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JOSÉ DE SOUZA MARTINS

CAMINHADA NO CHÃO DA NOITE


Emancipação Política
e Libertação nos
/

Movimentos Sociais
do Campo
IMPORTANTE!
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A crise id e o ló g ic a e p olítica dos grupos Ciências Sociais 24
d e m e d ia ç ã o , q u e se interpõem entre
direção de
as lutas das classes subalternas e o
processo político, é o núcleo
Tamás Szmrecsányi
José Vicente Tavares dos Santos
p ro b lem ático dos q u a tro ensaios q u e
com p õem este livro. A R a zã o e o
ilum inism o persistem fortem ente no
p ensam ento d e esq u erd a no Brasil,
b lo q u e a n d o a p o ss ib ilid ad e d e um a
in terven ção e fic a z d o subalterno no
processo histórico. A im ensa fratura
qu e s e p a ra os m ovim entos sociais e
as o rg a n iz a ç õ e s políticas e sindicais
d e b ilita o processo d e m o crá tic o , in ib e
a c ria tiv id a d e p o lítica dos grupos
p o p u lares e reforça as p ossibilidades
d e um m o d elo político auto ritário .
Porém , a d erro ta recente d o p a p e l
m e d ia d o r d a in te le ctu alid ad e d e
classe m é d ia , q u e fa la a lingu agem
das o rg a n iz a ç õ e s , contrasta com a
n ova cultura q u e está surgindo no
c a m p o , im p re g n a d a d e concepções
sobre lib e rta ç ã o e p a rtic ip a ç ã o ,
produto denso d a luta e das rupturas
d e c a d a jo rn a d a , a in d a q u e na
escuridão d a noite.
CIÊNCIAS SOCIAIS

TÍTULO S EM CATÁLOGO

Sobre o Modo C apitalista de Pensar, José de Souza M artins


Colonos do Vinho, José Viccntc Tavares dos Santos
O E stado e a Burocratização do Sindicato no Brasil, Heloísa Helena
Teixeira de Souza M artins
A Mulher Operária, Jessita M artins Rodrigues
H ierarquia e Sim biose: Relações Intertribais no Brasil, Alcida Rita Ra­
m os
A Participação Social dos Excluídos, M arialice M encarini Foracchi
A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira, José de Souza M artins (org.) CAMINHADA NO CHÃO DA NOITE
Sam ba Negro, Espoliação Branca, Ana Maria Rodrigues
Form ação Industrial do Brasil e Outros Estudos, José Carlos Pereira Emancipação política e libertação
Mão-de Obra e Condições de Trabalho na Indústria A utom obilística
Brasileira, José Sérgio R. C. Gonçalves
nos movimentos sociais no campo
O C ativeiro da Terra, José de Souza Martins
Os 45 Cavaleiros Húngaros, Oliveiros S. Ferreira
Antropologia Cultural e A nálise da Cultura Subalterna, Luigi Lombardi
Satriani
A s Lendas da Criação e D estruição do M undo com o Fundam entos da
Religião dos Apapocúva-Guaraní, Curt Nim uendaju Unkel
Educação e Fecundidade, Maria Irene Szmrecsányi
A s M etam orfoses do Escravo, Octavio lanni
Com a Palavra o Senhor Presidente José Sarney (O Discurso do Plano
Cruzado), C éli Regina Jardim Pinto
O A ntigo Regime e a Revolução, Alexis de Tocqueville
DO MESMO AUTOR, N A EDITORA HUCITEC

Conde M ataiazzo, o Em presário e a Empresa (Estudo de Sociologia do D e­


JOSÉ DE SOUZA MARTINS
senvolvimento), 2a ed., 2a reimp., 1976 Universidade de São Paulo
Sobre o M odo C apitalista de Pensar, 4a ed., 1986
O C ativeiro da Terra, 3a ed., 1986
Expropriação e Violência (A questão política no campo), 2a ed., 1982
Introdução Crítica à Sociologia Rural (org.), 2a ed., 1986
A Morte e os M oitos na Sociedade Brasileira (org.j, 1983
A Reform a Agrária e os Lim ites da D em ocracia na "Nova República",
1986.

CAMINHADA'
NO CHÃO DA NOITE
Emancipação política e libertação
nos movimentos sociais no campo

A relação completa dos textos de José de Souza Martins encontra-se no


fim deste livro. EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1989
© D ireitos autorais, 1988, de José de Souza M artins. D ireitos de publica­
ção reservados pela Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia "H ucitec"
Ltda., Rua Geórgia, 51 — 04559 São Paulo, Brasil. Telefone: (011)
241-0858.

C om posição:
GraphBox -Editoração Eletrônica - 575-1099

ISBN 85-271-0083-5
Foi feito o depósito legal.
Para Nena e Azis Simão
— visão e memória do tempo.
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................ 11

Cap. I A nova cultura dos pobres do cam po ............ 17

Cap. II Libertação na terra dos aflitos ......................... 25


1. A questão agrária na pastoral católica............ 25
2. Mudar para conservar: a opção preferencial pela
ordem..................................................................... 31
3. A crise da patronagem política e o desenvol­
vimento católico................................................. 36
4. Do capitalismo inacabado ao capitalismo in­
viável ..................................................................... 46
5. Mudar para libertar: a opção preferencial pe­
los p obres............................................................. 51
6. Dilemas da sacralização do espaço político
libertador.............................................................. 57

Cap. III Impasses políticos dos movimentos sociais na


A m azônia ............................................................. ....67
1. O tempo político da luta pela terra................ ... 67 (
2. Mudanças políticas no cam po............................. 73
3. Capitalismo rentista e autoritarismo.............. ... 79
4. A Igreja c os conflitos: o refúgio dos sofredo­
res........................................................................... ... 85
5. O discurso sobre a reforma agrária e o im­
passe....................................................................... ... 9,1

Cap. IV Dilemas sobre as classes subalternas na idade


da razão ................................................................ 97
1. Lutar e interpretar — desencontros................ 97 (
2. Cultura popular: o conteúdo novo na forma f
v elh a .......................................................................1 10 _
3. Movimentos sociais e libertação.......................122
4. O trabalho intelectual com as classes subal­
ternas .......................................................................132

Bibliografia ................................. ......................................... ..139


INTRODUÇÃO

"D igo: o real não está na saída nem


na chegada: ele se dispõe para a gente
é no meio da travessia."

João Guim arães Rosa,


G iande Sertão: Veredas

A situação no campo c as lutas que ali vêm ocorrendo,


nestes últimos 25 anos, têm sido tema de estudos e relató­
rios que dão grande e necessário destaque à enorme violên­
cia de que são vítimas os trabalhadores rurais e, também, os
povos indígenas. Longas listas, lamentáveis e verdadeiras,
de trabalhadores assassinados, famílias expulsas violenta­
mente, casas e roças incendiadas, acompanham denúncias das
igrejas e dos sindicatos. E procuram proclamar a miséria da
vítima, a impunidade do arbítrio dos que têm dinheiro e po­
der, a prepotência e a incompetência do Estado. Desenham
um quadro de derrota, de resistência inútil. Quando procu­
ram resgatar os chamados sinais de esperança, quase sem­
pre anunciam as práticas autodefensivas, os procedimentos
ingênuos de sobrevivência, dos que não se deixam abater
pela força do inimigo. Até aí iria a capacidade de resistência
e de participação no processo político daqueles que são
cotidiana e crescentemente alcançados pela torrente da in­
justiça sem limite. Tais relatórios e estudos, aparentemen­
te, confirmam as suposições, também ingênuas, daqueles
grupos que, por insuficiência teórica e indigência política,
proclamam a inutilidade da luta dos pobres da terra, inútil
resistência ao avançq histórico supostamente representado
pela expansão capitalista.
11
desobediência, sua nova condição, seu caminho sem volta,
Entretanto, o campo já não é mais o mesmo. No Araguaia, sua presença maltrapilha, mas digna, na cena da História.
em Goiás, no Nordeste, no Sul, poetas populares cantam Os que se dizem politizados, porque fazem, ouvem ou
uma nova canção — a que proclama a dignidade dos pobres analisam discursos, têm, com desalentadora freqüência, di­
e dos que trabalham, a que ironiza o inimigo possuído pela ficuldade para entender essa fala de espaços ocupados em
vontade de lucro ilimitado do capital e a que faz, assim, silêncio, de reconhecimento da ruptura dos elos tradicionais
na própria ação, a crítica das classes e do Estado que, que revestiam de reciprocidade moral a dominação do se­
pelo ganho momentâneo, decidiram, pela violência, trans­ nhor e fazendeiro. Reciprocidade que escravizava não só o
formar o país em imensa pastagem e o povo brasileiro num trabalhador, mas também as consciências, em nome de uma
imenso rebanho. Tenho visto populações de diferentes lealdade sacralizadora da violência costumeira do latifúndio
regiões do Brasil que, no meio do fogo e da luta e, até, contra o agregado, o sitiante, o posseiro e, também, o índio
diante do sangue derramado, demonstram uma inacredi­ e o negro, não lhes reconhecendo a condição de pessoas,
tável capacidade dc suscitar poetas e poesia (muitas das degradando-os.
quais, aliás, resgatadas c publicadas), menestréis e canções No campo, na gerrilha silenciosa da desobediência, velha
dc um insuperável lirismo c de uma imensa força. Pode-se arma dos desvalidos, e da proclamação dos direitos, que
entender porque a cultura popular deste país constitui um desmoraliza o mando dc quem tem sobre quem carece, os
arquivo multicolorido, retalhos da história do povo, de pobres definem uma nova moral, que desvenda e denuncia o
canções que celebram o amor e a festa c, freqüentemente, grande mundo de seus iguais e o de seus contrários — e
dissimulam a guerra e o luto. Memória de um povo que, ao revela o mistério do poder e a importância do querer. Já não
contrário da pequena-burquesia intelectualizada, não separa é mais a moral dos senhores, a moral do mando e da
a festa e a luta, porque sem a festa a luta não tem sentido. A obediência. É a moral dos excluídos, resgatada a partir da
canção e a poesia prefiguram a apoteose do ser cm relação perspectiva e da experiência de vida dos que sofrem a pri­
ao ter. vação de tudo: dc terra, de casa, de trabalho, de respeito, de
Indígenas que há trinta anos empregavam a palavra gente saber. A nova moral dos pobres da terra é muito velha. Foi
apenas para definir seu pequeno grupo tribal e que acredita­ mantida e revolucionada nas brechas escuras, e nos confli­
vam que todo o gênero humano estava contido numa única tos, da vida de cada dia e nos movimentos sociais, formali­
aldeia, ainda há pouco faziam "lobby" no Congresso Nacio­ zados ou não segundo os cânones da teoria. Ela proclama a
nal Constituinte em favor do reconhecimento de seus direi­ esperança e a alegria, mesmo entre as lágrimas do desespero
tos, inclusive o direito à diferença, o direito a preservarem, momentâneo.
politicamente redefinida, sua condição de povos indígenas. Isso não tem sentido para quem acredita que a liberta­
E organizam resistências intertribais, confederações indíge­ ção dos pobres e marginalizados começa e acaba na sua
nas, até se juntando a inimigos de sempre, contra a voraci­ transformação cm proprietários, através de uma reforma
dade do capitalista branco, o grande proprietário sem escrú­ agrária que privilegie os resultados econômicos da vida de
pulo e amoral. cada um. Como se a tarefa da História e da liberdade fosse
Está terminando o tempo da inocência e começando o tarefa de um escritório imobiliário e não tarefa política. O
tempo da política. Os pobres da terra, durante séculos acesso à terra por parte dos pobres e marginalizados é ins­
excluídos, marginalizados e dominados, têm caminhado em trumento de libertação apenas na medida em que questiona
silêncio e depressa no chão dessa longa noite de humilhação e rompe o monopólio da propriedade por parte da burguesia
e proclamam, no gesto da luta, da resistência, da ruptura, da
13
latifundista, que tem na renda-da-terra a sustentação da sua esquemas teóricos e por dogmatismo de suas orientações
dominação política iníqua, retrógrada e antidemocrática, políticas. A teoria das transformações sociais no campo está
fonte do inacreditável atraso deste "país do futuro", que dominada pelo pressuposto de que a burguesia e o capital
acumula riquezas e, em escala maior, acumula misérias de têm uma missão revolucionária em face da questão agrária.
toda ordem. Aquele e o sentido mais importante da luta Isso não é verdade na história recente do capitalismo e,
pela terra. É por isso que essa luta recebeu poderosa e vio­ concretamente, no caso brasileiro. Como já tive oportunida­
lenta resposta política do Estado e das classes dominantes, de de demonstrar, em outro livro, o capital transformou-se
nestes últimos tempos, triturando de complemento a peque- em proprietário de terra c inverteu o modelo teórico e polí­
na-burguesia iluminista que, nos partidos c nas universida­ tico clássico. Agora e aqui estamos diante de um modelo
des, teme, desqualifica e impugna os movimentos popula­ antidemocrático dc desenvolvimento capitalista, apoiado
res, mas que acredita estar fazendo uma revolução quando num pacto político, gestado durante a ditadura militar, que
se oferece com sua ideologia liberal e reformista para servir casou numa figura única latifundiários e capitalistas. As
ao Estado conservador, sob hegemonia nada menos do que dificuldades estão na teoria, c nas organizações, e não nas
da própria burguesia rentista e oligárquica. Não foi isso que lutas dos trabalhadores do campo, momentaneamente blo­
se viu na programada derrota da luta pela reforma agrária, queadas pela hegemonia paralisante daqueles que deveriam
proposta como forma dc esvaziar, domesticar e instrumen­ ser os agentes e mediadores do desvendamento, do esclare­
talizar a luta pela terra? cimento, da explicação que remete para o plano da História
A libertação dos pobres e marginalizados não começa nem a luta de cada dia. Como resultado dessa insuficiência teóri­
acaba na propriedade. Hoje falamos de libertação de maneira ca, decorrente de velhos preconceitos e dc problemas inter-
nem sempre conseqüente. O discurso da libertação corre o pretativos não resolvidos, a mediação política que enrique­
risco de se tornar um discurso abstrato e sem sentido se não ceria o processo de emancipação dos pobres da terra deixa
reconhecer que a libertação não se resume ao discurso. A de existir ou existe de modo relutante, frágil é, até, empo-
libertação, isto é, a emancipação do homem, se dá na práti­ breccdor. Na verdade, o discurso libertador continua sepa­
ca ou não se dá. rado da prática libertadora. Nem por isso os trabalhadores
Neste volume, reúno textos em que trato dos passos des­ rurais deixam de anunciar na sua luta, assim como os poe­
sa libertação concreta, prática, dos passos no caminho da tas da terra não deixam de cantar em seus versos e rimas,
ruptura das relações de dependência pessoal — pela ação dos que o tempo da sujeição está vencido.
que ficam e também pela ação dos que partem, formas di­
versas da recusa. Ao mesmo tempo, procuro mostrar quais São Paulo, 26 de junho de 1988.
são as dificuldades teóricas c políticas dos grupos, partidos,
igrejas, para reconhecer os "sinais" e os avanços da liber­
tação. Minha conclusão é a de que o processo libertador dos
pobres da terra é um processo real. Não são os pobres que
estão enfrentando dificuldades para romper as cadeias de
seu cativeiro político, ideológico e, também, espiritual. São
os políticos, os intelectuais, os missionários da emancipa­
ção, isto é, os grupos de mediação, que não estão conseguin­
do interpretar essas tranformações, por insuficiência de seus
14 15
T

CAPÍTULO I

A NOVA CULTURA
DOS POBRES NO CAMPO *
"N aquela hora, o senhor reparasse,
que é que notava? Nada, m esm o. O
senhor mal conhece esta gente ser­
taneja. Em tudo eles gostam de
algum a demora."
João G uim arães Rosa,
G rande Sertão: Veredas

Na tradição antropológica c sociológica, os pobres da terra,


os camponeses, os trabalhadores rurais, quase sempre foram
tratados como depositários e agentes de culturas tradicio­
nais, vítimas irremediáveis do tradicionalismo conservador.
Deles nos lembramos e a eles nos referimos unicamente
como vítimas e patrocinadores do atraso. Tanto a direita
quanto a esquerda assim os concebem. A direita por neles
ver presumíveis aliados, base social da tradição conservado­
ra e da oposição ao liberalismo e ao racionalismo. A esquer­
da por neles ver inimigos reais embutidos cm aliados ocasio­
nais, porque supostos defensores da propriedade privada,
inimigos da socialização da produção.
São curiosas essas concepções: todas as grandes revolu­
ções sociais deste século foram revoluções camponesas, total
ou predominantemente: a Revolução Mexicana, a Revolu­
ção Russa, a Revolução Chinesa, a Revolução Vietnamita,
as guerras de libertação na África. Já para não falar da Revo­
lução Francesa, no século XVIII, que teve na base, destruin­
do a velha ordem política, uma revolução camponesa. No
próprio Brasil, desde o scculo XIX, as grandes revoluções

* Publicado originalmente em Tempo e Presença, nQ220, CEDI — Centro


Ecumênico de Documentação e Informação, Rio, junho de 1987, p. 8-10.

17
têm sido revoluções camponesas, ao menos num certo redução a trabalhadores assalariados temporários. Num certo
sentido: a Cabanagem (no Pará), a Balaiada (no Maranhão e sentido, mudaram as relações de propriedade: o latifúndio
no Piauí), Canudos (na Bahia), Contestado (em Santa Cata­ passou a atingir tamanhos descomunais — já não se firma
rina), as revoltas dos anos cinqüenta (especialmente, no nem depende, nas novas regiões, de concessões de uso da
Paraná e em Goiás) e o conflito generalizado contra a grande terra aos trabalhadores (como a parceria, o arrendamento, o
propriedade nos anos setenta e oitenta, em todo o país. Só colonato, a moradia) e de relações clientelísticas para efetivar
nesses casos surgiram propostas radicais de transformação a posse em nome do latifundiário. A propriedade da terra
social. Foram diferentes das nossas revoluções urbanas, todas ganhou consistência c pureza jurídica, já não precisa de um
elas efetuadas para promover transformações antes que o exército de dependentes que a garanta para o proprietário.
povo o fizesse. Não por acaso, revoluções urbanas dirigidas Hoje o Estado é sua principal garantia.
por militares, defensores do Estado, ainda que casualmente No político, esvaziaram-se os currais eleitorais. O desapa­
em conflito com os governos. E, não por acaso, revoluções recimento ou a redução drástica do número de trabalhadores
camponesas duramente combatidas pelo Exército. residentes, submetidos aos vínculos de dependência pessoal
Esse quadro sugere a necessidade de uma mudança de e às relações de favor, esvaziaram a autoridade dos fazen­
perspectiva: a de pensar o camponês como inovador, exa­ deiros e sua fonte de poder. Comprometeu profundamente o
tamente o oposto do que tem sido pensado. Essa mudança, clientelismo político e a subjugação da consciência dos tra­
porém, não deve levar à ingenuidade de supor que a tradição balhadores rurais. Nas áreas cm que a grande propriedade se
e a cultura tradicional já não têm importância no campo, já expandiu, nos anos recentes, expandiu-se pela expulsão dos
não pesam nas decisões e nos acontecimentos. O caminho pequenos agricultores e não por sua inclusão (ou por sua
para refletir sobre o tema é o de examinar as transformações reinclusão através do assalariamento). No passado, o pos­
que modificam velhas relações sociais, que atenuam ou seiro era convertido cm agregado, incluído no círculo da
destroem a autoridade da cultura tradicional e que abrem clientela política dos potentados locais. Hoje, ele é expulso,
espaço para a invenção cultural. Essas mudanças serão aqui submetido a violências físicas. Essa ruptura dolorosa, mas
encaradas como mudanças políticas, de modo que a inova­ libertadora, ajuda a entender o motivo pelo qual, em estados
ção cultural apareça na sua natureza política, como fonte de da fronteira econômica, tenham havido avanços políticos
uma legitimidade alternativa oposta à legalidade vigente. É surpreendentes nas eleições dos últimos anos, como no Acre,
nessa contraposição que se movem os trabalhadores rurais em Rondônia, no Mato Grosso, em Goiás, além de vitórias
em sua luta e é por ela que se pode compreender o sentido eleitorais de grupos políticos avançados no Araguaia, em
da fala nova, do gesto novo, da canção nova, das formas eleições municipais.
modificadas de sociabilidade que podem ser encontradas por No religioso, também houve mudanças importantes. O
todas as partes, dc quarenta anos para cá e, sobretudo, nos monopólio das almas e das consciências pelo catolicismo,
últimos vinte anos. no meio rural brasileiro, sempre dependeu da cooptação da
É necessário registrar mudanças ocorridas no econômico, Igreja em relação à violência da dominação pessoal dos fa­
no político e no religioso. Não são as únicas, mas são estra­ zendeiros, às formas dc subjugação da crença e da vontade
tégicas. dos trabalhadores c agregados por parte do proprietário e
No econômico, mudaram as relações de trabalho, com a patrão. Uma espécie de catolicismo cativo, instrumentali­
expulsão dos trabalhadores residentes, como ocorreu com zado pela autoridade e pelos interesses do grande proprie­
os colonos do café e com os moradores dos canaviais, sua tário de terras. É verdade que a Igreja sempre teve suas
18 19
contradições em relação a essa troca de favores. Isso por­ resultantes da ruptura das velhas relações de dominação e
que, embora favorecendo o fazendeiro, foi por longo período exploração.
um apêndice institucional do Estado, mesmo depois da A tradição dos partidos políticos de esquerda, que tentam
proclamação da República, quando dele se separou legalmen­ com dificuldade canalizar as lutas e os movimentos sociais
te. No topo da hierarquia, os bispos permaneceram longo dos trabalhadores rurais, vem, em nosso país, do liberalismo
tempo cooptados pelo Estado. Na base, os padres foram exaltado que, no scculo XIX, através de uma fração ilumi-
cooptados pelos grandes proprietários de terra. Quando se nista das próprias oligarquias, radicalizava as concepções
abre o conflito entre a Igreja e o Estado, nos anos sessenta, é evolucionistas apoiadas na idéia da ordem. (Daí que ainda
a hierarquia que avança primeiro e cm grande parte avança hoje, no Brasil, se leia Marx como um evolucionista, um
em nome dc projetos políticos que são os mesmos do Estado teórico da mudança pelo desenvolvimento das forças pro­
centralizador e autoritário. É por isso que a Igreja assumirá dutivas, e não como um teórico da revolução.) No campo,
também, desde então, o velho conflito do Estado centraliza­ porém, na nossa tradição camponesa, as grandes mudanças
dor e absolutista, cujo grande herdeiro é o Exército, com as não estão associadas a nenhum evolucionismo e sim a rup­
oligarquias políticas regionais, constituídas basicamente turas, socialmente concebidas como inversões da ordem. Os
pelos grandes proprietários de terra. Oscilou, portanto, entre grandes movimentos sociais no campo foram, até há muito
duas alternativas igualmente desastrosas: de um lado, a de pouco tempo (e ainda há os que o são), movimentos mes­
assumir a modernização proposta pelo Estado autoritário, siânicos. Nessa tradição, a ruptura se dava porque a ordem
que incluía uma reforma agrária contra as oligarquias, o que se invertia, introduzindo, assim, uma lógica nova nas rela­
representaria assumir o moderno e autoritário contra o agrá­ ções sociais, nas concepções, nos valores, nas crenças. A
rio, oligárquico e liberal (um pouco o que aconteceu na tradição evolucionista do pensamento político institucional
Argentina, com o apoio da hierarquia católica aos militares). não consegue dar conta dessa lógica invertida no entendi­
De outro lado, a de recuar para o oligarquismo localista e mento das crises sociais. Não raro, a cultura popular no
agrário, o que reforçaria as forças arcaicas da política e da campo, nos seus momentos mais ricos de inovação, está
dominação locais (como parece ter acontecido na Colôm­ centrada na catástrofe, na perda de sentido das relações e
bia). Optou por outro caminho: buscou uma base própria de concepções estabelecidas. Por isso, os movimentos sociais
legitimidade política, porque cm ambas as alternativas era no campo, nestes últimos tempos, conservam um forte ca­
político o seu confronto. Essa fonte alternativa estava na ráter messiânico, que muitas vezes os camponeses escondem
massa de excluídos, posseiros, trabalhadores rurais, expulsos dos agentes políticos c dos agentes religiosos, portadores de
pela grande propriedade, migrantes, moradores pobres das uma mensagem política que desconhece e desqualifica a
periferias, quase sempre de origem rural. Massa que, ao se utopia c o messianismo em nome de um socialismo que é
libertar dos currais políticos do grande proprietário, da de­ muito pouco além de iluminismo racionalista.
pendência pessoal, das relações dc favor, se libertou tam­ A nova cultura dos pobres do campo nasce no espaço
bém do monopólio religioso católico, como mostra a disse­ produzido pelo rompimento dos vínculos de dependência.
minação de seitas religiosas não-católicas entre as vítimas Esse rompimento, ao libertar o trabalhador, libertou o tra­
dessas expulsões. balho e revelou o significado da propriedade. E uma certa
Esse processo impôs à Igreja uma tarefa histórica, que noção de trabalho que organiza as novas concepções da vida,
os partidos políticos não conseguiram compreender: a de me­ do eu e do outro, do nós, do movimento, das relações sociais,
diar a inovação cultural, as novas formas de consciência os novos valores, o projeto. A nova cultura está centrada no
20 21
trabalho (e suas dificuldades) e não na propriedade, na liber­ rem porque não sabem o que está acontecendo; que vai dos
dade de quem trabalha c na condenação do cativeiro, na funcionários locais, corrompidos pela maldade de proprietá­
concepção de direitos produzidos pelo trabalho. Com a crise rios e jagunços, ao presidente da República, cuja bondade
da dominação pessoal, ocorreu uma restituição do trabalho não se manifesta para fazer justiça aos pobres porque não
a quem trabalha. Embora uma ficção, ela se mantém pela sabe o que está acontecendo. A ordem da seqüência na
marginalização e exclusão dos expulsos e despejados. Nos manifestação do mal c da desumanização que ele produz vai
movimentos sociais dos últimos anos, a condenação da de baixo para cima, do pobre para o rico. Só pode fazer o
propriedade, que excede as necessidades de quem a tem, bem quem tem o poder dc punir e quem tem a propriedade,
deriva da privação dc trabalho que ela impõe aos que dela condição da bondade. O pobre do campo não pode acreditar
precisam para trabalhar. Privação que aparece como priva­ que o mal seja generalizado, porque isso destituiria o con­
ção do direito à vida. junto das pessoas de humanidade, caso em que se instau­
Antes, o favor (c a retribuição do favor como agradeci­ raria o reino do cão, o reinado do mal.
mento e obrigação moral) aparecia como obrigação da pro­ O favor, ao aparecer como obrigação inerente ao direito
priedade, obrigação de quem tem em relação a quem não de propriedade, indica que a propriedade é uma concessão.
tem. As transformações econômicas que levaram à expro- Se o princípio é violado, se o proprietário passa a conceber a
priação e à expulsão dos trabalhadores rurais, e ao fim das propriedade de modo egoísta, tal como a propriedade é
regras e obrigações do favor, desmoralizaram a proprieda­ intrinsecamente, destrói o bem que está embutido no mal,
de economicamente c o proprietário politicamente. É nesse que a este subjuga e redime. Destrói a ordem que regula o
plano que a concepção de pobre ganhou força e sentido novo: mal como instrumento do bem: por meio do mal, da opres­
são pobres os excluídos do direito ao favor (e não exclusi­ são da propriedade, do cativeiro, o bem castiga a maldade
vamente os excluídos do direito à terra, como pressupõe um que há no pobre. E que ganha assim o seu perdão. Mas, se o
materialismo vulgar nem sempre compreendido pelos traba­ mal se torna apenas instrumento do mal, se o proprietário
lhadores). O favor não deve ser fruto do arbítrio de quem o faz da propriedade instrumento da propriedade, se para o
faz, mas é obrigação embutida no direito de propriedade, tal pecado não há remédio, se para a punição não há perdão,
como é reconhecido popularmente. Descumpri-la, viola um esse princípio está rompido: é a desordem. A desordem de­
princípio moral que, por sua vez, desumaniza quem o faz. sata forças novas; novos princípios reguladores da vida e das
Convém lembrar que, na tradição camponesa que herda­ relações sociais, novas concepções, novas relações, nova
mos, a pobreza é um castigo, uma punição. É preciso ter em maneira de ver e conceber as coisas e até novas esperanças.
conta que o núcleo da cultura rústica brasileira é a idéia do Os julgamentos morais que acompanham a redefinição da
castigo, da punição, como contrapartida do pecado, da cul­ propriedade e a luta pela terra, carregados de condenações,
pa. Isso talvez explique porque na trajetória dos diferentes são a base da legitimidade que os trabalhadores opõem à
movimentos sociais no campo, a descoberta do real sentido legalidade que sustenta a propriedade. São também a base
da propriedade da terra, da expulsão, percorra uma escala de das novas formas de viver e lutar, dos mutirões, da posse
avaliações morais que vai do jagunço que, ao personificar o comum, do enfrentamento da tentativa de ordenar o que foi
mal, inocenta o patrão, o proprietário, cuja bondade não se desordenado.
manifesta porque desconhece o mal que está sendo feito aos
pobres: que vai do patrão, que confirma e manda a violência
e a expulsão, aos funcionários do governo que não interfe­
22 23
CAPÍTULO II

LIBERTAÇÃO
NA TERRA DOS AFLITOS *
IGREJA E QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL

"A ssaz o senhor sabe: a gente quer


passar um rio a nado, e passa: m as
vai dar na outra banda é num ponto
muito m ais em baixo, do em que
primeiro se pensou. Viver nem não
é m uito perigoso?"
João G uim arães Rosa,
Grande Seitão: Veredas

1. A QUESTÃO AGRÁRIA N A PASTORAL CATÓLICA

A emergência da questão agrária na pastoral católica, no


Brasil, está diretamente relacionada com transformações
sociais e políticas que, se envolvem a Igreja (melhor seria
dizer, as Igrejas) e alcançam o trabalho de religiosas, padres
e bispos, envolvem também outras instituições. É impossí­
vel falar nas mudanças ocorridas na Igreja sem falar nas
mudanças ocorridas na sociedade. Não quero, aqui, cair no
simplismo de supor que tais mudanças na orientação da
Igreja sejam unicamente o resultado da ação de fatores
externos. Mas, não quero, também, cair num outro simplis­
mo: o de supor que as mudanças decorrem naturalmente de
uma lei que, a partir do interior da própria instituição re­
ligiosa, vá progressivamente revelando novas realidades,
novos compromissos, novas condutas. Antes, penso que o
que caracteriza e particulariza a vigorosa e, às vezes, sur-

* Publicado, originalmente, com o título de "Liberazione nella terra degli


afflitti — Chiesa e questione agraria in Brasile", in Gabricle Colleoni (org.),
Liberazione nella Terra degli Afflitti, Quademi Emi/Sud, Bologna, 1988,
p. 19-63.

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preendente ação da Igreja em relação à questão fundiária é o lógico, permite ver "m ais" e melhor um tema como este da
encontro de processos aparentemente desencontrados. relação entre Igreja e questão agrária.
Explico-me. É comum encontrar nos documentos epis­ Ao mesmo tempo, é necessário não cometer o erro de ver,
copais amplas invocações de papas e doutores da Igreja, nas atitudes da Igreja cm relação aos problemas do campo,
documentos pontifícios, textos sagrados, para mostrar que o privilegiamento da propriedade fundiária como objetivo
aquilo que está sendo feito agora já estava contido lá. É da pastoral, a defesa da propriedade. Esse engano é muito
como se houvesse uma sacralidade anterior que legitimasse comum e leva, com freqüência, a interpretações superficiais,
decisões. Num certo sentido, c um procedimento que dá ao supondo nos bispos e religiosos um maquiavelismo político
que é novo o reconhecimento do que é velho. Trata-se de que não é verdadeiro e uma falta de generosidade que não
uma pedagogia que, ao situar o novo na tradição, situa-o pode ser provada. Muito ao contrário. É claro que estou
contraditoriamente numa certa perenidade que revela o falando da Igreja no Brasil e que não pretendo fazer genera­
sentido do que, por ser novo, aparentemente não tem senti­ lizações nem no espaço nem no tempo, basicamente por
do. Por outro lado, há um certo primarismo de procedimen­ falta de elementos que permitam ampliar as minhas consi­
to em análises de pesquisadores leigos e não-crentes, espe­ derações.
cialmente nos procedimentos de um marxismo muito mal Tomando como referência mais imediata deste trabalho
fundamentado na própria tradição marxista, que tende a um período razoavelmente próximo, como o dos últimos
explicar as mudanças na atitude da Igreja a partir, simples e quarenta anos, é possível constatar em vários documentos
imediatamente, de supostas rupturas derivadas de transfor­ da Igreja, neste país, que o tema da propriedade da terra é
mações econômicas. Sem que se reconheçam aí as media­ mediação para considerações sobre questões éticas, sociais,
ções que transportam o econômico a relações e concepções políticas e pastorais. Portanto, o deciframento correto das
que estão dele distantes porque não são imediatamente posições da Igreja sobre a questão fundiária não parte do
econômicas. problema da propriedade para terminar na propriedade, mas
É claro que uma instituição religiosa altamente corporativa começa em questões éticas, sociais, políticas e pastorais,
e hierárquica, como a Igreja Católica, tem uma autoiíomia passando pelo problema da propriedade, para terminar na
relativa que não pode deixar de ser reconhecida, parti­ dimensão do ético, social, político e pastoral. Isto é, no
cularmente no que se refere às questões ideológicas e po­ problema da humanidade do homem. É na questão da
líticas. Mas, é claro, também, que a Igreja não é uma ilha e concepção do humano que está a chave para decifrar a
que seu próprio corporativismo vai se mantendo, se modifi­ concepção de propriedade que orienta a pastoral. É por
cando ou reafirmando, pela mediação de processos da socie­ aí que se pode compreender porque até bispos intran­
dade, da qual ela, aliás, faz parte. Nem dá para pensar que, sigentemente conservadores podem aprovar e subscrever
justamente questões ideológicas e políticas, "da sociedade", "documentos avançados" sobre um tema tão polêmico como
não estejam, também, num certo sentido, mediatizadas pela é o da propriedade. Foi o que ocorreu na assembléia da CNBB
ação da Igreja, tanto quanto dos partidos, dos sindicatos, da (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), em 1980, quando
família etc. o documento Igreja e Problemas da Terra, ao ser votado,
A questão é, portanto, esta: quais e como se cruzam, se teve apenas quatro votos contrários, apesar de condenar com
opõem ou se combinam processos sociais que operam dife- clareza a propriedade capitalista da terra. E leve-se em conta
rencialmente "dentro" da Igreja e "fora" dela? Penso, por que a conferência episcopal brasileira tem mais de trezentos
isso, que um ponto dc vista não-institucional, e sim socio­ bispos.
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É preciso separar, na análise, duas dimensões distintas: o reprodução ampliada do capital. Ao contrário, representa
verdadeiro problema, que é o problema da constituição do uma dedução do capital inicial. Desde o economista inglês
humano, e a indicação de caminhos e soluções para rcsolvê- David Ricardo, anterior a Marx, já sc sabia que o capital
lo, para superar os entraves que dificultam a constituição teria que remover o empecilho representado pela proprieda­
dessa humanidade. Ou, falando numa linguagem mais apro­ de da terra para que o desenvolvimento capitalista não fosse
priada ao discurso católico, a expressão da humanidade do obstado. Kautsky, um intérprete não muito fiel do pen­
homem. A questão da propriedade da terra é adjetiva no samento de Marx a esse respeito, dirá que o capital teria que
processo de produção do humano e cada vez mais aparece remover esse empecilho mediante a nacionalização da
na fala católica como questão produzida pelos entraves que propriedade da terra, isto é, a sua conversão em propriedade
oferece a que o humano se revele no homem. Evidente­ do Estado.
mente, não estou fazendo um discurso religioso sobre o te­ Na perspectiva católica, que vai sendo progressivamente
ma, mas um discurso sociológico. Por isso, não estou definida nos documentos do cpiscopado brasileiro, a questão
incorporando nele os valores propriamente religiosos, como agrária tem outra dimensão.- É uma questão não porque
o de que na humanidade do homem se manifesta a divin­ impeça o desenvolvimento do capitalismo, mas porque
dade de Deus. Nem o de que nos entraves que se apresen­ impede o desenvolvimento do homem. Isto é, brutaliza,
tam a essa manifestação está presente o pecado (e numa marginaliza e empobrece o ser humano. É nessa brutaliza-
linguagem mais moderna e ativa, o pecado social). ção que transparece a negação da sua humanidade. Em ou­
Aquilo que na tradição marxista foi chamado de questão tras palavras, nessa ótica, a questão agrária não é apenas
agrária aparece modificado na ótica católica. Do ponto de uma questão econômica e sim uma questão moral. Por ser
vista da análise marxista (e não necessariamente marxiana, uma questão moral é que vai se transformar numa questão
isto é de Marx), há no capitalismo uma questão agrária política e vai levar ao confronto da Igreja com o Estado,
na medida em que a propriedade da terra representa uma particularmente após 1968.
contradição e um empecilho ao desenvolvimento do capital. Em princípio,- parccc tentador associar essa perspectiva à
Ou seja, na medida em que a propriedade fundiária represen­ perspectiva do Marx jovem, das obras filosóficas, do debate
ta imobilização improdutiva de capital e um tributo que o sobre a desumanização que a alienação representa para o
capitalista deve pagar ao proprietário de terra para que esta homem. Essa parece ter sido a razão do interesse ávido com
seja incorporada ao processo de reprodução ampliada do que os jovens católicos de esquerda, no Brasil dos anos ses­
capital. Apenas para tornar mais claro: se o capitalista senta, liam Conceito Marxista do Homem, de Erich Fromm,
empregasse o seu capital na indústria, ao invés de comprar um texto em que o pensador alemão retoma o tema da
terra, que não multiplica a capacidade de trabalho do traba­ alienação nas obras filosóficas de Marx. Entretanto, há dife­
lhador explorado pelo capital, compraria máquinas e força renças importantes entre uma perspectiva e outra, que não
de trabalho em quantidade superior àquela que pode com­ vem ao caso analisar aqui.
prar no empreendimento agrícola. Com isso, aumentaria a Faço essa referência apenas para indicar uma das cila­
sua capacidade de extrair excedentes econômicos do traba­ das comuns na interpretação dos textos católicos brasileiros
lhador. Se investisse na agricultura, teria que pagar uma que tratam de questões sociais, levando a equívocos de
renda ao proprietário ou teria que despender uma parte do interpretação tanto bispos quanto intelectuais comunistas,
seu capital para adquirir a terra. Esse gasto não melhora a ainda que por razões opostas. Marxistas que conhecem
eficiência econômica da sua empresa e não concorre para a mal o próprio marxismo, porque trabalham com ele numa

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perspectiva economicista e evolucionista ainda muito 2. M U D A R PARA CONSERVAR: A OPÇÃO PREFERENCIAL PELA
próxima do comunismo da Segunda Internacional, têm muita ORDEM
dificuldade para ler corretamente um texto católico que trate
de questões sociais. Exatamente porque deixam de lado a 0 envolvimento da Igreja na questão agrária, no período que
dimensão propriamente religiosa que perpassa tais textos, estou analisando, tem uma origem claramente política. Essa
fazendo deles uma leitura materialista vulgar. Por razões indicação é importante para uma compreensão correta do
opostas, o mesmo se pode dizer do católico que, sem co­ fato, pois muitos acreditam que tal envolvimento é decor­
nhecer o método dc Marx e sem reconhecer no conhecimen­ rência de uma progressiva explicitação do que tem sido
to que dele resulta um conhecimento científico, acaba fa­ chamado de "opção preferencial pelos pobres". Isto é, no
zendo uma leitura religiosa, c não científica, do materialis- entendimento limitado que tal opção às vezes sugere: uma
mo. Freqüentemente, encarando a análise materialista como preocupação estritamente econômica com os pobres e a
análise "religiosa" por ser, supostamente, uma análise "anti- pobreza material. A origem política de tal envolvimento
religiosa", "m aterialista". não representou, também, uma opção preferencial pelos ricos,
A concepção moral da questão da propriedade retoma o mas sim uma opção preferencial pela ordem. No primeiro
velho tema, de fato presente no pensamento marxiano, da documento episcopal importante a esse respeito, que é a
relação entre a pessoa e a coisa, entre o produtor e o produ­ carta pastoral de D. Inocêncio, bispo de Campanha (Minas
to, entre o trabalhador e o instrumento de trabalho, entre o Gerais), essa preferência fica evidente '. Sintomaticamente é
sujeito e o objeto. E, ao privilegiar a pessoa em relação à uma carta pastoral de 10 de setembro de 1950, alguns dias
coisa repõe um tema que foi caro ao marxismo dos tempos depois do lançamento do "Manifesto de Agosto", do PCB
de Marx — o tema da libertação. Não se trata do tema da (Partido Comunista do Brasil). O documento dos comunistas
liberdade, no sentido que tal palavra teve no contexto das preconizava uma reforma agrária radical, como parte de um
revoluções burguesas e do pensamento liberal. Não é dessa combate não só contra a burguesia do país, mas também
liberdade que falam os documentos da Igreja. Por isso mes­ contra o imperialismo. A carta pastoral menciona expressa­
mo, é que tais documentos sugerem para alguns, mais do mente o "perigo comunista":
que uma preocupação com a liberdade, uma preocupação
corporativista com a própria instituição da Igreja. Nesse nível, "E os agitadores estão chegando ao campo. Se agirem
o leitor desconfiado verá no pensamento e na ação da Igreja com inteligência, nem vão ter necessidade de inverter
no Brasil, antes a propriedade, a clientela religiosa, a tentativa coisa alguma. Bastará que comentem a realidade, que
de manipulação, isto é, o oposto da libertação. Não quero ponham a nu a situação em que vivem ou vegetam os
dizer que tal preocupação não exista no pensamento e na trabalhadores rurais." 2
ação de certos setores da Igreja. Quero dizer apenas que a
minha análise está apoiada em documentos de pastoral social E conclama os proprietários de terra:
e resgata, por isso, aquilo que melhor corresponde ao anti-
conservadorismo da práxis católica. Não posso deixar de 1 D om Inocêncio Engclkc, bispo de Campanha (MG). Carta pastoral:
assinalar que tal práxis, como ocorre com outros grupos, "Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma rural", 10 de setembro de
inclusive partidos de esquerda, é às vezes ambígua, ambi­ 1950, in Estudos da CNBB, Pastoral da Terra, Edições Paulinas, São Paulo,
1976, p. 43-53.
güidade que expressa as contradições de uma ação que inci­
de tão cerradamente sobre o tempo histórico. 1 Ibidem , p. 45.

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"Antecipai-vos à revolução".3 Esse apelo pode, porém, confundir o analista, supondo
que representa apenas e simplesmente expressão de um
Essa preocupação c reiterada em documentos episcopais anticomunismo gratuito. Na verdade, o problema da época
posteriores. Num documento tão importante quanto a era outro, como fica claro no documento do bispo de
Declaração dos Bispos do Nordeste, de 1956, após referên­ Campanha. Os anos cinqüenta foram anos de crise política,
cia ao êxodo decorrente das condições dc vida dos trabalha­ de industrialização e de desenvolvimento urbano. O surto
dores rurais, os bispos assinalam que industrial desse período revela uma Igreja relativamente des­
preparada para enfrentar a rápida urbanização, as migrações,
"...tornaram-se, por isso mesmo, as favelas cariocas fo­ o crescimento da população urbana e das cidades, a moder­
cos de perigosa agitação social, sobretudo devido à ex­ nização e, sobretudo, o reflexo dessas mudanças no mundo
ploração comunista." 4 rural, particularmente nos padrões de dominação social e
política. Sintomaticamente, o Estado de Minas Gerais e o
Os bispos de São Paulo, em 1960, insistirão no caráter pre­ Nordeste do país foram as regiões de mais intensa e maciça
ventivo e anticomunista da mobilização dos trabalhadores migração em direção ao Sudeste, particularmente em dire­
rurais: ção a São Paulo, onde a industrialização era mais intensa.
Também no Rio dc Janeiro, o afluxo dos migrantes de origem
"Quando o comunismo vos convidar para grupos e li­ rural, que desciam pela rodovia Rio—Bahia, foi encher as fa­
gas de defesa dos vossos interesses, já deveis estar or­ velas da então capital do país, aumentando os problemas so­
ganizados em núcleos democráticos e construtivos que ciais. O cardeal do Rio chegou a desenvolver uma campanha
desejamos ajudar a criar, independentes de qualquer sistemática, praticamente uma pastoral específica, voltada
exigência religiosa." 5 para os favelados, a chamada Cruzada São Sebastião.
O que foi chamado, então, de êxodo rural, tinha sérias
E no ano seguinte, já cm plena crise política, novo documento implicações no campo. Os grandes proprietários, acostu­
proclama que mados a contar com uma grande massa de população so-
brante, que lhes permitia adotar padrões de exploração da
"Ajudar a firmar a Ação Católica Rural c assegurar ao força-de-trabalho muito próximos da escravidão, ressenti­
meio rural mística bastante forte para contrabalançar e ram-se com o que às vezes foi chamado de "desorganização
superar a mística comunista." 6 do trabalho rural". O êxodo criava dificuldades para o recru­
tamento de trabalhadores, ao menos em certos momentos
3 lbidem , p. 46. do processo de trabalho, como o da colheita.
4 Declaração dos Bispos do Nordeste (1956), in C om issão Brasileira Justiça É verdade que transformações estavam ocorrendo nas
eP az, CNBB & Nordeste, 1956-1984 (Caderno nQ2), Editora Liberjuris Ltda., condições de trabalho, e não necessariamente no processo
Rio de Janeiro, s/d, p. 100.
de trabalho, menos por inovações técnicas, que ainda eram
5 Declaração dos Arcebispos e Bispos Presentes à Reunião das Províncias
Eclesiásticas de São Paulo, 5 dc dezembro dc 1960, in Estudos da CBNN, ob.
poucas e insuficientes, e mais como decorrência das pró­
cit., p. 109. prias necessidades de expansão das culturas. O caso da cana-
6 "A Igreja e a Situação do Meio Rural Brasileiro", Reunião Extraordinária de-açúcar, no Nordeste, é significativo. Depois de um perío­
da C om issão Central da CNBB, 3 a 5 de outubro de 1961, in Estudos da CNBB, do de crise e semi-abandono de muitos canaviais, em.que os
ob. cit., p. 125.
trabalhadores permaneceram nas fazendas graças a uma
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agricultura de subsistência combinada com o cultivo da cana, decorrência, eram rompidas lealdades políticas fundamentais,
a melhora nos preços do açúcar no mercado internacional clientelísticas. Os documentos episcopais desse período mal
estimulou os proprietários a retomar e ampliar seus cultivos. disfarçam que eram rompidas também lealdades religiosas.
Em conseqüência, os chamados moradores começaram a ter Os migrantes, libertados das relações de sujeição pessoal, ao
as suas áreas de subsistência reduzidas, para que nelas fosse chegarem às cidades tornavam-se alvos fáceis do proselitis­
feito o plantio de cana, além de submetidos ao aumento do mo religioso. Iam engrossar a clientela das seitas evangéli­
número de dias de trabalho que estavam obrigados a ceder cas e fundamentalistas, que tinham um discurso religioso e
ao fazendeiro para terem direito de continuar o cultivo de moralmente conservador, mensagem defensiva contra os
seus roçados. O problema vai resultar na expulsão dos mo­ males da cidade grande, contra o grande mundo do pecado e
radores para a periferia das fazendas e sua transformação da desagregação da família. Têm certa razão os estudiosos
nos chamados trabalhadores clandestinos , conhecidos em que incluem no estudo da Igreja Católica o ingrediente da
outras regiões como bóias-frias, os assalariados do campo 1. disputa, com as seitas, pela clientela religiosa 9. Até porque
As migrações para as regiões industrializadas recebiam, as seitas pentecostais, que proliferaram nos anos cinqüenta,
assim, um impulso de dentro da própria economia agrícola. respondiam adaptativamente às necessidades novas do mi­
Aliás, um processo parecido estava acontecendo também na grante recém-chegado e se empenhavam deliberadamente
região sudeste, com a modernização da cultura do café e a na conquista das almas recém-evadidas e libertadas do curral
substituição dos cafezais velhos por novos cafezais, com político (e também religioso) do mundo rural. Lembro, ao
novas variedades, melhor aproveitamento do terreno, valori­ acaso, que diversas seitas se juntaram, em 1954, para realizar
zação da terra e das culturas de subsistência, como resulta­ em São Paulo o 7- Congresso Mundial de Evangelismo, com
do do crescimento do mercado urbano. Nessas condições, forte presença de pregadores americanos e intensa campanha
diminuiu o interesse pelo trabalhador residente na própria de proselitismo nos bairros da periferia da cidade, culminando
fazenda, fato que vai resultar na sua posterior expulsão e com grande manifestação no Estádio Municipal do Pacaembu.
transformação em trabalhador bóia-fria, residente na perife­ Pouco depois, organizadamente, os evangélicos elegeram qua­
ria das cidades do interior e empregado sazonalmente, sobre­ tro vereadores à Câmara Municipal de São Paulo.
tudo na colheita. v É na carta pastoral do bispo de Campanha que se encontra
Tais mudanças tinham conseqüências políticas. Elas a única referência claramente comprometedora do documen­
desarticulavam as relações tradicionais de dominação, ba­ to com a tradição conservadora. Num certo momento diz que
seadas no poder pessoal do proprietário de terra, a chamada
patronagem, a relação de dependência entre o patrão e o "...mesmo precária, a situação do trabalhador rural ainda
trabalhador 8. O poder político estava fortemente apoiado é incomparavelmente melhor do que a do operário das
nessa relação, mesmo, em grande parte, o Estado nacional, cidades..." 10
acentuadamente clientelístico. Não só surgia, num certo
sentido, um mercado de trabalho rural, mas também, em Um claro privilegiamento do familismo rural, da auto-sufi­
ciência alimentar (que cada vez mais é menos verdadeira),
7 Cf. Lygia Sigaud, Os Clandestinos e o Direito, Livraria D uas Cidades, São
Paulo, 1979, passim . 9 Cf. Ralph Delia Cava, "Igreja e Estado no Brasil do Século XX ", in Estudos
Cebrap, n5 12, abril/junho 1975, passim .
‘ Cf. Emanuel de Kadt, Catholic R adicais in Brazil, Oxford University
Press, London, 1970, p. 9-22. 10 D om Inocêncio Engelke, loc. cit., p. 44.

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da prevalência do princípio da autoridade sobre o princípio presentou um salto na interpretação que a Igreja fazia dos
do poder. Em outros termos, as mudanças registradas são problemas sociais do país e, particularmente, da sua raiz
lamentadas e tomadas como sinais de desagregação da ordem agrária. A Declaração é quase um documento técnico, com
social, de decadência. As mudanças são vistas com olhos indicação de diagnósticos econômicos c soluções. É verdade
estacionados no passado, como é característico do pen­ que foi produto dc uma reunião mista, envolvendo bispos,
samento conservador. E aqui é importante sublinhar um técnicos do governo c militares. Sc a carta do bispo dc Cam­
detalhe de extrema importância para a compreensão do panha foi um documento centrado na noção dc ordem, a
desdobramento posterior da pastoral católica. Num ccrto Declaração dos Bispos do Nordeste (1956) foi um documen­
momento da carta episcopal (que resultou de estudos reali­ to centrado na noção dc progresso. É fundamentalmente uma
zados durante uma reunião de sacerdotes e numerosos fa­ declaração âesenvolvimentista, com amplas recomendações
zendeiros) está dito: favoráveis à modernização técnica, aos investimentos de
capital, à modificação das estruturas econômicas 13. É, dc
"Longe de nós, patrões cristãos, fazer justiça movidos modo claro, uma opção pelo desenvolvimento econômico
pelo medo." 11 como saída para o atraso, a pobreza c a economia agrária
tradicional e latifundista. E desenvolvimento capitalista.
Essa referência não só mostra uma igreja que, nesse As razões mais profundas dessa mudança dc orientação
momento, fala com a boca do patrão. Mas, mostra sobretudo do episcopado não eram dc natureza econômica. A Declara­
uma fala que junta o patrão à ordem e, por isso, ao passado. ção representou o afastamento político em relação aos gran­
Esse fato é essencial para decifrar mudanças nas atitudes da des proprietários dc terra. As razões mais profundas eram
Igreja em relação aos proprietários dc terra. À medida que a históricas. Até a proclamação da República, cm 1889, bispos
compreensão da Igreja sobre os problemas do campo evoluir e sacerdotes eram funcionários do Estado. Na tradição polí­
e seu diagnóstico a respeito se modificar, com as conse­ tica brasileira, desde os tempos da Colônia, a dinâmica do
qüentes modificações na pastoral, ficará cada vez mais claro poder era regida por uma tensão entre a Coroa c as "repúbli­
que o patrão-proprietário está ligado a um passado econômi­ cas", entre o Rei e os municípios, entre a monarquia absolu­
co e político do qual a Igreja se afasta. Esse passado será ta e o poder local. Nesse quadro, os vínculos c pactos da
concebido como escravista e colonial, isto é, diz respeito a Igreja eram com a Coroa c não com o município. As expul­
um capitalismo inacabado, num primeiro momento da sões de jesuítas, nos séculos XVII e XVIII, cm decorrência de
compreensão, e inviável, no momento posterior. motins municipais provocados pela intcrfcrência da Igreja
em favor da liberdade dos índios, constituem sintomas dc
uma tensão também entre Igreja e poder local. É verdade
3. A CRISE D A PATRO NACEM POLÍTICA E O DESENVOLVIMENTO que a partir da segunda metade do século XVIII, com a ex­
CATÓLICO pansão mercantil e o crescimento dos monopólios econômi­
cos nas mãos do Estado, a Igreja começou a ser banida do
A Declaração dos Bispos do Nordeste, de 1956, seguida de poder, como ilustra a expulsão dos jesuítas do reino, pelo
outro documento, com o mesmo título, de 1959 12, rc- Marquês de Pombal, e o confisco de seus bens. Esse proces­
11 Ibidem , p. 45.
so só se completará cm período bem próximo a nós. Apesar
12 Declaração dos Bispos do Nordeste (1956), in C om issão Brasileira Justiça
e Paz, cit., p. 47-54. 13 Declaração dos Bispos do Nordeste (1956), cit., p. 25-44

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se converteram ao protestantismo. Houve uma clara asso­
do afastamento da Igreja em relação ao Estado, e em decor­
ciação entre a expansão capitalista da segunda metade do
rência da sua própria organização interna, ainda politicamen­
século XIX e a expansão do protestantismo histórico entre
te monárquica e absolutista, ela se manteve estruturalmen­
as elites, ainda que em escala limitada 15.
te "estranha" ao avanço político dos representantes do po­
Com o tempo, a Igreja encontrou mais identificação com
der local.
o Estado centralizado do que com o Estado federativo. Na
O fim da monarquia, em 1889, e a decorrente separação
tradição brasileira, isso quer dizer maior identificação com
do Estado em relação à Igreja, lançaram esta última numa
os períodos de ditadura e de centralização política. É verda­
situação muito ambígua. A proposta republicana tinha duas
de que, até 1930, os militares foram os agentes dos poucos,
faces conflitivas. De um lado, os liberais, bacharéis clara­
mas significativos, momentos de centralização do poder. E a
mente vinculados à grande propriedade territorial e às oli­
tradição positivista não favorecia a reconversão do cato­
garquias rurais que representavam a tradição municipal do
licismo em religião oficial. É verdade, também, que no pe­
poder local. Eram os beneficiários do clientelismo político,
ríodo autoritário recente, apesar do apoio inicial da Igreja,
das relações patrão-dependente, da falta de liberdade civil
outros fatores concorreram para que ela fosse excluída dos
real do povo u. Até 1888, teve vigência no país a escravidão
favores do Estado. Entre eles, uma certa protestantização do
negra. Muitos desses liberais eram de famílias de proprie­
Estado brasileiro, que se revelou nitidamente desde os
tários de escravos. Para complicar as coisas um pouco mais,
primeiros momentos da ditadura militar 16.
foram os conservadores e não os liberais que encaminharam
Nos períodos de abertura, nos chamados governos civis,
o processo de abolição da escravatura. Portanto, tratava-se
perdurou, em graus variáveis, a dificuldade para conciliar o
de um liberalismo muito diferente, na teoria e na prática, do
liberalismo-oligárquico com a tendência absolutista da Igre­
liberalismo europeu.
ja. É verdade que até 1930, também dentro da Igreja, houve
De outro lado, a República tinha uma face autoritária,
uma organização relativamente descentralizada, articulada
antiliberal e antioligárquica, representada pelos militares que
em torno do bispo e da diocese, o que facilitou a coexistência
a proclamaram. Num certo sentido, a proclamação da Repú­
das oligarquias com a hierarquia católica.
blica foi um golpe dos militares favoráveis ao Estado centra­
lizado contra os civis, liberais, favoráveis a um Estado fede­ 15 Cf. Richard Graham, Britain and the Onset of M odernization in Brazil,
rativo, fortemente apoiado no poder local. Militares e libe­ 1850-1914, Cambridge, at the University Press, 1968, p. 277-297.
rais compartilhavam, porém, a mesma hostilidade à preten­ 16 Com a ditadura militar, protestantes tiveram acesso, pela primeira vez na
são católica de se constituir em religião oficial. Os milita­ história do Brasil, a funções do Poder Executivo ou tiveram presença em
posições importantes na estrutura de poder: Jeremias Fontes, presbítero da
res, porque eram positivistas (não é demais lembrar que até Igreja Presbiteriana dc Niterói, tomou-se governador do Estado do Rio de
hoje a bandeira brasileira, instituída em 1889, ostenta o Janeiro. Em Pernambuco, Eraldo Gueiros tomou-se governador, pessoa de
lema positivista "Ordem e Progresso"). Os civis liberais, tradicional fam ília protestante ligada à justiça militar. Em São Paulo, com a
cassação do mandato e dos direitos políticos do governador Adhemar dc
porque vinham da tradição municipal anticentralizadora (e Barros, assum iu o governo Laudo Natel, do Bradesco — Banco Brasileiro de
republicana, no velho sentido localista) e advogavam a liber­ D escontos (do presbiteriano Amador Aguiar). C om ele, tomaram-se se­
dade de culto. Na própria região cafeeira de São Paulo, velhas cretários de estado os presbiterianos Oswaldo Müller e Esther de Figueiredo
Ferraz, ligados à Universidade Mackcnzie, presbiteriana. Tom ou-se prefeito
famílias de grandes proprietários de terra, tradicionalíssimas, de São Paulo o presbiteriano independente Manuel dc Figueiredo Ferraz. Uma
figura tenebrosa da ditadura, o general Humberto de Souza Melo, com an­
14 Cf. Victor N unes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, 2.- edição, Editora dante do Segundo Exercito, sediado cm São Paulo, era membro da Igreja Ba­
Alfa-Ômega, São Paulo, 1975; Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, Editora tista da Vila Mariana (SP). Finalmente, o luterano (do grupo conservador que
Globo, Porto Alegre, 1958.
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A Revolução de 1930 coincidiu com a elevação de D. Portanto, o ambiente do Estado centralizado e desenvol-
Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro, a cardeal — o vimentista, antioligárquico e antiliberal, modernizador, foi
primeiro da América Latina. Político hábil, o cardeal traba­ um ambiente mais adequado às tradições políticas do cato­
lhou ativamente para articular a centralização dentro da licismo no Brasil. Se com D. Sebastião Leme o catolicismo
Igreja, cuja sede, aliás, era a do Arcebispado da Bahia. A brasileiro inclina-se claramente para a preocupação política
Igreja do Rio passou a ser o centro do catoücismo brasileiro com a ordem, com o caráter corporativo da ordem social e
e o cardeal a personificar essa centralização 17. O período do política, inclina-se, também, para a classe média 19. Tanto
governo Vargas, que foi de 1930 a 1945 (e de 1937 em diante, em termos do Estado, com os militares, quanto em termos
com a ditadura de direita) foi aquele em que a Igreja Católica da Igreja, os anos trinta foram anos de ascensão política da
gozou de maiores atenções do Estado e o catolicismo prati­ classe média. Conseqüentemente, se foram anos de ascen­
camente teve o "statu s" de religião da maioria da nação. Há são da mentalidade autoritária, foram também anos de as­
autores que se referem a esse período como época de uma censão da mentalidade economicamente modernizadora.
neocristandade, época de uma Igreja associada ao Estado. Na prática política da Igreja, essa adesão representava uma
Essa associação abria portas para a presença católica numa opção contrária às oligarquias dos estados e municípios e
situação social amplamente modificada pelo desenvolvi­ representava, portanto, uma atitude politicamente crítica
mento econômico, pela nova industrialização que se im­ em relação aos grandes proprietários de terra, comprometi­
planta a partir de 1937, fortemente apoiada pelo Estado. Foi dos com formas econômicas atrasadas e com relações de
um momento de crescimento da classe operária, de migrações trabalho antiquadas e opressivas. Esclareço, entretanto, que
e crescimento das cidades em decorrência, também, da crise essa tensão estrutural não era necessariamente transparente
da lavoura de exportação, particularmente o café. Os sindi­ e não levava, conseqüentemente, a uma pastoral social oposta
catos legalizados e cooptados pelo Estado sindicalista, e os cír­ ao latifúndio e ao regime de propriedade. Ela existia como
culos operários católicos, abriam um espaço que a Igreja não possibilidade histórica e seu desabrochar dependeria, como
podia subestimar nem podia ter sem apoio da ditadura 18. dependeu, de outros fatores, de ordem social e política, e
também de fatores de ordem interna, da Igreja. Internamen­
apoiou a ditadura) General Ernesto G eisel tomou-se presidente da República. te, a possibilidade se revelaria no Concilio Vaticano II e na
São casos identificados a "olho n u", sem um a investigação sistem ática. Salvo Conferência de Medellín. Externamente, no desenvolvimen-
engano, é a primeira vez que se menciona o fato e se levanta a hipótese da
p rotestan tização do Estado brasileiro na recente ditadura. O que poderia ter tismo dos anos cinqüenta, no florescimento e disseminação
sido u m indício de democratização da sociedade brasileira foi, ao contrário, das lutas sociais no campo, sobretudo no Nordeste, e no
sinal de um a nova face do autoritarism o. Não é dem ais lem brar que as igrejas golpe de Estado de 1964 que, em pouco tempo, se tornaria
mencionadas apoiaram o governo autoritário. Essa circunstância, por m e­
diações com plexas que não é possível analisar aqui, está associada à repressão muito repressivo e violento contra a Igreja.
dos grupos conservadores, no caso da Igreja Presbiteriana do Brasil, desde o De qualquer modo, a clientela religiosa rural ainda estava
início dos anos sessenta, com o conseqüente afastam ento ou marginalização muito presa nas malhas de uma estrutura social e de poder
de pastores e fiéis progressistas e ecumênicos. A associação entre o religioso
e o político, no processo histórico brasileiro, merece u m estudo aprofunda­ que não era a das relações contratuais de trabalho, do reco­
do, tanto em relação ao catolicism o quanto em relação ao protestantism o. nhecimento da individualidade civil do trabalhador. Ainda'
Gabe ainda lembrar que um a seita pentccostal, como a Igreja "Brasil para era uma estrutura de dependência pessoal, da relação patrão-
C risto", colocou-se contra a ditadura, coisa que não ocorreu com algum as
igrejas protestantes históricas. cliente, do favor e da autoridade, da anulação coercitiva da
17 Cf. Ralph D elia Cava, loc. cit., p. 12-13.
18 Ibidem , p. 19. 19 Ibidem , p. 12.

40 41

f ,
vontade pessoal do trabalhador rural. O catolicismo do ser­ das relações de trabalho. Foi o que dilacerou a eficácia polí­
tanejo e camponês ainda se apresentava como lealdade ao tica da noção de ordem no pensamento católico no Brasil,
padre e ao bispo, que eram para ele a Igreja, do mesmo pois permitiu introduzir nele a noção de tempo histórico,
modo que sua vontade política derivava da lealdade ao patrão, de movimento, de transformação.
ao fazendeiro. A ruptura dessas lealdades dependeria de Os documentos episcopais começam a registrar e a
tempo, de transformações econômicas e sociais, e também denunciar, a partir de meados dos anos cinqüenta, os des-
eclesiais. compassos entre a possibilidade e a realidade. As relações
A Declaração dos Bispos do Nordeste, de 1956, re­ de trabalho no meio rural, a situação dos trabalhadores do
presentou, pois, a confluência desses vários fatores histó­ campo, as más condições de vida, começam a ser vistas
ricos, que permitiam um salto na teoria e na prática da como resultantes da falta de desenvolvimento econômico,
pastoral social. O novo conceito que centraliza o pensamen­ da existência de fatores adversos a que as possibilidades do
to episcopal é o de desenvolvimento 20. Embora existam capitalismo desenvolvido ali se concretizem:
muitas convergências entre o diagnóstico dos bispos c o
diagnóstico do governo, há um componente de origem con­ "Esta gente trabalha sem técnica e sem ajuda de recur­
servadora e pré-capitalista essencial para compreender ati­ sos técnicos. (...) O baixo nível dc inversão dc capitais,
tudes posteriores da Igreja. Refiro-me a uma concepção mo­ o reduzido rendimento por unidade de área e a absorção
ral e não simplesmente econômica de desenvolvimento: de elevada porcentagem de mão-de-obra não especiali­
zada em rotineiras atividades ligadas ao solo e à criação
"Falando, assim, somos insuspeitos para dar aos econo­ — eis, em grandes linhas, a configuração da vida eco­
mistas aviso importante para a própria interpretação nômica, na região.
econômica da realidade nordestina ou nacional: a econo­ "A inexistência ou desarticulação dos vários serviços
mia que se isola c corta ligações com a moral se torna que deveriam suplantar esta economia semifeudal —
inumana e irreal." 21 serviços de crédito, armazenagem, comercialização dos
produtos, serviços dc educação, de saúde, de formação
Essa concepção moral do desenvolvimento servirá, nos de base e de preparação para uma vida melhor — com­
anos seguintes, como parâmetro crítico para avaliação pasto­ pleta o resto do quadro". 22
ral e política das condições de vida do povo brasileiro por
parte da Igreja. Será a idéia-elemcnto que permitirá o avanço De conformidade, aliás, com teses da época a respeito do
da consciência e da postura crítica de religiosas, sacerdotes subdesenvolvimento c suas causas, o episcopado também
e bispos no confronto de uma realidade social dc conflitos, entendia que o subdesenvolvimento era o resultado de uma
de violência e de exploração. Voltaremos a isso mais adiante. falta de desenvolvimento, de uma insuficiência no interior
A primeira decorrência da adoção do conceito de desen­ das economias atrasadas c estagnadas que impedia a emer­
volvimento como idéia-mestre da interpretação da realidade gência de fatores novos, capazes de romper o que um teóri­
social por parte da Igreja foi uma ampla reavaliação crítica co da época chamou dc círculo vicioso da pobreza M. O
da situação e das relações sociais é, mais especificamente,
22 Ibidem, p. 29.
23 Cf. Ragnar Nurkse, Problem as de Formación de C ap ital en los Paises
20 Ibidem , idem. Insuficientem ente D esarrollados, trad. Martha Chávez, 3a. edición, Fondo
21 Declaração dos Bispos do Nordeste (1956), loc. cit., p. 28. de Cultura Econômica, México, 1963, esp. p. 13-14. O livro de Nurkse, na

42 43
rompimento desse círculo vicioso dependeria da ação de um demais dizer que ainda hoje em muitas regiões do país pre­
agente externo, no caso o Estado, através do planejamento valece essa concepção do mando e do poder pessoal e que
econômico e da alocação de recursos públicos em setores trabalhadores são torturados ou mortos simplesmente por­
que tivessem um efeito dinamizador sobre o conjunto da que reivindicam direitos consagrados nas leis.
situação de atraso. É sintomático que a Declaração dos É, com base nessa orientação, que a Igreja, no início dos
Bispos do Nordeste (1956), produto de estudos e reflexões, anos sessenta, se envolve num amplo movimento em favor
como disse, em conjunto com técnicos do governo, fizesse da sindicalização dos trabalhadores rurais. É verdade que tal
parte do processo que vai desembocar na Operação Nordes­ empenho esteve marcado pela disputa com os comunistas,
te e, logo em seguida, na criação da Superintendência do que desenvolviam uma importante atividade de criação de
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) pelo governo fe­ organizações pré-sindicais e de mobilização de trabalhado­
deral. É com base nessa orientação que os bispos, em di­ res do campo. Mas seria meia e incompleta explicação a de
ferentes ocasiões, denunciarão e combaterão a chamada que a Igreja se envolveu no movimento de sensibilização,
"indústria da seca". Esse foi o nome que se deu, na época, mobilização e organização sindical dos trabalhadores rurais
aos procedimentos das oligarquias regionais, que aproveita­ simplesmente para não perder o controle do rebanho católi­
vam o drama da seca periódica para obter sempre mais re­ co. É verdade que, mais ou menos remotamente, persistiu a
cursos do governo federal e que serviam basicamente para motivação anticomunista do episcopado. Mas, se antes a
manutenção do clientelismo político, nunca para atender as motivação tinha uma raiz conservadora, em defesa da ordem,
necessidades reais das vítimas. agora a raiz era outra: tratava-se de promover uma entrada
Essa interferência de origem externa daria sentido a uma maciça dos trabalhadores rurais no moderno mundo capita­
pastoral da promoção humana, de "conscientização", como lista, basicamente no mundo da igualdade jurídica e dos
se dizia que representaria, na verdade, o combate claro da direitos civis.
Igreja contra a dominação clientelística e a relação patrão- Um detalhe importante dessa onda emancipacionista é
dependente, as formas de sujeição pessoal. É nessa linha que que, de outro modo e por outras razões, também envolveu
a ação da Igreja se orientou pelo reconhecimento dos direi­ os comunistas, cujo Partido estava na clandestinidade, e
tos dos trabalhadores rurais, pela luta cm favor do reco­ envolveu o próprio governo federal, setores esclarecidos das
nhecimento e cumprimento de direitos já definidos na lei, classes médias urbanas, industriais do Sudeste do país etc.
mas subtraídos aos trabalhadores pelas relações de cliente­ Conforme observou um autor, ligas camponesas e sindicatos
lismo. Embora a lei estabelecesse certos direitos sociais, no instituíram, a seu modo, uma tutela sobre os trabalhadores
interior da grande propriedade fundiária o direito era cons­ rurais, que desempenhou funções semelhantes à da tutela
tituído basicamente pela vontade pessoal do patrão. Não é do patrão em relação a seus dependentes 24. Aparentemente,
não eram os pobres do campo que reagiam à miséria, à
m aior parte, reúne conferências feitas no Rio de Janeiro, em 1951. Cf., pobreza, à violência e à injustiça. Eram os outros, os de fora
também, Gunnar Myrdal, Teoria Econômica e Regiões Subdesenvolvidas,
trad. Ewaldo Corrêa Lima, Instituto Superior dc Estudos Brasileiros, Rio de
do mundo rural, a classe média ilustrada — estudantes,
Janeiro, 1960, esp. cap. II. Myrdal retoma as teses de N urkse sobre o "círculo religiosas, padres, bispos, militantes de esquerda, intelectuais
vicioso da pobreza" e desenvolve a idéia de "causação circular e acumula- — que se envolviam na ação libertadora.
tiva" neste estudo publicado originalmente em 1956. Suas teses tiveram
grande influência na política desenvolvim entista do govemo Kubitschek, 24 Cf. Benno Galjart, "C la ss and 'following' in rural Brazil", in America
tanto que a edição brasileira do livro foi feita pelo próprio govemo, através do Latina, vol. VII, ns 3, Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências
ISEB. Sociais, Rio, 1964; Emanuel de Kadt, ob. cit., p. 16-27.

44 45
Tanto na Igreja como fora dela, os anos cinqüenta anun­ reformas sociais impossíveis num regime político aberto.
ciam para os trabalhadores rurais o que se poderia chamar Lembro, também, que a Igreja se envolveu no golpe de Esta­
de tutela esclarecida, iluminística. Em suma, tratava-se de do não só condenando o governo Goulart, mas também
um amplo movimento, envolvendo diversos grupos e forças participando das "Marchas da Família, com Deus pela Li­
sociais, para libertar o país da tutela das oligarquias e do berdade", que a partir de 19 de março de 1964 se realizaram
atraso econômico, social e político que elas representavam. em varias regiões do país, para promover a mobilização de
Mas, por outro lado, em diversas regiões surgiram lutas po­ massa que respaldaria o golpe militar.
pulares espontâneas, posteriormente dirigidas por grupos que Antes do golpe, a Igreja já havia aberto mão da defesa
deram a elas o dimensionamento propriamente político 25 e intransigente da propriedade da terra, que até então con­
que representavam, igualmente, o rompimento, de baixo para fundira com o bem comum, e aceitado a tese da desapro­
cima, das velhas relações de dominação e de propriedade. priação dc terras independente da indenização em dinheiro.
Esse era o ponto complicado da disputa política em torno da
questão da reforma agrária. A Constituição brasileira de 1946,
4. DO CAPITALISMO INACABADO AO CAPITALISMO INVIÁVEL embora preconizasse a desapropriação de terras por interes­
se social, eufemismo para a reforma agrária, ao mesmo tempo
As esperanças que a Igreja depositou na ação do Estado e no estabelecia que o pagamento da desapropriação deveria ser
desenvolvimento econômico por ele induzido foram corroí­ prévio, justo e em dinheiro. Isso, na prática, impossibilitava
das mais ou menos depressa. Criada a SUDENE, em 1959, a reforma. É verdade que João Goulart, o presidente civil e
logo se viu que a interferência externa para quebrar o círcu­ constitucional deposto em 1964, já decretara diversas desa­
lo vicioso da pobreza se deparava com outros círculos propriações em 1963, na tentativa de forçar a barreira legal e
viciosos: o próprio "círculo vicioso do capital" e o círculo política que dificultava essa medida. É necessário lembrar
vicioso do poder. O golpe de Estado de 1964 e a ditadura são que a luta pela terra crescera nos anos cinqüenta, com as
recebidos como o meio de quebrar esse círculo vicioso do revoltas camponesas do Sudoeste do Paraná, a da região de
poder, que restaurava sempre as oligarquias e seu domínio, Porecatu, no mesmo estado, e a da região de Trombas, em
seu compromisso com o atraso e a pobreza. Era meio, tam­ Goiás, sem contar a ampla e rápida disseminação das Ligas
bém, de afastar os comunistas e outros progressistas, inclu­ Camponesas, sobretudo no Nordeste. Os focos de conflito
sive católicos de esquerda, que, com a agitação social e surgiram em várias regiões, mesmo no industrializado Esta­
política, supostamente impediam que as possibilidades do do de São Paulo. Mas foi em Minas Gerais, um estado tra­
desenvolvimento econômico e capitalista se concretizassem dicionalmente oligárquico, de política fortemente clientelís-
para os pobres do campo. Lembro, aqui, que D. Hélder tica, que um desses focos de conflito, em Governador Vala­
Câmara, figura luminar da Igreja, cujo dedo e cuja inteligên­ dares, serviu de estopim para o golpe militar 2é.
cia estão por trás de muitos documentos episcopais dos anos Em 1963, a Igreja já admitira que as indenizações das
cinqüenta e sessenta, foi recebido pelo Marechal Castelo desapropriações poderiam ser feitas em títulos da dívida
Branco, presidente da República, após o golpe. Setores lúci­ pública. De fato, em diferentes momentos da ditadura militar,
dos da Igreja acreditavam que o regime militar concretizaria o governo tomaria decisões que atenuariam o direito de
propriedade. Em primeiro lugar, submetendo ao Congresso
25 Cf. José dc Souza Martins, Os Cam poneses e a Política no Brasil, %r
edição, Editora Vozes, Petrópolis, 1986, cap. 1. 16 Ibidem, passim .

46 47
Nacional, depurado pelas cassações de mandatos e de direi­ Tratava-se, pois de uma reforma econômica que, se, de
tos políticos, um projeto de reforma constitucional que um lado, atingia sem destruir, modernizando, as oligarquias
substituía a indenização em dinheiro pela indenização em rurais e os grandes proprietários, associando-os aos interesses
títulos da dívida agrária. E, como conseqüência, apresentan­ do grande capital, de outro lado não representava de fato uma
do ao Congresso o projeto do Estatuto da Terra, que supos­ reforma social em benefício dos pobres da terra. Um mi­
tamente possibilitaria e disciplinaria a reforma agrária. Mais nistro da Fazenda diria, em 1979, que a política do desenvol­
tarde, através de um ato institucional, o instrumento legal vimento econômico da ditadura não teve por finalidade fazer
típico da ditadura militar, o governo dispensaria a indeni­ caridade, pois o desenvolvimento "não é um ato de amor".
zação prévia. As autoridades poderiam imitir-se na posse Ora, a Igreja queria as reformas por motivos opostos a
das terras em 48 horas, discutindo posteriormente com o esses. Apoiara a ditadura para que, por meio dela, as barreiras
proprietário o problema da indenização. de resistência do latifúndio atrasado fossem rompidas, de
As medidas do governo, porém, estavam muito iden­ sorte a permitir que o desenvolvimento econômico quebrasse
tificadas com a reforma agrária que o governo americano velhas relações de pobreza e de dependência. Para ela, desde
exigia dos governos latino-americanos, para atenuar tensões os anos cinqüenta, a finalidade do desenvolvimento não era
sociais e evitar a revolução. O Estatuto da Terra seria, na o desenvolvimento, mas o homem 27. Nesse desencontro, os
verdade, um instrumento de modernização do campo e de rumos da Igreja se separam dos rumos do Estado, fato que
estímulo à disseminação da empresa rural. Se condenava o ficará claro a partir de 1968 com o início de um longo e
latifúndio, condenava também o minifúndio, isto é, a agri­ doloroso ciclo de prisões de religiosos e cristãos engajados,
cultura familiar praticada por grande número de pequenos além do assassinato, em 1969, do P.e Antônio Henrique,
lavradores no país. Deve-se ter em conta que o conceito de justamente auxiliar de D. Héldcr Câmara. Lembro, apenas,
minifúndio contido no Estatuto derivava do privilegiamento que em dezembro de 1968 ocorreu o golpe dentro do golpe
da empresa rural na reforma agrária. com a decretação do Ato Institucional ns 5, fechamento do
De fato, o governo militar propunha, pelo Estatuto da Congresso Nacional, concessão de poderes absolutos ao pre­
Terra, uma intervenção no direito de propriedade e no meio sidente da República e o recrudescimento das prisões, tor­
rural para favorecer a expansão da empresa capitalista, turas, assassinatos e desaparecimentos de presos.
particularmente os grandes grupos econômicos. Pouco de­ A Igreja foi particularmente atingida pela repressão polí­
pois, definirá uma política de incentivos fiscais que permi­ tica e policial a partir desse ano. Para se ter uma idéia: entre
tirá a esses grandes grupos deixarem de pagar metade do 1968 e 1978, 122 religiosos, padres, seminaristas e bispos
maior imposto, o imposto de renda, para com o dinheiro foram detidos ou presos,- e 273 cristãos engajados no trabalho
fazerem investimentos na região amazônica e, em outras pastoral foram presos, a maioria lavradores. Esses dados,
regiões, em reflorestamento para fins industriais. Uma ava­ segundo a fonte, são incompletos. Consta, ainda, que 34
lanche de empresários caiu sobre a Amazônia, invadindo padres, religiosos e seminaristas foram torturados, e sete
terras camponesas, terras indígenas, expulsando, surrando, padres foram assassinados 2S. Sem contar vários casos de
matando. Esse processo ainda não terminou. Além da devas­ seqüestros, ameaças de morte e atos de intimidação.
tação da floresta, já muito denunciada, uma enorme violên­ 17 De Kadt observa que os bispos norteavam-se pelas idéias de Emmanuel
cia se abateu sobre os trabalhadores rurais, até mesmo com Mounier (Le Personalisme, Paris, 1950) baseadas no "princípio da primazia
do trabalho sobre o capital". Cf. Emanuel de Kadt, ob. cit., p. 67.
a disseminação de um grande número de casos de escravi­
18 Com issão arquidiocesana de Pastoral dos Direitos H umanos e Marginali-
dão por dívida.
48 49
Ao mesmo tempo, a política agrária do govemo orientou- mente, o mesmo padrão de 1950. Se levarmos em conta que
se pela expansão do capital no campo e um capital apoiado entre 1950 e 1980 as áreas aproveitadas do país passaram de
em imensas propriedades de terra, à custa de expulsões e 127 milhões de hectares para 228 milhões de hectares, fica­
violências contra povos indígenas e trabalhadores rurais. O rá claro que o padrão latifundista e concentracionista de
próprio Marechal Castelo Branco, primeiro presidente do propriedade se reproduziu e disseminou amplamente, mes­
regime militar, apelou ao milionário americano Daniel Keith mo sob um regime político que se dizia empenhado em
Ludwig para que fizesse investimentos no Brasil, o que fazer uma reforma agrária, ainda que com motivações
resultou na implantação do fâmoso Projeto Jari, com mais conservadoras. Em 1975, 54% de toda a terra ocupada esta-
de seis milhões de hectares de terras, maior do que alguns vam destinadas a pastagens 29. É oportuno lembrar que o
países europeus. Diversos enclaves semelhantes foram Brasil é um país em que, apesar disso, ainda se passa fome.
implantados em diferentes pontos da Amazônia. E mesmo Mesmo na apropriação de terras novas, particularmente
no sul do país, tradicional região da pequena agricultura na região amazônica, em cujo processo de ocupação recente
familiar, praticada por colonos de origem italiana, alemã e o governo militar teve amplo controle e presença, o padrão
polonesa, a proliferação da agricultura de soja promoveu concentracionista se reproduziu, e muito agravado. Das terras
intensa concentração de propriedades e a expulsão de milha­ novas do país, ocupadas entre 1950 e 1960, 85% foram
res de camponeses. Só no Estado do Paraná desapareceram ocupadas por estabelecimentos com menos de cem hectares
mais de cem mil pequenas propriedades, conseqüência, e 15% por estabelecimentos com mais de cem hectares. Já
também, da construção da hidrelétrica de Itaipu, na frontei­ parcialmente sob a ditadura militar, entre 1960 e 1970, 35%
ra com o Paraguai. O estímulo à agricultura de exportação, à das novas terras foram para estabelecimentos com menos de
substituição da produção de alimentos de consumo interno ccm hectares e 65% para os que tinham mais de cem hecta­
pela produção de artigos exportáveis, ou, mais tarde, pela res. Entre 1970 c 1980, 6% das terras foram ocupadas pelos
produção de cana para álcool combustível, decorria do endi­ pequenos estabelecimentos e 94% pelos grandes 30.
vidamento externo brasileiro e da necessidade de obter fundos Até julho de 1981, a Comissão Pastoral da Terra, da
que permitissem pagar o débito. Conforme demonstrou um Conferência Episcopal, registrou 916 conflitos fundiários em
estudo da Fundação Getúlio Vargas, esse débito não era prin­ todas as regiões dos país, envolvendo 261.000 famílias, num
cipalmente resultado da elevação do preço do petróleo, mas total de quase dois milhões de pessoas 31.
sobretudo da remessa de lucros pelas empresas estrangeiras,
do pagamento de "royalties" e de "know-how", além do pró­
prio serviço da dívida, a amortização de juros infindáveis. 5. M UDAR PARA LIBERTAR: A OPÇÃO PREFERENCIAL PELOS POBRES
A propriedade da terra manteve-se tão concentrada quan­
to o era antes do golpe: em 1980, 50,4% dos estabelecimentos Já em 1970, a Comissão Episcopal Nordeste I denuncia, a
rurais tinham menos de dez hectares de terra e, em conjun­ propósito da prisão dc dois padres no Maranhão, que:
to, possuíam apenas 2,4% das terras do país. Em compensa­
ção, 0,9% dos estabelecimentos tinham mais de 1.000 Cf. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Sinopse
Prelim inar do Censo Agropecuário de 1980.
hectares e, em conjunto, abrangiam 45% das terras. Pratica-
30 Cf.IBGE, Censos Agrícolas de 1950ede !960;FIBGE, Censos Agropecuários
zados da Arquidiocese de São Paulo, Repressão na Igreja no Brasil — reflexo de 1970 e 1975; Sinopse Preliminar do Censo Agropecuário de 1980.
de um a situação de opressão (1968/1978), CEDI — Centro Ecumênico de D o­ 31 Cf. C om issão Pastoral da Terra, CPT: Pastoral e Compromisso, Editora
cumentação e Informação, Rio de Janeiro, 1978, passim . Vozes, Petrópolis, 1983, p. 18.

50 51
"... padres e leigos trabalham para que o povo se es­ Em 1973, em duas regiões diferentes e no mesmo dia,
clareça e se promova. grupos de bispos lançam dois documentos fundamentais, de
"Em várias partes dc nossos Estados, donos de terras e denúncia e de esperança. Os do Nordeste lançam Eu ouvi os
políticos chamam esse trabalho de subversão, de agi­ clamores do meu povo e os do Centro-Oeste lançam
tação, de comunismo". 32 Marginalização de um povo: grito das igrejas. Nesses do­
cumentos, a crítica do desenvolvimentismo aparece com
Nesse mesmo ano, D. Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix toda sua força e com toda a clareza. Um ano antes, os bispos
do Araguaia, no Mato Grosso, área de entrada da região do Centro-Oeste já haviam feito uma vigorosa denúncia da
amazônica, marcada por uma espantosa história de violên­ situação dos trabalhadores rurais:
cias contra os trabalhadores rurais, corta relações com as
fazendas e suspende as desobrigas, a forma tradicional de "N a zona rural, preocupa-nos o abandono em que vivem
distribuição dos sacramentos num país grande e sem sacer­ nossos irmãos lavradores, sujeitos a uma injustiça
dotes suficientes. E assinala: crônica e à exploração permanente. O grande cresci­
mento econômico de nossa região, devido sobretudo ao
"M ato Grosso era e ainda é uma terra sem lei. (...) Não incremento da pecuária, coincide com a progressiva
encontramos nenhuma infra-estrutura administrativa, marginalização dos trabalhadores rurais, dos posseiros
nenhuma organização trabalhista, nenhuma fiscalização. e pequenos proprietários, vítimas da voracidade do
O direito era do mais forte ou do mais bruto. O dinhei­ latifúndio."35
ro e o '38' se impunham." 33
O próprio D. Pedro Casaldáliga já havia lançado uma carta
E D. Antonio Fragoso, bispo de Crateús, no Ceará, também pastoral denunciando violências e injustiças, em sua prela-
assinala a ruptura cm sua região: zia, que iam, da escravidão por dívida, à expulsão de cam­
poneses da terra, à invasão, prisão, agressão e assassinato.
"Percebi, então, que meu projeto de sociedade não co­ Em Ouvi os clamores do meu povo fica claro que o capi­
incidia com o projeto de sociedade das elites, de talismo inacabado é na verdade um capitalismo inviável
Crateús." e que as tentativas dc promoção do desenvolvimento
econômico e ruptura do círculo vicioso da pobreza pela in­
Pois se terferência do Estado estão comprometidas a partir de den­
tro do próprio capitalismo:
"... sentia chamado a convidá-los a aplicar a lei do go­
verno. Esta dizia ser um direito dos cidadãos se organi­ " A SUDENE, não obstante o trabalho realizado em fa­
zarem, por categorias profissionais em sindicatos." 34 vor da economia regional, por uma lógica interna do
sistema a que está ligada, é vítima de um processo de
31 N ota da C om issão Episcopal da CNBB do Regional N ordeste 1, 25 de
agosto de 1970, in Estudos da CNBB, ob. cit., p. 131.
relações pessoais, suas dificuldades m orais e sua ambigüidade, é o Carlos
33 Cf. D om Pedro Casaldáliga, Creio na Justiça e na Esperança, I r edição, Mesters, Seis D ias nos Porões da Hum anidade, Vozes, Petrópolis, 1977, esp.
Civilização Brasileira, Rio, 1978, p. 33. p. 61-63.
34 Cf. D om Antonio Batista Fragoso, O Rosto de um a Igreja, Edições Loyola, 35 Declaração da Com issão Episcopal Regional do Centro-Oeste, 7 de julho
São Paulo, 1982, p. 21 e2 0 . Um depoimento vivo sobre a ruptura política com de 1972, in Estudos da CNBB, ob. cit., p. 134.
a dominação pessoal, através do trabalho da Igreja, no nível da localidade e das
53
52

*
esvaziamento que lhe vem arrebatando as principais diariamente, a cara suja e feia da pobreza que degrada, na
condições de exercício das funções para que foi cria­ circunstância sem pompa do abandono, da exclusão, da
da." 36 condição de vítima.
E mesmo em relação à situação das populações indígenas,
E o Grito das Igrejas confirma: dilaceradas e massacradas pela penetração das grandes em­
presas em seus territórios, a Igreja dirá:
"... é um povo que luta e labuta, diário, num trabalho
que, se não tira da pobreza os que trabalham, serve "O s dirigentes políticos brasileiros, no afã do 'desen­
para enricar mais ainda os que já são ricos. volvimento', promovem os interesses econômicos de
"(...) A lei aqui é feita pelo próprio pessoal e, para falar grupos internacionais e de uma minoria de brasileiros a
claro, é feita pelos patrões. eles integrada. Só podem fazer e de fato só fazem uma
"O latifúndio está crescendo, fica mais poderoso. E tem política economicista, sobrepondo o produto aos pro­
apoio das autoridades." 37 dutores, a renda nacional à capacidade aquisitiva da
população, o lucro ao trabalho, a afirmação da grandeza
Fica claro, então, que os ricos ficam mais ricos e os pobres nacional à vida dos brasileiros, a pretensão de hegemo­
mais pobres. E quanto mais intenso o desenvolvimento nia sobre a America Latina ao crescimento harmônico
capitalista, mais ousada a sua voracidade acumulativa. Os do continente." 38
bispos que se pronunciam nesse período vêem com clareza
que o capitalismo subdesenvolvido e dependente é pratica­ Em decorrência dessas constatações e das condições sociais
mente um capitalismo tributário, submetido a leis econô­ e políticas violentas e brutais, a Igreja criará, em 1972, o
micas que operam em favor da acumulação de capital nos CIMI — Conselho Indigenista Missionário, que reformularia
países metropolitanos, os países ricos. De modo que as inteiramente a pastoral indígena 39, e, em 1975, a CPT —
tentativas de estimular esse desenvolvimento para romper Comissão Pastoral da Terra, para articular o trabalho das di­
o círculo vicioso da pobreza apenas realimenta mais in­ versas regiões em favor dos direitos dos trabalhadores rurais.
tensamente a sua circularidade. Internamente, as empresas É necessário ter cm conta que a pastoral social estava
e o governo transferem para os trabalhadores, os pobres e orientada para a reivindicação do cumprimento, em relação
desvalidos, o ônus desse desenvolvimento subdesenvolvi­ aos trabalhadores, de direitos já consagrados em lei. E no
do, agravando tensões sociais, desmoralizando as pessoas, que diz respeito à reforma agrária, um direito instituído pela
marginalizando-as socialmente. A desumanização intrínse­ própria ditadura militar. Exceção dos grupos de esquerda
ca ao capitalismo e ao trabalho alienado, torna-se no país que optaram pela luta armada, e que foram aniquilados nesse
pobre uma desumanização suja e feia, sem qualquer resquí­ período, inclusive os grupos cristãos que fizeram essa opção,
cio de dignidade. Os bispos não se apresentam como teóri­ os diferentes grupos sociais, sindicatos, entidades e movi­
cos da sujeira e da feiúra, da degradação humana. Os docu­ mentos sociais envolveram-se numa clara estratégia de rei­
mentos mencionados fazem a denúncia crua de quem vê, vindicação do cumprimento das leis.
36 "Eu ouvi os clamores do meu povo", 6 de m aio de 1973, in C om issão 38 Y-Juca-Pirama — O índio: Aquele que deve morrer, Documento de
Brasileira Justiça e Paz, cit., p. 64. Urgência de Bispos e M issionários, 25 de dezembro de 1973, p. 12.
37 M arginalização de um Povo: Grito das Igrejas, Docum ento de Bispos do 39 Cf. Arlindo G. de O. Leite, A M udança na Linha de A ção M issionária
Centro-Oeste, 6 de maio de 1973, p. 9 e 13-14. Indigenista, Edições Paulinas, São Paulo, 1982, p. 62.

54 55
A Comissão de Pastoral da CNBB dirá, em 1979, num dos difíceis. (...) Este modelo capitalista não deixa nenhuma
seus pronunciamentos mais importantes, ao falar da situa­ esperança objetiva para o povo. (...) No meu ponto de
ção do país num momento que é o do início da abertura vista, há uma tensão profunda entre a aspiração sadia
política: popular e o modelo capitalista". 43

"Trata-se de uma distorção que permite aos ricos fi­ Como se vê, a Igreja percorreu, em pouco menos de meio
carem cada vez mais ricos, à custa dos pobres que fi­ século, no que diz respeito à questão agrária, caminhos que
cam cada vez mais pobres: trata-se de uma situação de lhe permitiram testar as duas alternativas históricas abertas
injustiça que, em tais proporções, não se encontra nem ao processo político brasileiro: a do apoio ao Estado federa­
nas economias capitalistas avançadas." 40 tivo e a do apoio ao Estado centralizado, a democracia de
fundo oligárquico e a ditadura. Neste percurso, ao não ser
E a Igreja que anos antes havia lutado pela igualdade jurídi­ política c ser, ao mesmo tempo, fiel aos valores católicos
ca como meta para superar a situação de injustiça no cam­ relativos à dignidade do homem e, por esse meio, à sua
po, afirma então: humanização, a Igreja se viu lançada num compromisso
cheio de interrogações. A opção pela libertação e pela cons­
"...a igualdade jurídica de todos esconde uma desigual­ tituição da humanidade de um homem marginalizado e
dade radical." 41 degradado, destituído da possibilidade de se humanizar e de
se libertar nas condições sociais, econômicas e políticas
De seu lado, os missionários dedicados à causa indígena, existentes é também a opção preferencial pela humanidade
que entre 1968 e 1972 fizeram uma ampla avaliação de seu do homem. Nesse sentido não é mais a opção preferencial
trabalho, que haviam denunciado o caráter colonialista da pela ordem e pela sociedade que sobrevive pela coerção e
pastoral indígena, dirão com toda a clareza: pela exploração que desumanizam. É uma opção preferen­
cial pela des-ordem que desata, desordenando, os vínculos
"...não aceitaremos ser instrumentos do sistema capi­ de coerção e esmagamento que tornam a sociedade mais
talista brasileiro." 42 rica e a humanidade mais pobre. E ao desatar, liberta.

D. Antonio Fragoso, bispo de Crateús, constata, por seu


lado, que 6. DILEMAS DA SACRALIZAÇÃO DO ESPAÇO POLÍTICO
LIBERTADOR
"Só o poder tem recursos e condições para libertar o
povo nas horas de angústia. Isto os leva a procurarem Relembro, uma vez mais, que ao falar de Igreja estou me
as famílias poderosas para padrinhos e compadres, para referindo àquelas pessoas que se congregam, por motivo de
que esse tipo de parentesco os possa socorrer nas horas fé, na Igreja Católica. De certo modo, porque trato da ques­
tão agrária, estou me referindo também àquelas pessoas que,
40 Estudos da CNBB, Subsídios para um a Política Social, Edições Paulinas, pelo mesmo motivo, se congregam em diferentes igrejas e
São Paulo, 1979, p. 10. denominações religiosas. Não estou me referindo, senão
41 Ibidem , p. 11.
42 Y-Juca-Pirama, cit., p. 20. 43 Cf. D om Antonio Batista Fragoso, ob. cit., p. 66-67.

56 57
secundariamente, à Igreja-estado, isto é, Igreja-instituição, ambos os lados, da Igreja e “do povo”, existe a tentativa
hierárquica e corporativa. Pode parecer contraditório que recíproca de apropriação da fala do outro e da força do
faça essa afirmação e, ao mesmo tempo, invoque documentos outro. O que alguns autores definem pobremente como po-
da hierarquia católica para fundamentar esta análise. O lei­ pulismo da Igreja constitui, na verdade, um fenômeno mui­
tor notará, porém, que os documentos da hierarquia aqui to mais complicado, de natureza cultural e política, que
invocados são aqueles em que os bispos procuram interpretar precisa scr corretamente analisado. A palavra, provavelmente
e assimilar os desencontros sociais, os conflitos que se cho­ correta, que muitos bispos, religiosos, agentes de pastoral,
cam com valores católicos ou, ao menos, valores comparti­ utilizam para esse envolvimento mútuo é serviço. Ou seja,
lhados pelos signatários de tais documentos. São documentos tudo indica que muitos têm clareza a respeito da pastoral
em que o episcopado se revela vulnerável e sensível às como serviço.
contradições sociais. Mesmo que tais interpretações, ao in­ Esse fenômeno, no meu modo de ver, tem origem política
troduzirem a mediação extracientífica e extrapolítica da e não origem eclesial. Com freqüência se pode ler em textos
religião e da fé, encerrem a concepção da realidade e a res­ de estudiosos uma implícita e até mesmo explícita concep­
posta política da instituição eclesiástica na clausura de uma ção de que a pastoral social da Igreja, o empenho libertador,
visão fechada e corporativa. Em outros termos, estou pro­ são produtos do maquiavelismo político alicerçado na tradi­
curando trabalhar sociologicamente com processos sociais e ção corporativa e conservadora. Basta considerar cartas pas­
políticos que contêm mediação religiosa. torais, alocuções radiofônicas e artigos e cartas de bispos
Essa observação é necessária porque é comum encon­ descontentes com certas "ousadias" da pastoral para admitir
trarmos análises políticas e, mesmo, sociológicas em que o que isso pode ser verdade. Mas verdade relativa e circuns­
fenômeno religioso é reduzido à abstração religiosa. Perde, crita. Não é demais lembrar que, mesmo no âmbito dos
assim, a sua realidade. No cotidiano das populações do cam­ partidos políticos de esquerda, o maquiavelismo não é uma
po, e não só delas, o sagrado e o profano se mesclam. O reli­ raridade, pois se trata de fenômeno essencialmente político.
gioso e o não-religioso estão combinados na mentalidade do A origem política e não estritamente eclesial da pastoral
homem comum, embora ele mesmo os hierarquize segundo popular decorre de uma necessidade social e política. Ela
seus próprios critérios culturais. É na perspectiva dessa com- surge, como disse, não só na Igreja Católica, mas também
binação-separação de senso comum que o discurso ecle­ em igrejas protestantes, até mesmo em seitas fundamenta-
siástico tem ou não tem sentido. E isso que importa analisar. listas. Ela está relacionada com o estreitamento do espaço
E o fenômeno importante c este, o da progressiva e crescente político secularizado. No caso brasileiro, por uma crônica
sensibilidade do trabalhador rural, e dos pobres em geral, a tradição de democracia limitada em meio a períodos auto­
um discurso religioso que tem forte conteúdo político. Mes­ ritários. Lembro que os surtos autoritários tornaram-se mais
mo que a motivação de quem o faz seja uma motivação freqüentes e duradouros a partir do momento em que as
estritamente religiosa e, muitas vezes, até mesmo mis­ tradições oligárquicas, clientelísticas e patrimoniais foram
sionária. Neste particular, é, para mim, absolutamente claro sendo dilaceradas pelo desenvolvimento capitalista e pela
que o código de quem fala não é necessariamente o código modernização econômica no campo. Isto é, à medida que os
de quem ouve. Ao mesmo tempo, anos de observação direta trabalhadores rurais, de diferentes modos, nas diversas re­
no trabalho de campo e na educação popular me mostram, giões, foram rompendo os vínculos de dependência pessoal
sem sombra de dúvida, que não estamos diante de um em relação aos grandes proprietários de terra. Pode-se dizer
equívoco recíproco, mas diante de um acordo tácito. De que, à medida que os trabalhadores rurais foram aparecendo
58 59
no cenário político, o Estado foi estreitando o espaço políti­ nessas mesmas eleições, pelo deslocamento da política, mais
co. Produto do pacto político de que têm estado ausentes os uma vez, dos partidos ideológicos para os grupos de interes­
trabalhadores rurais, não pode admiti-los no processo políti­ se: o Partido Comunista Brasileiro elegeu apenas três depu­
co sem modificar a sua própria composição e o projeto his­ tados federais,- os evangélicos elegeram trinta e um em di­
tórico que do pacto resulta. Esse fenômeno se agravou pela ferentes partidos. A dinâmica do processo político brasileiro
progressiva incapacidade e pelo progressivo desinteresse dos está situada aquém do jogo partidário, o que lhe dá um
partidos de esquerda, inclusive o Partido Comunista, de caráter, de certo modo, pré-político. É nesse sentido que as
incorporar a questão agrária às suas plataformas políticas, lutas populares e de base ganham sua importância política,
nos termos muitas vezes radicais em que aparecem nas lu­ pois ferem na raiz o edifício de poder alicerçado nos inte­
tas populares. É verdade que tal radicalismo presente na resses da propriedade e do clientelismo. São interesses que,
contestação prática do direito de propriedade, tem perdido a justamente, impedem o desenvolvimento democrático do
sua eficácia, em conseqüência da dispersão dos conflitos e país e a clara definição ideológica e política dos partidos.
da falta de mediação política adequada. Essa parece ser a verdadeira razão do deslocamento da
Ainda hoje é forte, na esquerda institucional brasileira, política e da participação popular na política para aquilo que
aquela ideologicamente estruturada e organizada em partidos genericamente, e fetichisticamente, é chamado de base. E,
legais ou clandestinos, a aceitação da premissa de que a concretamente, para os pequenos grupos de migrantes de
modernização econômica capitalista é condição das trans­ origem rural nas periferias urbanas e pequenos grupos de
formações sociais e políticas mais profundas, porque é con­ vizinhança das regiões rurais. Não se pode deixar de consi­
dição da consciência política. De modo geral, a esquerda derar que a proliferação das comunidades eclesiais de base e
compartilha, no Brasil, a descrença liberal-oligárquica no os movimentos sociais localizados estão claramente distri­
povo, particularmente nos pobres e nos trabalhadores rurais. buídos nesses espaços.
Ela também assume que o povo é politicamente incapaz, Ora, tais espaços têm sido, nos últimos vinte anos,
embora por razões completamente diversas das razões dos justamente os espaços dos confrontos e dos conflitos sociais
outros grupos políticos. mais agudos, preponderantemente referidos à questão da
O estreitamento do espaço político secularizado (e o lei­ propriedade da terra, rural ou urbana, agrícola ou de moradia.
tor perdoará a redundância de falar em político e secularizado) Isto é, as populações social e economicamente marginaliza­
tanto no nível do Estado quanto no nível dos partidos, cons­ das, ao lutarem pelo direito à terra (um direito escassamen­
titui, na verdade, grave reprodução modificada dos mecanis­ te reconhecido pela lei c pelo Estado, mas estabelecido por
mos tradicionais de exclusão política dos pobres, que vem elas próprias a partir da concepção da superioridade moral
da economia colonial e da sociedade patrimonial. As gran­ do trabalho autônomo em relação ao desemprego, à migra­
des modificações sofridas pela sociedade brasileira neste ção, ao subemprego), se defrontam diretamente com a insti­
século, sobretudo a partir dc 1930, não conseguiram romper tuição básica da estrutura política brasileira, que é a proprie­
o cerne das estruturas de dominação, de origem patrimo­ dade da terra. É na relação conflitiva com a propriedade que
nial, instaladas profundamente no Estado nacional. as populações do campo desafiam e questionam uma das
Ainda agora, a 15 de novembro de 1986, nas primeiras bases do Estado e dos pactos políticos: assim foram desafia­
eleições gerais no novo regime político que sucedeu à dita­ dos o pacto liberal-oligárquico de 1946, o pacto ditatorial de
dura, o liberalismo-oligãrquico e a dominação patrimonial 1964 e vem sendo desafiado o pacto liberal-oligárquico de
tiveram considerável influência. Fenômeno que é reforçado, 1984.

60 61
Embora os trabalhadores rurais, por força da exclusão tação da violência, antes dissimulada, das relações de traba­
política de que são vítimas, não tenham ainda se tornado lho. Não por acaso, foi justamente no surto de grandes trans­
sujeitos ativos do processo político brasileiro, converteram- formações econômicas desse período recente que renasceu
se em sujeitos políticos, assim como os povos indígenas, em escala ampla a peonagem, isto é, a escravidão por dívida,
pelo atalho não-político da resistência local. Na verdade, praticada sobretudo pelas novas empresas rurais. O capital,
excluídos dos mecanismos de expressão e representação portanto, iniciou economicamente o rompimento de velhas
política, por força da exclusão propriamente dita ou por força relações, abriu a brecha para a recente onda de lutas sociais
dos mecanismos clientelísticos e patrimoniais que desfi­ no campo.
guram a representação política, os trabalhadores rurais têm, A Igreja (as igrejas) foi de fato mobilizada por esse con­
na verdade, mobilizado politicamente as instituições tradi­ fronto. Documentos episcopais como Ouvi os Clamores do
cionais do seu pequeno mundo — a família, a vizinhança, a Meu Povo, Grito das Igrejas e Igreja e Problemas da Terra
Igreja. Mais ainda: têm mobilizado politicamente a sua cul­ respondem a essa mobilização difusa, formalmente não-po-
tura tradicional, inclusive a cultura material. lítica, localizada e fragmentária. Os vários documentos indi­
Os novos sujeitos do processo político brasileiro são novos, cam com clareza que o aparecimento de instituições nacio­
também, porque mobilizam e politizam as vias não-políti- nais de articulação e de apoio, de serviço, como a Comissão
cas no seu confronto com as estruturas econômicas, parti­ Pastoral da Terra, resultou da necessidade de superar a dis­
cularmente a propriedade, e com as estruturas políticas, estas persão e a fragmentação 44.
fundamentalmente de base local. No meu modo de ver, Penso que a interpretação de que o envolvimento da Igre­
estamos diante de um processo de sacralização do espaço ja, no Brasil, na questão fundiária é produto da tentativa de
político, estreitamente associado ao confinamento da ação mobilizar bases sociais locais, camponesas e conservadoras,
política do pobre e marginalizado às estruturas políticas para garantir a estabilidade social e sustentar uma orientação
imediatas e locais. Ora, é aí que está a sede última de par­ política antiliberal, opondo a pessoa ao indivíduo, é uma
cela fundamental do poder político. É aí que as oligarquias interpretação superficial 4S. A essa hipótese pode-se opor
realimentam seus vínculos clientelísticos e de dominação. outra: a mobilização das populações camponesas não leva à
É aí, também, que se abre o confronto prático e imediato estabilidade social; ao contrário, fere na raiz um direito de
com o direito dc propriedade que sustenta a dominação oli- propriedade que sustenta o conservadorismo corporativo do
gárquica, que hoje associa terra e capital.
Esse espaço não foi aberto pela Igreja. A própria expansão 44 O s autores dos doçumen tos Eu ouvi os clam ores do meu povo, Marginali-
zação de um povo: grúo das Igrejas e.Y-Juca-Pirama, "continuando a reunir-
capitalista dos últimos vinte anos modificou a relação entre se, viram rapidamente que não era suficiente publicar documentos. Lembro
terra e poder: o capital se associou à propriedade da terra, bem como surgiu a idéia e o plano para articular os agentes engajados na
tornou-se por isso conservador e anti-reformista. O novo pastoral popular. Foi D om Fragoso, de Crateús, numa reunião realizada no
Rio de Janeiro, no final de 1973, que apresentou e sustentou a idéia" Cf. Ivo
Estado brasileiro é produto claro e direto dessa recomposi­ Poléttb, "A CPT, a Igreja c os cam poneses", in Dom Pedro Casaldáliga et alii,
ção. Essa recomposição, porém, tem implicado um certo C onquistar a Terra, Reconstruir a Vida, Vozes, Petrópolis, 1985, p. 35.
remanejamento das elites locais, pela substituição, como na 45 Essa tese é defendida por Roberto Romano, Brasil: Igreja contra Estado,
Amazônia, ou pela modernização, como em algumas regiões Kairós Livraria e Editora Ltda., São Paulo, 1979, p. 158 e 180-181. O autor
trabalha com um a concepção corporativa da Igreja e se apóia predominante­
do Nordeste. Ao mesmo tempo, a associação direta entre o mente nas idéias do racionalismo sociológico das primeiras décadas do
capital e a propriedade da terra envolve novas atividades século/sobretudo as de Max Weber. Retoma, fora do tempo e do contexto, a
econômicas, novos processos de trabalho. Envolve a explici­ crítica racionalista ao rom antism o social europeu do século XIX.

62 63
Estado brasileiro e desorganiza a ordem política ao questio­ as categorias opostas libcral-conscrvador. O sagrado aqui
nar o pacto político em que se baseia. Daí o caráter sangren­ representa a busca da alternativa, do novo, do necessário e
to dos conflitos no campo. A Igreja, no campo, não está possível, nas condições reais da ampla marginalização polí­
fazendo um convescote. tica dos pobres. Que os partidos não compreendam esse
A literatura teórica é hoje ampla a respeito do significado fato, é questão menor. Que a Igreja possa não compreendê-
social, histórico e político da mobilização da noção de pessoa lo, e há sinais nesse sentido, é questão grave. Isso porque os
contra a noção burguesa de indivíduo. Esta última noção partidos estão ausentes da luta no campo. Enquanto que a
pressupõe a igualdade jurídica, a representação política, rea­ Igreja está presente. A questão agrária coloca a Igreja diante
lidades que numa sociedade como a nossa constituem de um impasse mais do que pastoral e político. As medidas
privilégios e não direitos. A noção política de pessoa não é repressivas reccntcs contra a teologia da libertação indicam
monopólio da tradição conservadora. Ela está no centro da com clareza que dimensões mais profundas estão aí conti­
tradição revolucionária, na crítica da alienação e das rela­ das. A Igreja institucional pode até aceitar uma pastoral
ções de trabalho e de propriedade alienadoras. Uma oposi­ social comprometida e avançada. E não creio que o faça por
ção mecanicista de um conceito a outro é operação, na maquiavelismo político como supõem alguns. A questão é
verdade, baseada nas categorias sociológicas do século XIX, saber se ela pode aceitar, também, as implicações mais pro­
ainda não revolucionadas pela emergência histórica e polí­ fundas, teológicas, dessa opção. E não o podendo, como
tica da classe operária. parecem indicar as circunstâncias atuais, quais as conse­
O verdadeiro problema, então, é outro. É saber como se qüências pastorais c políticas para os trabalhadores rurais e
move e como se moverá a Igreja no espaço político liberta­ suas lutas, de um lado, c para a própria Igreja, dc outro?
dor sacralizado pela sua presença. Uma questão política A rigor, há no Brasil apenas dois partidos políticos, desde
essencial é saber se a Igreja tem condições de abandoná-lo, o século XIX: o partido do governo e o partido que não está
de optar por uma via reformista, de atenuar seu envolvi­ no governo. Lembro aqui que, aos primeiros sinais dc crise
mento nas lutas sociais dos últimos vinte anos e participar da ditadura militar, houve verdadeira migração do partido
do pacto político. E saber se tem condições dc aprofundar do governo para o maior partido de oposição. Com o fim do
seu compromisso, sua opção preferencial pelos pobres, seu regime ditatorial c a transformação da oposição em governo,
envolvimento na radicalidade representada pela luta pela ficou quase tudo como antes: mudaram os nomes dos
terra. Essa não é nem mesmo uma questão de preferência e partidos, mas não houve mudanças significativas de pes­
de opção. Estão em jogo agora os possíveis históricos: sobre soas, mentalidades e compromissos. Os partidos que real­
a mesa estendem-se os mapas dos vários caminhos possíveis, mente representam uma alternativa democrática e transfor­
uns reais e outros falsos, uns mais possíveis e outros menos. madora são ainda fracos c não têm condições de interferir
Os próprios partidos políticos têm dificuldades enormes significativamente nesse círculo vicioso do poder. Pode-se
para compreender que a abertura política não ampliou o dizer que no Brasil o Estado tem o seu partido, o que em­
espaço da participação política, que estreitou ainda mais o purra o processo político contra qualquer tendência demo­
espaço político secularizado ao envolvê-los no pacto políti­ crática real. É nesse quadro que adquire toda importância
co de 1984. Eles têm dificuldades enormes para compre­ política a oposição da Igreja ao Estado, a não-participação da
ender que está se constituindo um espaço político novo e Igreja no pacto político. É esse o verdadeiro c profundo sig­
paralelo, sacralizado. O sagrado, aqui, não representa o re­ nificado político da opção prcfercncial pelos pobres, no caso
trocesso, como poderia supor o analista que trabalha com brasileiro: é opção que representa a negação de legitimidade
64 65
ao corporativismo do Estado, à tendência sempre presente
de mexicanização do Estado c do partido que o controla. Se
a Igreja aceitar o pacto, cooptará esse corporativismo e res­
tringirá o espaço político da participação dos excluídos. A CAPÍTULO III
cooptação da Igreja, se ocorrcr, fechará por longo tempo o
caminho para uma democracia real e participativa no Brasil. IMPASSES POLÍTICOS
No momento, o verdadeiro dilema político da Igreja c apoiar DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
o Estado ou apoiar a sociedade civil, seu fortalecimento.
Mesmo em nome de teses progressistas, a adesão ao pacto NA AMAZÔNIA *
proposto pelo Estado representaria agora o fortalecimento
de uma elite que, cm nome da democracia representativa e "U m sentir c o do sentente, m as
da tutela política, subtrai ao povo brasileiro, aos movimentos outro é o do sentidor."
e organizações populares, a possibilidade de inserirem no João Guim arães Rosa,
Grande Sertão: Veredas
processo político os elementos de uma democracia parti­
cipativa. 1. O TEMPO POLlTICO DA LUTA PELA TERRA

Com facilidade, é possível tomar, erroneamente, o grande


número de conflitos fundiários na região amazônica (e estou
me referindo à chamada Amazônia Legal) por um sinal de
vitalidade das lutas camponesas. Com a mesma facilidade,
pode-se cometer o engano de considerar tais confrontos,
genérica e indiscriminadamente, como movimentos sociais.
O engano oposto também pode ocorrer. O caráter predo­
minantemente local dessas lutas pode sugerir que sua fra­
gilidade é indicativa da ausência de verdadeiros movimen­
tos sociais ou, na hipótese mais generosa, é indicativa de
sua presumível natureza pré-política.
Justamente, o enquadramento dos conflitos por diferentes
grupos sociais e políticos tem sido um fator de "pré-politi-
zação" de tais conflitos. É possível demonstrar que diferen­
tes grupos, políticos e "não-políticos" (ou parapolíticos),
* Texto escrito originalmente para o livro deD avid Goodm an e Anthony Hall
(eds.), The Future of A m azônia: Destruction or Sustainable Development ?,
The M acmillan Press, Ltd, London (no prelo). Um a versão modificada deste
texto foi publicada, também, em Tempo Social, ano I, na 1, revista do Depar­
tamento de Sociologia da Faculdade dc Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade dc São Paulo. A modificação consiste na supressão da parte
4 ("A Igreja c os conflitos: o refúgio dos sofredores").

66 67
do trabalho político, de quinze anos, do Partido Comunista
como os partidos c a Igreja, no seu encontro e em suas do Brasil, entre posseiros de Goiás, e também de outros
disputas, na diversidade e até no antagonismo dc suas partidos e grupos derivados da fragmentação das esquerdas
orientações, têm contribuído para manter as lutas populares no início dos anos sessenta. Velhos militantes, embora
no campo cm um nível relativamente estacionário de impo­ poucos, pcrmancccram dispersos pelo norte do estado e
tência política. Isso torna o conjunto da situação muito regiões vizinhas. Em diferentes formas de organização da
complexo, pois, ao mesmo tempo, as lutas dos trabalhado­ resistência contra a violência dos latifundiários, nos anos
res rurais, no contexto atual, não têm condição de evoluir e setenta, era possível encontrar, cm Goiás, no Mato Grosso,
amadurecer sem a mediação dos partidos políticos ou, mes­ no Pará, no Maranhão, a mesma estratégia defensiva dos
mo, dos grupos parapolíticos. posseiros de Trombas. Além disso, o suposto imobilismo
Acima das bases locais c fragmentárias, dos múltiplos cultural do camponês foi desmentido, também, na assim ila­
conflitos, freqüentemente pairam e agem grupos dc media­ ção rápida de algumas técnicas de contra-insurgência utili­
ção das lutas populares no campo. Mas é sempre nítida a zadas pelo Exército na região, no início dos anos setenta,
separação e a diferença entre os sujeitos dos conflitos, ge­ durante a violenta repressão à guerrilha do Araguaia. Alguns
ralmente vítimas, e os grupos dc mediação, através dos quais grupos dc trabalhadores rurais, diretamente atingidos, in­
a luta camponesa ganha dimensão extralocal, política e his­ corporaram tais técnicas ao seu arsenal de procedimentos
tórica.
autodefensivos contra pistoleiros e policiais a serviço de
Na gênese dessa fratura, está a origem espontânea e não grileiros e latifundiários. Apesar desses sinais, não ficaram
política da maioria dos conflitos. Fato que se explica, ao na região, até onde se sabe, grupos organizados atuando por
menos em parte, pela conjuntura política em que tem início longo período c com continuidade. Portanto, as lutas cam­
a etapa contemporânea c amazônica da história das lutas ponesas na Amazônia, no período da ditadura, não nascem
camponesas no Brasil. Essa conjuntura ganha sentido com o no bojo da organização política nem nascem marcadas por
golpe militar de 1964. O Estado militar desencadeou ampla um projeto histórico capaz de estabelecer o nexo unificador
e intensa repressão contra a ação das esquerdas no meio de confrontos dispersos c locais.
rural, o que incluiu os grupos que já atuavam em Goiás, no Ao contrário. Durante grande parte da ditadura militar,
limiar do que seria, pouco depois, legalmente conceituado tais lutas surgem espontânea c defensivamente, como resis­
como Amazônia Legal. Refiro-me cspccificamcntc à "repú­ tência à ação violenta dc policiais e pistoleiros a serviço de
blica" camponesa dc Trombas e Formoso, no município de grileiros de terra e grandes proprietários: os despejos violen­
Uruaçu *. Embora invadido militarmente apenas no início tos, assassinatos, violações de domicílio, incêndios e des­
dos anos setenta, as lideranças que atuavam no território
truição de casas, lavouras c colheitas etc. Na imensa maio­
evadiram-se logo após o golpe. Ficaram, no entanto, sinais ria dos casos, o trabalhador rural foi colocado diante da falta
de alternativas reais. Ou aceitava a expulsão ou reagia para
1 A revolta camponesa, em Goiás, e a "liberação" do território dc Trom bas
6 tema dc um conjunto dc textos que, embora pequeno, representa um a não morrer.
contribuição significativa para o estudo do deslocamento dos movim entos
cam poneses para o Brasil Central c Amazônia antes do golpe m ilitar de 1964. de Janeiro, abril de 1980, mimeo; Maria Esperança Fernandes Carneiro, A
Cf. José Godoy Garcia, O Cam inho de Trombas, Civilização Brasileira, Rio Revolta Cam ponesa de Formoso e Trombas, Universidade Federal dc Goiás,
dc Janeiro, 1966; Murilo Carvalho, "A guerra cam ponesa dc Trom bas de Goiânia, 1981; Sebastião dc Barros Abreu, Trom bas — A Guerrilha de Zé
Form oso", in Movimento, na 164, São Paulo, 21 dc agosto dc 1978; Janaína Porfírio, Editora Gocthc, Brasília, 1985. Este últim o autor foi testemunha e,
Amado, M ovimentos Sociais no Cam po: a Revolta de Formoso, C oiás, 1948- n um ccrto sentido, participante dos acontecim entos de Trom bas e Formoso.
1964, Projeto dc Intercâmbio dc Pesquisa Social cm Agricultura (PIPSA), Rio
69
68
Na origem dessa fratura, está, também, a progressiva e luta no campo, com base em teorias quase sempre produ­
lenta chegada, às áreas de conflito, de alguns remanescentes zidas a partir dc outras realidades sociais c históricas, como
dos partidos clandestinos e facções partidárias, chamadas a do papel condutor da classe operária na revolução ou a do
"tendências", restos de grupos dizimados pela violência da papel condutor do campesinato na revolução.
repressão militar. Grupos e partidos que tentaram puxar o Com isso, a articulação dos movimentos locais e enfren-
processo revolucionário e que não encontraram seguidores tamentos entre camponeses e latifundiários fica dependen­
na massa da classe operária e dos trabalhadores rurais, arre­ do de grupos que estão dc fato envolvidos numa imensa
gimentado basicamente militantes de classe média, sobretudo disputa, entre si, pela lealdade dos trabalhadores rurais,
estudantes. Ficaram, por isso, isolados politicamente, muito orientados por "teorias" e ideologias que não convergem e
divididos devido à crise ideológica das esquerdas, ao foquis- que freqüentemente não têm no camponês um sujeito
mo e ao voluntarismo político característicos dessa época. político com missão histórica reconhecida, como agente de
Após a derrota, alguns desses diferentes grupos interessa­ transformação social.
ram-se pelo fato dc que no campo, e cm particular na No meio, encontramos a Igreja que, embora não sendo
Amazônia, multiplicavam-se os focos de conflito e a luta um agente partidário, acaba sc defrontando com a mis­
pela terra, tendo geralmente como único canal mediador e são política dc constituir o canal de mediação das lutas
politizador a Igreja. Derrotados como agentes ativos do pro­ camponesas e dc expressão do seu projeto, que fica assim
cesso político, como minorias partidárias com inexpressivo
número de adeptos na massa dos trabalhadores, sentiram-se cia à luta armada no campo, e à sua concepção foquista por parte de vários
desafiados pelo crescente número de trabalhadores rurais agrupam entos políticos dc esquerda, encontra-se no livro auto-indulgente de
que foram à luta sem esperar pelo advento messiânico de Jacob Gorendcr, C om bate nas Trevas — A Esquerda Brasileira: d as Ilusões
Perdidas à Luta Arm ada, 3s edição, Editora Ática, São Paulo, 1987, esp. p. 95-
um partido dirigente. 97, 109-110, 115, 129, 134. Veja-se, particularmente, as menções às seguintes
Essa fratura é clara. De um lado, a luta no campo não organizações: A LN — Ação Libertadora Nacional, Partido C om unista do
nasce politizada. De outro lado, os partidos e "tendências" Brasil, Ala Vermelha, PCR — Partido C om unista Revolucionário (estes dois
ú ltim os foram dissidências do Partido Com unista do Brasil), PRT — Partido
chegam ao campo, quase sempre, muito depois das lutas Revolucionário dos Trabalhadores (dissidência da AP — Ação Popular, de
iniciadas, com outras motivações, procedentes de um proje­ origem católica), COLINA — Comando de Libertação Nacional, VPR —
to revolucionário derrotado. Chegam, passivamente, tentan­ Vanguarda Popular Revolucionária, VAR-Palmares — Vanguarda Armada
Revolucionária. Embora varie a forma que deveria assum ir a luta armada, as
do instrumentalizar e "aparelhar" as organizações existentes, diferentes organizações dc esquerda nem tinham clareza a respeito do que
como a Igreja e o sindicato, disputando nelas a hegemonia acontecia no campo nem tinham um lugar para as populações do campo em
política sobre os trabalhadores. Porém, em nome dos mes­ seus respectivos projetos políticos. O campo era apenas um a referência
estratégica na dem olição da ordem política, m as não tinha um papel nà
mos projetos já vencidos pela repressão e pela falta de apoio construção de um a nova ordem política. O texto de Gorender indica que essas
popular, em nome da mesma fragmentação partidária e ideo­ organizações eram majoritariamente compostas de estudantes de classe
lógica i . Até mesmo para "segurar" e disciplinar ou dirigir a « média urbana. Em cim a dos acontecim entos que levaram à fragmentação da
esquerda, M arialice Mencarini Foracchi (falecida cm 1972) fez importantes
1 U m panorama sistem ático da fragmentação dos diferentes troncos parti­ estudos sobre a práxis estudantil, que já indicavam as m otivações pequeno-
dários originais (comunistas, esquerda católica c trotskistas) encontra-se no burguesas dos jovens universitários de então e o caráter de classe média de seu
útil livro de Antonio Ozai da Silva, História d as Tendências no Brasil, 23 im pulso revolucionário. Cf. M arialice Mencarini Foracchi, O Estudante e a
edição, Dag Gráfica e Editorial, São Paulo, s/d. Aí está indicado, também, Transform ação da Sociedade Brasileira, Cia. Editora Nacional, São Paulo,
como diferentes grupos partidários incluem os trabalhadores rurais em seus 1965; A Juventude na Sociedade Moderna, Livraria Pioneira Editora, São
projetos, particularmente quando se trata de pensar a luta armada, isto é, Paulo, 1972; A Participação Social dos Excluídos, Editora Hucitec, São
apenas o rompimento da ordem política. U m panorama genérico da referen- Paulo, 1982.

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implícito, pressuposto, apenas delineado, formulação inaca­ definitiva. Nesse sentido, é demasiado imaginar que análi­
bada das potencialidades envolvidas nessas lutas. O que a ses feitas neste momento são mais completas que outras
torna alvo predileto do "aparelhismo" de diferentes grupos feitas há poucos anos. Como é, igualmente, demasiado ima­
políticos, que a encaram como partido c, muitas vezes, como ginar que as transformações aparentemente rápidas que ocor­
partido concorrente c adversário. Por isso, agem no sentido rem na Amazônia, como a devastação florestal e a maciça
do deliberado enfraquecimento dessa suplcncia, extraparti- expulsão de posseiros, além do cercamento e do cerceamento
dária, da expressão c unificação da diversidade das lutas territorial das populações indígenas, encerrariam uma rapidez
populares no campo e, muito claramente, na Amazônia. Hoje, histórica que tornaria superadas interpretações feitas há uma
no Brasil, há grupos políticos trabalhando ativamente pa­ década, ou menos. Nada é menos verdadeiro. De fato, quan­
ra desorganizar essas mediações não-partidárias e, conse­ to mais o pesquisador se familiariza com a realidade ama­
qüentemente, para esvaziar os movimentos sociais. Embora zônica, mais se convence de que o que está claramente
esse seja um fenômeno muito claro nas cidades, é também superado é o entendimento de que a rapidez das mudanças é
nítido no campo. Como na Amazônia ocorrem uns 40% dos maior do que tem sido na realidade.
conflitos fundiários do país, é justamente nessa região que A tese clássica de que a expulsão do camponês é o primeiro
tais impasses são mais intensos. passo da sua proletarização e da extinção do campesinato,
O cerne dessas dificuldades, de ação e, também, de como desenrolar inexorável da expansão capitalista, está
compreensão das lutas agrárias na Amazônia, está na sendo desmentida diariamente na história da Amazônia. Ao
temporalidade histórica dessas lutas e dos movimentos so­ mesmo tempo em que o posseiro está sendo expulso, as
ciais de que fazem parte. No geral, os conflitos são tratados novas fazendas abertas na região têm demonstrado uma
como acontecimentos que correspondem ao período crono­ notável capacidade de regenerar em benefício próprio formas
lógico da ditadura militar, por cia causados e que deveriam arcaicas de exploração do trabalho, como a peonagem. Do
terminar junto com ela. Alguns intérpretes são tentados a mesmo modo, os posseiros, mesmo expulsos, têm, com
ver no caráter ditatorial e repressivo do regime militar, na grande tenacidade, reconstituído sua agricultura familiar e
sua substância antipopular e direitista, a causa da concen­ sua economia mercantil simples. O que não quer dizer que
tração fundiária, da grilagem, de expulsão dos camponeses não haja até saldos líquidos reais nas expulsões, caso das
da terra e da violência que sobre eles se tem abatido. Na populações faveladas de cidades como Goiânia, Cuiabá,
mesma linha de interpretação, alguns grupos julgaram que o Belém, São Luís, Rio Branco. Portanto, o ritmo do processo
fim da ditadura militar por si só levaria à reforma agrária. é outro. E são outras e mais complexas suas contradições
Um regime civil, qualquer que fosse, necessariamente cria­ internas.
ria as condições para resolver o problema fundiário e a vio­
lência dele decorrente. Esse corte cronológico, entretanto, é
insuficiente para dar conta da verdadeira amplitude tempo­ 2. M U D A N ÇA S POLÍTICAS N O CAMPO
ral dos processos que estavam ocorrendo e continuam a
ocorrer na Amazônia. Historicamente, é necessário considerar que os deslocamen­
Esses processos são mais lentos do que sc imagina. E tos em direção à Amazônia e os conflitos entre grileiros e
mais amplos. Na verdade, as análises que estão sendo feitas posseiros, que têm marcado tão sangrentamente o seu cená­
neste momento, como esta, incidem sobre processos inaca­ rio neste último quarto de século, representam apenas uma
bados e sobre situações cuja consistência histórica não é aceleração de processos que já vinham ocorrendo no país. Já
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nos anos cinqüenta, estimulado pela construção da rodovia estava marcada pelo ferro em brasa de grileiros experimen­
Belém—Brasília, um significativo deslocamento de migrantes tados, que haviam iniciado a venda de amplas porções do
nordestinos do Piauí e do Maranhão vinha ocorrendo em território amazônico a grandes e médios proprietários. Ain­
direção a Goiás e Mato Grosso. O cenário goiano estava da hoje, os grandes jornais de São Paulo anunciam com
profundamente marcado por conflitos sangrentos entre gri­ freqüência a venda de títulos de terra na região amazônica,
leiros e posseiros. Já mencionei a "república" camponesa de adquiridos nesse período, seja por meio de grileiros, seja
Trombas, constituída e povoada por posseiros de origem diretamente dos governos estaduais, como o do Mato Gros­
maranhense. Eles subiram pelas margens do rio Tocantins, so, que tentavam, por esse meio, transformar terrenos que,
no final dos anos quarenta, quando apenas se esboçava um em termos do mercado, nada valiam, em alguma fonte de
projeto de construção de uma rodovia Transbrasiliana, para renda para o erário público. Títulos de terras que os proprie­
ocupar o território do rio Trombas 3. São dos anos quarenta tários nunca viram nem sabem onde ficam. No mesmo Mato
os deslocamentos iniciais dos seguidores da "Bandeira Grosso, aliás, a mesma terra foi vendida por diferentes gri­
Verde", movimento milenarista que levou muitos nor­ leiros, além do próprio governo estadual, a diferentes com­
destinos a se transportarem para o Oeste, cruzando o To­ pradores.
cantins e, depois, o Araguaia, para escapar da catástrofe de Trata-se do mesmo movimento dos tempos recentes:
um juízo final que torraria com fogo definitivo o território à enquanto migrantes nordestinos pobres, praticantes da agri­
margem direita do rio. Trata-se de um movimento social cultura itinerante de roça, se deslocavam em direção ao
ainda vivo no Mato Grosso, em Goiás, no Pará. Oeste em busca das chamadas terras livres, médios e gran­
No mesmo sentido, é essencial lembrar que grileiros des compradores de terra, residentes no Sul e no Sudeste,
famosos no Paraná, envolvidos nas violentas expulsões de compravam títulos de propriedade, muitas vezes sem qual­
posseiros e colonos do sudoeste e de algumas regiões do quer valor legal. Com ditadura ou sem ditadura militar, o
norte do estado, no período negro da grilagem que marcou período que se abre com os anos sessenta teria registrado
tão fundo os dois governos de Moisés Lupion, já estavam se um grande número de conflitos fundiários na região ama­
deslocando em direção ao norte do Mato Grosso no início zônica. É evidente, porém, que o desenrolar desses conflitos
dos anos sessenta e até antes 4. E ali punham em prática as e suas conseqüências seriam, provavelmente, outros, muito
mesmas técnicas de açambarcamento e grilagem de terras diferentes do que estamos presenciando. Nos anos cinqüen­
com que tinham feito fortuna no Sul do país. Alguns deles ta, tivemos as revoltas camponesas do Paraná, em decorrên­
estão por trás de importantes projetos de colonização atuais cia da grilagem de terras 5. Nesses mesmos anos, a revolta
e da formação de grandes fazendas após 1964. de Trombas, em Goiás. Nos dois casos, a participação do
Antes mesmo da ditadura militar se constituir numa
possibilidade real, antes do golpe, a carta da Amazônia já 5 A revolta camponesa do Paraná, em 1957, e a criação dos governos popu­
lares na região está melhor estudada que a revolta de Trombas. Cf. Joseph
3 Cf. Orlando Valverde e Catharina Vergolino Dias, A Rodovia Belém — W alace Foweraker, The Frontier in the South-West of Paraná from 1940, B.
Brasília, Instituto Brasileiro de Geografia, Rio de Janeiro, 1967, p. 270-284. Phil. thesis, Oxford, 1971; Joseph Walace Foweraker, Political Conflict on
4 Cf. Hélene Riviére d'Arc, "L e Nord du Mato G rosso colonisation et the Frontier: a case study of the lan d problem in the West of Paraná,
nouveau 'bandeirism o'", in A nnales d é Géographie, LXXXVIe. Année, Li- University of Oxford, April 1974; Joe Foweraker, A Luta pela Terra, trad.
brairie Armand Colin, Paris, s/d, p. 286-289; Victor Asselin, Grilagem — M aria Júlia Goldwasser, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1982; Maria Cristina
Corrupção e Violência em Terras do C arajás, Vozes/CPT Petrópolis, 1982, Colnaghi, Colonos e Poder — A Luta pela Terra no Sudoeste do Paraná,
p. 15-21; Sue Branford &. Oriel Glock, The Last Frontier, Zed Books Ltd, Dep.to de História da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1984; Iria
London, 1985, p. 37-42 e 83-86. Zanoni Gomes, 1957 — Revolta dos Posseiros, Edições Criar, Curitiba, 1986.

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Partido Comunista do Brasil politizou as lutas, levando até consciências para outras concepções sobre as relações entre
o limite da criação dos governos populares locais e à criação as pessoas, entre poderosos e fracos, entre ricos e pobres.
de enclaves territoriais liberados e autogovernados. O deslo­ Em outros setores da economia rural, essa desagregação
camento dos migrantes e o deslocamento da grilagem para a também se foi fazendo presente. Embora nem sempre des­
região amazônica já estavam deslocando, também, as lutas truindo o clientelismo, ao menos modificando-o. Na Ama­
camponesas e o movimento social que elas encerravam: suas zônia, essa mudança começará a chegar pouco depois, a partir
táticas, seus meios, seu projeto histórico implícito. do final dos anos sessenta, com a abertura de estradas que
O golpe militar não desencadeia, portanto, a situação de desviaram do leito dos rios o curso das mercadorias e dos
conflito. Ao contrário. O golpe e a política fundiária do produtos do trabalho. Desviando-os, portanto, do controle
Estado militar golpeiam, também, a luta camponesa, a re­ das verdadeiras feitorias amazônicas que são os "barracões",
volta no campo. E trabalham para despolitizá-la. A mensa­ base da servidão do seringueiro e do castanheiro.
gem com que o General Castelo Branco encaminhou ao Essas mudanças, no geral, não estão baseadas em trans­
Congresso Nacional a proposta de reforma constitucional, formações nas relações de produção decorrentes de câmbios
que permitiria a aprovação do Estatuto da Terra, já estabelecia profundos no processo de trabalho. Este se manteve pratica­
com clareza o objetivo da reforma agrária da ditadura: se­ mente o mesmo, quando muito sofrendo pequenos ajustes
parar a cabeça do corpo — afastar os trabalhadores rurais em função das novas formas de incorporação da mão-de-
dos grupos políticos de esquerda, como o PCB e as Ligas obra. Nos canaviais do Nordeste, como nos cafezais de São
Camponesas, que, profunda e contemporaneamente envol­ Paulo, o processo de trabalho se manteve praticamente sem
vidos nos conflitos, davam-lhes direção política e dimensio- modificações técnicas 6. A única diferença é que a expulsão
namento histórico. O que muda com a ditadura é o direcio­ dos moradores e colonos reduziu as relações de trabalho a
namento militar e geopolítico do conflito, como forma de relações salariais, mediante a compra do tempo de trabalho
circunscrever a luta dos trabalhadores rurais para, ao mes­ estritamente necessário pelo fazendeiro, em dinheiro, ao
mo tempo, intensificar, com incentivos fiscais, a transfor­ "clandestino" ou ao "bóia-fria". Na prática, a mudança sig­
mação do grande capital em proprietário de terra. nificativa que houve não foi na produção, na criação do va­
O envolvimento dos militares na questão agrária está lor e da mais-valia: foi na liberação de terras antes empregadas
diretamente relacionado com a ruptura dos vínculos de pelos trabalhadores na produção direta de uma parte de seus
dependência e com a crise da dominação pessoal, que esta­ meios de vida. Com isso, a mudança permitiu ao fazendei­
beleciam a sujeição dos trabalhadores rurais aos seus pa­ ro empregar a terra, antes usada para a sobrevivência dos
trões. Fenômeno, aliás, que ainda persiste, fragmentado, em trabalhadores, na produção de mercadorias. Essa mudança
muitas regiões. Essa tutela clientelística, base do sistema não decorreu de uma transformação no processo de trabalho,
político brasileiro, tanto existia nos canaviais do Nordeste, mas de uma elevação do preço da terra e da renda fundiária.
quanto nos cafezais de São Paulo e nos seringais da Amazô­ A mudança não se deu na produção da mais-valia e sim na
nia. As transformações econômicas ocorridas nas grandes sua distribuição, sob a forma de renda.'
fazendas das várias regiões do país, a partir dos anos cin­ E exatamente essa a natureza das mudanças essenciais
qüenta, começaram a demolir a dominação pessoal: colonos que chegam à Amazônia nos anos sessenta e setenta. O
expulsos dos cafezais, moradores expulsos dos canaviais, a
separação entre o local de trabalho e o local da moradia, 6 Um a análise pioneira desse tema, em relação aos canaviais de Pernam­
buco, foi desenvolvida por Lygia Sigaud, Os Clandestinos e o Direito,
começaram a libertar os trabalhadores rurais e a abrir suas Livraria D uas Cidades, São Paulo, 1979.
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centro da questão agrária, naquela região, não está no capital 3. CAPITALISMO RENTISTA E AUTORITARISMO
e no trabalho, na produção do valor e da mais-valia; o cen­
tro está na distribuição da mais-valia sob a forma de renda Quero distinguir esta concepção de modelo político autori­
fundiária. Esse é o elemento essencial para uma compre­ tário de outras que têm conotação diversa 1. A base desse
ensão adequada das transformações e dos conflitos que vêm capitalismo rentista não se circunscreve à Amazônia nem
ocorrendo ali, da real natureza dos seus movimentos sociais se explica pelo fato de que na Amazônia a abundância de
e dos impasses que os impedem de se tornarem uma força terras livres, supostamente, obriga a formas coercitivas de
transformadora real das relações sociais e políticas. exploração da força de trabalho, conseqüente base do
A intervenção dos militares no processo político brasi­ clientelismo e do autoritarismo. A inviabilidade de um
leiro, e o modo como a concretizaram na região amazônica, modelo político liberal, no caso brasileiro, repousa antes na
foi clara tentativa de impedir que o espaço vazio criado pela renda territorial, no seu caráter tributário e antiliberal, que
deterioração dos vínculos de dependência pessoal fosse pre­ gera e impõe um Estado cartorial e clientelístico. A base
enchido por um novo sujeito histórico, o trabalhador rural. desse capitalismo rentista é o país inteiro e ele está fir­
E basicamente porque, excluído tradicionalmente da ação memente presente nas várias regiões. Nesse sentido, a
política pela sujeição pessoal, que fazia dele um cliente do Amazônia tornou-se uma espécie de colônia do grande capi­
fazendeiro, um membro do sistema de propriedade, mas não tal, fonte de ganhos especulativos decorrentes da elevação
um cidadão, na nova situação sua cidadania só podia ser da renda fundiária produzida pela abertura de estradas e
viabilizada por grupos e partidos políticos também excluí­ ampliação da infra-estrutura econômica, pelo governo.
dos, "fora" do sistema político, como era o caso dos partidos Também são ganhos que não decorrem diretamente da pró­
clandestinos e dos grupos de esquerda. Esse novo sujeito pria produção do setor, mas dos incentivos fiscais, mediante
histórico, mesmo com todas as suas diversidades, dese­
quilibrava o pacto político de sustentação da República, que 7 É diversa esta concepção da de "capitalism o autoritário" empregada por
"costurara" de modo mais ou menos precário a tradição Otávio Guilherm e Velho (C apitalism o A utoritário e Cam pesinato, Difel,
São Paulo, 1976, esp. p. 42 e ss.) e por Joe Foweraker (A Luta pela Terra, cit.,
militar centralizadora e desenvolvimentista e a tradição esp. p. 244-245). Ambos os autores põem a ênfase de sua interpretação na
oligárquica, federativa, municipalista e mercantil-agrarista. abundância das "terras livres" como fator das formas coercitivas de trabalho
A Revolução de 1930, ao derrotar as oligarquias rurais e n essas regiões. Minha interpretação não a exclui. Porem, penso que o
autoritarism o político, no Brasil, se apóia num a mediação m ais ampla, que
substituí-las por novos grupos dominantes nos estados, ge­ m escla lucro e renda fundiária. N esse sentido, não é um problema regional,
ralmente de origem militar, reconhecera e firmara as bases m as um problema nacional. Por isso, a reprodução ampliada do capital não
de um pacto político entre civis e militares, que continua se dá num quadro de liberalism o econômico (e, conseqüentemente, político).
A reprodução ampliada do capital não depende apenas dc form as coercitivas
sendo a base do poder. A revolta camponesa dos anos cin­ de extração da m ais-valia, m as tam bém de form as coercitivas de extração do
qüenta comprometia esse pacto. E seu deslocamento para a lucro. Ou seja, não envolve apenas a produção do valor, mas, também, sua
Amazônia, nos anos sessenta, comprometia definitivamen­ circulação e distribuição. Afeta, assim , o conjunto das relações sociais e não
apenas aquelas diretamente determinadas pela dominação pessoal. N esse
te, mais do que o modelo de desenvolvimento econômico e sentido, não envolve apenas a violência privada, m as também a violência
mais do que o capitalismo, o modelo político autoritário pública do Estado, a repressão policial, a conivência com a repressão privada,
fundado na propriedade da terra e na renda fundiária — os subsídios, o contingenciamento da economia etc. Minha concepção é
diversa, também, porque não se baseia na concepção estruturalista de
fonte especulativa e improdutiva de riqueza, em que a natu­ form ação econômica e social nem na idéia correlata de um a articulação de
reza rentista da classe dominante impõe ao país um modelo m odos de produção. Baseia-se, antes, na concepção histórica de formação
capitalista de natureza tributária. econômica e social.

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os quais o governo transfere renda de outros setores para distante, em que a soja foi fonte de ganhos acentuados e
aqueles de base agrária. rápidos. A própria soja, aliás, e sua oscilação de preços,
Não se trata aqui, como é fácil perceber, de pré-capita- decorrente da ação especulativa dos grupos econômicos
lismo ou, simplesmente, de um capitalismo de fase atrasada americanos interessados na sua comercialização, lançou
que depende do que, forçando, se possa chamar de acumu­ muitos pequenos produtores sulistas na estrada de Mato
lação primitiva. Pois não se trata só de expropriação Grosso e Rondônia, onde foram recomeçar a vida no final
territorial, mas, também, de tributação através da renda dos anos setenta.
fundiária. O mesmo grande capital moderno pode abrir mão Basicamente, o pequeno produtor do Sul dirigiu-se para a
da condição de proprietário fundiário no Sul, mas empenhar- Amazônia não só porque estivesse tentando ampliar suas
se em se tornar proprietário de terra na Amazônia. Trata-se, disponibilidades territoriais para assegurar aos filhos a
portanto, de um modelo de capitalismo diverso do modelo permanência na agricultura familiar. O fez também porque
clássico europeu ou americano: aqui, a reprodução ampliada o próprio desenvolvimento tecnológico impôs uma altera­
do capital passa pela extração e realização da renda fundiá­ ção na escala da agricultura familiar. A manutenção dessa
ria. Basta ver que os balanços das empresas agropecuárias da pequena economia agrícola de família, com suas necessida­
Amazônia Legal apontam, quase sempre, prejuízos contá­ des domésticas ampliadas, passou a depender de um nível
beis ou lucros ínfimos 8. Esses prejuízos são compensados de produção maior, decorrente da deterioração das relações
pelos incentivos fiscais, isto é, pelos subsídios, e pela eleva­ de troca entre agricultura e indústria, esta última aboca­
ção especulativa da renda fundiária em que essas empresas nhando parcelas crescentes do valor criado pelos pequenos
se apóiam. O que é possibilitado por serem segmentos se­ produtores.
cundários de aglomerados econômicos mais amplos, cuja Por sua vez, a ampliação da escala da produção foi pos­
lucratividade principal está em outras atividades. Ou seja, a sibilitada pela tecnologia moderna, que viabilizou a
racionalidade das empresas agropecuárias da Amazônia não manutenção da natureza familiar da produção agrícola:
está na produção. É o que reveste a ação dos empresários máquinas, fertilizantes, inseticidas, sementes selecionadas
rurais e proprietários de terra de uma aparente ambigüidade. etc. Na prática, a combinação do crescimento dos preços
Ao lado de uma oposição radical aos posseiros e suas lutas, dos insumos industriais com a tendência ao decréscimo do
são defensores das políticas de colonização e, sobretudo, co­ preço real dos produtos agrícolas manifestaram-se numa
lonização por empresas particuláres, nas quais freqüente­ concreta supressão temporária ou definitiva da renda fundiá­
mente estão envolvidos. ria para o pequeno produtor, proprietário de sua terra, pois o
Por isso, a clientela a que se dirigem tais projetos de equivalente do aluguel da terra não aparece no preço do seu
colonização não é a constituída pelo migrante nordestino produto. Ao comprar a terra, paga a renda fundiária. Ao
pobre, que se vem deslocando lentamente em direção à vender o produto, não a recebe 9. Só pode recuperá-la
Amazônia nos últimos anos, e sim a do pequeno produtor 9 N o interessante e conhecido estudo dc Vergopoulos sobre o "capitalism o
gaúcho, catarinense ou paranaense, que se tem dirigido para disform e", faltou considerar que a expansão capitalista na agricultura,
a Amazônia Ocidental nos últimos vinte anos. Este pôde através da produção camponesa e de m ecanism os sistem áticos de pilhagem,
suprim e a renda fundiária no preço do produto, m as não a suprim e de fato.
vender sua parcela de terra, no Sul, às cooperativas e aos O que o capital faz é colocá-la sob seu domínio, desenvolvendo meios, como
grandes proprietários, e o fez sobretudo no período, não muito o da colonização, que lhe perm item concentrar e desconcentrar a pro­
priedade, ciclicamente, viabilizando a realização da renda pelo capitalista e
sua reconversão em capital. O caso brasileiro, nesse sentido, é exemplar,
8 Cf. Sue Branford & Oriel Glock, The Last Frontier, cit., p. 8.

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vendendo a terra, mas não permanecendo como produtor tuitas de recursos públicos para as empresas abertas na
agrícola. Em casos extremos, como no do Projeto Canarana, Amazônia Legal. De fato, a política de incentivos destinou-
no Mato Grosso, a deterioração do solo e a eliminação de se claramente a proteger a renda fundiária e os proprietários
sua fertilidade precária levaram ao abandono ou simples­ de terra, assegurando sua permanência na estrutura de po­
mente à perda dos lotes adquiridos por muitos colonos. der. Embora seja quase sempre interpretada como uma
Nesses casos, temos uma manifestação física da supressão simples política de "implantação" do grande capital no
da renda fundiária para o pequeno produtor, ao mesmo tempo campo, tem sido uma política para forçar o grande capital a
em que ela constitui uma das bases da acumulação de capital se tornar proprietário de terra, preservando e modernizan­
dos grandes proprietários capitalistas. do a propriedade, ao mesmo tempo, sem fazer reformas
Mesmo assim, isso não significa uma tendência inexorá­ sociais.
vel à concentração da propriedade fundiária e à latifundiza- Ao invés de efetivar o modelo clássico, no qual o capital
ção do campo. Embora a propriedade da terra permaneça remove ou atenua a renda fundiária para se expandir na
altamente concentrada na região amazônica e no conjunto agropecuária, o Estado militar subsidiou o capital para
do país (menos concentrada no Sul e no Sudeste), o lugar da recompensá-lo pelos prejuízos e irracionalidades decorren­
renda fundiária na acumulação depende de um jogo pendu- tes da sua imobilização improdutiva na aquisição de terras.
lar de desconcentração fundiária e de colonização privada. Ao invés de a irracionalidade econômica, representada pela
É o meio de transformar renda em capital, de realizar a renda renda fundiária, ser removida pela nacionalização da pro­
territorial no mercado imobiliário. A formação da classe priedade ou pela reforma agrária, que atingiria mortalmen­
média rural, princípio nuclear do Estatuto da Terra, dos te as oligarquias proprietárias de terra (um pouco como
militares, e das políticas de apoio do Banco Mundial à fizeram os militares no Peru), foi removida pelo subsídio
pequena empresa rural, constitui um dos ingredientes pa­ financeiro, pelos incentivos fiscais, que transferiram para
ra que a associação entre o capital e a renda fundiária se toda a sociedade o ônus da manutenção econômica e polí­
efetive. tica da classe dos grandes proprietários de terra. Com isso,
O outro ingrediente foi o da política de incentivos fiscais os grandes senhores territoriais da Amazônia e os grileiros
para que os grandes capitalistas do Sudeste se interessassem do Sul que para lá se deslocaram não sofreram um con­
pela abertura de empresas na Amazônia, particularmente fisco territorial. Mas, ao mesmo tempo, a entrada do gran­
empresas agropecuárias. A política de incentivos fiscais, de de capital abriu rombos nas estruturas de dominação,
1966, definiu o verdadeiro e amplo sentido político da nos nichos do poder local e nas bases sociais do cliente-
orientação agrária dos militares. E convém lembrar que a lismo político. A própria violência desencadeada contra
Nova República, regime civil que sucedeu a ditadura, se/n a posseiros e trabalhadores rurais rompeu as lealdades
prática, restringiu a aplicação do Estatuto da Terra e, conse­ tradicionais, a reciprocidade do favor, da proteção è da tu­
qüentemente, a possibilidade de uma reforma agrária nas tela, as obrigações morais do latifúndio tradicional — ex-
áreas e nos casos de tensão social, ao mesmo tempo preser­ trativista ou pecuário — em relação a seus agregados e de­
vou a política de incentivos fiscais, de transferências gra- pendentes.
Para concretizar o consórcio da terra com o capital e
em boranão seja único. Cf. Kostas Vergopoulos, "C apitalism ed ifform e(lecas manter, portanto, as bases conservadoras do Estado brasi­
de 1'agriculture dans le capitalism e)", in Sam ir Amin e Kostas Vergopoulos,
La Question Paysanne et le C apitalism e, Éditions Anthropos, Paris, 1974, leiro, foi necessário instituir a tutela militar sobre as regiões
esp. p. 222 e ss. mais tensas da Amazônia, particularmente a do Araguaia,
82 83
4. A IGREJA E OS CONFLITOS: O REFÚGIO DOS SOFREDORES
mas não só ela. Essa foi a forma de conter as forças sociais
que ganhavam substância nas lutas camponesas c que pode­
riam criar na Amazônia uma realidade social apoiada na A ocupação rcccntc da Amazônia pelo grande capital foi,
pequena agricultura e; sobretudo, apoiada numa ampla nacio­ como disse antes, o modo de selar o pacto político inaugurado
nalização da propriedade. Não se trata de uma fantasia. Não pelo golpe militar dc 1964. Com ele foram superados os
são poucos os diferentes grupos camponeses em luta pela antagonismos básicos que opuseram durante toda a história
terra que têm com insistência reivindicado o reconhecimento republicana do Brasil, c mesmo antes, os militares às oligar­
legal da propriedade comum como base da pequena agricul­ quias rurais. Os pesados subsídios e incentivos fiscais conce­
tura familiar ou, mesmo, do extrativismo familiar. A resis­ didos pelo Estado às grandes empresas abriram o campo ao
tência dos seringueiros do Acre, nestes últimos anos, à der­ investimento capitalista, protegeram c reafirmaram a renda
rubada dos seringais, vendidos a empresários paulistas, é da terra e a especulação imobiliária, incluíram a grande
um movimento exemplar dessa exigência. Não só se têm propriedade fundiária num projeto de desenvolvimento capi­
oposto à derrubada dos seringais, organizando a luta dos talista que tenta organizar, contraditoriamcnte, uma socie­
"em pates", formas de resistência aos fazendeiros originários dade moderna sobre uma economia rentista e exportadora.
do Sul, pecuaristas, empatando, isto é, impedindo a derruba­ Um capitalismo tributário atualizado.
da da floresta. Mas também exigindo o reconhecimento do No campo, c na Amazônia em particular, esse pacto tem
direito coletivo à posse do seringal e rejeitando a sua divisão implicado mudanças profundas. A velha economia latifun-
em parcelas agrícolas familiares, conforme o modelo oficial dista comercializava excedentes. Para tanto, tinha que asse­
do governo, quando os seringais são desapropriados para fins gurar alguma forma de auto-suficiência ao pequeno produ­
de reforma agrária. > tor. Quando isso não era possível, como na economia da
A posse da terra em comum está também na lógica da borracha, tinha que instituir a extorsão do aviamento c a
agricultura de roça e passou a inscrever-se nas lutas de re­ cocrção do trabalho policiado. Agora a circunstância do
sistência de diferentes grupos de posseiros no Mato Grosso, aviamento se expandiu a uma escala muito maior. Por trás
no Pará, cm Goiás, no Maranhão. Por tradição, existe um do empreendimento não está apenas a propriedade fundiá­
direito coletivo ao uso da terra que entra em conflito com a ria. Agora está o grande capital: o banco, a indústria, o gran­
concepção jurídica de propriedade privada, ou "terra de dono" de intermediário, o mcrcado. Agora, o investimento tem
como dizem os trabalhadores. É que a agricultura de roça que produzir lucro num ritmo certo c num tempo determi­
tem uma demora temporária sobre a terra, de dois ou três nado — o tempo da reprodução ampliada do capital. Mesmo
anos, deslocando-se em seguida para terras virgens, até que quando os novos fazendeiros adotam, como têm feito com
a terra antiga recupere a fertilidade. Há uma lógica perfeita freqüência, as relações de trabalho da peonagem, da escra­
e um direito perfeito de uns em relação a outros nessa for­ vidão por dívida, levam-nas às últimas conseqüências. A
ma de uso tradicional do solo. A experiência de Canabrava, violência é muito maior do que nas velhas relações do
no Mato Grosso, onde os lavradores chegaram a escrever a\ lamento nos seringais. São freqüentes as denúncias de
uma "lei de terras", uma espécie de contrato coletivo da assassinatos impunes de trabalhadores, como freqüentes são
população camponesa local a respeito do uso comum da as referências ao tráfico de pessoas destinadas à escravidão
terra, repete-se no povoado de Anilzinho, no Pará, e expan­ do débito nas novas fazendas de empresários modernos.
de-se por meio das famosas "lei de terras" ou "lei Anilzi­ É nesse quadro que surgem notícias de uma nova Igreja
nho" — uma "lei" popular para uso popular. atuando na Amazônia — uma Igreja que agrega ao seu serviço

84
pastoral o de refúgio dos aflitos. Os primeiros sinais apare­ Basicamente, a Igreja se transformou num refúgio por dois
cem na carta pastoral de Dom Pedro Casaldáliga, Bispo de motivos: de um lado, porque as vítimas e perseguidos não
São Félix, no Mato Grosso, em 1971 10. Peões fugidos das tinham e não têm outra alternativa. A justiça e a polícia
novas fazendas vinham bater à porta da igreja em busca de locais têm estado sob controle dos grandes proprietários,
remédio e de asilo. Alguns chegavam para morrer, marcados não sendo raro que o juiz, o delegado, o comandante do des­
pela tortura de pistoleiros, debilitados pela malária. Muitos tacamento e todos os outros funcionários públicos tenham
morreram pelos caminhos e pelas matas antes de chegarem sido nomeados pelo governador por indicação de políticos
a um lugar seguro. Aos peões fugidos, juntaram-se posseiros apoiados e eleitos pela interferência dos grandes fazendeiros
novos e antigos, alguns de várias gerações na mesma terra, locais. Tem sido comum que um peão fugido, ameaçado de
que começaram a ser expulsos violentamente de seus roça­ tortura e morte, ao recorrer à polícia local, acabe sendo
dos. Não só deles. A Fazenda Codeara, do Banco de Crédito entregue de volta ao capataz e aos pistoleiros da fazenda de
Nacional, transformou até mesmo o antigo povoado de Santa onde escapara. A inutilidade desse socorro é também re­
Teresinha num enclave, por ela cercado. Tentou estabelecer conhecida pelos posseiros.
um novo traçado urbano sobre o antigo para depois vender De outro lado, porque a Igreja, a partir dos anos sessenta,
as terras aos próprios ocupantes e deles extrair uma renda tem sido a Igreja da opção preferencial pelos pobres e da
territorial. Conseqüência foi a revolta armada de 1973, que pastoral social. A violência da expansão capitalista na
resultou na prisão, processo e expulsão, do Brasil, do padre Amazônia encontra pela frente uma Igreja vigilante e atenta
Francisco Jentel n. aos direitos humanos, comprometida com os direitos dos
A história é a mesma em toda a parte. À medida que a pobres e oprimidos, voz dos que não têm voz. Uma Igreja
frente capitalista se expandiu pela Amazônia, foi alcançan­ comprometida com a dignidade do homem e consciente de
do as Igrejas locais. Quando D. José Patrício chegou a que a libertação dos pobres passa pelo rompimento das ca­
Conceição do Araguaia, no Pará, para tomar posse da dioce­ deias que escravizam não só o seu trabalho, mas também a
se, foi recebido por uma multidão de posseiros em prantos, sua consciência 13.
que acabavam de ser despejados da terra por um grande Freqüentemente, encontra-se em textos superficiais refe­
proprietário adventício. Desde então é a todo o instante rência ao envolvimento da Igreja nos conflitos sociais e,
procurado por trabalhadores expulsos, perseguidos, tortura­ particularmente, na questão fundiária, por meio de uma
dos. São de sua diocese os dois padres franceses, Aristides distinção entre bispos "progressistas" e bispos "conservado­
Camio e Francisco Gouriou, presos e processados pela Justi­ res". Essa distinção nada explica. Durante as sessões da
ça Militar, acusados de incitamento à subversão e envolvi­ Comissão Parlamentar de Inquérito, da Câmara Federal, que,
mento na tocaia contra um pistoleiro de uma fazenda que em 1977, investigou os problemas fundiários, vários bispos
perseguia os trabalhadores e que acabou morto 12. foram chamados a depor — "progressistas" e "conservado­
res". Todos, porém, denunciaram a gravidade da situação e
10 Cf. Pedro Casaldáliga, Uma Igreja da A m azônia em Conflito i...om o o envolvimento das respectivas dioceses em algum tipo de
Latifúndio e a M arginalização Social, São Félix do Araguaia (MT), 1971; D. ação e de pastoral em favor das vítimas da violência 14. Na
Pedro Casaldáliga, Creio na Justiça e na Esperança, 2- edição, Civilização
Brasileira, Rio, 1978. 13 Cf. Estudos da CNBB, Pastoral da Terra, Edições Paulinas, São Paulo,
11 Cf. Sue Branford e Oriel Glock, ob. cit., p. 225-280. 1976.
12 Sobre os conflitos envolvendo a Igreja em Conceição do Araguaia, no Pará, 14 Cf. SEDOC, volum e 10, n° 105, outubro-novembro de 1977 (volume
cf. Ricardo Rezende Figueira, A Justiça do Lobo, Vozes, Petrópolis, 1986. dedicado aos depoimentos dos bispos na CPI da Terra).

86 87
verdade, as circunstâncias chamaram as Igrejas (porque Em janeiro de 1973, eles eram 350. Em janeiro de 1975
também os luteranos desenvolvem uma pastoral da terra) estavam reduzidos a 79 (pouco mais de 20% do grupo origi­
para a suplência e a urgência de uma mediação social e nal), todos com visíveis sinais de tuberculose. Nesse perío­
política no campo. Convém lembrar que esses anos foram, do, tinham sido iniciados em práticas homossexuais por
também, anos de violenta repressão política contra os funcionários da própria Fundação Nacional do índio, que
partidos de esquerda, inclusive o Partido Comunista do Brasil, também os privou de arcos e flechas, seus instrumentos de
que teve uma importante história de organização dos traba­ sobrevivência. Em 1974, já estavam transformados em men­
lhadores rurais e de luta pela terra. Sem contar que as es­ digos, perambulando pela estrada, prostituindo as próprias
querdas têm estado profundamente divididas sobre a orien­ mulheres e filhas, bebendo cachaça, sujos, disputando restos
tação a adotar em relação às lutas pela terra. de comida. Em 1975, apenas três tinham mais de 39 anos de
Em 1973, bispos se reuniram em diferentes regiões, idade. Nesse ano, aceitaram convite dos índios Txukahamãi,
inclusive no Centro-Oeste do Brasil, na Amazônia Legal, e seus tradicionais inimigos, para viver com eles no parque do
proclamaram seu compromisso com os injustiçados do Xingu 15.
campo, denunciando as graves violações de que estavam Situação igual ocorreu com os Parakanã, do Pará. Em 1971,
sendo vítimas índios e camponeses. Dois anos depois, em eram 92 os sobreviventes. Seu território foi violado e mu­
1975, a suplência da Igreja e o serviço pastoral aos pobres da tilado duas vezes: na abertura da rodovia transamazônica e
terra passaram a ser articulados por uma Comissão Pastoral na construção do lago da hidrelétrica de Tucuruí, o que
da Terra, que hoje reúne católicos e luteranos. obrigou a transferi-los, com conseqüências danosas 16.
Com isso, a Pastoral da Terra ganhou um caráter especial Não é diferente a história dos Waimiri-Atruahi, do
no conjunto das atividades da Igreja. É que o problema da Amazonas. Em seu território foi aberta a rodovia Manaus—
terra era e é claramente político. Decorre de um pacto Caracaraí, apesar da vigorosa resistência dos índios. Em
político que não só excluía os trabalhadores rurais. Preco­ seguida, teve início a construção da hidrelétrica de Balbina,
nizava sua maciça expulsão da terra e os transformava em cujo lago inunda amplo território dos índios. Finalmente, as
vítimas sem alternativa de um projeto político e econômico terras foram abertas a uma grande empresa de mineração de
que não só condenava milhões de pessoas à miséria, como cassiterita. Os Waimiri-Atruahi, que eram três mil, em 1968,
até mesmo condenava muitos ao desaparecimento sumário, estavam reduzidos a seiscentos, em 1982 17.
com a conivência, a participação e, até, a promoção do Esta­ Os grandes empreendimentos e os chamados grandes
do. Foi o que ficou absolutamente claro no caso das popu­ projetos (rodovias, hidrelétricas, projetos de colonização e
lações indígenas, motivo da criação, pela Igreja, em 1972, do de mineração) têm chegado ao campo e, particularmente, à
CIMI — Conselho Indigenista Missionário e a definição de Amazônia com uma face mortal. Não chegam apenas para
uma nova pastoral indigenista. açambarcar terras. Destroem modos de vida, desmoralizam
Lembro, aqui, casos dramáticos como o dos índios as populações locais, como denuncia o caso dos povos indí­
Kreenakarore, do Mato Grosso, os chamados "índios gi­ genas, cujos territórios foram invadidos e mutilados.
gantes". Começaram a ser atraídos, em 1972, porque seu
território estava sendo cortado pela rodovia Cuiabá—Santa­ 15 Cf. Coojornal, nQ59, Porto Alegre, novembro de 1980, p. 16; O Estado de
rém, que abriria a região para as grandes fazendas e projetos S. Paulo, 17 de agosto de 1975, p. 27.
de colonização organizados por empresas privadas. Em ou­ 16 Cf. O Estado de S. Paulo, 12 de junho de 1977, p. 30.
tubro, foi feito o primeiro contato amistoso com os índios. 17 Cf. O Estado de S. Paulo, 20 de outubro de 1982, p. 11.

89
É por essas razões que a resistência camponesa nessas exploradores e opressores. Porém, o trabalho não pode apa­
áreas, articulada ou não pela Igreja, é mais do que luta pela recer aí como trabalho abstrato, mero equivalente de di­
terra. Digo articuladas ou não pela Igreja porque num caso nheiro, como ocorre com o assalariado. Para o camponês, o
como o das lutas dos seringueiros do Acre, em que a Igreja trabalho só pode aparecer como trabalho concreto no fruto
não tem papel principal, embora seja Igreja atuante, a luta palpável de sua colheita, da atividade de sua família. Uma
dos seringueiros é pela desapropriação e preservação dos parte desse fruto é condição direta de sua sobrevivência. Por
seringais. Isto é, pela preservação de um modo de vida. Essa isso, sua expulsão da terra, embora muitas vezes mascarada
característica também marca o trabalho da Igreja em várias por decisão legal, aparece-lhe como ato iníquo, porque é
regiões. Não se trata, porém, de uma proposta da Igreja, no sempre violento e compromete a sua sobrevivência. Porque
sentido de que não resulta de uma doutrina católica, como priva-o do que é seu — o seu trabalho, meio e instrumento
pretendem alguns, que tentaria resgatar o familismo do de sua dignidade e de sua condição de pessoa.
pequeno agricultor como forma de combater o comunismo. E nesse plano que se dá o encontro moral (e, muitas ve­
Na verdade, o modo como os trabalhadores rurais em luta zes, religioso) entre o trabalhador rural e a Igreja. Se no nú­
têm organizado sua resistência e sua sobrevivência, com cleo da doutrina social da Igreja está a concepção de pessoa,
base, algumas vezes, no trabalho coletivo do mutirão, na também no núcleo da ideologia camponesa está a concepção
preservação da economia familiar, é a única alternativa real de pessoa, e não a concepção abstrata de indivíduo, que é o
à degradação, à miséria e à desmoralização. É verdade que a que aparece com mais clareza na condição operária.
Igreja compreendeu e assumiu essa alternativa, que apenas E nesse âmbito que os movimentos camponeses se apóiam
potencialmente tem a dimensão de um projeto alternativo num projeto político apenas implícito. A Igreja tem para a
que dê sentido às lutas dos trabalhadores rurais. Esse projeto pessoa um projeto religioso e não um projeto político. E os
revaloriza a família, resgata a fartura da economia familiar partidos de esquerda têm um projeto para a classe operária e
autônoma, como instrumento de combate ao intercâmbio não para a categoria de pessoa. Na prática e na teoria dos
desigual, forma econômica de raiz colonial. Há aí o reco­ partidos não se recuperou ainda a importância histórica da
nhecimento do papel que o intermediário da comercializa­ individualidade, que tem na reconciliação da pessoa consi­
ção de excedentes tem tido na manutenção do atraso e da go mesma (e não no indivíduo), na superação da alienação,
pobreza no campo. Não por acaso, há uma tendência coope- um elemento historicamente essencial. A falta dessa com­
rativista em muitos dos movimentos sociais no campo, além preensão empobrece a mediação política da Igreja, do mes­
do reconhecimento da importância de formas cooperativas mo modo que reduz a ação dos partidos a uma concepção
de produção. pobre e aparelhista da relação entre Igreja e trabalhadores
É fundamental ter em conta que os movimentos sociais rurais nos movimentos sociais no campo.
no campo têm como uma de suas características funda­
mentais o reconhecimento do trabalho como núcleo das re­
lações com o mundo. Essa constatação é essencial nas lu­ 5. O DISCURSO SOBRE A REFORMA AGRÁRIA E O IMPASSE
tas dos trabalhadores rurais. O que se esconde por trás da
deterioração das relações de troca é a depreciação do traba­ O fim da ditadura militar não pôs fim ao cerco e esva­
lho e do trabalhador. Essa descoberta põe o trabalhador em ziamento das lutas camponesas na Amazônia nem ampliou
face da universalidade do seu trabalho, revela-lhe os víncu­ as possibilidades políticas de os trabalhadores rurais da re­
los reais que o unem aos seus iguais e o separam de seus gião construírem ou efetivarem um modelo alternativo de
90 91
agricultura. Em princípio, o enfraquecimento político e a re­ política. Nesse sentido, tais grupos tendem a reinstituir uma
pressão privada e pública contra os trabalhadores rurais, ao tutela ideológica e política de esquerda sobre os grupos
longo do regime militar, deixou feridas que levarão muito camponeses envolvidos em conflitos 20, uma espécie de
tempo para fechar. Enfraqueceu-os politicamente, enfra­ "coronelismo progressista", corporativo, que entorpccc as
quecimento agravado pela já mencionada fratura, que divorcia possibilidades dc emancipação política dos pobres do campo
a luta camponesa e os grupos políticos. Ao mesmo tempo, que essas lutas encerram.
enfraqueceu-os em conseqüência da política deliberada de Em decorrência, estabeleceram entre si um discurso,
forçar o consórcio entre a propriedade da terra e o grande supostamente unificador das aspirações c das lutas popula­
capital, gerando as bases sociais e políticas de uma nova res no campo, cm torno do tema da reforma agrária. E, a
elite na região. A agressiva e direitista União Democrática partir dele, desencadearam uma luta pela reforma agrária,
Ruralista, que atua em todo o país, é um produto não aci­ historicamente descontcxtualizada e basicamente divorcia­
dental dessas transformações. Significativamente, tem alguns da da práxis camponesa, da luta pela terra, na experiência
de seus núcleos mais importantes na Amazônia Legal ou, sangrenta da expropriação, da violência e da violação dos
fora da Amazônia, em estados em que é grande o número de direitos, da ausência de cidadania. Com facilidade, desen­
empresários que são fazendeiros naquela região18. Além disso, volveram diferentes modalidades de adesão ao pacto que
a forte presença política das oligarquias regionais no novo deu nascimento ao regime da Nova República. E com a
Parlamento brasileiro e na Assembléia Nacional Constituinte mesma facilidade tiveram a sua luta desfigurada e esvaziada
revela um fenômeno recorrente na história das oligarquias pelo Estado que, cooptando-os, privou-os de toda legitimi­
brasileiras, de base territorial: a sua enorme capacidade de dade, porque acentuou a fratura que os separava das lutas
regeneração, fenômeno que já ocorrera cm 1930 19. populares no campo.
Esse quadro não conduziu a um real envolvimento dos Ao colocarem, no lugar da luta pela terra, a luta pela
grupos de mediação política nas lutas camponesas, para que reforma agrária, fizeram confusões fatais. Em primeiro lugar,
se tornassem expressão política da práxis camponesa. São, tiveram que assumir o discurso da burguesia-rentista e das
antes, expressão política da práxis da classe média. Polarizam oligarquias, em defesa da associação necessária entre pro­
seu compromisso ideológico e seu projeto nas possibilidades priedade e produção. Ao assumi-lo, não puderam deixar de
políticas do Estado e do governo resultante do pacto político legitimar a defesa do regime de propriedade existente e do
de 1984. Sem o saber, retornam à velha tradição do libera­ seu caráter latifundista e concentracionista, contentando-se
lismo exaltado, a fração das correntes liberais brasileiras com a possibilidade da reforma agrária circunscrita às terras
que, no século XIX, imaginavam emancipar o povo sem se que escapassem a essa armadilha conceituai. Na prática,
comprometerem com um projeto popular de emancipação foram eles próprios os agentes da anulação da legitimidade
da proposta de reforma agrária, cujo discurso foi expropriado
18 Cf. Regina Bruno, UDR: Crise de Representação e N ovas Formas de Poder
pelos próprios latifundiários. Vítimas do economicismo
d as O ligarquias Rurais, Projeto de Intercâmbio de Pesquisa Social cm cmpobrccedor, tão presente nas "teorias" de diferentes grupos
Agricultura (PIPS A), Faculdade dc Ciências Agronômicas— UNESP, Botucatu, de esquerda, não conseguiram compreender que o problema
1987, p. 11-12.
19 As m utações do "coronelism o", seu papel histórico antidemocrático e sua
capacidade de adaptação a diferentes circunstâncias políticas estão bem 10 Esse fenômeno já havia sido observado cm relação às Ligas Cam ponesas,
analisados por Iberê Dantas, Coronelismo e Dom inação, Gráfica Diplom ata n os anos sessenta. Cf. Benno Galjart, "C la ss and 'Following' iri Rural Brazil",
Ltda., Aracaju, 1987, esp. p. 13-43. in América Latina, ano 7, nQ3, julho-setembro de 1964.

92 93
não era nem o da produtividade nem o da produção e sim o suprime, na prática, a contradição representada pela renda
problema político representado pelo regime de propriedade no desenvolvimento do capital — esse capitalismo não repre­
vigente, que reinstaura continuamente as bases econômicas senta um aliado da luta pela reforma, porque não tem ne­
e de classe do conservadorismo político e do autoritarismo. cessidade dela, ao menos a curto prazo.
Não tendo condições de se oporem a esse discurso dominante Enquanto isso, temas contidos nas lutas sociais no cam­
no interior do governo, não tiveram condições de mediar a po, mas nem sempre transparentes, embora fundamentais,
luta pela terra e expressar a sua amplitude histórica e política. ficaram de lado, excluídos da agenda política de partidos,
Mesmo a Igreja, que conseguira na suplência política de tendências partidárias e grupos parapolíticos. Deixou-se de
sua pastoral social no campo, particularmente significativa lado o fato de que a própria expansão capitalista na Amazô­
na Amazônia, constituir um canal de expressão e mediação nia criou continuamente um vazio político enorme, substi­
politizador das lutas e movimentos camponeses, caiu na tuindo velhos chefes políticos por grandes empresários
armadilha de se considerar porta-voz dos trabalhadores rurais, absenteístas, alheios às lealdades e compromissos políticos
negando a opção mais rica e profunda de ser voz dos que da tutela e do paternalismo encerrados na própria concepção
não têm voz. Por meio de alguns de seus membros, opôs a tradicional de propriedade territorial. Houve o esquecimen­
sua voz à voz dos trabalhadores, a sua luta pela reforma to de que a luta pela terra encerra não só o problema do
agrária à luta dos trabalhadores pela terra. Aceitou a co- acesso à terra, propriamente dito, como instrumento de
optação proposta pelo novo regime político. Supostamente produção do pequeno agricultor, mas também a emancipa­
em seu nome, houve quem aceitasse opinar sobre a indica­ ção do trabalhador rural em relação às velhas fórmulas da
ção de pelo menos um dos sucessivos ministros da reforma dominação pessoal.
agrária e, em algumas regiões, altos funcionários do minis­ Ficou de lado o espaço vazio do poder local, como ficou
tério e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma de lado o projeto político implícito, c muitas vezes até ex­
Agrária foram informalmente indicados e apoiados. Portan­ plícito, das lutas camponesas,. envolvendo a participação
to, o único grupo de apoio com raízes locais e envolvimento política, a democracia direta muito presente na organização
profundo na realidade social, e nos confrontos dos trabalha­ dos núcleos de resistência camponesa. Foram poucas as
dores rurais, vacilou no seu papel e no seu compromisso, religiões e poucos os grupos que compreenderam logo que a
contribuindo ainda mais para lançar os movimentos e lutas luta pela terra despertava e constituía a sociedade civil no
sociais do campo num terreno de impasses e limitações. campo e que poderia organizar e dominar a fração local do
Ao mesmo tempo, um erro fatal de interpretação inviabi­ Estado, a criação, organização e direção do município, im­
lizou a ação política desses diferentes grupos: uma proposta plantando a administração social dos recursos públicos.
de reforma agrária feita fora do contexto de uma revolução Poucos têm compreendido que o discurso que unificaria
camponesa e no âmbito de um Estado de compromisso, em as lutas no campo não era apenas e, talvez, nem principal­
que uma estreita e, provavelmente, duradoura associação mente o discurso da reforma agrária e sim o discurso da
entre capital e terra acabava de ser concretizada, não encon­ relação entre as necessidades sociais e o poder, inclusive o
tra na classe dominante quem possa assumi-la. Neste poder local. Com todas as dificuldades que possam ser apon­
momento, o capitalismo dependente, exportador e devedor, tadas, convém lembrar a experiência do Araguaia mato-gros­
que não depende exclusivamente do mercado interno para sense, em que as lutas camponesas criaram a possibilidade
desenvolver-se, e que encontrou canais de transformação histórica da emancipação política dos municípios, da elei­
da renda fundiária em capital, ao mesmo tempo em que ção dos prefeitos e das câmaras municipais (aliás, experiência
95
similar ocorreu em Trombas, com a transformação do ter­
ritório liberado em município, e no sudoeste do Paraná,
com a tomada da administração pública pelos camponeses, CAPÍTULO IV
em 1957, através dos dirigentes políticos do movimento).
Na luta pela terra, está envolvida mais do que a propriedade
— está envolvida a possibilidade de reorganizar e revolucionar
DILEMAS SOBRE AS
as bases locais do poder, mediante a instauração de formas CLASSES SUBALTERNAS
de democracia participativa, com freqüência já presentes,
desenvolvidas e aprendidas na luta pela terra. É nesse plano
NA IDADE DA RAZÃO *
que as lutas camponesas na Amazônia têm a dimensão de "Tudo o que já foi, é o começo do
movimento social. Esvaziado, porém, porque seus temas mais que vai vir, toda a hora a gente está
profundamente políticos foram tirados da agenda política num com pito."
João G uim arães Rosa,
por grupos de mediação. E porque, de outro lado, o en­ Grande Sertão: Veredas
caminhamento político da questão agrária e da questão
camponesa, durante a ditadura, se fez de modo a divorciar 1. LU TAR E INTERPRETAR — D ESEN CO N TRO S
quem faz e quem pensa, semeando a ilusão de que quem faz
não pensa e, por isso, somente tutelado pode agir politica­ 0 estudo do lugar das classes subalternas no processo histó­
mente. Razão pela qual todas as tentativas de dar curso rico depende, antes de tudo, de que se diga com a clareza
político à questão agrária desembocam na invocação e pri- possível o que se entende por classes subalternas, qual a
vilegiamento do Estado e no enfraquecimento dos movi­ extensão e quais os limites desse conceito, Estamos, certa­
mentos sociais. mente, um tanto distanciados da realidade social e histórica
que Gramsci e De Martino tinham presente quando a elas
se referiam. É diverso, hoje, ó quadro em que se movem e
que lhes dá sentido e consistência. A idéia de que as classes
subalternas são constituídas pela classe operária, pelos
camponeses e também pelos povos coloniais tem, hoje ao
menos, uma amplitude excessiva l. Formulada desse modo,
explica pouco, mas sugere uma via de entendimento das

* Trabalho apresentado nas Jornadas de Estudos sobre "Teoria e Prática da


Libertação dos Povos no Final do Século XX ", organizadas pela Fundação
Lelio Basso pelo Direito e pela Libertação dos Povos, Roma, 5-7 de dezembro
de 1988. Publicado originalmente com o título dc "D ilem m as of subordinate
classes in the age of reason", in Lelio Basso International Foundation for the
Rights and Liberation of Peoples (ed.), Theory and Practice of Liberation at
the End of the XXth Century, Bruyland, Bruxelles, 1988, p. 79-105.
1 Cf. Ernesto D e Martino, "Intom o a una storia dei mondo popolare
subalterno", in Raffaele Rauty (ed.), Cultura Popolare e M arxismo, Editori
Riuniti, Roma, 1976, p. 41.

96 97
relações sociais fora do reducionismo implícito na concepção' capitalista 2. Ao invés de ser concebido como outra classe,
de classe social. Isso fica claro se nos dermos conta dc que diferente daquelas duas. Ou, então, as formulações de Marx
cada uma das classes subalternas, e de coletividades tão c Engcls sobre os arrendatários pobres irlandeses, cuja luta
amplas como os povos coloniais, tem contradições, confli­ contra a tributação representada pela renda fundiária tinha
tos c confrontos distintos com o eixo de relações que dá sentido político na luta nacional dos irlandeses contra a
sentido à sua participação no todo do capitalismo. E, dominação inglesa3.
complicando o quadro mais ainda, tem conflitos de interes­ Nessa perspectiva, a subalternidade ganha dimensões mais
se e conflitos políticos entre si. Basta lembrar, no período amplas. Não expressa apenas a exploração, mas também a
recente, o apoio da classe operária americana à participação dominação e a exclusão econômica e política. A teoria da
de seu país na Guerra do Vietnã, contra, portanto, "um povo superpopulação relativa teria maior consistência se fosse
colonial". Ou lembrar, ainda, a forte presença de soldados melhor examinado o seu elemento ccntral — a criação de
negros na guerra contra o povo vietnamita. Ou, numa si­ excedentes populacionais úteis, cuja utilidade está na exclu­
tuação como a do Brasil, em que posseiros e garimpeiros, são do trabalhador do processo de trabalho capitalista c sua
pobres e subjugados, invadem terras indígenas c entram em inclusão no processo de valorização por meio de formas
conflito com povos como os Yanomami, de Roraima, ou os indiretas de subordinação do trabalho ao capital. E, ainda,
Txukahamãi, do Xingu. meio de subordinação real do tabalho, mas por via de relações
No entanto, a categoria de subalterno é certamente mais clandestinas. Esse é, também, o núcleo da concepção de
intensa e mais expressiva que a simples categoria de traba­ subalterno, se não nos limitarmos a entender como super­
lhador. O legado da tradição gramsciana, que nos vem por população relativa a massa de trabalhadores expropriados,
meio dessa noção, prefigura a diversidade das situações dc porém não assimilados plenamente nem diretamente pelo
subalternidade, a sua riqueza histórica, cultural e política. processo dc produção do capital. Superpopulação relativa é,
Induz-nos a entender a diversificação de concepções, motivos, inclusive, a das cx-colônias e das regiões internas submetidas
pontos-de-vista, esperanças, no interior das diferentes clas­ a um sucedâneo de situação colonial, como o Sul da Itália
ses e grupos subalternos. ou o Nordeste do Brasil.
Por isso mesmo, obriga-nos a fazer indagações sobre Desde seus tempos iniciais, a história do capitalismo tem
a reprodução ampliada da subalternidade, sobre a multi­ sido uma história de exclusão e marginalização dc popula­
plicação diferençada dos grupos subalternos. Obriga-nos a ções, mas uma exclusão integrativa, que cria reservas dc
ter em conta que as esperanças e lutas dos diferentes gru­ mão-de-obra, cria mercados temporários ou mercados par­
pos e classes subalternos levam a diferentes resultados his­ ciais. É verdade, tem mudado a forma desse processo. Se, até
tóricos, porque desatam contradições internas que não
1 Cf. V. Lénine, "A propos dc la question dite des m arches", in Oeuvres,
são apenas contradições principais do desenvolvimento tome 1, Éditions Sociales/Éditionsdu Progrès. Paris/M oscou, 1966, p. 123; V.
do capital, a oposição burguesia-proletariado. Sc pensa­ Lénine, "C e que sont les 'A m is du Peuplc' et com m cnt ils luttcnt contre les
mos nos camponeses como classe subalterna, não pode­ social-dém ocrates", ia Oeuvres, tome 1, cit., p. 271; V. I. Lcnin, El Desarrollo
dei C apitalism o en R usia, trad. José Lain Entralgo, Editorial Ariel, Barcelona,
mos deixar de ter em conta que, justamente numa li­ 1974, p. 162, 177, 291, 294-295, 301, 352, 411; V. I. Lcnin, O Programa
nha de interpretação baseada na teoria das classes sociais, Agrário da Social-Dem ocracia na Primeira Revolução R ussa de 1905-1907,
como a de Lcnin, o campesinato russo era concebido como Livraria Editora Ciências Humanas, São Paulo, 1980, p. 33; Chantal de
Criscnoy, Lénine Face au x M ujiks, Éditions du Seuil, Paris, 1978, p. 79.
um estamento que encerrava duas classes opostas, burgue­ 3 Cf. Karl Marx e Friedrich Engels, L'Irlanda e la Questione Irlandese,
ses e proletários, que seriam libertadas pela expansão Edizione Progress, Mosca, 1975, p. 65-66.

98 99
o século XIX, o capital dcsenraizava, mobilizava c comer­ subalterniza grupos crescentes, nos países pobres, nas regiões
cializava multidões de escravos negros africanos para as pobres dos países ricos, mas também nos espaços ricos dos
fazendas do Novo Mundo, não deixou de atuar no mesmo países pobres. O negro e a mulher continuam subalternizados
sentido quando o tráfico negreiro foi extinto por necessida­ em muitas partes do mundo. Mas há novos subalternos
des e conveniências de sua própria reprodução. Criou, cm surgindo desse processo — os jovens de todas as partes, as
substituição, um amplo mercado de mão-de-obra livre, que crianças, os velhos.
recrutou e remeteu para regiões remotas do mundo: como A ampliação e a diversificação dos grupos e classes
os trabalhadores europeus que até os anos vinte foram subalternos sugerem a conveniência de um retorno crítico
transferidos aos milhões para o Brasil, a Argentina, os Esta­ às concepções que, a respeito, ganharam peso e influência
dos Unidos. Mais recentemente, o deslocamento de traba­ neste século. Embora o quadro original, como disse, não
lhadores clandestinos do México para os Estados Unidos, ou fosse tão diversificado — operários, camponeses, povos co­
da Colômbia para a Venezuela. Ou do Haiti para Santo loniais — esse retorno é possível. Penso que se pode tomar
Domingo. Sem contar os braçais das Antilhas e da Jamaica como referência destas considerações os camponeses, subal­
que se deslocam temporariamente para cortar cana nos Esta­ ternos tanto dos países metropolitanos como, num certo
dos Unidos, na Flórida 4. Uma ampla clandestinização do sentido, dos países coloniais e das, agora, ex-colônias. Por
trabalho ou, quando muito, uma semilegalização, associa­ sua disseminação, constituem uma espécie de grupo emble­
das ao capitalismo da robotização e da era nuclear, em que o mático da condição subalterna, suas contradições, possibili­
traficante de mão-de-obra e o cientista estão perfeitamente dades e limites.
integrados no mesmo universo de produção da riqueza e no Justamente nessa figura, cujas características variam de
mesmo tipo de dominação. Para não falar de casos mais país para país e de região para região, estão sintetizados os
dramáticos, como o da peonagem, a escravidão por débito, dilemas políticos e históricos das classes subalternas. Esses
no Brasil, a que estão submetidos milhares de trabalhadores dilemas decorrem menos da realidade do que das inter­
em diferentes regiões do país. Uma recriação contínua de pretações correntes sobre componeses. Na raiz, a concepção
relações sociais arcaicas juntamente Com a progressiva cria­ de Lênin de que os camponeses russos constituíam um
ção de relações sociais cada vez mais modernas 5. estamento, que encerrava a possibilidade histórica de um
O subalterno não é uma condição, figura que o desenvol­ proletariado e, também, de uma burguesia de origem cam­
vimento capitalista supostamente extinguiria com o correr ponesa, processo à parte do desenvolvimento da própria
do tempo 6. Estamos diante de um processo que se atualiza e burguesia e do próprio proletariado. Tal concepção, como é
sabido, nasceu da disputa ideológica com os populistas russos.
4 Cf. Alcides Góm ez J. e Luz Marina Díaz M., La m oderna EsclaviLud: Los Derivava da idéia de que a Rússia estava envolvida num
Indocum entados en Venezuela, Editorial Oveja Negra, Bogotá, 1983; Tcrry
L. M cCoy e Charles H. Wood, C an bbean Workers in the Florida Sugar Cane processo de desenvolvimento capitalista e não, portanto,
Industry, Center for Latin American Studies, University of Florida, num processo de outra natureza, como o da revolução
Gainesville, December 1982, esp. p. 6-12.
5 Cf. Neide Esterci, "Peonagem na A m azônia", in D ados, na 20, 1979; José
liberando-o das inúmeras travas de dependência patriarcais e pessoais e de
de Souza Martins, "A escravidão hoje no Brasil", Á Reform a Agrária e os
estam ento que são tão vigorosas na aldeia..." Cf. V. I. Lenin, El Desarrollo dei
Lim ites da D em ocracia na "Nova República", Editora Hucitec, São Paulo,
1986, p. 39-52. C apitalism o in Rusia, cit., p. 534. O subemprego, e o desemprego, e seus
efeitos morais, sociais e políticos devastadores sobre setores da classe ope­
5 Essa suposição é prem issa das análises de Lênin sobre os camponeses, cuja rária, em todas as partes, ainda quase u m século após essas formulações, re­
expropriação, migração e proletarização teria efeitos políticos supostam ente clam am outro entendimento da real natureza desse processo.
progressistas: "A ida para a cidade eleva a personalidade civil do camponês,

100 101
socialista. Nesse sentido, e só nele, os camponeses, com especial lentidão e através de formas extraordinariamente
suas terras comunais, representavam um obstáculo ao de­ diversas" 8. Mesmo assim, porém, não avançou o suficiente
senvolvimento do capital e ao progresso, porque impediam essa idéia matriz, que poderia levá-lo a uma revisão pro­
a formação de um mercado interno. Tal entendimento funda de sua interpretação excessivamente esquemática do
expressava, na verdade, um ponto de vista capitalista c um desenvolvimento do capitalismo no campo. Isso porque per­
compromisso provisório com o capitalismo 1. maneceu limitado à diversidade das formas geradas por essa
Essa interpretação encerra dois problemas. O primeiro é passagem, de modo a não entrar em conflito com o elemento
relativo ã noção de tempo histórico, que fica apenas suposta fundante de sua concepção, que é a do caráter inevita­
e mal resolvida. As interpretações decorrentes e posteriores, velmente progressista do desenvolvimento das forças pro­
como a dos estruturalistas, presente sobretudo na tese da dutivas. Essa espécie de racionalidade objetiva e imanente
articulação de modos de produção, reduziram essa mera do próprio processo econômico seria capaz de vencer, por si
suposição a um entendimento etapista e mecanicista de mesma, o arcaísmo camponês e desatar o caráter progres­
desenvolvimento, tão claramente presente na praga do mar­ sista da suposta diferenciação camponesa. É este o segundo
xismo vulgar, particularmente disseminada na America La­ problema e o mais persistente. Os camponeses, cuja prática,
tina. Justamente, a identificação de Lênin, nesse momento, nesse tipo de análise, está determinada por uma temporali­
com a idéia burguesa de progresso, leva-o a uma espécie de dade "passada", estão também destituídos da condição de
dualismo do arcaico e do moderno, como o que ganharia agentes ativos da história: "o real (...) não é o que os cam­
espaço no debate acadêmico e político latino-americano dos poneses pensem (...) e sim o que depreende das relações
anos cinqüenta e sessenta (não por acaso, na direita e na econômicas da atual sociedade" 9. O agente ativo da história
esquerda, também centralizado no desenvolvimentismo). É é o capital. É a conhecida concepção de que a história está
nesse dualismo que sua concepção de tempo torna-se pri­ necessariamente em conflito com a consciência que dela
sioneira de uma aspiração ao universalismo sem mediações, têm os seus participantes. E, por isso, o ser e a consciência
fruto de um evolucionismo que opera como princípio ex­ aparecem apenas como antagônicos e não como agentes e
plicativo. Conseqüentemente, leva-o a definir o tempo do resultados recíprocos do processo histórico. Esse antago­
camponês por imputação, sem fundamentação, decorrente nismo, porém, deixa de ser interpretado na sua carga de
da transformação "a priori" da temporalidade do capital da devir,- a consciência não só como alienação, mas também
grande indústria em medida de tempo de outras relações como mediação crítica da história, produto e interpretação
sociais. da experiência, isto é, da contradição e das lutas sociais.
Lênin deu algumas indicações de consciência e dúvida De um modo geral, o ponto de vista anticamponês tem
em relação a essa dificuldade, quando disse que "em nossas feito parte das concepções do liberalismo econômico. Do
obras se compreende freqüentemente com excessiva rigidez mesmo modo, as lutas camponesas, durante longo período,
a tese teórica de que o capitalismo requer um trabalhador têm sido ativadas em oposição às conseqüências desse
livre, sem terra. Isso é totalmente justo como tendência mesmo liberalismo, particularmente a expropriação e a
fundamental, mas na agricultura o capitalismo penetra com concentração da propriedade 10. Tal enfrentamento indica

7 Cf. V. Lénine, "A propos de la question dite des m arches", cit., p. 91; V. 8 Cf. V. I. Lenin, El D esarrollo dei C apitalism o en Rusia, cit., p. 167.
I. Lenin, El D esarrollodel C apitalism o enRusia, cit., p. 140 c 155; V. I. Lenin,
O Programa Agrário da Social Dem ocracia, cit., p. 33 e 130; Chantal de 9 Cf. V. 1. Lenin, O Programa Agrário da Social Dem ocracia, cit., p. 83.
Crisenoy, ob. cit., p. 13 e 17. 10 Cf. Chantal de Crisenoy, ob. cit., p. 13.

102 103
uma crítica na própria ação, que tem sido desqualificada Porém, esses três padrões de comparação — diferentes
pelas interpretações "de esquerda", a respeito do campesi­ modalidades, diferentes sociedades, diferentes épocas — dos
nato, justamente baseadas nas idéias iluministas e liberais movimentos sociais camponeses, no meu ver, atenuam for­
da burguesia de uma fase da constituição do capitalismo. temente a suposição corrente de que esses movimentos são
Os esforços para superar tais impasses, porém, não têm apenas episódicos, fragmentários e conservadores. Eles são
sido suficientes para remover outras dificuldades. Penso que freqüentes, disseminados, persistentes e têm uma eficácia,
um autor tão sensível como Eric Hobsbawm constitui uma num certo sentido, definida. Desde a Revolução Francesa,
referência obrigatória na reflexão crítica a respeito desses eles têm tido um papel fundamental nas grandes trans­
impasses. Sua interpretação é mais abrangente do que a de formações políticas do mundo moderno, como constataram
Lênin, com especial cuidado para com a diversidade interna diferentes pesquisadores 12.
do próprio capitalismo. Suas considerações sobre os movi­ Tais movimentos só podem ser conhecidos em suas im­
mentos sociais dos rebeldes primitivos, particularmente da plicações históricas mais profundas, se for levada em conta
Europa mediterrânea, e sua familiaridade com movimentos sua determinação pela mediação do capital e pelas diferen­
idênticos em países do Terceiro Mundo, trazem as concep­ tes formas com que o capital se faz presente no mundo
ções sobre, num certo sentido, a impotência política do camponês. Se tais movimentos parecem inconclusos e lentos,
campesinato para um plano novo e diferente. Já não se trata convém não esquecer, porém, que a economia mercantil
de uma interpretação divorciada da ação camponesa nessa simples das populações componesas é, também, hoje, uma
modalidade peculiar de organização que é o próprio movi­ economia capitalista inconclusa 13, parcialmente constituí­
mento social. Nem se trata mais do "projeto" camponês da e, ao mesmo tempo, completamente determinada pela
desqualificado pela realidade objetiva e pela precedência reprodução ampliada do capital, que introduz, no mundo
interpretativa do desenvolvimento das forças produtivas. camponês, formas específicas de antagonismo c um ritmo e
Agora é o estudo comparativo das diferentes modalidades de uma intensidade de transformação muito diversos dos do
movimentos camponeses em diferentes regiões que parece capital da grande indústria.
revelar a impotência do campesinato em relação àquilo que O ponto essencial é que a condição subalterna do campo­
é reconhecido como político — na medida em que a política nês já não aparece nessas interpretações como decorrência
aparece como território privilegiado de outras classes sociais. de uma dcsqualificação, pura e simples, em face da suposta
O que oculta o fato, mais provável, de que a qualidade subs­ superioridade e da eficácia histórica do próprio desenvolvi­
tantiva do processo político está sendo alterada porque a mento econômico. Aí a subalternidade aparece na privação
burguesia vem perdendo o monopólio da política devido ao do conhecimento pleno das situações e do processo histórico
surgimento de novos sujeitos políticos. A que se junta uma
terceira modalidade de referência comparativa, que é de 1J "...a história dos grupos sociais subalternos é necessariam ente desagre­
gada e episódica..." Cf. Antonio Gram sci, "Appunti sulla storia dclle classi
natureza histórica, relativa a um país de desenvolvimento subaltem i", in II Risorgimento, Editori Riuniti, Roma, 1977, p. 243. Sobre a
capitalista mais intenso e mais antigo, como a Inglaterra n, ação histórica dos camponeses, cf. Georges Lefebvre, O grande Medo de
modelo subjacente do político e do Estado moderno. 1789, trad. Carlos Eduardo de Castro Leal, Editora Cam pus Ltda., Rio de
Janeiro, 1979; Eric R. Wolf, Peasant Wars of the Twentieth Century, Harper
11 Cf. Eric J. Hobsbawm, Rebeldes Primitivos, trad. Joaquín Romero Maura, &. Row, Publishers, New York, 1969; Chantal de Crisenoy, ob. cit., p. 9.
Edicioncs Ariel, Barcelona, 1968; E. J. Hobsbawm, Bandits, Fenguin Books, 13 Sobre o carátcr inconcluso do desenvolvimento capitalista, no campo, cf.
Harmondsworth, 1969; E. J. Hobsbawm e George Rude, C aptain Swing, V. Lénine, "C e que sont les 'A m is du Peuple' et comment ils luttent contre
Penguin University Books, Harmondsworth, 1973. les social-démocrates", cit., p. 228 e 233.

104 105
por parte das populações camponesas u. Manifestação de so, arcaísmo, ignorância. Por que neste caso não se fala
uma espccic de insuficiência cultural. Aqui caberia dizer igualmente de alienação? Porque geralmente se pressupõe
que tal insuficiência não é resultado de uma incompetên­ que o camponês tradicional vive fora do mundo capitalista.
cia, mas, antes, expressão da própria subalternização do Ora, por meio da economia mercantil simples, mesmo pro­
camponês, componente de sua pobreza. O capital não o duzindo excedentes, e até ocasionais, ele têm sua existência
priva apenas de mercadorias, reduzindo-o a consumidor determinada por essa manifestação e forma particular do
marginal, mas priva-o, também, do conhecimento e do sa­ movimento do capital 17. A teoria do fetiche da mercadoria,
ber adequados à compreensão e à explicação do capitalismo. não é demais lembrar, abrange a produção mercantil simples,
Reforça, portanto, a importância da cultura tradicional e apoiada primariamente na circulação c não na produção. As
suas referências sociais aparentemente sem sentido. Diz diferentes modalidades de produção e de inserção no processo
Hobsbawm que a força e a influência efetivas do campesinato de trabalho, em cada uma dessas situações, diversifica a
tradicional estão muito limitadas, pois têm "permanente expressão da alienação, pois introduz mediações diferentes
consciência, que em geral é bastante realista, de debilidade em cada caso. Essa é, provavelmente, a razão pela qual o
e inferioridade" 1S. Mas se, em principio, parece verdadeiro caráter "diabólico" do dinheiro, como configuração do "ou­
que o "campesinato nunca proporciona uma alternativa tro", tem um lugar central na alienação do camponês e na
política para ninguém" 16, é verdade que a relação do crítica social que ele pode desenvolver no interior dessa
campesinato com o capital é totalmente diversa da relação mesma alienação 18. Enquanto que o patrão é que aparece
da classe operária com o capital. Nesse sentido, a especifici­ como o "outro" alienador no caso do operário.
dade de tal relação (e de outras igualmente específicas), se Há uma diversificação "interna" das classes subalternas,
por um lado representa limites históricos à constituição de cujo desconhecimento empobrece a compreensão de suas
um projeto de superação da sociedade atual, por outro lado lutas e de suas possibilidades históricas, porque omite seus
aponta para alternativas que não estão sendo consideradas, dilemas e suas debilidades. Um discurso que unifique re-
"a priori" dadas como vencidas e inconseqüentes. toricamente as classes subalternas não produz a unidade
Essa idéia não dispensa que se considere a relação e o e a força reais dessas classes e grupos sociais. Ao con­
desencontro entre a consciência do camponês e a situação trário, mistifica-as e empobrece a interpretação de sua rea­
do camponês. Mais especificamente, a sua alienação. Habi­ lidade.
tualmente, os pesquisadores dão ao camponês um tratamen­ As relações entre as classes e grupos subalternos podem,
to diferente do que dão ao operário. No caso deste, o desen­ pois, ser entendidas de diferentes modos. Nesse sentido, a
contro entre sua consciência e sua situação expressa aliena­ concepção dominante, de que no interior das classes
ção. No caso daquele, o mesmo desencontro expressa atra- subalternas se desenha e se valida, historicamente, a hege­
monia da classe operária, não é necessariamente diversa das
u "...a consciência dc classe dos cam poneses é normalmente muito ineficaz,
exceto quando organizados e dirigidos por não-cam poneses..." Cf. E. J. 17 É o que, entre outros, demonstra Eric R. Wolf em alentado trabalho sobre
Hobsbawm, "C la ss consciousness in history", in István M észaios (ed.), a s form as econômicas assum idas pela expansão européia cm diferentes
A spects o f History and C lass Consciousness, Routledgc & Kegan Paul, regiões do mundo. Cf. Eric R. Wolf, Europe and the People Without History,
London, 1971, p. 7. University of Califórnia Press, Berkeley, 1982, csp. p. 86, 194 e 352.
15 Cf. Eric J. Hobsbawm, Los Cam pesinos y la Política, trad. Alejandro Perez, 18 Cf. Michacl Taussig, "T h e genesis of capitalism am ongst a South Am eri­
Editorial Anagrama, Barcelona, 1976, p. 24. can peasantry: D evil's labor and the baptism of m oney", in C om parative
16 Cf. E. J. Hobsbawm, Las Revoluciones Burguesas, trad. Felipe Ximenez de Studiesin Society and History, volume 19, N um ber2, Cambridge University
Sandoval, Ediciones Guadarrama, Madrid, 1971, p. 121. Press, Cambridge, April 1977, p. 130-155.

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concepções que desqualificam as populações camponesas em Trata-se da noção de formação econômica e so c ia l 19. Sujeita,
nome da eficácia objetiva do desenvolvimento das forças não faz muito, a um debate desfigurador, acabou caindo no
produtivas. Isso porque a prática de cada classe subalterna, e domínio de interpretações mecanicistas, que procuravam dar
de cada grupo subalterno, desvenda apenas um aspecto es­ conta da diversidade histórica das relações de produção por
sencial do processo do capital. Se é verdade (ao menos uma uma via estruturalista. Aparentemente, permitia articular
verdade objetiva!) que a exploração do operário na grande diferentes modos de produção numa totalidade formal que,
indústria, ao pôr em confronto a produção social e a fundamentalmente, traduzia (c destruía) uma lógica de
apropriação privada dos resultados da produção, propõe o tempo, de processo, de contradição, numa lógica de espaço,
entendimento da contradição que une e separa o operário e de estrutura, de articulação.
o capitalista, é verdade, também, que outras formas de rela­ Lênin recorreu à noção de formação econômica c social
cionamento do trabalhador com o capital propõem e reve­ para poder situar a Rússia "atrasada" e eslava no âmbito dos
lam outros aspectos fundamentais do caráter desumaniza- processos sociais da Europa industrializada c moderna 20.
dor dessa relação. Há coisas que um camponês, que está Essa noção lhe permitiu incluir a produção mercantil sim ­
sendo expropriado, pode ver e que um operário não vê. ples na perspectiva do processo capitalista mais amplo c na
E vice-versa. Nos grupos com identidade histórica mais lógica desse processo — a acumulação, a formação da classe
definida, como é o caso dos grupos étnicos de diferentes operária etc. Ele podia, assim, entender o modo como a
regiões, há outras perdas que se tornam visíveis, relativas sociedade russa se situava no desenvolvimento capitalista.
a uma certa concepção do humano, que não se põem para Ao mesmo tempo, isso o obrigava a pensar a diferença
um operário. É mais provável que um índio suruí de representada pela Rússia agrária, camponesa, da propriedade
Rondônia tenha consciência e clareza de que sua resistên­ comunitária da terra, como momento de transição, estágio
cia à violência do branco diga respeito à humanidade do inicial no desenvolvimento do capitalismo naquele país,
homem. Como é muito menos provável que um operário de momento do atraso. No conjunto, o processo dependeria da
fábrica saiba que a greve de que participa ganha sentido ruptura e transformação dessas relações e instituições arcai­
nessa mesma humanização, da qual a greve é um ins­ cas, para que de dentro delas surgisse o novo ali contido. É a
trumento. base da tese da diferenciação do campesinato, que, com a
É, assim, necessário compreender o modo como o capital expansão capitalista, cederia o lugar a um proletariado de
articula essa diversidade de relações, trazendo para as de­ origem camponesa e a uma burguesia de origem campone­
terminações do seu tempo, isto é, do seu ritmo e da sua sa. Lênin, nessa perspectiva, não podia entender que o
reprodução ampliada, os tempos das diferentes relações que campesinato constituía, também, uma classe da socieda­
foi reproduzindo na sua própria lógica ou, mesmo, produzin­ de capitalista, cujas características "atrasadas" dependiam
do. Nesse sentido, ganha novamente importância o confron­ diretamente do próprio desenvolvimento desigual do ca­
to perfeitamente legítimo entre o modo como Marx e Engels pitalismo, dos obstáculos maiores que o capital encontrava
propunham o quadro de referência da análise desse tema e o no campo para se reproduzir segundo as regras da reprodução
modo como Lênin o fez. ampliada.
Foi Henri Lefebvre quem chamou a atenção dos estudiosos
para uma noção aparentemente sem maior importância, 15 Cf. Henri Lefebvre, La Pensée de Lénine, Bordas, Paris, 1957, p. 206-229
porque sem maior elaboração, nos escritos de Marx, e que
í0 Cf. V. Lénine, "C e que sont les 'A m is du Peuple' et com m cnt ils luttent
reaparece com mais clareza nos escritos do jovem Lênin. contre les social-démocrates'', cit., 154-155.
108 109
Marx e Engcls já haviam tratado do mesmo tema de modo subalternos apresenta-se, basicamente, como conhecimento
completamente diverso. Quem lê O Capital, como se sabe, sobre essas classes e não conhecimento das classes subal­
não o entende corretamente, nem a análise do capitalismo ternas. A desqualificação teórica c política do campesinato
ali contida, se não leva em conta os textos sobre a Irlanda (já não expressa sua realidade, mas um ponto de vista que tenta
para não falar dos textos sobre a índia e sobre os Estados fazer das possibilidades teóricas abertas pelo aparecimento
Unidos). Na Irlanda, não estava um pólo atrasado do capita­ da classe operária, possibilidades que só podem ser encar­
lismo inglês, mas sim um pólo antagônico. Por isso, Marx nadas por essa mesma classe. A qual se apresenta, assim,
podia dizer, em 1870, que, "se a Inglaterra é o baluarte do duplamente constituída: como sujeito do conhecimento e
latifundismo e do capitalismo europeu, o único ponto cm que como sujeito da história 22.
a Inglaterra oficial pode ser golpeada para valer é a Irlanda." Tal concepção deve ser revista quando o percurso meto­
E que "a Irlanda é o baluarte do latifundismo inglês" 21. dológico é outro, não abstrato, histórico, quando se estabelece
Em síntese, há aí visões opostas. A luta dos camponeses a gênese de cada relação social, o tempo de cada uma. E,
russos contra o capital era compreendida como empenho conseqüentemente, quando se admite que tanto a relação
reacionário que entravava o desenvolvimento capitalista, o social é datada quanto o conhecimento [e o autoconheci-
progresso e, portanto, a revolução. Já a luta dos arrendatá­ mento) a seu respeito é datado.
rios pobres irlandeses, contra os latifundistas ingleses, era O conhecimento de que são portadoras as classes su­
entendida como luta revolucionária e transformadora que balternas é mais do que ideologia, é mais do que inter­
feria no âmago a metrópole do capitalismo. Numa interpre­ pretação necessariamente deformada e incompleta da reali­
tação, a luta camponesa cria obstáculos à luta operária. Na dade do subalterno. É nesse sentido, também, que a cultura
outra interpretação, a luta camponesa é a única forma de popular deve ser pensada como cultura, como conhecimen­
viabilizar a luta operária. Num caso, o camponês é tido to acumulado, sistematizado, interpretativo e explicativo, e
como o que cria obstáculos econômicos. No outro caso, é não como cultura barbarizada, forma decaída da cultura he­
tido como o que cria possibilidades políticas. Estamos, gemônica, mera e pobre expressão do particular.
portanto, diante de um problema de interpretação e não E necessário considerar que cada relação social carrega
diante de um problema real das classes subalternas, de uma consigo um tempo determinado, gênese, determinação. E,
dificuldade real para sua participação na história. também, ter presente que, mesmo na tradição marxista, a
relação social é recoberta por um conhecimento sobre ela,
que dela faz parte, mas que dela, ao mesmo tempo, se desta­
2. C U LTU RA POPULAR: O CO N TEÚD O NOVO N A FORMA VELHA ca. Não é, acaso, assim que Marx pensa a alienação e a
fetichização da relação social? Esse é o ponto fundamental,
Os dilemas não são, portanto, os reais dilemas das classes o nó das dificuldades de conhecimento e interpretação, que
subalternas. São, antes, dilemas das interpretações sobre a envolve não só as classes subalternas "provenientes do
realidade dessas classes, dificuldades para lidar com a passado", mas, também, a própria classe operária. Por aí,
diversidade dos tempos contida no processo do capital. O basicamente, o universal se manifesta no particular, enquanto
conhecimento teórico a respeito dos grupos e classes
22 Cf. Cesare Luporini, "Intom o alia storia dcl 'mondo popolarc subalterno'",
in Raffaele Rauty (ed.j, Cultura Popolare e M arxismo, cit., p. 81. Uma
21 Cf. Karl Marx, "Com unicazione confidenziale", in Karl Marx c Friedrich interpretação alternativa e crítica encontra-se cm Ágnes Hcller, Para C am ­
Engels, L ’Irlanda e la Questione Irlandese, cit., p. 144-145. b ia ria Vida, trad. Carlos Elordi, Editorial Crítica, Barcelona, 1981, p. 12 c 16.

110 111
o homem não resolver as necessidades que o opõem a si situação camponesa, é o passado, a cultura popular, o domí­
mesmo, as carências por meio das quais constrói a possibili­ nio direto do homem sobre a natureza, que denuncia o cará­
dade de sua humanização no outro, no estranho, de modo ter desumanizador das novas relações sociais, mediatizadas
antinômico; fazendo assim com que a própria possibilidade pela mercadoria, pelo dinheiro, pelo contrato — aquelas
de humanização que constrói com seu trabalho e sua ativi­ relações geradas e reproduzidas pelo capital 24. Na situação
dade lhe apareça como carência adicional e fundamental — operária, já estabelecida, o conhecimento é alienado, mis-
a carência de humanidade. tificador, acobertador, não constitui elemento crítico que
Estamos, portanto, diante de duas situações que repre­ revele a desumanização maior da relação capitalista e sala­
sentam um problema só. De um lado, a do descolamento rial. O referencial crítico está no possível, mas invisível,
representado pelo fato de que "velhas" concepções, antigas que se contrapõe como produto ao produtor; está na possibi­
formas sociais, de tempos diversos, sobrevivem como se lidade da transformação contida nesta contradição: o traba­
fossem integrantes de novas relações ou relações determina­ lho é social e a apropriação de seus resultados é privada.
das por novas mediações. De outro lado, o mesmo descola­ Mas, neste segundo caso, se o conhecimento deforma e
mento representado pelo desencontro entre a relação social acoberta, a prática é diretamente social, coisa que não
e a auto-interpretação que a acompanha, como ocorre na acontece com o camponês. De modos distintos, portanto,
situação operária e na relação capitalista. Desencontro que estamos diante de processos que são históricos porque con­
legitima a exploração, que justifica o injustificável, que tor­ têm, ao mesmo tempo, o revelado e o oculto, o real e o
na lógico o ilógico, coerente o contraditório, acobertando o possível. Em ambas as situações, o subalterno vive direta­
movimento real que se esconde sob essa duplicidade, fazen­ mente, claramente, essa duplicidade, cotidianamente. Por­
do com que o movimento e a transformação não apareçam tanto, o problema da clareza, da transparência, da mediação
como o que realmente são, e sim como ruptura estranha ao teórica que elabora a primeira interpretação crítica do su­
próprio processo social. balterno e que revoluciona a prática, deve ser honestamente
Em qualquer uma das duas situações, uma etnografia das colocada fora da realidade imediata tanto de camponeses
relações sociais tornaria visível para o pesquisador o que já é quanto de operários. Sob formas diferentes, os impedimen­
visível para o trabalhador, para o subalterno — os elementos tos são iguais.
críticos e as possibilidades históricas contidos no conheci­ Pesquisadores atentos têm mostrado que a cultura popular
mento imediato e cotidiano de sua prática. Nas duas situa­ não é constituída apenas de concepções, mas também de
ções, se contrapõem o real e o possível, o atraso do real em sujeitos e de concepções desses sujeitos. A cultura campo­
relação ao possível, ainda que envolvendo tempos cronoló­ nesa, a cultura da pobreza urbana, a chamada cultura
gicos e aparentes opostos — o passado, na situação campo­ subalterna, estão povoadas desses sujeitos: o pobre e o rico,
nesa; a possibilidade do futuro, na situação operária 23. Na 24 A importância das concepções pré-capitalistas na luta pelos direitos, com
o advento do capitalismo, e na própria definição dos direitos civis e dos
23 Sobre o atraso da vida, do real, em relação ao possível, cf. Henri Lefebvre, direitos sociais, tem sido estudada por diversos autores. Cf. T. H. Marshall,
Critique de la Vie Quotidienne, vol. I, L'Arche Éditeur, Paris, 1968, esp. p. C idadania, C lasse Social e Stalvs, trad. Meton Porto Gadelha, Zahar
243-267. Sobre a origem de grupos sociais subalternos em grupos sociais Editores, Rio de Janeiro, 1967, p. 79, 85, 103; E. J. Hobsbawm e George Rudé,
preexistentes, "dos quais conservam a mentalidade, a ideologia e os fins por ob. cit., p. 39; Edward P. Thompson, "La economia 'moral' de la m ultitud cn
um certo tem po", cf. Antonio Gram sci, II Risorgimento, cit., p. 241. Sobre os la Inglaterra dei siglo XVIII", Tradición Revuelta y Conciencia de Clase, trad.
elem entos críticos contidos no cotidiano, cf. O skar Negt, "II m arxism o e la Eva Rodriguez, Editorial Crítica, Barcelona, 1979, p. 66; E. P. Thompson, The
teoria delia rivoluzione nell'ultim o Engels", in Storia dei M arxismo, volum e M aking o f the English Working Classe, Penguin Books, Harmondsworth,
secondo, Giulio Einaudi Editore, Torino, 1979, p. 112-113. 1979, p. 72-73 e 603.

112 113
deus e o diabo, o bem e o mal, a salvaçãa e a perdição, o A impugnação se dá no âmbito de uma relação de opostos,
dominado e o dominador. Na verdade, em tais antinomias de uma contradição. Os esforços no sentido de superar a
há mais do que contraposições e mais do que impugnações interpretação iluminista da cultura popular, folclorística,
culturais, pois são antinomias enraizadas no espaço e no redutora de contradições e tempos a um tempo só, o do
tempo — são nominações, personificações, identificações. passado, ganham aí importância teórica. É verdade que, na
São contradições datadas, localizadas. Insisto: não apenas as origem, tais preocupações estão marcadas por um certo
relações têm data, no sentido de que têm definido momento mccanicismo de oposições. Mas nem por isso são menos
de gênese, como relações sociais constituídas cm momentos importantes, pois abrem um caminho para um outro modo
determinados e em circunstâncias determinadas. Tais re­ de considerar a cultura popular, ao indicar que não há aí
lações encerram contradições, tensões, oposições. Mesmo apenas a forma "arcaica", mas também a possibilidade
no aparente imobilismo dos grupos componeses, uma nova progressista. Certamente, é problemática a orientação de De
determinação decorrente do desenvolvimento capitalista, do Martino, relativa à distinção c separação do que é arcaico e
aparecimento da mercadoria e do dinheiro, acarreta oposi­ do que é progressista, na cultura popular, como meio de
ções, reveladas ou ocultas, confronto de opostos possíveis, evitar supor a barbarização da cultura. Mas entendo que o
destinos contrapostos, resistência, julgamentos de valor, problema só parcialmente se resolve na interpretação de Lu-
crítica, recusa, esperança, utopia, É tentadora a idéia de porini, ao afirmar o caráter revolucionário e condutor da
Satriani a respeito de duas culturas contrapostas, uma delas classe operária, meio de resgatar o que há dc progressista na
dominante, outra subalterna, cultura de impugnação 2S. Mas cultura popular 26. Mais rica é a suposição da duplicidade na
a impugnação é feita em nome de alguma coisa, está na cultura popular e na conduta do subalterno, pois dá subs­
contradição acobertada, mistificada, mas não resolvida, não tância aos elementos de impugnação contidos na cultura
superada. Alguns chamam a isso de intuição, anti-razão. das classes subalternas.
Não importa. Se o conhecimento científico não passar por A duplicidade na cultura popular retém, justamente, uma
aí, não resgatar como momento necessário o conhecimento interpretação da luta de classes forjada na gênese das relações
popular, o ponto de vista dos subalternos, cairá necessaria­ que opõem as classes, no próprio momento em que se defi­
mente no ponto de vista do outro, isto é, do objeto consti­ ne quem é vencedor e quem é vencido, dominador e domi­
tuído pelo próprio processo histórico ao estabelecer o divór­ nado, explorador e explorado. A cultura das classes subalter­
cio entre o sujeito e o objeto, o produtor e o produto, em nas prolonga e codifica o confronto na condição do vencido.
nome da suposta universalidade do outro, do "m ais avança­ É, num certo sentido, memória da alternativa. O duplo código
do", sem considerar que a universalidade está na superação cultural não constitui apenas uma estratégia de sobrevivên­
de ambos. cia, como supõe Lewis e suas análises da cultura da pobreza17.
O duplo código põe juntos o afirmar e o negar, o obedecer e
25 Cf. L. M. Lombardi Satriani, Antropologia Cultural, trad. Fernando o desobedecer. Essa duplicidade, como observou Satriani, se
Mateo, Editorial Galem a, Buenos Aires, 1975, esp. p. 119-120. Alternati­
vamente, N éstor Garcia Canclini propõe que se interprete a cultura popular manifesta na linguagem metafórica, na teatralização que põe
como resultado de "um a apropriação desigual do capital cultural, um a
elaboração própria de suas condições de vida c um a interação conflitiva com
26 Cf. Em esto De Martino, "Intom o a una storia dei mondo popolare
os setores hegem ônicos." N essa perspectiva, a cultura popular é popular por subalterno", cit., p. 45-47; Cesare Luporini, "Intom o alia storia dei mondo
seu uso, sendo, pois, cultura, o que permite entendê-la "em conexão com os
popolare subalterno", cit., p. 81.
conflitos entre as classes sociais. " Cf. N éstor Garcia Canclini, Las Culturas
Populares en el C apitalism o, Ediciones C asa de las Américas, La Habana, 17 Cf. Oscar Lewis, La Cultura de la Pobreza, Editorial Anagrama, Barce­
1982, p. 49 e 52 e, também, p. 12, 20, 47 e 53. lona, s/d, esp. p. 11.

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na boca de outro o que é palavra do sujeito emudecido, no que acompanha obrigatoriamente a fala cativa e dominada,
oculto, no dissimulado, no silêncio. Como o mesmo Satriani na língua do opressor.
assinala, "o silêncio parece ser sinal de uma epifania dos O caso dramático de Aparecido Galdino Jacinto, condena­
pobres, no sentido de que o silêncio se inscreve em uma do pela Justiça Militar e que cumpriu mais de oito anos de
ordem de verdade — a verdade histórica da dominação — e detenção no Manicômio Judiciário de São Paulo, revela como
a palavra em uma ordem de poder" 2S. essa violência do passado, incorporada defensivamente numa
A chamada música caipira, forma de expressão musical espécie de esquizofrenia política da linguagem e do gesto,
das populações camponesas pobres do sudeste e do centro- opostos e contrapostos, não é apenas do passado, mas persis­
oeste do Brasil, mestiças de ascendência indígena, está te modernizada e transfigurada em códigos e instituições
profundamente marcada pela dissimulação e pela metáfora. modernos, no discurso do juiz militar e do psiquiatra, no
Nela o compositor e o cantor falam de si e por si mesmos discurso da razão e da razão de Estado. Galdino formulou,
através de terceiro personagem, que pode ser um objeto ou com um grupo de pequenos agricultores pobres do interior
um animal. Essa cisão do único reproduz e mantém, no de São Paulo, sua resistência e sua interpretação do signifi­
plano da cultura, a um só tempo, a violência que tirou do cado da expulsão de pequenos arrendatários da terra, devido
índio e do mestiço, subjugados pelo fazendeiro branco dos à construção de uma barragem. Surgiu, assim, um movimen­
séculos XVII e XVIII, a língua c a fala. Ele foi obrigado a to messiânico e formou-se um grupo a que chamou de
falar a língua do conquistador e a ocultar nela a fala do "exército divino". O grupo foi atacado pela polícia e vários
dominado, demarcada por um código de proibições c permis­ de seus membros presos. Galdino foi inicialmente conside­
sões, ou seja, um código de sujeição, uma fala de gestos 19. rado subversivo e submetido a julgamento pela Justiça Mili­
Algumas tribos indígenas subjugadas em séculos passados, tar. Sob pretexto de esquizofrenia paranóide foi enviado ao
sobreviventes ainda hoje, como é o caso dos xokó de Sergi­ Manicômio Judiciário para cumprir sentença de detenção
pe, perderam a língua que falavam, esquecendo-a completa­ por dois anos, renováveis a critério médico. Lá permaneceu
mente, a ponto de não restar dela uma única palavra. Toda por mais de oito anos. Foi resgatado em conseqüência de
a vez que um índio xokó falava sua língua era surrado e essa um movimento de denúncia. Todos os gestos da dissimula­
surra ainda é lembrada pelos sobreviventes muitas gerações ção, como o sorriso encabulado, o mexer com as mãos
depois. Sobreviveram, até há poucos anos, como mão-de- humildemente enquanto ouve ou, sobretudo, quando fala,
obra da mesma família de fazendeiros que lhes tomou as foram interpretados como indício de enfermidade mental.
terras e a palavra. A metáfora, a ocultação, a dissimulação, o Em vários dos pareceres que sustentaram sua prisão ao lon­
silêncio, permanecem como linguagem que documenta a go dos anos, os médicos falam em "sorriso inadequado",
persistência da mesma violência que lhes deu origem. Ou­ fora de hora, justificativa para considerá-lo perigoso e man-
tras vezes, a dissimulação se manteve unicamente no gesto tê-lo preso. Um diagnóstico posterior, feito por dois peritos
indicados pela Arquidiocese de São Paulo, mostrou que
la Cf. Luigi M. Lombardi Satriani, II Silenzio, la Memória e lo Sguardo, Galdino era são. O caso confirma, na verdade, que a subal-
Sellerio Editorc, Palcrmo, 1980, p. 16 e 38-39.
ternidade de Galdino reencontrava sua razão de ser no con­
19 Cf. José de Souza Martins, "M úsica sertaneja: a dissim ulação na lin­
guagem dos hum ilhados", C apitalism o e Tradicionalism o , Livraria Pioneira fronto com a psiquiatria moderna e com a instituição judi­
Editora, São Paulo, 1975, p. 103-161; José de Souza Martins, "O boiadeiro ciária do Estado moderno. E aí não lhe restava senão, como
Galdino — do Tribunal M ilitar ao Manicômio Judiciário", A M ilitarização
da Q uestão Agrária no Brasil, Editora Vozes, Petrópolis, 1984, esp. p. 123- recurso de sobrevivência, o duplo código, o duplo sentido, o
126. gesto que desdiz a fala consentida, o sorriso encabulado que
116 117
empresta à palavra permitida a ironia e o significado não surpresos ao "descobrir o que é mais novo no que é mais
consentidos — a semente de um mundo alternativo, que velho" 31. É a mudança de perspectiva que permite ver o que
aparece como loucura do pobre, preservada ciosamente e até então não se via. Estamos diante de uma crise de
exibida ostensivamente numa linguagem que o dominador interpretação, que se manifesta na necessidade histórica dessa
não entende, a linguagem dupla do dizer c do desdizer ao mudança de perspectiva. Tal mudança significa reconhecer
mesmo tempo. E cujo uso faz parte do confronto que ridi­ como sujeitos da história e sujeitos do conhecimento os
culariza, denuncia e contesta a pretensa superioridade do grupos e classes subalternos. Eles não foram admitidos na
outro e sua falsa humanidade 30. cena histórica cm conseqüência de compromissos ideológi­
Penso, aliás, que a duplicidade da cultura popular deveria cos — por parte das classes dominantes e dos próprios
constituir um elemento de referência nas análises sobre le­ agrupamentos políticos progressistas e dos pesquisadores —
gitimidade política, limitada e empobrecida pela superficia­ com a idéia de progresso e com a do caráter progressista e
lidade da opinião pública. É que a necessidade histórica de civilizador da burguesia, ou com o eurocentrismo da Segun­
sua manutenção e as limitações da própria racionalidade do da Internacional. A mudança de perspectiva na produção do
Estado, da indústria, da ciência, abrem espaço para uma conhecimento teórico sobre o lugar das classes subalternas
legitimidade oculta e contestadora que nega c limita a legi­ no processo histórico emerge claramente com o final da
timidade aparente da superfície, criando uma legitimidade Segunda Guerra, a partir do momento em que muda a
subterrânea muito mais extensa, de todos os excluídos por concepção do espaço político do mundo. Ela se alarga pelo
diferentes meios e motivos. reconhecimento de que nos países mais ricos a reprodução
Essa tensão, que demarca a duplicidade da cultura popular, domina o processo social e de que, no Terceiro Mundo, a
remete para as contradições e para a diversidade de relações exploração mais intensa do trabalhador, a multiplicidade
na qual essa cultura se atualiza, ganha e renova sentido. É das formas sociais e o maior desencontro dos tempos sociais
por essa contradição que as concepções "arcaicas" e as rela­ abrem horizontes de interpretação sobre a realidade do
ções sociais "arcaicas" determinam o seu tempo. Aí tam­ capitalismo que repõem a tensão entre a produção de rela­
bém o tempo é duplo — o tempo que se vê e o que não se ções sociais e a reprodução. A mesma tensão surge na medida
pode ver; o que parece ser o tempo da relação social e o da em que a mudança de perspectiva também se aprofunda,
concepção que lhe dá sentido, tempo pretérito, relação ar­ pelo reconhecimento de que, nas sociedades ricas e nos
caica, e o tempo efetivamente contido nelas, que se de­ espaços ricos das sociedades pobres, a reprodução e o poder
termina fora delas e que se revela no desenrolar do processo dominam a superfície, o espaço, o imaginário, mas não
social. Como dizia Marx numa carta a Engels, em 1868, dominam o subterrâneo, os nichos do contrapoder, a ima­
trabalhamos sob uma cegueira judicial. Por isso, ficamos ginação 32.
O fato de que a cultura popular e as relações sociais
30 Cf. José de Souza Martins, "O boiadeiro Galdino — do Tribunal M ilitar ao "arcaicas" permaneçam prisioneiras de esquemas de estudo
M anicômio Judiciário", cit., p. 113-127. Esse apêndice de m eu livro A
M ilitarização da Q uestão Agrária no Brasil reúne os artigos que publiquei
durante a campanha pela libertação de Galdino. U m deles, "Linguagem 31 Cf. Carta de Marx a Engels, em Manchester, de 15 de março de 1868, in
Sertaneja", que saiu originalmente no "Folhetim ", suplemento da Folha de Karl Marx e Frederick Engels, Selected Correspondence, Progress Publishers,
São Paulo, foi escrito logo após a visita que fiz a ele no M anicômio Judiciário. Moscow, 1965, p. 201.
Aí analiso a importância política dos gestos e das m ãos, na cultura caipira, 31 Cf. Henri Lefebvre, entrevista a M. A. Burnier e Patrick Rambaud, in
como instrum entos de um a fala crítica e silenciosa. Esse artigo foi útil a Michel-AntoineBum ier(ed.|, Conversaciones con los Radicales, trad. J. Luis
Marilena Chauí em seu livro Conformismo e Resistência (Editora Brasili-
ense, São Paulo, 1986, esp. p. 36), nas páginas em que trata do m esm o tema. López, Editorial Kairós, Barcelona, 1975, p. 97 e 107.

118 119
e compreensão de fundo iluminista, que não expressam o José Maria, no primeiro combate, promoveu uma simples
ponto de vista das próprias classes subalternas, têm impe­ inversão da concepção do mundo, um descncantamento, que
dido que seja estudado o seu dinamismo, seu movimento. permitiu ver que a sociedade que oprimia e perseguia os
Aparecem, porque supostamente pretéritas, conccitualmen- camponeses estava dominada pelo mal porque estava de
te petrificadas, imobilizadas, à espera de um saber comple­ cabeça para baixo, com suas relações ao contrário. Bastava
tamente externo, expressão de uma classe de fora, e de cima33, inverter cada relação social para que nascesse a sociedade
que as interprete à luz de relações capitalistas e modernas e nova 34. Nesse sentido, mulheres e crianças, os dominados
de uma cultura expressamente universalista, isto é, aca­ de sempre, tiveram peso decisivo nas orientações do grupo,-
dêmica. Porém, fica difícil decifrar o real sentido das lutas e a propriedade privada foi substituída pela propriedade co­
do projeto das classes subalternas se não se consegue lidar mum; a república oligárquica dos grandes proprietários pelo
com o código de mudança social embutido na sua orien­ império popular, de concepção provavelmente joaquimita 3S,
tação cognitiva. o império do Espírito Santo, com seu tempo de igualdade,
Duas características importantes da cultura subalterna no de justiça, de fartura. É verdade que esse procedimento
Brasil se revelaram em episódios de luta social, envolvendo envolveu limitações fatais. Os camponeses do Contestado
populações camponesas e populações pobres, relativamente inverteram a ordem social, mas não a subverteram — fizeram
ao modo como a orientação cultural revoluciona as relações religião, mas não fizeram política ou, melhor, fizeram política
sociais numa situação de conflito, de transparência das a partir de uma ótica religiosa. A Revolução Mexicana,
contradições que alcançam as classes subalternas. aproximadamente da mesma época, teve componentes muito
Na Guerra Camponesa do Contestado (1912-1916), no sul parecidos, com implicações muito mais profundas, sobretudo
do país, que envolveu na repressão aos camponeses mais de de natureza política.
50% do Exército brasileiro, as populações rurais, a partir
da primeira agressão que sofreram mobilizaram muito 34 Cf. Maria Isaura Pereira de Queiroz, La “Guerre Sain te " au Brésil: Le
Mouvement M essianique d a "C ontestado", Faculdade de Filosofia, Ciências
rapidamente a informação guerreira contida na literatura e Letras da Universidade de São Paulo, Boletim ns 187, São Paulo, 1957;
popular e nos ritos religiosos populares originários do tempo M aurício Vinhas de Queiroz, M essianism o e Conflito Social, Editora C ivili­
colonial. O que parecia uma devoção religiosa inofensiva, zação Brasileira S.A., Rio de Janeiro, 1966. Duglas Teixeira Monteiro destaca
o tem a do descncantamcnto-reencantamento do mundo, no Contestado. Cf.
ingênuo teatro popular, como a cavalhada, continha na ver­ Os Errantes do Novo Século, Livraria D uas Cidades, São Paulo, 1974. Sobre
dade fortes elementos revolucionários, nítidos para os parti­ a inversão, cf. José de Souza Martins, "D om inação e expropriação: o m es­
cipantes, invisíveis para os inimigos. O núcleo guerreiro, sianism o na resistência política do subalterno", in Roteiro, ano III, nQ 5,
Fundação Educacional do Oeste Catarinense, Joaçaba, 1981, p. 7-17.
nos primeiros combates, era formado pelos "12 Pares de
35 Refiro-me aos m ovim entos m ilenaristas influenciados pelas idéias do
França", grupo de cavalhada, que, nas festas, simulava monge calabrês, do século XII, Gioacchino Da Fiore, que se difundiram na
combates entre mouros e cristãos, tendo como fundo as Europa e chegaram ao Brasil nos primeiros tempos da colonização, estabe­
histórias do imperador Carlos Magno, difundidas em textos lecendo o culto do Espírito Santo. Persistem ainda hoje nas práticas e con­
cepções das chamadas Folias do Divino. Sobre Gioacchino, cf. Antonio
de literatura popular. A morte do profeta do grupo, o "monge" Crocco, Gioacchino Da Fiore e il Gioachim ismo, Liguori Editorc, Napoli,
1976. A influência do pensamento de Gioacchino na formação da sociologia
33 Cf. E. J. Hobsbawm, "C la ss consciousness in history", cit., p. 7. Essa é analisada por Robert N isbet, History o f the Idea of Progress, Basic Books,
m esm a idéia reaparece cm relação aos movim entos camponeses: "...eu me Inc., Publishers, New York, 1980, esp. p. 94-100. A idéia do terceiro termo e
inclino a pensar que a idéia de um movimento camponês geral, a m enos que da dialética da tesc-antítese-síntese é de inspiração joaquimita. Agradeço a
esteja inspirado de fora ou, melhor ainda, de cima, não é viável em absoluto." Carlos Rodrigues Brandão o ter-me chamado a atenção para o parentesco
Cf. Eric J. Hobsbawm, Los Cam pesinos y la Política, cit., p. 22. entre as Folias do Divino e a tradição joaquimita.

120 121
Uma outra característica muito forte na cultura popular e popular que pre-interpreta a prática, primeiro reconhecimen­
no mundo do subalterno diz respeito à força transformadora to de circunstâncias, dilemas, possibilidades das classes su­
da morte. Seja no sul da Itália, seja no nordeste do Brasil, a balternas, alternativas sociais abertas por meio delas.
morte desencadeia não apenas ritos, mas mudanças de pers­ A culturá popular não é apenas funcional, adaptativa e
pectiva, leituras da realidade e leituras da cultura feitas ao instrumental. É também interpretativa, explicativa, formu­
contrário, segundo um outro código, que permanece oculto lação crítica, reconhecimento de uma realidade em que o
à espera do desenlace e da travessia que ela representa, sujeito não se reconhece ou não se reconhece mais. Ela
sobretudo morte em determinadas circunstâncias. Penso que contém, na sua lógica, elementos de explicação da mudança
o sentido real da opressão aparece com muita clareza no e das inquietações sociais e não apenas elementos de justi­
culto que cerca hoje um túmulo como o do cangaceiro Jara­ ficação do passado. A tcmporalidade da prática popular c do
raca, em Moçoró, no Rio Grande do Norte. Participante de conhecimento popular não pode ser reduzida à temporalida-
um ataque frustrado de Lampião àquela cidade/foi preso, já de cronológica do tempo quantitativo, lógico, porque aí se
ferido. Supostamente ia ser conduzido para a prisão na desfigura, perde sua qualidade, seu alcance e sua força
capital. Foi, porem, fuzilado pelos soldados no próprio cemi­ transformadora. É uma desfiguração a que procedem os que
tério da cidade e enterrado ainda vivo. Essa violência mobi­ procuram entendê-la em termos de uma seqüência temporal,
lizou o lado oculto do código ambivalente. O bandido e hoje linear e cronológica, que concebe o tempo em termos de
venerado como santo. É significativo que na cultura popular uma sucessão ordenada de passado, presente e futuro. Por
brasileira, como provavelmente de outras sociedades, a esse meio, não se pode apreender o tempo concreto da con­
injustiça constitua, como a morte, o acontecimento que tradição, do movimento, da revolução. O desencontro entre
inverte a leitura dos fatos correntes e revele o transcenden­ o tempo interior e o tempo cronológico, entre o tempo do
te, uma outra realidade, e a possibilidade do universal. Essa fazer e o tempo do conceber, entre o tempo da contestação e
transfiguração revela o novo que está oculto no que é velho, o tempo da dominação. Há fatos, acontecimentos, episó­
o universal escondido no particular, a humanidade no desu- dios, rupturas, que aparecem como exteriores à vida corrente,
manizado. que invertem os significados contidos na cultura popular.
Há uma contracultura do possível no interior da cultura
popular, que não é transparente ao próprio subalterno. Só
;í§, MOVIMENTOS SOCIAIS E LIBERTAÇÃO por aí pode-se resgatar o caráter contracultural da cultura
popular, sua antilógica, seu código invertido. Não por acaso,
A interpretação que desliga a cultura popular da prática é nos movimentos milenaristas e nos movimentos mes­
popular, já corresponde a um procedimento iluminista que siânicos, na profundidade da paixão, que essa possibilidade
nos põe diante de um falso dilema. De um lado, uma cul­ religiosa e politicamente herética se manifesta com maior
tura supostamente sem sentido, que, por isso, ganha sentido intensidade.
no contra-senso do arcaico que sobrevive, resquício de um Cultura que, degradada pelo iluminismo, pela razão, de­
passado perdido e ilusório. De outro lado, uma prática sem preciada pelo Estado, pelos partidos e organizações, é legiti­
sentido que só ganha sentido na mediação das organizações mada, no entanto, pelos movimentos sociais, pela paixão na
e das teorias que as têm como pressuposto de um conheci­ prática. A resistência popular se nutre de um saber popular,
mento socialmente "adequado". No meio, o problema não mesmo quando aparentemente ou circunstancialmente é
resolvido e a mediação não reconhecida do conhecimento nutrida por um saber erudito mediado pelas organizações
122 123
políticas. Às vezes, a superioridade política e histórica des­ esses elos mais antigos estão determinados pelos resultados
se saber tem sido medida pelos resultados objetivos da ação. mais recentes das relações sociais — o Estado e a reprodu­
Fica de lado, porém, o fato de que o descolamento entre ção ampliada do capital. Esses tempos estão separados no
prática popular e seus resultados políticos, a concreta alie­ plano do que aparece (os elos imediatos, as exterioridades, o
nação das classes subalternas, é também um produto desse visível, o fenômeno) e no plano do que não aparece (o resul­
processo. Essa prática e esse produto incorporam-se, igual­ tado objetivo, acumulado, instituído, invisível), este consti­
mente, à cultura popular. Não está ela por acaso povoada de tuindo a mediação daquele. A cultura popular não é, sim-
sujeitos contrapostos — vencidos e vencedores, anjos e plisticamente, resquício do arcaico. Ela é "teoria" imediata
demônios — a cada um dos quais o enfrentamento, a luta e que cobre lacunas e ausências da teoria mediata. Ela não dá
o conflito atribuem o seu lugar? conta de toda a inteireza do processo social (daí o apelo ao
A cultura popular se liga melhor à escala de tempo dos que é mágico quando se trata de estender a explicação ao
próprios movimentos sociais, o tempo imediato, o tempo do que não é visível). Mas o conhecimento teórico, propria­
visível. É, nesse sentido, mais adequada para explicar os mente dito, também não dá conta de toda a inteireza do
fenômenos, acontecimentos, desse tempo, que é o da escala processo, pois procura fazer da organização, da instituição,
do cotidiano, da sobrevivência, das conseqüências imediatas das objetivações, a mediação que supre a falta de manifes­
da opressão, da exploração, da injustiça. Nessa escala, a tação e presença cotidiana da cultura.
injustiça não está separada do injusto, a exploração não Com tudo isso, deixamos de ver que, mesmo na grande
está separada do explorador — a injustiça e a exploração teoria, existem conceitos "arcaicos", concepções de relações
não são, para os subalternos, teses ou princípios inevitáveis, arcaicas — do valor de uso ao valor de troca, ao valor, ao
mas problemas reais. A face imediata desses problemas está equivalente geral, ao dinheiro, à acumulação — cada qual
na mediação,personificada entre o invisível ou, aom enos, o com sua devida data, seu devido tempo. Apesar da moderni-
mípãlpáveliQ Estado, o capital)e sua vítimayt) subalternoLO_ zação e da politização das lutas sociais, da mediação cientí­
agente imediato da injustiça é freqüentemente o policial, o fica do conhecimento, as ações políticas mais modernas e
funcionário público; o agente da cxpioração. é freqüentemeru "objetivas" continuam se determinagda^^or sua vez, por
te o comerciante. A injustiça aparece na repressão, na forma essas mediações "arcaicas", pelas valorações morais e
de punição que pessoaliza e.antecipa, arbitrariamente a na­ "im ^ rétaÇ õ es^ p r^ o T ftica?' das classes subalternas, mó­
tureza impessoal da pena e do direito; a exploração aparece veis de suas concepções e de suas ações, móveis do seu
na circulação, no preço, injusto porque cresce sem tçr como radicalismo. É nesse plano que se encontram, num mesmo
medida o salário que compra a força de trabalho e estabelece tempo, os movimentos sociais dos camponeses franceses do
os limites do consumo — preço que tem como medida o scculo XVIIí, dos camponeses e operários ingleses do século
capital e não o trabalho. XIX, dos revolucionários mexicanos de 1910 e dos trabalha­
Não se trata, portanto, de manifestação de atraso, de dores ae noje na Àmérica Central, no Brasil e em outras
concepções realmente arcaicas. Na vida cotidiana, é o ime­ partes do Terceiro Mundo. Porque é nessa dimensão das
diato que se manifesta, o visível, o que aparece, os elos relações sociais que as classes subalternas podem ver o pro­
constitutivos mais antigos do processo maior (e mais ocul­ cesso mais geral, podem "tocá-lo com a mão", pois não é
to) — a dominação sobredeterminada pelo poder,- o valor de processo concluído, não são contradições superadas.
troca sobredeterminado pelo capital; tempos específicos, Essas categorias teóricas não são, realmente, categorias do
relações datadas, reunidos na unidade do diverso. Agora, passado. Mas categorias constitutivas da concepção teórica

124 125
que explica o processo em curso, expressões das relações dos movimentos sociais, é lançar a .forma assumida pelas
sociais que estão sendo produzidas c das que estão sendo relações sociais contra o conteúdo ciue a nega, pelo reconhe­
reproduzidas no próprio corpo dessa produção. Portanto, o cimento desse desencontro nos resultados desiguais do tra-
anticapitalismo do camponês c, num certo sentido, o anti- balho para o trabalhador e para o capitalista. Evidentemen-
capitalismo do consumidor urbano pobre, operário ou não, é te, aí não há transparência, apenas aparência, decifrada,
informado por categorias e relações que não são nem arcaicas porém, pela experiência, pela vida de cada dia, que nela não
nem do passado, porque se determinam pelo próprio proces­ reconhece a coerência do aparente.
so de reprodução do capital e dele fazem parte. As relações e concepções do passado ganham sentido, for­
Não é preciso ir ao mundo feudal para explicar a chamada ça e coerência nesse desencontro do presente. O saber
economia moral das populações camponesas c de certos acumulado ao longo de uma história de relações sociais e de
grupos de trabalhadores urbanos 36. A economia moral con­ uma história de conhecimento — aue classificou e separou
cebe a compra e a venda cm termos de justiça, de troca o justo do injusto, ó certo do errado, o.bg m jjo jn al..a.nosso"
justa. Ora, a equivalência da troca c momento constituitivo do deles, õ oprimido dio opressor — se renova e aprofun­
e pressuposto da constituição do valor que, ao se destacar de da nesse desencontro da.saciedade~.m.adema.J’of isso, a
sua forma, o valor de troca, viabiliza a acumulação do capital intensidade do conflito social, da luta das classes subalter­
e, conseqüentemente, o desencontro c a desigualdade entre nas contra scus~ ópressorei econôm icosje^^^jEQ s^Tm ãiõF
a forma e seu conteúdo, ao mesmo tempo cm que aquela se onde a memória é mais viva, onde o próprio capitalismo se
determina por este. É o caráter equivalente (e mistificador) faz presente nas escalas mais s i m p1es dc rncrc a n ti1ização
da troca de salário por força de trabalho que sustenta a dãs relações sociaís.~~0 fáfò de que às grandes lutas sociais
legitima a extração da mais-valia; é a igualdade jurídica que deste século, em diferentes regiões do mundo, tenham sido
serve de meio para a desigualdade econômica. jDjiu£_a_£co^ e continuern sendo lutas camponesas não e fruto do acaso.
nomia moral das classes subalterna faz, na verdade, através Nem ê fruto de uma resistencia camponesa arcaica, em nome
de um idílico passado pré-capitalista. É fruto de obstinada e
36 "M as, estes agravos operavam num consenso popular quanto a que demorada contestação da forma assumida pela presença do
práticas eram legítim as c quais ilegítim as na comercialização, na preparação capital na vida das populações rurais, combinada com uma
do pão, etc. Isto estava por sua vez baseado cm um a idéia tradicional das
norm as e obrigações sociais, das funções econôm icas próprias dos distintos intensificação sem limites da extração de excedentes econô­
setores na comunidade que, tom adas cm conjunto, pode dizer-se que consti­ micos, que nega e denuncia a igualdade formal e aparente da
tuíam a 'economia moral' dos pobres". Cf. Edward P. Thompson, "La
economia 'm oral' de la m ultitud en la Inglaterra dei siglo XVIII", cit., p. 66.
troca mercantil. Convém não esquecer de que, na classe
"...o conteúdo moral da ética de subsistência. O problema da exploração e da operária, a extração do excedente econômico está regulada
rebelião não é apenas um problema de calorias e rendimento, m as é um a pela natureza contratual da relação de trabalho. Tem um
questão das concepções cam ponesas de justiça social, de direitos c obri­ limite estabelecido reciprocamente. Já a extração de exce­
gações, de reciprocidade." Cf. Jam es C. Scott, The M oral Economy of the
Peasant, Yale Univcrsity Press, New Haven, 1976. Em Fostcr, há observações dentes das populações verdadeiramente camponesas de dife­
paralelas, sobre esse tema, remetidas, porém, para o caráter inconsciente dâ rentes regiões do mundo tem sido feita em nome da igual­
orientação cognitiva das populações camponesas, com base na idéia-mestre dade aparente da troca, mas não é regulada pela reciproci­
do "b em lim itado", isto é, de que tudo existe cm quantidade finita e de que
o ter e o progredir somente são possíveis por m eios não sancionados pela dade de um acordo nem é o camponês reproduzido no pró­
moral comum, à custa dos outros, como ameaça daquele que acum ula a toda prio processo do capital, como elemento da reprodução am­
a comunidade. Cf. George M. Fostcr, "Peasant socicty and the image of
lim ited good", in Jack M. Potter et alii jeds.), Peasant Society, Little, Brown
pliada. Ele permanece "externo" e substituível como força
and Company, Boston, 1967, p. 300-323. de trabalho indireta e descartável.

126 127
Tanto a idéia do "fim dos tempos", nos movimentos relações de classe, na composição e na forma do Estado.
milenaristas, quanto a idéia da "volta do messias", nos mo­ Cada vez mais, a ampla diversidade de características e inte­
vimentos messiânicos, encerram a concepção do novo e não resses dos diferentes grupos subalternos tenderam a definir
a concepção do arcaico. A injustiça, ao se instaurar, na ex­ as classes subalternas como uma pluralidade de perspecti­
ploração e na dominação, abre o segredo da sociedade, liberta vas, de ações, de estratégias, de interesses. Ao mesmo tem­
o novo contido no que é velho, abre o espaço e o tempo do po, essa amplitude maior e esse pluralismo tornam as clas­
retorno do libertador. Nessa esperança libertadora, o novo ses subalternas estranhas em relação às teorias das classes
tempo é o tempo em que ganham sentido e consistência, sociais, apoiadas na idéia da eficácia histórica de uma única
tornam-se reais, coerentes e significativos os elementos classe social, a classe operária. A fórmula conciliatória de
polares da ordem anterior, os que representavam a hu- considerar a classe operária como classe hegemônica e di­
manização do homem contra sua coisificação, o justo contra rigente das classes subalternas não resolve o problema
o iníquo, o generoso contra o mesquinho, a fartura contra a fundamental. É que tais teorias trabalham com o pressupos­
carência, o altruísmo contra o egoísmo, o social contra o to da luta pelo poder político e pela conquista do Estado,
individual, a universalidade contra a particularidade. como alvos e objetivos das lutas sociais 38.
A dimensão do tempo dos movimentos sociais está no A prática dos grupos e classes subalternos, porém, indica­
âmbito do imediato e do cotidiano, mas de um imediato que da acima, com suas valorações morais e o questionamento
cobra de cada um e de todos a necessidade de sua superação, moral das relações imediatas, com as necessidades radicais
porque envolve tensões e confrontos sem retorno. E nesse derivadas do desencontro entre a possibilidade e a realidade,
plano que são gestadas o que Heller chamou de "necessida­ põe em questão não só a exploração, mas também as dife­
des radicais", produto do que Lefebvre classificou como rentes formas assumidas pelo poder na vida cotidiana dos
desencontro entre o real e o possível, tanto no que se refere diferentes grupos e pessoas. Desse modo, ganham força
aos direitos quanto no que se refere à apropriação social dos e importância as injustiças e opressões cotidianas na
resultados materiais da produção37. Portanto, os movimentos 38 Ele aparece como um pressuposto natural e inquestionável para m uitos
sociais não podem superar as necessidades radicais, cobrar o autores, como se qualquer outra concepção política não fosse lógica. M esmo
desencontro entre o real e o possível, sem exigir que, num u m autor tão sensível à situação das classes subalternas, como Hobsbawm,
trabalha com a pressuposição do partido e do Estado como meio efim p olítico
certo sentido, o oculto se revele, sem questionar as formas das lutas sociais, estabelecendo para suas análises lim ites que as colocam,
aparentes e sua coerência enganadora, questionando, assim, prudentemente, aquém de suas próprias sugestões. Cf. E. J. Hobsbawm,
sua eficácia como mediações da exploração e da dominação. "C la ss consciousness in history", cit., p. 15-17. Importante passo crítico
contra esses lim ites é dado por Michel Foucault, M iciofísica do Poder, 3*
É nesse âmbito que surge a dimensão e a possibilidade da edição, Editora Graal, Rio de Janeiro, 1982, p. 149-150: "...para que o processo
política. Ela não pode ser uma pré-concepção, uma figura revolucionário não seja interrompido, um a das prim eiras coisas a com­
reitora "a priori" da ação das classes populares e de seus preender é que o poder não está localizado no aparelho de Estado e que nada
mudará na sociedade se os m ecanism os de poder que funcionam fora, abaixo,
movimentos sociais. Mas nasce no próprio seio da ação e da ao lado dos aparelhos de Estado a um nível m uito m ais elementar, quotidi­
contestação. ano, não forem m odificados." Lélio Basso, em sua madura reflexão sobre a
Esse dimensionamento dos movimentos sociais e da ação crise do marxismo, assinala que as contradições "estão presentes por toda a
parte, não apenas na fábrica, onde são m ais visíveis... " E, m ais adiante, diz:
política das classes subalternas tornou-se mais significativo "O problema central continua a ser aquele de estabelecer um a ligação
com as mudanças na composição das classes sociais, nas permanente entre a luta cotidiana, necessariam ente condicionada por um a
série de circunstâncias variáveis, e o escopo final revolucionário..." Cf. Lelio
37 Cf. Ágnes Heller, ob. eit., p. 16 e 141; Henri Lefebvre, Critique de la Vie Basso, Socialism o e Rivoluzione, Feltrinelli Editore, Milano, 1980, p. 24 e 45.
Quotidienne, vol. I, cit., p. 245.

128 129
formulação da crítica da realidade e no desencadeamento camponesas, dentre as sübalternas, estejam fortemente pre­
dos movimentos sociais. Ganham força e importância as sentes e com caráter revolucionário na contestação da ordem
manifestações e expressões imediatas da acumulação e da política em várias partes. Um teórico importante do Estado
dominação. Portanto, entram no âmbito do julgamento centralizado, autônomo e autolegitimador, como Huntington,
crítico não só a forma de exploração, mas a própria riqueza; alerta, justamente, para a instabilidade política e a desordem
não só a forma da dominação, mas o próprio poder. que ocorrem onde "as taxas de mobilização social e de
Hoje, as lutas das classes subalternas e os objetivos dos expansão da participação política são altas" e "as taxas, de
movimentos sociais já não são, reconhecidamente, lutas pe­ organização política e institucionalização são b aixas"41. Hoje,
lo poder, mas lutas contra o poder, particularmente o as novas forças sociais que questionam a ordem e o saber
configurado no Estado. Isso inclui o questionamento das estão basicamente nos movimentos sociais e nas organi­
organizações partidárias e do Estado, as formas coercitivas zações populares. São eles e não os partidos políticos de es­
de encaminhamento do protesto popular 39. Não há apenas, querda que constituem o desafio maior à estabilidade política.
em diferentes países, uma crise do Estado e da concepção de A ordem instituída do Estado se defronta com o risco de-
poder, mas também uma crise dos partidos e uma crise das sarticulador dos movimentos sociais. Vários autores têm
esquerdas, esta última expressa no já amplo desencontro chamado a atenção para a ordem política alternativa contida
entre os movimentos sociais e os partidos. Essa crise é mais como possibilidade nos movimentos sociais das classes
do que de interpretação porque envolve a restituição do subalternas, prenúncio de uma outra concepção de demo­
Estado à sociedade civil. Conseqüentemente, é um questio­ cracia, a de democracia participativa e, também, outra con­
namento da concepção marxiana de que no Estado se expressa cepção de legitimidade42. Ou, ao menos para o que um autor
a universalidade 40. Como os movimentos sociais têm sido chamou de "democracia substantiva" 43.
mais fortes onde é menor a institucionalização política, e Em diferentes regiões do mundo, pessoas de diferentes
onde ocorre a emergência de novos sujeitos políticos e de classes e diferentes grupos têm se organizado nos mo­
novas forças políticas, não é casual que as populações vimentos sociais e por seu meio tentado a solução das
necessidades radicais. O Estado burocrático que já não é
39 U m contraponto crítico encontra-se nesta form ulação de Evers: "O poder
político como categoria central das ciências sociais é um a concepção exces­
sivam ente lim itada para o entendimento dos novos m ovim entos sociais; o 41 Cf. Samuel P. Huntington, A Ordem Política nas Sociedades em Mudança,
potencial destes não diz respeito principalmente ao poder e sim à renovação trad. Pinheiro de Lemos, Editora Forense-Universitária/Editora da Univer­
de padrões sóciò-culturais e sócio-psíquicos do quotidiano, penetrando a sidade de São Paulo, São Paulo, 19 75, p. 17. C fta m b é m , Henry A. Landsberger,
micro-estrutura da sociedade." Cf. Tilm an Evers, "A face oculta dos novos "D istúrbios cam pesinos: tem as y variaciones", in Henry A. Landsberger
m ovim entos sociais", in Novos Estudos Cebrap, vol. 2, ne4, São Paulo, abril (ed.), Rebelión Cam pesina y C am bio Social, trad. Javier Alfaya e Barbara
de 1984, p. 12. Outro: "...estes m ovim entos são tentativas e instrum entos de McShane, Editorial Crítica, Barcelona, 1978, p. 55. O próprio Estado e as
autopoder democrático do povo." Cf. André Gunder Frank e Marta Fuentes, elites desenvolvem nova estratégia em face dos m ovim entos sociais: "...as
"N in e theses on social m ovem ents", IPDA Dossier, n- 63, Nyon, January- elites não estão respondendo às organizações; estão respondendo à força
February, 1988, p. 35-36. subjacente da insurgência." Cf. Francês Fox Piven e Richard A. Cloward, Poor
People’s Movements, Vintage Books, New York, 1979, p. XXI e XXIII.
40 A noção de classes subalternas, em Cram sci, e o resgate da importância
histórica da cultura popular, redim ensionam a concepção 'de práxis de um 42 Cf. Jurgen Habermas, Para a Reconstrução do M ateríalism o Histórico,
modo que alcança profundamente a idéia de Estado. "A teoria do Estado de trad. Carlos N elson Coutinho, Editora Brasiliense, São Paulo, 1983, p. 222;
Antonio Gram sci (...) pertence a essa nova história, para a qual, em resumo, André Gunder Franck e Marta Fuentes, loc. cit., p. 36-37; Tilm an Evers, loc.
o Estado não é u m fim em si m esm o, m as u m aparelho, u m instrum ento; é cit., p. 12 e 19.
o representante não de interesses universais, m as particulares..." C f. Norberto 43 Cf. Fernando Henrique Cardoso, "O Estado na América Latina", in Paulo
Bobbio, O Conceito de Sociedade Civil, trad. de Carlos N elson Coutinho, Sérgio Pinheiro (coord.), O Estado na América Latina, Editora Paz e Terra,
Edições Graal, Rio de Janeiro, 1982, p. 23. Rio de Janeiro, 1977, p. 89.

130 131
propriamente e estritamente o Estado da burguesia, tenta Essas dificuldades antigas ganham consistência nos úl­
estabelecer um esquema de negociações com os movimen­ timos tempos, à medida que os movimentos populares se
tos sociais, através de uma estratégia de concessões desarti- diferenciam das organizações e tomam corpo num projeto
culadoras. Com isso, na verdade, o pólo políticó tem se político que os confronta com os partidos e o Estado. Esse
deslocado do Estado para a sociedade civil, localizando-se confronto desloca o eixo dos movimentos sociais do Estado
nesta última, e nos movimentos sociais que lhe dão vida, o para a sociedade civil, como já disse. E propõe o tema da
dinamismo político atual. Muito provavelmente, estamos "reapropriação da sociedade civil das mãos do Estado" 4S.
diante da lenta gênese de uma nova ordem política, questio- Fato da maior significação, sobretudo nos países do Terceiro
nadora da ordem centrada no Estado, uma nova ordem ba­ Mundo, como os da América Latina, em que a legitimidade
seada na democracia direta e participativa. Esse projeto do Estado nasceu de uma suposta vontade nacional contra
implícito e alternativo tanto se manifesta nos países de­ outros Estados, os da dominação colonial, na contradição da
senvolvidos quanto nos países do Terceiro Mundo, tanto soberania fundada na dependência econômica 46. À medida
fala através dos novos subalternos — os jovens, as mulhe­ que o centro dinâmico do processo político se desloca para a
res, os negros — quanto fala através das velhas classes su­ sociedade civil por meio dos movimentos sociais, com o
balternas. Provavelmente, a revolução está percorrendo o conseqüente questionamento da legitimidade do Estado, as
tempo e o espaço em que o Estado é mais débil — o do classes subalternas não questionam apenas a exploração e o
cotidiano e da localidade, em que as classes subalternas poder. Elas estão questionando profundamente o conheci­
estão presentes em subterrâneos e trincheiras de sobrevivên­ mento político que trabalha com o pressuposto da conquista
cia e contestação, lugar e tempo da antiordem 44. As insti­ do Estado e conseqüentemente com o pressuposto da validade
tuições da repressão e da manutenção da ordem têm lugar e do ordenamento político existente, no sentido de lugar
tempo específicos. Não podem instalar-se permanentemen­ central do Estado. Estou de acordo com os que vislumbram
te e plenamente na casa de cada um e na noite de cada um. uma ordem política alternativa em gestação a partir da ação
dos movimentos sociais e de base, pois é o que me sugere
minha própria experiência com os movimentos sociais e os
4. O TRABALHO IN TELECTUAL COM AS CLASSES SUBALTERNAS grupos populares.
A emergência de novos sujeitos políticos e de novas
Até aqui procurei mostrar que a alegada impotência política concepções políticas põe em questão as teorias da trans­
das classes subalternas, particularmente do campesinato, tão formação social orientadas pelo privilegiamento do Estado
enfaticamente formulada por diferentes correntes teóricas, é como alvo condutor das intenções e das possibilidades da
a um tempo produto de insuficiências teóricas e produto de ação política. É no plano da produção do conhecimento
uma crise do conhecimento que lida com essas classes. Crise teórico que esse fato representa um desafio e um desafio
que decorre das raízes sociais e da perspectiva de classe que para os intelectuais. O desafio é maior na medida em que
comprometem esse conhecimento com pressupostos ilumi- as classes subalternas já estão produzindo um novo
nistas. conhecimento primário, um novo senso comum, base e
44 "...a capacidade inovadora desses m ovim entos parece basear-se m enos em mediação do conhecimento teórico — estamos em face do
seu potencial político e m ais em seu potencial para criar e experimentar
45 Cf. Henri Lefebvre, De L'État, tome IV, Union Générale d'Éditions, Paris,
form as diferentes de relações sociais quotidianas. É evidente que este processo
está ocorrendo nos subterrâneos das estruturas de poder..." C f. Tilm an Evers, 1978, p. 439; Tilm an Evers, loc. cit., p. 20.
loc. cit., p. 15. Cf., também, Lelio Basso, ob. cit., p. 45. 4Í Cf. Fernando Henrique Cardoso, ob. cit., p. 80-81.

132 133
que Foucault chamou de "insurreição dos saberes" 47. As caminhar na direção da produção de uma teoria da prática
circunstâncias nos põem todos diante das dificuldades para atual e real das classes subalternas — prática popular e de
entender essa grande mudança, essa grande realidade sem base. Conseqüentemente, não dispõem de um projeto político
teoria que cobre muitas sociedades de diferentes partes do congruente com essa prática nem conseguem propor media­
mundo. ções adequadas a ela. É, antes, uma crise da classe média e
Estamos diante de uma contradição visível do papel de de sua intelectualidade. Supõem, equivocadamente, que qual­
intelectual, quando este atua como intelectual orgânico dos quer teoria à esquerda das idéias dominantes seria adequada
movimentos sociais e dos grupos populares. A contradição e suficiente para dar sentido aos movimentos sociais e às
emerge quando tenta traduzir a consciência popular em lutas populares dispersas e aparentemente fragmentárias. Aí
termos de teorias que privilegiam o partido e o Estado, isto tem havido desencontros fatais. De um lado, os partidos
é, o poder, a organização e a instituição, no processo his­ políticos de esquerda, pressupondo a insuficiência política
tórico. E com isso deixa de lado a solicitação histórica re­ dos movimentos sociais e dos grupos não-partidários, como
presentada pela nova forma de ação das classes subalter­ a Igreja e os grupos populares e locais, desencadeiam uma
nas, que é a de descortinar a universalidade contida na ação aparelhista, supondo dar um passo adiante ao desmobi­
realidade pré-interpretada pelo subalterno, que sugere uma lizar os movimentos sociais em nome da organização sindical
teoria da prática. Como observa Sartre, a missão do e da organização partidária. Esquecem que cada um tem o
intelectual é "esclarecer para essas mesmas classes seu seu lugar e a sua hora e que, num país como o Brasil, os
esforço em direção à universalização. Neste nível, a con­ movimentos sociais e as lutas locais são o único grande
tradição que produz o intelectual lhe permite tratar a passo político das classes subalternas nas últimas décadas.
singularidade histórica do proletariado por métodos uni­ Hoje, o intelectual orgânico do partido, presente nos grupos
versais (métodos históricos, análise das estruturas, dialética) populares, é o principal fator de esvaziamento das lutas
e de apreender o esforço de universalização na sua par­ populares em favor das organizações, dos partidos e da
ticularidade..." 48. Ao contrário, propõe-se como intelectual centralidade política do Estado (que, no caso, é um Estado
orgânico do partido político (e, num caso como o do Brasil oligárquico e de tendência clientelística). Está aí, certamen­
deste momento, a pretexto de servir aos trabalhadores, até te, a crise maior que atinge em cheio as classes subalternas
como funcionário do Estado), cuja missão acaba sendo a de e compromete fundo suas possibilidades políticas.
induzir as classes subalternas a fazer apenas a prática da É verdade que a produção teórica tem sido trabalhada por
teoria, tornando-se elas, assim, agentes do poder que as outra via. Refiro-me às experiências relativas à chamada
ludibria e oprime. pesquisa participante. Essa modalidade de investigação de
A crise atual não é crise dos grupos subalternos, m as dos ação defronta-se, porém, com a mesma dificuldade de con­
grupos de mediação, grupos de apoio intelectual às lutas junto já mencionada, que é a de produzir uma teoria da
populares. Cooptados pelos partidos, que se concebem co­ nova prática mediada pelos movimentos sociais contra a
mo a mediação adequada e permanente, não conseguiram orientação teórica dominante. A pesquisa participante leva
a um autoconhecimento dos grupos e classes subalternos
47 Cf. Michel Foucault, ob. cit., p. 171; Raffaele Rauty, "Ilustrazione dei que é limitado pelo fato de que esse saber é o da própria
Problem a", in Raffaele Rauty (ed.), ob. cit., p. 31; Tilm an Evers, loc. cit.,
p. 11.
ação. Há certamente avanços importantes no conhecimento
48 Cf. Jean-Paul Sartre, Plaidoyer pour les Intelectuels, Gallim ard, Paris,
do social, em decorrência de se poder incorporar ao conheci­
1980, p. 69. mento sociológico a pré-interpretação do social produzida

134 135
pelo próprio sujeito 49. Mas esse conhecimento é o conheci­ Não é por meio do autoconhecimento do sujeito que este
mento do visível e não o conhecimento do que está ocul­ se torna sujeito do conhecimento. Ele continua na condição
to. O subalterno não têm como reconhecer-se nesse de objeto, divorciado de si mesmo pela alienação de sua ati­
conhecimento, ao menos além da descoberta do nós, mas vidade. Basta ter em conta que muitas das chamadas pes-
um "n ó s" parcial. É um conhecimento que apenas supre a quisas-participantes não são de iniciativa das classes subal­
falta de um saber que dê conta da perspectiva e do ponto de ternas, mas de grupos e instituições interessados em sua
vista do próprio subalterno. É conhecimento que exige o emancipação, ainda que generosamente. Esse fato repõe, sob
reconhecimento dessa mediação excluída, o reconhecimen­ máscara nova, dolorosas situações de dominação, tutela,
to da diversidade de perspectivas que constituem a socieda­ mistificação, em que o subalterno, mais uma vez, não se re­
de (não só a do operário, mas também a do lavrador, do ne­ conhece em sua obra, não investiga para si, mas é usado
gro, da mulher, da criança, do velho, do jovem etc.). Nesse para investigar-se para os outros.
sentido, só falsamente institui uma relação sujeito-sujeito50, Heller sublinha a sutil e, ao mesmo tempo, radical pas­
suposta superação da relação sujeito-objeto, pois é preciso sagem do homem da condição de objeto à condição de
vencer a barreira do visível para que se possa ver o oculto, objetivo 51. Na produção intelectual, essa passagem significa
para que o sujeito possa vencer a condição de objeto. Isso emancipar o outro da condição de objeto, por meio da nossa
quer dizer reconhecimento da dupla condição de sujeito e de própria emancipação, como intelectuais, da condição de tu­
objeto de cada um e de todos. Continuo tendo comigo mesmo tores do conhecimento. O outro só pode emergir como obje­
uma relação de sujeito e objeto na medida em que entre o tivo no horizonte da pesquisa científica na medida em que
eu-sujeito e o eu-objeto existe o abismo da alienação que me desvendamos para ele o seu mistério (e o nosso!), sua con­
põe como estranho em face de minha obra. Mesmo que eu dição de objeto, de subalterno, de vítima. Na medida em
me ponha no papel de companheiro e igual do outro com que lhe desvendamos os limites de seu autoconhecimento.
quem pesquiso e a quem pesquiso, ainda assim, e por isso Isso passa pela nossa conversão à condição de objeto dele,
mesmo, não superamos juntos o estranhamento que nos vi­ no sentido de tomar como premissa o pensamento radical e
tima a ambos e que nos separa das relações sociais que nos simples das classes exploradas 52, meio e instrumento (ao
transformam em falsos sujeitos, isto é, em objeto. O avanço invés de instrumentalizá-lo) para desvendar o lado oculto
da pesquisa-participante está no nós que pode ser reco­ das relações sociais com os olhos dele, revelando-lhe aquilo
nhecido, mas que, no entanto, não pode ser decifrado por que ele enxerga, mas não vê; completando, com ele, a
meio dela, a não ser parcialmente. É que embora a pesquisa- produção do conhecimento crítico que nasce da revelação
participante seja um dos meios de construir o nós das classes do subalterno como sujeito, na medida em que lhe restituí-
e grupos subalternos e promova o aparecimento de um mos a condição de objetivo e lhe abrimos a possibilidade de
conhecimento que é história desse nós, ainda não é história resgatar o pleno sentido do conhecimento alternativo que
para nós, mas apenas possibilidade de história para nós. ele representa e propõe na sua prática.

4í> Cf. Orlando Fals Borda, Conocimento y Poder Popular, Siglo Veinteuno
Editores/Punta de Lanza, Bogotá, 1985, p. 19.
50 U m a competente análise do tem a encontra-se em Carlos Rodrigues
Brandão, "A participação da pesquisa no trabalho popular", in Carlos Rodrigues 51 Cf. Ágnes Heller, Sociologia de la Vida Cotidiana, trad. José Francisco
Brandão (org.), Repensando a Pesquisa Participante, Editora Brasiliense, São Ivars e Enric Pérez Nadai, Ediciones Península, Barcelona, 1977, p. 364-365.
Paulo, 1984, p. 222-252, 52 Jean-Paul Sartre, ob. cit., p. 63.

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Im p r e s s o na
G r á fic a A T r ib u n a d e S a n to s L td a .
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E X P R O P R IA Ç Ã O E V IO L Ê N C IA
3 S e d iç ã o , revista e a u m e n ta d a

A q uestão p o lítica no ca m p o , em nosso


país, é h o je a questão d a p ro p rie d a d e
d a terra; d o conflito entre a p ro p rie d a d e
c a p italista e os regim es alternativos d e
p ro p rie d a d e q u e nascem d e sua crise.
N a c id a d e , a luta p rin cip al dos
tra b a lh a d o re s é contra a exploração
cap italista; mas, no ca m p o , a prin cip al
luta dos lavrad o re s é contra a
expropriação c o n d u z id a p elo mesm o
c a p ita l. O ad v e rs á rio é o m esm o, m as
o enfrentam ento é distinto.
Está terminando o tempo da inocência e começando
o tempo da política. Os pobres da terra, durante
séculos excluídos, marginalizados e dominados, têm
caminhado em silêncio e depressa no chão dessa
longa noite de humilhação e proclamam, no gçsto
dq luta, da resistência, da ruptura, da desobediência,
sua nova condição, seu caminho sem volta, sua
presènça maltrapilha, mas digna, na cena da História

HUCITEC

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