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A LITERATURA DE AUTORIA FEMININA NA AMÉRICA LATINA

Luiza Lobo
Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO:

Este ensaio apresenta, concisamente, uma historia da literatura de autoria feminina latino-
americana comentada, incluindo escritoras da America Hispanica e do Brasil. Dados biograficos
e referências às principais obras publicadas por cada uma delas, situados dentro do contexto
historico-social de seu tempo e seguidos de crítica, e a divisao das autoras pelos temas que
melhor as caracterizam visam a tornar transparente a importância desta literatura. Na
introdução do ensaio busca-se, a partir da noção de estudos de gênero, discutir o significado
da escrita de autoria feminina e como se estabeleceu a autonomia desta literatura na America
Latina, através dos seus poucos séculos de existência.

ABSTRACT:

This essay presents a concise information on the history of Latin-American women's literature,
including Spanish America and Brazil. Biographical data and reference to their main published
works are situated within their contemporary social-historical context and are followed by a
short criticism about them. Authors are grouped by the theme that best characterizes their
work. This aims to show their importance in general literature and to situate them by the
literary themes that they employ. In the introduction of the essay, departing from the notion
of gender studies, there is a discussion of the meaning of these women writers' production
and how the autonomy of Latin-American literature was established throughout its few
centuries of existence.

INTRODUÇÃO

Nosso interesse neste trabalho é demarcar o espaço da literatura de autoria feminina através
da história da literatura da América Latina em geral, as grandes linhas em que esta se divide e
que vias se abriram para a escritora contemporânea. No entanto, seria aconselhável,
inicialmente, definir o que é literatura de autoria feminina e em que consiste a postura
feminista na literatura de mulheres.

Atualmente, é extensa a discussão sobre a teoria do "feminismo" enquanto "gênero sexual"


(gender), que deve ser compreendido não como um dado recebido da natureza no
nascimento, mas como uma "construção cultural", ou, na acepção psicanalítica, uma
"diferença sexual". Notamos, por outro lado, que esta discussão faz parte do campo da
antropologia cultural e da sociologia. Ali se explica o feminismo a partir de embasamentos
supostamente mais "coerentes", atendendo a uma exigência de cientificismo racional, naquele
sentido lógico e cartesiano que constitui o pano de fundo das oposições dicotômicas ou
binárias que costumam nortear a sociedade em que vivemos. No entanto, nem sempre esse
binarismo contrastante responde a nossas dúvidas ou corresponde a nossa sensibilidade sobre
o assunto. A principal origem dessas dúvidas repousa na desconfiança de que este propalado
"cientificismo", que eterniza as dicotomias contidas nas divisões entre homem, macho, e
mulher, fêmea, se baseia numa simples analogia inconsciente entre o mundo natural -
aparência física - e o mundo psíquico e cultural.

Hélène Cixous considera, em "Sorties" (ver La jeune née, Paris, 1975), que as oposições com
que a filosofia metafísica caracteriza o real são "clássicos pares heterossexuais da filosofia"[1].
Hélène Cixous chama este tipo de reducionismo de "death-dealing binary thought"
(pensamento binário de transação com a morte) [2]. Toril Moi nos alerta sobre a necessidade
da desconstrução de oposições binárias tipo "macho", "fêmea", "forte", "fraco", "violento",
"delicado", "público", "íntimo" etc. Jacques Derrida também criticou as oposições binárias que
constituem o quadro epistemológico de conhecimento do mundo no Ocidente: espírito versus
corpo, cultura versus natureza, razão versus emoção, considerando-as um sistema
falogocêntrico, isto é, centrado no logocentrismo e no falocentrismo (Cixous, 1975, in Navarro,
1995, p. 186), duas fortes estruturas de poder na sociedade. Jacques Derrida nos esclarece
amplamente como tais polaridades foram estabelecidas através da história da sociedade
greco-judaico-cristã-ocidental a partir do logocentrismo (evidentemente, contendo idéias
patriarcais), e como elas se estabeleceram como verdade. No entanto, tais juízos de valor
podem ser desconstruídos a todo momento a partir de uma escrita feminista crítica, por
exemplo. Por outro lado, os estudos feministas precisariam se descolar com relação a posturas
naturalistas, que encaram a situação dos seres humanos como analógica à natureza, como se
vê nos mitos e nas religiões. O fato é que todas essas assertivas são construções culturais que
têm tanta verdade em si quanta fé coloquemos nelas. Neste sistema falocêntrico que é
transmitido, logocentricamente, a partir da tradição oral da cultura, institui-se um cânone que
privilegia determinados seres - homens - de determinada raça - brancos - e de uma certa classe
social - ricos. As mulheres, os negros, e outras "minorias" (nem sempre numéricas) vêem-se
excluídos das posições sociais mais elevadas, dos estudos acadêmicos, das editoras, dos
cânones literários, e, assim, não surgem como formadores de opinião.

Do ponto de vista teórico, a literatura de autoria feminina precisa criar, politicamente, um


espaço próprio dentro do universo da literatura mundial mais ampla, em que a mulher
expresse a sua sensibilidade a partir de um ponto de vista e de um sujeito de representação
próprios, que sempre constituem um olhar da diferença. A temática que daí surge será tanto
mais afetiva, delicada, sutil, reservada, frágil ou doméstica quanto retratará as vivências da
mulher no seu dia-a-dia, se for esta sua vivência. Mas o cânone da literatura de autoria
feminina se modificará muito se a mulher retratar vivências resultantes não de reclusão ou
repressão, mas sim a partir de uma vida de sua livre escolha, com uma temática, por exemplo,
que se afaste das atividades tradicionalmente consideradas "domésticas" e "femininas" e
ainda de outros estereótipos do "feminino" herdados pela história, voltando-se para outros
assuntos habitualmente não associados à mulher até hoje.
Com relação às discussões sobre a teoria da literatura de autoria feminina, o estudo e a
produção do texto literário vivem diversos dilemas: 1) o propósito do escritor, do crítico e do
historiador da literatura é ler ou criar o escrito com uma compreensão que não violente o
texto, mas o ouça como depoimento pessoal e histórico, de modo que muitos conceitos
oriundos de diversas fontes teóricas, seja dos campos citados acima, seja da psicanálise ou da
neurologia, da história, etc acabam por violentar a própria essência sensível da obra literária;
2) muitas das definições que encontramos partem de ensaístas e teóricas que vivem,
trabalham e escrevem em universidades do Primeiro Mundo, e são, portanto, definições que
derivam de observações ligadas àquele universo conceitual e experiência, refletindo as
relações interpessoais que ocorrem ali. Muitas destas definições vêm se formando e se
transformando há muito mais tempo do que na América Latina, devido a se constituírem de
culturas com um índice de leitura e escolaridade, acesso ao saber e níveis de desenvolvimento
muito mais elevados que os das culturas primordialmente orais em que vivemos no chamado
Terceiro Mundo. Isto mesmo se considerarmos, na América Latina, a burguesia, média ou alta,
como praticamente a única classe social que tem uma produção intelectual ligada à escrita,
leitura e discussão de textos literários; 3) o fascínio que em geral sentimos pelas definições
antropológicas ou filosóficas externas ao campo da literatura pode nos levar a fugir de nosso
objetivo principal, que é o estudo do texto literário em si, embora a partir dele se vislumbrem
possibilidades de intertextualidades. Contudo, estas só podem ser objeto de estudo na medida
em que o próprio texto abra essas janelas, e não quando as comparações textuais sejam
impostas de fora para dentro pelo teórico da literatura, pois, neste caso, se infringiria a
conduta de "escuta" da fala do outro que caracteriza o texto literário criativo; 4) outra
característica dos estudos de literatura de autoria feminina, mas que se apresenta antes como
armadilha num campo minado, é o descritivismo biográfico. A vida das autoras,
minuciosamente descrita, acaba se confundindo com sua obra, cuja qualidade é pouco
discutida, ou cujas características são pouco aprofundadas. Isto ocorre porque as autoras -
especialmente as latino-americanas, incluindo-se aí as brasileiras, mas também as de língua
francesa, inglesa e holandesa do Caribe, as que utilizam o quéchua e outras línguas indígenas
para se comunicarem e cujos textos são anotados e traduzidos por outras pessoas - são muito
pouco conhecidas do público em geral. Assim, a biografia surge como um recurso para avivar o
interesse por suas obras, mas não se deveria reduzir o estudo da literatura dessas autoras à
história de suas vidas.

Portanto, definições "importadas" diretamente para nosso contexto literário causam


inevitavelmente um mal-estar; o mal-estar da sensação de subdesenvolvimento e da
impossibilidade real de ver, perceber, entender além dos horizontes de nossa própria cultura -
a qual, no atual período pós-moderno e de comunicação de massa, só pode ser entendida em
comparação com outras culturas. Por outro lado, o estudo biográfico das autoras também
funciona como uma "importação" quanto ao estudo e análise da literatura, que consiste na
leitura, apreciação - enfim, na recepção do texto literário pelo público leitor - o que ainda não
tem ocorrido em larga escala na América Latina, com algumas exceções.
POR UM ESBOÇO DE DEFINIÇÃO

Tecnicamente, não se poderia falar em literatura "feminista" antes que o termo fosse
cunhado, na década de 60 deste século. O termo "feminino" vem sendo associado a um ponto
de vista e uma temática retrógrados, o termo "feminista", de cunho político mais amplo, em
geral é visto de forma reducionista, só no plano das ciências sociais. Entretanto, deveria ser
aplicado a uma perspectiva de mudança no campo da literatura. A acepção de literatura
"feminista" vem carregada de conotações políticas e sociológicas, sendo em geral associada à
luta pelo trabalho, pelo direito de agremiação, às conquistas de uma legislação igualitária ao
homem no que diz respeito a direitos, deveres, trabalho, casamento, filhos etc. Entretanto, o
texto literário feminista é o que apresenta um ponto de vista da narrativa, experiência de vida,
e portanto um sujeito de enunciação consciente de seu papel social. É a consciência que o eu
da autora coloca, seja na voz de personagens, narrador, ou na sua persona na narrativa,
mostrando uma posição de confronto social, com respeito aos pontos em que a sociedade a
cerceia ou a impede de desenvolver seu direito de expressão. Neste sentido, sempre houve
autoras "feministas" dentro do contexto de suas épocas, tornando-se o termo impróprio
apenas por uma questão cronológica. Como exemplo, Safo, Sóror Juana Inés de la Cruz,
Gertrudis Gómez de Avellaneda mostraram uma consciência política ou esclarecida de sua
existência em face da história excepcionais para seu tempo, e poderiam ser eventualmente
identificadas com o "feminismo".

A alteridade pode ser vista não só como um outro antropológico (Lévi-Strauss mostra o
selvagem como um outro igual ao civilizado que deve ser conhecido) ou um outro filosófico (a
consciência da diferença entre pessoas), mas também do ponto de vista psicanalítico: neste
caso consistiria no confronto entre consciente e inconsciente, e, por conseguinte, na
consciência de que não somos um eu total, sem arestas, como querem o humanismo e a
metafísica, mas um eu com fissuras, com desdobramentos, que é representado pela própria
entrada no universo da linguagem através da fala que constitui, para Lacan, a entrada no plano
do simbólico exterior. Esta alteridade do eu em relação a si mesmo é o ponto de partida da
literatura contemporânea, mas se torna mais aguda quando a literatura, pelo menos desde
1970, percebe que se comporta de modo logocêntrico e etnocêntrico, nas palavras de Lévi-
Strauss, não só a respeito de outros povos e raças mas também com respeito ao outro sexo e
às minorias sexuais. O cânone é demarcado pelo homem branco, de classe média, ocidental. A
mulher insere-se nesta cena a partir de uma ruptura e o anúncio de uma alteridade ou
diferença para com esta visão "falogocêntrica", na expressão de Hélène Cixous.

A alteridade da literatura de autoria feminina tornou-se assim a base da abordagem feminista


na literatura. Ser o outro, o excluso, o estranho, é próprio da mulher que quer penetrar no
"sério" mundo acadêmico ou literário. Não se pode ignorar que, por motivos mitológicos,
antropológicos, sociológicos e históricos a mulher foi excluída do mundo da escrita - só
podendo introduzir seu nome na história européia por assim dizer através de arestas e frestas
que conseguiu abrir através de seu aprendizado de ler e escrever em conventos. Por exemplo,
na Alemanha, a freira Hildegard de Bingen (1098-?). Na Colômbia, a Madre Francisca Josefa del
Castillo (1671-1742). No México, a freira Sóror Juana Inés de la Cruz (1648?-1695). Esta, apesar
de sua inteligência privilegiada (além da beleza), precisou declinar da possibilidade de um
casamento ou do trabalho de dama de companhia na Corte do Vice-Reinado, só para ter a
liberdade de escrever e estudar na sua cela no Convento das Dominicanas. Na França, a
primeira escritora francesa, a poetisa Marie de France (antes de 1170-?), embora não fosse
religiosa, só foi alfabetizada devido a sua alta posição social na corte do rei Henrique II e da
rainha Eleonor de Aquitânia. Seu l'Ysopet foi amplamente aproveitado por La Fontaine, em
suas fábulas. Na introdução aos seus Lais, tirou humildemente o valor original de sua
produção, dizendo que se originavam da cultura oral - como se as outras produções da época
também não o fizessem.

Na literatura de autoria feminina, como na literatura de autoria negra ou africana, percebe-se


a existência de um discurso de alteridade político, na medida em que seus representantes se
assumam e se declarem como tal, isto é, como negros, negras, africanos, africanas, ou seja,
como parte de uma etnia não prestigiada ou como mulheres. A literatura de autoria feminina
se constitui naquelas obras em que a literatura se exerce como tomada de consciência de seu
papel social. Ao contrário, há uma postura de igualamento não-feminista ou não racial com as
outras vozes, ou seja, de apagamento das diferenças, e não como uma voz alternativa ou a
expressão de uma minoria. Neste caso, o suposto humanismo que tenta apagar as diferenças é
na verdade temor de acirrá-las, ao fingir não vê-las, como se não tivessem sexo ou cor, e como
se tudo fosse universal. Neste caso, não se pode destacar essas autoras como parte
representativa da literatura de autoria feminina, uma vez que não tomam consciência de sua
posição em face do todo social. É como se essas "minorias" fossem perfeita e placidamente
contempladas pelo cânone literário em geral.

Para Luce Irigaray, em "Une chance de vivre,"[3] a literatura é sexuada, pois "Como se pode
expressar a sexualidade senão através da linguagem?" Como pode haver "uma diferença
sexual, mas não uma sexualidade do discurso"? (1989, p. 50). A língua também não é neutra,
segundo a psicanalista, porque: a) o plural dos gêneros sempre concorda no masculino; b) as
realidades de valor são freqüentemente masculinas em nossas culturas patriarcais; c) em
francês, o neutro, que em geral intervém no lugar de uma diferença sexual apagada, se diz
com a mesma forma que o masculino, no caso de fenômenos da natureza: "il tonne, il fait
soleil" etc, ou nas realidades concernentes ao dever ou ao direito: "il faut, il est nécessaire"
etc. (1989, p. 44-5). Incidimos no aspecto ideológico, quando percebemos que todas essas
afirmações quanto ao gênero da palavra nos parecem verdadeiras, incontestáveis, sem que
tomemos consciência de que nossa língua resulta de acumulações ideológicas, constituindo
discursos - e quando esquecemos que todo discurso é mutável e historicamente datado (1989,
p. 45).

A proposta de Luce Irigaray é de que a maioria dos discursos de cunho político é vazio, e nossa
tendência é projetar nele nossas sensações, pois o vazio, o nulo, inquieta e apavora (1989, p.
45). Portanto, junto a um trabalho de autoconsciência coletivo, seria importante que as
mulheres se mantivessem ligadas a um discurso que manifestasse sua experiência subjetiva
como elemento do saber, e o lugar/a origem da fundação deste saber, pois a ciência não é
neutra, universal, perfeita e inacessível, e sim relativa: caso contrário, a ciência se
transformaria em um novo superego para as mulheres. Irigaray propõe também que a mulher
não se abandone a sentimentos espontaneístas ou à espontaneidade excessiva em público,
expressando agressividade, ingenuidade, como se estivesse excluída da cultura, ou como se a
verdade fosse independente da experiência do sujeito (mulher); e que retomasse
constantemente um trabalho de dialética subjetividade-objetividade, para sair da posição de
objeto em que é constantemente colocada (1989, p. 47). Evidentemente, não basta ter-se um
sexo definido, ser-se "fêmea" para se exercer uma posição feminista na literatura, afirma Toril
Moi.[4] Não basta um objeto ligado à experiência da mulher ou ser-se do sexo feminino para
tornar o texto feminista; o que torna um texto feminista é o seu ponto de vista (1989, p. 121).
Aqui lembraríamos, igualmente, a importância da adoção de um sujeito de enunciação, a
consciência deste eu feminista, de que falávamos acima.

A conclusão a que se chega é de que a crítica feminista se insere no plano político, uma vez
que "se caracteriza por seu engajamento político contra toda e qualquer forma de
patriarcalismo e sexismo", como afirma Toril Moi (1989, p. 120). Aqui se poderia alegar: a) uma
contradição com os parágrafos iniciais deste trabalho, em que se colocava a literatura como o
estudo do texto literário autônomo, e não como apêndice da antropologia, da história, da
sociologia etc; b) que a literatura deve ser política, livre, artística. Ora, ambas as colocações
estariam corretas se não houvesse uma situação atualmente insustentável na história literária
mundial. É que a literatura foi até este século uma atividade masculina, regida por princípios
patriarcais e falocêntricos, assim como foi exercida quase exclusivamente por nobres e por
religiosos, durante os períodos medieval, renascentista, barroco e neoclássico. Foi apenas com
o Romantismo que o discurso literário se democratizou e pôde ser escrito e lido por outras
classes sociais, inferiores, e não exercido hegemonicamente pelo sexo masculino.

A prática e o estudo da literatura sempre foram feitos por homens que estabeleceram os
conceitos teóricos a respeito da posição da mulher na sociedade. Na Antigüidade, passando
pela organização das primeiras sociedades não-nômades, a força física era importante na
guerra, na caça e nos trabalhos pesados, enquanto o trabalho exercido pela mulher no fabrico
dos bens de consumo (tecidos, culinária e trabalhos domésticos e com a prole em geral) pôde
ser substituído pelo trabalho de escravos. Na sociedade grega, o trabalho da mulher, ligado à
casa - tecidos, culinária, organização da casa - quando foi transferido para os escravos
capturados na guerra, foi igualado negativamente ao trabalho escravo, e assim surgiu um
simbolismo negativo com relação a ambos que o exerciam. Assim, surgem, nos escritos da
filosofia platônica e aristotélica, opiniões altamente negativas sobre as mulheres, que depois
vão fundamentar o cristianismo e o pensamento ocidental, e os preconceitos patriarcalistas e
falocêntricos até hoje repetidos sobre as mulheres. Essas idéias penetram na sociedade
judaica e medieval através da Bíblia, que já reflete a passagem do estágio nômade para
estável, com a respectiva divisão do trabalho entre posição de poder e posição de escravo. À
medida que a sociedade passou de nômade a não-nômade, a divisão do trabalho deixou à
mulher o trabalho doméstico, não-remunerado, e os que gozavam de maior prestígio social
por suas atividades fora do âmbito doméstico assumiram as melhores posições e ganhos
sociais oriundos do trabalho: área jurídica, governamental, financeira etc. Tambem na
sociedade medieval, o trabalho feminino foi igualado ao do servo, no interior do castelo.[5] A
desigualdade social ampliou-se com o mercantilismo e o capitalismo.

O reconhecimento da literatura de autoria feminina, a partir da consciência feminista, que


revolucionou a cultura através da história, ainda não terminou, e a literatura, hoje, não só
atinge o novo público produtor e leitor feminino, como também incorpora outras visões de
alteridade. Hoje esta noção inclui o continente africano, asiático e da América Latina, que
rarissimamente obtiveram voz nas histórias literárias canônicas do passado.[6] Seria
importante estudar a literatura feminista do ponto de vista da Estética da Recepção e da teoria
barthesiana da écriture, pois, no contexto da Nova História ou da história das mentalidades, a
escrita feminista implica um corte em relação às idéias hegemônicas na sociedade patriarcal.
As vivências, o modus vivendi e as mentalidades não podem continuar os mesmos depois da
inserção deste discurso da diferença, que lentamente estabelecerá novos cânones como
conseqüência da introdução de outras formas de expressão e de comunicação social.

É evidente que não há uma história feminista matrilinear ou matriarcal do passado, nem há
teorias puramente feministas - como apontou Simone de Beauvoir em O segundo sexo, ou
como exigiu Mary Jacobus, afirmando que as mulheres não produzem teorias próprias. Para
Toril Moi, apenas importam, na sociedade pós-moderna multidisciplinar e multifacetada, a
aplicação e os efeitos que cada juízo ou cada teoria em particular possam produzir, e não tanto
a origem de uma determinada idéia. Nesta perspectiva, a reescrita, a reinvenção, a recriação -
sempre baseadas na repetição, que nunca é igual - são tão válidas quanto uma suposta criação
original - que desconfiamos que não exista, pois a linguagem se cria a partir de uma cadeia
discursiva incessantemente repetida e diferenciada (ver Deleuze, Logique du sens, 1969).

Luce Irigaray retoma sua posição em "Comment devenir des femmes civiles?"[7] e propõe não
uma dialética dupla, uma voltada para o sujeito masculino e outra voltada para o sujeito
feminino, mas sim uma dialética tríplice: a do sujeito masculino, a do sujeito feminino, e a de
suas relações em pares ou em comunidade.

Como estamos distantes de todas essas afirmações na América Latina! Ao mesmo tempo em
que recebemos as teorias que vêm de outras culturas externas a nós, basicamente da Europa e
dos Estados Unidos, deparamos com o mais vil e mesquinho ambiente social do ponto de vista
econômico e cultural, que impede a mulher do povo de crescer, de ter acesso ao saber e de
desfrutar dos direitos que a sociedade lhe deve, até mesmo antes de nascer, durante a
gravidez da mãe, que é o direito à alimentação, à educação, à saúde e à moradia, enfim, ao
bem-estar social. A literatura, entendida enquanto documento escrito e publicado, na América
Latina, será, talvez, ainda durante um século, uma atividade de uma elite intelectual e dirigida
a um público intelectual. Apesar dos passos gigantescos dados pela mulher latino-americana
em termos de liberdade, de direito ao trabalho e de escolha de sua vida, no que diz respeito ao
todo da sociedade no Terceiro Mundo, só basicamente as mulheres da classe média têm
condições de acesso à escrita e à leitura, à escola e à universidade, à leitura de jornais, revistas
e livros.[8]

Se é verdade que, por um lado, "o período de industrialização integrou a mulher em todas as
esferas do mundo do trabalho, e particularmente no mundo operário", como afirma Luisa
Ballesteros Rosas,[9] por outro são muito poucas as vozes femininas que conseguem superar a
luta pela sobrevivência e escrever ou apreciar a literatura, pesando aí o influxo da mídia que
tem desviado as populações de um exercício mais crítico sobre a sociedade - função que a
literatura exerce de forma primordial. Portanto, apenas num sentido genérico é verdade que
"Hoje as autoras latino-americanas, libertadas do ostracismo dos séculos passados,
introduzem suas vozes em todos os registros da vida intelectual. Suas obras abordam com
êxito os mais diversos gêneros, que elas enriquecem com múltiplas perspectivas" (idem, p.
277).

CONTEXTO POLÍTICO-SOCIAL

Desde fins do século XIX e principalmente no século XX, a principal transformação por que
passou a literatura de autoria feminina é a conscientização da escritora quanto a sua liberdade
e autonomia e a possibilidade de trabalhar e criar sua independência financeira - através,
basicamente, do trabalho jornalístico, diplomático (na América Hispânica, principalmente na
Argentina e México) e o professorado. Ocorreu assim uma paulatina mudança da condição
"feminina" para a condição "feminista". Desde a década de 1970, a consciência do corpo e o
questionamento da existência, com a maciça entrada das escritoras na Universidade, pelo
menos desde a década de 1950, tornaram suas vozes mais intensas. As escritoras passaram a
expressar suas realidades psicológicas, interiorizadas, filosóficas, introvertidas e superaram o
estágio em que repetiam o estilo dos homens, no século XIX. Para Elaine Showalter houve três
fases neste tipo de literatura: 1) feminina: aparecimento da produção na década de 1840 até a
morte de George Eliot, em 1880; 2) feminista: de 1880 a 1920, com obtenção do voto; 3)
"fêmea" (de cunho sexual assumido ou de gênero feminino): de 1920 até o presente, mas com
novo estágio de autoconsciência por volta de 1960.[10]

Situações políticas vividas na América do Sul levaram ao exílio muitas escritoras do século XX.
Por exemplo, a chilena Isabel Allende (1942- ), Cristina Peri Rossi (Uruguai, 1941- ) e Luisa
Valenzuela (Argentina, 1938- ). No século passado, a poeta e dramaturga cubana conhecida
como "La Avellaneda" - Gertrudis Gómes de Avellaneda (1814-1873). Ela viveu durante anos na
Espanha, até mesmo num convento num período em que ficou viúva, mais tarde retornando
para Cuba, onde foi muito celebrada. As guerras nacionalistas levaram a argentina Juana
Manuela Gorriti (1818-1892), em companhia do pai, general Gorriti, derrotado pelo federalista
Juan Facundo Quiroga, e a família, a exilar-se na Bolívia. A peruana Clorinda Matto de Turner
(pseudônimo de Grimanesa Martina Mato Usandivaras, 1852-1909), depois de sair de
Arequipa para Lima, ao casar-se, em 1885, teve de exilar-se no Chile, em 1895, após a
destruição de seu jornal e casa devido à subida ao poder de Piérola, quando ela havia apoiado
Cáceres; depois de uma viagem pela Europa, em 1908, exilou-se em Buenos Aires, já enferma
de pneumonia, e ali veio a falecer.

No início deste século, a porto-riquenha Julia de Burgos (1914-1953) viveu em constante


conflito político, lutando pela causa independentista de seu país. Sofreu todo tipo de
preconceito racial, por ser mulata, como, por exemplo, não ser aceita em público por seu
amante, o político de São Domingos Jiménez Grullón. Por esses motivos, veio a exilar-se em
Nova York. Ali se casa, em l943, com Armando Marín, muda-se para Washington e, voltando a
Nova York, morre extremamente pobre e abandonada, sofrendo discriminação racial, sem
conseguir obter trabalho, sendo enterrada como mendiga. Só posteriormente a família localiza
seus restos mortais, trasladando-os para Porto Rico[11]. Também María Luisa Bombal, que
travou contato em Paris com Breton e foi amiga de Borges, quando viveu em Buenos Aires,
casa-se com um norte-americano e passa a residir em Washington, onde traduz suas novelas.
Só retorna ao Chile já viúva e idosa, recebendo muitas honrarias. A chilena Gabriela Mistral
(pseudônimo de Lucila Godoy Alcayaga, 1889-1957), inicialmente professora primária de
origem humilde, e nascida numa região indígena pobre no norte do Chile, chegou a ganhar o
Prêmio Nobel de literatura, em 1945, quando estava no Rio de Janeiro, ocupando um cargo
diplomático. Também residiu no México, a trabalho, e termina por fixar residência definitiva
nos Estados Unidos, onde veio a falecer. Rosario Castellanos, mexicana, dedicou-se igualmente
à diplomacia, e foi num de seus cargos que faleceu em Israel, onde vivia com o filho
adolescente, vítima de um acidente doméstico com eletricidade.

Há casos, entretanto, de exílio (por vezes familiar) seguido de retorno - como o da venezuelana
Teresa de la Parra (Ana Teresa Parra Sanojo, 1889-1936), cujo pai era cônsul da Venezuela em
Paris, cidade onde a escritora nasceu. Com a experiência de vida que trouxe da Europa, faz um
confronto entre a "civilização culta" e a "vida na colônia" em seus dois brilhantes romances
mesclados de memórias, Ifigênia (1924), antes intitulado Memórias de uma senhorita que se
enfastiava e Memórias de Mama Blanca (1929). A brasileira Clarice Lispector (1920-1977),
chegada no Brasil aos dois meses com os pais, judeus russos, depois de passar a infância e a
adolescência em Alagoas e no Recife, formou-se em Direito no Rio e, casada com um
diplomata por dez anos, passou longos anos na Europa e em Washington. Utilizou suas
sofisticadas leituras de filosofia e literatura estrangeira para a criação de um estilo
profundamente pessoal de constante questionamento da existência através da palavra, a
partir do ponto de vista existencialista e psicológico. Nélida Piñon (Rio de Janeiro, 1937- ),
descendente de galegos emigrados para o Rio de Janeiro, é hoje professora titular de
Literatura Brasileira da Universidade de Miami e membro da Academia Brasileira de Letras.
Beneficiou-se das inúmeras viagens que fez ao exterior e do seu aprendizado bilíngüe, que lhe
proporcionaram grande conhecimento das literaturas espanhola e latino-americana. O
romance República dos sonhos tem como tema a emigração de uma família galega para o Rio
do ponto de vista da narradora.

Embora tais situações políticas possam ter sido pessoalmente benéficas, a longo prazo,
tornando essas autoras mais conhecidas e traduzidas no exterior (caso de Cristina Peri Rossi,
vivendo em Barcelona, e Luisa Valenzuela, em Nova York), por outro lado provocaram seu
descentramento com relação ao seu público leitor de origem e a perda de contato com este,
interrompendo uma história de vida e uma troca cultural, com o exílio.

A constante instabilidade política, acirrada na década de 1970, com a implantação das


ditaduras militares no continente, aliada à inalterável falta de condições materiais para a
sobrevivência satisfatória e a um panorama cultural em constante confronto com os países
mais ricos do exterior, tornou-se típica dos países da América Latina, seja no século passado
seja no presente, seja com relação à Europa ou com os Estados Unidos. A vida no continente
sul-americano se tornou um constante motivo para frustrações e descontentamentos, fazendo
com que muitas escritoras desejassem exilar-se.
BERÇO DA LITERATURA HISPANO-AMERICANA: O BARROCO

O desenvolvimento da literatura feminina na América Latina como um todo era, inicialmente,


no período pós-descoberta, restrito devido às dificuldades do contexto social em que viviam as
mulheres, bem como às disparidades lingüísticas e culturais que distinguiam os diferentes
grupos indígenas do continente, que sofriam, ainda, a repressão dos colonizadores
portugueses e espanhóis. Na verdade, a América Latina não é o bloco lingüístico e cultural
unificado que se subentende com a expressão "latina", oriunda de uma raiz lingüística única. O
continente tem, mesmo entre as línguas européias, além da espanhola (a maioria), e da
portuguesa, a língua inglesa, francesa e holandesa; tem as línguas indígenas orais brasileiras,
sendo o maior grupo tupi-guarani falado no sul do país e no Paraguai, falas de origem africana,
em Cuba, e outras, no Brasil, resistentes no candomblé, umbanda, e seus relatos. A literatura
de origem africana ainda não recebeu registro apropriado. Em Cuba, foi feito por Lydia Cabrera
(Havana, 1900- ), uma antropóloga que estudou em Paris e coletou muitas lendas e mitos da
literatura oral de origem africana, embora não particularmente de relatos da mulher.[12]

Assim, em que pese a fama de duas escritoras anônimas peruanas, a primeira delas Amarilis,
provavelmente pseudônimo de Doña María de Alvarado, e outra de nome desconhecido, que
publicaram em 1608 e 1621, respectivamente[13], foi no próprio período Barroco, do século
XVII, que surgiu a primeira escritora das Américas, na poesia, no drama e na autobiografia:

Sóror Juana Inés de la Cruz (Juana de Asbaje y Ramírez de Santillana, 1648?-1695) tinha origem
indígena, por parte da mãe, e era filha ilegítima, embora de boa linhagem - o que a impedia de
conseguir um bom casamento. Preferiu abandonar a posição de dama da Corte junto à
Condessa de Laguna, no Vice-Reino de Nova Espanha (México), onde sua inteligência e beleza
eram por todos celebradas, e recolher-se para sempre na Ordem das Dominicanas, para se
dedicar à escrita e à vida intelectual. Deixou obra abundante, de sonetos, villancicos, poemas
dramáticos, um longo poema, "Sonho", de quase 1.000 versos, ensaios teológicos, peças
teatrais, inclusive comédias. Também realizou pesquisas científicas em sua cela, onde chegou a
reunir uma biblioteca de 4.000 livros, a maior do Vice-Reino. Recebia a visita de intelectuais,
nobres e figuras gradas da Corte, em sua cela, para debates. Era já a aquisição do "quarto
próprio", de que nos fala Virginia Woolf, só que sob os auspícios da Igreja, mas ainda não com
a autonomia econômica que desejava a autora inglesa no celebrado ensaio A room of one's
own. Sua vida termina tragicamente, após a edição da Carta atenagórica (1690), em que o
bispo de Puebla, sob o pseudônimo de Sor Filotéa de Jesús, publicou uma censura a sua
produção científica e literária, acusando-a de autora profana, e proibindo-a de escrever. Esta
carta provoca, por parte de Sóror Juana, a famosa carta "Respuesta de la poetisa a la muy
ilustre Sor Filotea de Jesús" (1691). Este vem a ser o primeiro documento autobiográfico da
literatura feminina na América. Ali ela afirma que o conhecimento é lícito e proveitoso
também às mulheres, as quais, assim como os homens, só devem estudar se tiverem talento.
Relata que aprendera a ler aos três anos, acompanhando a irmã à escola, e que expressara o
desejo de freqüentar a faculdade vestida de homem - no que foi impedida pela família (vivia
então com o avô materno). Novamente, prenunciava muitas idéias expostas em Um quarto
próprio, de Virginia Woolf. Segundo a autora inglesa, se existisse a irmã de Shakespeare, ela
jamais obteria o sucesso do irmão ou sobreviveria sozinha na Londres elizabetana, como fez
Shakespeare. Após o terrível documento do bispo de Puebla, provavelmente inserto no
contexto da Inquisição, proibindo-a de escrever, Sóror Juana é praticamente levada ao
suicídio. Vende a biblioteca e os instrumentos científicos e trata das irmãs de caridade de sua
Ordem, vítimas da peste, até se contaminar. Para não quebrar o voto e pegar da pena, escreve
na mão, no momento da morte, com o próprio sangue: "Sou a pior mulher do mundo" - uma
confissão em que mostra a dissociação entre a liberdade de criação artística e o seu superego
relativo ao dever assumido, talvez sem uma vocação verdadeira.

Madre María Francisca Josefa del Castillo y Guevara, Madre Castillo, ou Josefa del Castillo, da
Colômbia (Vice-Reino de Granada, 1671-1742), é autora de poemas, uma autobiografia, Vida
(1. ed. 1817) e uma segunda obra em prosa intitulada, nos manuscritos, "Afectos
sentimentales", mas que é publicada com o título de Sentimentos espirituales, apenas em
1843 (vol. 1) e 1945-1946 (vol. 2). Esta já foi comparada aos escritos da madre espanhola Sóror
Teresa de Jesús, Castillo interior, o tratado de las moradas (1588). Ali se revela profundamente
mística, relatando suas iluminações, que a tornam "a esposa de Deus". As vozes que ouvia são
atribuídas ao diabo por seu confessor. Após trabalhar numa Ordem como simples leiga, lutou
contra muitos preconceitos para ser aceita como freira, exercer cargos hierárquicos, chegando
a madre superiora, por saber ler. Por isto e por provir de origem humilde, despertou
desconfiança e despeito das outras freiras. Manteve, com elas, um péssimo relacionamento,
mas uma obediência total para com os confessores. Como está longe do status culto e refinado
de Santa Teresa de la Cruz, na metrópole, esta freira de Nova Granada (Colômbia)!

BERÇO DA LITERATURA FEMININA BRASILEIRA: O ROMANTISMO

Os historiadores da literatura brasileira costumavam considerar, erroneamente, a meu ver,


como a primeira autora brasileira Teresa Margarida da Silva e Orta (São Paulo, 1711? ou
1712?-Lisboa, 1793), pois publica a novela Máximas de virtude e formosura (1752), que na
segunda edição foi intitulada por ela Aventuras de Diófanes (1773). O livro é uma adaptação
de Les aventures de Télémaque (1699), de Fénélon. Entretanto, embora tenha nascido no
Brasil - era irmã do filósofo Matias Aires - foi levada pelos pais, que eram portugueses, para
Lisboa, onde se casou, ficou viúva e depois entrou para um convento, sem mais retornar ao
Brasil. Assim, deve-se considerar a primeira autora brasileira Maria Firmina dos Reis, uma vez
que

Ana Eurídice Eufrosina de Barandas (R. S. ?) escreveu uma novela de apenas 40 páginas, de
feição romântica, acompanhada de contos curtos, intitulada O ramalhete; ou flores colhidas no
jardim da imaginação (Porto Alegre, Typ. de T. J. Lopes, 1845. 78 p.).

Maria Firmina dos Reis (São Luís, 1825-Guimarães, 1917) é provavelmente a primeira
romancista brasileira e sem dúvida a primeira maranhense, com seu Úrsula (1859). Este foi
também o primeiro romance abolicionista brasileiro. Era pobre, mulata, solteira, e foi a
primeira professora primária concursada no Maranhão. Adotou cerca de dez crianças, e
morreu pobre, cega e esquecida na cidade de Guimarães, no continente, longe da capital.
Úrsula emprega uma ótica folhetinesca e europeizante, que nada fica a dever à Moreninha, de
Joaquim Manuel de Macedo, e se assemelha ao idílio ingênuo e exacerbado de Paulo e Virgínia
(1787), de Bernardin de Saint-Pierre, obra que ela cita no capítulo 13. Escreveu poemas e
contos no Semanário Maranhense e outros jornais, e publicou o livro de poemas de cunho
lírico ou político, Cantos à beira-mar (São Luís, 1871). Escreveu também o primeiro diário de
mulher de que se tem notícia (embora publicado apenas em 1975, pelo historiador José
Nascimento Moraes Filho, integrando o importante Maria Firmina, fragmentos de uma vida).
Neste livro, Moraes Filho inclui suas composições enquanto folclorista, autora de charadas e
compositora.

PRINCIPAIS TEMAS DA LITERATURA DE AUTORIA FEMININA:

1. SUBJETIVISMO:

1.1. AUTOBIOGRAFIA, MEMÓRIAS, CONFISSÕES

Úrsula, no romance homônimo, é descrita na cena final de forma semelhante a Ofélia, louca,
delirante, vestida de branco e segurando flores. O contexto do romance é o "gótico" ultra-
romântico: vejam-se a morte da mãe da heroína, enterrada num cemitério com lúgubres aléias
de ciprestes curvados ao vento, o assassinato do noivo na porta da igreja, momentos antes do
casamento com Úrsula, pelo próprio tio, que a amava, a reclusão da noiva num convento, o
tema do quase incesto (entre tio e sobrinha), tão ao gosto do Romantismo, a conversão do
assassino (o tio de Úrsula) a padre e seu arrependimento diante da loucura ofeliana da moça.

Gertrudis Gómez de Avellaneda, conhecida como La Avellaneda (Puerto Principe, Cuba, 1814-
1873), passou parte da vida na Espanha. Escreveu poemas, romances e dramas. Sua vida se
tornou mais conhecida que sua obra. Foi cercada de lances amorosos românticos - chegou a se
isolar num convento, e se casou várias vezes. As Obras (1914-1918, 4 vol.) e Poesias seletas
(Barcelona, 1966) foram publicadas na Espanha. Retornou a Cuba coberta de fama, tornando-
se uma das mais importantes figuras do mundo literário da ilha, ficando conhecida também na
Espanha. Dos mujeres (1842) é um ataque contra o casamento, e Sab (1841) um libelo contra a
escravidão.

Juana Manuela Gorriti (Horcones, Argentina,1818-1892), a primeira escritora argentina, era


filha de um rebelde do país. Emigrou para o Peru, mantendo, em Lima, saraus literários. É
considerada escritora de reputação escandalosa e de excepcional talento, com os romances Os
amores de Hortensia (1888), Sacrifício e recompensa (1886) e Eleodora (1887), todos com
grande sabor sentimental. Seu Blanca Sol (1889) foi o primeiro romance naturalista peruano.

Júlia Lopes de Almeida (Rio de Janeiro, 1862-1934) tem ampla obra em prosa, em diversos
gêneros, do teatro ao romance, seja didático, lírico ou epistolar. Correio da roça (1913) é um
romance epistolar, didático e de formação (Bildungsroman) - aqui centrado na educação das
moças. A troca de cartas entre duas amigas apresenta, por parte da amiga da cidade,
conselhos que permitem à outra plantar e organizar um sítio para seu sustento e o de suas
filhas, depois que ficou viúva. A educadora urbana é caracterizada com o perfil da mulher
"moderna", dinânima, auto-sustentável. A outra, do campo, viúva, com dificuldades de
sobreviver, educar e casar as filhas, conforma-se com seu papel de "educanda" e "rural". Este
romance de formação (Bildungsroman) não é um convite à aventura e à manutenção da
tradição familiar, como no romance centrado no personagem masculino, mas antes se
constitui num romance de formação doméstica, caseira.

1.2. SENTIMENTALISMO MÍSTICO

Gabriela Mistral (pseud. de Lucila Godoy Alcayaga,Vicuña, 1889-Estados Unidos, 1957) foi a
única mulher na América a receber o Prêmio Nobel. Seu principal livro foi o primeiro,
Desolação (1922), refletindo profunda tristeza pessoal pelo suicídio de seu jovem amado.
Talvez este livro nunca tenha sido superado pela autora, devido a sua lírica e intensa
dramaticidade afetiva. Não traz as marcas modernistas de outros grandes nomes da literatura
de então: Joyce, Eliot, Pound, Gertrude Stein, nem os protestos nacionalistas e programáticos
do Modernismo brasileiro, de um Oswald e de um Mário de Andrade. Muitos críticos também
se indagaram se o uso imperfeito da métrica e da rima por Mistral era voluntário ou se
resultava do desconhecimento das regras de versificação. Na sua obra, marcada pela
musicalidade, destacam-se a elegia dos pequenos momentos, o despojamento, a sinceridade
nos afetos, revelando o amor de professora primária. Não teve filhos, adotando uma criança
que morreu na adolescência, o que provocou nova e profunda tristeza na autora.

Cecília Meireles (Rio de Janeiro, 1901-1964) estréia parnasiana e segue, na sua poesia, o
caminho do Simbolismo para penetrar no Modernismo, aliás, como o próprio Mário de
Andrade, que também partiu das teorias musicais simbolistas de René Ghil. Ao contrário deste,
contudo, desvia-se das ousadias experimentais e ideológicas dos modernistas, preferindo um
mundo de sentimentalismo quase místico - como o do Romanceiro da Inconfidência, no qual
compara Tiradentes a Jesus Cristo e os outros Inconfidentes aos Apóstolos.[14] Pode-se
considerar a mineira

Henriqueta Lisboa (Lambari, M.G., 1904 - Belo Horizonte, 1985) uma seguidora da poesia
modernista e profundamente lírica, mística, pessoal e despojada de Cecília Meireles e outros
poetas.

Adélia Prado (Divinópolis, M.G., 1936- ) assume abertamente, em seus livros de poesia, conto,
pensamentos e memórias, seu misticismo católico, como Gabriela Mistral, Murilo Mendes,
Jorge de Lima, Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, entre outros que a antecederam,
principalmente os poetas da fase mística conhecida como "geração de 45".

1.3. EROTISMO

Juana de Ibarbourou (Melo, Uruguai, 1892-1979), pseudônimo de Juana Fernández Morales,


ganhou o título de "Juana de América" em 1825, tal a riqueza da imagética barroca e
requintada, de exuberância erótica e exaltação da vida contida em sua poesia. Era bela, teve
fama. Escreveu a partir da matéria das recordações da aldeia indígena da sua infância. O
narcisismo, a alegria, a sensação de terra, de água - o cântaro, o poço, o lago, os cabelos
negros, o próprio corpo a fizeram escrever, unindo o amor ao momento da morte: "Caronte,
yo seré un escándalo en su barca!" Contudo, com o falecimento do marido e a perda da
beleza, entregou-se a uma poesia mais melancólica e pessimista, encerrando-se em casa,
como num túmulo. Suas principais obras foram As línguas de diamante, Raiz selvagem e O
cântaro fresco.

Delmira Agustini (Montevidéu, 1886-1914), culta e mimada menina rica, se mostra ousada na
sua poética da segunda década do século XX. Desenvolve o verso branco, moderno e
despojado em O livro branco e Correspondência, ambos influenciados pelo simbolismo
hispano-americano (chamado, na literatura hispânica, "Modernismo"), de Julio Herrera Y
Reissig, Leopoldo Lugones e Rubén Darío. Porém, envolvendo-se num casamento mal-sucedido
e condenado pela família, pois ele era um negociante de cavalos, encontra a morte pelas mãos
do próprio ex-marido. O Dicionário de literatura uruguaia insinua que um amante no meio
literário pode tê-lo levado a assassiná-la com um tiro e a atirar em si mesmo em seguida, numa
tragédia que até hoje marcou a interpretação da vida e da obra da autora, devido ao mistério
que a cerca.

Alfonsina Storni (Suíça, 1892-Rosário, 1938), ativa moça, filha de imigrantes suíços (nasce
naquele país casualmente, numa visita dos seus pais aos avós), começa a vida em Mendoza, na
Argentina, vive o drama da falência da fábrica de cerveja do pai, trabalha numa fábrica de
toucas, torna-se atriz itinerante, professora. Como Gilca Machado, Storni também viveu
dificuldades financeiras, sofreu preconceitos e teve de educar a uma filha ilegítima sozinha, o
que marcou excessivamente a orientação nas suas peças teatrais com uma revolta quase
pessoal contra o homem e o machismo. Seus poemas são incisivos e eficazes. Mas pode-se
dizer que foi, na década de 1920-30, uma feminista. Suicida-se em Mar del Plata, ao descobrir
que tem câncer, tendo antes enviado, na véspera, seu poema de despedida a um jornal. O
suicídio corta muitas carreiras de escritoras.

Josefina Plá (Paraguai, 1909- ) tem uma poesia erótica com uma forte relação com a terra, a
lama, o amor, o corpo, a vida. Suas peças teatrais mostram uma forte valorização do índio
guarani na cultura paraguaia.

Dora Acuña é outra poeta paraguaia profundamente marcada, em sua poesia, pela terra e a
sensibilidade sensorial, que se destacou com obras nas décadas de 1930 a 1950.

Gilca Machado (Rio de Janeiro, 1893-1980), de origem humilde e funcionária da Estrada de


Ferro Central do Brasil, sofreu toda sorte de preconceitos da crítica por ter expressado na sua
poesia a linguagem do sentimento e do corpo. O lançamento de seu primeiro livro, Cristais
partidos (1917), firma sua qualidade de versificadora e metrificadora e seu temário fortemente
subjetivo e erótico, ligados com pureza ao eu lírico, a suas emoções e amores. Seus demais
livros não acrescentaram muito àquela primeira obra - mesmo fenômeno que ocorre com
Gabriela Mistral. Também ela não se incorporou ao vanguardismo ou ao Modernismo
brasileiro nem na primeira nem nas fases posteriores, permanecendo ligada ao Parnasianismo.
Este não é um fato isolado na literatura feminina latino-americana, tendo ocorrido também
com Gabriela Mistral e em parte com Cecília Meireles, por exemplo. É possível que Gilca, já
viúva, falasse do imaginário do corpo - mas os críticos sempre leram sua obra não como
metáfora mas como representação do real. Isso acabou por afastar a autora da sociedade. Até
hoje a filha, detentora de seus direitos autorais, cria obstáculo para edições póstumas de sua
obra, procurando preservar uma imagem idealizada da mãe, ainda na perspectiva de que vida
é igual a obra.

Outras escritoras brasileiras que apontam para o comportamento erótico da mulher, embora
de modo velado e ligado à casa, são Carmen Dolores (pseudônimo de Emília Moncorvo
Bandeira de Melo (Rio de Janeiro, 1852-1910), no livro de contos Gradações (1897) e Maria
Benedita Bormann (Porto Alegre, 1853-Rio de Janeiro, 1895), que assinou com o pseudônimo
de Délia o romance Celeste (1893), entre outros.[15]

2. POLÍTICA

2.1. INDIANISMO

Guatimozim, o último imperador do México (1846), é um famoso romance de La Avellaneda


sobre este país e a conquista de Hernán Cortés, em que defende ardentemente a civilização
indígena, relembrando a triste lenda em que Marina, a indígena que foi forçada a ser amante
de Cortés e é execrada entre o povo mexicano, sonha em unir seu espírito ao do imperador
indígena Guatimozim, após sua morte. No México, a expressão "hijos de Malinche" (Marina)
refere-se aos traidores da pátria.

Clorinda Matto de Turner (Cuzco, Peru, 1852-1909), pseudônimo de Grimanesa Martina Mato
Usandivas, escreve Aves sem ninho (1889), romance indianista, em que o índio aparece como
vítima, sob o olhar protetor de um casal de origem espanhola, refinado, branco e bondoso, os
Marín. É do ponto de vista destes que se descreve a pobreza dos índios da vila de Killac e,
como são assassinados, apesar de todo o esforço do casal em contrário. O título se deve à
trama romântica em que dois jovens, filhos ilegítimos do padre local e uma indígena, sem que
o saibam, se apaixonam e se transformam em "aves sem ninho". Ele se torna marinheiro e ela
se casará com outro rapaz, noutro romance da autora, Herança (1895). O tema é argumento
para esta condenar a atuação do clero católico junto aos índios, explorando sua pobreza e
ignorância. De-senvolve a mesma tese em Índole (1891). Isto lhe rendeu a perseguição da
Igreja em seu país, contribuindo para seu exílio.

Maria Firmina dos Reis, com o conto "Gupeva" (publicado no Semanário Maranhense em 1870
e republicado por Nascimento Moraes em Maria Firmina: fragmentos de uma vida (São Luís,
1975), é uma das raras autoras brasileiras que se debruçou sobre o indianismo. O enredo
insinua um incesto, uma vez que Gupeva, chefe indígena, apaixona-se por uma jovem que
chega da Europa, sem saber que ambos eram filhos de um mesmo nobre francês.

Isabel Allende, já no século XX, em A casa dos espíritos, após apresentar o índio arrasado no
sul do país, ao final do livro introduz a misteriosa e mágica cultura dos índios nos altiplanos ao
norte do Chile, através de rituais aterrorizantes e fantasmagóricos - um tom já presente na
última fase da poesia de Mistral, quando ela se volta para a mesma região, envolta em
sombras, onde nascera.

Josefina Plá (Espanha, 1909- ) emigrou da Espanha para o Paraguai em 1927, com o marido,
um ceramista paraguaio. Mesmo após a morte deste, continuou morando no país. Foi
importante figura cultural no país, também ceramista, poeta, ensaísta e autora de várias peças
teatrais premiadas. Entre estas, Cenáculo Vy' à Raity, título que em guarani significa "Ninho de
alegria", centra-se num pai espanhol que não queria legitimar os cinco filhos que tivera com
uma índia guarani. A comédia Aqui não se passou nada (1942) é considerada sua melhor peça.

Rosário Castellanos (México, 1925-Tel-Aviv, 1974) apresenta uma importante obra ensaística,
antecipando algumas propostas de Cixous com relação à escrita pelo intelecto e pelo corpo - a
"écriture femme". Também poeta, foi no romance que continuou a tradição indianista
romântica, apresentando uma visão mais política do problema. É conhecida sua trilogia de
romances centrados em sua vila natal, em Chiapas, e em especial Balún Canán (1957).
Considera importante, no indianismo, não apenas a valorização sentimental do índio, como
também a possibilidade de analisar sua cultura como o berço civilizatório do México. Esta
trilogia constitui, assim, um assunto não só regionalista como político de afirmação do
nacional. É um primeiro momento de identificação da mulher com o mundo social que a cerca.

2.2. ABOLICIONISMO

Sab (1839), por Gertrudis Gómez de Avellaneda, é um romance de tese em dois volumes
escrito ao gosto de A cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe, mas se baseia numa
lenda cubana, em que um escravo apaixonado pela dona sacrifica sua vida por ela, ocultando o
caso amoroso desta com um cavalheiro indigno.

Maria Firmina dos Reis escreveu o conto abolicionista "O Escravo" (publicado no Seminário
Maranhense em 1870), reproduzindo uma conversa de salão na qual um dos convivas culpava
a escravidão por ser um anti-humanismo degradante para a sociedade.

Julia de Burgos (Porto Rico, 1914-1953) teve vida trágica, como relatado acima, em seu exílio
em Washington e depois em Nova York, vítima da pobreza e falta de trabalho, devido ao
preconceito racial. Seu poema "Ay ay ay de la grifa negra" elogia os próprios cabelos de negra.

2.3. DO REGIONALISMO À NOVELA URBANA

Embora o regionalismo tenha começado no século XIX, com o costumbrismo na América


Hispânica, entre as mulheres ele só se torna tema literário no século XX, já no estilo realista, e
é explorado, não do ponto de vista do descritivismo paisagístico, mas como observação de
desigualdades entre as classes, no contexto político-social.

Victoria Ocampo (Buenos Aires, 1890-1979) foi editora da prestigiosa revista Sur de 1931 a
1970. Por sua ousadia, foi vítima de preconceitos sociais entre outros proprietários da alta
sociedade no campo próximo à capital, por ter construído uma casa em estilo moderno.
Mulher rica, age como conquistadora e empreendedora mulher de negócios. Publica ensaios e
romances e retrata, nos sete volumes de Testimonios, a vida e o mundo literário na Europa e
na Argentina, por onde circula, íntima de intelectuais e homens de poder. Recebe Keyserling e
Rabrindanah Tagore na Argentina, tornando sua casa em Buenos Aires um verdadeiro salão
literário. Traduz e escreve sobre Virginia Woolf.

Teresa de la Parra (Paris, 1889-Caracas, 1936), depois de órfã de pai, que era cônsul
venezuelano em Paris, foi com a família de Paris para Valencia, Espanha, onde estudou numa
escola católica, e finalmente para Caracas. Permaneceu solteira, criou um grupo de escritoras
francesas e latino-americanas em 1924, foi conferencista. Seu primeiro romance, Diário de
uma senhorita que se entediava (1922), republicado como Ifigênia (1924), é um clássico do
costumbrismo, mostrando a vida em Caracas no início do século a partir de suas recordações.
As Memórias de Mama Blanca (1929), com depoimentos imaginados sobre a infância de uma
velha que vivia numa fazenda de açúcar, é considerado seu melhor livro, embora não a meu
ver. Ifigênia é um livro vivo, universal, retrato de uma época em que o "feminino" ocupava o
procênio da vida da mulher burguesa. A personagem mostrava uma preocupação exagerada
com compras, faceirice, narcisismo, casamento, vida em família, ao mesmo tempo em que
demonstrava um início de tênue luta pela liberdade. A escritura mostra, respeitando o
contexto do seu tempo, a rebeldia e a inteligência como aspectos vivos e persistentes, apesar
da repressão social, tornando a personagem, além de verossímil, altamente feminista, a seu
modo. Escapa da fantochização e da infantilização do personagem feminino, tão comuns nos
romances costumbristas ou "de época". A autora revela influência das teorias racistas de seu
tempo ao criticar a figura física do negro em Bogotá ou a petulância da mulher mulata do tio
de Ifigênia, que lhe roubou a herança paterna.

Poderíamos traçar um paralelo entre Ifigênia e o diário Minha vida de menina (1942, escrito
entre 1893 e1895), de Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant,
Diamantina, M.G., 1880-Rio de Janeiro, 1970). Este contém memórias de infância em Minas
Gerais, redigidas em estilo cativante e cultivado, como o de Mme. de Ségur, na França, mas
destituídas da visão universal, de mundo e da crítica urbana e social que encontramos na prosa
de Teresa de la Parra, principalmente em Ifigênia. O termo "costumbrismo" teria como
paralelo "romance de costumes" no Brasil, e, embora praticado aqui, no século XIX, por
Martins Pena, no teatro, e por José de Alencar, essencialmente na prosa, não encontra o
mesmo interesse por parte da crítica brasileira que por parte da crítica de língua espanhola.

2.4. ENGAJAMENTO POLÍTICO

Julia de Burgos (Porto Rico, 1914-1953) escreveu poemas políticos, de defesa da abolição da
escravatura, da independência com relação à Espanha, e poemas de negritude, anunciando-se
negra e elogiando os próprios cabelos, como em "Ay ay ay de la grifa negra". "Rio Grande de
Loíza" é um poema lírico que todos conhecem de cor em Porto Rico e que se transformou
numa espécie de culto nacional, depois da grande destruição da natureza da ilha, com o
capitalismo selvagem do Terceiro Mundo. Poderíamos traçar um importante paralelo entre
Julia de Burgos e

Maria Firmina dos Reis, cujos Cantos (1872) trazem inúmeros poemas patrióticos sobre
soldados retornados da Guerra do Paraguai, poemas abolicionistas, além do conto "O
Escravo", e sua posição abolicionista e republicana aprofundada em Úrsula (1859). Poucas
escritoras desenvolveram o espírito patriótico no século XIX, como Juana Manuela Gorriti e
Clorinda Matto de Turner. No Brasil, o espírito político-patriótico, com a exceção de Maria
Firmina dos Reis, encontra representação apenas no século XX, com Patrícia Galvão (Pagu),
que escreve Parque industrial (1933), um livro de feitio comunista.

Isabel Allende (Santiago de Chile, 1942- ) se exilou no Peru, como jornalista, e se destacou com
o romance A casa dos espíritos (1985), ainda não superado quer por seu outro romance, De
amor e de sombras (1984), quer por sua novela, Eva Luna (1987), nem por suas demais obras.
Embora denote um forte parentesco com Cem anos de solidão (Buenos Aires, 1967), de
Gabriel García Márquez, pois seu estilo também emprega o realismo mágico, o livro traz, no
entanto, como marca de originalidade, um ponto de vista exclusivamente feminino,
delineando a ação real sempre a partir desta ótica. Os diários da avó Clara, localizados pela
neta Alba, que conduz a narrativa, servem de argumento e fio condutor para que esta articule
todo o discurso fragmentado das mulheres da família e revele a alegria da descoberta do belo
e da vida, que em geral é o reprimido e o recalcado no discurso feminino.

Neste livro entre o romance e o memorialismo, ressurge o recalcado do passado feminino.


Allende mostra as atitudes patriarcais e colonialistas do avô espanhol, Estebán Trueba,
permitidas pela colonização que arrasa os índios, no sul do Chile, suas atitudes autoritárias na
fazenda, reprimindo os empregados e seus familiares, e até sua própria mulher, Clara. Esta
acaba se calando, deixando apenas os diários para a imaginação da neta Alba recortar na
criação do romance. Da vida na fazenda, o texto passa a incursionar pela atuação do avô
Esteban Trueba na política, no centro urbano de Santiago, acompanha a vida do casal dentro
da casa cheia de recordações e silêncios e as conseqüências da repressão política da década de
1970 sobre a família de Trueba. É um verdadeiro "romance de fundação" da América
Hispânica, além de se constituir num Bildungsroman feminino. Pode-se comparar a ele, em
alguns aspectos, o romance A República dos sonhos (1984), de Nélida Piñon, mas não há
muitos outros exemplos de romances semelhantes de autoria feminina latino-americana, na
atualidade. É, portanto, uma tentativa de épica chilena, na ótica feminina. Infelizmente, a
autora incide eventualmente no sentimentalismo novelesco ou na vitimização e dependência
da personagem Alba (neta e narradora). Estes aspectos denunciam uma certa imaturidade
desta obra, principalmente no seu desfecho. Alba Trueba não exerce uma escolha consciente e
política, sendo presa pelo Exército não por sua atuação política, mas por vingança pessoal
familiar. Inicialmente, na prisão, mostra um perfil vitimizado, ingênuo e dominado. A
motivação da prisão de Alba é a busca de seu namorado, o ativista Miguel. Ela se mostra
totalmente despreparada para um acontecimento desses, em plena ditadura. A dura realidade
do golpe do Estado chileno de 1973 é diluída nesta trama novelesca que se reduz ao drama
pessoal do neto ilegítimo de Trueba, que pertence aos quadros da direita e quer se vingar da
neta legítima e herdeira. Esta trama pessoal pode até parecer "justificar" torturas e choques
elétricos, e a coincidência dos dois herdeiros se enredarem nesta situação é bem ao gosto
romântico e inverossímil.

Raquel de Queirós (Fortaleza, 1910- ) sempre será lembrada por seu primeiro romance, O
Quinze (1930), que é um dos melhores do chamado "ciclo nordestino do romance de trinta".
Relata os problemas e a situação de pobreza atávica oriundos das constantes secas e
emigrações dos povos interioranos para as capitais do Nordeste, num interminável ciclo. Esta
obra sobrepuja A Bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, que, embora
cronologicamente anterior e inauguradora do ciclo da literatura regionalista, guarda um
indisfarçável tom sentimental romântico, e muito pouca preocupação com o meio ambiente e
a crítica social.

Patrícia Galvão (que tinha o apelido de Pagu, São Paulo, 1910-Santos, 1962), teve destacada
atuação no Partido Comunista Brasileiro. Foi jornalista e figura importante entre os
modernistas, chegando a casar-se com Oswald de Andrade, com quem teve um filho.
Jornalista, viajou à China, donde trouxe a semente de soja para o Brasil. Presa por suas
atividades comunistas na França, passou cinco anos encarcerada, sendo deportada para o
Brasil. A famosa revista (1945) é um livro escrito a quatro mãos com o segundo marido,
Geraldo Ferraz. Deixou alguns poemas e manuscritos, e um romance proletário, Parque
industrial (1933). Este era um retrato psicológico original do dia-a-dia das operárias numa
fábrica (no qual o marido Oswald de Andrade aparece como um burguês conquistador), e teve
de ser publicado com o pseudônimo de Mara Lobo, por exigência do Partido Comunista
stalinista de então, que o considerou excessivamente intimista. Na verdade, a autora assumia
ali, como ponto de vista, os sentimentos das proletárias ingênuas que trabalhavam na fábrica e
eram enganadas pelos homens burgueses.

3. A REVOLUÇÃO DA LINGUAGEM POÉTICA

María Luisa Bombal (Santiago do Chile, 1910-EUA, 1980) provoca uma virada da linguagem
realista-regionalista para a literatura surrealista do imaginário, sob a influência de Breton e
Borges, tendo com este travado contato pessoal. Contribuiu para a fixação da escrita feminina
enquanto expressão do imaginário, seja enquanto gênero testemunhal, seja na narrativa em
prosa, subjetiva, introjetada, enquanto poema em prosa ou romance lírico. Escreveu contos e
novelas tão enigmáticos quanto belos, de uma beleza só explicável pela simbolização de
elementos femininos recalcados.

Além de imagens surrealistas, Bombal utiliza o mito, como no conto "Tranças", em que a
mulher perde sua força ao cortar os cabelos. Em A Amortalhada (1938), posterior a Enquanto
agonizo (As I lay dying, 1930), de Faulkner, também é uma mulher de dentro do caixão (a
persona da autora) que relata a estória, mas aqui em plano imaginário e na primeira do
singular, e não como no escritor americano, no qual as falas da mãe morta são dramatizadas e
deslocadas para as pessoas da família, sendo a ação que prevalece.

Luisa Ballesteros Rosas lastima a omissão de Bombal e outras escritoras dos livros que tratam
do boom da literatura latino-americana. Considera que a mulher sempre se recusou a assumir
uma posição militante nos movimentos modernistas radicais, deixando aos homens a posição
de liderança (ver comentários acima sobre Gilca Machado, Cecília Meireles e Clarice Lispector,
com relação ao Modernismo/programático).

Silvina Ocampo (Buenos Aires, 1903- ), em parte ofuscada pelo sucesso literário e brilho social
da irmã Victoria e a atuação do marido Adolfo Bioy Casares, parceiro de Borges, deixou contos
preciosos no estilo do Surrealismo e do Realismo mágico, embora não seja citada no
movimento do boom latino-americano, como nos informa Ballesteros Rosas.

Clarice Lispector (Tchelchernik, Ucrânia, 1920-Rio de Janeiro, 1977) é, hoje,


internacionalmente conhecida, em parte pela tradução e os estudos da feminista francesa
Hélène Cixous. Aparecendo em 1944 com Perto do coração selvagem, ao lado de Guimarães
Rosa, revolucionou o modo de narrar na ficção brasileira. Mas ela assume o discurso
tipicamente feminino para desconstruí-lo de dentro, enquanto prosa poética, ao recriar a
expressão do eu feminino, que se insubordina ao mesmo tempo em que se autoquestiona,
principalmente nos seus quatro romances posteriores, A maçã no escuro (1961), A paixão
segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) e A hora da estrela
(1977). O grande avanço e a originalidade de Lispector foram a franqueza com que expressou
seu eu, numa perspectiva existencialista e psicológica, dentro de um estilo em prosa poética,
centrado no estético e na busca da identidade da mulher encerrada no lar burguês. Esta
constante busca de significados ocultos no dia-a-dia leva à descoberta do significante do eu
feminino, a partir da ótica da linguagem, ou seja, mostra que a problemática da mulher não se
esgota na aparência do mundo, por mais que ela se veja isolada do trabalho externo ou
mesmo seja reduzida à loucura (ver os contos "Amor" ou "A imitação da rosa", de Clarice
Lispector). Empregando a sutileza do humor e da ironia, própria do discurso modernista,
Lispector, como Guimarães Rosa, enriquece a literatura brasileira de uma dimensão vocabular
extraordinária e valoriza o personagem feminino e a escrita da mulher num nível universal
único na literatura brasileira.

As constantes ambigüidades e um jogo inventivo entre real e simulado não se desprendem da


verossimilhança, e passam longe do realismo mágico. Este surge, por exemplo, na obra das
brasileiras Nélida Piñon e Lygia Fagundes Teles (São Paulo, 1923- ), que faz incursões no plano
do psicológico e nas motivações internas das personagens, como no romance As Meninas
(1973), e no realismo mágico, como na coletânea de contos de Seminário dos ratos (1977),
entre outros.

Luisa Valenzuela (Buenos Aires, 1938- ) é uma jornalista que se exilou em Nova York desde
1979, onde mora e leciona. Há em sua obra, como nos mostra a intensa leitura de feministas, a
partir dos psicanalistas Deleuze e Guattari e dos escritos barthesianos, um constante
autocentramento na própria linguagem. Suas tramas enredam-se em metáforas, jogos de
palavras que se referem, sob disfarces e de forma irônica, à violência na política e no
patriarcalismo da sociedade argentina. Gilles Deleuze afirma, a respeito de Klossowski (ver
Logique du sens, 1969), que, na literatura contemporânea, o corpo desliza para a linguagem e
esta dramatiza a expressão do corpo, vivenciando-o. Noutros termos, uma sintomatologia
corporal é repassada para a linguagem, tornando-a ativa, libertária. Em Rabo de lagartixa
(1983), Valenzuela trabalha temas políticos em estilo onírico, metafórico e lírico; em Livro que
não morde (1980), coletânea de alguns contos de outras antologias, exibe a fragmentação de
idéias no uso da linguagem do cotidiano e dá vida ao significante, que ganha uma estranha
independência com relação ao significado.

Alejandra Pizarnik (Buenos Aires, 1936-1972), como Virginia Woolf, Sylvia Plath, Anne Sexton,
Ana Cristina César e, em menor escala, Clarice Lispector, freqüentou os hospitais psiquiátricos,
sofrendo os tratamentos de choque-elétrico disponíveis na época. Transforma os sintomas do
corpo e do sentimento em matéria de poesia. Ironia, solidão e metáfora impregnam A terra
mais longínqua (1966) e seus quase dez livros de poemas. O apelo sem resposta diante da
perda da identidade está claro neste trecho poético de Pizarnik: "alejandra, alejandra / por
debajo yo soy / alejandra" (La última inocencia, 1956, p. 27).

Comparando-se este trecho com o "Estou procurando, estou procurando", que abre A paixão
segundo G.H. (1964), nota-se que, apesar da constante busca de novos significados para
povoar um mundo existencialmente insatisfatório e aberto ao questionamento, Clarice
Lispector jamais em sua obra efetua a total dissociação entre o eu consciente e o eu
inconsciente, sempre se amparando no emprego do significado dicionarizado da palavra. Em
Pizarnik, ao contrário, o significante psíquico substitui o uso denotativo e o significado vulgar
dos vocábulos e o sentido é obtido através da associação de idéias do leitor, que o deduz a
partir de metáforas soltas e entrecortadas antes que de uma leitura lógica, sintagmática e
racional do texto. Em Lispector, a linguagem é vista como o espelho do real em si, a partir do
eixo da verossimilhança, e a identidade de quem narra é relativamente una e indivisível, não
fragmentária e dissociada como no discurso pós-1980. Neste tipo de prosa, a loucura invade o
discurso e a fala do eu desintegra-se ao ocorrer a identificação entre a subjetividade e a
realidade, através da linguagem metafórica. Na dissociação do eu e sua identificação com a
linguagem de expressão metafórica, Pizarnik compartilhava de um mundo onírico e poético
semelhante ao presente em Júlio Cortázar, em Jogo da Amarelinha (1963), Sérgio Sant'Anna,
em Memórias de Ralfo (1970), e Carlos & Carlos Sussekind, em Armadilha para Lamartine
(1976), falso diário no qual o filho Carlos questiona o mundo real através de uma identificação
maníaca e psicótica com o outro Carlos, seu pai, homem político, a própria Lei, cujo diário
reutiliza, em nome do pai.

Assim, para autoras contemporâneas como Pizarnik e Valenzuela, a linguagem é vista como
significante e não como significado. Esta consciência autodiscursiva, derivada da écriture
femme de Hélène Cixous, já presente no cotidiano da escrita dessas duas escritoras argentinas,
não tem correlato na escrita das brasileiras, cujo uso da linguagem liga-se ao significado, com
uma escrita em geral colada à verossimilhança na descrição do real.

Ana Cristina César (Rio de Janeiro, 1952-1983) e a poeta contemporânea brasileira Elizabeth
Veiga (Rio de Janeiro,1941- ) apresentam a fragmentação do pensamento racional, discursivo,
na perspectiva esquizofrênica de outras escritoras contemporâneas que vivem a loucura e o
exílio do social através da interiorização no eu. A fala da mulher transforma-se em bode
expiatório social ou elemento de culpa, por ela não ter a coragem de se rebelar, seja no plano
poético, seja no familiar. O medo de não exercer o papel de "uma moça bem comportada", nas
palavras de Simone de Beauvoir, acabam por transferir a rebeldia e a violência contra o mundo
em fina ironia contra si mesma. É um processo de escritura igualmente empregado por Sylvia
Plath, no qual a floração do inconsciente pode levar à autodestruição do suicídio. A teus pés
(São Paulo, Brasiliense, 1. ed. 1982) acentua a escrita "feminina" de modo quase parodístico,
exagerado, posto que o discurso do imaginário, vivido sintomaticamente na cena viva do
próprio corpo (que eventualmente se fragmenta e se mata, como a própria fala), situa-se na
crítica irônica de conteúdos marcados tipicamente como da mulher: luvas, chá, gentileza,
suavidade, sutileza, delicadeza, educação e finura. A violência reprimida na fala reaparece sob
o fantasma da morte e da dissociação do eu.

Cada vez mais os meios de comunicação de massa afastam na literatura a possibilidade de


praticarem o experimentalismo na linguagem - como ocorreu nas décadas de 1960-70 na
França e, entre nós, com Clarice Lispector e Guimarães Rosa.

As autoras contemporâneas brasileiras Lygia Fagundes Teles (São Paulo, 1923- ), Lya Luft
(Porto Alegre, 1938- ) e Patrícia Bins (Rio de Janeiro, 1930- ), bem como Heloísa Maranhão,
Sonia Nolasco, Sonia Coutinho, Helena Parente Cunha são algumas das que têm buscado
encontrar, na tragédia individual urbana, uma leitura do imaginário feminino - suas crises
existenciais, sua insegurança social, psicológica e financeira, seus traços de diferença com
relação ao patriarcalismo e a ordem estabelecida, mostrando coragem para romper estruturas
da sociedade falocêntrica e patriarcal, expressas, na literatura, através de um texto realista,
linear e autoritário, tão bem aceito pelas obras dirigidas ao sucesso editorial.

CONCLUSÃO

Desde o Barroco, morte e vida, erotismo, narcisismo e suicídio surgem através da busca da
morte procurada por Sóror Juana Inés de la Cruz. O gênero "biográfico" e "memorialista"
(depoimentos, diários, cartas, testemunhos) que apareceu na Europa e outros países, com
George Sand e Virginia Woolf, se expandiu no século XIX, e pode ser encontrado em Anais Nïn,
Anne Sexton, Sylvia Plath; mas, na América Latina, já estava presente em Madre Castillo,
Alfonsina Storni, Alejandra Pizarnik e Ana Cristina Cesar - sendo o suicídio apenas uma faceta
externa da imagem de autosacrifício e melancolia presentes nas letras pós-simbolistas e
decadentistas, onde o ego erótico não cabe em si e se transborda na morte.

Para além da explicação psicanalítica, o fracasso em se encontrar o sublime kantiano no


período pós-romântico - que no teatro e na poesia romântica autobiográfica de La Avellaneda
é puro sucesso - explica-se pela dificuldade que sentem as escritoras, no mundo real
contemporâneo do fazer, quando já não é possível continuar a exercer um papel puramente
literário no plano do imaginário e da sublimação. Superar a barreira do real e penetrar no
mundo do trabalho, do concreto, do reconhecimento literário é o lento caminho da escritora
contemporânea. O fracasso da escritora em conseguir penetrar no cânone literário
falocêntrico - como no caso de Gilca Machado, ou no suposto suicídio de Benedita Bormann -
pode levá-la à denegação da vida e ao exílio social. Por outro lado, a atuação de Victoria
Ocampo, que fundou a revista Sur e nos deixou o amplo depoimento sociopessoal
Testemunho, em seis volumes, mostra que a escrita da mulher não precisará ser sempre uma
Via-crucis do corpo, para relembrar título de obra de Lispector.

O erotismo na poesia do século XX esteve acompanhado de uma profunda consciência da


iminência da crise e da morte, em Alejandra Pizarnik e em Ana Cristina César, com
fragmentação, loucura, desespero, suicídio - mas já era traço latente na poetisa Sóror Juana
Inés de la Cruz ou na vida social reclusa de Juana de Ibarborou. Esta inclinação para a morte, a
auto-reclusão, a auto-consumação com traços de expiação da culpa, que são traços
recorrentes na escrita feminina, que assassina aos poucos o próprio corpo, também pode se
deslocar simbolicamente para um objeto imóvel, como na identificação da narradora de La
última niebla (1935), de María Luisa Bombal, com a árvore, o fruto, a terra, a natureza.

Uma nova épica feminina pode ser vislumbrada a partir do romance de fundação de Isabel
Allende, A casa dos espíritos (1982), paralelamente à nova ficção feminina negra brasileira da
década de 1970. A prosa e a poesia que tentam apresentar uma mulher ousada,
independente, não vitimizada pela sociedade patriarcal, na verdade constituem uma tentativa
de criar uma nova expressão rebelde ou autoassertiva da mulher - enquanto grupo não
passivo, e como uma alteridade na sociedade pós-moderna. Esta nova linguagem empresta,
efetivamente, um papel ativo à mulher na ficção, e sem dúvida terá um efeito importante na
sua relação com a história da literatura escrita por homens, como um todo.[16]

Em meio a um panorama tão pessimista na literatura feminina da América Latina, reprimido


entre o narcisismo e a viagem interior,[17] talvez sejam Allende e Lispector as pioneiras na
apresentação de um quadro mais combativo e revolucionário rumo a esta nova épica, urbana
e afirmativa para a mulher, afastada do regionalismo ou do didatismo moralista do
Bildungsroman, que ainda mascaravam a situação de dependência psicológica e econômica da
mulher. Neste caso, a forma didática e distanciada de tratamento do tema feminino não
considera a subjetividade e a identidade da mulher, afastando-se do ponto de vista feminista.
É claro que suas heroínas ainda não são modelos totalmente autônomos de mulheres, mas tais
modelos deverão aparecer com maior freqüência, na medida em que se estabeleça uma
sociedade menos patriarcal na América do Sul, que ofereça a todos melhor acesso ao saber, ao
trabalho, à leitura e à escrita.

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Notas:

[1]Ver Hélène Cixous, "Sorties", in La jeune née, Paris, 1975, cit. in Rita Terezinha Schmidt, "Re-
pensando a cultura, a literatura e o espaço da autoria feminina", p. 182-89, in Márcia Hoppe
Navarro, org. (1995), p. 186. Retorna ao texto
[2]Toril Moi, "Feminist, female, feminine", in Moi, The feminist reader (1989), p. 117-32. p.
124. Retorna ao texto

[3]Ver Irigaray, Le temps de la différence (1989), p. 19-52. Retorna ao texto

[4]Toril Moi, "Feminist, female, feminine", in Moi (1989), p. 120. Retorna ao texto

[5]Ver, a respeito, Gerda Lerner, The creation of feminist consciousness (1993). Lerner informa
que, na metade do século XII, as reformas da Igreja, e em especial do celibato clerical, o
refinamento da lei canônica e o seguro monopólio da Igreja sobre a educação melhoraram a
condição dos padres, mas ao mesmo tempo o papel da mulher, pouco educada e considerada
incapaz do ofício clerical, tornou-se inferiorizado. A situação era outra durante a fase pietista e
idealista da Igreja, no século XI, com as reformas gregorianas, que tornaram a Igreja mais
popular e concediam a padres e freiras importância igualitária dentro dela. Retorna ao texto

[6]Ver Luiza Lobo, "O Leitor", p. 231-51, especialmente p. 231, in José Luís Jobim, org., Palavras
da crítica (1992), p. 231-51. Ver, para a história da literatura de autoria feminina européia,
Gerda Lerner (1993); norte-americana, Gilbert e Gubar (1984); francesa, Camille Aubaud
(1993); para a de autoria feminina da América Latina, Luisa Ballesteros Rosas (1994); para a
literatura de autoria feminina mundial, o Bloomsbury guide to women's literature (1992), para
o qual escrevi a introdução (capítulo 23) e 150 verbetes sobre América Latina. Retorna ao texto

[7]In Irigaray, Le temps de la différence (1989), p. 53-78, p. 55; ver Irigaray, Speculum de
l'autre femme (1974), p. 277-79. Retorna ao texto

[8]Ver Luiza Lobo, "Dez anos de literatura feminina brasileira", in Luiza Lobo (1993); e Luiza
Lobo, "O Leitor", in José Luís Jobim (1992), p. 231-51, p. 231 ss. Retorna ao texto

[9]Luisa Ballesteros Rosas (1994), p. 276. Retorna ao texto

[10]Elaine Showalter, A literature of their own (1982), p. 13. Retorna ao texto

[11]Diana Vélez, "Julia de Burgos", in Diane E. Marting, org., Escritoras de Hispanoamerica


(1990), p. 89-97. p. 91. Retorna ao texto

[12]Sobre a literatura afro-brasileira, ver meu Crítica sem juízo (1993). Retorna ao texto

[13]Diccionario Oxford de literatura española e hispano-americana (1984), p. 47. Retorna ao


texto

[14]Ver meu "O Romanceiro da Inconfidência", in Perspectivas, Rio de Janeiro, UFRJ, Depto. de
Ciência da Literatura, 1984, p. 109-15. Retorna ao texto

[15]Tive a oportunidade de editar obras de autoras como Maria Firmina dos Reis, Maria
Benedita Bormann, Júlia Lopes de Almeida, entre outras, através da Coleção Resgate, do INL-
Pró-Memória com a Editora Presença, entre 1987 e 1991. Retorna ao texto

[16]Com respeito ao papel de alteridade no mundo capitalista, ver, de Baudrillard, L'Échange


symbolique et la mort (1976). Baudrillard atribui a mulheres e negros um papel importante na
sociedade capitalista, por estarem fora da cadeia sintagmática reduplicadora de signos que
acabam por tender à morte, na sua infinita indiferenciação. Retorna ao texto

[17]Ver, de Irma Garcia, Promenade femmilière (1981). Retorna ao texto

Luiza Lobo é professora de Literatura Comparada e Teoria da Literatura na Faculdade de Letras


da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou, entre outros livros, Épica e modernidade
em Sousandrade (1986), O haikai e a crise da metafisica (1992), Crítica sem juízo (1993), e
cerca de 30 traduções, entre as quais obras de Virginia Woolf, Jane Austen, Edgar Allan Poe e
Robert Burns, edição bilíngüe com introdução e notas (1994). Seu último ensaio publicado no
exterior foi "Sonia Coutinho revisits the city", em Latin American Women's Writing. Feminist
readings in theory and crisis (Oxford, Clarendon Press, 1996).

E-mail: luizalobo@openlink.com.br

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