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A produção textual de um estudante ao final do ensino médio1

Carlos Alberto Faraco2

Gostaria, nesta minha apresentação, de trazer à reflexão de vocês


alguns dos muitos aspectos que envolvem a produção escrita dos
concluintes do ensino médio.
Meu objetivo principal é pôr sobre a mesa elementos que nos
permitam situar a redação do ENEM no seu contexto social amplo; e
mais especificamente no contexto da Educação Básica. Assim, nosso foco
aqui estará menos na redação em si e mais no contexto em que ela é
produzida e avaliada.
Não podemos esquecer que a educação básica completa
universalizada – ou seja, a educação que alcance todos os jovens de 15 a
17 anos – é, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, uma exigência das
sociedades contemporâneas.
Diferentemente do que ocorria no início do século XX, época em
que a educação média era, no mundo inteiro, um nível educacional para
poucos, a educação média completa passou a ser, no início do século
XXI, o nível educacional mínimo a ser garantido universalmente.
Sabemos muito bem hoje que a sociedade na contemporaneidade
só avança de maneira sustentável se garantir, pelo menos, educação
básica de qualidade para todos. Não há efetivos avanços sociais,
econômicos, culturais, tecnológicos se apenas poucos concluírem o
ensino médio; ou, pior, se muitos concluírem mas sem alcançar o
domínio das competências cognitivas indispensáveis para qualquer
cidadão.
Nós no Brasil temos, infelizmente, alguns déficits historicamente
acumulados nessa área. Não conseguimos ainda universalizar a Educação
Média – quando os países mais avançados já o fizeram entre 1950 e
1960. Estamos, portanto, meio século atrasados neste quesito.
Pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de
2008, 84% dos jovens de 15 a 17 anos estavam na escola. No entanto,
apenas 50% estavam no Ensino Médio (ou seja, apenas a metade estava
no nível compatível com a idade). 34% estavam ainda no Ensino
Fundamental e 16% dos jovens estavam fora da escola.
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Texto apresentado na abertura do Encontro de Supervisores de Avaliação de Redações,
promovido pela DAEB/ INEP. Brasília, 30/08/2014.
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Professor Titular (aposentado) de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Paraná.
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A consequência de estarmos tão atrasados quanto à oferta de


Ensino Médio é que, segundo os dados do IBGE (PNAD/ 2008), apenas
23,8% da nossa população adulta (de 25 a 64 anos) têm o Ensino Médio
completo quando na Alemanha, nos EUA e na Rússia este índice está em
torno dos 90%.3
Somos ainda, então, uma sociedade com baixo índice de
escolaridade e, claro, baixo índice de letramento. Nossas relações com a
linguagem escrita e com a cultura letrada são ainda muito limitadas. Há
claras dificuldades com a leitura e compreensão de textos; e grandes
dificuldades com a produção de textos, conforme se observa
cotidianamente com os alunos do Ensino Superior: suas dificuldades são
indicadores relevantes porque são estudantes que concluíram a Educação
Média.
Esta é a condição sociocultural ampla em que se dá a educação das
nossas crianças e jovens. Nosso sistema educacional vive sob este
desafio: como ampliar a escolaridade e o letramento da população
brasileira num contexto sociocultural limitado, para não dizer
relativamente adverso. Basta lembrar aqui que muitos educadores têm a
tarefa de ensinar a escrever, mas eles mesmos não dominam
suficientemente a escrita ou não escrevem regularmente.
É no interior desse complexo quadro que vai ocorrer o ENEM –
um exame de avaliação geral da educação média que inclui uma prova de
produção de um texto; e que deixou de ser apenas um exame de
diagnóstico e passou a ter caráter classificatório para efeitos de ingresso
na educação superior, o que amplifica enormemente nossa
responsabilidade de avaliadores.
É no interior desse mesmo complexo quadro sociocultural que nós
atuamos avaliando a redação produzida pelos candidatos.
Por isso, penso que, embora nós, no momento da avaliação,
devamos pôr, obviamente, nosso foco no texto em si, não podemos e não
devemos perder de vista o quadro sociocultural amplo em que a redação
do ENEM se dá.
Acredito que, em termos ideais, podemos dizer que há um relativo
consenso sobre o perfil que deve ter o egresso dos 12 anos da Educação
Básica. Em linhas gerais, espera-se que ele seja capaz de pensar

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Os dados citados no texto são do IBGE. Constam da publicação Síntese de indicadores
sociais – uma análise das condições de vida da população brasileira (Rio de Janeiro, 2009), acessível
também pelo seguinte endereço eletrônico (consultado em 28/08/2014):
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicso
ciais2009/indic_sociais2009.pdf
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matemática e cientificamente; tenha as referências básicas para


compreender a história e o funcionamento da sociedade em que vive; e,
em língua portuguesa, esteja apto a ler e compreender um texto de
mediana complexidade e de escrever um texto legível (coerente e claro),
adequado às características de um determinado gênero de amplo uso
social (informativo ou argumentativo) e que corresponda às expectativas
socioculturais que recobrem a modalidade escrita formal da língua, ou
seja, que o texto se mostre adequado em termos de morfossintaxe e de
ortografia.
Daí decorre o fato de o ENEM incluir, entre suas provas, a de
redação. Temos essa crença de que o domínio da expressão escrita é uma
competência essencial de quem completa a educação básica.
O candidato é, então, solicitado a escrever em até 30 linhas e
utilizando a modalidade escrita formal do português brasileiro
contemporâneo um texto argumentativo-dissertativo. A prova fornece
textos motivadores e espera que o aluno, conjugando dados desses textos
e conhecimentos obtidos em sua formação escolar, produza um texto
sobre o tema proposto, expressando seu ponto de vista e sustentando-o
coerentemente com argumentos.
Nossa avaliação da redação do ENEM, como em outras situações
semelhantes, se faz com base num certo modelo do que seja um bom
texto. Temos, em princípio, portanto, uma certa régua para medir a maior
ou menor aproximação do texto do candidato a um nível ótimo.
Vamos, então, detalhar um pouco os critérios que compõem essa
referência de medida para verificar se a temos, de fato, partilhada. Não
vamos aqui discutir a matriz de avaliação (que será trabalhada no correr
deste Encontro), mas levantar alguns aspectos conceituais que estão, de
certa forma, subjacentes à matriz.
Podemos dizer que um texto escrito qualquer pode ser apreciado a
partir de, pelo menos, quatro planos articulados: o plano interacional, o
plano textual, o plano gramatical e o plano gráfico.
O plano interacional diz respeito ao fato de que escrevemos para
alguém ler, ou seja, o texto é um evento de comunicação e tem um
destinatário. Esse destinatário poderá ser uma pessoa muito bem
definida e individualizada (como numa carta ou num e-mail pessoal) ou
um leitor genérico (com o qual trabalha, por exemplo, a imprensa).
Por outro lado, nossa escrita é uma prática situada no interior de
uma determinada atividade social. Quando escrevemos estamos no
interior de alguma das inúmeras esferas sociointeracionais – estamos na
esfera das relações pessoais próximas, familiares; ou em esferas menos
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próximas como o jornalismo, o ensino, a ciência, o sistema jurídico; ou


estamos em meio a uma das muitas dimensões do mundo do trabalho ou
da criação literária, entre muitas outras. Cada uma dessas esferas admite
diferentes tipos de textos, concretizando cada uma toda uma tradição
discursiva historicamente construída.
Ao escrever para um determinado destinatário e no interior de uma
determinada atividade social, temos objetivos a alcançar e selecionamos
temas e tópicos a tratar.
No plano interacional, há, portanto, múltiplos elementos inter-
relacionados (onde estamos situados; a quem nos dirigimos; com que
objetivos; sobre que assunto) que condicionam a nossa produção. Tendo-
os como referência, tomamos decisões, fazemos recortes, delineamos um
cenário que enquadre essas decisões e recortes e oriente a sua
textualização.
O redator imaturo revela sua imaturidade no plano interacional por
não atrelar adequadamente sua escrita às condições da interação verbal. O
redator imaturo não se dá conta dos condicionantes de seu texto e, por
isso, derrapa, por exemplo, nas características do gênero (num texto
argumentativo confunde fatos e opiniões; ou afirma sem sustentar a
afirmação com argumentos; ou escolhe argumentos aleatórios e
incoerentes).
É também indicador de imaturidade interacional o uso de
vocabulário inadequado (é o redator que usa termos técnicos de forma
imprecisa; ou usa gíria num texto formal sem marcar que se trata de um
uso monitorado para alcançar determinado efeito de sentido; ou,
acreditando que se deve escrever “difícil”, usa palavras raras sem ter
clareza de seu significado e assim por diante). Por fim, o redator imaturo
no plano interacional do texto escrito recorta mal o conteúdo e
sobrecarrega o texto com um excesso de ideias fragmentadas.
Passando agora para o plano textual, podemos dizer que este é o
plano da construção do texto propriamente dito, do objeto linguístico que
vai alcançar nosso interlocutor, desse todo que é muito mais que a soma
de suas partes porque sua significação pressupõe uma organização
hierarquizada e sequencial dos conteúdos e uma amarração entre as
partes.
O grande desafio do processo de textualização é justamente este:
dar forma linear, unidimensional, a uma estrutura que é
multidimensional. O desafio aqui é manter sob controle a dimensão linear
própria do signo linguístico de tal modo que se garanta que o
multidimensional – ou seja, os múltiplos elementos do plano interacional
em suas múltiplas inter-relações – não se perca ou fique prejudicado na
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passagem para o unidimensional. Há um custo operacional para dar


unidade temática e unidade estrutural ao texto, custo este que cobra de
quem escreve um planejamento, uma antecipação, uma antevisão do que
vai ser a totalidade.
O redator imaturo revela sua imaturidade no plano textual por se
deixar controlar pela linearidade do signo e vai dando forma ao texto à
medida que vai preenchendo as linhas sem ter uma visão prévia do
conjunto, sem se orientar pela antevisão do todo. O redator imaturo parte
para a escrita do texto sem um plano de voo. O texto resulta falho em sua
coerência, em sua sequência, na amarração entre as partes, em sua
clareza.
O plano gramatical, por sua vez, diz respeito à construção das
sentenças e dos períodos em conformidade com as características
morfossintáticas da variedade linguística que a tradição discursiva definiu
como adequada para cada tipo de texto no interior de uma determinada
atividade socioverbal.
Estamos, agora, no plano infratextual (estão em pauta as estruturas
das sentenças e dos períodos) e no plano da acomodação da expressão às
expectativas sociais referentes à variação linguística.
No caso da redação do ENEM, como se trata de um texto
dissertativo-argumentativo, acrescenta-se a exigência de que ele seja
escrito na modalidade formal do português brasileiro contemporâneo
porque é esta que as tradições discursivas aliaram ao texto dissertativo-
argumentativo. Há, nesse sentido, uma certa redundância nessa exigência.
Mas, considerando que nem sempre todos os segmentos sociais têm
clareza sobre isso, a redundância é necessária.
O redator imaturo revela sua imaturidade no plano gramatical ao
usar características morfossintáticas inadequadas ao tipo de texto que está
produzindo. Ou porque não aprendeu a transitar pela variação linguística
ou porque não tem domínio das características morfossintáticas da
variedade que deveria usar.
Por fim, o plano gráfico diz respeito à ortografia e à formatação
do texto no espaço do papel (marcando, por exemplo, a paragrafação). É
um plano que tem um baixo custo operacional se as formas ortográficas e
as convenções de formatação gráfica estiverem suficientemente
automatizadas. Se temos de forçar a memória a cada passo para recuperar
a forma ortográfica das palavras, isso interfere negativamente na
construção do todo do texto, desviando a atenção dos aspectos que não
são, nem podem ser, automatizados.
Facilmente reconhecemos o redator imaturo no plano gráfico
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porque suas insuficiências são visíveis a olho nu. Talvez por isso, por ser
tão fácil de reconhecer, é que a escola e o senso comum deem tanto peso
ao erro ortográfico. Ele é tomado como o grande indicador de que a
pessoa não sabe escrever.
Um péssimo texto mas sem maiores problemas ortográficos
costuma receber melhor avaliação social e educacional do que um bom
texto com problemas ortográficos. A imaturidade ortográfica decorre, em
geral, de uma alfabetização mal feita, mas principalmente de uma
carência nas práticas letradoras. Ela não se revela, obviamente, em
pequenos lapsos (a que todos nós estamos sujeitos pelas próprias
características do nosso sistema ortográfico), mas pela presença de muitas
e recorrentes inadequações.
Por fim, o plano gráfico inclui o uso dos sinais de pontuação.
Trata-se de marcas gráficas, mas cujo uso está condicionado pelo plano
gramatical e textual. No caso da pontuação, estamos numa interface entre
o gráfico e o estrutural.
Há regras de uso, mas, em geral, elas não são categóricas e
dependem de decisões pontuais, tendo como condicionantes, de um lado
a estrutura sintática e textual e, de outro, as preferências estilísticas.
E incluo aqui a questão das preferências estilísticas como
ingrediente da produção escrita porque não podemos nunca esquecer que
as práticas de escrita têm restrições dadas pelas tradições discursivas, mas
se realizam também num amplo espaço de liberdade expressiva do qual o
redator maduro sabe tirar proveito para individualizar sua expressão e,
desse modo, atrair e seduzir seus leitores.
Se, por exemplo, há uma forte expectativa social de que o texto
dissertativo-argumentativo seja redigido na modalidade formal da língua,
isso não nos impede de trazer para o nosso texto outras modalidades da
língua com o objetivo de criar determinados efeitos de sentido. Estruturas
próprias das modalidades orais não estão proibidas de ocorrer num texto
dissertativo-argumentativo. Mas é preciso que deixemos claro que se trata
de um uso intencional e monitorado. É dessa forma que mostramos que
estamos controlando a variação linguística e não sendo controlados por
ela.
Se é mais comum contar uma história cronologicamente, nada nos
impede de manejar o tempo da narrativa, começando pelo fim ou
intercalando o presente e a memória.
Se há uma expectativa forte de que um texto dissertativo-
argumentativo faça um percurso dedutivo, nada impede que tomemos o
caminho contrário, ou seja, partir da narrativa de um caso particular para
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alcançar conclusões gerais.


Trago estes poucos exemplos só para lembrar que, embora a
escrita, seja relativamente recente na história da humanidade, já tivemos
tempo suficiente para acumular inúmeras possibilidades expressivas que
estão à disposição de quem escreve. Assim, é importante não esquecer
que mais que espaço da necessidade e da obrigação, a escrita é o espaço
das possibilidades expressivas.
Dito isso tudo, podemos nos perguntar que tipo de redator é o
estudante que vem fazer o ENEM. O ideal seria que a maioria absoluta
estivesse posicionada de uma faixa média para cima. Ou seja,
considerando sua idade, que essa maioria mostrasse domínio razoável da
expressão escrita, mesmo que ainda em processo de maturação.
Os dados, porém, nos mostram que estamos ainda longe desse
ideal, mesmo que façamos todos os devidos descontos em consideração
às dificuldades envolvidas na produção de um texto em curto espaço de
tempo, sob a pressão de estar sendo avaliado, sobre um tema que lhe é
revelado na hora e sem direito a consultar instrumentos de apoio
(dicionários, gramáticas, manuais e prontuários) ou de informação.
E mais do que isso, temos de dar um grande desconto pelo fato de
que, em situação de avaliação, o candidato não produz um texto para
alguém ler, mas para alguém avaliar sua competência de escrita. Uma
prova de redação não é um real evento de comunicação. Assim, no plano
interacional, o candidato tem de saber simular condições reais de
produção, o que é certamente um particular desafio para um jovem
egresso recente do sistema escolar.
Mesmo fazendo todos estes devidos descontos, os resultados
indicam que estamos ainda distantes do ideal. No último ENEM, foram
avaliados 5 milhões de redações. Apenas 480 alcançaram a pontuação
máxima. 100 mil receberam zero. Apenas 10% do total alcançou nível
bom, ou seja, somaram mais de 700 pontos.
Esses dados são claro indício de que o sistema escolar está
deixando de oferecer adequado nível de letramento para boa parte dos
nossos jovens concluintes da educação básica.
Sabemos que, apesar de todas as discussões, de todos os debates e
de todas as recomendações dos documentos oficiais, o sistema escolar
continua sem uma pedagogia do letramento, sem uma pedagogia da
produção de texto.
A produção escrita é ainda pouco praticada e ocorre sob condições
insatisfatórias. Num recente artigo para a revista da Olimpíada da Língua
Portuguesa – Na ponta do lápis (número 24 – maio de 2014, p. 6-11), a
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profa. Lívia Suassuna, da Universidade Federal de Pernambuco,


discutindo justamente a avaliação da produção escrita, diz, com base nas
pesquisas que desenvolve sobre este tema (p. 7):
Na maioria das nossas escolas, a produção escrita
aparece pouco, está abandonada. Das práticas de
linguagem desenvolvidas em sala de aula, a escrita é a mais
frágil. Trabalha-se mais com a leitura que a escrita,
principalmente a escrita cuidada, que vai e volta, retorna
para o aluno, é confrontada, discutida.
Além disso, ela ressalta que o foco da avaliação continua sendo
posto apenas no plano gramatical e no plano gráfico, como se estes
bastassem para a produção de um bom texto. O plano interacional e
textual estão, em geral, ausentes das concepções e das práticas
pedagógicas correntes na disciplina de língua portuguesa.
Enquanto persistir essa situação, mudará pouco o perfil do texto
que teremos para avaliar no ENEM. E as estatísticas se repetirão ano após
ano, como tem ocorrido nos nossos outros processos avaliativos da
educação.
Não me desespero. Não sou do tipo apocalíptico. Temos de
entender que se trata de um processo histórico de longa duração e que
vamos, sem dúvida, continuar avançando, embora mais lentamente do
que gostaríamos. Por isso é que sou crítico de uma avaliação muito rígida
e inflexível da redação do ENEM.
Sei que esta afirmação é problemática e polêmica. Mas é preciso
problematizar e polemizar para aprimorarmos nosso trabalho de
avaliação; para consolidarmos uma cultura da avaliação e não da
correção; de apreciação e não de castigo.
Sou bastante crítico da ideia de se lidar com os textos do ENEM
tendo como horizonte o princípio da tolerância zero. A mídia – que em
geral não produz textos modelares, que não pratica o princípio da
tolerância zero consigo mesma – exige, até de forma escandalosa, que nós
avaliemos as redações do ENEM com tolerância zero.
Em geral, mesmo defendendo a tolerância zero, a mídia não vai
além do plano gramatical e ortográfico. Reproduz, portanto, o senso
comum, revelando desconhecer os outros planos constitutivos de um bom
texto.
Não estou propondo, neste meu argumento, que nos entreguemos à
liberalidade, mas que nos pautemos por uma concepção avaliativa realista
e pragmática. Em outros termos, que operemos com certa flexibilidade
avaliativa tendo sempre presentes as condições de produção da redação
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do ENEM.
Não podemos nunca perder de vista que estamos avaliando um
jovem de 17/18 anos, que é solicitado a escrever um texto num espaço de
tempo relativamente curto, sob a tensão própria dos exames, sem acesso
aos instrumentos de que normalmente se utiliza quem escreve e –
agravante geral – um jovem a quem o sistema escolar nem sempre
ofereceu uma educação de qualidade.
A avaliação nesse caso tem de ser antes holística do que detalhista
– não se pode nem se deve descer às minúcias. Não somos revisores e
corretores do texto, mas seus avaliadores. É necessário, portanto, medir,
por critérios mais globais, a maior ou menor aproximação do texto a um
nível ótimo em cada uma das competências.
Por isso, não se dá propriamente uma nota à redação, mas se atribui
a ela um conjunto de pontos seguindo uma matriz que define níveis (do
menos ao mais próximo do ótimo) em cada uma das competências. Por
isso também é possível que uma redação alcance a pontuação máxima
ainda que apresente algumas poucas inconsistências textuais e
argumentativas, bem como escassos lapsos de ortografia ou de adequação
léxico-gramatical.
Isso, como bem sabemos, tem sido, injustamente, motivo de
escândalo. Ora, ao admitir poucas inconsistências e escassos lapsos no
nível máximo de pontuação, a própria matriz revela que está fundada
numa concepção avaliativa realista e pragmática.
Infelizmente, a mídia interfere negativamente no nosso trabalho e
acaba forçando algumas decisões, no plano político, que enrijecem
excessivamente alguns critérios. Como educadores, devemos, penso eu,
resistir a isso e continuar buscando calibrar nossa avaliação de modo que
ela seja criteriosa sim, mas sem ser rígida e inflexível.
Lembremos, só para efeito de exemplificação, que mesmo pessoas
altamente letradas e já maduras na prática da escrita não têm segurança
ortográfica absoluta: pela vida afora temos dúvidas e cometemos
eventualmente pequenos lapsos ortográficos. Isso não é, de fato, um
problema. É apenas consequência das próprias características da nossa
ortografia, que combina transparência fonológica (regularidades e
previsibilidade, portanto) e memória etimológica (característica
responsável por diferentes tipos de irregularidades e imprevisibilidade).
Se isso é comum na vida real das pessoas altamente letradas, por
que não podemos aceitar sua ocorrência na redação do ENEM? Por que
numa redação com pontuação máxima não pode aparecer ocasionalmente
um lapso ortográfico, um “trousse” (com ss em vez de x) por exemplo?
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O mesmo se pode dizer do plano gramatical (outro em que a mídia


gosta de chafurdar). Por que não podemos admitir um ou outro lapso de
concordância (um sujeito posposto plural com o verbo no singular); ou
uma ou outra relativa cortadora?
Esses são fatos comuns na modalidade formal oral do português
brasileiro e já ocorrem com relativa frequência nos textos de escritores
consagrados, mesmo quando submetidos a revisores antes da publicação,
sinal inequívoco de que são estruturas já estabilizadas no uso formal. Por
que não podem ocorrer esporadicamente numa redação do ENEM que
receba a pontuação máxima?
Acrescente-se a estes eventos da vida real, o fato de que não há,
seja entre os especialistas, seja entre os instrumentos normativos
correntes (dicionários e gramáticas), absoluto consenso sobre que
fenômenos pertencem à modalidade escrita formal do português
brasileiro contemporâneo. Há razoável convergência quanto à morfologia
dos verbos e a concordância verbal e nominal; mas há não poucas
divergências quanto à regência verbal e a colocação e uso dos pronomes
(para ficarmos em alguns casos). Não há como fugir dessa realidade, que
não é má em si (apenas revela que os autores dos instrumentos
normativos têm olhares parciais sobre a língua). No entanto, no momento
da avaliação do texto do aluno, precisamos enfrentar essas contradições,
adotando sempre, nesses casos, um parâmetro flexível.
É preciso, portanto, muita cautela e bom senso na avaliação da
redação de um aluno concluinte do Ensino Médio para não perdermos o
norte do que é razoável.

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