdade não fazem sentido. Apenas admito as
minhas sensações e, utilizando a Vossa expressão, na arte apenas admito as sensações
em liberdade. (...) Não há senão a arte das sensações (...) É a essa escola sensacionista
que eu adiro. Essa escola sou eu. (PESSOA, F., 2012: 253).

6 Sobre as diferentes modalidades de relacionamento e influências do Futurismo no ambiente intelectual


português veja-se: STEGAGNO PICCHIO, L., 2004: 109-136. Sobre o relacionamento de Mário de Sá-Carneiro
com as vanguardas em Paris veja-se: MARGARIDO, A. (1990: 92-101); VASCONCELOS, R. (2015: 149-165).
18 100 Orpheu Orietta Abbati

Em tons mais atenuados, mas igualmente convictos, o próprio Pessoa,


repetidamente, e com uma pitada de frustração, aliada a um indisfarçável sentimento
nacionalista, reivindica do Sensacionismo uma originalidade e uma superioridade
não compreendidas, quando afirma «O Cubismo, o futurismo e outros ismos menores
tem-se tornado bem conhecidos e muito falados por se haverem originado nos centros
aceites da cultura europeia» e que o sensacionismo «(…) continua desconhecido por
haver nascido longe desses centros» (PESSOA, F., 1966: 203).
Todavia, contradizendo as suas palavras, ele próprio parece mal querer acreditar no
projeto sensacionista, impulsionado por uma missão muito mais grave e irrenunciável,
o que o faz declarar numa carta a Côrtes-Rodrigues, em janeiro de 1915, cerca dois
meses antes da publicação de Orpheu 1: «Passou de mim a ambição grosseira de
brilhar por brilhar e essa outra, grosseiríssima, (…) de querer épater. Não me agarro
já à ideia do lançamento do Interseccionismo com ardor ou entusiasmo algum»
(PESSOA, F., 1999: 141).
Em suma, dividido entre uma defesa orgulhosa de seus ismos forjados em casa,
em contraposição com as mais conhecidas e difusas vanguardas da Europa, e uma
íntima consciência de que tudo aquilo era apenas uma «quase-blague,» o poeta
da Mensagem, revela uma firme convicção do valor pragmático utilitarístico da
provocação implícita no lançamento do Intersecionismo, que só por isso admite
no seu próprio projeto literário-cultural, reduzindo o valor artístico da blague e
das novas correntes, para conceder-lhes apenas umas funções animadoras que,
afirma Pessoa «nos arranquem à estagnação» (ibid.). Com isso, parece declarar
um afastamento tanto mais necessário, quanto profundamente sentido7, do
compromisso direto para a aventura modernista, apesar de ter a seu cargo a direção
de Orpheu 2, para deixar a Álvaro de Campos a tarefa de a apoiar e de a defender
com a força e ímpeto que o contradistinguem.
O conjunto apresentado pode explicar, em parte, as escolhas feitas por Pessoa em
relação à obra de seu amigo Sá-Carneiro; justificar o entusiasmo amornado e cauteloso
ao acolher Manucure no projeto editorial, que fundamenta com a expressão «feito
com intensão de blague», quase até querendo preservar a arte «séria» de Sá-Carneiro,
para o qual ele não hesita em usar palavras, no texto escrito em memória do jovem
poeta suicida, que, para além da circunstância lutuosa, evidenciam o papel central da
arte na sua breve existência, onde podemos ler «Gênio na arte, não teve Sá-Carneiro
nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte que fez, ou que sentiu, por instantes o
turbou de consolação» (PESSOA, F., 2000: 228).

7 Na mesma carta explica Pessoa: «porque a ideia patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus
propósitos, avulta agora em mim; (...) é uma consequência de encarar à sério a arte e a vida» (Ibidem).
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 19

A indubitável e forte ligação de amizade e de comum sentimento estético, que


transparece a partir destas palavras, e que, claramente, deve ter lugar num texto
de despedida, só deixa intuir, transparecendo-a, a distância e as diferenças entre a
trajetória dos dois poetas que, citando T. Rita Lopes, «Astros solitários foram, com
órbitas talvez concêntricas, mas, ah, isso sim, nitidamente marcadas e separadas uma
da outra» (LOPES, T. R., 1989: 35).
Sá-Carneiro, elaborando grande parte da sua obra em Paris, instaura na distância
física do amigo Pessoa, as condições de uma diversa dinâmica de relação e de
influências no que concerne à evolução da própria poética, da qual temos um constante
e precioso testemunho na intensa correspondência enviada a Lisboa que fez dele «um
dos mais espantosos epistológrafos da literatura portuguesa» (SARAIVA, A., 1981: 5).
Sabemos que Sá-Carneiro sentia de forma intensa a necessidade estética, aliada a
uma atitude de dândi fora do tempo, de «ter hum pouco de Europa na alma» e, então,
decide procurá-la dirigindo-se diretamente à fonte, mesmo que se mantenha, na
verdade, numa zona periférica, ou melhor na semiperiferia do foco real da vanguarda
do início do século XX que convergem em Paris (DE MARCHIS, G., 2007: 19). Deve
salientar-se, no entanto, que isto com certeza constitui para o autor de Dispersão um
estímulo de que se deixa envolver, absorvendo-o, embora o seu deambular pelos
boulevards e pelos cafés da Ville lumière, andando «às moscas», possa parecer estéril
e ocioso.
As referências a cubistas e futuristas, cujo conhecimento, ainda que fragmentário
e lacunoso, é filtrado por outros artistas portugueses presentes no contexto francês,
sobretudo por Santa-Rita Pintor, para o qual Sá-Carneiro demonstra uma atitude
algo ambîgua de admiração misturada ao desejo de se afastar dele, que pontilha
toda a correspondência, de onde se evidencia que o autor da Manucure sofre a
atração e estímulo8. Mesmo sem os exaltar, sabendo que isso teria talvez constituído
um elemento de atrito ou de dissonância com a sensibilidade comum, entre ele e
o «mestre» Pessoa, preocupa-se insistentemente em fazer circular e meter em
contato a vanguarda Portuguesa com Paris, integrando-a na arte e nas vanguardas
francesas, tendo como objetivo mover e promover o novo nascido em Portugal,
trazer a periferia ao centro, como quando escreve «Exorto-o intensamente a que não
descure a propaganda europeia do Orfeu, sobretudo das Odes, da ‘Chuva oblíqua’ e
da ‘Manucure’ (…) Por mim não mandei o Orfeu ao movimento futurista - mesmo

8 Logo nos primeiros dias em Paris escreve ao amigo da alma, Fernando Pessoa: «Tenho andado muito com o
Guilherme de Santa-Rita. É um tipo fantástico, não deixando no entanto de ser interessante» (SÁ-CARNEIRO,
M. de, 2001: 13). Em outra carta de 31 de janeiro de 1912 afirma: «Respeitantemente ao Santa-Rita, a minha
opinião difere muito da sua e da do Veiga Simões: Não me parece um caso de Hospital mas – vai talvez pasmar
um caso de Limoeiro. [...] É na verdade uma personagem interessante, mas lamentável e desprezível».(id.: 26)
20 100 Orpheu Orietta Abbati

porque não sei o endereço. Para centralizar, mande você. Não lhe parece melhor?»
(SÁ-CARNEIRO, M. de, 2001: 188). Respira, sem dúvida, um ar diferente do lisboeta,
apesar da sua condição marginal, como, de resto, uma outra carta a Pessoa testemunha,
quando escreve «Na galeria Sagod, o templo cubista futurista de que lhe falei já numa
das minhas cartas comprei ontem um volume: I poeti futuristi. (…) vou-lho mandar
em presente. Já lá descobri uns Fu fu… cri-cri (…) muito recomendáveis. Vamos a
ver...» (id.: 190). Na mesma missiva, surge todo o interesse de Sá-Carneiro pela revista
internacional de literatura Poesia, de que não tem mais notícias por causa da guerra,
sugerindo ao amigo «Se a revista existisse – nós poderíamos muito possivelmente ser
colaboradores» (ibid.).
Estas rápidas referências revelam, então, um real, sério e interessado envolvimento
de Sá-Carneiro que não poderia não se reverberar na sua poesia, da qual Manucure
se apresenta como a melhor realização. Isto para dizer que a Europa tão sonhada,
mesmo envolvendo a vida pessoal do poeta, se estabelece plenamente nesta
longa poesia, fundindo-se numa hibridação fecunda, e pregnante de toda a arte
sacarneiriana.
Os elementos peritextuais, acima de tudo, a partir do título Poemas sem
suporte que anuncia a poesia publicada em Orpheu 2 juntamente com a Elegia e
pela dedicação a Santa-Rita Pintor; longe de tirar a seriedade ao texto, este, pelo
contrário, circunscreve o âmbito que surge como uma síntese justa e eficaz, com
referência à liberdade dinâmica das palavras na poesia modernista, de evocação
futurista, e integração naquela ineludível expressão da vanguarda artística do início do
século XX, do pintor Português, cujo papel é reconhecido oficialmente e redimido
pelo autor Dispersão.
A adição posterior da frase pessoana «feito com intenção de blague», por sua vez,
possui a intenção de estabelecer os limites dentro dos quais este poema se move,
condicionando, portanto, uma abordagem séria também à leitura do mesmo. No
entanto, nas palavras de Eduardo Lourenço, «uma “blague” pode pôr – ou traduzir – os
mesmos problemas de um ato ‘sério’» (2003: 54), efetivamente é necessário ter esse
aspeto em conta, juntamente com as reflecções supracitadas, para devolver ao texto
de Sá-Carneiro o adequado espaço estético literário reservado às grandes Odes de
Álvaro de Campos, em particular, em relação à grande Ode Marítima, a que se junta
em Orpheu 2.
Em primeiro lugar, no projeto modernista da revista, a blague funciona como
imediato ato visível de rutura. O facto de ter sido premeditado ou fruto de sensações
inquietas que a poesia sempre traduz, é um tema que merece outras reflexões.
Certamente a própria escolha do título, implica também a assunção do que
efetivamente o mito de Orpheu significa, ou seja, citando ainda Eduardo Lourenço,
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 21

«tomar a sério, com todas as consequências imprevisíveis o papel da poesia no destino


humano. Transformar a existência em existência poética» (id.: 47)9.
Manucure, parece condensar isto tudo de forma exemplar. Efetivamente Sá-Carneiro
deixa entrar, aparentemente de forma caótica, todo o seu mundo que, por um
lado, se concentra essencialmente à volta de um olhar narcisístico, como último
possível vestígio de uma vida de dândi em Paris, claramente patética e anacrónica,
à qual se une um elemento comum aos cânones do dandismo do século XIX, e à
própria poesia órfica, ou seja, a ideia de uma aristocrática distância do intelectual
da trivialidade da vida «lepidóptera burguesa»; por outro lado, e como vimos, e
também fortemente solicitado pelo ambiente parisiense, o entusiasmo para a
contemporaneidade, para os movimentos e a arte da vanguarda, que entram com
um vigor imparável ou como um dilúvio, a encher as amplas páginas do longo
poema, escrito porém em Lisboa.
Ao mesmo nível da estrutura e da «(…) perfeição da “linha” construtiva»
(SÁ-CARNEIRO, M. de, 2001: 211) da Ode Marítima, como o próprio Sá-Carneiro
reconhece, e que também tinha sido alvo de críticas fortes, bem como previsíveis
pelos detratores de Orpheu, também Manucure possui uma arquitetura e um
desenvolvimento tais que se demonstram capazes de conferir plasticidade e um
crescente dinamismo à sua desordem aparente.
O incipit, constituído pela ideia narcisista da manucure, operação em que o poeta
que se definia uma «esfinge gorda», demonstrava esmeros e cuidados da única parte
do corpo que sentisse em sintonia com a própria sensibilidade e aspiração de dândi,
parece colocar a obra sob a marca de um predominante egotismo, refúgio irrenunciável
face à dispersão de si próprio, colocado no espaço privilegiado de eleição do poeta,
a parte interior de uma Café, no pleno exercício de um isolamento aristocrático que
separa os seus «olhos delicados, refinados, esguios e citadinos» do externo, do «dia
brutal, provinciano e democrático».

Na sensação de estar polindo as minhas unhas


Súbita sensação inexplicável de ternura,
Todo, me incluo em Mim – piedosamente.
Entanto eis-me sozinho no Café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos

9 Continua ainda E. Lourenço: «A importância única da geração de Orpheu reside nessa aceitação sem limites
da seriedade da poesia, ou, se se prefere, da poesia como realidade absoluta» (ibid.).
22 100 Orpheu Orietta Abbati

Assim prossegue o primeiro segmento do texto até ao verso 20, num movimento
centrípeto que tudo reconduz ao eu, delineando, em verso livre, uma síntese perfeita
da vida parisiense de Sá-Carneiro, repetidamente contada ou encenada, quer em
outros poemas, quer na correspondência. Contudo, na estrutura desta longa poesia
encontramos traços da sua função bivalente, uma vez que ela aparece como um
prelúdio para os versos seguintes, quando, como o volano de Álvaro de Campos, põe
em movimento a capacidade imaginativa sensorial, mudando-lhe, porém, a direção
com a qual inicia um vórtice centrífugo, onde o mesmo sujeito entrará a fazer parte
num processo de dispersão e anulação total.
Em poucas palavras, com Manucure, Sá-Carneiro constrói o espaço ideal para
realizar, em nome da radicalidade absoluta, a totalidade da sua poética. Doseia de
forma gradual, mas crescente, o vocabulário e os topoi sempre presentes na estética
decadentista e simbolista, declinados numa atmosfera não mais estagnante, mas
previamente carregada de uma força cinética que anuncia a «arte fluida», também
tematizada no conto Asas, como os seguintes versos o demonstram:

Eis como, pouco a pouco, se me foca


A obsessão débil dum sorriso
Que espelhos vagos reflectiram…
Leve inflexão a sinusar…
Fino arrepio cristalizado…

para fluir, logo depois, nos ismos modernistas, misturando-se «fluidamente» no


paulismo pessoano, no intersecionismo e sensacionismo, evidentes nos versos:

E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço


Por inúmeras interseções de planos
Múltiplos, livres, resvalantes.

Todo este conjunto leva a uma evolução gradual mas rápida para uma maior
inclusão da estética futurista e cubista, com que o eu poético parece finalmente
encontrar-se em perfeita comunhão, como depois de uma verdadeira unção divina, o
que faz com que ele declare:

Meus olhos ungidos de Novo,


Sim! Meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos
Intersecionistas
Não param de fremir, de sorver e faiscar
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 23

(...)
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variável sempre
E livre – em mutações contínuas
Em insodáveis divergências...

Até escrever na forma de caligrama, imitando Apollinaire, o verso mais emblemático


da arte fluida: «É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!»
Em seguida, a escrita linear dos versos, embora livre, dá espaço à reprodução gráfica
de tudo o que é objeto de atenção na estética futurista, solicitada por um jornal, que
o poeta transfere literalmente em duas páginas inteiras, selecionando caoticamente,
mas com uma disposição gráfica de evidente impacto visual, as marcas comerciais, as
manchetes dos jornais e todos os símbolos mais estrepitosos da modernidade, numa
espécie de embriaguez que leva ao clímax do vórtice e de movimento onde o ar é o
elemento dinamizador.
Na sarabanda de «palavras em liberdade, sons sem-fio» Sá-Carneiro, recompõe,
mas não de forma caótica, através de uma sugestiva adição matemática de aspeto
caligramatico, o grupo dos artífices da arte moderna e da vanguarda em Paris,
resumindo de tal modo toda a experiência e ligação por ele sempre auspicadas entre
Portugal e a Europa, e que Fernando Pessoa tinha prefigurado ao afirmar a necessidade
de «criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço» (PESSOA, F., 1966: 113).

MARINETTI + PICASSO = PARIS < SANTA RITA PIN


TOR + FERNANDO PESSOA
ÁLVARO DE CAMPOS
!!!!

Colocado no segmento final do longo poema, reaparece o dândi que, abandonando


o seu ato narcisista, vencido pela impossibilidade de alcançar com os versos «Toda
essa Beleza inatingível, Essa Beleza pura!», fica completamente fora de si, indo ao
encontro da mais radical e barulhenta dispersão do próprio eu, para se anular no
pirotécnico espetáculo final das onomatopéias Marinettianas.
Este é o modo mais futurista de encenar o próprio fim, que Sá-Carneiro,
transformando a palavra em ação, poderia inventar e que encontra um equivalente na
carnavalesca e irreverente imagem do próprio funeral, da poesia Fim.
No entanto, deixando o devido espaço para os efeitos burlescos e irónicos
subjacentes à intensão provocatória cultural de rutura, como foi a aventura de Orpheu,
hoje, passados 100 anos, Manucure pode sair do perímetro traçado por Pessoa, e
24 100 Orpheu Orietta Abbati

brilhar com luz própria, lado a lado, com o mesmo valor das outras grandes Odes de
Álvaro de Campos, como, aliás, o autor de Dispersão auspiciava, sugerindo a Pessoa a
divulgação de, pelo menos, aquele junto a Chuva oblíqua.
Mesmo estruturalmente, a Ode Marítima e Manucure possuem elementos que
destacam um certo paralelismo, e as diferenças, na verdade reforçam ainda mais
o valor de cada texto, mostrando em contraluz a individualidade e procedimentos
diferentes que os dois poetas portugueses encenam para chegar a um epílogo, orientado
em ambos, para o negativismo, para a queda e a derrota, de ordem metafísica, na
consciência comum do vácuo do sentido de tudo.
Atlântica e lisboeta é a postura do sujeito poético em Ode Marítima, cujo percurso
se desenvolve num ciclo solar onde a poderosa e imaginativa máquina colocada
em movimento pelo volano, enlaça, em pleno sensacionismo, o inteiro e imenso
espaço-tempo marítimo, entre as horas do amanhecer e as do anoitecer no porto da
cidade portuguesa, para depois encontrarmos o poeta ainda imóvel no cais, imerso
num sentimento de angústia, de tristeza, e «no silêncio comovido da minha alma»,
como recita Álvaro de Campos; parisiense e circunscrita pelo espaço fechado de um
café protegido da luz solar, também Manucure, encena a própria ideia de dinamismo,
num espaço esse também fluído e móvel. No entanto, mais do que uma simples
viagem, trata-se de uma explosão multidirecional de sensações, na plena assunção
do lema futurista de palavras em liberdade, não gratuitas, mas com uma intenção
metafísica, traduzida em expressão estética, da pesquisa, da experiência totalizante,
num verdadeiro «sentir tudo de todas as maneiras» da Beleza pura, daquela «[…]
Arte com força centrífuga» sonhada pelo artista russo Zagoriansky no conto Asas
(SÁ-CARNEIRO, M. de, 1999: 118).
No entanto, enquanto que Álvaro de Campos deixa parar o volano e, lucidamente
desiludido, conforma-se com a impossibilidade do seu esforço titânico, Sá-Carneiro,
corre em direção ao seu fim, acabando por ficar disperso entre as palavras explodidas
e fragmentadas, já não sendo úteis para dizer a beleza, para dizer a poesia, para
criar então a realidade, condenando ao definitivo silêncio o dândi anacrónico e
incongruente, do qual a última mise en scène, Manucure, como extremo gesto poético,
se desenvolve no palco de um obscuro café de Paris.
Somando ainda estas reflexões a outras feitas até aqui, podemos afirmar que um
olhar mais distante permite ver nesta poesia «sem suporte», quanto a sua «intenção de
blague» seja aparente ou pelo menos redutora, embora também exista nos termos em
que «[...] o desejo de provocação do público [...] estava desde logo inscrito no código
genético do fazer vanguardista» (VASCONCELOS, R., 2015: 164). De facto, Sá-Carneiro
nela desenha literalmente, quase em timelapse fotográfico, o percurso seriíssimo,
da própria experiência estética. Na arte e poesia futurista e de vanguarda europeia,
«Meus olhos ungidos de Novo»: Manucure de Mário de Sá-Carneiro, poema órfico de Vanguarda, «apesar de blague?» 25

na verdade, Sá-Carneiro, encontra a linguagem mais avançada antes do limite do


pronunciável e dela serve-se naquela sua pesquisa titânica de uma forma totalizadora
de escrever e viver a vida como arte, e a arte com vida, em contínua evolução e firme
rumo a «Essa beleza pura», que ele conduz até ás últimas consequências.
Só assim será possível intuir a intensão mais séria e grave de Manucure, que pode,
por isso, ser plenamente definida como poesia órfica de vanguarda, em que o percurso
atinge o limite extremo. De resto, empurrado por uma incapacidade de renunciar, o
próprio Sá-Carneiro, com firme quanto surpreendente lucidez e premonição, declara
numa das suas primeiras cartas enviadas ao «amigo de alma»: «Eu sou daqueles que
vão até ao fim» (SÁ-CARNEIRO, M. de, 2001: 33). Hoje sabemos que Sá-Carneiro
tem coerentemente e radicalmente atravessado esse limite, no distante 26 de abril
1916. A isto parecem também aludir as palavras de Óscar Lopes, ao afirmar que «(…)
ele próprio lavrou em verso a melhor acta da sua derrota» (LOPES, Ó., 1994: 178).

Bibliografia Final

Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1966). Páginas Íntimas e de Auto – Interpretação. Eds.
COELHO, Jacinto do Prado e LIND, Jorge Rudolf. Lisboa: Ed Ática.
PESSOA, Fernando (1999). Correspondência 1905-1922. Ed.. SILVA, Manuela
Parreira da. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2000). Crítica, Ensaios, Artigos e entrevistas. Ed. MARTINS,
Fernando Cabral. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2012). Prosa de Álvaro de Campos. Ed. PIZARRO, Jeronimo,
CARDIELLO, António. Lisboa: Babel-Ática.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1999). Céu em Fogo. Ed. MARTINS, Fernando Cabral.
Lisboa: Assírio & Alvim.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (2001). Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando
Pessoa. Ed. SILVA, Manuela Parreira da. Lisboa: Assírio & Alvim.

Bibliografia Passiva
DE MARCHIS, Giorgio (2007). O silêncio do Dândi e a morte da Esfinge. Lisboa: IN/
CM.
GUIMARÃES, Fernando (1999). O Modernismo português e a sua poética. Porto:
Lello Editores.
JÚDICE, Nuno (1986). A era do Orpheu. Lisboa: Editorial Teorema.
LOPES, Óscar (1994). A busca de sentido. Lisboa: Editorial Caminho.
26 100 Orpheu Orietta Abbati

LOPES, Teresa Rita (1989). «O monólogo/ Diálogo do ‘Esfinge Gorda’», in:


AMARAL, Fernando Pinto do (org). Um século de poesia, número especial de
A Phala. Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 33-35.
LOURENÇO, Eduardo (2003). «‘Orpheu’ ou a poesia como realidade», in:
LOURENÇO, Eduardo. Tempo e Poesia. Lisboa: Gradiva, pp. 47-67.
MARGARIDO, Alfredo (1990). «O Cubismo apaixonado de Mário de Sá-Carneiro»,
in: Colóquio/ Letras 117/118, pp. 92-102.
MARTINS, Fernando Cabral (1994). O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro.
Lisboa: Editorial Estampa.
SARAIVA, Arnaldo (1981). «Mário de Sá-Carneiro: uma carta inédita», in: JL-Jornal
de Letras, Artes e Ideias, I, 6, p.5.
STEGAGNO PICCHIO, Luciana (2004). «Pessoa, Marinetti e il Futurismo
mentale della generazione dell’ Orpheu», in STEGAGNO PICCHIO, Luciana.
Nel segno di Orfeo. Fernando Pessoa e l’Avanguardia portoghese. Genova: Il
melangolo, pp. 109-136.
STEGAGNO PICCHIO, Luciana (2004). «Dalle Avanguardie ai Modernismi. I
nomi e le cose in Portogallo e in Brasile», in STEGAGNO PICCHIO, Luciana.
Nel segno di Orfeo. Fernando Pessoa e l’Avanguardia portoghese. Genova: Il
melangolo, pp. 235-239.
VASCONCELOS, Ricardo (2015). «Orpheu e Paris. Ecos cubistas na poesia de
Mário de Sá-Carneiro», in: DIX, Steffen (org). O ano do Orpheu 1915. Lisboa:
Tinta da China, pp. 149-165.
A desabar catedrais..., ou o outro modernismo

Luís Machado de Abreu


Universidade de Aveiro

Palavras-chave: Modernismo; Pessoa; Orpheu; Pascendi; Teologia.


Resumo: A amplitude do movimento modernista em que se inscreve ORPHEU já tinha, antes
de 1915, sacudido a beata quietude do catolicismo romano. E se não parece aceitável tratar
o modernismo teológico e o modernismo estético como se fossem apertados e íntimos os
laços de família que os ligam, também não pode apodar-se de insana a tarefa de reduzir a
distância entre as identidades que os distinguem e afastam. Fazer convergir as duas expressões
modernistas, eis o propósito desta comunicação. Ela vai tentar traduzir essa convergência
sobretudo a partir de duas atitudes criativas, presentes em ambas: afirmar a liberdade de saber
e de imaginar, desconstruir o poder das autoridades.

Deus é um grande Intervalo,


Mas entre quê e quê? (PESSOA, F., 1989: 188)
E a noite cresce agora a desabar catedrais” (SÁ-CARNEIRO, M., 1989: 11)

Sob o signo “desabar catedrais” perfila-se outro modernismo, o modernismo


teológico, que começou e se metamorfoseou ainda antes de o modernismo literário e
das artes plásticas se ter afirmado. O emergir do modernismo teológico vem sempre
desalinhado quando historiadores e críticos literários exibem audácias criativas ou
novos universos encenados pela poética modernista. Remetido para nota de rodapé
ou repescado do olvido como simples à parte da erudição conveniente, mais parece
um equívoco1 em toda esta história. Como se apenas um significante nominalista
ligasse por ténue fio vocabular dois continentes que entre si nada tivessem a ver,
formados cada um por distintas genéticas identitárias e obedecendo a dialécticas
autónomas que jamais se encontram.

1 Em texto que pode ser datado de 1915 e tem no espólio pessoano da Biblioteca Nacional de Lisboa a cota
87A-19, Fernando Pessoa denuncia o equívoco: “O termo ‘modernista’ que por vezes também se aplicou aos
artistas de Orpheu, não lhes pode também ser aplicado, por isso que não tem significação nenhuma, a não ser
para designar – porque assim se designou – a nova escola pragmatista e exegética dos Evangelhos, nascida
adentro da Igreja Católica, e condenada pelo Papa, por excessivamente tendente a procurar a verdade.” Apud
Teresa Rita Lopes, Pessoa Inédito. Lisboa, Livros Horizonte, 1993, p. 263.
28 100 Orpheu Luís Machado de Abreu

Quando inserida numa história crítica da cultura, a fenomenologia modernista


há-de ser lida muito aquém ou muito além de uma excitante doxa de manifestos,
revistas, grupos ou gerações. A doxa transporta-nos para o lugar e o agora de um
real imediato. Instala-nos e fecha-nos dentro dele para que também nós, leitores,
embarquemos na aventura e ela volte a acontecer outra vez. Há nesta doxa o efeito
de uma convulsão chamada modernidade cujo paroxismo foi atingido na cultura
do século XIX e se traduziu em nova compreensão do homem, do mundo e de
Deus. A novidade assim trazida assenta em duas bases: a auto-referencialidade e a
absolutização do fragmento e do relativo.
A auto-referencialidade remete-nos para a imanência do ser do homem e da
natureza onde a ciência procura a chave com que há-de resolver os problemas que
a realidade humana e o mundo da natureza encerram. Essa chave apresenta-se
como única e universal. O século XIX proclama-o do alto das tribunas eufóricas
do cientismo, positivismo, naturalismo, marxismo e niilismo. São elas as grandes
“narrativas militantes” portadoras de uma soteriologia laica que as canoniza como
religiões da humanidade2.
Quanto a Deus, o espaço público deixa-lhe um lugar que, a pouco e pouco, se torna
mais exíguo e distante dos centros vitais que animam e comandam a vida da sociedade.
Quando não lhe nega pertinência, e nega com frequência crescente, remete-o para a
insignificância e o recôndito da vida privada. Com a auto-referencialidade cresce a
distância, a independência, o isolamento que afasta o homem da relação com o
divino e com a Natureza, à força de, qual Narciso, tanto olhar e se fixar em si próprio.
E, ao mesmo tempo, avança o processo de decomposição dos equilíbrios, dissipa-se
a harmonia do todo, agrava-se a consciência de crise e o sintoma indefinido do dia
que anoitece. Na sua dispersão, cada fragmento tem uma história para inventar as
derivas de um mundo que se estilhaçou. E agarra-se a essa ficção como náufrago
que, na incerteza do momento, ainda o pode prender ao absoluto da vida.
É à luz do paroxismo convulsivo da cultura oitocentista que o modernismo
estético, e de modo mais preciso o modernismo de Orpheu, tem raiz na crise
filosófica e religiosa. E de maneira muito peculiar, os mais substantivos criadores
do universo poético dessa geração perseguem com anelo, ânsia, angústia e mística
obsessão o porto da “verdadeira religião poética”. Com sagacidade amplamente
confirmada, assim o reconheceu Eduardo Lourenço ao afirmar, sem rodeios, que

2 Ver a sua exposição em Marc Angenot, Les Grands Récits Militants des XIXe et XXe Siècles Religions de
l’humanité et sciences de l’histoire. Paris, L’Harmattan, 2000.
A desabar catedrais..., ou o outro modernismo 29

todo o século XIX andou à procura de uma nova religião, para responder a uma
civilização que tinha entrado no domínio material do mundo e para responder
também ao pensamento filosófico, expresso por Schopenhauer, segundo o qual o
mundo não tem sentido, é uma vontade cega (LOURENÇO, E., 2015: 9).

Havia o pressentimento de um mundo novo a explorar e os jovens artistas


embarcaram freneticamente nessa aventura. Dela dirá Almada Negreiros: «De
começo havia mais entusiasmo do que sentido, mas era o que bastava» (ALMADA
NEGREIROS, J., 1972: 64). A viagem estética empreendida pela geração de Orpheu
jamais sofreu qualquer desvio por lugares ou acontecimentos onde a experiência
religiosa se vive como fé esclarecida ou como devoção emocionada. Mas “os de
Orpheu” conheciam essa experiência espiritual tão profundamente enraizada e
marca indelével da tradição cultural portuguesa. E acenam-lhe agarrando-se aos
destroços da arqueologia mitológica do Portugal cristão e católico nascido à sombra
das cinco chagas e da Cruz de Cristo. Em nenhum momento esses destroços serviram
para compor um epicédio ao universo da fé perdida no oceano tempestuoso da
modernidade céptica e sôfrega de novos cultos. Livres de nostalgias, os criadores de
Orpheu destilam nele a desesperada ânsia de um ideal que, sendo deles, os ultrapasse
e se consume na fúria e na plenitude de um paraíso impossível. Não encontram
velas melhores nem remos mais vigorosos para fazer avançar o barco até esse porto
senão investindo a opulência do léxico religioso na mística laica de uma redenção
estética: “Deus, longo cais em mim, donde outras naus singrando, / Conduzem
para o Longe o meu não existir” (GUISADO, A., 1989: 47), assim desabafa o órfico
Alfredo Guisado.
É de uma viagem singular que estão saturadas as páginas de Orpheu e as emoções
nelas derramadas. A viagem começa em nenhures e tem como destino final o
simbólico Longe que fica depois do Longe e se esfuma no Nada. O mais aliciante
não está no ponto de partida nem na previsível cena terminal de naufrágio no
oceano do Vazio. Está no caminho andado, caminho cheio de acenos à infância, ao
heroísmo da aventura, ao ideal e à arte, à luta e sofrimento, à conquista e perda, ao
sonho e decepção, à angústia e tédio, ao gozo e infinita solidão… E enquanto dura
a travessia, ponte que liga a lado nenhum, a viagem torna-se peregrinação que faz
com devoção a visita de todos os lugares sagrados da religião da arte. São lugares
que nenhuma divindade de religiões positivas tradicionais visitou. Inventa-os a ânsia,
a vertigem de ideal, o eros da liberdade infinita de ser tudo de todas as maneiras.
Chegam até eles cansados dos cultos antigos e dispostos a abraçar a “irreligião do
futuro”. Dão testemunho de viver no desconforto de
30 100 Orpheu Luís Machado de Abreu

nem uma sequer das divindades criadas sucessivamente pelo espírito humano
lhes poder bastar hoje; precisam de todas ao mesmo tempo, e ainda de algo mais,
porque o seu pensamento vai para além dos deuses. […] a verdadeira ‘palavra
sagrada’ não é uma palavra solitária, mas a sinfonia de todas as vozes que, juntas,
ressoam sob a abóbada celeste (GUYAU, M., 1890: 320-321).

É na viagem que o eu se resgata da monotonia da solidão, do “Mal da Palavra”, e


faz coro, juntando à sinfonia de todas as vozes a irreprimível vontade de querer “ser
Deus, o Deus dum culto ao contrário” (p. 143) como confessa Álvaro de Campos na
“Ode Marítima”. Aqui chegados, o gosto e o gesto de Orpheu tem o sabor de hybris
da modernidade que se exprime na apoteose do sujeito e na criação poética elevada
a ideal de transfiguração da própria vida em obra de arte. Não anuncia menos do que
isso a vertigem do Longe sentida por Raul Leal que proclama “o indefinido a que na
arte nós aspiramos, […] essa ânsia, esse desejo infinito e jamais satisfeito deve encher
a nossa vida que a mais alta expressão se tornará assim, da arte pura!...” (LEAL, R.,
1989: 119).
Correndo o risco de ser acusado de aproximações simplistas e, por isso, criticamente
irrelevantes ou de forçar semelhanças até fantasiá-las como traços de uma identidade
comum, vou deter-me no que considero ser partilhado pelos dois modernismos, sem
ignorar ou iludir o que neles se impõe como claramente diverso.
Dando por adquirido o que seja o modernismo em arte, não para fugir à
complexidade do conceito3, mas por se tratar de território já muito frequentado
pelos estudiosos da geração de Orpheu, comecemos por um esboço de caracterização
do chamado modernismo católico ou teológico, por vezes designado também crise
modernista da Igreja4. Esse modernismo surgiu como tentativa destinada a repensar a
doutrina e a prática da Igreja à luz das exigências intelectuais e civilizacionais criadas
pelo espírito dos tempos modernos. Protagonizaram esta iniciativa de renovação
membros do clero dedicados à investigação em teologia e em filosofia a que se juntaram
leigos como Maurice Blondel e Édouard le Roy. Tratava-se de interpretar a doutrina
da fé à luz de contributos recentes do saber histórico e da abertura à autonomia da
consciência do homem moderno. Em termos cronológicos, o modernismo religioso

3 Sobre o tema ver o erudito estudo de Vítor Aguiar e Silva, “A construção da categoria periodológica de
Modernismo na literatura portuguesa”, in: Luís Machado de Abreu (Coord.), Diagonais das Letras Portuguesas
Contemporâneas. Aveiro, Fundação João Jacinto de Magalhães, 1996, pp. 17-35.
4 Da vastíssima literatura sobre esta corrente modernista sublinho a obra já clássica de Émile Poulat, Histoire,
dogme et critique dans la Crise Moderniste. Paris, Casterman, 1962 (Obra reeditada em 1995 pela Albin
Michel) e de Pierre Colin, L’audace et le soupçon La crise du modernisme dans le catholicisme français
(1893-1914). Paris, Desclée de Brouwer, 1997.
A desabar catedrais..., ou o outro modernismo 31

desenvolveu-se a partir da década de 1890 e atingiu o apogeu da crise então gerada


no ano de 1907, ano em que o papa Pio X o condenou na encíclica Pascendi dominici
gregis de 8 de setembro de 1907, depois de a 3 de julho deste mesmo ano o Santo
Ofício ter inventariado no decreto Lamentabili os principais erros dos modernistas
acerca da Igreja, da revelação, de Cristo, dos sacramentos e dos dogmas.
Da análise desta tentativa generosa de introduzir a modernidade na leitura das
expressões doutrinais do catolicismo decorrem marcas culturais que replicam em
grande escala aspectos também identificados pela crítica no modernismo estético.
Entre outros, são notórios nos dois movimentos os elementos seguintes: consciência
de atraso e inadaptação às rotinas da situação cultural dominante; experiência do
tempo como kairós, isto é, como tempo oportuno; exigência de liberdade de ser,
de conhecer e de se afirmar; espontaneidade do humano através da afirmação das
potencialidades do sujeito; inscrição histórica dotada de perenidade. Percorramos
com algum pormenor cada uma dessas marcas de modernidade.
A consciência de inadaptação às rotinas da situação cultural vigente impõe-se
através do impulso que essa geração sente de não condescender com a estagnação
do tempo presente. Tem de ser diferente e criadora. À arte atribui a função de “ao
mesmo tempo interpretar e opor-se à realidade social coeva”, no dizer de Pessoa. Não
pede licença aos patriarcas da arte dominante nem quer pactuar com o conformismo
da vida aburguesada. Despreza o passado, desobedece ao presente e voa rumo ao
mundo futuro. A essa desadequação alude Almada Negreiros em 1926 e remete-a
para o desencontro português entre o tempo cronológico e o tempo da história em
construção. A verdade é que “A humanidade inteira, incluindo os Portugueses, está
no século XX, contudo, Portugal não está ao lado da humanidade actual.” (ALMADA
NEGREIROS, J., 1972: 54). Desde Alcácer-Quibir, nunca mais Portugal acertou o
passo com a marcha geral da humanidade.
A experiência do tempo como kairós, isto é, como tempo oportuno. Na “Introdução”
de Luís de Montalvor evoca-se o momento certo que acaba de chegar como “procura
estética de permutas: os que nos procuram e os que nós esperamos…”. O espelho que
Orpheu também é não reproduz o retrato de uma época; revela a prova de vida, o
ritmo frenético de uma geração que se inventa como história em movimento. Não
sendo com propriedade órgão de um movimento, Orpheu é a resultante de uma
geração constituída por personalidades em movimento, movimento acelerado pela
fúria de cada um se desassemelhar pela arte que cria.
A exigência da liberdade de ser, de conhecer e de se afirmar. Não está em causa fazer a
apologia do livre arbítrio mas forçar as barreiras que, em âmbitos vários, ainda obstam
ao exercício efectivo da liberdade. Em nome do dever de autodeterminação pessoal,
os modernistas insubordinam-se tanto perante a autoridade que exige obediência
32 100 Orpheu Luís Machado de Abreu

cega, como em face de constrangimentos da tradição impostos à arte e à vida. No


modernismo religioso a inteligência quer emancipar-se da interpretação da doutrina
da fé tutelada pela autoridade eclesiástica. Em vez de cultivar o entendimento dos
dogmas como formulações absolutas e imutáveis das verdades da fé, tende a concebê-los
como “poemas metafísicos” difusores do ideal cristão. No modernismo estético é de
emancipação da sensibilidade e do gosto que se trata, em ordem à plena liberdade de
imaginar e sonhar outros mundos.
Espontaneidade do humano que se manifesta nas potencialidades do sujeito.
Estas potencialidades andaram durante muito tempo cingidas ao investimento no
subjectivismo lírico do romantismo. Era tão grande e central o eu que a natureza
inteira lhe servia de caixa de ressonância. Agora, as mais intensas potencialidades
encontram-se na descoberta de que esse eu já não existe. Dissipou-se e em seu lugar
cresce uma pluralidade de eus, cada qual com sua verdade. É que também a verdade
deixou de consistir na correspondência da ideia com a realidade objectiva que ela
deveria significar. Como o eu, a verdade afirma-se plural e relativa, e mora no universo
do sonho para onde nunca acabamos de partir.
Inscrição histórica dotada de perenidade. Ao abalo estético provocado pelas
audácias de Orpheu seguiram-se réplicas que se foram traduzindo no aparecimento
de novas iniciativas e novas revistas. E veio a Presença e o segundo modernismo. E
não faltou também o antimodernismo para conferir actualidade à poética que ele
recusa. O momento inaugural em que se inovou não morreu à nascença. Teve réplicas
várias, e, com justiça, dele disse Pessoa em 1935: “Orpheu acabou. Orpheu continua”.
À semelhança do que aconteceu no mundo das artes, os episódios de sobressalto
doutrinal causados pelos teólogos modernistas não se extinguiram com as censuras
e o anátema lançados pela encíclica Pascendi de 1907. A visível acalmia verificada a
partir de então foi de novo sacudida na década de 1940 pela chamada “Nova Teologia”
de Henri de Lubac, Henri Bouillard, Gaston Fessard, Teilhard de Chardin e outros. E
duas décadas mais tarde, a par do aggiornamento trazido pelo Concílio Vaticano II,
surgem os corifeus do mais audacioso e inconformista progressismo teológico, de que
Hans Küng foi, é ainda, um dos mais emblemáticos protagonistas.
Seja qual for o sentido do sibilino verso de Pessoa “Deus é um grande Intervalo”, ele
significará sempre uma saída de cena para virem à ribalta outros actores e, com eles,
a representação de novo drama.
Aconteceram nos dois modernismos projectos audaciosos de aproximação ao
humano ditados pela vontade de conhecer, de sentir e de criar. Em nome de Deus e da
ortodoxia católica, a autoridade eclesiástica censurou o modernismo de Alfred Loisy
e companheiros, anatematizando-o como grande heresia dos tempos modernos.
Em nome da criatividade poética o modernismo de Orpheu reservou para Deus
A desabar catedrais..., ou o outro modernismo 33

a periferia e o ócio de “grande Intervalo” entre a ânsia desesperada de “indícios


de oiro” e a mágoa da eterna Ausência, ou em versão de Álvaro de Campos, “a
Distância Absoluta, / O Puro Longe, liberto do peso do Actual…” (Álvaro de Campos,
PESSOA, F., 1989: 135).

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Jacinto de Magalhães, pp. 17-35.
A Vida dos Instrumentos – pureza e
ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso

Maria Teresa Amado


Universidade de Évora

Palavras-chave: Amadeo de Souza-Cardoso; Modernismo; Pintura; Música; Organização do


espaço.
Resumo: A vitalidade da Música na criação do Modernismo impõe-se no diálogo que estabelece
com a Literatura e a Pintura. A Música é a arte que desperta no ser humano as emoções mais
profundas, ecos e ressonâncias da alma. É uma arte da vibração e do rigor da medida, abstrata,
liberta das contingências da imitação. A partir do fim do século XIX ela vai à procura de
novos caminhos, muitos músicos entram em rutura com a linguagem harmónica tradicional,
à procura de novas expressividades. Este processo de busca e de vanguarda da Música marca
as diferentes correntes pictóricas: como temática visível, na globalidade; e como fragmentação
do tempo e estruturação vibrante da forma e da cor, em Amadeu e nos artistas que sentem a
pintura como um caminho interior. Perceber os sons e as vibrações dessa musicalidade dá-nos
a evolução e a profundidade do percurso da obra plástica de Amadeo.

1- Introdução

Esta comunicação tem três objetivos simples. Por um lado, mostrar a importância
que a obra teórica, gráfica e pictórica de Kandinsky teve para Amadeo; por outro,
como as experiências dos movimentos de vanguarda foram absorvidas pela sua
pintura. Especificamente, como a sonoridade da cor e das formas é um processo de
libertação do exterior, de ida para o interior, para as profundezas1.
A procura da musicalidade, dos sons, do ritmo das formas, da vibração das cores
está presente desde os tempos de absorção e de aprendizagem que Amadeo passou
em Paris. A aceleração, a estilização e o alongamento das figuras, a sua suavidade
e delicadeza, associadas a movimentos e ritmos harmónicos e a um brilho intenso,
produzem pinturas dominadas pelos jogos de cores e cadências. Sem romper com

1 Agradeço reconhecida ao Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão/Fundação Calouste Gulbenkian
a autorização graciosa da reprodução das pinturas de Amadeo de Souza-Cardoso, e, de uma maneira especial,
à Senhora Dra. Ana Vasconcelos e Melo pelas facilidades concedidas.
36 100 Orpheu Maria Teresa Amado

os modelos e a estética clássica, Amadeo cria um equilíbrio e uma harmonia, que


não sendo ainda dissonante, os subverte. “Amplia a verdade pela sobreexcitação de
intencionalidades”, eis como Jérome Doucet o carateriza em 1911 na introdução aos
Dessins (XX DESSINS, 1983: s/p).
As suas primeiras obras, os XX Dessins, diretamente inspiradas no álbum de
Kandinsky, Klänge-Sonoridades2, rompem logo com o estilo académico em pintura.
O imaginário dos temas, o desenho e a cadência rítmica resultante, substanciam o
diálogo que a literatura, a pintura, a escultura, a música e até o bailado mantêm neste
princípio do século XX.
Se a musicalidade, o ritmo, os sons são uma constante na obra do Amadeo, só a
partir de 1915, quando, apanhado pela guerra, é obrigado a um refúgio forçado em
Portugal, é que os instrumentos musicais se tornam uma presença dominante nos seus
quadros. É exclusivamente de uma seleção de quatro destas pinturas que o artigo trata.
Considera-se que elas são a chave da sua evolução para a pintura abstrata. Genérica e
tematicamente estas pinturas podem dividir-se em três grandes grupos: instrumentos
musicais, instrumentos musicais integrados em composições, e instrumentos musicais
em composições abstratas. De cada um destes temas escolheram-se as pinturas mais
elaboradas do ponto de vista da integração dos elementos e as mais estruturadas
quanto à composição global do quadro.

2- Mil cordas

Como Bartok, Stravinsky e outros artistas da sua geração, Amadeo faz recolha de
canções. O pintor recria nas suas telas o espírito da arte popular e dos seus artistas.
São eles os detentores desta arte que os exprime. O que Amadeo tenta ainda captar é
a transmissão simultânea de uma vivência e de uma memória cultural que ultrapassa
a própria música. Surgem assim, entre 1915 e 1916, óleos, aguarelas, desenhos que se
concentram no instrumento musical: mostram guitarras, violinos, cavaquinhos. As
cordas têm valor simbólico para o pintor: a sua vibração desperta diretamente a alma,
«o instrumento das mil cordas»:

A cor é um meio para exercer uma influência direta sobre a alma. A cor é a tecla; o olho o
martelo. A alma, o instrumento das mil cordas. O artista é a mão que, ao tocar nesta e naquela
tecla, obtém da alma a vibração justa. A harmonia das cores baseia-se exclusivamente no

2 Os poemas, os desenhos e as gravuras da obra gráfica Klänge foram criados por Kandinsky entre os anos de
1908 e 1912, ano da publicação do álbum em Munique.
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 37

princípio do contacto eficaz. A alma humana tocada no seu ponto mais sensível responde.
A este fundamento chamaremos o princípio da Necessidade Interior. (KANDINSKY, V.,
2013: 21).

Há um paralelismo que se pode fazer entre a evolução da música e da pintura


neste princípio do século XX: a rutura com a tonalidade e o academismo e a procura
da pureza da musicalidade e da abstração como formas de expressão do sentir mais
íntimo, como necessidade fundamental.
Vida dos instrumentos é o título de, pelo menos, três quadros conhecidos de
Amadeo. No primeiro, de 1915, existem duas figuras humanas que tocam dois
instrumentos de cordas (AMADEO DE SOUZA-CARDOSO, 1998: 51)3. De cores
sombrias entrecortadas por linhas escuras, a composição centra-se nas personagens,
a guitarra e o violino ficam subordinados. As expressões dos rostos e a forma como
os corpos envolvem os instrumentos transmitem a procura da ancestralidade e
ruralidade em Amadeo. Mas, mesmo atingindo esse mundo ancestral, o artista sente
que penetra numa só faceta do real. Nos desenhos e nas pinturas ulteriores, o espaço
temático é ocupado por instrumentos musicais. As figuras humanas desaparecem,
intensifica-se a emoção e amplia-se a ligação com o mundo do som e da música. A sua
pintura caminha num processo de libertação do figurativo.
Em 1916 Amadeo desenha e pinta, em óleos e aguarelas, várias composições com
guitarras. Destaca-se um pequeno desenho em grafite, guache e aguarela, cujo título
poderia ser Mil Cordas, porque é uma composição simples de dois núcleos, da palavra
MIL e de guitarras de formas depuradas e cores irradiantes. As formas, quadriláteros,
são centradas e dão estabilidade.
O grau de abstração desta pequena aguarela é o prenúncio de uma nova etapa.
A imagem visual associa-se à imagem sonora e transmite, pelas cores e formas,
emoções arquetipais, concentradas no centro azul, do primeiro plano. Este tem uma
ressonância com o grande círculo azul do canto superior direito, que sugere vibração
concêntrica, complementada pela forte pincelada vermelha, que induz abertura
infinita. Com a palavra MIL, a pintura é o anagrama da pureza da emoção poética de
uma alma sensível e desperta.

3 Pintura (Vida dos Instrumentos), 1915. Óleo sobre tela. 100 x 60cm. Museu Municipal Amadeo de
Souza-Cardoso.
38 100 Orpheu Maria Teresa Amado

Figura 1. Sem título [MIL]. 1916. @ CAM/FCG

Não há saltos bruscos na obra de Amadeo, o pintor é versátil e persegue um fio


condutor íntimo: captar a «interior expressão das coisas»4. Entre 1915 e 1916 Amadeo
pinta dois óleos de grandes dimensões em que ensaia as linhas mestras dos quadros que
formam o objeto da presente análise. No quadro com o nome PAR ÍMPAR 1 2 15, surge,
como eixo central, uma estrutura metálica em zig-zag que interceta três pontos vitais
da figura humana (mão, coração, ouvido) e separa verticalmente a parte esquerda da
parte direita, como se de um díptico se tratasse. O grafismo de 1 2 1 do título dado pelo
autor indica a força organizadora da configuração metálica em três partes – longa,
curta, muito longa. O braço mecânico articulado parece ter a finalidade de perfurar o
superficial para chegar a um interior que Amadeo ainda procura.
Arabesco dinâmico = REAL ocre rouge café Rouge, ZIG ZAG, cantante, couraceiro,
bandolim, Vibrações metálicas, (Esplendor mecano-geométrico)6 é o título de
uma pintura de 1916, que pode ser facilmente ligada à anterior. Pelo título somos
introduzidos no labirinto do quadro. A palavra arabesco designa formas geométricas
evoluindo para formas orgânicas que, na arte islâmica, podem ser uma via da procura
do infinito. Este longo título associa o dinamismo a esta via de procura do centro
interior. O movimento das configurações vermelhas em zig zag acelera a sugestão de
vibrações metálicas. REAL é o processo de procura, penetrando o superficial. A figura
humana surge neste quadro despersonalizada, um esboço de um robot, em que duas
campainhas são olhos que choram e os ferrinhos marcam a cara. O corpo e os braços
estão na posição de um violinista, mas, no lugar do violino há um vazio ou uma
indefinição, o que permite pensar na procura de um caminho, da necessidade interior.
Esta pintura assenta ainda a sua composição num eixo de simetria, vertical e
horizontal. A parte superior do quadro é a mais elaborada e rica de significados; é

4 Título de uma das suas pinturas de 1915.


5 Óleo sobre tela, 100 x 70 cm, Coleção Particular (Lisboa).
6 Óleo sobre tela, 100 x 60 cm, Coleção Particular (Porto).
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 39

aqui que Amadeo ensaia diversos níveis de profundidade. A parte inferior tem formas
mais indefinidas.
Cordas, molas, configurações metálicas, tubos, sinos são formas que ganham um
estatuto especial, de vida e autonomia nas composições de Amadeo.

3- Instrumentos Musicais ou Vida dos Instrumentos

No mesmo ano, Amadeo pinta dois óleos que intitula também Vida dos
Instrumentos. As Mil cordas marcam a presença nas telas, tal como vão marcar nos
outros quadros aqui apresentados. Observa-se uma grande semelhança nas formas e
no alinhamento espacial entre o óleo da figura 2 e a aguarela anteriormente analisada.
Mas a composição é mais complexa.
A partir de um eixo de simetria, Amadeo desloca o centro de gravidade do quadro
para direita e para cima. As guitarras têm uma base mais estreita e, por isso, embora
as cores contribuam para uma sensação de expansão, inspiram instabilidade. O
contraponto está no círculo azul e violeta, que absorve luz, som ou talvez tempo.
Também, do lado esquerdo e destacado, está o elemento dinâmico da pintura,
elemento que é, aliás, um leitmotiv dos seus quadros: o zig-zag, ou o braço mecânico
que comanda os instrumentos.
A sua verticalidade metálica é reforçada pela cor branca envolvente, estática. A
extremidade do braço, uma mão mecânica ou um espelho, é direcionada para fora,
absorve do exterior e comanda o núcleo de direita; interceta vários planos, criando
extensão e profundidade.

Figura 2. Vida dos Instrumentos. 1916. © CAM/FCG

Aqui Amadeo contrapõe às formas simples (caraterísticas da sua pintura anterior)


grandes manchas de cor e de tons. Na procura do abstrato, ele ensaia sobreposição
de planos, texturas e fragmentação de formas. Esta técnica de pintar a totalidade do
40 100 Orpheu Maria Teresa Amado

espaço do quadro com tons vai ser usada posteriormente, em 1917, como processo
de criação típico de Amadeo quanto à sucessão de inúmeros planos e sentido de
profundidade, por outras palavras, quanto ao fundo dos seus quadros.

4- Trou de la serrure

Trou de la Serrure PARTO DA VIOLA Bon ménage Fraise avant garde é o nome dado
por Amadeo a este óleo no catálogo da exposição realizada no Porto e em Lisboa, em 1916.
Trou de la Serrure insere-se num conjunto de 5 telas não figurativas, todas de
1916, de intensas e humorísticas sugestões, sinestesias; são pinturas aparentemente
leves, brincalhonas, alegres e otimistas. Viola e Morango7, Violino e Cereja8 podem
ser considerados dois pequenos estudos do óleo Luxúria do Violino, IMAN, Oscilação
Vermelha Cá dentro e ao ar livre9. São obras que transmitem a sugestão de sensações
­­– som, cor, paladar, sensualidade ­­– atraídas para o interior, pelo IMAN. Esta última
pintura aproxima-se, plástica e iconologicamente, de Trou de la Serrure. Quanto à tela
Pato Violino Insecto, ela «grita» sons dissonantes e vibrações em contraponto com a
musicalidade do violino10.
Aparentemente Trou de la serrure PARTO DA VIOLA Bon ménage Fraise avant
garde é uma obra que comunica alegria e despreocupação no seu movimento: através
de simples sinestesias sonoras e cromáticas, a boa convivência chega-nos de dentro
para fora, e talvez também em via contrária. A profusão do título e a tendência para
o vanguardismo do autor prepara-nos para a abundância de sequências e de planos,
que é uma característica desta grande composição. Pela força da palavra, “trou de la
serrure”, obriga à orientação – ­­ O Buraco da Fechadura. Numa composição tão vasta
e variada, focaliza-se o olhar e descobre-se o círculo de cor clara, quase branca, com
um ponto escuro no centro, um olho no coração de um violino amarelo, instrumento
que quer expandir-se, mas está limitado: pela grande espessura das linhas curvas
vermelhas e pela abertura da caixa da viola, que permite ver o frio azul interior.
Neste contexto, o orifício central destaca-se. Num plano bem mais profundo, mais
indefinido, mas em ressonância, ele espreita e encontra o olho interior, uma metáfora
do buraco da fechadura. Há movimento, indicado pelas três linhas horizontais, cordas
que intercetam este plano mais profundo.

7 Óleo em cartão de 16,5 x 12 cm Coleção Particular (Porto).


8 Óleo em cartão de 16,5 x 12 cm Coleção Particular, atualmente desaparecida.
9 Óleo sobre tela de 50 x 40 cm Coleção Particular (Lisboa).
10 Óleo sobre tela de 50 x 40 cm Coleção Particular (Cascais).
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 41

Figura 3. Trou de la serrure PARTO DA VIOLA Bon

ménage Fraise avant garde. 1917. © CAM/FCG

Neste processo de espreitar, depara-se com três instrumentos fragmentados, em


que um dos instrumentos sugere o algarismo três. Letras que formam a palavra SOL,
um T e um R, talvez da palavra TROU, assim como fragmentos de instrumentos
mais pequenos justapõem-se sobre os tons, de predominância azul, de fundo. Toda a
composição dirige-se para «o buraco da fechadura», que dinamiza o lado direito do
quadro. Em contraponto, o lado esquerdo é estático e acentua propositadamente a
bidimensionalidade pictórica e a escuta interior: é um puzzle de pequenos quadros
(polarizados em redor dos chamados ouvidos do violino, ou abertura acústicas),
que remetem para objetos da cultura popular, e sugerem sensações auditivas, tácteis,
de olfato e paladar. Destaca-se o vermelho de um maduro e delicioso morango em
relevo. A alegria e a singeleza destes pequenos quadros (em que alguns elementos
também surgem pintados nos óleos da temática «Canção popular»11) é associada
à música popular com a sua estrutura linear e melodia única. No entanto, Trou de
la Serrure aponta para uma composição musical elaborada e complexa, orquestral,
tendo o violino em destaque.
Há um eixo branco e preto, cores estáticas segundo Kandinsky, uma parede
que acentua a diferença entre o mundo exterior e o mundo interior mais abstrato.
Aqui podem existir objetos carregados de simbolismo para a alma, assimilados e
representados figurativamente no puzzle do lado esquerdo. Finalmente, junto aos
ouvidos do violino e aos símbolos musicais do lado esquerdo também se encontram
cordas ou pautas de música e um pequeno olho, uma deixa de Amadeo para o
observador iniciar o caminho inverso, em que o ver e o ouvir se entrelaçam.

11 Dentro do conjunto Canção Popular são conhecidas quatro telas, a primeira, Sem título, datada de 1915-16,
é uma composição muito simples: a figura da boneca ocupa quase todo o espaço pictórico. As outras são
de 1916, Canção popular, Canção popular e o Pássaro do Brazil, e Canção popular a Russa e o Fígaro. Estas
três pinturas já integram nas suas composições as características “janelas/olhos” de Amadeu, revelando uma
melhoria progressiva quanto à sua elaboração plástica.
42 100 Orpheu Maria Teresa Amado

Concluindo, comparando Trou de la Serrure com as pinturas acima referidas,


percebe-se a sua radical diferença: nas pinturas em que Amadeo agrega aos
instrumentos musicais a representação de frutos, bonecas, objetos populares, etc., em
que a temática musical tem um caráter mais sensorial, a força imagética da sobreposição
de fragmentos concretos do quotidiano abafa a sugestão de musicalidade, a emoção
“pura”.

5- O «atelier de pintura» de Gershwin

Tendo por um lado presente pinturas anteriores de Amadeo chamaríamos a este


quadro/óleo sem título, de 1917, Vida dos Instrumentos 2, ou, tentando responder ao
desafio da composição e a sugestão de sincretismo das artes, O «atelier de pintura» de
Gershwin.
É um espaço físico absorvido pelo ofício do pintor: tintas, mãos, quadros e telas,
madeiras, fósforos. Trata-se de uma composição densa, com múltiplas sobreposições
de planos, com formas fragmentadas de objetos/elementos e com textura metálica de
configurações que funcionam como principais agentes dinamizadores.
As formas evocam instrumentos musicais. No centro está uma guitarra. Nas
múltiplas sobreposições de planos encontra-se uma nova dimensão da pintura
de Amadeo. As formas e as cores são familiares, mas no conjunto, encontram-se
dependentes umas das outras, assim como da estrutura final da composição. Dito de
outra maneira, há dois pilares – o da cor e da forma, e o da conceptualização do espaço.
A composição global do quadro torna-se a primeira finalidade. É esta a característica
da pintura de Amadeo em 1917: uma grande estruturação na organização do espaço e
da cor. Propositadamente, o quadro não tem centro, mas há centralidades, há núcleos
organizadores na pintura, à volta de guitarras (KANDINSKY, V., 2013: 60)12.

12 «A composição grande pode ser formada por composições menores, completas em si mesmas, ainda que
exteriormente possam parecer opostas, mas, mesmo através desta sua oposição, concorrem para o conjunto
da grande composição, de que fazem parte integrante. Deste modo, os vários objetos de um quadro (reais,
parcial ou totalmente abstratos) encontram-se dependentes de uma grande forma única. A transformação
profunda que recebem submete-os a esta forma; eles serão esta forma. A ressonância de uma forma isolada
enfraquece. Ela é apenas um dos elementos constitutivos da grande composição formal».
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 43

Figura 4. Sem Título [O «atelier de pintura» de

Gershwin]. 1917. © CAM/FCG

Na verticalidade, do lado esquerdo do observador, destacam-se dois planos de


guitarras, de grande dimensão, possíveis violoncelos. Do lado direito, de evidente
menor dimensão, reconhecem-se as guitarras de Amadeo. Pelas cores quentes sobre
um quadro preto, pelo olho azul hexagonal, este núcleo deslocado para a direita ganha
em profundidade. Mas no centro do quadro há uma abertura luminosa que equilibra
as partes, intencionalmente deslocadas pelo artista (o «coração» da guitarra).
Na horizontalidade, há estabilidade na parte superior do quadro. O canto superior
direito transmite leveza pelas suas cores claras, que continuam, em movimento de
translação, para o centro e para baixo.
As configurações metálicas percorrem o quadro e sugerem um espaço delimitado
por elas. Há dinamismo e associação de variados sons metálicos. No canto superior
esquerdo, uma alavanca parece sustentar todo este movimento rompante.
A fonte dos sons parece ser o quadrado branco superior direito, com agentes
sonoros metálicos, com diapasão e a nota musical LA, tudo ampliado por uma
caixa-de-ressonância. Tubos verdes, em forma de diapasão, ligam e trazem para o
primeiro plano os instrumentos musicais; concedem-lhes ação, logo vida.
É conhecida a importância dos olhos na pintura de Amadeo. Os olhos do quadro
são pontos vitais de concentração, eles atraem o olhar, interpelam e intimam o
observador, coagem a direção do seu olhar (KANDINSKY, V., 2013: 59)13.
Não há representações de pessoas no quadro, mas há mãos – um braço mecânico
surpreendido a dominar e trespassar o amarelo. Ele evoca o braço do pintor, a ferir o
belo superficial, em busca de um interior oculto. Uma outra mão, mecânica também,

13 «No caso de um indivíduo altamente evoluído, o acesso à alma é de tal modo direto, a alma é tão aberta a
todas as sensações, que qualquer excitação faz reagir instantaneamente o olho – reação que lembra o eco ou
a ressonância de um instrumento de música cujas cordas estimuladas pelo som de um outro instrumento
vibrem em uníssono. Homens com uma sensibilidade assim apurada são como bons violinos com muito uso,
que ao mais pequeno toque vibra intensamente».
44 100 Orpheu Maria Teresa Amado

evoca a paleta do pintor ou a palheta do guitarrista, até uma caixa de fósforos14.


Seja como for, o movimento é o mesmo, ardente, para o interior; a cor vermelha,
misturada com tonalidades metálicas, agride o exterior. E o som é de percussão – ­­­­ ou
por trespassar, ou por tamborinar numa caixa acústica.
O «atelier de pintura» está repleto de telas em processo de experimentação e criação,
de cores, formas, fragmentos e texturas diferentes. Contrasta com a organização
dos três núcleos centrais das guitarras e dos três olhos estruturantes. Sequências
de números e de letras enquadram a composição. Esta organização espacial, por
um lado coesa e por outro, fortuita e de sugestão, assemelha-se à improvisação e à
liberdade sonora e criativa do jazz. Embora haja óbvia presença de guitarras, como
o instrumento musical visualmente dominante, é o som da percussão que inunda o
quadro. Não só dos ferrinhos como das trombetas – ­­ para Kandinsky o amarelo evoca
justamente aquele som.
Do lado direito do quadro há três insetos encarcerados, talvez conservados
dentro do metal. Transmitem vibração, dissonância, mas também o pulsar da vida
primordial. Esta vibração irradiada do quadro não é só dissonância, mas também
contraponto. Amadeo ensaia na pintura o que Scriabin tentou com a sua associação
de tons musicais e de tons coloridos (KANDINSKY, V., 2013: 60).
A profundidade deste quadro vai nascendo da sobreposição. O observador encontra
sempre mais profundidades interiores. Nas camadas primordiais, as cores evocam o
elemento ar, vaporoso. Neste caso, a profundidade é plasticamente e psicologicamente
libertadora. As camadas e as sobreposições pictóricas de Amadeu criam no espaço o
que o jazz ou a música sinfónica moderna tem a notoriedade de criar no tempo.
A inovação, a riqueza e a complexidade desta pintura revelam a força originária de
Amadeo e a angústia criativa no seu processo interior e secreto de procura.
A alma obscura corresponde afinal ao Princípio de Necessidade Interior de Kandinsky.
Obscura enquanto azul, mistério de profundidade infinita de facetas inalcançáveis.

6- Conclusão

Pode dizer-se de Amadeo o que em 1910 Debussy comentou de Stravinsky: um


instintivo génio de cor e ritmo. O músico cria uma nova maneira de compor música
e de a montar. Amadeo segue a mesma via na pintura. Como numa montagem de um
filme, eles cortam as sequências, criam ritmos contrastantes, cortantes e sincopados,

14 Há fósforos colados no canto inferior direito, sobre um pequeno pedaço de madeira e pintados de branco
sujo, quase impercetíveis – aliás, na mesma posição dos incendiários fósforos do quadro Entrada.
A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 45

mudanças bruscas em momentos extremos de imensa energia e poder. Nascem assim


dissonâncias dentro da profundidade.
Num curto período de tempo, entre 1912 e 1917, Amadeo passa dum desenho
elegante, de cadência rítmica, harmónica, e pureza de cores, para composições com
temática musical de grande complexidade construtiva e cromática, de forte impacto
visual e sugestão sonora. Dos XX Dessins e do manuscrito iluminado Légende de Saint
Julien de Flaubert até Par/Ímpar 1 2 1, Arabesco dynamico, à Vida dos Instrumentos,
Trou de la Serrure, Brut 300 TSF e O Atelier de Pintura de Gershwin, é um longo
caminho percorrido.
As pinturas que analisamos não são figurativas. A sugestão da música, e de
sonoridades modernas, vem da vibração das cores, associada a linhas e texturas que
criam a fragmentação de formas, em movimentada e reiterada sobreposição de planos.
De grande vitalidade, despertam, uma emoção íntima que ultrapassa e aprofunda o
ver e traz consigo a sugestão do som.
Os instrumentos, símbolos pictóricos e musicais criados pela intencionalidade
poética de Amadeo, dialogam com a alma obscura do seu criador e envolvem-nos
densamente nesse confronto. Com olhos, fragmentação, fissuras e frechas, deixam
penetrar, mas têm autonomia. Também nos observam.
Finalmente, estas três pinturas analisadas revelam como a fragmentação rítmica
das formas geométricas em jogos de cor, corporizados em composições de estrutura
dinâmica e rigorosa, remetem para uma ordem essencial, para uma duração abstrata,
unificadora da pintura e da música.

Bibliografia

1. Obras de Amadeo de Souza-Cardoso


1.1. Desenhos e Pinturas
Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão/Fundação Calouste
Gulbenkian
Sem título [MIL]. 1916. Desenho. Grafite, guache e aguarela sobre papel. 24 x 19,2 cm.
Inv. nº: 92DP1103
Vida dos Instrumentos. 1916. Óleo sobre tela. 70 x 50 cm. Inv. nº: 88P160
Trou de la serrure PARTO DA VIOLA Bon ménage Fraise avant garde. 1917. Óleo
e pochoir sobre óleo e tela, preparação e verniz. Carimbos. 70 x 58 cm. Inv.
nº: 68P10
Sem título [O «atelier de pintura» de Gershwin]. 1917. Óleo e colagens sobre tela e
madeira. 93,5 x 93,5 cm. Inv. nº: 77P 8
46 100 Orpheu Maria Teresa Amado

1.2. Obra Gráfica


XX DESSINS(1983). DOUCET, Jérome (pref.) Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian/Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. (1º ed.
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LA LÉGENDE DE SAINT JULIEN L’HOSPITALIER DE FLAUBERT
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Maria Filomena (ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro de
Arte Moderna José de Azeredo Perdigão.

1.3. Catálogos e Estudos


AMADEO DE SOUZA-CARDOSO (1998). Madrid: Fundación Juan March – ­­
Fundação Calouste Gulbenkian/Centro de Arte Moderna José de Azeredo
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AMADEO DE SOUZA-CARDOSO. DIÁLOGO DE VANGUARDAS (2006).
FREITAS, Helena de (coord.) Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro
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AMADEO DE SOUZA-CARDOSO FOTOBIOGRAFIA. CATÁLOGO RAISONNÉ.
Vol. I (2007). FREITAS, Helena de (coord.), ALFARO, Catarina (texto).
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro de Arte Moderna José de
Azeredo Perdigão, Assírio & Alvim.
AMADEO DE SOUZA-CARDOSO: PINTURA: CATÁLOGO RAISONNÉ.
Vol. II (2008). FREITAS, Helena de (coord.), Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian/Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Assírio &
Alvim.

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SHATTUCK, Roger (1968). The Banquet Years. The Origins of the Avant-Garde in
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A Vida dos Instrumentos – pureza e ressonância da cor em Amadeo de Souza-Cardoso 47

3. Webgrafia

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Disponível em: <http://www.petruschkaklavierfestival.de/index.asp?level
1=2&level2=2&page=0&pdt=4&lang=2 - id_jealous>. [Consultado em 25
de fevereiro 2015].
Palhaçadas e Coisas Sérias

Nuno Amado
FLUL

Palavras-chave: Orpheu; Palhaçadas; Provincianismo; Côrtes-Rodrigues; Sá-Carneiro.


Resumo: A 19 de Janeiro de 1915, Pessoa confidencia a Côrtes-Rodrigues uma
«incompatibilidade profunda com as criaturas que me cercam». Pelo que é dito de seguida
na mesma carta, é razoável sustentar que as criaturas com as quais se incompatibilizou são
as mesmas criaturas das quais se fez cercar, dois meses depois, para lançar a revista Orpheu.
Se assim é, a «ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e de um
plebeísmo artístico insuportável, de querer épater», que Pessoa associa a tais criaturas e que
confessa a Côrtes-Rodrigues que já não tem, haveria de ser retomada não muito tempo depois.
Ao colaborar em Orpheu, associando-se de novo a «todos quantos fazem arte para vários fins
inferiores», Pessoa cede, portanto, à atitude que descrevera como condizente com a atitude de
um palhaço e da qual se sentia «afastado de achar graça» dois meses antes.

Ao escrever a Armando Côrtes-Rodrigues a 19 de Janeiro de 1915, Pessoa


confidencia uma «incompatibilidade profunda com as criaturas que me cercam»
(PESSOA, F., 1999: 140). Poucos parágrafos antes, explicara que não podia falar com
outro amigo que não Côrtes-Rodrigues porque só ele o compreendia espiritualmente.
Dois meses antes do lançamento da revista Orpheu, Côrtes-Rodrigues parece assim
o amigo mais íntimo de Pessoa. É, além disso, a única criatura, das que «de perto
literariamente [o] cercam», que possui a consciência «da terrível importância, da
Vida, essa consciência que nos impossibilita de fazer arte meramente pela arte, e sem a
consciência de um dever a cumprir para com nós-próprios e para com a humanidade»
(PESSOA, F., 1999: 139).
A crise de incompatibilidade com os outros a que Pessoa se reporta nesta carta,
devida portanto a certas motivações artísticas, arrastava-se desde o início de Setembro
do ano anterior. Aquilo que o preocupava nessa altura era, porém, «a necessidade
de dar ao conjunto da minha orientação, tanto intelectual como ‘existente na vida’,
uma linha metódica e lógica» (PESSOA, F., 1999: 120-121). O que Pessoa diz logo de
seguida faz supor que a indisciplina mental em que consiste a crise de Setembro está
intimamente relacionada com o aparecimento, poucos meses antes, da heteronímia:
«quero disciplinar a minha vida (e, consequentemente, a minha obra) como a um
50 100 Orpheu Nuno Amado

estado anárquico, anárquico pelo próprio excesso de «forças vivas» em acção, conflito
e evolução interconexa e divergente» (PESSOA, F., 1999: 120-121). A ser assim, é
razoável afirmar que se tratam de duas crises diferentes, ainda que uma esteja na
origem da outra: a crise de indisciplina interior motivada por não saber o que fazer
com a heteronímia transformou-se, com a disciplina que a veio corrigir, numa crise
de incompatibilidade com os outros.
Essa correcção parece alcançada, ou perto disso, a 4 de Dezembro, pois Pessoa
fala a Côrtes-Rodrigues no seu «curioso estado de espírito actual» e anuncia «uma,
não menos curiosa, evolução que se tem dado em mim ultimamente» (PESSOA, F.,
1999: 134). É, aliás, possível precisar o dia em que essa evolução teve início. Num
manuscrito datado de 21 de Novembro de 19141, Pessoa diz que tomou «de vez a
decisão de ser Eu, de viver á altura do meu mister», e que reentrou de vez «na posse
plena do meu Genio e na divina consciência da minha Missão» (PESSOA, F., 2009:
117), exactamente algumas das coisas que diria a Côrtes-Rodrigues apenas dois meses
mais tarde. Pouco depois, acrescenta: «um raio hoje deslumbrou-me de lucidez.
Nasci» (PESSOA, F., 2009: 118). No final do manuscrito, de resto, Pessoa lembra-se
de registar a importância de notificar Côrtes-Rodrigues a respeito desta resolução, o
que torna inequívoca a relação entre a mudança que ocorreu naquele dia e o estado de
espírito resoluto que transparece na carta de 19 de Janeiro: «é o C[ôrtes] R[odrigues]
quem, de todos, melhor e mais dentro me comprehende. Diser-lhe isto» (PESSOA, F.,
2009: 119).
A 19 de Janeiro, a crise de que Pessoa fala já «não é de incompatibilidade [consigo]
próprio», como fora antes. Como faz questão de explicar a Côrtes-Rodrigues, «a
minha, gradualmente adquirida, auto-disciplina, tem conseguido unificar dentro
de mim quantos divergentes elementos do meu carácter eram susceptíveis de
harmonização» (PESSOA, F., 1999: 139). A explicação anterior é de tal forma
categórica quanto à evolução de que Pessoa falara anteriormente que é difícil ignorar
a diferença. No início de 1915, o problema de orientação artística que o aparecimento
dos heterónimos tinha criado fora vencido, e Pessoa sabia agora exactamente o que a
esse respeito se lhe impunha.
Em certa medida, a carta de 19 de Janeiro é norteada pela distinção entre actividades
artísticas sinceras e actividades artísticas insinceras: por actividades sinceras entende

1 Este manuscrito tem sido publicado ora como entrada de diário, opção tomada por Richard Zenith em
Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal (2003), ora como parte de um conjunto mais amplo
de textos sobre teoria estética, que é como o publica Jerónimo Pizarro em Sensacionismo e outros Ismos (2009).
Creio, no entanto, que a proximidade àquilo que Pessoa haveria de dizer a Côrtes-Rodrigues na carta de 19 de
Janeiro é flagrante e que tanto o tom, como os termos que Pessoa usa para descrever a sua evolução interior
permite pensar no texto como o ponto de partida, se não mesmo o rascunho, dessa carta.
Palhaçadas e Coisas Sérias 51

todas aquelas que resultam da «consciência cada vez maior da terrível e religiosa
missão que todo o homem de génio recebe de Deus com o seu génio» (PESSOA,
F., 1999: 140); actividades insinceras, inversamente, são todas aquelas que associa
à «ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e de um
plebeísmo artístico insuportável, de querer épater», ou seja, «tudo quanto é futilidade
literária, mera-arte», coisas que gradualmente lhe iam soando «cada vez mais a oco e
repugnante» (PESSOA, F., 1999: 140). Tudo isto aponta para o facto de, alguns meses
antes do lançamento de Orpheu, Pessoa estar inclinado a seguir um rumo diferente
daquele que viria de facto a seguir, com esse lançamento e com tudo o que lhe sucedeu.
A atitude plebeia que associava agora ao grupo de poetas do qual acabaria por
ser o máximo representante leva-o, por exemplo, a perder o entusiasmo inerente «à
ideia do lançamento do Interseccionismo», a enjeitar a publicação do «Manifesto
‘escandaloso’», a perceber o grau de insinceridade que havia em «coisas feitas para
fazer pasmar», em coisas «que não contêm uma fundamental ideia metafísica, isto é,
por onde não passa, ainda que como um vento, uma noção da gravidade e do mistério
da Vida», em tudo aquilo que, em suma, não é «escrito dramaticamente» (PESSOA, F.,
1999: 142), como o é a obra de cada um dos heterónimos. À excepção do que escrevera
nos últimos nove meses em nome de Caeiro, Reis e Campos, Pessoa parece renunciar
a tudo aquilo que de mais importante criara até à altura: «não são sérios os Paúis,
nem seria o Manifesto interseccionista de que uma vez lhe li trechos desconexos»
(PESSOA, F., 1999: 142-143), diz Pessoa a Côrtes-Rodrigues. O paulismo e o seu
sucedâneo, o interseccionismo, duas das vertentes da sua obra sobre as quais fundara
mais expectativas e que, não muito tempo antes, muito animavam a correspondência
com Sá-Carneiro, inserem-se assim na categoria de coisas insinceras de que Pessoa
tenta aqui desculpar-se. Em coisas como essas - remata Pessoa - «a minha atitude
para com o público é a de um palhaço» (PESSOA, F., 1999: 143).
Compare-se novamente o que é dito nesta carta com o que Pessoa escreveu no texto
de 21 de Novembro de 1914 em que descreve o seu renascimento deslumbrante. Tal
como na carta, o que Pessoa considera desprezível, neste texto, é «a idéa do reclame,
e plebêa sociabilização de mim, do Interseccionismo» (PESSOA, F., 2009: 117); tal
como na carta, também no texto a mudança de atitude decorre de estar «de volta da
minha viagem de impressões pelos outros» e de reentrar de vez «na posse plena do
meu Genio e na divina consciência da minha Missão» (PESSOA, F., 2009: 117); tal
como na carta, também no texto é descrita a libertação da influência dos outros e,
por conseguinte, uma recuperação da posse de si: «o ultimo rasto de influencia dos
outros no meu caracter cessou com isto. Recobrei – ao sentir que podia e ia dominar
o desejo intenso e infantil de ‘lançar o interseccionismo’ – a tranquila posse de mim»
(PESSOA, F., 2009: 117).
52 100 Orpheu Nuno Amado

A crise de incompatibilidade com os outros que Pessoa confidencia a 19 de Janeiro


de 1915 resulta, pois, da resolução de uma crise de tipo diferente. Se isso era já bastante
evidente na carta a Côrtes-Rodrigues, neste rascunho ainda o é mais: «As m[inhas]
angustias espirituais continuarão em muitos pontos; mas n’um cessaram, na busca
de mim que, no amago de tudo, me trazia irrequieto porque não me encontrára»
(PESSOA, F., 2009: 118). Mais ainda, é também de certas palhaçadas que, no texto,
Pessoa anuncia distanciar-se: «nada de desafios á plebe, nada de girândolas para
o riso ou a raiva dos inferiores. A superioridade não se mascara de palhaço; é de
renuncia e de silencio que se veste» (PESSOA, F., 2009: 117). Entreter, pasmar,
desafiar, provocar, ou escandalizar o público, de modo a obter efeitos extremos
como o riso ou a raiva, são portanto palhaçadas de que, dada a sua superioridade,
se deve abster.
A distinção que parece interessar a Pessoa é assim a que opõe palhaçadas a
coisas sérias, e é por se sentir «afastado de achar graça» (PESSOA, F., 1999: 143)
a todo o género de palhaçadas que, no fundo, se sente incompatibilizado com os
outros. Os palhaços desta história, por mais surpreendente que pareça a quem se
habituou a ouvir falar de Pessoa essencialmente como um poeta de Orpheu, são
os colegas órficos. Num texto que será contemporâneo da crise psíquica de que
começa a dar conta a Côrtes-Rodrigues em Setembro de 1914, Pessoa exemplifica
o excesso de artificialidade que agora atribuía à estética paúlica justamente através
dos exageros de Guilherme de Santa-Rita. O paulismo é assim uma «intoxicação de
artificialidade», qualquer coisa que consiste em fingir «ser doido e achando graça a
pensar simililoucamente» e que atinge a sua expressão máxima nesse «pobre rapaz
em quem o artifício suprime a falta de originalidade real» (PESSOA, F., 2003: 146).
Parece relativamente fácil, portanto, associar as palhaçadas a que Pessoa se refere a
Santa-Rita. Mais laborioso será associá-las a Sá-Carneiro.
Na carta que escreve a 14 de Maio de 1913, Sá-Carneiro cita a seguinte frase de
Pessoa a propósito da estreiteza da Renascença Portuguesa: «O que é preciso é ter um
pouco de Europa na alma» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 88). Num apontamento, que
com certeza, antecede a carta em que Pessoa o diz a Sá-Carneiro, esta preocupação
aparece melhor explicada:

O que é preciso ter é, além de cultura, uma noção do meio internacional, de não ter a alma
(ainda que obscuramente) limitada pela nacionalidade. Cultura não basta. É preciso ter a
alma na Europa. Escrever ao Sá-Carneiro expondo a nova orientação que é preciso tomar.
(PESSOA, F., 2009: 29)
Palhaçadas e Coisas Sérias 53

Ter ou não ter Europa na alma, eis então o que faz Pessoa balançar. A ideia é
retomada no rascunho de uma carta a Sá-Carneiro que Manuela Parreira da Silva,
com boas razões, situa algures em 19132. Aí, Pessoa apresenta um contraste exemplar
entre a mediocridade de alguns dos mais aclamados escritores portugueses da época
e a escrita do seu interlocutor: «v. escreve europeiamente! V. escreve sem ver a pátria,
e a sua obra, que eu creio genial, esbarra com o provincianismo constante da nossa
atitude. Para nós o universo está entre Mesão e Vila Real de Santo António.» (PESSOA,
F., 1999: 102). Ter Europa na alma, aquilo que faz com que Pessoa, pelo menos a
partir de Maio de 1913, manifestamente se afaste da Renascença e se aproxime de
Sá-Carneiro, parece ser então, em certa medida, fugir a ser provinciano.
A história desta fuga compreende, entre outras coisas, a adesão ao paulismo que
tanta histeria haveria de provocar em Sá-Carneiro, pelo que a mudança de opinião de
Pessoa a respeito da estética paúlica tem de ser um momento-chave de tal história.
Numa carta de dia 20 de Julho de 1914, Sá-Carneiro acusa a recepção de uma carta
na qual Pessoa terá associado o estado de alma do amigo a uma certa artificialidade.
Seja o que for que Pessoa lhe tenha dito, Sá-Carneiro concorda que já não tem estados
de alma, revela que nada sabe quanto à sua «vida artística», mas defende-se dizendo
que «esta mesma artificialização, este mesmo embalsamamento a salva, porque a fixa»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 131). É talvez possível especular, interpretando as palavras
com que se defende, que Pessoa se tenha queixado da artificialidade de Sá-Carneiro, e
que este tenha sentido necessidade de explicar a utilidade artística dessa artificialidade.
Mais ainda, é talvez possível especular, principalmente porque Sá-Carneiro emprega
o termo, que Pessoa tenha associado essa artificialidade precisamente ao paulismo:
«era desnecessário repetir-me a sua sinceridade dentro dela [a carta recebida], por
causa da literatura com que a ungiu. Eu nunca duvido dela em você – e foi-me mesmo
deveras grato esse paulismo intermediário...» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 131). O que
estou, de algum modo, a insinuar é que Pessoa terá sugerido que a atitude paúlica, a
que atribuiria agora uma artificialidade indesejada, deveria ser encarada como uma
atitude meramente intermediária. Assim se explica também, parece-me, o termo que
Sá-Carneiro emprega, algumas linhas depois, ao recomendar que Pessoa enviasse
uma colaboração para a revista Labareda, que surgira no Porto no início de Junho:
«Você é claro que faz muito bem em mandar para lá ultrapaulismo, mas bem ultra!»
(SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 132).

2 Percebe-se, por aquilo que Pessoa diz no rascunho da carta, que Sá-Carneiro fizera publicar um artigo que
poderia valer-lhe algumas represálias. Segundo Manuela Parreira da Silva, é possível que Pessoa se estivesse
a referir ao artigo «O Teatro-Arte», publicado no jornal O Rebate, a 28 de Novembro de 1913, no qual
Sá-Carneiro «critica fortemente alguns dos visados» (PESSOA, F., 1999: 423) por Pessoa neste rascunho,
nomeadamente João de Barros, Joaquim Manso e Júlio Dantas.
54 100 Orpheu Nuno Amado

Pessoa haveria de documentar a descoberta de «um novo género de paúlismo»


(PESSOA, F., 1999: 124) numa carta a Côrtes-Rodrigues de 4 de Outubro desse ano.
Não é inverosímil que a passagem de um paulismo velho e artificial a um novo sem
artificialidade se relacione com o aparecimento dos heterónimos poucos meses antes
e, sobretudo, com a sinceridade com que haveria de caracterizá-los a Côrtes-Rodrigues
a 19 de Janeiro de 1915. Parece confirmar esta relação, aliás, o facto de Sá-Carneiro,
ainda na mesma carta de 20 de Julho de 1914, considerar curioso o que Pessoa lhe
dissera «sobre o seu desdobramento em várias personagens – e o sentir-se mais eles,
às vezes, do que você próprio» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 132). Sentir-se mais os
heterónimos do que ele próprio é outra maneira de dizer que é mais sincera a obra
de Caeiro, Reis e Campos do que a sua, e era para isso que Pessoa, já nessa altura,
orientava a sua atenção.
A carta de Pessoa a que Sá-Carneiro responde a 20 de Julho é uma resposta à carta
que Sá-Carneiro enviara de Paris no dia 13, a qual, por sua vez, é uma resposta a uma
carta enviada por Pessoa no dia 10. Serão dessa altura os primeiros sinais da crise de
que falará preferencialmente a Côrtes-Rodrigues a partir de Setembro. Pelas palavras
de Sá-Carneiro na carta de dia 13, é perceptível que Pessoa se considerava cada vez
mais exilado da capacidade de sentir, o que, em seu entender, não inviabilizava que
não possuísse outra capacidade, a de saber sentir:

Desdobre-se você como se desdobrar, sinta-de-fora a como quiser, o certo é que quem pode
escrever essas páginas, se não sente, sabe genialmente sentir, aquilo de que me confessa mais
e mais cada dia se exilar. Saber sentir e sentir, meu Amigo, afigura-se-me qualquer coisa de
muito próximo. (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 123)

Parece assim mais ou menos claro que a possibilidade de desdobramento que os


heterónimos garantiam a Pessoa introduzira um problema de expressão. A relação
entre as duas coisas é ainda mais evidente poucas linhas depois: «quer ver, eu encontro
uma explicação fácil para o facto de justamente após o caso Álvaro de Campos você se
sentir mais afastado do mundo» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 123). A explicação que
Sá-Carneiro dá para a sensação de exilado de Pessoa é extraordinária não só porque
apresenta uma distinção claríssima entre a atitude artística dos dois poetas como por
basear essa distinção, ainda que involuntariamente, no seu próprio provincianismo:

Oiça: Eu amo incomparavelmente mais Paris, eu vejo-o bem mais nitidamente e


compreendo-o em bem maior lucidez longe dele, por Lisboa, do que aqui, nos seus
boulevards onde até, confesso-lhe meu Amigo, por vezes eu lhe sou infiel e, em vislumbre,
me lembro até da sua desnecessidade para a minha alma, para a minha emoção... Assim
Palhaçadas e Coisas Sérias 55

em você, meu Amigo, é isso só: não sente já ânsia de conhecer cidades, Europa, progresso,
porque tudo isso você viajou, hiperviajou, hiperconhece, hiperpossui ao escrever a sua
admirável obra. (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 123-124)

O provincianismo que identifico nestas palavras de Sá-Carneiro não é, a bem dizer,


exactamente o mesmo que Pessoa atribuíra aos saudosistas, em 1913, mas o síndroma a
que se poderia reduzir «o mal superior português» (PESSOA, F., 2000: 371), de acordo
com o famoso texto sobre provincianismo publicado a 12 de Agosto de 1928 n’O
Notícias Ilustrado. Se, em 1913, Pessoa empregava o termo para distinguir aqueles que
não viam para lá das fronteiras nacionais daqueles que, como Sá-Carneiro, escreviam
«europeiamente» (PESSOA, F., 1999: 102), em 1928 haveria de empregá-lo a respeito
de um comportamento diferente. A caracterização do provincianismo de Sá-Carneiro
em «O Provincianismo Português» é de tal modo parecida com o que acabei de citar
da carta de 13 de Julho que me parece razoável sugerir que é ao verificar que, afinal, o
amigo não era menos provinciano do que os outros que se origina a incompatibilidade
de que Pessoa se queixará meses mais tarde. Vejam-se as semelhanças:

Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes


meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é
parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas.
Recordo-me de que uma vez, nos tempos do Orpheu, disse a Mário de Sá-Carneiro: “Você é
europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa você é vítima da sua educação portuguesa.
Você admira Paris, admira as grandes cidades. Se você tivesse sido educado no estrangeiro,
e sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes cidades.
Estavam todas dentro de si”. (PESSOA, F., 2000: 371)

Na carta de 13 de Julho, Sá-Carneiro tenta dizer a Pessoa que o exílio em que se


encontra é consequência do desdobramento heteronímico que lhe permitiu superar
interiormente uma ânsia que ele, Sá-Carneiro, só podia superar estando fisicamente
em Paris. É como se, de certo modo, Pessoa tivesse vencido, através da literatura, a
necessidade de ser parisiense que Sá-Carneiro só podia vencer vivendo em Paris. As
duas formas de superação não são, todavia, igualmente produtivas. A ânsia de Paris, que
Sá-Carneiro supera indo para Paris, é a causa primeira da sua obra, pelo que superá-la
é contraproducente. Assim se explica que, pouco depois, diga que tudo acabou «após a
minha chegada aqui», que se sinta «o embalsamemento de mim próprio», que «estados
de alma, ânsias, tristezas, ideias, grandes torturas de que saíam os meus livros tudo isso
acabou» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 124). Sem a ânsia de Paris, Sá-Carneiro deixa de ser
capaz de sentir suficientemente aquilo por que ansiava e deixa de ser capaz de escrever.
56 100 Orpheu Nuno Amado

Por saber sentir, Pessoa «hiperviajou, hiperconheceu, hiperpossui» (SÁ-CARNEIRO,


M., 2001: 124) o que Sá-Carneiro, ao viajar, ao conhecer e ao possuir, deixou de poder
sentir. Nos termos da acusação expressa em «O Provincianismo Português», admirar
Paris era o que tornava possível a Sá-Carneiro senti-lo suficientemente. A partir do
momento em que obteve o que ansiava e se tornou, à sua maneira, parisiense, deixou
de admirar Paris porque, como Pessoa explica no texto, «um parisiense não admira Paris;
gosta de Paris» (PESSOA, F., 2000: 371). Dizendo de outro modo, o que Sá-Carneiro
demonstra na carta de 13 de Julho de 1914, ao explicar que já não tem estados de alma
aos quais possa dar expressão artística porque já não pode senão gostar de Paris, é que
a sua actividade de poeta é intrinsecamente provinciana.
Em meados de Julho de 1914, Pessoa percebia então que ter demasiada Europa
na alma podia conduzir ao mesmo provincianismo a que a falta dela conduzia.
Conquanto não tivesse o entusiasmo de Guilherme de Santa-Rita e não fosse, como
Raul Leal, «um pouco Orfeu de mais» (SÁ-CARNEIRO, M., 2001: 234), Sá-Carneiro
sofria do mal comum a todos eles de não saber escrever senão sobre aquilo que deveras
sentia. A sua obra dependia da sua «admiração pelos grandes meios» (PESSOA, F.,
2000: 371) e, sem essa admiração, não era capaz de exprimir-se. Este provincianismo
expressivo parece assim um mal comum a todos os que, com ou sem Europa na alma,
expressam o que sentem, e só pode escapar-lhe quem, além de sentir, souber sentir.
O principal aspecto do provincianismo a que Pessoa se reporta em «O
Provincianismo Português» não é, aliás, outro que não o seu aspecto expressivo: «é na
incapacidade de ironia que reside o traço mais profundo do provincianismo mental»
(PESSOA, F., 2000: 372). Entendendo por ironia «o dizer uma coisa para dizer o
contrário», argumenta Pessoa que ela exige «um domínio absoluto da expressão» e
ainda «aquilo a que os ingleses chamam ‘detachment’ – o poder de afastar-se de si
mesmo, de dividir-se em dois» ou, «em outras palavras, o não se ser provinciano»
(PESSOA, F., 2000: 373). Assim, é provinciano todo aquele que, não sendo capaz
de desdobrar-se, consegue exprimir apenas aquilo que exactamente sente ou pensa.
Na carta de 13 de Julho de 1914, Sá-Carneiro revelara tanto essa incapacidade de
desdobramento como a incapacidade para exprimir outra coisa que não aquilo
que deveras admirava. A coincidência entre a inclinação para o provincianismo e
a incapacidade para dar expressão a emoções que não se têm é ainda mais flagrante
no final de «O Caso Mental Português», um texto publicado na revista Fama a 30 de
Novembro de 1932:

O mesmo provincianismo se nota na esfera da emoção. A pobreza, a monotonia da emoção


nos nossos homens de talento literário e artístico, salta ao coração e confrange a inteligência.
Emoção viva, sim, como aliás era de esperar, mas sempre a mesma, sempre simples, sempre
Palhaçadas e Coisas Sérias 57

simples emoção, sem auxílio crítico da inteligência ou da cultura. A ironia emotiva, a


subtileza passional, a contradição no sentimento – não as encontrareis em nenhum dos
nossos poetas emotivos, e são quase todos emotivos. Escrevem, em matéria do que sentem,
como escreveria o pai Adão, se tivesse dado à humanidade, além do mau exemplo já sabido,
o, ainda pior, de escrever. (PESSOA, F., 2000: 440)

O provincianismo dos poetas portugueses, de acordo com este exame, provém


da incapacidade, comum a todos eles, de escrever sobre outra coisa que não sobre
as emoções que têm, da incapacidade, na esfera da emoções, para ironizarem. A
habilidade para a ironia a que Pessoa atribui tanta importância em «O Provincianismo
Português» e que aqui volta a servir de contraste ao provincianismo não é mais do que
aquilo a que se convencionou chamar «fingimento» e que, ao contrário do que se
poderia talvez supor, corresponde ao que Pessoa, desde 1915, chama «sinceridade».
É essa habilidade dramática que o aparecimento dos heterónimos permite a Pessoa
desenvolver, e é o gradual desenvolvimento dela, em contraste com a artificialidade
que consiste em não filtrar racionalmente aquilo que provém das emoções, que o irá
afastar de Sá-Carneiro e restante companhia órfica.
Ainda no final de «O Caso Mental Português», Pessoa completa a sua análise aos
poetas portugueses dando a entender, precisamente, que é por não padecer desse
provincianismo expressivo que se distingue de todos eles. Percebendo que um poema
é «uma carne de emoção cobrindo um esqueleto de raciocínio», Pessoa não incorre
no erro de todos esses poetas, que «escrevem ou artistam ao sabor da chamada
‘inspiração’» (PESSOA, F., 2000: 440). Precavido contra isso, não peca, portanto, em
não submeter essa inspiração «à transmutação alquímica da consciência», por não
transformar emoções abstractas, através de «uma aplicação centrípeta da vontade»
(PESSOA, F., 2000: 440), numa coisa diferente.
De acordo com o argumento central de «O Caso Mental Português», há três formas
de reagir à artificialidade em que consiste o progresso: os que detestam o progresso são
como campónios; os que o amam são como provincianos; e os que lhe ficam indiferentes
são como citadinos. Nos termos deste texto, não ter Europa na alma, aquilo que
caracteriza a geração saudosista, é então a atitude do campónio e não a do provinciano.
Posto assim, o mal que resulta de ter demasiada Europa na alma não é exactamente o
mesmo que o mal que resulta de não tê-la, como o fazia supor o termo empregue por
Pessoa na carta de 1913 a Sá-Carneiro que motivou a minha insinuação: «V. escreve sem
ver a pátria e a sua obra, que eu creio genial, esbarra com o provincianismo constante
da nossa atitude» (PESSOA, F., 1999: 102). Usando, pois, a distinção ensaiada no texto
de 1932, Pessoa afastara-se dos campónios da Renascença ao aproximar-se, em 1913, de
Sá-Carneiro, mas afastar-se-ia também, no final de 1914, dos provincianos de Orpheu.
58 100 Orpheu Nuno Amado

Segundo este argumento, a crise psíquica que Pessoa confessa a Côrtes-Rodrigues


no início de Setembro de 1914 e que, como tentei mostrar, se transformaria alguns
meses depois numa crise de natureza diferente, é motivada pela descoberta de que
não era tão civilizado quanto se supunha. Como o demonstra o último parágrafo
de «O Provincianismo Português», é precisamente dessa suposição que se alimenta
o provincianismo. O esforço de fugir a ser campónio, encetado a partir de 1913,
trouxera Pessoa, afinal, apenas a ser provinciano:

Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo


vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos
civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na
consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que
está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos
que sonhamos. (PESSOA, F., 2000: 373)

Em Julho de 1914, Pessoa começa, pois, a adquirir consciência do provincianismo


de que padecia; ao saber-se um doido entre doidos, deixa então de ser doido. Mais do
que um período de crise, como o sugere a correspondência com Côrtes-Rodrigues,
o segundo semestre de 1914 foi, portanto, um período de convalescença.
A 21 de Novembro de 1914, data do texto com o qual fui comparando a carta
de 19 de Janeiro de 1915 a Côrtes-Rodrigues, a convalescença chegara ao fim e
estava curado. Nessa altura, já não estava apenas «perto de acordar» (PPV 376);
de tal modo acordava que era como se nascesse: «um raio hoje deslumbrou-me
de lucidez. Nasci» (PESSOA, F., 2009: 117). Uma vez que, em «O Caso Mental
Português», Pessoa compara o provinciano a uma criança por ser, como ela, «um
espírito desperto, mas incompletamente desperto» (PESSOA, F., 2000: 438), é
admissível que, a 21 de Novembro, depois de alguns meses de convalescença, o seu
espírito despertasse por completo e se desviasse para sempre do provincianismo a
que fora conduzido desde que incautamente se desviara do grupo de campónios da
Renascença Portuguesa. No mesmo texto de 21 de Novembro, de resto, esse desvio
é tão necessário que se impõe um regresso a qualquer coisa associada à Renascença:
«Cessaram as grotescas vontades de erigir uma Europa; voltou a mim o desejo de
auxiliar e colaborar com a Renascença, porque para o anarquismo intelectual, social
em mim o caminho é aquelle. De alli é que se pode agir sobre a Pátria» (PESSOA,
F., 2009: 118).
O argumento que fui ensaiando levanta um problema. Se, no final de 1914, Pessoa
estava decidido a enveredar por um caminho distinto daquele que tinha percorrido
desde que se aproximara de Sá-Carneiro, como é que se explica o aparecimento,
Palhaçadas e Coisas Sérias 59

apenas alguns meses mais tarde, de Orpheu? Por outras palavras, para que servem
palhaçadas a que se deixou de achar graça? A carta de 19 de Janeiro de 1915 a
Côrtes-Rodrigues é, a esse respeito, mais uma vez esclarecedora:

Será talvez útil – penso – lançar essa corrente como corrente, mas não com fins meramente
artísticos, mas, pensando esse acto a fundo, como uma série de ideias que urge atirar para
a publicidade para que possam agir sobre o psiquismo nacional, que precisa trabalhado
e percorrido em todas as direcções por novas correntes de ideias e emoções que nos
arranquem à nossa estagnação. (PESSOA, F., 1999: 141)

Admitindo que as palhaçadas de que Pessoa fala a Côrtes-Rodrigues correspondem,


em larga medida, às manifestações artísticas de Orpheu, a revista seria importante, na
perspectiva de Pessoa, para preparar o público, arrancando-o da estagnação mental
em que se encontrava, para coisas mais sérias. De certo modo, é talvez possível dizer
que Orpheu, roubando as palavras de um dos poemas mais famosos de Pessoa, não foi
mais do que «um terraço / sobre outra cousa ainda», sendo que «essa cousa» sobre a
qual esse terraço foi edificado «é que é linda» (PESSOA, F., 1998: 95).

Bibliografia Final

PESSOA, Fernando (1998). Ficções do Interlúdio: 1914-1935 (ed. Fernando Cabral


Martins). Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (1999). Correspondência: 1905-1922 (ed. Manuela Parreira da
Silva). Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2000). Crítica: ensaios, artigos e entrevistas (ed. Fernando
Cabral Martins). Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2003). Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão
Pessoal (ed. Richard Zenith). Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (2009). Sensacionismo e outros Ismos (ed. Jerónimo Pizarro).
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (2001). Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando
Pessoa (ed. Manuela Parreira da Silva). Lisboa: Assírio & Alvim.
Orpheu na PO.EX:
A tradição em movimento

André Luiz do Amaral


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Campus de São José do Rio Preto

Palavras-chave: Intertextualidade; Tradição; Revistas Literárias; Poesia Experimental; Orpheu.


Resumo: Herberto Helder afirma, na introdução de Poesia Experimental I, que a “tradição é um
movimento” constantemente rearticulado pela experimentação da linguagem. Por isso mesmo,
é na linguagem que acontece o encontro de dois movimentos de vanguarda: Orpheu torna-se
fundamental para o Experimentalismo dos anos 60 porque inaugura as principais inovações
na moderna poesia portuguesa, da medida do verso ao rigor estrutural. A proposta desta
comunicação é, portanto, realizar uma análise das influências explícitas e implícitas exercidas
por Orpheu nos dois números de Poesia Experimental (PO.EX), publicados, respectivamente,
em 1964 e 1966. Neles, Ângelo Lima recebe lugar de destaque, mas é Fernando Pessoa,
ortônimo e heterônimos, quem assume o papel de oráculo dos poetas experimentais. Em cada
um dos textos aqui referidos, o legado de Orpheu é compreendido através de releituras críticas,
tensivas e plagiotrópicas, isto é, por meio de uma operação tradutória da tradição.

Lançado em 1964, às vésperas do cinquentenário de Orpheu, Poesia experimental:


1º Caderno Antológico exibia algumas das marcas distintivas do Experimentalismo,
dentre elas o intenso diálogo com a tradição como fundamento da criação literária,
conforme a “Introdução” assinada por Herberto Helder:

Porque a tradição é um movimento. Em princípio, não existe nenhum trabalho criativo que
não seja experimental, nesse sentido de que ele supõe vigilância sobre o desgaste dos meios
que utiliza e que procura constantemente recarregar de capacidade de exercício. A linguagem
encontra-se sempre ameaçada pelos perigos da inadequação e da invalidez. É algo que, no seu
uso, se gasta e refaz, se perde e ajusta, se organiza, desorganiza e reorganiza – se experimenta.
Como diria um poeta, essa é a própria lição das coisas (HELDER, H., 1964: 6).

Para pôr em prática a preconizada reatualização da tradição, Poesia Experimental I


organiza uma antologia fragmentária, que pretende congregar os poetas contemporâneos
ligados ao experimentalismo e aqueles que formam seu paideuma. A revista apresenta,
62 100 Orpheu André Luiz do Amaral

na primeira seção, textos visuais de António Aragão, poemas diversos de António


Barahona da Fonseca e António Ramos Rosa, além de criações de E. M. de Melo e Castro,
Herberto Helder e Salette Tavares. Na segunda seção, denominada “Antologia”, estão
os mais diferentes poetas e poemas: Camões, com “Os chamados disparates da Índia”;
Ângelo de Lima, com “Eddora Addio… - Mia Soave!”; Mário Cesariny de Vasconcelos,
com “Ditirambo”; Emilio Villa, com “Carta para Ruggero Jacobbi” e, finalmente, o
poeta e místico barroco alemão Quirinus Kuhlman, em tradução de António Ramos
Rosa. Outro dado de interesse é a data de publicação, inscrita sob cada um dos poemas.
Com tal ajuntamento incomum, os cadernos visam “reunir experiências portuguesas e
algumas estrangeiras em curso”, mas “também exemplificar, com o passado, essa mesma
alertada consciência da evolução das formas” (HELDER, H., 1964: 6), tendência que
persiste no segundo caderno, publicado em 1966.
Poesia Experimental II conta com textos de António Aragão, António Barahona da
Fonseca, Edgar Braga, Ian Hamilton Finlay, Emilio Villa, Mario Diacono, Mike Weaver,
Henri Chopin, Haroldo de Campos, Ana Hatherly, Herberto Helder, Luiza Neto Jorge,
José-Alberto Marques, E. M. de Melo e Castro, Álvaro Neto, Salette Tavares, Pedro
Xisto e Jorge Peixinho. Restrita a poetas contemporâneos enquanto mantém o caráter
internacional, neste segundo número a revista prescinde da seção antológica, isto
porque a presença dos poetas tradicionais está já disseminada nos textos atuais, os quais
entrelaçam influências barrocas, classicistas e modernistas, num gesto plagiotrópico que
se define, de acordo com Haroldo de Campos, como “tradução da tradição, em sentido
não necessariamente retilíneo” (CAMPOS, H., 1997: 48). Nos dois números da PO.EX
essa mecânica tradutória se fortalece sobre os rasgos da tradição mais adequados às
potencialidades de experimentação da linguagem e historicamente mais significativos:
Camões e os poetas d’Orpheu. Camões é glosado em vários textos, com destaque para
“A máquina de emaranhar paisagens”, de Herberto Helder, que fragmenta trechos de
do Canto I dos Lusíadas, misturados a referências bíblicas e outros versos camonianos
esparsos. É também Camões quem abre a “Antologia” do primeiro número e sobre seus
motes Melo e Castro e Ana Hatherly realizariam, mais tarde, diversas experimentações,
como demonstrou Maria dos Prazeres Gomes em Outrora Agora: relações dialógicas
na poesia portuguesa de invenção (GOMES, M., 1993: 34-94)1. Já as influências de
Orpheu são menos evidentes e merecem considerações mais detalhadas2, a começar

1 Veja-se, também, o ensaio de Rui Torres (2006).


2 No importante livro Pessoa e a moderna poesia portuguesa – do “Orpheu” a 1960, Fernando J. B. Martinho
explicita a reverberação de Orpheu na obra individual de poetas experimentais como Ana Hatherly, E. M. de
Melo e Castro e Salette Tavares (MARTINHO, F. J. B., 1983: 143-145).. Nossa proposta, entretanto, é diferente
daquela, pois nosso enfoque não está nas criações individuais desses ou de outros poetas, mas especificamente
na maneira como essas criações se organizam nos dois números da PO.EX.
Orpheu na PO.EX: A tradição em movimento 63

pela presença do poema “Eddora Addio… - Mia Soave!”, de Ângelo de Lima,


logo depois de Camões na seção antológica do primeiro caderno. Publicado
originalmente no segundo número de Orpheu, o poema é dedicado “aos meus
amigos d‘Orpheu” e, abaixo dele, consta a data de 1915. Sobre este poema escreve
E. M. de Melo e Castro:

No caso de Ângelo de Lima, o uso inusitado de maiúsculas, a aparente desarticulação


sintática, a inovação vocabular, a pontuação criadora, a indeterminação semântica,
constituem características que, pela sua importância, […] não podem ser criticamente
imputadas à doença mental de que sofria o seu autor.
A importância dada à pontuação confere-lhe mesmo a categoria de um código expressional
diferenciado e autônomo, que no poema se sintetiza com o código vocabular e imagético.
O uso das maiúsculas, o próprio poeta o explica pela necessidade e importância que as
imagens e palavras vão assumindo no momento da escrita. A escrita é pois visualmente
representativa da emoção criadora (MELO E CASTRO, E. M., 1973: 54).

Se no primeiro caderno a referência é direta, com a reprodução de um dos textos mais


conhecidos do autor, no segundo caderno o acróstico-colagem de António Barahona
da Fonseca se encarrega da menção: “A//Ângelo de Lima espreita no silvado/ está
longo de corpo e inteligência/ o meu rei”. O tom de reverência não é casual, mas
programático, à medida que Ângelo de Lima é identificado como experimental em
sentido amplo pelo grupo que se mobiliza ao redor da revista. Talvez isso se deva à
substituição, no poema, da “coerência semântica” pela “coerência da matéria fônica
dos versos” (ROCHA, C., 2010: 403), notadamente uma das características principais
do Experimentalismo.
Não obstante o papel destacado de Ângelo de Lima, é Fernando Pessoa, ortônimo
e heterônimos, quem assume a função oracular para os poetas da PO.EX. São
detectatáveis elementos da poesia de Álvaro de Campos, por exemplo, em “Eros
Frenético”, de Ana Hatherly, da erotização das máquinas ao ritmo acelerado da
linguagem. Hatherly, neste mesmo período, encetava tentativas de aproximação a
Pessoa, como no poema “A Chuva oblíqua é um convite à inclinação do teu ombro”,
que à primeira vista guarda semelhanças apenas no título com o poema de Pessoa
publicado no segundo número de Orpheu, ou ainda, segundo a autora, “a alusão a
Pessoa no título é no poema ultrapassada, deliberadamente frustrando as expectativas
de uma glosa ao dar-se preferência à realidade da máquina sobreposta à realidade
humana” (HATHERLY, A., 2001: 16). Uma leitura atenta, contudo, revela pontos
de inflexão entre o texto de Orpheu e sua recriação: oposições de imagens, o jogo
com substantivos abstratos e estáticos, simultaneidade dos acontecimentos, etc.
64 100 Orpheu André Luiz do Amaral

(GAGLIARDI, C., 2010: 157-160). Noutro texto, Anacrusa – 68 sonhos, revela-se,


simbolicamente, o papel que Pessoa exerce sobre Hatherly e sua geração:

12/9/70
Estou em casa de Fernando Pessoa com A. Digo: Fernando Pessoa já morreu. A. diz: não,
vais ver. Fernando Pessoa aparece: magro, com óculos, vestindo um fato cinzento. A.
apresenta-me: não sei se conhece… Conheço sim, diz Fernando Pessoa, já ouvi falar muito.
Fita-me com uma intensidade quase insuportável. Fala comigo um pouco e depois diz: Sim,
disseram-me que você era muito intelectual – e rindo – imagine o que isso pode significar
para mim… Ajoelho junto dele e beijo-lhe as mãos. Então ele projecta-se sobre mim como
se fosse uma sombra ou uma nuvem (HATHERLY, A., 1982: 28).

O tema é retomado num ensaio crítico:

Ora, Fernando Pessoa é, por assim dizer, a ponta brilhante do enorme icebergue que é a poesia
portuguesa do século XX – icebergue por ser uma espécie de montanha semi-submersa de
poetas ilustres que, salvo raríssimas excepções, permanece ignorada e por isso urge divulgar.
Com efeito, nenhum poeta (ou artista) nasce no vácuo […]. Isto é: há sempre uma herança,
um suporte, seja ele conscientemente assumido ou não (HATHERLY, A., 1995: 175).

Assim, ora como sombra, numa atitude persecutória infinita, ora deslocada para
a esfera celestial; ora assumida ora denegada, a presença de Pessoa e seus colegas
d’Orpheu exerce evidente fascínio sobre Hatherly e seus colegas do Experimentalismo,
basta ver o depoimento dela na edição especial da revista Colóquio/Letras, por ocasião
do aniversário de Orpheu, em 1975:

Na literatura portuguesa moderna quase tudo o que não foi de vanguarda foi esse
sentimentalismo. Basta compararmos o Orpheu com a Presença ou o Surrealismo com
a Poesia Experimental com outras tendências suas contemporâneas para o verificarmos.
A sessenta anos de distância, o significado histórico do Orpheu é maximamente o de
ter sido um movimento de vanguarda. É assim que ele faz parte de nossa experiência
contemporânea. A sua sobrevivência é a sua permanência na nossa memória antológica
onde tudo se torna contemporâneo. Mas, se fosse necessário falar da influência directa
das obras que escreveram os poetas dominantes do Orpheu, eu diria que quando, numa
determinada zona da criatividade, se atinge com uma obra ou um grupo de obras uma
realização inultrapassável dentro do seu próprio espaço, a partir daí todas as verdadeiras
tentativas criadoras se voltam sempre para novos objectivos, novos sentidos. Essa é a sua
máxima competência criadora (HATHERLY, A., 1975: 8).
Orpheu na PO.EX: A tradição em movimento 65

Aqueles a quem ela se refere como os “poetas dominantes do Orpheu” são os que
mais encontram lugar na sua obra: Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Sá-Carneiro
e Almada Negreiros. São eles, aliás, que aparecem fundidos em “Algarismos Alfinete”,
de Saltette Tavares, no segundo caderno da PO.EX:

Figura 1. “Algarismo Alfinete”. Fragmento

Jogos como “altemipétaloAlvaroAlberto”; “alma alfinete”; “Alvarral Alvarral”;


“Almagiste aljofar”; “Alvissaras Almirante”, põem em movimento a tradição d’Orpheu,
traduzindo-a numa só imagem e a profusão numérica que acompanha os anagramas
faz lembrar “Manucure”, de Mario de Sá-Carneiro: “E no Ar eis que se cravam moldes
de algarismos/ Assunção da Beleza Numérica!” (MARTINS, F., 2008: 102). Outro
poema de Salette Tavares em que ecoa a voz d’Orpheu é “Partitura do Maquinim”,
publicado em 1965 na coletânea Visopoemas, de que faziam parte os mesmos poetas
experimentais: “Eu visto o que vesti ao manequim/ sou poeta que mente o que sente/
e de só fico contente quando visto/ aquilo que se ri atrás de mim./ / - Manequim do
meu amor/ como te vejo/ todo de cera e sedas emprestadas/ em meu desejo sou eu
que te manejo/ em não, em flor/ em tempestade e nadas” (TAVARES, S., 1979: 74). O
intertexto com “Manucure” se repete em “A primeira pessoa do singular do presente
do indicativo do verbo reflexo encontrar-se”, de Luiza Neto Jorge, publicado no
segundo caderno da PO.EX.:
66 100 Orpheu André Luiz do Amaral

Figura 2. “A primeira pessoa do singular do presente

do indicativo do verbo reflexo encontrar-se”.

Fragmento

De resto, há vestígios aqui e ali de um verso de Álvaro de Campos ou de um modo


de dizer que lembre o de Almada Negreiros. Há, também, uma série de outros poetas
do mesmo período que foram diretamente influenciados pela tradição de Orpheu
e, embora experimentais, não participaram dos cadernos da PO.EX, como Alberto
Pimenta, por exemplo. Isto porque Orpheu é uma linha divisória, o marco de algo novo
em relação à linguagem, de tal modo que as vanguardas posteriores provavelmente
não tivessem existido sem a afronta inaugural dos poetas órficos.
Cabe ressaltar, contudo, que a porção d’Orpheu que permanece na PO.EX. não
é aquela de viés exclusivamente futurista, pelo menos ideologicamente. Para os
poetas-críticos do Experimentalismo, Ana Hatherly e Melo e Castro, é importante
notar a independência que a revista publicada em 1915 adquiriu no curso do tempo.
Segundo ela, depois do segundo número, “Orpheu vai seguir a sua carreira – aliás
curta – independentemente do Futurismo, com uma direcção própria, apesar das
influências que o Movimento inegavelmente teve sobre as principais personalidades
do modernismo Português” (HATHERLY, A., 1979: 70). Segundo ele, a partir de
Orpheu Pessoa se torna poeta-chave para a compreensão da poesia portuguesa e,
obviamente, como uma espécie de oráculo do experimentalismo, mesmo quando
ausente ou recusado, pelo que a própria noção de Modernidade e de literatura em
Portugal depende dele, pois “com Fernando Pessoa o poema em português passa a não
descrever, não imitar e a não contar uma anedota. O poema É e mais nada. Contém
e é a sua própria significação: Texto” (MELO E CASTRO, E. M., 1973: 45). Logo,
é da perspectiva da criação poética, do uso da linguagem, da invenção e inovação
textual que a PO.EX. se une ao Orpheu em compasso sincrônico, plagiotropicamente,
revitalizando a tradição que cria para si.
Orpheu na PO.EX: A tradição em movimento 67

Afinal, é como se Orpheu fosse um experimentalismo avant la lettre, abortado pelo


tempo e tardiamente reencarnado. É como se os poetas experimentais dissessem:
“Quanto ao mais, nada mais. Cá estamos sempre. Orpheu acabou. Orpheu continua”
(PESSOA, F., 1980: 227).

Bibliografia

Bibliografia Ativa
ARAGÃO, António; HELDER, Herberto (org.) (1964). Poesia Experimental: 1º
caderno antológico. Lisboa: A. Aragão. http://www.po-ex.net/evaluation/
index.html [05.03.2015].
ARAGÃO, António; HELDER, Herberto; MELO E CASTRO, E. M. de (org.)
(1966). Poesia Experimental: 2º caderno antológico. Lisboa: A. Aragão. http://
www.po-ex.net/evaluation/index.html [05.03.2015].
HATHERLY, Ana (1975). “O significado histórico do Orpheu (1915-1975)” In:
Revista Colóquio/Letras. Inquérito, n.º 26, jul., p. 7-8.
HATHERLY, Ana (1979). O espaço crítico: do simbolismo à vanguarda. Lisboa:
Caminho.
HATHERLY, Ana (1982). Anacrusa: 68 sonhos. Lisboa: & etc e tal.
HATHERLY, Ana (1995). A casa das musas. Lisboa: Estampa.
HATHERLY, Ana (2001). Um calculador de improbabilidades. 1ª ed. Lisboa:
Quimera.
MARTINS, Fernando Cabral (org.) (1989). Orpheu: edição facsimilada. Lisboa:
Contexto.
PESSOA, Fernando (1980). Textos de crítica e de intervenção. Lisboa: Ática.
TAVARAES, Salette (1979). “Maquinin” In: MENÉRES, M. Alberta; MELO E
CASTRO, E. M. de. Antologia da poesia portuguesa: 1940-1977. 2º volume.
Lisboa: Moraes, p. 74.
VISOPOEMAS - catálogo da exposição (1965). Lisboa: [s.n.]. Galeria Divulgação,
Lisboa. http://www.po-ex.net/evaluation/index.html [05.03.2015].

Bibliografia passiva
CAMPOS, Haroldo de (1997). O arco-íris branco. Ensaios de Literatura e Cultura.
Rio de Janeiro: Imago.
GAGLIARDI, Caio (2010). “Chuva oblíqua” In: MARTINS, Fernando Cabral
(coord). Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português. São
Paulo: Leya, p. 157-160.
68 100 Orpheu André Luiz do Amaral

GOMES, Maria dos Prazeres (1993). Outrora Agora: relações dialógicas na poesia
portuguesa de invenção. São Paulo: Educ.
MARTINHO, Fernando J. B. (1983). Pessoa e a moderna poesia portuguesa – do
“Orpheu” a 1960. 1ª ed. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.
MELO E CASTRO, E. M. (1973). O próprio poético: ensaio de revisão da poesia
portuguesa atual. São Paulo: Quíron.
ROCHA, Clara (2010). “LIMA, Ângelo de” In: MARTINS, Fernando Cabral
(coord). Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português. São
Paulo: Leya, p. 400-403.
TORRES, Rui (2006). “Camões transformado e remontado: o caso de Herberto
Helder” In: Callema, nº 1, novembro, p. 58-63.
Acerca de gênio e loucura:
especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de
outros autores

Bernardo Nascimento de Amorim


Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP

Palavras-chave: Fernando Pessoa; Gênio; Loucura; Poesia; Sociedade.


Resumo: De Platão a Baudelaire e Rimbaud, passando pelos iluministas franceses, por Kant e
Hegel, associa-se a faculdade característica do poeta a uma força não passível de ser submetida
às regras próprias de uma certa convenção, sublinhando-se o caráter extraordinário do talento
criativo. Em alguns casos, esta equação se solidificaria na oposição entre as normas e a criação,
em vigor na postura combativa de muitos artistas modernos e modernistas, como em Antonin
Artaud, que concebe uma sociedade convencional contrária a «certas lucidezes superiores»,
os autênticos artistas. Como Artaud, Pessoa também pensou sobre os limites entre a lucidez
e a loucura, articulando sua reflexão com a interrogação sobre a natureza do gênio, em textos
como os que podem ser encontrados nos Escritos sobre génio e loucura. É tendo em vista,
particularmente, a leitura destes que proponho o meu trabalho, o qual ressaltará especificidades
da visada de Pessoa, iluminando-as com a projeção do que pensaram outros autores.

A loucura, longe de ser uma anormalidade, é a condição normal


humana. Não ter consciencia d’ella, e ella não ser grande, é ser homem
normal. Não ter consciência d’ella, e ella ser grande, é ser louco. Ter
consciência d’ella e ella ser pequena é ser desilludido. Ter consciência
d’ella e ella ser grande é ser genio. (PESSOA, F., 2006: 154).

1. A associação entre gênio e loucura, ainda que não exatamente nestes termos,
pode ser vista em diversos autores, não apenas modernos, mas também antigos.
Em que pese a diferenças, por exemplo, entre o conceito de gênio na Antiguidade
Clássica e o conceito de gênio após o Iluminismo, tomando-se estes dois momentos
como balizas importantes, certas conexões autorizam a pensar em uma tradição de
longa duração, aproximando as ideias em questão. Apenas para ficar com algumas
passagens de relevo, falarei um pouco sobre traços da relação entre gênio e loucura
em autores anteriores a Fernando Pessoa e Artaud, representantes de posições
modernistas a respeito do problema, os quais, sobretudo, o primeiro, merecerão uma
atenção especial. Entre os outros autores estarão, de um lado, Platão e o enciclopedista
70 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim

Saint-Lambert; de outro, os alemães Kant e Hegel, tomados como contrapontos, em


determinados aspectos, dos primeiros. Fechando este meu introito, serão mencionados
também Baudelaire e Rimbaud, como antecessores mais próximos dos dois autores
propriamente modernistas em pauta.

2. Começo com um breve comentário sobre o Íon, de Platão. Neste diálogo, cuja
redação pode ser situada no século IV a. C., Sócrates, interrogando o rapsodo que
dá nome ao texto, discute o caráter divino do poeta, afirmando ser ele, na tradução
portuguesa de Victor Jabouille, «uma coisa leve, alada, sagrada» (PLATÃO, 1988: 51),
que «não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da
razão» (ibid.). A formulação é bastante atraente, sobretudo para os próprios poetas,
além de ser de remota tradição, associada a antigos mitos, a crenças sobre quem seriam
os portadores das palavras essenciais de uma comunidade, intermediários entre os
homens e os deuses. Segundo ela, o poeta, para alçar o voo que o faz ser mais do que
os homens comuns, aproximando-se das divindades, precisa perder a razão. Tomado
por um poder alheio a si mesmo, um sopro que o habita, sem que saiba como, tem ele
a função de dar a conhecer à sua comunidade mistérios de ordem sobrenatural.
Embora desprovido de arte, de ciência, o poeta se apresentaria, em mais de um texto
de Platão, efetivamente, como um ser especial, dotado de uma origem divina. Ainda que
esta não tenha sido suficiente para defender a presença do poeta na República, na obra
mais expressiva do filósofo grego, a ideia permaneceria. Acompanhando o raciocínio
de Ernst Robert Curtius sobre o Fedro, ter-se-ia, em Platão, com efeito, a exposição
pioneira da «teoria da loucura divina do poeta» (CURTIUS, E., 1979: 505), a qual, com
«outros atributos da mitologia antiga» (ibid.), chegaria à Idade Média e a atravessaria.
Saltando algumas porções de centenas de anos, mas não esquecendo a recuperação
humanista ou renascentista de muitas das obras mais conhecidas dos autores gregos
e latinos, bastante influentes nos séculos XVI e XVII, uma sorte de teoria do gênio
se encontra já relativamente sistematizada entre os iluministas franceses, com o
verbete da Enciclopédia dedicado ao assunto. Nele, hoje atribuído a Jean-François de
Saint-Lambert, relaciona-se o termo a uma forma de talento singular, mais ligado à
criação do que à compreensão e não reduzível às normas do bom gosto, que regem
ou deveriam reger a conduta dos demais indivíduos. Sublinha-se, então, uma clara
tendência de cisão entre a pessoa que se julga ter um talento superior e a ordem
estabelecida, destacando-se um necessário desconcerto, assim como a incompreensão
dos contemporâneos. Sugere-se a existência de singularidades irredutíveis, não
integráveis pacificamente ao conjunto da sociedade, marcadas pela recusa ou pela
dissonância em relação às instituições e práticas representativas da ordem, pilares
da normalidade. Fala-se, ainda, significativamente, no poder do excesso, associado à
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 71

capacidade de fundação ou inauguração de novos caminhos. No verbete, carregado


das impressões de seu autor, lê-se: «Os homens de gênio, forçados a sentir, [...]
levando ao excesso seus desejos, suas esperanças, [...] parecem-me mais feitos para
derrubar ou fundar estados do que para mantê-los» (SAINT-LAMBERT, J.-F., 2013:
não paginado)1.
Próximos do enciclopedista francês, tanto temporal quanto filosoficamente, Kant e
Hegel penderiam, entretanto, para o lado de um maior equilíbrio, com noções como
a beleza e a perfeição tendendo a coibir maiores excessos, mantendo-se um certo
padrão do gosto, do qual o gênio não deveria abrir mão. Para ambos, é o gênio também
associado à originalidade, ao talento para criar sem seguir as regras já estabelecidas,
concebendo obras modelares para os pósteros. O sentido da dissonância, todavia, já
não parece permitir a aproximação com a ideia de loucura, ou de um desvio da ordem,
da normalidade, em sentido amplo. Em Kant, a importância do gosto, em ligação
com o estudo e o conhecimento da tradição, bem como com o esforço técnico, vem
ao encontro da crítica aos pré-românticos alemães, julgados «‘espíritos superficiais’»
(KANT, I. apud SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado), pois crentes em que «‘se desfila
melhor em um cavalo desvairado do que sobre um cavalo domado’» (ibid.).
Em Hegel, igualmente repudiando desvarios, a dimensão racional do fazer poético
merece tanto realce quanto no seu compatriota. O artista, para ele, não deve deixar de
«buscar ajuda na ponderação [...] lúcida do entendimento» (HEGEL, G., 1999: 283),
requerendo todas as artes «um amplo estudo, uma aplicação constante, uma habilidade
variadamente formada» (id.: 286), sem os quais a inspiração, ou o entusiasmo, aqui
já desprovidos de sua dimensão esotérica, não podem resultar em «uma obra de arte
consistente» (id.: 288). Investindo agudamente na compreensão do que seja a fantasia,
diferenciada da imaginação e tornada elemento fundamental da produção artística,
faculdade própria do gênio, distingue-se a simples extravagância, aquilo que seria
próprio de um único sujeito, constituindo «uma má particularidade» (id.: 295), e a
verdadeira originalidade. Tendo sempre no horizonte o ideal de universalidade que
preside a sua estética, o autor concebe a originalidade como atributo que se distancia
da «mera maneira» (id.: 292) (grifo do autor), uma vez que esta, afastando-se do
ideal, limita-se às «particularidades [...] contingentes» (ibid.) (grifos do autor) de
uma «peculiaridade subjetiva» (ibid.), não sendo capaz de configurar «em fenômenos
concretos as autênticas profundidades da vida» (HEGEL, G., 1999: 284).

1 A tradução, desta e de outras passagens, seja em francês, seja em inglês, corre por minha conta. No rodapé,
apresento os originais: Eis o texto da Enciclopédia: «Les hommes de génie forcés de sentir, [...] portant à l’excès
leurs desirs, leurs esperances, [...] me paraissent plus fait pour renverser ou pour fonder les états que pour les
maintenir».
72 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim

Menos racionalista, evidentemente, seria o romantismo do início do século XIX,


quando se consolida, incluindo-se as contribuições dos antecessores, um certo ethos
moderno, isto é, um conjunto de valores, hábitos e traços próprios a um período
relativamente longo da história, em consonância com o que se firmaria a relação entre
a genialidade e o poder imaginativo, bem como a figura do artista como ser de exceção,
supostamente marcado por uma criatividade superior e pela independência da mente,
pela autenticidade e pela genuinidade, muitas vezes levando-o à condição de solitário
ou marginal, dada a sua falta de habilidade de adaptação ao concerto social.
Tal fórmula seria logo também encarnada, ainda que em meio a posições
nitidamente antirromânticas, pelos poetas franceses da segunda metade do século,
incluindo Baudelaire e Rimbaud. Segundo Hugo Friedrich, aqui se teria a assunção
de um mesmo princípio, segundo o qual a «própria anormalidade» (FRIEDRICH,
H., 1991: 24) é vista como garantia de uma vocação, sendo a «proscrição do mundo
circunstante» (ibid.) a consequência de um «ato de orgulho» (ibid.), manifestando-se
como «uma pretensão à superioridade» (ibid.). Esta seria alcançável, sobretudo, através
da exploração do sonho ou da fantasia, em que se manifestaria «uma capacidade criativa
superior»(FRIEDRICH, H., 1991: 53), voltada para a «produção de conteúdos irreais»
(id.: 54), capaz de transformar uma realidade circunstante sempre insatisfatória.
Em Baudelaire, é esta realidade amesquinhada o que se interpõe aos anseios
do artista, cujo impulso para a elevação se mostra tão evidente quanto o desejo de
oposição às convenções sociais, calcado em um «gosto apaixonado de oposição»
(BAUDELAIRE, C. apud FRIEDRICH, H. 1991: 45). Contrapondo-se à «interpretação
científica do universo» (id.: 56), Baudelaire salientaria a potência de um outro tipo
de interpretação, a poética, àquela altura já motivo de uma espécie de disputa pela
recuperação de seu antigo prestígio. Lembre-se, todavia, que o autor não chegaria a
repudiar os movimentos da razão, defendendo o contato entre a fantasia e a consciência,
entre «o gênio poético e a inteligência crítica» (id.: 36), sem o que não seria possível
o trabalho de «transformação e desrealização do real» (id.: 53). Para ele, «o poeta é
a inteligência mais elevada, e a fantasia [...] a mais científica de todas as faculdades»
(BAUDELAIRE, C. apud FRIEDRICH, H., 1991: 57).
No que diz respeito a Rimbaud, para além da prática poética, suposta realização de
algumas de suas intenções, como a de «ser absolutamente moderno» (RIMBAUD, A.,
1999: 204)2, são conhecidas as duas cartas ditas do vidente, em que o autor fala sobre
a necessidade de provocar o «desregramento de todos os sentidos» (id.: 84) (grifos do

2 É em um trecho do poema «Adieu», fechando Une saison en enfer, que se diz: «Il faut être absolument
moderne».
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 73

autor)3, defendendo o desvio em relação ao «bom caminho» (id.: 83)4, assim como
a execração dos ancestrais5, julgados versificadores, mas não verdadeiros artistas.
Fazendo jus ao epíteto de poeta maldito, sem recuar diante da extravagância, com
postura provocativa, afim ao desejo de chocar, o autor se propõe a transformar a
própria alma em algo monstruoso6, a se tornar um crápula, avesso às leis de seu tempo
e de sua civilização. Somente forçando os limites de si mesmo, tornando-se «o grande
doente, o grande criminoso, o grande maldito» (id.: 89)7, o poeta acredita poder
chegar ao contato com «as coisas inauditas e inomináveis» (ibid.)8, meta última para
todos aqueles que se queiram, em sua perspectiva, «poetas do novo» (RIMBAUD, A.,
1999: 92)9 (grifos do autor), suficientemente fortes para «descobrir uma linguagem»
(id.: 91)10.

3. Tornando-se mais intensa a experiência da separação entre o artista e os homens


que este mesmo vê como vulgares, a genialidade, em Fernando Pessoa, já no início
do século vinte, configura-se também no âmbito de reflexões sobre a oposição às
convenções, às ideias a respeito do que seria certo, são ou normal. Com ela, pensada
sobre o pano de fundo contrastante de um momento em que, segundo o autor,
«qualquer privilégio é um castigo» (PESSOA, F., 1995: 12), quando «nada nasce de
grande que não nasça maldito» (ibid.), reforça-se o sentido da dissonância em relação
aos padrões estabelecidos.
Nos Escritos sobre génio e loucura, destacam-se as asserções sobre o estado mesquinho
do tempo em que vivia o poeta, cujo traço característico seria «a incapacidade de
grandeza» (PESSOA, F., 2006: 83), ou seja, a incapacidade de «pensamento profundo,
de emoção intensa, de acção coordenadamente superior» (ibid.). A «civilização
moderna» (ibid.) se qualifica como «um ambiente estiolantemente propício»
(ibid.), onde vigora «a baixa do nivel mental superior em todas as manifestações»

3 Tal desregramento se apresenta como condição para se chegar ao desconhecido: «Il s’agit d’arriver à l’inconnu
par le dérèglement de tous les sens».
4 No idioma de Rimbaud: «la bonne ornière».
5 Reivindica-se a liberdade, para os novos poetas, de execrar os ancestrais: «[...] libre aux nouveaux! d’execrer
les ancêtres [...]» (RIMBAUD, A., 1999: 87) (grifo do autor).
6 É o que afirma o poeta, na segunda das cartas ditas do vidente, em maio de 1871: «Il s’agit de faire l’âme
monstruese» (id.: 88).
7 Em francês, no original: «le grand malade, le grand criminel, le grand maudit».
8 Em francês: «les choses inouïes et innommables».
9 No texto original: «poètes du nouveau».
10 Na língua de Rimbaud: «Trouver une langue».
74 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim

(ibid.). O gênio, como contraponto a este estado de coisas, é imaginado como um


homem superior, que «pensa mais acuradamente, sente mais profundamente, deseja
mais instantaneamente» (PESSOA, F., 2006: 45)11, que é «imaginativo» (id.: 46)12,
«fortemente criativo» (ibid.)13 e «profundamente original» (ibid.)14. Necessariamente
desviante em relação às normas contemporâneas, em diversas épocas, tal figura se
mostraria especialmente contrária às limitações dos tempos modernos, fazendo do
sonho, transfiguração da realidade, uma de suas experiências principais, tanto como
o isolamento egotista, fruto inevitável de sua falta de capacidade de adaptação.
Com relação ao sonho, muito do que diz Pessoa revela o seu alinhamento a
antecessores como Baudelaire ou Edgar Allan Poe, mencionados como grandes
homens de gênio, «simplesmente incapazes de adaptação» (PESSOA, F., 2006: 52-53)15.
Pensando, como Baudelaire, na reunião entre consciência e fantasia, afirma o autor
que os homens de gênio «veem mais claro e sonham mais do que os homens comuns»
(id.: 52)16. Por vezes, aqueles dois termos, consciência e fantasia, dão lugar a outros,
como quando Pessoa diz que «o homem de genio é um intuitivo que se serve da
intelligencia para exprimir as suas intuições» (id.: 80). A fórmula, todavia, permanece
a mesma, reunindo, de um lado, um elemento independente ou menos dependente
do processo de raciocínio, seja a imaginação, o sonho, a fantasia ou a intuição, e, de
outro, o elemento racional, aquele que se liga a «um maior desejo de compreensão»
(id.: 53)17. Da conjugação das duas dimensões é que se configuraria o gênio, o qual
se apresenta, não apenas como um criador de mundos outros, mas como um sujeito
marcado por uma «lucidez superior» (id.: 84).
Completando o quadro, o passo seguinte seria a inevitável aproximação deste tipo
de lucidez com a loucura. Dando prosseguimento à tradição que remete a Platão,
mas com a renovação de teorias próximas da psiquiatria e da psicologia do final do
século XIX, Pessoa se interessará pela constituição psíquica dos homens de gênio, por
vezes, inclusive, aceitando a ideia de que haveria um «elemento morbido» (id.: 65)
necessário à existência desta figura, ou refletindo sobre relações entre hereditariedade,
nevrose, psicose, histeria e o «desvio mental» (id.: 131) característico do fenômeno.

11 O texto original é escrito em inglês: «thinks more accurately, feels more deeply, wills more
instantly».
12 Em inglês: «imaginative».
13 No original: «strongly creative».
14 No inglês de Pessoa: «profoundly original».
15 No texto de Pessoa: «simply incapable of adaptation».
16 Veja-se o original: «Men of genius both see more clear and dream more than common men».
17 No inglês de Pessoa: «a greater desire to comprehend».
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 75

Em alguns textos, exploram-se sintomas como uma certa «mania de dúvida» (id.: 48)18,
da qual se observariam vários traços presentes na constituição do gênio. Dá-se
realce, neste ponto, a características como a hesitação e a indecisão, consequências
de um constante interrogar a si mesmo, um «colocar a si mesmo muitas questões»
(id.: 51)19, as quais se acompanham da «ansiedade para achar [...] resposta» (ibid.)20.
Na perspectiva do autor, são comuns, entre os homens de gênio, assim como entre
indivíduos que apenas sofrem da mania de dúvida, mas sem a contrapartida criativa
que caracteriza os primeiros, elementos como a insanidade e o nervosismo, os quais
resultam, entretanto, não da falta de um intelecto privilegiado, mas de um «abuso
dos poderes de raciocínio» (ibid.)21, do «exaggero de uma faculdade» (PESSOA, F.,
2006: 137).
Com estas colocações, volta-se à natureza da ligação, no homem de gênio, entre
a consciência e a imaginação, a primeira sendo responsável pela clareza de visão,
conquistada, não raro, a duras penas, com a insistência do pensamento, a segunda
mais relacionada à parte criadora do fenômeno, à «invenção»22 (id.: 153) (grifo do
autor). O gênio, nesta perspectiva, que inclui a importância da ideia de originalidade,
não poderia existir sem a atividade que torna manifesta a criação23, a qual, por sua
vez, remete, novamente, à loucura24. Pessoa, mencionando Carlyle e Blake, afirma que
a «parte creadora do genio é a parte de loucura» (id.: 65) (grifo do autor). Em outro
fragmento, este já apontando para a ação dos homens de gênio sobre a sociedade
de seu tempo, implicando uma abertura ao futuro, afirma-se que «os creadores de
impulsos sociaes são os creadores da sem-razão» (id.: 64).
Aos homens de gênio, com efeito, é atribuída a ligação com o futuro, sendo eles vistos
mesmo como homens «do futuro» (id.: 61). Segundo Pessoa, estas figuras sentiriam
«antes dos outros homens a direcção de uma sociedade» (id.: 71) (grifo do autor),

18 Em inglês: «mania of doubt».


19 A dúvida seria, na língua de Shakespeare, «the putting to oneself of many questions».
20 Em inglês: «the anxiety over the finding of [...] answer».
21 Em inglês: «the abuse of the reasoning powers».
22 Cogitando uma possível distinção entre gênio e talento, diz Pessoa: «O talento é essencialmente coordenação.
O genio é invenção e coordenação» (PESSOA, F., 2006: 153) (grifos do autor).
23 Ao apontar como elementos fundamentais para a existência do gênio a «superioridade» (id.: 141),
a «originalidade» (ibid.) e a «actividade» (ibid.), explica Pessoa que esta última «não quér dizer trabalho
intenso, mas sim manifestação de qualidades» (PESSOA, F., 2006: 142), não se opondo à «inercia» (ibid.), à
«inactividade» (ibid.), mas, simplesmente, à «não-manifestação» (ibid.) (grifos do autor).
24 Se a atividade de criação se associa à imaginação, esta, por sua vez, quando predominante sobre o raciocínio,
seria indício de loucura, sendo «doido» «[...] um homem que mostra [...] pred[omini]o da imaginação sobre
o raciocinio [...]» (PESSOA, F., 2006: 111).
76 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim

sendo, portanto, o primeiro «indicio da sua evolução» (ibid.). Fala-se, nomeadamente,


em «evolução social» (ibid.) (grifos do autor), atribuindo-se aos homens de gênio
uma espécie de função na mesma sociedade na qual não se integram normalmente.
Diferentemente da simples loucura, que seria apenas uma «expressão individual»
(PESSOA, F., 2006: 139), o gênio seria «manifestação [...] social» (ibid.), inerentemente
ligada à criação, por um lado, e ao destino da comunidade, por outro. Nas palavras
do autor, «o facto mais importante da vida de uma sociedade é a producção de
homens de genio, de creadores» (PESSOA, F., 2006: 62), o que se relaciona ao próprio
«progresso» (id.: 75) da civilização. Sendo o gênio «um inadaptado que cria» (id.: 63)
(grifo do autor), o resultado de seu fazer seria levar «o meio [a] adaptar-se a si» (ibid.).
Sendo, contudo, este homem um indivíduo não muito propenso à ação, sobretudo, a
uma interferência concreta, de caráter pragmático, esta forma de adaptação estaria
fadada a apenas surtir efeito em «um meio futuro» (PESSOA, F., 2006: 64).
Sob outro aspecto, Pessoa ressalta, ainda, o perigo que representa o gênio para a
sociedade de que faz parte, quando se trata de exercer a função social que lhe seria
própria, associada à renovação do seu meio, e motivada, de acordo com alguns textos,
por seu «amor à humanidade» (id.: 46)25. A intervenção desta figura, em seu movimento
de «espalhar idéas, educar almas, transformar mentalidades» (id.: 77), não poderia
deixar de ser problematizada. Pessoa fala mesmo sobre os «maleficios do genio» (ibid.).
Tendo em vista, em suas palavras, que «espalhar ideias é frequentemente desorientar»
(ibid.), que «educar almas é frequentemente torcel-as do seu vero caminho» (ibid.),
que «transformar mentalidades é frequentemente tirar-lhes a calma e a felicidade,
alargando-as para a incerteza e para o abismo» (ibid.), tal intervenção, embora «útil
superiormente» (ibid.), não poderia deixar de ser perigosa, senão nociva, para alguns.
Entre estes últimos, certamente, encontrar-se-iam alguns psicólogos e psiquiatras
lidos à época de Pessoa, para os quais os desvios enaltecidos pelos modernistas,
em geral, não representavam oposição à estreiteza e à mediocridade, mas simples
degenerescência. Se Pessoa também usou este termo, em alguns momentos, em
sentido próximo do que lhe dava Max Nordau, é preciso perceber que, noutros,
mais numerosos, manifesta-se uma apropriação e uma reversão de sentido irônicas,
através das quais se chega à valorização de um movimento como o do grupo da
revista Orpheu, cujos «elementos morbidos» (PESSOA, F., 2006: 389), típicos da
degenerescência, não se dissociam de sua originalidade, de sua capacidade de criar
«um novo modo-de-expressão» (id.: 403), fundamental, senão para o campo da
moral, ao menos para o da estética. Incapazes de perceber esta separação, seriam os

25 Em inglês, no original: «love of humanity».


Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 77

psiquiatras, na visão de Pessoa, verdadeiros «charlatães» (id.: 396), responsáveis por


uma forma de «charlatanismo scientifico» (id.: 393), «superstição scientifica» (id.: 397)
(grifos do autor), ou, ainda, «delirio interpretativo» (id.: 401). Neste âmbito, não se
poderiam valorizar os princípios, a um só tempo, «novos e perturbadores» (id.: 403)
de uma gente «doentia e perigosa» (id.: 402) como a de Orpheu.

4. É a menção à psiquiatria que me deve levar ao breve comentário sobre Antonin


Artaud, antes de passar às minhas considerações finais. Elas incidem, em particular,
sobre o contundente texto do autor em defesa, a um só tempo, da genialidade e
da sanidade de Van Gogh, o qual, como se sabe, passou parte importante da vida
internado, sob os cuidados da psiquiatria. O que é digno de nota, sobretudo, neste
texto, é a força da acusação de Artaud ao pensamento convencional, indigitando-se,
em uma espécie de inversão da ordem comum, o «delírio» (ARTAUD, A., 2004: 9)
ou o «desregramento» (ibid.), a «anomalia psíquica» (ibid.) em que se encontraria o
mundo contemporâneo, um «mundo enjaulado» (ARTAUD, A., 2004: 47), do qual
certas «lucidezes superiores» (id.: 9), como a do pintor holandês, seriam vítimas
emblemáticas. Em seu raciocínio, a psiquiatria merece destaque como uma invenção
de uma sociedade «anormal» (ibid.), interessada em «se defender das investigações»
(ibid.) de figuras contrárias à «consciência geral» (ARTAUD, A., 2004: 15), imbuídas
de «certa ideia superior de honra humana» (id.: 12). A estas últimas figuras, entre
as quais se contariam também Gérard de Nerval, Baudelaire e Edgar Allan Poe,
associam-se «boas-vontades raras e lúcidas» (id.: 13), que, entretanto, a sociedade
«não quis ouvir» (id.: 12), barrando a formulação de «verdades insuportáveis» (ibid.)
para quem «sempre gostou mais de se contentar muito simplesmente em existir»
(ARTAUD, A., 2004: 44).
É ao psiquiatra, então, neste contexto, que se atribui a «mais indiscutível loucura»
(id.: 25), vendo-se, neste suposto homem de ciência, um «velho e atávico reflexo
da turba» (ibid.), o qual faria dele um «inimigo nato [...] de todo o génio» (ibid.).
Não se deixa, assim, de atacar também o vulgo, os homens medianos, falando-se de
uma «consciência bestial das massas» (ARTAUD, A., 2004: 51), contrárias às mais
legítimas aspirações dos homens de gênio, tidos como verdadeiros «heróis da terra»
(id.: 29), «naturezas elevadas, sempre um furo acima do real» (id.: 28), capazes de
«ver mais longe, infinita e perigosamente mais longe» (id.: 27). Temerosa da «rebelião
reivindicadora» (id.: 25) que estaria «na origem do génio» (ibid.), a turba faria dos
psiquiatras a sua «guarda suíça» (ibid.), disposta a protegê-la daquela sorte de «lucidez
superior» (ARTAUD, A., 2004: 27), a qual, desse modo, ficaria «vigiada» (ibid.), ou
seria, simplesmente, expelida, como teria acontecido com Van Gogh, nas palavras de
Artaud, um «despachado do mundo» (ARTAUD, A., 2004: 52).
78 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim

5. Resta-me, pois, agora, amarrar alguns fios de contato entre Fernando Pessoa e
os autores de quem falei alguma coisa, ao longo do texto. As afinidades com Artaud,
para começar, são bastante evidentes, confirmando a ideia de que fazem os dois
parte de um mesmo universo de valores e posições, próprios dos modernistas da
primeira metade do século XX, os quais prolongam ainda formas de pensar advindas
da centúria anterior. Não apenas ambos os autores, efetivamente, discorrem sobre os
perigos que o gênio representaria para a sociedade de seu tempo, como concebem
a positividade deste perigo, a importância de uma ação convulsionante, sem a qual
o mundo, necessitando de transformação, não deixaria de ser o que é. Em ambos,
de modo significativo, ressalta a ideia de uma lucidez própria do homem de gênio,
superior, em muitos sentidos, à inteligência do homem comum, menosprezado tanto
em um quanto no outro autor, os quais, não raro, identificam-no com o burguês,
senhor dos negócios do mundo moderno, marcado, segundo Artaud, pela «inércia
burguesa» (id.: 9), pelo «conformismo larvar da burguesia» (id.: 10).
Pessoa, entretanto, repare-se, mostra-se mais meticuloso do que Artaud, no
conjunto dos seus raciocínios, fazendo distinções que este último não explora, seja
a que respeita à diferença entre o gênio e a simples loucura, seja aquela atinente à
separação entre o gênio e o criminoso, próximos, em sua conduta antissocial,
mas distintos no que tange ao poder de criação e à sua manifestação, de caráter
positivamente social, presente em um, e ausente no outro. Neste caso, as afinidades de
Artaud parecem ser mais evidentes com Rimbaud, e não, propriamente, com Pessoa,
cuja análise da constituição do homem de gênio, informada mesmo por referências
médicas e filosóficas, vai mais além.
Sob outro aspecto, se Pessoa explora a ligação com o futuro que seria própria
do gênio, Artaud fala em suas «faculdades de adivinhação» (id.: 9), os dois, neste
sentido, aproximando-se também de figuras tão díspares quanto são Kant e Rimbaud.
Naturalmente, o filósofo alemão não aprovaria o desregramento ou a monstruosidade
de que fala o poeta francês, indícios de um necessário afastamento em relação ao
gosto, bem como de uma postura mais radical, excessiva, do que equilibrada.
Relembre-se, todavia, que já em Kant se destaca a importância assumida pela ideia
de originalidade, articulada à recusa das «regras ou [...] formas prontas da tradição»
(SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado), conectada à oposição «ao espírito de imitação»
(KANT, I. apud SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado), da mesma forma que se realça
o caráter de exemplaridade daquilo que cria o homem de gênio, fornecendo modelos
para os que vêm depois, no futuro. Se, para Rimbaud, novos poetas, desde que se
disponham a enfrentar o tortuoso caminho da busca pelo desconhecido, começam
Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 79

«pelos horizontes onde outro foi abatido» (RIMBAUD, A., 1999: 89)26, para Kant, os
produtos do gênio, embora «inimitáveis», constituem «os únicos meios de orientação
para a posteridade» (SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado).
Quanto a outros autores de que falei, é evidente a relação que existe entre Hegel e
Baudelaire, em particular, no que tange à posição que a fantasia assume, no processo
criativo, em ambos, como faculdade essencial. Para além disso, embora mais aberto à
articulação entre a produção poética e o mistério ou a magia, alijados de um mundo
controlado pela racionalidade, Baudelaire, como Hegel, não concebe a existência de
verdadeira poesia sem que o poeta tenha domínio do seu fazer, sem que se experimente
uma funda concentração do intelecto, voltado para o «trabalho» (FRIEDRICH, H.,
1991: 39), a «construção sistemática» (ibid.), a «construção formal» (ibid.) do poema.
Neste sentido, a afirmação de Hegel, de que seria «disparate acreditar que o autêntico
artista não sabe o que faz» (HEGEL, G., 1999: 283), refutando Platão, encontraria
ressonância na estética do poeta francês. Em particular, neste ponto, ambos também
se aproximariam de Pessoa, o qual não nega a importância do intelecto no processo de
composição poética, como quando, elogiando aquele que afirma ser o «maior homem
de génio» (PESSOA, F., 2006: 439) (grifos do autor) da Península Ibérica do século
XIX, Antero de Quental, claramente com ele se identificando, afirma se tratar de «um
dos mais conscientes, talvez o mais consciente poeta que jamais existiu» (id.: 438).
No que diz respeito ao iluminista Saint-Lambert, por sua vez, a oposição entre o
que se vê em seu verbete, na Enciclopédia, de um lado, e os alemães Kant e Hegel,
de outro, faz com que se possa dar relevo à posição intermediária de Pessoa.
Aproximando-se do francês, o poeta não pretende aderir às restrições da noção de
gosto, ainda associadas ao belo e à perfeição, adotando, ao mesmo tempo, a perspectiva
da cisão marcante entre o homem de gênio, em sua firme singularidade, e o vulgo,
incapaz de compreender aquele que estaria destinado a alterar o estado de coisas de
seu mundo, abrindo as portas para o futuro. As menções de Saint-Lambert a elementos
como a irregularidade ou o caráter «selvagem» (SAINT-LAMBERT, J.-F., 2013: não
paginado)27 dos produtos do gênio, a referência aos «edifícios atrevidos que a razão
não arriscaria habitar» (ibid.)28, de fato, parecem mais próximas de Pessoa, e mesmo
de Rimbaud, do que de Kant e Hegel, com os quais, entretanto, o enciclopedista, assim
como o poeta de Orpheu, não deixa de compartilhar algumas posições. Dentre estas,
vale destacar, por exemplo, a percepção da importância da imaginação, ou da fantasia,

26 No francês de Rimbaud: «par les horizons où l’autre s’est affaissé».


27 As coisas do gênio, devem ter, no francês de Saint-Lambert, «l’air irrégulier, [...] sauvage [...]».
28 No original da Enciclopédia: «des édifices hardis que la raison n’oserait habiter».
80 100 Orpheu Bernardo Nascimento de Amorim

como especificidade diferenciadora do gênio, e, ainda, a preocupação em pensar as


relações entre o próprio gosto, «obra do estudo e do tempo» (ibid.)29, e uma forma de
criação mais livre, intempestiva ou tempestuosa, a qual, presente em Saint-Lambert,
não deixa de rondar as reflexões de Kant, Hegel e Pessoa.
Por fim, no que tange a Platão, com o qual darei por encerradas estas minhas
elucubrações, não resta dúvida de que se apresenta mesmo como figura basilar, senão
em sua faceta mais moralista, como em A república, ao menos, para o que interessa
aqui, naquilo que se apropriou de suas reflexões sobre a natureza da inspiração poética.
Revista, quando se substitui o caráter divino do poeta por uma mais chã superioridade
perante os demais homens, considerando-se a sua função social em uma comunidade
burguesa, a teoria de Platão permanece como uma fonte de referência importante. Se,
em um mundo desencantado, como o mundo moderno, cientificamente ordenado e
explicado, os deuses não são mais as figuras a que se ligam os poetas, em seus delírios,
ou se os homens de gênio, em que pese à sua suposta superioridade, não são divinos,
o fato é que, em perspectivas como a de Pessoa e Artaud, eles permanecem, malgrado
a sua posição conflitante com o mundo, ou mesmo por causa dela, como seres a quem
se insiste em atribuir alguma luz especial.

Bibliografia

Bibliografia Ativa
ARTAUD, Antonin (2004). Van Gogh o suicidado da sociedade. Tradução e notas
de Aníbal Fernandes. Lisboa: Assírio & Alvim.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich (1999). Cursos de Estética I. Tradução de Marco
Aurélio Werle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
PESSOA, Fernando (2006). Escritos sobre gênio e loucura. Edição de Jerónimo
Pizarro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 2 v.
PLATÃO (1988). Íon. Introdução, tradução e notas de Victor Jabouille. Lisboa:
Editorial Inquérito.
RIMBAUD, Arthur (1995). Poésies. Une saison en enfer. Illuminations. Edition de
Louis Forestier. Paris: Gallimard.
SAINT-LAMBERT, Jean-François de (2013). «Génie». In: DIDEROT, Denis;
D’ALEMBERT, Jean le Rond (Eds.). ENCYCLOPÉDIE, ou Dictionnaire
Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, par une Societé de Gens de Lettres.

29 Em Saint-Lambert: «ouvrage de l’étude et du temps».


Acerca de gênio e loucura: especificidades da visada de Fernando Pessoa, em contato com as de outros autores 81

Chicago: University of Chicago: ARTFL Encyclopédie Project: Spring 2013.


MORRISSEY, Robert (Ed.). Disponível em: <http://encyclopedie.uchicago.
edu/>. [Acesso em: 06 mar. 2015].

Bibliografia Passiva
CURTIUS, Ernst Robert (1979). Literatura europeia e idade média latina. Tradução
de Teodoro Cabral, com a colaboração de Paulo Ronai. Brasília: INL.
FRIEDRICH, Hugo (1991). Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX
a meados do século XX. São Paulo: Duas Cidades.
SÜSSEKIND, Pedro (2009). «Considerações sobre a teoria filosófica do gênio».
In: VISO – Cadernos de estética aplicada, n. 7, jul.-dez. 2009. Não paginado.
“Orpheu” Regabofe Tiroliro

José Blanco

Resumo: A leitura  das notícias e dos artigos publicados nos jornais da época (de que Mário de
Sá-Carneiro fez um caderno de recortes), revela que, ao lado da maioria de reacções negativas,
mais ou menos violentas e insultuosas, houve opiniões favoráveis aos colaboradores do Orpheu,
não apenas em Lisboa mas também em localidades da periferia, bem como na Galiza.

Sintezando os diferentes tipos de repercussão do Orpheu na sociedade portuguesa


do seu tempo, tal como a Imprensa a reflectiu, Maria Aliete Galhoz escreveu que
a revista foi considerada “uma soberba piada” ou “um logro medíocre”, ou “uma
desonesta tentativa de notoriedade” ou ainda “uma destrambelhada aberração de
nevróticos sem talento.” E comparando os dois fenómenos literários do princípio
do século – o da Águia e o do Orpheu – diz ainda Maria Aliete Galhoz: “Se para a
Águia apareceram alguns defensores (…), para o Orpheu a claque foi de gargalhadas
e ninguém achou que valesse a pena acreditar nas suas afirmações. Vozes contrárias,
quase não as houve”.
No meio da infernal barulheira dos ataques ao grupo do Orpheu, houve
efectivamente algumas vozes – poucas mas, como se verá, significativas – que se
levantaram em favor dos atacados ou, nalguns casos, em ofensiva contra os atacantes.
O presente texto é sobre essas vozes minoritárias, identificadas ou anónimas, em
homenagem póstuma àqueles que viram no Orpheu e nos seus autores mais qualquer
coisa do que alienação mental, espalhafato ou provocação – ou, pelo menos, lhe
deram o benefício da dúvida. Para muitos não será novidade, conhecidos como são
os estudos que serviram de base a este trabalho: O Movimento Poético do Orpheu,
tese de licenciatura dactilografada de Maria Aliete Galhoz (1953); “Orpheu” em 1915
(Revistas e Jornais), dissertação policopiada de Maria João Marques Inglês Covas
(1999) e O primeiro modernismo português e a Galiz (1915) Um caminho impossível,
de Carlos Pazos, in Diálogos Ibéricos sobre a Modernidade (2011).
O escândalo do Orpheu não tem paralelo na história literária e social de
Portugal. Há talvez uma tendência para pensar que tudo se passou apenas em
Lisboa e nos jornais lisboetas. Mas foi um fenómeno verdadeiramente nacional:
as suas repercussões na Imprensa da época varreram literalmente o País, desde o
Algarve até ao Minho. Os dois cadernos de recortes sobre o Orpheu organizados
84 100 Orpheu José Blanco

por Mário de Sá-Carneiro – e que hoje se encontram no espólio de Fernando


Pessoa na Biblioteca Nacional de Portugal – contêm 90 recortes de 31 jornais e
representam apenas uma parte de tudo o que se apareceu na imprensa publicada em
35 localidades: Águeda, Anadia, Ançã, Arcos de Valdevez, Beja, Braga, Bragança,
Cantanhede, Coimbra, Covilhã, Elvas, Esposende, Estremoz, Évora, Faro, Guimarães,
Lamego, Leiria, Lisboa, Mafra, Melgaço, Montalegre, Montemor-o-Velho, Oliveira do
Hospital, Penafiel, Porto, Póvoa do Varzim, Santa Comba Dão, Silves, Sintra, Tondela,
Valença, Viana do Castelo, Vila do Conde e Viseu. Na sua dissertação, Maria João
Gomes Covas, alertando para o facto de a lista que apresenta não ser exaustiva, elenca
84 periódicos – jornais e revistas de todo o País – que se referiram ao Orpheu.
Em defesa do Orpheu ergueram-se vozes minoritárias em Lisboa e em quatro
localidades da periferia atentas aos movimentos culturais que ali se publicavam:
Faro, Estremoz, Coimbra e Bragança. Comecemos por Lisboa e por quatro jornais da
capital: O Mundo, O Século, O Paiz e Acção Nacional.

Segundo informação do próprio Fernando Pessoa, o primeiro número do Orpheu


foi posto à venda no dia 26 de Março (sexta-feira), tendo o primeiro exemplar sido
vendido às 19 horas. Logo no dia seguinte, sábado 27 de Março, saía a primeira
referência crítica da imprensa, publicada pelo jornal O Mundo. Embora com alguma
cautela, a notícia é elogiosa:

Orfeu, revista trimestral de literatura. Um grupo de novos escritores acaba de lançar uma
revista trimestral, Orfeu, que é uma espécie de resumo das várias correntes modernas na nossa
literatura. Mesmo que se não concorde com a orientação geral dos colaboradores da nova
revista, tem de se lhes reconhecer talento e iniciativa, coisas infelizmente raras entre nós,
sobretudo em assuntos destes. O primeiro numero de Orfeu, que temos sobre a nossa mesa,
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 85

contém variada colaboração das mais caracteristicas figuras de entre os novos. Inclui versos
de Mario de Sá-Carneiro, Ronald de Carvalho, Alfredo Pedro Guisado, e Côrtes Rodrigues, e
insere duas poesias futuristas (as primeiras, cremos, que aparecem entre nós) do malogrado
[sic] Alvaro de Campos. Em prosa, além da exquisita introdução de Luis de Montalvôr,
director da revista, ha um drama num acto de Fernando Pessoa. A capa de Orfeu, do lápis
de José Pacheco, é curiosissima.

Estes elogios foram sol de pouca dura. Logo três dias depois, em 30 de Março,
o jornal A Capital publicava, com grande destaque, um artigo verdadeiramente
assassino, dando o mote para a longuíssima série de diatribes que iriam ser lançadas
pela Imprensa sobre o Orpheu. Os títulos fizeram história:

Na mesma ordem de ideias, no dia seguinte, 31 de Março, o popular e influente


humorista André Brun, dedicava a sua muito lida crónica Migalhas, às “maluqueiras”
da “rapaziada” do Orpheu. Para a generalidade da opinião pública, Fernando Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro e os seus amigos ficavam a partir de então definidos, sem apelo
nem agravo.
Na sexta-feira seguinte, dia 2 de Abril, pelo menos três jornais de Lisboa se referiam
ao Orpheu. O Século noticiava em sete parcas e cautelosas linhas, o aparecimento da
nova revista:

ORFEU – Assim se intitula uma revista trimestral de literatura, que se destina


a Portugal e ao Brazil, da qual é director o sr. Antonio Ferro e de que saiu o 1º.
numero, relativo aos mezes de Janeiro, Fevereiro e março. Traz uma colaboração
muito variada e interessante.

O Diário de Notícias e O Paiz anunciavam com simpatia a publicação da revista. A


circunstância de os dois jornais publicarem ipsis verbis o mesmo texto e a utilização
nele de termos de requinte literário (tais como “seiva ardente”, “desejo intenso de crear”
86 100 Orpheu José Blanco

e “última e derradeira nota de pensamento “raffinée”) pode fazer pensar na intervenção


de mão redactorial de alguém ligado ao grupo do Orpheu:

“Orpheu”. Com este título acaba de ser posta à venda uma revista trimestral de literatura, que
em Portugal é dirigida pelo sr. Luiz de Montalvor e no Brazil pelo sr. Ronald de Carvalho.
Todos os colaboradores do seu primeiro número são aquelles que se convencionou chamar
novos, e aos novos a quem anima uma seiva ardente e um desejo intenso de crear procuram
dar a ultima e derradeira nota do pensamento, a mais moderna e a mais “rafinée”. Entre
esses novos encontram-se Sá Carneiro, Fernando Pessoa, Alfredo Pedro Guisado, Alvaro de
Campos e outros. Na capa vê-se um curioso desenho de José Pacheco. Longa vida.

Publicava-se nessa altura em Lisboa um jornal monárquico, com o título Acção


Nacional, dirigido por Astrigildo Chaves, jornalista que fora republicano convicto mas que
depois do regicídio se convertera à Monarquia. O jornal teve curta duração: 15 números
publicados, entre 30 de Janeiro e 8 de Maio de 1915. Em pleno iniciar do escândalo do
Orpheu, no número de 3 de Abril, um articulista anónimo atacava os detractores da
revista, defendia-a com veemência e elogiava largamente os seus colaboradores:

É uma empreza bastante arriscada esta que um grupo de moços poetas tentou ao publicar
o “Orpheu”. Não é uma literatura banal a que encontrámos dispersa pelas 83 páginas do
volume, mas uma literatura “para raros apenas”, como diria Eugénio de Castro.
E tanto assim, que logo toparam os seus fundadores com uma decidida má vontade da parte
dos litteratelhos, que em cenaculos baratos dizem a ultima palavra d’Arte, arranchando a má
língua às mezas dos cafés ou às portas das livrarias.
Sentiram esses litteratos gá-gás arrripiarem-se os nervos ao deffrontarem a audacia deste
grupo de cultores do Bello. Certo jornal [A Capital] (…) não viu nas paginas da revista uma
sombra de talento, ou uma nesga de Belleza; fingiu não conhecer os nomes, já affirmados em
anteriores trabalhos, de Mario de Sá-Carneiro, o altissimo poeta da “Dispersão”, o estylista
incomparável da “Confissão de Lucio”; de Fernando Pessoa, que nas páginas d’“A Aguia”
escreveu um profundo estudo sobre a “Poesia Portugueza”; de Luiz de Montalvor, ainda
ha pouco regressado do Brazil, onde escriptores de mór nome e os novos principiantes o
consagraram e lhe deram as maiores provas d’estima e de admiração; de Almada Negreiros,
o caricaturista da nova geração e que ora se affirma um artista da penna.
Fingem ignorar tudo isto os escribas que querem uma Litteratura só para elles. Continuem
os jovens poetas a sua obra e deixem fallar quem falla. Acaso se confundiu alguma vez o
grito da águia com o grasnar da gralha?
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 87

Como já se disse, a repercussão do Orpheu cobriu todo o País, a partir de Faro.

Na capital do Algarve, a revista Alma Nova, criada um ano antes pelo jornalista
Mateus Martins Moreno e que se intitulava “revista mensal ilustrada de arte, sciencias
e literatura”, publicou no seu número de Abril, na rubrica “Por Lisboa. Crónicas
de Arte”, um extenso artigo sobre o Orpheu. Com inteligência, sensibilidade e
objectividade, o seu autor, A. Bustorff, elogiava a revista e os textos nela publicados,
embora levantasse dúvidas sobre os poemas de Mário de Sá-Carneiro, que “por
excesso de Interseccionismo, descambam em Charadismo”. O Autor guardava os mais
francos elogios para Fernando Pessoa e para o seu O Marinheiro, sobre o qual fazia
um pertinente comentário:

Fernando Pessôa [sic], no Marinheiro parece querêr traduzir-nos o mais completo estado de
abstracção em que as almas podem cair. As interrogações seguem-se e acumulam-se num
alheamento de Vida e de Realidade, cavalga-se o Sonho, vai-se além do Real, penetra-se o
Além-Vida… Essa historia encantada do marinheiro perdido em longinqua ilha e levado
pelas saudades da pátria a criar em sônho uma pátria nunca possuída, é, na verdade,
sentidissima. Como o marinheiro integrando-se no seu sonho até fazer da Irrealidade
Realidade, tambem nós, seguindo a historia, fomos por ela possuidos, caindo numa
abstracção doentia e aniquiladora. Era este o fim do senhor Fernando Pessôa? Se o era,
realisou-o por completo.

Referindo-se a Álvaro de Campos, A. Bustorff comenta com perspicácia a Ode


Triunfal, que para ele é uma “irritantíssima blague”:
88 100 Orpheu José Blanco

Porque é blague com certeza, essa “Ode Triunfal”. Blague que colocada na boca dum
nevrótico, dum neurasténico e espírito desordenado como esse hipotético engenheiro
Alvaro de Campos, toma o carácter e merece os louvores inerentes a uma página de
psiquiatria completissima. Por ela felicitamos o seu autor-editor, senhor Fernando Pessoa.
Merece-o.

A terminar a sua recensão, o crítico escreve:

E eis o Orpheu. O seu homonimo da Grécia amansava as brutas-feras com a harmonia da


vóz. Amansará os Críticos – feras guardadoras da Arte – com o ritmo das suas composições?
Esperamo-l’o.

O autor deste ainda hoje notável texto era um jovem que acabara de fazer vinte
anos e se chamava, de seu nome completo, António Júdice Bustorff Silva. Viria a
ser, anos mais tarde, um dos dois mais famosos advogados portugueses do século
XX, juntamente com o seu rival José de Azeredo Perdigão, que foi o primeiro e o
grande Presidente da Fundação Calouste Gubenkian. Azeredo Perdigão, se não fez
propriamente parte do grupo do Orpheu – era um jurista, não era um escritor – estava
ligado por íntima amizade a alguns dos seus membros, nomeadamente a Alfredo
Pedro Guisado e a António Ferro, que vemos nesta fotografia.

A foto faz-nos pensar em como era jovem a gente do Orpheu. Em 1915, António
Ferro tinha 20 anos de idade; Ronald de Carvalho e Almada Negreiros, 22; Alfredo
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 89

Pedro Guisado, Luís de Montalvor e Armando Côrtes-Rodrigues tinham 24; Mário de


Sá-Carneiro, 25. E Fernando Pessoa, fazia o papel de patriarca, com os seus 27 anos de
idade (Azeredo Perdigão era nessa altura um rapazinho de 19 anos).
Deixemos Faro e o Algarve e encaminhemo-nos para Estremoz, pacata vila
alentejana em que, em 1915, se fizeram sentir os ecos do Orpheu.

Num texto sobre a história do Orpheu e dos seus protagonistas, Fernando


Pessoa escreveu que à volta dos “primeiros da revista” havia “outros rapazes, mais
novos, que mais ou menos seguiram, então ou depois, a nossa corrente – uns com
individualidade real e própria, outros com um mimetismo desculpável”. Entre
estes últimos contava-se um jovem de vinte e um anos chamado Fernando Manuel
Carvalho Mourão, que mais tarde haveria de ser engenheiro e, por agora, era poeta.
No ano anterior, 1914, fora director da revista Renascença, em que Fernando Pessoa
se estreou como poeta, publicando as suas “Impressões de Crepúsculo”. O seu nome
figura na “Lista de assinantes” da revista, que Mário de Sá-Carneiro escreveu numa
das páginas do caderno de recortes.
Carvalho Mourão era colaborador do semanário Terra Nossa, de Estremoz, no
qual não perdeu tempo em publicar, em 11 de Abril, contra a corrente dominante
na Imprensa, um entusiástico artigo sobre o grupo do Orpheu, em que, entre outros
elogios, escrevia em estilo “futurista”:

Uma grande obra, com efeito, se propõe erguer esse grupo gentil de inteligencias, que
não pretende Forma mas pretende Essencia, que não anseia Altura mas que busca
Motivo e Côr.
Adivinha-se em toda aquela Realisação o Verbo ignorado e obscuro duma Sinceridade!
Não ha linhas de Colorido nem perfumes de Violeta a engrinaldar em Destaque esse Mundo
90 100 Orpheu José Blanco

que se pretende sentir para viver depois! (…)


Orpheu é no seu conjunto uma psicologia doente mas bela. A Alma passa em delírios de
febre… e canta… e sonha visionando mundos… (…)
Foi esta revista de literatura que a critica de Lisboa, conscenciosa creio, apelidou de “falha de
rasão”, “desconexa”, “imperfeita” e “sem verdade”, em todos os seus periodicos, justamente,
talvez, porque ninguem conseguiu compreende-la.
Um verdadeiro sucesso!

Este artigo de Carvalho Mourão, acompanhado da publicação do soneto “Ante


Deus”, de Alfredo Pedro Guisado e do já então muito célebre poema “7”, de Mário
de Sá-Carneiro, tiveram grande repercussão em Estremoz. Tanta que, no número
seguinte do semanário, publicado em 18 de Abril, um articulista de nome escondido
atrás das iniciais Ú.I., publicava a seguinte interessante prosa, sob o título “Variações
… sobre um velho tema”:

Também a Estremoz, ao meu lindo e bisbilhoteiro burgo, chegaram, mercê do artigo


no nosso anterior numero publicado, as notas extranhamente inéditas e, para muitos,
incompreensivelmente artísticas, da revista Orfeu, que um grupo de novos de valor deu à
lume ha dias (…)
Porque uns tantos de indiscutível talento, fartos do ramerrão do lirismo clássico, uniforme
nas suas sédiças e estragadas formas, criou, artisticamente, um novo género em que as suas
imaginações, sem peias de Forma, dão largas às suas sensações artísticas e aos seus vôos de
inspiração, batendo as asas, livres de obstáculos de Escolas ou Preceitos – levanta-se um
escarcéu e formulam-se opiniões que eu ouvi.
Não é de extranhar; que se pode exigir, o que é de esperar de quem tem o gosto artístico
completamente sem cultivo e as faculdades artísticas a cada passo ofendidas impunemente,
em todos os campos, por mesquinhas e banais produções? (…)
Maior número de pessoa há ainda que foge a sete pés duma qualquer confusa mas
transcendente e sublime audição wagneriana, para se deliciar com a Maria Cachucha ou o
Fado do Ciume.
E ainda outra amostra cuja ideia eu sintetizo numa pergunta: o que tem mais leitores, o
Almanaque das Gargalhadas ou os Sonetos de Antero?
Esta, de prosaicos, completamente desprovidos de educação e sentimento artísticos, se
meterem a criticar o Orfeu, lembra-me aquele sacristão que em latim só sabia dizer Amen e
nas horas vagas, em conversação, versava Homero…
Pois a respeito do Orpheu dizia-me há dias o meu compadre Cosme:
– Não é o mel para a boca do asno.
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 91

Sigamos de Estremoz para Coimbra:

Publicava-se nessa época em Coimbra um jornal com o título O Dever e o subtítulo


Semanário defensor da união da Família Portuguesa. Intervindo na polémica do
Orpheu, um articulista anónimo escreve um longo texto doutrinário sob a forma de
conversa entre dois interlocutores, um dos quais inesperadamente afirma:

Nesse “Orpheu” tão discutível e tão perturbador não encontro só joio. De momento a
momento encontro vislumbres de Arte e pensamentos apreciáveis. É possivel que esses
que têm uma teoria para a escola que pretendem estabelecer, a introduzam em Portugal,
depois de facetada e de purificada dos sem valor que nada mais fazem do que ocupar
espaço.

É em Trás os Montes que encontramos a melhor surpresa: um excelente exemplo


de crítica literária “à antiga portuguesa”:
92 100 Orpheu José Blanco

Em 29 de Abril, o jornal Notícias de Bragança, que se intitulava “Órgão do Partido


Democrático” e era dirigido por Alberto Charrua (deputado durante a Monarquia e
que continuou a sê-lo na República), revelou-se como o mais extreme defensor dos
autores do Orpheu – melhor dizendo, como o mais violento – e virulento – atacante
de quantos diziam mal da revista

Apareceu ha dias nas montras das livrarias uma revista literaria, Orpheu de nome, orgão de
meia duzia de preopinantes, que resolveram lançar neste país o futurismo das letras, dar nas
vistas e irritar os indigenas. Mais ainda que os disparates poeticos que a obra contém me
irrita a campanha indecente que as gentes do meu país fizeram aos homens que ali lançam
as suas produções literarias.
A “Capital” de Lisboa tratou os escreventes de imbecis e mais coisas feias e o Sr. Camacho
da “Lucta” mandou a Rilhafoles perguntar ao dr. Julio de Mattos se tinham o juizo todo.
Que diabo, não compreendo porque tamanho reboliço com estes homens de letras quando,
p’la província qualquer sapateiro se julga com o direito de dedilhar a lira d’Orfeu no
intervalo de duas tombas.
De resto, vá de dizer que Orpheu, ao pé de muita coisa disparatada mas que o autor pôde
julgar excelente, tem produções de gente ajuizada, melhores algumas do que muitas
assinadas por criaturas que criticam a revista.
Aquilo é bonito e, palavra d’honra, eu gosto de muitas coisas que lá vêm. Vi lá mesmo
um bocado de prosa do sr. Fernando Pessoa – O Marinheiro – que é um primor de arte e
literatura.
Mas ha quem não goste porque a revista prospera e este país é um coio de invejosos onde
ninguém pode medrar nas letras sem o perigo de levar um coice do primeiro fazedor de
prosa que aparece a um canto…
E o que é verdade é que este grupo de rapazes audaciosos, se algo mais não conseguiu para
o bem próprio e das letras pátrias, pelo menos deu nas vistas e irritou o indigena, coisa que
não pode deixar de merecer o meu aplauso e a minha simpatia profunda.
Pois venha de lá o 2º. Orpheu, para ver outra vez no ar as ferraduras dos críticos literários
do meu país.

Um dos aspectos interessantes da história do Orpheu foi a repercussão que a revista


teve na Galiza, começando em Santiago de Compostela. E tal repercussão, ao contrário
do que aconteceu com a generalidade da Imprensa portuguesa, foi altamente positiva.
O facto de os críticos galegos terem atentado na revista tem um único responsável:
Alfredo Pedro Guisado.
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 93

Filho de emigrantes galegos em Lisboa, Alfredo Pedro Guisado teve desde cedo
uma ligação muito estreita com a Galiza, mantendo uma rede de relações e contactos
com escritores e intelectuais galegos. Colaborador habitual do semanário El Tea, já
antes de 1915 numerosas produções literárias suas tinham sido publicadas na Galiza.
Não é de estranhar, portanto, que o primeiro número do Orpheu tenha sido desde
logo conhecido na Galiza e merecido referências críticas nos jornais galegos.
Uma das primeiras apareceu no jornal El Eco de Santiago, assinada por Juan Barcía
Caballero, médico de profissão e homem de letras, de 63 anos de idade, respeitado
autor de poesias e prosas de gosto bastante conservador

Sus redactores, seguramente jóvenes y por lo tanto valientes y arriscados, se confiesan


francamente modernistas y dispuestos a romper los viejos moldes y las tradiciones
rutinarias. Y a fe que lo hacen como lo dicen: todo es nuevo allí, la forma, la manera, la
métrica y el asunto. Algunos de los trabajos son verdaderamente extraordinarios, sobretodo
por eso, por ser cosa fuera de lo usado y corriente. Haylos también casi incomprensibles:
tales son ellos de alambicados y febriles – término muy usado por sus autores.
En general sobresalen los trabajos en prosa. Creo que en primer lugar debe citarse O
marinheiro, de Fernando Pessoa. Aunque sutil y quintesencia en demasía, tiene verdaderos
atisbos de genio y atrae fuertemente a toda alma soñadora y filosófica. Puede ser base de
una reputación entera.

Pouco tempo depois, nas páginas do jornal La Concordia, de Vigo, um entusiástico


crítico de nome Jesus Cano, não hesitava em escrever rasgos líricos como este:
94 100 Orpheu José Blanco

Todo el brío, toda la fuerza impulsiva de la juventud intelectual portuguesa, ha dejado su


bridaje suelto en el galopar de sus nobles ansias, de sus altos anhelos, haciendose paso por un
campo florido sembrado com sus propias ensoñadoras aspiraciones y que se llama Orpheu.
La obra de Orpheu es ya una realización. (…) Toda la juventud lusitana está en Orpheu.

Finalmente, num outro jornal de Vigo não identificado por Mário de Sá-Carneiro,
um crítico que assina apenas com as iniciais R.R., contesta a opinião generalizada na
Imprensa portuguesa de que o Orpheu era uma “rapaziada”:

Porque es lo cierto que los fundadores de Orpheu, verdaderos revolucionarios de la pluma,


non son, cuatro mozalhetes almidonados, com muchas pretensiones y sin ningun prestigio,
sino escritores de muy sólida reputación.
Esos jóvenes enamorados de la nueva escuela, por ellos creada, constituyen una hermosa
aristocracía intelectual, la aristocracia del nuevo estilo que sabe entrelazar las opacidades de
melancólicos atardeceres com los bellísimos destellos de doradas auroras.

E exclama no final:

Y hemos de terminar este brevísimo trabajo, dando un fuerte y sincero hurrah! a esos rebeldes
artistas que com tanta valentia y arrogancia vuelven los ojos hacia lo porvenir, despreciando
com una sarcástica sonrisa bajezas, odios y desplantes de cuatro miserables sapos.

Aqui chegados, pergunta-se: mas que tem tudo isto a ver com o título deste texto
– “Orpheu – Regabofe Tiroliro”? Eis a explicação: esta insólita expressão está ligada à
consagração popular definitiva do Orpheu, através da sua subida ao palco do teatro
de revista.
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 95

Na noite de 23 de Junho de 1915 estreava-se com grande sucesso no Eden-Teatro,


a revista O Diabo a Quatro, com texto de Ernesto Rodrigues, Felix Bermudes e João
Bastos (a famosa “Parceria”), e música de Thomás Del-Negro e Bernardo Ferreira.

A Ilustração Portuguesa, no seu número 489 de 5 de Julho de 1915 elogiava a


revista e os seus autores. Um dos quadros de maior sucesso intitulava-se “Os poetas
do Orpheu” e era representado por Nascimento Fernandes, no papel de “Orpheu” e
Álvaro Cabral, como compère.
96 100 Orpheu José Blanco

Nesse quadro, o poeta “Orpheu” parodiava simultaneamente a Manicure, de Mário


de Sá-Carneiro e a Ode Marítima de Álvaro de Campos, recitando:

Pegai num carapau, vesti-lhe uma casaca


Metei dois camarões na cova dum suspiro
Cobri com um véu de noiva os chifres duma vaca
Pegai numa espada e disparai um tiro…
Pum!

Atrelem-me as vergas dos navios…


Enforquem-me em todos os comboios…
Amarrotem-me os colarinhos, quebrem-me os
ossos…
Assobiem-me o Hino da Carta!

E no fim do quadro eram cantadas as seguintes coplas:

Asneirofe, escrevinhari, tiroliro


Regabofe tiroliro
Camion, bom-bom!
Burricófe, cavalati, sela, tiro
Tiroliro
Toma lá piramidon
Fon-fon!

Satanaz, o machacaz que é ferrabraz,


Barrabaz e fariseu
Mas audaz,
Sagaz,
Um dia p’ra que lhe deu?
P’ra ler o Orfeu.
Sabem o que lhe aconteceu?
Satanaz endoideceu!
Orfeu! Orfeu! Orfeu!

Sola, sapato, rei e rainha,


Isto é um mal que dá na pinha!
Pico, pico, cerenico – bis –
“Orpheu” Regabofe Tiroliro 97

Quem te deu tamanho bico?


Não fui eu!
Nem eu!
Nem eu!
Se calhar foi o Orfeu.
Larga o rabo que não é teu.
Orfeu! Orfeu!
Orfeu!
Asneirofe, escrevinhari, tiroliro
etc.

É pena que não seja possível ouvir a música que Thomás Del-Negro e Bernardo
Ferreira compuseram para esta divertida letra de Ernesto Rodrigues, Felix Bermudes
e João Bastos, talvez a melhor das muitas paródias a que o Orpheu deu origem. Mas
é possível imaginar que os jovens autores do grupo do Orpheu tenham ido ver a
revista – e tenham achado graça à brincadeira…
Orpheu da Arábia
A temática arábico-islâmica no Modernismo português

Fabrizio Boscaglia
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

Palavras-chave: Geração de Orpheu; Sensacionismo; Civilização Arábico-Islâmica;


Orientalismo; Al-Andalus.
Resumo: São aqui apresentados elementos úteis para se investigar o tema arábico-islâmico nas obras
de alguns protagonistas da designada Geração de Orpheu: Fernando Pessoa, Almada Negreiros,
Mário de Sá-Carneiro, Ângelo de Lima, Alfredo Pedro Guisado, Amadeo de Souza-Cardoso e
Ruy Coelho. Procura-se enquadrar esta temática no discurso cultural acerca da identidade
portuguesa, mostrando dados biobibliográficos e histórico-culturais que contribuam para o
estudo da presença arábico-islâmica na história da literatura e do pensamento portugueses.

O sensacionismo é puramente arabe.


Fernando Pessoa (2009: 222)

A oportunidade de se estudar a temática arábico-islâmica no chamado primeiro


Modernismo português é sugerida diretamente e em primeira instância pela obra de
Fernando Pessoa. Este interessou-se pelo passado muçulmano da Península Ibérica
(outrora Al-Andalus; 711-1492) e abordou, por volta de 1916, a presença e o legado
da Civilização Arábico-Islâmica no Orpheu.
Enquanto impulsionador intelectual e teórico do Sensacionismo, a corrente artística
e cultural divulgada pela revista, Pessoa dedicou-se a esta tarefa através de um autor
fictício, o “filósofo” António Mora. Segundo este, existe um «elemento arabe» – isto
é, arábico-islâmico1 – na mentalidade e na cultura portuguesas (PESSOA, F., 2009:
222-227). Trata-se do legado psíquico-coletivo e cultural herdado dos cerca de cinco
séculos de administração islâmica (cerca de oito, de presença ativa na sociedade) no
ocidente ibérico (em árabe, Ġarb Al-Andalus; 711-1492).

1 Pessoa e outros autores citados neste artigo utilizam, na maior parte dos casos, o substantivo e adjetivo ‘árabes’
conforme um costume das Letras portuguesas, num sentido abrangente e cientificamente pouco rigoroso,
para falar dos muçulmanos e da Civilização Islâmica em geral, e não apenas dos naturais da Arábia ou dos
arabófonos (cf. BOSCAGLIA, F., 2015: 44). Sobre a «designação cómoda e genérica» de «Árabes» nas Letras
e na historiografia portuguesas, veja-se a voz «Árabes na Península» no Dicionário de História de Portugal de
Joel Serrão (1984-2000, vol. 1: 166).
100 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia

Segundo Mora, este «elemento arabe» (ou «spirito arabe» ou «arabismo») tinha ficado
latente durante as Cruzadas e a Inquisição católicas («eterno ponto morto do christismo
peninsular») e estava a reemergir na cultura nacional através do Sensacionismo
(PESSOA, F., 2009: 222-223), graças ao renovado contexto político e cultural
determinado pela implantação da República Portuguesa (1910), nomeadamente pelo
intrínseco anticatolicismo desta: «Os sucessivos sucessos revolucionários portuguezes
acabaram por destruir o catholicismo como fé real. [...] Com isso ficou preparada a
emergencia do outro elemento da nossa psyche, até ahi latente: o elemento arabe.»
(PESSOA, F., 2002: 223).
A convicção de a República ser essencialmente «anti-catholica» deve-se a uma série
de medidas («leis anti-catholicas») tomadas logo após a implantação da mesma, que
culminaram na promulgação da Lei da Separação entre Estado e Igreja (1911). Este é o
âmbito político e cultural em que Mora situa a ação dos sensacionistas: «Nascidos com a
geração que estabeleceu a Republica, são, no fundo, anti-catholicos» (PESSOA, F., 2009:
223-226).
Para melhor contextualizar estes elementos, considero necessário referir previamente
alguns elementos da presença arábico-islâmica na história e na história cultural
portuguesas2. Antes e durante o nascimento e o estabelecimento do Reino no contexto
das Cruzadas e da chamada Reconquista (1139), os muçulmanos administraram uma
grande parte das terras lusas (711-1249), deixando um relevante legado literário,
cultural e civilizacional no nascente Reino de Portugal. A partir do século XVI,
logo após a expulsão de muçulmanos e judeus (1496) e com o início da Inquisição
(1536), consolida-se nas Letras portuguesas um processo de parcial ocultação e
menosprezamento deste legado, também condicionado pelo clima religioso e cultural
das novas Cruzadas contra os Otomanos (conquistadores de Constantinopla em 1453).
Com efeito, a literatura e o discurso cultural nacionais irão incorporar durante muito
tempo uma representação estereotipada do muçulmano enquanto o outro, infiel e
inimigo, que consubstanciará aspetos do mito e da narração identitária da portugalidade
ainda no século XX (cf. VAKIL, A., 2003: 257-260). Exemplo paradigmático disto são as
menções aos «Mouros enganosos» e ao «malvado Mouro» n’ Os Lusíadas de Camões (I,
101, 1; II, 7, 6). Apesar disto, durante os séculos das Cruzadas e da Inquisição existem
também alguns casos de arabofilia e de reconhecimento do legado arábico-islâmico em
Portugal, nomeadamente nos romances e nas lendas populares e ainda na dramaturgia
do século XVI (ALVES, A., 2009: 75).

2 Elementos para este enquadramento histórico e histórico-cultural encontram-se em escritos de Adalberto


Alves (2009: 65-95), Elsa Rodrigues dos Santos (2005) e Pinharanda Gomes (1991).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 101

Uma sensibilidade menos vinculada aos referidos estereótipos começa a surgir no


início do século XIX com os escritores românticos, em concomitância com o fim oficial
da Inquisição em Portugal (1821), com o influxo do Romantismo europeu e com as
expedições de Napoleão ao Egito (1798-1801), que marcam o início de uma nova fase
imperialista e colonialista europeia, já não identificada com a ação da Igreja Católica.
Em Herculano, Garrett e Soares de Passos começa a aparecer um recorte psicológico
e/ou um fundo historiográfico e filológico mais complexo e menos estereotipado, no
que respeita à representação do “mouro” e do “árabe”.
Na segunda parte do século XIX, a designada Geração de 70 dedicar-se-á a uma
tentativa de reconhecimento da importância do legado e da cultura islâmicos na
Península. Ainda no início do século XX, tanto a Renascença Portuguesa como a Geração
de Orpheu serão devedoras das criticadas teorizações moçarabistas de Teófilo Braga, da
historiografia peninsular de Oliveira Martins e da historiografia cultural esboçada por
Antero de Quental em Causas da decadência dos povos peninsulares (1871).
Estas referências, aqui sumariamente referidas, são cruciais para se abordar, tanto
a recuperação de um fundo psíquico-coletivo composto (entre outros elementos) de
«atavismos árabes» no Saudosismo de Teixeira de Pascoaes (1987 [1919]: 167), como
a «emergencia do spirito arabe» que Pessoa referia em 1916 no Sensacionismo, através
de uma teoria da mentalidade arábico-islâmica enquanto fusão de um «subjectivismo»
(imaginação, introspeção) propriamente «arabe» e de um «objectivismo» (cientismo,
fatalismo) herdado pelos muçulmanos dos gregos, cuja cultura antiga «foi missão dos
arabes transmittir á Europa» durante a Idade Média e particularmente na Península
(PESSOA, F., 2009: 225). Como referi anteriormente, esta teorização foi entregue por
Pessoa ao quase-heterónimo Mora em 1916 (num período em que o Império Otomano
se dissolvia e era aliado da Alemanha na Primeira Guerra Mundial). Mora detetou uma
identidade entre as características do Sensacionismo e da mentalidade arábico-islâmica:

A essa corrente chamaram os seus membros o “sensacionismo”; se houvessem tido a noção


exacta das origens, ter-lhe-hiam dado, antes, o nome de /neo/-arabismo3, ou qualquer
outro, com o mesmo sentido historico.
Nella renasce todo o spirito arabe no que directamente arabe, não como transmissor da
ideação grega. O enthusiasmo de imaginação, a sensualidade intellectual da meditação e do
mysticismo, o esmiuçamento de sensações e de idéas, taes characteristicas revelam a psyche
arabe, transportada que seja para o nosso periodo. (PESSOA, F., 2009: 222-223)

3 O símbolo // indica lição duvidada pelo autor.


102 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia

A descrição da mentalidade arábico-islâmica como sonhadora e sensualista


é inerente ao chamado Orientalismo, cujas instâncias Pessoa recebia, por volta
de 1916, através das leituras de escritos do orientalista alemão Theodor Nöldeke
(BOSCAGLIA, F., 2015: 169-190).
Enquanto representação estereotipada do “Oriente”, produzida pela cultura
europeia e ocidental «para dominar, reestruturar e exercer autoridade sobre o
Oriente», o Orientalismo é descrito por Said como «estilo de pensamento baseado
numa diferença ontológica e epistemológica estabelecida entre “o Oriente” e [...] “o
Ocidente”». Sensualismo, fatalismo e despotismo são alguns temas e motivos pelos
quais as academias e artes europeias têm vindo a representar, com pretensão de
objetividade, um Oriente tendencialmente «aberrante, subdesenvolvido e inferior»
perante um Ocidente «racional, desenvolvido, humanitário e superior». Said
apresenta estes elementos como «dogmas» do Orientalismo, que «existem hoje na
sua forma mais pura nos estudos sobre os árabes e sobre o Islão», «apesar ou além de
qualquer correspondência, ou ausência dela, com o Oriente “real”»4 (SAID, E., 2004
[1979]: 2-7, 102, 345, 355-356).
Na Geração de Orpheu, o imaginário orientalista (nomeadamente, do “Oriente”
arábico-islâmico) não se enquadra plenamente neste Orientalismo. Por exemplo, o
poema «Opiário» de Álvaro de Campos (escrito «[n]o canal de Sués»; PESSOA, F.,
1915: 82) foi interpretado por Duarte Braga como obra em que existe uma síntese e
ao mesmo tempo uma crítica do referido paradigma orientalista (BRAGA, D., 2014:
389-423). Braga salienta que, neste poema, mais do que a representação do Oriente
enquanto «o outro civilizacional da Europa», o imaginário orientalista consubstancia
uma estética do espaço interior e subjetivo que revela «um outro que é o mesmo,
ou melhor, que se descobre enquanto tal» (BRAGA, D., 2014: 410). O imaginário
orientalista é, logo, utilizado para representar o “espaço interior” e subjetivo do
próprio homem ocidental (português): «[o] Oriente simboliza esse eu profundo e
impossível, porque sempre “ao oriente do Oriente”, a que é necessário aportar. Fumar
ópio seria, assim, a metáfora desse processo de descoberta do “Oriente-alma”.»
(BRAGA, D., 2014: 400).
Outro «distanciamento» perante o paradigma orientalista é detetado por Braga
no poema «Distante melodia» de Mário de Sá-Carneiro (1915a: 13), em que lemos
acerca de «Tapetes doutras Pérsias mais Oriente...» e de «outras Turquias...». Trata-se,

4 Tradução de Pedro Serra. No original: «dominating, restructuring, and having authority over the Orient»;
«a style of thought based upon an ontological and epistemological distinction made between “the Orient”
and (most of the time) “the Occident.”»; «aberrant, undeveloped, inferior»; «rational, developed, humane,
superior»; «dogmas»; «exist in their purest form today in studies of the Arabs and Islam» «despite or beyond
any correspondence, or lack thereof, with a “real” Orient» (SAID, E., 1979: 2-6, 300-301).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 103

aqui, de um Oriente imaterial e “simbólico”, que não veicula em primeira instância


uma ideia de alteridade histórico-cultural, antes uma «interiorização da realidade
em “sonho”», típica da estética sensacionista codificada por Pessoa (BRAGA, D.,
2014: 373-375).
Realidade e sonho, eu e outro, Oriente e o Ocidente... Dicotomias ou polaridades
que se fundem no subjetivismo sonhador de Pedro de Menezes (1916: 12-13),
pseudónimo sensacionista de Alfredo Pedro Guisado (PESSOA, F., 2009: 207-210).
Este, ao representar a batalha de Alcácer-Quibir através de uma ontologia meta-narrativa
(«creio que a batalha | apenas existiu no meu contá-la!»), retrata a figura de D. Sebastião
utilizando um imaginário arabizante: «E el-rei agora é o luar, perdido, | Eco falando em
claustros dum convento | O coração duma princesa moira...».
Em Pessoa ortónimo, o próprio imaginário do Al-Andalus veicula uma ontologia
e psicologia do eu e da saudade:

Outr’ora fui talvez, não Boabdil5,


Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...

Hoje sou a saudade imperial


Do que já na distancia de mim vi...
Eu próprio sou aquillo que perdi...
(PESSOA, F., 1916: 68)

No mesmo período, Pessoa ultrapassa a distinção orientalista entre Oriente


(Civilização Arábico-Islâmica) e Ocidente (Cultura Portuguesa) ao teorizar
de forma programática sobre os seus ismos, clamando: «O sensacionismo é
puramente arabe.» e «Não ha profundo movimento portuguez que não seja um
movimento arabe, porque a alma arabe é o fundo da alma portugueza.» (PESSOA,
F., 2009: 222, 229). Trata-se de uma radical mudança de perspetiva, pela qual
caduca o pilar teórico fundamental do Orientalismo, ou seja, a sistemática distinção
onto-epistemológica entre Oriente e Ocidente. A Civilização Arábico-Islâmica vem
a ser considerada como componente da formação (e/ou da própria essência) da
portugalidade bem como do próprio Sensacionismo enquanto proposta cultural
portuguesa.

5 Muhammad XII (1459-1528), último rei muçulmano do Al-Andalus.


104 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia

Já a partir destas primeiras referências, coloca-se a hipótese de que o tema


arábico-islâmico possa ser lido, na Geração de Orpheu e para além do caso de Pessoa,
como parte de um discurso identitário (psicológico, estético, étnico-cultural) em
que se aprecia um distanciamento e/ou uma ultrapassagem da distinção sistemática
entre o Ocidente – enquanto o mesmo –, e o Oriente arábico-islâmico – enquanto o
outro –, que define filosoficamente o chamado Orientalismo europeu e que conota
historicamente uma parte do discurso nacional português.
Tendo em consideração este quadro hermenêutico, leiam-se agora estes versos
do poema «Fado» de Ângelo de Lima, poeta de Orpheu:

Fado – Mistério Improfundo...


Saudade – Sultana Lenda...
Legenda – História do Mundo...
– Fado – Saudade – Legenda!...
[...]
Canto dolente do Harem...
– Como a Vela ao Vento – Além...
– Ao qual geme o Alfange no Ar!...
– Saudade – Sultana Lenda!...
[...]
(LIMA, Â., 2003: 62-63)

Aqui, o imaginário orientalista (o harém) é utilizado, já não para se dirigir ao


outro oriental, mas sim para retratar elementos comumente tidos como identitários
da cultura portuguesa: o Fado e a Saudade. Enquanto o imaginário estético-literário
é orientalista, não o é a onto-epistemologia cultural e civilizacional subjacente à
obra. Orientalismo e “arabismo” são, aliás, referidos como dois aspetos distintos
pelo próprio Lima numa numa carta dirigida aos autores da revista Orpheu a
8 de abril de 1915, em que o poeta refere o caráter «medieval, sarraceno e, um
pouco ainda, Orientalista» de Orpheu (apud NOGUEIRA, M., 2005: 79). Terá esta
carta acompanhado a escrita de Pessoa/Mora sobre o Sensacionismo enquanto
Neoarabismo?
Seja como for, numa perspetiva de história dos conceitos e das ideias, é pertinente
notar que, independentemente de o Fado ter ou não ter uma influência musical
arábico-islâmica (como foi debatido)6, as raízes etimológicas das próprias palavras

6 Algumas referências textuais inerentes a este debate são fornecidas por Kamila Koncová (2011: 28-31).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 105

Fado e Saudade foram reconduzidas pela Arabística portuguesa7 aos vestígios árabes
da língua portuguesa: ‘saudade’, vindo da palavra árabe sawdā’, ‘melancolia’; e ‘fado’,
de hadū, ‘cantilena de caravana’.
Estas vertentes etimológicas e conceptuais poderão ser utilizadas numa abordagem
comparativa e hermenêutica dos textos de Teixeira de Pascoaes (1987 [1919]: 51-52)
sobre a Saudade enquanto essência psíquico-espiritual da raça portuguesa: «[a]
melancolia árabe e o Panteísmo do norte, definiram, num meio concordante, a alma
dos lusíadas, que se contém no seu primordial e original sentimento da Saudade.». A
oportunidade de se citar Pascoaes neste contexto é justificada pelo facto de Orpheu
se situar, também e em concreto no percurso biobibliográfico de Pessoa, como aquela
revista que, ao distanciar-se do Saudosismo, também se colocava num diálogo crítico
e ativo com ele, como é evidente nesta passagem de Pessoa, escrita por volta de 1917,
possivelmente como comentário a Arte de Ser Português8 de Pascoaes (1915):

O fundo romano-grego-arabe-semita da n[ossa] mentalidade. Viu-o T[eixeira] de Pascoaes


quando, na linguagem nevoenta e absurda dos mysticos, fallou no “aria e semita” em
n[osso] sangue. Mas viu certo, sob a sua confusão verbal. A intuição do mystico  subjaz a
incoherencia do mysticismo. (PESSOA, F., 2012: 47)

Tal como Pascoaes, outro artista natural de Amarante foi Amadeo de Souza-Cardoso,
pintor cuja participação no Orpheu era planeada para o número 3 da revista, que
não chegou a ser publicado na altura. Numa carta enviada à sua futura esposa
Lucie Meynardi Pecetto, em 1910, Amadeo escrevia: «Ha tormentos dentro de mim,
alegrias momentaneas, estados de uma alma complicada. É o sangue arabe que me
gira cá dentro, o sangue visionario, fervendo sem cessar, supersticioso, profundamente
tragico.». Noutra carta dirigida à sua amada, lê-se: «Ontem em Aveiro tinha grandes
desejos de te ter commigo. Aveiro é todo penetrado de canaes do mar, a paysagem é de
um horizonte infinito, a cidade branca como uma mesquita arabe.» (SOUZA-CARDOSO,
A., [1890-1988]: ASC 12/09, 12/04).
Uma veia arábico-islâmica na auto-observação psicológica do próprio Amadeo
bem como na caraterização da paisagem portuguesa é reconhecida pelo artista neste
momento de intimidade e privacidade transposto para carta. Elementos da temática
arábico-islâmica na obra Amadeo são evidentes no caderno de desenhos XX Dessins

7 Veja-se o Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa de Adalberto Alves (2013).


8 Cf. «A alma, a personalidade da nossa Patria resultou, como dissemos, do cruzamento de distintos e nobres
atavismos: celtas, romanos, arabes, fenicios, godos, judeus, normandos, etc; e, por isso, traduz, numa unidade
original e activa, as qualidades herdadas d’aqueles povos.» (PASCOAES, T., 1915: 180).
106 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia

(Paris, 1912), nomeadamente nos desenhos «Mauresques» (‘Mouras’) e «Les chevaux


du Sultan» (‘Os cavalos do Sultão’). Como sugere Ayres de Abreu (2014: 44-45), é
possível que o primeiro tenha sido realizado em concomitância com a produção
da obra musical intitulada 6 Kacides9 Mauresques, composta por Ruy Coelho
possivelmente entre 1911 e 1912, aquando da estadia deste em França. As letras desta
obra são traduções francesas de poemas de «poetas arabes do X século», aos quais o
compositor – que teve significativas relações com os artistas de Orpheu – se referiu
em carta a Teófilo Braga em 1913 e que possivelmente tinha lido no Mercure de France
(1909)10.
Um pormenor do referido desenho «Mauresques» de Amadeo – o umbigo de
uma das mulheres representadas – é a meu ver mencionado numa variante do
poema «Litoral» de Almada Negreiros: «Castelo dos moiros □11 o umbigo da moira
| resto de sarracenos» (NEGREIROS, A., 2001: 203). Este poema, escrito em 1916,
foi dedicado por Almada ao artista amarantino (sobre o qual naquele ano escreveu
também um elogioso manifesto12). Neste texto assim como em outras obras,
Almada representa o Castelo dos Mouros, vestígio do período islâmico de Sintra,
cidade onde ele viveu e que frequentava com agrado. Este imaginário faz também
parte de um certo medievalismo arabizante que é comum, tanto aos referidos
Dessins de Amadeo como à atividade literária e plástica de Almada: por exemplo,
em «Histoire du Portugal par cœur» (1922), no desenho intitulado «Sintra» e no
desenho intitulado «D. Afonso Henriques», em que também é representado um
“mouro” (NEGREIROS, A., 2001: 75, 77). Emerge neste segundo desenho, dedicado
ao “Milagre de Ourique”, o tema das Cruzadas (logo, do chamado choque de
civilizações).
Existe um elemento arábico-islâmico de outro género, na obra de Almada, patente
logo desde o primeiro verso do seu primeiro poema, «Rondel do Alentejo», escrito
em 1913 e publicado em várias edições entre 1922 e 1930. Trata-se de um texto cuja
abordagem é particularmente significativa para o presente estudo. O poema descreve
um baile alentejano e abre-se com uma imagem islamizante (um minarete) que conota
a primeira e a última estrofes, que são idênticas:

9 A palavra árabe qaṣīdah indica um tipo de poema árabe, que pode chegar a ter mais de cem versos.
10 Os referidos poemas foram publicados por Franz Toussaint sob o título «Kacidas mauresques du X.e siècle».
11 Espaço deixado em branco pelo autor, por razões gráficas e estéticas.
12 O manifesto intitula-se Exposição Amadeo de Souza-Cardoso.
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 107

Em minarête
mâte
bate
leve
verde neve
minuette
de luar.

Além de uma referência sonhante, vagamente folclorística e lendária ao passado


muçulmano das terras alentejanas, o poema apresenta elementos que deixam supor
a intenção de Almada em sondar e/ou expressar uma consciência da componente
arábico-islâmica das suas raízes culturais: a esta hipótese leva-me o facto de o Alentejo
ser a terra natural do seu pai, António Lobo de Almada Negreiros; além disso, note-se
que a palavra Almada possivelmente deve a sua origem etimológica ao lema árabe
al-ma’dnah, que significa propriamente ‘o minarete’ (e ‘a torre’, ‘o farol’), o que permite
especular que Almada tenha começado a sua atividade de poeta deixando uma espécie
de “assinatura” arabizante, logo no primeiro verso do seu primeiro poema.
O facto de este poema vir acompanhado, em 1929, do subtítulo «uma obra-prima da
poesia sensacionista» (NEGREIROS, A., 2001: 270), oferece mais uma possibilidade
de o ler no quadro hermenêutico estruturado por Pessoa/Mora em 1916, pelo qual o
Sensacionismo é um Neoarabismo.
Outros temas arábico-islâmicos estão presentes, ao longo das décadas, na obra
literária e plástica de Almada. Ainda no contexto de Orpheu e nos anos imediatamente
sucessivos, emerge um elemento arabista-orientalista na sua escrita poética. Em 1915,
em «A cena do Ódio», em que também existe uma etimologia árabe (alfange, de
al-ḫanǧar, ‘punhal’) que já encontrámos no citado poema «Fado» de Ângelo de
Lima: «Hei-de Alfange-Mahoma | cantar Sodoma na Voz de Nero!» (NEGREIROS,
A., 2001: 23). Em 1919, em «Os ingleses fumam cachimbo», em que também se
nota o imaginário do Canal de Suez (também presente no referido «Opiário» de
Campos e, no século XIX, em várias obras de Eça de Queirós): «Cachimbo de moiro,
| Constantinopla, | Canal de Suez!» (NEGREIROS, A., 2001: 61).
Dois anos mais tarde, n’A invenção do Dia Claro, «o arabe» que rapta a «menina
loira» emerge enquanto uma das figuras centrais da obra (obra em que aparecem
outras referências ao mundo islâmico13) representando o arquétipo do masculino e da
virilidade com o qual o autor deseja identificar-se:

13 Nomeadamente, a «Mahomet» (NEGREIROS, A., 1921: 27).


108 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia

Um homem – saber raptar; uma senhora – merecer ser raptada.


Exemplo de homem que soube raptar: o arabe. Exemplo de senhora que mereceu ser
raptada: a menina loira da oleografia.
[…]
Mãe! eu queria ser o arabe! Eu queria raptar a menina loira! Eu queria saber raptar.
(NEGREIROS, A., 1921: 18, 26)

Seria interessante investigar se uma determinada caracterização (e valorização) do


elemento viril associado à mentalidade e à Civilização Arábico-Islâmica possa ter sido
veiculada pela leitura de Der Antichrist de Nietzsche (1895: § 60), que Almada podia
conhecer ou ter lido. Note-se que este livro possivelmente contribuiu também para o
referido processo de reflexão de Pessoa sobre o «arabismo» no Orpheu (BOSCAGLIA,
F., 2016: 143-158). Entre várias outras referências14 ao mundo arábico-islâmico em
Almada, gostaria de sublinhar a inclusão – e não ocultação – dos «Mouros» numa lista de
elementos que compõem a formação e a história de Portugal, no romance Nome de
Guerra (escrito em 1925):

Poder-se-ia ver Portugal inteiro de uma só olhadela, como no mapa, em aeroplano?


– Palmela e Almada. De cá, Sintra e Santarém. Mouros, Afonso Henriques. Os cruzados.
E desde então até hoje. Até aqui a esta água-furtada. Até mim. Tanta gente e tantos séculos
encarreirados por aqui: as quinas, Avis, caravelas, o pelicano, a esfera armilar, Filipes, azul e
branco, encarnado e verde, e continua. Nada para mim. Portugal.
(NEGREIROS, A., 1997: 347)

Numa perspetiva histórico-cultural, note-se também a latência desta temática no


fresco A Matemática desde os Caldeus e Egípcios até aos nossos dias, realizado por
Almada na Universidade de Coimbra em 1969. Nesta obra, em particular, assinala-se
um diálogo figurativo entre a imagem do matemático árabe e o mapa de Portugal.
As palavras de Duarte Braga (2014: 421) dedicadas à obra de Álvaro de Campos são
também apropriadas para se enquadrar este material de Almada no vasto discurso
sobre o Orientalismo: «a tradição orientalista portuguesa estaria, antes de mais,
preocupada com a fixação da identidade nacional». De um ponto de vista histórico,
é significativo notar que os frescos de Almada em Coimbra foram realizados um ano
após a fundação da Comunidade Islâmica de Lisboa, nas vésperas da Revolução de
1974, que impulsionou um crescente cosmopolitismo na sociedade portuguesa, após

14 A temática arábico-islâmica em Almada Negreiros foi objeto de uma minha comunicação no Colóquio
Internacional “Almada Negreiros: un trait d’union tra arti e culture” (Universidade de Pisa, junho de 2015).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 109

a descolonização que trouxe para Lisboa largos contingentes muçulmanos lusófonos,


naturais das ex-colónias portuguesas e do subcontinente indiano.
O cosmopolitismo foi um dos ideais de Orpheu. O Sensacionismo era, segundo
Pessoa, o movimento cultural mais importante e representativo da «nossa epocha» («a
grande epocha do internacionalismo»15), pois realizava uma «arte synthese de nações
e de epochas e de artes», de acordo com a tendência civilizacional europeia, moderna
e cosmopolita, pela qual «todos os paizes, mais materialmente do que nunca, e pela
primeira vez intellectualmente, existem todos dentro de cada um»16 (PESSOA, F.,
2009: 75-76).
Uma referência futurista e sensacionista à cultura arábico-islâmica, no «transito
cosmopolita» da síntese sensacionista, encontra-se no poema «Manucure» de Sá-Carneiro
(1915b: 104):

–Abecedarios antigos e modernos,


Gregos, góticos,
Slavos, arabes, latinos–,
Eia-hô! Eia-hô! Eia-hô!…

O diálogo deste poema com a «Ode triunfal» de Álvaro de Campos («[...]


árvore-fábrica cosmopolita! | Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!») é enquadrável nas
coordenadas estético-programáticas do Sensacionismo, isto é, na mesma fome de
totalidade expressa pelo próprio Campos e por Pessoa ortónimo («Sentir tudo de todas
as maneiras») e ainda por Almada («poeta d’Orpheu futurista e tudo») (PESSOA, F.,
1915: 82; 2006: 191; 2009: 180; NEGREIROS, A., 1915: [1]). Almada, aliás, ainda em
1960 (13) incluía a arte dos «Árabes» entre as referências que consubstanciaram a sua
busca de um cânone artístico universal, isto é, arquetípico e sintético.
Voltando à «Ode triunfal» de Campos, o poema inclui uma referência ao Canal de
«Suez», que, juntamente com os conteúdos de «Opiário» e de «A passagem das horas»
de 1916 («Dar-es-Salaam») (PESSOA, F., 1915: 82, 76; 2006: 205), representa um
testemunho das memórias que as cidades muçulmanas da África oriental deixaram
em Pessoa aquando do seu trânsito marítimo por aquelas zonas durante a sua viagem
a Portugal (1901), após cerca de nove anos passados em África do Sul (onde vivia uma
comunidade muçulmana, cuja existência o jovem Pessoa terá notado, no ambiente
cosmopolita e portuense de Durban).

15 Nos textos sensacionistas, Pessoa (2009: 189) utiliza a «palavra internacionalismo, ou sua synonyma
cosmopolitismo».
16 Pessoa (1980: 223) afirma que o «cosmopolitismo europeu» é uma das «bases da nossa civilização».
110 100 Orpheu Fabrizio Boscaglia

Na mesma viagem, Pessoa visitou a cidade algarvia de Tavira, de onde era


originária uma parte da sua família paterna, «na parte mais arabe do paiz» onde os
sensacionistas são «admirados, imitados, discutidos17» e onde “nasceu” Álvaro de
Campos. Este, segundo Agostinho da Silva (1958: 64), tinha «feições ligeiramente
semíticas, que, mais do que o aparentarem a judeus, como julgava Fernando Pessoa, o
ligam provavelmente à grande massa mourisca do Algarve».
É importante relevar que, nos referidos textos de Mora sobre o Sensacionismo
enquanto Neoarabismo (1916), Pessoa chegou a afirmar que a própria capacidade
sintética (logo, cosmopolita) dos sensacionistas tinha sido herdada por estes da
Civilização Arábico-Islâmica do Al-Andalus:

[Os sensacionistas têm] a vantagem typica do spirito arabe: a universal curiosidade activa,
com que acceitam as influencias de todas as bandas, lhes aprofundam o sentido, lhes reunem
os resultados e finalmente as transformam na substancia do seu proprio spirito. (PESSOA,
F., 2009: 223)

Na senda de Oliveira Martins (1880: 65, passim) Pessoa, de forma coerente,


reconhecia, a este respeito, a pacífica convivência e a compenetração cultural entre
judeus, cristãos e muçulmanos, que estes – ao observarem os mandamentos do
Alcorão18 – tinham favorecido na Península: o escritor quis elogiar a «nossa grande
tradição arabe – de tolerancia e de livre civilização», afirmando que «é na proporção
em que formos os mantenedores do spirito arabe na Europa que teremos uma
individualidade àparte.» (PESSOA, F., 2012: 71).
Antes de se tentar detetar uma influência arábico-islâmica no Modernismo de
Orpheu ou de se analisar criticamente as afirmações de Pessoa com a pretensão de
“medir” os seus “reais” conhecimentos acerca do Islão, considero que os elementos
aqui apresentados permitem chegar a uma preliminar e necessária consideração:
na Geração de Orpheu existe, não apenas uma estética orientalista recebida pelas
correntes literárias europeias e criticamente reinterpretada, mas também um
reconhecimento e um esboço de crítica histórico-cultural (este, sobretudo em Pessoa
e em aberto diálogo com a tradição anterior) que têm como objeto uma componente
identitária e um legado arábico-islâmicos na portugalidade, na cultura portuguesa e
na própria arte de Orpheu.

17 Repare-se que a 1 de julho de 1917 o sensacionista Fernando Pessoa publicou – enquanto «Director de
Orpheu» – o poema «A casa branca nau preta» (escrito a 11 de outubro de 1916) no jornal O Heraldo de Faro
(n.º 388).
18 Leia-se: «Não há compulsão na religião.» (II, 256).
Orpheu da Arábia - a temática arábico-islâmica no Modernismo português 111

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Fernando Pessoa e a filosofia.
Um dialógo com Emil Cioran e John Gray

João Maurício Brás


Clepul

Resumo: A revista Orpheu é uma publicação ímpar na história cultural Portuguesa, a sua
brevidade é sintomática do nosso modo de estar. É contudo sobre Fernando Pessoa que este
texto incide. Defendemos que não é possível uma compreensão ampla de Pessoa sem analisar a
importância da Filosofia na sua obra. Para sustentar esta afirmação: «Numa curta comunicação
e numa dezena de páginas, não ousarei mais que utilizar uma pequena comparação e apontar
alguns fragmentos e apenas de uma das suas obras, O Livro do Desassossego. Convoquei dois
filósofos para estabelecer esse diálogo, Cioran e John Gray.»

A revista Orpheu, independentemente da análise especializada do seu conteúdo,


muito nos diz sobre hábitos culturais e estruturas de fundo do modo de estar luso.
Hoje, a ser possível o exercício, não haveria provavelmente sequer a revista ou a
existir, não teria conhecido maior longevidade. Contém todos os ingredientes do que
é Portugal.
Orpheu foi um projeto inovador, radical, contemporâneo. Conheceu, excetuando
um círculo restritivo e citadino, a indiferença e a crítica negativa, com vida breve,
fecha devido a alguns desacordos e falta de verbas.
Quase tão importante como aquilo que foi, é o que poderia ter sido e os motivos
porque não foi.
O tema desta reflexão não incide contudo sobre o monumento Orpheu, mas sobre
um dos seus principais pilares, Fernando Pessoa.

Um pequeno preâmbulo sobre o universo Pessoano

Fernando Pessoa, este nome ultrapassa há muito qualquer radicação num texto,
numa ação, num livro ou mesmo na obra, com todas as vantagens e riscos de tal
metamorfose. Podemos falar de Pessoa, ter sobre ele uma opinião e nada conhecer ao
certo da sua obra. Algo transcendeu em muito o autor e o seu trabalho.
Corremos o risco de quando dele falamos ou o analisamos, referir, não já Pessoa
e a sua obra, mas o meu Pessoa, o teu Pessoa, o Pessoa do grupo y ou do grupo x, o
116 100 Orpheu João Maurício Brás

Pessoa, por exemplo esotérico, o nacionalista, o da literatura. Faltará ainda um Pessoa


da filosofia.
O escritor tem os seus fiéis e verdadeiros intérpretes e exegetas1, o que é perigoso,
sabemos como os dogmas destroem e chegam mesmo a matar. Nem sei se esta não será
uma limitação à leitura do nosso poeta mor. Quando um autor se torna muito estudado
deixa com frequência de ser lido/fruído e até vivido. A análise tem algo de esquartejamento
e artificialismo. É caso para perguntar, quando falamos de Pessoa, falamos do quê?
Pessoa e tudo o que se seguiu com a sua obra, torna-o também o mais Borgiano dos
autores. Basta rearrumar, cortar, juntar, justapor os seus textos, e temos quase tantos
Pessoas quantos aqueles que pretendemos. Cada um de nós constrói o seu Pessoa.
O que é uma qualidade sem dúvida, mas perturba qualquer compreensão essencial,
a não ser que o essencial de uma obra, seja o dar-se a essa possibilidade de cada um
construir o seu texto e a sua interpretação.
No caso deste texto, Não conseguimos não incorrer no que enunciamos.

É redundante afirmar que Pessoa é um mundo, um universo. Mas esse chavão


legítimo contribui para que o autor deixe de ser totalmente nítido. O problema é duplo,
Pessoa é um mundo e é genial (encarna a literatura, como já mencionamos no sentido
Borgiano), e as lentes para o analisar, ler e fruir, geraram todo um universo, que muito
também deve, quer à capacidade analítica quer imaginativa dos seus exegetas. Não
sabemos até que ponto se tem visto muito mais que aquilo que lá está.
No meu caso, como leitor laico de Pessoa sempre vi nele um autor profundamente
filosófico.
A temática central da vida como sonho e da sensação como a única via de acesso
à realidade, é mais filosófica que literária. A sua filosofia tem contudo um problema,
é principalmente intuitiva, experiêncial e tentativa de sabedoria, e não tanto uma
técnica de conhecimento com o respetivo jargão.
A sua capacidade literária e de criador de universos provoca também uma densa
cortina sobre o conjunto de ideias e experiências que constituem a sua substância.
Pessoa e literatura identificam-se de um modo apenas acessível a um punhado de
autores. Pessoa e literatura são sinónimos. Institucionalmente é um escritor, não um
filósofo genuíno, mas sem a captação das suas referências e experiências de índole
filosófica, ficará bastante empobrecida a análise literária da sua obra.

1 O termo Pessoano já faz parte desse universo. Há os pessoanos e os outros.


Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 117

Numa curta comunicação e numa dezena de páginas, não ousarei mais que utilizar
uma pequena comparação e apontar alguns fragmentos e apenas de uma das suas
obras, O Livro do Desassossego. Convoquei dois filósofos para estabelecer esse diálogo,
Cioran, John Gray.
As citações de Pessoa que utilizo referem-se, portanto, unicamente a esse livro. A
minha conceção tem pouca ou nenhuma relevância, mas como amador considero o
Livro do Desassossego o seu registo autobiográfico por excelência e que só poderia ser
literário. Refira-se que a autobiografia de Pessoa teria que ser algo de essencialmente
mental, «sendo a vida essencialmente um estado mental». O Livro do Desassossego é
uma autobiografia mental de um escritor.

Atendamos nos seguintes aforismos:

«O conhecimento não é possível, e se apesar de tudo o fosse, não resolveria nada.»

«Só tem convicções quem não aprofundou nada.»

«Dividido entre a violência e o desengano, assemelho-me a um terrorista que ao sair à


rua com a intenção de perpetrar algum atentado, se deteve no caminho para consultar o
Eclesiastes e Epicteto.»

«A vida só se tornará suportável no seio de uma humanidade a que não reste nenhuma
ilusão, uma humanidade completamente desenganada e feliz por o estar.»

«Para aquele que tomou o irritante hábito de desmascarar as aparências, acontecimento e


mal-entendido são sinónimos. Ir ao essencial é abandonar a partida e confessar-se vencido.».

«Onde estão as minhas sensações? Desvaneceram-se…em mim, e o que é isso senão a soma
dessas sensações?».

«Ser estéril e com tantas sensações. É a perpétua poesia sem palavras.»

Poderiam ser certamente aforismos de Pessoa, e a sua escrita muito tem de


aforístico. Estes aforismos e encontraríamos centenas, pertencem a um pensador de
fragmentos, Emile Cioran e à obra De l’Inconvénient d’Être Né. Também Pessoa é um
filósofo de fragmentos.
São muitas e profundas as semelhanças filosóficas entre Pessoa e Emile Cioran,
filósofo marginal de origem romena, que viveu a maior parte da sua vida em Paris até
118 100 Orpheu João Maurício Brás

à sua morte em 1995. Ambos escritores e pensadores geniais, marginais no seu tempo,
mas depressa canónicos e eternamente condenados ao mal-entendido da apropriação
pelos pares, às emoções dos leitores e aos dogmas à peça dos académicos.
Pensadores subjetivos e fragmentários. Escreveram primeiro que tudo para
expressar um tremendo desacordo com a vida e tiveram em comum a capacidade
de expressar esse desacordo, que adquire corpo, principalmente nas suas existências,
através das palavras, se bem que ambos desconfiassem das palavras.
Lucidez, desengano, tédio, um pensar orgânico e visceral, a impotência de agir, a
sabedoria mais que o conhecimento, a importância e problematização da clarividência,
o horror e fascínio de ser humano, a inanidade do sentido e da vida, são lugares
primordiais que ambos percorrem de modo muito idêntico. A consciência dolorosa das
nossas alienações, as limitações da nossa condição, o Shakesperiano asco perante a nossa
fragilidade, a dor da diferença e a necessidade de um saber como suportar a vida, em
que cada um encontra o seu conjunto de estratégias vitais, são programáticos em ambos.
São autores demasiado singulares, Pessoa será sempre e unicamente Pessoa, e o
mesmo sucede com Cioran, mas o estado mental, o modo de estar e ver têm muito
em comum. Sendo a respetiva singularidade um traço fundamental assim como o seu
pensar subjetivo, como alcançaram o respetivo reconhecimento?
O pensador subjetivo parte do que sente, do que vive, dos seus caprichos e
transtornos, mas alcança, pela intensidade da experiência particular, aspetos universais
do estar humano. O particular eleva-se ao universal, porque toca o fundo da vida2.
Também Fernando Pessoa, como Cioran, se insere numa longínqua tradição3.
Aquela que de Theognis a Beckett revela muitas dúvidas sobre a legitimidade do ser
humano e sobre as visões predominantes do mundo, ordenado, quotidiano, arrumado
e vigente, o tal mundo tributável. «É outra vez o horror de sempre, – o dia, a vida, a
utilidade fictícia, a atividade sem remédio (…). Sou eu outra vez, tal qual não sou»
(PESSOA, F., VOL II, 1982: 325).
Como viver quando se alcança essa “pavorosa ciência do ver”? Que já não é apenas
sobre um pessoa, lugar ou situação concreta, mas que adquire a ressonância da
própria condição humana? Como viver ainda? E viver, é principalmente na nossa
mundividência, ação.
O Ocidente moderno tem um dos seus pilares fundamentais no culto da ação. É
o agir que realiza e transforma. Sem a ação não há progresso. O êxito, o sucesso, o
mérito advêm principalmente da ação.

2 Fundo da vida primordial, originário, deveriam constituir as características do que se chama verdade.
3 Por exemplo, para Homero, o homem é o ser mais desgraçado de todos aqueles que respiram e existe, para
Platão a vida é desventura, e melhor teria sido para o homem não existir.
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 119

A inação, a quietude, a contemplação tornam-se anomalias e podem mesmo ter


origem numa patologia (psicológica) ou num vício (moral).
Diz-nos Pessoa: «Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia a dia, mais
e mais, se infiltrou em mim a consciência sombria da minha inércia de abdicador.»
(PESSOA, F., VOL II, 1982: 327).
Agir não só expressa como é a potência, não agir provem e resulta de uma
impotência, num menos de ser, numa doença. Agir é produzir, gerar, construir.
Quem não age é o improdutivo, e quem não produz é e está obsoleto, já não serve, é
excedentário, está a mais. São os ritmos modernos do mundo. Aquele que não age4 ou
não privilegia a ação é o inútil.
Ora, paradoxalmente há uma dimensão do não agir, que é prática, remete para
um tipo de conhecimento e modo de estar. Refere Pessoa: «Se erguia dos livros os
meus olhos cansados, ou se dos meus pensamentos desviava para o mundo exterior
a minha perturbada atenção, só uma cousa eu via, desmentindo-me toda a utilidade
de ler e pensar, arrancando-me uma a uma todas as pétalas da ideia de esforço: a
infinita complexidade das cousas, a imensa soma (…), a prolixa inatingibilidade dos
próprios poucos factos que se poderiam conceber precisos para o levantamento de
uma ciência» (PESSOA, F., VOL II, 1982: 326).
A impotência para a ação tem um fator principal, o sentimento e conhecimento da
profunda inutilidade da própria ação.
Esta impotência legitima-se na desarticulação com a narrativa e o modo de estar
“oficial”, ou seja “vigente”, e oferece dois caminhos, a patologia, e um outro, que é
possibilidade de clarividência, de fecundo cepticismo, niilismo e pessimismo. É via
para uma filosofia possível da lucidez e do desengano.
«Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou
ação, que a minha sensibilidade repugna; ou a ação, para que não nasci, ou o sonho,
para que ninguém nasceu.
Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum» (PESSOA, F., VOL II,
1982: 52). Ainda sobre o agir, «A ação desorienta-nos, em parte por incompetência
física, ainda mais por inapetência moral. Parece-nos imoral agir. Todo o pensamento
nos parece degradado pela expressão em palavras, que o tornam coisa dos outros, que
o fazem compreensível aos que compreendem» (PESSOA, F., VOL II, 1982: 53). Mas
há um positivo que se vislumbra na impotência para agir e nos seus correlatos visíveis
do frenesim e da agitação. A lucidez, que exige um deter-nos, um parar, uma não adesão

4 Pessoa quis agir, mas algo se impõe à vontade de agir. Veja-se o exemplo da Mensagem, e a tese original de
Onésimo Almeida, em Pessoa, Portugal e o Futuro (Gradiva, 2014), a estratégia de criar e utilizar mitos como
guia para ação, no que é um projeto político baseada numa teoria pragmática da verdade.
120 100 Orpheu João Maurício Brás

na roda da mudança permanente, seja ela ilusória ou não, do mundo e da existência. A


impotência para agir é uma condição necessária, embora não suficiente para a lucidez.
A lucidez, não se adquire sem um determinado modo de estar que implica
necessariamente um outro modo de ver.
Dizia-nos Cioran que se tivesse que fazer o seu próprio balanço, ele seria o resultado
das suas horas perdidas, do seu tempo desperdiçado. Perda que contudo considera
um ganho. Pois só o homem que se mantem à margem, que não atua como os demais,
conservaria a faculdade de compreender algo de verdade.
Estamos num outro plano do conhecimento e acesso ao mesmo.
Procurar a verdade é indagar sobre o que verdadeiramente importa, para a vida
concreta e vivida. E essa verdade extrai-se a partir de uma experiência não valorizada
social e politicamente. A lucidez não é um conceito científico, não se verifica ou
falsifica, é uma experiência individual. Ora, não há ciência do individual. E como
experiência individual depende de diferentes níveis, físicos, psicológicos e cognitivos.
A lucidez tem origem num desacerto que não é só mental e conceptual. A fisiologia e
a metafísica são dimensões dessa experiência.
Os textos literários de Pessoa estão repletos de uma filosofia que é uma fisiologia
das ideias. Por exemplo, sobre o tédio. Este será algo próprio de quem não tem deuses
nem mitologias: «A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o cepticismo
não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade
de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à
verdade.» (PESSOA, F., VOL I, 1982: 282).
Não se trata do tédio como aborrecimento ou mera experiência psicológica e
sazonal. O tédio que Pessoa refere tem implicações no modo de estar e pensar, não
se trataria de uma doença do aborrecimento de quem nada tem que fazer, mas algo
maior, o sentir que não vale a pena fazer nada. Também Cioran numa entrevista5
ao filósofo Fernando Savater confessa que a experiência do tédio6 dominou a sua
vida. Em Pessoa e Cioran7, este estado não é algo que se combata com distrações,
prazeres ou conversas. Este constitui uma experiência determinante e transforma-se
em interrogação profunda da nossa razão de ser.

5 A entrevista referida foi publicada originalmente no jornal espanhol El País de 25 de outubro de 1990.
6 O tédio é um problema de saúde pública, não interessa aos poderes instituídos, nunca foi bom para a ação.
Parece algo muito literário, mas seria devastador, uma maré de tédio, populações abúlicas, meditativas,
críticas, questionadoras e distanciadas e separadas da vida que vivem sem porquê. Uma multidão lúcida
da sua condição, abúlica por opção, crítica e cética sobre as grandes ilusões humanas, seria o fim quer da
civilização frenética, quer da ideia de homem moderna e ocidental.
7 Se, em Pessoa e Cioran a impotência para agir e o tédio não estão explícitos nos muitos milhares de páginas
escritos, surgem contudo de modo implícito em todas elas. Constituem um fundo criativo e estruturador.
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 121

Se a impotência para agir, é inicialmente algo de visceral e orgânico, transforma-se


em saber, em intelectualização que esclarece os respetivos comportamentos e atitudes
perante a vida. O tédio é a experiência vital que produz uma estranheza radical em
relação ao mundo e se transforma em conhecimento sobre a essência da realidade.
Torna-se tédio metafísico e não devemos temer a palavra metafísica. Essa essência é
a insignificância universal do que somos e a experienciação da nossa presença como
um interlúdio entre um antes e um depois eterno.
O tédio transformado em visão do mundo provoca uma desintegração do sentido
corrente da vida, das visões teleológicas da existência, das conceções finalistas e das
apologias do sentido. A vida não tem sentido, não pode ter, para além das construções e dos
mitos, e o homem é principalmente um animal mitológico. Há então, obrigatoriamente,
uma verdadeira transmutação de todos os valores e hierarquias correntes.
A essência do tédio é o tempo, a relação humana com o tempo. Um tempo
desprovido de objetivos, de metas e que não tende para qualquer tipo de realização.
Esta desarticulação essencial entre o homem e o sentido não é patologia e tem uma
dimensão prática e epistemológica. Permite forjar um tipo de sabedoria, um saber
sem ilusões. Um saber desencantado e feliz por o estar.
A obra de Pessoa com a de Cioran radica numa filosofia do desengano e do
desencanto. Diz-nos Pessoa: «Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor,
porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do
que se quer e menos do que se espera.
Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si
próprio e não ousa ser toda a angústia que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos...
Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto de
nossa Imperfeição...» (PESSOA, F., VOL II, 1982: 30).
A ausência de sentido, não na aceção existencialista, não é apenas deriva literária
ou especulativa. Até mesmo para disciplinas como a física e a biologia, as questões
do caos, do acaso e do aleatório estão há muito “em cima da mesa” como forças que
regem o universo. A ordem e sentido humano são construções, artifícios para tornar
a vida suportável, uma teoria sobre a existência e não a própria existência. Quanto
mais a ciência conhece a estrutura da realidade, mais ela parece estranha e vazia de
significado (veja-se por exemplo as teses de Stephen Weinberg e Jacques Monod), a não
ser para os cientistas influenciados por conceções religiosas, mesmo que não assumidas.
O desengano é um sinónimo desse importante conceito de complexa caracterização,
a lucidez. Para a psiquiatria, a lucidez é o período de sanidade percebido entre
momentos de insanidade ou de confusão mental. Inclino-me para a definição de
lucidez como discernimento, estar atento, alerta, acordado e sóbrio.
122 100 Orpheu João Maurício Brás

Regressemos a essas experiências capitais de dissociação, distanciação e


diferenciação. Recordemos que uma experiência só o é, se resulta de um acontecimento
ou soma de acontecimentos transformados em conhecimento, acontece alguns
humanos transformarem-no em literatura e filosofia.
A visão da inanidade das coisas, do magnífico e dispensável fracasso que é o
humano suporta-se através do desengano. As nossas deceções e fracassos são
elevados a conhecimento. O desengano é o equilíbrio do vencido. O vencido é aquele
que na visão predominante do mundo não é uma figura do sucesso. É episódico o
êxito duradouro da figura do intelectual da cultura. Bicho amestrado para exibir em
eventos.
A lucidez não radica na procura de uma verdade que não existe, mas no assumir a
nossa condição de animal e ser delirante, que depende de mitos e de ilusões necessárias
à vida. Não há verdade, mas verdades construídas que dependem das nossas limitações
e das necessidades de sonhos compensatórios. Procurar a verdade ou desocultar
ilusões pressupõe uma elevada crença, tão absurda como crença nenhuma. O saber
desenganado consiste em viver a ilusão como ilusão e saber que necessitamos dela, tal
como dos mitos. Ir ao essencial não é descobrir nada de transcendente, mas aceder
ao âmago das coisas através da experimentação profunda dessas coisas (as relações, o
mundo, o presente e o futuro, o eu e o nós). Não se procura fórmulas salvíficas, sabe-se
que o saber dissocia do mundo, da vida normal, das felicidades e alegrias imersas no
quotidiano.
Diz-nos Cioran: «Tudo é possível e nada o é, tudo é permitido e nada o é. Qualquer
que seja a direcção escolhida, não será melhor que as demais. Realizar qualquer
coisa ou nada, criar ou não, é tudo o mesmo, como é a mesma coisa gritar ao calar.
Podemos encontrar uma justificação para tudo, como também nenhuma. Tudo é, por
sua vez, real e irreal, lógico e absurdo, glorioso e insulso. Nada é melhor que nada, tal
como nenhuma ideia é melhor do que outra» (CIORAN, E., 2011: 95-96). O filósofo
Romeno faz ressoar nas suas páginas o tom que encontramos em Pessoa, veja-se a
título exemplificativo: «(…) é tarde demais para ser sábio, que em qualquer caso, isso
de nada serviria, sem contar que um mesmo abismo nos devorará a todos, os sábios
e os loucos. Reconheço de resto que sou o homem sábio que nunca serei (…) Toda a
fórmula de salvação age sobre mim como um veneno; desfaz-me, aumenta as minhas
dificuldades, agrava as minhas relações com os outros, irrita as minhas feridas e, em
vez de exercer, na economia dos meus dias, uma virtude salutar, desempenha um
papel nefasto. Sim, toda a sabedoria, age sobre mim como um tóxico.» (CIORAN, E.,
2011: 891).

*
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 123

John Gray é um dos mais importantes pensadores contemporâneos vivo (nasceu


em 1948). Filósofo inglês e professor em Oxford. As suas ideias ousadas questionam o
âmago da nossa civilização, crítico acérrimo do progresso e dos mitos das sociedades
modernas e Ocidentais.
Num fragmento de Pessoa encontrei uma boa síntese do pensamento de John Gray.
No Livro Desassossego lemos: «Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens
haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido
— sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar
porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para
sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na
margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de que são, senão também
os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como
eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia
ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia
biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de
adoração do que qualquer outra espécie animal.» (PESSOA, F., VOL I, 1982: 38)
Este é apenas um átrio para uma crítica ao humanismo, à ideologia humanista
(crença consolidada a partir do Iluminismo), radicada na «abstracção que chamamos
homem» e na crença que o progresso material é sinónimo de desenvolvimento moral e
ético. Esta mundividência substitui a religião, colocando o homem no altar onde estava
Deus, e gerando a maior parte dos erros conceptuais que temos sobre a vida e a nossa
importância. Permutámos um erro por outro erro, quiçá mais delirante. Daqui decorre
uma necessária crítica à egolatria contemporânea que ficará, se houver um amanhã tão
longínquo, como um dos maiores absurdos da nossa imaginação.
John Gray refere diversas vezes, nas suas apresentações públicas, a importância de
abrirmos janelas não humanas para o mundo. O mundo não é exclusivamente algo de
humano e para os humanos. Bastará um cataclismo ambiental (ou um problema grave
com os recursos como a água, ou a falta de petróleo ou eletricidade), e tudo o que é
civilização e valores se esfumará num instante. Bastará olhar para o que vê alguma
ciência, como por exemplo, a astrofísica, e não somos de facto nada. Nada que é tudo,
mas ainda assim, nada.
A redução da humanidade a uma ideia biológica é não só de extrema lucidez como
bastante realista, e está no cerne de muitos debates do fim do século XX e século XXI.
Leiam-se as obras de Gray, Sobre os Humanos e outros Animais (2002) e O Silêncio dos
Animais (2013)8. Trata-se de uma redução que nada tem de pejorativo, nem radica em

8 As datas referem-se à publicação original.


124 100 Orpheu João Maurício Brás

qualquer excesso biologista, antes coloca razoabilidade face aos delírios egocêntricos
da nossa espécie, e aos consequentes devaneios que vivemos como se de verdades se
tratassem. Não somos o princípio e o fim de tudo, nem o sentido do mundo se esgota
em nós, nem tão pouco somos o centro do universo.
O que acabei de expressar, são lugares comuns, mas na verdade vivemos encerrados
na nossa espécie, no nosso universo verbal, nas nossas logomaquias e mitologias, ou
seja vivemos baseados em falsas crenças.
John Gray cita Pessoa no Sobre os Humanos e Outros animais: «Se considero com
atenção a vida que os homens vivem, nada encontro nela que a diferencie da vida que
vivem os animais. Uns e outros são lançados inconscientemente através das coisas e do
mundo; uns e outros se entretêm com intervalos; uns e outros percorrem diariamente
o mesmo percurso orgânico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem
vivem para além do que vivem. O gato espoja-se ao Sol e dorme ali. O homem espoja-se
à vida, com todas as suas complexidades, e dorme ali. Nem um nem outro se liberta
da lei fatal de ser como é.» (GRAY, J., 2007: 117).
Somos animais como quaisquer outros, a nossa superioridade assenta numa
auto-ilusão, somos os melhores no nosso mundo, como as espécies animais são
melhores no mundo delas. Claro que podemos tentar libertar-nos dos nossos
constrangimentos naturais, não só já no plano da crença, seja nas ideologias religiosas
ou laicas, pois temos a tecnologia, mas sabemos como são funestas essas aventuras e
têm principalmente um carácter não essencial, mas instrumental e reversível. Como
podemos discutir a “superioridade” de uma espécie a partir exclusivamente da visão
dessa própria espécie?
Uma das principais teses de John Gray diz-nos que a modernidade e os ideais
iluministas, as crenças laicas, não passam de reapropriações do cristianismo. A
modernidade e mesmo os seus movimentos mais revolucionários são a continuação
da religião por outros meios. O homem é principalmente um criador de mitos. Lemos
em Pessoa: «Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade,
pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como
deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.» (PESSOA, F., VOL I, 1982: 38)
Este é apenas um exemplo das possibilidades filosóficas que decorrem dos textos de
Pessoa, autor que permite continuar a dialogar com outros deste século e certamente
dos próximos, marca da profundidade de um pensamento fundamental.
Fernando Pessoa e a filosofia. Um dialógo com Emil Cioran e John Gray 125

Bibliografia

CIORAN, E. M. (1973). De l’Inconvénient d’Être Né. Paris: Gallimard.


CIORAN, E. M. (2011). Oeuvres. Paris: Gallimard.
GRAY, John (2007). Sobre Humanos e Outros Animais. Lisboa: Lua de Papel.
PESSOA, Fernando (1982). Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol. I e
II (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral
Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho). Lisboa: Ática.
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma
tentativa de tradução d’A Cena do Ódio e de Mima Fataxa de Almada
Negreiros

Marco Bucaioni
Università della Tuscia, Viterbo

Palavras-chave: Álvaro de Campos; Ode Marítima; Tradução; Italiano; Almada Negreiros.


Resumo: Faz-se uma resenha das traduções italianas publicadas de Álvaro de Campos e de
José de Almada Negreiros; analisam-se as duas versões mais correntes da tradução da Ode
Marítima, uma de Antonio Tabucchi e outra de Orietta Abbati/Piero Ceccucci sublinhando e
comentando as divergências; tenta-se estabelecer algumas peculiaridades da poesia de Almada
Negreiros, a partir dos exemplos d’A Cena do Ódio e de Mima Fataxa, ambas no prelo pela
tradução de quem escreve.

Não é novidade alguma que Fernando Pessoa obteve fortuna editorial, crítica e
de público na Europa e no mundo. A Itália, não constituindo excepção nisto, é aliás
um dos países em que o maior poeta português do século XX atraiu mais atenção
por parte dos tradutores, das editoras e dos académicos. É quase redundante,
neste contexto, citar a incontornável figura do professor e escritor Antonio
Tabucchi, notabilíssima figura de intelectual quer em Portugal, quer em Itália, e
com certeza a pessoa que mais contribuiu para a “exportação” da figura e da obra
de Fernando Pessoa para Itália. Com igual certeza podemos e temos que afirmar
que Tabucchi, especialmente nos últimos anos, não esteve sozinho nesta tarefa de
tradução pessoana para italiano: muitos outros académicos, tradutores e editores
trabalharam e trabalham para continuar a desvendar os mil e um recônditos cantos
do fragmentário legado pessoano em Itália.
Aliás, hoje em dia já temos grandes contingentes de “pessoanos” italianos,
talvez mais numerosos do que outros contingentes estrangeiros, muitos dos quais
radicados e a trabalhar em Lisboa em directo contacto com o espólio e com o
“espírito” pessoano, para contribuir para esta eterna e inesgotável “leitura” de
Fernando Pessoa.
Se também é verdade que a obra de Fernando Pessoa foi recebida de forma irregular
e nem sempre paralela aos avanços da crítica pessoana portuguesa (assimetrias estas
objecto do trabalho de muitos dos acima referidos pessoanos), nem por isso podemos
128 100 Orpheu Marco Bucaioni

dizer que Pessoa seja um autor pouco conhecido na península mediterrânica, sendo
talvez o único autor português, a par do Prémio Nobel Saramago, conhecido pelo
vasto público italiano.
Em consequência disto, a parte da obra em verso de Fernando Pessoa que
podemos chamar poesia modernista, quase toda contida na obra do heterónimo
engenheiro Álvaro de Campos, já tem uma história de traduções e de edições
diferentes em Itália.
As duas mais importantes, contudo, são a tradução do próprio Antonio Tabucchi,
contida parcialmente dentro da célebre antologia pessoana Una sola moltitudine
(TABUCCHI, A., 1978), e depois publicada em separado, na sua totalidade (até à data),
no volume Poesie di Álvaro de Campos (TABUCCHI, A., 1993) e a mais recente de Piero
Ceccucci e Orietta Abbati, incluída na antologia de bolso em dois volumes da poesia
pessoana, debaixo do título Il mondo che non vedo, e publicada pela BUR (que contém
poesia ortónima) (CECCUCCI, P., 2009) e Un’affollata solitudine (que contém poesia
heterónima), também publicada pela BUR (CECCUCCI, P., 2012). Existem outras
publicações que contêm parcialmente ou inteiramente (até à data) a obra de Campos1.
A razão pela qual, contudo, as primeiras duas edições citadas são consideradas mais
importantes é simples: são as únicas duas edições publicadas por chancelas prestigiadas
de projecção nacional, e que efectivamente se encontram a todo o momento no
mercado, tendo-se encarregado a Adelphi de reimprimir e distribuir quer a antologia
quer a publicação independente com a poesia de Campos continuamente desde a sua
primeira publicação. Nesta comunicação vão ser analisadas as duas traduções da Ode
Marítima de Tabucchi e de Ceccucci/Abbati, tomando este poema como simbólico de
toda a produção de Campos, sendo o maior do ponto de vista material e um dos mais
significativos e marcantes do período modernista português.
A mesma sorte não tiveram, misteriosamente (ou não), os autores que, na segunda
década do século XX, integraram o cenáculo literário a que Pessoa pertencia: José de
Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro. Certo é que o principal e mais conceituado
promotor da fama de Pessoa em Itália, o acima referido Antonio Tabucchi, não fez
muito para que o público italiano ganhasse conhecimento destas duas figuras (o
que aconteceu, em geral, com o resto da literatura portuguesa tout-court). Em geral,
parece que, mesmo os que dedicaram uma parte consistente da sua actividade ao
estudo e/ou à tradução de Fernando Pessoa, concentraram-se muito nele, ignorando
o resto, o que, considerando a vastidão, a heterogeneidade e a profundidade do legado
pessoano, talvez seja mais do que justificável.

1 A primeira foi a de Luigi Panarese, Poesia di Fernando Pessoa, Milano, Lerici Editori, 1967.
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de tradução d’A Cena do Ódio ... 129

Pelo que diz respeito a Almada Negreiros, um possível obstáculo à sua tradução e
publicação no estrangeiro pode ter sido o facto de ainda não terem passado os setenta
anos desde o falecimento do autor, necessários para que, segundo a lei portuguesa, os
direitos de autor, e os conseguintes direitos de tradução, revertessem para o domínio
público, desincentivando desta forma as eventuais iniciativas editoriais. Seja como for,
tivemos que esperar até ao ano passado (2014) para ver em volume duas publicações
com o nome de Almada Negreiros em Itália: o romance Nome de Guerra, traduzido
com o título Nome di battaglia por Andrea Ragusa e a recolha Prosa d’avanguardia,
que contém uma selecção da prosa polémica e vanguardista de Almada Negreiros,
juntamente com alguns textos de ficção (A Engomadeira) (organizado por Valeria
Tocco, com tradução de Valeria Tocco, Andrea Ragusa, Mauro La Mancusa) (ambas
publicadas pelas Edizioni dell’Urogallo de Perúgia). No plano editorial da mesma,
consta para este ano a publicação do volume da poesia, contendo toda a obra poética
de Almada, com tradução de Manuel Masini, de Andrea Ragusa e de quem escreve.
Antes destas publicações, as únicas obras de Almada disponíveis em Itália eram uma
publicação separada d’A Invenção do Dia Claro (ALMADA NEGREIROS, J., 2000)
e uma recolha de manifestos do modernismo português, organizada e traduzida
por Valeria Tocco (TOCCO, V., 2002), de que constavam os seguintes manifestos
almadianos: Manifesto Anti-Dantas e per esteso, Ultimatum futurista alle generazioni
portoghesi del XX secolo.
Ambas as traduções da Ode Marítima (no caso da de Antonio Tabucchi, quer a
contida em Una sola moltitudine, quer a outra) são publicadas em edição bilingue.
Pelo que diz respeito à tradução de Antonio Tabucchi, aqui referir-nos-emos à edição
de 1993.
Ambas as traduções são, como era de esperar, muito cuidadosas e competentes.
Numa primeira leitura, temos que sublinhar como, de modo geral, as duas traduções
são muito parecidas uma com a outra, não apresentando superficialmente grandes
diferenças. Olhando mais de perto, surgem algumas soluções diferenciadas aos
problemas cuja solução menos simples se apresenta ao tradutor italiano.
Sendo o português e o italiano duas línguas que pertencem à mesma subfamília
do ramo kentum das línguas indo-europeias, isto é, a das línguas românicas, muito
frequente é o caso de haver palavras ou frases inteiras numa das duas línguas que
têm um correspondente quase literal na outra, isto é, em que se usam palavras ou
fragmentos que têm claramente uma origem comum. Regra geral, os dois tradutores
têm a tendência para acompanhar este andamento, usando sempre que possível
palavras cujo material morfemático remonta claramente à origem comum. Nestes
casos todos, que porventura são a maioria estatística do português para o italiano, os
dois tradutores têm tendência para comportar-se da mesma forma.
130 100 Orpheu Marco Bucaioni

A maioria das divergências entre as duas traduções encontra-se, por outro lado,
nos restantes casos: os que obrigam o tradutor italiano a buscar uma palavra ou uma
frase que não têm correspondência directa etimológica em português.
Um dos casos mais interessantes é certamente o da tradução do português cio. Esta
palavra, usada quer no seu sentido literal, quer no figurativo, é uma das palavras-chave
da Ode Marítima e, num certo sentido, da poesia de Campos e da Geração de Orpheu
tout-court. Pela primeira vez, de facto, canta-se explicitamente a sexualidade, nas suas
vertentes até promíscuas e ferais, em clara oposição à estética que ainda prevalecia na
altura2. Mais em particular, se a Ode Marítima toda pode ser vista como uma grande
vaga poético-narrativa que anuncia, prepara e alcança o seu clímax para só depois
nas últimas páginas voltar ao “sentado” (desas-)sossego inicial, o conceito de cio («do
mundo, ebriedade do diverso!») talvez seja o verdadeiro motor que inicia a acção toda
e a alimente até ao pretendido clímax.
A escolha de Tabucchi para a sua tradução recai no italiano fregola, que
correctamente traduz o estado de excitação e de disponibilidade para o acasalamento
de certos mamíferos; e, tal como o português, pode ser usado também em sentido não
literal3. Mantendo esta escolha feliz na esmagadora maioria dos casos em que aparece
a palavra cio, contudo, Tabucchi decidiu por três vezes optar por uma tradução
diferente: temos duas vezes foia (TABUCCHI, A., 1993: 83/95) e uma vez calore
(idem: 93), dentro da expressão «gata com cio», que assim fica «gatta in calore». De
facto, é mais comum, em italiano, usar esta palavra, quando, no dia a dia, queremos
referir-nos ao estado dos mamíferos supracitados. É evidente que a palavra calore não
podia ser utilizada no resto dos casos, especialmente se sem referência explícita a um
animal, pois ela também traduz a palavra portuguesa calor, e acabaria portanto por
engendrar ambiguidade na versão italiana. O que é menos evidente são as razões que
devem estar por trás da escolha de foia, por duas vezes, sem que haja nada que force a
abandonar a escolha maioritária.

2 Na medida em que o Campos da Ode Marítima chega a desejar ser chicoteado, violado e até rasgado pelas
mãos e pelos corpos dos seus piratas de sonho, ousando cantar a violação das mulheres, Almada responde
cantando sodomia e lesbianismo, entre outras práticas sexuais, em Mima Fataxa e referindo-se várias vezes
a sensações explicitamente sexuais n'A Cena do Ódio. Além da superfície, porém, estes poemas e as demais
odes maiores de Campos são percorridos por um “cio” não necessariamente material, enquanto “histérico
entusiasmo” para com os vários aspectos da vida e da actividade modernas, como a navegação moderna, o
comércio, as grandes cidades e o cosmopolitismo em geral.
3 «Fregola, [fré-go-la], s.f., 1 Stato di eccitazione degli animali che si ripete con regolarità periodica in
concomitanza con la fase della riproduzione: essere, andare, entrare in f.; avere la f., ‖ SIN. calore, estro, 2
fig. Bramosia, voglia ardente e ostinata: ora gli è venuta la f. dell'automobile, ‖ Mania: la f. della pulizia».
(Dicionário Hoepli).
«fregola[fré-go-la] s.f., 1 Eccitazione sessuale degli animali durante il periodo della riproduzione SIN foia:
andare in f.; estens. volg., stato di sovreccitazione sessuale, 2 fig. Desiderio eccessivo, smania di qlco. SIN
frenesia: avere la f. di fare qlco.» (Dicionário Sabatini Coletti).
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de tradução d’A Cena do Ódio ... 131

Na tradução de Abbati/Ceccucci, pelo contrário, a uniformidade é maior, embora


não seja total. Os dois tradutores optaram por estro com o mesmo valor. Verdade é
que, significando em primeiro lugar brilho ou predisposição para actividades artísticas,
a palavra tem o valor de cio listado entre os seus significados possíveis4. Também
é verdade que o tabucchiano fregola é de mais imediata compreensão para várias
camadas do púbico italiano. Além disso, a tradução estro apresenta um dos problemas
do acima referido calore: sem a justaposição de um termo que coloque a palavra no
campo semântico, material ou figurativo, de cio, o risco é o de resultar ambíguo para
o leitor italiano que, sem qualificativos, pode ser induzido a pensar no brilho, ou na
predisposição para actividades artísticas, ficando longe dos pretendidos, “espasmos”
de Álvaro de Campos. Mesmo assim, Abbati/Ceccucci optam também uma vez por
foia, exactamente na mesma posição em que Tabucchi propõe esta tradução pela sua
segunda vez (id.: 95 e CECCUCCI, P., 2012: 411), onde temos nos dois casos «di cui
sopravvive la foia» que traduz «cujo cio sobrevive».
Outra palavra-chave do poema, sem um correspondente etimológico directo em
italiano é longe, usado como substantivo, em Campos com L maiúsculo. Na primeira
ocorrência, que acontece com um adjectivo («o Puro Longe»), Tabucchi escolhe
traduzir com «la Pura Lontananza» (TABUCCHI, A., 1993: 79), enquanto Abbati/
Ceccucci preferem «il Puro Lungi» (CECCUCCI, P., 2012: 393). A seguir, os tradutores
mantêm a sua escolha («Lontananza» vs. «Lungi», 81 e 397 respectivamente), mas
logo depois Tabucchi decide mudar: ele propõe agora «Largo» (89) enquanto Abbati/
Ceccucci mantêm «Lungi» (405) para depois, quase no fim, também Tabucchi propor
«Lungi» (107). Apesar de mais corrente, a proposta de Abbati/Ceccucci parece
menos imediata em italiano: enquanto lontananza é substantivo neutro e comum
para substantivar o que é longínquo, lungi é uma palavra que tem raro uso como
substantivo, criando um efeito de registo datado.
Oscilações encontram-se ainda na tradução do português vapor enquanto
embarcação: Abbati/Ceccucci mantêm vapore ao longo da tradução toda, Tabucchi
propõe piroscafo que, nas duas traduções, traduz também o paquete, que aparece no
começo do poema.
De entre os nomes de embarcações, assinalamos ainda a diferente escolha feita para
traduzir o português naus: por um lado «caravelle» (TABUCCHI, A., 1993: 125) e
por outro o mais neutro «navi» (CECCUCCI, P., 2012: 447) que geralmente significa

4 «Estro […], 4 BIOL Nelle femmine dei Mammiferi, il periodo dell'ovulazione che le rende predisposte
all'accoppiamento e alla riproduzione: e. venereo» (Dicionário Hoepli).
«Estro 1 Esaltazione creativa dell'artista, del poeta, sinonimo: ispirazione: e. musicale, 2 Bizza, capriccio: gli è
venuto l'e. di scrivere, 3 biol. e. sessuale, nelle femmine dei mammiferi, attivazione del desiderio» (Dicionário
Sabatini Coletti).
132 100 Orpheu Marco Bucaioni

navios. Certo é que nenhum dos tradutores escolhe traduzir à letra pois existiria uma
palavra que se refere exactamente a uma nau em italiano: caracca5. Por outro lado,
certo é, também, que a esmagadora maioria dos italianos não conhece esta palavra, ao
contrário do que se pode dizer do seu correspondente português e dos portugueses.
De qualquer forma, admira um pouco que, no contexto deste longo poema dedicado à
vida marítima, cheio de nomes específicos de vários tipos de embarcações e de vários
objectos de bordo, todos traduzidos com o máximo cuidado por todos os tradutores,
sem necessariamente recorrer a palavras de uso e compreensão comuns noutros
sítios, agora de repente se faça uma escolha em tal sentido6. A escolha de caravelle por
naus tem o mérito claro de ligar desde logo à época dos Descobrimentos, usando uma
palavra de uso comum em italiano. Navi, pelo contrário, sendo mais parecido com
o original por causa do som, não tem qualquer conotação histórica, sendo o que os
linguistas chamam de versão não marcada do substantivo.
Outra coisa interessante a assinalar é a diferente tradução da palavra negro, referida
a ser humano. Enquanto Tabucchi tem «negri» e «negre» (TABUCCHI, A., 1993: 85),
Abbati/Ceccucci têm «neri» e «nere» (CECCUCCI, P., 2012: 403), mais em linha com
o politicamente correcto da altura.
Depois desta rápida revista, é claro que, para qualquer italiano, a palavra fregola
é mais prontamente e menos ambiguamente identificada como cio do animal, com
valor sexual, e portanto da forma pretendida por Álvaro de Campos. Sendo a tradução
de Tabucchi anterior à de Ceccucci, não percebemos a exigência desta mudança.
No caso de Almada Negreiros, esta análise concentrar-se-á em dois poemas: Mima
Fataxa – Sinfonia Cosmopolita e Apologia do Triângulo Feminino e A Cena do Ódio, sendo
os dois poemas longos mais iconoclastas e vulcânicos dentro da obra poética deste autor.
O texto de Almada é muito diferente da poesia de Campos. De alguma forma,
Almada usa palavras mais “difíceis” do que Campos, ao menos do ponto de vista
do tradutor. É evidente o gosto pelo exótico, pelo marginal, pelo pouco usual, que leva
Almada a fazer escolhas lexicais que nos levam continuamente a uma pesquisa incessante.

5 «caracca, [ca-ràc-ca], s.f. (pl. -che), ST Grossa nave a vela, da guerra o da carico, munita di due o tre alberi,
con un castello a prua e uno a poppa e armata di cannoni, usata dai Portoghesi e dai Genovesi dal XIV al XVII
sec». (Dicionário Hoepli).
«caracca [ca-ràc-ca] s.f. (pl. -che), Grande nave a vela con due o tre alberi, due castelli, armata di cannoni,
usata da genovesi e portoghesi nei secc. XIII-XVI». (Dicionário Sabatini Coletti).
6 O mesmo problema teve que ser encarado e resolvido pela tradutora do célebre romance As Naus de António
Lobo Antunes, Vittoria Martinetto, que acabou por fazer a mesma escolha de Abbati/Ceccucci, embora num
contexto muito diferente, como é o de um título, em que há em jogo outras forças (interesse do editor, questões
comerciais, etc...), mas mesmo assim em contra-tendência com os tradutores para alemão e para inglês, que
fizeram a mesma escolha de Tabucchi, chamando ao romance (por exemplo, em alemão): Die Rückkehr der
Karawellen (O Retorno das Caravelas).
As traduções italianas da Ode Marítima de Álvaro de Campos e uma tentativa de tradução d’A Cena do Ódio ... 133

Nos dois casos em questão, embatemos com um Almada mais experimental, mais
exigente do que o Campos da Ode Marítima. Se, por um lado, Ceccucci assinala na sua
introdução (CECCUCCI, P., 2012: LXXXIV) que Fernando Pessoa muitas vezes joga
com a língua, torcendo a gramática para os seus fins, e assim dificultando a tarefa do
tradutor; Almada parece querer pegar na língua e renová-la, negando as mais elementares
regras gramaticais, na fúria iconoclasta que lhe é própria, e que talvez represente a melhor
realização da quintessência modernista, no seio da Geração de Orpheu.
Sendo esta a premissa geral, deverá o tradutor aceitar o compromisso fundamental
de desconstrução linguística, não hesitando em repropor na língua-alvo soluções que
na língua-fonte são interpretáveis como “erros gramaticais”, de ordem sintáctica ou
fraseológica, ou neologismos.
Muito poderia ainda ser dito sobre as escolhas dos vários tradutores de Álvaro de
Campos e sobre as possibilidades para uma tradução da poesia de Almada Negreiros.
No entanto, da análise já efectuada das traduções publicadas, o que ressalta é, em ambos
os casos, uma preocupação de rigor e a tentativa de, sempre que possível, seguir de
muito perto o texto. Da tradução mais recente transparece, a certos passos, uma certa
preocupação em actualizar o registo, particularmente no que diz respeito a termos
mais eruditos, o que nem sempre acontece, havendo por exemplo recurso a um tipo de
vocabulário que caíra em desuso já aquando da publicação desta tradução.

Bibliografia

ALMADA NEGREIROS, José de (2000). L’invenzione del giorno chiaro. Pisa: ETS.
ALMADA NEGREIROS, José de (2001). Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim.
ALMADA NEGREIROS, José de (2014). Prosa d’avanguardia. Perugia: Edizioni
dell’Urogallo.
ALMADA NEGREIROS, José de (2014). Nome di battaglia. Perugia: Edizioni
dell’Urogallo.
PESSOA, Fernando (1979). Una sola moltitudine. Milano: Adelphi. (volume
primo)
PESSOA, Fernando (1984). Una sola moltitudine. Milano: Adelphi. (volume
secondo)
PESSOA, Fernando (1993). Poesie di Álvaro de Campos. Milano: Adelphi.
PESSOA, Fernando (2009). Il mondo che non vedo. Poesie ortonime. Milano: BUR.
PESSOA, Fernando (2012). Un’affollata solitudine. Poesie eteronime. Milano: BUR.
TOCCO, Valeria (org.) (2001). I manifesti dell’avanguardia portoghese. Lucca:
Baroni.
134 100 Orpheu Marco Bucaioni

Dicionário Hoepli da língua italiana online:


http://www.grandidizionari.it/Dizionario_Italiano.aspx?idD=1
[6-3-2015]

Dicionário Sabatini Coletti da língua italiana online:


http://dizionari.corriere.it/dizionario_italiano/
[6-3-2015]
A doença em Fernando Pessoa:
cenografias discursivas e consciencialização ficcional

Maria de Jesus Cabral


Universidade de Lisboa

Palavras-chave: Doença; Loucura; Heteronímia; teatralidade; Modernismo.


Resumo: Este artigo começa por questionar a relação entre criação literária e doença em
Fernando Pessoa, patente em Escritos sobre génio e loucura, mas podendo conduzir a leituras de
índole patográfico, pouco valorizadoras, senão contraditórias da problemática do fingimento
poético, determinante na criação pessoana. Tentaremos alargar este ângulo estendendo
a atenção à questão da ficção e da heteronímia, que nos parecem oferecer um quadro mais
apto para apreender um jogo dinâmico de linguagem tornado palco de uma experiência
revitalizadora, estética e humana no contexto de Orpheu e com avatares críticos até nós.

J’ai une maladie: je vois le langage


R. Barthes, Roland Barthes par Roland Barthes

«E tudo é uma doença incurável»

A questão da doença é primordial em Pessoa, convocando desde logo a dor de


pensar, um dos temas mas obsessivos da sua obra, marcada pela pluralidade. Como
não lembrar que ela parte e gravita à volta de Alberto Caeiro falecido de tuberculose
aos vinte e seis anos – um pouco mais jovem apenas que Cesário Verde, que ele tanto
admirava –, ganhando peculiar ressonância no isolamento doentio de um Bernardo
Soares, no transbordamento psicótico de um Álvaro de Campos, ou no caso extremo
de António Mora, internado no manicómio em Cascais, valendo-lhe o título do
«oficialmente louco» (Tabucchi, A., 1994) entre os «doentes» que formam a
coorte pessoana. «Sombras amigas» no olhar impávido do médico Ricardo Reis, à
semelhança dos seus «jogadores de xadrez»?
O livro recente de Kenneth Krabbenhoft, Fernando Pessoa e as doenças do Fim de
século (2011) veio mostrar, com base na edição crítica de Jerónimo Pizarro, Escritos sobre
génio e loucura (2007), quanto Pessoa se embebeu dos principais estudos psicológicos
do final do século XIX e início do século XX, traçando o perfil de um «poeta-psicólogo,
analista de si mesmo e teórico de doenças mentais» (KRABBENHOFF, K., 2011: 11). Mas
para avaliar a premência com que o poeta dos Escritos autobiográficos inquiriu todo
136 100 Orpheu Maria de Jesus Cabral

um leque de teorias psicopatológicas – da manie du doute de Henri Legrand du Saulle


ao délire des négations de Jules Cotard, do atavismo criminal de Lombroso à teoria da
degenerescência de Nordau – basta lembrar que recorrentemente as examinou a partir
do seu próprio caso, na pres/suposição da sua hereditariedade patológica, como realça
Kenneth Krabbenhoft:

Recentemente Jerónimo Pizarro (2007: 68) salientou a preocupação profunda de Pessoa


em relação às doenças mentais manifestadas pelos seus antepassados, em particular por
sua avó Dionísia, que morreu aos 83 anos de «demência senil». No vocabulário psicológico
da época, esse tipo de demência pertencia a uma única categoria de doenças mentais e
fisiológicas, a par da epilepsia, do alcoolismo, da depressão, da abulia, do délire des négations
e de outras ilusões e fobias (Krabbenhoft, K., 2011: 45)

O próprio fenómeno de despersonalização poderia ser entendido como «autoscopia»


ou «alucinação de si-mesmo» na definição de Paul Sollier, cujo Guide des maladies
mentales (1893) consta das leituras mais constantes do poeta (Krabbenhoft, K.,
2011: 33). Estará a conexão entre patologia mental, de herança biológica e criação
na base da obra pessoana, constituindo o «preço do génio» (Idem: 191) conforme
o sugere e parece concluir o estudo de Krabbenhoft, revelando, in fine, o «lado
“iluminado” da degenerescência, que é o dom da criatividade» (Krabbenhoft,
K., 2011: 231)? Mas não estaremos deste modo a incorrer nos riscos do «pacto
biográfico», remetendo a linguagem artística, tão reivindicada pelo criador da poética
do fingimento – em poema ironicamente intitulado «Autopsicografia» – a uma escala
factual, testemunhal? Mallarmé, mentor incontornável da modernidade poética, de
quem Pessoa foi atento leitor (SEABRA, J. A., in PESSOA, F., 1998: 11), afirmara:
«Toute méthode est une fiction», precisando, ainda em Igitur (1874):

Le langage lui est apparu l’instrument de la fiction : il suivra la méthode du langage […]
Enfin, la fiction lui semble être le procédé même de l’esprit humain – c’est elle qui met en jeu
toute méthode, et l’homme est réduit à la volonté (MALLARMÉ, S., 1998 : 504)

A literatura é aqui concebida como um jogo – termo recorrente em Mallarmé, que


define a poesia como devoir et jeu littéraire – em que inteligência e experiência da
linguagem são forças reciprocamente concordantes, num gesto de desautorização
do lirismo biográfico romântico: «devant le papier, l’artiste se fait» (Mallarmé,
S., 1995: 227). O gesto literário supõe, lembrando ainda o poeta de «Crise de Vers»,
a cedência às palavras: «céder l’initiative aux mots» – condensando o princípio de
teatro mental, estruturante na obra dos dois autores, independentemente do género
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 137

adoptado – ou adaptado (CABRAL, M. J., 2012). O seguinte passo de O rosto e as


máscaras (1929) resume essa necessária separação: «De resto, a minha vida gira em
torno da minha obra literária – boa ou má que seja, ou possa ser» (PESSOA, F., 1978:
142).

«Quando por jogo apenas ele tira a máscara»

O «instinto dramático» é apontado pelo próprio na carta de Dezembro 1931 a


João Gaspar Simões como «chave da [sua] personalidade» e único meio possível de
abrir «todas as fechaduras da [sua] expressão» (PESSOA, F., 1980: 175), por oposição
a outras leituras, de índole biográfica ou mesmo psiquiátrica, rebatidas no mesmo
texto e com acutilante crítica a Freud e aos seus seguidores que confinaram a questão
da loucura a uma «interpretação sexual» (Idem). Por outro lado, sabemos a grande
afinidade electiva de Pessoa com Shakespeare, que lhe permitiu consolidar o conceito
de despersonalização dramática, para além de reconfigurações ficcionais várias, como
a carismática personagem do detective William Byng nos contos policiais Tales of
a reasoner escritos entre 1906 e 1907 e recentemente reunidos e publicados sob o
título Histórias de um raciocinador (2012). Aplicando o revolucionário método de
inquérito psicológico «From mental truth» – de perspectiva puramente cerebral, Byng
consegue esboçar uma tipologia de todos os tipos de homens, onde deverá encaixar
o perfil do criminoso. Assim sendo, são os indícios caracterológicos que conduzem
inequivocamente ao criminoso e este ao crime – e não o percurso contrário. Num jogo
especular bastante característico, é por comparação com a maneira do dramaturgo
inglês que o narrador explicita a sua perspectiva mental:

É a percepção da unidade de caracter que confere aos homens altamente imaginativos e


capazes de auto-análise o poder de criar personagens dotadas de vida – um poder que é
muitas vezes (como no caso de Shakespeare) intemporalmente rápido e inconsciente no seu
funcionamento (Pessoa, F., 2012: 66).

O que fundamentalmente interessa aqui salientar, e se oferece relevante em toda a


obra, é essa intersecção entre raciocínio e sensação, de grande densidade porquanto
releva de fenómenos inconscientes. Pessoa rendia assim tributo ao poeta de Hamlet
que percebeu, antes da sua conceptualização, no século XX, a complexidade da mente
humana – a ponto, como sabemos, de servir de fundamento às próprias teorias
de Freud – numa associação determinante entre loucura e método, entre pathos e
logos, a que o próprio Pessoa aderiu e a que se refere nas «Personal Notes» como o 
«Shakespeare Problem» (PESSOA, F., 1966a: 20). Nesse sentido, e mais do que as teorias
138 100 Orpheu Maria de Jesus Cabral

psicológicas vigentes – Krabbenhoft refere várias vezes a insatisfação de Pessoa, em


relação às suas leituras de Lombroso, de Freud, de Júlio de Matos – é ao domínio
artístico e a toda a sua originalidade inerente que o poeta atribui a possibilidade de
penetrar e apreender o mistério da vida interior, na senda das intuições de Mallarmé
e Maeterlinck. À predilecção deste pelo submundo da linguagem, por esse «mare
tenebrarum  où sévissent les étranges tempêtes  de l’inarticulé et de l’inexprimable»
(MAETERLINCK, M., 1999: 455) que é a substância do seu teatro, corresponde a
hipótese do «Mystère dans les Lettres» daquele, assim formulado: «… il doit y
avoir quelque chose d’occulte au fond de tous, je crois décidément à quelque chose
d’abscons, signifiant fermé et caché qui habite le commun.» (MALLARMÉ, S., 2003:
230). Compreende-se assim o interesse de Fernando Pessoa pela obra destes mentores
do teatro simbolista, conforme bem apontou Teresa Rita Lopes desde o seu Fernando
Pessoa et le drame symboliste. Héritage et création (LOPES, T. R., 1977).
Mas tomar o princípio da teatralidade como a essência, o fundamento e, quiçá, a
condição da escrita em Fernando Pessoa permite também historicizar a sua própria
dimensão dentro do projecto de Orpheu de mostrar «originalidade, não relativa,
senão absoluta; isto é, que excedesse as correntes literárias comtemporaneas dos
outros paizes» (Pessoa, F., 2009: 46). Embora reconhecendo o caminho traçado
por nomes expoentes da poesia portuguesa, como Camões e Antero de Quental,
entre outros, Pessoa também considera que este último «mais não fez do que tratar
com personalidade e dolorosa profundeza elementos de inspiração que pertenciam
á esthetica do período em que viveu» (Idem, meu sublinhado). E declara de modo
contundente o ideário da geração de Orpheu: fazer «com caracter absolutamente novo
em relação a qualquer corrente ou obra […] dentro ou fora do seu paiz de origem»,
acrescentando existir nesse primeiro número da revista «elementos para se poder
afirmar [isso] com segurança» (Pessoa, F., 2009: 47).
Ora, para além da cataclísmica Ode Triunfal de Campos e do não menos alucinante
Poema 16 de Sá-Carneiro, Pessoa publica O Marinheiro, «drama estático em um
quadro», texto bastante menos progressista se considerarmos a presença inequívoca
do arrière-texte (Gladieu, M.-M. et al., 2013) do teatro simbolista de Maeterlinck,
pelo qual o poeta português se interessou, nomeadamente as peças L’Intruse e Les
Aveugles (1890), assentes no princípio de um trágico interior dentro do qual opera,
dramaticamente activa, a morte (Cabral, M. J., 2007). Ao fazê-lo, Fernando Pessoa
está assim a prolongar toda uma veia explorada na literatura dramática desde o
fim-de-século com a Belkiss (1894) de Eugénio de Castro, cuja tessitura dramática
dialoga e interage sincronicamente com textos contemporâneos enformados numa
estética simbolista valorizadora do mistério (D. João da Câmara, António Patrício),
e com as próprias incursões dramáticas de Mário de Sá-Carneiro, já dentro do
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 139

Modernismo. Basta lembrar a peça A Alma, composta com António de Ponce Leão
em 1913, ilustração do teatro de «arquitectura interior» teorizado no mesmo ano por
Sá-Carneiro no artigo «O Teatro-Arte (Apontamentos para uma crónica)» publicado
em 1913 no jornal republicano Rebate.
Não sendo pela sua originalidade absoluta que O Marinheiro se alinhou ao lado
dos outros meteoritos do número inaugural de Orpheu – sendo que Fernando Pessoa
cogitara publicá-la na Renascença, conforme o evidencia uma carta a Álvaro Pinto
de Maio de 1914 (Pessoa, 1986: 144) – afigura-se especialmente relevante dar todo
o peso às palavras do autor quando justifica a sua escolha por uma «tragedia que
se passa apenas nos sonhos [ser] contida dentro de uma sobriedade externa difícil
de encontrar fora da Grécia antiga» (PESSOA, F., 2009: 47), sintetizável na equação
perspectiva mental/rarefacção formal. É na verdade o princípio duma «teatralidade
sem teatro», na justíssima expressão de Eduardo Lourenço, enquanto princípio basilar
da criação heteronímica que está aqui patente e que nos leva a pensar que temos em
Orpheu o grande momento de afirmação da originalidade de um processo criativo
onde a alteridade e a pluralidade são fenómenos da linguagem em exercício radical.
É a linguagem que assume a função essencial de pôr os heterónimos em relação
dialógica de linguagem e de pensamento como o têm mostrado os trabalhos de Dionísio
Vila Maior (VILA MAIOR, D., 1994, 2012). É no fundo o que podem alegorizar as
veladoras, cujos discursos se constituem naquilo que se pode designar com Dominique
Maingueneau de cenografias de enunciação (MAINGUENEAU, D., 2004: 190-202), na
confluência das quais surge a figura do marinheiro, toda de ficção, out of the world, mas
com poderosa força de realidade e de concretude, à imagem dos heterónimos.
Derrogando dicotomias seculares (vida/morte, realidade/sonho, visível/invisível,
Pessoa opera através da heteronímia uma união íntima entre os dois sentidos da
experiência humana – racional e existencial, o que lhe permite outrossim experimentar
diferentes modos de sentir e de pensar. O palco mental também é experimental e torna-se
assim experiência vital, fonte e meio de conhecimento que permite corporizações
numerosas e contrárias e, em última análise, justifica o gesto do poema enquanto
fazer – poiein –, enquanto «cálculo» e enquanto «acaso», enquanto invenção de novas
formas.

«É sempre nome, sempre linguagem»

O retorno da questão biográfica a que se assiste actualmente no âmbito dos


estudos literários, a par da valorização da componente contextual da obra literária
«contre l’impersonnalité formaliste» (DIAZ, J-L., 2010: 228), não implica resvalar em
conjecturas biografistas, tão veementemente cominadas pelas correntes estruturalistas.
140 100 Orpheu Maria de Jesus Cabral

Não se trata, na perspectiva de Diaz, de justificar a obra pela vida, mas antes de
acrescentar ao estudo da literatura como jogo ou invenção a possibilidade de
identificação da personalidade literária que a concebeu, que não se confunde com
o perfil social e psicológico do autor, mas entretece com este uma «liaison intime»
(Idem: 104), tanto mais a partir do século XIX em que a literatura se tornou uma
«aventura existencial», conforme explica o autor a partir de vários exemplos da
Literatura francesa, com destaque para Proust. Afinal, é o homem quem cede a
palavra ao artista, e nesse desdobramento em suma bastante teatral, o que escreve
permanece em ressonância com aquele num encontro híbrido de singularidade e
de distanciamento, de ficção e de dicção, como propôs Gérard Genette (GENETTE,
G., 1994) que transcende o homem e in fine a própria obra. Este processo dinâmico
prossegue na leitura, num devir contínuo que permite aquela «coalescência de vários
tempos numa dada unidade de tempo», como disse Manuel Gusmão (GUSMÃO, M.,
2011: 546), e que faz do poema, no sentido lato, aquela «construção antropológica
aberta» (Idem: 182) que dá ao leitor a «possibilidade […] se transformar [e] de ser
transformado por aquilo que lê» (Idem: 186). Do ponto de vista hermenêutico,
esta abertura, já preconizada por Umberto Eco e as teorias da recepção de Jauss e
Iser nos anos oitenta, contracena com o Barthes do Plaisir du texte (BARTHES, R.,
1973), que mais explicitamente manifesta a viragem da famigerada «mort de l’auteur»
(Barthes, R., 1968) para o novo paradigma da leitura e do leitor, na crítica do
último quartel do século XX. Desta sorte, a leitura literária rompeu com as pretensões
objectivistas do formalismo, aspecto já apontado pelo Barthes de Critique et Vérité
aludindo à «eternidade» da obra de arte literária, realizada no movimento dinâmico
da leitura, assente na linguagem e por isso num processo de inovação semântica que
ultrapassa e de certo modo contradiz as interpretações literais, porquanto releva do
«segundo grau» e até do «sonho»:

[U]ne œuvre est «éternelle», non parce qu’elle impose un sens unique à des hommes
différents, mais parce qu’elle suggère des sens différents à un homme unique, qui parle
toujours la même langue symbolique à travers des temps multiples  : l’œuvre propose,
l’homme dispose.
Tout le lecteur sait cela, s’il veut bien ne pas se laisser intimider par les censures de la lettre :
ne sent-il pas qu’il reprend contact avec un certain au-delà du texte, comme si le langage
premier de l’œuvre développait en lui d’autres mots et lui apprenait à parler une seconde
langue ? C’est ce qu’on appelle rêver. Mais le rêve a ses avenues, selon le mot de Bachelard,
et ce sont ces avenues qui sont tracées devant le mot par la seconde langue de l’œuvre. La
littérature est exploration du mot. (BARTHES, R., 1966: 51-52)
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 141

A literatura é exploração da palavra. Parece-me que é essa convicção que comanda


não só a escrita de Fernando Pessoa mas a sua poética de desdobramento teatral,
que, no seu movimento caleidoscópico, faz nascer e sobrepor novas cenografias
e dá origem a novos modos de ser e de estar no mundo, que são também novas
maneiras de escrever. Aproximamo-nos aqui do impulso apolíneo dum Nietzsche do
Nascimento da tragédia quando fala da «bela aparência do mundo do sonho» que
permite ultrapassar e transformar a experiência do sofrimento em sensibilidade
artística – ou gai savoir (Nietzsche, F., 1997). Em Fernando Pessoa, a criação
de figuras heteronímicas ou semi-heteronímicas inscreve-se num jogo artístico de
dimensão teatral, que permite explorar outras formas e outras forças de escrita. O
pluralismo daí resultante abarca géneros literários, tipologias textuais, estilos e
movimentos literários levando a linguagem a sendas estéticas, sensoriais e axiológicas
inexploradas. Ao criar estas novas realidades, ele desenraíza as formas, a linguagem
e outros sistemas de significação da linearidade e do esquematismo. Criar novas
figuras poéticas e reconstruir novos modos de ser-no-mundo é uma forma ao mesmo
tempo de converter as tensões íntimas – consciência/inconsciência, sensibilidade/
inteligência –, sociais – moral/imoral se «a arte deve ser ‘art for art’s sake’» (PESSOA,
F., 1966b: 55), ou traduzir o mal-estar na da civilização, como ressoa o início Lisbon
Revisited – e estéticas – classicismo / modernismo –, próprias de uma época de crise
histórica, social e estética. Não podemos esquecer que o Modernismo onde evolui
Fernando Pessoa e os seus amigos Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros é um
movimento plural, que abrange os vários ismos que transitam para a revista Orpheu
em 1915, numa clara ruptura com princípios unitários – políticos, sociais e estéticos
em vigor. Igualmente se deve ter presente que coincide com uma crise generalizada
dos sistemas de referência ancestrais, artísticos e científicos. A concepção rígida do
espaço e do tempo estava a ser desmantelada pelas teorias de Einstein, ao passo que a
arte evoluía no sentido da abstracção e da intersecção com outros domínios – o que
reflecte também o poema «Chuva oblíqua» – «com uma horizontalidade vertical» e
se alterava também, no domínio da emergente psicanálise, a percepção do sujeito, de
certo modo anunciada por Nietzsche e sua noção de super-homem. No entanto, a
pluralidade que apresenta Fernando Pessoa nada tem de dispersão caótica; antes surge
desdobrada e organizada a partir da mente humana, segundo um princípio ordenador
que pode parecer paradoxal mas o não é se encararmos a mente como um palco
consciente da sua interacção com o corpo, instrumento mediador das suas relações
com o mundo. Por isso, também pode ser incorporada noutro corpo, mantendo com
este uma relação profunda mas oculta, e assumindo a sua individuação numa nova
materialidade – o que mostra a natureza eminentemente teatral do desdobramento
pessoano.
142 100 Orpheu Maria de Jesus Cabral

A nova personalidade artística acaba por se configurar no processo de fingimento


poético numa conciliação sempre renovada entre ordem e invenção (ou razão e
sentimento), dois impulsos artísticos correspondentes a forças complementares e que
poderíamos fazer corresponder às figuras de Apolo e Dionísio.
Mental, ela não tece uma relação mimética com o mundo enquanto tal, tornando-se
a sua própria realidade; no entanto, ela nasce e projecta-se a partir da mundividência
do sujeito poético que vive e se move social e quotidianamente nesse mundo. É porque
oferece ao leitor pontos de identificação com a realidade que a obra de Pessoa cumpre
a função mimética ou força de representação na formulação de Barthes (BARTHES,
R., 1978: 22) nos mesmos termos irrealistas e paradoxais distinguidos por este crítico
para a res literária (Idem: 22).
Numa página sobre «erros mais graves, porque dos mais vulgares», Pessoa observa
precisamente que um deles está

em não se reflectir que na literatura – visto que a sua matéria, a linguagem, é o veículo de
todas as emoções, sobretudo das mais profundas, das que não podem caber na acção, das
que excedem a capacidade da vontade – se reflectem os temperamentos, isto é as somas das
emoções mais profundas, dos que por ela se exprimem (LOPES, T. R., 1990: 55)

Estamos perante um indício marcante da consistência poética e diria mesmo


antropológica do pensamento do autor, que acrescenta, um pouco mais à frente: «O
que nos afasta dos homens aproxima-nos da humanidade.» Se, a partir da linguagem
das palavras e das imagens por elas criadas o discurso poético (no sentido de Poiésis)
permite exprimir e partilhar a dimensão sensível como a característica humana e
subjectiva por excelência, contrariando a redução do homem às categorias estáticas
da lógica per se, então a literatura, ao espelhar a nossa experiência do mundo e a
nossa existência no mundo, tem um peculiar valor de verdade, de humanidade e de
universalidade. Entendida como forma de conhecimento singular do humano no seu
sentido mais complexo e mais profundo, a literatura permite ver e redimensionar
categorias como as emoções que, conforme o vieram demonstrar as neurociências,
suportam o homem na sua dinâmica interna tanto quanto o chamado edifício racional
(Damásio, A., 1994). Decorre daqui toda a natureza transdisciplinar da literatura
e a mais-valia que o seu estudo representa para outros campos disciplinares, como
a medicina, designadamente, discussão que está muito para além dos limites deste
estudo1.

1 Como é o caso da medicina narrativa, movimento nascido nos Estados Unidos na tripla dimensão de
investigação, formação e prática médica por acção de Rita Charon (ver Charon, R., 2006. Narrative Medicine:
Honoring the Stories of Illness. Oxford, Oxford University Press). Em Portugal, desenvolve-se actualmente
A doença em Fernando Pessoa: cenografias discursivas e consciencialização ficcional 143

Em suma, mais do que viver um drama psicológico, assente na síndrome da


dúvida e na intuição de uma relação entre génio e nevrose congénita, cremos existir
sobretudo em Fernando Pessoa um enorme impulso de saber e de criação, em clara
sintonia com uma época de rebuliço epistemológico e de grande criatividade em todos
os domínios do conhecimento. O estatuto do poeta fingidor constitui na verdade
a condição ambivalente por excelência para declinar, em vozes e personae diversas,
o «drama em gente», como lhe chama, ou mais precisamente o «drama em poetas:
um poetodrama», segundo o conceito de José Augusto Seabra (SEABRA, J. A., 1988).
Nas suas metamorfoses, essa pluralidade representa uma conquista da linguagem
ampliada à dimensão de mundos possíveis.
É, no fundo, a partir da linguagem «posta em cena» (BARTHES, R., 1978: 18) que a
terrível « única realidade» pode assumir novas cenografias e significações, ganhando
uma nova atmosfera vivencial, diria Mallarmé, para lá das calhas de corda da existência
– qual rochedo de Sísifo. Foi dessa carência e das possibilidades infinitas que ela abria
que Pessoa teve aguda percepção, numa confluência exemplar entre discurso literário
e cons/ciência da linguagem.

Bibliografia

Bibliografia activa:
PESSOA, Fernando (2012). Histórias de um raciocinador. Lisboa: Assírio &Alvim.
PESSOA, Fernando (2010). O Marinheiro [Introdução, estabelecimento de texto e
notas de Claúdia F. Souza]. Lisboa: Edições Ática.
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Pizarro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
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no âmbito do Projecto interdisciplinar «Narrativa & Medicina» sediado no Centro de Estudos Anglísticos
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Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos
textos poéticos almadianos no Orpheu

Piero Ceccucci
Universidade de Florença

Palavras-chave: Almada; Frizos; Scena-do-Ódio; Orpheu; Modernismo.


Resumo: Como se sabe, o conjunto de textos em prosa-poética, inseridos por Almada Negreiros
com o título «Frizos» no primeiro número da revista Orpheu, devia ser assinalado, ao menos
nas intenções do poeta, por uma distanciação resoluta das poéticas do Simbolismo e do
Decadentismo, que, embora se possa inscrever no Paulismo, há poucos anos experimentado
por Pessoa, de facto traduz claramente um discurso poético ainda ligado à linguagem e às
sugestões simbolistas e decadentistas. Pelo contrário, nos trechos de A Scena do Ódio, que
deviam entrar no terceiro número da revista, o conúbio entre a linguagem da escrita poética e a
das Artes plásticas encaminha decididamente e de toda plena consciência para o Modernismo
português, de que o Nosso autor se tornará uma das principais figuras no meio cultural do
País. Com este trabalho entende-se investigar, através de uma análise pontual, sobre o papel
pervasivo das artes plásticas na Poesia de Almada; assim como o traço peculiar, dado por ele,
aos movimentos de vanguardas em Portugal nas primeira décadas do século XX.

Há quem persista em que Orpheu foi o


início de um épocal das letras, quando,
a final, era já a consequência do encontro
das letras com a pintura.
(NEGREIROS, J. A., 1993: 1741)

O significado histórico do Orpheu é maximamente


o de ter sido um movimento de vanguarda. É assim
que ele faz parte da nossa experiência contemporânea.
A sua sobrevivência é a sua permanência na nossa
memória antológica onde tudo se torna contemporâneo.
(HATHERLY, A., 1975: 8)

1 Escrito para comemorar o cinquentenário do Orpheu, Edições Ática, 1965;


148 100 Orpheu Piero Ceccucci

Por ocasião do sexagésimo aniversário do lançamento da Revista Orpheu, Eduardo


Lourenço escrevia:

O verdadeiro rosto de Orpheu não pertence nem aos que o inventaram nem aos que,
fascinada ou distraidamente, experimentaram a necessidade de o contemplar. Pertence
à forma mesma do presente sempre outro e sempre futuro, à sua específica maneira
de exorcisar o seu próprio enigma ou de o ignorar ignorando-se. Desse presente ou
presente-futuro poderá até descer sobre Orpheu aquele “esquecimento” que é o tributo de
tudo o que existe ao que não existe. Todavia, nem nesse esquecimento (para outros que
não nós) Orpheu perderá a sua imperdível figura. Ela mesma emprestou voz humana, tanto
quanto nela cabe, à visão da existência como “esquecimento”. E quem o esquecer nela se
lembrará (LOURENÇO, E., 1975: 9).

Na intenção de querer oportunamente glosar este breve e incisivo enunciado de


Eduardo Lourenço, amigo e mestre de sempre, não posso deixar de sublinhar como
o presente Congresso Internacional sobre o primeiro centenário do nascimento da
revista se coloca louvável e oportunamente na senda do pensamento eduardiano, vindo
a celebrar um evento que indelevelmente marcou e ainda hoje marca a cultura lusófona,
in primis, e, no mínimo há mais de cinquenta anos, a de todo o mundo ocidental.
No entanto, esta alta assembleia, obviamente, não basta para remover – nem sequer
psicologicamente – o improvável esquecimento, quanto a sancionar o reconhecimento
devido e definitivo da imperdível e perenemente vital força propulsiva no campo
das letras e das artes, que a revista, com o seu indubitável fascínio, exerce até hoje.
Portanto, mais do que a comemoração de um tempo e de um clima passados, inscritos
e representados em Orpheu, somos aqui chamados – se fosse necessário esclarecê-lo – a
imprimir novo impulso criativo de leitura aos postulados modernistas, ao menos aos
mais próximos das instâncias filosóficas do nosso tempo e dos anos vindouros. O que
só se poderá verificar proficuamente, se nós entrarmos novamente, com olhos espúrios
de antigas hermeneuses, ainda que louváveis, no esforço de compreender o impacto
delas na história civil e cultural do tempo, nos textos deixados nos três números da
revista – incluindo o terceiro, embora ficasse inédito durante muitos anos2 – por cada
performer modernista, dando vida à cena cultural lusitana do princípio do século vinte
com o seu engenho, o seu entusiasmo e a sua operosidade.

2 Foi publicado em 1984, primeiro numa edição fac-similada das Edições Nova Renascença, depois, numa
cuidada crítica textual pela mão de Arnaldo Saraiva, pelas Edições Ática, em julho do mesmo ano. Para
informações mais detalhadas sobre as primeiras edições de Orpheu 3, vd. a «Avant-propos», ainda de Arnaldo
Saraiva, colocado no espaço paratextual das edições em questão, nas pp. III-XLIV.
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 149

Portanto, é ao longo do eixo destas enunciações e com claras intenções especulativas,


abertas no entanto ao confronto e ao debate que, aproveitando desta extraordinária e
irrepetível ocasião, me cinjo a orientar aqui um olhar crítico “outro”, conduzido sobre
dois famosos escritos, Frizos e a Scena do Ódio3 de Almada Negreiros, inseridos nos
números 1 e 3 da revista. Pretendo selecioná-los como textos paradigmáticos de um
percurso de maturação ideológica e poética – no sentido modernista – efetuado por
este poeta-artista no breve arco de tempo de vida da revista, convicto, como estou,
que é no campo concreto da prática da poesia, que o génio do nosso Autor dá os seus
frutos literários mais fecundos. As obras citadas, como teremos ocasião de verificar
mais adiante, inundadas por uma vasta gama de implicações estilístico-discursivas,
prestam-se realmente a uma atenção ao novo dizer poético das vanguardas europeias,
que estavam a encontrar em Portugal uma sua, frequentemente original, dimensão
expressiva, a que o Nosso poeta já há uns anos se mostra particularmente sensível.
Em tais obras, podemos certamente encontrar, exemplarmente, a mise en scène,
fundamentalmente no plano da realização prática, mais do que sobre a teórica, da
passagem do decadentismo francês e do simbolismo declinante, enfático e barroco,
da escola portuguesa – que, por mérito de Pessoa, tinha aproado, embora com uma
dimensão pragmática e teórica no Paulismo – às múltiplas formas experimentais das
vanguardas (cubismo, futurismo, sensacionismo e outros -ismos), que na segunda
década do século XX, além dos Pirenéus, sobretudo em Paris, caleidoscopicamente,
alastrando-se a todas as Artes e acendendo debates críticos e polémicas sem fim,
tinham chegado às margens do Tejo.
Desde o primeiro número, de facto, com as doze breves composições em prosa-poética
de Frizos, Almada traduz uma ainda forte ligação com as poéticas de fim de oitocentos
do Simbolismo e do Decadentismo, nas quais, frequentemente, afloram também
ecos não apagados do Romantismo (MAGALHÃES, I. A., 1987: 50). Como
perspicazmente sublinha Isabel Allegro de Magalhães, onde, referindo-se à prosa da
primeira ‘Mima-Fataxa’ de Frizos, afirma que se trata de:

uma prosa breve, compacta, que é por sua vez uma estampa de cigana. A cena é ainda
romântica: um muro branco de cemitério, em que se apoia esbeltamente a figura exótica:
Mulher-objeto, mulher-animal, mulher-desejo, a sua descrição obedece de perto ao
cânone romântico. E até usa aqui o poeta-pintor, na descrição do seu corpo – corpo de
beleza estranha, corpo escuro e ferino de mulher-natureza – estilemas que são do mais
óbvio cariz romântico (Id.: 50-51).

3 Na elaboração destas breves notas, utilizarei para os dois textos e para todas as citações, que irei efetuando, a
ortografia em vigor no tempo de Orpheu.
150 100 Orpheu Piero Ceccucci

Não só em ‘Mima-Fataxa’, mas em outros textos ainda aflora, por toda a parte, de
modo muito nítido, todo um conjunto de estilemas românticos, como, por exemplo,
para citar um entre muitos outros, em Sèvres Partido, no qual – não obstante
eloquentes referências simbolistas, já encerradas no título, evocadas pelo narrado
inscrito no desenho de uma fina porcelana despedaçada – transitam nítidos elementos
românticos de entoação fabulosa, como, por exemplo, no texto seguinte:

A amazona negra era bela como o sol e triste como o luar, e ninguém acredita mas era
pastora de galgas. Figura negra muito esguia, cipreste procurando vagas na margem do
caminho.[...] Sobre a relva, na sombra arrendilhada das folhas amarelecidas dos plátanos
onde os repuxos do tanque cuspiam lágrimas de vidro, a Amazona negra sonhava o seu
Príncipe encantado e a galga do dia dormia quieta, estendido o focinho no ventre d’Ela.
(NEGREIROS, J. de A., 1993: 69)

Efetivamente, a descrição envolvente, de tipo ecfrástico, das feições da bela


Amazona, e os traços rápidos de sábias pinceladas, com que o sujeito introduz a
paisagem que faz de pano de fundo à cena, não podem deixar de remeter para um
delicioso quadro de vida campestre, tão caro aos Românticos, nos quais, no entanto,
não faltam sequer diáfanas referências simbolistas, como o enunciado «… os repuxos
do tanque cuspiam lágrimas de vidro», introduzido pelo eu poético como prenúncio
do epílogo infeliz da historieta narrada, sublinhado tanto pela imagem do «sèvres
partido», como pelo outro enunciado de evidente entoação crepuscular, «Uma flauta
triste vinha de viagem pelo caminho; chorava de seguida imensas canções de choro e
tinha acompanhamentos funéreos de guisalhadas surdas» (ibid.).
Sem esquecer a lição dos importantes estudos já efetuados sobre Frizos por Celina
Silva (SILVA, C., 1994: 102-103), Ellen W. Sapega (SAPEGA, E. W., 1992: 21-29) e
Maria de Fatima Marinho (MARINHO, M. de. F., 1996: 63-71), não podemos ignorar
quanto os doze mini-textos4, se delineiam inegavelmente como eivados invadidos
por uma evidente discursividade poética, ligada ao cânone estético da poesia
saudosista, pensado e elaborado por Pessoa nos dois célebres artigos, «A Nova Poesia
Sociologicamente Considerada» (PESSOA, F., 2000: 7-35) e «A Nova Poesia Portuguesa
no seu aspecto Psicológico» (PESSOA, F., 2000: 36-67), publicados na revista A Águia
de Porto em 1912. Sobretudo no segundo, no qual Pessoa enuncia perentoriamente, à
sua maneira, as linhas portantes das suas concepções, em matéria de poesia, e que, com

4 O poeta não inseriu o texto “Silêncios”, que se publica na edição Obras Completas – Vol. I, cit., p. 67; e que,
como recorda Ellen W. Sapega, talvez composto em 1913, tinha sido publicado em Portugal Artístico, n° 1,
Março de 1914.
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 151

extrema síntese, como é sabido, se substantivam em três elementos, caracterizantes o


novo dizer poético, cuja estrutura espiritual é constituída pelas ideias do vago, da
sutileza e da complexidade (id.: 42), paradigmática e penetrantemente encenadas no
conhecido poema-manifesto Pauis de 1914.
Almada, embora ainda substancialmente ligado, como acima referido, às
concepções próprias do Simbolismo mais maduro português, acolhe o verbo
pessoano do Paulismo que no entanto ressoa – em certos estilemas, ligados a
atmosferas noturnas, às ânsias e às inquietações da alma e ao sentido do mistério
– explícitos elementos constitutivos do Crepuscolarimo europeu, dominado por
uma atitude fundamentalmente pessimista, que atravessa a civilização decadente
europeia e encontra os seus fundamentos teóricos na filosofia de Schopenhauer e de
Nietzsche, na psicanálise de Freud, no intuicionismo de Bergson e no existencialismo
de Kierkegaard. Intelectuais, estes, que não só interpretam a crise da civilização e
dos valores do seu tempo, mas elaboram uma nova concepção da realidade, que
agora se apresenta incompreensível, misteriosa, caótica, irracional e de improvável
enunciação, solicitando e justificando o aparecimento de um tipo de discurso poético,
no qual os conteúdos revestem agora menor importância relativamente a uma “forma”,
procurada em refinadíssimas realizações, ao ponto de ela assumir cada vez mais valor
de conteúdo, enchendo-se de significados, que muitas vezes deixam estupefatos. A
forma, em suma, é já o conteúdo.
No entanto é, no que concerne ao discurso poético de Almada, sobretudo o
indivíduo que, focado na sua dimensão interior, nas suas inquietações mais profundas,
se lhe perfila como dobrado sobre si mesmo, imerso no sonho, tocado por um sopro
de leve, vaga melancolia que induz à solidão e, ao mesmo tempo, não sem antonímias
concetuais evidentes, ao sensualismo, à voluptas. O todo levemente veiado daquela
subtil ironia, à vezes destemperada no humour e na sorridente malícia, que desvanece
o excesso de visões e sentimentos atormentados e predispõe a alma a abrir-se ao novo.
É neste ponto que o artista, com a sua personalidade extravasante e turbulenta, não
isenta de desejado divertissement, chega à tertúlia da Brasileira e, em consequência, à
revista Orpheu, onde, no entanto, com uma postura mais compassada, encena a série
de mini-textos, dando o seu próprio contributo à revista, desde o primeiro número,
com Frizos.
Esta obra apresenta-se como um conjunto de textos em prosa poética, que, como
acima mencionado, embora constituídos por diversas temáticas, são realizados
com uma linguagem simples, de novela popular, aparentemente distanciada, fria.
Permeados por uma leve plasticidade descritiva, delineiam-se quase como aguarelas
graciosas, de cores ténues, cor pastel, que denunciam não só a proveniência da arte
pictórica do autor – de resto, já explicitada por ele próprio, no peritexto, constituído,
152 100 Orpheu Piero Ceccucci

para além do título, pelo nome do autor, precedido pela indicação da própria
qualificação profissional de desenhador, a que faz eco iterativamente à de pintor posta
ao lado da assinatura: «José de Almada Negreiros – Pintor» (NEGREIROS, J. de A.,
1990: 39)5 do texto, que segue a «Introdução» no l° volume da INCM, de Jorge de Sena
(SENA, J. 1982)6 – mas também a presença em muitas figuras encenadas (os Pierrots,
os Arlequins), imbuídas dos sucos, no estilo linear, claro e exacto, do Cubismo de
Picasso, quase a querer sublinhar com orgulho a sua escolha de vida profissional para
as artes plásticas.
De resto, o mesmo título de Frizos, que acolhe e apresenta o conjunto dos rápidos
contos, como segmentos constitutivos de um único quadro pictórico, convoca um dos
elementos mais caros à gramática do imaginário iconográfico do Simbolismo plástico,
remetendo para um signo ornamental da antiga arte arquitetónica grega7.
O lema, assumido pelo autor, não se limita, porém, a uma simples referência de
intenção decorativa, embora importante na estratégia comunicativa simbolista, tanto
em literatura como nas artes figurativas, mas apresenta-se, tout de abord, para uma
maior e mais pontual significação e descodificação do discurso poético veiculado,
como vontade de dissociar o signo, inscrito na imagem, do seu sentido codificado
para o transformar em visão alegórica, enunciativa de uma vasta e polivalente gama
de significados alusivos ou evocativos, como o sentido do belo, inscrito no lema
frizo, que emoldura a cena envolta em símbolos ambíguos e inesgotáveis, como os
do ornamento em si, do luxo, dos ouros, das pedras preciosas, das joias, dos tecidos
requintados, das sedas, que em Itália – para dar um exemplo – tinham encontrado
um inimitável cantor em Gabriele D’Annunzio, portador de um hedonismo sensual
e caprichoso (D’ANNUNZIO, G., 1982: 55-56)8, enquanto, para dar um outro rápido

5 Refiro-me explicitamente a: J. ALMADA NEGREIROS, «Prefácio ao Livro de Qualquer Poeta”, in Obra


Completa, Vol. I – Poesia, cit., pp. 35-39, que segue o texto «Almada Negreiros – poeta» de Jorge de Sena,
inserido de «Introdução», no Vol. I – Poesia da Obra Completa, cit., pp. 9-33;
6 Na verdade, trata-se de uma conferência, dada por Jorge de Sena na Sociedade Nacional de Belas Artes a 12
de fevereiro de 1968, publicada pela primeira vez na revista Nova Renascença, n° 7, Vol. 2, Primavera, 1982, e
recuperada, con a permisssão de Mécia de Sena, viúva do crítico, à laia de «Introduzione».
7 Com o lema “friso”, na actual norma ortográfica portuguesa, levado à letra, pretende-se denominar, come
se sabe, a parte ornamental na coluna dórica grega, intermédia de um “entablamento”, situada entre “a
arquitrave” e “a moldura”. O “friso” era constituído por uma placa de mármore com três tríglifos verticais,
alternada em painéis com relevos esculpidos (métopa). Em sentido lato, pode indicar qualquer decoração
pictórica ou escultura em baixo-relevo de uma faixa ornamental.
8 Escrevia Gabriele D’Annunzio ao seu editor, o príncipe Maffeo Barberini Sciarra Colonna: «[…] Por
temperamento, por instinto, preciso do supérfluo. A educação estética do meu espírito arrasta-me
irresistivelmente para o desejo e compra de coisas belas. Eu teria podido perfeitamente viver numa casa
modesta, sentar-me em cadeiras de Viena, comer em pratos comuns, caminhar num tapete de fabrico
nacional, tomar chá numa chávena de três vinténs […]. Ao contrário, fatalmente, quis divãs, mármores,
bibelôs, todas as coisas inúteis e belas que eu amo com uma paixão profunda e ruinosa.»
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 153

exemplo, no campo pictórico, é inevitável a referência à Salomé de Apparition [1876]


de Gustave Moreau, como máxima realização plástica da faustosidade desmedida
e da luxúria das cortes depravadas de baudeleriana consagração poética. Com isto
atinge-se a codificação e ostentação daquela floresta de símbolos, aos quais nem
sequer poetas e artistas portugueses permanecem estranhos. Dois nomes entre todos:
o Mário de Sá Carneiro (1890-1916) do poema «Salomé» de Indícios de ouro, pelo
género poético e – ainda que orientado para temáticas de introspeção psicológica e
da alegoria da vida humana, mais do que sobre as do brilho dos ouros e das pedras
preciosas, impelido para a exploração dos territórios das emoções e da intuição – o
António Carneiro (1872-1930) do tríptico A vida: a Esperança, o Amor, a Saudade
[1899-1901], para género pictórico.
Ora, mesmo na impossibilidade, por óbvios motivos de tempo, de levar a cabo uma
análise exaustiva sobre cada uma das doze narrações, não posso deixar de me deter
alguns instantes para tecer algumas breves considerações sobre o último quadrinho
«A Taça de Chá», que se coloca como corolário hermenêutico de toda a obra, onde
ele denuncia, em letras claras, a predominância dos elementos plásticos, ligados em
fio duplo ao cânone cubista, a partir do momento em que se configura como última
tessela significante de um conjunto de figuras planas entre si estreitamente ligadas em
função da veiculação e descodificação do discurso narrativo.
A descrição ecfrástica da cena desenhada nos lados exteriores da taça vivifica, por
efeito da imaginação, toda a narração, conferindo-lhe um movimento liberatório da
condição de estaticidade em que ab origine chegou a estar. Isto poderia fazer pensar
a um deslizar para o futurismo. Na verdade, a uma releitura mais atenta da figura,
não poderemos não nos lembrar quanto seja justamente a imaginação, elemento e
momento fundadores do Simbolismo, a transportar-nos, com a sua potencialidade
vivificadora, para o mundo das figuras representadas de um quadro, que parecem
animar-se, motu proprio, conferindo, no palco da mente, movimento à acção, como
acontece com a paragem da imagem na arte cinematográfica.
Estas rápidas considerações sobre o último quadrinho da colectânea vêm corroborar
a tese introduzida por Ellen W. Sapega, enquanto afirma que «A taça de Chá» é uma
espécie de mise en abyme simbolista de toda a obra, ainda que, aqui e ali o sujeito
poético extravase para o futurismo, do qual rapidamente se retrai para se reposicionar
nas vias certas das poéticas fin-de-siecle.
Exemplo disto é, sem dúvida alguma, Scena do Ódio, inserida por Almada em
Orpheu 3, de ampla entoação futurista9, ainda que não exclusiva, na qual, num carrossel

9 Embora a crítica mais recente tenda a circuncrever a influência do futurismo italiano sobre a Scena do
Ódio, não podemos não reconhecer que estudos autorizados, muitas vezes nos anos em que o texto apareceu
154 100 Orpheu Piero Ceccucci

vertiginoso de imagens chocantes, acompanhadas por uma linguagem e epítetos de


ostensiva, irreverente vulgaridade, são encenados, sem solução de continuidade, os
mais caraterizantes –ismos (Futurismo, Sensacionismo, Cubismo), acima recordados,
do Modernismo que, com cumes de verdadeira genialidade, se está propondo em
Portugal à obra da revista.
Com efeito, é opinião comum que são, primeiro, as próprias poéticas futuristas, mais
notáveis e vistosas, a ser eleitas entre as várias instâncias de vanguarda pelo Almada
no poema em questão que, a uma primeira leitura, se apresenta como um complexo
de mise en scène de todos os elementos do discurso textual da teoria, absolutamente
assertiva, dos vários Manifestos Futuristas, vindos a lume a partir 1909 na Europa.
Aliás, tal forma escritural concisa que, como argumentará Musil, sob o imperativo
dos tempos que se querem agitados e excitados, favorece um dizer poético incisivo,
lapidar, absolutus.
Assim, no Almada da Scena do Ódio, à maneira dos futurismos europeus mais
ostensivos e vistosos, o fragmento apodítico parece colorir todo o discurso textual,
estruturado, porém de modo tal que a palavra chega quase a perder a sua função de
significação lógica do próprio discurso, mutando-se num signo autónomo, fulgurante
e magnífico, transfigurado na invetiva e no ataque mais direto e injurioso.
Exemplar, neste sentido, é a estrofe, aqui citada:

Zutt! Bruto-parvo-nada
Que Me roubaste tudo:
‘té Me roubaste a Vida
E não Me deixaste nada!
Nem Me deixaste a Morte!
Zutt! Poeira-pingo-microbio
Que gemes pequenissimo gemidos gigantes,
Gravido de uma dor propheta colossal!
Zutt! Elefante-berloque parasita do não presta!
Zutt! Buguganga-cellulode-bagatella!
Zutt! bêsta!
Zutt! bacaro!!
Zutt! merda!!! (NEGREIROS, J. A. de, 1984: 62-63)

em edição completa, tenham sido realizados por reconhecidos estudiosos do Modernismo português, que
enquadraram o poema em questão, mesmo não ignorando a presença de outras correntes de vanguarda, no
ventre da poética futurista. Alguns nomes entre outros: José-Augusto França, Fernando Cabral Martins, Rui
Mário Gonçalves.
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 155

(exemplar, dizia eu, esta estrofe), pois, nela o sujeito, tanto na vincada anáfora Zutt
que, no som onomatopeico evocado pelo silvo de um chicote, acentua a função
reiterada da linguagem ultrajante e particularmente depreciativa, codificada pelo
Futurismo europeu, gritando o seu raivoso ódio, carregado de insultos, contra o
«bruto-parvo-nada» burguês, encenando a técnica enunciativa das palavras em
liberdade e da desestruturação da sintaxe.
Além, no entanto, da arrogância do impropério, o estilo breve no seu discurso
poético, como na própria vanguarda europeia, incluindo obviamente o Futurismo,
exterioriza-se em linguagem inovadora e alegórica, transformando-se em ato
performativo de militância, não privo de uma sua poesia própria ou expectativa
plástica. Projetado para tingir, marcar o evento literário, representado por Orpheu, a
Scena do Ódio, como poema de vanguarda destinado à comunicação e ao envolvimento
de um destinatário, tudo a classificar e definir como alvo, privilegia a palavra e os
sintagmas, que se tornam cifra escritural autónoma, paroxística, que se irradia, nos
clarões de um istantâneo de um ápice, de uma figura, em todas as suas possibilidades
evocativas.
Paradigma disto é o próprio incipit do poema:

Ergo-me Pederasta apupado d’imbecis,


Divinizo-Me Meretriz, ex-libris do Pecado,
e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!
Satanizo-Me Tara na Vara de Moisés!
O castigo das serpentes é-Me riso nos dentes,
Inferno a arder o Meu Cantar! (id.: 49)

Para além da leitura crítica da ode, no complexo condivisível, proposta por


Gregory McNab, que requer atenção para uma suposta, improvável postura
“vanagloriosa” e «compulsiva por egocêntrico anseio de se protagonizar» (MCNAB,
G., 1979: 41-42)10 por parte do sujeito que se eleva de modo transbordante sobre a
cena, representando-se graficamente – na intenção absoluta de se representar como
dotado de uma hiperpersonalidade orgulhosamente insubmissa – com a maiúscula
em todos os lemes que exprimem a primeira pessoa, queria aqui, acima de tudo,
sublinhar, talvez de forma mais plausível, quanto na linguagem crua e cortante da
própria auto-definição ele tenda a elevar-se psicologicamente pela negativa, em
aberto contraste com a seriedadezinha hipócrita, “lepidóptera”, no fustigante epíteto

10 «The first step the poet must take is to create himself, and the anti-social individual. It may be characterized
as a swaggering, chest-thumping posture os egocentric self-inflation.» Vd. MCNAB, G., 1979: 41-42.
156 100 Orpheu Piero Ceccucci

sa-carneirano, da classe burguesa, responsável pela decadência moral, politico-social


e cultural do País.
Como mais lucidamente sustenta Celina Silva, com a habitual, reconhecida
acríbia – com cuja abordagem hermenêutica em torno da figura do eu da enunciação
me encontro em perfeita sintonia – este trabalho almadiano, verdadeira «performance
de linguagem», instaura uma nova, mais pertinente leitura crítica em volta da figura
do protagonista, centrada na função e significação da linguagem, mais do que numa
definição impressionista, o mais das vezes ilusória e falaciosa. Afirma a estudiosa:

Esta obra-imprecação instaura um manifesto, um programa de actuação violentemente


proclamado por um sujeito dionísiaco, ente de desejo absoluto em revolta indomável,
em ruptura assumida e gritante com a pátria-colectividade.[...] Esse sujeito, autêntico
«eu pânico», andrógino e autodivinizado, está em sintonia directa com a experiência de
metamorfose, [...] em que a apetência da vida triunfa pela transgressão dos cânones morais,
sociais e literários (SILVA, C., 1994: 104).

De facto, à sufocação de toda a desinibição instintiva, operada pelo conformismo


burguês, o eu da enunciação erige-se, não de modo inutilmente vanaglorioso, mas,
pelo contrário, como paladino credível da emancipação do indivíduo, acolhendo
em si, enquanto Eu-herói desdenhado, portanto não-herói, ou melhor, anti-herói,
contraposto à moral dupla e mentirosa do interlocutor: um “tu”, este, mesquinho
e abjeto a destruir, investindo-o sem salvação com o seu próprio ódio absoluto,
irreparavelmente desmistificador de todas as suas hipocrisias.
Deste modo, desde os primeiros segmentos textuais, os actantes, na definição
greimasiana, são definidos no seu papel performativo: por um lado um eu rebelde
protagonista, belicoso e transgressivo, por outro um tu coletivo, egoísta e amorfo,
individuado como inimigo a implicar e indicar ao desprezo definitivo, representando-se
como figura instituída, tutelar retrógrada e passadista, para usar uma terminologia
cara ao Futurismo.
Poème-exorcisme (FRANÇA, J. A., 1989: 7), portanto, na definição de José-Augusto
França e, contudo, poema fundador das novas tendências de Vanguarda, Scena do Ódio,
pela sua marcada estrutura estilístico-discursiva, é indicado, ainda por José-Augusto
França (id.: 10) como a única grande (711 versi) ode modernista que, mais e melhor
do que a «Ode Marítima» e do que a «Ode Triunfal» de Álvaro de Campos, e do
que «Manucure» de Mário de Sá-Carneiro, funciona como a ímpar, verdadeira ponte
cultural entre a vanguarda portuguesa e a europeia das primeiras décadas do século vinte.
Aliás – em acréscimo ao que aqui disse até agora – o mesmo Interseccionismo
de Pessoa e o Sensacionismo de Álvaro de Campos traduzem, embora com uma
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 157

gradualidade e postura diferentes, uma presença inegável de elementos estilísticos


futuristas, que no entanto não invalidam a sua originalidade concetual e de
representação no interior da Casa Vanguardista Europeia, e que transitam na mesma
poética almadiana, corroborando-lhe a escolha de campo.
Coisa, esta, absolutamente evidente na Scena do Ódio, desde que, no plano ideológico,
enucleando e acolhendo em si os aportes conceptuais e estilísticos das grandes odes
pessoanas, acabadas de recordar, esta coloca-se decerto para lá do próprio Futurismo,
que no plano filosófico se lhe configura como portador de um pensamento bastante
fraco, ainda por cima centrado no mito da velocidade, da vida vivida galhardamente,
que enaltece negativa e tragicamente a função catártica da guerra, exaltada “como
única higiene do mondo” à procura do beau geste, da “bela morte”, exasperando as
componentes estetizantes do Fascismo liberticida, racista, militarista, absolutamente
estranho ao pensamento da Vanguarda portuguesa. Sobretudo de Almada Negreiros,
declaradamente portador de uma convicta concepção anti-belicista:

(E tu também roberto fardado:


Futrica-te espantalho engalonado
[…]
larga a espada de matar
e põe o penacho no rabo!
[...]
Desuniversidadiza-te da doutorança da chacina,
da ciência da matança!
[...]
(Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!
E esta gente distraida em guerras!) (NEGREIROS, J. A. de. 1984: 58-59)

Estas rápidas enunciações da ode almadiana, são testemunho de um sujeito que,


fugindo à deriva ideológica do Futurismo, se abre a uma filosofia mais estritamente
ligada ao Sensacionismo de Campos. Coisa, esta, aliás, explicitamente afirmado
por ele mesmo na assinatura colocada no trabalho – José Almada Negreiros, poeta
sensacionista e Nárciso do Egipto – e na dedicatória – A Álvaro de Campos, a dedicação
intensa de todos os meus avatares –.
Neste segmento inicial peritextual, o eu da enunciação, como parece evidente,
afasta-se desiludido das concepções futuristas, perigosas e inaceitáveis, tanto no plano
moral como no social, consolidando a sua ligação com o Sensacionismo, em cujo ventre
teórico inscreve o seu poema, caraterizando-o com os eloquentes e essenciais elementos
estéticos antecipados pelo próprio Pessoa, quando este afirmava suasivamente que o
158 100 Orpheu Piero Ceccucci

texto sensacionista deve cuidar: as «associações de ideias desconexas, a sedução rítmica


pura e a justaposição de imagens que (…) se sintetizam sugestivamente no espírito»
e, por último, mas não menos importante, «a unidade e organicidade do texto»,
absolutamente irrenunciável para ele (PESSOA, F., 2000: 130-131).
No entanto, se estas asserções ligam muito estreitamente a Scena do Ódio à
Ode Maritíma, não podemos deixar de sublinhar fortemente quanto o próprio
poeta-engenheiro, por sua vez, paga um tributo não secundário à linguagem declamatória
e declamada e à representação gráfica ostentada das palavras, próprias dos futuristas.
Com isto chego ao nó crucial da questão, pontualizando que, se é excessivo
sobrevalorizar a presença do Futurismo na Scena do Ódio, como nos foi dado ler em
algumas exegeses, publicadas no próprio tempo da publicação da obra, é também
exorbitante exaltar nela a função exclusiva da influência do Sensacionismo.
A verdade é que o poema em questão se desenha felizmente como território de
encontro das mais acabadas poéticas de vanguarda, que se cruzam e se fundem, como
num ideal cadinho, no texto do Nosso artista que flui harmoniosamente, cume de
todos os aportes felizmente amalgamados, já não enucleáveis, como acontece no
majestoso rio Tejo que, prenhe das muitas águas, provenientes de todos os afluentes
encontrados ao longo do caminho, vai desaguar – como diria o ilustre poeta italiano,
Ugo Foscolo – no «grande mare Oceano».
Se virmos bem, se, empurrado pela angústia da influência, de bloomiana
enunciação, quisesse perder-me na enumeração das «diversas águas (Foscolo)» que
indistintamente compõem o corpus textual da Scena do Ódio, não poderei ignorar,
para além da recordada presença das poéticas e futuristas e sensacionistas e cubistas,
o aporte, que também existe, por exemplo, do Expressionismo alemão, do Dadaísmo
e, se quisermos, de um Surrealismo, ante litteram, no qual, de momento, por óbvios
motivos de tempo e oportunidade não pretendo deter-me.
Esta é, enfim, a trajectória estilístico-concetual, inscrita neste texto finalmente e
plenamente modernista; que está, no fundo, para lá do fingimento poético, aquela do
próprio Almada Negreiros, que, como afirma Pierre Rivas «Telle sera le trajectoire,
convergente e divergente, d’Almada et de Pessoa, entre Mythe regressif et utopie
messianique, alpha et oméga de la modernité portugaise. [...] D’où la fuite dans une
teléologie trans-historique, l’affirmation de la primauté du Poètique sur le Politique,
du Mythe sur l’Histoire» (RIVAS, P., 1989: 84-85)11.
É, neste sentido, e à laia de conclusão, que a Scena do Ódio, embora encontrando
nela, perfeitamente inscritas e harmonizadas, as várias tendências poéticas

11 «[…] será convergente e divergente da de Fernando Pessoa, entre Mito regressivo e utopia messiânica, alfa e
omega da modernidade portuguesa. […] Nasce daqui a fuga para uma teleologia trans-histórica, a afirmação
do primado da Poética sobre a Política, do Mito sobre a História» [tradução minha].
Colorar o sonho, reaver a inocência. Pós-Simbolismo e Modernismo nos textos poéticos almadianos no Orpheu 159

estilístico-concetuais das Vanguardas do princípio do século vinte, se desenha como


poema-síntese do moderno dizer poético, estruturalmente orgânico e coerente,
sobretudo original na sua manifesta antiepicidade discursiva, à luz, mesmo, da
ideologia autoral, que se manifesta numa visão de cultura «inteiramente portuguesa
e inteiramente atual, por uma patria inteiramente portuguesa», que, todavia, se não
deve fechar às novas instâncias culturais, lato sensu, provenientes de além Pirenéus.
Como recorda Eduardo Lourenço:

Paradoxalmente, a obra de Almada Negreiros, tão voltada para o interior português,


obcecada pela exigência de criar a famosa pátria portuguesa que o merecesse – quer dizer,
que merecesse o tipo de homem e atitude novos que ele dizia incarnar do alto dos seus vinte
anos provocantes – é uma patria, um estilo, uma enunciação, que necessitam, como poucos,
do exterior, do criticamente europeu e exemplar, para ser compreendida. (LOURENÇO, E.,
1985: 79).

Coisa esta, que Almada tinha demonstrado ter compreendido bem, quando precisou:

Portugal, a civilização portuguesa, depende das civilizações ibérica, grego-latina,


ocidental-europeia, europeia e universal. (NEGREIROS, J. A. de, 1992: 67)

Bibliografia

Bibliografia Ativa
NEGREIROS, José Almada de (1935). «Portugal no mapa da Europa», in:
Sudoeste, n° 1, Lisboa, Junho de 1935. Reproduzido in: NEGREIROS, Almada
de (1992). Obras Completas (Ensaios, Vol. V). Lisboa: INCM, pp. 65-67.
NEGREIROS, José Almada de (1965). «Orpheu 1915-1965». In: NEGREIROS,
José Almada de (1993). Obras Completas, Vol. VI – Textos de Intervenção.
Lisboa: INCM, p. 174.
NEGREIROS, José Almada de (1984). A Cena do Ódio (Edição Crítica de Arnaldo
Saraiva). Lisboa: Edições Ática.
NEGREIROS, José Almada de (1990). «Frizos – Sevres Partido». In: Obras
Completas – Vol. I – Poesia. Lisboa: INCM, p. 69.
PESSOA, Fernando (2000). Crítica – Ensaios, Artigos e entrevistas (org Fernando
Cabral Martins). Lisboa: Assírio e Alvim.
160 100 Orpheu Piero Ceccucci

Bibliografia Passiva
D’ANNUNZIO, Gabriele (1982). «Lettera a Maffeo Barberini Sciarra Colonna».
apud M.M. Lamberti, 1870-1915: i mutamenti del mercato e le ricerche degli
artisti, in Stora dell’Arte italiana, Parte seconda. Dal Medioevo al Novecento.
Volume terzo. Il Novecento, Torino: Einaudi, pp. 55-56.
FRANÇA, José-Augusto (1989). «Préface a ‘La scène de la haine’: Un poème-exorcisme».
In: La scène de la haine, Paris: Librairie José Corti, pp. 7-14.
HATHERLY, Ana (1975). «60 anos do Orpheu». In: Colóquio/Letras, n° 26, Lisboa:
Ed. Fundação C. Gulbenkian, pp. 5-22.
LOURENÇO, Eduardo (1975). «60 anos do Orpheu». In: Colóquio/Letras, n° 26,
Lisboa: Ed. Fundação C. Gulbenkian, pp. 5-22.
LOURENÇO, Eduardo (1985). «Almada ensaísta?». In: Almada, Actas do Colóquio
sobre Almada Negreiros, Lisboa Outubro de 1984. Lisboa: Edições Fundação
Calouste Gulbenkian, pp. 79-85.
MACNAB, Gregory (1975). «Sobre duas “intervenções” de Almada Negreiros». In:
Colóquio/Letras, n°35, Lisboa, Edição Fundação C. Gulbenkian, pp. 32-40.
MACNAB, Gregory (1979). «The Poet Strikes Back: Almada-Negreiros in the Cena
do Ódio». In: Luso-Brazilian Review, Vol. 16, n 1, University of Wisconsin Press,
pp. 41-52.
MAGALHÃES, Isabel Allegro de (1987). «Almada. ‘Mima-Fataxa’ em dois tempos».
In: Colóquio/ Letras, n° 95, Lisboa: INCM, pp. 49-59.
MARINHO, Maria de Fátima (1998).«Frisos ou o Desgosto de Colombina».
In: Almada Negreiros: A Descoberta como Necessidade, Actas do Colóquio
Internacional, Porto 12-14 de Dezembro de 1996, Porto: Edição Eng. António
de Almeida, pp. 391-400. (Artigo reproposto em Colóquio/Letras, n° 149/150,
Lisboa: Edições Fundação Gulbenkian, 1998, pp. 63-71).
RIVAS, Pierre (1989). «L’écho du silence», Postface a NEGREIROS, J. Almada de. La
Scène de la haine. Paris: Librairie José Corti, pp. 84-85.
SAPEGA, Ellen W. (1992). «Os Limites da Narrativa Almadiana: da Influência
simbolista em ‘Frisos’ à Experiência Futurista de ‘Saltimbancos’». In: Ficções
Modernistas: Um Estudo da Obra em Prosa de José de Almada Negreiros
1915-1925. Lisboa: ICALP, pp. 21-29.
SENA, Jorge (1982). «Almada Negreiros Poeta». In: Nova Renascença, n° 7, Vol.
2. apud: NEGREIROS Almada de (1990). Obras Completas – Vol. I – Poesia.
Lisboa: INCM, pp. 9-33.
SILVA, Celina (1994). «Nos Labirintos – Frisos». In: Almada Negreiros. A Busca de
uma Poética da Ingenuidade. Porto: Edição Fundação Eng. António de Almeida,
pp. 102-103.
Elementar, meu caro Lúcio!

Teresa Cristina Cerdeira


UFRJ/CNPq

Palavras-chave: duplo; narcisismo; voluptuosidade; mise-en-abyme.


Resumo: Partindo da proposta de ler A Confissão de Lúcio como um ensaio sobre a
voluptuosidade, interessa-me acompanhar o processo de construção do duplo a partir
do conceito de narcisismo. O conceito freudiano de «estranho» (unheimlich) constituirá
a base teórica para a leitura do duplo narcísico, não apenas através do sentido primeiro de
não familiar mas naquilo que ele tem de ambíguo quando entendido como o elemento que
deveria ter permanecido oculto, quieto, tranquilo (heimlich) mas que ousou apresentar-se à
luz revelando sua estranheza (unheimlich). Daí o medo e o horror que impulsionam à morte.
Caberá avaliar as variantes do narcisimo na novela de Sá-Carneiro posto que ele surge de uma
autocontemplação voluptuosa, não através de uma automiragem no espelho da identificação,
mas da possibilidade de produção de um outro ainda mais perfeito de si, nesse caso um
desejado outro feminino.

A leitura que proponho hoje para A Confissão de Lúcio nasceu de um ensaio que
escrevi há alguns anos1 e que tinha por centro de interesse o conceito de voluptuosidade.
Ainda hoje este me parece ser esse o sintagma gerador das mais variadas relações
semânticas dessa primorosa novela de Mário de Sá-Carneiro, ela mesma tão exemplar
do contexto decadentista finissecular que deixou marcas indeléveis nos artistas do
entrante século XX. A hipótese inicial permitiria ler a obra como um «ensaio sobre
a voluptuosidade» que se desdobrasse em três tempos: a teorização, a encenação e a
experimentação.
No que tange aos personagens da novela, composta de não mais de seis actantes
de maior ou menor importância em termos consequentes para a trama, uma figura
feminina, na mais pura tradição orgíaca das bacantes, emerge da cena intelectual de
uma Paris fin-de-siècle para desencadear, contra todas as convenções, o conceito de
arte da volúpia ou da volúpia como arte, muito antes que do simples exercício da
voluptuosidade na arte.

1 Refiro-me ao capítulo de A Mão que escreve (CERDEIRA, T. C., 2013).


162 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

Do lado oposto da luxúria, dos amplexos brutais, dos beijos úmidos, das carícias
repugnantes e viscosas, essa voluptuosidade é a experiência da con-fusão radical dos
sentidos que escapam, aliás, a qualquer configuração referencial, por se constituírem
antes como intangibilidades que ligam, num mesmo excesso, a sensorialidade e a
espiritualidade, o desejo e a morte, Eros e Thanatos, como opostos que coabitam.
A «americana», como fica conhecida, é, portanto, a Diotima de Sá-Carneiro, para
quem a espiritualização da volúpia seria o estágio mais sublime da beleza ideal, ou em
palavras suas, dos «desejos espiritualizados em beleza». Numa fascinante pedagogia,
dela se ouve a lição da volúpia das correspondências sinestésicas em que se cruzam
impressões de planos diversos: o físico e o moral, o concreto e o abstrato, o sedutor
e o terrificante, identificados pela voluptuosidade do fogo, pela perversidade esguia da
água, pelos requintes viciosos da luz.
O segundo passo dessa inusitada personagem feminina seria o de transformar
o conceito que veiculara verbalmente em grande festa. Mas festa aurática, nunca
grotesca, festa de apagamento dos limites, em que o mundo masculino do dandysmo
mergulha como simples espectador de uma incorpórea fisicalidade de refinadíssimos
sentidos. A festa é uma cena de teatro de fulguração homoerótica, com mulheres
a funcionarem como actantes secundárias dos excessos experimentados pela
«americana», aquela afinal sobre quem todos os olhares convergem e cujo orgasmo
final metaforiza-se como desaparecimento e morte. Diz o texto: «... Até que por fim,
num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre
as águas douradas – tranquilas, mortas também»2 (CL: 45).
Enfim, como a demonstração de uma tese que se preparara em conceito e
mise-en-scène, os factos que se seguem à cena dessa festa triunfal constituiriam a fase
da experimentação, na escala individual, dos êxtases e dos mistérios que compõem
o enredo da narrativa confessional de Lúcio. Passar do inefável para a linguagem é
possivelmente o seu modo de tentar perceber com outras categorias – que não as da
racionalidade – o exercício dessa erótica transgressora.
A experiência homoerótica feminina – maravilha / mirabilia para espectadores eleitos
– é o que dará suporte à experiência de afeto dos dois protagonistas masculinos – Lúcio e
Ricardo de Loureiro – cuja atração mútua, travestida de amizade, só logrará completar-se
com o advento algo surpreendente de um terceiro elemento – já agora feminino – que
será o modo de normalizar, ou de normatizar, uma transgressão sexual através de uma
outra transgressão de base psicótica que consiste na produção de um suplemento de
personalidade, de um desdobramento da psique na imagem de um duplo de si.

2 SÁ-CARNEIRO, Mário. A Confissão de Lúcio. Lisboa, Assirio & Alvim, 1998. Todas as citações serão a partir
de agora indicadas com as letras CL seguidas do número da página.
Elementar, meu caro Lúcio! 163

Freud afirmara que o duplo nasce do «terreno do ilimitado amor a si próprio, do


narcisismo primário». E continua: «Com a superação dessa fase, o duplo tem seu
sinal invertido e de garantia de sobrevivência passa para inquietante mensageiro
da morte»3. Amor e morte reunidos de modo visceral.
Será preciso lembrar que em A Confissão de Lúcio essa evidência da realidade
do duplo só ganha estatuto verbal nos últimos capítulos da novela quando, depois
de uma crise passional em que se misturam o ciúme, o desprezo e a inveja, Ricardo
revela a Lúcio o seu projeto de construção da imagem de Marta. A partir de então,
desvelada como criação sua, como a sua grande obra de arte, a sua obra-prima
plenamente conseguida, Marta parecerá enfim «explicada» como duplo de
Ricardo, dado que, obedecendo à configuração mais tradicional do gênero, é
também o responsável por detonar imediatamente o processo de sua necessária
eliminação.
Pois é justamente sobre essa versão do advento do duplo narcísico, trazida à cena
narrativa como epifania da paixão, que me interessa pensar aqui. Ela está obviamente
centrada no relato em primeira pessoa de Ricardo, mesmo que daí não se ausente a
consciência de que estamos diante de uma transcrição – em discurso direto – que
vem contudo inserida na narrativa maior da «confissão» feita em primeira pessoa
por Lúcio. Por outras palavras, o que se tem que levar em conta é o facto de que
esse entendimento da virtualidade de Marta pelo narrador da novela (Lúcio) será
evidentemente outro. Para ele, a existência daquela figura feminina certamente
desconcertante estava comprometida pelo desejoso consentimento da sua
concretude. Pouco mobilizado pelas causas e mais interessado nos efeitos daquela
aparição, Lúcio hesitava em contrariar a certamente discutível verossimilhança de
Marta como sujeito e realidade independentes Ricardo, seu verdadeiro parceiro para
os afetos não consumados.
O duplo de configuração narcísica é recorrente na literatura. A visibilidade do
tema4 atravessa tempos e autores com algumas variantes nem sempre excludentes,
tais como a sombra como alma, a figura dos gêmeos, o pacto com o demônio, a dupla
personalidade, o sonho de rejuvenescimento, a demanda de eternidade, a crença na
dupla paternidade, o desejo de morte. Na leitura de A Confissão de Lúcio o mito de
Narciso ganha contornos relevantes e nos convida a interpretar o modo como
Sá-Carneiro negocia com ele, como o relê, como dele se apropria e o transforma
em uma dominante da configuração da personagem de Ricardo de Loureiro, em que

3 FREUD, S., 2010: 352 («O inquietante»). Em algumas traduções o título aparece como «O estranho».
4 Cf Otto Rank. Don Juan et le Double. http://classiques.uqac.ca/classiques/rank_otto/don_juan/rank_
donjuan_double.pdf
164 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

estarão sobretudo presentes duas de suas variantes: a história do reflexo perdido5 e a


necessidade da morte do outro.
Neste ensaio sobre a voluptuosidade – que parece ser uma via de leitura para a
novela de Sá-Carneiro – o investimento na beleza é uma tónica da experiência dos
sujeitos para assegurarem, através dela, o gozo, a paixão, a sedução. Acrescente-se
a isso o facto de esses personagens, não por acaso, serem todos artistas, conscientes
de sua fúria criadora, mesmo que em geral improdutiva, que se negam a qualquer
compromisso utilitário em nome de uma grandeza superior que ultrapassaria os
valores do senso comum fundadores da experiência em sociedade. Sendo assim, a
sedução da beleza assim como a capacidade de a produzir – mente bela em corpo
belo – parecem ir de par com a estrutura mesma do narcisismo.
A volúpia da beleza narcísica – e aqui nos referimos ao terreno do mito e às suas
migrações conceituais – é uma vocação autocentrada e autotélica, em que a paixão
não se dirige a um outro diferente de si, mas à sua própria imagem, sem qualquer
sentido ou finalidade para além ou fora de si. Essa definição nos obriga a colocar, para
efeitos de leitura de A Confissão de Lúcio, uma questão metodológica inevitável: como
aproximar de Narciso a figura de Ricardo de Loureiro, a não ser assumindo-a como
uma variante em que o personagem masculino se projeta numa figura feminina,
que tem, já sexualmente, a marca de uma diferença? O que poderia parecer uma
fragilidade epistemológica rapidamente se resolve, como sempre em literatura, através
da voz do próprio personagem. Este será o caminho mais autorizado para a revelação
de um narcisismo ainda mais radical, pois que constituído pela idolatria nascida
de uma autocontemplação voluptuosa, não através de uma miragem no espelho da
identificação, mas através da produção de um outro ainda mais perfeito de si (passe a
tautologia etimológica).

«Ah! meu querido Lúcio [...] como eu sinto a vitória duma mulher admirável, estiraçada
sobre um leito de rendas, olhando a sua carne toda nua...esplêndida...loira d’álcool! A carne
feminina – que apoteose! [...] E lembra-me então um desejo perdido de ser mulher – ao
menos para isto: para que num encantamento pudesse olhar as minhas pernas nuas, muito
brancas, a escoarem-se, frias, sob um lençol de linho».

5 Cf. Hoffman, «L'histoire du reflet perdu», tomo II, cap. III, dos Contos fantásticos. Mas seria um excelente
desenvolvimento da pesquisa revisitar autores brasileiros como Machado de Assis ou Guimarães Rosa. Em
ambos os casos, «O espelho», de Papéis avulsos, e o conto medial das Primeiras estórias, com o mesmo título
do anterior, podem bem fundamentar em metáfora a perquirição sobre a identidade do sujeito.
Elementar, meu caro Lúcio! 165

O que Ricardo de Loureiro viabiliza nessa utopia é um só aparente deslocamento para


o outro. O seu verdadeiro investimento está na criação de uma autoimagem aperfeiçoada,
que embora não seja, como refere o mito, a do seu reflexo é ainda a da sua projeção ideal,
o que só amplia o gozo de si na competência dessa transmutação, radicalizando – em vez
de escamotear – o gozo narcísico. Quando ele expõe a Lúcio o seu fascínio pelo corpo
feminino – «mulher admirável, estiraçada sobre um leito de rendas, olhando a sua carne
toda nua ... esplêndida ... loira d’álcool» – estamos longe de assistir a uma dissociação
ou mesmo a uma alterização do objeto do desejo. O que seria verdadeiramente belo – e
nesse sentido verdadeiramente desejável – era o seu «desejo perdido de ser mulher» para
se poder mirar como tal, e «num encantamento pudesse olhar as [...] pernas nuas, muito
brancas, a escoarem-se, frias, sob um lençol de linho», numa convergência de excessos
de sensações visuais, (nuas, brancas), de percepções táteis (frias, linho), de uma liquidez
(escoarem-se) que lembra a dissolução de toda concretude.
Construía-se já – nessa confissão do desejo de sentir-se mulher em nome do culto
do belo – a sua estratégia futura de invenção do personagem de Marta como seu
duplo, o que nos permitiria considerá-la como uma espécie de embrião heteronímico.
Esse movimento – que Mário de Sá-Carneiro algumas vezes tangencia, menos pela
via da dilaceração do sujeito do que pela da via da autoprojeção, Fernando Pessoa, na
linha de outras experiências literárias próprias do seu tempo (e pense-se en passant
em Proust ou Virgínia Woolf), realizaria na sua radicalidade, como modo de sentir
tudo de todas as maneiras.
Marta é pois o duplo construído como projeção de uma beleza ideal que
o corpo masculino desejoso de feminizar-se logra constituir. Nessa linha de
leitura justificar-se-iam algumas cenas absolutamente exemplares que apontam
o espelhamento constitutivo dos dois personagens – Ricardo e Marta –, em que a
consistência afetiva de um é inversamente proporcional ao desvanecimento do outro,
ao desvelamento da sua inconsistência histórica e, por que não, jurídica.
Na primeira delas Lúcio, que observa Marta numa sala de concerto, a vê desaparecer
do seu campo de visão no exato momento em que Ricardo é tomado por um excesso de
emoção diante de um concerto muito significativamente chamado Além. («Nunca vibrei
sensações mais intensas [dirá ele] do que perante esta música admirável»- CL: 67).

Narrada por Lúcio, a cena é a seguinte:

E então, pouco a pouco, à medida que a música aumentava de maravilha, eu vi – sim na


realidade vi! – a figura de Marta dissipar-se, esbater-se, som a som, lentamente, até que
desapareceu por completo. Em face dos meus olhos abismados eu só tinha agora o fauteuil
vazio...(CL: 66-67)
166 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

A segunda cena é como um reflexo invertido da primeira, e tem a ver com o


momento em que Ricardo de Loureiro, no auge da paixão entre Lúcio e Marta, e, nesse
sentido, no auge daquilo que ele imaginava ser a grande vitória da sua alterização,
relata ao amigo o que chamou de «uma bizarra alucinação» (CL: 77): «Por acaso olhei
para o espelho do guarda-vestidos e não me vi reflectido nele! Era verdade! Via tudo
em redor de mim, via tudo quanto me cercava projectado no espelho. Só não via
a minha imagem!» (CL: 77). Marta sobrepujava-se ao seu criador, e a máscara da
personagem encobria ou anulava a face do seu autor6.
A explicação de ambos os exemplos parece absolutamente coincidente com
o modelo típico do fenómeno do duplo: em momentos de excesso de afeto ou de
emoção por parte de um, a imagem do outro perde consistência e desaparece. No
entanto, um detalhe não despiciendo vem roubar-nos a certeza sobre essa hipótese
de entendimento. Se a primeira cena é narrada por Lúcio, a segunda (em princípio
referida por Ricardo) na verdade não o será menos, pois transita daquilo que seria
uma declaração verdadeira do personagem sobre uma experiência pessoal de caráter,
digamos, sobrenatural (já que para ele inexplicada) para uma questionável irrealidade
do próprio discurso e, nesse sentido, para a diluição do seu valor de testemunho ou
de verdade. O que equivale a dizer que ambas as cenas de perda de imagem são, na
verdade, perceções de Lúcio, e nesse sentido só credíveis na dimensão da parcialidade
do seu ponto de vista. Depois do que teria sido a transcrição de uma fala do
personagem, o narrador confessa:

Porém, refletindo melhor, descobri que em realidade o meu amigo não me dissera nada
disto. Apenas eu – numa reminiscência muito complicada e muito estranha – me lembrava,
não de que verdadeiramente ele mo tivesse dito, mas de que, entretanto, mo devera ter dito
(CL: 77).

O que também parece evidente – tanto no mito de Narciso como no conceito de


narcisismo para Freud, a respeito da imagem do duplo como modo de representação

6 Sobre esse epifenômeno, Otto Rank (1932) refere, entre outros tantos exemplos mais ou menos contemporâneos
da novela de Sá-Carneiro, o filme «O Estudante de Praga» de Hans Heinz Ewers, em que Balduin, depois de
um pacto fáustico, aceita que lhe roubem a sua sombra até que ela reiteradamente reaparece diante dele como
seu duplo macabro, destituindo-o dos seus afetos. Ao perceber que já não é capaz de ver a sua imagem no
espelho, atira no fantasma e morre do mesmo tiro. Já no conto «Le Horla» de Maupassant, o personagem sem
causa aparente (o que redobra a angústia e o sentimento de absurdo) se expõe a alucinações sucessivas ao se
sentir perseguido por uma espécie de fantasma de si próprio, vê sua própria imagem desaparecer no espelho
do quarto, e, ao tentar eliminar a figura incorpórea pelo fogo, destrói inutilmente a casa, torna-se o assassino
dos criados que ali ficaram aprisionados, até concluir que, contrariamente a si mesmo, exposto humanamente
à morte a cada instante, Le Horla, «corpo feito só de Espírito, não precisava temer nem os males, nem os
ferimentos, nem as enfermidades, nem a destruição prematura».
Elementar, meu caro Lúcio! 167

do eu – é a convivência de afetos contraditórios em que a fascinação vem assinalada


pela tensão entre a aspiração por um ideal (seja ele a beleza ou a eternidade ou o
poder) e o ódio avassalador, que tende frequentemente à eliminação e à morte, pelo
facto de o duplo, na sua possível autonomização, ser pressentido como franca ameaça
à identidade do sujeito.
Ricardo desejara-se mulher, lograra mesmo projetar-se num corpo feminino que,
relembrando a categoria do «estranho»7 (unheimlich) para Freud, é mais do que a
evidência imediata do não-familiar ou do não-doméstico, mas vem investido de
uma dimensão ambígua que desfaz a simplicidade das oposições para se reconhecer
também como aquilo que deveria ter permanecido oculto, quieto, tranquilo (heimlich)
mas que ousou apresentar-se à luz revelando sua estranheza (unheimlich). Daí o
medo e o horror que impulsionam à morte. Só que, ao destruir o outro (o duplo, o
estranho que veio à luz), é também quase sempre a si que o sujeito destrói. Como uma
fatalidade, nessa luta com o objeto do desejo, alguém precisa morrer.
Apontar essa versão do duplo narcísico na novela de Sá-Carneiro é mais do que
somar uma nova variante de leitura para entender o surgimento do personagem de
Marta para além da versão mais convencional de sua explicação pelo fantástico ou
daquela que privilegia a evidenciação de uma mera ficcionalização metafórica. Essa
opção pelo tratamento da criação do personagem de Marta pela via do narcisismo
torna-se sobretudo funcional para intuir uma interpretação mais consequente para o
desfecho da novela que, na camada mais literal do discurso, finda sobre a afirmação
da inocência de Lúcio.
Sendo a novela narrada sem a intervenção de um narrador omnisciente, fica-se
a conhecer tão somente a versão apresentada por Lúcio e estaria justamente aí a
chave algo perversa da escolha autoral: fornecer através de uma anamnese, feita à
distância de dez anos do fato acontecido, a versão do único personagem sobrevivente
e, por isso mesmo, do único personagem passível de dar testemunho de verdade.
Resumidamente é esta a versão de Lúcio: depois de Ricardo lhe ter revelado o segredo
da sua invenção de Marta, depois de ele ter admitido que através dela pudera realizar
seu afeto não apenas por ele mas também pelo russo Sergio Warginsky8, o seu poder

7 FREUD, S., 2010: 338.


8 «Era um belo rapaz de vinte e cinco anos, Sergio Warginsky. Alto e elançado [...] Os seus lábios vermelhos,
petulantes, amorosos [...] Os seus olhos de penumbra áurea, nunca os despregava de Marta – devia-me lembrar
mais tarde. Enfim, se alguma mulher havia entre nós, parecia-me mais ser ele do que Marta. [...] Sergio tinha
uma voz formosíssima – sonora, vibrante, esbraseada. [...] Por isso Ricardo se aprazia muito em lhe mandar
ler os seus poemas que, vibrados por aquela garganta adamantina, se sonorizavam em auréola. [...] De resto
era evidente que o poeta dedicava uma grande simpatia ao russo. A mim, pelo contrário, Warginsky só me
irritava – sobretudo talvez pela sua beleza excessiva –, chegando eu a não poder retrair certas impaciências
quando ele se me dirigia».
168 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

criador volve-se em poder de aniquilação e Ricardo decide eliminá-la com um tiro.


Marta então desaparece, o corpo de Ricardo cai, Lúcio tem o revólver ao seu lado e
será condenado por homicídio a dez anos de prisão.
Ricardo-Narciso poderia assim justificar o desenlace da trama em que o assassinato
do segundo eu corresponde regularmente à morte do herói: assassinar o duplo
torna-se uma variante fatal do suicídio. O mistério do duplo estaria todo explicitado
no fundamento identitário que lhe dá origem: «Compreendemo-nos tanto, [confessa
Ricardo a Lúcio] que Marta é como se fora a minha própria alma. Pensamos da mesma
maneira, igualmente sentimos, Somos nós-dois». (CL: 120).
Para além dessa especularidade, Marta havia sido para Ricardo a quintessência do
poder, de tal modo que à sedução narcísica se soma o fascínio fáustico de ultrapassagem
de seus próprios limites sobre uma incapacidade – aliás pouco justificada na dimensão
meramente física – de possuir uma pessoa do mesmo sexo. É pois num transe de
transmutação que aquele ouro desejado pelos alquimistas, a remeter à cena teatralizada
da «americana», ter-se-lhe-ia parecido de súbito viável, tangível, realizável. Como se a
maldição fálica do seu corpo masculino não precisasse violar-se ou abdicar de si para
tornar-se corpo penetrável, já que um duplo feminino ocupava esse lugar ao reunir
complementarmente – e não paradoxalmente – a semelhança e a diferença. Era a
revelação do «grande segredo», a sua apoteose:

«Uma noite, porém, finalmente, uma noite fantástica de branca, triunfei! Achei-A... sim, criei-A!...
criei-A... Ela é só minha – entendes? – é só minha!... Compreendemo-nos tanto, que Marta é
como se fora a minha própria alma. Pensamos da mesma maneira; igualmente sentimos.
Somos nós-dois... Ah! e desde essa noite eu soube, em glória soube, vibrar dentro de mim
o teu afeto – retribuir-to: mandei-A ser tua! Mas, estreitando-te ela, era eu próprio quem te
estreitava... Satisfiz a minha ternura: Venci! E ao possuí-la, eu sentia, tinha nela, a amizade
que te devera dedicar – como os outros sentem na alma as suas afeições. Na hora em que a
achei – tu ouves? – foi como se a minha alma, sendo sexualizada, se tivesse materializado. E
só com o espírito te possuí materialmente! Eis o meu triunfo... Triunfo inigualável! Grandioso
segredo!...»

E quanto a Lúcio? Se acreditarmos nele, contentar-nos-emos com a sua lógica cujos


valores ficam claramente explicitados: não se defende das acusações injustificadas de
homicídio por saber que suas explicações não seriam críveis; não se desespera com
a condenação; afirma-se inocente ao escrever a sua confissão depois de dez anos de
reclusão; aceita como um privilégio ser no presente um morto-vivo por ter tido um
dia o vislumbre da plenitude.
Elementar, meu caro Lúcio! 169

Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem
mais ter ação sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido
o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos
fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem.
As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou – apenas – os desencantados que,
muita vez, acabam no suicídio. (CL: 12)

Se se crê nele como narrador, é esta a história. Acontece que essa sua experiência
de rememoração vem comprometida pela referência confessada a uma supressão
momentânea de sua própria lucidez no momento do crime e, nesse sentido, por uma
incapacidade de julgamento imparcial e objetivo. Acumulam-se no seu discurso
significantes dignos de nota, tais como assombro e mistério; outros ainda em que ele
próprio se define como aterrado, possesso de medo, olhos fora das órbitas, cabelos erguidos;
ou que revelam que, diante da cena climática, a sua opção fora a de precipitar-se para
fora, numa carreira louca. (CL: 122-3). A tudo isso acrescente-se, no que tange à técnica
narrativa, um hiato composto visualmente por duas linhas de pontos de suspensão,
evidente momento de espera a que se segue, como num ato falho, a confissão de sua
alucinação: «– Quando pude raciocinar, juntar duas idéias, em suma quando despertei
deste pesadelo alucinante que fora só a realidade, a realidade inverossímil – achei-me
preso num calabouço do Governo Civil [...]» (CL: 123 grifos meus). Leve-se portanto
em conta a dúvida sobre a sua incapacidade de julgamento.
Há ainda um outro detalhe singular – uma pista para um thriller policial – que
ajuda a comprometê-lo imageticamente com a morte de Marta/Ricardo, e que vem
à tona, malgré lui, através de um gesto passível de leitura psicanalítica e revelado por
seu próprio discurso. Detalhe não desprezível, Lúcio, escritor impotente, escrevera
uma peça de teatro, que ele tinha ainda por inacabada mas cuja encenação teria sido
prometida para os palcos de Lisboa, o que apontaria assim para um seu possível triunfo.
Às vésperas da primeira representação, imbuído de uma fúria de inspiração
aparentemente inexplicada, Lúcio anuncia ao metteur en scène uma nova proposta
de desenlace para a peça. O que essa peça é, o que essa alteração representa não
ficamos a sabê-lo com clareza para além do fato de, na primeira versão, morrer
o personagem do escultor, e de a segunda versão – que Lúcio julgava «uma ideia
belíssima, grande, que [o] entusiasm[ava]» (CL: 115) – ter sido julgada pelo
empresário «um disparate».
O facto é que Lúcio recusa a montagem já feita e, como não consegue persuadir
o metteur en scène da superioridade da sua nova versão, lança o manuscrito da sua
obra – cujo título é A Chama – para dentro de uma fogueira, destruindo-a: a Chama
na chama, como uma espécie de fatalidade tautológica. Falha o artista incompleto por
170 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

não deixar vir à luz a sua obra-prima, condenando-a inexoravelmente ao silêncio, ao


fogo, à morte.
Será fundamental esclarecer que essa cena sacrificial antecede imediatamente o
paroxismo da relação entre Lúcio e Ricardo e o que salta aos olhos é a sua função
de mise en abyme, como se a peça afinal não representada antecipasse em metáfora
o desenlace da vida/novela, tão elípticas ambas nas suas exíguas referências, já que
apostam de início – tanto uma quanto a outra (peça e novela) – numa solução trágica
mas realista – morte do personagem (escultor na peça, Ricardo na novela), evoluindo
ambas paralelamente para qualquer coisa de mais ambíguo, para um «disparate»
(para usar os termos sentenciosos e utilitaristas do empresário), ou, nas palavras de
Lúcio, para um «acto novo [...] profundo e inquietador» que «rasgava véus sobre o
além» (CL: 117).
Façamos pois o esforço de conviver com a ambiguidade, não exatamente a da
peça – a que não temos acesso nem no momento em que Lúcio informa tê-la lido
diante de Ricardo e Marta, nem sequer a posteriori dada a falência da representação
e a sua consumição pelo fogo – mas a ambiguidade da novela que, afinal, também
finda em apoteose do fogo. Essa simbiose entre a peça de teatro e a vida (que se faz
posteriormente discurso sobre a vida, confissão, novela) está aliás inscrita no discurso
de Lúcio: «sugerira-se-me durante a leitura [da peça] outra ideia muito estrambótica.
Fora isto: pareceu-me vagamente que eu era o meu drama – a coisa artificial – e o meu
drama a realidade» (CL: 102).
Nova pista: recorde-se que no momento em que recebera o convite efusivo para
a montagem da sua peça em Lisboa, Lúcio rompera a sua relação com Ricardo por
razões ambíguas: ciúmes de Marta com outros possíveis amantes, desprezo por
Ricardo «em face da sua baixeza» no consentimento das múltiplas traições da mulher,
e inveja. E desesperado afirma: «me voou pelo cérebro a ideia rubra de o assassinar
– para satisfazer a minha inveja, o meu ciúme, para me vingar dele» (CL: 111). Se
o ciúme e a vingança são facilmente explicáveis, a inveja carrega em si uma maior
complexidade, uma estranheza, uma bizarrice: ao ciúme de Marta, ao asco e ao ódio
por Ricardo se mescla um outro afeto, a inveja, aquele desejo de ser o que o outro é,
de ter o que ele possui. Nesse caso, o que Ricardo possuía era uma face feminina que
podia e se deixava pertencer a muitos homens: «Invejava-o! Invejava-o por ela me
haver pertencido...a mim, ao conde russo, a todos mais!...» O que dilacerava Lúcio era
portanto mais que o ciúme de Marta, era mais que desejo de vingança que abria nele
a brecha do assassinato de Ricardo. Era a inveja de o outro ter publicamente acedido
a formas diversas do prazer, ao gozo multiplicado com outros homens, através de
uma obra verdadeiramente conseguida de outrar-se no feminino: Marta, como ele
definira, a sua «obra-prima». Enquanto a ele, Lúcio, coubera-lhe tão somente dessa
Elementar, meu caro Lúcio! 171

mesma Marta uma fulguração de que ele fora incapaz de se apropriar. Ricardo a
triunfar em Marta. Marta a escoar pelos dedos de Lúcio, como mera «reminiscência
longínqua», logrando tão somente com ela uma aventura passageira, o que é, aliás,
uma reverência intertextual à «passante»9 de Baudelaire, a ponto de o poema das
Flores do mal – demasiado conhecido para exigir que o leiamos para evocá-lo – poder
servir, quase verso a verso, como uma interpretação da fugacidade de sua experiência
afetiva: fugitiva beleza, majestade, fausto, nobreza, agilidade, relâmpago e noite, olhar
lívido onde nasce o furacão, dor que fascina e prazer que mata. Diante dela, Lúcio – tal
como o poeta das «Correspondências» – de repente renasce, ao mesmo tempo que dela
tudo ignora, ela que ele teria amado, ela que o sabia.
Ouçamos o texto:

Com efeito, ainda hoje, às tardes maceradas, eu não sei evitar uma reminiscência longínqua,
a saudade violeta de certa criaturinha indecisa que mal roçou a minha vida. Por isso só:
porque ela me beijou os dedos; e um dia, a sorrir, defronte dos nossos amigos, me colocou
em segredo o braço nu, mordorado, sobre a mão... E depois logo fugiu da minha vida,
esguiamente, embora eu, por piedade – doido que fui! – ainda a quisesse dourar de mim
num enternecimento azul pelas suas carícias (CL: 108)

Como a tornar mais complexa a relação triádica dos personagens, revelam-se aí


duplos consecutivos, especulares e complementares, de tal modo que qualquer um dos
elementos está em íntima conexão com os demais, dependendo dos três o seu precário
equilíbrio: Ricardo quer ser Marta e logra sê-lo, realizando o desejo de ser mulher e de
possuir outros homens; Lúcio possui uma Marta que se dissolve numa reminiscência
longínqua no falhado trânsito afetivo de seu desejo por Ricardo; Lúcio, enfim, quer ser
Ricardo, inveja-o, naquilo que vai intuindo como o gozo conseguido da sedução.

9 «La rue assourdissante autour de moi hurlait. / Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse, / Une
femme passa, d’une main fastueuse / Soulevant, balançant de feston et l’ourlet. // Agile et noble, avec sa jambe
de statue. / Moi je buvais, crispé comme un extravagant, / Dans son œil, ciel livide où germe l’ouragan, / La
douleur qui fascine et le plaisir qui tue. // Un éclair… puis la nuit ! – Fugitive beauté / Dont le regard m’a fait
soudainement renaître, / ne te verrai-je plus que dans l’éternité ? // Ailleurs, bien loin d’ici ! trop tard peut-être !
/ Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, / o toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais !» 
O fascínio do poema de Baudelaire «A une passante» (Les Fleurs du Mal) gerou outras cenas poéticas nele
inspiradas como «A débil» de Cesário Verde, aquela com quem o poeta se compraz, não pela suavidade
que fascina e pelo prazer que mata, mas por intuir nela o poder nascido de uma inteireza moral, de uma
força natural e de uma pureza rural, elementos capazes de contaminar positivamente a doença de uma
metrópole ameaçadora. Tão diversas e tão similares, são ambas passantes, fugazes, alumbramentos, como em
reminiscência Marta aparecera para Lúcio.
Acentue-se aqui, como um parêntesis, que Baudelaire e Cesário Verde eram dois poetas que estavam
evidentemente no horizonte das expectativas literárias de Sá-Carneiro, de tal modo que não parece aleatória a
evocação da «passante» e da «débil» na composição «criaturinha indecisa que mal [lhe] roçou a vida».
172 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

Resta voltar a Marta e ao seu desaparecimento que, na linha da fatalidade narcísica


e autodestrutiva de Ricardo de Loureiro, parecia ter ganhado contornos bastante
justificáveis. Mas se é assim, onde localizar, no paralelo com a peça que vimos
postulando até aqui, aquela dominante profunda e inquietadora que rasgava véus
sobre o além? Passemos pois aos discursos que é o lugar da traição dos segredos. Na
narrativa de Lúcio sobre a morte de Marta denuncia-se inconscientemente uma outra
lógica, como novo ato falho denunciador: «Marta, essa desaparecera, evolara-se em
silêncio, como se extingue uma chama...» Como se extingue uma chama. Caberá então
perguntar: tal como a peça de teatro se extinguira por ter sido jogada ao fogo pelo
autor desiludido, transformando-se ele no motor da sua própria perdição? Depois
da peça de teatro seria agora a vez de Marta também morrer pelo fogo/chama do
revólver por decisão não de Ricardo mas do próprio Lúcio? A arma de fogo, que como
sugere a sua confissão de inocente estava estranhamente aos seus pés na hora da morte
de Ricardo, impedindo por demasiada evidência qualquer defesa que o isentasse da
culpa, deixaria então de ser mais que um acaso bizarro e inexplicado («E aos meus
pés – sim, aos meus pés! – caíra o seu revólver ainda fumegante» - CL: 122), para
tornar-se na evidência de uma outra versão do mesmo ato simbólico de eliminar pela
chama a inadequação insuportável dos afetos, fossem eles ciúme, vingança, inveja?
Na inscrição da tragédia, portanto, uma fatalidade discursiva já se teria indiciado à
sua revelia. A semelhança das duas mortes – a da peça de teatro e a de Marta/Ricardo
– tornava-se numa espécie de denúncia metafórica de que também a ação efetiva de
Lúcio, no desenlace da triangulação amorosa, ficava implícita, como se ele, afinal,
ao comparecer à cena do crime não tivesse feito mais do que atender ao chamado
simbólico do amigo na direção da perdição trágica e fatal que os unia e os comprometia
definitivamente a ambos: «Vamos ver! Vamos ver!... Chegou a hora de dissipar os
fantasmas...» (CL: 122).
Marta era de certo modo a ficção de ambos e a sua existência dependia do mistério
e da estranheza que a envolvia: para Lúcio, ela funcionava como fulguração passageira
que nunca deixara de inspirar nele o trânsito de afeto para Ricardo (lembre-se a cena
do beijo como exemplo dessa superposição de imagens); para Ricardo ela funcionava
como um duplo de si através de quem ele podia partilhar os afetos no seu próprio
corpo feminizado. Recordemos: «...assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de
nós sabendo bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro viveria». É essa a
epígrafe da novela de Sá-Carneiro, que encontra em Fernando Pessoa a economia da
sua proposta: o duplo, o mistério, a morte.
Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a epifania é o que destrói o equilíbrio do pacto,
desvendando-o através da explicação racional de Ricardo, pondo fim à hipótese de
plenitude que dissipara temporariamente as divergências e os interditos. O resultado?
Elementar, meu caro Lúcio! 173

Esgarça-se o desejo, a morte sobrevém, narcísica na dimensão de Ricardo, fatal e trágica


na dimensão de Lúcio. Ambos identificados até o fim, para dissipar seus fantasmas.
A tríade que instituíra Marta como duplo de Ricardo e chama de Lúcio estava
desde sempre fadada à morte, único estágio verdadeiramente incorruptível porque
ele mesmo definitivo. Seja no desaparecimento de Marta, seja na evidência da morte
de Ricardo, seja no mergulho na sensibilidade nostálgica de um Lúcio morto-vivo, o
que se revela para os três é, afinal, a mais-que-evidente impossibilidade da plenitude
do desejo que os faz mergulhar num vazio literal ou metafórico.
Ricardo tocara através de Marta o limite da obra-prima. E qualquer obra de arte
precisa de leitores. Lúcio terá sido um mau leitor porque não soube apreender Marta no
que ela tinha de dom não exclusivo, não soube perceber que ela tinha sido criada para
ser oferecida também a outros leitores, que, como ele, deveriam saber amá-la – para que
ela pudesse sobreviver – sem exigir dela o dom total, que seria ele próprio uma forma
de suicídio porque equivalente ao esquecimento de si, no que ele tem de infinitamente
transformador. Poderia recuperar aqui uma reflexão de Camus em Le Mythe de
Sisyphe10 ao falar de Dom Juan como o personagem teatral por excelência, na sua
trágica certeza da absurda precariedade do tempo: «o único amor generoso é aquele
que se sabe ao mesmo tempo passageiro e singular». Marta/Ricardo teriam sido um
modo de donjuanismo naquilo que entendiam como forma de doar e de fazer viver no
tempo absurdamente exíguo que nos é dado viver. Era de uma outra forma de amor
que se tratava, um amor liberador, que trazia consigo todos os rostos do mundo, cujo
excesso nascia do fato mesmo de se saber perecível e nesse sentido isento de qualquer
esperança de eternidade, de qualquer lei moral, de qualquer constrangimento ético.
Era esse o seu modo de conhecimento. Interessante pensar, aliás, que na lógica da
linguagem bíblica conhecer corresponde também ao ato de amar.
Lúcio foi certamente um mau leitor. Para ele Marta foi uma «passante» de quem
ele teria querido em vão apropriar-se. Sem consegui-lo, só lhe restava colaborar com
o seu desaparecimento, autor (Ricardo) e leitor (Lúcio) reunidos enfim no mesmo
ato aniquilador. Sobra-lhe então, morto-vivo que é, a capacidade de formular um
último projeto – a escrita da sua confissão, que só na superfície seria uma confissão de
inocência. Seria antes a trágica confissão de uma falência de entendimento. Através
dessa anamnese ele se compraz na rememoração menos para entendê-la do que
para revivê-la como discurso, lugar de memória, lugar da sua própria ficção que ele
constrói como a única e precária permanência possível. Afirmando-se inocência mas
revelando-se insidiosamente como agente do crime.

10 «C’est un autre amour qui ébranle Don Juan, et celui-là est libérateur. Il apporte avec lui tous les visages du
monde et son frémissement vient de ce qu’il se connaît périssable» (CAMUS, A., 1966: 102).
174 100 Orpheu Teresa Cristina Cerdeira

Sá-Carneiro experimentou outrar-se ele próprio em A confissão de Lúcio, menos


certamente pelas correspondências autobiográficas, demasiado evidentes, que vão do
homoerotismo à sedução por Paris, da experiência no meio artístico da capital francesa
à insinuação, senão do suicídio, do fascínio da morte. A sua presença autoral nessa
elíptica e primorosa novela insinua-se antes, discursivamente, na aventura daquele
desregramento dos sentidos à moda de Rimbaud, em que ele experimenta como um
voyant todas as formas de amor, de sofrimento e de loucura, em que esgota dentro de si
todos os venenos para guardar deles apenas as quintessências, em que ele se faz doente,
criminoso, visionário e maldito para ir ao fundo do desconhecido. Herdeiro de uma
atmosfera fin-de-siècle, Mário de Sá-Carneiro é digno representante da modernidade
de Orpheu, no que esse grupo de artistas tem de sensibilidade extravagante, de excesso,
de iconoclastia, de libertação, de loucura. No avesso da tradição do romance de
formação, A Confissão de Lúcio é uma demonstração do gozo não utilitário, do desvio
da doxa, numa narrativa que desorienta mais do que ensina.
A frase de Hipócrates – «A vida é curta, a Arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência
enganadora, o julgamento difícil» – bem poderia funcionar como outra epígrafe de A
Confissão de Lúcio. Ela não está lá mas ecoa nos versos de Fernando Pessoa, «A vida é
breve, a alma é vasta, ter é tardar», que Lúcio certamente assinaria ao escolher fazer de
sua «confissão» o modo de intuir o único sentimento de eternidade que, para além dos
perecíveis afetos, só a alma – e a arte – são capazes de insinuar na nossa precariedade
de seres mortais.

Bibliografia

CAMUS, Albert (1966). Le Mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard (Collection Idées).


CERDEIRA, Teresa Cristina (2003). A Confissão de Lúcio, um ensaio sobre a
voluptuosidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra.
FREUD, S. (2010). Obras completas, vol. 14, São Paulo: Cia das Letras.
SÁ-CARNEIRO, Mário (1998). A Confissão de Lúcio. Lisboa: Assirio & Alvim.
1915: O Ano da Guerra e do Orpheu

Duarte Ivo Cruz


CLEPUL

Resumo: Realça-se, na presente intervenção, o contexto político e cultural interno e externo


de Portugal no ano de 1915 e seguintes, tendo em vista o significado e obra do movimento do
ORPHEU e dos seus fundadores, dirigentes e colaboradores, com destaque para a importância
do movimento no plano cultural e social. Procede-se à análise dos dois números da revista no
conjunto da obra global de cada um dos escritores envolvidos, incluindo a programação do
terceiro número nunca publicado.

Como introdução ao tema, pretende-se aqui traçar uma síntese da situação portuguesa
no contexto da Primeira Grande Guerra, em planos diversos mas complementares:
contexto geral da política interna; conflitos militares em Moçambique e em Angola;
relações diplomáticas até ao corte com o Império Alemão; reflexos da guerra antes e
depois da intervenção militar de Portugal na guerra europeia; negociações diplomáticas,
no contexto do conflito europeu e africano, sendo que, no que respeita a África, a situação
portuguesa assumiu desde logo, no caso do conflito de Maziua em Moçambique (24 de
agosto de 1914) e de Naulila em Angola (17 de novembro de 1915), uma intervenção
direta, mesmo antes da declaração de guerra e do rompimento das relações diplomáticas
com a Alemanha e da participação na guerra europeia.
Recorde-se que, em 1915, no plano interno, assistimos ao final do mandato
presidencial de Manuel de Arriaga, mandato iniciado em setembro de 1911 e que é
interrompido, por renúncia de Arriaga, em maio de 1915, dando lugar a um espécie de
presidência interina, chamemos-lhe assim, de Teófilo Braga, de junho a novembro de
1915, data em que Bernardino Machado toma posse como Presidente da República.
E em 1915 tivemos entretanto 5 ministérios: Vítor Hugo de Azevedo Coutinho,
(governo a quem os inimigos políticos chamavam “Os Miseráveis de Vítor Hugo”),
Pimenta de Castro (que os inimigos qualificavam como ditadura militar), José de
Castro e em 29 de novembro de 1915, o início do governo de Afonso Costa, já no
mandato de Bernardino Machado. Mas, como vimos, o ano político foi entretanto
marcado e dominado, ainda antes da formalização do estado de guerra com a
Alemanha, pelo início das hostilidades com o Império Alemão em Moçambique e
em Angola. As relações diplomáticas não se rompem imediatamente porque não
176 100 Orpheu Duarte Ivo Cruz

havia consenso entre os três partidos dominantes: Partido Democrático de Afonso


Costa, Partido Evolucionista de António José de Almeida, Partido Unionista – União
Republicana de Brito Camacho. Quanto à intervenção formal no conflito europeu, só
em 15 de fevereiro de 1916 Portugal intervém nos navios alemães fundeados no Tejo.
E logo a seguir, a Alemanha declara formalmente guerra a Portugal.
1915 foi assim o ano do envolvimento diplomático e dos conflitos em África e os
sinais de debates internos sobre a intervenção na guerra europeia: mas foi também
o ano do Orpheu, com a publicação dos dois números da revista e a preparação de
um terceiro número que não chegou a ser publicado.
Vejamos então o que foi efetivamente o Orpheu.
Como sabemos, a revista é dirigida por Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro
e denomina-se “Orpheu – Revista Trimestral de Literatura”. O primeiro número,
correspondente a janeiro, fevereiro e março de 1915, refere como membros da direção,
expressamente em Portugal Luiz de Montalvor e no Brasil Ronald de Carvalho. E
como editor, António Ferro que, diga-se de passagem, tinha à data 18 anos.
Este primeiro número elenca os seguintes textos e, como colaboradores respetivos,
os seguintes escritores:

Luis de Montalvor com uma Introdução;


Mário de Sá Carneiro – “Indícios de Ouro” – poemas
Ronald de Carvalho – poemas
Fernando Pessoa – “O Marinheiro – Drama Estático”
Alfredo Pedro Guizado – “Treze Sonetos”
José de Almada Negreiros – “Frizos” (prosa)
Armando Cortes Rodrigues – poemas
Álvaro de Campos – “Opiários” e “Ode Triunfal”
A capa foi desenhada por José Pacheco.

O segundo número é datado de abril-maio-junho de 1915 e já refere expressamente


como diretores Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro: é consensual que essa
direção já vinha da origem do Movimento.
Este segundo número tem o seguinte sumário:

Ângelo de Lima – Poemas Inéditos


Mário Sá Carneiro – “Poemas sem Suporte”
Eduardo Guimarães – Poemas
Raul Leal – “Atelier – Novela Vertígica”
Violante de Cisneiros – Poemas
1915: O Ano da Guerra e do Orpheu 177

Álvaro de Campos – “Ode Marítima”


Luís de Montalvor – “Narciso” (poemas)
Fernando Pessoa – “Chuva Oblíqua – Poemas Intercecionistas”
Colaboração Especial do Futurista Santa-Rita Pintor com “4 Hors –Texte Duplos”

Os heterónimos de Pessoa, conhecemos todos muito bem. Mas vale a pena lembrar
que Violante de Cisneiros era o escritor Armando Cortes Rodrigues.
Este número do Orpheu contém a seguinte informação:

“Orpheu iniciará na rentrée uma longa série de conferências de afirmação, sendo as


primeiras as seguintes:
A Torre Eiffel e o Génio do Futurismo por Santa Rita Pintor.
A Arte e a Heráldica, pelo pintor Manuel Jardim
As Esfinges e os Guindastes: estudo do bi-metalismo psicológico, por Mário de Sá-Carneiro”

Sabemos que não chegou a sair o terceiro número do Orpheu.


Em qualquer caso, assinalamos nesta sessão a publicação da obra intitulada “O
Ano do Orpheu – 1915”, organização de Steffen Dix, obra essa que recolhe textos
projetados para o número 3 da revista, da autoria designadamente de Pessoa, Almada
Negreiros, Tomaz de Almeida, C. Pacheco e Castelo de Moraes. Nesse importante
estudo, são recolhidos mais de 20 ensaios e transcrições antológicas (cfr. 1915 – O Ano
do Orpheu, org. Steffen Dix. Lisboa: Tinta da China, 2015). Aí se prevê o que seria o
número 3 da revista, de acordo com um texto de Arnaldo Saraiva:

Sá Carneiro – “Poemas de Paris”


Albino de Menezes – “Após o Rapto”
Fernando Pessoa – “Gládio” e “Além Deus”
Augusto Ferreira Gomes – “Por esse Crepúsculo” e “A Morte do Fauno”
Almada Negreiros – “A Cena do Ódio”
Tomaz de Almeida – “Olhos”
C. Pacheco – “Para Além Doutro Oceano”
Castelo de Moraes – “Névoa”

Na sessão evocativa, foram lidos ou citados textos de Fernando Pessoa, Almada


Negreiros e outros, publicados nos dois números da revista ou alusivos ao movimento
do Orpheu.
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do
século XX em A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro

Mauro Dunder
USP /CAPES 1

Palavras-chave: Modernismo; Representação; Identidade Portuguesa; Mário de Sá-Carneiro;


A confissão de Lúcio.
Resumo: Esta comunicação explorará as marcas representativas das questões mais prementes,
no tocante à imagem que se constrói do pensamento português, em A confissão de Lúcio.
O início do século XX configura-se como um dos momentos mais conturbados da história
política do país; eventos como o Regicídio de 1908 e a instauração da República (1910) são
concomitantes com a chegada da Modernidade artística a Portugal, especialmente no que
concerne às manifestações literárias, das quais o projeto de Orpheu é, indubitavelmente, peça
fundamental. Nesse contexto, o romance de Mário de Sá-Carneiro dá a conhecer algumas
imagens que podem ser lidas como representações de um ponto de vista sobre a identidade
nacional; para compreender tais representações, além do distanciamento proporcionado pela
passagem de um século desde a publicação do romance, estudos como A morte de Portugal,
de Miguel Real e O labirinto da saudade, de Eduardo Lourenço, lançam luz sobre aquele
que, certamente, pode ser considerado como a maior crise identitária da história portuguesa
recente.

No texto que abre sua narrativa, Lúcio Vaz é categórico: “A minha confissão é um
mero documento” (SÁ-CARNEIRO, M. de, 1988: 6). Em que pese a relação entre a
afirmação e a trajetória da revelação ontológica (como a compreende Heidegger) do
protagonista, bem como a noção de narrativa como representação que envolve o texto
ficcional e as especificidades que envolvem a questão da identidade portuguesa no
projeto de Orpheu, a leitura de A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro traz
à baila algumas reflexões sobre como se constroem, ao longo da trama do romance,
um conjunto de imagens reveladoras sobre o pensamento português, não apenas a

1 Doutor em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo. Investigador aceito pela Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra para Pós-Doutoramento, sob supervisão do Prof. Dr. Carlos Reis.
Membro do Grupo de Pesquisa “Literatura Portuguesa de Autoria Feminina” (USP/CNPq). Professor Assistente
do curso de Letras das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). A participação no congresso 100 Orpheu
terá sido totalmente custeada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
180 100 Orpheu Mauro Dunder

respeito de si mesmo, mas, principalmente, de sua identidade perante o contexto


europeu do início do século XX e de como se relaciona, como nação, com sua história
de, então, quase oito séculos.
Ainda que conceitos como “identidade”, “vanguarda” e “nacionalidade” sejam
relativamente elásticos, especialmente no que diz respeito ao surgimento e
consolidação da Modernidade em Portugal, à altura um Reino em esfacelamento, em
direção a uma República fragilizada à partida, a obra de Sá-Carneiro é, por certo, uma
das mais relevantes contribuições para tal discussão. Nesse sentido, constitui relevante
aspecto a relação da literatura da geração de Orpheu com a ideia de vanguarda
estética, como instrumento de representação de um espírito em plena transformação,
cuja integridade de imagem apresenta-se fraturada pela instabilidade social, política
e filosófica, instaurada por transformações – ou seus prenúncios – vivenciadas no
final do século XIX. De tal situação, em Portugal, o Ultimatum inglês, apontado
como o último dos três grandes traumas que marcaram – e construíram a identidade
portuguesa – constitui exemplo importantíssimo (LOURENÇO, E., 2009).
Em um país que, em pouco mais de vinte anos, assiste ao declínio da monarquia
que o rege desde, no mínimo, a Restauração de 1640 (em sentido amplo, a bem da
verdade, desde 1128, na Batalha de S. Mamede) e a instauração de uma República
frágil e instável, seria bastante coerente que se observasse, nas tendências artísticas
da época, uma inclinação para estéticas que contemplassem as noções de ruptura,
desconstrução, esfacelamento do ponto de vista. Não é, exatamente, o que acontece
com o pensamento português, tão afeito ao culto do passado como referência para os
projetos de futuro, em uma estranha fusão, na qual o conceito de vanguarda adquire,
não raro, uma roupagem passadista.
Nesse sentido, é fundamental notar o papel desempenhado pelos artistas de Orpheu
no confronto com essa noção viciada de progresso em direção a um futuro que se faz
passado. Na esteira desse pensamento, a própria imagem mitológica de Orfeu, que se
vê forçado a deixar o passado para trás, se quiser, de facto, resgatar sua Eurídice e viver
em amor e harmonia com ela, relaciona-se com o projeto de nação consubstanciado
na literatura dessa geração. Na busca por uma ruptura com toda uma identidade
nacional, ainda que permeada por um processo ontológico de descentramento do
sujeito, é parte da ideologia do grupo de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro
um rompimento com a noção de que apenas no passado português se encontrará a
inspiração para superar as dificuldades do presente.
A primeira edição de A confissão de Lúcio veio a público em 1914, um ano antes
do lançamento do primeiro número de Orpheu, o que, em certa medida, torna a obra
uma espécie de prenúncio dos valores fundamentais do pensamento que a revista
defenderá. Em que pese o caráter predominantemente psicológico da narrativa, por
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 181

conta do qual se estabelece forte vínculo entre a trama e as tendências de vanguarda


mais diretamente ligada à questão da crise de identidade do sujeito, vivida pelo homem
do final do século XIX, as relações do projeto órfico com as questões identitárias em
sentido mais amplo e a crise institucional por que passa Portugal naquele momento
trazem à baila representações que, se não têm como centro a discussão do pensamento
nacional, não a deixam de lado. Antes, as duas crises identitárias unem-se, como
reflexos de um movimento mais amplo, qual seja o estremecimento das concepções
que orientaram séculos de compreensão do universo em que se insere o homem
europeu.
No percurso de três das personagens de A confissão de Lúcio, Gervásio Vila-Nova,
Ricardo de Loureiro e o próprio narrador, Lúcio Vaz, algumas passagens revelam
muito mais do que impressões pessoais a respeito de emoções e percepções subjetivas.
À luz da teoria de fundo psicanalítico elaborada por Miguel Real, na qual se exploram
quatro diferentes complexos comportamentais que permeiam as concepções do
povo português acerca de si mesmo e do mundo que o cerca, o conceito de complexo
pombalino, que contempla a noção de “pobreza intrínseca” nos âmbitos político,
econômico e cultural (REAL, M., 2008), explica, sob essa perspectiva, algumas das
considerações que, a partir de passagens do romance de Mário de Sá-Carneiro,
apontam para a maneira como a geração de Orpheu enxerga – ou faz enxergar – Portugal.
O romance de Sá-Carneiro, à partida, cria uma imagem do país que aponta para
a concepção de atraso intelectual, supostamente consequência do modo de vida
português, voltado para o passado e, evidentemente, preso a ele. Diz Lúcio Vaz, o
narrador-personagem:

Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou melhor,
não estudando. Vagabundo de minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha
vida e de todos igualmente desistido – sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande
capital. Logo me embrenhei por meios mais ou menos artísticos, e Gervásio Vila-Nova,
que eu mal conhecia de Lisboa, volveu-se-me o grande companheiro de todas as horas
(SÁ-CARNEIRO, M., 1988: 7).

A imagem do português “sedento de Europa”, que se muda para a “grande


capital” é a primeira expressão da ideia de que, para uma mente curiosa, aguçada
e perturbada por questionamentos que requerem transformação, Portugal é
insuficiente, é pequeno e não comporta a arte – e, por extensão, o pensamento –
que a Modernidade requer.
Da mesma forma, a caracterização por meio da qual o narrador nos apresenta
Gervásio Vila-Nova corroboram a visão de que apenas em Paris existe a perspectiva
182 100 Orpheu Mauro Dunder

de uma vida dentro do pensamento europeu, como se Portugal não fosse, de facto, parte
desse continente. Dono de um exotismo calcado em uma postura superficial, pretenso
“cidadão do mundo”, Gervásio Vila-Nova renega, por oposição, o “cidadão português”,
quando se nos dá a conhecer como um artista moderno, cuja identidade é marcada pelo
contraditório, pela valorização do “erro”, pela intensidade com que se nega o tradicional.
Ao dizer que “Gervásio Vila-Nova era aquele que nós olhamos na rua, dizendo:
ali, deve ir alguém” (Id.: 7), o narrador institui o conceito moderno de sujeito: aquele
que se destaca, que confronta, que não se enquadra nas acepções sociais, culturais
e políticas tradicionais. Logo, na linha de pensamento que ora se propõe, Gervásio
Vila-Nova, por ser “alguém”, não cabe em um país cujo orgulho da história é norte
para o pensamento e o comportamento, individual e coletivamente.
Outra afirmação que o narrador faz acerca da trajetória de Gervásio Vila-Nova
relaciona-se com uma questão fulcral na história de Portugal. Segundo Lúcio Vaz,
Gervásio “não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar” (Id.: 8). A
noção cubista de fragmentação, metaforizada pela imagem de “se despedaçar”, ao
mesmo tempo em que remete à crise do sujeito, confrontado com um mundo em
transformação ao qual é necessário adaptar-se, por meio da quebra de certezas que
sustentavam a relação desse sujeito com o universo em que se insere, sugere também,
no plano nacional, a imagem invertida do que se passa com o império colonial
português – em movimento que se prolongará, a rigor, até depois da Revolução dos
Cravos (1974). O sistema colonial falhou exatamente porque não teve a coragem de
se despedaçar, ou, por outro lado, foi um falhado porque não reconheceu quando – e
como – se despedaçou.
Nesse sentido, torna-se relevante notar que, por um lado, a narrativa de A confissão
de Lúcio transcorre nos últimos cinco anos do século XIX e, por outro, foi escrito em
1913. Esses parâmetros aproximam a narrativa de dois relevantes eventos históricos,
os quais também estão ligados à ideia de esfacelamento, de “se despedaçar”.
A trama se passa na sequência do período marcado pelo ultimatum inglês de 1890,
evento que pode ser interpretado como um dos maiores sinais da crise pela qual passa
– e seguirá passando até depois de 1974 – o sistema colonial português, baseado em
conceitos de posse e poder herdados do período das grandes navegações. Como já
se disse, os efeitos do ultimatum foram bastante devastadores para a concepção de
nação que Portugal carrega, no mínimo, desde o século XV – a de grande império,
de povo predestinado a constituir o “Quinto Império”, sonhado por Dom Manuel,
encampado por Dom Sebastião e pelo povo português ao longo de sua história –,
a ponto de ser considerado pelo filósofo Eduardo Lourenço um trauma fundador, ao
lado da própria criação do Reino, no século XII, e da perda da soberania, após a morte
de Dom Sebastião, em 1580.
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 183

A esse respeito, escreve Oliveira Marques:

Os acontecimentos de 1890-91 estiveram enquadrados numa séria crise económica e


financeira, de âmbito internacional. A crise económica europeia de 1890 repercutiu-se
em Portugal como possivelmente nenhuma até então, sendo agravada pelo ambiente
de pessimismo e de profunda descrença nos governantes e nos modos de governar que
permeabilizava as classes dirigentes. (...) Por outro lado, a expansão económica dos
decénios anteriores e o afluxo crescente de população às grandes cidades haviam causado
o surto de uma classe média de pequenos e médios burgueses que se sentia oprimida pela
grande burguesia e a aristocracia dirigentes [à qual pertenceu Mário de Sá-Carneiro]. Essa
classe média urbana, que constituía novidade pelo número e a concentração atingidos,
representou o sedimento de base do republicanismo militante e a grande força de ataque
ao rei, às instituições monárquicas e à igreja (OLIVEIRA MARQUES, A. H. de, 2009: 465).

A história de Portugal, em que pese a concepção de que o discurso histórico não


esteja, como qualquer outro, livre de vieses ideológicos, aponta, então, para um
cenário complexo, em que sintomas de uma grande crise econômica internacional
fundem-se a uma crise institucional no âmbito português. É a crise dentro da crise,
tornada ainda mais intensa pela relação que se estabelece entre o imaginário do “peito
ilustre lusitano” e a derrota que o episódio do ultimatum representou para essa esfera
da nação.
Chama a atenção, ainda, dentro dos registos propostos pela História, a distinção
que o século XIX, em sua porção final, observa na sociedade portuguesa, no tocante à
constituição econômica de suas camadas. Em oposição a uma burguesia já estabelecida
– e que será, de certa forma, a protagonista dos romances queirosianos finisseculares –
e à aristocracia de sempre, surge uma classe média insatisfeita com o espaço que se
lhe oferece e amedrontada por sua relativa pequenez, perante as classes dominantes
mais tradicionais. Se observarmos a maneira como Mário de Sá-Carneiro articula
essas esferas socioeconômicas na composição do rol de personagens de A confissão de
Lúcio, será possível notar que, em grandíssima medida, tal distinção é representada
com clareza, especialmente por meio das relações entre as personagens, seu modo de
vida, valores que vivem e pregam, concepção de sociedade, cultura, arte, entre outros
elementos. Enquanto Ricardo de Loureiro e Gervásio Vila-Nova seriam representantes
dessa classe dominante superior, o pequeno artista Lúcio Vaz apresenta-se como
membro da “nova classe média”. Em comum entre ambos os estratos, a insatisfação
com Portugal, a noção de que o país não lhes basta.
Por fim, na esfera histórica, torna-se relevante notar que, em relação aos dois
primeiros traumas, a análise de Lourenço menciona a existência de uma atmosfera
184 100 Orpheu Mauro Dunder

mística, uma vez que foram eventos em torno dos quais pairam questões cuja solução
teria vindo, ao olhar português, da interferência de uma esfera do maravilhoso,
categoria literária ligada à ação de forças externas, de caráter metafísico. Com
o ultimatum, Portugal vê-se diante de uma situação em que tal ação externa não
se apresenta, o que provoca, quando pouco, uma fratura na visão do país sobre si
mesmo.
Quanto ao ano de escrita de A confissão de Lúcio, está há apenas cinco anos do
“Regicídio”, ponto crucial para o desaparecimento do sistema monárquico português,
e a três da instauração da República, em um dos momentos mais críticos da
história recente do país. Desse modo, a própria vinculação do texto do romance às
tendências de vanguarda, especialmente aos princípios fragmentários do Cubismo
e ao viés onírico e inconsciente do Surrealismo, constituiria uma manifestação da
proposta ideológica da geração de Orpheu, qual seja a de desconstrução de toda uma
história, na qual, recorrentemente, a concepção de “vanguarda” esteve relacionada a
um elemento místico, pautada por uma atitude de eterna retomada de um passado
supostamente glorioso, o qual encapsula os valores que, em tese, deveriam sempre
orientar o progresso nacional.
Na esteira desse pensamento, ainda que revestida da ideia de fragmentação do
sujeito, multiplicidade de pontos de vistas e, consequentemente, de possibilidades de
verdade, típica das tendências de vanguarda que permearam a arte da Modernidade,
a constante menção de Lúcio Vaz à nebulosidade e ao mistério que envolviam seu
sentimento por Ricardo e Marta não deixa de apontar para uma das características
do pensamento português que a geração de Orpheu, especialmente Fernando Pessoa,
resgatou mais rigorosamente: a ideia de que a verdade dos eventos esconde-se atrás
de uma bruma de encantamento pode também ser atribuída à maneira como o
povo português interpreta sua história e a formação de sua identidade. A noção de
que o inexplicável, o maravilhoso, como categoria filosófica, permeia os fatos mais
relevantes da história de Portugal, ecoa também em A confissão de Lúcio, como um
dos elementos mais significativos na construção do ponto de vista que o narrador
revela a respeito da realidade em que se insere.
Outro aspecto de A confissão de Lúcio que chama atenção e se relaciona
diretamente com a questão da visão portuguesa sobre o próprio país – e com as
bases do que Miguel Real chamou de complexo pombalino – está em uma espécie de
xenofobia às avessas, uma xenofilia que o romance deslinda, por meio da trajetória
de suas personagens. É em Paris, por exemplo, que Lúcio Vaz vai buscar livrar-se do
brumoso ambiente que lhe provocava o sonho, o inexplicável que lhe encampava a
realidade:
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 185

Entanto, agora já não podia duvidar: vencera. Atravessara a Praça da Concórdia, monumental
e aristocrática, tilitante de luzes...
De novo, ungindo-me de Europa, alastrando-me de sua vibração, se encapelava dentro
de mim Paris, o meu Paris, o Paris dos meus vinte e três anos... (SÁ-CARNEIRO, M. de,
1988: 65)

Ou, ainda, a reflexão do narrador sobre sua estada na capital francesa:

Mas voltando às suas [de Ricardo de Loureiro] revelações estrambóticas:


Como gostássemos, em muitas horas, de nos embrenhar pela vida normal e nos esquecer a
nós próprios – frequentávamos bastante os teatros e os music-halls, numa ânsia também de
sermos agitados por esses meios intensamente contemporâneos, europeus e luxuosos (Id.:
23).

Nesse sentido, “esquecer a nós próprios” pode referir-se, no âmbito da obra, a


Ricardo e Lúcio, anormais diante do cenário exótico de Paris, portugueses demais
para encaixarem-se naquele ambiente. Por extensão, pode também ser compreendido
como uma referência a “nós próprios”, os portugueses, tão díspares daquele contexto
cultural, tão arrebatados pelo que lhes parece, por oposto, muito mais interessante e
relevante. O não-pertencimento, ainda que também diga respeito a um movimento
interno, ontológico, reflete os traços do olhar português para o progresso europeu, de
quem não poderia, em Portugal, ver acontecer tais manifestações de cunho artístico.
Note-se, ainda, que Gervásio Vila-Nova, Ricardo de Loureiro e Lúcio Vaz são os
únicos portugueses incluídos na descrição da seguinte cena:

A sala enchera-se entretanto de uma multidão bizarrada e esquisita. Eram estranhas mulheres
quase nuas nos seus trajos audaciosos de baile, e rostos suspeitos sobre as uníssonas e negras
vestes masculinas de cerimónia. Havia russos hirsutos e fulvos, escandinavos suavemente
louros, meridionais densos, crespos – e um chinês, um índio. Enfim, condensava-se ali bem
o Paris cosmopolita – rastaquouère e genial (Id.: 15)

O olhar encantado do português, ainda que parte do movimento artístico do


final do século XIX, denuncia um encantamento com o que lhe parece “bizarro”, o
que se confirma na sequência, quando Lúcio refere-se aos três portugueses como os
“requintados de ultracivilização e arte” (Id.: 16). Isso lhes passa, em tese e no contexto
do romance, por conhecerem Paris e terem contato com experiências, como essa,
apoteóticas por serem bizarras e estranhas ao gosto português, tão habituado a uma
visão de arte “atrasada”, por oposição ao que encanta os que têm a experiência da
186 100 Orpheu Mauro Dunder

superioridade, como a “americana fulva” (sob esse ponto de vista, uma voz autorizada),
que assim se manifesta a esse respeito: “Meus amigos, creiam-me, não passam de
uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam
aparentar” (Id.: 11).
Ainda com relação a essa espécie de “complexo de inferioridade”, Gervásio Vila-Nova,
personagem representativa de uma arte pautada pela ruptura de tradições, ainda que
ela implique a existência de uma manifestação artística vazia de sentido, na óptica da
lógica formal, apresenta uma crítica ferina à maneira como Portugal enxerga a arte
que produz. Ao citar a declaração de Fonseca, um “pobre pintorzinho da Madeira”,
Vila-Nova define claramente a oposição sobre que se centra sua visão de sua terra: “o
Fonseca diz que é um ofício acompanhar-me. E uma arte difícil, fatigante. (...) Sim,
concordo que a minha companhia seja fatigante. Vocês têm razão” (Id.: 10). Ao que
segue o comentário do narrador, em discurso indireto livre:

Vocês – note-se em parêntese – era todo o mundo, menos o Gervásio... E o Fonseca, de


resto, um pobre pintorzinho da Madeira, “pensionista do Estado”, de barbichas lavallière,
cachimbo – sempre calado e oco, olhando nostalgicamente o espaço, à procura talvez de sua
ilha perdida... Um santo rapaz! (Ibid.).

Em que pese a ironia da descrição feita por Vila-Nova, tornam-se evidentes traços
do discurso que despreza Portugal, em certa medida: o “pintorzinho da Madeira”,
“pensionista do Estado”, “olhando nostalgicamente o espaço”, remete à imagem de
um artista desconectado das tendências renovadoras por que passa a arte europeia,
vivendo em uma espécie de ranço do passado, ideia que se reforça pela caracterização
final: um “santo rapaz”.
Nota-se, sobretudo, nessa passagem, a ideia de uma arte incapaz de aderir às
tendências do pensamento europeu, civilizado, superior, em que o artista é, ao mesmo
tempo, sujeito e objeto de uma ruptura a qual Portugal, país “não-europeu”, é incapaz
de perceber e promover.
Nesse sentido, é fundamental refletir acerca da divergência, manifestada por sutil
ironia, entre a visão do narrador e a de Gervásio Vila-Nova, no tocante à noção de escola
literária, conceito esse que aponta para uma tradição consolidada na leitura que se faz
dos movimentos artísticos. Logo no início do romance, Gervásio declara-se admirador
e seguidor do Selvagismo, cujos traços característicos consistiam na destruição da
forma física, em uma estética baseada no uso de “diversos papeis e tintas de várias
cores” (Id.: 9), assim definida por Lúcio Vaz, conforme descrição de Gervásio
Vila-Nova:
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 187

Também – e eis o que mais entusiasmava o meu amigo – os poetas e prosadores selvagens,
abolindo a ideia, “esse escarro”, traduziam as suas emoções, unicamente em jogo silábico,
por onomatopeias rasgadas, bizarras: criando mesmo novas palavras que coisa alguma
significavam e cuja beleza, segundo eles, residia justamente em não significarem coisa
alguma... (Ibid.)

Em que pese a ideia de ruptura com padrões tradicionais de arte, representados no


trecho pela concepção acadêmica de “escola”, salta aos olhos o fato de que a estética
“selvagista” caracteriza-se pela nulidade de traços, ou de busca de um sentido para a
substância da obra de arte. Em discurso que aproxima essa noção de uma concepção
niilista para o fazer artístico, o posicionamento de Gervásio Vila-Nova traz ao
romance a percepção de que, à tradição portuguesa, é preferível o nada, ou uma arte
que se sustenha pela superficialidade, quase frívola, de suas manifestações, talvez
pelo simples fato de ser estrangeira, de estar localizada em países “europeus”, como a
Alemanha e a França.
Na esteira desse pensamento, é imprescindível relembrar, também, a própria
concepção de artista que Lúcio Vaz oferece ao leitor: a relevância do artista – e, por
extensão, de sua arte – encontra-se na medida com que rompe, radicalmente, com as
noções morais de sua sociedade.

Sinto tantas afinidades com essas criaturas... como também as sinto com os pederastas...
com as prostitutas... Oh! é terrível, meu amigo, terrível...
Eu sorria apenas. Estava já acostumado. Sabia bem o que significava tudo aquilo. Isto só:
arte. (Id.: 11-12)

Curiosamente, o discurso de Gervásio Vila-Nova, bem como sua concepção de


arte – e de artista – dialogam, em intertexto, com algumas das concepções atribuídas
pelo narrador de O primo Basílio, de Eça de Queirós, à personagem Conselheiro
Acácio. Embora de lados distintos, Gervásio Vila-Nova e o Conselheiro Acácio
dão vozes a representações bastante próximas, em natureza. A idealização limitada,
construída a partir da própria experiência, centrada na individualidade, que resulta
em empobrecimento da visão de mundo, disfarçada de superior complexidade
– símbolos de Portugal, no tocante à visão de mundo que manifestam. “De resto,
era outro traço característico em Gervásio: construir as individualidades como lhe
agradava que fossem, e não as ver como realmente eram” (Ibid.).
Não será, portanto, disparate afirmar que, por vias divergentes, Eça de Queirós e
Mário de Sá-Carneiro visam ao mesmo desiderato: despertar o leitor para a pequenez
de Portugal diante de um universo mais amplo, qual seja o da cultura dos outros
188 100 Orpheu Mauro Dunder

países europeus. Nesse sentido, ao universo beato, representado criticamente pelas


personagens da fase Realista de Eça de Queirós, opõe-se a experiência sensorial
extrema, cuja representação, baseada em metáforas e referências de cunho sexual, seria
inconcebível pela conservadora sociedade portuguesa – a mesma que, em primeiro
momento, reprova o movimento renovador de Orpheu, vaiando a “Ode Triunfal” de
Pessoa, ou o “16”, do próprio Mário de Sá-Carneiro (conforme mencionado na carta
a Côrte-Rodrigues sobre o primeiro número da revista).
Na esteira desse pensamento, nota-se que, em contexto irônico, Gervásio Vila-Nova
declara, sobre o público português: “Sabe você, Lúcio, não imagina a pena que eu
tenho e que não gostem das minhas obras. (...) Mas não pense que é por mim. Eu
estou certo do que elas valem. É por eles, coitados, que não podem sentir a sua beleza.”
(Id.: 20). Tal declaração denota a visão que o texto de Sá-Carneiro sugere sobre a
relação do público português com as tendências inovadoras que, em certa medida,
já são percebidas, por exemplo, em Paris. Gervásio Vila-Nova, o incompreendido
por um povo de inteligência medíocre, é denotativo da imagem de atrasado que o
pensador português tem acerca de seu próprio povo. É o complexo pombalino, de que
trata Miguel Real.
Nesse sentido, aponta-se a reflexão de Ricardo de Loureiro sobre as capitais de
França e Portugal, respectivamente e em contraste, particularmente relevante para
esta análise:

De Paris, amo tudo com igual amor: os seus monumentos, os seus teatros, os seus bulevares,
os seus jardins, as suas árvores... Tudo nele me é heráldico, me é litúrgico.
[...]
As ruas tristonhas da Lisboa do sul, descia-as às tardes magoadas rezando o seu nome: O
meu Paris... o meu Paris...
E à noite, num grande leito deserto, antes de adormecer, eu recordava-o – sim, recordava-o
– como se recorda a carne nua de uma amante doirada!
[...]
Só posso viver nos grandes meios. Quero tanto ao progresso, à civilização, ao movimento
citadino, à actividade febril contemporânea!... Porque, no fundo, eu amo muito a vida. Sou
todo de incoerências. Vivo desolado, abatido, parado de energia, e admiro a vida, entanto,
como nunca ninguém a admirou!
Europa! Europa! Encapela-te dentro de mim, alastra-me da tua vibração, unge-me da
minha época!...
Lançar pontes! lançar pontes! silvar estradas férreas! erguer torres de aço!... (Id.: 26-27).
Confissões da sociedade portuguesa: o projeto de Orpheu e o início do século XX em A confissão de Lúcio, ... 189

A visão de Ricardo de Loureiro acerca de Paris (a “amante dourada”) e, por


oposição, de Lisboa (a cidade de “ruas tristes”, onde se vivem “tardes magoadas”)
constitui procedimento discursivo a que Mikhail Bakhtin chama de cronotopo, no
qual as marcas de constituição do espaço guardam, não apenas, marcas da passagem
do tempo da narrativa e do tempo histórico, como visões de mundo condensadas
nas características do ambiente. É cronotópico, pois, o que diz a personagem, uma
vez que, mais do que simplesmente descrever locais, a passagem designa a oposição
entre a atmosfera sociocultural parisiense (local grandioso, em que tudo lhe parece
“heráldico” e “litúrgico”) e o suposto atraso lisboeta (em que Loureiro se encontra
em um “grande leito deserto”). Corroboram essa leitura da cena as imagens de que
o discurso do poeta lança mão para estabelecer as relações entre sua vida e o lugar
em que está: Paris é a sociedade em que se encontram o “progresso”, a “civilização”,
o “movimento citadino”, a “actividade febril”, as quais Ricardo de Loureiro atribui o
estatuto de “vida”, no contexto.
Por oposição, portanto, Lisboa seria o local da ausência de vida, em que interferem
o atraso, a falta de civilização, a vida de jaez campestre, uma monotonia inativa.
Assim, a ideologia que pauta a visão das personagens acerca da capital portuguesa
estabelece uma espécie de lente, por meio da qual, em que pese a postura maniqueísta
do discurso, se dá a conhecer a visão que o intelectual português, representado pelas
personagens do romance, tem a respeito de si, de sua própria cultura e da nação que
habita, local que põe o poeta “desolado, abatido, parado de energia”. Nesse sentido,
a única possibilidade para o pensamento português está na Europa, ou, por outras
palavras, na busca de um processo de europeização, ao qual o país não assiste. A
oposição entre vida e desolamento, civilização e atraso, caracterizam não apenas a
visão que transparece no discurso de A confissão de Lúcio, senão a do próprio povo
português: a Europa precisa entrar em Portugal, ainda que seja à força, por meio da
poesia de Orpheu e de sua iconoclastia.
De Lúcio Vaz, o que se dispõe, desde o início, a dar ao leitor um “documento”,
que é confissão, apreendem-se as mesmas impressões. Dá conta dessa visão
cronotópica a respeito de Lisboa a seguinte descrição, feita pelo narrador, a respeito
do hotel em que se hospeda na capital lusitana: “Um criado estilizado conduziu-me
a uma grande sala escura, pesada, ainda que jorros de luz a iluminassem. Ao entrar,
com efeito, nessa sala resplandecente, eu tive a mesma sensação que sofremos se,
vindos do sol, penetramos numa casa imersa em penumbra” (Id.: 35). Torna-se
assim evidente a disposição do narrador para reforçar, junto ao leitor, a imagem de
um país escuro, penumbroso, envolto em grande treva, a qual, simbolicamente e
no contexto deste romance, pode ser tomada como a condição da intelectualidade
portuguesa.
190 100 Orpheu Mauro Dunder

Um pouco adiante na narrativa, Lúcio Vaz é apresentado a Marta, esposa do poeta


Ricardo. De certa forma, ao declarar que a conhece em um momento de “rodopio
nevoento” e, em seguida, afirmar que, “ao adormecer, tive a sensação estonteante
de acordar de um longo desmaio, regressando agora à vida”, para além de incutir à
trama narrativa algum traço de verossimilhança (o ambiente onírico contribuiria
para, talvez, explicar o assassinato do desfecho), insinua também que, em oposição à
vida que Paris lhe permite, estar em Lisboa só lhe é possível, dentro da ambientação
“imersa em penumbra”, em sonho, onde poder afastar-se de tudo o quanto se relacione
com a “penumbra” da sala “escura, pesada”, microcosmo de Portugal na obra.
Dessa forma, as representações identitárias da cultura portuguesa presentes em A
confissão de Lúcio constituem mais do que mera criação ambientadora da trama. Elas
trazem à baila a visão nacional contra a qual a geração de Orpheu criará uma das mais
significativas manifestações artísticas da história da cultura portuguesa – e da qual,
sinal claro de sua relevância, celebra-se neste evento o primeiro centenário.

Bibliografia

Bibliografia Activa
MARQUES, Oliveira A. H. O. (2009). Breve História de Portugal. Lisboa: Presença,
7ª edição.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1988). A confissão de Lúcio. Porto: Justiça e Paz.

Bibliografia Passiva
BAKHTIN, Mikhail (2003). Estética da criação verbal. Trad.: Paulo Bezerra. São
Paulo: Martins Fontes, 4ª edição.
BAKHTIN, Mikhail (1988). Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
Trad.: Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: HUCITEC/Editora da
UNESP.
HEIDDEGER, Martin (2006). Ser e tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 5ª edição.
LOURENÇO, Eduardo (2009). O labirinto da saudade. Lisboa: Gradiva, 6ª edição.
REAL, Miguel (2008). A morte de Portugal. Coleção Campo da Actualidade. Porto:
Campo das Letras, 2ª edição.
Entre o “Orpheu” e a “A Águia”, entre Fernando Pessoa
e Teixeira de Pascoaes

Renato Epifânio
Movimento Internacional Lusófono

Palavras-chave: Orpheu; A Águia; Teixeira de Pascoaes; Fernando Pessoa.


Resumo: Na nossa comunicação, iremos problematizar o legado de Orpheu, desde logo
estabelecendo a ponte com a revista A Águia, órgão do movimento cultural e cívico da
“Renascença Portuguesa” – onde Fernando Pessoa publicou os seus primeiros textos, em
1912:  “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada”, “Reincidindo…” e “A Nova
Poesia Portuguesa no Seu Aspecto Psicológico” –, assim confrontando a figura maior da revista
A Águia com a figura maior do Orpheu (ou seja, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa,
respectivamente), mesmo quando essa confrontação pareça de todo incompreensiva.

1. Comecemos por dizer o óbvio: o Orpheu foi, de facto, uma revista marcante.
Foi uma espécie de cometa que atravessou e revolveu o panorama cultural da
época – em apenas dois números, publicados nos dois primeiros trimestres de
1915. O terceiro já não viria a ser publicado, por razões financeiras, pandemia que,
década após década, tem vitimado dezenas, senão centenas, de projectos culturais
meritórios num país com um público culto tão escasso (cada vez mais escasso?)
como o nosso.
Tendo sido uma espécie de cometa, não foi, longe disso, um «fogo fátuo», tal a
influência que exerceu nas décadas seguintes. Foi a primeira grande expressão, em
Portugal, de uma vanguarda modernista que, agregou, entre outros, nomes como
Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada-Negreiros ou Santa-Rita Pintor,
nomes que ficaram para sempre associados à chamada «geração d’Orpheu».
Foi, para além disso, o que para nós é particularmente significativo, uma revista
de escala luso-brasileira. Pelo menos do ponto de vista institucional, já que veio à luz
com dois directores: Luiz de Montalvôr, em Portugal, e Ronald de Carvalho, no Brasil.
Saliente-se também a presença do então jovem António Ferro como editor da revista,
o mesmo António Ferro que virá depois a ter o papel proeminente que se conhece
durante o Estado Novo, desde logo no plano cultural, onde continuou a contar com
a participação e o apoio dessa geração. Também por isso, 100 anos depois, o Orpheu
continua a confundir os espíritos mais obtusos…
192 100 Orpheu Renato Epifânio

Para estes, como é sabido, o mundo é sempre simples e deve continuar a ser visto a
preto e branco. À luz dessa grelha, o Estado Novo foi a negação da cultura em geral e
da modernidade em particular. Decerto que sim, em alguns aspectos. Noutros, porém,
e não menores, foi com o Estado Novo que essa modernidade anunciada pelo Orpheu
se veio a afirmar – refira-se apenas, como exemplo maior, a obra de Almada Negreiros
apoiada pelo regime. O que concluir daqui? Desde logo, que o mundo, felizmente, é
sempre mais complexo do que julgam aqueles para quem o mundo deve continuar a
ser visto a preto e branco.

2. Tal como a revista A Águia, também o Orpheu provocou as mais eriçadas


reacções. Comecemos por recordar, para depois estabeleceremos essa ponte, algumas
reacções em relação à revista A Águia e, por extensão, ao movimento cultural e cívico
de que a revista A Águia foi a grande expressão…
Ao lermos, por exemplo, o Inquérito Literário promovido por Boavida Portugal nas
páginas do jornal A República e depois coligido em livro1, ficamos com uma excelente
panorâmica do ambiente cultural da época, confirmando, mais especificamente, o
carácter assaz controverso do movimento da “Renascença Portuguesa”.
Tomemos, desde logo, como exemplo a primeira resposta a esse mesmo Inquérito,
de Júlio de Matos – diz-nos ele que

uma literatura, como a deles [da “Renascença”], que se faz panteista, que préga naturalmente
o regresso á vida simples, á vida patriarcal, ao campo, que nos aconselha a voltar para traz,
quando as outras na­ções teem toda a sua atenção posta no futuro, en­carando-o altivamente,
não na atitude do Dester­rado, mas em atitude de marcha, essa literatura é uma excrescência
do passado, não póde viver2.

É certo que, no âmbito desse mesmo Inquérito, houve quem tivesse rebatido essa
perspectiva «passadista» da “Renascença”, como alegadamente aparecia expressa na
revista A Águia, órgão por excelência do movimento. Eis, nomeadamente, o caso de
Jaime Cortesão, que, de resto, não apenas rebate Júlio de Matos3, como apresenta,

1 PORTUGAL, B., 1915.


2 Ibid.: 19.
3 Cf. Ibid.: 163-164: «O conceito de Saudade que aparece na Aguia é outro bem diferente. A Saudade,
como síntese psi­cológica e o saudosismo é criação individual do poeta Teixeira de Pascoais, que aliás
acho formo­sissima e cheia de profunda verdade. É pois a êle que compete a sua defesa, se é que este
termo tem aqui algum cabimento. No entanto devo dizer-lhe para contraditar a definição do snr. Matos,
que no conceito de Pascoais a Saudade envolve Esperança, esforço criador, entusiasmo religioso e
voluntariosa continuidade afectiva./ Esta Saudade não é “um sentimento depressivo” nem “a recordação
de uma pessoa querida que nos faltou” (que coisa tão chôcha!), e cultivá-la não é “amarrar-se ao passado,
Entre o “Orpheu” e a “A Águia”, entre Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes 193

pela positiva, a matriz da “Renascença”4.


O mesmo, de resto, será reafirmado pelo próprio Teixeira de Pascoaes, decerto a
figura mais emblemática da “Renascença Portuguesa”. Expressando a sua «esperança
de ressurgimento pátrio»5, defende, no essencial, que a “Renascença Portuguesa” não
é mais do que um instrumento para promover esse ressurgimento6, o qual, visando
o reencontro com aquilo que nos é mais próprio, nas palavras do próprio Pascoaes,
«não rejeita o que haja de bom e util nas sciências estrangeiras. O seu lusitanismo
intransigente não vai além do campo religioso e artístico»7.
Daí, aliás, toda a extensão deste movimento – operando, desde logo, no plano
artístico e religioso (recordemos que Pascoaes chegou a propor uma «religião
lusitana», independente da Igreja de Roma), ele tem uma abrangência cultural e cívica
que faz com que seja necessariamente redutor analisá-lo como um movimento apenas
artístico ou literário. A esse respeito, referindo-se à “Renascença”, e ainda em resposta
a Júlio de Matos, fala Raul Proença de «um ‘movimento de educação nacional’, e não
de uma renascença literária»8.

alimentar um estado mór­bido, ajudar a definhar mais a raça”, é antes elevar a Raça á consciencia activa
das suas mais altas vir­tudes, é levantá-la ás suas mais sublimes culminan­cias, arrebatá-la no impeto da
sua antiga audacia, erguendo‑lhe a vontade pelos seus mais genuinos sentimentos para as realisações do
Futuro».
4 Cf. Ibid.: 165: «um dos fins que se propõe a “Renascença Portuguesa” é precisamente combater o estrangeirismo,
revelar ao nosso Povo o Espirito Lusitano, e quando igualmente ninguem de boa fé pôde afirmar que o grupo
de escritores da “Renascença Portuguesa” sofra de qualquer influência estrangeira».
5 Cf. Ibid.: 187.
6 Cf. Ibid.: 177-178: «A “Renascença Portuguesa” tem, portanto, um fim e um alto critério filosófico e religioso
que a dirige e anima. E ao mesmo fim e ao mesmo critério obe­dece a nova Poesia portuguesa, que representa a
primeira afloração do espírito da Raça. Sim: há um renascimento literário iniciado pelos poetas que mencionei
na minha resposta ao inquérito da Re­pública. E o numero e o valor dêstes poetas são o bastante para se poder
afirmar que existe, no mo­mento actual, uma nova alma pátria que é a antiga alma renovada e plenamente
revelada, ainda no seu aspecto transcendente e poético, mas que ama­nhã será perfeito pensamento definido
e fecunda actividade. Há uma nova alma lusitana revelada pela nova Poesia. E só não reconhecem esta
con­soladora verdade os velhos espíritos empedernidos em velhos preconceitos e alguns novos espíritos (aliás
de valor) afastados da sua Raça, porque não sabem ou não querem reagir contra o meio portu­guês adulterado
por alguns séculos de subordina­ção a Roma e a Paris».
7 Cf. Ibid.: 180.
8 Cf. Ibid.: 198. Não escamoteando as já referidas divergências internas – ainda nas palavras de Proença: «no
fim de alguns numeros — muito poucos — o que veio a predominar na Aguia não foi o lado intele­ctual da
Renascença, mas a sua falange emotiva, mística, amorosa de sonho e de misterio. Por culpa dos elementos
do sul, a Poesia tinha tomado posse da Aguia, da primeira pagina até á ultima; por culpa dos elementos do
sul, a Renascença Portu­guesa falhara completamente na sua missão./ O “saudosismo” a que se refere o snr.
dr. Ju­lio de Matos foi assim um elemento sur-ajouté e de modo algum orgânico e primitivo da Renascença
Portuguesa./ Manda porém a inteira justiça que se diga que nêsse “desvio” da orientação de uma sociedade
não cabem só graves responsabilidades á inércia cul­posa dos meridionais; o snr. dr. Teixeira de Pas­coais,
logo no 1.º numero, por um evidente equi­voco (que do mais é incapaz a sua belissima alma, cheia de tão
profunda emoção e de tão humana simpatia) acentuava já êsse desvio nestas palavras do editorial: “É
na Saudade revelada que existe a razão da nossa Renascença; nela ressurgiremos, porque ela é a própria
194 100 Orpheu Renato Epifânio

3. Em comparação com as reacções provocadas pela revista A Águia, as reacções


provocadas pela revista Orpheu não foram menos eriçadas – daí a significativa
alusão, por parte de Fernando Pessoa, às «referências desagradáveis que a imprensa
portuguesa nos tem feito», numa carta ao poeta Camilo Pessanha:

Sou um dos directores da revista trimestral de literatura Orpheu. Não sei se V. Ex.ª
a conhece; é provável que não a conheça. Terá talvez lido, casualmente, alguma das
referências desagradáveis que a imprensa portuguesa nos tem feito. Se assim é, é possível
que essa notícia o tenha impressionado mal a nosso respeito, se bem que eu faça a V. Ex.ª
a justiça de acreditar que pouco deve orientar-se, salvo em sentido contrário, pela opinião
dos meros jornalistas. Resta explicar o que é Orpheu. É uma revista, da qual saíram já
dois números; é a única revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde
a Revista de Portugal, que foi dirigida por Eça de Queirós. A nossa revista acolhe tudo
quanto representa a arte avançada; assim é que temos publicado poemas e prosas que vão
do ultra-simbolismo ao futurismo. Falar do nível que ela tem mantido será talvez inábil, e
possivelmente desgracioso. Mas o facto é que ela tem sabido irritar e enfurecer, o que, como
V. Ex.ª muito bem sabe, a mera banalidade nunca consegue que aconteça. Os dois números
não só se têm vendido, como se esgotaram, o primeiro deles no espaço inacreditável de
três semanas. Isto alguma coisa prova – atentas as condições artisticamente negativas
do nosso meio – a favor do interesse que conseguimos despertar. E serve ao mesmo
tempo de explicação para o facto de não remeter a V. Ex.ª os dois números dessa revista.
Caso seja possível arranjá-los, enviá-los-emos sem demora.9

Tanto por aquilo que diz, esta carta é igualmente significativa por aquilo que
omite: falamos ainda, claro está, da revista A Águia, onde Fernando Pessoa publicou
os seus primeiros textos, em 1912:   “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente
Considerada”, “Reincidindo…” e “A Nova Poesia Portuguesa no Seu Aspecto
Psicológico”. Saliente-se que, na citada carta, Fernando Pessoa refere-se ao Orpheu
como «a única revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde a Revista
de Portugal, que foi dirigida por Eça de Queirós» – ou seja, Fernando Pessoa dá aqui

Raça original e criadora”./ Isto era a antítese do espirito que animava os elementos do sul; poderiam êstes
ter feito entrar o movimento na trajectória que lhe competia; a sua inércia porém era absoluta; por isso,
dentro em pouco, a Renascença ficou limitada aos seus elementos “saudosistas” e o tom predominante na
revista foi o tom “saudosista”./ O autor destas linhas, e alguns outros do sul, muito poucos, que tinham
querido actuar, desliga­ram-se então completamente da Renascença, ainda que continuando a auxiliar a
sustentação da Revista, que tem publicado, dentro do seu espirito, coisas realmente interessantes» [ibid.:
123-124].
9 PESSOA, F., 1998.
Entre o “Orpheu” e a “A Águia”, entre Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes 195

um salto histórico, passando de 1889, data de lançamento da Revista de Portugal, para


1915, como se nada entretanto de relevante tivesse acontecido… Verdade que Teixeira
Pascoaes lhe pagou na mesma moeda. Na última entrevista que concedeu10, reduz o
poema Tabacaria a uma mera «brincadeira» – nas suas palavras:

Veja a Tabacaria: não passa duma brincadeira. Que poesia há ali? Não há nenhuma, como
não há nada… nem sequer cigarros!… Fernando Pessoa tentou intelectualizar a poesia e
isso é a morte dela. É roubar o espontâneo à Alma Humana, isto é, o que ela tem de Alma
Universal ou de poder representativo da realidade. Veja o poema (o poema?!) que começa
‘o que nós vemos das coisas são as coisas’… Isto não é poesia, nem filosofia, nem nada.”. E,
por isso, chegou a considerar Pessoa como um “não poeta” – nas suas palavras: “Repare:
não digo que foi mau poeta. Digo que não foi poeta, isto é, nem bom nem mau poeta. E se
foi poeta, foi-o só com exclusão de todos os outros, desde Homero até aos nossos dias…” –,
inclusive, como um mero “ironista” que, enquanto tal, não se deve tomar a sério11.

4. Como já defendemos num outro texto12, não entendemos estas palavras como
um sintoma de despeito ou de ressentimento. De modo algum. Pelo contrário,
consideramos que, vindas de Pascoaes, estas são palavras inteiramente justas, por
mais injustas que, em absoluto, as possamos considerar. E isto porque, atendendo ao
Poeta que Pascoaes foi, Pessoa só poderia aparecer-lhe como um «não poeta», nem
sequer como um «meio poeta». Para o Poeta que Pascoaes foi, poeta integralmente
poeta, não poderia haver, de resto, «meios poetas». Ou se era integralmente poeta,
como, de facto, Pascoaes foi, ou, muito simplesmente, não se era…
E porque foi Pascoaes integralmente poeta? A nosso ver, por uma simples mas
ainda assim suficiente razão: porque acreditava, integralmente, naquilo que escreveu,
naquilo que dizia. Quando falava, por exemplo, dos deuses ou dos anjos, Pascoaes,
com efeito, acreditava neles, no seu discurso, acreditava tanto no seu discurso que
acreditava que, através dele, essas entidades passavam realmente a existir. Realmente.
Como se, de facto, o discurso poético fosse um discurso realmente divino, realmente
criador. Como se, de facto, ao serem nomeados poeticamente, mesmo as entidades
mais fantasmáticas passassem realmente a existir. Ao lermos as suas obras, ao

10 Publicada n’ O Primeiro de Janeiro, em 25 de Maio de 1950; republicada, mais recentemente, in PASCOAES,


T., 2004: 249-253.
11 Ainda nas suas palavras: «Considero, sim senhor, Fernando Pessoa um grande talento. Mais: afirmo que
como crítico e como ironista não houve outro que o igualasse. Nem o Camilo nem o Eça, nem o Fialho (que,
quando atingia o máximo da expressão, era superior ao Camilo e ao Eça). Mas depois veio Fernando Pessoa,
e foi o mais genial de todos (tão genial, que o tomaram e tomam a sério, o que não aconteceu aos outros)».
12 “Entre Pascoaes e Pessoa”, in AA.VV., 2011: 129-130.
196 100 Orpheu Renato Epifânio

lermo-las em voz alta, sobretudo, também nós acreditamos, ainda que apenas por uns
momentos, nisso, nesse poder criador.
Ora, em Pessoa, isso não acontece. Pessoa era demasiado “filosófico” – diremos
mesmo, demasiado “inteligente” – para acreditar integralmente no seu discurso.
Entre ele e o seu discurso havia sempre uma “cisão”, uma “distância”, uma “distância
crítica”, que impossibilitava essa crença. Mesmo nos seus poemas mais arrebatados,
como a Mensagem, essa distância paira, como uma ubíqua sombra. Não conseguimos,
de resto, imaginar Pessoa a ler em voz alta a sua Mensagem. No princípio, no meio
ou no fim, haveria sempre, fatalmente, um sorriso de ironia, que, por mais leve que
fosse, destruiria, por completo, o poema. Em Pascoaes, ao invés, mesmo quando ele
é irónico, não há ironia, essa ironia. E, por isso, muito justamente, Pessoa era, para
Pascoaes, um “não poeta”.

Bibliografia

AA.VV. (2011). Entre Filosofia e Literatura: ciclo de conferências (org. de Celeste


Natário e Renato Epifânio). Lisboa: Zéfiro.
PASCOAES, Teixeira de (2004). Ensaios de Exegese Literária e vária escrita:
opúsculos e dispersos. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (1998). “Carta a Camilo Pessanha”, in Correspondência
1905-1922. Edição de Manuela Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, pp.
184-185.
PORTUGAL, Boavida (1915). Inquérito Literário. Lisboa: Livraria Clássica
Editora.
“A imensidade imensa do mar imenso”:
uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode
marítima”, de Álvaro de Campos

Márcia Manir Miguel Feitosa


Universidade Federal do Maranhão – Bolsista CAPES de Pós-Doutorado no Centro de
Estudos Comparatistas – Universidade de Lisboa

Palavras-chave: Espacialidade; Fenomenologia; Poesia moderna; Experiência; Percepção.


Resumo: Publicado em Orpheu 2, o poema “Ode marítima”, de Álvaro de Campos, constitui o
marco da poesia moderna portuguesa pelo seu estilo torrencial, vanguardista e cosmopolita.
Ao cantar a vida marítima, o heterônimo dá ensejo às sensações vividas e imaginadas na sua
expressão mais complexa, sentidas de todas as maneiras. Apoiando-se na estrutura apolínea da
ode, apregoa o avesso da expansão marítima ao exaltar a sua face mais autêntica e terrível. O
objetivo deste trabalho é a abordagem do poema à luz da Geografia Humanista Cultural, em
que pesem os conceitos de espaço, lugar, experiência, topofilia e ser-estar-no-mundo. Busca-se
o sentido da essência humana a partir da experiência vivida e do mundo percebido ou, na ótica
do poeta, sentido e reconstruído para ser reinventado. Servirão de aporte teórico e conceitual
os estudos desenvolvidos pelos geógrafos humanistas Eric Dardel e Yi-Fu Tuan.

Lá vai a Nau Catrineta,


leva muito que contar.
Estava a noite a cair,
e ela em terra a varar.
(Nau Catrineta – autor anônimo)

E além do que dito é, a experiência, que é madre das cousas,


nos desengana e de toda a dúvida nos tira.
(Duarte Pacheco – Esmeraldo de situ orbis)

1 – INTRODUÇÃO

Concebido segundo a estrutura apolínea da ode, o longo poema “Ode marítima”, de


Álvaro de Campos, com 904 versos, ocupa, nada mais, nada menos, do que 22 páginas
de Orpheu 2. Seu autor, o único a figurar, dentre seus companheiros de heteronímia,
na polêmica revista, teria retornado a Lisboa justamente quando do aparecimento dos
198 100 Orpheu Márcia Manir Miguel Feitosa

dois números de Orpheu e colaborado com dois poemas magistrais, representativos


de sua primeira fase.
Fernando Pessoa, nas Páginas íntimas e de auto-interpretação, sustenta o caráter
magnífico da organização do poema, visto que “nenhum regimento alemão jamais
possuiu a disciplina interior subjacente a essa composição” (PESSOA, F., 1966: 148).
Assim, a partir da solidão do eu-lírico, sentado à beira do cais deserto, a avistar
um paquete que chega e para toda a vida marítima ao seu redor, somos enovelados
num turbilhão de impressões subjetivas, fruto do sonho de vivenciar diferentes
experiências, projetadas na intimidade do eu-lírico e manifestadas com a descrição
de paisagens e aventuras distantes, ao som de gritos do marinheiro inglês Jim Barns
e de frases e expressões célebres de Ilha do tesouro, de Stevenson. Tudo sob o ritmo
embalado pelo volante da imaginação que gira lentamente, acelera, atinge o ápice e
depois declina até o total esmorecimento.
Nosso objetivo com a análise desta ode de Campos é buscar o sentido da essência
humana por meio da experiência vivida e do mundo percebido ou reinventado à
luz dos conceitos de uma vertente da Geografia que prima pelo estudo do objeto a
partir de seu valor humano. Estamos a falar da Geografia Humanista Cultural, que
nasceu, inicialmente, na década de 70 do século passado, como Geografia Humanista
e, mais recentemente, incorporou os estudos culturais e filosóficos, com a abordagem
de conceitos fundamentais em torno do espaço, lugar, experiência, topofilia e
ser-estar-no-mundo, este último bebido na fonte viva da Fenomenologia. Dentre seus
teóricos mais importantes, estão Eric Dardel e Yi-Fu Tuan, autores, respectivamente,
de O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica, publicado em 1952 e com
edição brasileira de 2011, e Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do
meio ambiente, de 1974, reeditado no Brasil em 2012 e, ainda, Espaço e lugar: a
perspectiva da experiência, publicado em 1977 e reeditado em terras brasileiras em
2013. Os dois estudiosos, portanto, constituirão a base da argumentação teórica em
torno da espacialidade na “Ode marítima”.

2 – O EU-LÍRICO E A EXPERIÊNCIA INTENSIVA COM O MAR



No capítulo dedicado ao espaço geográfico, Dardel salienta que, no que concerne
ao espaço aquático, não há dúvidas de sua importância para a superfície do globo,
sejam as águas lacustres e fluviais, sejam os próprios mares. Ele revela que, “lá onde
não existe água, o espaço tem algo de incompleto, de anormal: o deserto, a superfície
árida dos platôs calcários, sugerem naturalmente a ideia de morte.” (DARDEL,
E., 2011: 19). Mais especificamente ao mar, destaca que “é uma força envolvente,
ambiência em seu sentido mais apropriado; ele é um elemento” (id.: 21 – grifos do
“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode marítima” ... 199

autor). Essa observação nos interessa na medida em que nos remete diretamente ao
poema de Campos.
Ao longo de todos os versos da “Ode marítima”, o eu-lírico dirige seu olhar para
o “elemento” mar e por ele se deixa envolver. Mais adiante, transfere o olhar de fora
para dentro de si e assume a vida marítima com a invenção do mar imaginário, rico
em fantasias e movimento, a configurar a unidade da natureza universal. Sozinho, a
avistar do cais deserto um paquete que se aproxima do porto, sua imaginação cria asas
e abre um leque de possibilidades que ganha dinamismo à proporção que o volante
interior deixa de ser racional e começa a girar lentamente.
“Tela anímica onde tudo acontece”, eis o que se configura a alma do eu-lírico neste
momento. José Ney Costa Gomes avança neste pensamento ao afirmar que “aqui o ser
que olha e vê o faz com a alma, inventa-se, cria-se como sujeito (independente, apesar
de fundido à paisagem)” (GOMES, J., 2009: 96). Acompanhemos, portanto, como
procede tal invenção ou criação em pormenor.
Quando o volante ganha vida, o olhar, antes voltado para o paquete e outras
embarcações, mergulha na memória de tempos passados e, curiosamente, entre o cais
e o navio que parte, irrompe sobre o eu-lírico uma saudade de um cais de outrora, o
Cais Absoluto, de onde partiu para o mundo exterior, “fora do Espaço e do Tempo”.
Esse momento único, situado entre o cais e o navio, constitui o cerne da ideia de
intervalo, tão cara à poesia pessoana. Nesta cena intervalar, caracterizada como
uma espécie de redução fenomenológica, tudo acontece: o ruído dos guindastes, as
chegadas de comboios de mercadorias, o bulício a bordo dos navios até a fuga para
as águas eternas das Grandes Navegações, onde se pôde viver intensamente o espírito
das descobertas e do “mistério de cada ida e cada chegada”.
O não-lugar, inerente à concepção de intervalo, é que dá ensejo a que o eu-lírico
anseie por viver a experiência que o espaço proporciona, com todos os seus desafios e
aventuras, medos e angústias. Assim, como ressalta Yi-Fu Tuan, “para experienciar no
sentido ativo, é necessário aventurar-se no desconhecido e experimentar o ilusório e o
incerto. Para se tornar um experto, cumpre arriscar-se a enfrentar os perigos do novo”
(TUAN, Y., 2013: 18). Porém, ainda o momento não é chegado e o eu-lírico retoma
o seu posto a observar o paquete que entra no cais, ao mesmo tempo em que novo
impulso é dado ao volante interior, agora de forma mais acelerada.
A comoção toma conta do poeta que vislumbra não mais o paquete a entrar,
mas os navios abstratos e os navios vistos de perto, com suas especificidades e
características. Por meio das sensações múltiplas, vividas pelos órgãos dos
sentidos, o eu-lírico se imiscui na vida marítima que invade o seu sangue com
sedução. Seguindo, assim, a linha do pensamento de Tuan, o eu-lírico se estende
para o mundo: “Toda a vida marítima! Tudo na vida marítima!/ Insinua-se no
200 100 Orpheu Márcia Manir Miguel Feitosa

meu sangue toda essa sedução fina/ E eu cismo indeterminadamente as viagens”


(PESSOA, F., 2014: 116).
Adentra, pois, os oceanos conhecidos e o Mar Mediterrâneo até ansiar por todos
os mares, estreitos, baías e golfos e aí sim morrer, isto é, viver a vida absoluta, na
sua essência mais perfeita. É o que podemos evidenciar na estrofe seguinte quando
o eu-lírico se nutre, interior e esteticamente, de tudo o que diz respeito ao ambiente
do mar, com suas metáforas e imagens sobretudo. A conclusão é fatídica: nada está
seguro dentro de si, nada se revela como o esperado. Antes em constante ebulição,
qual uma âncora meio submersa ou um barco de quilha pro ar.
Como um crescendo, acelera-se o volante íntimo, a lembrar uma máquina em
processo de funcionamento que ganha velocidade a cada investida da imaginação. A
propósito, José Augusto Seabra realça que

o “volante” constitui o centro regulador de movimento do poema. Assim este não é de


nenhum modo desordenado e caótico, mas pelo contrário rigorosamente orquestrado
em função da gradação ascendente e descendente que o comanda (SEABRA, J., 1982:
131-132).

Embora seja o engenheiro naval que é, o que “beija com a alma as máquinas”,
Álvaro de Campos, a esta altura do poema, revela um desejo passadista da antiga vida
dos mares. A aparente contradição o poeta tenta justificar pela Distância Absoluta
em que se encontra em relação à história das grandes navegações. Qual Alberto
Caeiro, seu companheiro do “drama em gente”, anseia pela autenticidade, pela origem
primeira da Natureza, isto é, pelos mares ainda desconhecidos e pouco explorados
pela humanidade. O que era distante, por conseguinte, se torna próximo. O eu-lírico
passa então a alimentar o que Dardel aponta como a “Geografia Heroica”, a que
“manifesta um interesse pela Terra como realidade geográfica, uma inquietude sobre
o espaço a percorrer e a explorar, uma primeira geografia da aventura, da viagem
como exploração e proeza” (DARDEL, E., 2011: 73). Oniricamente, vivencia o apelo
do “delírio das coisas marítimas” e se transporta, graças ao balanço incansável do
volante, para dentro do universo das águas, a penetrar na própria essência geográfica
do ser-estar-no-mundo, sua geograficidade portanto, na esteira do pensamento de
Dardel.
“O mergulhar nas águas deste mar significa”, nas palavras de Marion Ehrhardt,
“um volver ao estado informe da pré-existência, um suspender de todas as tensões
e contrastes” (EHRHARDT, M., 1964: 180). Esse mergulho, ou melhor, essa
“viagem” constitui o cerne da “Ode marítima” e sobre ela teceremos nossas reflexões
subsequentes.
“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode marítima” ... 201

O primeiro personagem a surgir no transcurso pelos mares primordiais é o


marinheiro inglês Jim Barns, porta-voz da experiência e responsável pela excitação
em excesso do poeta. Por meio de seu “grito antiquíssimo”, desperta uma explosão
histérica a que faz jus o emprego de anáforas, onomatopeias, imprecações, interjeições,
exclamações e, de modo muito curioso, trechos em inglês da Ilha do tesouro, de
Stevenson, lido na infância de Pessoa. No mesmo compasso do êxtase do poeta,
imprime-se novo giro do volante.
No mesmo compasso frenético do volante, aflora a veia poética do eu-lírico que
se esvai em aliterações e assonâncias, como a coroar o momento único da mais fina e
sinestésica poesia:

Subitamente, tremulamente, extraorbitadamente,


Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo da minha imaginação,
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima (PESSOA, F., 2014: 121).

Segue-se, embalada pela interjeição “eh”, uma série de estrofes de invocação das
gentes do mar, experientes homens que se aventuraram para o “Mar Absoluto”, a
fim de “realizar o impossível”. O desbravar o espaço, “a imensidade imensa do
mar imenso”, na verdade, significa a busca pelo lugar experienciado, o “centro de
significados construído pela experiência” (TUAN, Y., 1975: 152). O que o poeta
almeja é a vivência de todos os homens dos mares, dos mais simples homens dos
mastros aos mais violentos e sagazes negociantes e exploradores. Da saudação
entusiasta a todos eles assoma a vontade vulcânica do eu-lírico de a eles se unir, num
afã desenfreado de realizar ações múltiplas, de modo a adquirir o que foi impossível
em terra firme. Verbos como “querer”, “encontrar”, “cuspir”, “sentir”, “despir”, “salgar”,
“fustigar”, “flagelar”, etc. povoam o imaginário do poeta e impelem uma grande
velocidade ao poema, tal como o volante imprimiu à sua alma desde a “partida” do
cais deserto.
O ápice de semelhante ebulição se dá com a tentativa de experienciar intensamente
a “febre da pirataria antiga”: desde as canções de marinheiros, inspiradas ainda em
Stevenson, até a guerra em alto mar, eivada de sangue e selvageria. Aliás, a cor vermelha
e seus matizes predominam por várias estrofes, tingindo o mar de fogo e de morte.
Curioso destacar que Álvaro de Campos objetiva compor uma orquestra sinfônica
quando adentra de corpo e alma na vida que gira em torno da pirataria, de tal modo
que ora é a vítima, ora o algoz, ora ainda – e de forma mais contundente – Deus, não
o magnânimo e onipotente, mas o “monstruoso e satânico”.
202 100 Orpheu Márcia Manir Miguel Feitosa

O que podemos evidenciar, neste conjunto de estrofes em que o poeta faz apologia
da pilhagem e da carnificina, é o que Tuan denomina de “topofilia”, não no sentido
primeiro que implica os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente
material, antes a emoção humana mais forte com o lugar, isto é, quando o lugar ou
o meio ambiente se torna “o veículo de acontecimentos emocionalmente fortes ou é
percebido como um símbolo” (TUAN, Y., 2012: 136). A partir do momento em que o
eu-lírico elege o mar de domínio da pirataria como sendo o seu locus, institui a marca
simbólica de tudo o que isto pode significar no contexto do poema: um sentimento
de afeto muito grande pelos piratas e corsários portugueses que, como é sabido,
viveram sua Época de Ouro no século XV, quando exerceram a supremacia dos
ataques no Atlântico e no Mediterrâneo. Para Campos, tal experiência se sobrepõe
à vivenciada pelos descobridores, na medida em que instaura a anarquia e a aversão
aos atos civilizatórios, os quais coíbem o espírito do homem e o afastam do ritmo da
modernidade, afeita à velocidade e ao estilo esfuziante e torrencial, à maneira de Walt
Whitman.
O que incomoda sobremaneira o poeta de Tavira é a sua condição de engenheiro
ao mesmo tempo prático e sensível, estático e débil diante da “grande dinâmica
estridente, quente e sangrenta”. O que o incomoda é o modo de ser de sua geração,
nomeadamente moralista e conservadora:

Ah, os piratas! os piratas!


A ânsia do ilegal unido ao feroz,
A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis,
Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhos vazios! (PESSOA, F., 2014: 132)

Entretanto, decorridas páginas e páginas de frenesis e êxtases, paralelamente a


sensações masoquistas e sádicas, o eu-lírico anoitece, dado ter sentido mais do que
poderia sentir, ter-se doado mais do que sua alma poderia comportar. E mais uma
vez quem o acompanha é o volante, cuja velocidade decresce vertiginosamente. Os
sonhos parecem abandoná-lo e a ocuparem o seu eu interior apenas a escuridão,
representada pelo mar noturno, e a lua que desponta na horizonte, a avivar a
infância do poeta, excitada pelo já conhecido grito antiquíssimo. Reacende no
âmago de Campos a saudade da infância perdida, não roubada na algibeira. Com
ela, o remorso e a ternura pelas vítimas de seu sonho de pirata, sentimentos que se
contrapõem às sensações histéricas de versos anteriores, fermentadas ao sabor do
volante veloz.
“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode marítima” ... 203

José Augusto Seabra reforça o papel desempenhado pelo volante neste momento
exato da ode, argumentando que, “se o volante funciona ainda, é agora ao contrário,
numa cadência cada vez mais lenta e doce, como a das velhas canções de embalar”
(SEABRA, J., 1982: 134); canções estas que ganham corpo e voz no poema, a comporem
a memória do passado distante e feliz. “Nas coisas menores mais familiares”, pontua
Freya Stark, citada por Tuan,

a memória tece as alegrias mais intensas e nos mantém à sua mercê por intermédio de
ninharias, algum som, o tom de uma voz, o odor de piche e de algas marinhas no cais. […]
Este certamente é o significado de lar – um lugar em que cada dia é multiplicado por todos
os dias anteriores (STARK, F. apud TUAN, Y., 2013: 176-177).

Em decorrência de sensações tão desencontradas, instala-se a grande dualidade


inerente à poesia do heterônimo pessoano, entre viver o futuro célere, modernista e
anticivilizatório e recuar no tempo à procura da arca da infância, ancorada no passado
como um fósforo frio. A solução encontrada, a de retomar pela imaginação literária
“a fúria da pirataria”, se revela inútil diante da presença do transcendente e da voz
misteriosa do marinheiro inglês Jim Barns que clama pelo poeta “de nenhum lado do
espaço, de nenhum local no tempo”. A mesma voz que o chamou para os mares, agora
o chama para o “mundo real”, onde os sonhos são dissipados e onde é possível avistar
a chegada dos paquetes no cais.
A paisagem para o eu-lírico, descortinada naquela manhã de verão, configurou-se,
fenomenologicamente, como “um conjunto, uma convergência, um momento vivido,
uma ligação interna, uma ‘impressão’, que une todos os elementos” (DARDEL, E.,
2011: 30). Mais ainda, sob a sensibilidade de Dardel, significou “presença atraente ou
estranha, e, no entanto, lúcida. Limpidez de uma relação que afeta a carne e o sangue”
(id.: 31).
“Nada perdeu a poesia”, afirma o poeta, mesmo que a imaginação seja agora higiênica
e prática, movida lentamente pelo volante maquinal da modernidade, que abriu espaço
para o comércio e para os sonhos regulares, enquadrados no ritmo previsível do trabalho.
Mesmo a poesia dos escritórios, da vida urbana, cultuada por Cesário Verde, passa a ter
para Álvaro de Campos um valor inestimável no âmbito do mundo moderno, onde
“as faturas e as cartas comerciais são o princípio da história/ E os navios que levam as
mercadorias pelo mar eterno são o fim” (PESSOA, F., 2014: 143).
Feita a apologia das faturas e das cartas comerciais, das viagens e dos viajantes,
dos transatlânticos, dos sentimentos burgueses, da vida flutuante, o poeta se despede
com o olhar direcionado a um sujo navio inglês a vapor que corta as águas outrora
desfraldadas pelas naus. A despedida acontece no exato instante em que o volante
204 100 Orpheu Márcia Manir Miguel Feitosa

cessa seu movimento dentro do poeta. A despedida do navio e da imaginação delirante


calam fundo na alma do eu-lírico que se abandona à tristeza e à solidão do princípio,
num cais ainda mais deserto.

3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao ter escolhido a ode para compor o longo poema de Orpheu 2, dentre as


composições poéticas do gênero lírico, Álvaro de Campos desejou elevar ao mais alto
tom o canto de amor ao mar, a sua gente, em especial, e, em particular, aos piratas,
numa febre de vertigem que beira a loucura.
A adoção de semelhante gênero, contrariando a tendência da maioria dos poetas
do século XX, encontra em Walt Whitman e em Antero de Quental, autor das Odes
modernas, sua inspiração. Para o poeta realista, segundo David Mourão-Ferreira, as
duas formas essenciais do lirismo hodierno são o soneto e a ode. Em relação ao soneto,
“conclui ser ‘o lirismo puro da alma, a ideia que traduz o eterno sentimento’ e a ode, por
seu turno, ‘o lirismo de cabeça, aonde se espalha o universo’” (MOURÃO-FERREIRA,
D., 1983: 562). Lirismo cerebral, portanto, com a bússola apontada para a possessão
dos mares e para as viagens imaginárias, como podemos evidenciar na “Ode marítima”.
Mas o poeta não esteve só nesse decurso. Acompanhou-o o volante que serviu de
diapasão para que sua imaginação fluísse num compasso gradativo e atingisse o ápice
do arrebatamento. Daí para a derrocada foi um desligar a chave. O olhar perdido
no horizonte levou consigo o navio que jamais conseguiu largar o cais para viver
a experiência do desafio. Na ótica de Tuan, “a experiência implica a capacidade de
aprender a partir da própria vivência” (TUAN, Y., 2013: 18). Entre o cais e o navio,
a vivência da viagem constitui a Distância Absoluta que o heterônimo ambicionou
alcançar. Os mares que, debalde, nunca singrou; o navegante que, inevitavelmente,
naufragou dentro de si se contrapõem ao engenheiro naval de formação. No sonho é
que reside a alma de Pessoa e de seu heterônimo. É no intervalo que ambos expressam
a experiência única de ser-estar-no-mundo.

Bibliografia

Bibliografia Ativa
PESSOA, Fernando (1966). Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (2014). Poesias heterónimos. Introdução e organização de
Auxilia Ramos e Zaida Braga. Porto: Porto Editora.
“A imensidade imensa do mar imenso”: uma abordagem fenomenológica-existencial da espacialidade na “Ode marítima” ... 205

Bibliografia Passiva
DARDEL, Eric (2011). O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. Trad.
Wetther Holzer. São Paulo: Perspectiva.
EHRHARDT, Marion (1964). O mar na “Ode marítima” de Fernando Pessoa.
Munster Westfalen: Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung.
GOMES, José Ney Costa (2009). Alma à janela: perfil intensivo de Álvaro de
Campos. Tese de Doutorado, FFLCH- USP.
MOURÃO-FERREIRA, David (1983). Larbaud, Pessoa, Antero: o recurso à ode
como forma de modernidade. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian/ Centre
Culturel Portugais.
PACHECO, Duarte (1905). Esmeraldo de situ orbis. Lisboa: Sociedade de Geografia
de Lisboa, Typografia Universal.
SEABRA, José Augusto (1982). Fernando Pessoa ou o poetodrama. São Paulo:
Perspectiva.
TUAN, Yi-Fu (1975). “Place: an experiential perspective”. The Geographical
Review. New York, vol. 65, nº 2, pp. 151-165.
TUAN, Yi-Fu (2012). Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio
ambiente. Trad. Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel.
TUAN, Yi-Fu (2013). Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. Lívia de
Oliveira. Londrina: Eduel.
Orfeu
O mito, a arte, a religião e o mistério

Raul Miguel Rosado Fernandes


Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

ORFEU, é um nome grego que chegou aos nossos dias, envolto num verdadeiro
mistério, mesmo que a figura que o corporiza, figure em poemas de autores reais, e
se apresente como a inspiradora de textos místicos, que temos a maior dificuldade
em decifrar no seu significado e alcance. Perguntamo-nos sempre: será que o orfismo
foi mesmo objecto de crença e praticado por devotos. E é nesta interrogação, a que
não se pode responder com qualquer certeza, que reside o encantador mistério que
tem vindo a seduzir artistas e poetas, figurando Orfeu em inúmeros poemas da
Antiguidade e mesmo no Portugal do século XX.
A mitologia órfica lembra-nos a textura de uma perfeita teia de aranha, que ora
se alonga, ora se encolhe, sem jamais nos permitir compreender a realidade da sua
estranha imagem que aparece em textos que vão desde a épica homérica aos tempos
de Bizâncio, sem jamais nos dar a chave que abra os esconsos da sua misteriosa
existência tão importante para a inteligência e sensibilidade do ser humano.
Os mitógrafos variam de opinião quanto à sua genealogia. Consultámos a Biblioteca
de Apolodoro, dos séculos I-II a.C., e o mitógrafo grego diz-nos que ele nascera
de Calíope, a Musa, e de Oiagro, contra a opinião de outros que o dizem filho de
Polímnia, a Musa da Música, talvez pelo simples motivo de Orfeu ser um encantador
da Natureza e dos seres que a ela pertencem, por fazer sair harmónicos sons pela
forma arrebatadora como tocava a sua lira.
Ao longo das descrições que dele se ocupam através da vida helénica e até romana,
é pela força irresistível da música que ele consegue as maiores proezas. A arte musical
era a força invencível que ele dominava como arma, facto que chama a atenção
das gerações antigas e das modernas. Por isso além de figurar em epopeias, que
celebram os seus feitos, os Argonautas, escritas nas línguas grega (Apolónio de Rodes
e Pseudo-Orfeu) e latina (Valério Flaco), também em seu nome, inventado ou não,
chegaram até nós fragmentos e Hinos, dedicados aos deuses, como senhor que era
dos mistérios ligados à vida e à morte. Tratar-se-á do Orfismo que apresenta íntimas
semelhanças com o Pitagorismo, sem que o seu deus seja necessáriamente Apolo,
mas sim Diónisos, de preferência, ao qual o Pseudo-Orfeu dedica na ed. de Quandt
(Berlim, 1955) o hino 30 (pp. 24-25) sem que insista como a teologia sua rival, na
208 100 Orpheu Raul Miguel Rosado Fernandes

transmigração das almas, mas sim no ascetismo (ou seja exercícios espirituais) que
proporcionem a entrada dos crentes nas Ilhas dos Bem-Aventurados, ou seja no céu,
ou no paraíso (jardim=parádeisos) divino.
Os princípios catequéticos que nos resume M. H. Rocha Pereira (p. 237) pregam
“– a abstenção de derramamento de sangue; – o vegetarianismo; – a doutrina de que
o corpo é a prisão da alma (que Sócrates, na sua Apologia, invocará, sem que se saiba,
pelo que penso, que haja qualquer ligação com as doutrinas de Orfeu); – a crença na
purificação do pecado, por meio de certos ritos, neste mundo e no outro, etc.) o que
não nos força a pensar na transmigração, segundo pessoalmente penso, contrariando
assim as dúvidas de Rocha Pereira que a este propósito cita, no volume dedicado à
Cultura Grega (p. 236 s.v. Orfismo), a sentença erudita de Willamowitz Moellenforf
que acusa os Modernos de falarem excessivamente dos Órficos. Lança contudo a
acusação ao interrogar o leitor perguntando-lhe: “Quem é que procedeu assim na
antiguidade?” Por muito erudito que o sábio alemão seja, também não lhe podemos
responder que ninguém o fez, visto que a sua música até as feras, as rochas e as Sereias
domava.
Entre os Gregos referem-se à sua existência, natureza e poderio, vários poetas,
entre os quais, Íbico que o intitula “o glorioso Orfeu” (frg. da p. 141, Hélade, ed.
2003, Rocha Pereira), e Simónides, que nos comunica a sensação dos que a sua
música e canto ouviam: “Inúmeras, as aves voavam / sobre a sua cabeça / e os peixes,
em pé, saltavam das águas de anil do mar, / ao som do seu belo canto.” E acrescenta
noutro passo: “Não se ergueu então o sopro do vento que abala as folhas, / para
impedir que a voz doce como o mel / aderisse aos ouvidos humanos” (frgs, da p. 179,
ed. 2003, Rocha Pereira).
O hino 30 a Diónisos, a quem dedica incenso resinoso, começa por invocá-lo
dedicando-lhe vários epítetos que sugerem o tom ribombante da sua presença divina,
a sua profícua presença astral, o ter sido trazido à existência antes de todos, as suas
duas existências, engendrado três vezes, e, como sempre acontece em preces deste
tipo, intitulando-o religiosamente por “senhor Báquico”. É uma espécie de ladainha
que temos diante dos olhos, em que se enumeram todas as qualidades do deus.
Ovídio nas Metamorfoses, já no séc. II (trad. de Paulo Farmhouse Alberto) da nossa
era, refere-se insistentemente a Orfeu, esse mágico vate e músico da Trácia, nos cantos
X e XI, em que vai em busca, para depois a perder, de Eurídice, a sua amada, que só
poderia fazer sair do Tártaro, se olhando para trás, a não procurasse com o seu olhar
apaixonado. Na versão de Ovídio, Eurídice tinha sido mordida no calcanhar por uma
serpente, e estava para sempre e para ele perdida. O canto do vate é romanticamente
manejado por Ovídio, cuja prece se dirige a todos os deuses: “Ó deuses deste mundo
situado sob as terras / no qual voltamos a cair todos quantos nascemos mortais, / se é
Orfeu - O mito, a arte, a religião e o mistério 209

lícito e permitis falar a verdade ….. não desci aqui para ver as trevas do Tártaro, / nem
para acorrentar as três goelas desse vosso monstro, / o rebento de Medusa…. / A razão
da vinda é a minha esposa, a quem uma serpente / ao ser pisada, injectou veneno / Por
estas paragens repletas de pavor / ….rogo: / tornai a tecer o destino apressadamente
cortado de Euridíce…. / Mas se os destinos me negam este favor pela minha esposa, /
estou decidido a não voltar: rejubilai com a morte dos dois.” Eis o estilo plangente do
igualmente libertino autor da Arte de Amar.
Mais plangente e completo é o episódio criado por Virgílio no canto IV das Geórgicas
que concebe Eurídice como Ninfa Dríade (dos bosques) que Aristeu perseguia e mata,
e ao descer aos infernos será Orfeu que a irá buscar, com a condição quase infantil
de se não voltar para a ver. Tudo acontece ao contrário e a ninfa morre e as forças
infernais não lhe permitirão levá-la para a vida.
A morte de Orfeu também será conhecida em várias versões, uma vez que os poetas
antigos, que eram teólogos também, introduziam nas histórias dos entes mágicos e
sagrados as versões que porventura lhes chegavam ou mesmo que inventavam.
Uma das versões mais correntes é a de que teriam sido as mulheres trácias, suas
conterrâneas, que o teriam despedaçado, não conseguindo evitar que a cabeça da
vítima chegasse a Lesbos, onde os habitantes lhe ergueram um túmulo, que deu à ilha
a potencialidade de vir a ser o centro da poesia lírica.
Outras versões religiosas, ligam os seus despojos à Trácia ficando sempre a eles
ligada a arte da poesia e do canto mágicos. Dentro desta visão, constava que a sua
lira fora transportada para o céu, e a sua alma para os Campos Elíseos, onde, vestido
de túnica branca, ele cantava para os Bem-aventurados, era versão dionisíaca do céu.
Daí o terem-no os antigos ligado aos mistérios de Elêusis, localidade que ainda hoje
encontramos a uns quilómetros de Atenas.
A sua fama e mito chegaram até nós, integrados em cantos épicos, um deles até
com o seu nome como autor, Os Argonautas, ou em hinos de origem religiosa, dos
quais já antes escolhi o dedicado a Diónisos.
As aventuras da Argo (Argus em Latim e velho bacalhoeiro português, que ainda vi),
vão passar-se sob o comando de Jasão na Cólquida, que convida Orfeu a acompanhar
a sua tripulação (Pseudo-Orfeu, Argonáuticas, v. 60, segs.) uma vez que sabia que os
poderes mágicos da sua música e do seu canto podiam fazer frente a todos os perigos
que lhe surgissem pelos caminhos marítimo ou terrestre. É o caso das SEREIAS que já
tinham aparecido nas aventuras homéricas de Ulisses, e que Orfeu enfrenta na viagem
à Cólquida, em busca do VELO DE OURO, descrevendo o encontro da primeira
pessoa (v. 1276 e segs.): “Eu cantava, gritando a alta voz, um hino maravilhoso……e
então, quando eu tocava, dos altos nevados, as Sereias ficaram chocadas pelo encanto
e deixaram de cantar. Uma deixou cair das mãos a flauta e a outra a lira, e lançaram
210 100 Orpheu Raul Miguel Rosado Fernandes

gemidos terríveis, uma vez que a morte, o seu horrível destino tinha chegado. Do alto
da rocha onde estavam, lançaram-se no abismo do mar agitado, e os seus corpos e a
sua figura orgulhosa transformaram-se em rochedos.”
Eis um rápido episódio que demonstra a força mágica de Orfeu, sem entrar
imediatamente na lenda espantosa e cruel da paixão de Jasão e Medeia, que Eurípides
consagrou de maneira inesquecível, e que até acabou no cinema num filme em que era
a Diva Calas, a grega, que interpretava o papel da cruel e imortal Medeia.
O mito dos Argonautas vai ser igualmente tratado na Grécia e em Roma, mas nem
todos os poemas se encontraram.
O mais conhecido é o de Apolónio de Rodes, nascido em Alexandria e depois
forçado a exilar-se em Rodes, no séc. III a.C., no reinado dos Ptolomeus e na presença
de Calímaco, cujo princípio “Um livro grande é um grande mal”, ele não seguiu,
consagrando o seu poema épico, a Jasão, a Orfeu e às suas mágicas proezas pela música
e canto, e igualmente aos amores de Jasão e de Medeia. Cria um mundo mítico, que
nunca sabemos onde acaba, mas que prendia e encantava o seu público decadente da
Grécia ptolomaica.
Roma, não tem para nos apresentar um poema de alta qualidade, embora já tivesse
conhecido Vergílio e o perseguido Ovídio, cujas poesias até hoje são respeitadas e
apreciadas, pelo ritmo conseguido e pela criatividade.
Nem por isso a fama da lenda de Orfeu foi esquecida e o seu nome aparece longo
à entrada do Inferno na Divina Commedia de Dante, canto IV, v. 139 e segs.: “e vidi
il buono acoglitor del quale, / Dioscoride dico; e vidi Orfeo, / Tulio e Lino e Seneca
morale…”. E se consultarmos a longa série de obras que celebraram a memória do
mítico vate, em Gilbert Highet, The Classical Tradition, Greek and Roman Influences
on Western Literature, Nova Iorque, 1957, veremos que o mito não foi esquecido: a
sua versão mais antiga, em pleno renascimento, vai ser em Mântua para a corte dos
nobres, na peça teatral, Orfeo, levada à cena em 1471, por Ângelo Policiano, que não
descura a acção dramática e apaixonada de Orfeu e Eurídice o que fará perdurar a
sua influência nos anos posteriores, como na época das “Luzes” a que se seguiu a
Revolução Francesa, quando Macaulay afirma com desdém num escrito dirigido a
Frederico da Prússia: “Prometeu e Orfeu, Elísio e Aqueronte … e todos os outros
arrebiques, que, tal qual um vestido atirado por uma bela orgulhosa à sua criada de
quarto, foi com desprezo abandonado pelo génio para as mãos da mediocridade.” De
facto os temas clássicos estavam a sofrer um tremendo abanão. Havia quem chamasse
a Homero, um ordinário, e a Ésquilo, um louco (p. 357).
Passada a revolução vemos André Chénier, um ex-revolucionário, a escrever elegias
em que o nome e a figura de Orfeu aparecem, uma vez que o poeta traduziu poemas
do Grego e do Latim (p. 403).
Orfeu - O mito, a arte, a religião e o mistério 211

Apesar da força dos antigos clássicos vir a reviver na nobre Inglaterra, onde
podemos ler o Ulisses de Joyce e a sua descida aos infernos, quando do enterro do Sr.
Dignam em Dublin, de Orfeu não há nenhuma obra que a ele se dedique inteiramente,
ele que também desceu aos infernos devido à força da sua arte.
Foi a França que devido à extrema sensibilidade de Anouilh faz reanimar o mito
de Eurídice, em vestes da época, uma vez que a heroína morre, e Orfeu seu marido
desce pela força da música aos infernos e é lhe concedida a graça de trazer a mulher
para o mundo dos vivos, desde que para ela não olhe. Mas olha e como castigo vai
ser dilacerado e devorado pelas Ménades da Trácia. Na peça de Anouilh, Orfeu, é um
violinista de café, e Eurídice é trazida pelo Senhor Henri, que lhe transmite a única
condição para que ela fique em seu poder: que não pergunte quais foram os seus
amantes (tipicamente francês), o que ele não consegue, e, por isso, a perde de novo.
Muito mais haveria a dizer, mas como diz o velho Horácio “tempus fugit” e foge
mesmo, mas permite-nos chegar ao ORPHEU de Lisboa, como estação final deste
combóio, de linha não férrea incansável. E o que é o ORPHEU lisboeta?
Data de 1915, e na lembrança do mistério órfico, artistas portugueses lançaram-se
com enorme sucesso, na criação artística do MODERNISMO, tal como em 1922
poetas e pintores se lançarão em São Paulo, lá tão longe no Brasil, na semana da arte
moderna.
Os nossos modernistas ainda hoje vivem, não só nas estantes das bibliotecas, mas
nas paredes onde penduramos os seus quadros. E quem não gostaria de ter ou mesmo
só ler um livro dos seus, ou um quadro dessa extraordinária geração?
Ainda me lembro que num dos anos da década de 1950 a minha professora
Marina Pestana, me comunicava que um poeta português de nome Fernando Pessoa,
começava a ser considerado muito perto de Camões, e que em breve iria gozar de
estatuto de celebridade igual.
Prestei-lhe a atenção que a Dra. Marina merecia, e comecei a interessar-me,
encantado pelo canto órfico, que eu nem sabia o que era, pois só anos depois e já a
estudar na universidade, vim a conhecer Pessoa e Sá-Carneiro, e fui ensinado por
docentes que dominavam o modernismo português. Não desci aos infernos em busca
de Eurídice, mas li os poetas e fiquei como que encantado pela música de Orfeu que
eles tocavam. Gostando dos clássicos e românticos, deixei-me levar pelas paisagens
que eles atravessavam e pelos sortilégios e mistérios que eles me faziam ouvir e
imaginar, pois mesmo quando ensinei em Nova Iorque, transmiti o seu encanto aos
meus alunos de todas nacionalidades.
É dessa altura que encomendei os sete livros de uma edição em sete volumes, hoje
segundo me consta esgotada e quase preciosa, dos Textos Universais, Centro Editorial
Português, Porto, s.d., OS MODERNISTAS PORTUGUESES, Escritos Públicos,
212 100 Orpheu Raul Miguel Rosado Fernandes

Proclamações e Manifestos, que constituem um corpus do futurismo, modernismo,


que abrange a época compreendida, desde referências a 1914, mas sobretudo à revista
ORPHEU, em 1915, até referências a essa época por literatos e escritores nos fins dos
anos 50.
Limito-me a transcrever do livro que indiquei sobre o Modernismo, um inédito
de 1916 traduzido por Tomás Kim (O Prof. Monteiro Grilo da Faculdade de Letras
de Lisboa), porque escrito em Inglês por F. Pessoa, intitula-se O Orpheu e o
Sensacionismo (pp. 16-17):

O Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro.


Possivelmente é difícil destrinçar a parte de cada um na origem do movimento e, com
certeza, absolutamente inútil determiná-lo.
O facto é que ambos lhe deram início -
Mas cada sensacionista digno de menção é uma personalidade à parte e, naturalmente,
todos exerceram uma acção recíproca.
Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro estão mais próximos dos simbolistas. Álvaro de
Campos e Almada Negreiros são mais afins da moderna maneira de sentir e de escrever. Os
outros são intermédios.
Fernando Pessoa padece de cultura clássica.

Ao longo dos sete volumes, em que até acaba por aparece o nome de Prado Coelho,
que a muitos de nós ensinou, percorre-se o caminho da metamorfose que se operou
na letras portuguesas, que entraram por uma via mais europeia e mais “sensacionista”
daquela época, que em breve chegará ao surrealismo, influenciada sem dúvida
essencialmente pela literatura francesa.
Joel Serrão cita Alfredo Guisado, um dos muitos que estiveram activos naquele
milagre sensacionalista, o qual diz: “Orfeu foi a porta de pesado bronze que se fechou
para sempre e para lá da qual ficou definitivamente o passado literário da nossa terra,
os seus continuadores e os seus admiradores.” (p. 27)
De qualquer forma, como em todos os grandes movimentos inovadores, não houve
só admiradores, mas também detractores, que ficaram indignados com tanta ousadia.
Ainda conheci pessoalmente alguns, mais conservadores ou totalmente conservadores,
que andaram pelas livrarias a rasgar os livros modernistas e a lançar-lhes fogo,
quando podiam, mas tinha já sido em vão o seu esforço, e os modernistas venceram
nesta batalha, e ainda hoje são eles que lemos, muito naturalmente acompanhados
pelos nossos livros de culturas antigas e bem portuguesas, que nem por isso deixaram
perder o valor estético que sempre as impuseram ao nosso gosto literário. Nada
fica igual nestes movimentos, mas o HOMEM esse permanece igual a si próprio e
Orfeu - O mito, a arte, a religião e o mistério 213

entregando-se em épocas ao longo da sua já velha história, ao que mais lhe agrada,
na época em que viveu, e nas outras, em que não viveu, mas que do ponto de vista
mais antigo obedecem a ritmos e imagens que são trascendentais. E a isso nem o
tal HOMEM consegue fugir, fica sempre cativo do que o impressiona e agrada. Pois
não era e é ele, segundo a versão platónica de PROTÁGORAS: “a medida de todas as
coisas”? Das que foram e das que estão para existir, pensamento, já na Grécia antiga,
considerado demasiado ateu e materialista, porque lá faltam os deuses.
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo,
entre sonho e real

Roberta A. P. de F. Ferraz
Universidade de São Paulo / FAPESP

Palavras-chave: Teixeira de Pascoaes; Fernando Pessoa; modernismo português; Sonho; Poesia.


Resumo: É sabido que a recusa do editor da revista A Águia, Álvaro Pinto, em publicar o texto
pessoano O Marinheiro serviu ao seu autor como motivo de rompimento com o grupo saudosista
em 1913, o que é muitas vezes entendido também como signo da divergência, recorrentemente
sustentada por uma visada crítica, entre Pessoa e Pascoaes. O drama ‘estático’ de caráter
simbolista, enquanto se afasta e rompe com a estética saudosista e dá início ao repertório de
vanguarda da revista Orpheu, não se distancia, ao todo, de um diálogo possível com alguma
obra de Teixeira de Pascoaes, especialmente O Pobre Tolo, que teve uma primeira edição, em
prosa, em 1924 e uma segunda edição, poética, em 1929. Ambos os textos apresentam duas
figuras arquetípicas da escrita, que se elabora a partir da negatividade, da sombra, da morte;
e ambos, tanto o marinheiro quanto o pobre tolo, fazem-se corpo estático e extático por onde
escorrer o texto, levantando reflexões acerca do fazer poético na modernidade, num vagar de
deriva, entre sonho e realidade.

Toda literatura é elegíaca


Silvina R. Lopes

Mesmo depois de falecidos, queremos uma


ama que nos embale, cantando o sono eterno.
Teixeira de Pascoaes

No mesmo ano em que registrava a escrita de seu drama estático O Marinheiro,


1913, Fernando Pessoa escrevia também um apontamento no qual lemos o vínculo,
direto e reiterado por ele, entre arte moderna e sonho. Neste excerto Pessoa diz:
“Quem quiser resumir numa palavra a característica principal da arte moderna
encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é a arte do sonho”
(PESSOA, F., 1966: 156). Ainda neste texto, Pessoa expõe uma de suas (várias) leituras
da modernidade como sendo qualificada por uma “complexidade dura”, formada
pelo cientificismo, pela democracia, pelo industrialismo e pelo imperialismo – todos
216 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz

esses, nas palavras do poeta, enfraquecedores da potência sonhadora. Seguindo o


gozo de seu raciocinar, o poeta afirma que, justamente, este contexto ‘duro’ seria o
mais propício à arte sonhadora, já que, como aprenderemos com Álvaro de Campos,
em sua ‘estética não aristotélica’, a arte moderna opera por reação. No dealbar do
século XX, já encontramos sintomas da ressaca do positivismo cientificista nos mais
variados autores, de diferentes línguas (Rilke, Yeats, Benjamin, etc.), lamentando
que os mistérios fossem sentidos como experiência que rumasse ao morno e ao
esclarecimento, frutos artificiais da cultura técnica. Se, portanto, o mundo moderno
possibilitava que o sujeito fizesse mais de uma vez a viagem de ida e volta ao tédio
de todos os seus sentidos, era de se esperar que o artista, vivendo nesta/desta cena,
reagindo a ela, resistisse – esse longo exercício do poema – desdobrando sobre a frieza
da técnica as vértebras obscuras do sonho.
Arte do sonho, sim; mas não mais como dava-se, por exemplo, na mundividência
medieval, quando o sonho corresponderia ao desejo de ação, de uma ação
grandiosa que se sabia ainda sonho e desejo, cuja impossibilidade ou dificuldade
só o faziam crescer. Sonho como ação, projeção de um feito heróico a cumprir. No
contexto de Pascoaes e Pessoa – o início do século XX – acendidas as luzes da noite
tenebrosa, com as coisas dispostas ao visível da luz elétrica, sabemos, por exemplo,
com Pessoa, que “logo no limiar do sonho surge o inevitável pensamento de (sua)
impossibilidade” (PESSOA, F., 1966: 156). O autor provoca-nos, portanto, com a
ideia de que o sonho agora exigiria outra amplitude e função: não mais apontando
para o realizável, mas apoiando-se nas vias do irrealizável: o sonho do sonho. Para
o desejo movente e sem fundo, sem teleologia, estático em seu drama. Fraturado
da ação, integrado a uma “paisagem” também feita de sonho, que “na sua essência,
é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior” pois
“quanto mais rápida e turva é a vida moderna, mais lento, quieto e claro é o sonho”
(idem, ibidem). Do não desejo do sonho como motor da ação, esta “arte moderna”
nos vem falar do desejo do fora, lugar de desaceleração vertiginosa, na contramão
do “cheio do mundo”. Ou seja: essa arte nos vem falar do seu e do nosso vazio e de
sua proliferação.
Como diria o astrólogo Rafael Baldaya, em seu Tratado da Negação (PESSOA, F.,
1968: 42), tudo que conduzia à ideia de unidade e emanava de um desejo de princípio
afirmativo, nada mais era do que esta grande ficção, da qual ironicamente afirma
Baldaya, “Deus é a Mentira Suprema” (ibidem). Já as forças de ‘negação’, por sua vez,
seriam aquelas “que partem de além do Único, Fora do Único” (ibidem). Fazendo-se
cantor de sua modernidade, Pessoa, como abre-alas de sua tão ansiada revista
Orpheu, apresenta um texto cuja materialidade textual, abarrotada de inúmeros
nãos, (des-)faz-se em sonho, sonho do sonho sonhado sonhando-se, força do fora em
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 217

toda sua potência negativa, numa dinâmica – palavra curiosa – do desdobramento e


do esvaziamento do sujeito nas suas mais diversas (e falhas) tentativas de nomeação
e conhecimento do real: da mudez gestual do corpo (as três veladoras não se movem,
e também não se movimenta a morta no centro da cena) ao sonambulismo abissal
da linguagem, música que experimentamos como monótona canção de ninar e velar,
ladainha que desencadeia (n)o caos, dando-nos o gosto daquela epígrafe pascoaesiana:
“Mesmo depois de falecidos, queremos uma ama que nos embale, cantando o sono
eterno” (PASCOAES, T., 1993: 85). Tudo que n’O Marinheiro se expressa, resvala
na esfinge que habita a voz de velar, no oráculo de silêncio que dela ecoa. Se as
veladoras existem em sua função de velar o sonho, já que toda ação é vã, abre-se,
no tempo do velório, a perspectiva do jogo: façamo-nos lúcidos, jogando com a
linguagem o jogo sério das crianças, inflando e esmorecendo, a nosso bel prazer,
esta ausência constitutiva com que nos dizemos e nos buscamos, metalinguagem
aporética que assume um corpo sonoro e breve, uma fantasmagoria imagética, que
nos reverta de volta ao incessante ruído mudo que se move por tudo deste (nosso)
drama estático: a morte. Façamo-nos com a morte, façamos como a morte: cantemos
a opacidade da existência, fascinados e horrorizados com nosso corpo ainda vivo.
Ou seja: escrevamos a partir da morte.
A iniciação pela morte – como aponta também um outro poema avassalador
de Pessoa – Episódios / A múmia (PESSOA, F., 1998: 131) – inscreve no poema a
demanda ética e estética da sensibilidade do invisível, ou seja, faz do corpo poético
o lugar, por excelência, da linguagem, por reforçar, da linguagem, a sua conjugação
aporética de presença e ausência, simultaneamente. Se a linguagem é já espessura
sensível de seu vazio, o canto poético será, por sua vez, a ponte que intensifica o
seu abismo. O poeta, portanto, não tem como escapar de seu destino órfico. Como
no mito, só lhe cabe seguir cantando aquele ‘nada que é tudo’.
Inaugurando a revista cujo nome não podia ser outro que ORPHEU1, Pessoa
nos dá à leitura a anti-história de um múltiplo marinheiro nenhum, que só pôde
tornar-se imagem porque desde sempre fantasma e desejo, ou seja, sonho daquelas
veladoras que, como nós, desassogadamente sossegadas, cantamos e fiamos o
tempo, velando o futuro de nosso próprio cadáver. O que fazer, dentro e diante
deste nosso drama estático? Ora, cantar. Cantamos o sonho de um marinheiro
que sonhamos sonhar. Imaginemos, na tela invisível do visível da linguagem, este

1 Embora consideremos o aleatório do nome da revista, já que não há indícios textuais suficientes que nos
autorize a afirmar a sua extrema pertinência e adequação, esta nossa leitura d’O Marinheiro, como exercício
poético do negativo da escrita, abre-nos uma inevitável compreensão de que, sim, o nome não poderia ser
outro...
218 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz

nada que nos substancializa, essa materialidade do insondável que, somando-se


à nossa voz, projeta no tempo a nossa situação de espectadores de nossa própria
espera. Enquanto esperamos, cantemos, aquilo que o canto mais propriamente
pode suportar: os sonhos, os desejos do desejo. Aquilo que na ausência nos move,
movendo-se em nós: a sombra do velado, o negativo que a linguagem cava em sua
possessão despossuidora, cientes daquilo que dirá Deleuze: “A linguagem é ela própria
um duplo último que exprime todos os duplos, o maior simulacro” (DELEUZE, G.,
1996: 16). Na trama pessoana, além dos English Poems, notamos que, depois do
marinheiro sonhado sonhando, será, principalmente, Bernardo Soares, quem irá
passar todo um livro que não é livro a ensaiar respostas àquelas três veladoras de
Orpheu:

Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o


(distraidamente) confere mais apego ao nosso momento de sonhar. Fazer isto consciente,
muito conscientemente, da inutilidade e (...) de o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo,
perder-se da realidade com todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher
de areia vã os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher e despejar,
futilissimamente. Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar. Estagnar em
torpor todos os nossos pensamentos de acção. (...) Ver o Tempo pintar o mundo e achar o
quadro não só falso mas vão (PESSOA, F., 1982: 370).

Nesta ‘ética da inação sonhadora’ nos deparamos com uma das figuras mais
recorrentes da obra pessoana: a figura antiga (grega e medieval) do Destino enquanto
‘roda da Fortuna’, imageticamente representada por uma roda inexorável a girar,
independente da vontade e da ação humanas. Assim como, fatalmente, a noite sucede
ao dia, fatalmente nossa morte nos assiste. Existir consciente da vanidade da vida
pede, no exercício poético de Pessoa, que se consiga (pelo esforço ou pela resignação)
inverter esta lei natural, desconsiderando o apego às instâncias daquilo que se pode
ler como real (matéria, ação, vida desperta) e “desmanchando o Universo”, como
ensina Soares, fazer-se senhor do/no sonho.
Voltando ao artigo pessoano, se “a arte moderna é a arte do sonho”, podemos,
partindo desta premissa, investigar muitas coisas acerca da elasticidade e utilização
do próprio conceito de ‘moderno’. Por exemplo: na reação moderna ao moderno, que
o poeta propõe via sonho, haveria – diz-nos ele – três caminhos possíveis ao artista,
no que concerne à relação, na arte, entre SONHO E REAL: o primeiro seria, como ele
diz, “entregar-se ao mundo exterior, deixar-se absorver por ele, tomando dele a vida
oca e ruidosa (...)” (PESSOA, F., 1966: 156) – esta seria a via seguida por Nietzsche
e Whitman, entre outros; o segundo caminho deu-se com “pôr-se ao lado, (...), num
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 219

sonho todo individual, todo isolado, reagindo inerentemente e passivamente contra a


vida moderna, quer pela ânsia medieval, quer pela fuga para o longe no espaço (...)”
(ibidem) – casos em que cita, por exemplo, Poe e Verlaine; já o terceiro caminho, que
ele entende como “tão caracteristicamente português” (ibidem) e no qual inclui a si
mesmo, numa linhagem que começaria com Antero de Quental seguindo até “a nossa
recentíssima poesia” (ibidem), seria o caminho em que o poeta opera “metendo esse
ruidoso mundo, a natureza, tudo, dentro do próprio sonho – e fugindo da ‘Realidade’
nesse sonho” (ibidem).
Esta ‘terceira via’ de reação insere-se num caminho, portanto, pós-simbolista;
entretanto, vemo-lo ainda na sequência não só do Simbolismo como do Romantismo,
se temos em mente não o Romantismo como foi experimentado em sua versão mais
didática, preocupado em levantar das invocações geniosas toda uma nova mitologia
nacional, feita de híbridos passados imaginados e desejosos, num apelo missionário
do qual o Poeta, com P maiúsculo, se autoinvestia. Falamos daquele Romantismo
radical, febril, convulsivo, que abriu os primeiros rasgos modernos na reflexão sobre
a arte, dissolvendo a velha lógica das mimeses e representações e instaurando a (auto)
crítica no bojo da própria criação artística. Não, portanto, o romantismo da inflação
do eu, mas aquele do excesso que estoura, dissolve e suspende qualquer possibilidade
de identificação e separação entre sujeito e objeto, aquele romantismo que, fora
de lugar, aconteceu em Portugal com Teixeira de Pascoaes. Não falo do Pascoaes
saudosista. Falo do Pascoaes cuja obra toda se entrelaça compondo um excessivo e
inacabado – porque o excesso transborda seu próprio fim – romance da saudade, e
que tem como um dos pontos fulcrais e luminosos a obra O Pobre Tolo, cuja primeira
edição é de 1924, numa versão em prosa.
Pascoaes também se compromete, em toda a sua obra, a reagir à pretensa perda
de intensidade acarretada pelo excesso comercial e científico do ‘moderno’ tal como
experimentado por ele e muitos de sua geração. Já em 1914, com a publicação de
Verbo Escuro, ano em que Pascoaes assume a direção literária da revista A Águia,
lemos a gênese d’O Pobre Tolo de 1924. Diferentemente do que se costuma querer
ver, a referida obra de 1914 em muito pouco se coaduna com o messianismo
ideológico-cultural das páginas da revista em que o poeta assinava os editoriais. Há
no Verbo Escuro um primeiro rompimento – o estranho é ele ser concomitante com
o engajamento e o compromisso – de Pascoaes com o saudosismo mais ideológico e
uma aproximação mais vertical à poética da saudade, que já vinha sendo trabalhada
desde a sua primeira obra. Podemos dizer que é com este livro que Pascoaes entende a
sua poética, a saudade, enquanto verbo escuro, voz plasmando sombras, chamamentos
e saudações da ausência. Na abertura deste livro, no capítulo primeiro nomeado “O
Poeta”, ele diz, definindo o poeta em reação ao mundo moderno, definindo, portanto,
220 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz

o seu entendimento da função moderna do poeta diante do mundo moderno: “Poetas,


cantai os fantasmas; quero eu dizer – o que é eterno” (PASCOAES, T., 1999: 43)2.
Contra o enfraquecimento do sonho e da perda do mistério, Pascoaes tece, com
mais vigor a partir de Marânus, de 1911, esse seu duplo arquetípico, figuração do poeta
em toda sua cômica tragédia. N’O Pobre Tolo, a personagem principal que dá nome
ao livro compõe-se dos mais valiosos signos com que Pascoaes entende o poeta em
sua função demiúrgica de sagração agônica e fantasmagórica da vida: a simplicidade,
inocente e assombrada do tolo; a dor enquanto princípio de comunhão com as coisas
– mística melancolia; e o resultado dessas alianças: a compaixão com o não-lugar
dos sonhadores, estes pobres lunares, híbrido de homem e jumento, compaixão que
acarreta em compaixão generalizada: na noção de simpatia dolorosa, pacto que chega
até o leitor, o atravessa, e o coloca de volta, na intimidade ultrassensível do texto
pascoaesiano.
O ‘pobre tolo’, híbrido de homem e jerico, eternamente parado no meio da ponte
de São Gonçalo, em Amarante, revela, para Pascoaes, a figura do poeta, elogio do
vagabundo exilado, parvo absorto, sujeito-quase hipnotizado pela impossibilidade de
qualquer ação decisiva, que, tal como o marinheiro e suas veladoras, num mundo
cuja carnalidade se oferece como um carnaval de máscaras e esquecimento, encarna
também um drama estático. Para o sujeito tragicômico, inerente à cosmovisão poética
de Pascoaes, a vida se forma a partir de uma aguda luta entre sonho e real, luta que é
bailado duplamente eufórico e fúnebre, levando seu ator – o sujeito – a experimentar
a constância da dor, dor que, por sua vez, é matriz de toda a criação. Dor criativa:
negatividade que se faz motor. O sonho e assombração do real, n’O Pobre Tolo, dão-se
enquanto partilha terrível e sublime de uma simpatia dolorosa que parece brotar do
luto verbal (verbo escuro) da cruz que somos, composta de carne e verbo, irmanados
num giro sem conciliação:

Tudo é o sonho dum pobre tolo. E o pobre tolo é também um sonho, um sonho de Deus que
não encarnou inteiramente. Por isso, ele anda envolto numa auréola, e tem a leveza duma
nuvem...

2 E continua: “Fumo das fábricas, gritos de sirenes, velocidades – sois atitudes da Matéria, impostas pelo espírito
imitativo e simiesco (...). // Eu fui dado à luz elétrica deste século; o denso fumo industrial satura-me os
pulmões; o ruído mecânico faz sangrar os meus ouvidos – e eu não compreendo, não assimilo esta Vertigem,
que é de ferro! // Fumos das fábricas, gritos das sirenes, velocidades, qual a vossa entoação espiritual, o vosso
significado? Qual o sentido das palavras – Força, Vitória, Actividade, que modernos vates apregoam? Sois
ocas palavras de metal... a bruta matéria a tornar-se nublosa, a incompreender-se. / Hulha negra feita nuvem
de fumo. // Poetas, deixai cantar o vosso coração. A inteligência conhece a Liturgia, mas ignora a Divindade. //
Cantai os Fantasmas e os Anjos; cantai os obreiros da nova Redenção – os que trabalham, em névoa de alma,
o Relâmpago futuro. / Cantai o que não existe... O resto é cinza. (idem: 44)
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 221

Somos o sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos nossos limites
materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental e original que nos dá a
faculdade mitológica de idealizar todas as cousas.
(...)
A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que eles se perdem e
ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a realidade e o sonho, a Carne
e o Verbo.
(...)
E aí tendes um pobre tolo sentimental, uma caricatura elegíaca. (PASCOAES, T., 2000: 19-20)

Preso numa cruz formada pelo elo tragicômico de carne e verbo – substância e
ausência – o poeta-cantor elabora a sua musa que, com o passar das obras, vai
tornando-se mais e mais complexa: a SAUDADE. Musa-metáfora – arte poética – de um
amor lúgubre, a Saudade será o cais buscado por meio de um canto órfico-alquímico,
que se esboça com todo o fôlego, na sutileza do negativo, sutileza que complexifica,
refina e adensa:

A incerteza, a hesitação, o querer e não querer, o partir e ficar, o vaivém da sorte, como diz o
poeta, é a própria atividade universal cindida em duas forças contrárias que se neutralizam
mutuamente e se condensam, originando um ponto definido na imensidade indefinida, uma
luz acesa nas trevas, um grito no silêncio – a Criação! Tudo é lembrança e esperança: duas
forças contraditórias e hesitantes no seu ímpeto criador. Hesitam, equilibram-se, casam-se e
originam o Existente – uma autoescultura da Saudade. (PASCOAES, T., 2000: 21-22)

Ocasião poético-ontológica em que a ausência é transmutada numa outra forma de


si mesma, sutilizada como diriam os alquimistas (mais do que sublimada), por meio
do canto que, Pascoaes o sabia, faz-se num verbo escuro. A incerteza do real, composto
por uma carne que se faz verbo, e portanto, sonho, leva o sujeito à consciência de
sua fantasmagoria que, por sua vez, o impele à criação, à vontade de dar outras
formas à materialidade deslizante do visível. Elegia erótica sutilizando as rudezas da
matéria-viva que estarão sempre diante do aniquilamento e do esquecimento. É por
isto tudo que o tolo, nas palavras de Pascoaes,

é e não é; desperta e devaneia; foge não sabe para onde e, afinal, está sempre no mesmo sítio;
está ali, sentado numa pedra, mas o sonho não se desfaz absolutamente. Há horas em que
se torna mais intenso; pretende resistir, viver, e envolve a cabeça do tolo que se perturba e
magica além dos astros. (...) O tolo é desmaio, silêncio e um medo enorme ao seu fantasma,
tão destacado e vivo, diante dele! Sempre diante dele!
222 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz

– Quem és tu? – atreve-se a murmurar.


Mas a sombra não responde, porque a sombra é um pobre tolo que não existe, a imagem
negativa dum pobre tolo, figurada neste Azul de milagre que nos envolve e dá o mesmo
aspecto de realidade aos sonhos e aos penedos. (PASCOAES, T., 2000: 27)

Entre a inflação da voz potente e a mudez abobalhada, o sujeito é indecisão e


assombro, plasmado em sua encruzilhada cuja cruz dolorosa em si mesma se
faz mãe dos afetos que, para Pascoaes, são os mais intensos: beleza, comoção,
compaixão e a mesma dor. Tudo que o perpassa e o imaterializa, confere à sua efígie
uma grandiosidade fantasmagórica que, em si mesma, já é o modo de resistir ao
mundo ‘moderno’ empedernido pelo excesso de razão. Bernardo Soares também
dirá que “somos morte”: “O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na
nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela. (...) Povoamos sonhos, somos
sombras errando através de florestas impossíveis, em que as árvores são casas, costumes,
ideias, ideais e filosofias” (PESSOA, http://arquivopessoa.net/textos/4518).
Além dos acordes entrevistos entre o drama estático do Marinheiro e a estaticidade
tragicômica d’O Pobre Tolo, é forçoso percebermos que é na consciência da linguagem
que encontramos o posicionamento das diferenças entre eles. Se, com Pessoa,
somos levados ao apuro sombrio do epigrama, cuja concentração simbólica faz
de todo dizer um ato de silêncio sepulcral, com Pascoaes, pelo avesso, entramos no
ritmo das incansáveis (e por vezes, cansativas) repetições, dos excessos, da difusão
oscilante das metáforas que insistem em retornar, num esforço de nomeação das
coisas, que, dolorosamente caindo em seu próprio luto, só sabem resistir na epifania
também sombria que é a Saudade. No entanto, se podemos dizer que com Pessoa,
n’O Marinheiro, somos conduzidos ironicamente (ironia que não resolve a tensão) à
mudez, ao vão da palavra, não será menos correto dizer, de Pascoaes, que, depois de
páginas e páginas de grito, lamentação, louvação, acordamos também na antemanhã
do silêncio, o mesmo cais-nenhum, apenas sonora travessia: duas ausências – ou
viagens pelo negativo da escrita – em cada um deles. Do vozerio espectral que
assombra o pobre tolo, levando-o ao exílio da língua, diz ainda Pascoaes:

É um fantasma, só memória. Anda descalço e em cabelo; e por isso é tolo e meio poeta.
Põe-se a evocar o Passado; e esta evocação é uma névoa que lhe transtorna o juízo e escurece
as cousas que se ilimitam e aumentam de tamanho, como aparições prodigiosas. (...) Vive no
meio de vozes que lhe falam, mas não as compreende. São confusas, distantes: – uma nuvem
musical que se condensa em lágrimas espectrais; uma nuvem que o absorve por completo e
onde ele boia, abstrato e doloroso – tão abstrato que não é ninguém! tão doloroso e sensível
que é todas as almas deste mundo e do Outro Mundo!
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 223

(...) Os monstros não largam o pobre tolo, a debater-se, aflito, entre um rochedo e uma
nuvem, o que existe e não vive e o que vive mas não existe.
(...) O pobre triste não dorme; sonha. Sonha de dia e tem a ilusão da realidade; e tem, de
noite, sonhando, a realidade da ilusão. Possui, em alto grau, estes dois sentidos da Realidade,
como todos os malucos que avistam as duas faces da medalha. É que ele existe e vive. E existe
de tal modo, que penetra na própria substância dos rochedos. (PASCOAES, T., 2000: 50-52)

Para além da insistência do vazio e sua inquietude, para qual ambas as obras nos
levam, cumpre ressaltar que, apesar do sim da saudade, o resultado final não é de
todo afirmativo, já que, como o dissemos, o corpo deste sim, desta afirmatividade
que a Saudade encarna, é a própria ausência. Não se trata, reiteramos, da conclusão
satisfeita numa identidade ou unidade salvífica localizada numa origem ou num
além-morte. Pascoaes o sabe: a saudade pode mostrar-se um inteligentíssimo
xeque-mate às intrínsecas ameaças de finitude, mas de maneira alguma conclui o
jogo. Ele o sabe porque a saudade só é enquanto se canta, na ponte do poema, no
corpo desse doloroso verbo escuro, voz em gangorra que, assim como conquista e
celebra, perde e põe a perder, novamente, o já sempre perdido. Em São Paulo, por
exemplo, biografia escrita em 1934, Pascoaes escreve: “Ninguém atinge a meta na
corrida. Não há destinos concluídos. O acabado é quimera. Há esboços” (PASCOAES,
T., 2002: 236). Experiência poético-ontológica que o crítico M. Blanchot, em seu texto
“O pensamento trágico”, assim apresenta:

Onde tudo é indeciso só se pode viver num desvio perpétuo, pois ater-se a uma coisa suporia
que há algo de determinado a que se ater, suporia portanto uma separação nítida de sombra
e de claridade, de sentido e de não-sentido e, por fim, de felicidade e de infelicidade, mas
como um é sempre o outro e o sabemos, mas numa espécie de ignorância que nos dissuade
sem nos esclarecer, não buscamos senão preservar a incerteza e obedecer-lhe, inconstantes
por uma falta de constância inerente às próprias coisas, não nos apoiando em nada porque
não há apoio em nada, e essa ligeireza responde à verdade de nossa existência ambígua que
é rica apenas de sua ambiguidade, a qual cessaria tão logo quisesse realizar-se: ela nunca é
mais do que possível (BLANCHOT, M., 2007: 28)

O crítico de arte francês Didi-Huberman em “O evitamento do vazio: crença


ou tautologia” (1998: 37), falando sobre a inelutável cisão do ver apresenta-nos
uma ‘situação exemplar’ em que somos olhados velo vazio. É, diz ele, “a situação de
quem se acha face a face com um túmulo, diante dele, pondo sobre ele os olhos”
(DIDI-HUBERMAN, G., 1998: 37). Sabemos que as veladoras d’O Marinheiro cantam
nesta situação acima, mas nos parece interessante perguntar se, também a imobilidade
224 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz

física do pobre tolo sobre a ponte, olhando a natureza em toda sua diversidade, plasmado
ali como um ‘túmulo de pé’, não seria melhor compreendida se abarcando esse reverso do
vazio que vê a personagem, absorta nessa inelutável cisão do ver... Como se ele, parado,
olhando a paisagem movente, olhasse para um imenso volume do vazio, vazio que lhe
devolve o olhar, movendo-o assim (o sujeito) ao ‘trabalho’ do sentido inelutável da perda:
o poema. Este arfar-entre, este jogo do visível/invisível, é o ritmo que Pascoaes labora
para impregnar, em texto, o sentido pleno da ausência que ele chamou de Saudade. A
saudade acaba por ser (ou querer ser) esta forma hesitante, em que não apenas se evita o
vazio, a dominação do vazio, a negação; como que, muito habilmente, fá-lo evitando o
pleno, a verdade do sentido, o apaziguamento. Nas palavras de Didi-Huberman:

(...) diante de um túmulo, a experiência torna-se mais monolítica, e nossas imagens são mais
diretamente coagidas ao que o túmulo quer dizer, isto é, ao que o túmulo encerra. Eis por que
o túmulo, quando o vejo, me olha até o âmago – e nesse ponto, aliás, ele vem perturbar minha
capacidade de vê-lo simplesmente, serenamente – na medida mesma em que me mostra que
perdi esse corpo que ele recolhe em seu fundo. Ele me olha também, é claro, porque impõe
em mim a imagem impossível de ver daquilo que me fará o igual e semelhante desse corpo
em meu próprio destino futuro de corpo que em breve se esvaziará, jazerá e desaparecerá
num volume mais ou menos parecido. Assim, diante da tumba, eu mesmo tombo, caio na
angústia – a saber, esse ‘modo fundamental do sentimento de toda situação’, essa ‘revelação
privilegiada do ser-aí’, de que falava Heidegger... É a angústia de olhar o fundo – o lugar – do
que me olha, angústia de ser lançado à questão de saber (na verdade, de não saber) o que
vem a ser meu próprio corpo, entre sua capacidade de fazer o volume e sua capacidade de se
oferecer ao vazio, de se abrir. (DIDI-HUBERMAN, G., 1998: 38)

Nomear é ausentar-se, ou retomando a epígrafe de Silvina R. Lopes, “toda literatura


é elegíaca” (LOPES, S. R., 2012: 11). Desta arte de prestidigitação negativa, faz-se a
mágica dos desaparecimentos, acentua-se a composição de ausência das coisas.
É neste sentido que lemos o negativo da escrita, nos dois textos comentados aqui.
Escrevendo, Pascoaes e Pessoa, sobre a escrita em si mesma – a escrita enquanto
agenciamento de um mundo – os autores devassam as entranhas deste ato/gesto que
está no escrever: a morte, a indecisão, o inelutável, o suspenso, as reticências... e assim
experimentam o reverso desta ‘queda’: a aposta no sonho. Da autópsia do texto no
texto, do negativo da escrita, por meio de suas figuras arquetípicas principais – o ‘pobre
tolo’ e o ‘marinheiro’ – chega-se a uma positivação da própria escrita (faz da ausência
um esplendor fulgurante), que não significa salvação durável, mas sim, resistência. E
resistência convidativa, aberta, que, como diz R. Lopes, tem como função suscitar em
nós, leitores, a nossa, coletiva, ‘estranheza em-comum’:
O negativo da escrita: o marinheiro e o pobre tolo, entre sonho e real 225

No desfazer de estereótipos ou fórmulas fixas, o dirigir-se ao outro põe em movimento


uma memória transindividual, um pensamento que se ergue sobre o ‘luto originário’, o
de tudo ter desde sempre desaparecido na palavra que o nomeou. Como efeito singular
do que neles, sobre-vivendo, é material e imaterial inseparavelmente, os textos e poemas
são espaços de vacilação – aproximação e afastamento, realização e expectativa. Voltada
para o resgate de um tempo perdido, que nunca esteve presente, toda a literatura é
elegíaca, independentemente dos seus temas e estilos. Nesse movimento, porém, ela
faz-se afirmação: em qualquer obra literária – visionária, elíptica, orientada para o
conhecimento, para o humor ou para o trágico – sobra sempre o que a torna incompleta,
uma intensidade que lhe desfaz os limites e a expõe como apresentação impossível do
infinito (LOPES, S. R., 2012: 12).

Se, como vaticinou Pessoa, “o maior poeta da época moderna será o que tiver mais
capacidade de sonho”, além de uma galáxia toda de exímios sonhadores de nossa frugal
fragilidade e hesitação, podemos, sem dúvidas, saber ler que o par Pascoaes-Pessoa nos
revela um dueto cuja força nos legou uma das mais excitantes constelações literárias
do negativo. O negativo como poder sonhador, a voz que move, não montanhas, mas
fantasmas de montanhas, vastidões de vácuos, uma plenitude que, para sorte nossa,
não nos deixa ceder ao tédio, à movimentação anestesiante e histérica de um mundo
que, como o deles, segue demandando que saibamos responder a ele, cantando com
nossa voz a centelha de Orfeu cuja cabeça, depois de morto, rolando por um rio, seguiu
chamando na morte a sua amada morta, resistindo ao esquecimento.
A Saudade não será, portanto, cais nenhum que receber qualquer marinheiro
desejado ou seus despojos. Pascoaes o dirá: “O tolo é um mar e boia em pleno mar”
(PASCOAES, T., 2000: 58). É apenas, durante a viagem, enquanto se boia, aquela
paisagem abstrata e infinita, entranhada e comovente, que se faz poema, num esforço
da voz em sustentá-la, esforço, lembramos, trágico e cômico, tragicômico, cuja figura
por excelência é a do pobre tolo. Pascoaes o sabia e o disse ao longo de todo o seu
romance da saudade: o canto é poderoso porque é frágil.
Pascoaes e Pessoa, em diferentes graus, são ambos viajantes de um mundo cuja
representação libertou-se de suas margens, sonhadores de um devir em deriva,
escrevendo o negativo de qualquer conquista, em intimidade ardente com o que
hoje se faz legado nosso: o desejo de seguir resistindo, pela poesia, na poesia, a toda
ameaça de menos sonho, menos loucura, menos intensidade. A poesia como frágil
desejo de antídoto da banalidade. Tudo para que, seguindo o mote pascoaesiano, “a
raça dos tolos não se extinga, nesse mundo do Bom Senso e da Razão” (PASCOAES,
T., 2000: 22), para que, ardentes, sigamos, resistentes e resilientes, bailando contra toda
força normativa e banalizadora, resistindo ao cadáver nosso, convidando o perder e
226 100 Orpheu Roberta A. P. de F. Ferraz

o morrer à nossa boca de leitores insaciáveis num mundo muitas vezes entristecido
pela saciedade banal de todos os dias. E fechamos, convocando os pobres tolos, com
Pascoaes:

O tolo arde, embriaga-se de fumo e canta como os pássaros noturnos. Põe-se a cantar, e
aparece-lhe a morte. Dança e vê, junto dos pés, a boca aberta dum sepulcro. E canta e dança
em volta dum sepulcro: uma dança de velhos ritos funerários. O pobre tolo já morreu. Esta
figura em que ele se mostra, à luz do sol, é feita duma substância espectral e fabulosa: uma
sombra, orelhuda e lanzuda, que ergue as mãos e põe os ouvidos em íntima comunicação
com as estrelas. Ergue as mãos, canta e dança embriagado, e deita fumo pela boca. E fuma, e
fumega, e torna a fumegar. Esconde-se num eclipse total (...) E o pobre tolo dança, em volta
do seu túmulo, com a sombra da sua infância (PASCOAES, T., 2000: 122)

Bibliografia

Bibliografia Ativa
PASCOAES, Teixeira de (2000). O pobre tolo. Lisboa: Assírio & Alvim.
PASCOAES, Teixeira de (1993). O Homem Universal. Lisboa: Assírio & Alvim.
PASCOAES, Teixeira de (2002). São Paulo. Lisboa: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (1992). Livro do Desassossego (Recolha e transcrição dos
textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização
de Jacinto do Prado Coelho). Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1998). Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PESSOA, Fernando (1966). Páginas de Estética e Teoria Literária. Org. Jacinto do
Prado Coelho. Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando (1968). Textos Filosóficos – Vol. I (Estabelecidos e prefaciados
por António de Pina Coelho). Lisboa: Ática.
PESSOA, Fernando. http://arquivopessoa.net/textos/4518 (09/02/2011)

Bibliografia Passiva
BLANCHOT, Maurice (2007). A conversa infinita – a experiência limite. São Paulo:
Escuta.
DELEUZE, Gilles (1996). O mistério de Ariana. Lisboa: Vega.
DIDI-HUBERMAN, G. (1998). O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34.
LOPES, Silvina Rodrigues (2012). A estranheza-em-comum. São Paulo: Lumme
Editor.
Antecedentes do microconto em Portugal:
Almada Negreiros e os seus Frizos1 2

Ana Sofia Marques Viana Ferreira


Universidad de Salamanca

Palavras-chave: Microconto; Almada Negreiros; Frizos; Modernismo; Hibridação genérica.


Resumo: O recente aparato crítico que ladeia a escrita do microconto vem demonstrando a
sua representatividade como discurso que plasma o modo de estar e pensar do ser humano
de hoje, imerso nas ditas sociedades urbanas e que se circunscreve sob a efígie do conceito
de posmodernidade. Apesar deste muito novo interesse para os estudos literários, esta forma
literária encontra, segundo diversos autores, as suas primeiras manifestações mais importantes
nas primeiras décadas do século XX. A sua natureza lacónica, proteica, veloz e híbrida permite
fagocitar e entrar em diálogo com discursos de outros âmbitos, proporcionando ao mesmo
tempo recuperar e parodiar textos que de algum modo perseveram na memória histórica de
um coletivo tendencialmente universalizante.
Será nosso objetivo analisar Frizos, de Almada Negreiros, à luz das características vigentes na
poética da brevidade por ele proposta, e ver de que modo esta obra se coaduna com o que é
hoje é denominado por microconto.

O presente estudo, tal como o respetivo título sugere, pretende conduzir-nos


a um objetivo primordial: fazer aproximar e convergir duas entidades referenciais
num mesmo segmento sintático como é o microconto e a obra Os Frizos de Almada
Negreiros. Em concreto, queremos aqui patentear, tal como Henrique Manuel Bento
Fialho formulou na Primeira Antologia de Micro-ficção Portuguesa (Exodus, 2008),
como a participação de Almada Negreiros no primeiro número da Revista Orpheu
pôde constituir um dos primeiros precedentes do que mais tarde veio a considerar-se
um discurso literário emergente – mas não totalmente inédito– dentro do panorama
literário português e que é o microconto. E agora que o fenómeno da narrativa
hiperbreve demonstra ganhar um crescente interesse por parte da comunidade leitora
e das entidades autorais e críticas, urge ainda mais estabelecer pontes com o passado

1 Respeitar-se-á, sempre e quando se proceda à citação direta da obra de Almada Negreiros em questão, a grafia
usada na 2ª edição publicada pelas Edições Ática (Lisboa, 1971).
2 Os resultados deste trabalho são fruto do financiamento do Programa de FPU do Ministerio de Educación,
Cultura y Deporte do Governo de Espanha.
228 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira

e perscrutar o fenómeno dentro das balizas que delimitam o modernismo português


e entendê-lo como o ponto de germinação mais direto do microconto em Portugal, e
colocá-lo a par e em sincronia dos principais focos literários europeus.
A inclassificabilidade ou a falta de resguardo terminológico que se adapte e cubra
algumas obras experimentais como as que saíram das vanguardas das primeiras
décadas do século XX deve ser encarada, a nosso entender, como oportunidades de
questionamento, flexibilização e renovação das proposições oferecidas pela rigidez de
qualquer sistema teórico. É a partir desta base – e da discutível pertença da maioria
dos textos que conformam os Frizos no âmbito do conto ou do poema em prosa –
que propomos a consideração dos mesmos como prenúncios de uma das tendências
figurativas da narrativa contemporânea e que se materializa em autores como Pedro
Paixão, Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz, Rui Manuel Amaral, Luís Ene, José Mário
Silva, Paulo Kellerman ou Joana Bértholo.
Para tal, iniciaremos esta nossa análise através de um primeiro exercício que defina
o território conceptual do microconto, recorrendo a três definições dadas por três
especialistas, de diferentes tradições literárias e âmbitos linguísticos, da categoria
textual em questão:

The short-short is clearly a subgenre of the short story, but there are notable distinctions,
mostly of degree.
[…] Because of its miniaturist commitment, the short-short form is not notable for bold
actions, even though something always happens; the short-short fiction tends to be a story
of manners, of key moments in the relationship of two protagonists, the vehicle for modern
myth, fable, or excursions into horror. (HALL, J. B., 1986: 234)

Lo que aquí llamo cuento ultracorto, como ya señalé, tiene una extensión que no rebasa las
doscientas palabras. […]
En el estudio de estos minicuentos es necesario considerar, además de la brevedad extrema,
los siguientes elementos característicos:
a) Diversas estrategias de intertextualidad (hibridación genérica, silepsis, alusión, citación
y parodia)
b) Diversas clases de metaficción (en el plano narrativo: construcción en abismo, metalepsis,
diálogo con el lector) (en el plano lingüístico: juegos de lenguaje como lipogramas,
tautogramas o repeticiones lúdicas)
c) Diversas clases de ambigüedad semántica (final sorpresivo o enigmático)
d) Diversas formas de humor (intertextual) y de ironía (necesariamente inestable).
(ZAVALA, L., 2004: 98-99)
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 229

Miniconto é um tipo de conto muito pequeno, digamos que com no máximo uma página,
ou um parágrafo. Alguns dizem que ele é o primo mais novo do poema em prosa, outros
apontam as fábulas chinesas como origem, de certo é que desde meados do século XX o
conto tem experimentado – com sucesso – formas extremamente breves a partir de textos
de gente como Cortázar, Borges, Kafka, Arreola, Monterroso e Trevisan. (SPALDING, M.,
2007: 1)

Aliado a este novo conceito que detém uma vasta terminologia a ele associada e
que, insistimos, não é um fenómeno totalmente estranho e desgarrado da poética
da brevidade na História da Literatura, há uma série de características e tendências
que se reiteram em ser-lhe atribuídas: falamos da presença dos elementos que
conformam uma narração (tempo, espaço, personagens, narrador e ação), da
extensão hiperbreve – que não deve ultrapassar uma página impressa3 (no caso
da publicação em papel) –, do recurso à elipse, à unidade de efeito e à velocidade
no desenlace narrativo, da presença de ambiguidade semântica e de uma alta
capacidade de sugestão, do encadeamento de processos de hibridação e incorporação
de elementos pertencentes a outros domínios literários e extraliterários, da fácil
propensão a jogos intertextuais, da incorporação de estratégias que cabem dentro de
uma estética da provocação como é a ironia, a paródia e a ruptura das expectativas
leitoras.
A questão da classificação quanto ao género literário a que pertence a obra Frizos
tem sido levantada várias vezes, pelo seu carácter heterogéneo:

Quando apareceu nas páginas de Orpheu, Frisos não trazia qualquer subtítulo que indicasse
o género do texto e, do subtítulo que o acompanha, só podemos colher o facto de o autor
se considerar um «desenhador», antes de um escritor. Na mesma época, porém, Fernando
Pessoa refere-se a Frisos como uma série de «contos» e, nos anos seguintes, a crítica tem
empregado várias classificações para descrever este conjunto de pequenos textos em prosa.
Em 1970 e em 1985, vemo-los incluídos no volume de «Poesia» das Obras Completas de
Almada Negreiros e, em outros lugares, são considerados como poemetos, poemas em
prosa, parábolas, prosas poéticas ou prosas.
(SAPEGA, E. W., 1992: 18)

3 Não é casualidade o facto de, entre a vastíssima terminologia aplicada a este conceito no âmbito anglo-saxónico e
hispânico, existirem termos como sudden fiction, flash fiction, ficción súbita ou cuento instantáneo: constituem,
eles mesmos, chamadas de atenção para o carácter extremamente sucinto destes textos, cujo conteúdo total,
em termos idílicos, deve ser captado de modo instantâneo.
230 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira

O próprio prólogo da 2ª reedição, que serve como aproximação introdutiva


ao movimento e ao contexto de surgimento da revista Orpheu, assim o expressa:
“«Frisos» engloba uma série de poemetos formando pequenos esboços, de desenho e
musicalidade fantasistas” (GALHOZ, M. A. D., 1971: XLVI). Sem o intuito de querer dar
mais complexidade a esta matéria, abonamos pela ideia de que um número significativo
dos textos que habitam Frizos coincidem e participam na concepção de microconto. O
primeiro indicador desse mesmo facto é a presença de narratividade que, embora não
constitua a marca mais saliente em textos como “A Sombra” (1971: 75) ou “Canção”
(1971: 81), é uma das propriedades unificadoras desta obra, que podemos reconhecer
através da existência de um número restrito de personagens – em quase todos os
textos há um casal –, dentro de um espaço e um tempo delimitados, que cometem
ou estão implicados na realização de uma ou mais ações contadas por um narrador
heterodiegético. O primeiro texto, “Ciúmes” (1971: 71-72), descreve, em pouco mais
de uma página, uma cena bucólica em que Pierrot repousa junto a um lago ao
entardecer. Durante a sesta, surge uma andorinha que interrompe o sono de Pierrot
e que tenta interagir com ele e seduzi-lo. Quando esta foge, o leitor apercebe-se da
presença de um interveniente humano feminino – Colombina –, que não só fazia nesse
momento companhia a Pierrot, como também é, tal como a tradição da Commedia
dell’Arte instaurou, o par dessa mesma personagem. Quando Pierrot – encarnação da
personagem ingénua e cândida – atribui importância ao episódio com a andorinha e
transmite o relato do que acaba de suceder entre ele e a ave, Colombina sofre de ciúmes
hiperbólicos e morre. Graças à comparência destes elementos, é-nos possível edificar
uma história e atribuir-lhe um estatuto narrativo que, a nosso ver, se destaca sobre outros
planos existentes, como o poético e o descritivo.
A segunda característica que marca o tom destes textos é a brevidade. O texto
mais reduzido é “A Sombra”, que contém 88 palavras e o mais extenso “Mima Fataxa”,
com 396 palavras. Em termos de composição tipográfica, o maior texto aqui incluído
prolonga-se apenas por quase página e meia, o que incita ao leitor a dar-lhes a estas
pequenas obras uma etiqueta que fuja, nem que seja por uma questão de grau4, dos
paradigmas de um conto convencional. Mas mais do que falar em brevidade, a concisão,
a capacidade elíptica e a carga simbólica que adquirem (esta última característica
associada às convenções estéticas seguidas por Almada neste primeiro período da sua
criação poética) proporcionam o efeito de profundidade dissimulada que tão bem

4 Não sendo nosso objetivo expor e desenvolver as atuais discussões sobre a catalogação do microconto no sistema
literário, queremos apenas fazer menção a teóricos do microconto, como David Roas, que consideram este
discurso literário uma variante do conto, o que faz com que as suas diferenças com respeito a este último sejam
medidos pela magnitude das propriedades que se costumam outorgar ao conto literário (ROAS, D., 2010: 9-42).
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 231

Hemingway esquematizou com a sua teoria do iceberg, aplicada ao conto literário5.


Ilustraremos este mesmo aspecto, aludindo ao segundo texto que compõe (por ordem
de aparição) Frizos:

O Echo
Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!
Talvez que fosse á caça; quer fazer surprezas com alguma côrça branca lá da floresta.
Era p’lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Teve mêdo: mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E uma voz de mulher tambem,
tambem chamou Adão.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma!
E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe.
– Outra que não Ella chamára também por Elle. (NEGREIROS, A., 1971: 72)

Como é percetível, este texto começa com a apropriação da voz de uma das
personagens, Eva, fazendo com que o aparente vazio de omnisciência com respeito à
ação narrada produza um efeito de inquietação no leitor. O laconismo, expresso em
frases muito curtas e na enunciação concisa das ações das personagens intensificam
a aura de mistério. Do mesmo modo, a utilização de personagens do imaginário
coletivo, como Adão e Eva (e nos textos “Ciúmes” e “A Sésta”, das personagens
Colombina e Pierrot da Commedia dell’Arte italiana), permite ao narrador poupar
descrições e contextualizações, confiando nos conhecimentos prévios do leitor e
propiciando o foco na ação. Em nenhum momento, o corpo da narrativa faz menção
explícita ao eco, mas sim à voz de uma outra mulher, jogando, através do discurso
indireto livre, com a ingenuidade da personagem feminina. Se não fosse pelo título,
o leitor poderia inferir que estaríamos perante um texto de reescrita subversiva de
uma obra canónica, procedimento recorrente no microconto contemporâneo.
Este é apenas um exemplo de que a escolha tanto do título de cada texto
hiperbreve como da própria obra não é gratuita. Por um lado, Frizos, remete-nos
para a natureza transferível e total que uma obra literária pode adquirir, o que já
de si mostra como Almada Negreiros foi na sua época um visionário, sabendo
aproveitar as propriedades pictóricas de artes visuais e traduzi-las para o âmbito

5 Para um aprofundamento do tema, sugere-se a consulta de ZAVALA, Lauro (ed.) (1996). «Ernest Hemingway.
El principio del iceberg». Teorías del cuento III. Poéticas de la Brevedad. México D.F.: Universidad Nacional
Autónoma de México, pp. 19-26.
232 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira

literário, conferindo-lhe à sua obra uma essência ainda mais híbrida. Tal como
Graça Videira Lopes expõe:

O que Almada faz, pois, nas pequenas narrativas experimentais de “Frisos” é uma inversão
dos termos: ao contrário da prática tradicional, onde a pintura (nomeadamente a histórica
e figurativa) parte de uma narrativa e lhe serve de ilustração, nesta sequência de “Frisos” são
as narrativas literárias que glosam poeticamente imagens visuais, ou que as “ilustram” (se
tal verbo pudesse ter algum sentido aqui). (LOPES, G. V., 2005: 4-5)

Esse efeito é visível através da perceção de que a ação de cada texto se move
maioritariamente de uma forma unidirecional e sequencial, dando a sensação de
observação contemplativa por parte do narrador. Por outra parte, a maior parte dos
títulos que compõem Frizos, “Ciúmes” (1971: 71-72), “O Echo” (1971: 72), “Sèvres
Partido” (1971: 72-73), “Mima Fataxa” (1971: 73-75), “A Sombra” (1971: 75-76), “A
Sésta” (1971: 75-76), “Ruínas” (1971: 77-78), “Primavera” (1971: 78-79), “Trevas”
(1971: 79-80), “Canção” (1971: 81), “A Taça de Chá” (1971: 82) não só funcionam
nalguns dos casos como a chave para decifrar o significado e a mensagem primordiais,
como também poderiam muito bem, pela eleição de sintagmas nominais breves,
ser títulos de pinturas ou esboços, ideia que o próprio autor faz questão de recalcar
quando assina e faz corresponder a sua obra ao “desenhador José Almada Negreiros”.
Ora, também os microcontos tendem a delegar protagonismo e relevância ao título,
tal e como o afirma Irene Andres-Suárez:

[...] la importancia del título – elemento clave que guarda una relación dialéctica con el
texto, orienta la lectura y subraya los elementos significativos que conviene tener en
cuenta –, y también del inicio y del cierre (abundan los finales sorpresivos y/o enigmáticos).
(ANDRES-SUÁREZ, I., 2012: 24)

A carga simbólica em textos como “Trevas” (1971: 79-80) assume dimensões muito
significativas, quando conceitos e imagens como “punhaes”, “pinheiros esgalgados”,
“lençoes de linho”, “azas brancas de garças caídas por faunos caçadores” e “Noite”
concorrem na obtenção e sugestão de uma atmosfera tenebrosa e de sobressalto. Este texto,
embora reconheçamos que o valor descritivo constranja a força e velocidades narrativas,
é pertinente para entender como uma unidade de efeito consistente pode fazer alterar
as expectativas leitoras, processo também ele muito frequente nos microcontos. A ideia
principal que é veiculada em “Trevas” é a de que o narrador se encontra num espaço que
se assemelha a um cenário de história de terror: “De dia não se via nada, mas p’la tardinha
já se apercebia gente que vinha de punhaes na mão, devagar, silenciosamente, nascendo
Antecedentes do microconto em Portugal: Almada Negreiros e os seus Frizos 233

dos pinheiros e morrendo nelles” (1971: 79). As metáforas e imagens sucedem-se de


forma insistente, capacitando o texto de uma forte componente visual:

A lua é uma laranja d’oiro num prato azul do Egypto com pérolas desirmanadas. E as
silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na briza eram um bailado de estatuas de sonho
em vitraes azues. Mãos ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se. (1971: 80)

A linha de tensão permanece consistente até à última linha do texto, ouvindo-se


“surdinas de gritos distantes”, e aparecendo em cena bruxas que gritam ladainhas de
Morte. Só alcançando a derradeira frase é que o leitor se apercebe da condição onírica
interna ao texto, quando se revela que chegando a manhã, tudo havia desaparecido.
Semelhante estrutura tem “A Taça de Chá”, último texto de Almada a figurar no
primeiro número da revista Orpheu, e que insiste na representação de um episódio
funesto e no efeito surpreendente que a última frase pode desencadear. Começado in
medias res e ambientado em cenários orientais, estampa-se uma vez mais a temática
amorosa, através da representação de uma personagem masculina que está a ponto de
sucumbir e que se faz acompanhar de uma gueisha, seu par. Em modo de despedida,
ele pede-lhe que cumpra uma promessa: “Chorar não é remedio; só te peço que não
me atraiçoes emquanto o meu corpo for quente” (1971: 82). Após a morte deste, elide-se
o que se passou durante o resto da noite, descrevendo-se o que os vizinhos vêem de
manhã, quando vão ao seu encontro: “a gueisha abanando o morto com um leque de
marfim” (1971: 82). Se o tom desta expressão roça o burlesco e toca o nível do jocoso,
a última frase pode ainda chegar a ser mais demolidora: “A estampa do pires é igual”,
desterrando o leitor de todo o contexto que havia formulado anteriormente: não se
trata de uma narrativa convencional, mas sim da descrição e narração das figuras que
compõem uma taça de chá. Desta forma, uma vez mais estamos diante de um texto
que, à luz da estética do microconto, obedece a alguns parâmetros como a brevidade
(103 palavras) e condensação, ausência de complexidade estrutural, contundência,
ausência de traços descritivos das personagens, esquematismo espacial e temporal, o
começo in medias res e a presença de um final surpreendente e impactante.
Concluindo, quisemos expor nesta análise a aproximação que pode ter Frizos a
um conceito que cada vez mais suscita curiosidade pelo espaço literário atual e que
começa a dar sinais de alguma reivindicação dentro do território lusófono, sobretudo
no Brasil. No entanto, tal como para entender qualquer outro fenómeno literário
contemporâneo, exige-se traçar umas coordenadas históricas que dêem conta da sua
origem e evolução. No caso português, tal como no espanhol e latino-americano,
queremos acreditar que os movimentos de vanguarda foram contundentes para a
conformação do gosto, visibilidade e reativação da poética da brevidade aqui exposta.
234 100 Orpheu Ana Sofia Marques Viana Ferreira

Em particular, se nos atendemos às especificidades da obra de Almada Negreiros


presente no primeiro número de Orpheu e que frequentemente é tida como uma obra
menor, acreditamos que a sua génese e natureza deteve também um importante impacto
sobretudo para as obras saídas de movimentos e formas de expressão experimentais,
como o Surrealismo (basta pensarmos em nomes como Mário Henrique-Leiria
ou Ana Hatherly) e repercutindo-se ainda nos dias de hoje, inculcando no sistema
literário português, novos âmbitos, novos desafios, novas propostas.

Bibliografia

Bibliografia Activa
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A palavra em exílio
Orpheu e o desejo de comunidade

Ettore Finazzi-Agrò
Sapienza Universidade de Roma

Palavras-chave: Orpheu; Exílio; Comunidade; Pessoa; Sá-Carneiro


Resumo: A análise do programa ideológico, inscrito logo na “introducção” de Luís de
Montalvor ao primeiro número da revista, ajuda-nos a entender com clareza o confuso desejo
de evasão e eversão dos cânones que tem acompanhado, ao longo dos anos, a Geração de
Orpheu, mostrando, ao mesmo tempo, a razão pela qual alguns dos membros do grupo não
conseguiram sustentar até ao fim o peso duma existência (e duma escrita) sempre “exceptuada”.
Vão ser considerados, nessa perspectiva, não apenas o significativo aparecimento, em 1916, da
revista Exílio, mas sobretudo a frequência e o modo parcialmente disforme com que os poetas de
Orpheu se valeram do termo “exílio”, com particular atenção aos casos de Pessoa e Sá-Carneiro.

Vamos começar onde tudo acaba; vamos começar pelo estabelecimento duma
identidade plural: “Nós, os de Orpheu”. Uma afirmação peremptória da qual
descende uma pergunta que poderíamos formular assim: de que modo e seguindo
quais caminhos é que um conjunto bastante heterogéneo de artistas chegou a
identificar-se numa comunidade, num sujeito coletivo? A assunção de um “nós”,
mais do que um cimento estético efetivo ou uma reivindicação geracional, parece,
com efeito, a suposição de uma identidade compartilhada que sobrevive no tempo
e ao tempo, apesar do desaparecimento súbito de alguns, do afastamento de outros,
da dispersão que corroeu as relações pessoais, da deriva anti-moderna que arrastou
vários membros do grupo originário para fora do projeto de renovação estética e
ideológica que estava na base do programa inicial.
O programa inicial, justamente. Mas como circunscrever e compreender o que
se encontrava e, ao mesmo tempo, se escondia na fundação do grupo de Orpheu e
que, cruzando práticas artísticas diversas e escolhas poéticas às vezes incompatíveis,
desembocou numa identidade coletiva? A resposta talvez possa ser procurada
no breve texto assinado por Luís de Montalvor que funciona como introdução ao
primeiro número duma revista que se furta ao padrão das revistas ou de qualquer tipo
de publicação periódica. Lemos, de facto, no incipit:
238 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò

O que é propriamente revista em sua essencia de vida e quotidiano, deixa-o de ser ORPHEU,


para melhor se engalanar do seu título e propor-se. 1

Temos, desde logo, uma opção que não consiste apenas numa recusa dos modelos
anteriores, mas que se manifesta através duma escolha estilística peculiar. De facto, o
andamento aparentemente anómico, irregular e antigramatical do discurso procura
manifestar, de imediato, uma diferença irredutível sobre a qual construir um novo e
extravagante modelo discursivo.
E esse vagar fora das normas consolidadas é, com efeito, imediatamente confirmado
no período seguinte:

E propondo-se, vincula o direito de em primeiro lugar se desassemelhar de outros meios,


maneiras de formas de realisar arte, tendo por notavel nosso volume de Beleza não ser
incaracteristico ou fragmentado, como literarias que são essas duas formas de fazer revista
ou jornal.2

Como se vê, a disposição sintagmática da frase tenta romper com qualquer modelo
lógico-discursivo ao mesmo tempo que reafirma a coerência incoerente do projeto
estético, vinculado a um “volume de Beleza” logo “nosso”, característico e coeso, do
qual “se engalanar”.
A questão à qual a apresentação duma nova revista deveria responder parece, até
aqui, iludida, levando o leitor a interrogar-se sobre a razão que empurrou os jovens
artistas a escolher uma figura da mitologia clássica para intitular uma publicação, que
deveria ser periódica e, sobretudo, inovadora e anti-tradicional. Se compararmos, de
facto, o texto de Montalvor com aqueles de outros manifestos das vanguardas europeias,
a escolha do título ficaria fora de foco: nenhuma apresentação dum novo ismo, nenhuma
projeção para um futuro de subversão dos cânones estéticos clássicos (por exemplo, para
Marinetti: “um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que
a Vitória de Samotrácia”3), e sim o esconder-se desse discurso, que fica todavia irregular
e anti-normativo, atrás duma simbologia bastante corriqueira, tirada dum modo de
pensar a arte certamente passadista, atrás dum nome mítico, o de Orfeu, que desde
sempre é uma marca e uma metáfora do poético. Mas a apresentação continua assim:

1 Luís de Montalvor, “Introdução”. Orpheu, ano 1 (1915), n. 1, pp. 11-12. Na reprodução desse texto “inaugural”
decidi manter a grafia original.
2 Ibidem.
3 Tirei a tradução do Manifesto futurista do livro de Gilberto Mendonça Teles (1983: 91).
A palavra em exílio Orpheu e o desejo de comunidade 239

Puras e raras suas intenções como seu destino de Beleza é o do: — Exilio!
Bem propriamente, ORPHEU, é um exilio de temperamentos de arte que a querem como a um
segrêdo ou tormento…4

Nestas frases encontramos, talvez, tanto a razão de ser do título escolhido, quanto
finalmente a base que fundamenta a atribuição do discurso a uma identidade coletiva.
Porque, em primeiro lugar, o Orfeu a quem é intitulada a revista – apesar da influência
aparente do quadro Orfeu nos infernos, composto por Santa Rita Pintor por volta de
1909 ou mesmo antes, mas reproduzido apenas em 1917 no interior de Portugal
Futurista 5 – não é o emblema mitológico da poesia e do caráter apolíneo da arte,
mas é o nome que, no orfismo, encobre e significa uma série de crenças místicas e de
práticas dionisíacas – como, aliás, o próprio Luís de Montalvor esclarece logo a seguir:

Nossa pretenção é formar, em grupo ou ideia, um numero escolhido de revelações em


pensamento ou arte, que sobre este principio aristocratico tenham em ORPHEU o seu ideal
esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos.6

O esoterismo, então, como religião ou re-ligação do grupo, como elemento


agregador de um “nós” que, numa adesão comum e comunitária ao elitismo e à
natureza iniciática da arte, encontra a sua profunda razão de ser. Não por acaso,
vamos reencontrar, entre os membros do grupo, essa investigação inconclusa do
lado misterioso da existência, esse apelo à mistagogia, que encontra sobretudo em
Fernando Pessoa, como todos sabem, a sua expressão mais evidente.
A opção por uma sublimação estética e por uma deriva hermética, a circunscrever
um conjunto reduzido de iniciados, representa, de resto, um traço comum a muitas
vanguardas artísticas tanto oito quanto novecentistas. Aqui, porém, a palavra
utilizada para definir a condição de eleição dos happy few merece uma atenção
suplementar, visto que não só vai determinar o projeto artístico do grupo, mas
vai tornar-se uma escolha existencial, um modo de ser (e de ser-se) de muitos dos
membros de Orpheu. O termo, repetido duas vezes em duas linhas sucessivas por
Luís de Montalvor a definir o estatuto peculiar do “nós”, é, de facto, Exílio. Palavra
complexa, esta, sobrecarregada por sentidos às vezes heterogéneos e ambivalentes
que não se deixa fechar num significado unívoco, mas que descreve, na sua

4 L. de Montalvor, “Introdução”, cit., p. 11.


5 Uma fiel reprodução deste quadro encontra-se, por exemplo, no site: http://miglaspoon.tumblr.com/
post/86299805115/orfeu-nos-infernos-santa-rita-pintor
6 L. de Montalvor, “Introdução”, cit., p. 11.
240 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò

indeterminação, uma condição peculiar: a de quem não se identifica no contexto


(ambiental e sociocultural) onde se encontra.
A sensação de estar alhures, de ser, no fundo, déplacés ou outsiders, representa,
então, uma instância unificadora para os membros de Orpheu, herdada, em boa
medida, da geração poética anterior e cristalizada no nome e na obra de Camilo
Pessanha.7 Apontar para o exílio como condição prévia no interior dum programa de
inovação estética radical, pode representar, todavia, um elemento de distinção entre
o Modernismo português e os muitos ismos que pululam nas primeiras décadas do
séc. XX. Se, com efeito, em vários casos e a partir do Futurismo, temos a vontade
de ocupar um novo espaço, integrando-se todavia no panorama artístico nacional
como protagonistas, num tempo por vir, duma revolução estética e duma subversão
dos cânones e das hierarquias culturais (ainda Marinetti: “É para a Itália que nós
lançamos este manifesto [...] porque queremos livrar a Itália de sua gangrena de
professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários”8), no breve texto que
deveria constituir a fundamentação ideológica do grupo português encontramos
uma opção pelo isolamento ou até pelo alheamento em relação a um ambiente
cultural tido por impróprio, estranho a “nós” e onde os “nós” se identificam como
estrangeiros. A procura da “originalidade”, nesse sentido, não produz um projeto
artístico “catastrófico” que vira do avesso o discurso poético para aderir a uma nova e
eventual realidade (se é verdade que a palavra catástrofe encerra também um sentido
de mudança9), mas acomoda-se numa situação tanto excepcional quanto exceptuada.
Se, portanto, as outras vanguardas artísticas querem ocupar um lugar inexplorado,
cavado no interior duma cultura sedimentada, a portuguesa tenta permanecer num
“espaço inteiro fora”, para utilizar uma expressão de Pessoa que bem descreve a
completude do ser, encontrada numa multiplicação de instâncias, constelando, porém,
as diferenças e conjugando-se na unicidade e excepcionalidade de um “nós”: “nós”
estrangeiros não só em relação aos outros mas também, ou sobretudo, a nós mesmos.
E a comunhão entre os participantes de Orpheu torna-se, assim, uma comunidade de
indivíduos que não têm comunidade: uma comunidade de exilados, de displaced, de
degredados, cujo destino é o de não se sentir em casa em lugar nenhum ou o de habitar
perenemente um “fora” em relação aos outros e a si próprios. Uma comunidade imune,
enfim, que vai descobrir o seu lugar de enunciação apenas no Exílio – termo que volta,
não por acaso, a intitular, em 1916, a segunda revista do grupo modernista depois de

7 Veja-se, a respeito do tema do exílio em Pessanha, o importante livro de Paulo Franchetti (2001).
8 TELES, G. M., 1983: 92.
9 Veja-se, a esse respeito, o estudo de Salvatore Natoli (1999: 195-199).
A palavra em exílio Orpheu e o desejo de comunidade 241

Orpheu, aberta por uma “justificação” de autoria, desta vez, de Augusto Santa-Rita na
qual se retoma a ideia, que já encontrámos em Luís de Montalvor: a dum desterro em
direção à Beleza e contra a “massa amorpha de um povo de inconscientes emotivos”
que se apoderou do espaço pátrio.10
Falei em “comunidade de exilados” e, mais em particular, numa comunidade de
artistas que não têm comunidade ou que compartilham apenas aquele “nada em
comum” de que falou magistralmente Georges Bataille. A questão que fica todavia em
aberto é como conciliar tudo isto com a reivindicação de um sujeito coletivo, de um
“nós” a abrigar vozes e personalidades diferentes. Acho que o problema não poderá
ser resolvido atribuindo àquela identidade plural apenas um valor emblemático
ou um estatuto conjetural, mas analisando em concreto como essa comunidade de
desterrados consiga constituir-se num grupo coeso. Porque há, no exílio, pelo menos
uma oportunidade: a de se livrar do peso da herança cultural, a de inventar uma
tradição a partir do desenraizamento, a de se encontrar, enfim, e de se reconhecer no
alheamento. Entenda-se bem: a condição do exilado é sempre ligada a uma situação
de solidão existencial, de angústia dependente da perda de todas as referências
espácio-temporais e socioculturais (como bem mostrou um ilustre exilado como
Edward Said nos seus livros11), mas a esta condição trágica e aparentemente sem
remédio corresponde, todavia, uma liberdade de inventar o seu próprio discurso e o
seu próprio percurso, dentro de uma realidade alheia na qual viver, embora de modo
sofrido e apartado, uma vida eventual – como aconteceu, por exemplo, com Joseph
Conrad, que habitou a sua expatriação como apropriação, como hipótese duma nova
pátria dentro de uma língua nova e estrangeira, tentando preencher o vazio da sua
identidade originária, irremediavelmente perdida.
Seria preciso, na perspetiva de uma reinvenção de si mesmos no alhures, considerar as
duas figuras mais destacadas do grupo de Orpheu: Mário de Sá-Carneiro e, naturalmente,
Fernando Pessoa. O primeiro, desterrado numa Paris que o não reconhece e que lhe é,
no fundo, estranha, apesar da sua condição de capital da cultura ocidental, onde ele, a
contragosto e sempre mais ciente do seu anonimato, tenta levar adiante os seus estudos
de Direito; o segundo, retornado do seu “exílio” sul-africano com uma bagagem de
conhecimentos ligados à cultura de língua inglesa e que não consegue se reconhecer
na sua verdadeira pátria, estudante falhado e falido, também ele, dum curso superior de
Letras. Para ambos, então, o desterro é algo de real – embora de duração mais limitada
em relação, por exemplo, a Camilo Pessanha –: uma experiência dolorosa e concreta

10 Cf. Exílio. Revista Mensal de Arte, Lettras e Sciencias, n. 1 (1916), Lisboa: Contexto (Ed. fac-similar: 1982).
11 Veja-se, em particular, o conjunto de ensaios que Edward W. Said (2000). Um dos autores mais lembrados e
estudados nesse livro do grande crítico palestino é, não por acaso, Joseph Conrad.
242 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò

à qual eles procuram dar respostas diferentes, não compartilhando, todavia, a mesma
sensação de isolamento e saudade presente nos poemas de Clepsidra.
O “nós” funciona, nesse sentido, como identificação no afastamento, como
lugar indeterminado de encontro e, ao mesmo tempo, como instância imaginária
de dissolução e salvação do eu dentro dum “grupo ou ideia”, nas palavras de Luís
de Montalvor. Para Sá-Carneiro e Pessoa, de facto, o poder agregador da prática
artística passa por um aparente “ausentar-se” de si mesmos, para fugir à Norma
e ao Poder dum discurso imposto, para tentar dizer aquilo que deveria ficar fora do
alcance das palavras usuais e consumidas pelo uso. O exílio real confunde-se, assim,
com o imaginário, levando os dois – junto com outros membros de Orpheu – a criar
uma espécie de dimensão poética própria, ligada à capacidade de deslocar-se e de
desdizer-se12. Poder-se-ia afirmar que eles adotam, no fundo, uma atitude que os
leva a contrastar e a resistir com teimosia a qualquer forma de integração ou de
normalização, jogando os signos contra si mesmos e instituindo, como escreveu
Roland Barthes, “no próprio coração da língua servil, uma verdadeira heteronímia
das coisas”13.
A obrigação ao exílio torna-se, portanto, uma opção pelo auto-exílio, primeiro
dentro de um “nós” constituindo uma comunidade artística e depois – diante do
fracasso e da dispersão dessa comunidade, diante da impossibilidade de levar adiante
a experiência de Orpheu, para além do segundo número – no interior de um “nós”
inventado. E se Mário de Sá-Carneiro, por um lado, “Rei exilado” e “vagabundo”, vai
enfrentar a trágica incapacidade de ser eu e outro ao mesmo tempo, de sustentar a sua
pessoal “ponte de tédio”, optando pela definitiva supressão de si mesmo; Pessoa, por
seu lado, vai continuar acreditando na possibilidade de existir na pluralidade, de viver
como um e muitos, de ser um “nós” heteronímico, de criar, enfim, sozinho “toda uma
literatura”, fugindo ao servilismo da língua, inventando uma comunidade poética na
qual, novamente, experimentar um exílio que seja, ao mesmo tempo, afastamento e
aproximação de um ideal de Beleza e Completude. Uma comunidade, aliás, que ele vai
fazer coincidir com aquela que se tinha constituído num tempo pretérito e perdido,
numa revista que ele tentou ressuscitar quase até ao fim da vida, quando já aquela
hipótese de grupo naufragara no silêncio e na inviabilidade, ao ponto de fechar um
breve artigo seu, publicado numa outra revista (Sudoeste) e à véspera da morte, com a
frase: “Orpheu acabou. Orpheu continua”.

12 Como se sabe, são estas, fundamentalmente, as “forças” da grande literatura, na visão magistral de Roland
Barthes: “s’entêter”, “se déplacer” (até chegar à abjuração) e “jouer les signes” (Leçon. Paris: Seuil, 1978, pp.
25-28).
13 Ibidem, p. 28.
A palavra em exílio Orpheu e o desejo de comunidade 243

A reafirmação teimosa duma comunidade ausente – e gerada na e pela ausência


– mostra, em princípio, o desejo de dissolver o Eu no espaço circunscrito duma
identidade coletiva, que por sua vez preserva o sujeito duma anulação sem remédio.
E esta cessão de autoridade, esta refundição do singular dentro do plural combina-se,
de resto, com a possibilidade de manter um controle eventual sobre a dispersão.
É possível, de facto, pensar o exílio também como condição inelutável do sujeito
poético, visto que o ato de escrever encerra desde sempre – e a consciência disso
torna-se mais contundente no âmbito da literatura do séc. XX – um poder de
alienação em relação ao Eu que o cumpre e que nele deveria se espelhar. Nesse
sentido, descobrir-se outro e estrangeiro no signo ou no traço pode ser considerado
uma experiência primária de Ichspaltung, de divisão irremediável do indivíduo,
contra a qual a única salvação é, talvez, a de se multiplicar, numa espécie de
fragmentação infinita da identidade, espelhando-se e reconhecendo-se numa
pluralidade de instâncias egóticas. É o caso, justamente, de Pessoa e da sua tentativa
de criar tantas identidades quantas são as hipóteses discursivas que se abrem diante
do sujeito, ou melhor, de existir tantas vezes como outro quantas são as disposições
virtuais do Eu.
A heteronímia pessoana pode, de facto, ser considerada um “dispositivo” (seja no
sentido simplesmente retórico, seja no significado mais amplo e complexo que a este
termo atribuiu Michel Foucault 14) pelo qual, embora mantendo intacto o limiar entre
o Si próprio e o estranho-de-Si, seria possível apoderar-se, de forma intermitente, de
diferentes identidades que mantenham uma relação de tipo solidário com o sujeito
que as inventa e as age. Por paradoxo, esta modalidade de deslocação ou de exílio do
sujeito em relação a si mesmo mostra-se como uma tentativa extrema de controle
sobre a dissolução da identidade. Na objetivação dinâmica da relação entre eu e
outro, nesta espécie de abdicação à sua centralidade por parte do sujeito do discurso,
descobrimos, na verdade, um projeto de recomposição pânica, de domínio utópico
sobre a dispersão que passa pelo apagamento duma identidade homogénea para se
encontrar, uno e plural, na heterogeneidade das coisas e do mundo (projeto, esse, que
Pessoa desenvolve, de modo significativo e pelo menos na primeira parte da sua obra,
no signo de Walt Whitman).
Aqui, porém, encontramo-nos longe da suposição inicial e iniciática que aparece
no texto de Luís de Montalvor; aqui encontramo-nos diante dum projeto ideal do qual
a prática poética foi, aos poucos, embaciando os contornos; aqui encontramo-nos,

14 Como se sabe, na obra de Michel Foucault o termo “dispositivo” é várias vezes evocado mas nunca definido
com clareza. À tarefa de circunscrever o(s) significado(s) dessa palavra utilizada pelo filósofo francês, se
deram primeiro Gilles Deleuze (1989) (Qu’est-ce qu’un dispositif?) e mais recentemente Giorgio Agamben
(2006), (Che cos’è un dispositivo?), com dois ensaios que têm, por acaso, o mesmo título.
244 100 Orpheu Ettore Finazzi-Agrò

enfim, diante duma história realmente trágica e duma ideologia fracassada. Em vez
do “nosso volume de Beleza” atingido graças a um exílio compartilhado, temos, com
efeito, a procura individual e impossível duma via de fuga, tanto existencial quanto
estética, em relação a um desterro que já não é a condição para a constituição de um
grupo aristocrático de artistas que se reconhecem na sua originalidade, mas a situação
desoladora em que se encontra o eu poético – “homem da mansarda” que, no seu
isolamento, longe e fora de qualquer “nós”, na consciência do seu não ser nem querer
ser nada, olha para um mundo que lhe é definitivamente estranho e irreversivelmente
estrangeiro.

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio (2006). Che cos’è un dispositivo? Roma: Nottetempo.


BARTHES, Roland (1978). Leçon. Paris: Seuil.
DELEUZE, Gilles (1989). Qu’est-ce qu’un dispositif? Paris: Seuil.
Exílio. Revista Mensal de Arte, Lettras e Sciencias, n. 1 (1916), Lisboa: Contexto
(Ed. fac-similar: 1982).
FRANCHETTI, Paulo (2001). Nostalgia, exílio e melancolia. Leituras de Camilo
Pessanha. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
NATOLI, Salvatore(1999), Progresso e Catastrofe. Dinamiche della modernità.
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TELES, Gilberto Mendonça (1983). Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro.
8a ed. Petrópolis: Vozes
Guilherme Pobre

José-Augusto França1

O colaborador mais evidente do fatídico n.º 2 do Orpheu foi Santa-Rita Pintor. Não
só a ele Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro dedicaram a sua própria colaboração
no número, como é ele quem tem os quatro grandes extratextos que revelam uma
nova personalidade na criação artística portuguesa. Também se deve a um dos
grandes colaboradores desse segundo n.º do Orpheu, Raúl Leal, o primeiro texto de
interpretação de Santa-Rita Pintor, daí a ano e meio na revista Portugal Futurista.
Pouco se sabe da vida breve de Guilherme Santa-Rita, nascido em Lisboa, em 1889,
e aqui falecido em 1918, em abril. Fora bolseiro para Paris, em abril de 1910, como
escolar das Belas-Artes de Lisboa, mas não ingressou na Escola parisiense, tendo
falhado provas de admissão. Perdeu a bolsa nacional em 1912, por conflito com o
embaixador da recente República Portuguesa, o jornalista militante João Chagas; ele,
Santa-Rita, que se gabava de monárquico, admirador do D. Carlos artista, pronto a
escrever sobre a obra dele e havia de investir no desejo da restauração do regime
que lhe daria “poder” e deveria ser acompanhado pelo regresso dos jesuítas que
a República expulsara e pela reinstauração da Inquisição… Sabemo-lo por cartas
de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, de 1915, já Santa-Rita regressara a Lisboa, em
setembro do ano anterior, por causa da guerra e aqui se movia no âmbito da Orpheu,
sempre em referência a Sá-Carneiro, que lhe dedicara os seus “Poemas sem Suporte”,
no n.º 2 da revista. Já vamos ver o que ela representou para Santa-Rita.
Outra via de informação sobre estes anos da vida do pintor vem de uma biografia
que, desde 1922, o pintor Henrique Vilhena consagrou a seu primo, o pintor Manuel
Jardim, que cruzou amistosamente Santa-Rita em Paris e depois em Portugal, mas à
distância de Coimbra para Lisboa, e aí não sem um mal-entendido que ficou registado
em correspondência trocada e que tem a ver com as respetivas carreiras ou desejo
delas, como veremos. Ainda de Vilhena, há um artigo tardio que ficou a meio, na
revista Átomo, de 1950. Mais informação vem de outros contemporâneos, de Paris e
da Lisboa dos anos ditos “futuristas”, que também em Paris foram ou desejaram ser os
de Santa-Rita, ali espetador da primeira exposição que, em 1912, os pintores italianos
apresentaram e que Aquilino Ribeiro reportara para a Illustração Portugueza, de

1 Gravação por Rui Sousa (CLEPUL-FLL) e transcrição por Sofia Santos (CLEPUL-FLL), a quem os
organizadores muito agradecem.
246 100 Orpheu José Augusto França

Lisboa. O famoso manifesto que, em 1908, Marinetti publicara no Figaro – antes,


portanto, da chegada de Santa-Rita –, teve tempo de por ele ser lido e endoutrinado,
de modo a, de volta a Lisboa, se declarar encarregado pelo teórico italiano de difundir
a boa-nova estética. Implicaria isso um contacto, mesmo de confiança, com Marinetti
(a cuja conferência de 1911 assistiu, segundo o repórter Diogo de Macedo) e os seus
camaradas pintores (italianos eles quase todos), sobretudo Severini, instalado em
Paris; mas não há provas disso e pode suspeitar-se da efabulação de Santa-Rita. O
que era a opinião veiculada pelas cartas de Sá-Carneiro, já, porém, posteriores, e com
razões de queixa. Mas não só porque o poeta tivera já o seu período de fascinação pelo
pintor, ao conhecê-lo, e antes de lhe ter dedicado os poemas de Orpheu, onde pusera
em versos do poema “Apoteose”: “MARINETTI + PICASSO = PARIS < SANTA-RITA
PINTOR + FERNANDO PESSOA ÁLVARO DE CAMPOS!!!!”. Em 1914, já na
narrativa Confissão de Lúcio, Santa-Rita está presente sob o nome de Gervásio
Vila-Nova, personagem, escultor emigrado também, com o seu corpo “macerado e
esguio”, “de linhas quebradas” e “as suas obras eram esculturas sem pé nem cabeça,
pois ele só esculpia torsos contorcidos, enclavinhados, monstruosos”, dada a um
público de “coitados que não podiam sentir a sua beleza” – e, sobretudo, uma alma
diabólica que domina o narrador até ao rompimento dramático da narração.
Nas cartas que escreve a Fernando Pessoa, Sá-Carneiro dirá que, com ele, “todo o
cuidado é pouco” e descreve-o como “um tipo fantástico”, “cada vez mais intolerável”,
“insuportavelmente vaidoso”, “maçador” e mesmo “malandro”, até às queixas finais, já
de setembro de 1915, após o Orpheu, quando Santa-Rita havia disposto captar a raiz de
Orpheu, que Sá-Carneiro já não podia pagar na tipografia. E isso, escreve Sá-Carneiro
a Fernando Pessoa, “seria pior que a morte (da revista)”. Porém, Sá-Carneiro dera na
revista abrigo a quatro hors-textes de obras de Santa-Rita, numa nova orientação de
colaboração artística que se inaugurava no n.º 2 e que no n.º3 deveria ser satisfeita por
Amadeo de Sousa-Cardoso. Já veremos a importância destas quatro obras quando,
anteriormente, Sá-Carneiro duvidara da sua criação artística, ou dela mesmo troçara,
nomeando, em carta de 1912, um quadro intitulado “WC”, que, na opinião citada
do pintor, “só dez pessoas no mundo podiam não só compreender como ver”. Duas
outras obras suas intitulavam-se “Portugal” e “Ruído num Quarto sem Móveis”.
Seria esse quadro objeto de uma paródia feita ao pintor, numa crónica para a revista
lisboeta Teatro, no seu n.º 1 de 1 de março de 1913, em texto sobre “O cubismo
nacional”, de um tal jornalista Eduardo de Freitas, que anunciava, com escândalo,
a sua exibição no “Salon des Indépendantes”, em Paris, e reproduzindo um quadro
realmente de Picabia… Blague ofensiva que o comportamento polémico e antipático
(ou “intolerável”) de Santa-Rita dava razões e originava más relações com os poucos
emigrados na vida artística local – que, um deles, Diogo de Macedo, haveria de
Guilherme Pobre 247

descrever saborosamente, em 1930, nas suas memórias 14, Cité Falguière. Como já
em 1921, no Diário de Lisboa, ele ali falaria de vários companheiros (Manuel Bentes,
Francis Smith, Armando de Basto, o seu caro Amadeo – ainda “impressionista” e
caricaturista, mas que “se a morte o não vence seria hoje o maior pintor português”). E
de Modigliani também ele fala, porque foi Modigliani que o levou a ouvir a conferência
de Marinetti: e foi ali, na conferência de Marinetti, que ele, Diogo de Macedo, pela
única vez fala em Santa-Rita. Em 1942, Macedo voltaria a falar no pintor, visto em
1917, numa panorâmica ordenada (a primeira de todas) dos primórdios do nosso
Modernismo na revista Aventura.
Em Lisboa, o caso Orpheu levantou escândalo jornalístico, politicamente assanhado
por Pessoa, como sabemos – é verdade que logo arrependido, como os seus amigos
– menos Santa-Rita, que açulou Raúl Leal, o mais sincero de todos eles… Mas foi
o pintor o alvo preferido nas colunas do Século Cómico, de 8 de julho (1915), num
desenho de Stuart de Carvalhais e numa poesia trocista de Belmiro Acácio de Paiva,
pseudónimo de Acácio de Paiva, um gazetista apreciado, que o punha “em foco”
imitando versos de Sá-Carneiro, de invenção tipográfica: “Santa-Rita, Rita Santa, pó,
pó! (…) / (…) le nez dan le cou”, caricaturado por isso mesmo. Oitenta e nove artigos
ou alusões a Orpheu ficavam registados nas colagens de um caderno recolhido no
espólio de Fernando Pessoa, na Biblioteca Nacional. Mas Orpheu chegou também ao
Teatro de Revista, ainda em 1915, no então Éden, dos Restauradores, em A Parceria
O Diabo a Quatro, com Satanás a endoidecer por ter lido a revista. Orpheu n.º 3 não
houve, só provas tipográficas, de algumas páginas, recuperadas em edição em 1983.
Santa-Rita não levou avante o seu projeto, que afligia Sá-Carneiro e Pessoa protelava
evasivamente em suas correspondências, ele que também lhe dedicara em Orpheu a
sua “Ode Marítima”. Mas o pintor continuara a agir no minúsculo meio que era o do
Chiado – que a exposição de Amadeo, anunciada como futurista (embora de modo
algum o fosse em suas obras), a dois passos, no Calhariz da Liga Naval, que então
agitara em dezembro de 1916, com a bênção batismal de Almada Negreiros. Amadeo
deveria ter sido o artista destacado em hors-textes correspondentes no n.º 3 da revista
de Sá-Carneiro, mas não, certamente, no Orpheu que fosse ou que tivesse podido ser
de Santa-Rita... E uma grave altercação entre os dois pintores se registou então na
Brasileira, a vias de facto, de que o frágil Santa-Rita saiu agredido por um Amadeo
robusto e exasperado pelas suas provocações, provocações; habituais, ao que consta no
anedotário desta brevíssima época. Se em vão Santa-Rita, em 1915, projetou realizar
três conferências futuristas na cola da sua participação no Orpheu, uma delas sobre a
“Torre Eiffel e o Génio do Futurismo”, outra teria sido combinada com Sá-Carneiro que
falaria sobre “As Esfinges e os Guindastes. Estudo sobre o Bimetalismo Psicológico”,
Raúl Leal dissertaria sobre “Teatro Futurista no Espaço”, sem mais nota sobre qualquer
248 100 Orpheu José Augusto França

delas ou sobre a organização, nem de um festival teatral a ela mais ou menos ligado,
com a colaboração do casal Delaunay, que a guerra trouxera também em 1915, no seu
caso ao Norte de Portugal, e que havia, ela, a russa Sónia Delaunay, de ter convívio e
projetos com Amadeo. Ainda uma hipótese conferência sobre “A Arte e a Heráldica”
foi anunciada, da autoria de Manuel Jardim, então regressado de Paris a Coimbra e
que protestou veementemente contra a notícia divulgada em fins de junho, que não
convinha a carreira mais pacata que pretendia conduzir na sua cidade natal, e não sem
opinar contra a gente de Orpheu. Também Francisco Franco e ainda então Amadeo se
encontravam previstos no improvável conjunto.
Mas em abril de 1916, a revista monárquica extremista, A Ideia Nacional, dirigida
por Homem Cristo Filho – um polemista que viria a pretender ter carreira no fascismo
italiano depois de começar a tê-la com o Sidonismo, em 1918 –, apesar da colaboração
que recebia de Almada, como de Soares, Jorge Barradas e Stuart Carvalhais e da direção
artística de Pacheko, atacava os futuristas, “fautores da desordem e da revolução”,
“novos arautos da anarquia”, “sem fé, nem pátria”, que mereciam ser “corridos à
gargalhada, quando inofensivos”, senão “a chicote quando insolentes e perigosos”; o
que lhe valeu uma resposta prudente de Santa-Rita, a garantir “o caráter absolutamente
nacionalista da sua doutrina, o seu carácter absolutamente antianárquico”, tal como
o de Marinetti, cujo trabalho caracteriza nestas expressões. Ele que na sua “vida de
trabalho artístico, de esforço constante e consciente”, “todos de anos para cá, adentro
do futurismo”, afirmava: “Futurista declarado em Portugal há um, que sou eu!”.
Mas logo depois, Almada Negreiros havia de publicar o texto mais escandaloso
de todo o processo do Futurismo nacional, pela personalidade oficiosa que punha
em cena o dramaturgo, poeta e cronista Júlio Dantas, que estreou em outubro,
no Teatro D. Maria, uma peça intitulada “Soror Mariana”, no seu jeito e talento
tardo-românticos (“talento de coisinhas”, escreveu Fialho de Almeida sobre o autor),
devidamente aplaudida, mas pateada por Almada na sala, o que o fez ir prestar contas
à esquadra vizinha (Almada que já criticara Dantas na revista Teatro, dois anos antes).
Depois dessa consequência policial, chegado a casa, na mesma noite, Almada redigiu
o famigerado “Manifesto Anti-Dantas e por extenso”, opúsculo que, por informação
numa carta sua a Sónia Delaunay, só terá sido publicado em maio de 1916, numa
edição logo comprada, em atacado, pelo visado, circulando reduzidamente, ficou
espécie bibliográfica raríssima, mas com largo eco mitológico: “Morra o Dantas!
PUM!” [sic], ficou na memória literária pelos anos fora e até hoje, como se comemora
o seu centenário – não do Dantas mas do Orpheu.
Menos a peça troçada no texto, era o seu autor que interessava a Almada e a todos
os de Orpheu, porquanto Dantas, que produzira teses de formatura em Medicina,
como um estudo sobre os “Pintores e Poetas [internados do hospital psiquiátrico] de
Guilherme Pobre 249

Rilhafoles” e que, pela sua especialização, se achava apto a classificar de “paranoicos”


os poetas de Orpheu – e certamente o artista Santa-Rita, seu parceiro, embora não
mencionado – e cronicara nesse sentido, na Illustração Portugueza (maggazine de
toda a pequena burguesia nacional), a que o diário A Capital dava eco, a 28 de junho:
“Poetas de Rilhafoles eram eles todos”, e já o famoso e popular comediógrafo André
Brun lá se divertira com opinião semelhante, em 31 de março.
Assim ia o microscópico mundo cultural lisboeta, nestes anos de 1915 e 1916,
mais Orpheu 2, menos Orpheu 3, com o malogrado salão de Arte Moderna, que
José Pacheko congeminara, e uma “Galeria de Artes” que ele levou avante no espaço
habitual do Salão Bobone, no Chiado, logo pelo vulgo apelidado sem razão de Salão
dos Futuristas. E, é claro, a exposição de Amadeo, no fim do ano, com o novo manifesto
de Almada, esse a favor do seu jovem amigo – quando tendo sido consagrado no Salão
da Primavera da Sociedade de Belas Artes, o Fado de Malhoa, no fim do ano de 1917,
saiu à rua o Portugal Futurista, logo apreendido, diz-se, à porta da tipografia pela
censura do governo democrático que estava nesse mesmo momento a ser despejado
pela revolução militar de Sidónio Pais.
A revista era naturalmente alheia à movimentação política, se bem que ela se
gabasse de “absolutamente nacionalista”, pela pena de Santa-Rita e um prospeto tivesse
anunciado a publicação com três palavras: “Monarquia”, “República”, “Portugal”, as
duas primeiras barradas a vermelho, e, no seu interior, os “Ultimatun” de Almada
e Pessoa / Álvaro de Campos manifestasse ideias, opções e críticas contra a política
corrente que o “Presidente-Rei” Sidónio, assim glorificado por Pessoa, ia arredar
ditatorialmente... Almada atribuiria à apreensão da revista “palavrões escamados” que
ele empregara no seu admirável texto “Saltimbancos”, mas outras responsabilidades
haveria que invocar para o acontecido no meio da grande confusão daqueles dias
tumultuosos, que, aliás, e em sentido contrário e pior, de mortos e feridos, respondia
aos da Revolução de 14 de maio de 1915, que inspirara o poema “Canção do Ódio” a
Almada, destinada precisamente ao n.º 3 do Orpheu e que ficara inédito.
Portugal Futurista veio dois anos e meio depois, com a exposição de Amadeo e
o Manifesto Anti-Dantas, de Almada, pelo meio, mas, sobretudo, uma “tumultuosa
apresentação do Futurismo aos povo português” (palavras de Almada), na tarde de
4 de abril de 1917, no Teatro República (hoje S. Luís), sob a designação de “Primeira
Conferência Futurista”, da responsabilidade de Almada, mas encenada (digamos,
maniganciada) por Santa-Rita, presente na sala, numa frisa, e dali animando e
ordenando, (“increpando”, escreve Diogo de Macedo) o espetáculo, sua eminance
grize, que Almada, ao lado do palco, apresentou e terá sido recebido por uma “ovação
unânime”. É Almada quem escreve, já se descrevendo a si próprio: “recebido por uma
expontanea e tremenda pateada, seguida por uma calorosíssima salva de palmas que
250 100 Orpheu José Augusto França

cort[ou] de um gesto”... Uma fotografia no-lo mostra vestido com um fato de macaco
de corte clownesco, que passou à posteridade.
As coisas passaram-se mais ou menos assim, numa sala meio cheia de curiosos
dos cafés Chiado e da Baixa, alguns estudantes, com uma popular e vistosa mundana
(negra, ao que parece) contratada para o efeito. O diário A Capital, que já perseguira
Orpheu nas suas colunas, dedicou uma crónica anónima facciosa à sessão, mas atenta
a todas as anedotas que se produziram no seu decurso – tal como os organizadores
desejavam, para marcar o evento. E, nesse sentido, Almada agradeceu à redação,
felicitando também, e “de uma só vez, o público de Lisboa pela brilhante apoteose de
que [foi] alvo”, bem como pelas “extraordinárias aptidões futuristas” que esse povo
português revelara ao ter entendido a intervenção. E Almada anunciava já uma nova
sessão: “espectáculo prático e positivo de Futurismo, em que se resolvam à vista do
público as energias mais assombrosamente cerebrais e as mais fisicamente record” e
que contaria numa segunda parte com “uma comédia futurista” em que participariam,
“interseccionistamente”, os melhores números de variedades atualmente em Lisboa e
ainda outros elementos “espontaneamente civis”. A tal anúncio, a imprensa trocista
acrescentou uma tourada e um filme, ao mesmo tempo que a Illustração Portugueza
chamava “doidos varridos” e “desequilibrados cerebrais” pela pena do tal Acácio de
Paiva, que já troçara de Santa Rita dois anos antes. Chamava isso a Almada e a todo o
grupo, com um destaque muito especial, e anónimo, de uma paródia da conferência
de Almada no Século Cómico. Isso mesmo pretendia Almada Negreiros e, sobretudo,
no caso, Santa-Rita, que preparava o seu futuro de guru do Futurismo em Portugal
que a sua revista Portugal Futurista havia de consagrar meses depois.
Tudo isto está por escrito e repetido por mim e por outros no quadro do Modernismo
português, em letras e artes. Célebres de um lado, as Letras, mais tarde as de outro, as
Artes, no ciclo mais estrito da sua polémica, deu a Amadeo de Souza-Cardozo (mas só
em meados dos anos de 1950, por descuido da geração que o sucedeu e António Ferro
protegeu) o lugar cimeiro que lhe é historicamente devido, mas deixou na penumbra
mais ou menos lendária Santa-Rita Pintor, o herói do Portugal Futurista. A revista
vinha a seu tempo, ano e meio após a falência de Orpheu e seguindo-se a outras duas
também efémeras em Lisboa, a Exílio e a Centauro, de abril a outubro de 1916, ficando
ambas no n.º1. Só um dos colaboradores do Orpheu apareceu em ambas as revistas,
Fernando Pessoa, e os outros eram variados no Exílio – aliás dirigido por um irmão
de Santa-Rita, em mais relações fraternas, o poeta mais ou menos decadentista e
mundano Augusto Santa-Rita, considerado aliás modernista por António Ferro, em
1929, e que viria a ter nome conhecido na Literatura Infantil – e na Centauro, dirigida
por Luís de Montalvor, do grupo do Orpheu, que lhe deu também Camilo Pessanha e
Raúl Leal. Em Faro, um jovem pintor de 20 anos, com bens de fortuna, Carlos Filipe
Guilherme Pobre 251

Porfírio, fez publicar, desde 1917, nos seus princípios, num jornal Heraldo, poesias
de intenção futurista, algo provincianas, mas também transcrever o grande poema
“Litoral”, de Almada Negreiros, ao mesmo tempo que hesitava na pintura que ele
próprio queria fazer. Subindo a Lisboa, a ele se ligou Santa-Rita para ter a sua revista
editada, pondo-o nominalmente na direção. Porfírio seria pintor expressionista
em 1922 numa pequena exposição, depois pintor decorador em Paris até 1939 e
ainda em 1945 e 1949, regressado a Portugal, pôde realizar duas longas-metragens,
pretensiosas, inteiramente nulas, “Sonho de Amor” e “Um Grito na Noite”, que só
em Cinemateca se podem ver (felizmente). No Portugal Futurista de Santa-Rita,
ele terá sido apenas uma vítima inocente, como entenderia Sá-Carneiro, entretanto
suicidado em Paris, vítima de si próprio. Santa-Rita, no seu meio familiar de boa
burguesia – pai funcionário e poeta amador, bem como o irmão, como vimos, e avó
materno e padrinho, conselheiro e Par do Reino, chamado Cau da Costa –, fizera
bem classificada pintura nas Belas-Artes de Lisboa, fora e deixara de ser bolseiro em
Paris, mas lá, logo em janeiro de 1911, mandou como prova de trabalho uma cópia
da Olympia, de Manet, que não deixou boa impressão no júri, ele que se formara na
sua tese em Lisboa com “Édipo e Antígona”, de boa aprovação académica. E foi José
de Figueiredo, que ia a seguir ser diretor do Museu de Arte Antiga, quem diretamente
lhe censurou a má ideia que tivera em copiar tal quadro (no qual há quem entenda
ter começado a pintura moderna no Ocidente). Essa pintura pode ver-se numa sala
na Academia Nacional de Belas-Artes, de que José de Figueiredo seria, em 1935,
presidente inaugural, na sua restauração, mas só muito depois do falecimento do
pintor.
Acamaradando em Paris, nesta altura, com Manuel Jardim, como sabemos, ambos
haviam sido influenciados pela criação manetiana que Jardim havia de assumir
como melhor destino da sua própria malograda pintura, é um ponto para avaliar o
entendimento de Santa-Rita, logo em fim de 1910, após Édipos e Antigonas escolares,
de uma nova situação da pintura, antes de ele próprio mergulhar no labirinto parisiense,
que em 1912 seria almejadamente futurista. A cópia de Santa-Rita, realizada com
suficiência técnica e entendimento do problema pictural posto, no “acordo tonal
usado dos àplats do nu banal”, para além do escândalo da imagem clássica, colocada
em tempos de vivência moderna, baudelairiana, como se diria (que não em Lisboa). É,
como se sabe, das raras obras que Santa-Rita que existe, pois, ao morrer em 1918, ele
pediu à família que tudo destruísse, e mesmo antes, ao seu amigo Saavedra Machado,
que o contou publicamente. Antes de “Olympia”, porém, existe “Orfeu nos Infernos”,
de cerca de 1907, espécie de brincadeira escolar, largamente brochada, com caricaturas
dos professores de Lisboa que, cerca de 1917, ele ainda vendeu ao seu amigo Alberto
Monsaraz, que durante muito tempo o conservou e é hoje curiosidade por demais
252 100 Orpheu José Augusto França

valorizada. Mas de 1912 resta outro quadro, no Museu do Chiado, que tem especial
importância na história da pintura moderna portuguesa. Não assinado e datado, no
verso, de 1910 por mão que não será a do pintor, esta cabeça “cubo-futurista”, tem
sofrido justa discussão crítica por alguma similitude com pinturas de Severini, com
quem Santa-Rita terá tido proximidade em Paris. Oferecido pelo pintor a Manuel
Jardim e pelos seus herdeiros cedido à Secretaria de Estado que sucedeu ao SNI, no
fim do Estado Novo, o quadro passou atualmente para o Museu do Chiado, assim se
salvando como “ícone polémico da Modernidade num país que não podia tê-la...”.
Pintura primeira da sua espécie, assim o escrevi e repito, contando bem os passos
cronológicos de Amadeo de Souza-Cardoso, que, em 1912, data mais provável da tela
de Santa-Rita, ainda não assumira a posição criativa original: cubista sim, e órfica,
nunca definidamente “futurista”), que admiravelmente explodira na sede das últimas
pinturas de 1916/17, na Fundação Gulbenkian. “Esta agressiva cabeça de ave, máscara
africana nos seus bicos, olhos encovados no movimento elíptico do desenho, uma
espécie de vórtice que só dois planos, por similitude cubistas, interrompem e um sinal
de ouvido em caixa de violino pontua, fora de propósito formal ou antropomórfico”;
esta pintura, “no seu jogo de volumes e grafismos”, é uma peça notável dos anos 1910
europeus e uma peça única na pintura portuguesa. Peça milagrosa, considerado o
quadro moroso em que ela poderá ter-se desenrolado, que, em 1918, se acabaram com
a morte de Santa-Rita e de Amadeo, a poucos meses de distância.
No Portugal Futurista foram reproduzidas quatro obras de Santa-Rita, mas não
esta. E perguntar-se-á porquê, tendo em conta a sua estratégia de carreira. Vemos
lá o “Orpheu nos Infernos”, com um comentário laudatório inconsequente, em
que se fala de “fisiognomia mefistofélica”, em que o pintor aprovou ou fez redigir;
“Perspectiva Dinâmica de um Quarto ao Acordar”, de 1912; “Cabeça = Linha –
Força. Complementarismo Orgânico”, de 1913; e “Abstração Congénita e Intuitiva
(Matéria Força)”, de 1915. Se a primeira “obedece a um sistema futurista ortodoxo na
dinamização espacial, em que as ondas de vibração dos objetos têm um tratamento
de ordem cubista” (escrevi-o em 1974), a outras duas peças inscrevem-se no tempo,
entre ou depois, das obras que tinham sido reproduzidas no Orpheu e que no Portugal
Futurista tinha sido definitivamente assumida. Para Santa-Rita era o extremo limite
das suas forças criativas e físicas também, que pouco mais ele duraria, até abril do
ano seguinte, já em “estado gravíssimo de saúde”, como Manuel Jardim escreveu,
informado pelo Professor Vilhena.
Mas a via de colaboração de Santa-Rita no Portugal Futurista foi outra e
indireta, quer pelo seu retrato fotográfico de página inteira, quase a abrir a revista,
convenientemente encenado, quer por dois textos que se lhe referiam de Bettencourt-
Rabelo e de Raúl Leal, que no Orpheu publicara o alucinado texto “Atelier (novela
Guilherme Pobre 253

vertígica)”, como que predisposto para o que da arte de Santa-Rita havia de entender.
E fora no n.º 2 da revista de Sá-Carneiro que o pintor tivera a primeira entrada em
cena, como anunciada “colaboração especial do futurista Santa-Rita Pintor”, com
fotogravuras de “quatro hors-textes duplos”, na medida em que se dobravam a sua
dimensão, de papel couché, nos cadernos do volume. São datados de Paris, “annos”
de 1912 e 1913, dois deles, e 1914, realizados a carvão ou traço de guache branco e
com técnica cubista dos papiers collés. Os originais desapareceram, em incalculável
a perda do património artístico português, porque se trata de quatro peças senão
fundamentais – porque nada fundamentaram ou teriam podido fundamentar em
Portugal – de extrema originalidade no quadro europeu do Futurismo, que delas não
tomou conhecimento historiográfico ou estético, nas mais autorizadas e mesmo mais
recentes pesquisas sobre o grande movimento italiano. Ignorado para sempre (?):
terei sido o único historiador deste período dos anos 1910 a assinalar a presença de
Santa-Rita Pintor, em 1987, numa História da Arte Ocidental – tentada para além das
grandes vias esculturais em que ela tem sido estabelecida na lei dos centros maiores de
produção e da sua pesquisa universitária ou da sua indústria editorial.
Evoquemos primeiramente (como Santa-Rita evidentemente desejava, em
atitude provocatória) os títulos destes trabalhos, que ultrapassam em proposição
ou reformulação teórica (embora inspirados em teses de Boccioni) o quadro
estético do Futurismo italiano: “Decomposição Dinâmica”, “Síntese Geometral”,
“Compenetração Estática”, designam atuações ou reflexões plásticas, em situações
alegadas, respetivamente, de “interseccionismo plástico”, “sensibilidade radiográfica”
ou “litográfica”, ou “mecânica”, que dificilmente poderemos distinguir no exame
das próprias obras. Devendo, porém, entender-se (como escrevi) que se trata de
uma “atitude conceptual”, que ainda assim se não nomeava. A “Decomposição
Dinâmica” (declarada na peça de 1912) é o de uma mesa, adicionado (com o sinal
“+”) a “estilo de movimento” e a obra deixa perceber, em planos geometricamente
opostos, a mesa modelo desfeita. Por que a fez Santa-Rita reproduzir após as
outras três obras, quanto a sua leitura formal e a sua datação a situam à cabeça
do discurso histórico proposto? Trata-se, na sua realidade, de uma proposta
demonstrativa de “interseccionismo plástico”, enquanto as outras três peças, dadas
como demonstrações de “sensibilidades”, provocadas gráfica ou mecanicamente, se
referem a cabeças-modelo. “Estojo científico de uma cabeça”, marcada com insistência
no fator “luz”, pelo “aparelho ocular” + “sobreposição dinâmica visual + reflexo de
ambiente” que se multiplicam (“X”) pela “luz” (é a primeira reprodução de 1914); ou o
seu “interior” “compenetrado”, identificado com o seu “complementarismo congénito
absoluto” (e tem sido a obra mais reproduzida por facilidade de identificação formal);
ou a sua “Síntese geometral [de uma cabeça], multiplicada [“X”] por “infinito plástico
254 100 Orpheu José Augusto França

de ambiente” e [“X”] transcendentalismo físico”, de 1913. A obra de 1915 (no Portugal


Futurista), “Abstracção Congénita Intitiva”, tem referência aparentemente cubista,
na sobreposição dos planos que a péssima reprodução mal deixa ver. Dificilmente
poderemos avaliar a evolução possível, mas devemos sublinhar a situação “abstracta”,
que num título, pela primeira vez, propõe e que denuncia uma nova e desejada situação
estética da criação de Santa Rita. A obra de 1913 tem a lembrança da sobreposição
de planos geométricos de 1912, mas com uma maior e voluntária clareza. É também
uma “decomposição dinâmica”, mas pergunta-se de quê, que a cabeça indicada no
título não a permite desse modo e, em matéria de legibilidade temática, o pintor
oferece-nos, como anedoticamente, em justificação do aludido “complementarismo
orgânico”, um par de bigodes saíndo de uma “linha – força” que corta a composição
na diagonal. Mas, no seu conjunto gráfico, a peça apresenta uma qualidade superior
às obras da revista Orpheu. Não vou insistir na descrição destas peças porque há que
as ver, há que olhá-las; elas estão reproduzidas na revista Orpheu, e na sua reedição.
Estão, portanto, ao alcance de todo o nosso conhecimento e são as únicas provas que
existem das referidas peças, malgrado a sua enorme importância.
No Portugal Futurista, Santa-Rita Pintor, depois do retrato já mencionado, contava
sobretudo com o artigo de Bettencourt-Rabelo, que, sob a sua simples denominação
assumida de “Santa-Rita Pintor”, em seis notas de I a VI, estabeleceu a sua hagiografia.
Começava o artista “por nos surpreender” pela sua “sensibilidade mediumnica”,
“antena da sensibilidade universal”, passava a ser declarado um “denominador”, em
cuja “emoção há serenidade”, depois “artista que o génio da época produziu”, o seu
“espírito de adivinhão latino”, como ele próprio se define, “é como um buzio onde a
intuição resôa”. Depois ainda é dito: “personalidade complexa”, que na sua arte nos
dá uma “interpretação emocional e filosófica dos objetos”, “a configuração abstrata e
harmoniosa que lhes é própria”; a seguir assegura-se de que “a sua vida de pintor tem-se
desenvolvido n’uma evolução contínua”, como as “metamorfoses do bicho de sêda” e
que “as raças afirmam-se pelos genios que conteem”, “Portugal que é uma raça, deu
tambem a esta época um representante”: Santa-Rita Pintor. Assim, ele “traz consigo
a coragem e o orgulho de uma raça”, em conclusão, numa nota, garantindo-nos, no
fim, que “N’ele o Futuro é já Presente…”. Assim, de ponto em ponto, a imagem de
Santa-Rita se afina: “espírito renovador”, “genial temperamento”, ele “faz-se vertigem
perante a vertigem, mas domina a vertigem”; “é um iluminado que se afirma, que
electrisa, e atrai, e convulsiona a vida”. E “tão forte era o seu Pensamento e o seu
Espírito de Europeu, de homem moderno, que “um dia rompeu e inutilisou a Forma”.
E seria (no ponto IV da prosa) “a sua arte um lirismo geométrico” em “desejada
definição”. O signatário destas duas páginas destacadas em tipografia era um jovem
e sossegado poeta açoriano, de “odes” e “canções” publicadas em voluminhos, e
Guilherme Pobre 255

que viera à Capital, apresentado por Carlos Porfírio no Café Martinho (ao lado do
Teatro Nacional) a Santa-Rita e logo por ele foi convidado para “redacteur-en-chef ”
da sua revista, que “nos ia pôr em contacto com a Europa!”. Não o foi, nem editor
responsável, posto atribuído a um anónimo (se existente) C. Ferreira. Mais tarde,
em 1928, ele recordaria num livro de crónicas e memórias, O Mundo das Imagens,
o fascínio sofrido, tal como e principalmente, conta ele, o sofreu Almada Negreiros.
Depois ainda, em 1929, Bettencourt lançaria um magazine medíocre que ficou no
primeiro número, chamado Lisboa Galante, sem mais notícia até morrer, em 1969.
O autor de outro texto consagrado da revista era Raúl Leal: “L’Abstraccionisme
Futuriste. Divagation outrephilosophique – Vertige à propos de l’oeuvre géniale de
Santa Rita Pintor, “Abstraction Congénitale Intuitive (Matière-Force)”, la suprème
réalisation du Futurisme” refere-se à obra que vimos mal reproduzida na revista.
Era “L’Abstraction Futuriste” que o autor declarava alcançada nesta obra: Santa-Rita
“concebeu em síntese a irrealização integral de toda a teoria futurista sobre a vida!”.
Raúl Leal teria correspondência com o próprio Marinetti, a quem ele queria converter
às suas teorias, mais teosofistas, a certa altura. Trinta e nove vezes a palavra ‘Vertige’
é avançada neste breve texto de duas páginas, redigido em excelente francês, que o
“Vertiginisme” está mais para além do “mais o Futurismo pode dar”, “concebendo
então perfeitamente o “concrét-en-abstrait” – Vértige, “où il n’ya a rien de physique”. E
nisso “Santa-Rita Pintor “est un futuriste outré, son génie est la quintessence du GÉNIE
FUTURISTE!”. Raúl Leal (que, em 1924, se ocuparia também d’“a luxuriosa loucura de
Deus”, em Mário Eloy, falando do seu “ultra-Futurismo” – que já está historiada – e ainda
nos anos 1950 ele se debruçaria sobre o Realismo em convívio com Mário Cesariny) foi
o único dos grandes de Orpheu a ter, na altura, voz significativa a favor de Santa-Rita,
numa admiração sincera e fascinada, que ainda quarenta anos mais tarde se manifestará
em artigos da revista Tempo Presente, no n.º 3, em 1959, a insistir na “ética pessoal e
dignificadora” do seu “grande Amigo e admirável Artista”. Pouco depois, na mesma
publicação, Raúl Leal revelará uma magna obra com que Santa-Rita então sonhava: “O
Papão”. Tratar-se-ia de grandes pinturas a fresco, no Mosteiro dos Jerónimos, “desenhos
coloridos informes (…), que dessem imediatamente a forte impressão alucinatória
desse mundo astral, apavorante, expresso em abstrato, que evocassem (…) o mundo
abismicamente espectral que perturbava exaltadamente as imaginações delirantes dos
nossos antigos navegadores…”. Estamos em 1917, durante a congeminação desta grande
obra, de que Raúl Leal teria guardado a lembrança. “Soberbo sonho pictural”, Santa-Rita
levou-o consigo ao morrer logo três meses depois da publicação de Portugal Futurista.
“– Serão febres de África, senhor Doutor?” – “Ah, o Senhor Santa-Rita está em África”,
acudiu o médico desesperado com o complexo quadro clínico do moribundo. “– Não,
nunca lá fui…”. Foi a última anedota que sobre Santa-Rita correu em Lisboa…
256 100 Orpheu José Augusto França

No mês seguinte à sua desaparição (para ser publicado num In Memoriam de


um só autor, logo em 1919), outro modesto publicista seu amigo, poeta, ficcionista,
crítico, cronista meio simbolista, de “rezas d’ espumas de sarcasmo” – A Esmeralda
de Nero, publicado em 1915 –, e funcionário colonial de emprego contrariado, Carlos
Parreira (que Santa-Rita dizia ser o “único génio” que ele conhecia) escreveu sentidas
palavras da maior admiração. O pintor era para ele lembrado como o “representante
legitimo d’essa espécie de exilados, sempre feridos pelo gume das cousas circundantes,
sobrepairando numa atmosfera de abstrações e desdéns”; “figura grácilmente exangue
de fim de raça”, “voz de hemoptise”, “fronte de um palôr de camélia banca”, de “gestos
hiper-inquietos”, estridentes”, “alguém que nos domínios da Emoção e do Pensamento,
os fados sagraram um gran-senhor”. É, como tal (“figura negra de espectro, meio
Hamlet, meio espantalho”) que outra testemunha da época, um tal Rui de Aragão, o
vem a descrever, mais tarde, na revista Aventura, em 1940, onde Santa-Rita aparece
num auto-retrato desenhado, de cabeça afilada, duplamente traçada, cabeleira farta,
porte de dandy (n.º 2, 1942)…
Todas estas prosas circunstanciais de santificação valem o que valem, de emoção
e de estilo de época, que não podia ser futurista num “decadentismo” que lhe fora
ponte de passagem do séc. XIX, que se terminava sem se saber como, num Portugal à
procura de salvações, não só políticas, e mergulhado numa guerra alheia para salvar
as colónias mais ou menos próprias. Uma guerra “higiene do mundo”, para manifestos
sem consequências, a não ser, dramática e miseravelmente, para os lapuzes do Corpo
Expedicionário, “malta das trincheiras”, carne de canhão, “Joões Ratões” sacrificados.
Nanja para os poetas futuristas que manifestavam, sem darem corpo ao manifesto,
nem voluntariato à incorporação, fossem eles quais fossem, geniais como Pessoas,
Almadas, Amadeos. Não, porém, a fraca figura de Santa-Rita que, numa anedota que
também corria, não tinha corpo, era só o fato… E, para além dos textos hagiológicos,
logo publicados e sem leitores (e que temos que achar francamente medíocres em
termos literários – Raúl Leal à parte, bem entendido), as anedotas foi o que restou
do “Guilherme pobre”, cuja obra, jamais exposta individual ou coletivamente, a
seu derradeiro pedido, foi destruída pela família, derradeira atitude também de
auto-lendificação, mas também, certamente, de insatisfação, se não de dúvida, quanto
ao que pudera realizar.
Em 1965, no centenário de Orpheu, Almada Negreiros publicou memórias e
comentários e nelas coube a lembrança breve de Santa-Rita como “um dos mais
extraordinários espíritos que conhec[eu] em toda a [sua] vida”, vendo em “ele ser só
espírito afinal e a sua genial coerência”. Almada acrescentou que “cort[ou] relações
pessoais com quem se bastava com a notoriedade de andar por aí a brilhar com
‘histórias do Santa-Rita’, provocando gargalhadas e ignaro do magistral que nessas
Guilherme Pobre 257

mesmas histórias estropiadas ainda existia”. Porque tinha sido com ele, Santa-Rita, e
com Amadeo que Almada fizera juramento de estudar os painéis de Nuno Gonçalves,
rapando então, à navalha, os cabelos como “selo do nosso pacto!”. Assim se esboçou
– não pode saber-se com que grau de consciência dos outros dois comparsas – o que
viria a ser o leit-motiv da criação almadina.
Não foi diretamente Santa-Rita que Almada teve que falar, ele que lhe dedicará,
e a Amadeo, a conferência sobre o “Modernismo”, realizada em 1926, mas em seu
nome o fez quando, em 1932, à vinda de Marinetti (“académico do Fascismo italiano”)
a Lisboa, trazido por António Ferro (então a preparar-se para o Secretariado da
Propaganda Nacional, com a sua proposta de “Política do Espirito”), “em habilidades
do seu programa pessoalíssimo” – palavras do Almada –, veementemente protestou
nas colunas do Diário de Lisboa contra o ­­­­­­“ameno sarau mundano para deleite dos
pompiers nossos amigos”, realizado ante os três mais categorizados inimigos do
Futurismo em Portugal e que eram, além do António Ferro– editor menor do Orpheu
–, que trouxera o Marinetti, e de Adães Bermudes, presidente da Sociedade Nacional
de Belas-Artes, onde a sessão teve lugar, também, academicamente, Júlio Dantas,
o fantasma de 1915, “em memória dos nomes heroicos do Futurismo português”,
Almada Negreiros falou em palco.
Estamos em 1932. Vinte anos depois do centenário do Orpheu e cinquenta anos
depois do episódio Marinetti, alguém, um jovem José António Sampaio (que não
conheço), nas páginas da revista portuense Nova Renascença, em 3 de março de
1983 (n.º7), chamou à atenção para Santa-Rita, num artigo bem informado no seu
entusiasmo e que provocou reação imediata de João Gaspar Simões, no Comércio
do Porto (3 março 1983). Gaspar Simões que, achando ser “pecha dos portugueses
exaltar o valor dos que pouco ou nada fazem para, assim, pôr em cheque o valor dos
que muito realizam”, recusou a “reabilitação” dessa “espécie de símbolo clownesco do
modernismo órphico, que representa um dos maiores vícios da mentalidade nacional:
a inércia”, deste Santa-Rita; que “nada nos legou, além de um fabulário anedótico” e
cuja obra “nada representa, nada é”. Não será, com certeza, a última manifestação de
um desentendimento crítico fundamental que, na pena de quem se assumia como
a revista presença, “Nós, a presença”, 1935) – na altura a publicação de referência do
Modernismo da geração anterior – tem particular gravidade, no mesmo momento
em que Fernando Pessoa, nas páginas do lado da revista Sudoeste SW, de Almada
Negreiros, assinava como “Nós, os de Orpheu”, entre os quais Santa-Rita (não é
mencionado), para ele a “alta sensibilidade moderna”, “inteligentíssimo e muito
pitoresco”, do convívio havido em Lisboa, em 1915. Quanto a Santa-Rita, escreveu,
em setembro de 1915, “Orpheu não acabou, Orpheu não pode acabar”. Tratava-se de
surgir outra vez, à superfície, mais adiante.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu?
Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro
(com publicação de carta inédita a António Quadros)

José Eduardo Franco


CIDH / Universidade Aberta / CLEPUL1

“Ilha próxima e remota


Que nos ouvidos persiste
Para a vista não existe
Que nau, que armada, que frota
Pode encontrar o caminho”.
Fernando Pessoa

“Como as sereias temos uma dupla natureza – somos carne e pedra.


Os nossos ossos mergulham no mar”.
Vitorino Nemésio

“Logo, conhecem-se por Lusitanos os mestres daquele novo lar que


é como o retrato, a imagem, a figura de Ares, o campo luminoso e
fértil do Carneiro, onde o Pastor se recreia, atua e exalta alimentando
os Cavaleiros da Luz, os intrépidos vencedores da Treva, aqueles que
jamais renunciarão ao cimbório refulgente do Amor.”
Vasco da Gama Rodrigues

A tradição literária das ilhas atlânticas dos Açores e da Madeira contribuiu de


forma peculiar para aquilo a que chamamos a História das Ideias de Portugal2. É mais
conhecido o relevante contributo de autores da literatura açoriana, seja em prosa seja
em poesia, para pensar Portugal a partir do eixo atlântico insular, ou participando
em círculos culturais do Continente, onde a preocupação com o presente e o futuro
do país tem estado no centro da reflexão patente na sua produção filosófica-literária.
Neste quadro, destacaram-se autores açorianos que reivindicaram a centralidade dos

1 CIDH – Cátedra Infante Dom Henrique para os Estudos Insulares Atlântico e a Globalização/Universidade
Aberta/CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
2 Sobre este campo de pesquisa e análise, têm já vindo a lume diversos estudos e propostas de sistematização.
Recordamos aqui a nossa recente obra coletiva, onde apresentamos um elenco bibliográfico para dar a
conhecer este vasto território de investigação (FRANCO, J. E. e CALAFATE, P., 2012).
260 100 Orpheu José Eduardo Franco

Açores numa futura e profetizada regeneração de Portugal, num tempo em que o país
se reabilitaria da hiper-diagnosticada decadência dos últimos séculos e da perda do
lugar cimeiro no xadrez das nações, ou da posição de liderança mitificada e situada na
Idade de Ouro proto-moderna que teria ocorrido há cinco séculos.
É bem conhecida a contribuição de uma desconcertante autora açoriana na
segunda metade do século XX para a literatura portugalófila, reivindicando uma
recentração do Portugal futuro, que se redimirá da Idade de Ferro em que persiste,
no eixo insular representado em ilhas açorianas (São Miguel e Santa Maria). A
irreverente escritora Natália Correia metamorfoseia assim a utopia do Quinto
Império de Vieira numa perspetiva feminina. É, na verdade, mais no Quinto Império,
na versão mística e esotérica de Pessoa e de Agostinho da Silva, que Natália Correia
assenta a sua ideia, acentuando a sua inscrição no profetismo joaquimita – que
anunciava a Idade do Espírito Santo identificada com essa anunciada plenificação
da História – sob égide portuguesa, tendo como eixo de partida as ilhas açorianas:
“Consideremos que os homens que acham os Açores, e dão nomes às suas ilhas
são da confiança do Infante, por conseguinte impregnados da mística pentecostal
adoptada pela Ordem de Cristo que recebe dos Templários e dos Franciscanos. É
caso, pois, para perguntarmos se logo nos nomes que deram às duas primeiras ilhas
achadas – Santa Maria e São Miguel – não teremos um pórtico para a formação
de uma comunidade que testemunharia os primeiros passos expansionistas para a
fundação do Reino do Espírito Santo na história, projeto que seria o motor místico
dos rasgos descobridores do Infante”3.
Além desta inscrição insular do ponto de partida para a regeneração da humanidade,
Natália Correia oferece como novidade a perspetiva feminista do Quinto Império, ou
seja, esta será uma idade feliz na terra porquanto orientada por valores característicos
do universo feminino. O fundamento é dado através de uma afirmação ontoteológica
axiomática que considera a terceira pessoa da Trindade Divina como o lado feminino
de Deus, que inspirará a consumação da História4.
O outro aspeto peculiar que nos interessa aqui sobremaneira é o papel refundador
do Portugal futuro e do mundo novo que o nosso país protagonizará, realizado a partir
do arquipélago açoriano e do seu eixo místico-profético, constituído por Natália como
ponto de partida para que se opere uma renovatio temporum da história da humanidade.
Se é mais conhecida na cultura açoriana a afirmação de uma literatura e de uma
identidade própria, assim como a sua contribuição distinta e distintiva para a identidade
nacional, quer diferenciando-se desta quer complementando-a com vantagem,

3 CORREIA, N., 2005.


4 FRANCO, J. E., 2005.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 261

é muito menos conhecido o contributo de autores madeirenses e da sua literatura


regional para a História das Ideias de Portugal em perspetiva insular.
Todavia, a Madeira também gerou escritores que pensaram com preocupação
aguda a deriva histórica de Portugal depois da afirmação moderna como país-líder da
Europa, em direção a uma secundarização fruto de uma decadência que teria tornado
a pátria lusitana uma sombra do que foi5.
Assim como fizeram autores açorianos como Natália Correia, escritores madeirenses
houve que acrescentaram à tradição de pensamento sobre Portugal, e, especialmente,
sobre o seu destino futuro, uma historiovidência ligada a uma teleologia marcada
por uma ideografia insular, ou seja, que coloca o universo insular atlântico como o
centro recriador de carácter mítico-utópico para a regeneração portuguesa e para a
consumação da história humana.
Como enquadramento daquilo que podemos designar como uma antropologia
insular, importa sublinhar que, na Madeira, a relação do homem com o meio natural
modelou uma espécie de psicogeografia, em nosso entender, ou uma psicologia
com tonalidades específicas. Esta relação psicogeográfica comunga certamente das
características gerais da psicologia idiossincrática do homo insularis. Ângela Almeida
já tinha analisado esta relação simbiótica entre mentalidade e geografia na sua tese
de doutoramento, que aqui destacamos: “A origem líquida que caracteriza todo o
ilhéu marca, para sempre, a sua identidade. Para o homem, a ilha não se reduz ao
espaço sólido; antes, completa-se no mar que a prolonga. Quando o ilhéu se ausenta
da ilha e vive num continente, é como se a outra metade de si próprio tivesse ficado
na ilha. Apesar da luta interior pela adaptação a um novo espaço, no inconsciente do
indivíduo insular, acentua-se a ausência de mar”. Por outro lado, continua a autora,
a coexistência do mar em forma de ligação umbilical com a ilha “relembra a função
materna e, por isso, fecundadora da água”6.
A ideia de ilha está envolta numa forte simbologia modeladora, que faz eco de
certos arquétipos míticos primordiais. A imagem geográfica da ilha aparecendo no
meio do oceano e existindo enquanto território rodeado de água projeta nela a ideia
de nascimento, de maternidade genesíaca e na sua envolvência a origem líquida
primordial do universo e da criação da humanidade7. Assim, a ilha ganha uma
dimensão simbólica uterina, criadora, umbilical, de centro do mundo, uma dimensão
caldeada no inconsciente coletivo e exteriorizada “através da saudade da primeira Mãe,

5 Cf. FRANCO. J. E., 2013.


6 ALMEIDA, Â. D., 2005: 123.
7 Cf. ELIADE, M., s/d: 36, 58 e ss.
262 100 Orpheu José Eduardo Franco

água”, do regresso à “tellus mater”8, com quem se tem uma relação filial, de devoção,
de imitação e de desejo de regresso à ilha-mãe-natal, como uma espécie de fatalidade9.
Gilbert Durand, noutro ângulo, considera que “todas as imagens da terra e da água
contribuem para constituir uma ambiência de volúpia e de felicidade que constitui
uma reabilitação da feminidade”. Por isso, “o eterno feminino e sentimento de natureza
caminham lado a lado na literatura”10. Como já escrevemos noutro estudo, “a ilha detém
um capital simbólico de que decorrem potencialidades utópicas poderosas. A ilha é ao
mesmo tempo o lugar do paraíso, mas também a possibilidade da sua recuperação, isto
é, a possibilidade de uma nova criação”11. A ilha é também associada à noção de lar, de
aconchego materno, de casa íntima, do descanso, da regeneração da alma e do corpo,
a morada do amor, da harmonia, da liberdade e até da libertação dos sentidos, espaço
protegido da história turbulenta e fraturante dos continentes”12.
O campo simbólico da ilha representa uma realidade unificante e unificada, um
símbolo de agregação. De acordo com os dados da psicologia arquetípica de C. G. Jung,
o território insular insere-se no conjunto de símbolos de unidade13. A ilha é o lugar
recatado, separado, sagrado, onde, longe da confusão, se realiza a unificação do disperso.
É o lugar privilegiado de intermediação entre o humano e o divino14. Em suma, o
potencial simbólico do genus locii insular faz desta geografia simbólica o lugar de paz, de
fraternidade, no fundo, “um lugar capaz de Deus”. Talvez por isso mesmo o conceito de
Utopia ideado por Thomas More situe numa ilha a construção de uma sociedade ideal15.
Um desses autores madeirenses que pensou Portugal, tendo como pano de fundo
a sua origem insular, foi o hoje desconhecido Vasco da Gama Rodrigues. Funcionário
público, mas apaixonado pelo mundo das Letras e da História, conviveu com poetas
que vinham do Círculo do Orpheu, nomeadamente Fernando Pessoa, e partilhou das
suas preocupações relativamente ao Portugal em estado de nevoeiro de então. Nascido
a 27 de janeiro de 1909 no Paul do Mar, fez a formação liceal na capital madeirense
e viveu em Moçambique, mas acabou por se radicar em Lisboa, onde se tornou
funcionário do Secretariado Nacional de Informação. Como funcionário público

8 Cf. ALMEIDA, Â. D., 2005: 127.


9 Cf. Ibidem: 276 e ss.
10 Cf. DURAND, G., 1989.
11 FRANCO, J. E. e GOMES, C. C., 2007: 57. Cf. NEMÉSIO, V., 1932.
12 Cf. BACHELARD, G., 1942: 333 e ss.
13 JUNG, C. G., 1956 e 1989.
14 ALMEIDA, Â. D., 2005: 172.
15 Cf. MORUS, T., 1961.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 263

desta instituição chegou a desempenhar o cargo de inspetor da secção encarregada da


área hoteleira. Faleceu a 3 de maio de 1991, em Lisboa.
A par da sua atividade profissional muito burocrática interessou-se pela literatura
e pelo jornalismo, tendo colaborado no Diário da Madeira e no Diário Popular, onde
tratou assuntos de ordem vária, desde os de carácter económico e social até temas de
identidade e de cultura.
Para além da publicação em periódicos e de uma obra que parece ter ficado
inconclusa, com o sugestivo título A Reforma do Mundo, a sua ligação a Fernando
Pessoa, a Luna de Carvalho, a Agostinho da Silva e a António Quadros faz-se também
pela semelhança do esquema hermenêutico que preside ao diagnóstico negativo sobre
os últimos séculos da história portuguesa e da aguda percepção de quebramento
nacional da época. Esta leitura decadentista e a sua visão da história futura de
Portugal é realizada em três pequenas obras publicadas, duas das quais em vida, com
os seguintes títulos: Atlantes (1961) e As Três Taças (1972); a obra póstuma Cristo das
Nações, publicada em 1995, completa a tríade.
Se há semelhança da sua poesia profética e utópica com o diagnóstico dos poetas
do Orpheu e com os juízos agudos dos autores da Filosofia Portuguesa com quem
se corresponde, avultando nesta correspondência a camaradagem com António
Quadros, Agostinho da Silva e Júlio Fragata, encontramos uma peculiaridade
distintiva na forma como intui o futuro de Portugal no eixo mítico-simbólico de
onde deverá partir a reabilitação do nosso país. À semelhança de autores homólogos
açorianos, Vasco da Gama Rodrigues confere uma centralidade atlântica e insular na
assunção do Portugal futuro.
No seu primeiro livrinho, Os Atlantes, apresenta no capítulo inicial, intitulado
“Lusitânia”, o Portugal primigénio, as origens heroicas do povo Português, ou melhor,
o Proto-Povo Português, ou seja, os Lusitanos; no segundo capítulo, “Portugal”, este
é concebido como povo-líder da Europa na Modernidade, sendo os portugueses
os construtores de um mundo unido pelo conhecimento da geografia planetária; e
o terceiro capítulo, dedicado à Atlântida, profetiza ser a hora de erguer o Portugal
futuro, ou o império do Mar com o vigor dos portugueses do futuro, os Atlantes16, que
emergirão da ilha encantada, no meio do atlântico, e construirão o Império do Mar.

16 O etnónimo “Atlantes” designa na acepção de Vasco da Gama Rodrigues os habitantes da Atlântida, ou os que
descenderão deste ilha-continente que emergirá do Atlântico, que serão os cidadãos construtores do Portugal
e do novo mundo futuro. Todavia, o nome próprio “Atlante” tem uma ressonância mítica que remete para
o gigante assim denominado na mitologia grega como um dos Titãs, filho de Jápeto e Climanes. Era quem
tinha sido encarregado por Zeus para segurar as colunas celestes onde assenta a Terra. Por seu lado, existe
outra tradição em versão feminina, que faz das Atlantes as filhas de Atlante, as quais alvo de um rapto pelo
rei do Egito, Bursiris, e depois devolvidas a seu pai por Hércules que as resgatou. Outra tradição ainda chama
Atlantes aos habitantes da Mauritânia no território ocidental de África, que teria sido governado por Atlas.
264 100 Orpheu José Eduardo Franco

Inscreve-se a sua ideografia da antiguidade portuguesa na corrente lusitanista que


desde o século XVI, com André de Resende e outros humanistas, situa as origens de
Portugal na chamada primigénia pátria Lusitânia, retrotraindo os começos do país a
uma antiguidade pré-romana17.
Fazendo eco de autores antigos e modernos que focaram a Lusitânia, no extremo
ocidente do continente europeu, como detendo características geográficas e climáticas
especiais, o lugar de descanso das Hespérides que desfrutavam as maçãs de ouro que
Hércules teve de roubar, Vasco da Gama Rodrigues acentua o carácter mítico do
território dos Lusos, descrevendo-o esotericamente como um lugar iniciático, uma
verdadeira natio onde a luz natural, de per si única, oferece uma visão especial aos que
ali nascem. Canta assim na epítome inicial do livro:

“A Lusitânia é o lugar do fogo sagrado da Terra, o Lar eterno do Povo da Luz. Éden do Mundo,
original e criador, tornou-se o alvo da cobiça, ambição e inveja de todos os contrários, ou
seja, de quem é natural ou pertence ao paralelo oposto e, portanto, ausente de Luz.”18

Viriato é definido como o proto-português, chefe tribal e herói afrontador do


Império Romano que queria dominar toda a Ibéria, o primeiro a defender o seu povo
da cobiça das potências estrangeiras que ao longo dos séculos, em versões, modos
e proveniências variadas, vão tentar conquistar a Lusitânia. A obsessão estrangeira
de garantir o domínio deste território é uma estratégia ideográfico-literária, usada
por alguns ideógrafos da nacionalidade portuguesa, para evidenciar historicamente o
quão especiais e desejadas eram esta terra e este povo19.
Ao retratar poeticamente a paixão consumada de Viriato por Luzia, recorre a
uma linguagem toda ela simbólica, em que a etimologia das palavras transporta
mensagens e estados que depois são usados para avaliar a incidência ou
distanciamento do modelo ideal origem em perspetiva de fundo platónico. A sua
poesia é de tom esotérico, visando revelar o Portugal primordial, escondido ou
mesmo oculto:

“Neste recanto solitário e distante


Onde a Ibéria acaba
– A Oeste –

17 Cf. FRANCO, J. E., 2000: passim.


18 RODRIGUES, V. G., 1961: 13.
19 Um dos autores que recorre de forma bem enfática a esta estratégia é precisamente Fernando Oliveira, na sua
primeira História de Portugal, escrita em torno de 1580. Cf. FRANCO, J. E., 2002-2006.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 265

Anda Viriato – viril adolescente –


Inquieto, ansioso, ardente,
Em busca de uma doce noite nupcial,
Preso de Amor pela divina Luzia,
A Senhora aos pés de quem se humilha a Treva”. 20

Viriato é a figura prototípica do português viril, é a personificação do modelo


heroico da virilidade por excelência, e Luzia é a luz da sabedoria. Quando a história
portuguesa não manteve esta união (quebrada com o rapto de Luzia) entre a força
viril, corajosa e empreendedora com a sabedoria que sabe ponderar, mas também
criar e ver mais longe, o país sucumbiu ao domínio e aos interesses que lhe eram
estrangeiros, amoleceu a sua ligação ao fogo primigénio, enfraqueceu e tornou-se
sombra. Eis, portanto, a base da explicação esotérica da decadência portuguesa,
que se explica pela descontinuidade na ligação às origens e aos dois grandes tempos da
história exemplar de Portugal: a idade mítica heroica das origens lusitanas e a idade de
ouro das descobertas e dos seus valorosos portugueses, vencedores dos mares ignotos.
No capítulo dedicado a Portugal, é a saudosa pátria dos descobrimentos, ponto de
chegada da fundação desta pátria para grandes feitos ao serviço da humanidade, que
será agora descrito como o Portugal traído, arruinado. Na gesta do desbravamento
dos mares e da criação da era da proto-globalização, o autor encontra o sentido da
missão portuguesa e da razão de ser histórica e mística da existência desta nação:
ser mensageiro universal do Amor.
Atribui a Portugal o estatuto de cabeça da Europa. Esse lugar de cabeça e logo fronte
permite-lhe explorar simbolicamente o exercício de três sentidos fundamentais para
a estratégia de afirmação pioneira da Europa no mundo: a boca que respira, os olhos
que veem e a cabeça que é consciência. Nas palavras mesmas do autor: “Portugal a
cabeça, cuja fronte patenteia três sentidos, o que respira, o que concede a palavra e o
da visão, é o Consciente da Europa [...].” Portugal é visto como cabeça, coração, mas
também é força capaz de fazer vencer o ideal para que foi fundado:

“Encarnação de Marte – o Mestre da Força, da Ação e da Luta – é o estratega excelente, o


criador das Quinas, dos Escudos ou Heróis, o construtor eminente dos Castelos – a sua
invencível Fortaleza – e o realizador, por mérito próprio, do seu nobre, glorioso e ariano Solar.
Representando o princípio masculino, a força centrifuga, o movimento de trasladação é o
génio do Amor, da Aventura e da Saudade, o protetor dos Argonautas, o Siva da Fé, aquele

20 RODRIGUES, V. G., 1961: 15.


266 100 Orpheu José Eduardo Franco

que debruçado na sua Ponte-Cais olhando fixo o cristalino do Mar avista ali, diante de si,
num só ponto, os quatro pontos cardeais, a par da vitória daqueles Argonautas contra todos
os Titães e contra o próprio Mestre da Morte e dos Infernos e, por fim, como prémio, o
mundo-terra a seus pés.
Portanto, os Portugueses – os homens dos portos – vencedores do Mar Tenebroso e
descobridores dos quatro caminhos do Mundo, foram os construtores, os instituidores, os
fundadores do império.”21

O tempo que sucedeu a este tempo glorioso é o tempo que no presente se


experimenta: o enfraquecimento de Portugal e a perda da sua dianteira na liderança
das nações. Hoje Portugal é uma sombra do que foi, mas clama para continuar a
cumprir a sua missão, entendida como estando inconclusa.
Este quebrantamento português é bem descrito simbolicamente na parte
intitulada “Letargia”, onde ecoa um tom dramático e apocalíptico, dado/conferido
pelas figuras-símbolo e estados críticos utilizados poeticamente:

“Àquele passo triste e doloroso,


Um outro infausto sucedeu:
Os quatro Cavaleiros da fome cavalgando
Turbulentos, inquietos e furiosos
Vão por aqueles senhorios semeando
O infortúnio, a dor e o luto.
Porém, o Carneiro sonolento, de seu leito
Não desperta, agora ausente o Pastor.
Olhem o velho Povo da Luz, a Luz traída,
Sujeito a dura escuridão!
Como seus olhos vendados pela Treva
Num mar de lágrimas, sem brilho estão!
E agora vejam como o Califa voluptuso
No silêncio da noite escura contra aquele avança.
Mas o Carneiro sonolento, de seu leito
Não desperta, ainda ausente o Pastor!”22

21 Ibidem: 25.
22 Ibidem: 27-28.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 267

O terceiro capítulo desta obra cheia de figuras-símbolo, ansiando messianicamente


por um líder restaurador personificado no Pastor ausente, que faz lembrar mutatis
mutandis a Mensagem de Pessoa, vem revelar que o futuro de Portugal, o seu profetizado
futuro glorioso, está escondido no Oceano à sua frente. Recupera o significado simbólico
do mito da Atlântida e da sua associação sebastianista à tradição profético-mítica
do Encoberto para apresentar uma versão peculiar deste profetismo nacionalizante
português. Sendo os portugueses, mormente os portugueses da Idade de Ouro dos
Descobrimentos, os homens do Mar e, que no Mar tiveram e deveriam ter timbre da
sua glória, entende que o futuro de Portugal está no mar. E do mar, de um território
mítico insular, virginal, imaculado, virão os homens do futuro. Assim antevê o autor:

“Reino de Mar, abrange todo o oceano desvendado pelo Argonauta, por aquele que,
ardendo em fé, deixou certa vez o porto de Portugal em busca do sagrado vaso do amor
imortal João – o Prestes. Ilha encoberta, diluída sobre todo o espaço da Terra, é a Pátria do
Ar – o Terceiro grau o Ar –, a Essência Quinta mergulhada em sonhos isentos de manchas,
sombras e terra, o centro autêntico da inteligência da redenção universal, o núcleo do
Coração generoso do Homem sem limite nem lugar. [...] Ora os Lusitanos, os homens dos
portos, os descobridores do mar vivo e da Ilha Encoberta – a Pátria da Essência Quinta –
como todos os discípulos da última pessoa da Trindade, chamam-se ATLANTES”23.

Aqui se encontra um aspecto que, para lá da profecia de um território aquoso para


a realização teleológica da vocação da pátria portuguesa, afirma um outro território
ainda mais etéreo, configurado no conceito de Pátria do Ar. De algum modo, vemos
aqui, para além da visão essencialista patente na ascendente gradação dos elementos
fogo/terra/água e ar, o papel crescente da aviação na afirmação das potências hodiernas
pelo domínio dos ares24.
De qualquer modo, é interessante observar a gradação histórica oferecida
simbolicamente pelos quatro elementos explorados para efeito de caracterização
dos grandes tempos de Portugal: o fogo corresponde à terra sagrada e primordial da
Lusitânia, a terra coincide com a afirmação histórica de Portugal, a água é o elemento
simbólico para traduzir o tempo épico do seu império marítimo, e o ar a ascensão
futura a partir do oceano, para cobrir a terra com o império pneumático, ou seja,

23 Ibidem: 35.
24 Podemos estabelecer alguma aproximação a um outro autor madeirense, Abel Tiago Vasconcelos e Sousa,
que tinha escrito em 1924 uma obra teleológica com o nome Sinais dos Tempos, onde preconiza, eufórico com
as pioneiras viagens áreas de cruzamentos dos ares entre continentes de Gago Coutinho, que Portugal e o seu
Quinto Império passará pelo domínio dos ares, através do desenvolvimento da tecnologia aeronáutica sob a
liderança portuguesa. Ver SOUSA, A. T. V., 1924.
268 100 Orpheu José Eduardo Franco

a idade do Espírito Santo. Na visão mística do futuro, Portugal e a humanidade


realizam-se na etereadade, numa era espiritual de amor puro, estabelecida pelo
regresso do Encoberto, que se levantará com a emersão da Atlântida encantada:

“Desvendaram num delicioso leito o virginal corpo da Atlântida.”25

Nesta visão profética e futurista, que valoriza a vocação marítima de centralidade


atlântica e insular de Portugal, Vasco da Gama Rodrigues mistura elementos da
tradição joaquimita e da sua utopia da Terceira Idade do Espírito Santo com elementos
da corrente sebastianista, corrente profético-nacionalista portuguesa, e com elementos
provenientes das leituras astrológicas das idades da história. Fazendo coincidir o
advento do Quinto Império com a chegada da Era do Aquário, o seu profetismo, em
muito semelhante ao da filosofia portuguesa e do esoterismo simbolista pessoano,
incluiu não obstante uma mescla de elementos que o aproxima do sincretismo típico
da corrente contemporânea New Age. Tal é evidente na amálgama de elementos
tradicionais com elementos contemporâneos, em vista de uma síntese que deseja ser
integradora de opostos, para afirmar uma determinada verdade sobre o futuro de um
povo ou da própria humanidade.
Num tom de voz profético, com ecos evidentes do tom da Mensagem de Fernando
Pessoa, o autor ecoa o grito de chamada dos portugueses para a missão do futuro num
presente onde tudo parece caído. O “É a hora” de Pessoa é semanticamente próximo
do “Agora é” de Gama Rodrigues:

“Ó Portugal! Agora é o tempo de realizar a Atlântida, o Reino da Ilusão de Aquário, Paraíso


do Mundo.”26

A teologia da história de Joaquim de Flora e a sua teologia das três idades ou três
estados da história da humanidade está bem patente no esquema hermenêutico de
Vasco da Gama Rodrigues, o qual estrutura a obra publicada em 1972, As Três Taças. A
deriva histórica do Ocidente é apresentada como uma evolução em tensão dramática de
afirmação espiritual em ordem a uma consumação numa Idade do Espírito vencedor.
Figuras-símbolo são usadas para representar as idades da história que preparam a
terceira e última idade. As pessoas da Trindade Divina são as primeiras configuradoras
divinas das três idades humanas, marcadas pelo ritmo do ciclo triádico da Idade de

25 RODRIGUES, V. G., 1961: 42.


26 Ibidem: 53.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 269

Ouro/Idade de Ferro, Decadência/Renovatio temporum ou recuperação do Paraíso


Perdido. O primeiro tempo é o do Pai, o da Alegria; o segundo tempo é o do Filho, o
da Dor; e o terceiro é o tempo do Espírito Santo, o da graça. A figura prototípica da
Idade do Pai é Moisés, o herói; a da Idade do Filho é Jesus, o Sábio; e a da Idade do
Espírito Santo é o Príncipe da Paz, o Sonho. Estas idades e as suas figuras-símbolo
estão adscritas a lugares-centro e a templos simbólico-míticos: Jerusalém, o templo da
Luz; Roma, o templo da cruz; e a Ilha do Encoberto, o Templo do Amor. Nesta associação
triádica, Gama Rodrigues identifica ainda tês povos: os Hebreus, no primeiro Estádio;
os Romanos, no segundo; e os Atlantes, a culminar o tempo final da história no terceiro
estádio. Aqui, os Atlantes são os portugueses do futuro, que fundarão a humanidade nova:

“De vela nova subida


Venceu todo o elemento
E as correntes de Ar e Mar.
A Terra foi toda unida.
O maltês d’oiro sedento
Falta agora conquistar.
[...]
Violou o Amor? Quem ignora
Que dar luz ao mundo inteiro
Foi Ato de Criação?
Quem vem saber sem demora,
Que toda a Cruz foi braseiro
Para a nossa Redenção?”27

Vasco da Gama Rodrigues completa na obra póstuma Cristo das Nações a sua
hermenêutica, fazendo da história portuguesa uma história crística. Portugal e a
sua teologia da história seria uma metonímia da vida e do destino de Cristo, uma
espécie de encarnação da missão e sentido da vida de Cristo. Se Cristo e os seus gestos
aconteceram para a redenção do género humano, Portugal encarnaria como povo
essa missão, para a consumação da transfiguração da humanidade numa idade final
da história, desocultando o mundo que vivia nas trevas e dando-lhe o sentido e a
realização final.
À semelhança de conteúdos de outras tradições profético-nacionalistas, como o
caso conhecido da tradição moderna da Polónia28, país que também se via “como

27 RODRIGUES, V. G., 1972: 54-55.


28 FRANCO, J. E., 2009.
270 100 Orpheu José Eduardo Franco

Cristo das Nações”, Vasco da Gama Rodrigues identifica a missão de Portugal com a
missão de Cristo, ou mais ainda, Portugal seria o instrumento para consumar à escala
universal a missão do Salvador. Portugal, qual povo eleito da Nova Aliança, de que o
povo de Israel era prefiguração, seria o instrumento para universalizar a redenção de
Cristo agora proporcionada a todo o género humano. Esse processo teria começado
com as viagens de descobrimento e missionação planetária no século XV e aguardava
agora a plenificação na Terceira Idade do Mundo29.
Vasco da Gama Rodrigues, através do recurso a elementos de várias tradições
e correntes, mas acentuando a sua óptica insular, resultante da sua marcada
proveniência insular, propõe um futuro glorioso para Portugal, que o liberte da
sombra em que vive, e cumpra de forma plena a missão que a sua origem e a sua
história determinam.
Este poeta insular recusa, apesar da abordagem do seu pensamento poder numa
determinada óptica indicar isso mesmo, que o apodem de sebastianista ou o inscrevam
em correntes ideográficas de Portugal nas quais não se revê. Numa carta inédita a
António Quadros, que aqui reproduzimos em anexo, Vasco da Gama Rodrigues
reivindica para si o estatuto de poeta que canta o Amor e anuncia o Reino do Amor,
que não é outra coisa do que o Reino do Espírito Santo, a Idade do Espírito, a idade
final da História. Com efeito, o Amor é o cerne da sua ideia de Portugal, o motor
íntimo da história de Portugal, e não qualquer sebastianismo ou astrologismo. António
Quadros, na sua emblemática obra sobre a poesia e filosofia sebastianista portuguesa,
tentou colocar-lhe rótulos que desagradaram a Rodrigues. Definiu a sua obra poética
como “inteiramente uma filosofia mítico-profética da história”, “excessivamente
dominada pela linguagem cifrada”, apresentando-o como “astrólogo”, que “tende mais
a uma conceituosa geometria esotérica do que a uma poética”30. Gama Rodrigues não
concordou com esta análise e escreveu-lhe a manifesta o seu desagrado, pedindo que
revisse a sua proposta de avaliação e classificação da sua poesia patriótica (Ver carta
anexa).
O “Agora” deste poeta insular é, segundo entendemos, o mesmo grito do “É hora” de
Fernando Pessoa e participa neste escopo bem português de reforçar a sua identidade
histórica através do apelo do futuro para superar a ideia de insuficiência do presente.
Atualiza a utopia portuguesa do Quinto Império, mas inscrevendo-a plenamente
na tradição teleológica joaquimita, projetando a Terceira Idade da História, sob
égide portuguesa e assente no influxo recriador do Paráclito como o dispensador da
plenitude do amor.

29 Cf. RODRIGUES, V. G., 1995.


30 Cf. QUADROS, A., 2001: 153-154.
Um poeta madeirense herdeiro do círculo do Orpheu? Vasco da Gama Rodrigues e a sua ideografia do Portugal futuro 271

Portugal, fundado no Amor e para ser o veículo do Amor Universal, recuperará


o seu sentido primigeniamente inscrito na sua historiogénese e cumprirá a missão
inconclusa.
Assim, como o entenderam os grandes ideógrafos na nacionalidade portuguesa,
no futuro joga-se sempre a justiça de um passado-promessa que, tendo sido grande,
se quer que seja maior.

Anexo
Carta Inédita de Vasco da Gama Rodrigues a António Quadros

Lisboa, 3 de junho de 198331

Caro António Quadros,

Informado como fui por um amigo de que você tinha dedicado alguma atenção no
seu recente livro acerca do sebastianismo à obra de poesia por mim publicada, tive a
curiosidade e o interesse de verificar o que a experiência de homem de 74 anos poderia
causar no pensamento reflexivo de um homem de 60. Creio que é esta a sua idade.
Além disso, convivemos há cerca de um vinténio. Perdoe-me você a discordância que
manifesto perante o seu modo de interpretar o sebastianismo como denominador
comum dos portugueses ilustres que publicaram obras sobre este tema ou sobre temas
convergentes. Com efeito, parece-me que o seu ponto de vista se situa tão alto, é tão
geral, que engloba no mesmo mundo teorias, pessoas e obras completamente díspares e
que, por mais que pense, julgo não terem como eixo o mito sebástico. Estão neste caso,
por exemplo, Teixeira de Pascoais, José Régio e Fernando Pessoa, para só me referir a
alguns que você cita na sua obra. Com efeito, mostram tão radicais diferenças que não é
possível determinar o seu denominador como o sebastianismo em que comungariam. As
afinidades entre estes poetas são realidade, mas Teixeira de Pascoais aspira à saudade –
que é uma deusa feminina e mergulha por entre as sombras; José Régio oscila indeciso
entre um Cristianismo não Católico e uma ideia de Deus que se lhe afigura longínqua
relativamente a este mundo; quanto a Fernando Pessoa, você estudou-o longamente
para poder concluir, como concluiu, das suas radicais diferenças em relação àqueles dois
poetas.

31 Carta patente no Espólio de António Quadros, obtida por gentileza de Rosa Canarim Fina. Transcrição feita
por Joana Balsa de Pinho e José Eduardo Franco.
272 100 Orpheu José Eduardo Franco

Outro exemplo. A obra por mim publicada nada tem que ver com o sebastianismo e o
António Quadros sabe bem que nela se anuncia o Reino do Amor, o Reino do Paracleto.
Assim, não consigo entender como pode envolver esta obra na comparação com a obra
publicada por Fernando Pessoa. De resto, como você sabe a comparação é usada como
processo mágico de que resulta o mais ou menos, processo este muito utilizado pelo
jornalismo vulgar, dado que representa a forma inferior da imaginação. O António
Quadros certamente há de aceitar que um poeta preferira à comparação a analogia.
Muito estranhei também o ter-me apodado do astrólogo quando você tratava de uma
obra poética. Como sabe, a astrologia é atualmente uma profissão remunerada que,
se não é reconhecida pela Universidade, é publicitada, porém, pelos jornais. Requer,
portanto, que quem a pratique receba remuneração e é frequentemente associada ao
charlatanismo.
Se alguma vez a minha amizade me fez dar-lhe indicações das relações dos astros
com a vida humana e particularmente com a sua não há entre as pessoas que comigo
convivem o reconhecimento de tal profissão. De facto, nunca foi essa a minha intenção e
prática. Por isso, peço-lhe que se tiver outra oportunidade para se referir à obra por mim
publicada, se lhe refira como a obra publicada por um poeta. Na sua opinião boa ou má.
Assim, só peço o mesmo que você concedeu a quem comigo comparou: Fernando Pessoa
fazia horóscopos e ninguém disse que ele era astrólogo.
Um abraço do amigo que o lê com muita atenção,

Vasco da Gama Rodrigues

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A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português

Zilda de Oliveira Freitas


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Palavras-chave: Mito; Ulisses; Fernando Pessoa; Modernismo


Resumo: Procurarei refletir sobre as reminiscências do mito de Ulisses no processo de
individuação do sujeito modernista. Para isso, apresentarei um estudo comparativo entre o
Ulisses homérico e a figura mítica que nos é apresentada por Fernando Pessoa em Mensagem.
Para além de ser um livro que reconstrói de forma mítica e poética a história de Portugal,
Mensagem é um texto emblemático que nos permite refletir acerca da concepção pessoana sobre
a sociedade portuguesa, desde a formação do povo lusitano até a era modernista. Importa-nos
questionar: qual é a Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português? Ao propor algumas
possíveis respostas, enfatizarei o que explicitaram os investigadores Mircea Eliade, Claude
Lévi-Strauss e Joseph Campbell. Ressaltarei que o conteúdo mítico da Odisseia – sob a ótica
pessoana – traduzir-se-á por uma proto-história da subjetividade humana e como prefiguração
da trajetória do indivíduo, num constante fluxo simbólico e literário, da Odisseia à Mensagem.

A pátria fugira da terra para a região aérea da poesia e dos mitos.


(MARTINS, J.P. O., 1882: 69)

Nas palavras de Fernando Pessoa, «Só duas nações – a Grécia passada e Portugal
futuro – receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as
outras. Chamo a atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa
e Atenas estão quase na mesma latitude» (PESSOA, F., 2000: 197). A influência do
helenismo é perceptível em diversos momentos da produção literária pessoana. Aqui
selecionamos Ulysses1, poema integrante da primeira parte de Mensagem. Parece-nos
merecedor de especial atenção o texto de Roman Jakobson sobre poema pessoano
referido, que ressalta a presença mítica do rei de Ítaca em Lisboa e lembra-nos que:
“O herói da estrofe central, Ulisses, – cujo desembarque lendário na embocadura do
Tejo se deve apenas a um vínculo paronomástico entre seu nome e Lisboa, e cuja
existência tem, ela mesma, um caráter mítico” (JAKOBSON, R. 1970: 100-101).

1 Utilizaremos a grafia Ulysses para registrar o título do poema pessoano e Ulisses para o nome do herói grego,
a fim de distingui-los.
276 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas

Importa-nos destacar que a mítica passagem do herói grego2, por terras lusitanas
é, ao mesmo tempo, rememoração do passado e comemoração do devir português.
Em Ulisses está concentrada a reminiscência do mito referido na fundação da pátria
e, concomitantemente, a expectativa sebastianista pelo vindouro Quinto Império
português, pois, assegura António Apolinário Lourenço nas palavras seguintes:

Como se depreende da resposta de Pessoa ao Inquérito “Portugal, Vasto Império”, o mito


era a “mentira” admitida como verdade, que as sociedades necessitavam para elevar a
sua moral. Tal como Ulisses era o fundador mítico de Lisboa, D. Sebastião era o mítico
fundador do Quinto Império, cultural e espiritual. “Que mal haverá em nos prepararmos
para este domínio cultural, ainda que não venhamos a tê-lo? (...) Se falharmos, sempre
conseguimos alguma coisa – aperfeiçoar a língua. Na pior das hipóteses, sempre ficamos
escrevendo melhor” (LOURENÇO, A. A., 2009: 243).

Ao apresentar-nos Ulisses como o “fundador mítico de Lisboa” e D. Sebastião


como “o mítico fundador do Quinto Império”, como ressalta António Apolinário
Lourenço no trecho acima, Fernando Pessoa eleva imaginariamente o seu país ao
status de império cultural – como fora a Grécia – e império espiritual – como tem
sido a Cristandade. O patriotismo assume matizes messiânicos na literatura pessoana,
com nuanças de cunho fundamentalmente míticas – e não exclusivamente políticas.
Declara Fernando Pessoa: “Sou, de facto, um nacionalista mystico, um sebastianista
racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradicção com isso, muitas outras coisas”
(PESSOA, F., 1998: 251). Na figura mítica do ardiloso herói grego, Fernando Pessoa
encontra elementos que alimentarão sua obsessiva busca histórica a respeito da
emergência da nacionalidade portuguesa. Sob a ótica de Mircea Eliade, o mito é um
exemplo a ser seguido, como se lê no excerto seguinte:

O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi feito, e ajuda-o a
eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado do seu empreendimento. Por
que hesitar ante uma expedição marítima, quando o Herói mítico já a efetuou num tempo
fabuloso? Basta seguir o exemplo (ELIADE, M., 2007: 125).

Assim sendo, Ulisses, vitorioso em sua tentativa de reconstruir Ítaca quando da


guerra retornou, seria um modelo do que poderia acontecer no aguardado regresso de

2 A este nível, atente-se na possibilidade de “ir assim reatar o fio da tradição grega perdida”, mencionada por
Dionísio Vila Maior n’As lições de Fernando Pessoa (VILA MAIOR, D., 2012: 273).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 277

D. Sebastião. Assegura o mitólogo citado que “o símbolo, o mito e o rito exprimem, em


planos diferentes e com meios que lhes são próprios, um complexo sistema de afirmações
coerentes sobre a realidade última das coisas, sistema que podemos considerar como uma
metafísica” (ELIADE, M., 1992: 17). É, portanto, metafísico o retorno sebastianista, mas
real seria o ressurgimento de Portugal como nação dominante – e não mais dominada e
submissa às exigências do Ultimatum inglês e suas consequências perceptíveis no início
do século XX, época em que viveu Fernando Pessoa.
Não por acaso, escreve Mircea Eliade, que “a memória dos acontecimentos históricos
e das personagens autênticas modifica-se ao fim de dois ou três séculos, a fim de
poder participar no modelo da mentalidade arcaica, que não pode aceitar o individual
e só conserva o exemplar” (ELIADE, M., 1992: 59). Como se pode verificar, este
fragmento colabora para o entendimento do mito de Ulisses3 não apenas como a saga
de um homem, mas como representação coletiva do desejo nacional grego, latino e
português – é o exemplar, o modelo.
“Basta seguir o exemplo” (ELIADE, M., 2007: 125). O mito é o exemplo a ser
seguido por todos porque, como assevera Mircea Eliade, “O mito é que falava a
verdade: a verdadeira história já pouco mais era do que mentira. O mito tornava-se
mais verdadeiro na medida em que conferia à história um sentido mais profundo e
mais rico: ele revelava um destino trágico” (ELIADE, M., 1992: 60-61). O “destino
trágico” de Ulisses é, afastando-se da família, vencer a guerra; terminada a guerra,
enfrentar os perigos do mar; encerrada a viagem marítima, vencer os pretendentes
de Penélope; vencidos os adversários, realizar o ritual de ofertas aos deuses para
pacificá-los. E depois disso? Seu destino trágico de homo ambulus é permanecer em
busca de (auto)conhecimento, no seu mito pessoal do eterno retorno à condição de
forasteiro e conquistador.
Por sua vez, Joseph Campell compreende o mito como expressão inconsciente do
desejo humano de superar seus conflitos anteriores. Sobre o tema, escreve o mitólogo:

Os ousados e verdadeiramente marcantes escritos da psicanálise são indispensáveis ao


estudioso da mitologia. Isso ocorre porque, como quer que encaremos as interpretações
detalhadas, e por vezes contraditórias, de casos e problemas específicos,

Freud, Jung e seus seguidores demonstraram irrefutavelmente que a lógica, os heróis e os


feitos do mito mantiveram-se vivos até a época moderna (CAMPBELL, J., 1997: 6).

3 Mircea Eliade afirma que “A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a
mais lata, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo
primordial, o tempo fabuloso dos ‘começos’” (ELIADE, M., 2007: 11).
278 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas

De acordo com as proposições de Joseph Campbell, o indivíduo Ulisses faria uma


viagem mítico-simbólica no interior de sua própria natureza psicológica, à procura
de si mesmo, de equilíbrio, de conhecimento. Ao se referir ao mito de Ulisses, Joseph
Campbell ressaltou diversas vezes que a narrativa sobre o herói grego é resultante de
um complexo enredo coletivo, que objetiva a superação dos terrores irreais e atrações
ambivalentes, como supramencionados anteriormente (CAMPBELL, J., 1997: 88).
A psicanálise procura equacionar e promover a superação dos medos e conflitos.
Justamente por isso, defende Joseph Campbell o estudo e interpretação dos mitos
recorrentes durante as consultas psicanalíticas.
Poder-se-ia acreditar que – se a presença de Ulisses em Lisboa não fora física –
certamente o imaginário civilizacional e a estrutura mítica grega lá estivera presente. Se
o indivíduo não esteve em Lisboa, no momento da fundação da capital do povo lusitano,
o Ideal grego e os elementos representativos do mito de Ulisses estiveram presentes a
registrar e Fernando Pessoa a rememorar a presença imaterial de Ulisses em Lisboa.
Sob a ótica campbelleana, “O que o mito faz para você é apontar o transcendente”
(CAMPBELL, J., 2008: 19). Assim, a caracterização do mito é transcendental, pois
ultrapassa os aspectos da vida cotidiana para alcançá-los ao nível simbólico4.
Acrescenta o mitólogo norte-americano que “O começo de um mundo mítico ou
de uma tradição mítica é um arrebatamento – algo que arranca o indivíduo de si
mesmo, leva-o além de si, além dos padrões racionais” (Id.: 115). O investigador define
assim o sentimento coletivo que eterniza o mito na memória popular de uma nação:
“O despertar do assombro, do entusiasmo, é o início e, curiosamente, é o que faz as
pessoas se unirem” (Ibid). Os lusitanos primitivos e contemporâneos se uniram em torno
de uma ancestralidade grega transcendental, quando relembram seus heróis míticos.
Interessa-nos aqui unicamente vincular as ideias de Joseph Campbell ao
entendimento do mito fundacional de Lisboa. Repete Joseph Campbell a passagem
a seguir em dois de seus livros mais famosos: “Onde quer que exista uma imagem
mítica, ela foi legitimada por décadas, séculos ou milênios de experiência nessa
trajetória e constitui um modelo. Não é fácil construir uma vida própria sem dispor
de um modelo” (CAMPBELL, J., 1994: 18 e CAMPBELL, J., 2008: 18). Dos excertos
supracitados, retenhamos o facto de que entendem o mito como elemento cultural

4 Afirma o mitólogo que “A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação,
quando você passa da infância para as responsabilidades do adulto, da condição de solteiro para a de casado.
Todos esses rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel que você passa a desempenhar,
com o processo de atirar fora o que é velho para voltar com o novo, assumindo uma função responsável.
Quando um juiz adentra o recinto do tribunal e todos se levantam, você não está se levantando para o
indivíduo, mas para a toga que ele veste e para o papel que ele vai desempenhar” (CAMPBELL, J., 2008: 12).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 279

resistente à passagem do tempo. Ao permanecer na memória coletiva, torna-se um


modelo – palavra empregada pelos dois mitólogos até aqui referidos. Em consequência
do que foi acima exposto, cremos poder afirmar que Ulisses é um modelo, na concepção
em que Mircea Eliade e Joseph Campbell utilizam o vocábulo.
Ao iniciar os nossos estudos sobre os mitos nas culturas primitivas europeias,
americanas e africanas5, percebemos que o surgimento de uma nação possuía
frequentemente uma explicação mítica, com a presença da figura histórica de um
herói fundador – como ocorre com Ulisses na formação da pátria lusitana. A fantasia
de um guerreiro peregrino parece ser um mitema recorrente e, como afirma Claude
Lévi-Strauss, no excerto seguinte:

As histórias de carácter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado,


absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte. Uma
criação «fantasiosa» da mente num determinado lugar seria obrigatoriamente única – não se
esperaria encontrar a mesma criação num lugar completamente diferente. O meu problema
era tentar descobrir se havia algum tipo de ordem por detrás desta desordem aparente – e
era tudo (LEVI-STRAUSS, C., 1987: 20).

A teoria estruturalista de Claude Lévi-Strauss auxilia na conceituação do mito


como narrativa coletiva, atemporal e não cientificista, retentora de elementos
invariantes do qual o mais relevante é – no caso ulisseano – o modelo de superação6.
Citamos a seguir as palavras do antropólogo francês sobre a conservação dos mitemas,
elementos mínimos que nos fazem reconhecer a reescritura do mito como filiada à
versão anterior, mais antiga:

Estas transformações, que se operam de uma variante à outra de um mesmo mito, de um


mito a outro mito, de uma sociedade a uma outra sociedade com referência aos mesmos
mitos, ou a mitos diferentes, afetam ora a armadura, ora o código, ora a mensagem do mito,
mas sem que este deixe de existir como tal; elas respeitam assim uma espécie de princípio
de conservação da matéria mítica, em função da qual qualquer mito sempre poderá sair de
um outro mito (LÉVI-STRAUSS, C., 2008: 261).

5 Os mencionados estudos antecederam a elaboração de nossa Tese de Doutoramento em Estudos Portugueses,


intitulada “Mito e identidade nacional na poética de Fernando Pessoa: o ideal platônico d’A República e o
projeto imperial pessoano”, apresentada à Universidade Aberta de Portugal, sob a orientação do Prof. Dr.
Dionísio Vila Maior.
6 Relembramos fragmentos citados anteriormente sobre o “modelo”, na concepção de Mircea Eliade e Joseph
Campbell: “Basta seguir o exemplo” (ELIADE, M., 2007:125) e “Não é fácil construir uma vida própria sem
dispor de um modelo” (CAMPBELL, J., 1994: 18 e CAMPBELL, J., 2008: 18).
280 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas

Portanto, acreditamos que o mito de Ulisses, com algumas variações, perpassou


gerações, sendo constante memória do herói navegante conquistador de novas terras
– igualmente importante para a leitura que estamos a realizar – reconquistador
e restaurador de seu próprio país. Ressaltamos que o conteúdo da Odisseia é
compreendido por Horkheimer e Adorno (1986: 53) como uma proto-história da
subjetividade (Urgeschichte Subjektivität) e como prefiguração de toda a dialética do
Iluminismo. Como se vê, a travessia ulisseana é um mito representativo da jornada
que cada indivíduo (e a humanidade como um todo) precisa realizar para perfazer
a passagem da natureza primitiva à cultura acumulada e transmitida através das
gerações; jornada do aspecto instintivo e individualista à convivência em sociedade, da
repressão ao autodesenvolvimento.
A partir das ideias que Horkheimer e Adorno registram na obra Dialética do
esclarecimento pode afirmar-se que, no início do caminho de volta a Ítaca7, Ulisses
é ainda um sujeito em construção, incipiente e imaturo. Embora já conhecesse
aspectos civilizatórios como a divisão de trabalho – pois era o rei responsável por
liderar um povo opulento, um navegador comandante de muitos marinheiros e
naus – o herói ainda estava a completar-se. Não possuía consciência de si mesmo e
identidade una.
Desde logo, é possível compreender a viagem como o percurso no qual a
subjetividade se organizará enquanto unívoca. O pensamento mítico e primitivo
de Ulisses irá se ampliar e esclarecer, no perigoso caminho do autoconhecimento
que o sujeito precisa percorrer e conquistar gradativamente. Compreende-se que
a jornada para o aprimoramento do sujeito é individual e interior, uma vez que a
viagem transformadora [de rei de Ítaca a herói civilizador] deve ser perpetrada por
cada indivíduo em busca de si mesmo – mundo interior – e da compreensão de sua
sociedade – mundo exterior. Na figura mítica de Ulisses percebiam os gregos o retrato
do herói ideal, apesar de falho em alguns aspectos: ardiloso, mas impulsivo; resistente
às provocações dos deuses, mas ocasionalmente insubmisso. Ainda assim, um herói
com comportamento próximo à preferência grega. Realce-se, portanto, que Odisseia
será, ao lado da Ilíada, o poema nacional grego, constantemente recitado nos palácios
dos reis que conquistaram Tróia e nas festas públicas, memória (en)cantada e presença
frequente em todas as polis gregas e povos que com elas comercializavam ou foram
pelos gregos conquistados.
Nos séculos seguintes, as epopeias homéricas seriam incluídas nas bibliotecas das
famílias abastadas, além de universidades e escolas de todo o mundo ocidental. Os

7 Cf. o percurso do herói nos comentários do pesquisador Junito Brandão (BRANDÃO, J. S., 2000).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 281

versos de Homero colaboraram para a expansão do helenismo e a crescente admiração


pelos ideais civilizatórios gregos.

Ulisses constitui aquilo que alguns críticos contemporâneos definiriam como um “discurso”
da civilização ocidental; para os historiadores, um ‘imaginário’ ‘de longa duração’ - em
outros termos, um arquétipo mítico que se desenvolve na história e na literatura como um
constante logos cultural. Parafraseando Bernard Andrae, Ulisses representa a ‘arqueologia’
da imagem europeia do homem (BOITANI, P., 2005: XIV).

Do texto supracitado depreendemos o que anteriormente afirmamos: Ulisses


é exemplo civilizacional e modelo de superação. Em outras palavras, Ulisses é a
representação literária do herói mítico, presente no imaginário coletivo das civilizações
ocidentais, desde Homero8 até a contemporaneidade. Portanto, a inclusão do mito
ulisseano na Mensagem pode ser entendida como uma influência helenista no texto
pessoano, mas, sobretudo, como uma exaltação do herói grego como figura histórica
e mítica, presente na formação da nação portuguesa. Recordamos as palavras que
sobre a epopeia moderna pessoana escreveu Cleonice Berardinelli, das quais citamos
a seguir um fragmento:

Incluída, pois, na obra pessoana como um livro sui generis, Mensagem, a mais portuguesa
das obras de Pessoa, é válida por seu alto nível poético por sua primorosa estrutura
e pela captação total da alma portuguesa, heroica e mítica, saudosista e messiânica
(BERARDINELLI, C., 2004: 132).

Na procura incessante por representar poeticamente a alma portuguesa, em suas


nuances culturais multifacetadas, em Mensagem, Fernando Pessoa reflete sobre a
pátria “heroica e mítica, saudosista e messiânica” – para empregar as palavras da
autora supramencionada. Por sua vez, assegura-nos Jacinto do Prado Coelho:

No fim de contas, a Mensagem, onde os elementos épicos surgem filtrados, transfigurados,


pela contemplação lírica, não se situara muito longe do ‘clima’ d’O Marinheiro, ‘drama
estático’, onde a Segunda Veladora nos fala do marinheiro que se perdeu numa ilha remota:
‘Como ele não tinha meios de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se

8 Assim é descrito o herói na epopeia homérica que narra sua jornada: “Mas nunca com os olhos eu vi nada
que se comparasse/ Com o amável coração do sofredor Ulisses. /Que feitos praticou e aguentou aquele
homem forte (…) Nós os dois estávamos desejosos de nos levantarmos/ e de sairmos; ou então de responder
lá de dentro. /Mas Ulisses impediu-nos e reteve-nos, à nossa revelia (…) E assim salvou todos os Aqueus”
(HOMERO, 2006: 264-268).
282 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas

a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido’. Revivendo a fé no Quinto Império, Pessoa
inventou uma razão de ser, um destino, fugindo à angústia dum quotidiano absurdo,
genialmente expresso por ele e Álvaro de Campos (COELHO, J. P., 1983: 106-107).

Parece-nos, portanto, que estamos diante da recorrente imagem mítica do herói


marinheiro, frequente em diversos textos pessoanos, sempre como um arquétipo de
evasão da realidade, variante do mito ou clima, conforme mencionado por Jacinto
do Prado Coelho9. Entretanto, os elementos épicos – e acrescentaríamos, míticos
– sofrem a intervenção da conceção modernista do poeta. Os personagens dos
navegantes não são homéricos, mas pessoanos. Quer isso dizer que são modernistas e
seguem a estética órfica lusitana e não o padrão cultural grego clássico – apesar da já
mencionada influência helênica no texto pessoano.
Recordamos as palavras de Adolfo Casais Monteiro sobre o texto pessoano: “Toda
a obra de F. Pessoa é uma busca da realidade para lá das suas formas passageiras da
aparência” (MONTEIRO, A. C., 2006: 13). Assim, sob o ponto de vista do autor de
Mensagem, Lisboa é a Ulisseia – mítica terra encontrada pelo herói grego, quando
procurava a distante Ítaca. O poeta seiscentista Gabriel Pereira de Castro descreve em
sua obra a mítica fundação de Lisboa pelo rei navegador, em pleno período barroco.
Fernando Pessoa escreve Ulisses durante a vigência do modernismo. Enlaça-as um
elemento comum: a influência de Camões.
Assim sendo, acreditamos que o ortónimo apropria-se do mito ulisseano –
homérico, camoniano, castreano – e dele extrai os elementos relevantes para a
estruturação de sua Mensagem ao povo lusitano. Em suma, a transcrição que o autor
de Mensagem realiza do mito de Ulisses não é literal, não corresponde exatamente a
todas as variantes do mito. Estão ausentes no poema pessoano os episódios de Circe,
Calipso, Polifemo e até mesmo Penélope. Fernando Pessoa adapta livremente o mito
ulisseano, ao resgatar da narrativa mítica os elementos invariantes; a saber: a viagem
iniciática pelo mar desconhecido, o encontro com outros povos, a imaterialidade e
incertezas sobre as paragens do herói grego, que alimenta10 a mítica fundação de
Lisboa. Leia-se, a seguir, o poema pessoano;

9 A respeito da invenção de uma razão ou destino para fingir e fugir do quotidiano absurdo, mencionado no
fragmento do texto de Jacinto Prado Coelho, escreve Fernando Pessoa: “Sendo assim, não evoluo: VIAJO (por
um lapso na tecla das maiúsculas, saiu-me, sem que eu quisesse, essa palavra em letra grande. Está certo, e
assim deixo ficar). Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me
na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de
fingir que se pode compreendê-lo” (PESSOA, F., 2006: 22).
10 Cf. a afirmação de Eduardo Lourenço: “É da realidade que o mito se alimenta, é no mito que a realidade se
torna significante” (LOURENÇO, E., 2000: 21).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 283

ULISSES

O mito é o nada que é tudo.


O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre


A entrar na realidade,
E a fecunda-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre
(PESSOA, F., 2008: 83)

Tomamos como ponto de partida o comentário que, do poema supramencionado,


tece António Apolinário Lourenço. Sobre o primeiro verso, escreve o estudioso:

Com recurso ao oximoro, fica aqui perfeitamente insinuada a natureza utópica do grande
sonho veiculado pelo poeta neste livro: o Quinto Império. Como referimos na ‘Introdução’,
ele próprio afirma no inquérito promovido por Augusto da Costa e recolhido no seu livro
Portugal, Vasto Império que o principal meio para levantar moralmente uma nação é a
exploração insistente de um grande mito nacional (LOURENÇO, A. A. In: PESSOA, F.,
2008: 82).

Por estas palavras podemos compreender igualmente que o mito – além de se


iniciar do nada – refere-se ainda ao nada. Toda a narrativa mítica – tal qual a ardilosa
construção do cavalo de Tróia11 relatada por Homero – enfim, todo o mito é portador
de uma lacuna interna. “Pelo mito, o desejo preenche esse hiato e faz, do nada,
tudo” (PERRONE-MOISÉS, L., 2001: 117). O nada será preenchido simbolicamente

11 Ao analisar Mensagem, Agostinho da Silva ressalta que “a missão de Portugal não poderá ser outra senão a de
resgatar o que a Europa fez e de salvar a seus próprios olhos” (SILVA, A. da, 1958:18).
284 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas

pelos desejos do povo e de seu representante, o poeta, que recria e reconta o mito12,
adaptando-o às suas necessidades e à sua época, como fizeram Homero e Fernando
Pessoa.
A estrofe seguinte possui igualmente grande interesse para o entendimento da
aludida concepção mítica no texto de Fernando Pessoa. Se anteriormente identificamos
no poema uma devoção familiar aos conceitos e dogmas helénicos e cristãos no que
se refere à divindade, a segunda estrofe apresenta-nos o herói navegador Ulisses que,
– durante sua itinerância e aventuras na viagem de retorno à Ítaca – teria miticamente
fundado a cidade de Lisboa. Iniciar a segunda estrofe do poema com Este é anunciar
e, simultaneamente, ocultar o mito a respeito do qual escreve. Deve o leitor terminar
a leitura da estrofe e ter conhecimento prévio da mítica presença de Ulisses na costa
lusitana para associar Este ao herói grego. Deve ainda o leitor ter acesso aos elementos
míticos que denotam as reminiscências da narrativa mítica que afirma ser Ulisses o
fundador da cidade.
Enfim, Fernando Pessoa escreve sobre o herói grego para aqueles que saberiam
entender seus versos e – como ele – desejassem restaurar a memória da fundação da
capital portuguesa. Acreditamos que seja esta a mensagem de Mensagem, ou seja, a
sua proposta de restauração nacional, a partir do resgate e revalorização das tradições,
valores, costumes, mitos e crenças do imaginário pátrio. Recuperamos aqui o excerto
anteriormente referido, no qual António Apolinário Lourenço cita Fernando Pessoa:
“ele próprio afirma que (...) o principal meio para levantar moralmente uma nação é a
exploração insistente de um grande mito nacional” (LOURENÇO, A. A. in PESSOA,
F., 2008: 82). Portanto, associando a memória mítica do herói grego que retorna
à sua pátria com o desejado regresso de D. Sebastião, Fernando Pessoa enfatiza a
importância da reconstrução nacional, no caso dos dois mitos.
Realce-se o facto de ambos serem reis que frequentaram – e frequentam – o
imaginário coletivo de seus povos e igualmente de outros povos: Ulisses em Portugal,
D. Sebastião nas visões do sebastianista Antônio Conselheiro, líder da revolta
popular em Canudos, que criou um reino mítico para D. Sebastião em terras
brasileiras. São mitos messiânicos – ulisseano e sebastianista – transformados em
profecias pela necessidade popular de acreditar em um salvador que reinstaurará
uma era de glórias. “Esta multiplicidade de formas, o mesmo é dizer, de linguagem,
permite que a profecia tenha vários graus de significação, em que o que a um nível
é ‘verdade’ a outro é ‘erro’” (SEABRA, J. A., 1988: 83). É verdade para o povo que

12 Cf. Agostinho da Silva: “Portugal porá, como seu alicerce, o que de mais fundamental a Europa poderá ter
dado ao mundo: com Ulisses, a ideia de que o mito é mais importante do que a realidade, de que o poder vir
a ser é o substracto do que é, de que as coisas morrem à medida que são” (Ibid.: 19).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 285

aguarda a volta do seu rei – tanto Ulisses era aguardado pelo povo de Ítaca, quando
D. Sebastião pelos lusitanos. É erro, para os cépticos. Assim sendo, os graus de
significação são distintos como são distintas as relações que os indivíduos mantêm
com as profecias e narrativas míticas.
Neste contexto, justifica-se refletir sobre as palavras de José Clécio Basílio Quesado
a respeito da produção literária pessoana e a inserção nela destes elementos míticos
e oníricos:

Sonho, mito ou loucura são, pois, elaborações discursivas do inconsciente que o poeta toma
como formas de promover a ausência da realidade, procurando trabalhar não sobre o dado
concreto mas sobre a formulação imaginária que se produz como descontinuidade do real.
Daí a retomada do passado da infância como fuga do presente, ou a busca do nada como
negação da própria existência, ou, enfim, Qualquer coisa que não a vida (QUESADO, J. C.
B., 1976: 80).

Reis guerreiros – andarilhos como Ulisses e D. Sebastião, vagando por terras


desconhecidas à procura de si mesmo e do caminho de volta para seu povo. Figuras
históricas e míticas, evocadas pelo poeta modernista como proposta estética e política
de reflexão e reformulação da realidade pátria. Mensagem é – acreditamos – a tentativa
pessoana de resgate do passado irreal para a construção do devir lusitano em que
o real seja glorioso – e não apenas recordação do passado notável. Assim sintetiza
Georges Güntert:

Pessoa encontra na presença histórica de Portugal a sua própria espera na margem e a


sua saudade por novos horizontes. Ulisses, portador de um grande pensamento – conta a
lenda a seu respeito que foi ele que deu nome a Lisboa – não aportou nunca a estas costas;
nunca lhes tocaram os seus navios. Como a liberdade, a grandeza e a fama, a lenda de
Ulisses permaneceu um mito que ‘sem existir nos bastou’. Pois foram mitos que embalaram
o povo português, para o estimularem a dilatar as fronteiras do conhecido e do familiar
(GÜNTERT, G., 1982: 205).

Assim sendo, de que modo então se poderá convalidar, e reforçar, a percepção do


autor citado no excerto acima sobre a presença – real ou mítica – de Ulisses na costa
portuguesa? Nas palavras constantes no referido verso do poema de Fernando Pessoa:
“sem existir nos bastou”. Quer isso dizer que, ainda que não fosse real, é mítico e
tornado literário pelos poetas lusitanos referidos Camões, Gabriel Pereira Castro e
Fernando Pessoa. A partir destes pressupostos, acreditamos que podemos aproximar-nos
da compreensão do motivo que levou Fernando Pessoa a inserir Ulisses ao lado de
286 100 Orpheu Zilda de Oliveira Freitas

D. Sebastião em Mensagem – um deles é um mítico rei grego, que teria visitado a


costa portuguesa; o outro é um rei-menino desaparecido e nunca esquecido. Convém
recordar que “O mito é a protoforma da história” (KUJAWSKI, G. M., 1979: 35), isto é,
o mito antecede os fatos históricos e, certamente, podem registrar ou mesmo alterar os
registros dos fatos reais, em detrimento da verdade mítica existente na compreensão
popular.
A Mensagem ao povo português é, a nosso ver, a revitalização do ser português, a
partir do crescimento do nacionalismo e a reconstrução político-cultural da pátria
lusitana13. Ainda que não seja um mito nacional, Ulisses é utilizado no poema
pessoano como ideal, exemplo e modelo do homem português. O herói grego é o herói
fundador, o pai da nação, o elemento imaginário helenista a formar o inconsciente
lusitano como povo conquistador e criador de cidades em novas terras. No trecho a
seguir, o comentário de Eduardo Lourenço sobre o poema em análise:

Mito, vida que não passa na vida que passa - e toda passa -, lenda a escorrer da realidade.
Foi para Ulisses, incarnação da primeira viagem iniciática da nossa alma futuramente grega,
como ele a sonhava, que o autor de Mensagem compôs os versos famosos (LOURENÇO,
E., 1986: 9-10).

Além de D. Sebastião14, o mito de Ulisses no poema de Fernando Pessoa remete-nos


à outra possibilidade de leitura e de aproximação temática. Uma vez que Ulisses foi
imortalizado pelo poeta grego Homero, igualmente seria lembrado como fundador
de Lisboa, através do poema pessoano. Assim sendo, a origem mítica da capital
lusitana estaria indelevelmente relacionada a um dos maiores guerreiros helênicos15.
Acreditam os poetas admiradores de Homero que toda grande obra de literatura, ou
é a Ilíada ou é a Odisseia. O Ulysses pessoano é, desse modo, a Odisseia revisitada em
reduzidíssimos versos pessoanos.
Claro está que “O assunto da Mensagem não são os portugueses ou eventos
concretos, mas a essência de Portugal e a sua missão por cumprir” (COELHO, J. P., 1983:
108). Desse modo, “O grande feito português, na visão sebastianista e messiânica
que preside Mensagem, está na iminência de vir” (GARCEZ, M. H. N., 1989: 100), de

13 Cf. o comentário de Jacinto Prado Coelho: “Pois na Mensagem é a redução a um pensamento que descarna,
espectraliza as personagens da História nacional” (COELHO, J. P., 1983: 108).
14 Leia-se o que Marcel Detienne escreve sobre o herói Fundador: “As cidadezinhas, recém-implantadas, vão
dar a si mesmas, na geração seguinte, um culto de tipo político: o de seu Fundador, heroizado após sua morte”
(DETIENNE, M., 2013:47).
15 Cf. Agostinho da Silva (SILVA, A. da, 1958:27-28) e Jean-Pierre Vernant (VERNANT, J.-P., 2002:200).
A Mensagem de Fernando Pessoa ao povo português 287

vir-a-ser, o devir português. Explicaria isso o seguinte verso de Fernando Pessoa no


poema O Infante, que integra a segunda parte de Mensagem: “Senhor, falta cumprir-se
Portugal”. Por estas palavras e ideias supracitadas, acreditamos que a Mensagem
de Fernando Pessoa ao povo português é, de fato, o incentivo à revalorização do
passado mítico lusitano, para a construção de um futuro pentaimperial. Retomamos
o fragmento citado como epígrafe do presente texto: “A pátria fugira da terra para
a região aérea da poesia e dos mitos” (MARTINS, J.P. O., 1882:69). Parece-nos que
Fernando Pessoa compreendia Portugal como uma pátria física, inserida nos debates
das questões políticas europeias do início do século XX. Compreendia igualmente que
o seu país possuía uma estrutura imaginária e metafísica, em que dialogava o poético
e o mítico. A Mensagem pessoana é o registo escrito deste diálogo, transposição da
memória coletiva e valores do seu povo.

Bibliografia

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Heteronímia como ficção de autognose

Stélio Furlan
Universidade Federal de Santa Catarina

Palavras-chave: Modernidade, Heteronímia, Geração Orpheu


Resumo: Este ensaio dedica especial atenção à metáfora da máquina (mékhané)
enquanto princípio construtivo vital à montagem do cosmopoema “Ode marítima”, de Álvaro
de Campos, lançado no segundo número da revista Orpheu, em 1915, no qual se configura uma
autêntica “experiência oceânica”. Identificar em que medida tal poema contribui para formação
do estatuto mítico de Pessoa enquanto poeta da modernidade é o objetivo que condiciona a
tessitura deste trabalho.

“engrenagens para montar e desmontar”


“o mundo sem centro, sem Eu”.
(Ítalo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno, 2002)

No capítulo intitulado “Numa rede de linhas que se entrecruzam”, do livro de Ítalo


Calvino Se um viajante numa noite de Inverno, há uma imagem que nos interessa:

Especular, refletir: toda a atividade do pensamento me remete aos espelhos. Segundo Plotino,
a alma é um espelho que cria as coisas materiais refletindo as idéias de uma razão superior.
Talvez seja por isso que eu preciso de espelhos para pensar: só consigo concentrar-me
quando em presença de imagens refletidas, como se minha alma tivesse necessidade de um
modelo para imitar toda vez que exercita a sua virtude especulativa. (O adjetivo assume
aqui todos os seus significados: sou ao mesmo tempo um homem que pensa e um homem
que tem negócios, além de ser colecionador de aparelhos ópticos.)
Tão logo levo um caleidoscópio ao olho, sinto que minha mente, ao ver os fragmentos
de cores e linhas heterogêneas agruparem-se e comporem figuras regulares, encontra
imediatamente o procedimento a ser seguido — mesmo que seja apenas a revelação
peremptória e lábil de uma construção rigorosa que se desfaz a menor batida de unha nas
paredes do tubo, para ser substituída por outra em que os mesmos elementos convergem
num conjunto diferente (CALVINO, I., 2002: 165).
292 100 Orpheu Stélio Furlan

Afora esse lábil, variável, mutável olhar caleidoscópico, dada multiplicidade de


perspectivas que aciona, outra imagem de Se um viajante numa noite de Inverno que
instiga é a que calha ao viajante chamado Flannery, cujo tom confessional revela sua
ambição de captar «o mundo sem centro, sem Eu». Não é muito difícil imaginar uma
leitura em paralelo com a ficção heteronímica pessoana, o grande palco da escritura.
Em sentido amplo, o que anima o nervo verbal deste ensaio consiste numa
indagação sobre como Fernando Pessoa dá conta das tensões da modernidade, de
como o poeta vivencia, incorpora e codifica tais tensões. Em recorte mais preciso,
e mais condizente à efeméride do centenário de lançamento da Revista Orpheu,
interessa a atração pela metáfora da máquina presente em Ode marítima, engenho
de Pessoa-Campos. Privilegia-se o estudo de um dispositivo cognitivo no qual a
tópica da viagem se articula à incorporação poética do mecanicismo como material
criativo, noutras palavras, na engrenagem que se torna princípio construtivo vital
à montagem desse cosmopoema, no qual se configura uma “experiência oceânica”
outra.
Não se pode discorrer sobre “experiências oceânicas”, melhor, figurações da
máquina do mundo, sem evocar, de imediato, o canto décimo de Os Lusíadas (1578),
de Luís de Camões. A poesia camoniana é, por certo, uma membrana sensível na qual
freme um ar do tempo, ou janela aberta aos ventos das inquietudes e das certezas
renascentistas. Conforme se lê nos versos de A máquina do mundo repensada, de
Haroldo de Campos, «ao bravo gama a máquina se oferta/ do mundo» (CAMPOS,
H., 2004: 21. Camões a descreve com a pena da cosmogonia ptolomaica e as tintas
da escolástica medieval e do catolicismo contra-reformista.1 A sua vez, Carlos
Drummond de Andrade, em Claro Enigma (de 1951), glosa o tema da revelação do
arquétipo do mundo para demarcar sua recusa por um sujeito poético resignado,
cético, «exausto de tanto mentar» (ANDRADE, C. D., 1998). Já Haroldo de Campos,
nos versos da já mencionada obra, recusa o viés escolástico-metafísico a favor de outro
motor do universo. Como escreve: «e o ciclo ptolomaico assim termina» (CAMPOS, H.,
2004: 32). Daí testar, no «límem do milênio», o

42.1. que a nova cosmofísica por tema


2. estatuiu: a explosão primeva o big
3. – bang – quiçá desenigme-se o dilema!2

1 Vale consultar, a propósito da complexidade do tema, o ensaio intitulado “A máquina do mundo”,


de João Adolfo Hansen (2003).
2 CAMPOS, H., 2004: 37
Heteronímia como ficção de autognose 293

Se a figuração da “máquina do mundo” em Camões e Drummond evoca uma aura


metafísica ou, no caso de Haroldo de Campos, é dela agnosticamente despojada,
como essa questão se exibe multiforme na textualidade de Fernando Pessoa?
A rigor, o método de Pessoa consiste em abrir diálogo com escritores renomados para
imprimir um deslocamento capaz de instaurar a diferença no coração da semelhança.
Com Eduardo Lourenço, «Toda a obra de Pessoa é uma disputa concreta com outra obra
sobre que se apóia para a transcender ou lhe imprimir um desvio que inteiramente a
desloca, na forma e na substância, do seu lugar matricial» (LOURENÇO, E., 2002: 238).
Por certo, à “imaginação ciumenta” de Fernando Pessoa não escapa uma tomada de
posição ante o Poema camoniano. Talvez seja forçoso perguntar se aquela figuração
cosmográfico-político-metafísica-da-grande-máquina-do-mundo camoniana não
ganharia nova corporatura nos engenhos de Álvaro de Campos. O que minimiza
o aparente despropósito é a ideia de máquina do mundo associada às “experiências
oceânicas”, entenda-se, invenção astuciosa que dá conta dos «vislumbres visionários
em que o mundo inteiro sugere presentear-se aos olhos humanos. Momento epifânico
em que todas as coisas se revelam embebidas de significação». Para pensar essa
travessia numinosa, culminante, oceânica porquanto ontológica, evoco os energéticos
versos Ode Marítima3 (de 1915), de Álvaro de Campos:

Ó coisas todas modernas,


Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
do sistema imediato do Universo!

Ou, se se quiser, aqueles versos de A Passagem das horas, também de Álvaro


Campos, «Ave, salve, viva a grande máquina do universo!»”, «Máquina universal
movida por correias de todos os momentos» (PESSOA, F., 2004: 184). Acaso estes
excertos não solicitariam uma reflexão sobre o modo pelo qual Pessoa retoma de
Camões o que Camões tomou de empréstimo a Dante... a saber, a ideia de construir
uma figuração poética reveladora da ordenação do universo?
Ora, todo ato de invenção poética diz um artifício que resulta de determinadas
operações técnicas. O artifício desse ato, como quer João Adolfo Hansen, é operado
como máquina, do grego, mékhané, “invenção astuciosa”, como também é operado na
qualidade de machina, melhor, ingenium, que em latim significa o talento intelectual
da inventio retórico-poética (HANSEN, J. A., 2003: 162).

3 Todas as citações do cosmopoema Ode Marítima [1915] foram colhidas em GALHOZ, Maria Aliete. Orpheu
2. Edição fac-similada, Edições Ática, Lisboa, s/d. pp. 69-106. Doravante, nas citações faremos indicação
apenas do número da página(s).
294 100 Orpheu Stélio Furlan

Em Fernando Pessoa a máquina, melhor, o mecanicismo é, mais do que alegoria,


um princípio construtivo por excelência de sua inventio poética. Notar que, para além
de mera reminiscência da invocação às musas como condição de possibilidade da ars
poética épica, os versos da abertura da Ode Triunfal, lançada no número inaugural da
revista Orpheu, em 1915:

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!


Ser completo como uma máquina! 

anunciam o modo pelo qual o dispositivo maquínico atuará como princípio


construtivo na arquitetura do cosmopoema em questão. E o mesmo se pode dizer do
cosmopoema Ode Marítima. Numa primeira leitura, esse poema lançado em junho de
1915, no segundo número da revista Orpheu, sugere uma apropriação aos expedientes
da escrita automática surrealista enquanto texto algo desordenado que acumula
enumerações de “cousas navais”... Contudo, aqui não há espaço para improvisos.
Parafraseando José Augusto Seabra, graças à gradação ascendente e descendente,
instauradora de uma circularidade que vai do mínimo ao vasto, do vasto ao ínfimo,
o poema ganha coesão. Ode Marítima (p. 69) se abre com um sujeito sígnico «face ao
oceano, olhando do porto o horizonte distante» (SEABRA, J. A., 1974: 133):

Sózinho, no cais deserto, a esta manhã de verão,


Ólho pró lado da barra, ólho pro Indefinido, 
Ólho e contenta-me vêr, 
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando. 
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira. [...]
Ólho de longe o paquete, com uma grande independência
de alma, 
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

O volante é o que dá unidade à diversidade desse “turbilhão de sensações


desencontradas”, pois se constitui na correia responsável pelas acelerações e
desacelerações do ritmo do poema. O volante interior do poeta, que remete
metonimicamente ao próprio navio, simboliza a vida marítima exaltada pela ode. Nas
palavras de José Augusto Seabra, o volante constitui a mola impulsionadora, o centro
regulador do poema (SEABRA, J. A., 1974: 131). Assim, à página 76 da ode publicada
no segundo número da Revista Orpheu, lê-se:
Heteronímia como ficção de autognose 295

Sôa no acaso do rio um apito, só um. 


Treme já todo o chão do meu psiquismo. 
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.

Na página seguinte:

Toma-me pouco a pouco o delírio das cousas marítimas,


Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera, 
O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos, 
E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das ágoas, 
Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na mi-
nh’alma 
E a aceleração do volante sacode-me nítidamente.

E, mais adiante (pp. 78-79):

Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre. 


Sinto corarem-me as faces. 
Meus olhos conscientes dilatam-se. 
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança, 
E com um ruído cego de arruaça acentua-se 
O giro vivo do volante.

A mencionada aceleração do volante solda-se ao ritmo do poema, que ganha


agilidade graças à constância das aliterações, das anáforas, das acumulações
reiterativas, enfim, processos repetitivos que criam a ilusão de uma continuidade
sonora. E o ritmo do poema se intensifica até que esta situação narrativa leve a uma
ruptura, o que se pode chamar de o esfacelamento do eu:

Parte-se em mim qualquer cousa. O vermelho anoiteceu. 


Senti de mais para poder continuar a sentir. 
Esgotou-se-me a alma, ficou só um éco dentro de mim. 
Decresce sensivelmente a velocidade do volante. 
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos. 
Dentro de mim ha só um vácuo, um deserto, um mar noc-
turno. 
E logo que sinto que ha um mar nocturno dentro de mim, 
Sobe dos longes dêle, nasce do seu silêncio, 
296 100 Orpheu Stélio Furlan

Outra vez, outra vez, o vasto grito antiqüíssimo. 


De repente, como um relâmpago de som, que não faz baru-
lho mas ternura, [...]

Curioso notar que a aceleração do volante, correia contínua na roda da máquina,


associada a um excesso de sensações, abre uma fenda no tempo, que permite ao sujeito
poético ouvir um “vasto grito antiqüíssimo”: é a voz do passado e dos antepassados
o que ameniza o torpor e a dolência do poeta imerso no nevoeiro da modernidade.
Esse vasto grito antiquíssimo nos leva a pensar numa vida jogada na obra, na
heteronímia como gesto. Em sentido amplo, o processo de despersonalização
dramática, o “drama em gente” heteronímico aponta além das máscaras, para
caminhos. Vale lembrar que Pessoa descendia de famílias oriundas dos primórdios
da nacionalidade, umas do norte, outras do centro, outras do sul de Portugal. Em
consequência, compreender a heteronímia como ficção de autognose implica pensar
que o desejo de outrar-se, de fazer valer a pena a máxima “sermos tudo”, se alia à
demanda de “um conceito português da vida”, melhor, vincula-se à codificação da
alma nacional.
Assim, esse esforço de engendração poética resulta no aparecimento dos três
principais heterônimos, a saber, Ricardo Reis, nascido no Porto; Álvaro de Campos,
em Tavira (no Algarves, sul de Portugal); e Alberto Caeiro, que nasceu na imaginação
de Pessoa em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Nesse sentido,
ler a ficção heteronímica como personas, olhares, rostos vários de uma imagística
nacional outra, marcada pela vocação universalista da alma lusitana, é o que a nosso
ver permite maior rendimento teórico.
A propósito da ficção heteronímica, não poderia deixar de mencionar o ensaio
“Fernando Pessoa ou o não-amor”, publicado em Fernando rei da nossa Baviera, no qual
Eduardo Lourenço afirma que Pessoa gestou todo um elenco de «criadores-criaturas
ou criaturas-criadores de universos poéticos autónomos, constituindo entre eles uma
espécie de constelação ou galáxia sem outro centro ou sujeito que o eu ausente. A sua
obra é a glosa desta ausência feita poema» (LOURENÇO, E., s/d.: 57). Nesse sentido,
a textualidade pessoana, todo um conjunto de obras-fragmentos, passa a ser definida
como a dramaturgia poética do Eu capaz de metonimicamente traduzir um ar do
tempo:

Pessoa está em toda a parte e em nenhuma. Nós só podemos interinar o mito criado pela
sua obra ou recusá-lo. Seja como for, esse mito tornou-se uma das referências chaves do
século XX, fazendo, por assim dizer, corpo, com o seu próprio mito de século explodido
(Idem: 12).
Heteronímia como ficção de autognose 297

Noutras palavras, a fragmentação do eu encena um contexto, metaforicamente


dizendo, o nevoeiro da modernidade, sendo que, ainda com Eduardo Lourenço,
nenhum poeta da modernidade soube exprimir

como Pessoa esta absoluta perdição do sentido do nosso destino, enquanto mundo moderno,
e isto bastaria para que o autor da Tabacaria se tivesse convertido não apenas no mito que é
para nós, mas numa das referências-chaves da Cultura contemporânea. De uma maneira ou
de outra, o homem moderno comparticipa desse sentimento de radical solidão e de absurdo
que pouco a pouco emergiu com o processo de isolamento e de inumanidade da civilização
actual (Idem: 19).

Se o modernismo português não foi um movimento homogêneo, mas coexistência


multímoda de diferentes “ismos”, Álvaro de Campos é o que melhor dramatiza o
mosaico de poéticas então vigentes e todo um carnaval de sensações. Por certo que se
trata de um sujeito sígnico. Não existe fora da linguagem. É um efeito de real, decorrente
de um artifício. Em consequência, Álvaro de Campos aprofunda a virtualidade de
um acontecimento verbal. Mas é mediante tal virtualidade que Pessoa-Campos aufere
uma carnação ao ímpeto avant garde de libertar a escrita literária das convenções
e das regras. De fazer valer a liberdade de concepção, de pesquisa estética sem, no
entanto, abrir mão da consciência/consistência artesanal.
Em Ode Marítima, a metáfora do volante atua como seu centro regulador, o que
assegura coesão ao poema. Por volante leia-se uma pesada roda, cuja inércia atua como
força reguladora do movimento de um maquinismo. Pode significar também a correia
contínua na roda das máquinas. Álvaro de Campos não só transforma a máquina em
matéria do poema, como também faz dela a metáfora de seu engenho poético.
Curioso notar que ao longo dos versos de Ode Marítima, o engenheiro Álvaro
de Campos, a contrapelo do tom entusiasta de Ode Triunfal, lançada no número
inaugural da Orpheu, em março de 1915, no qual se exibe amador da futurista “beleza
da velocidade”, sugere agora um cansaço ante a civilização tecnocrática. E a poesia
da viagem, com Jacinto do Prado Coelho, transforma-se na grave poesia do cais,
carregada de sonho e sentido.

Campos prefere ficar no cais, vendo os paquetes que entram e saem do Tejo, meditando no
“mistério alegre e triste de quem chega e parte” [...] transpondo o cais em que está para a
esfera dos símbolos, visionando um “Cais absoluto”, fora do espaço e do tempo, donde viemos
porventura quando nascemos, onde também haverá gente anónima que sofre o mistério de
partir e de chegar [...] De novo o tédio envolve o poeta, crucificado na monotonia dum
existir ocioso. O espectáculo da própria inércia, os sonhos malbaratados, a inconsequência
298 100 Orpheu Stélio Furlan

de tudo fazem-no odiar-se a si próprio, ser grotesco, rei de opereta, “palhaço sem riso, o
bobo com o grande fato de outro [...]” (COELHO, J. P., 1973: 125-126).

Significativa é a passagem em que cede à evocação nostálgica da “época lenta e


veleira das navegações perigosas”:

E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Actual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.

É como se houvesse se desencantado com a ausência, no código estético futurista,


daquela dor mansa à portuguesa, mescla de saudade e melancolia, configuradora, nas
palavras de Eduardo Lourenço, da vocação lírica da cultura portuguesa. No ensaio
“Portugal como cultura”, Eduardo Lourenço define a coloração coletiva do psiquismo
lusitano pela

[…] modulação desse sentimento intenso de fusão com o mundo, ou melhor, com a natureza,
acompanhado de não menos intensa consciência de sua precariedade, alegria na tristeza,
tristeza na alegria. Em suma, uma modulação daquela particular maneira de sentir a vida
que os portugueses resumem na palavra-mito da sua cultura, a saudade (LOURENÇO, E.,
2001: 38-39).

Os versos de Ode Marítima ressumam uma Náusea amplificada pela impotência diante
do que chama o «peso actual» dos tempos modernos. O que justifica, talvez, o atemporal
mergulho simbolista numa “aventura indefinida”. Porém, depois da “fúria marítima”, uma
súbita brisa gelada dissipa a virulência das sensações trágicas e, de certo modo, pacifica-o:

Um calafrio arrepia-me. 
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais
longe, de mais fundo, 
De repente – oh pavor por todas as minhas veias! –, 
Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu
Heteronímia como ficção de autognose 299

dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar! 


Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida […]

Se há a incorporação dos princípios construtivos herdados do futurismo,


evidencia-se aqui uma viragem na direção do Sensacionismo teorizado pelo próprio
Pessoa, para o qual a «única realidade da vida é a sensação»  e  «a  consciência da
sensação»  é a  «única realidade em arte». E mais: esse cosmopoema, que dá conta
da inserção do indivíduo no todo da civilização oriunda da técnica, não recusa um
momento epifânico, equidistante ao teorizado por James Joyce. Vale retomar um
fragmento de Stephen Hero (de 1944), já bastante conhecido dos leitores:

Por uma epifania ele queria dizer uma súbita manifestação espiritual, seja na vulgaridade
da fala ou do gesto ou em uma fase memorável da própria mente. Ele acreditava que toca ao
homem de letras registrar essas epifanias com extremo cuidado, vendo que elas próprias são
os mais delicados e evanescentes momentos (JOYCE, J., 2012: 16).

Antes de Joyce, Pessoa escreve epifanias, no caso, feito corrente de ar que anima o
sujeito poético a retornar às «cousas modernas e úteis». Ao apelar para o sensorial,
o frio repentino ganha correspondência de revelação metafísica, pois faz com que o
sujeito lírico desperte e retorne do “Cais Absoluto” para o cais comum da “Civilização
quotidiana”, para o pragmatismo antilírico das coisas imediatas.

A minha imaginação higiênica, forte, prática, 


Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e úteis, 
Com os navios de carga, com os paquêtes e os passageiros, 
Com as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, ver-
dadeiras. 
Abranda o seu giro dentro de mim o volante.

E então, o sujeito poético torna a vestir a alma com os trajes da civilização, como se
após a apoteótica exaltação, feita de fúria, de ímpeto, da ideia de ser tudo, só restasse
o trânsito desconcertado, menos humilde do que humilhante, da vitalidade do Sonho
para a realidade comezinha cotidiana, um real que resiste ao avesso do sonho: o
utilitarismo pragmático, industrial, comercial da vida.

Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como gentlemen, 


São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões, 
Como gente perfeitamente consciente de como é higiênico respirar o ar do mar.
300 100 Orpheu Stélio Furlan

E, irônico, aceitando resignado e altivo seu destino, despede-se:

Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio 


Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês, 
Muito sujo, como se fôsse um navio francês, 
Com um ar simpático de proletário dos mares, 
E sem dúvida anunciado ontem na última página das gazetas.[...]
Boa viagem! Boa viagem! 
Boa viagem, meu pobre amigo causal, que me fizeste o favôr 
De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos, 
E restituir-me à vida para olhar para ti e te ver passar. 
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto... 

Entre partidas e chegadas, achegamentos e distanciações, o mecanismo do poema


é montado. Numa palavra, gradações. Se, no início dele, há um paquete que chega, ao
final há um navio que parte. Ao longo de Ode Marítima, a circunavegação ontológica
de Álvaro de Campos é atravessada por um excesso de sensações, mas todo ele
orquestrado pelo rigor operacional e pela disciplina interna. Se o heterônimo Ricardo
Reis é exemplo clássico do poeta da contensão, Álvaro de Campos é o que disciplina
o excesso.4
Como vimos, se com o conjunto da ficção heteronímica Pessoa dramatiza a
multifacetada vida lusitana, Álvaro de Campos é o que melhor encarna as seduções
e os abismos do contemporâneo “é o século XX”. Nas palavras de Antonio Tabucchi:

Homem do Sul, nascido à beira-mar, amou o mar e as viagens: e celebrou-as. Nas suas
odes, o mar é a história de Portugal: é a aventura do desconhecido, a obstinação, a ousadia
de um pequeno povo, mas também a violência colonizadora, o Eldorado falhado, a perda
da inocência. Mas amou principalmente a ideia da viagem. Autodefinia-se cosmopolita.
De facto, tinha a alma de um vagabundo prisioneiro na pele de um burguês sonhador. Os
seus críticos dizem-nos que de manhã descia até ao porto de Lisboa e passeava pelo cais
de Alcântara para ver surgir no horizonte os barcos que tinham atravessado o oceano. De
pé, no cais, à espera da sua “viagem” [Ode marítima], cantou com maiúsculas a Viagem e a
Distância, o “Cais Absoluto por cujo modelo inconsciente imitado” os homens construíram
os cais nos seus portos, “o grande Cais Anterior, eterno e divino”. Mas evocou também [...] os
veleiros e os Mares do Sul, o cordame, o alvoroço dos portos exóticos, a maresia, os piratas

4 Vale registrar que, para a compreensão desse artifício poético, faz-se necessário investigar a contribuição de
Cesário Verde à tessitura poética fernandina.
Heteronímia como ficção de autognose 301

e os velhos marinheiros. E ilhas rosadas com palmares oleográficos. Os lugares das suas
viagens eram lugares geométricos, cabem no espaço do conceito e do desejo (TABUCCHI,
A., 1984: 48).

Força é dizer que, do tratamento dado àquele fascínio bem português de uma
ficção poética de viagens, ressuma um ar do tempo. Da versificação exuberante
ao conteúdo semântico afetado por longas enumerações de imagens pulsantes ou
pela “sequência ininterrupta de imagens novas”, passando pelo culto à beleza da
velocidade, pela tematização dos rumores e odores urbanos e marítimos, num tempo
prenhe de tumulto e labirinto, Pessoa-Campos rubrica a persona que melhor delineia a
modernidade à portuguesa. Nas palavras de Isabel Margato, «a fragmentação da figura
do herói, o vazio que tal realidade instaura» (MARGATO, I., s/d.), acrescente-se, o
diálogo com as vanguardas históricas, a autoproclamação de quem se instala e ocupa
ruidosa e furiosamente um lugar, a caleidoscópica poética do olhar, o cosmopolitismo
e a tematização do espaço urbano, mais a consciência distópica do seu tempo, todos
elementos que povoam dita metamorfose poética, são as margens que delineiam a
transbordante modernidade pessoana.
Como vimos, se numa primeira leitura Ode Marítima lembra os expedientes
da escrita automática surrealista, ou um texto algo desordenado que acumula
enumerações de “cousas navais”, observando a sua tessitura constata-se que não há
espaço para o improviso, pois o longo poema é estruturado de modo lógico, coerente,
graças à metáfora da máquina como fio condutor, melhor, do volante cuja gradação
ascendente e descendente instaura uma circularidade que vai do mínimo ao vasto, do
vasto ao ínfimo, do nada ao tudo e do tudo ao nada.
Trocando em miúdos, o jorro enumerativo é falsamente caótico, uma vez que
todo o conjunto de acumulações reiterativas, de onomatopeias, de aliterações, que
substituem a cadência sonora das rimas, fazem um só corpo com o sentido. Noutras
palavras, a ode não deixa de figurar uma experiência oceânica outra marcada por
nova visão de mundo oriunda do processo industrial e sugere tecer uma resposta
crítica ao desafio de Marinetti, que se indagava sobre «que tipo de literatura pode
surgir oriunda da técnica?». Nessa rede de relações, caberia perguntar ainda se acaso
o fenômeno da heteronímia, com o seu alto grau de despersonalização poética, com
a fragmentação da alma em outros personas, não seria um desdobramento lógico do
que Marinetti pontifica no Manifesto Técnico da Literatura Futurista, de 1912, cito: é
preciso «Destruir na literatura o ‘eu’?»
Diálogo com emulação, suplemento, por certo, pois, para Pessoa-Campos, associar
futurismo e Orpheu seja «a coisa mais disparatada que se pode imaginar» (PESSOA,
F., 1987: 208), como escreve em carta datada de quatro de junho de 1915. Embora
302 100 Orpheu Stélio Furlan

haja elementos que evidenciem essas remissões intertextuais de modo mais explícito
em Ode Triunfal, força é dizer que Campos se distancia do futurismo com uma Ode
Marítima em que a expressão sensacionista é exacerbada até ao espasmo (SEABRA,
J. A., 1988: 235).
Nas palavras de Nelly Novaes Coelho, mais «do que a euforia futurista de Marinetti,
as odes de Álvaro de Campos expressam a experiência quase apocalíptica do poeta
contemporâneo, ao pretender expressar um mundo que ultrapassou sua capacidade
normal de apreensão» (COELHO, N. N., s/d.). Em consequência, a avant garde prosa
dos versos de Campos integra poeticamente o ser humano na inquietante realidade
do começo do século XX.
Pessoa-Campos não se contenta com o espetáculo do mundo. Artífice do excesso de
expressão poética, ele se circunscreve no domínio de Eros, logo, encarna um princípio
de ação. Se Eros simboliza o desejo, cuja energia é a libido, a contrapelo dos demais
heterônimos, nele se corporifica uma «atitude enérgica, vibrante, cheia de admiração
pela vida». E, ao mesmo tempo, não é menos certo dizer que Pessoa-Campos exibe
a consciência do seu tempo. Assim, não se pode dizer que essa inventio poética
traduza um elogio acrítico a positivar «tempos modernos»; antes, compendiando as
preocupações de uma geração, revela-se consciência distópica, leia-se um testemunho
das contradições próprias à modernidade.
Em suma, afora incorporar aquela noção de máquina enquanto invenção astuciosa
e assimilar irônica e poeticamente os elementos da civilização industrial para
transformar a metáfora da máquina e do mecanicismo em material criativo, talvez se
possa dizer que no olhar caleidoscópico de Pessoa-Campos não se disfarça o desejo de
tornar o próprio corpus todo um cosmopoema: «ser toda a gente e toda a parte»: «Afinal»

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio  


De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh’alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,  
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,  
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,  
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,  
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,  
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!5 

5 PESSOA, F., 2004: 228. Grifos meus.


Heteronímia como ficção de autognose 303

Bibliografia

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304 100 Orpheu Stélio Furlan

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Uma faceta ortónima “non despicienda”

Maria Helena Nery Garcez


USP

Palavras-chave: Ortónimo e edições completas; Ortónimo e cristianismo; Ortónimo e Igreja


Católica; Ortónimo e seu ethos; Ortónimo e despersonalização.
Resumo: Ler a poesia do ortónimo nas edições crítica/completas foi, por vezes, experiência
surpreendente. Poemas, na maioria inéditos, trouxeram novos elementos concernentes à sua
formação, à poética da despersonalização e à sua relação com o cristianismo, fazendo com que
o ethos do ortónimo apresentasse facetas novas quando confrontado à imagem que as edições
tradicionais legaram. Conclui-se que urge revisar e completar o ethos do ortónimo.

Em 1981 defendi a tese de livre-docência Alberto Caeiro/“Descobridor da


Natureza”? na Universidade de São Paulo, tese que meu caro amigo e insigne figura
dos estudos pessoanos, Arnaldo Saraiva, empenhou-se em tornar livro, em 1985,
pelo Centro de Estudos Pessoanos do Porto, pelo que lhe sou profundamente grata.
Naquela obra, refleti sobre a figura do heterónimo Alberto Caeiro como aquele que
estava incumbido da “nova Revelação” (documento 71 A-2), era o “Mestre” dos
demais heterónimos e cuja missão seria a de promover a renascença do paganismo,
“O Movimento Pagão Portuguez” (documento 26-6). Inseri-o, então, na tradição da
poesia da natureza e pude surpreender que sua obra estabelecia polémico diálogo
com um poema/cântico, do século XIII, célebre na tradição cristã, e portador de
uma consagrada visão da natureza. Meu trabalho foi mostrar, através das estruturas
linguísticas, como a poesia Alberto Caeiro era uma paródia do “Cântico do Sol”
de São Francisco de Assis e o anúncio de uma conceção de natureza que se queria
pagã em oposição à visão cristã do Cântico. Penso ter mostrado a existência dessa
paródia, mas ter mostrado também as numerosas vezes em que estruturas linguísticas
utilizadas na poesia Caeiro incorriam nos pretensos “defeitos” que o heterónimo
criticava no Cântico e atribuía à mundividência cristã da natureza e dela desejava
eliminar.
Desta vez, desejo ocupar-me da poesia do ortónimo e achei que, à medida que
for fazendo reflexões sobre esta outra figura do jogo pessoano, seria interessante ter
presente aquele contexto.
306 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

Ler a poesia ortónima d.c., isto é, de depois das edições críticas, constituiu para
mim, por vezes, experiência surpreendente em relação ao que era a leitura a.c., de
antes das edições críticas. Em minha visão, o ortónimo acabou apresentando um
perfil com notas diferentes daquele que seus primeiros editores nos deram. Era o
“fingidor”? Era o vanguardista? Sim, era o “raciocinador subtil”, exato? isso também
estava patente desde poemas de há muito publicados como “Análise” e outros. Mas
o que ficou mais claramente revelado no ortónimo das edições críticas foi que,
mesmo tendo escrito o poema “Isto” em abril de 1933, ele escreveu outros não tão
rigorosamente despersonalizados. Como dizer, por exemplo, que o eu do poema “Un
soir à Lima”(17-9-1935) escreve livre de seu enleio, não usa o coração, ou que nele o
sentir é só para quem lê? O mesmo poderia ser dito doutros poemas que têm a figura
materna como motivo inspirador ou que trazem a figura da “ama”, todos impregnados
de emotividade. Outra faceta ortónima que praticamente não se conhecia nos
poemas a.c., ou só escassamente, diz respeito ao cristianismo. Conhecíamos poemas
esotéricos, mas em relação a Cristo, à Virgem Maria, à espiritualidade cristã, isso
constituiu tal surpresa que me decidi a fazer este texto.
Principio pelo poema cujo incipit é “Senhor, meu passo está no Limiar”, de
15/16-11-19151, no qual o ortónimo dirige uma prece a um destinatário que nomeia
como Senhor, grafado com maiúscula. Pelo seu teor, este pode ser identificado
com o Ser Supremo, com o Deus cristão. O poema guarda analogia formal com
“Ascensão”, de 10-1-1913, revelado como inédito na edição Poesia. 1902-19172. Os
dois são formados por seis estrofes, compostas por decassílabos combinados com
tetrassílabos e hexassílabos, embora sejam diversas as combinações dos metros nas
estrofes. Em ambos, rimas graves e agudas são habilmente distribuídas para salientar
as palavras chaves e neles o tema é a vida de relação com a Divindade. “Ascensão”,
apesar de o poema estar em 1ª pessoa, não é uma prece, mas uma autoconfissão e
“Senhor, meu passo está no Limiar” constitui, como o 1º verso indica, diálogo com
a Divindade.
Neste, o ortónimo revela uma consciência profunda da importância da sua obra
poética num plano que transcende a esfera imanente, ao mesmo tempo em que
formula um complexo pedido de humildade. Eis as primeiras estrofes:

1 Publicado pela primeira vez na edição crítica Poemas de Fernando Pessoa, tomo II – 1915-1920, edição de João
Dionísio, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.
2 Quando não houver outra indicação, as citações da obra pessoana serão extraídas das edições organizadas por
Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. São Paulo, Companhia das Letras, vols. I, II e
III, datados, respectivamente de 2006, 2007 e 2009.
Uma faceta ortónima “non despicienda” 307

Senhor, meu passo está no Limiar


Da Tua Porta.
Faze-me humilde ante o que vou legar...3
Meu mero ser que importa?

Sombra de Ti aos meus pés tens, desenho


De Ti em mim,
Faze que eu seja o claro e humilde engenho
Que revela o teu Fim.

Depois, ou morte ou sombra o que aconteça


Que fique, aqui,
Esta obra que é tua e em mim começa
E acaba em Ti.

Sinto que leva ao mar Teu Rio fundo


- Verdade e Lei –
O resto sou só eu e o ermo mundo...
E o que revelarei. (...)
15/16-11-1915 (I, p.351)

O eu do poema sabe que o seu legado será grandioso, que ele pode ser presa da auto
complacência, daí a humildade pedida como dom; sabe que a sua virtude não será
suficiente para criá-la em si. Qualifica seu ser de “mero”, pouco importante. A 2ª estrofe
enfatiza, platonicamente, que o eu é “sombra” de um “Ti” com maiúscula, a cujos pés
se encontra. Mais: que é um “desenho/De Ti em mim” e irrompe novo pedido: que o
eu ponha seu “engenho” a serviço do Ser Supremo para fazer a revelação de um Fim
também com maiúscula. Aceita e mesmo pede para ser o “mero” instrumento desse
plano que o transcende, mas que o inclui.
Chama a atenção que a prece prossiga fazendo um oferecimento da sua obra à
Divindade numa fórmula em muito parecida à de orações litúrgicas que rogam que uma
determinada ação comece em Deus e n’Ele termine. A do poema diz: “Essa obra que é
tua e em mim começa /E acaba em Ti”. A obra começa no eu, não em Deus, mas como
o eu, de antemão dissera que a obra não era dele, mas do “Senhor” – “é tua” – podemos
considerar sua formulação equivalente às tradicionais. O cuidado de explicitar que a

3 Palavra dubitada: legar.


308 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

obra “acaba” no “Senhor” é digno de nota, pois os que se exercitam na vida espiritual
conhecem bem que esse é um dos escolhos da navegação: pode-se começar uma
obra em Deus, mas, ao longo do caminho, consciente ou inconscientemente, ir-se
desviando e afastando do Fim proposto. O ortónimo demonstra-se conhecedor desse
meandro da vida interior.
Enquanto, na 4ª estrofe, para a obra que produz utiliza a metáfora “Teu Rio”,
qualificado de “fundo”, àqueles aos quais a obra se destina, o público, o eu poético
utiliza a metáfora do “mar”, que é para onde o “Rio fundo” leva “Verdade e Lei”.
Na Bíblia, o simbolismo do mar é ambivalente. O Génesis conta que os mares,
criados por Deus, são bons. Ele povoou o mar de rica fauna não só de peixes “normais”,
mas também de grandes cetáceos e de seres colossais, apresentados, por vezes, como
símbolos das forças do mal, submissos, contudo, ao Criador. O mar, pelas grandes
dimensões, instabilidade, tempestades, se apresenta muitas vezes assustador e será dele
que, no Apocalipse, sairá o Anticristo: “A Besta de 10 chifres e 7 cabeças” (Ap., 13.1).
A obra do ortónimo, começando e terminando na Divindade, “leva” “Verdade e
Lei” com maiúsculas ao “mar”, esse imenso e instável espaço mesclado de bem e de
mal, para lá cumprir uma missão divina. Nas estrofes finais do poema o eu fala da
“névoa que sobe do alto da montanha/E ergue-se à luz”, “a Tua luz”, como especifica
o verso seguinte, em que Tua é grafado com maiúscula e fala-nos de seu desejo:
“Eu quero ser a névoa que se ergue/ Para Te ver”. Tanto no Antigo quanto no Novo
Testamento, as grandes teofanias eram precedidas e/ou acompanhadas de névoas ou
de nuvens, às vezes luminosas, às vezes brancas, significando a presença de Deus e seu
mistério. Os dois versos finais da última estrofe dizem: “A humanidade sofredora é
cega – / O resto é apenas ser...4.
Citei os versos conclusivos do poema por considerá-los importantes para o
entendimento do que vínhamos tratando. Se o “mar” é “a humanidade sofredora” e o
eu a considera “cega”, sua obra, enquanto água de “Rio fundo”, leva água da “Verdade
e da Lei” para limpá-la, purificá-la e iluminá-la. Recordemos serem numerosas as
passagens do Antigo Testamento que falam das águas puras dos rios que revitalizam
as securas ao longo das andanças do povo de Israel e são célebres o Eufrates, o Jordão,
as águas que manavam do Templo no livro de Ezequiel, bem como passagens do Novo
Testamento que falam do batismo no Jordão e do rio da vida que, no Apocalipse, brota
do trono de Deus e do Cordeiro. Fica implícito que o eu do poema não está incluído
na humanidade “cega”. Se sua obra leva “Verdade e Lei”, é que o eu as conhece e se
considera em condições de almejar erguer-se para ver o seu Senhor.

4 Antes do poema o autor escreveu: Ao visionar as ideias finais da m[inha] filosofia.


Uma faceta ortónima “non despicienda” 309

Imediatamente a seguir a um poema como este, chama a atenção o de 12/12/1915,


escrito nem um mês após o que acabamos de analisar, intitulado “O barco abandonado”.
Neste, deparamos com um ortónimo em que tudo é incerteza, dúvidas, interrogações:
“De que serve a vida?/Para que a dor?/ (...) //Vamos indo, indo,/ Sem se definir (...)
// Lá iremos ter.../ Lá – parte nenhuma/ vida que viver.../ Sussurro de espuma...”, até
chegarmos à 11ª e 12ª estrofes, em que: “Tudo é como é/Sem que seja nada.../ Quem
me dera a fé/ E o sol sobre a estrada! // O rio não tem ponte. A alma não tem cor... O
sol, que desponte/ Mas nunca o amor...”. (I, p.352-3) É como se o ortónimo sentisse a
necessidade de fazer a palinódia do poema escrito vinte e sete dias antes: não vão “os
que me leem” pensar que acredito no que escrevi no anterior...
Passemos ao mencionado poema “Ascensão”, de 10-1-1913. Inédito até a edição
de 2006, esse poema ombreia o ortónimo com poetas de inspiração espiritualista do
século XX. Cristã, pura e simplesmente, ou cristã gnóstica se assim se quiser, essa
outra faceta completa e enriquece o nosso conhecimento do génio Fernando Pessoa.
Penso tratar-se de poema que revela um conhecimento de experiências de não
principiantes na vida da oração mental cristã. Místicos como Teresa d’Ávila ou João
da Cruz, ao tratarem de fenómenos espirituais, falam de um grau mais adiantado da
vida interior em que o praticante da oração mental já adentrou tanto no exercício da
presença de Deus, que ela deixou de ser uma prática pontual, que se faz pela repetição
de atos e vai se tornando mais duradoura até que chega um momento em que a alma
experimenta a inabitação de Deus em seu interior como uma presença que se faz
contínua. É este o chamado dom da inabitação divina na alma orante, de que, sem
assim nomeá-lo, o ortónimo fala em seu poema “Ascensão”.
Vejamos o 1º verso: “Quanto mais desço em mim mais subo em Deus...” (I, p. 165).
Descer em si mesmo faz pensar na experiência abissal do salmo 1295, em que o eu
que clama por Deus o faz das profundezas do abismo interior; faz pensar também
no solilóquio de Sto. Agostinho noverim me noverim te, profundas experiências de
autoconhecimento à luz da magnitude do conhecimento da Divindade, experiências
de humildade e de elevação, experiências místicas. “Um abismo chama outro abismo”
é aforismo tirado do salmo 42, 7 e bastante citado na mística cristã.
O prosseguimento do poema confidencia a sua trajetória: “Sentei-me ao lar da
vida e achei-o frio,/Mas pus tão alta fé nos sonhos meus/ Que ardente rio/Do puro
Compreender e alto Amor, /Da chama espiritual e interior6/ Deu nova luz ao meu
alheio olhar/ E às minhas faces cor...”. Desgostoso da frieza do puro exercício racional

5 Salmo 129: De profundis clamavi ad te Domine. Missal Quotidiano e Vesperal. Bruges, Desclée de Brouwer&Cie,
p.887.
6 Var. sobrep. para e interior:-divino amor.
310 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

e dele rindo – exercício tantas vezes tão grato ao ortónimo – ao mesmo tempo em
que um “Amor” não baixo, mas “alto”, vindo de outra esfera, por isso com maiúscula,
conferiu-lhe “chama espiritual e interior” e deu “nova luz ao olhar”, “cor às faces” e
mais, porque a 3ª estrofe, surpreendentemente, acrescenta que, na alegria da fé, o eu,
“alma de joelhos”, crê e adora.
Convenhamos estar a lidar com um ortónimo diferente daquele com quem
tradicionalmente lidávamos, quando lemos esses versos e os que agora cito: “Porque
Deus fez de mim o seu altar/Quando Ele me nasceu tal como sou,/ (...)// Eu tenho
Deus em mim... Em Deus existo/ Quando crê, cega, acha-o minha fé calma.../
Maria-Virgem concebeu um Cristo/Dentro em minha alma...” Versos de pura teologia
mística, que poderiam ser encontrados em poemas de santos canonizados. A última
estrofe é que apresentará uma surpresa em parte dos dois versos finais. Após dizer
que a sua alma encontra seus céus dentro de si, que está morta para si em Deus, tudo
teologicamente ortodoxo, vêm reticências e as seguintes indagações: “Mas o que é
Deus? E existe Deus?/ Isso que importa?”. Desta vez, não foi necessário fazer uma
palinódia. A contradição estabeleceu-se no interior do próprio poema, em seu fecho,
espaço de força privilegiada. Quer isso dizer que o fecho anula o que o corpo do poema
colocara? Diria que não, mas que o problematiza, colocando-o sob o signo da dúvida.
Mas será que a atitude dubitativa, polémica, questionadora constitui novidade para
o leitor do ortónimo e de Pessoa, de modo geral? Nos primeiros textos recolhidos no
Poesia.1902-1917, do ortónimo, encontramos os poemas:

“Agnosticismo Superior”

Foi-se do dogmatismo a dura lei


E o criticismo não foi mais feliz.

“Nada sei” o Agnóstico enfim diz...

Eu menos, pois nem sei se nada sei.


15-11-1907 (p.40)
Uma faceta ortónima “non despicienda” 311

“Lirismos”

Não achei dita na crença,


Na descrença não n’a achei;
Qualquer delas que me vença
Na mesma dor ficarei;
Qu’rendo crer quando em descrença,
Descrente ao acreditar,
Em perpétua malquerença
Ao meu perpétuo hesitar.
28-12-1908 (p.56)

Motivo recorrente na poesia ortónima é a insistência sobre as mais variadas formas


e modos de dizer o “não saber”. Nesse “agnosticismo” que qualifica de “superior”, ele
se preocupa com advertir os leitores sobre a sua condição de radicalidade. “Lirismos”,
por sua vez, é uma esparsa exemplar; poderia até ser camoniana, na auto descrição
de um eu em motu perpetuo, pendular, entre crença e descrença. Se o termo fosse
mais bem soante, poderíamos dizer que, além de o poeta ser um fingidor, ele é um
“duvidador”. O que pensar, então, do poema inédito de 30-10-1912, que, embora
lacunar, apresenta, a esse respeito, estes versos fortemente expressivos: “Ateu no
próprio ardor divino/A meio de cantar meu hino/ ‘Sfrio e duvido do meu céu”.7 ?
(I, p. 153). Vem a propósito um trecho de uma reflexão do filósofo Luigi Pareyson,
que insiro: “(...) com a fé, o homem pode atingir a verdade e gozá-la com confiante
abandono, numa plenitude de conhecimento e de vida como nenhuma outra forma
de saber pode assegurar, mas o faz com uma escolha que não pode se realizar de uma
vez por todas, de modo definitivo e seguro, e que deve, pelo contrário, repetir-se a
cada instante, com uma luta intrépida e um contínuo triunfo sobre a dúvida. A fé
une paradoxalmente securitas e insecuritas, a plenitude da posse e a necessidade da
confirmação, a tranquilidade do sucesso e a precariedade da aposta, a serenidade da
descoberta e a inquietude da busca (...)”8. O que vemos no caso do ortónimo é uma
ingente precariedade da aposta, uma aposta retirada quase no mesmo instante em
que é formulada e vice-versa.

7 Trata-se da 6ª estrofe do poema cujo incipit é “O céu ‘stá lúcido e tranquilo” (I, p.153).
8 Pareyson, L. Verdade e interpretação, p.228-229.
312 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

De repente, porém, irrompe este soneto, de 23-3-1930:

Vieram com o ruído e com a espada


Senhores do destino após vencer
E uma após outra foi cada mulher
Os sucessores esconder da estrada.

Eram soldados, com a ordem dada


E vinham sobriamente recolher
O sangue das crianças a morrer
Nos escombros da própria casa achada.

Mas longe, sobre o asno do destino,


Levava a Mãe piedosa aquela dor
Futura que era agora o seu Menino.

Apertava-o ao peito, sob a vaga luz


Que toldava mais as árvores ao sol pôr.
De uma, talvez, seria feita A Cruz.
23-3-1930 (II, p.359)

Principio comentando que, inspirado no episódio da infância de Jesus, conhecido


como a matança dos inocentes e a fuga da Sagrada Família ao Egito, este poema
poderia ilustrar um cartão de Natal. Ele é plástico e piedoso, embora possa ter sido
criado na “inquietude da busca”. Ele anuncia a década de 30.
É composto por decassílabos heróicos, com esquema rímico abba nos quartetos,
cdc ede nos tercetos, e emprego de rimas graves nas rimas a dos quartetos e agudas
nas rimas b, que são mais dramáticas. Nos tercetos, habilmente rima-se “destino” com
“Menino”, incluindo-se entre as duas sonoridades –ino do – c, a rima aguda –or de
“dor”, significando que o destino daquele “Menino” estava imerso em “dor”. No 2ª
terceto, temos “luz” rimando com “Cruz”, mostrando que esta era a meta final do “sol
pôr” da vida do “Menino”. Perícia e sensibilidade extremas demonstrou o ortónimo
ao construir o soneto, também no momento em que, se no 1º terceto se aponta
para a Sagrada Família já livre dos soldados perseguidores, nos narra, contudo, em
perspectiva e com afeto, que: “Levava a Mãe piedosa aquela dor/Futura que era agora
o seu Menino.” Atente-se para a veneração que revela o uso da maiúscula para o
substantivo Mãe. Atente-se, ainda para o emprego da maiúscula para o artigo definido
A, no interior do verso final, não precedido de ponto final, quando diz que de uma
Uma faceta ortónima “non despicienda” 313

dentre as árvores ao “sol pôr, “talvez, seria feita A Cruz”, querendo significar que
não se tratava de uma cruz qualquer, mas d’A Cruz redentora, merecendo portanto
esse destaque. Principia, neste soneto, a manifestar-se a temática da cruz, que
encontraremos noutras composições da década de 30.
Note-se também que, no mesmo dia em que datou o soneto da fuga para o Egito,
datou também e possivelmente mesmo teria escrito o poema: “Quando Cristo, Rei
da Lei,/ Voltou ser, após os três/Dias que Deus deu ou fez,/Viu logo nascer do chão/
Quem lhe roubasse o caixão/E disse: Já me enganei./Adeus, vou morrer de vez!” Será
que esse poema-blague, talvez para neutralizar o efeito piedoso do soneto, merece o
pomposo nome de palinódia? Mas, que o procedimento de dar uma no cravo e outra
na ferradura aqui se manteve, é verdade.
O ortónimo data de 20-1-1933 um de seus mais belos sonetos, em versos
decassílabos, no qual, nesse movimento pendular que o caracteriza, vemo-lo num
extremo de fé e de positividade. Ei-lo:

Cabeça augusta, que uma luz contorna,


Que há entre mim e o mundo que me faz
(Porque em espinhos a auréola se torna?)
Ansiar a minha morte e a tua paz?

A tua história – Pilatos ou Caifás


Que tem? São sonhos que o narrar transtorna.
Não é esse o Calvário a que te traz
Tua sina onde todo o fel se entorna.

Não. É em mim que se o Calvário ergueu.


É em meu coração abandonado
Que Ele, cabeça augusta, alto sofreu.

Quem na Cruz onde está ermo e pregado


O pregou? Foi Romano ou foi Judeu?
Bate-me o coração. Meu Deus, fui eu!
20-1-1933 (III, p. 146)

Se ainda permanecesse dúvida a respeito, esse soneto não revelaria uma vigorosa
faceta mística no ortónimo, já que só um místico o poderia ter escrito? Não há nele
tal envolvimento com a figura de Cristo paciente, que o poema não fica a dever a
314 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

composições de místicos que o celebraram, um São Francisco de Assis, um São João


da Cruz?
O eu defronta-se – real ou mentalmente – com uma imagem de Cristo, somente
a cabeça ou um crucifixo e, ato contínuo, com Ele principia emocionado diálogo, a
quem trata com intimidade, tuteando-O. A abertura do soneto revela, na adjetivação,
grande reverência, “cabeça augusta”, respeito majestático, que se deve ao sagrado;
alude a seguir à luz da auréola que, em seu olhar, embargado pela comoção, se funde
à lembrança da coroa de espinhos. A visão dessa “cabeça augusta” causa-lhe impacto
tão grande que ao vê-la ele anseia a morte para si e a paz para Cristo.
Prosseguindo o seu diálogo que é também oração, ele pergunta-lhe, usando da
indagação retórica, no 2º quarteto, se seus algozes foram exatamente “Pilatos ou
Caifás”, se seu “Calvário” foi precisamente aquele espaço da Palestina onde se passou
a crucifixão, para responder com o monossílabo peremptório com que inicia o 1º
terceto: “Não”, ponto final. Com clareza contundente, prossegue “É em mim que se o
Calvário ergueu”. Ao afirmar que o espaço de seu “coração abandonado” foi o lugar
em “que Ele, cabeça augusta, alto sofreu”, assume que seu coração foi o locus horrendus
dessa “alta” tortura e execução. Daí o terceto conclusivo a ostensivamente declarar que
não se trata de saber se quem o pregou na “Cruz” foi “Romano ou Judeu”, pois quem
o pregou, ele o assume em 1ª pessoa, “fui eu!”.
Salientemos que o soneto se fecha com o pronome “eu”, com toda a intensidade da
rima aguda. Salientemos ainda que ao considerar seu coração o “Calvário” da execução
de Cristo e ao chamar para si o ato de pregar Jesus na “Cruz”, tais procedimentos não
deveriam ser entendidos como referidos apenas ao eu do poema. Não está esse eu a
dizer que o “Calvário” onde a “Cruz” se ergueu não aconteceu num tempo e lugar
pontuais, mas acontece em qualquer tempo e lugar nos corações dos que ignoram
Cristo, vivem como se Ele não existisse, julgam-nO, condenam-nO e crucificam-nO
em seus corações?
No soneto da fuga ao Egito, o ortónimo já principiara a introduzir a presença da
Cruz. Neste soneto que ora nos ocupa, ele se alinha entre os que mais profundamente
meditaram na Paixão de Cristo, os místicos da Cruz, Francisco de Assis, Catarina de
Sena, Henrique Suso, Johannes Tauler, Luís de La Palma, João da Cruz, Pe. Manuel
Bernardes, embora nem todos os citados tivessem sido poetas. Muitos desses, em seus
escritos, chegaram a conclusões semelhantes.
Num poema de 28-8-1927, cujo incipit é: “Não venhas sentar-te à minha frente,
nem a meu lado;”, o eu ortónimo, em dado momento afirma: “Deitei fora entre urtigas
o que era a minha fé,/Escrevi numa página em branco, “Fim”. Tal declaração ocorre
na 3ª estrofe, mas na 6ª, ela ganha em contundência: “Pus o meu Deus no prego.
Embrulhei em papel pardo/As esperanças e as ambições que tive,/ E hoje sou apenas
Uma faceta ortónima “non despicienda” 315

um suicídio tardo,/Um desejo de dormir que ainda vive.” (II, p. 282 e 283). Trata-se de
um poema desabusado, que mais parece Álvaro de Campos do que ortónimo. Ele faz
lembrar o de16-3-1934, que transcrevo:

Eu, que vendi a alma a meio diabo


E a quem, no Carnaval do sem-remédio,
A Sorte pôs, furtivamente, o rabo
Multicolor e mole do meu tédio –

Eu, que não sou ninguém de tanto ser,


E a cuja face a dúvida arrojou
Farinha, a fé que tive que perder,
Água, o desgosto de ficar quem sou –

Eu, assim mesmo, ainda sei mudança,


E, lançado no abismo de aqui estar,
Lembro os meus amplos tempos de criança
E como era rápida a esperança...
Deixem-me ouvir o coração parar!...
16-3-1934 (III, p. 246)

Desabusados dissemos que eram os versos do de 1927. Neles, o “Eu” lamentava


de forma amarga o abandono da fé, a perda das esperanças e das ambições; tudo
parecia estar acabado. Desabusado é também o início do poema de 1934. Este,
construído como uma tripla declaração que o “Eu” faz a respeito de si, principiando
cada estrofe com este mesmo pronome, vai além. É verdade que o “Eu” declara que
vendeu a alma, mas foi “a meio diabo”, o que poderia não ser tão grave como se fosse
ao diabo inteiro. É verdade que a sua vida se tornou um irremediável “Carnaval”,
com maiúscula, no qual a “Sorte”, também com maiúscula, conseguiu introduzir
o “rabo multicolor e mole”– não está escondida nesse “rabo” a imagem do “meio
diabo”? – de seu “tédio”. Essa autoconfissão, feita nos quatro decassílabos da 1ª
estrofe, prossegue nos outros quatro decassílabos da 2ª, em que o “Eu” se acusa de
não ser mais ninguém de tanto se despersonalizar e outrar, de ter uma face sobre
a qual a “dúvida” – atenção! – arrojou “farinha” – “a fé que tive que perder”-, a
“água” – “o desgosto de ficar quem sou –”. “Farinha” e “agua”, matérias básicas para
fazer a máscara do “Carnaval” de que fala a 1ª estrofe. E qual o agente da fabricação
da máscara de que resultou “o desgosto de ficar quem sou”? A nossa já conhecida
“dúvida”.
316 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

A 3ª estrofe de decassílabos, também principiada por “Eu”, vem, contudo, introduzir


outra perspectiva nesse estado de coisas. “Eu, assim mesmo, ainda sei mudança” e
não é por acaso que remete aos tempos de criança; formalmente, o poema rompe
com o esquema de quartetos de decassílabos e se constrói em quintilha. Há algo
novo. Lembrar os “amplos tempos de criança” é desejar sair do esquema em que
tinha entrado é querer ainda ser capaz de mudança. Contudo, a perspectiva que se
lhe acenava para sair desse Carnaval afigura-se “sem-remédio” ao ver-se “lançado no
abismo de aqui estar” e não lhe ser mais possível alçar-se; amargamente, a “mudança”
que sabe, é apenas a de “ouvir o coração parar”.
Se dissemos doutro poema que nele havia palinódia, ouso dizer que neste, de
algum modo, também existe uma palinódia, mas uma palinódia de sua poética da
despersonalização e do seu outrar-se. O ortónimo chega a reconhecer que é “ninguém
de tanto ser” e que se ressente do desgosto de “ficar quem sou”, a ponto de desejar seu
fim por não achar mais caminho de volta a outros tempos mais amplos e nos quais a
esperança estava à mão.
Façamos agora um recuo no tempo, e lembremos o poema de versos livres “Entre
as tuas joias há um anel antigo,” de 1-3-1917. Nele, a propósito desse anel, “com uma
gema dos gnósticos, talismã”, o ortónimo, na 2ª estrofe, faz uma confidência, que diz
respeito não estritamente ao eu poético, mas que, estando em 1ª pessoa do plural,
assume um aspecto coletivo, como se estivesse fazendo um diagnóstico geracional
ou, pelo menos, de um grupo dentro de uma geração. Ei-la: “Nós dissemos à fé da
nossa infância: Vai-te./ Esquecemos o que aprendemos com os beijos de mãe./ Hoje
não somos felizes, nem grandes, e vem/ Sobre nós um tédio”. Porta-voz dessa geração
ou grupo, ele é claro e, em seu presente, o balanço a que chega sobre esse processo
não é positivo sob nenhum ponto de vista; a conclusão é que nenhum deles chegará
a porto algum. A indagação que, então, levanta é: “Quem nos virá dizer as palavras
que Cristo/Deixou secretas no fundo divino do seu coração?/ Sofrer...Toda a nossa
vida dia a dia é isto.../ Quem nos consolará, sendo ele a Consolação?...”(I, p.420-421).
Retornemos aos anos 30 e prossigamos as reflexões a partir do surpreendente
poema:

A Igreja Católica9 cobriu como uma redoma


Meus dias serenos.
Chamo-lhe agora, com razões, a Igreja de Roma.
Sei mais ou sou menos?

9 Var. sobrep. a Católica: materna.


Uma faceta ortónima “non despicienda” 317

Kabbalahs, gnoses, mistérios, maçonarias


Tudo tive na mão
Na busca ansiosa que enche minhas noites e dias.
Mas nunca o meu coração.

De que é que me deserdou a verdade?10


A maçã diabólica
Comi-a, e sou outro, mas quanto?! Oh a saudade
Da Igreja Católica!

Qualquer cousa de mim quebrou-se, como uma mó


Que caísse mal.
Em pequeno eu seguia, magnanimamente só
Sem nada fatal.
20-4-1934 (III, p.261)

Surpreendente é a palavra e não creio seja necessário explicitar razões. Sempre


haverá quem leia o poema acima transcrito como irónico, mas não parece que, neste
caso, tal leitura subsista.
Informa a edição que variante para “Católica” seria “materna”, informação de
interesse, dada a importância que tudo quanto se relaciona com a função de mãe
desempenha na obra do poeta; talvez por isso mesmo o ortónimo tenha evitado fixar
no texto esse adjetivo. Observemos também que, no presente da escrita do poema, o
nome pelo qual ele chama a Igreja Católica é “Igreja de Roma”, fazendo questão de com
isso manifestar não lhe reconhecer o caráter de universalidade. Observemos ainda
não ser nada lisonjeira a comparação da Igreja com uma “redoma” que lhe “cobriu”
seus “dias serenos”, pois viver assim preservado pode significar não ter discernimento
nem gozar do maior dom divino, a liberdade. Mas, imediatamente a seguir a essa
sequência, surge a instigante questão: “Sei mais ou sou menos?”
“Sei mais” agora do que sabia na época da “redoma” dos “dias serenos” e/ou por isso
“sou” mais agora que parece que “sei mais” do que então? Será que o que “sei” agora,
que não estou numa “redoma”, não me faz ser “menos” do que eu era então? Afinal, o
que, efetivamente, importa: saber mais ou ser mais?
Acabados os “dias serenos”, já fora da “redoma”, teve acesso aos saberes que desejou
conhecer: “kabbalahs, gnoses, mistérios, maçonarias”, todos arrolados num plural que

10 Var. subp. para o verso: De que fui deserdado pela verdade?


318 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

lhes tira a gravidade e os reveste de certa ironia. Num verso alexandrino, o eu sintetiza
esse itinerário, não necessariamente cronológico, que, ao fim e ao cabo, ocupou-o
bastante, encheu-lhe o tempo, “mas nunca o [seu] meu coração.” Este último dado é
fundamental e importa não esquecê-lo.
Comido do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, “a maçã diabólica” de querer
igualar-se a Deus, o eu perdeu radicalmente seus “dias serenos”, dias de inocência,
daí sucederem-se as interrogações: “De que é que me deserdou a verdade?” “(...) sou
outro, mas quanto?!” Mal houve tempo de formulá-la quando, surpreendentemente,
irrompe o verso chocante: “Oh a saudade/Da Igreja Católica!” Ironia, dirão alguns.
Talvez, mas, pelo contexto do poema, não parece, apesar de ele fazer “Católica” rimar
com “diabólica” – e ao chamar a atenção para isto, eu mesma forneço armas aos que
iriam levantar esse argumento contra minhas colocações.
A 4ª e última estrofe confirma a leitura que estamos fazendo. Em seu presente, o eu
perdeu a integridade, é como “mó” “que caísse mal”, está quebrado. Não é só Álvaro de
Campos que vê sua alma partir-se “como um vaso vazio”; também o ortónimo vê-se
partido, ele que, “em pequeno”, “seguia, magnanimamente só/ Sem nada fatal”. Indo ao
dicionário Houaiss, encontramos para magnânimo aquele “que, a despeito de todos
os riscos e perigos, age ou pensa desinteressadamente com vistas a servir alguém ou
a encarnar um ideal; generoso; bondoso”. O “pequeno”, que vivia coberto por uma
“redoma” vivia desinteressadamente “só”, generosamente “só”, “sem nada fatal”, donde
se conclui que, em seu presente, ele provavelmente está acompanhado, por um grupo
talvez, e oprimido por previsões funestas.
Semelhante ao poema analisado é o que principia com o verso “Na paz da noite,
cheia de tanto durar”, editado no Poesia.1931-1935 imediatamente a seguir ao que
acabamos de tratar, e datado de Abril de 1934, segundo a nota, à p. 589. Nele, após
confidenciar que leu muitos livros em vão, pois vê que há “paz” na noite acabada, mas
não no seu coração, acrescenta algo significativo: “Criança, era outro... Naquele em
que me tornei,/ Cresci e esqueci./ Tenho de meu agora um silêncio, uma lei./ Ganhei
ou perdi?” (III, p. 262). No poema anterior, a expressão utilizada foi “em pequeno”;
neste, “criança, era outro...”. Dois versos pentassílabos resultam do confronto entre o
passado e o presente: “Cresci e esqueci.” e “Ganhei ou perdi?”. A leitura do primeiro
pentassílabo parece-me desfavorável ao primeiro verbo, pois o resultado de crescer foi
esquecer, logo seu presente não está sendo bom. Quanto ao segundo pentassílabo, a
indagação também merece resposta negativa para o “ganhei”, porque no presente do
eu não há “paz”, ele só tem de seu “um silêncio” e “uma lei”. Ao crescer, perdeu.
Será que ainda se faria necessário tratar de dois outros poemas que, se estivessem
menos lacunares e/ou discutíveis, seriam excepcionais para nossa linha de reflexão,
“O Rei” e “Mãe de Deus”, ambos de 31-7-1935? Reproduzirei aqui apenas a fixação
Uma faceta ortónima “non despicienda” 319

que Carlos Pitella-Leite fez de “O Rei” como soneto, em sua tese de doutorado11, que
foi a fixação do texto que me pareceu a mais convincente, e dele tratarei num breve
comentário:

275. “O Rei”
O Rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei coroaram-nO de espinhos
E por trono Lhe deram uma cruz.

O olhar fito do Rei a si conduz


Os olhares fitados e vizinhos
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
As pálpebras descidas de Jesus.

O Rei fala, e um seu gesto tudo prende,


O som da sua voz tudo transmuda.
E a sua viva majestade esplende;

Meu Rei morto tem mais que majestade:


Fala a Verdade nessa boca muda;
Essas mãos presas são a Liberdade.
31-7-1935 (p. 239 da tese)

Chama-me a atenção, em primeiro lugar, ser o ortónimo o emissor desse poema e


por duas vezes ele usar o possessivo “meu” ao falar do “Rei”, incluindo-se entre seus
súditos: “Ao meu Rei” e “Meu Rei”, principalmente quando lembramos que sobre a
Cruz de Jesus, Pilatos mandara pôr o letreiro “Este é Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus”
(João, 19,19). Trata-se de uma adesão declarada. Chama-me poderosamente a atenção
que ele tenha escolhido para a exaltação de Jesus como seu Rei a contemplação de
Jesus crucificado, confirmando, na esteira de Francisco de Assis, a preferência pela
temática da cruz. Sua “coroa de oiro é luz”, sobrepondo-se à coroa de espinhos que lhe
puseram “os seus mesquinhos” e de “por trono” Lhe terem dado uma cruz.

11 Pequenos infinitos em Pessoa: uma investigação filológico-literária pelos sonetos de Fernando Pessoa. Tese
de doutorado (importante) defendida e aprovada no Departamento de Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro em 28 de março de 2012. Há variantes significativas deste soneto entre as leituras
de Carlos Pitella-Leite e a leitura deste mesmo poema não visto como soneto pelas editoras da Companhia das
Letras.
320 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

Chama-me a atenção o tom devoto, compassivo, o considerar-se, dentre os que


fitam Jesus, aquele a quem “as pálpebras descidas de Jesus” mais fitam, por haver
talvez entre ambos uma compreensão profunda na dor, uma enorme solidariedade.
Chama-me a atenção que o ortónimo diga que “o Rei fala”, embora no penúltimo
verso, ele irá dizer de sua “boca muda”. O Rei fala com seu ser, com o que ele é, e,
embora não se ouçam palavras, diz o 1º terceto que o som da sua voz muda tudo, altera
tudo. O último verso do 1º terceto é luminoso: “E a sua viva majestade esplende”. Na
contemplação extática do eu ortónimo – uso extática com x – numa circunstância
em que menos se poderia esperar, a de estar diante de um crucificado, resplandece
a “viva majestade” de Jesus. Ele o vê com olhos de Fé e de Amor. Daí principiar o 2º
terceto com maior carga afetiva pelo uso do possessivo “Meu Rei morto tem mais que
majestade”. Desta feita, neste ortónimo de 1935, já não há lugar para um poema-blague.
Curiosamente, não retrata Jesus nem na Ressurreição, nem na Ascensão aos Céus.
Retrata-o na Cruz, é nela que ele o vê vitorioso e majestático e daí os dois magníficos
versos finais, com maiúsculas para Verdade e para Liberdade. Aquilo que tinha sido
ceticamente posto em dúvida no diálogo de Jesus com Pilatos – “O que é a verdade?”
é proclamado no penúltimo verso pela “boca muda” do crucificado e confirmado pelo
espantoso achado do verso final – “essas mãos presas são a Liberdade”, um oxímoro de
força extraordinária. Aliás, a melhor caracterização que encontrei, para a poética de
Pessoa, publiquei-a num texto de já alguns anos: ela é uma poética da liberdade12 – esse
valor que é para ele de importância suprema. É isso o que ele vê nas mãos presas do
crucificado, manifestando que Ele se deixou crucificar porque quis, soberanamente,
não por ter sido aprisionado. Importante também é atentar para a data do poema,
31-7-1935.
A esta altura, queria acrescentar uma reflexão sobre a figura da mãe na poesia
ortónima.
Já no Poesia.1902-1917 encontra-se um poema de 1916, sem indicação se inédito
ou já publicado. Trata-se daquele cujo incipit é: “Minha mãe, dá-me outra vez” (I, p, 398).
Nomeia o que deseja ganhar de novo como o seu “sonho”, mas na hora de explicar-lho
diz tudo quanto o “sonho” não é e não encontra termo adequado para dizer o que ele
é. Usa da ontologia negativa porque o que ele deseja é de uma ordem outra, inefável,
uma espécie de paraíso experimentado na infância, no amor de mãe, no aconchego
familiar, tal como mais tarde exprimirá magnificamente no poema ortónimo nuclear
“Un soir à Lima”, de 17-9-1935, que poetiza a experiência de um êxtase ocorrido num
serão familiar em Durban13.

12 Cf. texto de GARCEZ, Maria Helena Nery. “Uma poética grávida de impactos”. Vide Bibliografia.
13 Cf. texto de GARCEZ, Maria Helena Nery. “Uma noite em Durban”, aguardando publicação pela Revista do CLEPUL.
Uma faceta ortónima “non despicienda” 321

Mencionemos ainda os poemas “Virgem Maria”, que embora não trate da mãe do
eu poético, trata da mãe num sentido amplo: “Mãe de quem não tem mãe, no teu
regaço/ Poisa a cabeça a dor universal/ E dorme, ébria do fim do seu cansaço.../E tens
na mão, usado e nunca imundo,/ O pequenino lenço maternal/ Com que enxugas as
lágrimas do mundo.”, de 21-8-1935, (III, p. 435). O “Mater desiderata”, poema sem data,
dedicado a sua mãe, cujo título é uma criação do eu poético à maneira da ladainha
de Nossa Senhora, tão elevado é o amor que à mãe ele dedica. Curiosamente, neste
poema, ele descarta o argumento dos que procuram consolá-lo com a ideia de que irá
encontra-la na “reencarnação”, respondendo: “Mas é a mesma que eu quero,/Essa é
que eu choro em dor...”. Ele prefere a ressurreição: “Quem quero é minha mãe,/A mãe
que tive aqui.” (III, p. 548).14
Concluindo, penso que com as revelações trazidas pelas publicações das poesias
completas do ortónimo é preciso rever posições
No tabuleiro pessoano há o jogo heteronímico e há também a figura do ortónimo.
Não me parece que a visão dos heterónimos tenha mudado tanto quanto a do
ortónimo. Para que o jogo pessoano decorra fidedignamente, é preciso que cada peça
esteja bem definida e seu ethos (como diria Mariella Augusta Pereira em sua tese15)
bem configurado, mesmo se ele for complexo e/ou contraditório.
Dantes, em relação ao ortónimo, fazia-se muito finca-pé no distanciamento, no
vanguardismo, no sentir com a imaginação e não com o coração, no esoterismo e, de
fato, nele tudo isso existe. O mito daquele cerebral, do distanciado que sentia só com
a imaginação e não usava o coração, do “novelo embrulhado para dentro” mostrou-nos,
porém, em poemas d.c., que muitas vezes ele também usa muito o coração, que há
graus naquele distanciamento e o mito está se ajustando mais à realidade. O esoterismo
existe, mas não só. Na poesia ortónima lida cronologicamente, vamos assistindo a
uma progressiva aproximação da figura de Cristo até à adesão extática (e uso extática
com x intencionalmente) manifestada no soneto “O Rei”. Do cristianismo, ele adere
a Cristo e a Cristo crucificado. Também fica clara uma forte ligação entre a fé e a
educação recebida no âmbito familiar, mais concretamente sob a influência materna.
Vê-se, portanto, que o ethos do ortónimo não estava bem caracterizado.

14 Para terminar a sequência, como não citar um poema muito lacunar, mas significativo da importância que
o ortónimo, desde muito cedo, 1-7-1910, atribuía à figura materna, o inédito “Harlot’s song”, que nos traz a
figura de uma rameira do Bairro Alto, sem freguesia, e cantando uma triste canção? Ao ouvi-la, o eu tece
considerações sobre os caminhos da vida e, na estrofe final, fecha assim o poema: “E o mistério de tudo é tão/
Visível na tua vida e fado absurdo/Que esqueço até a compaixão/ E fico [ ] e surdo/E dolorido, como quem /
Pensasse, ó triste, ser tua mãe...” (I, p.100-101).
15 Pereira, Mariella Augusta. A heteronímia: metamorfoses retórico-poéticas. Ethos e pathos nas Ficções do
interlúdio. Tese de doutorado defendida e aprovada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo em 11/07/2014.
322 100 Orpheu Maria Helena Nery Garcez

Se, no tabuleiro pessoano, o heterónimo Alberto Caeiro é fundamental na proposta


para uma instauração do neopaganismo, se ele era o grande Pan que renasceu (Cf.
doc.121-99), se “para nos dar a substância absoluta do pagão tinha Caeiro que ser
mais pagão que os pagãos, mais puramente que elles...” pensemos como se torna
mais forte a afirmação de Pessoa quando escreve a Casais Monteiro “pus no Caeiro
todo o meu poder de despersonalização dramática”. Seria, então, um contrassenso
perguntarmos se o ortónimo de alguns poemas d.c., como no muito significativo,
“Un soir à Lima”, constitui sua personalização máxima? Por vezes esse ortónimo não
constitui um contraponto ao heterónimo Alberto Caeiro e vice-versa?
Faço notar ainda que sobre as dimensões do ortónimo aqui tratadas houve, durante
muito tempo, um silêncio, que deu azo ao nascimento e fortalecimento daquela figura
mítica incompleta de que tratamos, talvez porque grande parte dos poemas que li e
comentei estavam manuscritos, eram de difícil leitura e não foram publicados. Talvez.
À medida que vamos chegando aos anos da década de 30 e nelas adentrando,
porém, esse eu que sente não só com a imaginação vai aparecendo cada vez mais e
uma nostalgia das raízes ganha corpo no poema “Un soir à Lima”, enquanto o mítico
“raciocinador exacto” vai cedendo mais espaço “à criança que fui”, embora o poema
em que explode o desejo desse retorno termine em nostalgia:

“Mas, mãe, não haverá


Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é ilusão.
Un Soir à Lima...

Quebra-te, coração... 17-9-1935 (p.448-9)

Parece até que o duvidador venceu. Seria? I do not know what tomorrow will bring.
Fica em aberto.

Bibliografia

GARCEZ, Maria Helena Nery (1985). Alberto Caeiro/“Descobridor da Natureza?”.


Porto: Centro de Estudos Pessoanos.
GARCEZ, Maria Helena Nery (2007). “Uma poética grávida de impactos”. In:
BUENO, Aparecida Fátima et ALII. História, memória e perspectivas. São
Paulo: Alameda Casa Editorial, pp.265-275.
Uma faceta ortónima “non despicienda” 323

PAREYSON, Luigi (2005). Verdade e interpretação. Tradução de Maria Helena


Nery Garcez e Sandra Neves Abdo. São Paulo: Martins Fontes.
PESSOA, Fernando (2006). Poesia. 1902-1917: edição de Manuela Parreira da
Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. São Paulo: Companhia das Letras.
PESSOA, Fernando (2007) Poesia. 1918-1930: edição de Manuela Parreira da
Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. São Paulo: Companhia das Letras.
PESSOA, Fernando (2009). Poesia. 1931-1935 e não datada: edição de Manuela
Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine. São Paulo: Companhia
das Letras.
PEREIRA, Mariella Augusta (2014) – A heteronímia: metamorfoses
retórico-poéticas. Ethos e pathos nas Ficções do interlúdio. Tese de doutorado
defendida e aprovada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo em 11/07/2014.
PITELLA-LEITE, Carlos (2012). Pequenos infinitos em Pessoa: uma investigação
filológico-literária pelos sonetos de Fernando Pessoa. Tese de doutorado
defendida e aprovada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
em 28/03/2012.
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa:
Um convite para pensar a modernidade

Fernando de Moraes Gebra


Universidade Federal da Fronteira Sul

Palavras-chave: Modernismo; Vanguarda; Interseccionismo; Heteronímia; Duplo.


Resumo: Na conhecida carta sobre a génese dos heterônimos escrita a Adolfo Casais Monteiro,
Fernando Pessoa comenta que os seis poemas de “Chuva Oblíqua” significaram uma maneira
de garantir a sua autonomia, a sua identidade e a sua existência em relação a Alberto Caeiro.
Nesta comunicação, a partir do exame das imagens, dos símbolos, das metáforas, do processo
de autognose, do componente lúdico (próximo do fingimento de “Autopsicografia”), do plano
rítmico e da sinfonia iniciática, discuto a arquitetura imaginária de Pessoa como resposta ao
dinamismo das sensações da modernidade. Leio “Chuva Oblíqua” como um importante pilar
de sustentação do palco heteronímico, no qual as sensações são interseccionadas e permitem a
construção da base da pirâmide heteronímica.

Introdução

Na conhecida carta sobre a génese dos heterónimos a Adolfo Casais Monteiro,


apesar de ser um texto com elementos ficcionais, Fernando Pessoa escolhe o dia 8
de março de 1914 para ser o “dia triunfal da minha vida” (PESSOA, F., 1999a: 343),
pois é a essa data que o poeta atribui o aparecimento do seu heterónimo Alberto
Caeiro: “aparecera em mim o meu mestre” (ibid.) Surge, então, no palco pessoano
das várias máscaras literárias, “um poeta bucólico, de espécie complicada” (ibid.),
que apresenta uma cosmovisão e uma estética literária diferentes do ortónimo. Este
último, nos dizeres de Carlos Reis, “continua a existir na sua condição de sujeito
poético autónomo” (REIS, C., 1990: 185). Alberto Caeiro pode ser compreendido,
ao negar quaisquer especulações filosóficas e metafísicas, como uma reação ao
transcendentalismo panteísta que emanava dos poetas de A Águia.
Linhas adiante na referida carta, Fernando Pessoa revela o contraponto à estética de
Alberto Caeiro que são os seis poemas que compõem a “Chuva Oblíqua”, de Fernando
Pessoa ele mesmo: “Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando
Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência
como Alberto Caeiro” (PESSOA, F., 1999a: 343). Haveria, portanto, na escrita de
326 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra

“Chuva Oblíqua” uma necessidade de garantir a sua identidade, a sua autonomia, a sua
existência em relação ao mestre dos heterónimos. É o que é possível depreender da
análise feita por Yvette Centeno acerca desse conjunto de poemas. No seu estudo do
poema, a autora comenta que o poeta anseia por uma Totalidade, por um regresso a
uma unidade mítica perdida, a um estado de indiferenciação, que se afirma a cada parte
do poema, mas que “não se concretiza de modo irreversível” (CENTENO, Y., 1976: 78).
A princípio pode parecer estranho supor que tenha havido, na constelação pessoana,
um discurso que se opusesse às inquietações metafísicas tão presentes na obra de Pessoa.
Se por um lado, na poética de Alberto Caeiro, nega-se a visão metafísica decorrente de
um transcendentalismo panteísta, por outro, com “Chuva Oblíqua”, restabelece-se uma
nova visão metafísica decorrente de uma poiese iniciática, não apenas saudosista. Há de
se considerar, nas palavras de Eduardo Lourenço, a obra de Fernando Pessoa como toda
ela atravessada por questões esotéricas: “A poesia ocultista cobre o espaço inteiro da vida e
da obra de Pessoa” (LOURENÇO, E., 1981: 175); “Não há em toda a poesia de Fernando
Pessoa nada mais afirmativo que a pulsão ocultista” (id.: 1981: 176, destaques do autor);
“A visão ocultista permite a Pessoa integrar positivamente o obstáculo des-realizante por
excelência, a Morte, [...] como transparência suprema e supremo repouso” (id.: 1981: 177).
Nesta comunicação, a partir do exame das imagens, dos símbolos, das metáforas,
do processo de autognose, do componente lúdico (próximo do fingimento de
“Autopsicografia”), do plano rítmico e da sinfonia iniciática que, tal como nas
correspondências de Baudelaire, “canta o transporte do espírito e dos sentidos”, discuto
a arquitetura imaginária de Pessoa como resposta ao dinamismo das sensações da
modernidade.

1. Caleidoscópio de sensações

Para Fernando Pessoa, nas iniciações esotéricas, os rituais estabelecem a dimensão


do sagrado e têm como função o despertar da visão psíquica do sujeito, a partir de
uma comunicação marcada por símbolos, que devem ser primeiramente sentidos
para que posteriormente sejam integrados pelo próprio sujeito:

Todos os symbolos e ritos dirigem-se, não à inteligência discursiva e racional, mas à


intelligencia analogica. Por isso há absurdo em se dizer que, ainda que se quizesse revelar
claramente o occulto, se não poderia revelar, por não haver para elle palavras com que se
diga. O símbolo é naturalmente a linguagem das verdades superiores à nossa intelligencia,
sendo a palavra naturalmente a linguagem d’aquellas que a nossa intelligencia abrange, pois
existe para as abranger (Esp. 54 B-20 apud CENTENO, Y., 1985b: 70-1).
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 327

Para o poeta, símbolo e iniciação são formas de comunicação com o cosmos.


Tal iniciação é marcada por um ritual, através do qual são conferidos ao sujeito
conhecimentos que ele jamais obteria pela sua inteligência discursiva e racional, pois a
iniciação contém símbolos que constituem uma linguagem das verdades superiores à
nossa inteligência racional, mas entendidas pela nossa inteligência analógica. O oculto
não pode ser revelado, já que a linguagem simbólica é inacessível à racionalidade.
A integração do símbolo no sujeito faz parte do seu processo de autoconhecimento,
muito presente na Geração de Orpheu. Esta, para além das intenções programáticas de
escandalizar o “lepidóptero” burguês, na expressão de Mário de Sá-Carneiro, dentro
de um contexto vanguardista, assenta no processo de autognose como necessário
para o conhecimento de outros pontos de vista acerca de uma determinada questão.
Esse processo não se faz sem experimentações, sem o exame das várias facetas de um
mesmo objeto. A ilusão de um conhecimento totalizador do mundo abarcado pela
consciência do ser humano, que tinha no discurso científico a resposta para as suas
inquietudes, é posta em causa. O mundo já não pode ser visto pelo prisma positivista,
entendido da seguinte maneira por Carlos Reis:

O Positivismo afirmara certezas que dogmaticamente procurava impor (por exemplo:


a possibilidade de explicar global e coerentemente a sociedade e o lugar que nela
ocupa o indivíduo). Mas quando essas certezas entram em crise, explodem os “ismos”
que em fim-de-século são algo mais do que uma manifestação de elitismo cultural; eles
correspondem também à impossibilidade de circunscrever a relação do sujeito com os
outros e com o mundo nos limites de um olhar dominante ou de uma ideologia definitiva.
O sujeito encontra-se em crise e a sua linguagem será simultaneamente a instância de
manifestação dessa crise e a sede em que ela tentará resolver-se (REIS, C., 1990: 188).

A rapidez das informações, a urbanização acelerada, a industrialização e a primeira


grande guerra vieram a romper na Europa com as formas de representação artística
herdadas da época do Renascimento. O indivíduo já não pode valer-se da ciência como
uma bússola que forneça orientações precisas acerca desse mundo, que se encontra
caótico. O pensamento lógico-racional, de herança cartesiana, iluminista e positivista, já
não dá conta dos múltiplos fenómenos de um contexto urbano-industrial mais complexo.
Mesmo num país como Portugal, situado na semiperiferia do sistema capitalista 1, o caos

1 Conforme Boaventura de Sousa Santos (1992: 107), Portugal esteve sempre na semiperiferia do sistema
capitalista, pois se encontrava em posição central com relação às colónias, porém, em situação periférica em
relação aos grandes centros de produção capitalista. Mesmo com o fim do Império colonial, Portugal mantém
essas características políticas, sociais, económicas e culturais de intermediação entre o centro e a periferia do
capitalismo.
328 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra

resultante da República fornece condições ao artista para o estabelecimento de novos


pontos de vista. “Sentir tudo de todas as maneiras” (PESSOA, F., 1999b: 344): o verso
do heterónimo Álvaro de Campos, do poema “Passagem das horas”, parece oferecer os
métodos de percepção e interpretação dessa realidade multifacetada.
Dos heterónimos pessoanos, Álvaro de Campos parece ser o que mais febrilmente
vive os paradoxos dessa realidade de sensações, simultâneas e descontínuas, e que se
encontram presentes nos poemas da série “Chuva Oblíqua”, de Fernando Pessoa. Há
de se lembrar que, embora apresentem diferentes tendências estéticas e ideológicas, os
heterónimos estabelecem vasos comunicantes entre si, na polifonia e entrecruzamento
de vozes discursivas, o que permite verificar a multiplicidade de sensações da poética
de Álvaro de Campos também presente na série “Chuva Oblíqua” do ortónimo, razão
pela qual me detenho um pouco mais nesse heterónimo para, em seguida, analisar a
estrutura interna de “Chuva Oblíqua VI”.
Como comentado anteriormente, Álvaro de Campos vive de maneira intensa e
febril os paradoxos de uma realidade urbano-industrial multifacetada. Entretanto,
esse heterónimo não consegue equacionar esses paradoxos, pois na dialética do sentir/
pensar (também presente na poética de Alberto Caeiro), Campos parece priorizar a
entrega do sujeito às sensações de maneira subjetiva. Essa poética difere-se, por
exemplo, da do heterónimo Ricardo Reis, pelo facto de Campos preferir ser invadido
por um turbilhão de sensações a ter um controle equilibrado sobre elas, tal como
propõe Reis em sua concepção catártica da literatura, advinda de uma cultura
ancestral, com uma visão estoicista e epicurista da realidade.
É no contexto de Orpheu e não tanto da posterior Athena (em que Ricardo Reis se
faz bem atuante), que Álvaro de Campos apresenta uma atuação mais significativa.
No primeiro número da Orpheu publicam-se, deste último heterónimo, os poemas
“Opiário” e “Ode Triunfal”. No segundo número da revista, apresenta-se outro importante
poema: a “Ode Marítima”. Estas duas odes constituem um louvor à modernidade, a
ponto de o eu-lírico incorporar na teia do seu discurso os movimentos alucinatórios
da modernidade: “Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!/ Forte espasmo retido
dos maquinismos em fúria!/ Em fúria fora e dentro de mim,” (PESSOA, F., 1999b:
306). Tanto a “Ode Triunfal” como a “Ode Marítima” constituem verdadeiros cantos
ao tempo presente, vivenciado na sua plenitude e no seu dinamismo com diversidade
de elementos. O ritmo frenético dessa modernidade sentida na sua plenitude dissolve
o sujeito nas engrenagens dos maquinismos, a ponto de a sua linguagem imitar os
ruídos das máquinas, como ocorre na “Ode triunfal”. O sujeito vive, pois, de maneira
intensa a modernidade, mas é devorado por ela, tal como ocorre com o protagonista
de Tempos Modernos, de Charles Chaplin.
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 329

2. O interseccionismo e o caráter mítico da infância

Por um lado, o mundo encontra-se multifacetado, por outro, o sujeito também


não se apresenta mais estável e dotado de uma identidade coerente. A instabilidade e
a incoerência parecem fazer parte desse sujeito “composto não de uma única, mas de
várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas”(HALL, S., 2006:
12) A obra de arte, nesse sentido, para dar conta dessas mudanças estruturais desses
tempos modernos, passa por importantes experimentalismos que resultam numa
desrealização, entendida por Anatol Rosenfeld como a rutura da perspectiva e do
mimetismo (ROSENFELD, A., 1996: 76). A realidade empírica, no Expressionismo,
passa a ser usada apenas para “facilitar a expressão de emoções e visões subjetivas
que lhe deformam a aparência” (ibid.); no Surrealismo, “fornece apenas elementos
isolados, em contexto insólito, para apresentar a imagem onírica de um mundo
dissociado e absurdo” (ibid.); no Cubismo, é “apenas ponto de partida de uma redução
a suas configurações geométricas subjacentes” (ibid.).
Podendo ser aproximado do Cubismo pela simultaneidade das sensações, o
Interseccionismo de Fernando Pessoa constitui uma importante vanguarda que
responde ao dinamismo dessas sensações. Para Pessoa, um dos processos para se
realizar o Sensacionismo é o Interseccionismo, isto é, “o sensacionismo que toma
consciência do facto de que toda sensação é realmente várias sensações misturadas”
(PESSOA, F., 1998: 442). Vale lembrar que, ao teorizar o Sensacionismo, Pessoa afirma
a sensação como “base de toda a arte” (id.: 448) e que essa deve ser intelectualizada:
“A consciência dessa consciência da sensação, de onde resulta uma intelectualização
de uma intelectualização, isto é, o poder de expressão” (ibid.). Entretanto, “[...]
quando a sensação passa a ser intelectualizada, resulta que se decompõe” (ibid.),
decomposição próxima do Cubismo e que poderá realizar-se no Interseccionismo. A
elaboração estética dessa vanguarda consiste em olhar uma paisagem atravessada por
um sonho sem que um anule o outro. Ambos coexistem, uma paisagem é atravessada
(interseccionada) pela outra, gerando uma estrutura duplicada nas categorias do
discurso: o eu “liberto em duplo” do primeiro poema da série “Chuva Oblíqua”
também duplica as coordenadas espácio-temporais. Conforme Carlos Reis,

[...] se o Interseccionismo compreende um processo de representação que secciona e intercala


planos convergentes do espaço e do tempo representados, ele permite também afirmar um
sujeito “liberto em duplo” e, por isso, muito próximo da fragmentação heteronímica (REIS,
C., 1990: 184).
330 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra

O poema “Chuva Oblíqua VI” apresenta duas paisagens: uma real e presente e outra
sonhada e ausente – a infância. A primeira é composta pelo maestro que “sacode a
batuta” para iniciar uma música “lânguida e triste” ou “triste e vaga”, que transporta o
eu-lírico para “a minha infância”, em um determinado marco temporal: “aquele dia/
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal” (PESSOA, F., 2005a: 217). O aspeto
verbal de duração do verbo “brincar” sugere uma prolongação da ação de jogar uma
bola multicor contra um muro branco:

Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado


O deslizar de um cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo... (PESSOA, F., 2005a: 217)

O brinquedo bola apresenta uma estrutura duplicada: de um lado, encontra-se


o desenho de um cão verde, do outro, há dois desenhos relacionados: um jockey
amarelo montado num cavalo azul. Verde, amarelo e azul: três cores importantes
que são percebidas como símbolos pelo eu-lírico no seu processo iniciático de
desdobramento e fragmentação. O verde, do desenho do cão, “situado entre o azul
e o amarelo”, atuante como um “mediador entre o calor e o frio, o alto e o baixo”,
traz de volta a esperança nos ciclos das estações e relaciona-se ao despertar das
águas primordiais (CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A., 2005: 938-939). Pode estar
relacionado, também, à juventude eterna prometida aos eleitos (id.: 940). No poema,
é o verde a cor responsável pelo movimento giratório das sensações, como se essas
fossem passar, durante o processo ritualístico, por um ciclo de morte e renascimento.
O amarelo, da figura do jockey, tal como o verde, relaciona-se à juventude: “É ele
o veículo da juventude, do vigor, da eternidade divina” (id.: 40). Entretanto, pode
também relacionar-se com a morte, já que, se estou a falar de ritual, é necessário
fazer morrer para renascer. Assim, o amarelo anuncia também o outono, o declínio
(perceptível na última estrofe do poema), a velhice, a aproximação com a morte, na
metáfora do “despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos”, também na última
estrofe. Além disso, o amarelo “extravasa sempre dos limites em que o artista desejou
encerrá-la” (ibid.), multiplicando as sensações por todo o poema.
E, por fim, o azul, a mais profunda, a mais imaterial das cores, é “o caminho do
infinito, onde o real se transfigura em imaginário” (id.: 107). No poema de Pessoa, é
a cor do cavalo, cujo simbolismo “estende-se aos dois polos (alto e baixo) do Cosmo”
(id.: 211). Segundo o Dicionário de Símbolos, “o cavalo passa com igual desenvoltura
da noite ao dia, da morte à vida, da paixão à ação. Religa, portanto, os opostos numa
manifestação contínua” (ibid.). Na estrutura ritualística do poema, o cavalo azul é
responsável pela travessia do sujeito pela paisagem real – o concerto musical – e pela
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 331

paisagem sonhada – a infância. O ausente (infância) torna-se presente no imaginário,


passagem realizada pelo simbolismo que encerra a cor azul do cavalo desenhado na
bola.
O Dicionário de Símbolos reforça a ideia de passagem, ao citar o romance Alice
no fundo do espelho, de Lewis Carroll: “passar para o outro lado do espelho” (id.:
107), ou ainda, do consciente para o inconsciente, tal como propõe o eu-lírico de
“Chuva Oblíqua I”, quando enuncia que a paisagem desdobrada “passa para o outro
lado de minha alma... (PESSOA, F., 2005a: 214)”. Em “Chuva Oblíqua VI”, a bola,
ao ser atirada “à minha infância”, “Atravessa o teatro todo que está aos meus pés”
(id.: 218), o que me convida a deter-me um pouco mais no simbolismo da travessia,
em direção às componentes mais recalcadas da nossa personalidade. No ensaio “A
viagem”, Benedito Nunes descreve como o motivo da travessia faz parte da estrutura,
da temática e das intenções morais dos contos de Guimarães Rosa, o que me permite
estender essas reflexões para os poemas de Fernando Pessoa. Nunes atribui sentido
existencial à viagem, relacionando-a à abertura do espaço, ao desvelar do mundo,
à aprendizagem da vida, entre outros significados responsáveis pela construção
identitária do indivíduo que é, ao mesmo tempo, “objeto e sujeito da travessia, em
cujo processo o mundo se faz” (NUNES, B., 1976: 179).
O espaço abre-se, pois, ao sujeito poético. O muro passa a dissolver sua estrutura
sólida, ainda que provisoriamente, integrando-se ao imaginário do sujeito, a partir
do posposto adjetivo “branco”. Na segunda estrofe, a infância é apenas recordada:
“Lembra-me a minha infância, aquele dia/ Em que eu brincava ao pé dum muro de
quintal” (PESSOA, F., 2005a: 217). Trata-se apenas de um “muro de quintal”, no qual
é lançada a bola multicor. No momento em que ocorre a travessia de espaços e a
intersecção das paisagens, o muro já vem apresentado com a cor que carrega, como
se percebe nos seguintes versos: “De repente entre mim e o maestro, muro branco,”
(ibid.); “Todo o teatro é um muro branco de música” (id.: 218).
O branco pode ser entendido como a cor do candidato, do Neófito do poema, uma
cor de passagem, de iniciação, processo marcado por morte e renascimento, sendo
a cor do “que se reergue e que renasce, ao sair vitorioso da prova” (CHEVALIER, J.,
GHEERBRANT, A., 2005: 143). Cor iniciadora, o branco possibilita a “transfiguração
que deslumbra e desperta o entendimento, ao mesmo tempo em que o ultrapassa” (id.:
144). Para Fernando Pessoa, o símbolo deve ser, pois, primeiramente sentido para que
posteriormente seja entendido e integrado pelo próprio sujeito:

primeiro sentir os symbolos, sentir que os symbolos teem vida ou alma – que os symbolos
são gente. Mais tarde virá a interpretação mas sem esse sentimento a interpretação não
vem. Os rituais, entre outros fins, teem o de fazer sentir ao iniciado pela solemnidade e o
332 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra

deslumbramento a vida dos symbolos que lhe communicam. Quem tenha em si o poder de
sentir prompta e instinctivamente a vida dos symbolos não precisa de iniciação ritual [...]
(Esp. 54 A-97 apud CENTENO, Y., 1985a: 72-3).

Nas iniciações esotéricas, os rituais estabelecem a dimensão do sagrado e têm


como função o despertar da visão psíquica do sujeito, a partir de uma comunicação
marcada por símbolos. Dessa forma, a aquisição de um determinado conhecimento
não ocorre apenas de forma intelectual, mas também de forma sensitiva, por meio
do simbolismo da iniciação, o que justifica a afirmação de Pessoa de que “sem esse
sentimento a interpretação não vem”.
O processo de autognose na poética pessoana, além de relacionado à intelectualização
das sensações, tal como proposto no ensaio sobre o Sensacionismo, apresenta uma
componente lúdica, de jogo, de fingimento, como é possível depreender da leitura
de “Autopsicografia”. O componente lúdico de “Chuva Oblíqua VI” encontra-se
representado pela brincadeira de atirar a bola multicor contra o muro branco,
permitindo a fusão das cores do brinquedo no branco que contem todas as cores. O
próprio brinquedo contem componentes lúdicos, pois apresenta dois desdobramentos,
já que são dois lados e, num dos lados, duas cores, cuja simbologia acabo de descrever.
A partir do lúdico e do imaginário, o eu-lírico liberta-se da realidade material e
vivencia a intersecção das paisagens. Com estrutura morfossintática semelhante
aos poemas anteriores da série “Chuva Oblíqua”, o “liberto em duplo” (PESSOA, F.,
2005a: 214) do primeiro poema transfigura-se em “De repente entre mim e o maestro,
muro branco” (id.: 217). Ora, o muro, elemento da paisagem sonhada e ausente,
movimenta-se entre o eu lírico e a paisagem observada – o concerto musical. E a
partir desta intersecção, outras poderão ser identificadas ao longo do poema, tal como
o verso composto por parênteses: “(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)”
(id.: 218). Neste verso, acelera-se o movimento da bola que emerge da paisagem
ausente e se torna presente entre o eu-lírico e a paisagem real do concerto.
No plano rítmico, é possível dividir o poema em três partes: a primeira, composta
pelas três primeiras estrofes; a segunda, da quarta à sexta; a terceira, composta pela
última estrofe. Nas três primeiras estrofes, inicia-se o movimento da bola (paisagem
sonhada) e da música (paisagem real), que passam a atravessar/interseccionar as
paisagens na quarta estrofe, quando, “De repente”, o muro branco se desloca para a
paisagem real e se interpõe “entre mim e o maestro” (id.: 217). Quando o eu-lírico, no
tempo da infância, atira a bola multicor contra o muro do quintal, o poema começa a
assumir um movimento de vai e vem, imitando, na sua estrutura rítmica, o movimento
deslizante da bola: “Vai e vem a bola, ora um cão verde, /Ora um cavalo azul com um
jockey amarelo...” (ibid.).
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 333

Conforme Yvette Centeno, “Entre a batuta do maestro e a bola branca ergue-se


irremediável o muro do quintal. E de um ou outro lado deste muro sempre Fernando
Pessoa se perderá” (CENTENO, Y., 1976: 91). A simbologia do muro relaciona-o à
“separação entre os outros e eu” (CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A., 2005: 626), o
que permite referendar a proposta de Centeno de que a heteronímia ajusta-se muito
mais à divisão, à separação dolorosa do que à conjunção e à unificação alquímicas,
posições sustentadas por Gaspar Simões e Georg Rudolf Lind, de que Centeno faz
questão de discordar (CENTENO, Y., 1976: 84). Conforme Chevalier e Gheerbrant,
“O muro é a comunicação cortada, com a sua dupla incidência psicológica: segurança,
sufocação; defesa, mas prisão” (CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A., 2005: 626).
A partir da terceira estrofe, as sensações são multiplicadas: “... a minha infância/
Está em todos os lugares [...]” (PESSOA, F., 2005a: 217). O ritmo do movimento (bola
e música) acelera-se: “Tão rápida gira a bola” (id.: 218). Na quarta estrofe, a ação
do eu-lírico de atirar a bola “de encontro à minha infância” (ibid.) funciona como
um acelerador do movimento que adquire um fluxo aparentemente ilimitado, ao
atravessar toda a estrofe sem pausas, o que se percebe pelos enjambements dos versos,
isto é, o primeiro verso da estrofe espraia-se até o oitavo. Na quinta estrofe, o ritmo
ainda é frenético, pois o cão verde e o cavalo azul com o jockey amarelo continuam a
correr “atrás da minha saudade / Da minha infância” (ibid.).
Com a utilização da palavra “saudade”, algo parece romper-se nessa sinfonia
iniciática. Na sexta estrofe, destaca-se a expressão “memórias da minha infância”(ibid.),
homologável à “minha saudade/ Da minha infância”, uma vez que memória e saudade
sugerem uma conscientização do eu-lírico acerca da impossibilidade de se recuperar
o tempo perdido.
Na última estrofe, o movimento desacelera-se e o concerto termina, como pode
ser observado nas seguintes expressões: “música cessa”, “muro que desaba”, “bola rola”,
“despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos”, “o maestro, jockey amarelo, tornando-se
preto”, “pousando a batuta”, “fuga dum muro”, “curva-se”, “desaparece-se”, “costas abaixo”
(ibid.). O movimento é de queda: “a bola rola”. Nessa homofonia marcada pelo fonema
vocálico /o/, arredondado, e pelo fonema consonantal /l/, imita-se o deslizamento da
bola. Esta desliza-se, rolando em movimento descendente. Fecha-se o telão multicor;
como soem ocorrer nas imagens de um filme, as imagens simultâneas apagam-se e a
tela torna-se preta, ausente de cor.
A ausência de cor é uma das tantas aceções que o Dicionário de Símbolos regista
para a cor preta, apresentando um duplo aspeto: “Enquanto imagem da morte, da
terra, da sepultura, da travessia noturna dos místicos, o Preto está também ligado à
promessa de uma vida renovada, assim como a noite contém a esperança da aurora
[...]” (CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A., 2005: 743, destaques dos autores). No
334 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra

aspeto psicológico dos sonhos diurnos e noturnos e das percepções nas vigílias, os
autores do Dicionário de Símbolos consideram o preto como “ausência de toda cor,
de toda luz. O preto absorve a luz e não a restitui. Evoca, antes de tudo, o caos, o
nada, o céu noturno, as trevas terrestres da noite, o mal, a angústia, o inconsciente e
a Morte”(id.: 742).
Conforme Yvette Centeno, no seu estudo sobre a série poemática “Chuva Oblíqua”,
no poema I, “A sombra (o inconsciente) apoderou-se da alma do poeta. Saberá ele
integrá-lo, torná-lo luminoso?” (CENTENO, Y., 1976: 85); no poema III, “[...] o
elemento noturno, negativo, será destruidor”(id.: 87); no poema VI, “O negro não
se reúne no branco [...] Mas a cor amarela, do jockey, que se modifica no sentido
do negro, e não do branco, indica o retrocesso que se opera [...]” (id.: 91). “Sombra”,
“inconsciente”, “noturno”, “negativo”, “retrocesso” são algumas das imagens relativas
à cor preta, segundo Yvette Centeno, que corresponde às imagens apontadas pelo
Dicionário de Símbolos.

3. A “dança de mágoas” e a fragmentação heteronímica

Como se vê, em “Chuva Oblíqua VI”, todo o palco das sensações é desmoronado, o
que permite conjeturar que o Interseccionismo ainda não será a resposta perfeita que
Fernando Pessoa dará ao vazio, evidente no poema “Como inútil taça cheia”, escrito
em 19 de agosto de 1930.

Como inútil taça cheia


De que ninguém bebeu,
Transborda de dor alheia
Meu coração que foi meu.

Sonhos de mágoa figura


Só para ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se enternece a fingir.

Ficção de um palco sem tábuas


Vestida de papel-seda
Dança uma dança de mágoas
Para que nada suceda (PESSOA, F., 2005b: 383).
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 335

Da mesma forma que em “Autopsicografia” o coração é metaforizado em “comboio


de corda”, com a função de “entreter a razão”, em “Como inútil taça cheia”, o processo
comparativo ocorre em três direções: “taça cheia” (primeira estrofe), “sonhos de
mágoa” (segunda estrofe) e “ficção num palco sem tábuas” (terceira estrofe). O coração
finge-se na sua plenitude (“taça cheia”) a transbordar de “dor alheia”, as dores dos
outros, no processo de alteridade que se ergue pela estética do fingimento, do tornar-se
outro, como fica evidente nos versos “Meu coração que foi meu”, “Sonhos de mágoa
figura” e “Que se temeu a fingir”. Afirma-se, nesse poema, a estética do fingimento ou,
ainda, a metamorfose do eu em outros eus, a ponto de o coração transbordar de “dor
alheia”.
O poema apresenta muitas imagens do vazio: “De que ninguém bebeu” (ou a
variante sobreposta “Ninguém ergue da mesa”), “Meu coração que foi meu” (ou a
variante sobreposta “Meu coração de tristeza”), “Ficção num palco sem tábuas”.
Fundamental é a imagem do “palco sem tábuas” que pode ser entendida como o
palco heteronímico do “drama em gente”, o palco do sonho que se ergue para receber
essa dança das mágoas dos vários heterónimos. A plenitude (o tudo) contrapõe-se
ao vazio, como “a carroça de tudo pela estrada de nada”, imagem da “Tabacaria”, de
Álvaro de Campos (PESSOA, F., 1999b: 362). Plenos são a “taça cheia” que “transborda
de dor alheia”, os “sonhos de mágoa” e a “dança de mágoas”, que se opõem ao vazio das
figuras “meu coração que foi meu” e ao “palco sem tábuas”.
Entendo o problema do vazio no sentido atribuído por Leyla Perrone-Moisés, ao
relacionar, pela abordagem psicanalítica, o processo da heteronímia ao preenchimento
de um vazio de um sujeito que se vê falhado. Dito de outra forma, ocorre “a multiplicação
do mesmo em outros, mas o desencadeamento de uma alteridade tal que a volta ao
Um se torna impossível” (PERRONE-MOISÉS, 2001: 35). Seguindo essa linha teórica,
é possível rastrear na poética de Fernando Pessoa – tanto na do ortónimo como na
dos heterónimos – inúmeros exemplos da consciência desse fracasso. Em “Tabacaria”,
de Álvaro de Campos, por exemplo, o verso “Falhei em tudo.” (PESSOA, F., 1999b:
363) é homologável aos três primeiros versos do referido poema: “Não sou nada. /
Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada”(id.: 362). O quarto verso sugere um
contraponto: “À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo” (ibid.).
O palco da heteronímia pessoana reveste-se de uma ficcionalização de sensações
– abstratas, portanto – que não precisa de suporte de uma realidade lógico-racional
para se sustentar, já que se ergue no palco dos sonhos – espaço da plenitude – uma
vez que o tempo da infância torna-se irrecuperável, expondo um sujeito dividido.
A atitude lúdica de sonhar possibilita a construção da arquitetura imaginária de
Pessoa. Neste contexto, o interseccionismo surge a partir do pressuposto de um olhar
simultâneo de duas paisagens – uma real e presente, outra sonhada e ausente. Este é o
336 100 Orpheu Fernando de Moraes Gebra

pilar importante de sustentação do palco do “drama em gente” delineado em “Chuva


Oblíqua VI”, no qual as sensações interseccionadas permitem a construção da base
da pirâmide heteronímica, revelando processos estético-literários explorados por
Fernando Pessoa durante os anos de Orpheu e que o acompanham durante toda sua
travessia poético-ritualística.

Bibliografia

Bibliografia ativa
PESSOA, Fernando (1999a). Correspondência: 1923-1935. (Organização Manuela
Parreira da Silva). São Paulo: Assírio & Alvim.
PESSOA, Fernando (1999b). Obra poética. (Organização, introdução e notas de
Maria Aliete Galhoz). Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PESSOA, Fernando (1998). Obras em prosa. (Organização, introdução e notas de
Cleonice Berardinelli). Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
PESSOA, Fernando (2005a). Poesia (1902-1917). (Edição Manuela Parreira da
Silva; Ana Maria Freitas; Madalena Dine). Lisboa: Assírio & Alvim. (Obras
de Fernando Pessoa, 20).
PESSOA, Fernando (2005b). Poesia (1918-1930). (Edição Manuela Parreira da
Silva; Ana Maria Freitas; Madalena Dine). Lisboa: Assírio & Alvim. (Obras
de Fernando Pessoa, 21).

Bibliografia passiva
CENTENO, Yvette (1976). “Fragmentação e totalidade em “Chuva Oblíqua”, de
Fernando Pessoa”. In:______. 5 Aproximações. Lisboa: Ática, 1976. p.71-92.
CENTENO, Yvette (1985a.) Fernando Pessoa e a filosofia hermética: fragmentos do
espólio. Lisboa: Presença.
CENTENO, Yvette (1985b). ______. Fernando Pessoa. O amor. A morte. A
iniciação. Lisboa: A Regra do Jogo.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain (2005). Dicionário de símbolos. 19ª ed.
(Coord. Carlos Sussekind). Trad. Vera da Costa e Silva et alli. Rio de Janeiro:
José Olympio.
HALL, Stuart (1999). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A.
LOURENÇO, Eduardo (1981). “A existência mítica ou a porta aberta”. In: ______.
Fernando Pessoa revisitado: leitura estruturante do drama em gente. 2ª ed.
Lisboa: Moraes. pp.169-183.
Fluxos giratórios em “Chuva Oblíqua VI”, de Fernando Pessoa: Um convite para pensar a modernidade 337

NUNES, Benedito (1976). A viagem. In: ______. O dorso do tigre. São Paulo:
Perspectiva. pp.173-179.
PERRONE-MOISÉS, Leyla (2001). Aquém do eu, além do outro. São Paulo:
Martins Fontes.
REIS, Carlos (coord.) (1990). “Fernando Pessoa e o Modernismo português:
unidade e diversidade”. In:______. Literatura portuguesa moderna e
contemporânea. Lisboa: Universidade Aberta. (Textos de base, 6). pp.182-206.
ROSENFELD, Anatol (1996). Texto/contexto I. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1992). “A semiperiferia europeia”. In:______.
O estado e a sociedade em Portugal (1974-1988). Porto: Afrontamento. pp.
105-150.
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de
Ângelo de Lima e Dino Campana

Barbara Gori
Universidade de Pádua

Palavras-chave: Ângelo de Lima; Dino Campana; Poesia órfica; Poesia modernista; Simbolismo.
Resumo: De Ângelo de Lima (1872–1921) conhecemos quarenta e três poesias, incluindo as
que foram publicadas no segundo número da revista Orpheu. Este corpus, embora limitado,
estimula-nos não só pela qualidade dos seus versos, mas também por um paralelismo que
nasce espontaneamente: o simbolismo moderadamente modernista de Lima situa-se numa
ótica parecida com a do grande poeta “louco” italiano Dino Campana (1885–1932), cuja obra
é mais ou menos contemporânea de Lima, tal como o triste fim num manicómio e o tema da
busca do próprio Eu através da “viagem” – quer real quer unicamente poética – num “além”
espacial e temporal. Ambos esquizofrénicos, ambos presos por comportamentos socialmente
inaceitáveis, ambos adeptos das correntes modernistas, mas ancorados ao Simbolismo, Lima e
Campana são dois poetas visionários, alucinados, loucos, órficos, vagabundos, ou, pelo menos,
foi esse o modo como as respetivas críticas literárias os definiram, embora nenhuma dessas
definições seja capaz de iluminar claramente a poética destes dois autores que viveram na
passagem do século XIX para o XX.

Não é simples comparar Ângelo de Lima e Dino Campana devido ao nível


qualitativo diverso e à importância diferente que ambos têm em contextos literários
nacionais – e europeus para Campana. Todavia, muitos são os pontos em comum: das
perturbações psíquicas ao plano meramente biográfico e às referências estilísticas,
assim como – e isto é importante – às temáticas presentes no âmbito poético de
ambos. Embora Ângelo de Lima seja treze anos mais velho do que Dino Campana,
grande parte da sua produção poética situa-se grosso modo no mesmo período, que
vai de 1905 a 1915.
Ambos entram em conflito com a figura paterna. No caso de Lima, um conflito
mais virtual – isso por a figura paterna1 desempenhar um papel-chave não só por
ser poeta, como também por ter morrido louco num manicómio quando o filho

1 O poeta dedica ao pai uma poesia, A meu Pai, da qual emerge um sentido intenso de solidão e de saudade por
aquela família perdida, mas nunca esquecida (Lima, Â. de, 2003: 41).
340 100 Orpheu Barbara Gori

Ângelo tinha apenas onze anos, razão pela qual se atribuiu a este um caso de loucura
hereditária –, no caso do poeta toscano, um conflito mais concreto.
Ambos deixam os estudos incompletos (Ângelo de Lima os de arte; Dino Campana
os de química e matemática) e essencialmente por inconstância na aplicação, muito
provavelmente devida às precárias condições mentais. Os distúrbios que afligem os
dois poetas são muito parecidos: mania de perseguição, síndrome maníaco-depressiva,
crises de alucinação, aos quais se acrescenta uma certa propensão para o alcoolismo,
mais marcada no lusitano, e certamente a sífilis, que talvez seja a causa da loucura do
italiano2. Manifestam-se nos dois em idade jovem; são internados várias vezes e a cerca
de dezasseis anos de distância, mais ou menos com a mesma idade, entram pela última
vez no manicómio, de onde não mais sairão. Ambos levam uma vida errante: além do
ano passado em África, segundo consta em serviço militar voluntário, de Ângelo de
Lima recordam-se as deslocações à pátria, sobretudo a Lisboa e Porto, mas também
ao Algarve, sem nunca iniciar uma atividade laboral definida e, muitas vezes, sem
uma direção certa. Da mesma forma, Dino Campana faz da viagem uma modalidade
de sobrevivência, em Itália, Europa, América do Sul, financiado esporadicamente pela
família, mas sobretudo arranjando-se com as mais variadas profissões, mesmo as mais
humildes (Mongini, F., 2007: 69).
Regressemos à produção literária: as principais publicações dos nossos poetas –
para Lima3, os oito poemas incluídos no segundo número da revista Orpheu, para
Campana a coletânea poética dos Canti Orfici – saem respetivamente em 1915 e em
1914, a poucos meses uma da outra. A identidade “órfica” não é de maneira nenhuma
casual: é uma componente essencial da busca poética em ambos os autores. Os dois
vão beber à poesia simbolista francesa, de Rimbaud a Mallarmé; ambos são “tocados”
pelo verbo futurista – recorde-se que o Manifesto de Marinetti é de 1909 – mas só
de maneira superficial, dado que a sua “viagem poética” é totalmente de outro tipo.
Digamos que a ambos interessa a “musicalidade” do verso – ou do poème en prose, no
que concerne a Campana – muito mais do que o seu significado: se quiséssemos utilizar
uma só palavra para os definir, qualificá-los-íamos como poetas meta-semânticos.
Deslocar a visual do signifié para o signifiant não é, como é óbvio, só prerrogativa
deles, mas é herança do milieu cultural em que se acham.

2 Para as condições mentais de Ângelo de Lima, veja-se o Relatório redigido pelo então diretor do hospital
psiquiátrico de Rilhafoles, em Lisboa, Miguel Bombarda, onde Ângelo de Lima ficou internado de dezembro
de 1901 até à sua morte em agosto de 1921 (Bombarda, M., 2003: 133-138).
3 Sobre a colaboração de Ângelo de Lima na revista Orpheu e sobre as polémicas que esta suscitou nos ambientes
literários e jornalísticos portugueses da época, veja-se a publicação interessante e completa intitulada Orpheu
– Percursos e Ecos de um Escândalo (HILÁRIO, F., 2008).
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 341

Assim como Lima começa o seu percurso poético com estilemas claramente
tardo-românticos – e estamos a pensar nas suas primeiras poesias conhecidas, como
Dizem os sábios que já nada ignoram, Eu ontem vi-te…, Súplica, poesias que vão de
1894 a 1895 –, também Campana tem bem presentes as experiências imediatamente
anteriores, em especial a de Gabriele d’Annunzio – não é importante para o caso em
apreço se este é considerado decadente ou tardo-romântico – que nesses anos se acha
no auge da sua fama e condiciona fortemente, mesmo por antítese, toda a produção
poética das primeiras décadas do século xx italiano (Verdenelli, M. – Vincenzi, G.,
2014: 197). Outro ponto, embora externo, que une os dois poetas, é a sua colaboração
ativa em algumas das revistas literárias mais importantes da altura: para Lima A Arte
e A Geração Nova do Porto, para Campana La Voce, em especial.
Voltemos ao Orfismo que caracteriza as principais composições de Ângelo de Lima
e todo o percurso poético de Dino Campana. Se o Orfismo é um culto iniciático, a
poesia órfica é uma forma elitista de comunicação poética concedida a poucos eleitos.
A palavra poética do cantor “órfico” ultrapassa a realidade e a racionalidade, graças
à sua capacidade evocativa, chegando ao limite do mistério. Em termos práticos, o
que caracteriza a poesia órfica é a sintaxe onírica, o critério livre, isto é, a associação
e condensação típicas da dimensão do sonho. Lima chega a ultrapassar esses limites,
aplicando o conceito também aos segmentos morfolexicais. O resultado é uma escrita
que, ao pôr em discussão e ao reelaborar a função dos dois elementos constitutivos do
signo linguístico, causa não só um afrouxamento da relação rígida entre significante
e significado, como também uma autêntica hegemonia do primeiro em detrimento
do segundo, levando, por conseguinte, a uma reelaboração total do referente. Esta
alteração da relação entre signo e referente, a perda de uma correspondência motivada
entre palavras e coisas, que liberta o poeta do princípio que atribui ao significante o
papel de representar, não renova mas inova a linguagem, primeiro forçando-a até ao
extremo das suas possibilidades e depois utilizando-a em todas as possibilidades que
a “nova língua” gera. É assim que, ao ativar mecanismos de significação ilimitada e
de distorção da materialidade do objeto, a língua de Ângelo de Lima “se pluraliza”,
causando não poucos problemas de compreensão da mensagem poética. Uma
poesia povoada de palavras com várias possibilidades de interpretação, muitas vezes
resultado de conexões lógicas deformadas, cheias de mistério e incoerência, de
imagens fragmentadas e de associações inverosímeis, de automatismos aparentes e
inadequações sintácticas, com tendências evidentes para a hiper-abstração que, para
ser compreendida, necessita de um processo de descodificação e de decomposição
atento do material linguístico presente em cada nível: lexical, sintáctico, morfológico,
fonológico e métrico-estilístico. Os aspetos mais percetíveis logo de imediato desta
alteração linguística dizem respeito ao léxico, em especial os termos raros e arcaicos,
342 100 Orpheu Barbara Gori

provenientes sobretudo do léxico clássico4, os termos anómalos e os neologismos,


especialmente as palavras macedónia e metaplasmas5, as irregularidades sintáticas
e as escolhas métrico-estilísticas, rítmicas e de rima6. Entre os muitos processos
linguísticos produtivos em Ângelo de Lima7, talvez sejam as palavras macedónia as

4 De entre os termos inusuais e arcaicos, encontramos «Crastina» (Fado), «Êxul» (Thora), «Místera» (Epitáfio),
«Espasma» (Cântico Semi-Rami), todos exemplos de palavras perdidas no tempo que parecem viajar para lá dos
limites da memória do leitor, mas que adquirem uma atualidade se vistas no contexto em que se encontram.
Palavras que espoletam um processo de renovação lexical na medida em que, não possuindo nenhuma
intenção de significação, valem unicamente pela função expressiva que veiculam através das conexões e do
poder sugestivo dos sons. Pelo contrário, outros termos, que já eram arcaicos no tempo de Ângelo de Lima, são
reatualizados por meio das transformações a que são submetidos, em especial a nível de significante. «Psalma»,
por exemplo, na poesia Oh Céu, aparece no feminino, quando a palavra que existe em português, embora em
desuso, é masculina; o caso da palavra «inora», na poesia Súplica, é diverso pois gera muitas dúvidas quanto
ao seu significado: «Que o teu olhar é bálsamo que inora,//Do céu sobre este seio, em que, latente». A leitura
isolada do verso levar-nos-ia a pensar que «inora» está ligada à palavra que a precede, isto é, «bálsamo»,
assumindo um significado próximo a «inodoro», ou seja, de algo que não tem odor. Todavia, conhecendo
as práticas de formação de novas palavras usadas por Lima, outras hipóteses tornam-se possíveis, isto é, que
a palavra possa ser um neologismo construído a partir da fusão do prefixo «in» com o substantivo «dor»,
assumindo o significado de “indolor”, ou que seja um termo arcaico e popular que remete para ‘ignora’, relativo
a quem não sabe ou não conhece algo. Ambos os significados são possíveis no contexto da poesia.
5 É o caso de «Emprona» (Fado), que no contexto remete para ‘prora/prua’, «Dogaresa» (Idem), como mulher
do doge, «fulguro», na poesia Neitha-Kri, que pode ser entendido quer como substantivo, por derivação
regressiva, ou como adjetivo.
6 Quanto à métrica, Lima serve-se de uma métrica tradicional, utilizando sobretudo o decassílabo como
medida do verso (endecassílabo como o entendemos em italiano), muitas vezes na forma métrica do
soneto, respeitando quadras, tercetos e vínculos de rima. Sendo o andamento rítmico-métrico graficamente
fragmentado pelos frequentes parágrafos dentro do endecassílabo, por vezes pode dar a impressão ao leitor
de uma certa perturbação: mas é uma questão puramente visual. O caso de Dino Campana é diverso, pois ele
escreve num momento histórico-literário italiano influenciado pelo ‘versoliberismo’, cujo promotor é Lucini
(1908), pouco antes que Marinetti irrompa em cena com as suas “parole in libertà”. O impacto sobre a nova
geração de poetas é enorme e Campana adequa-se porque o ‘versoliberismo’ serve à sua busca da poesia
“pura” que significa, também, seguir o seu ritmo interior.
7 Algumas palavras aparecem mutiladas nos versos, resultado de elisões silábicas retomadas em seguida por
simples aliteração ou assonância ou de agrupamentos de sílabas casuais. Aliterações que muitas vezes se realizam
na voz lexical, com alteração gráfica do significante e que a única coisa que fazem é aprofundar a dicotomia
entre signo e referente. Atente-se nos seguintes exemplos: «Narra» (Fado), de «narração»,«Kaleiscopo» (Oh
Vida), de «caleidoscópio»,«Cintis» (Qual?...), de «cintilantes»,«Luctula» (Alva), de «luctuoso», em desuso
já na época de Lima com o significado de «lutuoso», «fúnebre», «triste»,«Anxe» (Cântico Semi-Rami), de
«anxiedade» (latino), «Cilos» (– Quantos... desde Chu-Si a Kuan-Su) de «cílios», «Desvirgada» (Cântico
Semi-Rami), o mesmo que «desvirginada», «Dista» (idem), de «distante». Os neologismos sintáticos, ao
contrário dos fonológicos, obtêm-se de combinações de elementos lexicais já existentes no sistema. Estas
inovações formam-se a partir de elementos da língua portuguesa ou são emprestados de outros sistemas
linguísticos, como no caso do latim. Este tipo de processo de formação lexical tem origem na derivação,
quer nominal quer adjetival. Vejam-se os seguintes exemplos: «Exaustinados» (Olhos de Lobas!), do latim
«exhaustione», com o significado de «esgotados» ou «extenuados»; «Lete» (Morreu o Rei D. Carlos!... – A
Cidade) adjetivo formado a partir do latim «letum» ou «letalis»; «Pristinas» (idem), adjetivo derivado de
«pristinus», com o significado de «antigas» ou «de outros tempos»; «Longido» (Ocaso) e «Longeva» (Fado)
do latim «longi» que é um elemento de formação das palavras; «Fatos» (Qual?...), do latim «fatum», que
significa «predição», «destino», «fado»; e «Fatas» (Neitha-Kri), variação no feminino necessária para rimar
com «Horas», como significado de «fatais»; «Purfictrio» (Edane), do latim «purificatio», com o significado
de «purificada» ou «purificadora». Outros neologismos lexicais passam através de processos normais de
derivação à procura de uma forma fonética e ortográfica que se harmonize bem com a língua portuguesa
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 343

mais estranhas, pois indicam um processo de redução lexical em virtude do qual as


duas bases estão destituídas de parte dos seus elementos para formarem uma nova
unidade lexical. De entre estas vale a pena lembrar o neologismo «Imesto» na poesia
Deus, que resulta da força anafórica e do poder do verso «Teu Gesto Imenso Gerou a
Vida...», no elogio poético que o sujeito poético faz a Deus. Da fusão de duas entidades
autónomas e reconhecidas na língua («gesto» e «imenso»), neste caso através de uma
relação de intersecção invertida, dado que o poeta não reproduz a ordem em que tais
palavras se apresentam no verso, obtém-se uma palavra original, que corresponde à
criação de uma só unidade significante: «Imesto» (LIMA, Â. de, 2003: 69):

– Eras nos Tempos


Antes da Idade!...
Teu Gesto Imenso Gerou a Vida...
E, após teu Gesto...
– Supremo, Imesto...
Depós..., – é a Noute da Imensidade!...

Campana, pelo contrário, mantém-se nos confins gramaticais tradicionais: com


efeito, as suas modalidades estilísticas preveem um uso institucional da metáfora, da
iteração de lexemas-chave, da fruição quase sem diferença do verso propriamente
dito e do poème en prose. Neste contexto, a aliteração não é só utilizada com função
eufónica, mas também e sobretudo semântica. Um exemplo, de uma famosa poesia
dos Orfici, é a poesia La Chimera, cujo título é igualmente significativo a nível de
poética, como indício temático (Campana, D., 1972: 17):

Non so se tra rocce il tuo pallido


Viso m’apparve, o sorriso
Di lontananze ignote
Fosti, la china eburnea
Fronte fulgente o giovine
Suora de la Gioconda:

com o resultado de provocar muitas vezes uma certa indeterminação de sentido: os afixos usados pelo poeta,
embora reconhecíveis em português e combinados com palavras também com valor autónomo conhecido,
produzem um significante novo com um significado imprevisível, ou seja, uma totalidade de signo não
prevista no sistema. São exemplos, por derivação prefixal, «desdeixados» (Olhos de Lobas!); «Infados»
(Canção Portuguesa); «Improfundado» (Oh Céu) e «Improfundo» (Fado); por derivação sufixal: «murchadas»
(Inês de Castro); «Olorescente» (Cântico Semi-Rami), adjetivo derivado do latim «olor» («aroma»; «odor») +
o sufixo «escente» formado por sua vez a partir do sufixo «–escer», característico dos verbos incoativos, que
indicam o início de um estado, não pertencendo «oleo» («cheirar») a este tipo de verbos; «Argentida» (Alva).
344 100 Orpheu Barbara Gori

O delle primavere
Spente, per i tuoi mitici pallori
O Regina, o Regina adolescente:
Ma per il tuo ignoto poema
Di voluttà e di dolore
Musica fanciulla esangue,
Segnato di linea di sangue
Nel cerchio delle labbra sinuose,
Regina de la Melodia:
Ma per il vergine capo
Reclino, io poeta notturno
Vegliai le stelle vivide nei pelaghi del cielo,
Io per il tuo dolce mistero
Io per il tuo divenir taciturno. […]

Aqui, junto com reminiscências evidentes da poesia de d’Annunzio, notam-se


logo algumas características técnicas do Campana versificador: o recurso assíduo ao
enjambement, à aliteração propriamente dita («fosti, la china eburnea/fronte fulgente
o giovine»), à quebra do continuum métrico de versos tradicionais (heptassílabos,
octossílabos, endecassílabos) com um blank verse quase whitmaniano de quinze
sílabas («vegliai le stelle vivide nei pelaghi del cielo»), que na realidade é composto
por dois heptassílabos (o primeiro dos dois cola é esdrúxulo) e, por conseguinte, pode
ser definido tout court como verso alexandrino. Mas voltemos ao valor semântico da
aliteração: aqui é evidente, por exemplo, no fonema /s/ que conota a tripla posição
na ponta dos versos esangue – sangue – sinuose, para em seguida ser imediatamente
retomado com o nexo /st/ em stelle e mistero. No plano conotativo há uma intersecção
de campos semânticos: o propriamente físico e vital do lexema sangue e o espiritual
e órfico dos lexemas stelle e mistero, através do adjetivo sinuose, que pode indicar um
movimento “em espiral” de conjunção entre “terra” e “cielo”, e que todavia se refere à
palavra “labbra”, de onde sai o espírito vital (verbum), perno da nossa duplicidade de
seres terrenos e, ao mesmo tempo, espirituais. No plano temático, é interessantíssimo
o facto de Campana se definir “poeta notturno” – convém não esquecer que o célebre
Notturno de d’Annunzio, que iniciará o filão da “prosa noturna” deste escritor, será
composto só dois anos depois da publicação dos Orfici (Gurioli, E., 2012: 105).
Com efeito, “Notte” é uma das palavras-chave que servem para entender a poética de
Campana, tal como a de Ângelo de Lima. Significativamente, é a longa prosa poética
intitulada La notte a abrir o livro dos Canti Orfici, que se concluem, circularmente,
com o sintagma «la notte tirrena», que encerra a última poesia.
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 345

Para o português, a Noite, ou mais frequentemente a Noute, é igualmente lexema


e conceito fundamental: a noute é o confim para lá do qual existe Deus, ou os deuses
ou qualquer que seja o nome que os homens lhes dão, o Eterno, a Imensidão. Este
conceito é repetido várias vezes durante o itinerário poético de Ângelo de Lima e é
também colocado em posição central numa das suas poesias talvez mais significativas,
publicada em 1915 na revista Orpheu 2, Neitha-kri (Lima, Â. de, 2003: 84):

– Ó Noute minha Mãe na Immensidão!


– Ó Noute Grande, pelos Céus Senhora...
– Scintil d’Estrelas n’Essa Solidão...
– Eu, Sobre a Terra, Sou a Vencedora!...

É a invocação da Rainha do Egito, que os históricos chamam Nikotris e que viveu


há quase 3000 anos. Noite, portanto, como porta do Mistério e do Divino, e irmã da
Morte, um topos poético muito frequente, em Portugal como na Itália, basta citar
Foscolo e Antero de Quental; topos que, em Il canto della tenebra de Campana, assume
um tom evocativo de elevada sugestão, desta vez ainda mais graças à iteração de
palavras-chave (Campana, D., 1972: 20):

La luce del crepuscolo si attenua:


Inquieti spiriti sia dolce la tenebra
Al cuore che non ama più!
Sorgenti sorgenti abbiam da ascoltare
Sorgenti, sorgenti che sanno
Sorgenti che sanno che spiriti stanno
Che spiriti stanno a ascoltare...
Ascolta: la luce del crepuscolo attenua
Ed agli inquieti spiriti è dolce la tenebra:
Ascolta: ti ha vinto la Sorte:
Ma per i cuori leggeri un’altra vita è alle porte:
Non c’è di dolcezza che possa uguagliare la Morte
PiùPiùPiù […]

Em Ângelo de Lima, sobretudo pela limitação do corpus poético que nos chegou,
os exemplos são menos evidentes, embora estejam presentes; vejam-se, a título
exemplificativo, alguns versos da poesia Ocaso – Serapi-Anubi (Lima, Â. de, 2003:
73):
346 100 Orpheu Barbara Gori

– Cai a Tarde serena harmoniosa!...


– Como a oração de Targitas Douradas
D’estas Horas de Voto, Consagradas
De serapida à Transe Majestosa!

– Cresce a Treva
Na Dor Silenciosa
Da Saudade das Horas Expiradas!...
– Veste a Terra nas Sombras Enlutadas
Do Deus Longido, pelos Céus, Saudosa…

Outro tema que é interessante mencionar e que aparece, embora brevemente, nos
dois autores, é a consciência da própria falta de sanidade mental, que Lima exprime
na poesia Pára-me de repente o Pensamento, onde, por meio da metáfora do cavalo
fustigado até lhe sair o sangue, se vêa sua viagem no abismo da loucura (Lima, Â.
de, 2003: 55)8:

Pára-me de repente o Pensamento…


– Como se de repente sofreado
Na Douda Correria… em que, levado…
–Anda em Busca… da Paz… do Esquecimento

– Pára Surpreso… Escrutador… Atento


Como pára… um Cavalo Alucinado
Ante um Abismo… ante seus pés rasgado…
– Pára… e Fica… e Demora-se um Momento…

Vem trazido na Douda Correria


Pára à beira do Abismo e se demora

E Mergulha na Noute, Escura e Fria


Um Olhar d’Aço, que na Noute explora…

– Mas a Espora da dor seu flanco estria…


– E Ele Galga… e Prossegue… sob a Espora!

8 Sobre o tema, veja-se também a interessante obra de Fernando Hilário, A Loucura de Ângelo de Lima (2003),
e o texto em prosa de Ângelo de Lima, Eu não estou Doudo (2003).
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 347

Paralelamente, Dino Campana exprime o mesmo conceito na poesia Ho scritto. Si


chiuse in una grotta 9, poesia em que o verso «cosa che mi tortura e mi sospinge» remete
também para o impulso de atingir a poesia absoluta, impulso sempre frustrado10.
Ângelo de Lima é necessariamente mais modesto, até pela sua vicissitude pessoal;
nele as menções à sua poesia são raras, e quase casuais, se se exceptuar a famosa
dedicatória aos amigos de Orpheu, na poesia Edd’oraAddio… – Mia Soave! (LIMA,
Â. de, 2003: 90):

– Estes Versos Antigos Que Eu Dizia


Ao Compasso Que Marca o Coração
Lembram Ainda?... – Lembrarão um Dia...
– Nas Memorias Dispersas Recolhidas
Sequer, na Piedosa Devoção
D’Algum Livro de Cousas Esquecidas?...

O tema da viagem, no espaço e/ou no tempo, real ou fantasiado, é comum


aos dois poetas. Uma viagem como modalidade de sobrevivência, dissemos ao
início, para Dino Campana. Locus deputatus para as fugas mentais à opressão do
internamento coacto, para além das grades do manicómio, para Ângelo de Lima: o
que equivale a dizer um modo de sobrevivência. Para lá da necessidade, para ambos
sufocante, das convenções sociais da época – recorde-se que Lima é condenado a
detenção psiquiátrica perpétua por ter blasfemado em público e Campana é preso
e “institucionalizado” mais do que uma vez, como se diz hoje, mais ou menos pelas
mesmas, fúteis razões –, a sua liberdade é confiada a itinerários reais ou hipotéticos
além, além do mar, além das montanhas, além do “senso comum” do discurso
poético-narrativo, além até do amor, e de um Deus de quem não se conhece
precisamente a identidade, de uma divindade que aparece confinada numa Igreja
dogmática e hierarquizada.

9 «Ho scritto. Si chiuse in una grotta/Arsenio fortissimo disegnatore/Dipinse quadri piccoli e grotteschi/E tese
l’anima in affreschi/Per desolare l’immensità/Della sua furia policroma/Attese i gnomi e le fate;/Cantava il
ruscello ecc./Io mi domando. Ha ciò senso comune/Qual cosa mi tortura e mi sospinge/All’assurdo. È il
bisogno della morte/perché su tutto chiamo distruzione?» (Campana, D., 1972: 114).
10 Bem o notava, há já cinquenta anos, um grande crítico, Carlo Bo, que escrevia: «Campana negli anni della
sua libertà ha visto continuamente avanti ai suoi occhi il fantasma di una chimera che era poi il nome stesso
della poesia: tanto quella chimera gli turbava la coscienza, tanto più sentiva l’impossibilità di raggiungere la
prima parola di un discorso componibile. […] Pari alla forza della sua passione, risulta quella della delusione,
della assunzione di vuoto che segue ogni sua azione poetica: Campana è davvero dilaniato fra queste due forze
contrarie, per cui lo vediamo sospeso» (Bo, C., 1972: XXXIV).
348 100 Orpheu Barbara Gori

O tema da viagem é central na poesia de Dino Campana: esta é vista como


metáfora existencial e poética, porque exprime a ânsia de explorar e de conhecer,
juntamente com o desassossego e o tormento do poeta. Nos Canti Orfici este tema
é desenvolvido em dois tópicos fundamentais: o “diário” em prosa de La Verna e o
poema Viaggio a Montevideo. Ambos os trechos são provavelmente fruto de uma
experiência real: a “peregrinação” a pé da sua terra Marradi aos terrenos franciscanos
do Casentino, e a viagem a Argentina e Uruguai realizada entre 1908 e 1909. Esta
viagem aparece em recolhas póstumas, tais como o Quaderno.
Para Ângelo de Lima, como se viu, o tema da viagem só em mínima parte é
enfrentado depois de experiências concretas, se exceptuarmos a poesia Aos Mortos
de Coolela, dedicada aos soldados portugueses mortos naquela localidade africana
e, sem dúvida, inspirada na sua permanência, como militar, nessas terras distantes.
Muito mais importantes são as viagens, no tempo e no espaço, realizadas com a
fantasia. Uma em especial chama a atenção pela semelhança das atmosferas e a
identidade dos lugares relativamente a uma poesia de Campana. Trata-se do soneto
1500, que reevoca o primeiro desembarque de Pedro Álvares Cabral e dos seus
homens, empurrados pelos ventos oceânicos, para aquela terra que em seguida foi
chamada Brasil, em 22 de abril de 1500 (Lima, Â. de, 2003: 54):

Sobre as ondas, Tranquilas, do Oceano


Pousa, Serena, a Nau de Brancas Velas…
– Traz, no flanco, o Vestígio das Procelas
– Pousa no Mar, n’um Gesto soberano…

– Breve, um Batel ligeiro, ousando o Arcano


Desce da Nau, às Terras, – Que Singelas
Na Candidez de Núpcia – de Donzelas
Erguem a Flora – ao Sol Meridiano…

Gentes – crestadas pelo Vento Amargo,


Saltam, nas praias do País Fecundo…
– Trazem os Gestos dos Heróis da Argo…

– Contendo-os – calmo – com o Olhar Profundo


– Cabral – desdobra a Voz – n’um Gesto Largo…
– E na Lei Pátria, Envolve, um Novo Mundo!...
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 349

Quase o mesmo espanto face a um novo, virgem desembarcadouro, se lêem alguns


versos deViaggio a Montevideo (Campana, D., 1972: 37):

[…] Quando
In una baia profonda di un’isola equatoriale
In una baia tranquilla e profonda assai più del cielo notturno
Noi vedemmo sorgere nella luce incantata
Una bianca città addormentata […]

Todavia, ambos os poetas parecem ter consciência de que uma dimensão capaz de
atenuar o seu “mal de viver”, para propor uma metáfora de Montale, é unicamente a
do além. Campana, em Poesia facile (Campana, D., 1972: 25), assim se exprime:

Pace non cerco, guerra non sopporto


Tranquillo e solo vo pel mondo in sogno
Pieno di canti soffocati. Agogno
La nebbia ed il silenzio in un gran porto.

In un gran porto pien di vele lievi


Pronte a salpar per l’orizzonte azzurro
Dolci ondulando, mentre che il sussurro
Del vento passa con accordi brevi.

E quegli accordi il vento se li porta


Lontani sopra il mare sconosciuto.
Sogno. La vita è triste ed io sono solo.

O quando o quando in un mattino ardente


L’anima mia si sveglierà nel sole
Nel sole eterno, libera e fremente.

São muitas as ideias presentes neste soneto: a tranquilidade alcançada no sonho


«pieno di canti soffocati», de onde resulta evidente a impossibilidade de atingir a
poesia absoluta, a beleza do presságio da viagem naquelas «vele lievi pronte a salpare»,
a realidade que, dura, se impõe: «Sogno. La vita è triste ed io son solo». Da mesma
forma, Ângelo de Lima propõe o mesmo topos da ascensão “in più spirabil aere”, para
usar palavras de Manzoni, como solução para os insolúveis problemas existenciais
(Lima, Â. de, 2003: 46):
350 100 Orpheu Barbara Gori

Alma que da minh’alma se aproxima


E me desperta do meu sonho em meio
E nos prenda e nos cinja o doce enleio
Como a dois lírios prende e enlaça em vime.
E assim desta existência que me oprime
Pois que já n’ela achar o Bem não creio
Vamos subamos lado a lado ao seio
Infinito do Deus Calmo e Sublime!

Falamos aqui de um Ângelo de Lima que ainda não se adentrou na dimensão


do Mito, uma viagem que supera a fronteira espácio-temporal e explora, de modo
fragmentário e a-racional, os abismos obscuros de épocas quase pré-históricas e de
personagens no limite da história e da lenda (Semíramis, a rainha de Egito Neitha-kri).
Nikotris (Neitha-kri) havia já inspirado, nas páginas do primeiro número de Orpheu,
Alfredo Pedro Guisado – que, com uma metátese, a chama Nitokris; pode-se pressupor
que Lima elaborou o seu poema com base na sugestão produzida pela leitura das
poesias de Guisado. Para Semiramis (ou, como a chama Lima, Semi-rami) o modelo
não é, como poderia parecer, a famosa ópera de Rossini inspirada nas vicissitudes da
soberana dos Assírios, mas provavelmente o drama La Hija del Aire de Calderón de la
Barca, ou talvez até o livro do século xv, La città delle donne de Christine de Pizan, em
que a rainha é descrita de maneira muito positiva, diversamente da maior parte dos
textos onde se fala dela. Onde encontrar em Campana uma referência semelhante?
Talvez no Convito romano-egizio, trecho poético “plurivocálico”, em que aparece a
Lidia morena11. Em contextos históricos e míticos diferentes, mesmo as duas figuras
femininas, Neitha-kri e Lidia, se podem comparar: símbolos do Poder feminino, que
nasce da Noite e a domina. Ambas virgens, ambas consagradas a um poder superior
no qual se identificam (Lima, Â. de, 2003: 83-84):

Das minhas Coxas no meu Star de Hierata


Que Antros Ardentes e que, Amor, Dilata

11 «BALAAL Ora tu vieni o bruna/Amica Lidia col silenzioso/Tuo passo inghirlandata dall’oblio/Per lo sterile
fianco e per la bocca funerea./Nelle coppe fiorite il vin scintilli/Immoto e nella notte un lungo fremere/Passi
nel cielo//LIDIA La sua bocca è un serpente che riposa/Ma il mio cuore mi brucia di mistero/Che i fianchi
lunghi e sinuosi torce/E che l’ebbrezza risolleva a volo/Nella voluta lenta la vertigine/Attorce i cuori, infino che
il delirio/Li annebbia delle lacrime di sangue./Ecco, conto i terrori della notte/Io sola m’alzo ed ai fragori strani/
Del cembalo/Rompo il silenzio e chiamo alta la bocca:/Uomini riscuotete via l’ebbrezza/Sfoderate le spade
scintillanti/E levatele in alto. In uno specchio/Abbarbagliante io sia centuplicata/Ed il mio ventre splenda come
stella [...]//CORO Le coscie bronzine s’imbiancano/E gli occhi son madreperla/I suoni lontani e monotoni/
Carezzano il cuore fanciullo/E noi berremo alle fonti/Eterne della vita come il sole/Ci scalderemo al suo seno
inesausto./Alziamoci/Il sacro triangolo, o uomini,/È aperto soffuso alla luce» (Campana, D., 1972: 94-95).
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 351

De um Ardor Fulguroso... porque Turvo...


De que Imanência... de que Imanescente?...
– Ó Noute minha Mãe na Imensidão!
– Ó Noute Grande, pelos Céus Senhora...
– Cintil d’Estrelas n’Essa Solidão...
– Eu, Sobre a Terra, Sou a Vencedora!...

É assim que se exprime a Rainha do Egito e através destes versos ela se desenha
no âmbito daquele sacer, ou seja, a dimensão sobre-humana, de que também Lidia
é titular. Uma dimensão sobre-humana que Lima, com o avançar da sua loucura
– mas para os antigos, o conceito de “louco” e de “sagrado” pertenciam ao mesmo
campo semântico – procura ao declinar, poesia após poesia, de maneira sempre mais
fabuladora, os muitos nomes de Deus.
Por fim, a viagem poética no amor e no eros. Neste sentido, de Ângelo de Lima
pouco sabemos, exceto o que se obtém das poucas notas biográficas disponíveis, de
onde se deduz a paixão por uma suposta meia-irmã, da qual pode derivar o tema do
incesto que aparece em Semi-rami12. As suas poesias de amor são fruto de inspiração
tardo-romântica que declina depois numa espécie de “amor platónico”, em certos
momentos quase inspiradas no dolce stil novo. De resto, o conhecimento de Dante
é confirmado pelo reenvio à «selva oscura», expresso em língua italiana, na poesia
Súplica. Eros é pouco mencionado, só o incesto em Semiramide e o turbamento de
Neitha-kri.
A experiência de Campana é completamente diversa, sendo ele um habitual
frequentador de bordéis florentinos, como se deduz dos octossílabos auto-irónicos
de Prosa fetida, ambientada numa “casa” de San Frediano e de muitos outros textos.
Todavia, o consumo de Eros a pagamento é totalmente insatisfatório para o poeta
e muitas vezes remete para o seu oposto, Thanatos, como acontece na poesia
Furibondo13. É a Sibilla Aleramo, escritora “escandalosa” dez anos mais velha do que
ele, que o fará conhecer a “verdadeira” paixão amorosa, após a publicação dos Orfici,
certamente uma das mulheres mais fascinantes da época, feminista ante litteram,
autora do bestseller Una donna, romance autobiográfico em que denunciava também a
violência de que foi vítima aos 15 anos, por parte do seu futuro marido. Sendo amante
de toda a redação de La Voce, de Papini a Soffici, sente-se logo turbada pela leitura

12 Note-se que no poema a protagonista confessa ter amato sua filha, enquanto que, em geral, o mito de
Semíramis prevê que ela seja incestuosa com o filho.
13 «Abbracciata io l’avea./Mentre affannoso delle cieche ebbrezze/Sul limitare cieco brancolavo/E accelerati colpi
replicavo/Sopra la porta di eterne dolcezze:/All’improvviso sopra la mia schiena/S’alzò e ricadde martellando
sordo/E ritmico il suo piede. Fu il ricordo/Dell’attimo fuggente, nella piena/Fantastica l’appello della morte».
352 100 Orpheu Barbara Gori

dos versos do “grosseiro” oriundo de Marradi e, ipso facto, decide entrar em contacto
com ele e ir ao seu encontro, de comboio, com a explícita intenção de o seduzir. Facto
que acontece, como é óbvio, em poucas horas sem nenhuma demonstração de recusa
da parte de Campana. A história de amor entre os dois é famosíssima e dura cerca
de um ano: se Campana já se encontrava à beira da loucura, a relação serve para
o empurrar definitivamente para ela, embora Sibilla seja a primeira a levá-lo a um
psiquiatra “sério”, que não pode deixar de lhe dizer que a sífilis é a principal causa e
que ela faria melhor a abandoná-lo e a não vê-lo mais.
Com este breve contributo, tentámos delinear as correspondências intrigantes
entre dois poetas tão distantes, quer geográfica quer histórico-culturalmente no
que concerne aos países de pertença de ambos, e ainda assim tão próximos no que
concerne à dolorosíssima vicissitude humana de “alienados” numa sociedade tão
propensa a impor um “estigma de infâmia” na carne viva de quem fosse visto como
“diverso”: não nos resta senão refletir sobre o facto, incontrovertível, que outro senhal,
para usar uma expressão provençal, o da Poesia, ficou, a um século de distância, a
iluminar os nomes de Dino Campana e Ângelo de Lima, enquanto que os dos seus
perseguidores, as chamadas autoridades “constituídas”, se encontram inelutavelmente
enterrados na escuridão do tempo.

Bibliografia

Bibliografia Ativa
Campana, Dino (1972). Canti Orfici e altri scritti. Milano: Mondadori.
Lima, Ângelo de (2003). Poesias Completas. Organização, prefácio e notas de
Fernando Guimarães. Lisboa: Assírio&Alvim.

Bibliografia Passiva
Bertolani, Lorenzo (2014). Felice di essere povero ignudo. Firenze: Meridiana.
Bo, Carlo (1972). Prefazione a Dino Campana, Canti orfici e altri scritti. Milano:
Mondadori, pp. XXXI-XXXV.
Bombarda, Miguel (2003). «Relatório sobre o Estado Mental de Ângelo de
Lima». In: De Lima, Ângelo de, Poesias Completas. Organização, prefácio e
notas de Fernando Guimarães. Lisboa: Assírio & Alvim, pp. 133-138.
Gurioli, Enrico (2012). Barcheamorrate. Bologna: Pendragon.
Hilário, Fernando (2008). Orpheu – Percursos e Ecos de um Escândalo. Porto:
Edições Universidade Fernando Pessoa.
Para Lá da Loucura: As Viagens Poéticas e Órficas de Ângelo de Lima e Dino Campana 353

Hilário, Fernando (2003), A Loucura de Ângelo de Lima. Porto: Edições


Universidade Fernando Pessoa.
Lima, Ângelo de (2003). «Eu não estou Doudo». In: Idem. Poesias Completas.
Organização, prefácio e notas de Fernando Guimarães. Lisboa: Assírio&Alvim,
pp. 127-129.
Mongini, Franco (2007). Il genio tra nevrosi e follia. Milano: Utet.
Verdenelli, Marcello e Vincenzi, Giampaolo (2014). Le vostre parole sono
come luce di stella dolce e lontana. Roma: Aracne.
Os Caminhos da Heteronímia

Fernando Guimarães
Investigador no Centro de Estudos do Pensamento Português da Universidade Católica

Palavras-chave: heterónimo; complexidade; fingimento; construção; objetividade textual.


Resumo: A heteronímia em Fernando Pessoa concorre com outras noções fundamentais da
sua poética, desde a noção de complexidade à de fingimento, para que nela se configure uma
objetividade expressiva que corrija, como nos diz, o “sentimento difuso” que o Modernismo e,
genericamente, a modernidade irão recusar.

Porquê este título: os caminhos da heteronímia? Lembremo-nos que no Orpheu,


pela primeira vez, surgiu em toda a sua força um dos heterónimos de Fernando Pessoa.
Trata-se de Álvaro de Campos que nesta revista publica as suas emblemáticas “Ode
Triunfal” e “Ode Marítima”. Mas caminhos porquê? Caminho, em latim, é via. Viator
é o caminhante, o mensageiro. Fernando Pessoa, que traz consigo uma mensagem
(Mensagem é o título de um dos seus futuros livros), irá dar especial ênfase a tal
ideia, chegando a utilizar maiúsculas quando em 1935 escreve à máquina uma carta a
Adolfo Casais Monteiro: “Não evoluo, VIAJO […], vou mudando de personalidade”.
Eis nessa longínqua noção de viator, que se tornará no volatilis, isto é, no que voa,
o anúncio do que será uma poesia que levará Pessoa a dizer também numa carta, esta
de 1931, dirigida a João Gaspar Simões: “Voo outro – eis tudo”. Estamos lançados
pela palavra caminho – que é viagem e voo – para a questão dos heterónimos. A
heteronímia traduz-se, portanto, na referência autoral ao outro, ao “outro nome”.
Mas mais do que isto. A heteronímia revela-nos um caminho diferente; se
passarmos de uma abordagem etimológica que vai da palavra latina à palavra grega
correspondente – methodos –, ficar-nos-ia a suspeita de que esse caminho é também
um método, um desenvolvimento teórico. Ele não é só a referência a vários autores
imaginados que entre si dialogam no interior de uma teia ou ficção biográfica que
Pessoa ao longo do tempo teceu; é, sobretudo, um desenvolvimento ou criação
teóricos que conduzem a uma textualidade que a si mesma se objetiva através do
recurso à alteridade. Da narrativa – que se evidencia muitas vezes biograficamente
– passamos para essa teoria da alteridade tal como ela se revela na própria expressão
poética. Ora essa expressão poética irá passar não só pelos caminhos da heteronímia,
mas também por outros caminhos – aliás bem conhecidos, mas que, a pouco e pouco,
356 100 Orpheu Fernando Guimarães

iremos explicitar –, os quais se complementam entre si na própria realização da obra


de Pessoa.
Ele, que tantas vezes se serve do paradoxo, criou uma situação duplamente paradoxal
porque chega a passar de um plano que é o da criação poética para outro plano, este
de natureza teórica. Inventando múltiplas personalidades – ou, como também se diz,
máscaras –, propõe-nos um caminho em que a obra de arte se despersonaliza, de
modo que as máscaras passam a ser as de nenhum rosto. A dispersiva mas também
aparente subjetivação, sustentada biograficamente por múltiplos enredos, acaba por
converter-se no que será a própria objetividade textual. Poderíamos, então, dizer que
de um primeiro nível, o da narrativa ou enredo, desenvolvido por Pessoa em torno
das várias instâncias autorais, se deriva para um segundo nível, o de uma poética
da alteridade. Por outras palavras ainda: dá-se um desvio que vai de um nível, o da
paratextualidade, para outro, o da textualidade.
Note-se desde já que esta poética da alteridade, que Pessoa vai usar dispersiva e
recorrentemente, foi usada entre nós no século XIX por alguns escritores simbolistas,
desde Carlos de Mesquita, que inventa um Jeronymo Freire e um Bartholomeu de
Fragoa, a Raul Brandão, com K. Maurício, tendo estes “outros nomes” a particularidade
de se referirem um deles a um pintor e os outros a dois ficcionistas, mas não a poetas.
No entanto, tendo em vista a poesia dessa altura, Sanches da Gama dá-nos um livro
de natureza paródica com a assinatura – em que perpassa uma alusão aos nomes de
Mallarmé e Rimbaud – de Estephanio Rimbó. Outro caso, anterior aos simbolistas,
situa-se igualmente no nosso século XIX com a invenção de Fradique Mendes, a que
mais adiante nos referiremos…
Seja como for será na literatura inglesa que Pessoa vai procurar os melhores
exemplos para esta poética da alteridade. Desde logo em Shakespeare. São bem
conhecidas as passagens onde, em várias das suas notas dispersas, a ele se refere. Mas
quase ficou por referir o papel que Robert Browning desempenhou. Todavia, numa
dessas notas, Pessoa chega mesmo a aludir a estes dois nomes. Assim defende a ideia
de que o estilo não define “a unidade do homem; só o que no estilo há de intelectual
o denota. Assim é em Shakespeare, em que o relevo inesperado da frase, a subtileza
e a complexidade […] são a única coisa que aproxima o falar de Hamlet do de Lear,
o de Falstaff do de Lady Macbeth. E assim é Browning […]. Certos estados de alma,
pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos, tenderão a
definir para ele uma pessoa fictícia que os sentisse sinceramente”.
Alcançam-se aqui dois registos: o da poesia dramática propriamente dita, com
Shakespeare, e o da poesia dramática expressa liricamente, com Browning. Fernando
Pessoa no texto que se citou fala em estilo. Aproveitemos esta noção para evocar agora
o já referido nome de Fradique Mendes, para se compreender melhor o desvio que se
Os Caminhos da Heteronímia 357

fez para dar um sentido especial aos “nomes de gente” que iriam fundar uma expressão
poética que tende a ser considerada em si mesma, isto é, enquanto textualidade.
Vejamos… No caso do imaginado Fradique verifica-se que Antero de Quental,
Junqueiro, Eça, Guilherme de Azevedo (e outros?) procuram um estilo que é o de
Baudelaire. Os heterónimos de Pessoa criam, pelo contrário, uma dispersão de estilos,
os de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares (e muitos
outros) que convergem, no entanto, no grande e dispersivo Livro pessoano que assim
nos surge como uma unidade textual.
Precisemos um pouco mais a questão. Como se constituiu este Livro que, como
aconteceu em Mallarmé, ficou disperso, por vezes fragmentário, irrealizado na
sua totalidade? Pessoa reconhece que ser um poeta dramático representaria, como
diz expressamente na citada carta de 1931 a Gaspar Simões, “o ponto central da
minha personalidade”, porquanto haveria nele “a exaltação íntima do poeta e a
despersonalização do dramaturgo”.
Fixemo-nos nestas últimas palavras para as relacionar com que atrás se disse acerca
de Shakespeare e Browning. Se a “despersonalização do dramaturgo” é uma óbvia
referência a Shakespeare, aquela “exaltação íntima do poeta” não nos irá conduzir à
expressão lírica de um Browning (que, aliás, não é referido nesse texto)? Chegados a
este ponto, talvez fosse oportuno mostrar como os caminhos da heteronímia confluem
em outros caminhos que concorrem para que se configure a obra pessoana a partir dos
seus fundamentos, naquilo que se pode agora designar por estética textual. À poesia
dramática ou poética da alteridade, a qual temos vindo a referir, juntaríamos mais três
noções tão presentes nas reflexões de Fernando Pessoa sobre poesia: “complexidade”,
“fingimento” e “construção”. Alinharíamos, assim, os quatro caminhos que maior
realce assumem na orientação da sua obra. E seria este o método, o caminho teórico
que nos conduziria à obra ou, se se preferir, ao Livro pessoano.
Quando Pessoa, no texto que se acabou há pouco de citar, alude à “exaltação
íntima do poeta” parece, à primeira vista, estar a referir-se ao que seria a espontânea
subjetividade própria do lirismo; mas não, ela está referida, sob uma forma que se
torna diferida, ao poeta dramático que ele é (tal como Shakespeare, ao pôr na boca de
Hamlet a subjetivíssima expansão lírica do seu amor por Ofélia, sabe afinal que esse
amor não é o seu).
É aqui que radica a tão celebrada noção de “fingimento”. Ela irá ter uma má
receção por parte dos presencistas, mais interessados em apostar no que designaram
por “autenticidade” da poesia. Todavia, será nas páginas da Presença que aparece
publicado o poema “Autopsicografia” de Pessoa que, logo no seu início, consagra tal
noção: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / que chega a fingir que é
dor / a dor que deveras sente”.
358 100 Orpheu Fernando Guimarães

Esta noção de fingimento, que ao implicar a de despersonalização, põe em questão


o próprio subjetivismo poético, acaba por defluir para o de “complexidade”. Esta noção
foi desenvolvida por Pessoa na revista dos saudosistas A Águia numa série de artigos
que, publicados em 1912, se intitulam genericamente “A nova poesia portuguesa”.
Uma dessas novidades – que putativamente estaria na obra dos saudosistas, mas que
parece enquadrar-se melhor numa modernidade que se ia entrevendo – consistia na
relação que se estabeleceria entre emocionalização e intelectualização. Ela passava
pela tal complexidade, consistindo esta na necessidade de, na linguagem poética,
ocorrer necessariamente a “intelectualização de uma emoção” e a “emocionalização
de uma ideia”.
Finalmente, a “construção”. A narrativa dos heterónimos conduziu à admissão de
um grande texto que representa a obra de Pessoa na sua globalidade ou, retomando
a noção de procedência mallarmeniana, o Livro. Ora essa totalidade pressupõe a
existência de um “grande Construtor” ou um “Mestre da Construção” que, na opinião
defendida por Pessoa, foi Milton. Ele será apresentado reiteradamente como sendo
“o grande Mestre da Construção em poesia. Pessoalmente, confesso que a minha
tendência é cada vez mais a de colocar Milton acima de Shakespeare como poeta”.
Ao nome do poeta inglês, ir-se-á juntar o do filósofo grego Aristóteles, porque
ele defendeu que a obra de arte deve pertencer a um todo, a uma estrutura, a um
organismo. “O passo discutido de Aristóteles, de que a obra de arte é comparável a
um animal, deve sem dúvida ter este sentido”, eis a afirmação de um dos heterónimos
pessoanos, António Mora que tantas vezes discutiu com Ricardo Reis, cuja poesia,
aliás num contexto que é o da modernidade, soube encontrar aquele sentido de
organização clássica. Assim se orienta a obra de Pessoa para uma poesia objetiva que
se afasta “da retórica oca e do concomitante sentimentalismo difuso”.
Os caminhos da heteronímia correspondem a um círculo que se sobrepõe a outros
círculos. Eles são as conceções poéticas insistentemente defendidas por Pessoa,
como é o caso da noção de poesia dramática ou “drama em gente”, do fingimento, da
complexidade entendida como relação entre emoção e conceptualização, da defesa
de natureza construtiva existente na obra de arte. Fernando Pessoa criou, assim, uma
estética dos nomes que conduz a poesia à sua própria objetividade textual.
Fernando Pessoa e Almada Negreiros:
olhares que se cruzam sem se intersectarem

Marisa das Neves Henriques


Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra

Palavras-chave: Abel Manta; Almada Negreiros; binómio audição-visão; Fernando Pessoa.


Resumo: O desenho de João Abel Manta intitulado “Pessoa e Almada” capta a essência dos
dois órficos de forma admirável. Ora, é justamente a partir dele que se enceta uma breve
reflexão sobre a sensibilidade estética de cada um dos autores modernistas, no que de
singular e pessoal se pode destrinçar no destino de Fernando Pessoa, auditivo, e de Almada
Negreiros, visual.

Num interessante desenho a carvão de Abel Manta, os rostos em perfil de Almada


Negreiros e de Fernando Pessoa aparecem unidos numa sublime esfera (figura 1),
partilhando, no que diz respeito à visão, o mesmo hemisfério. Embora cada um
dos autores ocupe metade desse mundo suspenso entre a realidade e o sonho, entre
o halo etéreo e o grande fôlego criativo, os seus olhares assumem claramente um
sentido oposto. Ao olhar de Almada, fincado no horizonte, um pouco duro até,
representando o autor na fase septuagenária, contrapõe-se o olhar tímido e quase
incorpóreo de um Pessoa intemporal, aparentemente atento ao «lado de fora de
dentro» e à «visão interior». Absorto nos seus pensamentos, talvez tomado pelo
cansaço que convida os olhos a semicerrarem-se para ouvir melhor a música
divina, Fernando Pessoa não olha; antes parece «fitar o mistério e sem querer /
Compreender-lhe o horror!», ao sentir «o mundo / Fechado a laços de compreensão»
(PESSOA, F., 1988: 21).
Sem dúvida que é mais denso este desenho a carvão de Abel Manta que a
montagem realizada para a capa do Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo
Português (Martins, 2008). Aí os olhares de Sá-Carneiro, de Pessoa e de Almada
Negreiros procuram pontos de fuga diferentes, embora o do autor de “Caranguejola”
e o de Fernando Pessoa se aproximem. Almada, de perfil, num esgar trocista, parece
interpelar o século e verberar os seus anacronismos. Mas, é pouco justo (e chega a ser
redutor) este instantâneo.
360 100 Orpheu Marisa das Neves Henriques

Figura 1. João Abel Manta, Pessoa e

Almada (1981)

Ao contemplar o desenho, vem-nos, quase de imediato, à memória o texto pessoano


publicado em Portugal Futurista que, a partir da interrogativa inicial, fazia assomar
um enigma parecido com o que – em 1981 – o artista plástico ilustrava a carvão:

De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?

Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo —
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha ideia das coisas.
(Pessoa, F., 1997: 139-140)

Instaura-se entre os olhos e quem os usa (ou instrumentaliza) um processo


fenomenológico que, para assinalar complementaridades, dissocia o corpo
relativamente à alma que o habita, e dissocia o homem que apenas sente do poeta. Se
Fernando Pessoa e Almada Negreiros: olhares que se cruzam sem se intersectarem 361

a penumbra é fértil palco de desdobramento heteronímico, é com Alberto Caeiro que


ver assume o valor de ideia-síntese celebrada por Álvaro de Campos na “Ode Mortal”
(«Viste com a tua cegueira perfeita, sabes o não ver... / Porque o que viste com os teus
dedos materiaes e admiraveis / Foi a face sensivel e não a face physiognomica das
coisas») (Campos, A. de, 1997: 230).
À força de muito intelectualizar e de sentir duas vezes, o criador concebe, numa
projeção do ser, o universo (interior) como «nódoa esbatida», tornando-se por demais
evidente que a visão física se deixa contaminar pelo pensamento e pela fantasia,
intervindo por isso, neste exercício, o visual e o auditivo, de que Fernando Pessoa fala
num dos seus primeiros textos doutrinários1.
Assim, parece haver na pergunta «Quem continua vendo / Enquanto estou
pensando?» uma sugestão hologramática, de alteridade, que não despreza a operação
sensitiva primeva em favor da cosa mentale, tornando possível ver e ouvir os «passos
tristes», sabendo ainda que é na interioridade que eles ressoam, num caminho
ou numa escada que o peito pode guardar com recato e que a poesia veicula com
requintes distanciados do real e de qualquer calçada de pedra. Pessoa identificar-se-á,
por certo, então com esse «indivíduo de intensa vida interior e pouca atenção ao
mundo externo» que descreve no seu ensaio de 1912, num retrato consentâneo com o
que João Abel Manta nos apresenta.
Por seu turno, a agudeza do olhar de Almada Negreiros, bem representada no
desenho em análise, parece reconstituir conhecidas interpelações almadianas,
que fazem da metáfora da visão uma forma privilegiada de conhecimento e de
clarividência:

Já repararam nos meus olhos? Reparem bem nos meus olhos, não são meus, são os olhos do
nosso século! Os olhos que furam por detrás de tudo (Negreiros, A., 2006).

Em vez de ter morrido numa cruz, por ti, antes tivesse pegado na lança que me abriu o peito,
para com ela te rasgar os olhos da cara (Negreiros, A., 2005).

1 F. Pessoa, “A nova Poesia Portuguesa no seu aspecto psicológico”, Textos de Crítica e de Intervenção,
Lisboa, Ática, 1980, p. 68: «Na obra de poesia a ideia e a forma estão ligadas numa dupla unidade, unidade
imaginativa, isto é, unidade que vem da fusão da emoção e da ideia que em sua essência é o ato de imaginar.
Ora, a imaginação depende da organização dos sentidos do indivíduo; um visual imagina de modo
inteiramente diverso que um auditivo, um indivíduo de intensa vida interior e pouca atenção ao mundo
externo, de modo diferente de ambos». (...) Pior ainda, é na poesia do sr. T[eixeira] de P[ascoaes], a perpétua
confusão entre o físico e o psíquico e entre os mais sentidos. Isso denota uma perigosa e doentia falta de
atenção às representa