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Prof. Raphael De Paola Prof.

Rogério Soares

Raphael D. M. De Paola nasceu no Rio de Janeiro em Rogério Soares possui graduação em Filosofia pela
1971. Pela PUC-Rio, graduou-se em física (1994) e UERJ (2005), mestrado (2007), doutorado (2011) em
fez Mestrado (1996), obtendo pelo CBPF o título de Filosofia pela PUC-Rio e pós-doutorado (2013) pela
Doutor (2000) na área de Teoria Quântica de Campos. UERJ. Atualmente é professor adjunto do departamen-
Como recém-doutor, passou um ano no Grupo de Físi- to de Filosofia da PUC-Rio. Pesquisa nas áreas de Fi-
ca Teórica da Universidade Federal de Itajubá. Interes- losofia e História da Ciência, Teoria do Conhecimento,
sando-se pela fundamentação filosófica dos conceitos e Metafísica, Epistemologia, Filosofias Antiga, Medieval
teorias físicas, retirou-se da pesquisa na Universidade e Moderna, Filosofia da Religião e Religião Compara-
para dedicar-se ao estudo autônomo a fim de entender da. Sua pesquisa tem como questão central os pressu-
melhor de que trata a física. Desde então lecionou oito postos cosmológicos e metafísicos envolvidos nas ci-
anos no Ensino Médio e atualmente leciona no Depar- ências antiga, medieval e moderna. Atua na divulgação
tamento de Física da PUC-Rio. Traduziu para o portu- de temas filosóficos e culturais através da internet com
guês O Enigma Quântico - Desvendando a chave oculta, o blog de teor educativo Necromanteion, já indicado
de Wolfgang Smith e Física e Realidade – Reflexões Me- duas vezes para prêmios no meio virtual.
tafísicas sobre a Ciência Natural, de Carlos Casanova,
ambos publicados pela VIDE Editorial, Campinas, SP.

Programação do Curso
25 julho 26 julho 27 julho
SEXTA SÁBADO DOMINGO

19:00 – 21:00 9:30 – 11:30 09:30 – 11:30


Aula I: A Antiguidade e o projeto Aula II: O mecanicismo e a Física Aula IV: O atomismo e a Física
científico aristotélico de Aristóteles de Aristóteles

15:00 – 17:00
Aula III: A Ciência Moderna
nasceu na Idade Média?
Aula I – A Antiguidade e o projeto científico aristotélico
Eixo temático: ontologia e universalidade. Seria possível saber cientificamente algo desse mundo
com todas as entidades que ele exibe à mera observação
Questão: Quais relações podem ser estabelecidas entre cotidiana? Pareceu a não poucos que a exigência de um
a compreensão daquilo que existe no mundo e a exi- conhecimento plenamente seguro e universal só pode-
gência de universalidade característica do conhecimen- ria ser alcançado com a redução ou eliminação de partes
to científico? consideráveis da experiência sensível comum. Tem-se
assim instalado um conflito entre exigências intelectuais
Desde seus inícios, a ciência grega buscou não somen- e aquilo que os sentidos nos fazem perceber usualmente.
te a solução de problemas empíricos particulares, mas
também sua articulação com questões acerca da funda- A tese a ser defendida na primeira aula é a de que o aris-
mentação teórica da própria possibilidade de um conhe- totelismo pode ser entendido como um projeto filosó-
cimento do mundo acessível pelos sentidos. Diante do fico-científico cuja diretriz metodológica básica é a de
avanço científico na matemática e na geometria, cedo sempre fazer justiça a todo e qualquer aspecto da realida-
tornou-se duvidosa a possibilidade de um conhecimento de, incluindo-o em um saber que conjuga uma postura
do mundo sensível que exibisse a apoditicidade e a uni- não-eliminativista com a exigência da universalidade do
versalidade daquelas ciências formais. conhecimento.

Esboço de história das ciências grega, medieval e moderna


1) Período antigo até Aristóteles 4) Período universitário (XIII a XVI):
(VI a IV A.C.): retorno da ciência com filosofia; universidades, trivium
Ciência ccm filosofia; temas que incluíam não somente e quadrivium como currículo propedêutico, divisão das
questões sobre o estôfo material do mundo, como também faculdades em faculdade de Artes - com ênfase na filo-
discussões sobre a possibilidade e a fundamentação teóri- sofia natural - e faculdades maiores - Teologia, Lei e Me-
ca do estudo do mundo natural-sensível; desenvolvimento dicina. Condenações de 1277, incentivo ao pensamento
paralelo e independente de ciências particulares, princi- hipotético - secundum imaginationem -, enfraquecimen-
palmente matemática, geometria e astronomia; institui- to do aristotelismo, voluntarismo divino e nominalismo.
ções privadas de ensino e pesquisa (Academia e Liceu);
5) Período renascentista –moderno (XVI e
2) Período pós-aristotélico-helenístico XVII):
(IV A.C a III D.C.): enfraquecimento do aristotelismo e da autoridade das
processo de contínua separação entre ciência e filosofia; universidades; chegada dos platônicos bizantinos à Itália;
grande desenvolvimento de ciências particulares como fundação da Academia Florentina por Marcilio Ficino;
matemática, geometria, mecânica, astronomia, medi- platonismo, pitagorismo, neoplatonismo, hermetismo,
cina, anatomia, ótica; instituições de pesquisa e ensino alquimia, esoterismo; publicação do De Revolutionibus
privadas e - no mais das vezes – governamentais (Acade- por Nicolau Copérnico, heliocentrismo.
mia, Liceu, Museu);
6) Período moderno (XVII a XVIII):
3) Período enciclopédico (III D.C. a XII D.C.): ciência nova, Francis Bacon; matematismo universal e ra-
período ambivalente em que se dão a decadência da ci- cionalismo; redução da realidade ao quantitativo, Galileu
ência e da filosofia gregas e o nascimento da tradição e Descartes, doutrina da criação livre das verdades eter-
enciclopédico-compilatória de Macróbio, Isidoro de Se- nas, idéia teológica de leis naturais; publicação em 1687 do
vilha, Boécio e Beda, o venerável; transmissão - incom- Principia de Isaac Newton, física-matemática, instrumen-
pleta e assistemática - por meio de manuais de parte da talismo, indutivismo, voluntarismo divino, hermetismo;
cultura e ciência gregas, notadamente o trivium (retóri- fundação da Royal Society e aparecimento da Sociedade
ca, dialética e gramática) e o quadrivium (astronomia, Rosacruz; utopias hermético-alquímicas, Comenius.
aritmética, astronomia e música), que se tornaram a base
do ensino nas Escolas Catedrais;

Aula III – A ciência moderna nasceu na Idade Média?


Eixo temático: ruptura ou continuidade? é ainda hoje considerado por muitos como um tempo
de trevas e ignorância onde os obscurantismos cristão
O período usualmente conhecido como Idade Média e islâmico impediram – ou, pelo menos, retardaram - o

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desenvolvimento das ciências que vieram a florescer so- natural de leis observáveis sem pretensões de determina-
mente no século XVII. Tal visão é historicamente ques- ção da natureza última do mundo sensível.
tionável e desde os trabalhos pioneiros de filósofos e
historiadores da ciência como Pierre Duhem e Alaistair Alexandre Koyré
Crombie sabe-se que não só houve uma ciência medie- Ruptura radical na própria concepção do Ser, da ciência
val, mas que ela centrava-se no estudo da Natureza. e da própria experiência. Abandono do Cosmo finito e
ordenado hierarquicamente e matematização do espaço.
Contudo, os modernos no século XVII contrapunham-se
aos medievais criticando-os por sua estagnação científica, Thomas Kuhn
logicismo e questões bizantinas. Por conta disso, a ciência Ruptura radical entre paradigmas implicando incomen-
moderna nasce na polêmica anti-escolástica e numa su- surabilidade entre períodos sucessivos de ciência nor-
posta ruptura com o passado medieval. A questão que se mal, sendo esta caracterizada pela contínua e progressiva
impõe é a de saber se os modernos realmente romperam solução de puzzles.
radicalmente com os escolásticos ou se eles, na verdade,
simplesmente continuaram um processo de desenvolvi- Edward Grant
mento que iniciara-se na antiguidade clássica e que teve Bases da ciência moderna lançadas na Idade Média.
na Idade Média um de seus capítulos mais importantes. Condições contextuais: as traduções dos séculos XII e
XIII, o estabelecimento das universidades como centros
Soluções propostas: de conhecimento científico, o papel dos teólogos-cien-
tistas. Condições substantivas: desenvolvimento das ci-
Pierre Duhem ências matemáticas, importância da filosofia natural nas
Continuidade. A ciência moderna teria nascido já nos universidades medievais, linguagem científica, proble-
séculos XIII e XIV nas obras de Nicolas Oresme e Jean mas herdados pela tradição, liberdade de pesquisa.
Buridan. A física matemática como uma classificação

SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E FILOSOFIA

Na primeira metade do século XVIII, um certo E. S. De buía perdigotos contra o gênio de Isaac Newton numa
Gamaches, físico e matemático francês, escreveu uma época em que as ideias deste tornavam-se hegemônicas
obra de astronomia na qual comparava os princípios e relegavam o cartesianismo ao esquecimento mesmo
científicos de René Descartes, o patrono das ciências em terras gaulesas? A importância da discussão reside
francesas, com aqueles de Sir Isaac Newton, a glória naquilo que é posto em questão implicitamente: “o que é
máxima da Royal Society. O objetivo do obscuro autor fazer ciência?” Em outros termos, o que significa exata-
era - como seria previsível - demonstrar a superioridade mente dar a explicação de um fenômeno físico? Será dar
do racionalista francês sobre o empirista britânico. as suas razões últimas ou somente fornecer uma descri-
ção matemática acurada daquilo que é observado sem se
Esse poderia ser somente mais um capítulo da longa comprometer com questões concernentes à natureza do
rivalidade que opõe franceses e ingleses, mas há nele mundo físico real?
algo que supera em muito as querelas e disputas entre
nações. Na verdade, na discussão empreendida por De Em suma, nessa pequena polêmica são confrontadas
Gamaches, está em jogo algo crucial para a própria his- duas visões opostas sobre a própria natureza da ciência.
tória da ciência. De um lado o cartesiano, para quem a física deve, antes
de tudo, dizer o que é o real, e, de outro está o newto-
Em termos gerais, De Gamaches criticava Newton fun- niano que se limita a geometrizar os fenômenos sem se
damentalmente por seu método. Segundo o polemista, comprometer com hipóteses sobre a natureza última do
o gênio britânico havia se limitado em suas obras cien- real. É bem conhecida a afirmação de Newton no Escó-
tíficas a geometrizar os fenômenos físicos sem jamais lio Geral do Principia segundo a qual ele não “inventa
propor explicações para os mesmos. “Um fenômeno hipóteses”, referindo-se aí às especulações acerca das
analisado geometricamente se torna para ele um fenô- possíveis causas de certas propriedades observáveis dos
meno explicado”, afirma De Gamaches. No fundo, para corpos.
o francês, Newton era bastante seletivo na escolha de
seus problemas de estudo, só tratando daquilo que po- Há ainda discussões acadêmicas sobre como interpretar
dia ter uma descrição geométrico-matemática. O vere- corretamente essa e outras declarações de teor seme-
dito de De Gamaches é contundente e grave: Newton lhante espalhadas pelas obras do físico britânico, mas
era ótimo geômetra, mas péssimo físico. formou-se certa tradição na qual elas são interpretadas
como declarações de cunho antiespeculativo ou anti-
O que há de tão importante na diatribe de um obscuro metafísico. Newton estaria rejeitando derivar as suas
físico francês que, apegado ao mestre Descartes, distri- teorias de considerações filosóficas sobre a natureza

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própria das coisas e limitando-se a fornecer uma des- conclusivamente a influência mútua entre filosofia e ci-
crição matemática daquilo que pode ser efetivamente ência ao longo da história. Não raro essa influência in-
observado. Não importa tanto saber se era isso ou não cluía elementos não tão filosóficos no sentido estrito do
que Newton queria dizer naquelas declarações, mas sim termo, como teses teológicas, esotéricas e herméticas.
perceber que essa interpretação enuncia uma posição Como explicar a grande disputa travada entre newto-
teórica possível com relação à natureza da ciência que niano Samuel Clarke e o filósofo racionalista Gottfried
foi e ainda é abraçada por muitos filósofos e cientistas. W. Leibniz sobre a natureza do espaço como o senso-
rium divino somente em termos meramente científicos?
Embora Descartes quisesse refundar a ciência de seu
tempo sobre novas bases, ele ainda permanecia ligado Para citar exemplos mais recentes, o cosmólogo su-
à ideia antiga de um conhecimento certo e verdadeiro lafricano George Ellis, que trabalhou com o britânico
do mundo físico. Toda a sua física se funda na apreen- Stephen Hawking, dedicou diversos artigos científicos
são pelo sujeito pensante de princípios claros e distintos a explicitar e discutir os pressupostos filosófico-meto-
– e, portanto, indubitáveis – a partir dos quais todo o dológicos embutidos nas teorias da moderna cosmolo-
edifício da ciência poderia ser rigorosamente deduzido. gia. Da mesma forma, questões filosóficas sérias e pre-
Em outros termos, a metafísica funda a física e, sem ela, mentes foram suscitadas pelas declarações recentes de
qualquer ciência fica impossibilitada de realizar suas Stephen Hawking acerca das origens do universo e da
pretensões de conhecimento verdadeiro e certo. Resta existência de Deus. Quantos pressupostos filosóficos e
evidente que tais princípios primeiros não são retirados ontológicos estão implicados em um só conceito como
da experiência e sim alcançados por meio de longas me- o “nada”, empregado por Hawking? O que isso significa
ditações de cunho exclusivamente filosófico. para um físico é o mesmo que significa para um filósofo
ou para um teólogo?
Ora, o conflito até aqui apresentado pode ser visto tam-
bém pelo ângulo das relações possíveis entre filosofia e A diferença de significados não implica em um rela-
ciência. Sob esse prisma, os “cartesianos” seriam aqueles tivismo no qual “tudo vale”, mas pode indicar um uso
para os quais o fundamento último do conhecimento indevido de um termo para fenômenos que não podem
não pode ser alcançado pela experiência, mas somen- ser adequadamente descritos por ele. Conceitos buscam
te pelo pensamento que, através da razão, apreende os identificar, entre outras coisas, diferenças específicas
princípios mais gerais que servirão de base para qual- e irredutíveis dentro dos fenômenos do real. E tais fe-
quer estudo do mundo físico. A favor de sua tese, seus nômenos podem ser encarados de diversas formas, de
partidários poderiam citar o fato de que nenhuma pre- acordo com seus múltiplos aspectos. Desse modo, o que
dição pode verificar definitivamente uma teoria, já que cada ciência faz é encarar um determinado conjunto de
teorias falsas podem apresentar predições verdadeiras. entes do real sob um ângulo particular, concebendo-os
de acordo com pressupostos ontológicos e metodológi-
Por outro lado, os “newtonianos” seriam aqueles para cos que, em geral, só podem ser justificados por meios
quem a ciência deve definir-se por uma separação cla- filosófico-argumentativos, ou seja, meios externos à
ra com relação aos princípios especulativo-filosóficos e própria ciência. Nenhuma ciência particular pode jus-
ater-se somente a uma descrição acurada do compor- tificar a si mesma, já ensinava Aristóteles.
tamento observável dos entes físicos, cujas predições
sejam adequadas aos experimentos conduzidos em con- Se a história tem comprovado a influência mútua en-
dições controladas. Além disso, eles poderiam apontar tre filosofia e ciência, isso não significa que essa relação
para os sucessos preditivos que a ciência acumula até tenha se dado de forma harmoniosa e sem conflitos.
nossos dias e afirmar que, sob uma perspectiva prática, Muito pelo contrário. Incompreensões, resistências,
nada há que se exigir da ciência além da acuidade obser- rejeições e menosprezos de ambas as partes foram fre-
vacional e experimental. quentes nessa história. Ainda há hoje os que decretam
a “morte da filosofia” e apontam a ciência como a exe-
Acontece que, esquemáticas como são, essas posições cutora da sentença. Contudo, não se deve pensar que
tendem a simplificar uma situação real que se apresen- esses que anunciam a morte da consoladora de Boécio
ta de formas cada vez mais complexas. Dificilmente al- sejam somente cientistas. Eles são também filósofos.
guém conseguiria subscrever integralmente a tese dos Alguns, inclusive, tentaram - e tentam ainda – trans-
“cartesianos” justamente pela evidência histórica de que formar a filosofia em ciência, adotando seus métodos
projetos de submissão da ciência à filosofia fatalmente e procedimentos. Outros limitam-se ao papel de “cães
arrastam a primeira para o terreno das disputas intermi- de guarda” dos cientistas, que latem e ameaçam quem
náveis – e frequentemente inconclusivas - da segunda. ouse questionar qualquer ponto do credo cientificista.
Por esse motivo, cientistas-filósofos como o físico, ma- Aparentemente, há filósofos que não suportariam ver a
temático e historiador da ciência francês Pierre Duhem filosofia como ancilla theologiae, mas sentem-se à von-
defenderam uma separação clara desses dois empreen- tade ao vê-la no papel de ancilla scientiae.
dimentos cognitivos.
Todavia, o cientificista, aquele que afirma que todo o co-
Por outro lado, a evidência historiográfica demonstrou nhecimento possível advém exclusivamente da ciência,

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afirma ele mesmo não uma teoria científica, mas uma saúde, que tal outro prejudica seu organismo ou que
tese filosófica cujo valor só pode ser avaliado por meios determinado comportamento é “natural” e que outro
argumentativos. Ao tentar escapar da filosofia, o cien- não o é. O problema aumenta quando se tem em conta
tificista se vê obrigado a justificar o exclusivismo cog- o poder que essas orientações têm de moldar o caráter
nitivo da ciência apelando exatamente para aquilo que e o pensamento de milhões de homens e mulheres no
pretendia negar. mundo inteiro. Sutilmente, o cientista vai se tornando
não só o arauto da verdade, mas também o conselheiro
Em uma palestra em Cambridge, o filósofo americano em assuntos muito distantes de sua especialidade origi-
W. L. Craig, ao comentar a afirmação de Stephen Ha- nal. A pergunta óbvia é: “Por qual razão alguém deveria
wking de que a filosofia está morta, observou que aque- ouvi-los para além de seu campo limitado de estudo?”.
les que ignoram a filosofia são os mais propensos a cair
em suas armadilhas. E ele está correto. A inconsciência Não ser um cientificista ou um relativista não resolve o
dos pressupostos que informam toda e qualquer pesqui- problema das relações da ciência com a filosofia e com
sa, empírica ou não, frequentemente resulta numa com- outras atividades ou dimensões humanas. Significa so-
preensão limitada e limitadora da própria realidade que mente não abraçar nenhum dos extremos do debate. É
se pretende explicar. Não é raro que o cientista tome os mais fácil apontá-los e rejeitá-los do que dizer em qual
objetos que sua metodologia permite conhecer como os ponto entre esses limites deve estar a verdade. Não há
únicos elementos do real, reduzindo assim o todo a uma solução fácil para essa questão. Mas um bom ponto de
de suas partes. partida é reconhecer as diferenças entre filosofia e ciên-
cia e tentar estabelecer um diálogo que não passe pela
Ademais, essa tendência se manifesta também no desejo capitulação de uma das duas.
de aplicar os resultados de teorias particulares a campos
cada vez mais amplos, ao ponto de se poder afirmar, sem Isso significa, para a filosofia, abdicar do projeto “car-
risco de erro, que muitos cientistas buscam alçar suas tesiano” de determinar a priori quais são os princípios
teorias à condição de metafísica última e fundamental metafísicos a partir dos quais todas as pesquisas cientí-
da realidade. Como Étienne Gilson assinalou diversas ficas devem se dar. E, para a ciência, atentar para o fato
vezes, essa submissão do Ser a uma ciência particular é de que o real jamais pode se esgotar ou se reduzir a qual-
uma tentação constante na história do Ocidente, apre- quer um de seus aspectos e, ao mesmo tempo, admitir
sentando-se no logicismo de Abelardo, no matematismo que há perguntas legítimas e pertinentes que estão fora
de Descartes, no fisicismo de Kant, no sociologismo de daquilo que seus métodos permitem averiguar.
Comte e, porque não?, no biologismo de certos neo-
darwinistas. Contra isso, o físico Werner Heisenberg - Seria ocioso não admitir que a ciência alcança verdades
homem de alta cultura e questões filosóficas profundas sobre o real. Não se constroem naves espaciais, satélites,
– advertia que tais projetos só poderiam se fundar em celulares, aviões e carros sem conhecer algo do mundo.
conhecimentos científicos definitivos, mas que estes são Mas o que ela alcança são os aspectos permitidos por
sempre aplicáveis em domínios limitados da experiência. sua metodologia e por seus pressupostos conceituais e
ontológicos. Escolhas filosóficas já estão presentes como
Como reação ao cientificismo, diversos filósofos e es- elementos constitutivos desse processo. Uma maior cla-
tudiosos das ciências humanas empenharam-se em reza com relação a esses pontos é imprescindível para
questionar os critérios de racionalidade e validação do uma compreensão mais profunda da própria atividade
conhecimento, abraçando o relativismo como o último científica e de seus limites intrínsecos.
bastião possível de resistência ao avanço das ciências
empíricas. Tudo o que existe são múltiplos discursos Cumpre notar que a filosofia não deve viver “ao rebo-
possíveis sobre o mundo e o discurso científico é só que” da ciência, restringindo-se a pensar e a refletir so-
mais um entre muitos, de modo que há pouca diferen- mente sobre problemas e dados levantados por esta últi-
ça entre o Dr. House e o curandeiro de uma tribo. Não ma. Há que se admitir que a filosofia tem suas próprias
será necessário repetir aqui todos os já tão bem conheci- questões e que, para muitas delas, a ciência tem pouco
dos problemas lógicos e epistemológicos dessa posição. ou nada a contribuir para sua solução. Da mesma forma,
Thomas Nagel já se deu o trabalho de elencá-los. o cientista não precisa de um filósofo ao seu lado no la-
boratório questionando cada passo do processo de pes-
Embora equivocada, a reação do relativista manifesta quisa e pedindo sempre novas razões para suas ações. O
claramente a percepção de que o discurso científico se melhor encontro entre a filosofia e a ciência ainda se dá
torna cada vez mais hegemônico na sociedade hodierna. na consciência do indivíduo que almeja compreender
Praticamente não há um dia sem que o homem moder- o mundo em sua integralidade e que, para isso, busca
no não seja bombardeado por uma série de “pesquisas apreender as relações entre os diversos níveis do real e
científicas” que “provam” que tal alimento faz bem à uni-los sob princípios cada vez mais universais.

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SOBRE A CIÊNCIA E SEUS FUNDAMENTOS

“Quando os objetos de uma investigação, em qualquer denadora dessa mesma mutabilidade manifestada aos
departamento, têm princípios, condições ou elementos, é sentidos.
através do entendimento destes que o conhecimento - isto
é, conhecimento científico - é alcançado. Pois não achamos Quando Parmênides afirma que não há multiplicidade
que conhecemos uma coisa até que tenhamos apreendido e que os sentidos são enganosos porque nos apresentam
suas condições primárias ou primeiros princípios e condu- dados que estão em franca contradição com a afirmação
zido a análise até seus mais simples elementos.” lógico-racional de que o ser é imutável, ele está, entre
outras coisas, enfatizando um dos lados da questão do
ARISTÓTELES (Física,I,184a[10]) conhecimento. Somente se conhece realmente aquilo
que é imutável.
Quando os primeiros filósofos jônios enunciaram suas
teorias sobre a natureza do mundo, eles o fizeram se- E, no entanto, os sentidos nos fornecem sempre se-
gundo a idéia de que sob as aparências sensíveis havia res mutáveis, cambiantes, o “tudo muda” de Heráclito.
uma substância única cuja natureza explicaria todas Como seria então possível conhecer? E se conhecer é
as modificações e transformações que os sentidos nos apreender aquilo que há de mais real, como pode ser
apresentam. No livro I da Física, Aristóteles afirma que real um mundo em que as coisas vêm a ser e deixam de
cada um desses pensadores escolheu algum elemento - ser incessantemente?
ou conjunto de elementos - como o substratum de todas
as coisas e tomou-o como eterno, “tudo mais sendo so- O problema é herdado por Platão e Aristóteles e estes
mente suas afecções, estados e disposições.” dão respostas contrárias a ele. Para Platão, conhecimen-
to é rememoração do conhecimento haurido na con-
Nessa pequena descrição que Aristóteles faz dos primei- templação das Idéias (ou Formas) eternas e imutáveis
ros físicos, duas coisas chamam a atenção. Em primeiro e os seres do mundo sensível não são mais do que imi-
lugar, a afirmação de que a realidade a ser conhecida tações imperfeitas daquelas Idéias. Como ensina Victor
está sob as aparências sensíveis. Ou seja, a verdade do Goldschmidt: “Os objetos sensíveis provocam, como
sensível não é o próprio objeto sensível dado hic et nunc, causas ocasionais, a reminiscência, mas as Formas não
na imediatidade da experiência dos sentidos. são ‘extraídas’ das coisas sensíveis.” Por conseguinte, o
mundo sensível não é objeto de ciência, de saber verda-
A verdade está no substratum, naquilo que está sub- deiro e certo, somente de opinião, ou, como diz Platão
jacente ao que se apresenta aos sentidos, mas que, no no Timeu, de “mito verossímil”.
entanto, os objetos sensíveis manifestam como modifi-
cações, afecções ou estados. Se o mundo deve ser co- É exatamente porque o intelecto humano - a parte di-
nhecido, se a origem e fundamento últimos do que é vina da alma e que, portanto, mais se assemelha a Deus
observado pelos sentidos deve ser objeto de ciência, isso - tem a capacidade de “extrair” das coisas sensíveis a
só pode se dar pela identificação de uma estrutura sub- Forma que se encontra materializada concretamente em
jacente aos próprios objetos sensíveis. seres individuais e singulares que o conhecimento do
mundo sensível é possível, segundo Aristóteles.
Como Aristóteles aponta, o estôfo do mundo, para tais
pensadores, era um substrato material que tinha em si Mais uma vez, a ciência só é possível porque o homem é
“o princípio do movimento ou da mudança.” Fosse o capaz de apreender uma estrutura intrínseca e imutável
que fosse esse substrato, era algo determinado: água, ar, que define a coisa, rege suas mudanças, determina suas
fogo, terra, ou uma combinação desses elementos Em operações e potencialidades e que é repetível indefini-
segundo lugar, para todos esses pensadores o substrato damente, jamais podendo se reduzir a qualquer um dos
do mundo deve ser imutável. E o motivo parece claro: seus exemplares concretos dados na experiência.
se todas as coisas são modificações desse princípio úni-
co que rege o múltiplo, ele deve ser sempre idêntico a Mostra-se assim o caráter “abstrato” de toda ciência. O
si mesmo. O fundamento não muda para que todas as que a ciência busca não é este ou aquele fato bruto e ir-
coisas possam mudar. repetível na sua singularidade, mas aquilo do qual ele é
uma mera instância passageira e que só é alcançado por
Na identificação do substrato último de todas as coi- abstração das singularidades dos exemplares concretos.
sas com um elemento (ou conjunto de elementos) já se
mostra a apreensão de uma ordem, pois se o elemen- O mesmo vale quando o cientista contemporâneo se
to último é algo, tem uma ordem e a ordem que impõe concentra em somente um dos aspectos dos entes reais,
ao mundo funda-se na sua própria imutabilidade. Já se como por exemplo, as relações quantitativas entre ob-
pode divisar aqui um germe daquilo que caracterizará jetos físicos. Qualquer descrição matemática de como
todo conhecimento: a apreensão do uno no múltiplo. os corpos se comportam em determinadas condições é
Isto é, a redução da multiplicidade cambiante a uma uma afirmação de que as relações quantitativas “extra-
realidade estável subjacente que serve como regra or- ídas” da observação representam aspectos reais de sua

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constituição e que, por sua vez, tais aspectos - embora é inflamável porque apresenta, em circunstâncias de-
não sendo tudo o que os objetos são - estão radicados na terminadas, a tendência, inclinação ou disposição de
estrutura última desses mesmos objetos. inflamar-se. Na linguagem da teleologia, ela tem a “in-
clinação natural para certos efeitos.”
Em suma, uma ciência, para que seja ciência, exige,
como pressuposto, que haja uma estrutura fundante e O cientista não diz somente o que se deu, o que efetiva-
subjacente às coisas e que essa estrutura seja passível de mente observou, ele prediz o que se observará no futuro
abstração na mente humana. O que vale para o cientista a partir daquilo que observou no passado, bem como o
não é, então, esta gota d’água tomada em si, mas o que que se daria como efeito caso a causa se apresentasse. Se
nela se manifesta de universal e que ultrapassa toda a P se desse, B se seguiria como efeito. Isto é, aquilo que
individualização. a ciência afirma é que a coisa considerada tem em si a
disposição de produzir certos efeitos e que essa disposi-
Assim, para a ciência, ser ordenado é ser um exemplar ou ção se mantém como uma potencialidade ou capacidade
instância de uma estrutura formal que jamais se reduz aos real da coisa mesmo que as circunstâncias adequadas à
exemplares concretos que a manifestam e que, por isso, é sua manifestação e atualização não se apresentem.
indefinidamente repetível. Mas não é preciso pensar que
essa estrutura seja anterior aos exemplares como uma A substância X não é inflamável somente quando ela
Idéia platônica, mas sim que ela seja anterior lógica e on- efetivamente pega fogo, mas principalmente quando ela
tologicamente a eles, como seu fundamento e regra imu- não se inflama. Ela é inflamável porque pode pegar fogo,
tável. Só se tem conhecimento dessas estruturas pelas ins- porque essa é uma de suas capacidades reais, algo da-
tâncias que a atualizam na experiência sensível e concreta, quilo que a constitui. Por conseguinte, qualquer ciência
porém só há conhecimento científico se essas instâncias digna desse nome jamais pode ser um mero relatório
– entes singulares e múltiplos - forem “ultrapassadas” na de observações realizadas ou da conexão constante de
unidade de uma estrutura subjacente e imutável. eventos no tempo e no espaço. Ela deve ser, precipua-
mente, a identificação ou apreensão cognitiva de estru-
É pela apreensão dessas estruturas que se compreen- turas que se manifestam somente em entes singulares
dem as “disposições” que os fenômenos da experiência ou situações concretas no real observável, mas que sus-
apresentam. Em outros termos, quando um cientista diz tentam essas mesmas instâncias na qualidade de funda-
que a substância X é inflamável, ele está usando uma mento imutável.
linguagem disposicional. Ele afirma que a substância X

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BIBLIOGRAFIA DE FILOSOFIA E HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Edwin Burtt Estudos de história do pensamento científico (1991)


The Metaphysical Foundations of Modern Physical Scien- Estudos galilaicos (1986)
ce. A Historical and Critical Essay (1924) Galileu e Platão

Alan Chalmers Thomas S. Kuhn


O que é Ciência, afinal? (1997) The Structure of Scientific Revolutions (1970)

Allen Debus Imre Lakatos, Alan Musgrave (org.)


Man and Nature in the Renaissance (1978) A Crítica e o desenvolvimento do Conhecimento (1979)

Pierre Duhem Larry Laudan


A Teoria Física: seu objeto e sua estrutura (2014, trad. O Progresso e seus Problemas (2011)
Rogério Soares da Costa)
G.E.R. Lloyd
Edward Grant Early Greek Science: Thales to Aristotle (1970)
Physical Science in the Middle Ages (1971) Greek Science after Aristotle (1973)
Planets, Stars, & Orbs: The Medieval Cosmos, 1200–1687 Magic Reason and Experience: Studies in the Origin and
(1994) Development of Greek Science (1979)
The Foundations of Modern Science in the Middle Ages
(1996) Bryan Magee
God and Reason in the Middle Ages (2001) As Idéias de Popper (1977)
A History of Natural Philosophy from the Ancient World
to the Nineteenth Century (2007) Karl Popper
A Lógica da Pesquisa Científica (1993)
Ian Hacking A Sociedade Aberta e seus Inimigos (1980)
Representar e Intervir (2012) Autobiografia Intelectual (1977 )
Conjecturas e Refutações 1994
Sérgio C. de Fernandes Conhecimento Objetivo (1994)
Foundations of the Objective Knowledge (1985) Lógica das Ciências Sociais (1978)
O Racionalismo Crítico na Política (1994)
Paul K. Feyerabend
Adeus à Razão (2010) Richard S. Westfall
A Ciência em uma Sociedade Livre (2011) The Construction of Modern Science (1971)
Contra o Método (2011)
Diálogos sobre o Conhecimento (2001) Vincent E. Smith
Matando o Tempo (1996) St. Thomas Aquinas on the Object of Geometry (1953)

Bas van Fraassen William Wallace


A Imagem Científica (2007) The Modeling of Nature (1997)
From a Realist Point of View (1983)
Carl G Hempel
Filosofia da Ciência Natural (1974) Benedic Ashley, O. P.
The Way toward Wisdom (2009)
David Hume Theologies of the Body (1983)
Investigação Acerca do Entendimento Humano (1974)
A Treatise of Human Nature (1978) John Deely
Four Ages of Understanding (2001)
Alexandre Koyré
Do mundo fechado ao universo infinito (1961) Rémi Brague
Considerações sobre Descartes (1963) The Wisdom of the World (2004)

CONFRARIA DE ARTES LIBERAIS · APOSTILA DE ESTUDOS 9

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