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ISABELLE KOCK
Université de Provence
Aix-Marseille I
FRANCE
Resumo: O artigo busca analisar a teoria do signo como fundamento da epistemologia estóica.
Opondo-se a Aristóteles, os estóicos propõem fundar o conhecimento humano não mais em uma
relação de causalidade, mas em uma teoria do signo como reveladora do que nos é oculto. Para isso,
interpretam o signo como um condicional cujo conseqüente faz avançar o conhecimento. A análise
da estrutura condicional do signo e as razões que levaram os pensadores estóicos a defendê-la
constitui o principal objetivo do artigo.
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2 Idem, “De modo geral, nosso uso do vocabulário da causalidade parece estar forte-
mente marcado pela idéia segundo a qual, na relação causal, existe alguma coisa que, de
um modo ou de outro, faz algo, não importa o que, produzir ou realizar um efeito”.
3 Sénèque, Lettres à Lucilius, carta 65.
4 Aristóteles, Seconds Analytiques, I, 2, 71 b 9: “Pensamos conhecer cientificamente
(epistasthai ) – no sentido estrito e não da maneira dos sofistas, por acidente – quando pen-
samos que conhecemos a causa pela qual o fato é (quando sabemos que é ela que é a
causa disso) e que isso não pode ser diferentemente. Está, portanto, claro que conhecer é
algo desse tipo”.
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5 A. Long e D. Sedley propõem traduzir por “inferência semiótica” (cfe. Long et Sedley.
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clara por isso. Os estóicos distinguem grosso modo três casos: o signo é o efeito de
uma causa oculta que ele significa (o fato de ter leite para uma mulher é o signo
de que ela deu à luz); o signo é a causa de um efeito oculto que ele significa (um
ferimento no coração é o signo de que o ferido morrerá); o signo não está de
forma alguma ligado causalmente à realidade oculta que ele significa: é o caso, no-
tadamente, da linguagem (os enunciados dotados de significação são signos das
realidades sem serem nem causas nem efeitos) e dos signos adivinhatórios (a rela-
ção, por exemplo, entre o signo astrológico de alguém e sua morte não é enun-
ciada como uma relação causal). Malgrado a ausência de reconhecimento perfeito
entre as relações de causalidade e as de significação, há visivelmente um vínculo
muito forte entre os dois campos, se bem que um certo número de textos sugere
que a interpretação dos signos é um substituto da explicação causal lá onde essa
última não é possível para o conhecimento humano. Se todas as realidades que
compõem o mundo fossem-nos evidentes, não teríamos necessidade da interpre-
tação e apreenderíamos todas as relações causais em virtude das quais tudo se
produz necessariamente. O mundo seria para nós o que ele é para os deuses, um
espetáculo sem sombras, sem mistério, dado à contemplação. É porque nosso
conhecimento apreende de forma evidente apenas alguns pontos deste mundo
– aqueles dados a uma apreensão atual – que estamos no mundo, para retomar
uma expressão de Epiteto, não somente como espectadores, mas sobretudo
como exegetas: Deus (ou seja, o princípio organizador de todas as coisas) “intro-
duz no mundo o homem para contemplar Deus e suas obras e não apenas para
as contemplar, mas para interpretá-las” 6 . Esta exigência de exegese estabelece os
limites do conhecimento humano que não pode sair da parcialidade que lhe
impõe sua origem perceptiva a não ser por meio dos signos e da arte de interpre-
tá-los. É o que atesta a distinção entre o conhecimento que um deus pode ter das
coisas e o que está ao nosso alcance:
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causas das coisas futuras deve necessariamente apreender todas as coisas futuras.
Mas já que ninguém pode fazer isso a não ser Deus, o que é possível dar ao homem
é a presciência do futuro a partir de certos signos que anunciam o que irá se
produzir, pois todas as coisas que vão acontecer não ocorrem de uma só vez. 7
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Que a adivinhação existe realmente é provado por esse argumento dos estóicos: “se
há deuses e eles não indicam previamente aos homens os eventos futuros, então ou
bem eles não amam os homens ou ignoram o que vai acontecer ou pensam que os
homens não têm interesse em conhecer o futuro ou pensam que é indigno de sua
majestade dar signos do que vai acontecer ou os deuses são incapazes de fornecer
os signos. Mas não é verdade que eles não nos amam (pois são caridosos e amigos
do gênero humano), nem que ignorem o que foi estabelecido e planejado por eles,
nem que não tenhamos interesse em saber o que vai acontecer (pois tomamos mais
precauções quando o sabemos), nem que considerem isso incompatível com sua
majestade (pois nada é mais valioso do que a bondade), nem que sejam incapazes
de conhecer previamente o futuro. Logo, não é verdade que haja deuses, mas que
não fornecem signos sobre o futuro; ora, há deuses; logo, eles nos dão tais signos.
E também não é verdade que, se eles fornecem signos, não nos fornecem os meios
para a interpretação científica desses (pois de outro modo os signos seriam dados
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em vão). E se nos dão esses meios, não é verdade que a adivinhação não existe.
Logo, a adivinhação existe.” Este argumento é empregado por Crisipo, por Dió-
genes [da Babilônia] e por Antípater. 13
Se há intérpretes dos deuses, é necessário que os deuses existam. Ora, há tais intér-
pretes. Reconhecemos, portanto, que os deuses existem. 14
Que existam coisas que sejam ou que possam ser signos de outras coisas
e que sejamos capazes de desenvolver técnicas interpretativas, tudo isso faz parte,
aos olhos dos estóicos, da ordem mesma do mundo, ordem essa que é causal.
Resulta daí, de um lado, uma racionalização da arte adivinhatória, a qual não é o
apanágio de apenas alguns inspirados, mas possui a dignidade de uma techne, aná-
loga à arte médica compreendida como interpretação dos sintomas. Cícero distin-
gue assim, ao lado da adivinhação inspirada, aquela dos “que profetizam em esta-
do de frenesi”, a adivinhação que “participa da arte”, fundada em princípios, com
método e observações empíricas 15 . Resulta também, de outro lado, a ampliação
da prática exegética para além da adivinhação. Se a adivinhação é, por meio da in-
terpretação de signos, um desvelamento de conexões reais, mas ocultas, então o
filósofo é adivinho e o verdadeiro adivinho é sábio 16 . Não se trata de simples me-
táfora. Ao contrário, os estóicos fazem da interpretação dos signos o esquema de
acordo com o qual eles formalizam os procedimentos de conhecimentos cientí-
ficos, contra o silogismo causal de Aristóteles.
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Aqueles que são reputados como tendo feito distinções exatas sobre o signo, os
estóicos, quando querem elaborar sua concepção do signo, dizem que um signo é a
proposição inicial de um condicional válido, reveladora do conseqüente. (…) Por
proposição inicial, entendem o antecedente em um condicional que possui o ante-
cedente verdadeiro e o conseqüente verdadeiro. Ela é reveladora do conseqüente,
pois no condicional “se esta mulher possui leite, ela deu à luz”, “esta mulher possui
leite” parece tornar manifesto que “ela deu à luz”. 18
Não entro aqui nos detalhes das discussões relativas aos critérios que
permitem identificar um condicional como válido (trarei de alguns pontos dessa
discussão quando da relação entre adivinhação e filosofia). O mais importante, no
momenrto, é notar ser na base desta estrutura lógica do signo (“se isto, aquilo”)
que os estóicos buscaram formular tanto as definições quanto as demonstrações.
Aquelas sempre foram formuladas sob a forma de uma proposição hipotética:
não como “o homem é um ser vivo mortal que participa à razão”, mas como “se
isto é um homem, é um ser vivo mortal que participa à razão” 19 . Os exemplos
que nos dão de um silogismo, notadamente de um silogismo demonstrativo, en-
volve sempre uma premissa maior a qual não é uma proposição simples, como é
o caso para Aristóteles, mas uma proposição complexa condicional”. A formu-
lação usada é sempre do tipo “se é dia, há luz; ora, é dia, então há luz”; “se tu vês,
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tu vives; ora, tu vês, logo tu vives”; “se o primeiro, o segundo; ora, o primeiro,
então o segundo”. Podemos nos perguntar porque os estóicos escolheram este ti-
po de formulação do silogismo, levando em consideração que essa formulação se
baseia na estrutura que define um signo. Um texto de Plutarco pode nos auxiliar,
pois ele precisa o estatuto das duas premissas do silogismo estóico:
Veja-se Arius Didyme, Stoicorum Veterum Fragmenta, II, 509: “[Crisipo] sustenta que
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apenas o presente existe. O passado e o futuro subsistem, mas, segundo ele, de forma
alguma existem”.
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ragem no presente quando ela constitui uma coisa evidente (isso) em signo de
uma coisa não evidente, ao dar a essa coisa evidente a forma de um antecedente
ao qual segue um conseqüente cuja existência poderá então ser inferida, ainda que
possa ser objeto de uma preensão direta. Quanto à menor, o fato de Plutarco di-
zer que ela é “fornecida pela sensação” e que ela é “a existência [constituída] em
segunda premissa” atesta bem que ela corresponde ao encontro efetivo com o
signo, com uma coisa perceptível que pode funcionar como signo do oculto
porque ela foi previamente constituída como tal pela maior. A demonstração
opera, então, da seguinte maneira: constituição lógica de um signo, apresentação
sensível desse signo e revelação intelectual do não evidente a partir do signo evi-
dente. O valor da demonstração ou revelação parece ir além do da adivinhação,
mesmo que de forma ambígua, pois esta “trípode da verdade” remete-nos neces-
sariamente à trípode dos oráculos. É preciso, portanto, analisar a relação entre
adivinhação e conhecimento humano.
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22 A distinção entre signos comemorativos e signos indicativos parece ter sua origem
em textos de medicina, ainda que freqüentemente se considere que foram os estóicos que
a fixaram terminologica e conceitualmente.
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presente para desvelar uma realidade futura, ou seja, temporariamente não evi-
dente) são fundadas na observação de conjunções regulares que autorizam a to-
mar um fato presente por signo de um evento futuro:
Os adivinhos que possuem a arte são aqueles que procuram novas informações por
conjetura e que receberam suas antigas informações por observação. Aqueles que
são privados disso são os que pressentem o futuro não por razão nem por con-
jetura a partir de signos observados e constatados, (…) como acontece freqüente-
mente com sonhadores e as vezes com aqueles que profetizam em estado de
frenesi 23 .
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interessado) “de forma apenas progressiva”, mas não “reveladora”. Por quê? Por-
que faz parte dos raciocínios que
26 Idem, 142.
27 Ibid.
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permite passar do signo à sua interpretação (à coisa revelada) não é nem a me-
mória (não é porque tenho a lembrança de ter visto as pessoas transpirarem que a
inferência se produz), nem a confiança, mas uma “preconcepção”, uma prelepsis. A
revelação é, portanto, provocada unicamente pela “força das premissas”, ou mais
exatamente pela força que confere a essas premissas o critério de verdade que
constitui a “preconcepção” (pois, no exemplo escolhido, não encontramos entre
as premissas a proposição que afirma que um líquido não pode atravessar um
corpo compacto). As preconcepções, como se sabe, são noções gerais que o espí-
rito humano forma a partir da experiência sensível e que constituem a razão hu-
mana:
Quando um homem nasce, dizem os estóicos, a parte diretiva de suas alma é como
um folha de papel pronta para que nela escrevamos. O homem inscreve nela todas
as suas noções. O primeiro método de inscrição é aquele que opera pelos sentidos.
Com efeito, quando percebemos algo, por exemplo, o branco, uma lembrança
persiste após o desaparecimento da coisa. E quando muitas lembranças do mesmo
tipo nos apareceram, dizemos que temos uma experiência, pois a experiência é uma
pluralidade de representações do mesmo tipo. Entre as noções, algumas se formam
de modo natural segundo as modalidades que acabamos de mencionar e sem inter-
venção artificial. Outras, por meio de nossos próprios métodos de ensino e apli-
cação. Essas últimas chamam-se simplesmente “noções”; as primeiras chamam-se
também “preconcepções” (prolepseis). A razão, que faz com que sejamos chamados
“racionais”, é dita alcançar sua plenitude, a partir das preconcepções, durante os
sete primeiros anos. 28
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Crisipo diz no livro I de seu tratado Sobre a razão que a percepção sensível e a
preconcepção são critérios [da verdade], a preconcepção sendo uma noção natural
dos universais. 31
Da mesma forma que o prato deve baixar quando colocamos pesos na balança,
assim também o espírito deve inclinar-se frente à evidência; (…) ele não pode não
aprovar uma evidência que lhe é apresentada. 32
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dois fatos foi sempre verificada – o ferimento no coração e a morte, por exem-
plo). O tipo de adesão é, portanto, diferente. Ele depende de uma convicção ra-
zoável suscitada pelo provável e não de uma certeza imposta pela evidência. Um
texto acerca dos raciocínios a partir de signos fundados na semelhança e na ex-
periência mostra bem isso:
De todo modo, no que diz respeito a essas coisas [i.e., as semeioseis por semelhança]
e àquelas que derivam da experiência, basta-nos sermos convencidos na medida do
razoável, da mesma forma que o somos quando nos lançamos ao mar em pleno
verão e chegamos sãos e salvos. 33
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pretações convincentes às quais é preciso assentir com reserva. De outro, ela in-
dica aquilo de que depende uma inferência reveladora e não simplesmente pro-
vável a partir de signos. A validade dessa inferência, já vimos, depende, em última
instância, da maneira como é formada a premissa maior (“se o suor escorre pela
superfície da pele, existem canais que podemos descobrir pelo pensamento”), ou
seja, e mais precisamente, trata-se do tipo de vínculo que une, na maior, o
antecedente e o conseqüente. Alcançamos aqui a questão anunciada acima e
deixada provisoriamente em suspenso: o que é um condicional válido? Se o signo
possui como forma própria “se isto, aquilo”, o que é um signo verdadeiro capaz
de produzir uma “revelação” disso de que ele é signo sem se limitar a levar a uma
convicção simplesmente provável?
As discussões sobre esse ponto são longas e complexas. Podemos nos li-
mitar aqui a lembrar as conclusões. O critério canônico admitido pelos estóicos,
ao menos a partir de Crisipo, é o da “coerência” (sunaetesis) e é definido da seguin-
te maneira:
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Trata-se de um signo “comum” [à verdade e ao erro], pela simples razão que isso
pode existir, mesmo que exista ou que não exista a coisa não evidente [de que ele é
supostamente signo]. Quando acreditamos que tal homem é bom porque é rico, di-
zemos que utilizamos um signo vicioso e comum, pois podemos encontrar muitos
homens ricos que são extravagantes e muitos que são bons. Assim, o signo próprio,
se é verdade que ele é necessário, não pode existir senão em conjunção com a coisa
da qual afirmamos que ela se relaciona necessariamente com ele, ou seja, a coisa
não aparente da qual ele é signo. (…) E isso se faz pelo método da indicação a
partir do signo (semeiosis) por eliminação (anaskeue). 37
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Teus Prognósticos são repletos de antecipações desse tipo. Quem poderia ligá-los a
causas? Vejo com clareza que o estóico Boetos se esforçou para isso e é verdade
que ele chegou a dar conta cientificamente dos fenômenos precursores celestes e
marinhos. 39
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Encontramos nele [i. e., Possidônio] muito de etiologia e de aristotelização, coisas
das quais os membros de nossa escola se afastam devido à obscuridade das
causas. 41
tação sugere que o interesse dos estóicos pelas causas é oriundo de seu interesse pela
responsabilidade. Com efeito, quando observamos o uso efetivo que os estóicos fizeram
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de sua teoria das causas, parece que a questão era sempre a de atribuir e distribuir respon-
sabilidade. (…) A distinção entre as diversas espécies de causas apenas retoma, sob forma
mais refinada, a distinção intuitiva ordinária entre as diferentes espécies de responsabi-
lidade”.
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7. O condicional, a “proposição a mais racional” e a “representação
racional”
Essa especificidade encontra entre os estóicos uma expressão bastante pre-
cisa: que o homem seja dotado de logos significa não apenas que ele possui uma
faculdade da qual os demais animais são desprovidos, mas também que as fa-
culdades que ele possui em comum com os demais animais (a representação,
phantasia e o impulso a agir, horme) apresentam uma estrutura completamente
distinta – uma estrutura proposicional. A phantasia do animal racional é dita
logike 47 e a horme é um logos prostaktikos, um “discurso que ordena”. Trata-se aqui
de conhecimento e não de ação, sendo, portanto, o estatuto da phantasia logike o
que nos interessa. Todas as representações formadas pelo espírito humano, sejam
elas corretas ou incorretas, próprias ao sábio ou ao insensato, são ditas “racio-
nais” 48 . Isso significa, em primeiro lugar, que elas possuem, antes mesmo de sua
explicação sob a forma de um discurso articulado, uma estrutura discursiva. Não
47 Diogène Laërce, Vies …, VII, 51: “As representações são ou racionais (logikai ) ou
não racionais (alogoi ); racionais, aquelas dos animais racionais; não racionais, aquelas dos
animais não racionais; as representações racionais são pensamentos (noeseis), as não racio-
nais não possuem nome.”
48 A tradução de “phantasia logike” por “representação racional” é bastante imperfeita.
Poder-se-ia preferir “representação lógica”, que exprime melhor o caráter discursivo que
os estóicos reconhecem como a marca própria da representação humana. A primeira
tradução possui, todavia, outras vantagens, uma vez que permite lembrar que, se o espírito
humano é capaz de formar tais representações, isso ocorre porque, diferentemente dos
animais privados de logos, seu hegemonikon é um fragmento da razão divina (logos) que
organiza o mundo. Veja-se, por exemplo, Claude Imbert, “Théorie de la représentation et
doctrine logique dans le stoïcisme ancien”, in Les Stoïciens et leur logique. Actes du colloque de
Chantilly [18-22 septembre 1976], Paris, Vrin, 1978, p. 226: “Empregado pelos estóicos,
Logos recebeu três sentidos, ligados entre si: razão divina organizadora da matéria, razão
humana e discurso. O qualificativo logike lembra que a representação retira seu estatuto
discursivo da razão humana na qual ela nasce e que essa é um fragmento da razão divina,
capaz de penetrar no ordenamento físico das aparências sensíveis. Buscando estar
conforme a esse uso, traduziremos phantasia logike por representação racional, lamentando
que o qualificativo francês oblitere uma parte da significação original e mesmo que o
contexto exija, freqüentemente, que o acento seja colocado sobre o caráter discursivo da
representação”.
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Por meio da representação lógica, que não é outra coisa senão a representação hu-
mana enquanto o homem é um animal lógico, é no âmbito do discursivo que os
homens encontram-se desde o início inscritos. Se a representação precede o
pensamento, que é naturalmente loquaz (éklalètikè huparkhousa [Diógenes Laércio,
VII, 49]), a representação contém nela mesma tudo o que a discursividade efeti-
vamente exporá. Seu conteúdo é proposicional. Antes mesmo de dizer, efetiva-
mente, que “Catão caminha”, o que vejo é Catão caminhando. 51
49 Veja-se Cicéron, Premiers Académiques, II, 21: “As características que pertencem às
coisas que descrevemos como percebidas pelos sentidos pertencem também a essas coisas
que descrevemos como percebidas não pelos próprios sentidos, mas de uma certa ma-
neira por eles, como, por exemplo, “isso é branco”, “isso é doce”, “isso é melodioso”,
“isso é bom” e “isso é rugoso”. Nosso conhecimento das coisas, nós o obtemos já pelo
espírito e não pelos sentidos.” “Já pelo espírito”, pois nossas representações, formadas no
momento da sensação, já são pensamentos, noeseis.
50 Sextus Empiricus, Contre les Professeurs, VIII, 70.
51 Frédérique Ildefonse, Les Stoïciens. Zénon, Cléanthe, Chrysippe, Paris, Belles Lettres,
2000, p. 103. Veja-se também: Claude Imbert, Pour une histoire de la logique. Un héritage
platonicien, Paris, PUF, 1999, p. 91: “Trata-se de um traço definidor da representação, ao
menos para o homem, que ela seja discursivamente elaborada. Se nos for permitido tomar
emprestado a terminologia da fenomenologia, não há estado “antepredicativo” da
consciência”.
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52 Veja-se Long et Sedley. Les philosophes hellénistiques, vol. II : Les Stoïciens, tradução de J.
Brunschwig e P. Pellegrin, Paris, GF, 2001, p. 184: “No ser humano adulto, todas as re-
presentações são “racionais”. Todas elas são “processos da razão” e todas as noções
(ennoiai ) são “espécies da representação” (cfe. Plutarque, Des notions communes contre les
stoïciens, 1084 f), o que sugere que todas as representações dos seres humanos adultos são
concebidas como tendo um conteúdo proposicional. (…) Assim compreendidas, as repre-
sentações racionais do mundo exterior não implicam uma teoria segundo a qual o espírito
recebe materiais brutos que, posteriormente, busca a interpretar. É preciso antes supor
que as próprias representações racionais representem seus objetos de um modo que pres-
supõe a linguagem e os conceitos; no mínimo, “isso é branco”. A racionalidade de todas
as representações no adulto humano implica que o estoque de conceitos no espírito é
imediatamente colocado em atividade quando lhe chega uma representação sensível, ten-
do como resultado que a representação representa seu objeto sob uma forma conceitual”.
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estrelas são em número ímpar’, ‘as estrelas são em número par’” 53 . Nenhum dos
exemplos menciona que a representação possa tratar de um objeto isolado, já
que, mesmo no caso de uma representação convincente, os exemplos simples
como ‘é dia’ ou “falo’ não possuem sentido senão no contexto de uma situação
atual (enquanto estou falando, formo a representação ‘falo’). Eles atestam, por-
tanto,
o conteúdo situacional da representação [racional]. Nesse sentido, podemos apenas
falar de objeto da representação apenas entendendo o objeto como uma situação.
Não possuo uma representação de um corpo ou de uma ação, mas tenho ime-
diatamente a representação de uma situação, ou seja, de um certo vínculo entre o
corpo e uma ação, ou seja, de um corpo afetado de uma maneira de ser deter-
minada. Isso significa que o conteúdo da representação é um conteúdo imedia-
tamente proposicional (…): a representação contém de maneira congregada todas
as informações que a proposição desdobrará no campo da discursividade efetiva. 54
O homem não se distingue dos animais não racionais pelo discurso proferido (logos
prophorikos) – pois os corvos, os papagaios e os cucos proferem sons vocais arti-
culados – mas pelo discurso interior (logos endiathetos). E não difere também somente
pela representação simples (pois eles também recebem representações), mas porque
essa é transitiva e combinatória (te metabatike kai sunthetike). Porque ele possui em si
uma noção da consecução (akolouthias ennoian), ele forma desde o início um pen-
samento do signo por meio dessa consecução. De fato, o signo é da seguinte
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forma: ‘se isso, então aquilo’. A existência do signo decorre, portanto, da natureza e
da constituição humanas. 55
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 15, n. 2, p. 281-312, jul.-dez. 2005.
312 Isabelle Kock
nível mais primitivo de todos nossos atos cognitivos, a saber, nas representações
sensíveis. Não surpreende, portanto, que os estóicos tenham conferido à pro-
posição que exprime essa constituição racional de forma discursiva o primeiro lu-
gar na ordem do conhecimento.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 15, n. 2, p. 281-312, jul.-dez. 2005.