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Vitor Alexandre de Freitas A abordagem sociotécnica na investigação e na pre-

Cardoso2
Henrique Luiz Cukierman3
venção de acidentes aéreos: o caso do vôo RG-2541
Sociotechnical approach to investigation and prevention of air-
craft accidents: the case of flight RG-254

1
Artigo baseado na Dissertação Resumo
de Mestrado de Vitor Cardoso,
orientada por Henrique Cukier- Este artigo apresenta estudo de caso do acidente ocorrido com o vôo RG-254 da
man, intitulada O estudo sociotécnico
Varig, em setembro de 1989. Partindo de informações de investigações oficiais,
da interface “ser humano-máquina”
envolvendo computadores: o caso de publicações, material audiovisual, entrevistas com envolvidos no acidente e
um acidente aéreo, apresentada especialistas em segurança de vôo, os autores re-analisam o acidente com en-
à Coordenação dos Programas de foque sociotécnico referenciado na teoria ator-rede e no conceito de acidente
Pós-Graduação de Engenharia da “normal”. O texto apresenta novo entendimento para a investigação de aciden-
Universidade Federal do Rio de tes na aviação criticando a tradicional repartição de causas entre os chamados
Janeiro em 2004. fatores “humanos”, “técnicos” e “operacionais” e sugere aplicação do conceito
2
Universidade do Estado do Rio de de multicausalidade que não se restringe à mera listagem de “fatores contri-
Janeiro, Diretoria de Informática buintes”, mas que analisa as relações entre atores-redes envolvidos no sistema
(Dinfo). Rio de Janeiro, Brasil. de aviação em que ocorreu o acidente. O acidente do RG-254 é descrito como
3
Universidade Federal do Rio de Ja- sintoma do rompimento de relações entre os atores que atuam no sistema.
neiro, Coordenação dos Programas
Palavras-chaves: acidentes aeronáuticos, teoria ator-rede, acidente “normal”.
de Pós-Graduação de Engenharia
(Coppe), Centro de Tecnologia. Rio
de Janeiro, Brasil.
Abstract
This article presents a case study of the accident with Varig flight RG-254
in September 1989. Using as starting point the official investigation data,
publications, audiovisual material and interviews with those involved in the
accident as well as flight safety specialists, the authors re-analyze the accident
through a sociotechnical focus, which is based on the actor-network theory and
concepts of “normal” accident. The text presents a new understanding of aviation
accident investigation and it reviews the traditional terms of investigation
based on a rigid division between “human”, “technical” and “operational”
factors. It also suggests the application of the multi-causality concept, which
is not restricted to a mere list of “contributing factors”, but which analyzes the
relationships among the actor-networks involved in the aviation system where
the accident occurred. The RG-254 accident is described as a symptom of the
rupture of relationship among those acting in the system.
Keywords: aviation accidents, actor-network theory, “normal” accidents.

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Introdução: a investigação de acidentes aeronáuticos no Brasil

O objetivo deste artigo é rever as inves- De acordo com o Código de Ética do


tigações do acidente ocorrido no dia 3 de SIPAER, a separação de suas atividades
setembro de 1989, no trecho entre Marabá das investigações jurídicas e criminais
e Belém, com o vôo RG-254 da Varig. In- confere-lhe isenção e eficácia. Sua análise
vestigações prévias do evento são re-anali- seria “técnica”, desvinculada do juízo de
sadas como fonte de possível aprendizado valor que apura a culpa ou a responsabi-
e, portanto, de novas contribuições para a lidade. Por essa razão, o relatório final da
prevenção de acidentes. De acordo com o investigação das causas do pouso forçado
Anexo 13 à Convenção de Aviação Civil In- do PP-VMK foi remetido à Polícia Federal
ternacional de Chicago, intitulado “Investi- com o seguinte esclarecimento:
gação de Acidentes Aeronáuticos”:
V - Pelo exposto, concluímos que os tra-
o único objetivo da investigação de um balhos desenvolvidos pelo CENIPA não se
acidente ou incidente será a prevenção assemelham às diligências desenvolvidas
de acidentes e incidentes. Não é propósito pelos organismos de Segurança Pública,
desta atividade atribuir culpa ou respon- como também não possuem caráter judi-
sabilidade. cial com vistas à apuração de responsabi-
lidade civil ou criminal. É competência do
O Serviço de Investigação e Prevenção CENIPA a orientação, a supervisão, o con-
4
Em http://www.cenipa.aer.mil.br/ de Acidentes Aeronáuticos (SIPAER) foi trole, o planejamento e a atualização do
paginas/historico.htm (revisitado criado em 1951. Vinte anos depois, surgiu o Sistema com a finalidade de incrementar
em julho de 2007). Obs.: Em 2007, e desenvolver os mecanismos de Preven-
CENIPA como seu órgão central. No Depar-
os endereços de páginas do ção de acidentes e de incidentes aeronáu-
CENIPA voltaram a ser como eram tamento de Aviação Civil (DAC), o elo com
o CENIPA é a Divisão de Investigação e Pre- ticos, visando o aumento da Segurança de
em 2003: “www.cenipa.aer.mil. Vôo no País.
br/...”. Ao menos em setembro de venção de Acidentes Aeronáuticos (DIPAA),
2006, porém, eram: “www.cenipa. que tem a função de investigar os acidentes É importante dizer que, transcorridos
aer.mil.br/port/...”, (língua portu- da aviação civil e emitir as recomendações quase vinte anos desde o acidente com o
guesa), indicando que poderiam vir de segurança aplicáveis, além de outras RG-254, o arcabouço das investigações
a existir versões em outras línguas. atividades que previnam os acidentes aero-
Caso essa iniciativa venha a ser
permanece baseado em três grupos de fa-
retomada, os endereços poderão
náuticos. Por força do decreto nº 87.249, de tores: técnicos, humanos e operacionais.
vir a ser alterados novamente. 7 de junho de 1982, o CENIPA passou a ser Em 2006, foi concebido o novo Sistema de
uma organização autônoma. As autoridades Gerenciamento Integrado da Prevenção
5
Norma NSCA 3-12 – Código de da Aeronáutica substituíram o caráter poli- de Acidentes Aeronáuticos (SIGIPAER)
Ética do SIPAER, 3 de junho de cial dos trabalhos pelo objetivo de aprender para atender:
2002. com os acidentes:
a necessidade crescente de trabalhar com
(...) uma nova filosofia foi então criada o maior número de informações possível
6
Em http://www.cenipa.aer.mil. e começou a ser difundida. Os aciden- e a oportunidade de se empregar toda a
br/sigipaer/sigipaer.htm (revisitado tes passaram a ser vistos a partir de uma modernidade da TI em favor da segurança
em julho de 2007). perspectiva mais global e dinâmica. A da atividade aérea.6
palavra inquérito foi incondicionalmente
7
Em http://www.cenipa.aer.mil. substituída. As investigações passaram a Dentre os documentos normativos que
br/paginas/trm.htm (revisitado em ser realizadas com um único objetivo: a o consubstanciam, está a norma NSCA 3-6
julho de 2007). ‘prevenção de acidentes aeronáuticos’.4 – Investigação de Acidente Aeronáutico, In-
cidente Aeronáutico e Ocorrência de Solo,
Portanto, de acordo com sua missão
na qual não houve qualquer alteração, ou
declarada, a investigação do SIPAER busca
seja, o modo de investigar mantém-se basea-
apurar um acidente única e exclusivamen-
do nas mesmas divisões em fatores pré-es-
te para prevenir futuras recorrências:
tabelecidos e com as mesmas restrições de
Todo procedimento judicial ou admi- abrangência que apontaremos adiante.
nistrativo para determinar a culpa ou
responsabilidade deve ser conduzido de Em 2007, em seu sítio oficial7, o CENIPA
forma independente das investigações do continua afirmando que “o homem ainda é
SIPAER. Esta natureza sui generis de in- o grande ‘vilão’, responsável pelo sucesso
vestigação, que é conduzida pelo SIPAER, ou insucesso da aviação”. Diz, ainda, que
é conseqüência da aplicação e observância os profissionais que desempenham as ati-
do estabelecido no Anexo 13 à Convenção
vidades inerentes ao sistema complexo do
de Chicago sobre Aviação Civil Internacio-
nal, recepcionada pelo ordenamento jurí- mundo aeronáutico “têm participado ativa-
dico brasileiro e nas normas de sistema do mente como um dos fatores contribuintes
Comando da Aeronáutica, bem como na para a ocorrência de inúmeros acidentes
Legislação que as precede e autoriza.5 aeronáuticos”.

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Entre os aspectos destacados neste ar- queda do Boeing da Gol parece ter reitera-
tigo estão as críticas à maneira “fatorada” do o insólito das circunstâncias do acidente
com que a investigação oficial lida com a com o Boeing da Varig (ambas as circuns-
noção de multicausalidade e à atribuição tâncias parecem “impossíveis” de ocor-
de culpa. A investigação oficial permane- rer), as primeiras reações das autoridades
ce estruturada em grupos de fatores técni- aeronáuticas e da imprensa infelizmente
cos, humanos e operacionais que acabam coincidem nos mesmos erros. Só podemos
limitando o seu alcance. A abordagem so- nos lamentar de que, passados 17 anos do
ciotécnica adotada neste estudo introduz acidente da Varig, as explicações das altas
novos termos a serem considerados em in- autoridades requentem a mesma cantilena
vestigações de acidentes. dos “fatores técnicos e humanos”, enquan-
to a imprensa se repete na busca de um “vi-
No momento em que era concluída a
lão” a ser oferecido à execração pública.
revisão deste artigo, aconteceu outro aci-
dente na mesma região do ocorrido com o Esse novo acidente mostra a atualidade
RG-254, dessa vez, envolvendo o vôo 1907 de muitas das reflexões apresentadas neste
da Gol. Essa não é a única coincidência. O texto e indica a necessidade de urgente am-
leitor poderá perceber que, se a tragédia da pliação do debate sobre esse tema.

Elementos metodológicos para a investigação sociotécnica de um


acidente

Os autores desenvolveram estudo de mero de referências a documentos oficiais


caso de acidente com o vôo RG-254, em e páginas da internet dedicados à seguran-
setembro de 1989 no Brasil. São múltiplas ça na aviação.
as razões que justificam a escolha do caso.
As informações coletadas foram organi-
Entre outras, vale destacar: a) a enorme
zadas e re-analisadas com o apoio de enfo-
repercussão do acidente, respaldada seja
ques teóricos da teoria ator-rede e do con-
no número de aspectos envolvidos cita-
ceito de acidente “normal” do sociólogo
dos como inusitados, seja no número de
Charles Perrow (1999). Essas abordagens
vítimas fatais e de sobreviventes de pouso
são apresentadas a seguir:
realizado em plena selva amazônica; b) a
profusão de documentos e material infor- O foco nas relações: a teoria ator-rede
mativo disponível sobre o acidente, c) as
Segundo John Law (1992):
características adotadas na investigação
oficial do acidente no setor aéreo, fragmen- ...os agentes sociais nunca estão localiza-
tando a exploração da contribuição dos dos unicamente em corpos mas, ao con-
múltiplos fatores identificados como parti- trário, um ator é uma rede moldada por
cipantes do acidente. relações heterogêneas, ou um efeito pro-
duzido por este tipo de rede. O argumento
Os materiais ou as fontes de informação é que pensar, agir, escrever, amar, traba-
explorados neste estudo incluem relatórios lhar por um salário – todos os atributos
de investigação do acidente elaborados por que normalmente atribuímos a seres hu-
manos, são gerados em redes que atraves-
organismos oficiais e profissionais da área,
sam e se ramificam, ao mesmo tempo, no
publicações e materiais audiovisuais divul- corpo e além do corpo. Daí o termo ator-
gados na imprensa especializada e leiga, rede – um ator é também, e sempre, uma
entrevistas com sobreviventes do acidente rede. (p. 384)
e especialistas em segurança de vôo, acesso
a fontes de informações especializadas dis- Portanto, a teoria considera reducionis-
ponibilizadas em meio eletrônico. A lista tas as versões segundo as quais as relações
detalhada de fontes consultadas e os res- materiais determinam as relações humanas
pectivos endereços pode ser encontrada no ou vice-versa. Supõe, ainda, que o humano
texto completo da dissertação de mestrado e o técnico são inseparáveis e que não há
(CARDOSO, 2004) que serve de base a este uma diferença fundamental entre pessoas
artigo. O estudo original inclui notas indi- e objetos. John Law (1992) argumenta que
cativas das fontes (declarações pessoais, pessoas são o que são por serem uma rede
publicações, relatórios oficiais, entrevistas ordenada de materiais heterogêneos:
etc.) de todas as afirmações apresentadas Se você levasse de mim meu computador,
no relato do caso, assim como grande nú- meus colegas, meu escritório, meus livros,

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minha mesa de trabalho e meu telefone, A pontualização
eu não seria um sociólogo que escreve
artigos, ministra aulas e produz ‘conhe- Se explicamos um vôo sem incidentes
cimento’. Eu seria uma outra coisa, e o como o resultado da estabilidade de uma
mesmo é verdade para todos nós. Portan- rede obtida pela associação entre humanos e
to, a questão analítica é essa: um agente não-humanos, que a mantêm e a expandem,
é primariamente um agente porque habi- a queda do avião deve ser explicada como
ta um corpo que carrega conhecimentos, conseqüência do enfraquecimento e da rup-
habilidades, valores e tudo o mais? Ou
tura dessas associações e, portanto, da de-
porque habita um conjunto de elementos
(incluindo, obviamente o corpo), mas que sestabilização e do colapso da rede. Mas que
se estende por uma rede de materiais, so- rede é essa? Afinal, o que as pessoas fazem é
máticos ou não, que envolvem cada cor- apenas “pegar um avião”. O que mais há por
po? (p. 383-384) trás disso? Para responder a essa pergunta, é
preciso recorrer ao conceito de “pontualiza-
Em uma rede, cada ator é diferente do
ção”. John Law (1992) explica:
que era antes de se associar a outros atores,
ou seja, um ator é modificado por suas rela- Por que apenas de vez em quando toma-
ções. Portanto, um piloto-sem-avião é dife- mos consciência das redes que estão por
rente de um piloto-com-avião e, da mesma trás dos atores, objetos e instituições?
Por exemplo, para a maioria de nós, e na
forma, um avião-sem-piloto é diferente de
maior parte do tempo, a televisão é um ob-
um avião-com-piloto. Essa atitude analítica jeto simples e coerente com relativamente
que obriga a não considerar em separado o poucas partes aparentes. No entanto quan-
piloto (o campo das “falhas humanas”) do do ela deixa de funcionar, rapidamente,
avião (o campo das “falhas técnicas”) ou, ela se torna para esse mesmo usuário – e
melhor ainda, que tem de apreender de mais ainda para o técnico de manutenção
um mesmo “golpe” esse “quase sujeito”, – uma rede de componentes eletrônicos e
o “piloto-avião”, ou esse “quase objeto”, intervenções humanas (...). (p. 384)
o “avião-piloto”, aplica-se a todos os ato- …se uma rede age como um bloco único,
res da rede. Ao discutir a relação entre o então ela desaparece, para ser substituída
humano e a arma de fogo, Bruno Latour pela própria ação e pelo autor aparente-
(1999) esclarece com muita propriedade mente simples daquela ação. Ao mesmo
tempo, o modo como o efeito é gerado
a respeito desses híbridos de humanos e
também é apagado: para aquele momento,
não-humanos, desses “quase sujeitos” e isso não é visível nem relevante. Ocorre
“quase objetos”: então que algo muito mais simples – uma
...quem é o ator: a arma ou o cidadão? televisão funcionando, um banco bem ge-
Outra criatura (uma arma-cidadão ou um renciado ou um corpo sadio – surge, por
cidadão-arma). Se tentarmos compreen- um tempo, para mascarar as redes que o
der as técnicas presumindo que a capaci- produzem. Os estudiosos da teoria ator-
dade psicológica dos humanos está fixada rede falam de tais efeitos simplificadores
para sempre, não conseguiremos perceber precários como pontualizações (...) (p.
como as técnicas são criadas ou, sequer, 385, grifo nosso)
de que modo são usadas. Você, com um
Alguns tipos de ordenamento de redes
revólver na mão é uma pessoa diferen-
te. (...) essência é existência e existência
tornam-se mais abrangentes, mais robustos
é ação. Se eu definir você pelo que tem e são executados mais amplamente. For-
(um revólver) e pela série de associações a mam “pacotes” aos quais podem ser atri-
que passa a pertencer, então você é modi- buídas, de maneira sempre precária, carac-
ficado pelo revólver – em maior ou menor terísticas que parecem “inerentes”, todavia
grau, dependendo do peso das outras as- mais ou menos estáveis, constituídas por
sociações que carrega. (p. 206) um processo de “engenharia heterogê-
À luz da teoria ator-rede, o que tem de nea”. A partir desse ponto, se esses orde-
ser analisado são as relações entre os di- namentos podem tornar-se, por exemplo,
versos atores humanos e não-humanos “agentes, dispositivos, textos, conjuntos de
que, combinados, justapostos, associados relações organizacionais relativamente pa-
e, principalmente, indissociáveis, se pro- dronizados – qualquer um ou todos esses”
punham a levar a cabo a missão de partir (LAW, 1992, p. 385), igualmente podem ser
de Marabá e chegar a Belém com conforto, desfeitos. Ao chamar a atenção para a pre-
economia e segurança em aproximadamen- cariedade desses efeitos ordenadores, John
te quarenta e cinco minutos. Algumas des- Law (1992) acaba por enunciar as condi-
sas relações não se mantiveram estáveis, ções de possibilidade de um acidente:
sofreram modificações, enfim, desfizeram- (...) a engenharia heterogênea não pode
se, e a missão fracassou. estar certa de que todos [os ordenamen-

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tos] funcionarão conforme previsto. A é a pontualização escolhida. Não é um ator,
pontualização é sempre precária, enfrenta é a própria rede. Ao mesmo tempo, afirma-
resistência e pode degenerar em uma rede ções de que o “piloto aterrissou”, “o avião
falha. (p. 385)
sobrevoou” ou “a Varig informou” são o re-
Voltemos à pergunta: quem voa? Quais sultado da necessidade do uso de metoní-
os atores (ou melhor ainda, os atores-re- mias com a finalidade de evitar repetições
des) que se tornam “invisíveis” com a pon- de palavras e, portanto, são pontualizações,
tualização da rede? O avião é montado a pois quem aterrissa é o conjunto formado
partir de uma infinidade de componentes. por piloto, co-piloto, avião com combustí-
Por sua vez, a empresa de aviação possui vel, pontos fixos sinalizadores, operadores
prédios, licenças, funcionários de vários em terra, aeroporto etc.
tipos, passageiros, aviões, ferramentas de Apenas para exemplificar, o CENIPA é
manutenção, fornecedores de refeições e um dos atores-redes que emergem da “invi-
uma lista interminável de outros “compo- sibilidade” que gozava enquanto a rota aé-
nentes”, parceiros e relações. Os pilotos rea funcionava sem problemas. O fracasso
(piloto e co-piloto) foram capacitados, têm de um vôo torna “visíveis” os atores-redes e
habilidades específicas, licenças para pilo- as relações de uns com os outros. A Boeing,
tar determinados tipos de aeronave, víncu- os operadores de vôo, o Sindicato Nacional
los empregatícios e muitas outras relações. dos Aeronautas e a própria Varig, dentre
Latour (1999) explica: outros, surgem em cena e passam a ser per-
A atribuição a um ator do papel de primei- cebidos somente após o acidente.
ro motor de modo algum cancela a neces-
sidade de uma composição de forças para Crítica à “neutralidade” e à “objetivida-
explicar a ação. É por engano ou improprie- de” dos fatos
dade que nossas manchetes proclamam:
Após o acidente, são produzidas histó-
‘Homem voa’ ou ‘Mulher vai ao espaço’.
Voar é uma propriedade de toda a associa- rias, seja por parte dos órgãos oficiais rela-
ção de entidades, que inclui aeroportos e cionados à aviação civil, seja por instâncias
aviões, rampas de lançamento e balcões de da justiça ou pela imprensa, que visam con-
venda de passagens. O B-52 não voa, a For- tar / espelhar “a verdade”. Por ora, para ilus-
ça Aérea Americana voa. A ação não é uma trar a “objetividade” dos fatos, vamos nos
propriedade de humanos, mas de uma as- ater ao relatório final oficial elaborado pelo
sociação de actantes8. (p. 209-210) órgão de investigação e prevenção de aci- 8
Bruno Latour (1987) utiliza a no-
Portanto, quem voava não era o Boeing dentes. O relatório é aguardado pelas partes ção de ator no sentido semiótico
envolvidas no acidente como o documento – e por isso mesmo algumas vezes
737, mas a Varig (evidencia-se sua recente ele fala em actantes: um ator ou
quase falência). Por outro lado, este artigo técnico-científico produzido por experts ca- actante se define como qualquer
não se refere ao fato genérico de essa orga- paz de dirimir todas as dúvidas sobre o aci- pessoa, instituição ou coisa que
dente e suas causas. Bruno Latour (1987), tenha agência, isto é, que produza
nização manter aviões tripulados trafegan- efeitos no mundo. Na acepção
do entre aeroportos, mas a uma instância ao se referir a textos que constituem fatos de Latour, um actante é caracte-
específica da atividade de transporte de científicos, oferece subsídios para avaliar rizado pela heterogeneidade de
suas certezas com mais cautela: sua composição: ele é uma dupla
passageiros dessa operadora. Tudo é espe- articulação entre humanos e não-
cífico: o avião, o trajeto, a data (e, portanto, O objetivo de convencer o leitor não é humanos e sua construção se faz
por exemplo, as condições climáticas), os em rede.
atingido automaticamente, mesmo que
operadores em terra, os tripulantes e todos o escritor goze de alto prestígio; as refe-
os demais atores da rede. Até mesmo o fato rências têm de ser bem arranjadas, e as
de estar ocorrendo um jogo de futebol de evidências contrárias inteligentemente
interesse de boa parte da população brasi- desqualificadas. Nem mesmo todo esse
trabalho é suficiente, por uma boa razão:
leira naquela data pode ter tido sua parcela
seja o que for que um artigo faça à literatu-
de contribuição para o desfecho do vôo. ra anterior, a posterior lhe fará o mesmo.
Uma passagem de avião identifica a (…) uma afirmação é fato ou ficção não
por si mesma, mas apenas pelo que outras
instância de “deslocar-se de A até B” pelo
fazem delas posteriormente. (p. 38)
número do vôo e pela data. RG-254 era
uma classe de vôos, isto é, de operações Por analogia, pode-se afirmar que o re-
de transporte aéreo de passageiros, partin- latório final do CENIPA não é constituído,
do de São Paulo e chegando a Belém, com em si mesmo, de “fatos científicos”. Ele
escalas. A parte alfabética do código, RG, é entendido como tal justamente porque
significa rio-grandense e identifica a opera- os que o aguardam lhe atribuem essa ca-
dora Varig (Viação Aérea Rio-Grandense). racterística. Assim, ao citá-lo fartamente
O vôo RG-254 de 3 de setembro de 1989 é a em processos administrativos e judiciais,
instância que estamos estudando, ou seja, usando suas afirmações como sendo “ver-

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dades constatadas”, as partes contenciosas e organismo, somos todos cyborgs. Nossa
as tornam ainda mais “constatadas”. cultura, a cultura das tecnologias da infor-
mação de uma forma mais ampla e a dos
Os objetivos declarados do órgão de
computadores em particular, é uma cultura
investigação são a neutralidade e a busca
cyborg, na qual não há diferenças práticas
da fidelidade ao ocorrido, mas os partici-
entre pessoas e objetos.
pantes de sua elaboração e os elementos de
análise considerados relevantes são alista- Por meio da ligação provida pela inter-
dos por meio de negociações complexas, face humano-máquina, entendemos que o
muitas vezes nem sequer percebidas como piloto, o co-piloto e o avião são imbrica-
uma negociação. Por exemplo: quem é de- dos uns aos outros, conectados por meio
signado para a investigação? O conteúdo e de emissores e receptores de mensagens,
as conclusões do relatório surgem do es- provendo informações ou decodificando-
clarecimento de opiniões contrárias umas as, reagindo ou não a elas. São botões,
às outras, de análises em laboratório e de olhos, teclas, alavancas, ouvidos, pedais,
sua interpretação por especialistas que telas, narizes, visores de cristal líquido,
informam os resultados obtidos. Enfim, o mãos, braços, pernas e todo o corpo, fo-
conteúdo do relatório oficial não é a óbvia nes de ouvido, alto-falantes, microfones,
realidade dos fatos. É o resultado do desfe- sinais sonoros, vibrações, bocas, odores,
cho de uma série de controvérsias resolvi- temperaturas e diversos outros “conecto-
das ao longo da investigação, ou seja, é o res”. A bordo, o piloto e o co-piloto são
resultado das forças de argumentação de cyborgs, com capacidade de transportar,
humanos e não-humanos e, portanto, o re- voando. O avião, por sua vez, tornou-se
latório não é “naturalmente técnico” (nem mais semelhante à Discovery “governa-
“neutro”). A respeito do texto técnico, La- da” por HAL, o computador do filme 2001
tour (1987) esclarece:
– Uma Odisséia no Espaço. Embora não
A distinção entre literatura técnica e a seja uma “mente”, o computador de bor-
restante não é obra de fronteiras naturais; do também tem “responsabilidade”, pois
trata-se de fronteiras criadas pela despro- toma decisões sobre o vôo – automatica-
porcional quantidade de elos, recursos e
mente – a partir da informação de uma
aliados disponíveis. (p. 62)
direção, de uma distância e dos demais
O cyborg parâmetros necessários. O elemento “pu-
ramente” humano passou a interagir (e a
Para alguns autores, uma nova ordena-
confundir-se!) com um computador.
ção social, científica e tecnológica emerge
como uma nova condição, a condição “pós- Acidente “normal”
humana”, na qual o humano se constitui
como um híbrido de organismo e máqui- As definições de sistema, na teoria ge-
na: o cyborg. ral de sistemas, utilizam expressões como
“unidades inter-relacionáveis” “de partes e
O termo cyborg consagrou-se na área elementos interdependentes” e “inter-rela-
acadêmica graças ao artigo de Donna Hara- ção das partes”9.
9
Dicionário Eletrônico Houaiss. way (1991), The Cyborg Manifesto, até hoje
uma das mais influentes contribuições da Charles Perrow (1999) afirma que tec-
área. Em 1963, pesquisando as maneiras nologias de alta complexidade, como as
de “engenheirar” o ser humano para o vôo plantas de energia nuclear, armas nuclea-
espacial tripulado, a NASA publicou um res, produção de DNA recombinante ou
relatório no qual cunhou o termo cyborg a navios transportando cargas altamente
partir das sílabas iniciais de cybernetic or- tóxicas ou explosivas, por exemplo, têm
ganism. Donna Haraway (1991) aproveitou alto risco potencial para catástrofes. Se-
para conferir surpreendente dimensão po- gundo ele, esses sistemas têm o potencial
lítica e conceitual ao termo. O cyborg, defi- de apresentar interações complexas, ou
nido como um híbrido de máquina e orga- seja, aquelas em que um componente pode
nismo, constitui-se como uma criatura tão interagir com outros componentes em se-
socialmente real quanto ficcional, a quem qüência não esperada ou não planejada e,
cabe habitar um mundo ambiguamente na- também, não visível ou não imediatamente
tural e construído. No mundo do terceiro compreensível. Por isso, acidentes nesses
milênio, no mundo da alta tecnologia, ain- sistemas são inevitáveis ou “normais”. Essa
da segundo Donna Haraway (1991), somos possibilidade é descrita como característi-
todos quimeras, somos todos teorizados ca desses sistemas e não de uma peça ou de
e fabricados como híbridos de máquina um operador em particular. Perrow a deno-

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mina “complexidade interativa” e a explica Charles Perrow afirma que, a despeito
conforme se segue: de toda a segurança obtida com a alta qua-
Se complexidade interativa e forte aco-
lidade dos equipamentos dos aviões, com a
plamento – características dos sistemas – redundância10 e com os projetos razoavel-
mente sensíveis aos problemas dos “fatores
10
Como é sabido pelos conhece-
produzirão inevitavelmente um acidente,
dores do assunto, diversos equipa-
acredito que se justifica que o chamemos humanos”, os acidentes aéreos irão acon-
mentos de interação humana com
de acidente normal, ou acidente de sis- tecer. Estudos tradicionais indicam que de a máquina são duplicados. Dessa
tema. A estranha denominação acidente 50 a 70 por cento dos acidentes originam-se forma, piloto e co-piloto têm a
normal tem a intenção de indicar que, da- de erro humano. Ao criticar um desses es- oportunidade de confirmar (ou
das as características dos sistemas, múl-
tudos, Perrow aponta seu ceticismo quanto não) as interações um do outro.
tiplas e inesperadas interações de falhas
à classificação das causas dos acidentes Além disso, sistemas que, em caso
são inevitáveis. Esta é uma expressão de
aéreos em “erro do piloto”, pois reconhece de falha, impossibilitariam a nave-
uma característica integral de um sistema,
gabilidade são também duplicados
e não uma declaração de freqüência. Mor- que a expressão engloba convenientemen-
para que o sistema de reserva
rer é normal para nós, mas só morremos te todos os percalços cuja verdadeira causa possa entar em funcionamento
uma vez. Acidentes de sistemas são inco- é incerta, complexa ou “embaraçosa” para em qualquer momento que se faça
muns, até mesmo raros; mas, se eles po- o sistema. Afirma ainda que a incerteza e necessário.
dem produzir catástrofes, isso não é assim a complexidade são causas identificadas e
tão tranqüilizador. (PERROW, 1999, p. 5)
que “embaraçosa” é uma forma alternativa
O reconhecimento da complexidade in- de dizer “culpem a vítima” ao invés de cul-
terativa dos sistemas permite uma melhor par os donos do sistema:
compreensão sobre acidentes: Portanto, podemos concordar (…) que a
É possível analisar essas características atribuição de erro ao piloto é um conve-
especiais e, ao fazê-lo, ganhar uma com- niente ‘saco-de-gatos’. Erros de pilotos ou
preensão muito melhor do porquê dos de tripulantes com certeza existem. Pilo-
acidentes nesses sistemas, e do porquê tos não são mais infalíveis do que proje-
eles sempre acontecerão. Se sabemos tistas ou empreiteiros. Mas a complexida-
disso, então ficamos em melhor posição de e o acoplamento do sistema parecem
para argumentar que certas tecnologias responder por um significativo número de
deveriam ser abandonadas, e que outras, acidentes. (ibidem, p. 134)
as quais não podemos abandonar porque
construímos muito de nossa sociedade em Enfim, se o acidente é “normal”, con-
torno delas, deveriam ser modificadas. O forme preconiza Charles Perrow (1999),
risco nunca será eliminado de sistemas de temos que aprender a conviver com ele.
alto risco e, na melhor das hipóteses, não Como aprender a conviver com um ar-
eliminaremos mais do que alguns poucos tefato gigantesco que “por um bit” pode
desses sistemas. No entanto, deveríamos produzir uma catástrofe? A cada acidente
no mínimo parar de culpar as pessoas
ocorrido, é preciso que haja uma investiga-
erradas e os fatores errados, bem como
parar de tentar consertar os sistemas de
ção que traga, efetivamente, os elementos
uma maneira que só os torna ainda mais de aprendizado. É importante não lançar
perigosos. (ibidem, p. 4) mão do artifício simplório de se culpar a
vítima. Além disso, para que esse apren-
Perrow (1999) chama a atenção para dizado possa ser apropriado pelo maior
processos cujo desenrolar é rápido, que número possível de pessoas às quais cabe
não podem ser desligados, e nos quais os contribuir para a prevenção de acidentes,
componentes que falharam não podem é preciso que a investigação seja “aberta”
ser isolados dos demais. É o que Perrow e, portanto, não deve ser tratada como
chama de “acoplamento forte”, típico de questão de segurança nacional.
sistemas em que os processos não podem
esperar, pois seus resultados ou produtos Convivemos, num passado recente,
sofrem alteração com o passar do tempo ou com acidentes ambientais causados por
têm um tempo de transformação definido vazamentos de óleo de dutos e terminais
(como no caso de uma reação química, de derivados de petróleo, com “apagões” e,
por exemplo) e a seqüência de operações especificamente em relação aos artefatos
a serem efetuadas é mais rígida (como no que voam, com o acidente no lançamen-
caso de uma instalação nuclear) do que em to do VLS-1 (Veículo Lançador de Satéli-
sistemas cujo acoplamento é mais fraco. tes), ocorrido em Alcântara em 2003, de
Além disso, de forma geral, são processos cuja investigação a sociedade civil pouco
cujo projeto permite apenas uma forma de ou nada participou. A despeito de todo o
atingir o objetivo (por exemplo, uma ins- avanço que se tenha alcançado, ainda te-
talação nuclear não pode utilizar carvão mos muito a aprender sobre como apren-
nem óleo combustível). der com os acidentes.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007 85


Resultados e discussão

O Acidente tipo de referencial para navegação. Uma


outra referência para a orientação do vôo
O vôo RG-254 ia de São Paulo a Belém
teria sido o sinal emitido em Tucuruí com
com escalas em Uberaba, Uberlândia, Goiâ-
o propósito de orientar aviões. Localiza-
nia, Brasília, Imperatriz e Marabá. O pilo-
do à esquerda na rota de Marabá a Belém,
to e o co-piloto assumiram a aeronave, de
naquele fim de tarde, por conta do erro de
matrícula PP-VMK, em Brasília. No último
navegação, postou-se à direita da aeronave.
trecho, Marabá-Belém, a operação da ae-
No entanto, o piloto não confirmou esse si-
ronave foi assumida pelo piloto, que leu o
nal porque Tucuruí não era um ponto mar-
Rumo Magnético na Folha de Planejamento
cado na navegação da Varig para aquele tre-
de Vôo: 0270. Ele ajustou o valor no equi-
cho. Também se costuma verificar o rumo
pamento do avião para 270, sentido leste-
a adotar em cartas de navegação existentes
oeste. O co-piloto ajustou o equipamento
a bordo das aeronaves e que se classificam,
no seu lado do painel do avião para o mes-
quanto à altitude do vôo, em cartas de “bai-
mo valor. O rumo correto a ser ajustado se-
xa” ou de “alta”. Para o vôo RG-254 estava
ria 027, sentido sudoeste-nordeste (se fosse
estabelecida uma altitude que determinava
zero, seria sul-norte).
o uso destas últimas. Todavia, o trecho Ma-
A Varig havia mudado o sistema com- rabá-Belém, não constava das cartas de na-
putadorizado (em terra) e a representação vegação de alta altitude (tais mapas eram
do rumo no documento usado pelos pilo- confeccionados para atender os interesses
tos (impresso por esse sistema) incluía um da navegação aérea internacional, cujas ro-
zero a mais à direita do número, em verda- tas não abrangiam esse trecho, de interesse
de uma casa decimal usada sem a vírgula unicamente doméstico).
que lhe antecederia e que, portanto, deve- Às 17h58, o piloto pediu permissão
ria ser desprezada. Começava aí uma sé- para pousar em Belém e a obteve11, mas
11
Depoimento registrado no rie de pequenos eventos que, justapostos, permaneceu sem contato pela freqüência
mesmo processo. combinados e interagindo entre si de forma de longo alcance (HF) durante aproxima-
inesperada iriam resultar no acidente. damente 20 minutos. Às 18h20, informou
Donald Mackenzie (1996) se refere que continuava sem contato pela freqü-
aos efeitos de pequenas diferenças desse ência de menor alcance (VHF) e solici-
tipo sobre “máquinas inteligentes” quan- tou permissão para prosseguir descendo,
do discute a introdução de computadores sendo novamente autorizado. Às 19h06, o
digitais ou, mais genericamente, de dispo- RG-254 informou estar com 01h40 de au-
sitivos eletrônicos programáveis em siste- tonomia e o Centro de Controle de Área
mas complexos: (ACC)12 quis saber se a aeronave estava re-
12
“Area Control Center”(ACC): tem cebendo marcações (sinais emitidos para
sob sua jurisdição o espaço aéreo Sistemas digitais são caracterizados pela
orientação) de Belém. A resposta foi que
controlado a partir de um limite descontinuidade de efeitos como função
inferior sobre o solo. O de Belém de suas causas. Há uma amplificação não somente as radiodifusoras locais estavam
é localizado no aeroporto interna- usual dos efeitos de pequenas mudanças. sendo recebidas. O Centro Belém autori-
cional Val-de-Cans. A mudança de um bit de informação pode zou a descida para 2000 pés (aproximada-
ter efeitos devastadores. (p. 209) mente 600 metros). Embora não houvesse
sequer um sinal da aproximação do avião,
Algumas medidas de redução de custos
a autorização foi concedida porque:
por parte da Varig sobrecarregavam os pilo-
tos, tais como fazer com que os aviões per- quando o piloto solicita autorização de
manecessem em torno de apenas quinze início de descida, a aeronave ainda está
a uma distância tal que os tripulantes não
minutos nos aeroportos, bem como reduzir
podem ver as luzes da cidade.13
13
Depoimento no mesmo processo. o pessoal de apoio em terra. Como tinham
que cuidar de várias tarefas, a recomenda- Perguntado se havia algum problema
ção da empresa para que os pilotos reali- técnico com a aeronave14, o piloto respon-
14
Depoimento no mesmo processo. zassem uma checagem do plano de vôo em dia apenas “aguarde”.
relação a uma carta de navegação acabou
O relatório final do Centro Nacional
não sendo cumprida naquele dia.
de Prevenção de Acidentes Aeronáuticos
Às 17h35, hora local, o PP-VMK deco- (CENIPA), órgão do governo responsável
lou. Nem o piloto nem o co-piloto verifica- pela investigação, não se refere a nenhum
ram a posição do sol naquela hora. Afinal, contato entre Belém e o avião entre 19h06
já havia muito tempo que não se usava esse e 19h42. Foram aproximadamente 40 mi-

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nutos sem contato direto com um avião Todo mundo estava escutando o jogo,
autorizado a voar a 600 metros de altitude, inclusive eu. Cheguei a comentar com o
que deveria ter pousado havia 25 minutos! co-piloto que a aviação naquele dia estava
um perigo. Até o controlador de vôo estava
Durante o tempo em que ficou sem travar
ouvindo o jogo. (grifo no original)
contato, o piloto tentou localizar-se por
mapas de navegação, pelo radar na função Além disso, um pouco depois das 18h,
mapeamento, e pela sintonia com as esta- o Brasil marcou um gol e, em torno de
ções comerciais de rádio de Belém. Não 18h30, uma torcedora lançou um foguete
conseguiu. Passou, então, a tentar identifi- sinalizador que explodiu próximo ao golei-
car alguma pane nos instrumentos de rá- ro chileno, o que causou a interrupção do
dio-navegação. Às 19h42, um Coordenador jogo. A seguir, a seleção chilena deixou o
de Busca e Salvamento assumiu a posição campo e, próximo às 19h, o juiz deu o jogo
no Centro Belém e estabeleceu contato com por encerrado. Na época, as emissoras de
o RG-254. rádio comerciais eram obrigadas, por lei, a
informar, em intervalos regulares de tem-
Como o PP-VMK havia decolado às po, seu prefixo, a freqüência em que trans-
17h35 e o tempo de vôo estimado era de mitiam e sua localização, justamente para
aproximadamente 45 minutos, deveria ter poderem ser utilizadas como auxílios na
chegado às imediações do aeroporto por orientação de navegantes. E, de fato, essa
volta das 18h20. Como não chegou nos trin- foi uma das formas pelas quais o piloto e
ta minutos subseqüentes à hora prevista, foi o co-piloto tentaram localizar-se. Sintoni-
declarado pelo ACC de Belém em situação zaram o equipamento do avião na freqüên-
de “Incerteza”. Por mais que o piloto qui- cia de determinadas emissoras, mas, em
sesse esconder que estava perdido, já estava função de um fenômeno chamado “propa-
claro para todos os que haviam estabelecido gação ionosférica”, receberam sinais de ou-
contato que havia algo muito estranho com tras, que transmitiam na mesma freqüência
aquele vôo. Somente quatro horas após a das que eram procuradas, mas a partir de
decolagem, foi declarada a fase de “Perigo”. municípios muito mais distantes do que
O Centro de Belém não conseguiu con- aqueles dos quais deveriam ter recebido
tato por VHF. Soube que a aeronave não as transmissões. Além disso, essa mesma
estava recebendo marcações dos auxílios reflexão de ondas, provocada pelas condi-
de Belém e não obteve resposta a várias ções meteorológicas, fazia crer que o sinal
chamadas para a aeronave. Então, acionou vinha de uma direção (e sentido), quando,
o Sistema de Chamada Seletiva (SELCAL15) na verdade, vinha de outra. E, como se não
com sucesso e se satisfez com a informa- bastasse, muitas das rádios estavam trans- 15
Selective Calling: sistema de
mitindo o jogo de futebol e, no calor da comunicação de rádio de aero-
ção do comandante de que o vôo prosse-
emoção causada pelo incidente em campo, naves comerciais alocado a uma
guia para Santarém, muito distante da rota aeronave em particular, usando
original, inexplicavelmente. seus locutores esqueceram-se de informar
abreviatura de quatro dígitos: por
seu prefixo e todas as demais informações. exemplo, o Boeing 777-200 da
Por sua vez, a Varig também acompa- Por causa disso, a tripulação não pode se Saudi Arabian, de prefixo HZ-AKA,
nhava sua programação de vôos através de assegurar de que havia conseguido locali- tem o SELCAL PS-BF (Disponível
um setor então conhecido por “Coordena- zar o sinal esperado. Finalmente, depois de em: http://www.jetsite.com.
ção”, que, eventualmente, acionava as ae- longa busca por dados que pudessem me- br/2006/busca_terminologia.
ronaves, via sistema de comunicação de lhor orientá-los, o co-piloto consultou uma asp?termo=todos. Acesso em:
longo alcance conhecido pela sigla HF. En- carta de navegação e verificou que o rumo jul. 2006).
tretanto, naquele dia, a aeronave ultrapas- de chegada em Belém era 027 e não 270, o
sou o tempo de vôo estimado pelo piloto que confirmou com um segundo mapa.
no seu contato inicial sem que o setor res-
ponsável efetuasse qualquer chamada para Durante seus últimos trinta minutos de
alertar, informar ou auxiliar a tripulação. vôo, o RG-254 recebeu diversas marcações
de rádio emitidas continuamente por equi-
Naquele mesmo domingo, com início pamentos em terra, chamados NDB’s (Non-
marcado para as 17h, a seleção brasileira Directional Beacon), com o objetivo especí-
de futebol jogava uma partida decisiva em fico de orientar aeronaves. Esses emissores
sua classificação para a Copa do Mundo de geram também um sinal de identificação
1990, contra a seleção do Chile, no estádio em código Morse que consiste em duas ou
do Maracanã. No domingo seguinte ao do três letras, repetidas três vezes a cada 30 se-
acidente, em 10 de setembro de 1989, liam- gundos. Os pilotos do PP-VMK, esperando
se no jornal O Globo as palavras de um pi- receber o sinal de Carajás, captaram o sinal
loto a respeito do que podia ser relevante emitido em Barra do Garças, no Mato Gros-
em relação ao futebol: so. Procuraram também sinais emitidos de

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007 87


Marabá, mas os receberam de Goiânia, que já havia descoberto que ele e o co-piloto ha-
emitia na mesma freqüência e cuja identifi- viam introduzido um valor errado para esse
cação em código Morse não era recebida de parâmetro de vôo. A bússola simplesmente
forma contínua. Por mais de uma vez, a fre- mostrava que o avião seguia em direção e
qüência procurada com vistas à localização sentido ajustados pelos tripulantes16.
16
A despeito de toda a oposi- foi encontrada, mas, em todos os casos, a
ção dos pilotos à divulgação do As conclusões da investigação oficial e a
origem do sinal era diferente da suposta e,
conteúdo do gravador de voz, “neutralidade” técnica
nesse caso, assim como em outros, portanto, se considerada, só poderia levar a
ocorreu um “vazamento”, pois conclusões erradas. Coincidências! O relatório final da análise do acidente
um trecho foi ao ar no programa
Em entrevista ao jornal O Globo, em 10 do vôo RG-254 apresenta os “fatores contri-
Fantástico da TV Globo em 1997. buintes”, divididos em “humano”, “mate-
Esse mesmo trecho e mais outros de setembro de 1989, o comandante do RG-
254 revelou que duas semanas antes havia rial” e “operacional”. Na primeira das três
dois podem ser encontrados na
se envolvido em pequeno acidente, em Pa- classificações, foram identificados nove fa-
Internet. A semelhança da voz em
meio digital com a da televisão e o ramaribo, no Suriname. Naquela ocasião, tores concernentes a erros cometidos pelos
fato de não haver nenhuma contes- de acordo com suas palavras, à noite, no pilotos, todos de ordem psicológica. A pes-
tação nos permitem concluir pela pátio dentro da área de manobra, a ponta quisa concluiu pela não existência de “fato-
veracidade das gravações. da asa da aeronave que conduzia raspou res materiais” e, por fim, na terceira catego-
uma escada que seria utilizada pelos ocu- ria, com sete itens, cinco foram atribuídos
pantes de uma outra aeronave que estava aos pilotos, um ao plano de vôo computa-
pousando. Afirmou também que, em con- dorizado e outro à falta de um contato por
seqüência das pressões que a Varig vinha rádio por parte da coordenação de vôo da
exercendo sobre os pilotos, ficou receoso Varig. Em suma, de um total de dezesseis
quanto à possibilidade de a companhia vir “fatores contribuintes”, concluiu-se que
a demiti-lo caso revelasse novo problema, quatorze correspondiam à forma de pensar
dessa vez, o de um avião perdido entre Ma- ou de agir dos pilotos. Os outros dois fo-
rabá e Belém. Teria sido esta a razão pela ram atribuídos à Varig, um pela má repre-
qual havia tentado a todo o custo resolver o sentação do rumo magnético (com quatro
problema sozinho. Porém, o que ele não sa- dígitos em vez de três) e outro pela falta de
bia é que vários eventos, os quais individu- contato com os pilotos mesmo após o signi-
almente poderiam ser considerados insig- ficativo atraso do pouso em Belém. Todos
nificantes, se combinariam de tal maneira os “fatores contribuintes” são apresentados
que ele e seu co-piloto, sem alternativa, associados a quem os originou, isto é, aos
acabariam sendo obrigados a efetuar ma- pilotos ou à Varig. Dessa forma, o CENIPA
nobra inusitada para um Boeing 727. Para expede o certificado de posse das obras
aquele gigante automatizado, não existiam (causas) a seus obreiros (culpados).
instruções a respeito de procedimento tão É digno de nota mencionar que um
excepcional quanto uma tentativa de pou- exemplar do relatório encontra-se integral-
so controlado sobre as copas das imensas mente anexado ao processo iniciado pelo
árvores amazônicas. Ministério Público Federal contra o piloto
O pouso forçado na floresta amazôni- e o co-piloto17. Portanto, como se vê, ape-
17
O Ministério Público Federal sar do esforço para ser apenas “técnico”,
(MPF) de São Paulo apresentou
ca ocorreu em São José do Xingu, estado
denúncia contra os pilotos. O juiz do Mato Grosso, a 1.100 quilômetros do leia-se “neutro”, o conteúdo do relatório é
federal de São Paulo que recebeu destino pretendido. O desconhecimento apropriado até mesmo pelos tribunais, sen-
a denúncia declarou a incompe- sobre sua rota era tal que o avião só foi lo- do traduzido (ou traído!) de acordo com os
tência de sua Seção para julgar o calizado cerca de 44 horas após o acidente. objetivos de quem o cita. Suas conclusões
caso e o encaminhou a seu colega Dentre os 54 ocupantes, 12 faleceram, 17 foram utilizadas como argumentos tanto
do Mato Grosso, que a acatou. O ficaram gravemente feridos e 25 tiveram pela defesa quanto pela acusação no pro-
processo é o de nº 91.1227-0, da cesso judicial movido contra o piloto e co-
ferimentos leves.
Justiça Federal, Seção Judiciária de
piloto. Foi também utilizado pelos próprios
Mato Grosso. Os diálogos registrados na caixa-preta juízes em suas decisões.
revelam a dramaticidade dos últimos mo-
mentos antes do impacto do pouso for- Apesar da insistência do CENIPA na
çado. Ao comunicar aos passageiros que “neutralidade” de seu relatório final, a teo-
havia ocorrido uma pane dos sistemas de ria ator-rede nos fornece subsídios para
bússola, o piloto dava a entender que o(s) afirmar que ela não é possível. Primeira-
problema(s) era(m) técnico(s). Mas, ao res- mente, porque a neutralidade faria supor
ponder a um colega de profissão da mesma uma separação apriorística entre o técnico
companhia, foi evasivo, afirmando que a e o social. Mais ainda, a suposta “neutrali-
bússola indicava uma proa diferente da de dade” também fica em xeque pelo fato de
Belém, e omitiu que, embora tardiamente, que o órgão não tem controle sobre as apro-

88 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007


priações do seu texto por advogados, promo- envolveu o primeiro da nova geração do
tores e juízes. E estes últimos são produto- altamente computadorizado avião ‘fly-
res de textos jurídicos que têm efeito social, by-wire’, o Airbus A320, um dos quais se
isto é, sobre a vida das pessoas. O CENIPA chocou contra um terreno montanhoso
após uma descida rápida demais, à noite,
não tem como separar o “técnico” do poli-
com mau tempo, no Aeroporto de Stras-
cial e do jurídico. Ironia, neste caso, é que as bourg-Entzheim. (...) a hipótese central
autoridades aeronáuticas insistem em infor- dos investigadores é de que o piloto e o
mar que existe uma clara divisão entre seus co-piloto, ambos mortos no acidente, po-
órgãos ou procedimentos. Há os que podem dem ter tentado instruir o sistema de con-
punir (Inquérito Administrativo) e os que trole-de-vôo para que efetuasse a descida
não o fazem em hipótese alguma (CENIPA). a um ângulo suave de 3,3º mas, por enga-
Mas é com base no que conclui o segundo no, instruíram-no a descer à taxa extrema-
que a justiça criminal condena. mente elevada de 3300 pés por minuto.

Reducionismo para culpar versus desva- As causas de acidentes são pesquisadas


necimento de fronteiras para aprender na busca de explicação linear, seqüencial,
com fronteiras bem definidas. Os investi-
Ao longo dos processos tradicionais de gadores usam sistematicamente forma as-
identificação de causas e da conseqüente simétrica de analisar fatores, atribuindo
atribuição de culpas, os atores da rede que diferentes graus de influência a cada um
mantinha o vôo funcionando tornam-se deles, dividindo-os em humanos e técni-
partes estanques umas em relação às ou-
cos. Mackenzie (1996, p. 202) acrescenta
tras e se envolvem em controvérsias, em
de forma esclarecedora:
um esforço de se livrarem da imputação de
penas. Nos casos em que houve falha na in- Essas disputas de atribuição de culpa
teração entre o humano e a máquina, esses turvam aquele que é tipicamente o ponto
contraditórios procuram estabelecer fron- chave. Muitos dos sistemas envolvendo
computadores, que sejam críticos quanto à
teira entre “fatores técnicos” e “fatores hu-
sua segurança, baseiam seu funcionamen-
manos”, procuram estabelecer traçado que
to seguro na correção do comportamento
exclua cada um dos oponentes da “área de tanto de seus componentes técnicos quan-
culpa”. Essa preocupação leva cada parte a to de seus componentes humanos. Assim
excluir algumas das causas ou a lhes atri- como a falha de componentes técnicos é
buir gradações de importância, dando ên- tipicamente esperada como uma contin-
fase às que lhes convêm, o que pode fazer gência previsível (contra a qual se criam
com que se deixe de identificar algumas defesas duplicando ou triplicando suas
delas. Por outro lado, as causas eleitas pe- partes chave), a falha humana também
los contenciosos são minuciosamente ana- deveria ser esperada e, tanto quanto pos-
sível, permitida.
lisadas e discutidas.
O acidente brasileiro de 1989 com o Em um vôo estão associados os pas-
Boeing 737-200 tem semelhanças extra- sageiros, a empresa de aviação e o Estado
ordinárias com o acidente ocorrido em (por meio de regulação e infra-estrutura).
1992, na França, envolvendo um A320 da O avião e os tripulantes são parte da em-
Airbus, no qual parece também ter havido presa de aviação. A empresa construtora
problema de interação entre o homem e a da aeronave está associada à aeronave até
máquina e não de mau funcionamento de pela forma como a denomina: um Boeing,
algum equipamento. No caso francês, o jato um Airbus etc. Assim, um passageiro voa
chocou-se contra uma montanha quando num Boeing da Varig, uma empresa que
efetuava os procedimentos de aproxima- “prima pela segurança, tem ótimos pilotos,
ção do aeroporto à noite. A provável causa e efetua serviços de manutenção em aero-
foi a introdução de um valor errado pelos naves estrangeiras em solo brasileiro”18. E
se um piloto da Varig falhar? Afinal, quem
18
Entrevista pessoal concedida em
pilotos nos sistemas computadorizados do
19 de setembro de 2003.
avião. A descrição de Mackenzie (1996, p. voa? Latour (1999, p. 221-222) surpreende
204) evidencia as semelhanças com o aci- a este respeito ao afirmar que:
dente do RG-254: os artefatos reais são sempre partes de
Incidentes aéreos também são casos em instituições, hesitantes em sua condição
que tipicamente não há evidência de mau mista de mediadores, a mobilizar terras
funcionamento técnico, mas onde os pro- e povos remotos, prontos a transformar-
blemas parecem advir da interação do se em pessoas ou coisas, sem saber se são
humano com um sistema automatizado. compostos de um ou de muitos, de uma
O mais recente desses acidentes foi foco caixa-preta equivalente a uma unidade ou
de intenso e minucioso exame porque de um labirinto que oculta multiplicida-

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des (MACKENZIE, 1990). Os Boeings 747 no acidente, “nada há a fazer”. Se sobrevi-
não voam, são as linhas aéreas que voam. veu e foi eliminado da aviação, o “mal foi
O fato de haver uma rede sustentando sanado” e, de novo, nada mais há a fazer
a execução do vôo não implica na diluição ou aprender. Especificamente sobre o pi-
da responsabilidade e, portanto, que não se loto, na semana do acidente, o jornalista
deva punir ninguém por princípio. Ao con- Franklin Martins afirmou, em tom de re-
trário, todos devem assumir sua responsa- preensão, pelo Sistema Brasileiro de Tele-
bilidade perante a sociedade e responder visão (SBT):
por seus erros. As diversas causas devem O Ministério da Aeronáutica podia ado-
ser entendidas de forma sistêmica, com en- tar uma providência, mandar incluir no
foque na interdependência entre os compo- currículo das escolas que formam pilotos,
nentes do sistema e na interação entre as fa- uma nova matéria: humildade. Quando
lhas. Em suas conclusões do capítulo sobre um piloto se sentir perdido lá em cima
com um avião de passageiros, o melhor é
morte acidental relacionada a computador,
reconhecer o erro, dar a mão à palmatória
Mackenzie (1996, p. 210) afirma que: e pedir socorro. Afinal, modéstia e água-
Mortes acidentais relacionadas com com- benta nunca fizeram mal a ninguém.
putador parecem ser causadas mais por
interações de fatores técnicos e cogniti-
O CENIPA declara que “é da análise
vos/organizacionais do que apenas por técnico-científica de um acidente ou inci-
fatores técnicos; acidentes relacionados dente aeronáutico que se retiram valiosos
com computador podem, portanto, fre- ensinamentos” e que “esse aprendizado,
qüentemente ser melhor entendidos como transformado em linguagem apropriada, é
acidentes de sistema. traduzido em Recomendações de Seguran-
Vale a pena apontar uma aparente con- ça”. Porém, vale a pena abordar sociotecni-
tradição na lógica corrente do alcance das camente como se constitui a absoluta con-
investigações. Se, por exemplo, um piloto fiabilidade da análise técnico-científica na
arremessa propositalmente um avião con- medida em que seus resultados são tidos
tra um edifício, parece não haver o que dis- como “neutros” e “objetivos”. Bruno Latour
cutir. Não é óbvio que a culpa é do piloto? (1987) esclarece-o quando, ao referir-se ao
Pouco há que se investigar, além do fato trabalho de cientistas e engenheiros, mos-
de seus problemas psicológicos não terem tra que “Natureza” e “Ciência” só podem
sido identificados a tempo. No entanto, no ser compreendidas como construções,
caso da tragédia do World Trade Center, como resultados de longos embates ocor-
parte da complexidade do sistema de avia- ridos em meio a inúmeras controvérsias.
ção foi claramente apontada. Os aeropor- Somente quando elas se encerram, graças
tos, por exemplo, foram destacados como à mobilização de inúmeros aliados na for-
parte do sistema e as falhas em sua segu- mação de uma rede cujas relações sejam
rança emergiram na discussão com conse- fortes o suficiente para consolidarem-na
qüências em todo o mundo. Pouco se falou e manterem-na estável, é que a “verdade
dos pilotos que tomaram as aeronaves de científica” se estabelece. Mais especifica-
assalto e as conduziram contra os prédios. mente, Latour (1987, p. 258) propõe duas
Por outro lado, nesse caso emblemático, as regras metodológicas a respeito de Nature-
relações “institucionais” da organização za e Sociedade:
terrorista com seus “pilotos” (clandestinos) Como a solução de uma controvérsia é a
foram amplamente explicitadas. E as in- causa da representação da Natureza, e não
vestigações tiveram abrangência suficiente sua conseqüência, nunca podemos utili-
para alcançar outro continente, onde pos- zar essa conseqüência para explicar como
sivelmente estava a pessoa apontada como e por que uma controvérsia foi resolvida.
Como a solução de uma controvérsia é a
responsável pelo evento.
causa da estabilidade da sociedade, não
Enquanto o aprendizado coletiviza, a podemos usar a sociedade para explicar
acusação individualiza. O estabelecimento como e por que uma controvérsia foi diri-
de fronteiras bem definidas entre “fatores mida. Devemos considerar simetricamen-
te os esforços para alistar recursos huma-
humanos” e “fatores materiais (ou técni-
nos e não-humanos.
cos)” e a atribuição de culpa exclusiva-
mente ao(s) piloto(s) constituem uma forte Ao refletirmos sobre essas regras, aper-
ameaça à oportunidade de aprendizado, cebemo-nos de que, ao contrário do que
isto é, de obtenção de condições de maior Latour adverte e de acordo com nossa for-
segurança na aviação. Com base nessa di- mação tradicional, tem-se a impressão de
visão, se o piloto foi “o culpado” e morreu que a natureza é a causa óbvia da conclu-

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são a que chegam os cientistas. Dessa for- tos”. Envolvem hibridismo, relações (e não
ma, não notamos que suas representações, apenas actantes), forma de pensar (atitude)
que nos vão sendo transmitidas ao longo diante da assunção de que os sistemas, ine-
da vida, uma vez assimiladas, passam a ser vitavelmente, sofrerão acidentes em decor-
percebidas como uma “essência”, algo que rência de interações inesperadas entre seus
sempre existiu, mas que apenas ainda não componentes, desconstrução de fronteiras,
havia sido descoberto ou inventado pelo relativização da “certeza obtida cientifica-
cientista/engenheiro. É assim que funciona mente”, impossibilidade de neutralidade (a
o senso comum: entendemos que há uma despeito da busca da imparcialidade). São
natureza e que ela é aquilo que os cientis- um chamado à adoção de visão muito mais
tas conseguem exprimir. A Ciência, por sua ampla do que a preconizada pelas normas
vez, baseia-se nas leis dessa natureza. E, se de investigação. Nesse sentido, parece-nos
é a Ciência que vai explicar quais foram as que os clamores de aproximadamente vinte
causas de um acidente, então, aos cientis- anos atrás de pouco ou nada adiantaram.
tas – no caso, técnicos e engenheiros espe-
cialistas – é concedido todo o poder. Em depoimento no inquérito adminis-
trativo, outro piloto da Varig, enumerou
Mas não é difícil compreender o que “fatores causais” relacionados com ques-
diz Latour quando se acompanha a marcha tões administrativas da Varig como a pre-
das investigações, ao longo das quais sur- valência da Diretoria de Tráfego sobre a
gem várias controvérsias. Para superá-las, Diretoria de Operações, exercendo pressão
são construídos argumentos baseados em para que o piloto cumprisse o horário “a
“fatos científicos” e em representações pro- qualquer preço”. Um de seus colegas re-
duzidas por instrumentos. Esse processo se forçou esses alertas declarando também
desenvolve até que não haja mais nenhum ao DAC que considerava um dos “fatores
ataque a uma determinada formulação principais” o modo como a empresa vinha
sobre as causas do acidente que, por isso estabelecendo a jornada de trabalho de
mesmo, se torna sua explicação formal. seus pilotos. Em carta do SNA ao CENIPA,
Essa descrição oficial é elaborada por meio um comandante, Diretor de Segurança de
de um esforço monumental, mas, ao final, Vôo do sindicato à época do acidente, es-
ela própria é assimilada como a causa do clarece que o comportamento individual
término das controvérsias. Por que hoje dos pilotos ocorre “dentro de um contex-
não se questionam as causas da queda do to organizacional”, em um clima criado e
PP-VMK? Porque, acredita-se, a causa fez
afetado pelas ações e decisões de outros
terminarem as discussões.
indivíduos. O missivista refere-se ainda à
Este texto não pretende “reabrir” o caso, necessidade e, muitas vezes, à dificuldade
mas quer, sim, questionar o modo de pen- de se investigar os procedimentos adota-
sar e de interpretar convenções internacio- dos pela administração de uma companhia
nais e, a partir daí, mostrar a necessidade aérea envolvida em um acidente de avião.
de se discutir e avaliar o arcabouço teórico, Questiona se o que está escrito correspon-
o enfoque utilizado, os métodos e a estru- de ao que é executado e, por fim, chama a
turação organizacional da rede incumbida atenção para o fato de que, nos meses que
de investigar cada caso. Quer instigar es- antecederam o acidente, alguns pilotos co-
pecialistas a identificarem a necessidade meteram o mesmo engano, o de interpretar
de adoção de mudanças na sistematização erroneamente o Rumo Magnético tendo,
das investigações de acidentes aéreos (e porém, corrigido o erro, e conclui:
outros envolvendo sistemas complexos) e
Como se pode observar das questões aqui
a implementarem processos mais sociotéc- levantadas, a investigação se limitou até
nicos, inclusive analisando e pesquisando o momento em delinear basicamente as
um recorte da rede que mantém o sistema causas do acidente sem, contudo, fazer
em funcionamento tão amplo quanto a via- uma análise mais profunda dos fatores
bilidade e a objetividade o permitam. contribuintes que já estavam presentes
em uma forma latente.
Por fim, insiste em reafirmar que o con-
ceito de “multicausalidade” não pode e não Esse comandante, especializado em se-
deve ser usado como um “saco-de-gatos”, gurança de vôo, problematizava não só as
um “termo coringa” que fundamenta todo fronteiras da Varig, mas também os limites
o processo de investigação. Todos os ele- temporais, pois as investigações iniciavam-
mentos metodológicos aqui apresentados se a partir da decolagem de Marabá quan-
e sugeridos se relacionam com o conceito do, para investigar riscos latentes, seria
de “mais do que um e menos do que mui- necessário recuar no tempo. É certo que a

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verificação da manutenção da aeronave e A interface humano-máquina
da aptidão dos pilotos também faz parte da
Os computadores dos aviões dotados
investigação, mas, para isso, basta consul-
de sistemas de navegação automatizados
tar certificados no presente.
são alimentados com os parâmetros neces-
A questão vai ainda mais longe do que sários à realização do vôo. A introdução
perguntar se, na prática, “fatores contri- desses dados cabe aos pilotos e, por isso,
buintes” múltiplos são perseguidos: como eles costumam dizer que “voam números”.
deve ser feito o recorte da rede? Na medida Por serem profissionais altamente qualifi-
em que cada “fator contribuinte” identi- cados – quiçá não será demasiado consi-
ficado pode ter diversas causas para sua derá-los gerenciadores de sistemas –, recai
ocorrência, até que nível de detalhe a in- sobre eles a responsabilidade de garantir a
vestigação deve descer? Obviamente, não qualidade da “conexão” entre o computa-
propomos buscas de razões numa cadeia dor que gera os dados da viagem, localiza-
interminável de relações, uma “hemorra- do na sede da companhia aérea, e o com-
gia” interminável. A Associação de Pilo- putador de bordo. Podemos ir mais longe
tos da Varig (APVAR) reivindicava que se e afirmar que os pilotos são essa conexão
aprofundasse a análise da cadeia causal e, por isso, não se admite que errem. Mas,
até o nível do funcionamento interno da
eventualmente, eles erram.
companhia aérea e que os resultados da
investigação pudessem tornar a fiscaliza- A automação do vôo introduziu os pi-
ção sobre a Varig mais efetiva de modo a lotos na era da informação. O vôo é coman-
evitar que fossem criadas condições que, dado por computador e o piloto não mais
em conjunto com suas conseqüências, se insere heroicamente no meio em que o
pudessem resultar em acidentes. Se a pes- avião se desloca, de forma que, ao contrá-
quisa do que ocorreu entre o momento em rio dos pioneiros da aviação, não precisa
que os tripulantes assumiram a aeronave mais usar casaco de couro nem gorro, não
e o momento em que o acidente ocorreu sente cheiro de óleo lubrificante nem de
permite extrair ensinamentos, é impor- combustível queimado. O comandante e
tante, ao mesmo tempo, verificar outras o co-piloto realizam poucos (ou nenhum)
possibilidades de aprendizado através dos movimentos com manches e manetes e,
eventos dessa cadeia causal (e que por ve- em algumas aeronaves – produzidas pela
zes antecedem, e muito, o episódio do aci- Airbus, por exemplo –, esses ingredientes
dente), como, por exemplo, a de encontrar de trabalho “braçal” sequer existem, subs-
evidências de problemas nas relações da tituídos que foram por pequenas alavan-
companhia que realiza o vôo. cas semelhantes aos joysticks para jogos
Por sua vez, o fabricante do avião, a de computador.
Boeing, em seu sítio sobre segurança de Em seu livro Knowing Machines, Do-
jatos comerciais, explica que é necessário nald Mackenzie (1996) problematiza a esse
um enfoque mais pró-ativo, pois os dados
respeito:
sobre “eventos operacionais” são limita-
dos, o que restringe o aprendizado quanto a informatização traz benefícios inegá-
à melhoria das operações de vôo. Ainda se- veis, mas certamente há riscos também.
gundo a empresa, é difícil obter dados cri- Que evidências existem sobre esses ris-
cos? Qual é sua natureza? (p. 4)
teriosos em um sistema de aviação caso se
esteja focado apenas em atribuição de res- Em um dos capítulos desse livro, seu
ponsabilidades. Tripulantes de vôo e pes- objetivo é indicar o que pode estar envolvi-
soal de manutenção – prossegue a Boeing do numa investigação empírica de aciden-
– são freqüentemente responsabilizados tes fatais envolvendo sistemas de compu-
de forma indevida porque são a última li- tador partindo do princípio de que muitos
nha de defesa quando surgem condições dos riscos associados ao computador têm
de insegurança. Por fim, a multinacional a ver com a relação homem-máquina. Por
conclui que é preciso superar a cultura da isso mesmo, Mackenzie (1996) desconfia
“culpa” e encorajar todos os envolvidos em do excessivo tecnicismo de boa parte da in-
operações de vôo a relatar qualquer inci- vestigação de acidentes.
dente, além de encorajar a comunidade
de aviação para que continue a promover Em seus estudos, além do interesse no
e a implementar programas de relato não comportamento errado e não desejado de
punitivos voltados à coleta e à análise de sistemas de computador, estão incluídos
informação sobre segurança na aviação. casos em que:

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(...) Não há erro técnico evidente, mas pessoal de funcionamento sem falhas no
houve um enguiço ou erro na interação do equipamento automatizado de vôo, pilo-
homem com a máquina. (p. 188) tos começarem a acreditar demais nesse
equipamento e depois falharem na verifi-
No caso do piloto e dos co-pilotos do Vôo cação de outras informações que lhes es-
254, se utilizado o critério de Mackenzie tejam disponíveis.
(1996), ocorreu um problema típico de inte-
ração com a máquina. O autor inclui, dentre Diversos sistemas integrados foram
os acidentes relacionados com computador, propostos ou projetados para situações em
aqueles nos quais a: que um humano precisa ser considerado
como parte necessária da operação. Nesses
(...) Falsa confiança em sistemas de com-
casos, a interface humano-máquina é um
putador ou entendimentos equivocados
sobre eles parecem ter sido os fatores do- componente crítico do sistema. Esses siste-
minantes dentre os que levaram operado- mas tipicamente geram mais dados do que
res a adotar ou persistir em cursos de ação um humano é capaz de assimilar numa si-
que, se não fosse por esses fatores, teriam tuação de tempo crítico. Portanto, os prin-
abandonado ou evitado. (p. 188) cipais requisitos da interface referem-se à
A convicção do comandante de que apresentação de dados de forma a serem
estava no rumo certo foi manifestada por facilmente entendidos e providos através
seu pedido de permissão para pousar em da interação com o sistema.
Belém, quando estava a centenas de qui- Aprender com os acidentes
lômetros do Val-de-Cans, o aeroporto in-
ternacional daquela cidade. O fato de não Qual foi a causa “primária” desse aci-
terem sido efetuados procedimentos de dente? A redução de custos da empresa e
verificação da rota com base em mapas de a pressão que estava exercendo sobre seus
navegação caracteriza a confiança exces- pilotos? O plano de vôo? O ajuste errado
siva no sistema de computador do avião. do rumo magnético pelos pilotos? O jogo
Acrescente-se ainda o fato de que foi a re- de futebol? O incidente no jogo? A falta de
presentação inadequada do rumo magnéti- providências dos operadores de Belém? A
co no plano de vôo impresso pelos compu- omissão do pessoal de apoio da Varig? O
tadores da Varig que ocasionou um engano não cumprimento da legislação pelas emis-
sobre o valor a ser ajustado no sistema de soras comerciais de rádio? A propagação
navegação do avião, por sinal “um siste- ionosférica que fez com que ondas transmi-
ma ou dispositivo eletrônico programável” tidas por essas rádios comerciais, a grande
(MACKENZIE, 1996, p. 187). distância, fossem recebidas? A coincidên-
cia de freqüências entre os pontos referen-
O excesso de confiança dos pilotos nos
ciais fixos, no solo, procurados na rota e
sistemas automatizados pode fazer com
que deixem de executar procedimentos outros muito distantes? A não existência
obrigatórios de verificação. Diante da re- do trecho Marabá-Belém nas cartas de na-
petição de operações bem-sucedidas con- vegação de alta altitude?
troladas pelo computador, pode-se acabar A forma como o conceito de multicau-
reduzindo ou negligenciando os procedi- salidade continua sendo entendido poderia
mentos de verificação. Mackenzie (1996, fazer parecer óbvia a resposta de que todos
p. 211) exemplifica: esses foram “fatores contribuintes” para
(...) À medida que a informatização se a ocorrência do acidente. Mas, de acordo
torna mais intensa, sistemas altamente com Charles Perrow (1999), a melhor res-
automatizados tornam-se cada vez mais posta a essas perguntas não é “tudo isso”. É
básicos. O controle humano, na condição menos uma soma, ou uma seqüência lógica
de último passo de uma cadeia – tal como de causas, e muito mais uma justaposição
a decisão humana de ativar o disparo de
um sistema automatizado de armas –,
imprevista e indeterminada de incidentes.
está atualmente sob a responsabilidade, A possibilidade de ocorrência de interações
na maioria dos casos, de sistemas desse complexas entre as falhas e a forte interde-
tipo. Mas os seres humanos responsáveis pendência dos componentes do sistema de
por esses sistemas podem ter perdido aviação apontam para a existência de res-
os benefícios cognitivos intangíveis que postas que permitem um aprendizado mais
advêm de terem que constantemente in-
abrangente e eficaz. As interações impre-
tegrar e entender os dados que recebem.
Em tal situação, o perigo pode vir tanto
vistas são, também, uma característica dos
do estresse quanto da rotina. (...) Nem de- sistemas complexos e ocorrem tanto entre
veríamos nos surpreender se, após cente- humanos e não-humanos quanto entre ele-
nas ou milhares de horas de experiência mentos de cada um desses conjuntos.

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Se a causa do desvio do rumo fosse to a partir do acidente de forma a otimizar
uma “pane geral do sistema de navegação”, as medidas preventivas e compensatórias
como alegou inicialmente o piloto em sua existentes, assim como desenvolver novas
conversa com o comandante que estava e melhores medidas quando necessário.
a bordo de outro vôo da Varig, o RG-231, Procuramos analisar os processos de inves-
pousado no aeroporto de Santarém, então tigação de causas e os de atribuição de cul-
estaria caracterizada uma “falha técnica”. pa com o objetivo de mostrar quão difíceis
Porém, eis a questão, a divisão entre “falha são a separação em “fatores” e o empenho
humana” e “falha técnica” emerge de uma em encontrar “culpados”. Seguimos aqui
separação extraordinariamente problemá- as lições de Sheila Jasanoff (1994, p. xi):
tica entre ciência e sociedade, que a an-
(...) para romper com hábitos retrospec-
tecede e é mais abrangente. Em verdade, tivos de pensamento que acidentes e in-
trata-se de uma separação que, sob as mais fortúnios tão freqüentemente produzem:
diversas formas, já se encontra arraigada parar de perguntar o que causou a tra-
no senso comum, tanto que, ao desembar- gédia ou a quem culpar, e considerar, ao
car no Rio de Janeiro, após o resgate dos invés disso, como seres humanos e suas
sobreviventes, uma das comissárias de instituições com pré-disposição a falhas
bordo declarou a um repórter da emissora podem aprender a fazer melhor. Mirar à
de televisão do Sistema Brasileiro de Tele- frente, segundo esta orientação, demanda
obviamente que se tenha primeiramente
visão (SBT):
olhado para trás; eventos passados têm
Se não foi falha humana, que eu acredito que ser dotados de significado e receber
que não tenha sido, só pode ter sido falha estruturas causais antes que se possam ti-
técnica e eu não sei que tipo de falha foi. rar deles lições persuasivas sobre o futuro
Não gostaria de comentar isso. Eu só sei (...). O propósito desses relatos, contudo,
dizer que o comandante fez o que ele ti- não é fixar responsabilidade pela conjun-
nha de melhor para fazer. ção de falhas (...)

Em entrevista apresentada no mesmo Esse aprendizado não é apenas indi-


noticiário, o Chefe do Estado Maior da Ae- vidual, é coletivo. Não é apenas técnico,
ronáutica, à época do acidente, reiterou a é sociotécnico. Podem aprender as insti-
mesma divisão de mundo ao declarar, con- tuições, as pessoas e as técnicas. Pode-se
victa e peremptoriamente: igualmente aprender sobre as relações que
Falha material ou falha humana. Esses
se estabelecem entre instituições, entre
são os dois fatores que contribuem para pessoas, entre técnicas e entre instituições,
o acidente aeronáutico. Às vezes os dois pessoas e técnicas – antes e depois dos aci-
simultaneamente. dentes. Como exemplo, tome-se o acidente
em que os pilotos deixaram de efetuar um
Dessa forma, o Estado, por meio de sua
procedimento necessário e um dispositivo
autoridade máxima no assunto, afirmou a
de segurança do avião deixou de atuar. Em
existência de uma rígida e bem definida
31 de agosto de 1988, em Dallas, no Fort
fronteira entre o humano e o maquinal.
Worth International Airport (DWF), um
O que se aprendeu com o acidente? Que 727-232 da Delta caiu ao decolar porque
necessidades de mudanças ficaram caracte- os flapes não foram devidamente posicio-
rizadas após o acidente com o PP-VMK da nados. O sistema de alarme na decolagem
Varig? Algumas das respostas poderiam ser não se ativou provavelmente por causa de
encontradas a partir de mudanças da legis- alguma chave defeituosa. Onze passageiros
lação, das políticas públicas, dos processos e duas comissárias morreram e a aeronave
organizacionais das empresas de aviação sofreu perda total. O National Transporta-
e das formas de organização das vítimas. tion Safety Board (NTSB), o órgão governa-
19
Disponível em: http://www.airli- Analisam-se as cadeias causais porque um mental norte-americano de investigação de
nesafety.com/editorials/editorial3. dos aspectos do aprendizado consiste em se acidentes, afirmou:
htm. Acesso em: ago. 2003. poder evitar que ao menos o encadeamento Contribuíram para o acidente a lenta im-
identificado se repita em uma outra situa- plementação pela Delta das modificações
20
Federal Aviation Administration: ção (embora, como já vimos, a “normali- necessárias em seus procedimentos ope-
a FAA tem por objetivo prover um dade” dos acidentes preveja o permanente racionais, manuais, checklists, programas
sistema aeroespacial global seguro
surgimento de novas e imprevistas cadeias de treinamento e verificação de tripulan-
e eficiente que contribua com a
causais em sistemas complexos e de forte tes, exigidos por mudanças significativas
defesa nacional e a promoção da
acoplamento). Com base no aprendizado, naquela companhia aérea...19
segurança aeroespacial dos EUA.
Disponível em: http://www1.faa. devem ser promovidas mudanças nas con- Contribuíram para o acidente a falta de
gov/aboutfaa/Mission.cfm. Acesso dições que propiciaram a ocorrência do ação suficientemente agressiva da FAA20
em: ago. 2003. acidente. É preciso produzir conhecimen- para fazer com que deficiências conheci-

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das fossem corrigidas pela Delta e a insu- A Organização de Aviação Civil Inter-
ficiência de transparência no âmbito do nacional (OACI) define CRM como:
processo de inspeção de empresas aéreas
pela FAA.21 o uso efetivo de todos os recursos disponí-
veis, isto é, equipamento, procedimentos 21
Disponível em: http://www.airli-
Retornando ao acidente do RG-254, e pessoas, para atingir operações do vôo nesafety.com/editorials/editorial3.
como explicar – e não justificar – o com- seguras e eficientes. htm. Acesso em: ago. 2003.
portamento do piloto (considerado bas-
A Federal Aviation Administration
tante atípico e causador de reações hostis (FAA) acrescenta:
como a de parte expressiva da imprensa)?
Se estivéssemos diante de um caso caracte- O treinamento de CRM foi concebido para
rizado como “falha técnica”, talvez a tarefa prevenir acidentes por meio da melhora
do desempenho da tripulação, por meio
se mostrasse menos complexa e delicada.
de sua melhor coordenação.
Mas, ao contrário, a investigação de aci-
dentes tende cada vez mais a superestimar O CRM foi criado por especialistas em
o funcionamento adequado das máquinas, “Fatores Humanos”, dentre os quais John
ou seja, a desconsiderar “fatores técnicos” Lauber, Bob Helmreich e Clay Foushee.
e, portanto, a classificar acidentes como ca- Reinhert (1994) afirma que, de acordo com
sos típicos de “falha humana”. a OACI, fatores humanos são:
Sheila Jasanoff (1994, p. 2) apresentou (...) essencialmente um campo multi-
crítica contundente a este respeito. O texto disciplinar, que inclui, dentre outros:
engenharia, psicologia, fisiologia, medi-
abaixo da autora foi refeito substituindo-
cina, sociologia e antropometria (...). Isso
se as palavras originais pelas palavras em inclui comportamento e desempenho
destaque de forma a melhor discutir o caso humano, tomada de decisão e outros pro-
do vôo RG-254 (enquadrado como caso de cessos cognitivos, o projeto de controles
“falha humana”): e displays (...)

As políticas corretivas têm que ser endere- A OACI adotou o modelo SHELL para
çadas não apenas à formação e ao treina- explicar o relacionamento entre essas di-
mento do piloto, mas também (na verdade, versas disciplinas. Esse modelo explicita o
talvez ainda mais) às práticas humanas e trinômio mente-máquina-meio, clássico na
pressuposições que determinam seu ge-
aviação. A sigla é composta das iniciais de:
renciamento e condições de trabalho. Vis-
to dessa perspectiva, um grave erro huma- Software (procedimentos, simbologia etc.),
no deixa de ser meramente acidental, uma Hardware (maquinário, equipamento etc.),
vez que abre janelas sobre fraquezas ante- Environment (ambiente interno e externo)
riormente insuspeitas na rede a que o pi- e Liveware (elemento humano). As rela-
loto pertence e que mantém o vôo RG-254. ções consideradas no modelo se referem
Esforços para explicar o que saiu errado e, às interfaces LH (Liveware-Hardware), LS
mais especialmente, para encontrar medi- (Liveware-Software), LL (Liveware-Livewa-
das de prevenção conduzem a uma crítica re), e LE (Liveware-Environment). Segundo
social mais ampla; ao buscarmos entender
Reinhart (1994): “todos os elementos de fa-
os erros de nossos pilotos, simultaneamen-
te aprofundamos nosso entendimento das tores humanos e CRM podem ser expressos
sociedades que habitamos (e da Varig). considerando-se essas interações” (Figura
1). O Liveware representa os operadores
Portanto, para se aprender com o com- humanos no sistema de aviação. Qualquer
portamento do piloto, as investigações de- pessoa desempenhando um papel na exe-
veriam se aprofundar na análise das rela- cução de um vôo é considerada Liveware.
ções do piloto com a Varig, com os demais O anel externo é composto por todas as
tripulantes, com a diretoria de vôo, com a pessoas com as quais um indivíduo dentro
diretoria de operações, enfim, com tudo e do sistema interage. Para um piloto, pode-
todos que trabalhavam para manter o vôo ria incluir os controladores de tráfego aé-
RG-254 funcionando. reo, despachantes, outros membros da tri-
O CRM (Crew Resource Management) e o pulação, pilotos de outras aeronaves e até
modelo SHELL passageiros. O anel interno representa um
piloto individual no sistema de aviação.
Criado na década de 70, quando en- Esta é a parte mais importante do mode-
tão a sigla representava Cockpit Resources lo e, por isso, é o centro focal de todos os
Management, o CRM foi apresentado como outros aspectos do SHELL. Algumas das
um programa que “veio preencher uma la- variáveis dessa categoria são: saúdes física
cuna nos esforços para a prevenção de aci- e mental, educação, nível de treinamento e
dentes aeronáuticos”. processos de tomada de decisão.

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H ARDWARE

S OFTWARE L IVEWARE E NVIRONMENT

L IVEWARE
Figura 1 Representação das relações do modelo SHELL.

da máquina, embora essa fronteira seja


Por sua vez, se levada em conta a abor-
imprecisa, caso se pense a questão a partir
dagem sociotécnica, a rede de relações en-
do conceito de cyborg. Uma desvantagem
tre os atores (e não “fatores”) heterogêneos
do modelo SHELL reside no fato de não
é entendida como um “tecido sem costura”,
contemplar as transformações ocorridas
não se considerando nenhum deles mais em cada um dos atores em função de suas
importante ou mais determinante do que relações; parte da preexistência de cada
os demais e mostrando que são as relações um deles, atribuindo-lhes uma essência
entre esses atores, tornadas estáveis, que intrínseca. Na contramão desse modelo,
constroem um fato científico ou um ar- a abordagem sociotécnica ressalta que, na
tefato tecnológico. Nesse sentido, o olhar sala de treinamento, o piloto é um ator, di-
sociotécnico contrapõe-se à assimetria ferente daqueles que é no simulador e na
do conceito do CRM, no qual o Liveware situação real de vôo. Essa diferença decor-
exerce um papel privilegiado em relação re da natureza distinta das relações que
aos demais atores, uma vez que o modelo estabelece em cada local. Outros actantes
SHELL considera central o papel do piloto – o instrutor, o simulador e a aeronave
comandando a aeronave (Figura 1). – pertencem a redes diferentes e, portanto,
transformam o piloto quando com ele se
O modelo SHELL define fronteiras e
associam. Da mesma forma, cada um de-
privilegia o comandante e suas relações.
les é igualmente modificado por suas rela-
Introduz mais complexidades do que a di-
ções. Dito de outra forma, ninguém/nada
visão em “fatores humanos” e “fatores téc-
escapa “íntegro” de uma relação.
nicos”, mas continua separando o humano

Considerações finais
Diante do conhecimento das comple- romperam e não os atores que falharam.
xidades e interações de sistemas de alta Ao invés de se iniciar uma luta para
sofisticação sociotécnica, da “normali- salvaguardar as “partes” de culpa, iria
dade” dos acidentes e dos enredamentos se providenciar uma nova configuração
que configuram um vôo, um acidente das relações para recompor a rede, subs-
de avião poderia ser mais propriamente tituindo as relações fracas por outras,
investigado como um sintoma do rom- mais fortes, mais estáveis.
pimento de relações. Dessa forma, de- À época do acidente com o vôo RG-254,
veriam identificar-se as relações que se já havia a declaração de intenção de não

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se investigar para punir, mas ainda se luta- Em favor da cidadania, as fronteiras en-
va, no Brasil, para que não se pesquisasse tre deveres e direitos devem ser mais clara-
a (principal) causa do acidente. Há anos, o mente definidas. Referimo-nos aos deveres
conceito da existência de “múltiplos fatores das empresas aéreas e dos órgãos do Estado
contribuintes” foi adotado pelo CENIPA. Na responsáveis pelo apoio à aviação. Quanto
prática, recentemente, as declarações das aos direitos, são aqueles que dizem respei-
autoridades brasileiras relativas ao aciden- to aos cidadãos vitimados direta ou indi-
te mais grave ocorrido no Brasil, o acidente retamente por acidentes aéreos, inclusive
da Gol, em nada mudaram. os que possam fazer parte da sua cadeia
causal. Acima de tudo, é preciso respeitar
O caso estudado desvela aspectos do os direitos dos cidadãos, sejam eles víti-
reducionismo embutido na elaboração de mas entre os passageiros ou entre os fun-
lista de causas associadas a algumas pou- cionários da empresa de aviação. Quando
cas pessoas, sem a aplicação de mecanis- houver entre essas vítimas uma ou mais
mos que forcem mudanças visando à oti- pessoas que tenham feito parte da cadeia
mização das relações entre os actantes do causal que levou ao colapso da rede, então,
sistema estudado. Essa redução parte de que se lhes atribuam as conseqüências de
conceitos estanques, fatorados. suas responsabilidades, mas não se perca
Na teoria ator-rede, cada ator é molda- de vista que elas também estão entre as
do por suas relações na rede e, portanto, vítimas do acidente. É necessário, de acor-
as divisões, a priori, mantidas até hoje, em do com Sheila Jasanoff (1994), aprender a
fatores humanos, materiais, operacionais respeito de reparação com base também no
e ambientais perdem em compreensão do que acontece após o acidente, isto é, nos
acidente e constituem, também, reduções anos posteriores.
de complexidade. Por isso mesmo, deixam As investigações devem ser estendidas,
de ser consideradas as interações comple- no mínimo, até às empresas aéreas envol-
xas do acidente “normal”. No caso estu- vidas, posto que existe uma rede, um com-
dado, cada uma das falhas, por si só, foi plexo organizacional, no qual os tripulan-
trivial, de tal forma que sua eventual ocor- tes estão imbricados. É a companhia aérea
rência seria até mesmo esperada. Todavia, que sofre o acidente e não apenas sua aero-
ocorreram interações completamente ines- nave. Portanto, parece no mínimo estranho
peradas entre elas. que as investigações não se aprofundem
Falhas imprevistas e inesperadas ense- na verificação das condições na empresa
jam acidentes inevitáveis. Essa é a chave capazes de propiciar a ocorrência de even-
para que se evite tratar pilotos/operadores tos que, associados a outros, numa cadeia
como criminosos. imprevista, produzem o acidente. Os ór-
gãos de investigação aprendem com o que
Este estudo critica a suposta “neutra- ocorreu durante a realização do vôo, mas
lidade” do CENIPA e de instituições ou Sheila Jasanoff apresenta a proposta de se
organismos encarregados da condução aprender com o que acontece após o aci-
das análises de acidentes, assim como a dente. A APVAR sugeriu que a prevenção
pretensa “objetividade” de suas descrições devesse estudar o que acontece antes dos
e das conclusões do relatório final da in- acidentes, por meio do aprendizado sobre
vestigação. A ciência não é neutra, os fatos o que ocorre nas companhias aéreas.
científicos também são construções socio-
técnicas. É importante investigar de modo Não se defende que, no limite, configu-
menos tecnicista. re-se situação paralisante, na qual, em meio
a tantas responsabilidades, resvala-se na
Cabe às autoridades brasileiras, espe- pusilanimidade, prostração e perplexida-
cialmente ao CENIPA e às demais instâncias de diante da inimputabilidade do que quer
do SIPAER, refletir a respeito da “interna- que seja. Lembrando John Law (1992) em
cionalização” da investigação e das difi- sua recorrência a metáforas matemáticas,
culdades decorrentes para estabelecer um as responsabilidades são mais que uma,
conhecimento local acerca da investigação porém menos que muitas. Pugnamos aqui
de acidentes aeronáuticos. As caixas-pre- não pela complacência, mas pela busca de
tas são levadas diretamente a laboratórios melhor enfrentamento das causas de um
internacionais, nos quais são examinadas acidente. Por melhor enfrentamento com-
à revelia dos investigadores brasileiros, fa- preendemos um melhor entendimento das
zendo desta parte da investigação também diversas falhas e da interação entre elas,
uma caixa-preta. incluindo-se aí as falhas organizacionais;

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enfim, que se procure distribuir responsa- trabalhos do CENIPA estarão envolvidas
bilidades entre as diversas entidades, hu- em contendas judiciais e, portanto, tam-
manas e não-humanas, possibilitando uma bém não são neutras.
contribuição para o melhor aprendizado e,
Apontados os erros, o que fazer? Qual
portanto, tornando mais responsável o re-
é a solução? Apontamos subsídios para
lacionamento entre humanos e máquinas.
investigação mais adequada à complexi-
Mudanças precisam e devem ser provi- dade de um acidente aéreo. Temos cons-
denciadas. É chegada a hora de o CENIPA ciência de que deixamos mais perguntas
repensar sua posição em relação aos termos do que respostas, mas entendemos que
do Anexo 13 da convenção de Chicago (con- atingimos o objetivo de apresentar uma
venção de Navegação Aérea Internacional, tentativa de enriquecer essa discussão no
em novembro de 1944). Seu relatório não meio acadêmico e, quiçá, no próprio meio
é neutro. As partes com representação nos da aviação civil.

Referências

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da interface “ser humano-máquina” sobre a realidade dos estudos científicos.
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