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A matematização da natureza

e o desenraizamento do homem
Angela Barros Fonseca Berto
Especialista em Currículo e Prática Educativa - PUC/RJ

Resumo

Estudo das reflexões do filósofo Edmund Husserl sobre o


fracasso do racionalismo europeu, em seu texto La Crise des
Sciences Européennes et le Phénomènologie Transcendentale
(“A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia
Transcendental”, 1935-1936), abordando os efeitos da crise das
ciências no desenraizamento do homem pela matematização da
natureza. Husserl aprofunda a frustração entre aquilo que se ditava
pelo pensamento cartesiano e o que se vivia no Lebenswelt (mundo-
da-vida).

Correspondência: Palavras-chave
Rua Salvador Correa, 139 - Centro Husserl; crise; matematização; desenraizamento; mundo-da-vida.
28035-310 - Campos dos Goytacazes - RJ
Telefone:+55 (22) 2726.2727
Fax: +55 (22) 2726.2720
www.isecensa.edu.br
e-mail: isecensa@isecensa.edu.br

PERSPECTIVAS ONLINE, Campos dos Goytacazes, v.1, n.3, p.18-26, 2007 18


The mathematization of nature and the human’s unrooting
Angela Barros Fonseca Berto
Specialist in Curriculum and Educational Practice - PUC/RJ

Abstract
Study about the reflections of the philosopher Edmund
Husserl about the European rationalism’s failure, in his text La
Crise des Sciences Européennes et le Phénomènologie
Transcendentale (“The Crisis of the European Sciences and
Transcendental Phenomenology”, 1935-1936), approaching the
effects of the science’s crisis in the human’s unrooting by the
mathematization of the nature. Husserl deepens the frustration
between what was ordered by the cartesian’s thought and what
was lived in the Lebenswelt (lifeworld)

Correspondence: Key works:


Rua Salvador Correa, 139 - Centro Husserl; crisis; mathematization; unrooting; lifeworld
28035-310 - Campos dos Goytacazes - RJ
Phone number:+55 (22) 2726.2727
Fax: +55 (22) 2726.2720
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Durante muito tempo, o cogito potências mundiais já tinham iniciado uma
cartesiano habitou o pensamento ocidental corrida para produzir armamentos mais
impondo-se como um racionalismo logicista modernos e mortíferos. Resultado: nove
que subtraiu os aspectos subjetivos do milhões de mortos estupidamente pela
homem. guerra; pela incapacidade das ciências de
Através da Geometria Analítica, René pensarem, profundamente, a existência
Descartes (1596-1650) demonstrou como a humana!
Matemática poderia ser utilizada para A cultura européia, então, entra em
descrever as formas e os movimentos dos crise evidenciando sua descrença na
corpos, estudando os fenômenos da natureza racionalidade das ciências modernas e na
por meio de gráficos traçados com linhas filosofia cartesiana.
retas e curvas. Além disso, postulou que o O contexto social e político da Europa
raciocínio matemático deveria servir de nos primeiros anos e a insatisfação já sentida
modelo para o pensamento filosófico e por Husserl, ao ver a cultura européia
também para todas as ciências. ameaçada, o impulsiona a buscar e a
Antes dele, Galileu (1564-1642) tematizar a historicidade da filosofia, em mais
afirmava que “o livro da natureza estava uma tentativa de refundá-la. Para ele, a partir
escrito em caracteres matemáticos”, ou seja, do momento em que deixaram de se propor
que as leis da ciência deveriam ser escritas interrogações sobre si mesmas, sobre sua
através de fórmulas matemáticas. Galileu, ao marcha, seus fundamentos e sobre seu
aplicar o método resolutivo e a matemática alcance, as ciências converteram-se numa
à investigação que realizava de movimentos, máquina cega, desviando-se da subjetividade
desenvolveu a idéia de que o objeto da humana e afastando-se do mundo-da-vida
cognição da natureza são os fenômenos pela matematização da natureza.
passíveis de uma interpretação matemática A perda da racionalidade das ciências
e quantificadora. Em suma, a filosofia é descrita por Husserl em seu último trabalho
tornava-se o conhecimento do movimento intitulado “A Crise das Ciências Européias e
dos corpos. Para Galileu, a natureza era a Fenomenologia Transcendental”, nos anos
matematizada, um constructo abstrato. de 1935 a 1936.
Ao final do século XIX e início do Mas de que crise estaria falando
século XX, o exacerbado psicologismo que Husserl? De quais ciências? De que
negava insistentemente a filosofia e, a seu fenomenologia?
modo, queria tornar-se o embasamento Husserl refere-se à crise da
teórico de todas as ciências, motivou Husserl cientificidade das ciências (filosofia,
a tencionar devolver à filosofia seu estatuto psicologia e ciências exatas). Ao mesmo
científico. tempo em que procura entender o lugar da
Nos anos de 1914–1918, sob a psicologia, que se perde numa crise de
bandeira do Imperialismo, eclodia a I Guerra identidade, quer fugir do psicologismo para
Mundial, colocando em xeque tanto o encontrar e entender o domínio da
racionalismo quanto o empirismo que não subjetividade.
deram conta de um plano de convivência Em meio a uma avalanche de
pacífica entre as nações via desenvolvimento discussões que aconteciam entre inatistas e
tecnológico. Para que os monopólios empiristas sobre a origem da lógica, surge
continuassem devorando o planeta, e a alta Husserl mostrando uma nova visão: a
burguesia obtivesse cada vez mais lucros, possibilidade de extrair do sensível as formas
milhões de homens e mulheres eram absolutas.
sacrificados. Governos das principais

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Ao criticar os empiristas, quer mostrar humanidade européia perdeu o contato com
que a experiência que eles tanto apregoam a própria vida e com as indagações a ela
não deve estar reduzida à experiência imanentes.
sensível do mundo físico já que a experiência De maneira evidente, o conhecimento
é, para Husserl, um ato da consciência, uma científico trouxe, aos nossos dias, avanços
experiência da subjetividade na qual sujeito consideráveis no domínio da técnica, tais
e objeto situam-se englobados pelo mundo e como a engenharia genética, as novas
pela história. tecnologias da comunicação e da informação,
No mundo ambiente da intuição, ao a energia nuclear, dentre outros. Mas, em
dirigirmos nosso olhar para as formas puras contrapartida, essa mesma ciência
espaço-temporais, fazemos a experiência conquistadora, triunfante e elucidativa
dos “corpos”, alicerçada no sensível, como mostra-nos, a cada dia, problemas graves no
conteúdo. Na Matemática, ao contrário, a que tange aos conhecimentos que produz e
noção de corpo refere-se à extensão à sociedade que modifica.
geométrica, embora sua origem esteja no Esse modelo de progresso técnico é o
mundo sensível. mesmo que quase aniquilou a humanidade
Galileu separou o objetivo do sensível em 1914. Um modelo de ciência fragmentada
já que este não tinha valor para a ciência. e dissociada da idéia de humano, de cultura,
Ao inserir a problemática do corpo de história, de sociedade que subjuga o
(“Eu posso”), Husserl começa a homem à máquina.
existencializar (dar substância) o cogito, Comungando da reflexão de Husserl,
recolocando a questão da percepção de neste aspecto, Morin (1999), em seu livro
maneira mais crítica. O “eu no mundo” é “Ciência com consciência” afirma que “o
um “eu corporal perceptivo”. Em Descartes, conhecimento científico é um
o corpo é mecânico; em Husserl, há uma conhecimento que não se conhece”. Para
subjetividade encarnada. ele, “as ciências humanas não têm
Ao rever a filosofia da Grécia antiga, consciência de sua inscrição numa
entendida como “ciência universal”, “ciência cultura, numa sociedade, numa história.
da unidade total de todo ente”, Husserl As ciências não têm consciência de seu
indaga sobre as razões que levaram, papel na sociedade. As ciências não têm
paradoxalmente, ao desenvolvimento das consciência dos princípios ocultos que
ciências e ao seu fracasso. comandam suas elucidações.”
Afirma que tal crise refere-se a Assim, essa ciência que desenvolveu
“problemas procedentes da ingenuidade”, em uma série de formas tão “perfeitas” para
virtude da qual a ciência objetivista apreender todos os objetos a ela externos,
desconsidera o lugar da subjetividade. A não dispõe de um método para se conhecer
racionalidade moderna converteu-se numa e se (re)pensar. O próprio avanço da física
razão ingenuamente objetivista, coisificada, moderna está relacionado ao crescimento
positivista, geometrizada, matematizada. das idéias racionalistas de um conhecimento
Segundo ele, a crise fundamenta-se no certo, determinado, seguro de si.
fracasso das ciências em compreender o A manutenção de um paradigma
homem, desprezando as questões cientificista imparcial e reducionista
consideradas vitais para a humanidade. demonstra o perfil de uma estrutura que adota
Como conseqüência, esvaziou-se o sentido uma concepção determinista da natureza.
das ciências para a vida, para o mundo. Essa visão mecanicista implicava num
De acordo com suas reflexões, ao determinismo rigoroso. Havia uma causa
perder o contato com a filosofia, a definida que gerava um efeito – o princípio
da causalidade – baseado, filosoficamente,

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na cisão mente/corpo introduzida por Revolução Francesa. O precursor desse
Descartes. Os experimentos deviam ser movimento foi Descartes, considerado o pai
descritos objetivamente, subtraindo-se o do racionalismo.
observador do fenômeno observado. A Em sua obra “Discurso do método”,
objetividade tornou-se o ideal da ciência. ele recomenda que, para se chegar à verdade,
Entretanto, tal visão vai se se duvide de tudo, mesmo das coisas
desmoronando diante da física quântica e da aparentemente verdadeiras. Mas, sobretudo
impossibilidade de reduzir-se determinado em Descartes, fomos privados deste
comportamento humano a uma explicação exercício ao sermos excluídos, enquanto
apenas mecânica. Na física clássica, por observadores, da experiência observada.
exemplo, as partículas seguiam trajetórias A separação sujeito/objeto é, mais uma
bem definidas e qualquer tipo de explicação vez, um dos aspectos pontuais de um
estava condicionada à posição dos corpos, paradigma redutor (cartesiano) pelo qual o
aceleração, massa, força, dentre outros. Com pensamento científico distingue realidades
o advento da física quântica, mesmo falando inseparáveis, reduzindo uma instância à
de apenas uma partícula, os cientistas se outra. A partir da cisão, a filosofia se
vêem obrigados a associá-la a uma onda desdobra em ciências disciplinares. A
(princípio da dualidade onda-partícula). Matemática se eleva ao estatuto de ciência
Enquanto que, na física clássica se objetiva e todas as outras ciências que não
escolhe entre uma ou outra alternativa, na seguiam o modelo das ciências da natureza
física quântica ambas interferem, dentro de eram relegadas ao plano do delírio, do erro e
um processo de retroação. É a própria do engano.
dualidade o aspecto básico. A organização Indagando sobre a origem da crise das
temporal dos acontecimentos torna-se ciências, Husserl trata da ruptura entre o
insustentável e a não-causalidade, de acordo objetivismo fisicalista e o subjetivismo
com os físicos quânticos, torna-se uma transcendental. Segundo ele, as ciências
conseqüência natural de suas teorias. “esqueceram” que elas surgem de algo
É necessário que as ciências anterior a elas mesmas, do campo das
repensem a si próprias. Habermas já nos experiências pré-científicas; enfim, de um a
recordava que a enorme massa do saber priori concreto: o Lebenswelt (o mundo-da-
quantificável e tecnicamente utilizável não vida) tanto no nível histórico quanto no
passa de “veneno” se for privado da força existencial.
libertadora da reflexão. O Lebenswelt significa uma realidade
Na clássica tradição grega e na rica e complexa que o próprio homem
chamada “Era das Luzes” (Iluminismo), o constrói e que, simultaneamente, se constitui
saber exercia papel de reflexão. Nos séculos pela história, pela linguagem, pela cultura,
XVII e XVIII, o desenvolvimento intelectual, pelos valores. Se não fosse o mundo
que vinha ocorrendo desde o Renascimento, subjetivo, o mundo objetivo não teria sentido.
deu origem a idéias de liberdade política e Um se faz na presença do outro. O mundo-
econômica, defendidas pela burguesia. Os da-vida é subjetivo/relativo.
filósofos e economistas que difundiam essas Em Descartes, institui-se a grande
idéias julgavam-se propagadores da luz e do ruptura entre o que era de domínio das
conhecimento (iluministas). ciências exatas (o determinável, o “neutro”,
O Iluminismo trouxe consigo grandes o quantificável) e o que se constituía como
avanços que, juntamente com a Revolução parte do domínio das ciências do espírito (o
Industrial, abriram espaço para a profunda indeterminável, o relativo, o mutável).
mudança política determinada pela

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A crise da racionalidade científica é a fenomenologia transcendental. Na
dissolução do ideal de razão nascido na fenomenologia husserliana, o mundo-da-vida
Grécia no século VI a.C. Nas palavras do tem o papel de fundamento e de caminho
próprio Husserl, “com os gregos começa a para o regresso da fenomenologia à
aventura da razão”. A perda do sentido subjetividade constitutiva do mundo.
(grego) da filosofia acarretou uma série de Para ele, o retorno ao mundo-da-vida
prejuízos, dentre os quais, a cisão entre as restabelecerá a conexão perdida entre
ciências do espírito e as ciências exatas ciência, ética e vida causada pelo erro do
(positivas). objetivismo que fez com que a razão moderna
Contrapondo-se ao que era ditado se esquecesse do mundo cotidiano dos
pelas ciências exatas, Husserl afirma que as homens.
essências são modos característicos do Para acessar a experiência
aparecimento dos fenômenos e não transcendental, Husserl utiliza a epochè
conseqüências de uma abstração como (redução), colocando entre parênteses os
afirmavam os adeptos da racionalidade “(pré)juízos” do mundo importados das
científica. ciências, o senso comum, para que tratemos
Visando refundar a filosofia como das formações de sentido, da forma com
ciência de rigor rejeita dados empíricos para que o mundo adquire significado em nossa
fundamentá-la. Segundo ele, a consciência, vida de consciência. Buscando o fundamento
ao ser investigada em sua estrutura imanente, da Matemática e da Lógica, suspende
apresenta-se como algo que ultrapassa o certezas, preconceitos e qualquer doutrina
plano empírico surgindo como condição (a já instituída.
priori) do conhecimento, como consciência Husserl considerava a epochè um
transcendental. instrumento capaz de esclarecer a
A coisificação do homem e do saber consciência e, ao mesmo tempo, de
pelas ciências reduziu a interpretação do sobrepujar o psicologismo e o historicismo
mundo a fatos impedindo a compreensão reinantes.
acerca dos “problemas do espírito”, como A fenomenologia husserliana está
bem observou Husserl. Ao utilizar sua voltada para o telos, a fundação da filosofia,
capacidade crítica, o ser humano transcende a teleologia. Ao refletir sobre a crise das
o plano factual. ciências, Husserl afirma que a humanidade
Herdeiro da necessidade de exatidão européia não viu o mundo como um sistema
de seus estudos matemáticos busca, de relações entre meios e fins, perdendo
constantemente, maior transparência em suas assim, sua teleologia, seu sentido. A ciência
descobertas, dinamizando, assim, sua não mediu esforços em utilizar todos os meios
filosofia. Suas análises se iniciam pela possíveis para alcançar seu propósito:
geometria. Analisando o caminho traçado progresso técnico e científico a qualquer
pela filosofia moderna, desde Descartes, preço.
Husserl propõe a fenomenologia como uma Por outro lado, essa ciência esqueceu-
alternativa à superação dessa ruptura a partir se do que esse mesmo progresso poderia
do mundo-da-vida. Segundo ele, a provocar e produzir. O mundo científico
matematização da ciência moderna produziu desviou-se da teleologia. “O telos espiritual
efeitos irreparáveis nas “humanidades” e, em da humanidade européia, no qual está
conseqüência, na filosofia. compreendido o telos particular das
Husserl considera o mundo-da-vida nações singulares e dos homens
como a origem e o fundamento das ciências individuais, situa-se num infinito, é uma
objetivas, o ponto de partida para a idéia infinita, para a qual tende, por assim

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dizer, o vir-a-ser espiritual global” ao movimento (deslocamento dos corpos).
(Husserliana, 1976) A natureza torna-se um ente objetivado pelo
O que fez então a ciência lógico- domínio do homem já que suas qualidades
matemática de Galileu e, posteriormente, a primárias são acessíveis a todos pela
de Descartes? Simplesmente, reduziram o Matemática. As qualidades secundárias
homem ao universo dos fatos objetivos (texturas, cores, sabores, temperaturas,
substituindo o mundo-da-vida pela natureza odores) são anuladas pois dependem da
idealizada e representada pelos símbolos experiência subjetiva e, portanto, relativa.
matemáticos. Como conseqüência, a Seria o mesmo que dizer que o corpo humano
“pessoa” do homem, o “eu” do homem e o é extenso, mas desprovido de qualquer
“sentido do mundo” neste homem foram sensibilidade!
abandonados. Crítico de Descartes, Kant buscou a
Ao percorrer as entranhas da filosofia unificação racionalismo/empirismo ao realçar
cartesiana, Husserl percebe suas falhas e nossa condição de seres concretos (ausente
nos aponta o grande erro do objetivismo com em Descartes). Kant, segundo as suas
relação ao mundo-da-vida: seu esquecimento próprias intenções, pretendia estabelecer uma
e sua desvalorização como mundo subjetivo. ponte entre o racionalismo e o empirismo,
A matematização da natureza ou seja, queria criar um sistema que fosse a
desenraizou o homem do mundo-da-vida. Em superação de ambos numa síntese maior, o
Galileu, esta racionalização conduziu a que já deixa claro que esta dicotomia,
objetividades ideais e não ao ser das coisas. consagrada historicamente, não o satisfazia.
A idealização da natureza ofuscou e se Para Kant, o conhecimento é a unificação
sobrepôs à natureza pré-científica. A das coisas que se nos aproximam pelo
substituição do Lebenswelt por um mundo espaço-tempo e pelos conceitos. Contudo,
de idealidades construído matematicamente Kant não “suspende” os pressupostos,
é alvo da crítica husserliana à ciência ficando preso ainda a teses e dogmas.
moderna que se tornou radical, ao ter-se Husserl nos alerta para o perigo de
afastado do mundo-da-vida. cairmos na armadilha da ingenuidade
A matematização da natureza está filosófica proveniente da utilização de teses
pautada numa visão de mundo impostas e injustificadas. Mesmo o “real em
predominantemente objetiva, técnica, parcial, si” só tem sentido como uma realidade para
fragmentada; enfim, o oposto daquilo que alguém.
Husserl denominava Lebenswelt, a saber, um Kant concebia o “real em si” como
mundo dotado de sentido e finalidade, de algo para fora do sujeito. A experiência
experiências subjetivas, de estrutura cotidiana é sempre relativa a quem percebe
intencional. e, mesmo em Galileu, a ciência tem sua raiz
Para Husserl, o que possibilita essa no mundo-da-vida. Este mundo que é a
doação de sentido é a temporalidade, fruto gênese das ciências. A filosofia, desde os
da nossa experiência perceptiva e primária gregos, requer essa suspensão, requer
do mundo que nos abre possibilidades indagação.
infinitas de horizontes de sentido. Nesse Infelizmente, Galileu não se perguntou
processo, a memória exerce papel sobre o sentido de sua ciência pois, se assim
fundamental como uma presença/ausência o fizesse, viria que a matematização é apenas
de um passado que nos projeta ao futuro. um dos aspectos (derivados) proporcionados
No paradigma cartesiano, a natureza pelo mundo-da-vida, enquanto procedência
é expressa por caracteres geométricos, sendo de todos os sentidos.
reduzida ao número, à figura geométrica e

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Como filósofo, Husserl indaga “O que futuro, enquanto telos que orientará a
é?”, “Como é?” e “Por que é?” a crise superação da crise mediante a recuperação
das ciências européias. Nele, o sentido da de uma racionalidade universal.
humanidade só pode ser revelado pela O estudo histórico de Husserl não se
filosofia que é sua fundadora. A realização reduz a uma mera narração de fatos, mas a
de uma filosofia universal, de uma metafísica uma transcendência para introduzir-se no
é o único caminho para a humanidade sentido interno para o qual esses fatos eram
européia querer ser uma humanidade extraída orientados.
da razão filosófica. O pensador remete-se à história como
Husserl lamenta a perda de uma um leitor. Enquanto filósofo, Husserl reflete
unidade que, se por um lado, favoreceu as sobre o passado na tentativa de esclarecer o
ciências positivas no que se refere ao que ele próprio e sua filosofia pretendem.
progresso científico, por outro, perdeu seu Para ele, a recuperação do sentido da ciência
sentido para o homem e sua importância para requer um retorno à estrutura teleológica do
a ciência. mundo-da-vida.
Preocupado em fundar radicalmente A crise, na verdade, consistiu no
o saber, Husserl é conduzido a uma lógica, afastamento da ciência do mundo concreto.
num sistema de essências, projetando, sobre Uma ciência que nada tem a comunicar ao
o fundo da intuição sensível, a evidente homem sobre suas necessidades vitais.
compreensão do objeto ideal. No entanto, Em tom melancólico, intitula os
este tipo de idealismo não satisfaz Husserl filósofos “fonctionaires de l’humanité
na medida em que explica apenas as philosophique moderne” (funcionários da
condições a priori do conhecimento puro, e humanidade filosófica moderna) que têm
não as condições reais do conhecimento como missão recuperar o sentido da vida, da
concreto. cultura e da ciência européia. Para Husserl,
Em Descartes, o sujeito cartesiano é somente a filosofia proporcionará a
um absoluto, basta-se a si mesmo. É algo superação da crise ao interessar-se
que eu posso medir. É coisa. Mas o vivido é novamente pelo homem, pela sua cultura,
dado a si mesmo numa percepção imanente. pela sua sociedade e por seus sistemas de
A coisa que me é dada pela percepção está valores. Para tanto, ela precisa apartar-se
aberta a horizontes de indeterminação, a da evidência científica e aproximar-se dos
variações de percepções que se fundem na problemas pertencentes à existência
unidade de uma percepção. Enfim, a coisa humana; ou seja, do Lebenswelt.
que me é dada nunca é um absoluto pois está A fenomenologia de Husserl não
sujeita à correlação coisa e percepção da estuda apenas a aparência do ser, mas o ser
coisa. que se apresenta no fenômeno, ou seja, aquilo
No momento em que surgem as que aparece para uma consciência. Para ele,
ciências exatas, tais como a Matemática e a é voltando “às coisas mesmas” que o filósofo
Física, ocorre o rompimento entre estas e as irá ao encontro da realidade de maneira
ciências do espírito que, por sua vez, se original e plena.
sentem diminuídas por não poderem atingir Husserl considera a fenomenologia
a idealização proposta pelas ciências exatas. transcendental a verdadeira ciência posto
Enfrentando a história da crise, que, ao criticar os próprios fundamentos,
Husserl utiliza três dimensões constituintes atinge um nível de criticidade nunca antes
da temporalidade: o presente, enquanto alcançado por nenhuma outra ciência. Sua
situação de crise; o passado filosófico e o concepção é uma tentativa de resgatar o
científico, enquanto gênese do presente; e o significado original da filosofia que, na Grécia,

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determinou a sua tarefa dentro da dicotomia Em Husserl, não há fenômeno no hiato
opinião (doxa) e razão (episteme). O ser de duas consciências. O objeto não existe
humano, em sua vida pré-filosófica, possui sem percepção. E, além de perceptiva, a
conhecimentos. Para ele, torna-se infundado consciência é intencional e,
o “desprezo” que a ciência tem pela doxa já conseqüentemente, relacional, já que é
que o mundo lógico-científico a ela recorre consciência de algo. Aqui ainda, a presença
continuamente. de uma fenomenologia idealista, uma
A fenomenologia é a tentativa de “filosofia da consciência”.
resgate do contato original com o mundo A crise das ciências revelou (no
perdido em sofisticadas especulações sentido etimológico, “tirou o véu”) a crise
abstratas e/ou em reduções matemáticas e de um projeto racional de humanidade
quantificadoras da vivência do ser humano, inaugurada em Galileu e instituída por
enquanto ser cognoscente. Descartes. Ao mesmo tempo, “revelou”
Husserl distingue a atitude também a crise epistemológica da psicologia
transcendental da atitude natural visto que e a crise antropológica do continente
orienta sua reflexão apenas para uma europeu.
evidência apodítica. Na atitude natural, somos Alguns consideram o texto “La Crise
“enganados” por hipóteses que, de tão des Sciences Européennes et le
arraigadas tornam-se dogmas, verdades Phénomènologie Transcendentale” um
incontestáveis e livres de qualquer análise “testamento político” de Husserl. Talvez o
crítica. Numa perspectiva husserliana, a seja, se considerarmos que a crise das
atividade filosófica caracteriza-se pela atitude ciências européias foi a crise da Europa e
transcendental voltada para o mundo do próprio homem europeu desvinculado de
enquanto consciente. seu mundo (Lebenswelt), desenraizado!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HUSSERL, Edmund. La Crise des Sciences Européennes et le Phénomènologie Transcendentale,
Paris, Gallimard, 1976.
________________. A crise da humanidade européia e a filosofia. Trad. Urbano Zilles. 2.ed.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
LYOTARD, Jean-François. A Fenomenologia. Trad. Armindo Rodrigues. Lisboa: Edições 70,
1954.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
3.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

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