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Enxergando Deus - Parte 2

Visão Espiritual

Abrir os olhos da alma para enxergar Hashem não acontece de uma hora para
outra, mesmo quando não há mais vendas espirituais.
É como uma pessoa que esteve em um quarto escuro por muito tempo c depois sai
de casa sob a forte luz do sol.
Os olhos precisam de tempo para se adaptar e ajustar o foco.
É preciso um pouco de paciência para aprender novas maneiras de enxergar.

No inicio da década de 1970, várias experiências foram conduzidas no campo de


desenvolvimento e aprendizagem infantis.
Descobriu-se que as crianças podem aprender de maneiras completamente novas
se não estiverem submetidas aos métodos convencionais de ensino.
Por exemplo, se uma criança vai à escola e aprende adição e multiplicação, pensará
sempre de modo linear — um mais um é igual a dois, dois mais um é igual a três.
Se essa criança pegar uma folha cheia de pontos, a única maneira de concluir que
há 88 pontos na página seria contando-os um por um, ou contando as linhas
horizontais e verticais e multiplicando-as por dois.
No entanto, uma criança que nunca aprendeu a pensar de modo linear poderia
simplesmente olhar, digamos, holisticamente, a página cheia de pontos e dizer:
"88."
Esse é o tipo de abordagem necessária para ver Hashem.
Precisamos aprender uma nova maneira — ver a totalidade.
O que significa ver a "totalidade"?
O Rabino Abraham Isaac Kook, em seu clássico The Lights of Holiness ("Luzes da
Santidade") contrasta a visão espiritual com a visão não-espiritual, que ele chama
de visão secular.
A visão espiritual é um modo holístico de enxergar, segundo o qual a pessoa vê o
todo em vez de se ater a detalhes.
Foca-se na imagem toda, na totalidade.
A visão secular, como define o Ray Kook, é o oposto.
Em hebraico, a palavra ―chiloni‖ (secular) origina-se da palavra ―chol‖, que significa
"areia".
Assim como a areia é composta por grãos pequenos e separados, a visão secular é
uma maneira de ver o mundo como se fosse composto por elementos pequenos e
separados.
É como a diferença entre ver uma imagem com ou sem zoom.
Se a sua câmera faz zoom em uma das minhas sardas, essa sarda, uma parte
muito pequena de mim, vai preencher todo o visor.
Com o zoom, você pode ver uma sarda e pensar que é uma mancha enorme.
Já a imagem diminuída, sem zoom, mostra todo o rosto, todo o corpo.
Com a perspectiva mais abrangente, quase não se nota a sarda; ela é apenas um
ponto de pigmentação que faz parte do universo de bilhões de células do meu
corpo.
Quanto maior seu campo de visão, mais Hashem você verá em sua vida.
Mas, se seu campo de visão é limitado, Hashem estará menos visível.
A maneira ideal de enxergar, a suprema visão espiritual, se dá através do campo
de visão mais abrangente possível — tudo ao mesmo tempo.
Infelizmente, não conseguiremos isso enquanto estivermos presos às limitações
desta dimensão.
Então, tentaremos enxergar o máximo possível da totalidade em vez de seus
fragmentos ou detalhes.
Quero deixar claro que não estou sugerindo, de forma alguma, que detalhes não
sejam importantes.
Eles são muito importantes.
Uma vez que nos tornamos sensíveis para ver a totalidade, os detalhes se
intensificam.
Passamos a enxergar os detalhes dentro do contexto de toda a realidade.
E a realidade toda é Hashem.
Quanto maior seu campo de visão, mais sua mente se abre e melhor você enxerga
a realidade.
Você consegue ver e receber Hashem em sua vida à medida que enxerga mais da
realidade.
Esse é um princípio muito importante.
Segundo a Cabala, o que se vê é o que se consegue.
Em outras palavras, quanto mais ciente da totalidade, mais totalidade vai entrar
em sua vida.
Se você não vê ou reconhece isso, nada vai acontecer.

Como enxergar a totalidade


Um dia eu estava indo para o centro de Jerusalém, seguindo o meu caminho
habitual, a Jaffa Road, e percebi que ando olhando para baixo.
Pensei: "Por que não olho para cima?"
Foi o que fiz.
Vi uma Jaffa Road nova e completamente diferente.
Eu pensava que naquela rua só havia lojas e troncos de árvore.
Não sabia das palmeiras com suas folhagens cortando o céu, pássaros voando e
cantando docemente, floreiras coloridas nos parapeitos das janelas, detalhes de
arquitetura dos prédios altos — janelas arqueadas, terraços decorados com
trabalhos em ferro ornamental, emblemas esculpidos em pedra.
De repente, vi um mundo novo só porque olhei para cima e expandi meu campo de
visão por um momento.
O mundo que você vê depende dos limites da sua visão.
Pare um pouco e olhe à sua volta.
Em vez de focar em alguma coisa específica, tente ver todo o lugar: o teto, o chão,
os cantos, as quatro paredes.
Viu um lugar diferente?
Se você pudesse transferir essa visão ampla para tudo o que vê e faz, estaria
vivendo num mundo diferente.
E esse mundo pode lhe dar um gostinho do que o Jardim do Éden deve ter sido.
O primeiro homem e a primeira mulher estavam no Jardim do Éden porque podiam
enxergar a totalidade.
Eles nutriam um sentimento de unidade com relação a Hashem e à Criação.
Mas quando comeram da Árvore do Conhecimento, perderam a amplitude da visão
espiritual.
Como resultado desse enfraquecimento, a perspectiva se tornou tão distorcida que
eles podiam ver apenas uma porção da realidade, que eles percebiam como o
mundo físico.
De fato, como resultado dessa mudança de perspectiva, eles até se reconheceram
como seres materiais.
O Midrash, tradição oral judaica, conta que, no Jardim do Éden, Adão e Eva não
eram feitos de pele; eles tinham corpos de "luz".
O Midrash também traz que tudo no Jardim do Éden tinha essa mesma
característica: "Não havia sombras no Jardim do Éden."
Em outras palavras, nada era opaco, pesado, escuro ou sólido — como
experimentamos hoje tudo o que é matéria.
Havia luminescência em tudo.
Era como Adão e Eva viam e viviam o mundo.
Seus corpos, as árvores, os animais, os pássaros, todos eram translúcidos, de
modo que através da árvore se via o pássaro e o pássaro parecia estar dentro da
árvore, e através do pássaro o elefante, de modo que o elefante parecia fazer parte
do pássaro e da árvore, e através do elefante o cavalo.., e um homem, uma
mulher, peixes, água e o céu.
Nada escurecia ou ocultava nenhuma outra coisa, e tudo parecia fazer parte do
mesmo todo.
Depois que Adão e Eva comeram da árvore proibida — quando tomaram
conhecimento do bem e do mal —, sentiram-se pesados e opacos.
Perceberam que tinham corpos de carne, e sentiram-se como em um saco de pele
que criava um limite entre eles e o resto da Criação.
Quando Adão e Eva sentiam seus corpos de luz, não havia senso de separação
entre eles e o resto da realidade.
A definição de suas existências estava atrelada à totalidade.
Eles não sabiam que podia ser diferente.
Foi a serpente que afirmou que podia ser diferente — podia ser melhor.
A famosa história inventada pela serpente é algo assim: "Ei, Eva, coma um
pedaço... Hashem não quer que você coma desta árvore especial porque teme que,
se você comer, vai se tornar igual a Ele."
Então a serpente passou à melhor parte: "Você sabe por que Ele está fazendo isso,
não sabe? Ele quer ser o único ser independente e poderoso; o único deus — não
quer competição. Por isso, Ele a mantém abaixo, subordinada, inferior. Mas se você
comer desta árvore, verá as coisas de uma maneira totalmente nova."
Essa foi a mentira da serpente — definir Hashern e a humanidade como entidades
separadas e conflitantes.
Quando Eva, e depois Adão, caíram nessa mentira, nessa ilusão de separação e
independência, começaram a sentir exatamente isso.
Cuidado com o que você deseja; o pedido pode se tornar realidade — diz o ditado.
Foi o que aconteceu com Adão e Eva.
Eles passaram a sentir o corpo como físico — opaco, sólido e pesado.
O corpo físico do ser humano nasceu do engano dos primeiros seres humanos, que
acreditaram que seria melhor se fossem separados e independentes do resto da
Criação.

Filhos da mentira
Somos filhos de Adão e Eva, e nos sentimos isolados, independentes e separados
de toda a realidade na qual realmente encontramos nosso ser.
Essa experiência solitária é a mentira da serpente, fonte de muita dor e maldade
neste mundo.
A Cabalá denomina a força do mal como ―sitra achra‖, que significa ―o outro lado",
e sua mensagem principal é que Hashem e nós estamos em lados opostos.
Mas quando reconhecemos que essa poderosa ilusão é falsa, vemos que Hashem
está sempre e somente do nosso lado.
Não há dois lados, apenas unidade e totalidade.
O mundo material parece denso e opaco porque vemos a realidade sob uma
perspectiva muito limitada.
Enxergamos apenas uma parte da figura total, um fragmento da realidade, fora do
contexto da Realidade Suprema que é Hashem.
O que vemos todo dia são detalhes fora de contexto, que pensamos ser todo o
conjunto.
Por causa da limitação da nossa visão, tudo parece duro, sólido — cada objeto
distinto, separado, desconexo.
De acordo com os físicos, essa percepção não é nem um pouco correta.
Nosso mundo é, na verdade, composto por energia.
Até mesmo as coisas que parecem ser totalmente sólidas, como as pedras, são
colméias fervilhantes de prótons e elétrons que apenas parecem estáveis por causa
de sua densidade.
Ainda mais fascinante é que a pedra e o pássaro são formados pelos mesmos
elementos, em combinações diferentes.
Se pudéssemos ver com olhos superbiônicos, veríamos a dança da energia dentro
de cada elemento da Criação.
Talvez Vincent Van Gogh tenha captado um pouco desse conceito quando pintou o
quadro Noite Estrelada; suas estrelas não são pontos de luz no céu, mas
redemoinhos de energia.
E como o telescópio Hubble demonstrou, isso é o que as estrelas realmente são.
No entanto, quase sempre a nossa visão limitada nos impede de ver a dança de
energia e a união que permeia tudo.
Parece que existimos em um mundo diferente da verdadeira realidade.
O que cria essa ilusão?
Segundo a Cabala, é a nossa atitude de separação que cria para nós mesmos um
mundo de ―clipót‖, termo hebraico que significa "cascas duras".
Ficamos envolvidos em "cascas duras" que nos separam de Hashem.
O que vou dizer pode causar espanto, mas a Cabala ensina que, no futuro, vamos
perceber que estávamos no Jardim do Éden o tempo todo.
Parece que abandonamos o paraíso porque fechamos os olhos da alma para ele.
É como se tivéssemos entrado em uma caverna escura, dura e fria, pensando que
essa "casca dura" nos protegeria.
Apenas escolhemos viver no mundo das fronteiras "duras", em vez de no mundo da
unidade.
Ao limitarmos a visão, entramos em uma espécie de "prisão da percepção".
Apesar de não sentir a verdadeira realidade, continuamos a existir na Realidade
Suprema.

Mente aberta, mente pequena


Você já viu uma foto de jornal ampliada várias vezes?
A foto parece ser feita de pontos separados e desconexos, e se a ampliação for
exagerada, pode-se perder a capacidade de se ver a foto, porque os pontos passam
a preencher todo o campo de visão.
Olhar os pontos e não a foto inteira é um tipo de miopia que a Cabala chama de
―mochin di catnut‖ ("mente pequena").
Quando você está em estado de ―mochin di catnut‖, o mundo em que vive é um
fino pedaço da realidade e tudo é fragmentado e desconectado.
Concentra-se nos pontos, e não na foto.
Mas há outro modo de enxergar chamado ―mochin di gadlut‖ ("mente aberta").
Uma "mente aberta" tem a visão mais ampla e enxerga a foto inteira.
O ―mochin di gadlut‖ máximo é olhar a vida, o mundo e a história sob a perspectiva
mais ampla possível.
Assim podemos entender tudo de modo completo e unido.
Há uma história divertida sobre um homem jurássico que visita uma loja de roupas
em Nova York.
Ele vê um alfaiate desenrolando uma linda peça de tecido e cortando-a em
pedaços.
"Essas pessoas modernas são malucas. Destruir um pano tão bonito desse jeito",
ele diz a si mesmo.
Alguns dias depois, ele vai ao mesmo lugar e vê um cliente vestindo um terno feito
daquele pedaço de tecido.
O tecido não foi destruído; está melhor ainda, porque passou a ser uma peça de
roupa bonita, útil e completa.
Esta é a diferença entre mente pequena e mente aberta.
A mente pequena vê destruição, pedaços cortados; a mente aberta vê uma linda
peça de roupa sendo feita.
Quanto maior e mais aberta a mente, mais realidade vemos e mais Hashem
podemos ver.
E quanto mais podemos ver Hashem, mais Hashem permeia nosso mundo e nossas
vidas.
Vemos o detalhe da vida — até mais detalhes do que costumamos perceber —, mas
os vemos claramente interligados e unidos em um contexto.
Então, cada detalhe da realidade se torna importante.
Os detalhes por si sós não são importantes.
Mas quando os percebemos dentro de um contexto maior, cada detalhe se
intensifica por causa de sua relação com o contexto.
E é aí que começamos a ver um pouco de Hashem — a Totalidade no Todo.
Diz um ditado que Deus está nos detalhes, mas isso só é verdade se vemos os
detalhes em Deus.

Olhos de admiração
Já estabelecemos que, para ver Hashem, temos de aprender a ver a totalidade.
Discutimos o que "totalidade" quer dizer, mas ainda não falamos sobre como isso
pode acontecer.
Para enxergar a totalidade é preciso olhos de admiração.
Olhos de admiração são olhos de inocência, olhos não cansados e obscurecidos por
preconceitos e ideias que não têm nada a ver com a realidade do que existe.
Muitos adultos se esqueceram do estado de consciência chamado admiração.
Temos que reaprendê-lo com os ingênuos — bebês, crianças, nossos filhos — antes
que eles também sejam contaminados pelos conceitos antropomórficos dos adultos.
Enquanto ainda são inocentes, as crianças podem nos ensinar a ver Hashem.
Elas veem Hashem mais do que nós.
Diz-se que, antigamente, os profetas tinham que ser "adultos-crianças".
O profeta era um adulto que se desenvolveu intelectualmente, mas não perdeu a
sensibilidade, a surpresa e o encantamento que as crianças experimentam
constantemente.
Divirto-me bastante assistindo a meus filhos olharem o mundo.
Meu bebê olha cada objeto como se nunca o tivesse visto antes.
E fica tão maravilhado...
Ele pode olhar as próprias mãos, por muito tempo, como se fossem a coisa mais
fascinante.
E apenas ri.
O que é que as crianças veem?
Certa vez eu estava caminhando pela rua com o meu filho de dois anos.
Ele olhou para cima e viu algo voando no céu.
Ele estava aprendendo a falar, então disse em seu hebraico ainda limitado:
"Aba, ze", que significa "papai, isso".
Olhei para cima e disse: "Ah, é um pássaro."
Meu filho repetiu: "Pássaro."
Senti-me ótimo; sou um adulto ensinando uma criança a ver o mundo e a dizer a
palavra "pássaro".
Então, outro pássaro passou voando.
Meu filho disse: "Aba, ze."
Respondi: "Aquilo também é um pássaro."
Eu podia ver nos olhos dele a confusão.
Como os dois podem ser pássaros?
São tão diferentes...
Veja o que aconteceu — estamos acostumados a viver a realidade rotulando tudo.
Paramos de ver essa criatura maravilhosa e única; apenas lhe damos um rótulo —
"pássaro".
Fazemos rotulagens existenciais.
Não nos importa o que diz o documento, só queremos saber onde arquivá-lo.
Aquela criatura vai na ficha "pássaro".
Pronto.
Não enxergamos mais o indescritível "isso".
Segundo a Cabala, em alguns pontos da Torá o termo "aquilo" alude a Hashem.
O objetivo é enxergar "Aquilo" sem rótulos, sem Preconceitos.
Rótulos não permitem que vivenciemos a realidade diretamente; eles apagam
nossa visão e não nos deixam ver Hashem.
Temos de nos treinar para ver aquilo que é sem defini-lo ou compará-lo a qualquer
outra coisa.
As crianças têm essa capacidade.
Elas enxergam tudo de modo puro e único.
Inventamos tantos rótulos e definições que pensamos conhecer tudo o que
encontramos.
Mas são as crianças que sabem das coisas.
Elas sabem que não sabem o que é.
E essa abertura permite que realmente vejam o que estão olhando.
Muitas vezes as crianças veem algo e ficam cheias de admiração.
O que significa encher-se de admiração?
É algo como ver fogos de artifício.
Quando vemos, dizemos "ohhhhhhhh", "ahhhhhhhh".
O fascínio é tanto que ficamos sem palavras. Admiração é quando você vê uma
cachoeira, um arco-íris, um mar revolto ou um bebê recém-nascido e fica
completamente dominado por sentimentos de reverência e espanto, ou quando fica
tão maravilhado com a magnificência e inspiração de Hashem que só consegue
dizer "ahhhh".
Esse é o início de se ver Hashem.
É o princípio da visão da realidade, do que é real, e não do mundo através dos
filtros de interpretações e categorizações.
Esse é o começo para se ver a totalidade com olhos de admiração.
Foi aí que Adão e Eva se enganaram.
Ao comer da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, eles adquiriram um
conjunto de definições e rótulos que rompeu a visão da totalidade em pedaços
separados.
Isso não significa que Hashem não queria que eles adquirissem conhecimentos —
não é por isso que a árvore era proibida —, Hashem queria que eles vissem a
totalidade primeiro com olhos de admiração.
Eles viam a totalidade, mas não sabiam que um dia poderiam deixar de vê-la.
Não se admiravam diante dela; ainda não viam nela a maravilha que precisavam
vivenciar.
Adão e Eva estragaram o plano ao comer da árvore.
Nunca aproveitaram para ver a totalidade com olhos de admiração sem a
interferência de conhecimento, palavras e ideias.
A Cabalá explica que Hashem tinha toda a intenção de dar aos primeiros seres
humanos a oportunidade de comer da árvore.
Mas não antes da admiração.

O conhecimento como obstáculo


Primeiro temos de ver o mundo sem conhecimento, sem expectativas, sem a
exigência de que ele se encaixe em nossas ideias e percepções.
Apenas olhe.
Uma vez que já olhamos o mundo, o conhecimento será uma ferramenta útil,
apesar de limitada, para comunicar o que vimos.
Mas nunca deixe que o conhecimento interfira no que você compreendeu antes dos
rótulos e das categorias.
O Talmud recomenda que, antes de rezar, devemos sentar em silêncio e meditar
um pouco.
Isso porque, se procuramos conhecer Hashem em silêncio, sem palavras e sem
conceitos, poderemos nos dirigir a Ele com sinceridade e honestidade, sem
confundir nossas palavras com Sua verdade, que vai além das palavras.
Você pode estar se perguntando: "O que há de tão errado com as palavras?"
Afinal, o mundo foi criado por meio de palavras.
A lei de Deus — a Torá — é composta de palavras.
Temos o mandamento de pronunciar certas palavras — bênçãos — antes de vários
atos simples, como comer e beber.
As palavras santificam as ações.
Para entender quando as palavras são úteis e quando atrapalham, precisamos
analisar as três palavras em hebraico traduzidas para o português como "palavra" –
―milá‖, ―teva‖ e ―davar‖.
Se entendermos suas definições, compreenderemos a posição do Talmud com
relação às palavras e à linguagem em geral.
A palavra milá, por exemplo, também se refere ao ritual de circuncisão, o berit mila
— milá significa, literalmente, "corte".
É um termo adequado a circuncisões, mas por que também significa "palavra"?
Porque as palavras podem cortar a realidade em pedaços.
Esse é o problema.
Não posso ver a realidade através das palavras porque elas a fragmentam.
Não vejo mais a totalidade, mas somente meus pedaços cuidadosamente rotulados.
A segunda palavra, teva, significa literalmente "caixa".
Este é outro aspecto negativo das palavras — elas põem a realidade "em caixas".
As palavras "pegam" toda a realidade — Hashem —, cortam-na em pedaços e os
classificam: árvore, nuvem, pássaro, céu, oceano e assim por diante.
A terceira palavra, davar, significa "coisa".
Ela sugere que as palavras podem transformar a realidade em várias coisas
distintas.
O Rei David, que de maneira tão bela usou palavras para compor seus salmos,
também escreveu: "O silêncio é Seu louvor."
Ele quis dizer que estava errado ao usar palavras para glorificar Hashem?
Acho que não.
Mas o Rei David sabia que só a pessoa que vê Hashem antes de falar pode
pronunciar palavras de louvor sem que isso interfira em sua visão.
Mas, infelizmente, palavras e conceitos bloqueiam uma visão completa.
Talvez seja por isso que, durante os dois primeiros anos de vida, a criança vive o
mundo sem entender palavras e sem a habilidade de falar.
A infância é a época do encantamento.
Adão e Eva tiveram que passar um tempo em estado de admiração antes de
começarem a usar o conhecimento para definir, avaliar e esclarecer.
As palavras são importantes, mas se as usamos como substitutas do sentimento de
admiração, ou se nos são introduzidas muito cedo, perdemos nosso encontro direto
com a realidade
Temos de dar um tempo para que o lado direito do cérebro — fonte de intuição e
sentimentos — se desenvolva antes de começarmos a "usar" o lado esquerdo —
que formula, articula e verbaliza.
O silêncio é um pré-requisito necessário para enxergar e louvar Hashem.

O silêncio vale ouro


O Talmud ensina que "o silêncio é a cerca de proteção da sabedoria".
Para resguardar nossa verdadeira sabedoria, precisamos entrar em contato com
nosso conhecimento interior antes de tentar traduzi-lo em palavras limitadas.
O Midrash conta que, quando o bebê ainda está no útero, um anjo lhe ensina toda
sabedoria.
Mas logo antes do nascimento, o anjo o toca acima dos lábios — causando a fenda
entre a boca e o nariz —, e o bebê esquece tudo o que aprendeu.
Qual a mensagem por trás desse estranho ato do anjo?
Para trazer esquecimento, não faria mais sentido tocar a cabeça, e não a boca, do
bebe?
Quando chegamos a esse mundo com o desejo de falar, esquecemos a essência do
que realmente sabemos, que vem antes e vai além das palavras.
A essência da verdade não pode ser traduzida em palavras.
Há um nível de sabedoria que transcende as palavras.
Os bebês conseguem ver totalidade em tudo, mas quando "nascem para o mundo",
com a necessidade de colocar em palavras tudo o que veem, fragmentam essa
visão.
O maior obstáculo para enxergar Hashem com olhos de admiração é a convicção de
termos de rotular e categorizar tudo o que vemos.
Quando confiamos em suposições e projetamos para a realidade nossos rótulos e
conceitos, jogamos fora toda possibilidade de vivenciar a realidade, de ver Hashem.
Vemos o que nos programamos para ver em vez de enxergar a realidade como ela
é.
E fazemos isso com a certeza de que nossas interpretações são a realidade.
Aprendi essa lição quando decidi ter minha grafia analisada.
Estava sentado no escritório do grafologista, preenchendo a ficha que pedia o
desenho de uma árvore em uma página.
Havia outras pessoas preenchendo fichas e desenhando árvores.
Não pude evitar e dei uma olhada nas fichas dos outros.
O homem ao meu lado desenhava uma árvore enorme no meio da página, mas o
homem ao lado dele desenhava uma árvore pequena no canto do papel.
O homem da árvore grande olhou para o lado e viu o que o homem da árvore
pequena estava fazendo.
Pude perceber que o homem da árvore grande estava morrendo de vontade de
dizer alguma coisa, mas hesitou.
Finalmente, ele deu um tapinha no ombro do homem da árvore pequena e disse,
muito educadamente: ‗você não está preenchendo a ficha corretamente.'
O homem da árvore pequena perguntou: "Ah fazendo errado?"
O homem da árvore grande respondeu: "Sua árvore."
"Mas a ficha pede o desenho de uma árvore."
"Certo. Mas você está vendo aqui? 'Desenhe uma árvore nesta página.' Isso quer
dizer a página inteira e não só o canto. Além do mais, isto não é uma árvore, mas,
sim, um arbusto. Você tem de desenhar uma árvore igual à minha."
Então o homem da árvore pequena olhou o desenho da árvore grande e disse um
"aah" de entendimento.
Ele apagou sua pequena árvore e começou a desenhar uma árvore grande no meio
da página.
A ficha só pedia para desenharmos uma árvore.
Mas o homem da árvore grande logo entendeu que tinha de usar a página toda.
Ele achou que sua interpretação era a única correta, em vez de apenas uma
interpretação da realidade.
Suposições são o maior obstáculo para se ver a realidade.
Estamos presos às nossas interpretações e achamos que a realidade é somente
aquilo que enxergamos.
Em vez de ver a totalidade, a diminuímos ao nosso nível.
Enxergamos um pequeno pedaço da totalidade e não conseguimos ver o que a
realidade é de verdade — tudo.
Betty Edwards, autora do livro Desenhando com o lado direito do cérebro, era uma
professora de artes que não entendia por que seus alunos tinham certa dificuldade
para copiar figuras.
Um dia ela teve uma intuição e pediu que eles virassem de cabeça para baixo a
figura que estavam copiando.
Os resultados foram de uma exatidão surpreendente.
Em um primeiro momento, ela não entendia por que os alunos tinham dificuldade
para copiar a árvore com o topo para cima, sendo que com o topo para baixo eles a
desenhavam com exatidão.
Então ela formulou a teoria que explica em seu livro.
O livro explica que, quando olhamos uma figura, o lado esquerdo do cérebro, que é
bastante verbal, a identifica — por exemplo, uma árvore.
Então começamos a desenhar uma árvore.
Mas não desenhamos a árvore que está na figura, porque não podemos mais ver
aquela figura.
O lado esquerdo do cérebro substituiu o desenho real por uma imagem "de
arquivo", a imagem previamente formulada e concebida de uma árvore.
E é essa imagem que tentamos copiar, e não aquela que está diante de nossos
olhos.
Mas quando enganamos o lado esquerdo — virando a figura de ponta-cabeça para
que ele não categorize imediatamente o que vê — ficamos livres para ver o que
realmente está desenhado ali.
Quando o lado esquerdo do cérebro não encontra uma palavra para o que vê, não
pode lançar uma imagem à mente.
Então, o lado direito do cérebro, que é holístico e experimental, fica livre para ter
um encontro direto com a figura e para desenhá-la como ela é.
Essa é uma visão incrível.
A teoria da Betty Edwards nos ajuda a entender o que significa ver a realidade, e
não a nossa imagem da realidade.
Enquanto tivermos um sistema inteiro de conceitos em arquivos, viveremos dentro
de nossos conceitos em vez de vivermos na realidade.
Quando eu estava no colegial, fui com alguns amigos a um bar da moda que tinha
música popular ao vivo, no bairro de downtown, em Toronto.
Lá estávamos, sentados à mesa, tentando decidir o que pedir.
A garçonete chegou e eu ainda estava distraído olhando o menu.
Quando olhei para cima para pedir, exclamei: "Senhora Hobbs!"
Não podia acreditar — era a senhora Hobbs, minha professora de matemática.
Eu a tinha visto naquele mesmo dia na escola, na aula de matemática.
O choque de tê-la visto naquele contexto totalmente diferente me deixou
atordoado.
Incrédulo, perguntei: "O que a senhora está fazendo aqui?"
"Sou garçonete", ela respondeu naturalmente.
"Como assim garçonete? A senhora não pode ser garçonete; é professora de
matemática!", gaguejei.
"Na verdade, não só sou garçonete como sou dona deste bar."
"O quê?" Eu estava perplexo. "Por que a senhora dá aulas de matemática?"
"Porque gosto."
Aquilo era muito para minha cabeça.
A senhora Hobbs era professora de matemática.
Para mim, ela não existia fora da sala de aula.
Mas descobri que ela e sua família são donos de um bar; que ela é garçonete — e
não apenas isso.
Também é filha, esposa, mãe, tia, amiga e várias outras coisas.
Mas na verdade ela não é nada disso.
Não é filha, mãe ou professora de matemática.
Ela é uma expressão única da realidade, criada à imagem de Hashem.
Mas estou preso em meus arquivos e fichários.
Meus rótulos se tornaram vendas que me impedem de ver o que é real.

Ver o que realmente é


O maior obstáculo para ver Hashem são nossos fichários com etiquetas e
preconceitos.
Com eles, parece que estamos no controle da situação.
Quando alguma coisa acontece, sabemos na hora onde arquivá-la.
Quando dizemos que entendemos algo, quer dizer que sabemos em que pasta
colocá-lo.
Mas o verdadeiro entendimento é saber que há coisas além da nossa compreensão.
Só então começamos a descobrir o incompreensível, a descobrir Hashem.
Isso me ocorreu no nascimento do meu primeiro filho.
Minha esposa Chana e eu fizemos todos os cursos preparatórios e lemos todos os
livros que podíamos.
Mas quando aquele bebê veio ao mundo, eu estava literalmente em choque.
Fui pego de surpresa mesmo depois de todo o conhecimento que havia acumulado.
Estava claro para mim que até mesmo ver não é crer.
Somente naquele momento descobri que Hashem só se torna "acreditável" quando
a vida se torna inacreditável.
Certa vez meu filho Anani me perguntou como é possível ser dia para nós em Israel
e noite para o vovô e a vovó no Canadá.
Peguei uma bola de tênis e uma de basquete para demonstrar como a Terra (a bola
de tênis) gira em torno do próprio eixo e também gira em torno do sol (a bola de
basquete).
Enquanto explico essa simples ideia, muito satisfeito por compartilhar esse
conhecimento, percebo o olhar incrédulo do meu filho.
De repente percebi como meu filho via tudo isso com olhos de admiração.
Entendi como fui arrogante ao pensar que poderia explicar o movimento do
universo.
A expressão no rosto do meu filho comunicou como aquilo tudo era inacreditável.
Não é tão simples — a bola de tênis gira em torno da bola de basquete — é
inacreditavelmente misterioso e complexo.
Pense bem: a Terra é uma massa de cerca de 6 mil quatrilhões de toneladas, com
uma área de superfície de aproximadamente 315 milhões de quilômetros
quadrados, coberta por gases e com um núcleo de líquido extremamente quente.
Ela está a cerca de 150 milhões de quilômetros do sol — uma estrela, um corpo
luminoso de reações nucleares explosivas que tem em média 1 milhão e 400 mil
quilômetros de diâmetro.
Esses dois gigantes estão girando no espaço em ordem e ritmo exatos, fenômenos
que mal começamos a entender.
Quando compreendi isso, naquele momento, percebi um pouco de Hashem.
Se não fosse pela cara de espanto do meu filho, eu continuaria a pensar que o sol e
a Terra são duas bolas no espaço — um modelo que vi em uma aula de ciências.
Eu carregaria uma imagem que está tão longe de ser realidade quanto a Terra está
distante do sol.

O inesperado
Um dos obstáculos para ver a realidade é a resistência ao novo e ao inesperado, às
inovações que não cabem em nossos velhos e estimados conceitos.
Não sabemos como olhar as coisas com novos olhos de admiração
Há uma maravilhosa parábola sobre uma pomba que ilustra o perigo de forçar tudo
o que é novo em nossos velhos conceitos.
Conta-se que, originalmente, as pombas não tinham asas.
Era uma vez uma pobre pomba, sempre perseguida por um leão.
Todos os dias o leão corria atrás da pomba e ela escapava por um triz.
Um dia, a pomba rezou para Hashem: "Hashem, sou uma pequena pomba. Não
posso escapar desse leão todo dia. Um dia ele vai conseguir me pegar. Preciso de
ajuda. Por favor, Hashem, me ajude."
Hashem respondeu às preces da pombinha.
Ela acordou na manhã seguinte e descobriu que tinha ganhado asas.
"Uau! Olha só isso! Maravilha!"
Com as asas ela escaparia do leão, e já se sentia segura e confiante.
Assim que viu o leão, gritou: "Ei, estou aqui! Há, há, há, estou aqui!"
Ali estava a pomba, imponente, planejando esperar o leão chegar bem perto para
lhe mostrar o que podia fazer agora que tinha asas.
O leão correu até a pomba e, quando estava a centímetros de distância, ela
começou a correr também.
Mas algo estranho aconteceu.
A pomba tropeçou nas asas.
Em vez de ajudar a correr mais rápido, as asas só atrapalhavam.
O leão já estava sobre a pomba, e antes que ela conseguisse se levantar.., bem, é
uma história triste.
Quando a pomba chegou ao céu dos pássaros, reclamou:
"Hashem, sou uma pombinha. O leão me perseguia. Rezei para que me ajudasse e
o Senhor me deu asas. Mas em vez de as asas me ajudarem a correr mais rápido,
elas prejudicaram minha velocidade."
Hashem respondeu: "Tola. Não lhe dei asas para correr, mas, sim, para voar."
A pomba estava muito presa à sua perspectiva e não viu que as asas poderiam ter
aberto as portas de uma experiência completamente nova.
Ela esperava apenas correr mais rápido.
Temos que estar dispostos a ver as coisas de uma maneira totalmente nova.
Assim são os gênios.
Eles não se prendem a clichês mentais de outras pessoas ou a noções de mundo
convencionais.
O gênio diz: "Quero ver como nunca vi antes."
Ele questiona as maneiras tradicionais de se entender as coisas, Quem disse que o
mundo é plano? Quem disse que o tempo é absoluto?
Muitas descobertas científicas acontecem assim.
O cientista lenta provar sua teoria e conduz experimentos.
Mas muitas vezes os resultados indicam algo totalmente inesperado.
Nessa hora, muitos cientistas jogam fora o experimento em vez de suas
convicções.
Mas os verdadeiramente grandes, os gênios, reformulam seus conceitos de
realidade de acordo com os dados.
É assim que todas as grandes mudanças de paradigma acontecem na história da
ciência.
Essa foi a genialidade de Abrahão.
Para o pensamento de sua época, quando era aceitável, até óbvio, que ídolos
significavam alguma coisa, ele era uma pessoa mal-ajustada.
Mas enxergou diferente.
Imagine sua coragem.
Afinal, ele era filho de um fabricante de estátuas e tinha interesse em ver o mundo
sob a visão de seu pai e da sociedade; mais ainda: ele herdaria o negócio da
família.
No entanto, enquanto todos viam e adoravam multiplicidade, Abrahão olhava a
realidade com olhos de admiração, e concluiu que há uma única fonte invisível e
incorpórea que cria, sustenta e abarca tudo.
Era um gênio espiritual.
Ele descobriu a primeira Teoria do Campo Unificado e a chamou de Hashem.
Para enxergar Hashem, você tem que expulsar da sua mente — assim como
Abrahão — a ideia de Hashem contemplada pela sociedade.
Não é demais repetir: Esqueça Deus.
Deus foi monopolizado pelo lado esquerdo do cérebro e tem impedido o lado direito
de ver o frescor do momento, o que nunca viu antes.
Temos de olhar para uma mão, uma árvore, um pássaro e perceber: "Não sei o que
é isso que chamo de árvore. Mas agora que vejo pela primeira vez, não sei o que é.
É simplesmente inacreditável. Tudo que posso dizer é `aah'."
Adaptar-nos à realidade pode ser assustador, porque requer a coragem de
enfrentar algo muito maior que nós mesmos e deixar que isso nos torne diferentes.
É preciso humildade e rendição.
Muitas pessoas têm medo de fazer qualquer mudança mais significativa: "Ah, estou
tão cansada da minha rotina. Quero uma mudança."
Elas querem uma mudança, mas não querem mudar.
Mudança e crescimento são os propósitos da Cabala.
Ela nos dá um novo ponto de referência para que, cada vez mais, possamos ver a
realidade, ver Hashem em nossas vidas.
O conjunto das sefirot nos dá o poder de reestruturar a consciência da maneira
mais ampla e livre.
A palavra hebraica sefirót (plural de sefira) é traduzida vagamente como
"características", porque descreve as várias características ou manifestações de
Hashem que podemos observar no mundo.
Nos próximos textos, vamos analisar as sefirót.

Exercícios para enxergar melhor


• Abra os olhos o máximo que conseguir.
Olhe cada direção por dez segundos.
Agora tente olhar todo o lugar de uma só vez.
• Hoje, quando sair de casa, tente ver algo que nunca tenha notado antes, como
uma árvore, uma flor ou um detalhe arquitetônico de um prédio.
• Pratique aumentar seu campo de visão.
Olhe para frente e, ao mesmo tempo, tente captar o que acontece à sua volta com
o canto dos olhos.
Aprecie o milagre de enxergar.
• Escolha qualquer coisa — seus dedos, o botão da camisa, uma formiga — e a olhe
com uma nova visão.
• Desenhe com o lado direito do cérebro.
Escolha uma figura, vire-a de ponta-cabeça e tente copiá-la.
• Você já viu um professor ou um chefe em um lugar inesperado?
Feche os olhos e lembre o momento de surpresa.

Continua

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