Você está na página 1de 953

UNIVERSIDADE DE CHICAGO

A caminhada de Tanyxiwè:
Uma teoria Javaé da História

Tese apresentada ao
Departamento de Antropologia
da Divisão de Ciências Sociais
para obtenção do título de
Doutor em Filosofia (PhD)

por
Patrícia de Mendonça Rodrigues

Orientador: Professor Terence Turner

Chicago, Illinois
Agosto de 2008
Para os meus três amores nesta caminhada, de quem recebi tanto.
Meus pais, que me deram a vida e me levaram ao Araguaia.
Fernando, que me trouxe à vida novamente.
Os Javaé, que me mostraram o sentido da vida.
Vou descendo o Araguaia
Na barca da minha vida
Navegando em meu destino
Por esta terra querida

Renato Teixeira
Guardiões das Florestas
Sumário

Índice de Tabelas vii


Índice de Mapas viii
Índice de Desenhos ix
Índice de Diagramas x
Índice de Fotografias xi
Siglas xii
Nota sobre a grafia das palavras indígenas e sobre as traduções xiv
Agradecimentos xv
Resumo xix

1. Um preâmbulo teórico

1.1. Uma perspectiva histórica 1


1.2. A antropologia histórica e a etnologia indígena sul-americana 10
1.3. O objeto da pesquisa: o corpus mítico e o corpo social 18
1.4. Os Javaé na literatura etnográfica 27
1.5. A pesquisa de campo 34

Parte I (O Começo)

2. O fluxo criativo original: a criação do mundo

2.1. A conquista do sol: Tanyxiwè e o povo Kuratanikèhè 47


2.2. Tòlòra e os povos que ascenderam ao mundo iluminado 66
2.3. Os Wèrè guerreiros e a mistura de tradições em Marani Hãwa 79
2.4. A supremacia do pacifismo de Tòlòra sobre o belicismo dos Wèrè 89

iv
3. Quem são os Javaé?

3.1. A parte e o todo, uma mistura pura 99


3.2. A invasão anunciada 108
3.3. As aldeias do Século 20 138
3.4. Reagindo às transformações 171
3.4.1. A retomada do território 171
3.4.2. Terra Indígena e meio ambiente 178
3.4.3. Os Karajá e os Javaé 187
3.4.4. O novo contexto histórico 192
3.5. A hipótese Arawak 199
3.5.1. O mito como consciência histórica 199
3.5.2. Regionalismo e espaço 208
3.5.3. Pacifismo ideológico 212
3.5.4. Hierarquia e sedentarismo 218
3.6. Nem Arawak nem Macro-Jê, nem fora nem dentro: “entre” 228

4. O Povo do Meio: vivendo no centro do mundo

4.1. O Território da Totalidade (Butu Hãwa) 245


4.2. Os habitantes do Fundo das Águas (Berahatxi mahãdu) 273
4.2.1. Os aruanãs e os aõni 273
4.2.2. Os worosy 295
4.3. Os habitantes do Céu (Biu Wètyky mahãdu) 312
4.4. Antes e depois do sexo 335

5. Tudo tem corpo

5.1. A imanência das relações físicas e sociais 341


5.2. Corpos em fluxo: a fusão produz a diferença 351
5.3. A santa trindade cósmica no espaço 369
5.4. A “realidade-corpo” 386
5.5. Dentro da carne 396
5.6. A substância das representações 407
5.7. Até os espíritos são corpos 416

6. O meio como o lugar da História

6.1.Uma teoria do poder 425


6.2. Transformando dor em arte 442
6.3. Toda criação é um tipo de procriação 468
6.4. A unidade da ação: coação feminina e reação masculina 475

v
Parte II (O Meio)

7. Rio acima, entre o nascimento e a procriação (continuidade)

7.1. A historicidade da estrutura: primogenitura e exogamia 499


7.2. O anti-parentesco: de corpo aberto 509
7.3. O parentesco xiburè: de corpo fechado 525
7.4. A espacialização da socialidade 547
7.5. O tio materno e as metades cerimoniais 561
7.6. O delator mítico e sua mãe imoral 577

8. Primogenitura e hierarquia na casa natal

8.1. O Rei 599


8.2. Produzindo riqueza: a recriação da semelhança 615
8.3. A nobreza da imortalidade 637
8.4. Os donos do meio 650
8.5. Nomeação por ordem de nascimento 669
8.6. O nome como substância invisível 681

9. Rio abaixo, entre a procriação e a morte (transformação)

9.1. A afinidade enquanto perda 695


9.2. Tratamento profilático 706
9.3. Práticas matrimoniais 730
9.4. Harabiè, o casamento arranjado 745

10. Exogamia e reciprocidade na casa dos afins

10.1. O pagamento pela vagina 758


10.2. Entre o terror e o poder 782
10.3. As refeições rituais 801
10.4 A troca pela vida eterna 824

Parte III (O Fim)

11. Entre a morte e o renascimento

11.1. O Eu torna-se Outro 843


11.2. O Outro torna-se Eu 862
11.3. A espiral da História 891

Bibliografia 906

vi
Índice de Tabelas

Tabela n° 1: População Karajá, Javaé e Xambioá entre 1775 e 1902 133


Tabela n° 2: Principais aldeias Javaé no início do Século 20 140
Tabela n° 3: Dados Populacionais dos séculos 20 e 21 (Javaé) 168
Tabela n° 4: Distribuição da população Javaé atual (julho de 2007) 168
Tabela n° 5: Dados Populacionais dos séculos 20 e 21 (Karajá) 169
Tabela n° 6: Distribuição da população Karajá atual (dezembro de 2007) 170
Tabela n° 7: Distribuição da população Javaé (2002) 193
Tabela n° 8: Filiação ritual 570
Tabela n° 9: Metades e casamentos 572
Tabela n° 10: Mudança de metade 572
Tabela n° 11: Nomes de primogênitos 676
Tabela n° 12: Tecnonímicos 683
Tabela n° 13: Os siblings dos genitores de Ego 719
Tabela n° 14: Categorias de esposas 739
Tabela n° 15: Casamentos com sobrinhas 740
Tabela n° 16: Casamentos com tias 740
Tabela n° 17: Casamentos com primas (1) 740
Tabela n° 18: Casamentos com primas (2) 740
Tabela n° 19: Casamentos com primas (3) 740
Tabela n° 20: Casamentos das mulheres 741
Tabela n° 21: Grau de distância social 742
Tabela n° 22: Distribuição anual (1997/1998) dos jogos rituais 806
Tabela n° 23: Atividades rituais em 1997/1998 808

vii
Índice de Mapas

Mapa n° 1: Rio Araguaia e Ilha do Bananal no mapa do Brasil 40


Mapa n° 2: Aldeias Javaé e Karajá atuais (2008) 41
Mapa n° 3: Principais aldeias Javaé no início do século 20 42
Mapa n° 4: Principais aldeias Karajá no início do século 20 ou que foram 44
habitadas e abandonadas em um período anterior
Mapa n° 5: Território de ocupação tradicional dos Karajá e Javaé 46
Mapa n° 6: Principais locais de origem mítica dos Karajá, dos Tapirapé e dos
ancestrais dos Javaé 50
Mapa n° 7: Tripartição espacial e histórica da Ilha do Bananal 67
Mapa n° 8: Localização aproximada de aldeamentos e presídios dos séculos 18 e
19 113
Mapa n° 9: Evolução dos limites das terras indígenas e das áreas de proteção
ambiental na Ilha do Bananal 172
Mapa n° 10: Expansão dos povos Arawak 201

viii
Índice de Desenhos

Desenho n° 1: O Território da Totalidade 248


Desenho n° 2: O Fundo das Águas 251
Desenho n° 3: O Céu 252
Desenho n° 4: O lugar Horenio no nível subaquático 282
Desenho n° 5: O aõni Inyni 284
Desenho n° 6: O aõni Ijoroderu ou Ijorobari 285
Desenho n° 7: A Casa Grande (Hetohoky) 296
Desenho n° 8: A aldeia de Tanyxiwè 321
Desenho n° 9: A aldeia do Urubu-Rei (Rararesa) 322
Desenho n° 10: A aldeia de Ijanakatu 323
Desenho n° 11: A aldeia do aruanã Teruteru 325
Desenho n° 12: A aldeia dos aruanãs celestes 329
Desenho n° 13: Território dos Xamãs 330
Desenho n° 14: A tripartição do Rio Araguaia 376
Desenho n° 15: A tripartição da aldeia 377
Desenho n° 16: A Casa Grande em relação ao eixo fluvial 385
Desenho n° 17: Percurso musical dos aruanãs 410
Desenho n° 18: Extremidade masculina (ijoina) e feminina (hirarina) das pistas
de dança 567
Desenho n° 19: Disposição dos alimentos na Casa dos Homens 820
Desenho n° 20: Enterro primário 852
Desenho n° 21: Hitxèkò 856
Desenho n° 22: Os ixyjukuni 867
Desenho n° 23: Chegada dos ixyjukuni na aldeia 874
Desenho n° 24: Os ixyjukuni em oposição ritual aos worosy 876
Desenho n° 25: Segundo percurso dos ixyjukuni na aldeia 877

ix
Índice de Diagramas

Diagrama n° 1: Construção da pessoa/corpo 689


Diagrama n° 2: Terminologia vocativa de Ego masculino 711
Diagrama n° 3: Terminologia vocativa de Ego feminino 712
Diagrama n° 4: Terminologia de referência de Ego masculino 716
Diagrama n° 5: Terminologia de referência de Ego feminino 717
Diagrama n° 6: Terminologia de referência para afins de Ego masculino 723
Diagrama n° 7: Terminologia de referência para afins de Ego feminino 724

x
Índice de Fotografias

Foto n° 1: Dupla de aruanãs (aldeia Canoanã, 1997) 276


Foto n° 2: Latèni chamado Bòdòlèkè (“pirarucu”) (aldeia Canoanã, 1997) 290
Foto n° 3: Aruanãs dançando com suas irmãs rituais (aldeia Canoanã, 1997) 293
Foto n° 4: Hetohoky emendada à Casa dos Homens (aldeia São João, 2006) 297
Foto n° 5: Dupla de worosy (aldeia Canoanã, 1997) 302
Foto n° 6: Nawaki, “mutum” (aldeia Canoanã, 1997) 303
Foto n° 7: Wabe (aldeia Canoanã, 1997) 306
Foto n° 8: Ihõ (aldeia Canoanã, 1997) 308
Foto n° 9: Jogo Wyhyraheto (aldeia Canoanã, 1997) 564
Foto n° 10: Um jyrè a ser iniciado no dia de chegada da dupla de latèni, que é
controlada pelo xamã (aldeia São João, 2006) 597
Foto n° 11: Jovem é levantado pelo latèni durante o Hetohoky (aldeia Canoanã,
1997) 618
Foto n° 12: Bòròtyrè é levantada pelo latèni logo a seguir (aldeia Canoanã,
1997) 619
Foto n° 13: Um xamã e sua bòròtyrè aguardam os latèni (aldeia Canoanã, 1997) 628
Foto n° 14: Crianças participando da brincadeira de “carvão” (aldeia Canoanã,
1997) 810
Foto n° 15: Um korera bate com sua vara em uma casa (aldeia Canoanã, 1997) 871
Foto n° 16: Um grupo de ixyjukuni aõni chegando à aldeia, no fim do dia, pelo
lado do rio abaixo (aldeia Canoanã, 1997) 873
Foto n° 17: Um pai ritual, ajudado por seu cunhado, ao fundo, entrega sacos de
alimento a um korera e a um ixyjukuni (aldeia Canoanã, 1997) 879

xi
Siglas

ADAPEC – Agência de Defesa Agropecuária (do Estado do Tocantins)


ANPOCS – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
ANVIB – Associação Natureza Viva da Ilha do Bananal
APA – Área de Proteção Ambiental
BRADESCO – Banco Brasileiro de Descontos
CFH/UFSC – Centro de Filosofia e Ciências Humanas / Universidade Federal de Santa
Catarina
CGDOC/FUNAI – Coordenação Geral de Documentação / Fundação Nacional do Índio
CGEP/FUNAI – Coordenação Geral de Estudos Pesquisas / Fundação Nacional do Índio
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CNPI – Comissão Nacional de Política Indigenista
CNRS – Centro Nacional para Pesquisa Científica
COBRAPE – Companhia Brasileira de Agropecuária
CODEARA – Companhia de Desenvolvimento do Araguaia
COMIBA – Comissão Indígena da Ilha do Bananal
CONJABA – Conselho das Organizações Indígenas do Povo Javaé da Ilha do Bananal
CEDES – Centro de Estudos Educação e Sociedade
DEDOC/FUNAI – Departamento de Documentação / Fundação Nacional do Índio
DSEI – Distrito Sanitário Especial Indígena
ECO 92 – Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento
(realizada em 1992)
EDUSP – Editora da Universidade Federal de São Paulo
EHESS – Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais
ELETRONORTE – Centrais Elétricas do Norte do Brasil
EPU/EDUSP – Editora Pedagógica e Universitária / Editora da Universidade de São Paulo
FAB – Força Aérea Brasileira
FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
FBC – Fundação Brasil Central
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
FUNARTE – Fundação Nacional de Arte
GPS – Sistema de Posicionamento Global
GRIN – Guarda Rural Indígena
GTI – Grupo de Trabalho Interinstitucional
IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBDF – Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IFCS/UFRJ – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais / Universidade Federal do Rio de
Janeiro
IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
ISA – Instituto Socioambiental

xii
MEC/SEF – Ministério da Educação / Secretaria de Educação Fundamental
NHII/USP – Núcleo de História Indígena e Indigenismo / Universidade Federal de São
Paulo
ONG – Organização não governamental
PIA – Parque Indígena do Araguaia
PNA – Parque Nacional do Araguaia
PPTAL – Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia
Legal
SEAP – Secretaria Especial de Agricultura e Pesca (do Tocantins)
SEPIMA – Setor de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente (FUNAI/Gurupi)
SIL – Instituto Lingüístico de Verão
SPI – Serviço de Proteção aos Índios
SUCAM – Superintendência de Combate à Malária
SUDAM – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
SUDECO – Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste
UBA – Universidade de Buenos Aires
UCG – Universidade Católica de Goiás
UFG – Universidade Federal de Goiás
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNB – Universidade Federal de Brasília
UNESP – Universidade Estadual de São Paulo
UNI – União das Nações Indígenas
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
UNICEUB – Centro Universitário de Brasília
USP – Universidade Federal de São Paulo

xiii
Nota sobre a grafia das palavras indígenas e sobre as traduções

Realizei pessoalmente as traduções das citações em Inglês ou Francês para o


Português, de modo que qualquer imprecisão é de minha inteira responsabilidade.
As palavras indígenas foram escritas de acordo com as convenções que eu aprendi
entre os próprios Javaé e que derivam do trabalho pioneiro dos lingüistas David e Gretchen
Fortune, vinculados ao Instituto Lingüístico de Verão (SIL), que iniciaram seu trabalho de
pesquisa e ensino bilíngüe entre os Karajá e Javaé na década de 50. A maioria das palavras
tende a ter uma acentuação oxítona e, com exceção das letras a seguir, as vogais e consoantes
são pronunciadas como na língua portuguesa.

à corresponde ao “i” (neutro) da palavra inglesa “bird”.


è corresponde ao “é” (aberto) da palavra portuguesa “café”.
ò corresponde ao “ó” (aberto) da palavra portuguesa “só”.
h corresponde ao “rr” da palavra portuguesa “carro”.
j corresponde ao “j” da palavra inglesa “june”.
k corresponde ao “c” antes de “a”, “o” e “u” na língua portuguesa; e ao “qu” antes de “i” e
“e”.
r corresponde ao “r” da palavra portuguesa “madeira”.
s corresponde ao “s” da língua portuguesa, mas pronunciado com a língua entre os dentes.
tx corresponde ao “tch” da palavra aportuguesada “tchau”.
w corresponde ao “w” da língua inglesa.
y é uma “vogal central, fechada, um pouco alta e não arredondada” 1 .
y som similar, porém não idêntico, ao “ã” da língua portuguesa.

1
Segundo as informações que Lima Filho (1994:16) obteve pessoalmente com os Fortune.

xiv
Agradecimentos

Sem a contribuição fundamental de muitas pessoas e instituições, cada qual a seu


modo, não teria sido possível a finalização desta tese.
Agradeço em primeiro lugar aos meus orientadores acadêmicos, exemplos notórios
de saber e dedicação à causa indígena. À Professora Alcida Rita Ramos, cujas aulas
apaixonadas me fizeram decidir definitivamente pela etnologia indígena, por ter acreditado
em mim e me encaminhado aos Javaé e à Universidade de Chicago. Ao Professor Terence
Turner, que me fez ler Marx com outros olhos, pelas aulas que ampliaram meus horizontes
intelectuais. Ambos aguardaram a minha volta ao mundo acadêmico com paciência e apoio
constante durante todos esses anos.
No frio de Chicago e depois no Brasil, aprendi com Ana Vilacy M. Galúcio (a
Vila), Manuel F. Lima Filho, Flávio Wiik, João Batista Torres (o Tistu), Olandim Fonseca
e Letícia Veloso o valor inestimável e profundo da amizade.
Apesar de estar em uma terra estranha como eu, a Professora Manuela Carneiro da
Cunha me ofereceu sua gentileza e receptividade em momentos cruciais.
Agradeço aos professores Rita Laura Segato e José Jorge de Carvalho, a quem
admiro pela luta corajosa por justiça social, pelo amparo de primeira hora que me deram,
da distante Universidade de Rice, quando precisei deles. A Rita, em especial, que me abriu
a percepção para a temática do gênero, sou grata pelo estímulo precioso que tenho recebido
desde os nossos primeiros anos na Universidade de Brasília, quando fui sua orientanda na
Graduação.
Minhas irmãs de substância e alma, Daniela e Carolina, vieram me ensinar o amor
verdadeiro e recíproco que resiste a todas as tempestades e a cada dia se torna mais forte.
Em Brasília, dividi as agruras da escrita da tese e recebi toda a compreensão do
mundo e afeição das queridas amigas Maria Helena Ortolan, Márcia Gramkow, Elaine
Amorim, Carmem Silva, Pámela Diaz, Lara Amorim e Sílvia Guimarães. O carinho e a
solidariedade de Selmo Norte, Catarina Zanini, Cristine Alencar, Dóris Sayago, Adriana
Mariz, Mônica Pechincha, Marisa Vargas, Cláudia Militina e, mais recentemente, de Inês

xv
Bueno, Regina Lisboa e Giovana Tempesta também foram fundamentais para a finalização
deste trabalho.
Mantive trocas intelectuais e afetivas de grande importância para mim com os
estudiosos dos Karajá e Javaé Manuel Ferreira Lima Filho, Sônia Lourenço, Oiara Bonilla,
Eduardo Rivail Ribeiro e Marcus Maia.
Rita de Almeida Castro, a grande Ritoca, contribuiu generosamente como narradora
voluntária e de primeira qualidade no vídeo “O ritual da Casa Grande”.
Sou eternamente grata aos bruxos do bem que cuidaram de mim com tanta
habilidade e dedicação na hora e lugar certos: Sandra Lila Dias, Alda Dantas, Edson
Saraiva Neves, Gu Hanghu, Saulo França Teles, Maria Aparecida Souza, Marino Tadeu e
Sandra Jade.
Agradeço a Anne Chien por sua eficiência extrema e disposição sempre acolhedora
no Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago.
A David Harrad, pelo trabalho de tradução paciente, honesto e competente da tese
para o Inglês. E a Zé e Cláudio, pela amizade alegre e por terem me conduzido a David.
A Elayne Oliphant, pela revisão final da versão da tese em Inglês.
O geógrafo Dan Pasca foi de uma amabilidade rara e encarregou-se com grande
competência e boa vontade da cartografia apresentada neste trabalho.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela
concessão de uma bolsa de Doutorado no Exterior, que possibilitou a realização dos meus
estudos na Universidade de Chicago (EUA) e a pesquisa de campo entre os Javaé em 1997
e 1998.
À Fundação Nacional do Índio (FUNAI) de Brasília e Gurupi, pela autorização de
pesquisa na Ilha do Bananal.
Ao Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia
Legal (PPTAL), que financiou a minha segunda viagem às aldeias Karajá, não prevista
inicialmente.
À Fundação Nacional da Saúde (FUNASA), que, por meio do Distrito Sanitário
Especial de São Félix do Araguaia (MT), do Pólo Base de Santa Terezinha (MT), do Pólo
Base de Formoso do Araguaia (TO) e da Base de Apoio de Lagoa da Confusão (TO),
forneceu-me seus dados estatísticos sobre a população e saúde dos Javaé e Karajá.

xvi
A Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão, Diretora de Assuntos Fundiários da FUNAI,
pelo apoio institucional ao reconhecimento oficial das terras ocupadas imemorialmente
pelos Javaé e Karajá.
Sou grata aos funcionários da FUNAI, em Brasília, Cleide de Albuquerque
Moreira, da biblioteca, e Maria Helena Gutemberg Caldas e Rodrigo Domingues Borges,
do setor de documentação, por terem facilitado sempre com muita atenção e educação as
minhas pesquisas bibliográficas e documentais.
O bom êxito da minha viagem às aldeias Karajá só foi possível graças à atuação
profissional impecável e responsável de Jorge Fernando Silva Bogéa, da FUNAI de São
Félix do Araguaia, que me acompanhou no Araguaia.
Contei com a colaboração obsequiosa de Georthon Aurélio Lima Brito, que me
forneceu os dados dos arquivos da FUNAI de Gurupi e assessorou a minha viagem aos
Javaé em 2007. E com a de Batista Tuxá, Chefe de Posto de Canoanã em 1997 e 1998.
Em Gurupi, obtive importantes informações com Kariny Teixeira de Souza, do
Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Seu Epitácio e sua família me ofereceram o melhor do aconchego sertanejo em
minhas muitas passagens por Sandolândia.
Nas aldeias Karajá, conheci pessoas interessantíssimas e recebi a ajuda prestimosa
de muitos informantes, dos quais destaco aqui o experto em mitologia Sebastião Waihore e
Marcos Uraura, da aldeia Macaúba, Maciel Irai, Kabitxana e Mahau, da aldeia Fontoura,
Luís Sarikina, Mahudikè, Ixati e Buritxi, da aldeia Itxala, Carlos Waximakuri, da aldeia
Hãwalora, Noé Hararue, Paulo Ijawari, Maria Helena Wàlàki e Dilma Berixa, da aldeia
São Domingos.
Por fim, em especial, agradeço profundamente aos Javaé como um todo, que me
acolheram generosamente e permitiram a minha iniciação ao seu mundo maravilhoso. Em
Canoanã, fui tratada como um parente estimado por Raimundo Ãwahiri e Rosa Maria
Tuxá, a querida Binha, que me receberam com amabilidade inesquecível em seu lar sempre
repleto de alegria. Warahãbu, que me fascinou com sua inteligência fora do comum
quando ainda tinha 16 anos e com quem fui a Boto Velho pela primeira vez, Tupi, o amigo
fiel e dotado de uma afetividade abundante que sempre me nutre, Tèwaxi, cuja seriedade e
conhecimento me fizeram respeitar ainda mais a diversidade, e Wahukumã, o guia das
viagens ao oculto, deixaram marcas perenes e profundas em minha memória e meu
coração.

xvii
Viajei rio abaixo na companhia agradável e leve de José Wèrèkumari, que com seu
corpo já vivido e sua alma jovem é um admirável exemplo do ideal tradicional Javaé de
homem honrado. A respeitada Huiriru, a Kuraniasè, que me abriu as portas para o passado
Javaé, impressiona a todos pela memória excepcional que mantém viva a sabedoria
ancestral. Tibairu e seus filhos, em especial Birihoa, Hatxutxi e Bakulina, sempre me
ofereceram o sorriso tranqüilo que acalma o espírito. Usana me levou a Marani Hãwa e as
famílias de Tèwaxi e Tupi Tuxá foram meu porto seguro nas horas mais difíceis.
Sou bastante grata ao Cacique Tehybi, que autorizou a minha pesquisa prolongada
na aldeia Canoanã em 1997 e 1998 e a filmar o Hetohoky de 2006. A Darcy Makurehi,
Presidente da CONJABA, que me recebeu com grande hospitalidade na aldeia São João,
agradeço pelo convite para filmar o ritual de iniciação de seu filho e pelo consentimento
para produzir o vídeo “O ritual da Casa Grande”. Sou grata também ao Cacique Juraci, que
me permitiu filmar o Hetohoky de 2005/2006 na aldeia São João. E a Juarez Kurania, o
chefe ritual, que me autorizou a fotografar e filmar os rituais de iniciação sob seu
comando. Em 1997, Ixerua e Maxikederu me hospedaram gentilmente na aldeia Barreira
Branca e Paulinho, na aldeia Wariwari.
Em Boto Velho, em 2007, fui muito bem recebida pelo Cacique Vagner Mairea,
pelo Vice-Cacique Koijama, por Paulo César Huruka, Presidente da ANVIB, e, mais uma
vez, pela doce Kujamõkõ. Na aldeia Txukòdè, contei com a hospitalidade do Cacique
Valter Waxure. Lucirene Behederu, Cacique da aldeia Boa Esperança, que dá continuidade
à antiga linhagem das mulheres Javaé de caráter forte e oratória brilhante, foi sempre
afável e prestativa. O belo Matias Maruka e Benoi Temanaku foram meus guias e
companheiros de aventuras no norte da Ilha do Bananal.
O Araguaia e seus encantos extraordinários foram aclamados em prosa e verso por
muitos dos que lá passaram. Que este trabalho seja a minha homenagem ao grande rio e
seus povos originários.

xviii
Resumo

Este trabalho tem a pretensão de ser uma etnografia histórica, no sentido de que o
seu objeto central é o conceito Javaé de História e a sua relação com a estrutura social.
Tento revelar o modo como os Javaé compreendem o processo de construção histórica da
sociedade no discurso mítico, que aqui é tratado como uma forma legítima de consciência
histórica. Dada a inter-relação entre estrutura e processo, a análise do mito como uma
teoria da práxis ocorre paralelamente à análise de como essa práxis histórica se realiza
entre os Javaé, a sua forma atual. A idéia de que a alteridade é imanente à reprodução da
sociedade, de um modo similar aos estudos sobre a construção da pessoa na Amazônia, é
analisada em sua dimensão inerentemente histórica, uma vez que os Javaé concebem as
transformações históricas como um produto da relação estrutural e permanente entre
interior e exterior.
A compreensão dos princípios de criação da cultura/sociedade e da realidade
depende do estudo dos conceitos e práticas nativas em relação ao corpo, tema fundamental
da etnologia sul-americana já há algumas décadas. O modelo básico do conceito Javaé de
História é a procriação, que aqui não tem qualquer conotação naturalizante e é vista como a
capacidade extraordinária de transformação do mesmo no diferente a partir de uma
interação fértil entre masculino e feminino, identidade e alteridade. Tem-se, portanto, uma
História corporalizada, generizada e espacializada, baseada na não separação entre
natureza e cultura, de modo que descrever o processo de fabricação da sociedade ao longo
do tempo é inseparável de uma descrição etnográfica da fabricação da pessoa/corpo e da
construção do parentesco.
Também tenho a pretensão de propor, de forma inédita, a partir da análise do
discurso mítico-histórico e da organização social, que os Javaé atuais seriam o produto de
uma complexa fusão histórica no Brasil Central entre povos relacionados aos troncos
lingüísticos Arawak e Macro-Jê (mais especificamente, aos Jê-Bororo). E que a Dança dos
Aruanãs, o principal ritual Javaé, é uma versão nativa do clássico tema Jê-Bororo da
onomástica, em que a pessoa se constitui a partir da oposição entre uma identidade
substancial profana e poluída e uma identidade cerimonial sagrada e pública.

Palavras-chave: Javaé, Brasil Central, Arawak, etnohistória, corpo, pessoa, gênero.

xix
Capítulo 1

Um preâmbulo teórico

1.1. Uma perspectiva histórica

Nos últimos trinta anos, aproximadamente, uma das grandes mudanças de orientação
teórica na antropologia foi a sua aproximação com a história, através de propostas para uma
teoria da práxis que articulasse a relação dialética entre estrutura e agência humana dentro de
uma perspectiva diacrônica (ver Ortner, 1984). Alguns dos trabalhos mais significativos
dentro dessa já não tão nova tendência, de onde surgem algumas das questões centrais deste
trabalho, são lembrados a seguir.
Em um livro publicado pela primeira vez em 1976, Giddens (1993:4) critica a
dicotomia reinante então nas ciências sociais entre as abordagens funcionalista e
estruturalista, herança da escola durkheimiana, de um lado, que utilizavam a noção de
estrutura social como uma realidade fixa, intemporal e externa aos atores sociais, em que os
agentes humanos são tratados como personalidades não criativas que apenas refletem ou
repetem o social [“fortes quanto à estrutura, (...) fracas quanto à ação”]; e, por outro, a
abordagem das sociologias interpretativas, com uma excessiva ênfase na ação do sujeito,
desvinculada de qualquer contexto maior de coerção e poder [“fortes quanto à ação, mas
fracas quanto à estrutura” (Giddens:1993:4)].
Em 1979, Giddens (1994) propõe então uma “teoria da estruturação”, inspirada em
Marx, autor cuja teoria, diferentemente do pensamento de Durkheim (1965) e seguidores,
inclui o processo, as contradições, o conflito e a mudança, e para quem “os homens fazem sua
própria história, mas não do modo como desejam; eles não a fazem sob circunstâncias
escolhidas por eles mesmos, mas sob circunstâncias encontradas, dadas e transmitidas
diretamente do passado” (Marx, 1978:595). Assim, a teoria da estruturação, que almejava
transcender o dualismo sociedade versus indivíduo, propõe a dualidade da estrutura, no
sentido de uma interdependência paradoxal entre estrutura e agência humana que rejeita a
oposição entre estruturas sincrônicas e processos diacrônicos: toda estrutura (a tradição
herdada) é ao mesmo tempo o meio que propicia e constrange a ação dos seres humanos e

1
também o resultado (no tempo) dessa ação transformadora. A estrutura deixa de ser vista
apenas como realidade que se repete e constrange as pessoas, tornando-se também o produto
histórico que propicia a interferência humana, através do que o autor chama de “consciência
prática” (conhecimento implícito da estrutura) 1 : “todo processo de ação é a produção de algo
novo, um ato recente; mas ao mesmo tempo toda ação existe em continuidade com o passado,
que provê os meios de sua iniciação” (Giddens, 1994:70).
Em outras palavras, toda estrutura é constituída através da ação e, reciprocamente, a
ação é constituída com referência à estrutura 2 . Em todas as sociedades, os homens viveriam
em contradição com a natureza, pelo fato de serem seres corpóreos que vivem em relação
com um meio ambiente previamente dado, em um corpo biologicamente programado; e ao
mesmo tempo possuidores de uma “segunda natureza”, não existente entre os animais, que é a
subjetividade humana irredutível à materialidade, capaz de controlar a natureza (Giddens,
1994:161, 1993:168). É essa contradição existencial do homem que se traduziria na forma de
contradição entre estrutura e agência inerente a toda sociedade, a base da práxis humana, pois
ao transformar criativamente a natureza o homem produz reflexivamente a sociedade e a
história 3 .
Um pouco antes, em 1972, e também inspirado em Marx, o francês Bourdieu (1995) já
havia criticado a teoria da troca “mecânica” lévi-straussiana baseada apenas em princípios
inconscientes e que ignorava a existência de sujeitos estrategistas que podem manipular o
tempo, a partir do intervalo entre o que se dá e o que se recebe em troca, conforme seus
interesses pessoais, e assim transformar o jogo da honra em instrumento de poder e controle
do tempo. Bourdieu (1995:90) propôs uma teoria da prática, também focalizando a relação
entre sujeito criador e estrutura herdada, a partir do conceito de habitus, “estruturas
estruturantes”, com o qual critica a reificação de abstrações como “cultura”, “estrutura”,
“modo de produção”, às quais se atribuía o poder de atuar como agentes históricos
independentes dos indivíduos.
Habitus é a mediação que cada agente humano faz enquanto reprodutor e produtor, ao
mesmo tempo, das estruturas sociais. Em oposição ao pensamento especulativo ocidental, o

1
O que seria diferente tanto da consciência discursiva como do inconsciente lévi-straussiano, por haver alguma
forma de mediação das estruturas pela subjetividade do ator.
2
Ortner (1984:147) lembra que o “modelo de prática”, na verdade, ao tentar transcender a oposição entre
determinismo das normas e voluntarismo, do qual Giddens é apenas um dos formuladores, tentar conciliar
influências marxistas e weberianas, materialismo e idealismo, de modo que “a fundamentação teórica envolvida
deve igualmente a ambos”.
3
Giddens (1994) aponta a diferença de sua concepção em relação a Marx, para quem a contradição só existe
através da dominação de classes.

2
agente dotado da lógica prática em Bourdieu é ignorante dos princípios da estrutura
incorporada (que é a história, o produto da ação humana, “naturalizada” pela força do hábito e
assim tornada inconsciente), o que não o impede de agir criativamente, improvisando e
produzindo o novo, ainda que de forma regulada, condicionada. O que resulta no fato de que
toda ação prática é “invenção não intencional de improvisação regulada” (Bourdieu,
1995:79). Assim como em Giddens, as estruturas são paradoxalmente os produtos históricos
da ação dos homens, embora os atores não estejam livres de qualquer condicionamento, muito
pelo contrário, e não entidades imutáveis e externas à agência humana.
A necessidade de uma abordagem que levasse a história em consideração surge
também no trabalho de Rosaldo (1994), que, em 1980, em seu trabalho sobre os Ilongot,
afirma que é uma ilusão teórica a idéia do “primitivo” estático de Eliade (2002) ou de Lévi-
Strauss, autor do famoso conceito de sociedades “frias”, aquelas que possuiriam uma
“fidelidade tenaz a um passado concebido como modelo intemporal” (1976:270). Lévi-
Strauss (1976:268-269), na verdade, afirma que “toda sociedade está na história e que muda”,
mas as ditas sociedades “frias” teriam o objetivo de fazer com que “a ordem de sucessão
temporal influa o menos possível sobre o conteúdo de cada um”. Rosaldo propõe analisar a
sociedade em questão e a sua história dentro do panorama maior da relação entre estruturas
recebidas e atividade humana, dada a grande importância para os Ilongot das “estórias” sobre
o passado para a compreensão de si próprios e das improvisações dos atores vivos sobre os
planos sociais herdados dos mais velhos.
Na mesma época, em Bernard Cohn (1994a:43-46) escreve um artigo sobre as
características específicas da antropologia e da história, terminando por sugerir uma “história
antropológica” a partir da crítica à metodologia sincrônica da antropologia:

“(...) Em todos os lugares as pessoas vivem vidas que são constituídas do passado. A
cultura é continuamente inventada ou modificada, sem ser totalmente transformada. Os
homens vivem em um mundo de intenção e conseqüência. Intenção e ação são
transformadas em cultura pela história. (…) Uma maneira histórica de estudar deslocaria o
antropólogo de uma objetificação da vida social para o estudo da sua constituição e
construção. Toda cultura é construída. (...) A razão pela qual um antropólogo estuda
história é que é somente em retrospecto, após observar a estrutura e suas transformações, é
que é possível se conhecer a natureza da estrutura”.

Uma questão essencial a respeito do processo de construção das culturas, que seria
trabalhada por vários autores, é lembrada por Cohn (1994b) em um outro artigo, quando este

3
adverte contra o pressuposto dos “primitivos” intocados e em estado puro quando da chegada
do etnógrafo. Cohn lembra que as influências do contato com o homem branco, em todo o
mundo, seja por via direta ou indireta, são ingredientes essenciais, em alguns casos, há muito
tempo, daquilo que se considera como “autêntico” das sociedades não ocidentais. Em outras
palavras, não se pode dissociar o processo histórico de produção das sociedades das suas
relações com o mundo à sua volta.
A idéia de que toda sociedade é histórica e que isso implica não só na relação interna
entre estrutura e agentes criativos, mas também nas relações com os “outros” externos (outras
sociedades ou os fatos sem precedência), seria defendida por Sahlins (1996:viii-ix) em
meados da década de 80: “A História é feita de um mesmo modo em geral dentro de uma
dada sociedade assim como entre sociedades”. Nenhuma sociedade ou cultura pode ser
considerada como fechada ou isolada do contato com outros, mesmo antes da expansão
ocidental, o que não significa, por outro lado, que a noção de “cultura”, inadequada se
considerada como uma totalidade reificada e independente ou rigidamente limitada, deva ser
entendida como algo totalmente desestruturado 4 .
Em livros publicados em 1981 e 1985, Sahlins (1995, 1996) delineia a sua versão de
uma teoria da prática, também dissolvendo a oposição entre estrutura e história, por meio da
relação dialética entre estrutura e evento. A práxis social resultaria da eterna desproporção
entre os conceitos limitantes e arbitrários de qualquer cultura e a realidade exterior sempre
maior, o que obriga os sujeitos, frente aos eventos inusitados, produtos da relação imanente de
toda sociedade com o mundo exterior, a uma reavaliação dos significados primeiros. É essa
contínua reinterpretação dos fatos pelos agentes humanos, numa dialética entre conceitos pré-
existentes (estrutura prévia) e eventos sem precedentes ao longo do tempo (conjuntura), que
faz toda cultura ser inerentemente histórica, “estrutura da conjuntura” (1995:35): “toda
mudança prática é também uma reprodução cultural” (1996:144) e toda cultura uma síntese
entre estabilidade e mudança, passado e presente, diacronia e sincronia.
Entretanto, o autor diferencia dois tipos de relação entre estrutura e evento, o que ele
chama de diferentes “historicidades”, remetendo à diferença entre sociedades “frias” e
“quentes” de Lévi-Strauss (1976). No processo de reavaliação dos significados, as sociedades
de estrutura prescritiva (“frias”) assimilariam os eventos à sua estrutura, repetindo-se e

4
Como lembra Sahlins (1993:15) em outro texto, “uma falta de fechamento” não indica “uma falta de sistema”,
não podendo se confundir “um poder cultural de inclusão com a inabilidade de se manter uma fronteira”. Ou
como dizem os Comaroff (1992:30), a cultura é em todo lugar dualista, “simultaneamente ordenada e
desordenada”.

4
negando as mudanças; enquanto as de estrutura performativa (“quentes”) assimilariam a
estrutura aos eventos, com inovação constante (Sahlins, 1996). Para o autor, historicidade não
significa mudança no tempo, mas a relação prática entre estrutura e evento, uma vez que as
sociedades prescritivas, embora fiéis ao passado, são também intrinsecamente históricas.
A concepção de que a historicidade é constituinte de toda sociedade humana seria
defendida também por Comaroff & Comaroff (1992), embora não em termos da relação entre
estrutura e evento ou biografias e eventos, e sem diferenciar tipos de historicidade. Partindo
de alguns princípios básicos, os autores em questão insistem na validade do conceito de
cultura, desde que aceitas algumas reformulações, e propõem algumas considerações
importantes à teoria da prática emergente. Em primeiro lugar, descarta-se definitivamente a
idéia de que alguma sociedade tenha existido isolada ou fechada em si mesmo: toda
sociedade, mesmo antes do colonialismo ou da penetração capitalista, existiu e existe em
articulação com o ambiente social ao redor, seja as outras comunidades locais, as economias
regionais ou as forças globais. Deste modo, não se pode falar em limites fixos ou pré-
ordenados entre o que é interno e o que é externo a cada sociedade ou cultura. Em segundo
lugar, esses processos de articulação entre mundos sociais diferentes não são feitos por
estruturas reificadas ou puramente abstratas, mas pelos agentes humanos concretos. E, apesar
das diferenças de poder e suas conseqüências profundas, todo encontro histórico entre dois
mundos é sempre dialético, na medida em que os dois se influenciam e se transformam
mutuamente.
Mas como opera então essa historicidade endógena inerente a todas as sociedades? Os
Comaroff argumentam que toda cultura deve ser vista como intrinsecamente dualista, no
sentido de que possui uma dimensão hegemônica, que se apresenta como coerente, sistêmica,
consensual ou eterna, naturalizada pelo hábito que impede às pessoas de ver a arbitrariedade
das construções culturais; mas, simultânea e contraditoriamente, também possui forças
internas divergentes, moralidades alternativas, de modo que ordem e desordem,
sistematização e imprevisibilidade, estatismo e mudança convivem de forma fluida e
ambígua:

“(...) Na grande confrontação entre as perspectivas modernista e pós-modernista sobre o


mundo, em que cada uma enfatiza um lado do dualismo, somos levados a fazer uma
escolha. Fazê-lo, entretanto, é ser induzido ao erro. O mundo é dualista em todos os
lugares – esta sendo uma daquelas realidades pelas quais nós devemos ter respeito”.
(Comaroff & Comaroff, 1992:30)

5
Ao advogar em favor de uma perspectiva que transcenda o dualismo mencionado,
batizada de “neomoderna” (Comaroff & Comaroff, 1992:ix), os autores propõem que a
historicidade interna resulta da dialética inevitável entre os atores sociais e os aspectos
contraditórios inerentes a cada cultura, ou entre ação prática e estrutura, uma vez que todos
são levados a optar diante das contradições e, assim, a agência humana se manifesta na prática
alterando a ordem aparentemente fixa. Conseqüentemente, trata-se de uma historicidade não
baseada nas ações revolucionárias de grandes heróis ou dependente de eventos
extraordinários: “(...) a história envolve uma sedimentação de micropráticas em
macroprocessos, um acontecimento mais prosaico do que portentoso, em que os eventos
marcam ao invés de fazer o fluxo da existência” (Comaroff & Comaroff, 1992:38) 5 .
As micropráticas (simultaneamente determinadas e indeterminadas, coerentes e
fragmentadas) sutilmente se transformam em macroprocessos que seriam inerentes a qualquer
sociedade humana e constituiriam a historicidade endógena (“a curta jornada”) que, por sua
vez, articula-se ao longo do tempo com os processos regionais ou globais envolventes (“a
longa jornada”), compondo juntos uma “historicidade total” (Comaroff & Comaroff,
1992:122) que não separa a dinâmica interna das relações externas. O estudo etnográfico da
vida social, vista como processos ambíguos e contraditórios, deve ter seu foco nas atividades
contínuas ao longo do tempo (e não em atos heróicos ou eventos isolados), somente a partir
das quais pode-se acessar as manifestações da consciência ou subjetividade dos agentes
sociais. E a etnografia histórica deve aliar-se a uma investigação crítica dos arquivos
documentais, uma vez que estes fazem parte da cultura global moderna, devendo ser tratados
tanto como meio como objeto de pesquisa.
Conclui-se, portanto, que a imagem de sociedades “tradicionais” 6 ou de estrutura
“fria”, presas a uma reprodução infindável de si próprias, é considerada como “ficção pura”
(Comaroff & Comaroff, 1992:122); e a fusão entre história e antropologia tida como
inevitável, uma vez que o objeto dessa “antropologia histórica” deve ser o processo de
construção e transformação de sociedades específicas e sua relação com o sistema global. A
história não dependeu da chegada do colonizador ocidental para existir desde sempre, em
todos os lugares, e não é vista pelos Comaroff apenas como processo ou uma questão de

5
Em sua revisão crítica a várias correntes teóricas, os autores (Comaroff & Comaroff, 1992:38) criticam o modo
tradicional ocidental de construir a historiografia em termos da relação entre ações individuais de destaque (os
heróis da história) e eventos impactantes.
6
Sahlins (1993:19) critica o conceito de “tradição” enquanto “arcaísmo” ou “legado imutável” (1992:21), para
quem a “continuidade cultural aparece então como o modo de mudança cultural” (1993:19).

6
mudança no tempo, mas essencialmente como o produto da agência humana em sua relação
dialética e criativa (às vezes de forma intencional, outras não) com a estrutura.
Até agora temos nos defrontado com alguns apelos de antropólogos para uma
abordagem que funda as perspectivas histórica e antropológica, por um lado, e, de outro,
dentro do mesmo espírito, com teorias significativas de cientistas sociais ou antropólogos
sobre a historicidade das estruturas, ou dito de outro modo, sobre como as sociedades/culturas
são produzidas historicamente. Ou seja, são teorias ocidentais sobre o processo de construção,
ao longo do tempo, das sociedades humanas, o que pressupõe uma teoria da agência humana e
sua relação com a tradição herdada ou com os eventos do mundo. Todas lidam com o
paradoxo da continuidade e da mudança, do que é duradouro ou transitório, fixo ou fluido na
vida social, tentando transcender a ênfase parcial em apenas um dos lados; assim como
procuram inserir a agência humana em um modelo que contemple ao mesmo tempo a
produção (criação do novo) e a reprodução (repetição do precedente) da sociedade, em que o
ator não seja livre de quaisquer condicionamentos, como no pacto hobbesiano entre
indivíduos racionais dotados de livre-arbítrio, nem mero reflexo ou cópia de uma sociedade
transcendente e reificada, como na tradição originada em Durkheim (1965).
Uma outra questão paralela, porém diferente, é como as diversas sociedades não-
ocidentais especulam sobre esse mesmo problema, a saber, as respostas nativas sobre como as
suas sociedades ou as dos outros são constituídas ao longo do tempo. Em outras palavras, o
estudo das teorias nativas sobre os processos de construção e constituição das culturas, seja na
forma do que chamamos “mito” ou “história”, que para Turner (1988a) são ambos modos de
consciência social, embora diferenciados, sobre o processo de produção da sociedade.
Na clássica formulação lévi-straussiana (1976:299) sobre as sociedades “frias”, o
pensamento selvagem é “intemporal” e os mitos “máquinas de suprimir o tempo” (1991:24),
além de modelos puramente classificatórios e de origem inconsciente (“objeto dotado de
realidade própria e independente de todo e qualquer sujeito” [1991:20]), reveladores apenas
das estruturas profundas da mente humana, baseada em oposições binárias: sua formulação
não implica em uma mediação pela consciência histórica dos autores/sujeitos. Segundo Lévi-
Strauss, todos os costumes, regras e técnicas, para a lógica nativa, existiriam porque “os
antepassados nos ensinaram” (1976:270-271), de modo que os povos sem história concebem
os homens contemporâneos como simples “copistas” dos ancestrais “criadores”. Dito de outro
modo, as sociedades “primitivas” não conteriam nenhuma formulação sobre a agência ou
capacidade criativa dos humanos que surgiram depois dos primeiros ancestrais. Assim, não só

7
os “primitivos” são “frios”, tentando neutralizar toda mudança histórica, como também não
possuem nenhum modo de consciência histórico sobre os processos sociais 7 .
Inserido no contexto maior de antropólogos preocupados em rever a ficção das
sociedades não-históricas ou sem representações históricas de Lévi-Strauss e seus seguidores,
Turner (1988a, 1988b, 1993) escreveu artigos sobre as relações entre consciência histórica e
mítica entre os povos indígenas sul-americanos. Paralelamente, escreveu artigos também
sobre a necessidade de uma abordagem que fundisse as perspectivas antropológica e histórica,
capaz de perceber como um único processo a relação dinâmica e histórica, na situação
colonial, entre sociedades como a dos Kayapó e a sociedade capitalista envolvente (1991,
1992, 1993). Para o autor, os povos indígenas estariam envolvidos em processos históricos de
contradição, conflito e mudança antes da chegada do colonizador europeu, de modo que o
contato não pode ser definido como o encontro entre “estrutura sem evento” (estruturas
indígenas estáticas) e “evento sem estrutura” (a história trazida pelo branco) (1988b:239). As
populações indígenas não só seriam povos com dinamismo histórico, como também
possuiriam algumas formas de consciência histórica antes mesmo do advento do contato, de
modo complementar à consciência mítica, como no caso dos Kayapó (1988a, 1988b), o que
não significa deixar de reconhecer o impacto transformador do contato sobre a
autoconsciência étnica e histórica dos povos indígenas (1991, 1992, 1993).
Turner (1988b:244) define o modo de consciência histórico não em termos apenas de
uma diferente concepção de tempo, em relação ao mito, mas essencialmente como aquelas
formulações que têm consciência “da agência social criativa com uma propriedade dos atores
sociais contemporâneos”. Em outras palavras, a consciência histórica pressupõe que as
relações sociais atuais não sejam vistas como o resultado pré-determinado de ações de
ancestrais poderosos ou eventos em um passado inacessível, mas produtos das ações
individuais e coletivas concretas. O presente é concebido conscientemente como criação dos
atores sociais que têm o mesmo poder de agência ou criação da realidade social que os seus
antepassados, de modo que o tempo histórico tem uma qualidade homogênea: todos os
homens, do passado mais longínquo ou do presente atual, têm a mesma capacidade potencial

7
Giddens (1994:199-201), apesar de propor uma visão histórica de todas sociedades, concorda com o contraste
lévi-straussiano entre sociedades “frias” e “quentes”, no que se refere à “história” como interpretação do
passado. O autor faz uma diferença entre “história”, enquanto ocorrência de eventos no tempo, existente em
todas sociedades; e “historicidade”, enquanto consciência do “movimento progressivo” ou tempo linear, o que só
algumas sociedades teriam, pois estaria associada ao surgimento da escrita.

8
de criar as formas sociais em que vivem 8 . O modo de consciência mítico, no que se refere à
questão da agência humana, seria exatamente o oposto:

“(...) ‘Mito’ pode ser definido como a projeção inconsciente das estruturas da ordem social
existente enquanto a base dos eventos que transcendem logicamente os limites da ordem
anterior, especialmente aqueles responsáveis pelas origens da ordem em si ou pelas
origens de sociedades estrangeiras. A inconsciência da projeção significa que as formas da
ordem social existente, apesar de serem na verdade produtos históricos da ação social
humana, assumem a forma fantástica de produtos de façanhas sobre-humanas ou de seres
pré-sociais, naturais ou super-naturais. Mito, em outras palavras, é a fetichização do
processo de produção da sociedade, ou da história no senso mais essencial da palavra”.
(Turner, 1988b:243)

Enquanto o modo de consciência histórico percebe a sociedade como produto da


agência humana ordinária, seja no passado ou no presente, o modo de consciência mítico
estabeleceria um tempo dual heterogêneo, uma diferença qualitativa entre os primeiros
tempos, aqueles em que seres extraordinários e mágicos teriam o dom da criação das formas
sociais, e o tempo posterior, do qual o presente faz parte, em que os eventos posteriores à
criação original são determinados por uma estrutura social e um cosmos que foram fixados ou
congelados no tempo mítico: “O poder de criar ou mudar as formas e conteúdos da existência
social, ou a agência social em seu sentido mais completo, não é visto como disponível aos
habitantes do mundo social contemporâneo” (Turner, 1988b:244). O que seria uma forma de
consciência alienada, na medida em que os seres humanos atribuem a seres mágicos ou não
humanos, de um passado inacessível, um poder criativo que é de todas as sociedades em todos
os tempos.
Turner apresenta exemplos de níveis diferenciados de consciência histórica, com
variações significativas na construção do tempo, assim como de consciência mítica 9 , embora
enfatize que ambos convivem de maneira complementar e inter-relacionada na maioria das
sociedades. Mais do que isso, o autor (1988a, 1988b) aponta não só como os diferentes

8
Os Comaroff (1992:157) também consideram que consciência histórica é evocar “o fazer do mundo social”
pelos atores sociais, embora exista em outras sociedades não necessariamente na forma ocidental de cronologia
linear e realista sobre os eventos.
9
Citando historiadores clássicos, Turner (1988b) mostra que há um nível de consciência histórica que enfatiza os
eventos como replicação dos padrões essenciais da natureza humana (um tempo heterogêneo e dual, parecido
com o do mito), enquanto outro enfatiza os processos e eventos como motores de mudança estrutural (um tempo
homogêneo, igualmente mutante), embora ambos pressuponham uma indeterminação relativa da estrutura, ou
seja, o papel ativo dos atores. O autor sugere então uma tipologia, não exaustiva, dos modos de consciência
mítica dos índios sul-americanos, dividida entre os mitos messiânicos, os “anti-mitos” e os mitos sobre a
desigualdade original.

9
gêneros de narrativa e oratória expressam diferentes tipos de consciência social 10 , mas
também como os diferentes tipos de consciência mítica ou histórica estão diretamente
relacionados aos diferentes tipos de estrutura social de cada sociedade e respectivas situações
englobantes. Desse modo, a estrutura social, a situação de contato e o modo de consciência
sobre os processos históricos devem ser considerados como parte de um processo único, uma
vez que “uma sociedade define seu relacionamento com outros tendo como referência os
mesmos processos internos pelos quais se reproduz (e assim se define pragmaticamente)”
(1988b:276). O que significa que os modos de consciência mítico e histórico sobre a produção
e reprodução da sociedade, incluindo sua relação intrínseca com os outros, não devem ser
vistos apenas como “representações” puramente simbólicas ou passivas do contato e eventos
históricos, mas principalmente como programas para a orientação da ação prática no contexto
do contato (o que contrasta com a proposição lévi-straussiana [1991:19] de que “a mitologia
não têm função prática evidente”).

1.2. A antropologia histórica e a etnologia indígena sul-americana

Refletindo a tendência teórica mais ampla de opor antropologia a história, ou os povos


indígenas estáticos versus o Ocidente histórico, a etnologia indígena sul-americana, como
lembram Turner (1993) e Viveiros de Castro (2002f, 1999), desde o início esteve dividida
entre os estudos das culturas “tradicionais”, como se fossem estáticas e estivessem isoladas de
um contexto maior, e os estudos do impacto histórico do capitalismo sobre os povos
indígenas, como se a história só começasse a existir após a chegada do colonizador. No estudo
clássico de Clastres (1982), por exemplo, opõe-se os povos sem “História” e sem “Estado”
aos colonizadores. Em termos teóricos, essa divisão ganhou a forma, no Brasil, da oposição
entre “etnologia clássica”, centrada no estudo da sociedade indígena “em si”, e “etnologia do
contato interétnico”, centrada no estudo das relações assimétricas do Estado com os povos
indígenas (ver Ramos, 1990a e Viveiros de Castro, 1999).
Nas últimas décadas, entretanto, tem-se tornado um imperativo a necessidade de uma
antropologia histórica, embora este título seja apropriado de modos diversos. Para Oliveira

10
Ver, por exemplo, Ramos (1988), que mostra como diferentes tipos de gêneros de oratória (ou tipos de
consciência social) nas sociedades indígenas, como mito, história e discurso político, associam-se a diferentes
contextos sociais; ou Bastos (2001), que analisa a música Kamayurá como fonte de memória histórica.

10
(1998:67-68), representante da segunda perspectiva, uma “antropologia histórica” significa
considerar como determinante ao estudo dos povos indígenas o “quadro colonial” envolvente,
na medida em que as relações com o Estado são vistas como criadoras de uma nova e
inseparável realidade social. Para Viveiros de Castro (1999:114), em uma perspectiva
diferente, a “alternativa é clara: ou se tomam os povos indígenas como criaturas do olhar
objetivante do Estado nacional, duplicando-se na teoria a assimetria política entre os dois
pólos; ou se busca determinar a atividade propriamente criadora desses povos na constituição
do ‘mundo dos brancos’ como um dos componentes de seu próprio mundo vivido, isto é,
como matéria-prima histórica para a ‘cultura culturante’ dos coletivos indígenas. A segunda
opção parece-me a única opção – se o que se deseja fazer é antropologia indígena”.
Essa postura significa reconhecer implicitamente que a agência criadora e histórica das
sociedades indígenas já existia antes da chegada dos europeus ao Novo Mundo e que continua
existindo, apesar da assimetria evidente do contato interétnico. Como já disse Carneiro da
Cunha (1992b:18), a percepção de que os índios são sujeitos históricos e não vítimas parece
ser costumeira entre eles, o que se revela através das mitologias de vários povos, em que a
chegada do branco e a iniciativa do contato são apreendidos como “produto de sua própria
ação ou vontade”. Uma antropologia histórica, portanto, tem o sentido de enfatizar “a lógica
interna e o papel essencialmente ativo e criador das sociedades ameríndias na sua
confrontação com as estruturas sócio-políticas de origem européia” (Viveiros de Castro &
Carneiro da Cunha, 1993:12).
A necessidade de uma aproximação entre antropologia e história, para alguns autores
(Turner, 1991, 1993, Viveiros de Castro, 2002f), deve-se em grande parte a razões empíricas,
como a sobrevivência e recuperação populacional dos povos indígenas nas últimas décadas
(Gomes, 1988), mantendo sua identidade cultural e étnica, contra todos os prognósticos
pessimistas anteriores, e a sua inserção como atores políticos importantes nos cenários
nacional e internacional, organizados em um movimento indígena a partir do fim dos anos 70
(Ortolan Matos, 1997, 2006). Mais recentemente, Franchetto & Heckenberger (2001b:8-9)
afirmaram que a crítica a uma perspectiva não historicista já se tornou um clichê na
antropologia atual, cabendo às novas gerações a prática efetiva de uma antropologia histórica,
concebida em termos de uma articulação entre uma “história objetiva” (uma arqueologia da
cultura material e dos textos) e uma “história subjetiva” (uma arqueologia do corpo, das
práticas sociais, da linguagem e do saber histórico indígena).

11
Dentro de uma abordagem “histórica”, portanto, há diferenças significativas de
perspectivas e de objetos de pesquisa 11 . Embora não possam ser considerados frutos dessa
nova tendência histórica da antropologia, os estudos arqueológicos, como os trabalhos de
Roosevelt (1992) e Heckenberger (2001), que remetem a uma escala de tempo muito anterior
à colonização européia, têm suscitado questões relevantes sobre a constituição histórica das
sociedades indígenas atuais – o que seria continuidade ou mudança em relação a um passado
remoto? – e não devem ser marginalizados no estudo dos grupos remanescentes da época da
conquista. Como será discutido adiante, há evidências muito fortes que os Javaé atuais
partilham das características gerais atribuídas por Heckenberger (2001.) aos Arawak (ou
Aruak) centrais “pré-históricos”, que teriam persistido nos últimos mil anos e formando a
base do que hoje se chama de “cultura xinguana”. Do mesmo modo, uma perspectiva
lingüística (Urban, 1992) pode fornecer importantes informações sobre a história muito antiga
de formação e segmentação dos grupos indígenas atuais.
Não menos relevantes são os estudos etno-históricos, aqui no sentido de estudos sobre
o que os registros escritos dizem sobre a história dos povos indígenas específicos e sua
relação com a sociedade envolvente, muitas vezes aliados ao conhecimento etnológico que o
autor tem do grupo em questão 12 , ou a revalorização atual do que as fontes históricas podem
revelar em termos de conteúdo etnográfico e sua relação ou não com grupos atuais, como
aponta Viveiros de Castro (2002f) 13 . Uma outra forma essencial de manter uma abordagem
histórica na antropologia são os estudos sobre as tradições orais indígenas ou “etnohistória em
sentido estrito” (Viveiros de Castro, 2002f: 338), ou seja, os estudos sobre as teorias nativas a
respeito dos processos históricos de constituição de suas sociedades, muitas vezes incluindo
suas relações com os outros povos (indígenas ou não), o que remete à discussão anterior sobre
as relações entre consciência mítica e histórica.
Como parte do projeto maior de uma afirmação da historicidade e consciência
histórica dos povos indígenas, a maior parte deles, entretanto, têm se dedicado à compreensão
dos diversos gêneros da tradição oral nativos que lidam com a situação de contato interétnico,
considerando os não-índios como parte integrante da reprodução e origem do grupo ou
explicando de algum modo o surgimento do colonizador (coletâneas de Hill, 1988a e Albert &

11
Ver, por exemplo, as coletâneas editadas por Hill (1988a), Carneiro da Cunha (1992a), Viveiros de Castro &
Carneiro da Cunha (1993), Descola & Taylor (1993), Albert & Ramos (2000), Franchetto & Heckenberger
(2001).
12
Como os artigos de Taylor (1992), Renard-Casevitz (1992), Wright (1992), Lopes da Silva (1992) e Turner
(1992) na coletânea organizada por Carneiro da Cunha (1992a).
13
São exemplos os artigos de Porro (1992), Fausto (1992), Viveiros de Castro (1993).

12
Ramos, 2000, por exemplo). O que seria, segundo Turner (1988b:238, 242), uma “etno-
etnohistória”, ou seja, o estudo das formulações das sociedades indígenas sobre sua interação
histórica com a sociedade envolvente (em outras palavras, o estudo da etnohistória deles sobre
nós ou “ver a nós mesmos como os Outros dos outros”). Como lembra Albert (2000a:10),
reforçando o que já foi dito por Turner (1988b), não se trata apenas de “representações do
contato”, mas de “domesticação simbólica e ritual da alteridade dos brancos e neutralização
dos seus poderes nefastos”, possuindo um caráter de “pacificação às avessas”.
Os trabalhos que lidam especificamente com os gêneros narrativos igualmente têm
diferentes perspectivas dentro de uma abordagem maior histórico-antropológica. Hill (1988b)
também defende que, ao invés da proposta estruturalista que opõe o mito como ordem
intemporal à história como seqüência cronológica de eventos, mito e história, enquanto modos
complementares de consciência social, devem ser diferenciados de acordo com o peso
específico que cada um dá à relação entre estrutura e agência humana. Dentro dos gêneros
narrativos, haveria narrativas míticas, históricas e mítico-históricas, dependendo da ênfase
maior (história) ou menor (mito) na agência humana. Alguns autores que analisam narrativas
mítico-históricas concentram-se naquelas que trazem à consciência fatos empíricos, tratando-
as como uma versão cultural legítima do passado, em contraste com Lévi-Strauss, para quem
o mito é uma “falsa” ou “pequena” história, “a dos mais apagados cronistas” (1976:278-279),
no sentido de que os acontecimentos “reais” seriam tratados de forma puramente simbólica ou
“deformada” 14 .
Como lembra o próprio Hill (1988b:3), algumas das formulações dos povos indígenas
sobre os acontecimentos históricos, seja na forma de narrativas míticas ou outros gêneros de
narrativas orais, não devem ser lidas literalmente como relatos diretos dos processos
históricos, como na história documentada e escrita, mas isso não significa que são menos
“objetivas”: apenas que o apuro histórico não é separado do modo específico como as
diversas tradições interpretam os fatos ocorridos 15 . Ou, como diria Cohn (1994b:67), são

14
Overing (1995) critica a desqualificação do mito como “falso” com o argumento de que o mito e as teorias
científicas sobre a realidade partem de metafísicas (ou postulados de realidade) diferentes, de modo que seriam
incomensuráveis. Enquanto o mito seria teoria da existência preocupada com um universo social e moral,
baseada nas ações dos seres humanos, as teorias científicas falariam do universo físico, não social e separado da
intencionalidade humana.
15
“Objetividade” aqui não têm o sentido de verdade integral acessível ao observador isento, mas o sentido
weberiano (1949) de produto de uma relação entre a subjetividade limitante de um intérprete e os fatos
observáveis selecionados de acordo com critérios variáveis de valor. A história pretensamente mais objetiva
ocidental também não tem como escapar à “dialética entre fato e valor” que integra a etnografia e todo
conhecimento, como lembram os Comaroff (1992:9), mas que nem por isso invalida esse conhecimento
imperfeito.

13
histórias “mediadas pela cultura”. Trata-se de narrativas que fundem aspectos míticos e
históricos (seja no que refere ao conteúdo, à questão da temporalidade ou da agência; seja
quanto à forma), fornecendo uma versão baseada em critérios culturais de fatos que realmente
aconteceram. O que leva Carneiro da Cunha (1992b) a insistir na legitimidade da memória
indígena como testemunho fiel da ocupação territorial tradicional nos processos legais de
demarcação das terras indígenas.
É o caso, por exemplo, das narrativas Yura em Rasnake (1988:140), para quem, “em
termos de uma comparação com uma abordagem mais estruturalista, essa alteração poderia
ser expressa em termos epigramáticos como uma mudança ‘da oposição para a dialética’”.
Outros exemplos significativos são os trabalhos de Wright (1992, 2000) sobre as “lendas”
Arawak e Tukano a respeito do líder messiânico Venâncio Kamiko; Roe (1988), que também
chama de “lendas” a fusão Shipibo entre mito e história, mas que fornecem informações
precisas sobre o império Inca; e Franchetto (1992), que chama de “estórias” um dos tipos de
narrativa incluída em um gênero englobante que, para os próprios Kuikuro, não distingue as
narrativas “míticas” sobre os irmãos Sol e Lua das “estórias” mais realistas, embora não
totalmente desvinculadas de aspectos míticos, sobre a expedição de Von den Steinen e os
ataques do famoso bandeirante Antônio Pires de Campos. Ou seja, em muitos casos, é o
antropólogo que distingue artificialmente os tipos de narrativas, conforme critérios externos à
sociedade em questão 16 .
Ocorre que a maioria dessas narrativas mítico-históricas, ao invés de almejar uma
cronologia realista e linear sobre os fatos, está mais preocupada com certos temas ou as lições
morais dos episódios, o que não significa ausência de consciência histórica. Seria apenas uma
forma diferente de seleção dos fatos do passado, de acordo com os interesses do presente,
característica de toda memória coletiva, conforme já foi ensinado por Halbwachs (ver Coser,
1992a) 17 . Uma das diferenças essenciais entre mito e história, então, o que é uma outra
maneira antropológico-histórica de abordar os relatos orais, seria que, nas palavras de Turner
(1988b:252-3):

16
A esse respeito, ver Reeve (1988) e Ramos (1988). O próprio Turner (1988a:198), que propõe a divisão entre
consciência mítica e histórica, reconhece que “os próprios Kayapó não fazem a distinção entre ‘mitos’ e relatos
‘históricos’”; e que mito e história são mais difíceis de serem separados na prática do que na teoria (1988b:249).
17
O que não significa que não haja uma continuidade das memórias produzidas pelas gerações passadas, como
lembra Coser (1992b:34) em sua introdução à obra de Halbwachs: “a geração presente pode reescrever a história,
mas ela não a escreve em uma página em branco”.

14
“(...) O mito é uma tentativa de formular as propriedades essenciais da experiência social
em termos de uma série de ‘eventos genéricos’, em um nível que transcende qualquer
contexto particular de relações ou eventos históricos; a história, em contraste, interessa-se
precisamente pelo nível de relações particulares entre eventos particulares. (...) isso é
similar de vários modos à distinção de Aristóteles entre poesia e história (Aristóteles,
relembrando, preferia a poesia como o veículo de verdades essenciais e universais à
história, que meramente transitava em fatos contingentes, específicos, únicos ou, em uma
palavra, superficiais)”. 18

Muitas das narrativas mítico-históricas são analisadas sob essa perspectiva, ou seja,
sob o ponto de vista dos temas considerados realmente importantes ou da mensagem moral –
e que servem para todos os tempos – que os povos indígenas estão interessados em transmitir,
principalmente no contexto das relações com a sociedade envolvente, como forma de
construir uma postura ativa na situação desigual do contato (ver Carneiro da Cunha, 1992b). É
o caso das narrativas preocupadas em afirmar a autonomia, ainda que relativa, e o poder do
grupo frente ao branco dominador e superior tecnologicamente, como em Chernela (1988),
Chernela & Leed (2000), Rodrigues (1999), Wright (2000), Franchetto (2001), ou a
superioridade moral nativa (Ireland, 1988). Nas narrativas Wakuénai analisadas por Hill &
Wright (1988), o tema da liberdade versus escravidão é muito mais importante que a
cronologia exata dos fatos. Em outros casos, as narrativas são uma conceitualização do tema
da origem das desigualdades interétnicas, com repercussões messiânicas, como no artigo
inovador de Carneiro da Cunha (1987a); ou das contradições do contato, que são expressas
pelos Yura, em Rasnake (1988), através da ambigüidade do herói criador, ou pelos Shipibo,
em Roe (1988), através da dualidade da figura do colonizador, todos afirmando os poderes
nativos.
Em todos esses exemplos, entretanto, há uma mediação nítida entre temas profundos
ou propriedades essenciais da experiência social intemporais (ou pelo menos muito antigas) e
o contexto histórico específico ao qual se dirigem. Ou seja, o foco em temas importantes aqui
não tem o mesmo sentido não histórico da análise estrutural de Lévi-Strauss (1991) sobre as
variações mitológicas do suposto tema universal natureza/cultura. Ao contrário, são temas
intrinsecamente ligados a uma consciência histórica das sociedades em questão, o que
dissolve a rigidez da divisão entre temas essenciais e transcendentes do mito e fatos
superficiais e contingentes da história: as verdades profundas são mediadas pelo contexto

18
Bastos (2001) associa o ritual Kamayurá Kwarup ao tempo-mítico (tragédia) e o Jawari ao tempo-histórico
inferior (comédia), também comparando com a diferença aristotélica entre poesia e história.

15
histórico envolvente. O desejo de liberdade e autonomia pode ser universal e eterno, mas nas
narrativas mítico-históricas conecta-se à situação histórica específica de cada grupo 19 .
Uma outra forma antropológico-histórica de se lidar com os gêneros narrativos é
focalizar as construções nativas da temporalidade. Para Da Matta (1983:121-122), sociedades
como a dos Apinayé possuem “uma noção de tempo e de duração de tempo, mas não têm uma
perspectiva histórica”. Por “perspectiva histórica”, o autor entende uma consciência do
encadeamento sucessivo das transformações internas, ao longo de um tempo linear, em
termos de causas e conseqüências. Para os Apinayé, a dimensão temporal seria reduzida a um
presente anterior mítico (em que o mundo estava se formando e se cristalizou na forma atual)
e um presente atual, homólogo ao passado. Embora descontínuo, o tempo seria então um
eterno presente, marcado por uma oscilação cíclica e repetitiva entre essas duas fases fixas.
Repetindo o velho pressuposto das sociedades frias, Da Matta (1970) sugere que a história
(tempo que se transforma) introduz-se nos mitos sobre o surgimento do branco somente após
o contato com a sociedade envolvente.
Reagindo a essa perspectiva do mito contendo uma temporalidade congelada e
imutável, muitos trabalhos revelam que o mito não se refere a um tempo estático, embora
terminem quase sempre usando como exemplo os mitos sobre o encontro com o colonizador.
Assim ocorre, por exemplo, com Chernela (1988), que mostra como os mitos Arapaço se
apropriam e transformam os fatos históricos através da cultura, ou com Dillon and
Abercrombie (1988:72), para os quais o mito fala da dialética entre o que é pressuposto e o
que é criado dentro de uma dimensão não estática: “Através de suas estruturas mito-poéticas,
os mitos incorporam a recriação emergente e a destilação de premissas culturais (eles ‘falam
sobre a história’). Eles também são narrados em um contexto temporal-histórico que fornece
uma base referencial para o mito como um todo”. Hill & Wright (1988:79) criticam o mito
como “ordem atemporal” em Kaplan (1981:159), Lévi-Strauss (1976) e Sahlins (1995), e
mostram como o passado mítico Wakuénai é um conjunto heterogêneo e dinâmico de tempos
passados mais recentes ou distantes, de modo que, de um ponto de vista da temporalidade, as
narrativas nativas fundem mito e história (ver Reeve, 1988 e Passes, 2002, por exemplo). Os
autores em questão também discutem a espacialização da temporalidade, ou dito de outro

19
Ramos (1988) adverte que, uma vez que a consciência histórica dos índios não segue o estilo Ocidental de
expressão, é preciso que os antropólogos revisem o modo como costumam categorizar a realidade para capturar
de modo adequado as expressões nativas dessa consciência.

16
modo, como a passagem do tempo é interpretada nos mitos em termos de deslocamentos
espaciais 20 .
É importante lembrar, como adverte Roe (1988), que o mito, por um lado, pode
fornecer uma versão legítima e objetiva, dentro da lógica nativa, de fatos reais, mas, por outro
lado, é inegável que os mitos também podem inverter ou mistificar a realidade, com exemplos
absurdos, de modo a mostrar as conseqüências indesejáveis de um comportamento inaceitável
e assim manter o status quo. Em um artigo pioneiro, Bamberger (1979), embora considere o
mito como relativo a uma ordem imutável, revela o componente ideológico das mitologias
sobre o matriarcado original, comuns na América do sul: os mitos, baseados em fatos irreais,
justificam o poder masculino atual atribuindo incompetência e imoralidade às mulheres que
supostamente reinavam no início dos tempos. Os Comaroff (1992:28-29) fazem uma distinção
pertinente ao assunto entre “hegemonia”, como a parte da ideologia dominante que foi
naturalizada, de modo a não ser mais vista como uma ideologia artificialmente construída; e
“ideologia”, a contestação consciente do pensamento hegemônico.
Quanto mais naturalizado o pensamento hegemônico, maior a sua eficácia para quem
detém o poder, uma vez que a constituição do poder parece ser independente da agência
humana, uma estrutura “natural” e inquestionável (“uma vez que é somente através da
repetição que as coisas deixam de ser percebidas ou notadas, torna-se tão habituado a elas que
não são mais percebidas. Ao mesmo tempo, porém, nenhuma hegemonia é eternamente
total”). Essa dimensão ideológica do mito, desconsiderada na teoria estruturalista e relativa à
manutenção dos interesses de um determinado grupo, principalmente na questão de gênero, é
um componente que não pode ser desprezado na análise das narrativas míticas. Uma
perspectiva histórica que contemple o mito enquanto teoria nativa sobre a produção da
sociedade tem que levar em conta as estruturas de poder internas e externas, pois não há
sociedade constituída historicamente fora dos processos de contradição e conflito de
interesses, ainda que reduzidos à arena primordial das relações entre homens e mulheres.
A mitologia que remete a um mundo totalmente irreal, como no caso de
comportamentos sexuais bizarros e proibidos, pode ser analisada do ponto de vista
psicanalítico, junto com os sonhos, como expressão coletiva de fantasias sexuais, ou desejos e
conflitos. É o que faz Gregor (1985) em sua análise do conteúdo emocional das narrativas
Mehinaku. Embora sob um outro ângulo, Ireland (2001) mostra como as narrativas Waura

20
Exemplos variados de uma história espacial em Seeger (1981), Chernela (1988), Franchetto (1992), Basso
(2001).

17
sobre o contato fornecem suporte emocional, resgatando a segurança do grupo e a capacidade
de reagir, contrapondo-se aos sonhos individuais aterrorizadores sobre a violência traumática
experimentada no contato com os brancos. As mitologias indígenas podem ser analisadas sob
vários aspectos, às vezes aparentemente contraditórios entre si para o observador, mas que sob
a ótica nativa estão integrados em um todo coerente. Como bem observa Ramos (1988:28-
29):

“(...) Na verdade, na ordem mítica como nas inúmeras outras que existem numa cultura
indígena, já existe todo um universo de comentários sobre a vida, o mundo, tempo,
espaço, estática e movimento que transcendem de muito qualquer tentativa de retalhar em
fatias a experiência vivida. A racionalização para separar esferas, sejam elas mitos,
história ou o que for, não está nos discursos indígenas, mas na nossa necessidade de
organizar o material etnográfico em categorias familiares (....). Nossa dificuldade é
perceber e expressar um universo holístico, indiferenciado, semanticamente amalgamado,
de mensagens entrecruzadas. Porém, se nos é vedado reproduzir o contexto original onde
esse amálgama se deu, não é impossível tentar uma versão dele que seja inteligente e
inteligível”.

Como veremos ao longo deste trabalho, as narrativas Javaé sobre o passado, dentro de
uma visão de mundo holista, integram em sua discussão sobre a criação da realidade o que é
permanente e provisório, o irreal e o realista, o tempo linear e o descontínuo, um discurso
sobre o poder voltado para dentro e para fora da sociedade, as estruturas profundas que se
repetem e a ação criativa que inova, interligando a gênese dos Javaé e a dos não-índios.

1.3. O objeto de pesquisa: o corpus mítico e o corpo social

Partindo de uma abordagem antropológico-histórica, pretendo analisar o conjunto de


narrativas míticas Javaé enquanto uma teoria nativa sobre o processo de construção e
constituição não só da sociedade, mas da realidade como um todo. Tenho a intenção de
mostrar que o discurso mítico Javaé contém uma teoria da práxis, uma formulação nativa
sobre a historicidade da estrutura, sobre a relação dialética entre estrutura e agência, entre
continuidade e mudança, entre o que se herda como tradição e o que é criado pelos atores
sociais ao longo do tempo. Pretendo argumentar que, apesar das aparências em contrário, o
mito contém uma teoria a respeito de como se desenvolve a ação histórica, sobre a

18
responsabilidade dos seres humanos no processo de produção e reprodução das estruturas
sociais desde sempre. É à agência humana histórica, em última instância, que se atribui a
criação primordial das formas sociais e a sua contínua recriação posterior.
As narrativas Javaé sobre a criação da realidade não podem ser classificadas como
“mitos”, se a esse termo for dado o sentido de um modo de consciência social que
desconsidera o tema da agência (Turner, 1988b). E nem de “história”, se este conceito
restringir-se a uma cronologia linear e realista sobre o processo de construção da sociedade no
tempo, definição estreita já criticada por diversos autores, e aos pressupostos de que o
indivíduo é a unidade da ação transformadora ou que o processo de criação da cultura ou
sociedade é independente do meio ambiente circundante. O mito Javaé elabora de fato um
conceito de agência humana, mas o sujeito criador não está contido na unidade corporal e
social conhecida como “indivíduo” (ver Dumont, 1985). Ele reside no intervalo entre sujeitos
que se opõem, sendo definido muito mais como uma relação criativa entre opostos do que
como um dos opostos 21 . O sujeito da ação tampouco pode ser definido como uma consciência
racional ou como uma subjetividade imaterial e transcendente que se opõe a um corpo
determinado biologicamente, dentro da clássica divisão entre cultura e natureza. Ele é
indissociável do corpo que o constitui, o qual não tem origem e funcionamento autônomos,
sendo pensado como um produto social das relações entre os humanos.
Como acredito na comensurabilidade das questões humanas, o desafio aqui não é
simplesmente substituir os conceitos de mito ou história por uma palavra nativa intraduzível,
nem insistir nessa oposição aparentemente irredutível, mas estreitar a distância entre ambos e
preenchê-los com um novo conteúdo, com a perspectiva Javaé a respeito da agência social. As
narrativas sobre o passado, o que inclui um discurso sobre a criação da sociedade e de toda a
realidade envolvente, são produzidas no formato “mítico” a que os antropólogos estão
acostumados, mas ao mesmo tempo revelam um conteúdo “histórico”, no sentido de uma
elaboração nativa a respeito da complexa dialética entre estrutura e agência. Assim sendo,
quando usar o conceito de “mito”, ou mesmo de “mito-histórico”, estarei me referindo a uma
teoria Javaé sobre a produção da sociedade ao longo do tempo, no clássico formato mítico,
mas que contém um conceito peculiar de práxis, de modo que não deixa de ser “histórica”

21
Dentro do espírito do que é proposto por Strathern (1990) a respeito de um conceito relacional (ou não
individualista) de ação na Melanésia. Alguns autores (ver Taylor, 2000, Kelly Luciani, 2001, Fausto, 2002) têm
realizado uma aproximação entre os conceitos da autora em questão e uma teoria da pessoa amazônica, em
alguns casos estabelecendo uma relação entre as idéias de “divíduo” ou da dualidade da pessoa e a teoria da
predação ontológica (Viveiros de Castro, 1986, 2002d). Neste trabalho, entretanto, interessa mais conceitualizar
a unidade da ação socialmente produtiva, o que tem se mostrado muito próximo de alguns conceitos melanésios.

19
também, embora não no sentido restrito desta palavra. O “mito” aqui é uma verdadeira
“História”, inclusive na acepção de versão crível sobre o passado, desde que sejam
expandidos ou redefinidos os conceitos de estrutura, sujeito e agência humana. E o conceito
Javaé de História é o objeto central deste trabalho.
Dada a inter-relação entre estrutura e processo, a análise da mitologia enquanto um
modo de consciência social sobre o processo histórico de constituição da sociedade não se
dissocia da análise da sociedade propriamente dita, de sua “estrutura social”, dentro do
objetivo maior de uma fusão entre as perspectivas antropológica e histórica. Compreender o
que os Javaé definem como História, portanto, é inseparável de compreender a sua
organização social, de modo que a análise do mito como uma teoria da práxis ocorre
paralelamente à análise de como essa práxis histórica se realiza entre os Javaé, a sua forma
atual. Dentro desse contexto, veremos que a estrutura social é concebida pela mitologia como
sendo eminentemente histórica, como uma mediação constante feita pelos agentes sociais
entre interior e exterior, identidade e alteridade, continuidade e transformação. A grande
temática ameríndia da “abertura para o outro” (Lévi-Strauss, 1993:14), em que a sociedade
não existe “fora de uma relação imanente com a alteridade” (Viveiros de Castro, 2002c:220,
1986, 1993), será aqui articulada com uma teoria histórica do social.
Os Javaé têm não só uma visão holista e relacional da realidade, em que as partes estão
conectadas entre si e com o todo, mas também holonômica, em que cada parte contém e
constitui-se pelos mesmos princípios da ordem total 22 . A produção e a reprodução da estrutura
são feitas através de uma dialética da criação enunciada pelo mito e associada aos três grandes
ciclos da vida humana (em um sentido amplo, englobando a vida após a morte): do
nascimento à procriação, da procriação à morte, da morte ao renascimento. Como se trata de
momentos que inauguram novos estados do corpo, tais estados liminares de transformação
22
Holonomia “refere-se à lei ou princípio governante de todos os sistemas. (...) Como termo descritivo, a
holonomia refere-se ultimamente ao universo inteiro como uma teia inter-trançada e dinâmica, transcendendo
definição parcial ou analítica. (...) Cada nível ou subsistema abrange uma síntese ou holarquia (‘ordem total’)
que reflete a ordem do sistema completo – o universo – exprimível por conseguinte por um único modelo
holonômico ou unidade de informação. Ao contemplar e entender este modelo holonômico, pode-se chegar a
compreender o todo, como também os diferentes subsistemas, como facetas de um conjunto de ordens e
operações interagindo e interpenetrando-se mutuamente” (Arguelles, 1988:15). O que é diferente da idéia da
lógica pobre ou econômica do habitus (prática enquanto ignorância dos princípios arbitrários), como propõe
Bourdieu (1995), em que poucos princípios generativos são aplicados a vários universos lógicos. A holonomia
não se baseia em uma lógica pobre, mas em um reconhecimento de que as partes e o todo estão interligados. Por
outro lado, o conceito de holonomia parece não estar muito distante da idéia de “fractalidade”, enquanto “figuras
que apresentam a mesma forma em diferentes escalas” (Kelly Luciani, 2001:127), imagem emprestada da
matemática e que vem sendo usada na etnologia indígena (Fausto, 2002, por exemplo) na análise da pessoa:
“quando falo de personitude fractal, estou enfatizando tanto o encerramento de pessoas inteiras em partes de
pessoas quanto a replicação de relações entre Eus [selves] e Outros [alters] em diferentes escalas (intrapessoal,
interpessoal e intergrupal): dois lados de uma mesma moeda” (Kelly Luciani, 2001:95, grifos do autor).

20
contêm os mesmos princípios gerais da criação revelados pelo discurso mítico. Esse
pensamento relacional aqui significa também uma relação intrínseca entre o interior e o
exterior, em sentido parecido ao que Viveiros de Castro (1986, 1993, 2002c) confere à
construção da pessoa nas sociedades amazônicas. Porém, o foco da análise será muito mais a
ação social do que a pessoa, embora sejam áreas da socialidade Javaé indissociáveis. A idéia
de que a alteridade é imanente à reprodução da própria sociedade, como já reconheceu
Pétesch (2000) para os vizinhos Karajá, será analisada em sua dimensão inerentemente
histórica, uma vez que os Javaé concebem as transformações históricas não como um
processo linear e endógeno, mas como um produto de relações descontínuas com os outros
internos (as mulheres e afins) e externos (os estrangeiros).
A compreensão dos princípios de criação da cultura/sociedade e da realidade
dependerá do estudo dos conceitos e práticas nativas em relação ao corpo, tema fundamental
da etnologia sul-americana já há algumas décadas 23 , uma vez que a procriação é o modelo
nativo não só de todo e qualquer princípio de criação, como da incorporação da alteridade, a
partir da qual os corpos e a sociedade se reproduzem. A fabricação da sociedade é narrada
pela mitologia como se fosse a fabricação do corpo de um filho, pois a procriação é o modelo
Javaé de História, em que a sociedade é pensada como um corpo social produzido a partir da
interação entre opostos, entre um princípio feminino exógeno que transforma a ordem anterior
e um princípio masculino endógeno que tenta restaurá-la. A constituição da sociedade é
concebida como o resultado dessa mediação histórica e constante que os humanos fazem entre
continuidade e mudança, interior e exterior, ausência de relações e relações com a alteridade,
purificação e poluição, estrutura e agência, conceitos associados respectivamente aos
extremos cosmológicos do rio acima (ibòkò) e do rio abaixo (iraru), entre os quais vivem os
Javaé, autodenominados “o Povo do Meio” (Itya Mahãdu) 24 .
O fato básico da procriação, o mistério da reprodução humana, através da qual um
homem e uma mulher, juntos, produzem um novo ser, que é ambiguamente o mesmo e o
diferente, é o paradigma essencial de toda criação. A “comunidade de substância” (Da Matta,
1979) fornece um modelo de construção histórica da sociedade em que o sujeito criador não é
um indivíduo, mas uma fusão substancial entre o masculino (eu) e o feminino (outro), cujo
produto contém em si, transformados, os opostos que o formaram. A divisão cosmológica
23
Ver Seeger (1980), Seeger, Da Matta & Viveiros de Castro (1987), Turner (1980, 1995), Viveiros de Castro
(2002g).
24
Nome de meu trabalho anterior (Rodrigues, 1993), em que o “meio” tem um sentido mais restrito (espacial,
temporal) do que o que pretendo desenvolver aqui. Os Karajá também usam essa autodenominação, entre outras
(ver Pétesch, 2000).

21
ternária expressa em uma linguagem espacial e temporal a trindade criadora, associando o
masculino ao rio acima (ou nível superior), o feminino ao rio abaixo (ou nível inferior), e o
filho, produto da fusão entre ambos, ao nível terrestre, situado no meio do cosmos. Pretendo
propor que o conceito nativo de “meio” não se refere a uma posição estruturalmente fixa no
cosmos, mas muito mais a um conceito nativo de agência, a uma postura de mediação. A
abordagem histórica que utilizo difere do olhar estruturalista que Pétesch (2000) tem sobre a
organização social Karajá, povo culturalmente semelhante aos Javaé, para quem o triadismo
cosmológico, analisado separadamente de uma teoria da corporalidade, seria uma versão mais
dinâmica e aberta do dualismo Jê-Bororo.
Tem-se uma História corporal e “generizada”, como entre os Arawak do alto Rio
Negro (Hill, 2002), porque o processo de criação do social não se dá na forma de uma
intervenção reflexiva do sujeito humano sobre o mundo natural, como relação produtiva entre
sujeito e objeto, mas através de uma relação entre dois sujeitos humanizados. Entre os Javaé
não existe a separação conceitual entre aquilo que chamamos de “natureza”, a matéria
autogerada, e “cultura”, o domínio do arbítrio humano, cuja superação ainda é um desafio na
etnologia indígena atual, apesar da discussão em torno do tema 25 , de modo que a alteridade
não é naturalizada ou objetificada. Como tudo que existe na realidade partilha de uma
qualidade humana e corpórea, segundo o pensamento cosmológico e mitológico nativo, o
Outro não é um não-humano, mas um outro tipo de corpo humano, ou seja, um corpo
feminino. O conceito de diferença origina-se da diferença – que não é dada naturalmente –
entre os tipos de corpos humanos, entre os que se transformam mais (o feminino) e os que se
mantêm mais próximos de sua forma original (o masculino), de modo que a alteridade, de um
ponto de vista masculino, que é o ponto de vista do discurso mítico, é feminilizada. O
desenvolvimento de uma práxis histórica decorre da relação criativa entre dois tipos de
sujeito, um masculinizado e um feminilizado, em que se atribui tanto ao sujeito/corpo
masculino quanto ao feminino a capacidade plena de agência social.
Segue-se então que a compreensão de como se fabricam os corpos, o que não tem
qualquer conotação naturalizante aqui, é também a compreensão de como se fabrica a
sociedade, ou seja, da História. Ao se estudar a etno-Física e a etno-Biologia Javaé, a teoria
nativa sobre a criação da matéria e dos corpos, estuda-se ao mesmo tempo a sua etno-História,
desde que esses conceitos sejam expandidos e entendidos a partir de uma epistemologia
fundada basicamente na não separação entre natureza e cultura. A construção social da pessoa

25
Ver Descola (1992, 1994), Viveiros de Castro (2002g).

22
resume-se ao processo de transformação daquele que nasce como um estranho em um parente,
por meio do “fechamento” ritual do corpo que está aberto ao nascer, de modo análogo à
construção da cultura, pensada como a transformação da alteridade em semelhança, como o
fechamento parcial de uma estrutura aberta ao exterior. O processo permanente de
incorporação e controle relativo da alteridade, das modificações introduzidas a partir de
interações profundas com povos estrangeiros, é equivalente ao esforço social e ritual de
purificação das substâncias exógenas e poluídas provenientes do corpo feminino, de modo
que toda transformação provém das relações com o exterior.
A construção dos vínculos de parentesco, que não são concebidos como dados ou
naturais, é, em última análise, a própria construção histórica da sociedade, percebida como um
corpo aberto que se tenta fechar. O conceito de parentesco nativo, em estrito senso, a ser
examinado em detalhe, não pode ser traduzido pela noção de “consangüinidade”, assim como
a matrilinearidade não substancial Bororo (Crocker, 1985), o que insere os Javaé na discussão
sobre um novo conceito de parentesco (ver Carsten, 2000a). A oposição significativa aqui não
é entre consangüinidade dada e afinidade socialmente construída, associada ao contraste entre
natureza e cultura na teoria estruturalista (Lévi-Strauss, 1982), ou entre afinidade dada e
consubstancialidade construída, como no modelo inverso proposto por Viveiros de Castro
(2002h) para a Amazônia, mas entre ausência absoluta de relações (parentesco mágico ou
cerimonial) e relações substanciais e sociais intensas (afinidade). O parentesco social é um
estado intermediário e possível entre esses dois extremos da “relacionalidade”, concebido
como um processo de purificação das ligações substancias poluídas originadas na comunidade
de substância, cujo ápice é a identificação daquele que nasce com os aruanãs, os ancestrais
mascarados de corpos fechados.
O empenho social e ritual em domesticar a alteridade/afinidade – o que em termos
espaciais traduz-se como a posição intermediária dos humanos no cosmos – é semelhante ao
conceito de “familiarização” de Fausto (1999:936), que complementa o paradigma da
“predação ontológica” proposto por Viveiros de Castro (1986, 2002d). Entre os Javaé,
contudo, as relações com o exterior são compreendidas muito mais na linguagem da
“procriação” do que da “predação”, o que já havia sido antecipado de certa forma por Pétesch
(2000:231), que concluiu que “a predação canibal não é o paradigma relacional da sociedade
Karajá com seu meio ambiente. As relações de afinidade potenciais que ligam simbolicamente
os Karajá a seus parceiros exteriores revelam tanto, senão mais, o contato fecundante quanto a
agressão ou a incorporação oral”. Além dos Javaé não possuírem um ethos guerreiro,

23
relacionado à lógica da predação canibal, o Outro, embora seja também um afim simbólico, é
antes de tudo um ente feminilizado. A afinidade é pensada como uma tensa relação de
subordinação a um Outro a quem se deve prestações matrimoniais, como já foi demonstrado
por Turner (1979a) para o Brasil Central, e a reversão gradual desse estado de perdas, do
pondo de vista daquele que se submete aos afins, é um dos principais modos de exercício da
agência masculina restauradora, definida como uma tentativa de controle da alteridade. Vários
mecanismos internos, como o uso da tecnonímia, de uma terminologia de parentesco
“consanguinizante” e a Dança dos Aruanãs, o principal ritual Javaé, promovem a supressão
simbólica e ritual da afinidade.
A continuidade da estrutura é associada à ausência ou negação das relações, enquanto
a sua transformação é associada às relações fusionais com os outros. Internamente, esse
contraste é vivido através da complementação estrutural entre o princípio da primogenitura
(hierarquia), associado às relações cerimoniais na casa natal, e o da exogamia (reciprocidade),
associado às relações substanciais na casa dos afins, de um ponto de vista masculino. A
transmissão de identidades, prerrogativas e bens rituais de acordo com o critério da
primogenitura promove a identificação de seus detentores, através das gerações, com os
corpos fechados dos primeiros ancestrais, enquanto as relações de afinidade, através do
casamento preferencial com a prima cruzada bilateral e da regra da uxorilocalidade,
promovem a abertura dos corpos dos que procriam. Os ancestrais mágicos têm os corpos
fechados porque não mantêm relações de substância ou sociais entre si, sendo por essa razão
associados à repetição do mesmo, enquanto os humanos que procriam têm os corpos
relativamente abertos porque se relacionam, fundindo suas substâncias exteriorizadas em um
novo corpo, sendo por isso associados à transformação.
A primogenitura é associada ao masculino, ao rio acima, ao interior e à negação das
relações, enquanto a exogamia é associada ao rio abaixo, ao feminino, ao exterior e à
afirmação das relações, de modo que a estrutura é (pro)criada por meio da mediação tensa
entre esses dois princípios opostos ao longo do tempo. Diferentemente do modelo
estruturalista (Lévi-Strauss, 1982), em que as relações de troca entre grupos de afins
constituem a base da estrutura social que se repete ao longo do tempo, na teoria mitológica
Javaé, as trocas com o exterior, seja ele mais próximo ou mais distante, são a célula do
conceito de agência e levam sempre à modificação da ordem anterior. A reciprocidade é
pensada muito mais como um meio de transformação do que de perpetuação da estrutura. A
complementaridade estrutural entre primogenitura e exogamia, portanto, como a que existe

24
entre os Bororo e os Tukano, segundo Crocker (1976) e C. Hugh-Jones (1979),
respectivamente, é também histórica, conjugando continuidade e transformação ou estrutura e
agência no processo de produção da sociedade. O modelo da procriação fundamenta uma
concepção inerentemente processual e histórica da estrutura social, que independe do contato
com o colonizador europeu.
Como toda criação é concebida como uma relação entre o masculino e o feminino, ou
como algo que só ocorre através de um Outro, a mitologia atribui a formação do povo Javaé
atual a uma intensa interação histórica entre dois povos culturalmente diferentes, associados
simbolicamente a um princípio masculino conservador e a um feminino transformador. A
análise do discurso mitológico, rico em detalhes precisos, e da organização social, em
conjunto com os argumentos etnográficos, históricos e arqueológicos de autores como
Heckenberger (2001, 2002) e aqueles reunidos na coletânea de Hill & Santos-Granero (2002),
permitiu levantar a hipótese de que os Javaé atuais são o produto de uma complexa fusão
entre povos de origem Arawak e Macro-Jê, constituída a partir daquilo que Santos-Granero
(2002:28) chama de um contexto “transétnico” 26 . Dada a relativa excentricidade cultural dos
Karajá no panorama etnográfico do Brasil Central, cuja língua pertence ao tronco lingüístico
Macro-Jê, há um debate na literatura antropológica a respeito do assunto, em especial a partir
da proposta pioneira de Pétesch (1987, 1992, 1993a, 2000), para quem a estrutura social dos
Karajá seria uma espécie de passagem do continuum que ligaria os Jê-Bororo aos Tupi 27 .
A mitologia é considerada por mim como uma consciência histórica legítima e crível
não só porque contém uma elaboração a respeito da responsabilidade humana na condução do
seu destino coletivo, mas também porque revela de forma verdadeiramente iluminadora, do
ponto de vista etnográfico e histórico, as contribuições específicas de cada um dos grandes
formadores da cultura Javaé atual. Desse modo, a apresentação do discurso mítico sobre o
passado é inseparável de uma análise da organização social em si, de modo a se identificar ao
longo deste trabalho, em termos etnográficos, o que é caracteristicamente Arawak, cujos
representantes mais próximos em termos espaciais estão no alto Xingu, e o que é relacionado
aos Jê-Bororo, em especial, vizinhos históricos dos Javaé e Karajá. No que se refere aos Jê-

26
Em seu estudo sobre o alto Xingu, como veremos adiante, Heckenberger (2001) já havia sugerido brevemente
que os Karajá teriam sofrido influências dos Arawak.
27
Para Toral (1992:280), que discorda da autora, as instituições dos Karajá como um todo “parecem com as de
muitos grupos Jê e com nenhum em especial”, fazendo parte do “complexo cultural” Jê. Em seu trabalho sobre o
ritual de iniciação masculina Karajá, o Hetohoky, Lima Filho (1994:174) sugere cautela com a busca de
“soluções híbridas”, como a proposta por Pétesch, pelo fato da sociedade Karajá estar “longe de ser considerada
conhecida” do ponto de vista etnográfico. Entretanto, o autor aponta semelhanças temáticas entre o Hetohoky
Karajá e o ritual Kwarìp alto-xinguano, por um lado, e o rito de iniciação Kraho chamado Tepyarkwa, por outro.

25
Bororo, os Bororo parecem ser o povo culturalmente mais próximo dos Javaé, semelhança
esta já apontada antes por Pétesch (2000) em relação a alguns aspectos da cosmologia Karajá.
Pretendo argumentar que a Dança dos Aruanãs, cuja versão Javaé foi descrita parcialmente
em um trabalho anterior (Rodrigues, 1993), é uma versão nativa do tema clássico dos nomes
entre os Jê-Bororo a respeito da construção da pessoa e do contraste entre identidade
cerimonial e substancial 28 . Tal hipótese, inédita, foi formulada a partir da análise da
corporalidade, tema abordado antes por Rodrigues (1993) e Bonilla (2000).
Muito do que aqui é proposto só foi possível perceber quando tomei consciência de
que os inúmeros mitos que me foram narrados eram, na verdade, fragmentos de um único e
grande relato sobre “os tempos da criação”, como peças de um quebra-cabeças, organizados
dentro de uma certa linearidade temporal, e que só podiam ser compreendidos em sua relação
com o todo. Em respeito a esse pensamento relacional, holista e holonômico, optei por
apresentar o relato sobre os tempos primordiais como uma totalidade, no início desta
etnografia, ao invés dos episódios sem nexo entre si ou anexos, como se faz usualmente 29 . O
exame das práticas sociais será feito ao longo deste trabalho tendo como referência o que o
discurso mitológico diz sobre a sua origem, uma vez que, assim como entre os Tukano do alto
Rio Negro (C. Hugh-Jones, 1979, S. Hugh-Jones, 1979) e os Yawalapíti do alto Xingu
(Viveiros de Castro, 1977), praticamente toda questão que o antropólogo faz a um Javaé de
um modo ou outro tem sua resposta conectada à teoria mítica sobre a criação da realidade
social. Para eles, está muito claro que a compreensão da estrutura atual pressupõe a
compreensão do seu processo de formação histórica ou que as formas atuais são
indissociáveis de sua origem primeira. É essencial, portanto, saber o que essa teoria diz para a
construção de uma etnografia histórica.

28
Ver Melatti (1976, 1979), Da Matta (1976, 1979), Crocker (1979, 1985), Lave (1979) e Seeger (1980), por
exemplo.
29
O que não significa que eu tenha tido acesso a todos os mitos Javaé, nem que todos os mitos aos quais tive
acesso serão apresentados neste trabalho. Apenas que há um eixo central, composto dos fragmentos míticos
fundamentais, em torno do qual alguns episódios paralelos se agrupam, muitos dos quais serão apenas
resumidos.

26
1.4. Os Javaé na literatura etnográfica

A literatura antropológica e histórica registra que os Karajá seriam moradores


imemoriais do médio curso do Rio Araguaia (ver Mapa n° 1), livre de cachoeiras, em ambas
as margens, embora parte do grupo tenha se deslocado para viver em aldeias permanentes na
região ao sul da Ilha do Bananal mais recentemente, no século 19 (ver Mapa n° 4); que os
Javaé habitavam o interior da Ilha do Bananal, em especial a sua porção oriental, e afluentes
da margem direita Rio Javaés (ver Mapa n° 3); e que os Xambioá ou “Karajá do Norte”
(Toral, 1992:19) habitavam o trecho encachoeirado do baixo Araguaia. Considero aqui como
o “médio Araguaia” a porção do grande rio que se estende da atual cidade de Aruanã (na foz
do Rio Vermelho) à atual cidade de Araguacema (antigo Presídio de Santa Maria),
aproximadamente, onde começam os trechos encachoeirados do rio (ver Mapa n° 2).
A Ilha do Bananal, considerada a maior ilha fluvial do mundo, localiza-se no Estado
do Tocantins, entre as latitudes sul 12º 50’ e 9º 50’, e é constituída de inúmeros rios e lagos,
savanas inundáveis (conhecidas regionalmente como “varjão”), em sua maior parte, e matas
de galeria. Seu território possui cerca de 2.000.000 de hectares, distribuídos em uma área de
aproximadamente 322 km de extensão por 81 de largura nos pontos mais extremos (Tavener,
1966), e é coberto pelas águas do Araguaia em quase sua totalidade durante a estação cheia.
Ela está situada no médio curso do Rio Araguaia (Berohoky, “o Grande Rio”), cujo alto curso,
até a foz do Crixás, era denominado “Rio Grande” pelos colonizadores até meados do séculos
19 30 .
A ilha é formada a oeste pelo Rio Javaés ou “braço menor” do Araguaia, conhecido
nos séculos 18 e 19 como “Furo do Bananal” 31 , e é dividida ao meio, em seu sentido
longitudinal, pelos rios Jaburu (Ikòròbi Bero) e Riozinho (Wabe ou Wabewo), que atuam
como limites naturais entre o território Karajá, a oeste, e o território tradicional Javaé, a leste
(ver Mapa n° 5). O Rio Araguaia alcança 2.627 km de extensão (Benton, 1970:99), nasce na
Serra dos Kayapó, ao sul de Goiás, e desemboca no baixo Tocantins, no ponto setentrional
extremo do Estado de Tocantins, fazendo parte da bacia amazônica. Em grande parte de seu
curso, o Rio Araguaia corre por uma imensa planície inundável durante a estação das chuvas,
30
Ver Cunha Mattos (1979), Saint-Hilaire (1944), Pohl (1951), Alencastre (1864). Entretanto, o Engenheiro
Moraes Jardim (1880) e o Padre Estevão Gallais (1954) informam em 1880 e 1901, respectivamente, que o
Araguaia era ainda conhecido como Rio Grande até a foz do Rio Vermelho, trecho conhecido como alto
Araguaia.
31
Aires de Casal (1945), Cunha Mattos (1836, 1979), Baena (1848).

27
situada entre o Rio Xingu, a oeste, e o Rio Tocantins, a leste (para uma caracterização mais
completa das características ambientais e cartográficas da Ilha do Bananal, ver o Atlas do
Tocantins, 2001 e Costa Júnior, 1999).
É importante lembrar que o eixo do Rio Araguaia e seus tributários é o principal
referencial espacial dos Karajá e Javaé, que se referem às localidades situadas ao longo do rio
usando os conceitos de ibòkò, “rio acima”, e iraru, “rio abaixo” 32 . Ibòkò refere-se a tudo que
está acima do ponto onde se situa o sujeito da fala, e iraru ao que está abaixo, de modo que
são conceitos relacionais. “Acima” (em direção às cabeceiras) e “abaixo” (em direção à foz)
aqui têm um significado comum às populações ribeirinhas do centro-oeste e da Amazônia
meridional, relacionado à direção das águas dos grandes afluentes meridionais do Amazonas
(Araguaia-Tocantins, Xingu, Tapajós, Madeira etc), que normalmente coincide com o eixo sul
(rio acima) – norte (rio abaixo). Quando falar em algum ponto “acima”, portanto, estarei me
referindo a algum lugar situado ao “sul”; e quando falar em algum ponto “abaixo”, a algum
lugar situado ao “norte” do ponto de referência.
Nos anos 60, depois de um longo período de dúvidas, a lingüística reconheceu o
pertencimento da língua Karajá ao tronco lingüístico Macro-Jê (Davis, 1968, Fortune &
Fortune, 1986), embora ainda não tenha sido classificada em família, e a sua divisão em três
dialetos, pertencentes a três subgrupos distintos: os Karajá, propriamente ditos, os Javaé e os
Xambioá, os quais têm uma certa dificuldade em se compreender mutuamente (ver Toral,
1992). Mais recentemente, o lingüista Eduardo R. Ribeiro (2001/2002) propôs a diferenciação
da língua Karajá em quatro dialetos (Karajá do sul, Karajá do norte, Javaé e Xambioá).
A palavra “Karajá” seria de origem Tupi-Guarani, com o significado de “mono
grande” (o macaco guariba), e provavelmente foi atribuída ao povo em questão pelos
bandeirantes, segundo Baldus (1948:17). “Javaé” ou “Javaés” é palavra de origem
desconhecida. “Xambioá” seria derivação da expressão nativa ixy biawa (“povo companheiro
ou amigo”), como proponho em meu trabalho anterior (Rodrigues, 1993:10), baseada em
informações da época. Na pesquisa de campo posterior, obtive uma outra versão: a palavra
derivaria de sy biawa (sy tem o sentido de “lugar”, “casa”, ou “parente”, e biawa pode ser
“amigo” ou “outro” também), ou seja, seria “outro lugar”.
Como principal etnônimo, os Karajá e Javaé utilizam o termo Iny, palavra que
significa “gente” ou “ser humano”. Em seu sentido mais amplo, todos os seres humanos,
incluindo os não-índios, são iny (com letra minúscula). Em seu sentido mais estrito (com letra

32
Ver Donahue (1982), Toral (1992), Rodrigues (1993), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

28
maiúscula), refere-se apenas aos Javaé, mas os Karajá também o utilizam como etnônimo 33 .
Os dois grupos autodenominam-se também Itya Mahãdu (“O Povo do Meio”), em razão de se
conceberem morando no nível intermediário do cosmos, entre o nível subaquático e o nível
celeste (Taveira, 1982, Rodrigues, 1993), ou Ahana Òbira Mahãdu (“O Povo de Fora” ou “O
Povo com a Face de Fora”), em uma referência à ascensão mítica primordial, quando os
humanos que moravam no Fundo das Águas, um espaço fechado, saíram de baixo para o nível
terrestre atual, concebido como um lugar amplo e aberto (Rodrigues, 1993, Pétesch, 2000).
Na literatura, incluindo meu trabalho anterior (Rodrigues, 1993), tem-se a tendência de
descrever as três etnias como “subgrupos Karajá” ou como “os Karajá em geral”,
desconsiderando-se as especificidades de cada um, como foi notado por Bonilla (1997). Tal
perspectiva tem relação com o fato dos Javaé e Xambioá terem sido bem menos pesquisados
que os Karajá propriamente ditos. Na mídia escrita ou televisiva, a visibilidade dos Karajá e
das famosas praias do Araguaia, já apontada por Pétesch (2000), é incomparavelmente maior
que a dos Javaé, que nas poucas vezes em que são alvo de interesse tendem a ser chamados de
“Karajá”. De fato, não há como negar as semelhanças em termos de língua, organização
social, rituais, mitologia ou cosmologia, mas a pesquisa mais aprofundada entre os Javaé tem
revelado que as diferenças são muito maiores do que se supunha antes, como já havia sido
sugerido pelo etnógrafo americano Lipkind a Baldus (1970:67), em carta de 1939.
No caso do importante e complexo ritual de iniciação masculina (Hetohoky), por
exemplo, apesar de uma estrutura temática em comum, as diferenças na forma como o ritual é
realizado entre os dois grupos são tantas que se poderia dizer que o ritual Javaé é quase um
outro ritual em comparação ao dos Karajá, que foi estudado e descrito, em maiores ou
menores detalhes, por vários autores 34 . A questão relevante, contudo, é que os Javaé
enfatizam muito mais as diferenças e concebem a si próprios como um grupo étnico diferente
dos Karajá, no sentido da auto-identificação discutida por Carneiro da Cunha (1987c), com
referência aos trabalhos de Barth (1969) e Cardoso de Oliveira (1976). Os Karajá são tidos
como um dos diversos povos ixyju (“estrangeiros”) que habitavam a região, com toda a carga
pejorativa que essa palavra pode alcançar. Do mesmo modo, os Karajá chamam os Javaé de
ixyju 35 e se consideram moralmente superiores (Bonilla, 2000).

33
Ver Donahue (1982), Toral (1992), Rodrigues (1993), Pétesch (2000).
34
Ver Dietschy (1977, 1978), Fénelon Costa (1978), Bauer (1984), Souza Filho (1987a, 1987b, 1987c, 1987d),
Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994) e Pétesch (1992, 2000).
35
Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

29
Os Javaé não se percebem como um “subgrupo Karajá”, atribuição considerada
ofensiva (ver Portela, 2006), mas como um povo único e como a principal fonte cultural e
lingüística da qual os Karajá e Xambioá se nutriram. Nos anos 90, os Javaé tinham
consciência de que os Karajá eram bem mais conhecidos no cenário nacional e estavam
mobilizados para reverter essa situação. Seis meses depois de minha chegada a Canoanã, em
1997, fiquei sabendo que o novo cacique havia autorizado a minha pesquisa como parte do
projeto político maior dos Javaé “terem um nome”, tornando-se tão ou mais conhecidos que
os Karajá. Em consideração a essa autopercepção diferenciada, o presente trabalho tenta
apontar as diferenças mais significativas entre os Karajá e Javaé – tanto em termos culturais
como históricos – a partir de uma comparação entre os meus dados e o que foi publicado de
mais expressivo etnográfica e históricamente sobre os dois grupos 36 .
A língua Karajá, estudada por vários pesquisadores 37 , é conhecida pela notável
diferença entre a fala masculina e a fala feminina (ver Fortune & Fortune, 1975 e Borges,
1997), apesar desta última ser a mais conservadora, segundo Ribeiro (2001/2002, 2005). De
acordo com Fortune & Fortune (1986), a diferença consta de 30% das palavras usadas pelas
mulheres e é marcada na maior parte dos casos pela letra k, como na palavra para “chuva”
(biu, para os homens, e biku, para as mulheres). Entre os Javaé, cujo dialeto apresenta maiores
diferenças intrínsecas em relação aos outros, segundo os mesmos autores, a diferença persiste,
ao contrário do que supuseram alguns antropólogos (Donahue, 1982, Pétesch, 2000), embora
não seja tão acentuada como entre os Karajá e Xambioá.
As palavras Javaé apresentadas neste trabalho seguem, em sua maioria, a grafia
feminina. Assim como entre os Karajá da Ilha do Bananal (Pimentel da Silva, 2001, Maia,
2001), a língua nativa é predominantemente usada no cotidiano Javaé. Mas conforme
descreveu o lingüista Marcus Maia (1986:3), no início dos anos 80 ainda havia um contraste
acentuado entre uma maioria de homens bilíngües e uma maioria de mulheres e crianças
monolíngües, estas últimas “revelando, apenas, em alguns casos, um conhecimento passivo da

36
Os Xambioá, por sua vez, parecem ter uma percepção diferente dos Javaé. Enquanto estes últimos tentam se
diferenciar dos Karajá no cenário político regional e nacional, os Xambioá (assim chamados pelos Javaé)
buscam uma aproximação, preferindo a autodenominação “Karajá do Norte” (ver Toral, 1992). Em uma
conversa em Brasília, em fevereiro de 2007, com Ikulari Vanderlei Karajá, presidente da Associação Iraru
Mahãdu e ex-cacique dos Karajá do Norte, fiquei sabendo que esse grupo do baixo Araguaia, que no momento
vive um intenso processo de “revitalização cultural”, tem o projeto político de ser reconhecido como um grupo
Karajá. Os Karajá do Norte são os Iraru Mahãdu (Povo de Baixo) e referem-se aos Karajá propriamente ditos
como Ibòkò Mahãdu (Povo de Cima), em uma alusão ao eixo fluvial do Araguaia.
37
Fortune & Fortune (1975, 1986), Davis (1968), Fortune (1973, 1988), Maia (1986, 2001, 2002, 2004),
Cavalcante (1992), Borges (1997), Viana (1995), Fialho (1998), Ribeiro (1996, 2001/2002), Pimentel da Silva
(2001).

30
língua portuguesa”. Tal não é mais a situação atual, em que as mulheres e crianças, em sua
maioria, falam e entendem o Português, embora nem sempre com a mesma desenvoltura dos
homens jovens.
Os Javaé mantiveram-se muito mais isolados da sociedade nacional do que os seus
vizinhos Karajá, o que se refletiu no número de pesquisadores que visitaram os dois grupos e
a quantidade de trabalhos produzidos. Em seu comentário sobre as fontes bibliográficas a
respeito dos Karajá, Lima Filho (1999) lembra que “as referências sobre os Karajá somam
aproximadamente 900 títulos (860 dos quais constam na conhecida Bibliografia Crítica da
Etnologia Brasileira, de Herbert Baldus)”. Mas é comum que aqueles que escreveram sobre os
Karajá insistam em um velho paradoxo: apesar de muito visitado ou das muitas fontes escritas
a seu respeito, trata-se de um grupo ainda pouco conhecido. Entre os textos etnográficos mais
antigos e relevantes, temos os trabalhos de Ehrenreich (1948), Fritz Krause (1940-1944),
Herbert Baldus (1937, 1948, 1970, 1976), William Lipkind (1940, 1948), Hans Dietschy
(1960, 1974, 1976, 1977, 1978), que publicou vários artigos em alemão também, e
Christopher Tavener (1966, 1973).
Como já disse Lima Filho (1999), “as etnografias modernas iniciam-se com a tese de
livre docência de Maria Heloísa Fénelon Costa sobre a arte e o artista Karajá em 1968”
(Fénelon Costa, 1978), cuja ênfase em uma antropologia da arte e da cultura material foi
seguida por Wilma Chiara (1970), Edna Taveira (1982) e Chang Whan (1998). Os outros
trabalhos que se destacam, dedicados aos temas clássicos da antropologia, como organização
social, mitologia, cosmologia e rituais, são as dissertações de Mestrado de André A. de Toral
(1992) e Manuel F. Lima Filho (1994) e as teses de Doutorado de George Donahue (1982),
Marielys Bueno (1987) e Nathalie Pétesch (1992, 2000). Temos também os vários artigos de
Desidério Aytai (1977, 1978, 1979a, 1979b, 1980, 1982a, 1982b, 1983a, 1983b, 1985, 1986,
1988a, 1988b, 1993a, 1993b) e, mais recentemente, as dissertações de Mestrado de Helena
Schiel (2005), uma revisão bibliográfica dos outros trabalhos, e a da historiadora Cristiane
Portela (2006).
No que se refere aos Javaé, especificamente, o etnógrafo alemão Fritz Krause (1940-
1944) fez uma pequena, mas importante, visita de alguns dias a uma aldeia Javaé, durante a
sua expedição ao Araguaia em 1908, produzindo o primeiro relato etnográfico mais
substancial sobre o grupo. O antropólogo americano William Lipkind (1940, 1948), que
realizou 18 meses de pesquisa entre 1937 e 1939 entre os Karajá, na mesma época em que seu
colega da Universidade de Colúmbia, Charles Wagley (1988), esteve entre os vizinhos

31
Tapirapé, também fez uma visita de alguns dias a uma aldeia Javaé, embora tenha publicado
muito pouco dos dados recolhidos em sua pesquisa como um todo. Em 1959, acompanhada de
seu marido, Harald Schultz, Wilma Chiara (1970) realizou uma visita de três semanas a uma
aldeia Javaé do Riozinho, no interior da Ilha do Bananal, para filmar a cerâmica nativa, como
parte de sua pesquisa de Doutorado sobre as bonecas de barro Karajá. O pesquisador alemão
Matthias Bauer (1971) escreveu uma dissertação de Mestrado com uma revisão bibliográfica
sobre os Karajá, à qual não tive acesso pelo fato de não ler em alemão. Na década de 80,
Bauer esteve entre os Javaé e Karajá, produzindo relatórios oficiais (1984/1985, 1985) com
dados sobre o ritual de iniciação masculina Karajá, os quais não consegui encontrar nos
arquivos da FUNAI.
A primeira pesquisa de campo antropológica mais aprofundada seria realizada por
André Toral entre 1978 e 1991, época em que o autor realizou uma série de pequenas viagens
aos Javaé (totalizando cerca de 5 meses de pesquisa de campo), Karajá (cerca de 8 meses) e
Xambioá (cerca de 10 dias), o que resultou na sua dissertação de Mestrado (1992) para o
Museu Nacional (UFRJ) sobre a “sociedade e cosmologia Karajá”. Em 1998, Toral (1999)
realizou a identificação oficial da Terra Indígena Inãwébohona, habitada na maior parte pelos
Javaé da porção setentrional da Ilha do Bananal. Apesar das importantes informações sobre
diversos aspectos da organização social, da vida ritual e da cosmologia em sua dissertação,
não se trata, contudo, de um trabalho específico sobre os Javaé, uma vez que Toral está mais
interessado naquilo que seria comum aos “povos de língua Karajá”, considerados como
subgrupos Karajá.
Uma generalização como essa, entretanto, só poderá ser tentada depois de melhor
investigadas as diferenças fundamentais entre os três, lembrando ainda que se sabe quase
nada, em termos etnográficos, sobre os Xambioá. Haveria, inclusive, além das diferenças
dialetais (Ribeiro, 2002) e históricas (Tavener, 1966, 1973), algumas diferenças culturais sutis
entre os Karajá meridionais e os setentrionais (que não se confundem com os Xambioá),
mencionadas preliminarmente por Chiara (1970). Embora Toral aponte algumas diferenças
entre os Karajá e os Javaé, em várias passagens o autor trata dos dois como se fossem “os
Karajá”, chegando a atribuir aos Javaé características que são exclusivamente dos Karajá,
como a filiação patrilinear aos grupos cerimoniais, assunto a ser retomado.
Entre 1996 e 1999, Oiara Bonilla esteve durante 5 meses entre os Javaé e Karajá da
aldeia Txuiri, onde antes existiu o povoado não-índio Porto Piauí, tendo produzido uma
monografia de graduação em Ciências Sociais para a Universidade de Paris X – Nanterre

32
(1997) e uma dissertação de Mestrado em Antropologia (2000) para o Museu Nacional
(UFRJ). A autora teve o privilégio histórico de acompanhar de perto o processo político de
retomada do local pelos Javaé e Karajá, iniciado em 1995, de modo que os dois trabalhos
enfocam a reconstrução do novo lugar a partir das categorias espaciais e cosmológicas
tradicionais, conciliando continuidade e mudança. As novas formas de apropriação do corpo,
dentro do mesmo espírito de reprodução criativa das estruturas simbólicas anteriores, são um
tema também abordado pela autora (2000, 2003). Atualmente (2007), Sônia Lourenço realiza
uma pesquisa sobre música entre os Javaé, especialmente os da aldeia Wariwari, para a
conclusão da sua tese de Doutorado em Antropologia pela Universidade Federal de Santa
Catarina.
Além dos antropólogos citados, pesquisadores da área de lingüística estiveram entre os
Javaé: em 1958, os lingüistas do Instituto Lingüístico de Verão (SIL) David e Gretchen
Fortune iniciaram suas pesquisas sobre os dialetos Karajá e Javaé, a partir do que foi proposta
uma pioneira análise da gramática e um sistema ortográfico para a língua Karajá, utilizado
pelos Javaé e por mim neste trabalho. Em 1971, o casal iniciou um projeto de alfabetização
bilíngüe (Programa de Educação Bilíngüe-Bicultural do Araguaia), que teve grande
repercussão entre os Karajá e Javaé nos anos 70 e 80 (ver Fortune & Fortune, 1986, Maia,
2002).
Em 1983/1984, o lingüista Marcus Maia, vinculado ao Museu Nacional, pesquisou o
dialeto Javaé na aldeia Boto Velho, o que resultou em sua dissertação de Mestrado (1986),
publicada em 1998, e na elaboração de um programa de alfabetização bilíngüe (2002) para os
Javaé da aldeia mencionada. O autor pesquisou posteriormente o dialeto Karajá, produzindo
artigos com importantes informações de cunho antropológico (1997, 2004), e deu
continuidade a projetos de educação entre os Karajá (2001). Desde os anos 90, o lingüista
Eduardo Rivail Ribeiro, doutorando da Universidade de Chicago (EUA), tem pesquisado a
língua Karajá e suas variações dialetais. O autor produziu uma dissertação de Mestrado
(1996) pela Universidade Federal de Goiás e vários artigos sobre o assunto, dos quais destaco
aqui o estudo (2001/2002) sobre os empréstimos do Tupi-Guarani na língua Karajá, também
com importantes conseqüências para a Antropologia.

33
1.5. A pesquisa de campo

Desde criança, eu tinha a vontade muito clara de um dia viver entre os índios. O meu
primeiro contato com os Javaé se deu em 1990, aos 24 anos de idade, quando realizei 6 meses
de pesquisa na aldeia Canoanã, entre abril e outubro, para escrever uma dissertação de
Mestrado em Antropologia (Rodrigues, 1993) para a Universidade de Brasília. Cheguei aos
Javaé por uma sugestão inspirada da Professora Alcida Ramos, minha orientadora acadêmica,
que não imaginava que estava me enviando de volta ao Araguaia da minha infância e
adolescência, onde por mais de 20 anos acompanhei minha família em acampamentos
isolados e repletos da vida selvagem que me fascinava.
Meu colega de Mestrado e amigo Manuel Ferreira Lima Filho estava realizando a sua
pesquisa entre os Karajá da aldeia Santa Isabel do Morro e a Professora Alcida, que primeiro
pensara em me enviar aos Mayongóng da fronteira venezuelana, considerou que seria
conveniente uma pesquisa conjunta na Ilha do Bananal. De certo modo, eu estava voltando
para onde me sentia em casa, apesar do assombro com a alteridade humana, e a primeira e
intensa experiência entre os Javaé, com sua Casa dos Homens e cerimoniais deslumbrantes e
cotidianos, foi um caso explícito de amor à primeira vista. A minha vida e o meu olhar sobre
o mundo nunca mais foram os mesmos depois de Canoanã, onde a verdadeira surpresa não foi
a diferença do Outro, mas a possibilidade de transcendê-la nos relacionamentos afetivos que
surgiram a partir de então.
O encantamento, porém, foi abruptamente interrompido ao fim de 6 meses de campo,
quando o chefe de posto da FUNAI, que desde o início de minha pesquisa se sentiu ameaçado
com a presença de uma outsider em seus domínios e tentou de vários modos atrapalhar a
minha inserção no grupo, conseguiu me expulsar de Canoanã. Contando com a cumplicidade
do cacique de então, que depois confessou seu arrependimento a várias pessoas, o chefe de
posto inventou que eu tinha tirado fotos no interior secreto da Casa dos Homens e obteve o
álibi que precisava para confiscar meus filmes e me mandar embora da aldeia, de um dia para
outro, em meio a uma platéia atônita. Na época, eu estava me preparando para assistir ao
Hetohoky Javaé, que iria ser realizado pela primeira vez depois de quase dez anos, mas tive
que sair da aldeia às pressas, distribuindo os meus bens entre os conhecidos e temendo que os
meus cadernos de campo também fossem alvo do ato arbitrário. Passado algum tempo,
enquanto eu dava entrada em um processo administrativo na FUNAI para que os filmes

34
fossem revelados e devolvidos, o que ocorreu quase um ano depois, fiquei sabendo que as
duas mulheres de idade com quem tive uma convivência mais próxima entoaram a lamentação
ritual tradicional Javaé no dia de minha partida.
Para a minha surpresa, os Javaé não me abandonaram. Alguns deles passaram a manter
contatos telefônicos comigo e de vez em quando encontrava um ou outro quando eles vinham
a Brasília. Os anos se passaram, eu enviei a minha dissertação de Mestrado para as aldeias, o
chefe de posto acabou sendo mandado embora da aldeia também, um outro cacique assumiu a
chefia de Canoanã e, em 1996, quando estava realizando meus estudos de Doutorado na
Universidade de Chicago, decidi pedir permissão à FUNAI e aos Javaé para uma nova
temporada, agora de um ano, em Canoanã. E quebrando uma antiga maldição sobre a qual
ainda se escutam comentários furtivos de antropólogos mais experientes nos bastidores
acadêmicos – a de que os antropólogos que estudam os “Karajá” não conseguem terminar o
seu trabalho ou não retornam mais para dar continuidade à sua pesquisa –, vivi muito bem por
onze meses em Canoanã entre março de 1997 e abril de 1998, apesar dos sentimentos de
tédio, angústia e saudade do familiar que me inundaram em vários momentos.
Assisti então, perplexa com a sua complexidade e exausta por tentar acompanhar
todos os detalhes possíveis, dia e noite, a uma versão completa do desconhecido Hetohoky
Javaé. Saber o que se passava dentro da Casa dos Homens, mais do que nunca, continuou
sendo o meu objeto de desejo mais cobiçado, embora nunca tenha entrado no recinto
masculino sagrado, a não ser no dia especial do ritual de iniciação em que todas as mulheres
são autorizadas a entrar na Casa Grande. Nessa segunda etapa de campo, haviam caído muitas
das resistências iniciais dos Javaé à presença de uma pesquisadora mulher e suas indagações
infinitas em um ambiente fortemente marcado por segredos masculinos e interdições rituais às
mulheres. Meu caderno de anotações já não era visto com tanta desconfiança e eu fui
autorizada pelo chefe cerimonial a fotografar eventos do ritual de iniciação em momentos ou
lugares em que as mulheres não poderiam estar. Aos poucos, passei a pertencer a uma
categoria de gênero relativamente ambígua, em que às vezes eu podia transitar por espaços ou
situações normalmente vedados às mulheres. Mesmo assim, continuei sendo definida, em
última instância, pela minha condição de gênero, pois certas barreiras sempre foram
intransponíveis.
Estabeleci relações duradouras de pesquisa com pessoas de diferentes idades, gêneros
e status sociais, das quais omito os nomes, apesar do desejo de homenageá-las em razão de
suas admiráveis qualidades intelectuais, intuitivas e humanas, em respeito ao pacto coletivo

35
pela manutenção dos segredos da Casa dos Homens em público. Posso falar o que me foi dito,
até certo ponto, mas não revelar quem me falou. A árdua tarefa de escrever sobre atividades e
conhecimentos secretos só se justifica em nome do ideal maior de que a compreensão radical
das diferenças – o sentido mais nobre do ofício do antropólogo – reverta-se em ato político de
tolerância e respeito ao Outro e suas manifestações por parte da sociedade envolvente.
Nessa nova etapa de campo, a pesquisa foi em sua maior parte um reencontro com
antigos informantes, o que me permitiu um aprofundamento bem maior do que aquele obtido
na primeira fase de iniciação ao mundo Javaé. Optei por morar sozinha em uma casa ao lado
da família que me acolheu, com quem dividia as refeições e o cotidiano, para poder receber
livremente as pessoas em um espaço neutro. Apesar de conversar com membros de diferentes
facções, com sérios conflitos entre as respectivas famílias, ou de freqüentar as suas casas,
nunca fui associada a nenhuma família ou pessoa específica, de modo que os Javaé sempre
souberam separar seus conflitos internos das minhas relações com eles.
Não me dediquei ao aprendizado gramatical da língua nativa, embora conheça
palavras em profusão, também por uma opção estratégica. O problema do alcoolismo em
Canoanã havia se acentuado bastante em relação à minha primeira estada e algumas das
pessoas mais importantes com quem trabalhei nem sempre estavam disponíveis para a
pesquisa, o que me obrigou a restringir os encontros etnográficos aos assuntos de meu direto
interesse.
Na minha primeira fase de pesquisa, em 1990, quando os Javaé moravam em apenas
quatro aldeias e estavam concentrados, em sua maior parte, em Canoanã, permaneci por uma
semana na aldeia Boto Velho, onde conheci Inywèbohona, sítio de um famoso episódio
mitológico, e de onde atravessei o norte da Ilha do Bananal para conhecer a aldeia Macaúba,
dos Karajá. Pude visitar a aldeia Barreira Branca e participar de expedições de pesca dos
Javaé no Lago Sòhoky e na Mata Azul. Ao fim da pesquisa, um rapaz de grande habilidade
lingüística me acompanhou a Brasília por dois meses, onde realizamos a tradução de mitos e
músicas gravados na língua nativa.
Na segunda fase de campo, quando os Javaé estavam morando em 7 aldeias, realizei
com dois acompanhantes Javaé uma viagem fluvial de ida e volta entre Canoanã e Boto
Velho, por 10 dias, em maio de 1997, a fim de conhecer as novas aldeias Txuiri e Wariwari,
além de realizar o levantamento in loco de todos os nomes que os Javaé dão às inúmeras
curvas do rio no trecho percorrido. Conheci, no caminho, os sítios de antigas aldeias Javaé na
margem do Rio Javaés, como Hededura Luku, Wyhy Raheto Dijarana e Txukòkè, por

36
exemplo. Em Wariwari, visitei o Rio Wariwari, além do cemitério e do lugar exato da antiga
aldeia Wariwari, a cerca de 5 km da nova aldeia. Em setembro de 1997, um guia Javaé me
levou ao Lago do Bananal (Kwely Ahu), no interior da Ilha do Bananal, onde conheci o
famoso bananal nativo que dá nome à ilha, o local onde surgiu o mítico Tòlòra (uma
depressão de terra no meio da mata onde está o bananal) e o lugar da antiqüíssima e não mais
habitada aldeia Marani Hãwa e seu cemitério. Realizei também pequenas viagens de carro às
aldeias São João, Txuiri e Barreira Branca, passando pela Barra do Rio Verde.
Terminada a pesquisa mais longa em Canoanã, desde então alguns Javaé continuaram
mantendo contatos telefônicos freqüentes comigo, o que se intensificou a partir de 2000,
aproximadamente, quando foram instalados telefones públicos nas aldeias. Nossas conversas
por telefone têm permitido me manter atualizada em relação aos principais fatos ocorridos nas
aldeias e na região e, em várias ocasiões, me permitiram tirar as dúvidas etnográficas que
surgiram durante a escrita da tese. Muito recentemente, alguns deles passaram a ter acesso à
Internet, por meio da qual também conversamos. Às vezes, hospedo em minha casa os Javaé
com quem tenho mais proximidade e que vêm a Brasília por motivos variados. Em 2000,
realizei outra viagem fluvial entre Canoanã e Boto Velho por 10 dias. Em 2002, atendendo a
uma solicitação minha, um Javaé permaneceu por 20 dias em minha casa, ocasião em que
pudemos avançar com profundidade sobre vários temas etnográficos.
Na época de realização do ritual de iniciação masculina da aldeia São João, em
dezembro de 2005 e janeiro de 2006, fui convidada pelo pai de um dos meninos que iam ser
iniciados para filmar e fotografar o ritual. Passei então 20 dias na aldeia São João e pude
assistir, mais uma vez, a uma versão completa do Hetohoky Javaé. Novamente fui autorizada
pelo chefe ritual a fotografar e, desta vez, a filmar eventos em lugares vedados às mulheres, o
que fiz sob grande tensão. Comprometi-me a entregar cópias do material filmado para todas
as aldeias, o que teve uma repercussão absolutamente inesperada para mim. Apesar do meu
amadorismo nessa área, o filme foi um sucesso entre os Javaé, que me convidaram para filmar
– e eu aceitei – a versão menor do ritual de iniciação (Hetohoky Wèkèrè) que ocorreu em
dezembro de 2006, por 10 dias, na aldeia Canoanã.
Ainda no final de 2006, fui selecionada pela FUNAI/PPTAL, por meio de edital
público, para efetuar os estudos de identificação e delimitação oficial da terra dos Karajá e
Javaé, na parte norte da Ilha do Bananal, que está sob domínio legal do IBAMA (Rodrigues,
2008). Realizei então 20 dias de pesquisa entre os Karajá durante os meses de maio de junho
de 2007, quando visitei por via fluvial as aldeias Nova Tytema, Santa Isabel, Watau, JK,

37
Fontoura, Kaxiwè, São Domingos, Teribrè, Itxala, Hãwalora, Maitxàri, Macaúba e Ibutuna
(ver Mapa n° 2). Mais ao norte, visitei os povoados Lago Grande e Barreira de Campo, onde
vivem famílias Karajá, e as aldeias Santo Antônio e Maranduba, ao lado do povoado de Santa
Maria das Barreiras (antiga Barreira de Santana), já no Pará. Fiz reuniões informativas em
todas as aldeias mencionadas e pesquisa mais aprofundada na aldeia Macaúba e com os
Karajá mais setentrionais que pescam na ponta norte da ilha. Visitei com guias Karajá e
munida do aparelho GPS os principais sítios de aldeias e cemitérios antigos, nas duas margens
do Araguaia, entre a aldeia São Domingos e a cidade de Santa Maria das Barreiras. Conheci
pessoalmente Inysèdyna, o local mítico de surgimento dos Karajá, e o Lago Bora, onde teria
surgido o extinto povo Wèrè.
Em várias aldeias recolhi por escrito demandas dos Karajá quanto ao reconhecimento
oficial de terras ocupadas imemorialmente na margem oeste do Araguaia. Aproveitando a
realização da segunda etapa de campo entre os Javaé, a FUNAI autorizou que também fossem
efetuados os estudos de identificação das terras reivindicadas pelos Karajá da aldeia São
Domingos e das aldeias da Barra do Tapirapé (Itxala, Hãwalora e Maitxàri). Permaneci,
então, em julho e agosto de 2007, por 13 dias entre os Javaé, a maior parte do tempo na aldeia
Boto Velho, e por 20 dias entre os Karajá das aldeias mencionadas. Tive a oportunidade de
conhecer a nova aldeia Javaé Txukòdè e, com o GPS, os sítios de todas as antigas aldeias
Javaé existentes nas margens do Rio Javaés, na área do Parque Nacional do Araguaia, na
ponta norte da Ilha do Bananal.
Nas duas viagens realizadas em 2007, cheguei às aldeias Karajá e Javaé em uma
condição bastante diferente daquela que eu tinha vivido até então como pesquisadora
vinculada à academia, e à qual os Javaé estavam acostumados. No novo papel de
representante oficial do Estado brasileiro no processo de regularização fundiária das terras
indígenas, novas portas se abriram. Eu pude conversar sem restrições sobre o assunto que me
interessava e com as pessoas que o conheciam sem ter que esperar pelo longo tempo da
construção cotidiana de relações de confiança e reciprocidade entre pesquisador e informante.
Em Fontoura, Macaúba, Itxala, Hãwalora, São Domingos, Txukòdè e Boto Velho, fui
imediatamente apresentada às pessoas, em geral mais velhas, que eram consideradas como
autoridades nos temas da minha pesquisa e que se dispuseram a responder às minhas questões.
No total, realizei cerca de 19 meses de pesquisa de campo entre os Javaé e 40 dias de
pesquisa entre os Karajá, além de ter trabalhado com informantes Javaé em minha residência
por dois meses em 1990 e 20 dias em 2002. A maior parte dos dados apresentados aqui

38
provém do trabalho de campo intensivo realizado em 1997 e 1998, mas também foram
incluídos dados de todos os outros períodos de pesquisa.

39
Mapa 1
Rio Araguaia e Ilha do Bananal
no Brasil

Oc
an

e
o
A tl
ân t
ic o
Belém
s
Amaz o na
Manaus Rio

Rio Xingu

uaia
B R A S I L

ntins
ag
Ar

Rio Toca
R io
Ilha do
Bananal
Salvador

Brasília

São Paulo
Rio de Janeiro

N
Fontes: IBGE
Projeto: Patrícia de M. Rodrigues 0 500 1.000 km
Cartografia: Dan Pasca

40
Mapa 2
- 51°00' - 50°00' - 49°00'
Aldeia Javaé atual
Aldeias Javaé e Karajá atuais – 2008 Conceição Aldeia Karajá atual
do Araguaia
Famílias Karajá morando

ia
gua
em cidade situada em
antigo sítio de ocupação

Ara
Karajá

R io
Terra Indígena
Maranduba
Sta. Maria das Barreiras
Araguacema Unidade de conservação
Santo Antônio de proteção integral
9° S PARÁ Cidade, capital do estado
Barreira Rio
de Campo
Rodovia pavimentada
Caseara Rodovia não pavimentada
Santana do Araguaia
Limite interestadual

3
-15

Rio
BR
Parque

Tocantins
Estadual
do Cantão
Lago Grande
10° S s 10°S
rcê
Rio ari w ar
e
Rio d as M

TOCANTINS Palmas
W

Parque
5 8
Rio

-1 Nacional do
BR
z

Araguaia zequiel
in
izin

o
do E
h
ho

Macaúba Terra Indígena


Santa Terezinha Inãwébohona Pium
TI Urubu Ibutuna
Branco Maitxàri Itxala Boto Velho Cristalândia
ho

é
z in

irap Hãwalora io
o Ta p
R
Ri

TI Tapirapé/ Lagoa da Confusão


Karajá Wakòtyna
TI TI Krahô-
Inãwébohona Kanela
11° S R io 11° S
ho Txukòdè
TI São Luciara jue Du
er é
De

Domingos
Rio

São Domingos Wariwari 51° W 50°30' W


TI Cacique Teribrè Fontoura Boa Esperança
Fontoura Dueré
Kaxiwè
Rio L i

MATO GROSSO
Rio Java

Ri

Santa Isabel
o Fo

ia
orot

JK
ua
153

Imotxi
rm

Watau ru
rag
os
Rio Jabu

BR-
és

R io A

São Félix
do Araguaia Txuiri
o
Riozinh

Gurupi
ky

MATO Nova
ò ho

Tytema
GROSSO S
Canoanã Formoso
Terra Indígena do Araguaia
12° S Parque do Araguaia
GOIÁS -12°00'
Parque São João
Estadual do Wahuri
Araguaia
A raguaia

14° S
Barreira Barra do Rio Verde
Branca Waritaxi
Rio

Cocalinho
és

e r de

Mirindiba Sandolândia
164
va
Ja

oV
te s

GO-
Rio

Ri
Mor

N
das

0 50 km
Araguaçu
ia

Ri GOIÁS Hurehãwa
ua
o

Fontes: FUNAI e dados de campo


Rio Arag

Aruanã
Projeto: Patrícia de M. Rodrigues Aruanã
13° S 51° W 50°30' W -13°00'
50° W Cartografia: Dan Pasca 50°30' W

41
Mapa 3
- 51°00' 50° W
Principais aldeias JAVAÉ
no início do século 20
Oxiani
45 Kòtu Iràna
43 Txireheni
10° S 44 10° S
s 42 Kòtèburè
41

s ercê
Bòròrèwa
Narybykò (2)

Rio da M
46 40 Iròdu Iràna
Walu 39 38 Hãriwatòrikòrè
37 Kòbyryra Tèburena
Hãriwatò 36
35 Manaburè ho do Ezequ
Ri in iel
Hãrewèkò 34 oz
Narybykò(1) 33

uaia
Hãrikò 32
31 Asukò

A rag
*Kunahija 30
*Waderikò
o
Ri

29

ho *Hatõmõkò 28
zin

o

pira
Ri

Ta GOIÁS
24 Raraòky
Rio

23
Kywakoro 19 Hauteheky
27 Wajukabà 18 Walairi
26 Bòtòrèriòrè 17
Wyhy Raheto Dijarana
Hãwarahedà 25 22 Syrahaky
11° S 16 Txukòdè 11° S
20 21 Wararèkòna 15 Hedèduraluku
Karalu Hãwa 14 Rio Dueré
Kyrysa Hãwa 13 11 Horeni
o Nõbò
12 Kuirahaky Hãwa
Dejueh

10

Ri o
9 Hãwariè
Rio

Wariwari
Fo
rm os o do Ara g
Rio Lo
Rio J a v

roti

8 Imotxi
ua
Rio buru

ia

MATO GROSSO

Ja

7 Lòreky
o
Riozinh

oky
oh

S
Juani
6
4 Marani Hãwa
12° S 12° S
tes

5 Kuritiwi
Mor

3 Tabàlàna
2 Ijanakatu
s
da

Hãwa
Ilha do Bananal
Rio

Ar a guaia

Antiga aldeia Javaé


*Kunahija Aldeias habitadas e
*Waderikò abandonadas em
1 Hurèratya *Hatõmõkò um período anterior
Rio

é s

Rio
va

N
Ja

Limite interestadual
Rio

rde

0 100 km
oVe
Ri

Fontes: Dados de campo


Projeto: Patrícia de M. Rodrigues
51° W 50° W Cartografia: Dan Pasca

42
Legenda do Mapa n° 3
1. Hurèratya
2. Ijanakatu Hãwa
3. Tabàlàna
4. Marani Hãwa*
5. Kuritiwi
6. Juani
7. Lòreky
8. Imotxi (atual aldeia Imotxi)
9. Wariwari (antiga)*
10. Hãwariè
11. Horeni*
12. Kuirahaky Hãwa
13. Nõbò
14. Kyrysa Hãwa
15. Hedèduraluku*
16. Txukòdè* (atual aldeia Txukòdè)
17. Wyhy Raheto Dijarana*
18. Walairi
19. Hauteheky
20. Karalu Hãwa
21. Wararèkòna
22. Syrahaky
23. Kywakoro (aldeia Jatobá)
24. Raraòky
25. Hãwarahedà
26. Bòtòrèriòrè
27. Wajukabà
28. Hatõmõkò
29. Waderikò
30. Kunahija (ou Latèni Ixena depois)*
31. Asukò
32. Hãrikò
33. Narybykò (1)
34. Hãrewèkò
35. Manaburè
36. Hãriwatò
37. Kòbyryra Tèburena
38. Hãriwatòrikòrè
39. Walu
40. Iròdu Iràna*
41. Bòròrèwa*
42. Kòtèburè*
43. Txireheni*
44. Kòtu Iràna
45. Oxiani (aldeia Ponta da Ilha)*
46. Narybykò (2)
47. Nibònibò
(*): sítios das aldeias que visitei in loco

43
Mapa 4
49° W
Principais aldeias KARAJÁ do início do 41 nome desconhecido
século 20 ou que foram habitadas e

ia
abandonadas em um período anterior

gua
Ara
42 Wèriòkò

R io
Hore Ijòti 41
Matukari Dò 40
9° S PARÁ 9° S

ns
nti
39 Way

Rio Toca
Èhyho 37 38 Hãwalora

Hirè Bero 36

Dòrè Taina 35

Hãwarahedà
34

Renowà 33
10° S 32 s Wodo 10° S
rcê
e

GOIÁS
Rio d as M

Bidinaò Hãwa 31
30 Narybykò (2)
MATO Ijòrò Tòbò Hãwa 29
Rio

GROSSO Tytè Ijò 28 qu


Eze iel
z

ho
in

Utaria Wyhyna do
Ètèhõry Hãwa 27
24 26 Narybykò (1)
Nana Birè 22 23 Bèdu Hãwa
Urà Hãwa 21 25 Latèni Ixena
Hemylalani 19 20 Inysèdyna
Itxala ou Hãwalòlyby (2) 18
o
inh

é
oz

i rap
Tap
Ri
Rio

Juahurà 17 Ilha do Bananal


16 Tòla Haky
Uè Bero 13
14 Wèsidò Antiga aldeia Karajá
Hãwalòhoky 15
Rio
Rio

11° S R io - 11°00'
ho
jue Du
er é Limite interestadual
Form os
De

Hãwalòlyby (1) 12
Rio

Hãwalò (2) 11
o

51° W 50°30' W
Botõiry 10
do

Waba Hãwa 9
Rio L i
Rio Java

Arag

2 Tytaheky
ia
orot

Wèrè Tòla 7
ua
ua

ru
rag
ia

Hãwalò (1) 8
Rio Jabu

R io A
és

Iway 6
o
Riozinh

Tesè Hãwa 5
ky
ò ho

S
MATO
GROSSO
s
orte

12° S GOIÁS -12°00'


s M
da

A ragu aia
Rio

14° S

4 Wèrè Hãwa
3 Myriwè
Rio

és
va
Ja
Rio

N
erd

0 100 km
oV
Ri
a ia
gu

Fontes: Dados de campo


Rio Ara

1 Buridina
Projeto: Patrícia de M. Rodrigues
13° S 51° W 50°30' W -13°00'
50° W Cartografia: Dan Pasca 50°30' W

44
Legenda do Mapa n° 4
1. Buridina (atual Aruanã)
2. Tytaheky* (atual Luís Alves)
3. Myriwè
4. Wèrè Hãwa
5. Tesè Hãwa (aldeia do Pontal)
6. Iway
7. Wèrè Tòla (ao lado da atual aldeia Santa Isabel do Morro)
8. Hãwalò* (1) (atual São Félix do Araguaia)
9. Waba Hãwa* (atual aldeia Kaxiwè)
10. Botõiry* (atual aldeia Fontoura)
11. Hãwalò* (2) (ao lado da atual Luciara)
12. Hãwalòlyby (1) (aldeia do Manoel Joaquim)
13. Uè Bero* (Crisóstemo de Cima)
14. Wèsidò
15. Hãwalòhoky*
16. Tòla Haky Hãwa* (aldeia do Krumarè ou aldeia Jatobá)
17. Juahurà* (aldeia do Capitão João, atual sede da Fazenda Capitão João)
18. Itxala ou Hãwalòlyby* (2) (atual aldeia Itxala)
19. Hemylalani* (aldeia do Cadete, atual sede da Fazenda Tapiraguaia)
20. Inysèdyna*
21. Urà Hãwa* (aldeia Ponta da Ilha)
22. Nana Birè* (Morro de Areia)
23. Bèdu Hãwa* (atual aldeia Macaúba)
24. Ètèhõry Hãwa* (ao lado do antigo Furo de Pedra)
25. Latèni Ixena*
26. Narybykò (1)
27. Utaria Wyhyna*
28. Tytè Ijò* (Crisóstemo de Baixo)
29. Ijòrò Tòbò Hãwa*
30. Narybykò (2)
31. Bidinaò Hãwa* (Antônio Rosa)
32. Rènõà* (ao lado do atual Lago Grande)
33. Wodo
34. Hãwarahedà*
35. Dòrè Taina (atual Barreira das Princesas)
36. Hirè Bero* (atual Barreirinha)
37. Èhyho* (atual Barreira de Campo)
38. Hãwalora (atual Caseara)
39. Way*
40. Matukari Dò
41. Hore Ijòti* (atual Santa Maria das Barreiras, antiga Barreira de Santana)
42. Wèriòkò
43. Nome desconhecido

(*): sítios das aldeias que visitei in loco

45
Mapa 5
49° W
Território de ocupação tradicional 41
dos Karajá e Javaé

ia
gua
Ara
42

R io
41
40
9° S PARÁ 9° S

ns
nti
39

Rio Toca
37 38

Ri o
36
GOIÁS

Caiapó
35

34

45
33 43
10° S 32 s 10° S
rcê 44
41
42
e
Rio d as M

31
46 30 40
MATO 29 39 38
37
36
Ri

GROSSO 28 35 zi
n h o do
Ezequ
o

34 iel
24 27 2633
22 23 32
21
31 Território tradicional Karajá
25 30
19 20
Antiga aldeia Karajá
o

18 29
inh

é 28 Território tradicional Javaé


oz

i rap
Tap
Ri

Antiga aldeia Javaé


Rio

24
17 23
16 19 Ilha do Bananal
13 27 18
14 26 17
15
25
Rio
22
Rio

11° S R io - 11°00'
20 21 ho 16 15
jue Du
er é
Limite interestadual
Form os

14
De

13 11
12
Rio

12
11 10
50°30' W
o

9 51° W
10
do

9
MATO
Rio L i
Rio Java

Arag

GROSSO 2
ia
orot

7
ua
ua

ru 8
rag
ia

8
Rio Jabu

R io A
és
o

6 7
Riozinh

ky

5
ò ho

S
6
s
orte

4
12° S GOIÁS
s M

5
3
da

2
A ragu aia
Rio

14° S 14° S

4
3
Rio

1
és
va
Ja
Rio

N
erd

no 0 100 km
oV
li
Rio Crista

Ri
a ia
gu

Fontes: Dados de campo


Rio Ara

1
Projeto: Patrícia de M. Rodrigues
13° S 51° W 50°30' W Cartografia: Dan Pasca
50° W 50°30' W

46
Parte I (O Começo)

Capítulo 2

O fluxo criativo original: a criação do mundo 1

2.1. A conquista do Sol: Tanyxiwè e o povo Kuratanikèhè 2

Muito antes do mundo em que vivemos existir do modo como o conhecemos agora,
dizem os Javaé, já havia povos diversos morando em um lugar abaixo dos leitos dos rios e
lagoas, no Céu e também neste plano terrestre e visível, mas tudo era diferente de hoje. O
sol estava no Céu, mas não iluminava a terra que habitamos nem o mundo abaixo das
águas, só havia a escuridão.
A vida abaixo das profundezas das águas era maravilhosa, as pessoas não passavam
fome, viviam sempre jovens e bonitas, não precisavam trabalhar e nem morriam, pois tudo
era mágico, bastava desejar comer e o peixe e a caça apareciam. Longe do sol, era um
lugar bem mais fresco, às vezes até frio. Não havia doenças, brigas, mexericos e os filhos,
assim como a comida, apareciam magicamente, conforme o desejo de cada um, sem
necessidade de nenhum contato sexual. Era, portanto, um lugar sem afins, ninguém devia
nada para ninguém, todos eram parentes entre si.
Entretanto, apesar de tantas qualidades, o mundo subaquático, chamado Berahatxi,
o Fundo das Águas 3 , não era um lugar perfeito. Além da escuridão, havia muita lama até a

1
A narrativa mitológica será apresentada em três formatos complementares: em itálico, quando eu utilizo as
minhas próprias palavras para apresentar o que me foi narrado e traduzido; em forma de citação, quando
transcrevo diretamente as palavras do tradutor dos mitos; e como nas palavras a seguir, que servem para
introduzir informações que contextualizam os episódios, estabelecer um nexo entre eles, resumir alguns dos
mitos ou apontar preliminarmente alguns temas que serão importantes depois.
2
Versões Karajá da mitologia – embora em episódios fragmentados – são encontradas em Ehrenreich (1948),
Krause (1943b), Baldus (1937), Lipkind (1940), Palha (1942), Machado (1947), Chiara (1970), Fénelon
Costa (1978), Peret (1979), Aytai (1977, 1978, 1979b, 1981, 1985, 1993a, 1993b), Taveira (1982), Donahue
(1977, 1978, 1982), Donahue & Donahue (1979, 1981), Bueno (1987), Toral (1992), Lima Filho (1994),
Pétesch (2000). Alguns dos episódios apresentados aqui são inteiramente inéditos na literatura, explicando a
origem diferenciada dos Javaé.
3
Literalmente “o ânus ou nádegas (hetxi) do rio (bero)”. A palavra hetxi pode ser usada metaforicamente
como “fundo”, “atrás”, “embaixo” (Ver Toral, 1992).

47
altura dos tornozelos em todos os lugares, o que dificultava bastante a locomoção. Para
alguns povos não havia outro tipo de comida que não fosse peixe e caça e, quando
preparada, ficava um pouco crua, nunca totalmente cozida. A água para beber era também
um pouco escura, não muito agradável. Por fim, não se conhecia o prazer do sexo.
Então, como era de se esperar, aconteceu um dia que alguns moradores desse
paraíso imperfeito fossem tomados pela curiosidade de conhecer o mundo terrestre que
ficava acima de suas cabeças, e para o qual havia algumas passagens que passaram a ser
utilizadas, em locais e momentos diferentes, pelos vários povos do Fundo das Águas.
Apesar da diversidade entre eles, para todos a saída do quase-paraíso representou a
passagem de um lugar subaquático fechado, “dentro”, com limites definidos, para um
espaço “fora”, amplo e aberto, o nível terrestre em que habitamos agora, e que se mostraria
igualmente fascinante, pelas novidades que seriam encontradas, e aterrorizante, pelos
preços que seriam pagos por elas.

Alguns povos ixyju (“estrangeiros”) 4 já moravam aqui no nível terrestre, chamado


Ahana Òbira (“Face de Fora”). Eram poucas pessoas, viviam no escuro e comiam apenas
produtos silvestres, como jenipapo, jatobá, tipos de côco, frutas etc, sem conhecer a
agricultura. Era o caso do povo Kuratanikèhè, que vivia na região que depois ficou sendo
conhecida como Marani Hãwa (ao redor do atual Lago do Bananal), de onde vieram
muitos dos Javaé atuais (ver Mapa n° 3) 5 . Um outro povo que vivia próximo e na mesma
época eram os Bisarukèrè, que já havia saído do Fundo das Águas, na região do Imotxi
(um afluente do Riozinho), tido como um povo “mais adiantado” que os outros em termos
de conhecimento, pois eram grandes curadores, muito inteligentes, conhecedores de
técnicas mágicas para ressuscitar as pessoas (usando ervas medicinais que promoviam
uma espécie de colagem dos ossos fragmentados e recriavam a pele). Além da função
ressuscitadora, os Bisarukèrè tinham o costume de fazer xiwè (refeição ritual coletiva e

4
Trata-se de uma palavra que, em geral, tem um sentido pejorativo, relativa aos outros grupos indígenas de
língua e costumes estranhos e considerados inferiores, usada às vezes como xingamento aos descendentes
desses povos, frutos de casamentos interétnicos no passado. Mas há exceções honrosas, como os Wou
(Tapirapé), dos quais os Javaé dizem ter adquirido conhecimentos e bens valiosos.
5
Marani Hãwa refere-se à maior das aldeias tradicionais que existiam antes do contato e a uma região no
centro-sul da ilha, ainda relativamente isolada, onde existe o famoso bananal nativo que dá nome à ilha.

48
oferenda para o povo do Céu em busca de proteção mágica, feita com a primeira fruta ou
ovo de tracajá ou camaleão da estação) 6 .
Houve um momento então, quando os Kuratanikèhè e os Bisarukèrè já estavam no
mundo de fora, que um outro povo, os Ijèwèhè, resolveu sair do Fundo das Águas no local
onde existem as pedras da atual Lagoa da Confusão, deslocando-se pouco depois para
perto do lugar onde hoje está São Félix do Araguaia (ver Mapa n° 6, ao lado). Esse outro
povo, muito poderoso, eram os ancestrais de Tanyxiwè (também conhecido como
Mabikore ou Hanawiri), e dos Tori (os brancos). Os Ijèwèhè, também conhecidos como
Tori labiè (“avô dos brancos”), saíram de baixo trazendo os instrumentos de ferro que
existem hoje, o machado, a enxada, a foice, o facão, espingardas, automóveis, as roupas
dos brancos e também a banana de casca verde, a batata, o abacaxi, a mandioca e o
amendoim 7 . Os outros índios saíram nus, apenas com flechas e bordunas. Por isso, os
brasileiros não passam fome, têm muita fartura de comida e também têm mais roupas e
objetos que os índios.
Logo depois dos Ijèwèhè, na mesma época, os Wou (Tapirapé) saíram em algum
lugar próximo a São Félix do Araguaia 8 , trazendo os mesmos alimentos mencionados, mas
também jenipapo, urucum, algodão e os enfeites de algodão que hoje são usados pelos
Javaé. Ao encontrar com os Wou, os Ijèwèhè pediram-lhes o algodão, urucum e jenipapo,
que ninguém conhecia, e assim eles chegaram aos povos atuais.
Como este era um mundo em que não havia contato sexual entre as pessoas, pois a
vida ainda era mágica para os primeiros que saíram lá de baixo, uma mulher Ijèwèhè, ao
tocar em uma fruta, de uma árvore chamada txiwehe, engravidou encantadamente de
Tanyxiwè. Um homem que apenas observava o acontecido tornou-se o pai da criança, que
cresceu e entrou na adolescência, virando um belo rapaz. Vivendo a puberdade, Tanyxiwè
começou a intrigar-se com a função de seu pênis quando ereto. Experimentava colocá-lo
em contato com a mandioca, a banana, as batatas, mas nada acontecia, até que um dia ele
viu a vagina da própria avó, que estava nua, e sentiu desejo sexual, um sentimento
inexistente para todos até então:

6
Aqui se trata de um costume que foi incorporado depois ao Hetohoky, ritual de iniciação masculina, e à
Dança dos Aruanãs (ver Capítulo 10).
7
Em uma outra versão do mito, os produtos da agricultura eram “plantação do branco”, em contraste com os
povos daqui que só praticavam a coleta de frutos silvestres.
8
Muitos discordam da versão de que Tanyxiwè e os Wou seriam Berahatxidudu, “originários do Fundo das
Águas”. Dizem que eles eram originários do nível terrestre, e que Tanyxiwè era Tapirapé, Ijèwèhè sendo o
seu nome Tapirapé.

49
Mapa 6
- 50°00'
Principais locais de origem mítica Ilha do Bananal
dos Karajá, dos Tapirapé e dos Local de origem mítica
ancestrais dos Javaé Aldeia Karajá atual
Lago Grande
Aldeia Javaé atual
Cidade
-10°00'
Rio

Mercês
Rodovia pavimentada

A raguaia
Rodovia sem

Rio das
pavimentação

Rio
58
-1 Limite interestadual

zin
BR o

h
do iel
E z e qu

o
Ri
Bòra Pium
Santa Terezinha
Inysèdyna
Cristalândia
ho
in
oz

irap é
Ri

ap
T
Rio

Lagoa da Confusão

TOCANTINS
-11°00' -11°00'
Ri o F
Karalu o Ri
eh o
orm
MATO Hãwa Du
e ré
ju

oso d o A
De

GROSSO Luciara
Rio

gu ra
aia

Dueré
Rio
Rio J a v a

Lo
roti

Tapirapé
u

és
Jabur

São Félix do Araguaia


o
in h
Rio

oz

Gurupi
Ri

oky

3
h

-15

Kanõanõ Formoso
BR

do Araguaia
Marani
Hãwa
-12°00' -12°00'
s
te
or
s M
da
Rio

Ar a guaia

Bèlybyranõra
Rio

Sandolândia
s

e
é

rd
va

Ve
Ja

N
o
Rio

Ri

0 50 km

Fontes: Dados de campo


Projeto: Patrícia de M. Rodrigues GOIÁS
Araguaçu
Cartografia: Dan Pasca - 50°00'

50
“(...) Então descobriu que a função do pênis era entrar numa vagina e haver sexo entre
mulher e homem. Quando descobriu, ficou calado. Depois foi perguntar para a avó dele
se ela ia para a roça. Ela falou que sim, que ia para a roça. Ele mesmo a advertiu: ‘se
você for para a roça e alguma coisa aparecer, um homem ou um bicho, você pede
socorro que eu vou correr para ajudar você’. A avó foi para a roça e, enquanto tirava
batata, ele apareceu todo pintado de preto, transformou-se para poder pegar a avó e ela
pensar que era outra pessoa, pois se soubesse que era o próprio neto não iria aceitar.
Logo depois que ele fez sexo com a avó, correu, lavou-se rapidamente na água e voltou
para a roça, porque ele sabia que a avó ia pedir socorro. Ela gritou pelo neto e ele
chegou ao local do crime falando: ‘o que foi, vó?’. Ela disse: ‘um bicho, uma coisa, um
homem me atacou aqui e correu para lá!’. Tanyxiwè correu atrás desse homem, que na
verdade era ele mesmo, só que a avó não sabia. Voltou da missão e a avó perguntou:
‘onde está a coisa?’. Ele disse: ‘correu para lá, estava bravo demais e acabou flechando
o meu pé!’. No caminho, diz que ela veio chorando. Parece que ela desconfiou de
alguma coisa ou teve um tipo de premonição. A velha era aõni 9 e presumiu que na
verdade aquela pessoa era o neto e não outro qualquer. Só que esse neto dela era mais
aõni que eles, pois a família toda era de aõni. A velha cantou uma música para ele.
Devido a esse acontecimento, de Tanyxiwè ter feito sexo com a própria avó, nós
herdamos esse costume de fazer sexo, de produzir filhos, para aumentar a população,
pois antes não tinha, era tudo por encanto. O exemplo de Tanyxiwè foi seguido por
várias espécies, os animais, os pássaros, todos os seres vivos da terra.” (palavras do
tradutor)

Tanyxiwè é filho dos Ijèwèhè, mas ele era mais “desenvolvido”, tinha mais
inteligência e sabedoria que todos os outros. Um casal do já mencionado povo
Kuratanikèhè, que na época estava morando perto do Imotxi (ver Mapas n° 3), conheceu
Tanyxiwè. Percebendo que se tratava de uma pessoa especial, Kurimatutu, a mãe, e
Manatiwi, o pai, desejaram que ele se casasse com a filha deles, Myreikò. A maioria dos
Javaé atuais acredita que eles se casaram porque os pais de Myreikò quiseram, mas
alguns dizem que foi Tanyxiwè, no fundo, com seus poderes mágicos, que atraiu essa
família para o casamento. Como eles eram membros de povos diferentes se casando – os
Ijèwèhè, ancestrais também dos brancos, e os Kuratanikèhè, um dos povos indígenas que
já estavam aqui –, diz-se atualmente que é por isso que os brancos “gostam dos índios até
hoje” e têm vontade de se casar com eles. A mãe de Myreikò providenciou tudo para que o
casamento ocorresse e assim os Iny (os Javaé atuais) foram gerados.
Só que este mundo terrestre ainda era escuro, tudo era muito difícil. Quando ia
pescar para alimentar a sogra e o sogro, como parte de seus deveres de casado, Tanyxiwè

9
Aõni é o nome de uma categoria geral que engloba todos os seres dotados de poderes mágicos, diferentes
dos humanos sociais, a ser melhor definida no Capítulo 4.

51
levava o talo seco da palmeira de coco e queimava para fazer uma candeia e poder
enxergar um pouco. Para ir para a roça, o drama era ainda maior:

“(...) Ele fez a roça, porque era casado. Como era no escuro e ele não sabia para onde
ia, amarrava uma corda na cintura, uma corda comprida, e ia para o mato fazer a roça.
Ele falava para a mulher dele, a Myreikò, que na hora de voltar ele avisaria balançando
a corda. Nessa hora, era para ela e os sogros recolherem a corda e assim ele viria junto.
Todo mundo fazia roça assim. Ele terminou de desmatar e colocou fogo, fez a coivara e
plantou a roça toda. Chegou o tempo da safra, ele plantou batata, milho, mandioca,
inhame etc, eles viviam dessa roça. Até que num determinado tempo, a sogra,
Kurimatutu, reclamou da vida, que estava cansada, que o tornozelo dela estava todo
ralado, machucado, de tanto andar à noite, sem enxergar nada, para buscar os alimentos
na roça: ‘que negócio é esse? O pessoal fala que a minha filha está casada com um
aõni, que tem um poder, mas ele não resolve o problema da escuridão!’. Mas como
Tanyxiwè era aõni, ele ouviu de longe que a sogra reclamou dele 10 . Então ele falou para
a mulher que ia viajar, mas que não demoraria muito não. Ou seja, ele pensou em
alguma coisa para resolver o problema, já que a sogra estava reclamando.
Ele saiu e demorou um bocado de dias. Chegou na casa do Bòròrè 11 (cervo) e
falou que ia se apossar do corpo dele, fingindo que ele estava morto. Ele entrou no
corpo do veado 12 e falou com Kòhò, os mosquitos: ‘vocês vão entrar no meu ouvido ou
em qualquer buraco que vocês virem para eu fingir que estou morto’. Diz que pediu
também para as moscas colocarem vermes nele e para os urubus comerem seu corpo,
para fazer de conta que estava morto. Tanyxiwè estava pensando em atrair o Rararesa
(urubu-rei), o rei, que é iòlò e mora do Céu, para vir comer a carne do cervo 13 .
Rararesa estava com fome e pediu para o Kodiè, um outro tipo de urubu (seu lana, tio
materno), para caçar alguma coisa para ele aqui no nível terrestre. Kodiè veio,
encontrou o cervo podre e voltou de novo para a casa do Rararesa, seu wara (filho da
irmã). Antes, ele tinha falado para o tio materno que, se encontrasse alguma coisa, era
para vir voando baixo, dando um sinal. Se não encontrasse, era para voltar voando
normalmente. Como ele veio voando baixo, os outros parentes 14 vieram recebê-lo e
decidiram que iam buscar o cervo. Mas o Rararesa falou para Kodiè e Hireru (irmã do
pai, labetery, um tipo de gavião) que levassem o Kotxiwiri (mutuca) para morder o
cervo em todo o corpo, nas axilas, em baixo do rabo etc, e ver se ele estava morto ou
não. Rararesa é desconfiado, não chega assim tão rápido igual aos outros urubus. Ele
ficou com medo, então mandou a mutuca para ver se estava morto mesmo. Com isso
vieram os urubus, o pessoal todinho veio para assistir se ele estava morto ou não.
Chegando lá, os parentes viram o cervo e fizeram a mutuca morder tudo, só que o cervo
não se mexia. Tiveram a idéia de morder lá ... no reto mesmo do cervo. Sabe o que é o
10
Em uma das versões, diz-se que ele ficou “com dó” da sogra.
11
Os nomes dos animais se iniciam com uma letra maiúscula porque eles eram humanos nos tempos míticos.
Os nomes com os quais são conhecidos hoje eram seus nomes próprios.
12
O tykytyby (“pele ou corpo velho”) dele – conceito a ser melhor decifrado no Capítulo 5, embora
geralmente seja traduzido como “alma” ou “espírito” – entrou no corpo do veado.
13
Rararesa é humano lá no Céu, mas tomava a forma de urubu-rei quando vinha aqui na terra para comer ou
visitar seus parentes, também humanos no Céu, que são os outros tipos de urubu e gavião. Rararesa pertence
ao Biu Mahãdu (“Povo do Céu”) e até hoje e é iòlò, traduzido pelos Javaé como “rei” ou “nobre”, um título
de chefia política que é transmitido através das gerações ainda hoje (e será objeto de análise no Capítulo 8).
14
Na versão narrada por outra pessoa em 1990, em Rodrigues (1993:101-4), os outros parentes eram os tios
maternos (lana boho) de Rararesa.

52
reto? Lá no fundo? Pois é, tiveram a idéia, porque lá dói. Eles falaram: “então vamos
colocar”. Se estivesse morto, não mexeria. A mutuca entrou e mordeu lá dentro. Diz
que doeu, doeu, mas Tanyxiwè foi agüentando mesmo, ele agüentou na marra! Ele
fechou só um pouquinho o pé assim para disfarçar, tremendo um pouco, pois estava
doendo demais! Então Hireru gritou: ‘está vivo, está vivo!’. Mas o Rara (tio materno,
um tipo de urubu) disse: ‘não, não está vendo que isso aí está morto?’. E Hireru
falando: ‘não, está vivo!’. Hireru falava que estava vivo, só que Rara insistia que
estava morto, pois o corpo dele estava imundo demais. Com isso, foram lá na casa do
Rararesa e falaram para pegar o cervo. Foram buscá-lo e contaram a mesma história.
Rararesa falou: ‘está morto mesmo o cervo?’. Responderam: ‘está morto, está inchado,
tem até bicho saindo dos olhos, dos ouvidos, tem bicho em tudo quanto é lugar’. Então
ele falou: ‘está bom, eu vou, porque eu estou com fome, mas se eu voltar... bem, se eu
não voltar também ... que vai acontecer comigo?’. Ele falou que ia lá, mesmo sabendo
que ia ser pego. Ele já estava prevendo que ia ser pego por Tanyxiwè. Por causa dele,
nós sentimos hoje em dia a premonição. Veio todo mundo, convenceram o iòlò a vir.
Rararesa chegou lá e voou por cima do cervo, voou, voou e pousou na barriga do
cervo, que estava inchada.
Na hora que sentou e ia meter o bico nele para morder, Tanyxiwè se transformou e
o pegou. A avó do Rararesa, Kurukuru (outro tipo de gavião), ficou desesperada e
cantou uma música. Por isso que o canto desses pássaros hoje em dia é dàdà (aviso
premonitório), ou seja, se cantar à noite ou você ouvir, vai haver uma morte ou alguma
coisa ruim, porque aconteceu a primeira vez aqui. Então Tanyxiwè falou para Rararesa:
‘iò (de iòlò), eu te peguei. Não vou fazer nada com você, eu te peguei por causa do seu
raheto’ 15 . Disse que só o soltaria se ele trouxesse o raheto dele. Como Rara tinha
falado que o cervo estava morto, tinha discutido com Hireru, agora Hireru fez o
contrário, deu bronca no Rara: ‘está vendo? Eu não falei que estava vivo?!’, brigaram
entre si. Então Rararesa falou para os súditos dele, Kodiè, Rara, Hireru: ‘busquem o
meu raheto’. Só que trouxeram larabòtò (um conjunto de sete estrelas do céu que
aparece de madrugada), estavam querendo enganar Tanyxiwè, que falou: ‘não quero
isso aí não’ e aproveitou para dizer que, a partir de então, larabòtò serviria como um
marco de tempo para as pessoas realizarem as atividades da madrugada, como ir para a
roça, pescar etc. Depois trouxeram o outro raheto dele, kõrijuraru, um outro tipo de
estrela bonita, mas ele não queria esse também não, disse que queria outro. Então
trouxeram hatèdèkòty, aquelas três estrelas bonitas que tem. Tudo isso era raheto dele.
Tanyxiwè falou, sempre colocando as normas, que o horário que essas estrelas
aparecessem, que também saem de madrugada, serviria para marcar os compromissos
das pessoas. Disse novamente que não queria esse não. Então trouxeram Tainahaky
(Estrela d’Alva), um pouco mais forte que essas três, que ilumina um pouco. É uma
estrela bem grande, clareia de madrugada, que vem antes do sol. Eram todos raheto
dele, só que Tanyxiwè não aceitou. Durante o intervalo dessas propostas, ele falava que
essas coisas serviriam, a partir de então, para marcar os horários para nós, humanos,
podermos fazer nossas atividades, caçar, ir para o lago, fazer a roça etc. Agora nós
temos a hora para sair, por isso que hoje tem. Ele disse: ‘eu peguei você não foi por
causa desse aí não, quero seu rahetohoky (raheto grande)’. Rararesa falou: ‘então vão
buscar o meu raheto agora, de verdade’. Trouxeram ahãdu (a lua). Já estava
começando a clarear, porque quando a lua clareia fica quase igual ao dia. Quase o
convenceram que esse era o raheto que ele queria, mas ele pensou bem: ‘não, não é
15
Grande e belo cocar de penas usado pelos homens no ritual de iniciação masculina. Literalmente significa
“casa (heto) da cabeça (ra)”. O sol, a lua e algumas estrelas eram todos raheto diversos do Rararesa celeste.

53
esse não, ainda está ruim, eu quero um mais claro ainda!’. Só que Tanyxiwè achou
bonita demais a lua e pegou de propósito no meio dela. Não tem aquele sinal de mão na
lua? Foi onde ele pegou, porque achou bonito. Só que não queria a lua, queria o outro,
até que ele convenceu Rararesa a trazer o raheto dele de verdade, que é o sol. Ele é
sabido, esperto. Quando estava começando o dia a amanhecer, quando começou a
iluminar, ele pediu ao pessoal que puxasse um pouco para trás, para poder escurecer.
Não sei se você já prestou atenção, mas quando o sol está começando a nascer, ilumina,
mas depois escurece um pouco. Depois vem de verdade, quando é para nascer mesmo.
Pois é, depois que nasce o sol, tem aqueles horários, lembra que eu te ensinei? Os
horários que eu te falei foi o Rararesa que explicou para o Tanyxiwè. Eles marcaram
todas essas horas que nós temos hoje, foi por isso 16 . Tanyxiwè perguntou para o iòlò se,
ao escurecer, o sol não foi embora para sempre. Só que não, Rararesa prometeu para
ele que aquilo ia voltar e ficar para o resto da vida, e assim ia ser para a humanidade,
para os animais, para as plantas. E por isso tem o sol, por causa da Myreikò, que exigiu.
Rararesa também explicou que a noite é um intervalo durante o dia para os homens,
quando chegarem de suas atividades forçadas, cansados e tensos, poderem descansar
com suas mulheres, ou seja, ele atendeu ao propósito de Tanyxiwè.
Esse iòlò era um tipo de sábio, então Tanyxiwè perguntou: ‘e a roça, como vai
ser?’, porque eles faziam, mas era no escuro, não viam direito. ‘A roça tem que ser em
troca da mulher’, a mulher tem sua beleza, seus atrativos sexuais, e o homem vai ter
que pagar com aquilo. Porque a mulher sempre precisa de roça, é um ótimo pagamento
para a mulher. Falou para ele que tinha que desmatar primeiro, depois cortar os paus
que fossem maiores, deixando passar um tempo. Depois, quando estivesse bem seco,
era para queimar. Primeiro tem que derrubar e assim que queimar tem que cantar essas
três músicas para Wamybeju, Worosy Tyhy ou Harabòbò 17 , na sua primeira roça, na
primeira queimada, para poder dar sorte. É para animar, marca um final de atividade.
Perguntou também como é que podia fazer a canoa. Rararesa falou que o próprio
homem tem que ir ao mato cortar a árvore e cavar a madeira por dentro, mas que não
deveria cortar a ponta do pau, pois a ponta ou a cabeça da canoa era para deixar o
cunhado fazer. Esse é um sistema que o pessoal respeita até hoje. Deveria deixar e
chamar os cunhados, os tios, os parentes da mulher, para ajudar a terminar a canoa. O
marido da mulher tem que juntar coisas de comer, peixe, caça etc e botar para os
parentes da mulher, os cunhados dele, comerem. Quer dizer que ali é hawyky tybòrò ou
hawyky tykòwy 18 , o que eles comem. Deve juntar as coisas para os cunhados comerem
e ajudarem, para fazer o remo também é a mesma coisa. É como se fosse um
pagamento, porque na lei do índio é assim, por exemplo: se eu casar com uma pessoa,
tenho que pagar àquela mulher minha, dar conforto para ela, fazer de tudo para ela. Isso
que o pessoal chama hawyky tybòrò. É pagamento pela tyy (vagina) dela, hawyky
tykòwy, ‘em troca de mulher’. Então Rararesa explicou como é que pode cortar lenha,
porque tinha que lascar os paus e não é qualquer pau que faz lenha não, tem que ser

16
Em meu trabalho anterior (Rodrigues, 1993), encontra-se o calendário nativo com os nomes para 23
horários distribuídos no ciclo de um dia, os quais teriam sido estabelecidos por Tanyxiwè a partir das
informações de Rararesa, mas aqui foram suprimidos.
17
Aqui se refere a alguns dos moradores mágicos do Fundo das Águas, que em um momento posterior
passaram a fazer parte do ritual de iniciação masculina, ao qual comparecem como convidados e cantam as
músicas cantadas pela narradora do mito.
18
Literalmente, hawyky tybòrò quer dizer “as costas (bòrò) da vagina (tyy) da mulher (hawyky)”, enquanto
hawyky tykòwy é “o pagamento (kòwy) pela vagina da mulher”. Ambas expressões, a última sendo mais
comum, referem-se ao pagamento que o marido de uma mulher faz ao grupo de afins, por meio do serviço da
noiva, em troca da esposa. Esse assunto será retomado em profundidade no Capítulo 10.

54
teriò (pau d’arco) ou buritiò. Só esses que tem que cortar para a mulher, que dão brasa,
porque a mulher não pode ficar sem lenha e não pode buscar lenha no mato, o homem
que tem que se virar para buscar lenha. Explicou sobre as coisas que o homem deve
fazer sozinho, como kowo (pilão), kòrany (ralador de mandioca), bereita (peneira),
sihò (pente), weryry (balaio), rahytyjy (um dos tipos de kòri, abanador), tarihina (cesto
de palha de coqueiro com tampa usado pelas mulheres), lala (cesta de palha para
colocar os adornos do filho primogênito), werikòkò (um tipo de cachimbo para fumar),
warabahi (cesto de palha para o homem colocar as penas de suas flechas, os acessórios
das armas), wyhy (flechas), tõnõri (lança), kòhòtè (borduna), kòtity, um tipo de cerca
que o pessoal antigamente fazia na beira dos seus portos, cercando o rio para poder
atrair peixes, tracajás e tartarugas e poder matá-los ali mesmo dentro da cerca.
Para algumas coisas o homem tem que pegar o material e a mulher que faz, como
hety (cesto de palha), èsõ (algodão), que o homem planta para a mulher fazer rià
(coberta de algodão tradicional), byrè (esteira de palha), que a mulher faz, mas desde
que o homem vá buscar o òsiru, aquela planta aquática 19 , herina (esteira para dormir).
Watxiwii (panelas de barro), quem faz é a mulher também, para dar comida para o seu
marido, mas os homens têm que buscar a mistura de barro, mawsi. Outras coisas são os
rapazes ainda não casados (weryrybò) que devem fazer, como rytyky ou dèòrèru, uma
espécie de rede de embira (um tipo de cipó) que o pessoal fazia antes para pegar
pirarucu. Depois que estiver pronto, só os (futuros) cunhados do rapaz que podiam usar
a primeira vez e depois no cotidiano. Os parentes da mulher que tinham que cair na
água com a rede, um de cada lado, e ir puxando para pegar o peixe. Ao pegar o peixe
ou tartaruga com essa arma, os próprios cunhados levam o que foi capturado para casa.
Depois que fica pronto, tira a carne da tartaruga, trata o pirarucu, e então o cunhado
divide esses pedaços de comida e vai levar para a casa de determinadas pessoas que são
uladu tyhy ou uladu tymyra 20 , pessoas especiais. Então está se formando iòlò, é assim
que surgiu iòlò, começou nessa época 21 . O Rararesa contou para o Tanyxiwè, eles
estavam colocando como é que ia ser a humanidade dali em diante. Tudo que o homem
tem que fazer é em troca da mulher. Por que? Porque mulher é bom! O objetivo é esse,
ele estava criando hawyky tykòwy, ou seja, vale a pena fazer esse sacrifício por mulher.
Até hoje é assim. A moral da história é isso: hawyky tybòrò, hawyky tykòwy, preço do
tyy (vagina): os dois combinaram como é que ia ser a humanidade.
Quando acabou de explicar tudo, Rararesa perguntou para Tanyxiwè: ‘acabou a
história?’. Tanyxiwè pensou: ‘será que tem alguma coisa mais que eu possa pedir para
ele? Esqueci ... o que está faltando?’. Rararesa estava com medo que ele perguntasse
como é que as pessoas ressuscitam. Só que ele não chegou a perguntar, ele esqueceu.
Por isso que a gente morre para sempre. Se na época tivesse perguntado logo, nós
morreríamos e renasceríamos, sempre. Mas ele esqueceu, fugiu (da mente) assim. Por
isso que se diz que tem gente que esquece as coisas bem na hora H, por isso, porque
Tanyxiwè esqueceu naquela época. Depois disso, Tanyxiwè falou para Rararesa, já na
sua forma humana, que ia cortar o cabelo dele, que era enorme, porque ele era iòlò.

19
As esteiras (onde se come, dorme, recebe-se visitas, enterra-se os mortos, inicia-se os meninos etc) são
feitas de palha de buriti, mais difíceis de encontrar e mais valorizadas, e de òsiru, um tipo de palha que é
obtido secando-se uma planta aquática muito encontrada na região.
20
Uladu tyhy (“crianças de verdade”) ou uladu tymyra (“crianças novas”) são os primogênitos honrados,
herdeiros dos bens rituais e personagens centrais da sociedade Javaé, sobre os quais muito será dito ao longo
deste trabalho. Tyhy tem sempre um sentido de prestígio e de honra.
21
Os iòlò atuais seriam os descendentes desses primeiros primogênitos, mas há outra versão para o
surgimento dos iòlò, como será visto à frente. A distribuição de comida na casa dos iòlò, tal como é narrada
no mito, é um fato mítico que foi incorporado depois ao ritual de iniciação masculina.

55
Cortou o cabelo dele, que era bonito. Então os outros parentes, Rara, Kodiè e Kurukuru
rasparam a cabeça, por isso que os urubus tem a cabeça pelada hoje. Já Hireru e Hirè
não, só cortaram um pouco, por isso que os gaviões têm um tipo de touca, o cabelo só
cortado. Os tios, tias (lana, labetery, ladirà, labyry), avó (lahi), avô (labiè) cortaram o
cabelo, por isso que hoje existe bòròtyrè 22 . Até hoje, no Céu, Rararesa ainda existe lá
com cabelo grande e bonito de iòlò. Só tykytyby 23 dele e dos pássaros aqui é que estão
com o cabelo cortado.
Depois que acabou toda essa conversa, Rararesa falou: ‘acho que acabou o
assunto nosso, eu vou embora’. Despediu-se dele e foi embora, subiu lá para cima. Só
que a uma determinada altura, já indo para o Céu, Tanyxiwè lembrou que tinha faltado
uma coisa importante, que é perguntar como é que as pessoas iriam ressuscitar depois
de mortas: ‘nossa, esqueci de uma coisa importantíssima!’. Só que não deu tempo de
conversar com ele, então Tanyxiwè gritou para Rararesa e perguntou como seria a
ressurreição (ixitykyrasa) 24 . Ele ouviu e gritou bem alto também, explicando como era
a ressurreição, só que ele não falou bem. Tanyxiwè ouviu, mas nós humanos, que não
somos aõni, não ouvimos. Não é à toa que Tanyxiwè é eterno até hoje, mas ele não
contou para as pessoas, os cunhados, os parentes da Myreikò, que não ouviram, por isso
que a gente morre até hoje. Já outros povos ou espécies, como cobra, camaleão, as
árvores ou até algumas aves, ouviram bem mesmo. Por isso que eles trocam de pele,
fazem uma renovação. Nós não temos isso, a gente morre.
Depois disso, Tanyxiwè voltou para a casa dele, onde estava a sua mulher, e
entregou todas as coisas que ele aprendeu com Rararesa para Myreikò, que são o preço
dela. Explicou as coisas para ela, o que ele fez na viagem dele. Falou que pegou o sol
por causa dela, porque a sogra estava falando que o genro não estava fazendo nada. Por
isso foi lá, pegou o sol e entregou. Quer dizer que assim começou hawyky tybòrò,
pegou o sol por causa da mulher dele. Por isso o sol saiu para o lado de cá, antes estava
lá em cima, no Céu. E por isso que os homens têm que trabalhar muito, duro, têm que
fazer roça, por causa da mulher, hawyky tybòrò. Por isso que hoje é assim, para a
mulher tem que se dar tudo o que o homem consegue, ou seja, é um direito da mulher.
O Tanyxiwè sofreu muito! Ele estava fazendo as normas da vida de casado, porque tudo
se faz com sacrifício para pagar o preço da mulher. Seja para o tio da mulher, para o
irmão da mulher, o sogro ... no caso, ele sofreu também por causa da sogra. Sofreu
tudo, humilhações, tudo. E criou uma lei para continuar de geração em geração, até
hoje os homens sofrem por causa da sogra. Aconteceu isso com os primeiros que
saíram, depois os outros que nasceram foram fazendo igual.” (palavras do tradutor)

O pagamento pela esposa em forma de serviço pesado e continuado aos afins foi
uma das maiores novidades deste mundo terrestre, juntamente com a morte e a procriação
física, não sendo familiares aos vários tipos de humanos que existiam antes das grandes
transformações.

22
Categoria de parentes que imita o comportamento de uma pessoa em várias situações da vida, como cortar
o cabelo do mesmo modo a um menino que é iniciado, e que recebe um presente por isso, assunto que será
retomado no Capítulo 8.
23
Palavra que pode ter o sentido de “espírito” ou “alma”, mas também o de “aparência”. Alguns humanos
celestes teriam a aparência animal aqui, como a família de Rararesa.
24
Palavra que se refere à “troca de pele”, o conceito de “ressurreição” Javaé.

56
Após os feitos extraordinários de Tanyxiwè, o povo Bisarukèrè, que já vivia aqui
antes dele aparecer e dominava o nível terrestre com seus conhecimentos superiores,
resolveu partir para o norte, onde hoje ainda existem seus descendentes, os Bisa Ixyju
(“índios estrangeiros chamados Arara”), ao perceber que Tanyxiwè era muito mais
inteligente e poderoso. Eles eram bonitos, de cor clara, e deixaram o costume atual de
fazer xiwè com o povo da mulher de Tanyxiwè, os Kuratanikèhè.
Tanyxiwè viveu ainda por um tempo com Myreikò e seus afins, a quem não
emprestava os seus pertences pessoais e com quem não partilhava sua comida, até que um
dia sentiu uma grande vontade de ir embora, de andar pelo mundo. Alguns dizem que ele
desejou abandonar Myreikò por que conheceu Hawyky Wènona, uma moça bonita que
pediu para se casar com ele, e por quem ele acabou se apaixonando 25 . É por isso que hoje
haveria separações e adultério. Usando de sua criatividade e esperteza fora do comum,
ele inventou algumas desculpas para deixar Myreikò: primeiro, começou a defecar ao
redor da fogueira da cozinha e a urinar no pilão, dizendo para ela, com raiva, que os
cunhados dele eram os responsáveis; depois, pediu para os cunhados que soltassem e
alimentassem os peixes que ele mantinha presos em um cercado, de modo que os peixes
acabaram fugindo e descendo o rio 26 . Mais uma vez ele atribuiu aos cunhados a culpa
pelo fato e inventou à sua esposa que iria embora para procurar os peixes e porque seus
cunhados o perseguiam. Tanyxiwè deixou Myreikò grávida e partiu.

Neste momento começa a caminhada de Tanyxiwè pelo mundo terrestre, a partir de


algum ponto no alto Araguaia (Berohoky, “Rio Grande”), próximo às suas cabeceiras,
seguindo o curso do rio até o seu fim, que para os Javaé corresponde à atual cidade de
Belém (ver Mapa n° 1), em um percurso de mais de 3.000 km de extensão e que cobre uma
vasta área. As cachoeiras que existem no Araguaia são os lugares em que ele tentava
segurar os peixes colocando pedras no rio, porém sem conseguir. Durante a caminhada,
Tanyxiwè dava continuidade às transformações do mundo, embora se espantasse a cada vez
que encontrava algum ser humano ao longo do caminho, pois supunha que não havia
ninguém morando neste mundo. Continuou então a usar a esperteza famosa que o

25
Há um longo mito sobre a vida pregressa de Hawyky Wènona, “mulher especial” (e Hawyky Hirari, sua
irmã, que vira um aõni canibal), em que ela é assediada por vários animais, que naquele tempo ainda eram
humanos, interessados em se casar com ela. Mas todos a desagradam: de uns ela foge, outros ela mata, até
que conhece Tanyxiwè, a quem ela pede em casamento.
26
O tradutor explica que Tanyxiwè inverte a ordem das coisas: ele é que tinha que alimentar os peixes, como
parte do pagamento pela esposa aos cunhados, mas no mito ele pede para os cunhados realizarem a tarefa.

57
transformou em um herói inigualável ao conquistar para os humanos atuais os vários bens
que existem hoje. Uma série de fragmentos míticos encadeados conta como, ao longo desta
jornada, Tanyxiwè tomou os bens dos humanos que encontrou enganando-os e, depois,
transformou-os em alguns dos animais que conhecemos.

Foi assim, por exemplo, que Tanyxiwè encontrou os Hatana (jacu-cigano), que
ainda eram humanos, dançando alegres e cantando em voz alta. Com inveja da bela voz e
das músicas, Tanyxiwè iludiu-os dizendo que a voz deles era fraca e que ele tinha um bom
remédio para isso, feito da raiz kukusa. Os Hatana beberam o remédio amargo e a voz
deles ficou rouca, ao invés de melhorar. Por isso, hoje o jacu-cigano fica só na beira do
rio, gritando com sua voz ruim:

“(...) Eram muitos homens que dançavam. Tanyxiwè arruinou a voz deles e gritou:
‘vocês não vão ser gente mais não, vão virar pássaros agora, para não atrapalhar a
gente. Quem vai ficar com essas músicas somos nós, iny’. Jogou praga neles e foi
embora. Quando Tanyxiwè os deixou, Hatana gritou para ele: ‘Tanyxiwè ky! 27 Por que
você fez isso com a gente?!’. Ele respondeu: ‘é para vocês ficarem só comendo folhas
verdes na beira do rio, para o pessoal, nós humanos, as avós e mães contarem para os
filhos o que eu estou fazendo aqui, que foi Tanyxiwè que tomou a música de vocês’. Ao
que os Hatana responderam, xingando: ‘ibusurò anahatxi tèburè!’”. (palavras do
tradutor)

O xingamento refere-se a um episódio antigo da vida de Tanyxiwè, quando ele


ainda era um rapaz solteiro:

“(...) Não se sabe o por quê, mas o ânus dele ficou entupido com alguma coisa que ele
comeu. Ele não defecava mesmo. Então ele teve a idéia de furar o ânus para defecar.
Ele foi pedir ajuda para o pássaro socó, porque ele tem um bico bem fino. Só que não
furou. Furou bem aqui assim, perto do ânus, onde tem uma pequena depressão. Então
ele pediu para Torinixiki, que é outro pássaro, que tem o bico afinado e que furou
realmente. O que aconteceu? É claro que teve uma diarréia, ficou defecando sem parar,
ibusurò, porque fedia demais! Defecou inclusive em cima do Torinixiki, por isso que
ele é todo pintadinho assim, porque ele estava embaixo do ânus dele! Para poder parar,
ele fez outro apelo. Foi pedir para alguém, gente mesmo, que chupasse o ânus dele,
prometendo para quem fizesse isso que ia ter dentes eternos. Só que ninguém tinha
coragem de fazer isso, até que Halòkòè (onça) lambeu um pouco. Por isso que os
dentes da onça duram bastante. Depois foi pedir ajuda para o cachorro, Ikòròsa, por

27
Forma tradicional masculina de iniciar um discurso de confronto, em que o ky! é um som agudo, alto e
enfático.

58
isso que ele gosta de comer fezes até hoje e tem dente bom, só quando morre que
acaba”. (palavras do tradutor)

Desde então, Tanyxiwè é conhecido como ibusurò (“aquele que tem a diarréia
fedida”) ou hetxirò (“ânus fedido” ou, metaforicamente, “avaro”), e passou a ser xingado
por todos que foram transformados por ele em animais de “ibusurò anahatxi tèburè!” (“do
seu ânus saem descontroladamente fezes muito fedidas”) 28 . Vários outros episódios
ocorreram de forma similar, como quando ele, sempre motivado por uma inveja do que não
possuía, tomou a canoa de madeira dos Hèlykyrè (patos selvagens), enganando-os ao
oferecer, em troca, uma de barro, que parecia ser melhor; ou o machado de ferro com o
qual Tõrikòkò (lagartixa) estava fazendo uma canoa e a madeira que Nawakiè (ema) estava
brincando, usando da mesma estratégia.
Em todos os casos, as animais são os humanos que perderam algo e, por isso, são
considerados como inferiores e limitados quando comparados aos humanos, marcados, ao
contrário, pela conquista do que foi perdido. A conquista é fruto da criatividade e
capacidade de iludir de Tanyxiwè, ao mesmo tempo em que a perda da condição humana
transforma-se também em um tipo de punição para os que se deixaram iludir. Assim, a
transformação de humanos em animais ocorreu “para os patos ficarem na água e virarem
caça, comida das pessoas”, “para a lagartixa ficar com a cara só nas cascas das árvores” ou
“para a ema ficar só no varjão, sem nada, comendo mosca e as frutas com caroço e tudo”,
todas condições tidas como humilhantes ou pelo menos limitadas.
Uma conquista muito importante foi o fogo, que já existia, mas ainda não pertencia
aos humanos atuais. O fogo foi tomado dos animais quando Tanyxiwè chegou ao local
chamado Iròdu Iràna, na foz do Riozinho do Ezequiel, ao norte da atual aldeia Boto Velho
(ver mapas n° 2 e n° 3). Iròdu Iràna significa “O lugar (na) onde os animais (iròdu)
gritaram (irà)”, em uma alusão ao grito atônito deles para Tanyxiwè: “por que você levou
nosso fogo?!”. Um longo mito narra uma série de artimanhas criadas por ele para enganar
os animais, que ainda eram humanos e viviam na terra deles (Iròdu Hãwa, “Aldeia dos
Animais”), onde pescavam e assavam seus peixes. Depois de várias peripécias, o herói
consegue enganá-los e tomar o fogo:

28
Tèburè é “bravo”, mas aqui tem o sentido de “descontrolado”.

59
“(...) Então Bòròrè (cervo) gritou para ele: ‘Tanyxiwè, por que você fez isso com a
gente?!’. Tanyxiwè respondeu que eles vão ficar na história, que é para (os humanos)
contarem para os filhos, os netos, que foi Tanyxiwè que fez isso com eles, tomou o fogo
deles e eles viraram animais. Ele respondeu, xingando: ‘ibusurò anahatxi tèburè!’.
Depois o Watxi (veado) gritou igual ao Bòròrè. Tanyxiwè respondeu que transformou
ele em veado para o povo comer os veados e eles comerem só capim. Depois o Budoè
(veado mateiro). Ele respondeu que era para o povo contar para os filhos que Tanyxiwè
era iny e transformou-os em animais, por isso que eles comem frutas do mato e o povo
mata os veados para comer. Nawakiè (ema) gritou também. Ele respondeu o mesmo
que para os outros, que eles não tinham asa para voar e iam andar só à pé mesmo,
comendo só mosca, vermes. Para a seriema, respondeu que por isso que ela anda no
varjão mesmo, comendo só insetos. Depois Kõri (anta) gritou a mesma coisa e ele disse
que era para o povo contar que ele tomou o fogo dele e por isso anta come só pau
podre, pau seco, engolindo as frutas com casca e tudo. Kybyryra (onça vermelha)
também gritou e ele falou a mesma coisa, por causa disso está comendo só carne crua.
Então Halòkòè (onça pintada) perguntou e ele respondeu o mesmo que disse para
Kybyryra. Para Hakuri (cotia), disse que era para contar que eles só comem frutas e
andam no mato, e que as pessoas matam eles para comer. Para Haju (paca), disse que
era para contar que viraram animais e só comem frutos, folhas e moram só no buraco.
Todos os iròdu gritaram para ele, perguntando por que ele pegou o fogo, e todos
também responderam ‘anahatxi tèburè’, xingando Tanyxiwè. Depois que gritaram,
Tanyxiwè jogou uma praga, disse que eles vão virar iròdu, todos juntos: que a onça
vermelha vai pegar o veado mateiro, a onça pintada vai pegar o cervo etc. Os animais
correram, eram iny e viraram iròdu mesmo. Depois ele pegou o fogo e deu para o povo,
para nós, iny. E eles viraram animais para nós os comermos. Tanyxiwè ajudou a gente,
que não tinha fogo.” (palavras do tradutor)

Assim que terminaram de gritar, os antigos donos do fogo viraram animais e


começaram a se devorar uns aos outros, como é até hoje, ao mesmo tempo em que se
transformaram em alimento dos humanos. Algumas das outras conquistas mais
significantes da caminhada foram tomadas de pessoas que não se transformaram em
animais, como a pintura corporal e a escrita.

Em algum ponto da sua caminhada, Tanyxiwè viu, de longe e sem ser notado, que
um homem, chamado Worosy, pintava em um pente as pinturas que ele via em seu próprio
ânus. Intrigado com a cena, Tanyxiwè aproximou-se como se nada tivesse visto.
Desconfiado e preocupado, o Worosy testou-o, querendo saber se ele havia visto algo, o
que ele negava firmemente. Por fim, quando se afastou para ir embora, Tanyxiwè gritou
para Worosy dizendo que vira seu ânus, que era feio e com uma pintura desordenada. O
Worosy, que também era aõni, perseguiu Tanyxiwè, enfurecido, mas este escapou,
transformando-se em uma anta que corria muito. Ele conquistou para os humanos atuais

60
os desenhos das pinturas corporais e a escrita, que foi entregue aos brancos. Ambos são
conhecidos hoje como Worosy hetxi ruritihiky (“a pintura ou escrita do ânus do
Worosy”) 29 .

Como foi neste nível terrestre que a procriação física tornou-se uma realidade, não
existindo antes, Tanyxiwè tinha o pênis muito pequeno.

Em determinado trecho de suas andanças, ele encontrou Ijewe tomando banho e


brincando de bater na água do rio com seu pênis imenso, do tamanho de uma canoa, para
fazer muito barulho. Assim como em outras situações, Tanyxiwè fabricou um grande pênis
de barro e convenceu Ijewe que o seu era melhor e mais barulhento que o dele para
brincar no rio. Iludido, Ijewe aceitou a troca, mas logo a seguir o pênis de barro
dissolveu-se na água e o que se passou depois foi o de sempre. Tanyxiwè foi xingado e deu
a ele a resposta clássica. É por causa desse feito, então, que as pessoas procriam
fisicamente e os homens têm atualmente o pênis que era de Ijewe.

Tanyxiwè continuou a sua caminhada pelo mundo, sempre acompanhando o curso


do Araguaia, descendo o rio desde as suas cabeceiras até chegar ao fim. Mas para fazer a
caminhada, ele teve que abandonar sua esposa grávida e seus afins, para quem havia
conquistado o sol.

Um dia, ainda dentro da barriga de Myreikò, Tanyxiwèrikòrè (“filho de


Tanyxiwè”) pediu à sua mãe que fosse atrás de Tanyxiwè, pois queria encontrar o pai.
Myreikò não queria ir, mas o menino insistiu muito, até que ela pediu aos irmãos para ir
atrás de Tanyxiwè. Então ela começou a descer o rio, sozinha e grávida. Na estrada, o
filho fazia muitos pedidos e sua mãe tentava atendê-los. Ele pedia nõirasò, um tipo de flor
que ele achava muito bonito, a qual Myreikò ia pegando pelo caminho, até que em suas
mãos não cabia mais nada. Ele insistiu, porque queria mais dessas flores, e ela reclamou:
“ mas como é que você faz assim, meu filho? Você ainda não nasceu ... eu estou pegando,
mas a minha mão está cheia. Como é que eu vou pegar? Já estou cansada de levar tantas
flores!”.

29
Riti é a palavra geral para pintura e escrita, mas a escrita do branco é conhecida também como tykyriti,
“escrita ou pintura (riti) da pele ou corpo (tyky)”.

61
Era Tanyxiwèrikòrè que estava guiando a mãe em sua busca por Tanyxiwè, mas ele
ficou com raiva da resposta da mãe. Ele sabia intuitivamente onde encontrar o pai e
apontava o caminho para a sua mãe. Com raiva dela, parou de falar e não mais ensinou o
caminho, apesar dela perguntar por onde seguir. Ela insistiu, mas ele não respondia, até
que ela se enraiveceu também e brigou com o filho. Como conseqüência, Myreikò errou o
caminho e pegou a estrada que levava até a casa de Kujã (mucura, espécie de rato
selvagem), que naquele tempo ainda era gente. Como anoiteceu, ela acabou dormindo na
casa dele. Então, como estava interessado nela, Kujã fez um tipo de feitiço e pediu que
chovesse muito nessa noite. Enquanto isso, sem Myreikò perceber, ele pegou uma vara e
furou o teto de palha sob o qual ela iria se deitar. Com as goteiras que começaram a cair,
Myreikò reclamou: “está chovendo aqui”. Kujã disse: “está bom, vamos deitar aqui ...
vem deitar aqui com waixirikòrè 30 ”. Ela mudou de lugar algumas vezes, até que acabou
chegando muito perto dele e, foi inevitável, terminaram fazendo sexo naquela noite.
Myreikò engravidou de Kujã e agora tinha dois filhos gêmeos, de pais diferentes, em sua
barriga: Tanyxiwèrikòrè e Kujãrikòrè [“filho de Kujã”].
Ao amanhecer, Myreikò seguiu pela estrada, continuou atendendo aos desejos do
filho de Tanyxiwè e encheu suas mãos de flores. Novamente reclamou do filho e errou o
caminho. Desta vez, entrou na estrada que levava à casa da Halòkòèlahi (“avó da onça”),
uma velha aõni (com poderes mágicos). Os netos de Halòkòèlahi perguntaram: “minha
avó, quem é essa ixyju bòtòhoky (estrangeira grávida) que está vindo para cá?”. A avó
disse: “vamos matá-la”. Os netos da velha bruxa flecharam Myreikò e a assassinaram. A
velha cortou a barriga dela, tirou as duas crianças e comeu o corpo de Myreikò. Os dois
meninos foram pendurados como ijòwyra (carne salgada que fica secando ao sol). Os
netos falaram: “está bom, minha avó, pode colocar aí. Quando acabar a carne da mãe,
nós vamos comer a carne deles”. Ficaram comendo a carne de Myreikò. Quando acabou
a carne dela, eles resolveram cortar a carne dos meninos em pedaços e socá-la em um
pilão. Mas a mulher não conseguia socar a carne dos meninos porque era muito lisa e
escorregava, até que eles escaparam do pilão e transformaram-se em dois weryry
(“marreco”, nome da classe de idade dos meninos pré-adolescentes. Ver Rodrigues, 1993,
sobre as classes de idade).

30
“Filho do meu ixi (irmão real ou classificatório mais novo)”. Kujã estava se referindo ao filho de Tanyxiwè
como seu ixiriòrè, ou seja, filho do seu ixi. O que significa que estava considerando Tanyxiwè como se ele
fosse o seu irmão classificatório mais novo.

62
Halòkòèlahi encantou-se pelos dois meninos e resolveu adotá-los 31 . Os netos dela
sugeriram que eles seriam úteis para caçar para eles. Os meninos foram criados por eles,
cresceram rápido e matavam muitos animais de caça. A velha bruxa fez uma
recomendação para que eles nunca entrassem por determinada estrada, porque ela sabia
que o Õhõrèrysa (pássaro jacu-cigano) 32 , que lá vivia, iria contar para eles a verdade
sobre a morte de Myreikò. Mas um dia, curiosos, os meninos resolveram desobedecer a
avó de criação e seguiram pela estrada proibida. Chegando lá, o filho de Kujã atirou uma
flecha ao avistar Õhõrèrysa, que gritou chorando: “por que vocês estão me flechando
aqui, enquanto a assassina da mãe de vocês está viva?! Vocês estão alimentando a
assassina e morando na casa do matador da sua mãe”. Eles ficaram assustados e não
atiraram mais nenhuma flecha: “foi a avó que matou a nossa mãe e nunca nos falou?”.
Voltaram tristes para casa. Lá chegando, a avó perguntou: “eu falei para vocês
nunca irem nesse lugar, porque lá existe Õhòrèrysa, que é um monstro”. Ela viu que eles
não mataram nada e perguntou o que aconteceu. Eles falaram que não encontraram
nenhum animal e responderam também: “nós estamos tristes porque nós trouxemos só
tòbòra (cera de abelha que, aquecida, transforma-se em um tipo de óleo)”. Os verdadeiros
netos da Halòkòèlahi também estavam lá. Quando eles saíram e foram caçar, os dois
meninos pediram a ela para derreter a cera. Os dois ferveram a cera em um tacho que a
própria mulher providenciou e, quando estava muito quente, pegaram a falsa avó
assassina, um pela perna, o outro pelo braço, e jogaram seu corpo dentro do tacho. O
corpo da bruxa derreteu junto com o óleo fervente e assim ela morreu. Ao final, quando
restaram apenas os ossos bem brancos, tiraram o osso da mandíbula e do pescoço dela,
com o qual o filho de Tanyxiwè resolveu fazer mykawa (espingarda do branco):

“(...) Depois eles foram atrás do pai. Logo depois que mataram a velha e recolheram os
ossos, a mandíbula etc, foram embora. Lá no meio da estrada, descansaram e
inventaram uma arma com os ossos da velha. Cada um experimentou. A mais forte era
a do filho do Tanyxiwè. Foram atrás do pai. Chegando lá, o pai recebeu bem, mas
estava em dúvida. ‘Por que dois filhos? Deve ser do Kujã’. Ele já estava sabendo, ele
tinha o dom de saber as coisas muito rápido. ‘Eu vou saber agora quem é o meu filho e
quem não é. Vou fazer uma prova da pedra lisa. Quem passar pela pedra lisa
normalmente é o meu filho’. Primeiro foi ele, passou normalmente, andando. Quando
foi a vez do filho do Kujã, o rapaz deslizou. Ele tirou a dúvida sobre quem era quem. A

31
Em outra versão, a velha não conseguia socar a carne dos meninos porque era muito dura, até que ela
desistiu e jogou a carne no lixo, onde eles se transformaram em meninos da classe de idade weryry.
32
Jacu-cigano é õhõrè, mas este se chamava õhõrèrysa, porque era fofoqueiro (rysa).

63
segunda prova era a da pedra quente: ‘se for meu filho, vai ter que passar normalmente
e quem não for vai queimar os pés’. E soube quem era e quem não era o filho.
Depois mostraram a invenção deles, a arma que fizeram com o osso da velha.
‘Fizemos isso com o osso da velha que matou nossa mãe, experimenta aí’. O pai
experimentou a arma do filho de verdade. No caso, era a arma de fogo, espingarda
mesmo. Atirou e foi normal, um tiro mesmo. Já a do filho do Kujã era um monstro, no
sentido do som. Era um estouro, tipo um relâmpago. Ela (narradora) falou que o
relâmpago é a arma do filho do Kujã até hoje. Por que o Tanyxiwè não aceitou que
fosse uma arma? Falou assim: ‘essa arma aqui’, do filho próprio, ‘vai ficar. Agora essa
outra é muito perigosa, porque é poderosa demais’, que é a do Kujã. Quando ele atirou,
ficou para lá mesmo, com barulho e tudo. E até hoje se diz que é o relâmpago, esse
trovão aí. Se fosse aqui, mataria todo mundo 33 .
Outra coisa interessante que ela falou: em determinado tempo, ele foi para a roça,
só que na ausência dos filhos. Tinha uma banana chamada awiheni ou hawèkòtòbò
(banana nanica), que os filhos comeram. Ele não gostou. Ele deu uma bronca nos
meninos e por isso que hoje tem o sovina. Deu bronca porque comeram a banana do
pai, por isso que hoje existe o sovina. E os Tori (brancos) têm mais sovinas que os
índios. Porque Tanyxiwè (descendente dos Ijèwèhè, ancestral dos brancos) brigou com
os próprios filhos que comeram a banana dele. Um pai não deve achar isso ruim, mas,
como ele achou, então ficou assim, quem tem mais sovinas são os Tori. O pessoal fala
que os Tori são mais sovinas que os índios porque Tanyxiwè fez assim. Nós aqui quase
não brigamos com o filho quando come. É tudo para o filho. Já Tori tem aquelas coisas:
“isso aqui é para mim, isso aqui é para o filho”.
Então ele falou para os filhos: ‘agora vocês vão para a roça’. Só que, quando os
dois garotos chegaram na roça lá, tudo que eles tocavam, seja o pau cortado com facão,
ou o chão furado com a faca, a árvore e o chão falavam ‘ai!’. Sentiam dor e falavam
‘ai’ para lá e para cá, porque naquela época tudo tinha vida. Aliás, até hoje tudo tem
vida, só que naquela época falava. Se você enfiasse um machado ali, a mangueira já
brigava com você, porque doía para ela. Eles se assustaram e voltaram para casa: ‘pai,
por que as árvores que a gente corta e a terra onde a gente finca alguma coisa fala
‘ai’?’. Ele falou assim: ‘se vocês cortarem o pau e a árvore falar ‘ai’, vocês falam: ‘um
dia, você vai ficar em cima de mim’. Ou seja, quando a pessoa morre, a árvore, de
qualquer jeito, ou indiretamente, como caixão, alguma coisa, vai (ficar em cima do
morto). Quanto ao chão, “quando falar ‘ai’ para vocês, vocês falam ‘algum dia vocês
vão devorar meus olhos, meus ossos, meu corpo todo’, porque da terra a gente vem e da
terra a gente será”. Nós temos isso também. Por isso que a terra come a gente hoje: ‘se
vocês falarem isso, vocês vão parar de ouvir essas coisas’. Falou para eles não se
preocuparem com eles, porque um dia nós, humanos, vamos ser enterrados na terra, um
dia o pau vai cair em cima de nós, no cemitério, essas coisas. Um dia iam se inverter as
coisas. Então nós acreditamos que a terra e as árvores têm vida. Mas a gente não ouve.
Eles ouviam porque eles eram aõni. Quando eles falaram isso, eles pararam de ouvir.
Depois ele decidiu: ‘vocês vão para lá’. Ele estava aqui no meio e falou: ‘o filho
próprio vai ficar para cá, iraru (rio abaixo), e o filho bastardo’, não sei como é que fala,
‘vai para cá, para o ibòkò (rio acima)’. Tudo que pertence ao pessoal do ibòkò é fraco,

33
Em outra versão, o filho de Tanyxiwè fez a espingarda com o osso da coxa e o filho de Kujã, com o osso do
pescoço. Os dois experimentaram as armas e ficaram satisfeitos com a invenção. Só que, quando o filho de
Kujã atirou para o alto, o tiro ficou preso no Céu e se transformou nos raios e trovões que existem até hoje na
época das chuvas.

64
como machado, qualquer coisa assim dos homens é fraco. Tudo é quebrável. E já para
o rumo do iraru tudo é forte. E o pai está aqui no meio.
Hoje tem forte ligação de filho para pai. Se um pai de um menino estiver ali, o
filho, não sei como, sabe ir atrás do pai. Porque naquela época, o menino dela
(Myreikò) foi dentro da barriga e mesmo assim soube chegar onde ele estava. Por isso
que hoje tem uma ligação forte”. (palavras do tradutor)

Os filhos de Myreikò encontraram com Tanyxiwè quando ele já havia atingido o fim
de sua caminhada, rio abaixo. Os episódios envolvendo o Tanyxiwè e seu filho e o filho de
Kujã ocorreram no iraru hetxi hetxi (no fim extremo do rio), de onde Tanyxiwè resolveu
subir para o Biu (Céu), onde vive até hoje, com a sua fama de avareza. Em uma outra
versão, é dito que Tanyxiwè teria continuado morando no iraru hetxi hetxi e que, após ter
aplicado os testes e descoberto quem era o seu filho verdadeiro, o herói teria recomendado
ao filho de Kujã que este voltasse para trás e subisse o rio.

Kujãrikòrè deveria morar no ibòkò (rio acima) e fazer ãosirarysyna, “buscar aõsira
(‘coisas em geral’)”, ou seja, buscar em outros lugares distantes os bens que não se
possui. Do mesmo modo, Tanyxiwèrikorètyhy, o filho verdadeiro, deveria ficar morando
no rio abaixo. Quando Kujãrikòrè precisasse de algo do rio abaixo, ele viria visitar o seu
irmão. E quando Tanyxiwèrikòrè precisasse de algo do rio acima, ele faria o inverso,
visitando o irmão que morava a montante do rio.
Assim foi criado o hábito dos brancos de fazer comércio, pois estes são os
descendentes dos dois irmãos, assim como Tanyxiwè é Torilabiè (avô ou ancestral dos
brancos). Os brancos do rio acima (tendo como referência a Ilha do Bananal), como o
povo das cidades de Aruanã, Goiânia, Brasília etc, são Kujãrikòkòrè, os descendentes do
filho de Kujã. Eles têm iòrèhè (cara comprida) e tohõtinini (orelha grande). Já os brancos
do rio abaixo, os que moram no Estado de Tocantins, em Belém etc, são conhecidos como
Tanyxiwèrikòkòrè, os descendentes do filho de Tanyxiwè. Quando Tanyxiwè mandou o
filho de Kujã embora, o filho de Tanyxiwè pediu ao pai para que deixasse o irmão ficar,
pois gostava muito dele. Foi então que se criou Tanyxiwè bèdènykyna, “a lei de
Tanyxiwè”: os descendentes dos irmãos devem se visitar e aproveitar para adquirir os
bens desconhecidos. Por isso os brancos viajam tanto e moram longe uns dos outros,
visitando-se e fazendo comércio com as coisas que compram longe.

65
2.2. Tòlòra e os povos que ascenderam ao mundo iluminado

Após a conquista do sol por Tanyxiwè, alguns povos que viviam na escuridão do
fundo aquático entusiasmaram-se para conhecer o Ahana Òbira, este espaço aberto, amplo
e desde então muito claro. Com exceção dos poucos que já estavam aqui antes da saída dos
Ijèwèhè, ancestral de Tanyxiwè, todos os outros povos que saíram de baixo para cima (ou
de dentro para fora) fizeram-no depois que o mundo terrestre foi iluminado. Algumas das
passagens entre os dois mundos são conhecidas como iny òlòna (“lugar de saída ou
surgimento dos humanos”), referindo-se aos locais exatos, existentes até hoje, de onde
saíram os ancestrais dos Javaé atuais. Para cada saída há uma narrativa mítica, pois cada
povo que saiu trouxe algo diferente e tinha suas peculiaridades. Muitos saíram por causa
do sol, outros por causa das comidas diferentes, outros ainda por curiosidade.
Há uma memória detalhada dos vários povos que existiam naquele tempo. A maioria
era chamada de ixyju, povos “estrangeiros” que tinham outra língua ou outros costumes.
Entre os ixyju, alguns saíram do Fundo das Águas, mas outros saíram “da terra mesmo” 34
ou já estavam por aqui. Outros eram considerados iny, no sentido específico de que
falavam línguas parecidas com a dos Javaé atuais, mas eram também povos diferentes
entre si, que viviam em lugares diferentes. Muitos eram conhecidos pelo nome de um líder
importante, que deixou seu nome para o povo e o lugar em que habitavam.
Obtive uma descrição – que não se esgota nesta lista – dos povos ixyju que saíram
de baixo para cima ou já moravam aqui baseada na sua distribuição espacial. Os que
moravam dentro da grande Ilha do Bananal estavam divididos entre os iraru mahãdu
(povos da região norte da ilha), os itya mahãdu (povos da região central da ilha) e os ibòkò
mahãdu (povos da região sul da ilha). Como já foi dito, ibòkò ou “rio acima” (em direção
às cabeceiras) e iraru ou “rio abaixo” (em direção à foz) são os principais conceitos Karajá
e Javaé de referência espacial, tendo como base o curso do rio Araguaia e afluentes, que
vai do sul (rio acima) para o norte (rio abaixo). Na descrição em questão, aquilo que os
Javaé consideram como o centro da Ilha do Bananal é o ponto de referência (ver Mapa n°
7, ao lado):

34
Existem lugares habitados abaixo da terra, que não se confundem com o Berahatxi (abaixo do fundo dos
leitos dos rios ou lagos). O nível terrestre invisível é conhecido como Bèdè Rahy, onde vivem muitos dos
aõni (ver Rodrigues, 1993). Sobre o Bèdè Rahy Karajá, ver Pétesch (2000).

66
Mapa 7
51° W 50° W'
Tripartição espacial e histórica
da Ilha do Bananal
45
43
10° S IRARU 10° S
44 42
s
41 (rio abaixo)

s ercê
Rio da M
46 40
39 38
37
36

a ia
35
MATO GROSSO 34

gu
ra
33

R io A
Macaúba 32
31
Ibutuna 30 Boto Velho

Maitxàri Itxala
29

ho
zin 28
Hãwalora
o
Ri

TOCANTINS
24
Região do Wakòtyna
rio abaixo 23
19
27 18
26 17

11° S 25 22 16 11° S
20 Txukòdè
21 15
14
13 11
o
12
Dejueh

São Domingos 10
Teribrè 9 Wariwari
Rio

Fontoura Boa Esperança


Kaxiwè

Santa Isabel
Rio J a v

JK 8
Watau
Imotxi
Rio buru

Região

Ja

do meio
s

7
o

Txuiri
Riozinh

Nova
oky

Tytema
oh

S
Canoanã
6
4 Marani Hãwa
12° S 12° S
5 São João
3
Região do Wahuri
rio acima 2
Ar a guaia

Barreira Barra do Rio Verde


Waritaxi Aldeia Javaé antiga
Branca
Aldeia Javaé atual
1 Aldeia Karajá atual
Rio

Mirindiba
s

Rio
é
va
Ja
Rio

IBÒKÒ 0 50 km
(rio acima) N
Fontes: Dados de campo
Projeto: Patrícia de M. Rodrigues
51° W 50° W Cartografia: Dan Pasca

67
Iraru mahãdu (povos da região norte da ilha ou do “rio abaixo”):

• Karalu ixyju: o povo Karalu saiu do Fundo das Águas no local atualmente
conhecido como Karalu Hãwa (às margens do Lago de Pataca) e trouxe consigo a
banana de casca verde, hawihè kòtòbò. Conforme um mito existente, Karalu era o
nome de um homem que se vingou de seu próprio irmão, Woureruja, que o traiu
com sua esposa, deixando seu nome para o lugar e o povo que ali habitava.

• Nibònibò ixyju, Walairi ixyju, Kubexi ixyju: eram todos povos que moravam na
região da atual aldeia Wariwari, em lugares diferentes, uns mais próximos, outros
mais distantes (os Walairi para baixo da aldeia Wariwari e os Kubexi para cima,
no lugar atualmente chamado Serra das Cobras, ambos fora da ilha).

• Kuriawaku ixyju: povo que morava exatamente no lugar da antiga aldeia


Wariwari, atualmente chamado Capão de Areia, a cerca de 5 km da atual aldeia
Wariwari.

• Wariwari ixyju: povo estrangeiro, misturado com os Hamaleri e Ohole, mas que
era conhecido como Wariwari porque saiu de baixo perto do Capão de Areia.

Itya mahãdu (povos do “meio” ou da região central da ilha):

• Imotxi ixyju: Imotxi era o nome de uma pessoa e depois virou o nome do lugar
(Imotxi Hãwa) e do povo que ali vivia. Não saíram do Fundo das Águas, pois eram
do nível terrestre. No lugar existe atualmente a aldeia Imotxi, situado em um dos
afluentes do Riozinho.

• Kyrysa Tyhy Ixyju: nome dos Xavante e Xerente, que moravam em Watxi Hãwa,
lugar que mantém esse nome até hoje.

• Ijewe ixyju: Ijewe era o nome de um líder de um lugar, Ijewe Hãwa, agora
conhecido como Ikòrò Hãwa (“Aldeia ou Território da Raposa”), e do povo Ijewe
(há indícios de que era o mesmo Ijewe que Tanyxiwè encontrou em sua caminhada
e do qual tomou o pênis).

• Xirumytata ixyju: povo que morava um pouco mais ao norte que os Ijewe.

• Wakatu ixyju: povo que morava onde agora se conhece como Wakatu Hãwa, região
que fica entre o Imotxi, o lago Sòhoky e Lòreky (antiga aldeia próxima ao lago
mencionado).

• Aximani ixyju: moravam na mesma região dos Wakatu.

68
• Anirahu ixyju: povo que saiu do Fundo das Águas em Marani Hãwa e sobre o qual
existe o mito, a ser analisado mais à frente, das mulheres que traem os homens com
um amante jacaré. Moravam entre o Lago Sòhoky e o Riozinho, mais ao norte do
Lòreky, em um lugar chamado Anirahu, que também era o nome de um líder, e
coletavam o pequi mencionado no mito em Wakatu Hãwa.

• Latèbi ixyju: já existiam aqui no nível terrestre, morando também próximo ao


Lòreky.

• Lòreky ixyju: Lòreky (nome de um caramujo) era o nome de um líder que deu o
nome ao povo e ao lugar, Lòreky Hãwa, palco de vários acontecimentos míticos,
próximo do atual Lago Sòhoky.

• Kòhòny ixyju: povo que saiu do Fundo das Águas e que vivia entre o Lòreky e o
Lago Sòhoky. Kòhòny é também o nome do “bicho de pé”.

• Kujejeni ixyju: nome do povo que vivia onde hoje está o grande Lago Sòhoky. O
local chamava-se Kujejeni Hãwa, “Aldeia ou Território dos Kujejeni”, antes dos
acontecimentos míticos, a serem narrados, que levaram à criação do lago.

• Habòkò ixyju: povo que saiu do Fundo das Águas na região entre o Lago Sòhoky e
Canoanã. Um dos povos “subordinados” (wetxu) ao povo Wèrè, cuja origem será
relatada mais à frente.

• Kanõanõ mahãdu: Kanõanõ é o nome de um líder e de um povo, também


conhecido como o povo Torohoni, que ascendeu em um lugar próximo à atual
aldeia Canoanã. São considerados iny, no sentido de que falavam língua parecida
com a dos Javaé atuais.

• Kòriminikèhè ixyju: povo que morava perto da atual aldeia São João, dentro da ilha,
no local que ainda se chama Kòriminikèhè.

• Heryrihiky Hãwa: nome de um lugar na beira do Rio Javaés, onde hoje existe a
aldeia Wahuri (ex-Cachoeirinha), onde uma mulher, chamada Heryri (“macaúba”),
liderou o seu povo no passado.

• Heryri Hetxi Tèbè mahãdu: povo que morava também na beira do Rio Javaés, em
um local mais ao sul da Heryrihiky Hãwa e que tinha esse nome, que se refere a um
apelido da Heryri, “com pouco volume nas nádegas”. Não sei informar se era o
mesmo povo anterior.

• Kanuaru ixyju: povo que era subordinado a outros povos da região, principalmente
aos de Marani Hãwa, porque eram feiticeiros maléficos e temidos. Kanuaru era o
nome de um líder e também do lugar, no Riozinho, um pouco mais ao sul dos dois
lugares anteriores.

69
Ibòkò mahãdu (povos da região sul da ilha ou do “rio acima”):

• Dimarani Hãwa: o primeiro nome da antiga aldeia (situada ao lado do atual Lago
do Bananal) e região vizinha conhecida como Marani Hãwa, cujo surgimento
remete a um importante mito a ser narrado. Considerada como a maior aldeia Javaé
já existente, embora não seja mais habitada, e o “centro” sagrado das outras aldeias
da porção meridional da Ilha do Bananal, Dimarani Hãwa surgiu onde já moravam
antes os Kuratanikèhè, também conhecidos agora como Iny Wènona (“humanos
especiais”) ou Inytyhy (“humanos de verdade, honrados”). Inytyhy é uma das
autodenominações atuais Javaé.

• Takinahaky Hãwa: lugar atualmente conhecido como Takinabèrèna e que tinha o


nome do líder local, Takinahaky, nome da Estrela d’Alva, sobre o qual há um
conhecido mito entre os Javaé e Karajá. Era um povo tido como iny, pois falava
uma língua parecida com a atual. A aldeia situava-se entre o Rio Javaés e Marani
Hãwa, onde existe a nascente do Riozinho.

• Tahakala ixyju: povo que morava onde hoje existe a aldeia Barreira Branca, na
beira do Rio Javaés, e atualmente conhecida também como Tahakala.

• Juasa mahãdu: Juasa era o nome de uma pessoa e depois o nome de um povo, que
morava em um local mais ao sul da atual aldeia Barreira Branca.

• Halàlàra ixyju: povo que vivia na região de Marani Hãwa, aldeia cercada de várias
aldeias menores.

• Kanakèrebi mahãdu: era o nome de um líder e o nome de um povo também


considerado iny. Kanakèrebi era conhecido como o líder de Marani Hãwa itya (o
centro da região de Marani Hãwa).

• Mõrõrõ ixyju: povo que morava perto de Marani Hãwa e era liderado por
Kanakèrebi.

• Bisarukèrè mahãdu: como já foi dito antes, era um povo que saiu do Fundo das
Águas na região do Imotxi, antes de Tanyxiwè conquistar o sol, e que foi embora
após a sua conquista. Viviam no lugar agora conhecido como Bisa Hãwa. Também
eram considerados iny e tido como os atuais “índios Arara” do norte.

• Mõri ixyju: mais um dos povos da região de Marani Hãwa, que vivia no local agora
conhecido como Mõri Hãwa.

Dimarani Hãwa aparece na lista como o lugar onde já viviam os Kuratanikèhè,


povo de Myreikò, mulher por quem Tanyxiwè conquistou o sol e todo o resto, mas neste
tempo a região ainda não era conhecida com este nome. O povo Torohoni, por exemplo,
saiu liderado por Kanõanõ no local onde existem umas pedras no Rio Javaés, bem

70
próximas de onde hoje está a atual aldeia Canoanã. Kanõanõ falou para a mulher dele que
iria defecar no nível terrestre e andar um pouco para conhecer o lugar.

“(...) Voltou e disse para a mulher que o Ahana Òbira (o nível terrestre) era bom para
ficar, gostou daqui. Então vieram com essa família deles e ficaram. Saiu muita gente,
veio todo mundo para cá. A aldeia era enorme, o fim da aldeia chamava Byna Hãwa, o
começo era Mana Hãwa (‘Aldeia das Pedras’). Depois de muito tempo, essa aldeia já
estava feita, esse Kanõanõ tomava banho direto no rio. Até que ouviu aquele barulho
de quando a pessoa está arrancando a espiga do milho e desconfiou. Então ele fez uma
redinha, hatykyna 35 , que o pessoal de antigamente colocava entre as pernas para pescar.
De repente o milho entra e se tranca. Ele saiu da água e foi embora. A mulher
perguntou o que era e ele falou que era wabèrekotxoni, o milho que nós conhecemos. O
nome que existia lá dentro com o povo do Fundo das Águas é esse. O milho veio de
dentro do Berahatxi (“o Fundo das Águas”) e era diferente, ele ficou intrigado. Então
dividiu o milho em quatro partes, torimai (“milho dos brancos”), warèmai, wararè e
ityalyrè, e plantou.” (palavras do tradutor)

Os diferentes tipos de milho nasceram, cresceram e foram colhidos, continua o mito


cheio de detalhes. Como era uma novidade, o milho foi assado e todos gostaram:

“(...) Virou uma febre de comer milho, o povo daqui e o de outras aldeias, era inédito
para eles. Depois de muito tempo, diz que a sogra dele, Biri (‘periquito’, mas que ainda
era gente), reclamou que já estava cansada, não agüentava mais comer, estava enjoada
do milho. Que não agüentava mais carregar weriri 36 , porque a testa já estava ficando
careca! Por isso que tem um tipo de periquito que tem aquele sinalzinho na testa.
Reclamou demais. E o sogro, Irihiri, outro tipo de periquito, que tem um tom dourado
nas asas, que ficou assim de tanto carregar bèhura (cesto masculino). Reclamaram por
isso. Kanõanõ ficou com raiva da reclamação dos sogros e queimou a roça toda. Por
isso que o milho tem que ser plantado agora, antes nascia e morria em qualquer lugar,
como se fosse nativo mesmo”. (palavras do tradutor)

As sogras, principalmente, e suas reclamações, que não existiam no Fundo das Águas
ou no Céu, começavam a fazer parte definitiva e indigesta da paisagem terrestre. O povo
Torohoni, dentre os vários que existiram nessa época, falava a mesma língua dos Javaé
atuais, a mesma do povo Kuratanikèhè (os afins de Tanyxiwè). Existe um mito, a ser
retomado adiante, que conta como eles moravam em uma aldeia imensa e redonda, onde
hoje está a aldeia Canoanã, e foram exterminados pelos Torihuhu (“os Tori antigos”, ou

35
Armadilha em que o peixe entra dentro de um recipiente, mas não tem como sair.
36
Cesto grande de palha com uma corda que é apoiada na testa para carregá-lo nas costas (ver Krause
1942d).

71
seja, os primeiros bandeirantes). A aldeia Kanõanõ tornar-se-ia palco de diversos
acontecimentos míticos importantes.
Os mitos a seguir narram o surgimento da aldeia Dimarani Hãwa, que depois seria
conhecida simplesmente como Marani Hãwa, ao lado de um dos principais lugares de
ascensão dos ancestrais dos Javaé atuais (ver mapas n° 3 e n° 6); e do Riozinho, o principal
rio do interior da Ilha do Bananal. Os fatos narrados abaixo aconteceram depois da
conquista do sol, na mesma época da ascensão da maioria dos povos mencionados, e os
atores envolvidos eram do povo Kuratanikèhè. Em Rodrigues (1993), há uma outra versão
deste importante fragmento mítico:

“(...) Essa história fala sobre uma seca que houve na época do pessoal ixyju mahãdu (os
estrangeiros). O tempo foi secando, secando ... tinha uma pessoa chamada Wètyryri, do
pessoal dos (Kuratanikèhè). Ele sabia que o rio ia secar e falou para si mesmo que ia
acompanhar a água, ele ia atrás da água aonde ela fosse. Pegou as coisas dele, aquelas
cumbucas de cabaça e foi atrás do rio. O rio foi secando, secando, secou quase tudo. Os
que estavam no seco cavavam buraco e não achavam água, até que os povos que
tinham lá ... quase todo mundo foi extinto, os ixyju morreram, a família da Myreikò
morreu de sede. O lugar onde ficou só um resto de água se chamava Berahaky, mas
depois virou Ijorobari ryna. Só que tinha dois guardiões, onças e abelhas, que ficavam
vigiando. Qualquer pessoa ou animal que fosse lá procurar água se deparava com
halòkòè (onça pintada) e kòhybyry (abelhas), que matavam mesmo. As pessoas foram
deixando de tomar água lá e a água estava secando demais.
Morreram os povos, os animais, e ficou só esse tal de Kwely, ele se salvou, no
lugar exato (onde hoje é) o Marani Hãwa. Que ele fazia para sobreviver? Não tem
aquela cera da abelha, tòhã? Ele tirava uns pingos d’água espremendo e também do
ahaluru, uma fruta que tinha lá. Tirava um mínimo de água só para sobreviver. Ele
estava lá sozinho e fez uma roça, só que depois de um bom tempo apareceu
Bòròrèkuni, que tinha forma de gente, mas era um tipo de aõni. Ele chegou e ficou de
longe observando os ossos dos animais mortos, enquanto Kwely estava roçando o mato.
De repente, acho que caiu em tentação, Bòròrèkuni se vestiu de mulher, colocou
embira, igual inytu (tanga de entrecasca, “couro de gente”), e se apresentou para Kwely
como mulher. Deitou no chão e Kwely, sem querer, quase derrubou um pau em cima
dele. Kwely perguntou: ‘o que você está fazendo aí (no chão)? Quase derrubei o pau em
cima de você!’. O outro (Bòròrèkuni) falou: ‘eu estava procurando gente’. Como Kwely
estava carente demais, apaixonou-se por ele e disse: ‘então nós vamos ficar juntos
agora’. Então se arrumaram lá, casaram, essas coisas, e o Kwely ainda sem saber que
ele era homem. Na hora do sexo, ele tirou a tanga dele e viu que era homem. O que ele
fez? Cortou o pênis dele, para ele ser mulher de verdade. Diz que hoje a mulher tem os
lábios vaginais, o grande e o pequeno, e os pelos pubianos, porque os homens que
tinham pelos e ele cortou o pênis, por isso que tem hoje. Fez a vagina, o útero, porque
Kwely era um tipo de aõni também.
Então Kwely ficou com ela e tiveram filhos, três homens e duas mulheres. A mais
velha se chamava Dimarani, depois vieram Maha, Nabio, Woubedu e Tyhywè. E a mãe
– Bòròrèkuni virou mãe – fez dekòbutè, dexi (enfeites de algodão). Só que o Kwely

72
desconfiou, porque começou a reparar que os enfeites apareciam molhados: ‘não tem
água ... por que essas crianças estão aparecendo com o dekòbutè molhado, pingando
água?’. A mulher sabia onde estava a água, no butinihiky, um tipo de pote gigante. Ela
que tinha guardado escondido, levava os meninos lá, dava banho escondido, mas não
falava para o marido dela. Ele falou para a mulher que ia para a roça, mas resolveu
vigiar a família. Subiu em uma árvore bem alta, onde podia enxergar aonde o pessoal
ia. Então a mãe e os filhos foram procurar o lugar onde tinha os dois potes grandes.
Eram dois potes grandes e ao redor tinha um pouco de água também, que era do pote.
Ele descobriu onde estava a água e, logo que eles saíram, correu lá para tomar água,
para matar a sede de tanto tempo sem beber. Bebeu, bebeu, suspirou e se deliciou com
a água. Ficou pensando: ‘eu tenho que soltar essa água ... não sei se solto para iraru
(norte) ou ibòkò (sul)’. Ele estourou os potes com um machado e para onde ele corria, a
água ia atrás. Ele correu para o iraru, para o Ijoroderu ryna (trecho nas cabeceiras do
Riozinho, que corre para o norte). Quando estourou o pote, o Kanydurani, (um aõni
imenso com forma de kanydura, o peixe bicuda) começou a ir atrás dele, roendo tudo
que tinha na frente dele, a terra, as árvores, e fazendo o leito do rio. Então Kwely correu
até um lugar, chamado Latèbirè, que depois virou aldeia, e subiu em um pé de
jenipapo, que é muito amargo, o único que Kanydurani não mordia. Ele subiu nesse pé
e resistiu. O resto foi roído pelas piranhas, lá na frente, formando um lago lindo, o
Kwely Ahu 37 . Depois o rio encheu, ficou cheio.
Depois que parou e tudo voltou ao normal, ele voltou para casa. A mulher dele
perguntou o que tinha acontecido, mas ela já sabia mais ou menos, porque foi ela que
escondeu o pote esse tempo todo e sabia tudo, porque ela era aõni. Kwely perguntou
para a mulher: ‘porque você escondeu a água de mim esse tempo todo?!’. Ela disse:
‘porque eu sabia que, se você encontrasse a água, você ia fazer mal para a
humanidade’, mas ele respondeu: ‘eu não fiz mal para a humanidade, eu fiz o bem, fiz
o Riozinho’. Ela era muito egoísta, ela não queria dar a água para ninguém. Kwely
deixou a água como herança para o povo dele, para os filhos, para a mulher dele e
avisou para eles que ia embora, porque Kanydurani o tinha pegado. Ele se apossou dele
e então Kwely foi embora para o Berahatxi (abaixo das águas), até hoje está morando
lá. Bòròrèkuni, a mãe dos meninos, também desceu. Logo depois dele, que foi embora,
ela também foi para o Berahatxi, porque ela já era aõni mesmo.
Então ficaram só essas cinco crianças, sem mãe, sem pai, sem nada. As primeiras
eram Dimarani e Maha, mulheres. Os homens eram Nabio, Woubedu e Tytyhywè. O
nome do lugar veio disso, porque ela era a primeira filha do casal, então ficou sendo
Dimarani Hãwa, em homenagem a ela. Só que depois de muito tempo virou Marani
Hãwa.” (palavras do tradutor)

O egoísmo e a imoralidade das mulheres estavam só começando a ser uma


realidade deste nível amplo e aberto, o que os mitos insistem ad nauseum, como veremos,
assim como a existência de corpos preparados para a vida sexual e a reprodução física.
Também o valor maior do primogênito começou a ser instituído nesses tempos de radicais
transformações e criação do mundo em que vivemos.

37
“Lago do Kwely”, como é conhecido hoje, ou Lago do Bananal, para os regionais.

73
O grupo de irmãos cresceu sozinho e todos acabaram se casando com pessoas dos
outros povos vizinhos, como os ixyju do Imotxi, misturando os Kuratanikèhè com os
Imotxi na aldeia que passaria a ser conhecida como Marani Hãwa. Uma longa e detalhada
narrativa conta como Nabio e seus irmãos envolveram-se com um outro grupo de irmãos,
os Ijanakatu boho (grupo de irmãos referido pelo nome do primogênito, “os Ijanakatu”),
em um conflito que trouxe conseqüências definitivas e importantes para os dias de hoje.
Antes de narrar esses fatos, entretanto, é preciso apresentar, ainda que de forma resumida,
a origem de Ijanakatu, uma vez que ele, assim como Tanyxiwè, é considerado pelos Javaé
um dos principais heróis que transformaram o mundo no que ele é.

Quando Ijanakatu ainda era weryry (pré-adolescente), a mãe dele, Wajamiri,


casada com Kujimitini, teve um romance com Ijewe (ou Hanijewe, em outra versão,
aquele de quem Tanyxiwè tomaria o imenso pênis depois). A família de Ijanakatu morava
no local hoje conhecido como Ijanakatu Hãwa (um pouco abaixo da aldeia Barreira
Branca), que era bem distante de Ijewe Hãwa (entre Sòhoky e Imotxi), mas mesmo assim
Wajamiri fazia uma longa caminhada para encontrar o amante periodicamente. Na volta
ela chegava com a tanga rasgada e suja de sangue, porque Ijewe tinha um pênis muito
grande, mas sempre inventava uma desculpa para o fato diante dos questionamentos de
seus filhos. Também costumava dizer que a caminhada era para trazer ryhyky, uma fruta
parecida com a castanha-do-Pará, que ela trazia da Ijewe Hãwa. Um dia ela resolveu
levar marido e filhos para coletar a fruta, estes últimos sem saber que se tratava de uma
armadilha preparada por ela. Ao subir na árvore para pegar as frutas, nas cercanias da
casa de Ijewe, que também era casado, Kujimitini foi flechado pelo amante da mulher e
morreu. A mãe propôs indecentemente que os filhos passassem a morar com ela na casa
do amante, mas Ijanakatu, descobrindo a verdade, negou-se e voltou com os irmãos para
a aldeia de origem, onde encontrou o avô paterno, Wematyni. Foi nessa época que
começou o adultério, que antes não existia (hãburibiota, “mulher que deixou o seu
próprio marido por outro”). Os filhos aprenderam com a mãe o adultério e a prática de
namorar 38 , também inexistente antes.

38
Que no contexto Javaé tem o sentido de relações sexuais fora ou antes do casamento, algo socialmente
condenado tanto para os homens quanto as mulheres.

74
Por isso um outro mito conta como Ijanakatu e seus irmãos tiveram depois que lutar
para “defender as vaginas” de suas irmãs namoradeiras, que seguiram o exemplo da mãe.
Foi depois desses fatos, então, que as crianças começaram a imitar os que os pais faziam.
Estimulados pelo avô inconformado, começa a saga de preparação dos irmãos para a
vingança pela morte do pai. Os homens chamavam-se Ijanakatu, o primogênito, Erehelari,
Kerebelani e Kalubèdèri, e as mulheres, Kerekelalo e Xirikimale. Uma narrativa longa e
cheia de detalhes conta como Ijanakatu vai com Erehelari e Kerekelalo (os outros
morrem) atrás de Txireheni wòri (wòri é um remédio feito da espécie de lagarta de fogo
mais ofensiva, larabòtò kõrirèhèsi, e Txireheni o nome do velho feiticeiro que o possuía).
Após uma série de testes, aplicados a todos que o procuravam, Txireheni confirma que ele
era o verdadeiro Ijanakatu, um dos aõni dotados de poderes especiais, por quem já
esperava há algum tempo. Com a ajuda do feiticeiro, Ijanakatu e seus irmãos tornam-se
fortes e altos, mas na volta à casa do avô, que também era aõni, este se assusta com o
crescimento exagerado e repentino deles e acaba reduzindo a altura dos netos, deixando o
primogênito mais baixo que o irmão do meio, e a irmã mais baixa que todos. Por isso que
hoje em dia a altura de um grupo de irmãos é assim, diz o mito ao final, contando antes,
porém, como os irmãos vingaram a morte do pai, matando o amante da mãe e a própria
mãe.
Em algum momento posterior, já adultos, Ijanakatu, seus irmãos e o avô paterno
foram viver próximos a Marani Hãwa, onde seus primeiros moradores viviam em
harmonia. Resumindo o grande episódio em sua essência, Wematyni, o avô de Ijanakatu,
encontra e espia Nabio e seus irmãos, filhos de Kwely e Bòròrèkuni, agora também adultos,
pescando no rio com ruirèsy, um tipo de rede antiga. Não se sabe o porquê, alguns dizem
que foi por ciúme, mas Nabio e seus irmãos não gostaram e começaram a maltratar
Wematyni todas as vezes que ele aparecia por lá. O avô voltava humilhado para casa todos
os dias, sem falar nada, até que Ijanakatu e os irmãos desconfiaram. Eles se camuflaram
transformando seus corpos em patos e puderam observar a cena, descobrindo o que estava
acontecendo. Questionado pelos netos, o avô disse que omitira a verdade porque eles eram
muito baixos para enfrentar Nabio e seus irmãos, altos e com porte de lutadores. Então
Ijanakatu, através de uma série de artimanhas, provocou a ira dos inimigos e desafiou-os
para uma luta:

75
“(...) Os irmãos do Nabio prepararam o terreno para lutar, pensando que quem ia ser
derrotado eram os irmãos do Ijanakatu. Colocaram pedras para machucar, jogar por
cima deles e matar. O pessoal do Nabio estava lá: ‘lá vem o pessoal do Ijanakatu, lá
vem ele!’. Diz que o Ijanakatu veio cantando alegre, essa música que ela (a narradora)
cantou, tipo uma música de guerra, em uma linguagem muito difícil de traduzir. Por
isso que o pessoal fala que as músicas Saura são todas alegres. Já o pessoal do Nabio
fez uma música muito triste, do tipo romântica, por isso que ficou com Hiretu 39 . O
Nabio cantava do lado de cá e o Ijanakatu do outro lado. Então fizeram a rodinha,
muita gente olhando. (Fizeram) isso que ela fez: ‘ky, ky, ky, ky ...!’. Formaram como se
fosse um ijèsu 40 . Quando rodearam, diz que correram e ficaram frente a frente para
lutar. Lutaram entre si, os Nabio são todos altos, já os da família do Ijanakatu são todos
baixinhos. O Nabio pegou-o e jogou na pedra. O Ijanakatu pegou o Nabio e lutou:
‘agora sou eu que vou descontar!’. O Ijanakatu não morreu não, tinha batido a cabeça
na pedra, mas levantou, pegou o Nabio, rodou, rodou, jogou assim e o Nabio morreu
em cima das pedras que o próprio Nabio preparou. Depois veio o irmão mais novo do
Ijanakatu, o Erehelari, para lutar com Woubedu, que era o irmão do Nabio. Lutaram os
dois e Woubedu morreu. Tytyhywè foi descontar as mortes dos irmãos, lutando com o
Ijanakatu, mas morreu também. Diz que o Ijanakatu levantava rápido, não morria não.
Depois, quando acabaram os homens, vieram as mulheres. A irmã do Ijanakatu se
chamava Kerekelalo e lutou com as duas irmãs do Nabio, a Maha e a Dimarani. Lutou
com uma de cada vez e venceu as duas. A família do Ijanakatu ficou como vencedora e
a do Nabio se acabou. Matou todos os irmãos. O pessoal que morava na aldeia do
Nabio chegou lá e viu só os pedaços do Nabio e seus irmãos no chão, tudo quebrado.
Na luta mesmo pode se matar. Os Ijanakatu foram embora cantando, alegres, a música
dos Saura. Isso é a origem da luta e rivalidade entre Saura e Hiretu. (...) Essa que é a
moral da história, ‘ninguém é igual a ninguém’, é uma expressão dela (a narradora),
mais ou menos assim. Ou seja, ele era maior, mas nunca adivinhou que aqueles
baixinhos eram bem fortes, sabiam lutar mais do que eles.” (palavras do tradutor)

Mais um dos componentes essenciais da vida terrestre, desconhecido no paraíso


aquático ou celeste, estava criado: o conflito, a rivalidade entre diferentes, aqui expressa
como rivalidade entre metades cerimoniais ou grupos de parentes, juntamente com a
necessidade subseqüente dos parentes defenderem-se mutuamente contra os “outros”. O
importante episódio mítico que acontece a seguir é uma conseqüência direta dos fatos já
narrados.

Depois que os irmãos de Nabio morreram, do povo Kuratanikèhè, restando no lugar


apenas os seus parentes, o pequeno gavião (siã) criado por eles continuou cantando em
Marani Hãwa, com fome. Tòlòra vivia no Berahatxi, abaixo das águas, quando ouviu o
39
Saura (macaco-prego) e Hiretu (gavião carcará) são os nomes das metades cerimoniais atuantes nos rituais
Javaé, assunto a ser retomado no Capítulo 7, cuja origem é narrada neste mito. Sobre os grupos cerimoniais
Karajá, ver Toral, (1992), Lima Filho (1994) e Pétesch (2000).
40
Ijèsu é a luta ritualizada entre os membros das metades cerimoniais. ‘Ky, ky ...’ são os gritos que ocorrem
no começo de cada luta. O mito descreve sua origem e a própria luta ijèsu (ver Capítulo 7).

76
som enquanto passeava na mata procurando mel. Continuou seguindo o som do gavião até
deparar-se com um clarão, descobrindo uma passagem para o nível terrestre, que era
amplo e iluminado pelo sol que não existia abaixo do fundo aquático. Assim como os
outros povos que saíram de baixo para cima, Tòlòra entusiasmou-se com a claridade e
saiu exatamente em Marani Hãwa, onde até hoje existe a passagem entre os mundos:

“(...) Diz que ele saiu lá do Berahatxi e olhou: ‘ah, esse lugar aqui é bom!’, ficou
olhando para o tempo. Ele saiu para cá e achou bonito! Pegou umas frutas, mangaba,
babão ... catou e levou lá para baixo. Viu, gostou e foi chamar o povo dele. Vieram para
morar aqui, porque ele disse que aqui era bom demais, bonito, diferente de lá. Juntou a
família dele e saiu para cima, lá no lugar que era do Nabio. Já tinha a família do Nabio
lá: ‘ah, vocês estão chegando!’, falaram para o pessoal que veio de baixo com o Tòlòra.
Diz que o pessoal do Nabio que ficou falou: ‘é bom vocês terem saído mesmo, porque
nós somos poucos, o Ijanakatu matou a família do Nabio. É bom vocês morarem
conosco’. Contaram para o pessoal do Berahatxi a história como foi, as irmãs que
morreram etc. Então o Koboi, que era primo do Tòlòra, saiu com a mulher, olhou assim
e não gostou muito daqui de cima. Olhou e viu os bichos morrendo, tudo seco: ‘não,
aqui é ruim, está tudo seco e os bichos morrem aqui em cima. Vamos voltar para
dentro!’. Ele não concordou com uma coisa: ele reparou que as árvores nasciam,
crescia e morriam. Imagina as pessoas então ... morriam. E lá onde eles viviam não
tinha isso, lá é uma coisa eterna, não tinha morte, é tudo xiburè (mágico). Então a
família do Koboi voltou de novo, não concordou. E estão com Koboi até hoje.
(...) Essa história do Koboi é um pouco diversificada. Tem uma teoria, vamos
dizer assim, que Koboi não veio para esse mundo porque não deu conta de passar no
buraco, porque havia só gente magra e Koboi era uma pessoa muito gorda, não coube
nesse buraco para sair para o Ahana Òbira, por isso que ele voltou. E já outra história
fala que ele voltou porque a mulher dele falou para ele que ela não queria que a família,
os filhos deles, morressem. Porque onde eles viviam não tinha morte. Por isso
voltaram. Então têm duas versões 41 .
(...) Quando Tòlòra veio, saiu para este mundo, Ahana Òbira, ele veio com uma
missão de paz. Então ele saiu como iòlò. Surgiu iòlò dali. Diz que ele veio dar conselho
ao pessoal daqui para não brigar.
(...) Os filhos de Tòlòra são só dois, Timyjuy é o primeiro e Haruèsi é o último.
Saworo é a mulher de Tòlòra. Esses filhos saíram juntos lá de baixo. O pessoal de
Tòlòra, quando veio lá de baixo, trouxe mudas de banana para cima. Por isso que tem o
bananal nativo lá.” (palavras do tradutor)

Tòlòra e sua família são considerados Kuratanikèhè por terem se misturado com os
descendentes destes últimos, que já estavam em Marani Hãwa. Os Kuratanikèhè, por sua
vez, eram originalmente os afins de Tanyxiwè, cujos remanescentes (os irmãos Nabio,

41
O pequeno fragmento mítico sobre a saída de Koboi é um dos quatro mitos Karajá analisados por Lévi-
Strauss nas Mitológicas (1991). Existe uma versão Javaé menos completa em Rodrigues (1993). O
surgimento de Koboi é o episódio mais comumente encontrado nas publicações a respeito da mitologia
Karajá

77
filhos de Kwely, único sobrevivente da terrível seca que se abateu no lugar) já haviam se
misturado antes com os Imotxi. Foi com os parentes dos Nabio, portanto, que o povo de
Tòlòra se juntou ao chegar ao nível terrestre.
A saída de Tòlòra em Marani Hãwa, que se tornaria com os episódios que se
seguiram a maior aldeia Javaé de todos os tempos, não ocorreu apenas em função das
novidades (o sol, as frutas diferentes, a beleza), nem significou somente o surgimento do
bananal nativo que dá nome à Ilha do Bananal: Tòlòra saiu como o grande conciliador, em
razão das disputas e rivalidades inauguradas pelos irmãos de Nabio, precursores da metade
cerimonial Hiretu, e os de Ijanakatu, da metade Saura. Ele é considerado o primeiro iòlò,
título honrado de chefia política, associado à pacificação de conflitos, que passaria a ser
transmitido a seus descendentes primogênitos até os dias de hoje. Tanyxiwè conquistou o
sol do urubu-rei Rararesa, que era um iòlò do Céu, mas quem deu início à sua transmissão
entre os humanos terrestres foi Tòlòra. Com seu papel de iòlò conciliador, Tòlòra tornou-
se um dos grandes ancestrais dos quais os Javaé têm orgulho de descender.
Nessa mesma época, muitos outros povos saíram de baixo ou já existiam fora da Ilha
do Bananal também, como os Werehina (nome de um líder e do povo), que saiu do Fundo
das Águas em um lago que hoje se situa entre o Rio Formoso do Araguaia e o Rio Javaés,
em frente à atual aldeia Wariwari (ver Mapa n° 2). Os Werehina falavam a língua atual,
mas eram canibais (inyròdu, “comedores de gente”), transformando-se em onça, e
guerreiros. Alguns mitos narram como os Werehina atacavam os povos da região do
Wariwari e os Wèrè. Conta-se que na época as pessoas se escandalizaram com a existência
de um povo que era canibal e falava a mesma língua dos Iny.
A ascensão mítica dos Karajá ocorreu em Inysèdyna, um grande buraco tomado pelas
águas da enchente, situado dentro da Ilha do Bananal, nas proximidades das margens do
Araguaia, a cerca de dois ou três quilômetros ao sul da atual aldeia Macaúba, dos Karajá
(ver mapas n° 4 e n° 6). O lugar foi visitado por Donahue (1982), Lima Filho (1994) e por
mim, em 2007. Machado (1947), Taveira (1982), Toral (1992) e Pétesch (2000), por sua
vez, ouviram de seus informantes que Inysèdyna estaria um pouco ao norte da aldeia
Macaúba. O povo que saiu era conhecido como Iwakyrè ou Ixyhyky (“muita gente”),
porque saiu muita gente deste lugar na época. A aldeia que se formou ao lado do buraco,
perto do qual ainda existem os vestígios de um grande cemitério, ficou sendo chamada de
Ixyhyky Hãwa. A palavra Iwakyrè significa “aleijado”, no sentido que “falta um pé”.
Muito depois, quando os Iwakyrè foram morar definitivamente na beira do Rio Araguaia,

78
ficaram conhecidos também como Bero Mahãdu (“Povo do Rio”), todas denominações
com um forte sentido pejorativo. Os Karajá saíram apenas com “frutas do mato”, como
kywa (jatobá), hytè (espécie de batata nativa), hatõmõ , hèry (palmito de tucum), oiti (com
o qual fazem um tipo de farinha) e jenipapo, as quais eram coletadas e plantadas por eles
em suas roças.
Depois que saíram, os Karajá foram morar primeiro nas aldeias Kunahija (depois
conhecida como Latèni Ixena), Waderikò e Hatõmõkò, nas imediações da atual aldeia Boto
Velho, às margens do baixo curso do Rio Javaés (ver mapas n° 3 e n° 4). Nessa região, os
Karajá envolveram-se em conflitos com os Wèrè, em episódio a ser narrado a seguir, antes
de se fixarem definitivamente no Rio Araguaia. Quando ainda moravam na beira do Rio
Javaés, um outro episódio conta que as palhas e sabugos de milho que Kanõanõ (do povo
Torohoni) trouxe do Fundo das Águas eram jogados no Rio Javaés pelos Torohoni.
Seguindo o curso da água, elas chegaram até os Karajá de Lateni Ixèna. Curiosos com a
novidade, os Karajá vieram a Kanõanõ e assim conheceram o milho.
Já os Xambioá teriam se originado em uma parte dos descendentes dos Kuratanikèhè,
que se dividiram em dois grupos. Um ficou em Marani Hãwa, misturando-se com o povo
de Tòlòra, e o outro foi morar com Ixyhyky mahãdu (os Karajá). Foram estes últimos que
resolveram depois mudar para o baixo Araguaia, dizendo que iriam morar sy biawa, “em
outro lugar”, palavra aportuguesada para Xambioá. Há uma outra versão mítica em que os
Xambioá teriam ficado envergonhados por serem o último povo a sair de baixo depois que
Tanyxiwè pegou o sol, “atrasado”. Por isso resolveram mudar de lugar.

2.3. Os Wèrè guerreiros e a mistura de tradições em Marani Hãwa

Os Wèrè, povo guerreiro, foram um dos últimos povos, senão o último, a sair de
baixo das águas. Eles saíram em dois lugares diferentes, no lago conhecido como Bòra (ou
Lago do Aristóteles), a cerca de cinco quilômetros a leste da atual aldeia Macaúba, dos
Karajá, dentro da Ilha do Bananal 42 , e em um grande lago chamado Bèlybyranõra, um
pouco acima da Barra do Rio Verde, a leste da Ilha do Bananal (ver Mapa n° 6). Bòra é um
local muito próximo de Inysèdyna, de onde os Karajá ascenderam. Por causa disso, os

42
Também tive a oportunidade de visitar o Lago Bòra em 2007.

79
Karajá também são conhecidos como Bòra ixyju mahãdu, “povo estrangeiro de Bòra”. Os
Wèrè de Bòra moraram em Hãwalò (atual aldeia Santa Isabel, dos Karajá) e Wèrè Hãwa
(região da atual aldeia São Domingos, dos Karajá), de onde dominavam todo o Araguaia,
misturando-se com os Karajá. Os Wèrè de Belybyranõra eram mais valentes e são um dos
ancestrais dos Javaé atuais.

Cinco rapazes Wèrè, Kurira, Kurika, Kwabinari, Txuròbedu e Kumaka, saíram


para o Ahana Òbira e, fascinados com as comidas diferentes, começaram a caminhar pelo
nível terrestre, experimentando tudo que encontravam no caminho. Assim como os Karajá,
só conheciam frutas do mato, pois havia pouca variedade de comida em seu mundo de
origem, ficando extasiados com a abundância e variedade encontradas aqui. Os Wèrè
saíram nus e matavam tudo que viam para ver se era comestível ou não, saboroso ou não.
Experimentaram tartaruga, boto, peixes como o pirarucu, anta, veado, pato, porco
espinho, enfim, tudo que encontravam. Alguns foram aprovados, outros não, como a carne
do boto ou da anta. Muito do que se come ou não hoje em dia é herança desses primeiros
experimentos dos Wèrè.
Também foi produto desses experimentos o uso de kowodi (resina de árvore usada
como cola), tari (óleo de côco usado no cabelo), dura (plumas de aves usadas como
enfeites rituais) e dos ossos do macaco guariba como kòluò (artefato que era introduzido
no lábio inferior dos rapazes iniciados) 43 somente pelos primogênitos das famílias
consideradas como “nobres”. Os Wèrè eram numerosos e continuaram saindo por um
certo período, embora muitos tenham morrido logo no começo.

Alguns mitos contam como, no começo de sua caminhada, os Wèrè encontraram


vários tipos de aõni canibais e mortais por onde passavam, alguns sendo devorados pelo
aõni Kwòruni perto do Rio Verde, outros por Leimylò mais à frente. Em outro episódio,
Wèrèkoijama e Wèrèkubèriè matam o aõni Hererajuà ou Buhãtityby (em forma de um
peixe gigante e monstruoso) que atacava as pessoas que navegavam pelo Rio Javaés. Em
uma outra versão, os aõni foram mortos pelos dois heróis no baixo Araguaia.

43
O uso do kòluò seria depois incorporado ao ritual de iniciação masculina, mas atualmente não é mais
utilizado. Os homens mais velhos ainda têm o lábio inferior furado. Sobre o uso do kòluò entre os Karajá, ver
Krause (1941e), Lima Filho (1994) e Pétesch (2000).

80
Em suas andanças, os Wèrè encontraram os Wou (Tapirapé), que nessa época
moravam dentro da Ilha do Bananal e já tinham saído de baixo antes. Os Wou guardavam
os irasò (os aruanãs mascarados) dentro da própria casa, o que causou a ira dos Wèrè
guerreiros 44 . Só que ao tomar contato com a riqueza cultural e material dos Wou, que já
tinham saído com o algodão, os Wèrè fascinaram-se e não os atacaram, mas apenas
tomaram deles o inytu (tanga de entrecasca), o nõtakana (estojo peniano), o wòkòròna
(cachimbo), o dexi, o dexibèdòsi (enfeites de algodão) e o rià (cobertor de algodão). Os
Wou ficaram nus e os Wèrè conquistaram esses adornos e artefatos que não conheciam.

Em razão dessa “superioridade”, os Tapirapé não foram exterminados ou


escravizados pelos Wèrè, como viria a acontecer com vários outros povos. Por isso os
Tapirapé não são considerados povos estrangeiros, no sentido pejorativo, podendo ser
chamados de ixyjutyhy (“estrangeiros honrados”) ou mesmo inytyhy (“humanos de
verdade, honrados”). Tempos depois, os Tapirapé morariam dentro da Ilha, perto do Lago
Sòhoky, da aldeia Imotxi e no lugar Wou Kuberena, na beira do Rio Javaés, próximo da
aldeia Wariwari (ver Mapa n° 3). A convivência próxima resultou em casamentos com os
antepassados dos Javaé e adoção de crianças Tapirapé, gerando descendentes seus entre os
Javaé atuais. Resultou também, no entanto, em conflitos lembrados até hoje, quando
moradores da aldeia Wariwari, principalmente, mataram alguns Tapirapé.

Os Wèrè que saíram do Lago Belybyranõra continuaram andando pela Ilha do


Bananal, até que chegaram no lugar onde vivia o povo Imotxi (ver Mapa n° 3). Com sua
vocação guerreira e expansionista, os Wèrè pressionaram os Imotxi e expulsaram quase
todos do lugar. Metade dos Wèrè passou a viver no lugar (atual aldeia Imotxi), havendo
alguns casamentos que geraram descendentes com mulheres Imotxi. A outra metade
seguiu andando até chegar em Hãwalò Dèsè (na beira do Rio Araguaia, mas do lado da
ilha), um local bem próximo da atual aldeia Santa Isabel, dos Karajá, que nesse tempo
ainda não existia. Alguns do grupo seguiram para um lugar mais adiante, fundando o
lugar até hoje conhecido como Wèrè Hãwa (onde está agora a aldeia Karajá São
Domingos).

44
O principal ritual Javaé é a Dança dos Aruanãs. Os aruanãs são os ancestrais mascarados que vivem no
Fundo das Águas, em sua maioria, e vêm participar do ritual (ver Capítulos 4, 7 e 10). Como será visto, os
Wèrè já conheciam o ritual no Fundo das Águas, onde as máscaras eram guardadas no espaço sagrado da
Casa dos Homens, separadas das mulheres. Daí o seu espanto.

81
Em outra versão, os Wèrè que surgiram em Bòra moraram em Wèrè Hãwa,
misturando-se com os Karajá, e em Hãwalò (atual aldeia Santa Isabel, dos Karajá), de onde
vieram quando chegaram em Imotxi. Lá se encontraram com os Wèrè de Bèlybyranõra,
que já estavam em Imotxi, ocasião em que os dois grupos se reconheceram mutuamente
como Wèrè. Então os primeiros retornaram para Hãwalò, onde viviam.
De acordo com a primeira versão, quando os Wèrè chegaram em Hãwalò Dèsè, no
Araguaia, tornaram-se vizinhos dos Ijèwèhè, que moravam onde hoje está São Félix do
Araguaia 45 . Um pequeno fragmento mítico narra como os Wèrè, que começaram a pescar
demais e a acabar com os peixes locais, envolveram-se em conflitos com os Ijèwèhè, que
ficaram furiosos com a diminuição do peixe, a ponto de matar um dos Wèrè.

Em sua busca por vingança, os Wèrè cercaram a aldeia dos Ijèwèhè, que estava
vazia, e queimaram as casas. Quando voltaram ao local, no dia seguinte, encontraram a
aldeia toda reconstruída. Novas tentativas foram feitas, mas os Ijèwèhè tinham poderes
mágicos e sempre escapavam, transformando-se em outros seres ou desaparecendo
simplesmente. O lugar onde os Ijèwèhè sumiram definitivamente – eles foram para o Biu
(Céu) – existe até hoje, e é chamado Ijèwèhè Kõnana. Os Ijèwèhè, povo invencível e
poderoso, também são um dos únicos que os temidos Wèrè não exterminaram ou
escravizaram, assim como os Tapirapé.

Os Wèrè que ficaram vivendo em Imotxi, provenientes do Lago Bèlybyranõra, a


leste da Ilha do Bananal, trouxeram consigo os rituais que já praticavam no Fundo das
Águas, ao mesmo tempo em que criaram modificações importantes aqui e várias normas
que são seguidas até hoje pelos Javaé. O primeiro ritual implementado no nível terrestre foi
o Iweruhuky, que já era conhecido lá embaixo e passou a ser realizado todos os anos na
época da seca, no espaço feminino da aldeia, contendo as novidades que foram criadas
pelos Wèrè aqui. Como os Wèrè eram todos xamãs, dois deles, Ibòrò e Hãbu, não se

45
Como já foi dito no início, os Ijèwèhè eram os ancestrais de Tanyxiwè e dos Tori (“os brancos”), que já
haviam saído muito antes, na lagoa que dá nome à Lagoa da Confusão, pequena cidade do Tocantins. Quando
os Wèrè chegam ao Araguaia, os Ijèwèhè já estavam morando no lugar onde hoje está a cidade de São Félix
do Araguaia, que se situa na outra margem do Rio Araguaia (atual Mato Grosso), em frente à atual aldeia
Karajá Santa Isabel (ver Mapa n° 2).

82
contentaram com o Iweruhuky e tiveram a idéia de trazer os aruanãs (humanos mascarados
mágicos do Fundo das Águas ou do Céu) para cá 46 :

“(...) Só que eles fizeram algumas normas: esse aruanã que vinha ia ser bèrèbuna, uma
coisa perigosa, sagrada, um segredo. Quando as pessoas errassem ou fizessem mal ao
costume de hoje, essa pessoa própria ia ser morta. Se a pessoa errasse, e fosse mulher, o
pessoal matava no mato ou afogava dentro do rio 47 . (...) Também fizeram o preço do
tyy (vagina): ou seja, quem errasse com aruanã, ia morrer só aquela pessoa certa que
errou. Já o tyy, se uma pessoa fosse virgem e deixasse de ser virgem, uma moça, era
uma coisa devastadora, a aldeia inteira teria que pagar por isso. Porque tyy ... todo
mundo come através disso, depende do tyy. É sagrado, é uma coisa da aldeia inteira,
que é a comida 48 . (...) Então procuraram um meio, não sei como, para trazer (os
aruanãs) para esse mundo. Através do espírito, essas coisas. Aí vieram. Só que Ibòrò e
Hãbu combinaram como é que ia ser a brincadeira de hoje. Cada um deu uma idéia,
falaram como é que ia fazer: ‘vamos formar ijoina (‘lugar dos homens’, junto à Casa
dos Homens) e levar (as brincadeiras) para os sobrinhos’. Naquela época era tudo
inédito, tudo novidade. Então Ibòrò deu o (aruanã) Ijareheni para Wèrènawaru, filha
de Wèrèdirasi (irmã de Ibòrò), e o (aruanã) Hukumari Weru foi para Wèrèkarirama, o
filho do Kwabinari (irmão de Ibòrò) 49 . Combinaram e formaram um tipo de ‘grade de
programação’. Cada um deu uma opinião, inclusive foi Kwabinari que deu a idéia que
ia ter pelo menos uma mulher participando. Já que a mulher não podia participar igual
aos homens, ele teve a idéia que a mulher podia participar dançando, adusidu 50 . Já o
Hãbu e o Ibòrò tiveram a idéia que também tinha que ter um tipo de espião dentro da
aldeia, no ixy mahãdu (o grupo das mulheres), que no caso é o iwetxu 51 . Ou seja, é
mulher, mas tem a cabeça dos homens. É o mesmo processo de hoje, nunca mudou
nada.
(...) Inventaram também como iam ser as brincadeiras. Kwabinari teve a idéia do
negócio de bidi (mel). Ibòrò e Hãbu tiveram idéia assim, que o pai ou a mãe da criança
entregassem bidi para o aruanã e pronto. Só que Kwabinari falou: ‘assim vai ficar sem
graça, tem que ter uma pessoa dançando. Então a mãe vai lá e entrega a moça na casa

46
Os xamãs “trazem” os aruanãs (a maioria é do Fundo das Águas) para serem alimentados aqui, os quais
tomam a forma de dançarinos mascarados em um ritual que dura boa parte do ano.
47
Refere-se ao costume de punir os que incorrem em algum erro durante a dança, assunto a ser retomando no
Capítulo 7.
48
Os aruanãs vêm a este mundo para dançar e comer o tykòwy (“preço da vagina”, em forma de comida) que
os homens pagam pelas mulheres. A perda da virgindade feminina, fora do casamento, significava a perda de
um potencial pagador do “preço da vagina”, uma vez que o ciclo ritual é feito das prestações alimentares que
um homem faz à esposa e aos afins, e que são distribuídas na Casa dos Homens durante o ritual, de modo que
“todo mundo come através do tyy”. Esse assunto será retomado no Capítulo 10.
49
Todo ano, os aruanãs são “entregues” pelo xamã para o filho ou filha de um casal trabalhador, chamado de
“pais do aruanã”, que devem trabalhar para alimentá-los enquanto dançam (ver Rodrigues, 1993 e o Capítulo
7). Nesse começo mítico, o xamã Ibòrò entregou os aruanãs para os filhos dos irmãos.
50
Nome das mulheres (dusi é “dançar”) que dançam com os aruanãs e são parte essencial do ritual.
51
Os wetxu são os povos “subordinados”, como já foi dito, mas aqui são as mulheres que, em geral depois da
menopausa, podem entrar na Casa dos Homens e “passam para o lado” deles, realizando pequenos trabalhos
e atuando como espiões dos homens na aldeia, no sentido de denunciar aqueles que descuidaram do segredo
masculino. Tanto elas quanto os meninos recém-iniciados, também wetxu, são considerados como
“subordinados” aos homens (ver os Capítulos 8e 10).

83
da ijasòsè (mãe do aruanã) e vão dançar’ 52 , ensinaram tudo. E quando o aruanã chegou,
no mesmo dia já tinha adusidu dançando lá. Diz que apareceram muitas meninas lá,
bonitas, todas arrumadas, com inytu (tanga), dura (plumas), pintadas ... era uma coisa
de novidade, todo mundo queria. E assim começou, virou febre. Tudo aconteceu assim:
como aruanã chegou, fizeram aquelas normas que são seguidas hoje, negócio de
iwokytyna 53 etc. Só que esses dois primeiros aruanãs que teve brincaram só com bidi,
axikòròrò e hojuju 54 , ou seja, uma coisa que eles improvisaram com ajuda dos hàri
(xamãs). Depois que vieram muitos aruanãs, veio Temysi irasò (nome de um aruanã),
esse já tinha as brincadeiras próprias do aõni e trouxeram com tudo 55 . No caso, orinyky
veio de lá, iwodudu, uladu biditò, tudu,(...) helykyrè, haretu, xiwotè, ixy, byrèwo, ijòriti,
ikyrinyky, ixo etc 56 . A história dos aruanãs já acabou, encerrou o processo. Fizeram
aquele sistema de imonariòrè, idòriòrè 57 , (até hoje) nada mudou. Eles queriam o ano
todo ocupado, a estação do ano toda ocupada. Está vendo o tanto que é triste hoje,
Patrícia! 58 .” (palavras do tradutor)

Por fim, para preencher com atividades o ciclo de um ano, os Wèrè resolveram
trazer de baixo o Hetohoky (“Casa Grande”), o ritual de iniciação masculina que pode
durar mais de um mês, na época da cheia, do qual uma legião de moradores do Fundo das
Águas e outros personagens míticos vêm participar como convidados especiais. Muitos dos
detalhes do ritual, contudo, foram sendo criados e aperfeiçoados pelos Wèrè aqui no nível
terrestre, tais como a participação feminina no Imonahaky 59 , a condução do ritual pelo
chefe cerimonial (ixytyby), o mesmo que conduzia o Iweruhuky, a ordem de chegada dos
convidados etc. Assim, os primeiros Hetohoky e Iweruhuky que se têm notícia foram
realizados em Imotxi.

Como Imotxi não é muito distante de Marani Hãwa, foi inevitável que um dia os
Wèrè encontrassem o povo de Tòlòra. Os Wèrè estavam andando na região de Marani

52
Descrição da “brincadeira do mel”, o primeiro dos jogos rituais do ciclo anual da Dança dos Aruanãs, em
que uma dançarina entrega uma vasilha com mel para os aruanãs.
53
Resguardo simbólico que existe na Dança dos Aruanãs após os aruanãs “brincarem” de flechar os aõni, em
uma simulação ritual da cópula (ver Rodrigues, 1993 e Capítulos 4 e 10).
54
Nome de alguns dos jogos rituais Javaé do ciclo dos aruanãs, cuja descrição pode ser encontrada em
Rodrigues (1993).
55
Alguns jogos do ciclo são feitos entre homens e mulheres e outros são entre os aruanãs e os aõni, “a pedido
dos aruanãs”, que querem flechar os aõni aqui como fazem no Berahatxi (ver Rodrigues, 1993 e Capítulo 4).
56
Nomes dos diversos jogos ritualizados entre homens e mulheres, mas que não foram inventados aqui,
apenas copiados do que já se praticava no Fundo das Águas.
57
Dois dos quatro rituais de encerramento do ciclo anual dos aruanãs. Há uma descrição detalhada dos rituais
de chegada e encerramento do ciclo, sobre os quais quase não há menção na literatura sobre os Karajá, em
Rodrigues (1993).
58
Porque não se realiza mais o Iweruhuky e nem sempre o Hetohoky.
59
Assim com o ciclo dos aruanãs têm um Imonahaky (“muita bebida deles”), um rito de encerramento, o
Hetohoky também tem. É o único momento em que as mulheres e crianças são autorizadas a entrar na “Casa
Grande” e a assistir, assustadas e imóveis, ao que se passa lá dentro.

84
Hãwa quando se depararam com Haruèsi, o filho caçula de Tòlòra, pescando. Fascinados
com a beleza do rapaz, os Wèrè seguraram Haruèsi pelo braço, que perguntou: “O que
foi?”. O Wèrè falou: “peguei você porque achei você bonito, completamente diferente de
nós!”. Haruèsi foi então adotado pelos Wèrè e levado para Imotxi, com recomendações
para que todos tratassem bem do novo morador. Os Wèrè trocaram todos os adornos feios
e pobres que o rapaz usava pelos artefatos e objetos de uso pessoal muito mais bonitos e
melhores que os Wèrè já haviam conquistado, como por exemplo: o óleo de côco dos Wèrè
no lugar do lodo que os Kuratanikèhè usavam no cabelo, a esteira no lugar do kòrihiky
(grande abanador de palha), os enfeites de algodão no lugar dos enfeites de embira, e
assim por diante. Transformaram Haruèsi numa pessoa “civilizada” (palavra do
tradutor).
Em um determinado momento, Haruèsi capturou uma tracajá para comer e, como
seu povo havia herdado esse costume dos antigos Bisarukèrè, fez xiwè (oferenda ritual)
para Dòrèmykò, um tipo de aruanã (entidade mascarada) dos Kuratanikèhè. Os Wèrè
assustaram-se com a novidade, supondo que Haruèsi fosse algum aõni ou feiticeiro
maléfico que pudesse prejudicar seu povo. Então decidiram devolvê-lo para o mesmo
lugar onde o acharam. Haruèsi foi enviado a Marani Hãwa adornado como se fosse um
Wèrè. Ao chegar – um ano já havia se passado – encontrou seus parentes chorando e de
luto, pois pensavam que ele havia morrido. Os Wèrè haviam prometido que, no próximo
bèora (rio cheio), levariam para ele todos os seus bens antigos e aqueles que ele havia
adquirido em Imotxi, como a canoa pintada com urucum, as flechas, o raheto (cocar) etc.
O luto dos Kuratanikèhè era muito longo e o choro ritual, que foi herdado deles
pelos Javaé atuais, era muito respeitado, de modo que mais nada era feito enquanto
estivessem chorando. Já os Wèrè, a não ser no caso de pessoas muito especiais, não
tinham nenhum respeito pela morte, não se dedicavam a práticas funerárias nem
cultuavam o luto. Ao encontrar os pais chorando, Haruèsi contou tudo o que havia se
passado, como tinha sido adotado e cuidado pelos Wèrè, sendo tratado como um filho
verdadeiro. O tempo passou e finalmente os Wèrè chegaram a Marani Hãwa para a visita
prometida. O fascínio foi duplo: os Kuratanikèhè encantaram-se não só com as novidades
trazidas pelos Wèrè, mas também com a beleza das moças e rapazes que vieram com eles.
Ao receber os Wèrè, Tòlòra recepcionou-os com a linguagem elegante dos termos
corretos de tratamento (termos de parentesco), que foram herdados pelos Javaé atuais, e
que não eram de conhecimento dos Wèrè.

85
Os filhos de Tòlòra e outros se casaram com as belas Wèrèkoixiaru, Wèrèkwaxiru
e Wèrènawaru, enquanto as mulheres casaram-se com os rapazes Wèrèhãtiari,
Wèrèkariruma, Wèrèkumari, Wèrèahunasi etc, alguns dos muitos nomes Wèrè existentes
até hoje. Com a nova convivência em Marani Hãwa, as mulheres Wèrè começaram a
ensinar ao povo do Tòlòra a usar a resina perfumada kowodi no lugar do terikòbòru
(resina de landi), urucum no lugar do sosò (barro vermelho), tari (óleo de coco) no lugar
de bèlyty (lodo), byrè (esteira) no lugar de kòrihiky (abanador grande), rià (cobertor de
algodão) no lugar de kynasy (feito de cipó), e assim por diante. Paralelamente, os homens
Wèrè foram convidados para ir à Casa dos Homens e assistir ao ritual Dòrèmykò e
Bisamykò que o povo de Tòlòra praticava. Logo constataram que era um ritual muito
pobre e feio se comparado à Dança dos Aruanãs dos Wèrè, embora eles tivessem iranyky,
um tipo de música lenta que anunciava o começo da dança, que foi incorporada à Dança
dos Aruanãs e que até alguns anos atrás ainda era cantada. Mas em geral a música não
tinha graça, não existiam os jogos rituais, as adusidu (dançarinas) não acompanhavam os
homens mascarados.
Então os Wèrè mostraram a Tòlòra, que ficou encantado, a riqueza e a beleza dos
aruanãs deles, as “brincadeiras” que acompanham a dança e os quatro rituais de
encerramento do ciclo, também conhecido como “despedida dos aruanãs”, Imonariòrè,
Imonahaky, Idòriòrè e Idòhoky (ver Rodrigues, 1993). O mesmo se repetiu com o
Hetohoky (ritual de iniciação masculina) do povo de Tòlòra, ao qual apenas dois
convidados do Fundo das Águas compareciam para dançar, Wanitaratara e Hijohijo. Os
Wèrè apresentaram a eles o seu Hetohoky muito mais completo e também o Iweruhuky,
que o povo de Marani Hãwa não conhecia. As araras vermelhas (hèdèdura), animais
especiais cujas penas são usadas nos rituais, também foram trazidas pelos Wèrè do Fundo
das Águas, pois não existiam aqui antes. Por fim, foram os Wèrè que deram ao povo que
morava em Marani Hãwa o nome com o qual são conhecidos até hoje. Kuratanikèhè é um
ixyjunani (“nome de estrangeiro” dado pelos Wèrè) que se refere ao povo de Tòlòra e
aos que viviam no mesmo lugar antes dele sair de baixo. A aldeia Marani Hãwa também é
conhecida como Hãwahaky ou Hãwatyhy, “aldeia honrada ou verdadeira”.

Os dois povos se misturaram por meio dos casamentos e dos intercâmbios culturais.
Entretanto, apesar da riqueza conquistada pelos Wèrè guerreiros, foi Tòlòra, com sua
condição de iòlò pacificador, que se tornou famoso e respeitado entre os outros povos da

86
região. Assim, Marani Hãwa transformou-se no mais importante centro reverenciado pelos
estrangeiros:

“(...) Com isso, devido aos dois povos se misturarem, a notícia de espalhou. Até os
Karajá vinham. Para conhecer os costumes, essas coisas. (...) Esse Marani Hãwa,
Patrícia, era uma coisa de louco, como se fosse São Paulo hoje, todo mundo queria ir
para lá! Vinha o pessoal do Kuriawaku, pessoal do Hèryry Hetxi Tèbè, do Kanoanõ, um
bocado de gente. No meio do Imonahaky (uma das despedidas rituais) chegou o pessoal
Kuriawaku levando kuòru (peixe elétrico) para comer. Os do Hèryry Hetxi Tèbè
levaram bòròrè (cervo) assado, o povo Mõri levou bòrò (arraia). Cada povo tinha uma
comida e levava só para o iòlò, que era como um rei, uma majestade. Por isso (hoje)
nós comemos veado, arraia, peixe elétrico. Só que no meio do Imonahaky, a Marihoko
(do povo Torohoni ou Kanõanõ) matou um Tori (branco), lembra? 60 Então os irmãos
dela levaram esse Tori para que ficasse como Torikuni do Imonahaky 61 . (...) Ou seja,
foi “santificado”, mais ou menos assim. Esse Torikuni foi implantado porque o povo de
Kanõanõ levou, porque Marihoko matou o Tori naquela época e virou Torikuni, tem no
Imonahaky 62 . E quando estava no meio, veio o pessoal do Kòriminikèhè trazendo
narybyra (um peixe) assado. Os Wèrè, quando estava quase no final, vieram trazendo
helykyrè (pato selvagem). Tudo isso até hoje tem. Quando foi no final (da despedida
dos aruanãs), chegou um povo, Hèlylyra. O pessoal falou: ‘acabou a brincadeira’.
Então eles disseram: ‘vamos fazer assim, vamos inventar hãdomoè (peixe iú)’ 63 .
Hãdomoè também foi entregue de fora. Como a brincadeira tinha acabado e o pessoal
do Hèlylyra chegou no final, eles falaram: ‘o pessoal do Hèlylyra está chegando, para
não ficar (mal) com esse povo, vamos fazer Hãdomoè como despedida do aruanã de
verdade’. É o que acontece hoje, Hãdomoè é o último (fato do ciclo), depois (os
aruanãs) vão embora no mesmo dia. Cada um foi entregando uma coisa.
Já os Karajá contribuíram com o Marakasi 64 , que foi entregue cheio de
cerimônias para o Tòlòra. Chegaram na casa do Tòlòra e ficaram para brincar. Também
trouxeram hèrytari, óleo de tucum. Outra coisa: antigamente o pessoal de Marani
Hãwa fazia iwotè (reclusão) com os filhos, rapazes e meninos não saiam antes de
determinado tempo e deixavam o cabelo crescer. Kurina veio lá dos Karajá para cortar
o cabelo de Timyjuy, o príncipe, o filho mais velho do Tòlòra. Como já estava
chegando o dia dele sair e se apresentar para a sociedade, Kurina se ofereceu e Tòlòra
pediu para ele cortar o cabelo dele. Kurina trouxe esteira de buriti, óleo de tucum e essa
brincadeira Marakasi. Os Karajá que contribuíram com isso. (...) O pessoal de Marani
Hãwa era iòlò mahãdu (“o povo dos iòlò”), por isso que esses povos de cada pontinha
(da ilha) traziam comida para eles. Eles adoravam os iòlò, que eram pessoas especiais,

60
Aqui se refere a um episódio mítico paralelo ocorrido em Kanõanõ (atual Canoanã), a ser retomado no
Capítulo 11, antes dessa aldeia e povo serem exterminados pelos Torihuhu (os bandeirantes).
61
Os Torikuni, assim como os Wèrèkuni, já mencionados, são os “espíritos dos Tori”, conceito a ser melhor
elaborado nos Capítulos 5 e 11. Foram “entregues” ao Tòlòra como um presente, tornando-se um dos muitos
“convidados” do ritual de iniciação masculina.
62
“Santificado” no sentido de que o branco inimigo, após a morte, tornou-se um ser auxiliar nas curas e que
participa do ritual. Essa inversão de agressor para benfeitor, já notada por Pétesch (1993, 2000), terá seu
significado analisado no Capítulo 11.
63
Hãdomoè e Narybyra são nomes de peixes, cuja pesca ritual é um dos momentos que integra as cerimônias
de despedida dos aruanãs. O mesmo ocorre com Hèlykyrè, o pato selvagem (ver Rodrigues, 1993).
64
Parte do Iweruhuky em que os homens cantam e dançam.

87
como um rei ou uma rainha. Então aquele povo da redondeza tinha que trazer alguma
coisa para eles.” (palavras do tradutor)

Os Karajá contribuíram com o Marakasi, o óleo de tucum e a esteira de buriti, ao


mesmo tempo que conheceram os rituais dos aruanãs e do Hetohoky nesse pólo de
recepção e irradiação que era Marani Hãwa. Também se diz que eles conheceram o milho
com Kanõanõ, no episódio já narrado, e a banana com Tòlòra. Tudo que era trazido pelos
mais diversos povos como reverência ao iòlò Tòlòra era, por um lado, integrado a esse
caldeirão de misturas culturais, que ia aos poucos consolidando novos padrões, seguidos
até hoje; por outro, tornava-se uma fonte da qual todos se nutriam, enriquecendo-se com os
novos conhecimentos e costumes, como os Karajá que contribuíram com algo novo ao
mesmo tempo em que aprenderam em Marani Hãwa os rituais e a língua que mantêm até
hoje. A base da língua atualmente falada pelos Javaé é a língua dos Wèrè, embora haja
influência daquela que os Kuratanikèhè de Tòlòra falavam e de termos Wou (Tapirapé). Os
Javaé dizem que “os Karajá falam a nossa língua”, e não o contrário, e que as diferenças
dialetais são produtos de contatos que os Karajá tiveram com outros povos.

Antes do povo de Marani Hãwa conhecer a beleza dos aruanãs dos Wèrè, o povo
Wala, que saiu de baixo em um lago (Wala Ahu ou atual Lago das Piranhas, fora da Ilha
do Bananal) da região de Kanõanõ (ver Mapa n° 6), conheceu e “copiou” a dança
Dòrèmykò dos Kuratanikèhè. Um dia, aproveitando que os Wala estavam fora da aldeia
buscando mel para a brincadeira ritual deles, os Torohoni de Kanõanõ atacaram a aldeia
Wala, que também era enorme, e mataram todos, menos os dançarinos mascarados e as
dançarinas que os acompanhavam. Estes últimos foram trazidos para Kanõanõ e assim os
Torohoni, que se misturaram com os Wala, começaram a praticar o Dòrèmykò. Tempos
depois, quando conheceram os aruanãs dos Wèrè em Marani Hãwa, os Torohoni também
deixaram de praticar o Dòrèmykò e passaram a praticar a Dança dos Aruanãs.
Os Wèrè que não se misturaram com o povo de Marani Hãwa e ficaram no Imotxi
geraram os Wèrètyhy, “os Wèrè de verdade”, ancestrais invocados com orgulho pelos
Javaé, embora tenha havido alguns casamentos com os Imotxi remanescentes. As misturas
em Marani Hãwa, entretanto, não eram só culturais. Dos casamentos entre os Wèrè e os

88
Kuratanikèhè surgiram os Javaé que têm cabelos lisos (radèwii), herdados dos Wèrè, e
aqueles que têm cabelos mais enrolados (radèbina), características dos Kuratanikèhè 65 .

2.4. A supremacia do pacifismo de Tòlòra sobre o belicismo dos Wèrè

Os Wèrè são conhecidos pela riqueza cultural que trouxeram do Fundo das Águas e
criaram aqui, além dos bens que conquistaram de outros povos, mas também têm a fama de
povo guerreiro, dominador, insensível e “sem coração”. Os mitos contados até aqui
falaram apenas dos povos que os Wèrè respeitaram ou não conseguiram destruir em sua
saga dominadora, como os Tapirapé, Ijèwèhè, Kuratanikèhè e Kanõanõ. Um episódio
mítico importante mostra como o início de um conflito entre os Wèrè e os Karajá levou ao
extermínio de quase todos os povos estrangeiros que habitavam a Ilha do Bananal e
arredores.
Como foi dito, os Karajá ascenderam ao nível terrestre em Inysèdyna, ao sul da atual
aldeia Macaúba (dos Karajá), mas logo a seguir foram morar nas aldeias Kumahija,
Waderikò e Hatõmõkò, todas abaixo da atual aldeia Boto Velho, no Rio Javaés. Os Wèrè
surgiram por último em Bòra, muito perto de Inysèdyna, e no Lago Bèlybyranõra, a leste
da Ilha do Bananal. Depois que parte dos Wèrè instalou-se no Araguaia, um velho Wèrè
que morava perto de Hãwalò (atual aldeia Karajá Santa Isabel) foi buscar areia e mairusi
(ovo de tracajá) no Rio Javaés, na região onde os Karajá estavam morando. O velho Wèrè
foi morto pelos Karajá, provocando a ira dos Wèrè, que se juntaram para se vingar dos
Karajá. Uma longa narrativa conta o ataque dos Wèrè aos Karajá e como estes últimos
foram quase dizimados, tendo restado alguns sobreviventes que começaram uma
peregrinação de fuga pela Ilha do Bananal.
Durante sua perseguição furiosa, no sentido norte/sul, os Wèrè foram guerreando e
exterminando os povos ixyju que encontravam ao longo do caminho. Os Karajá
esconderam-se na aldeia dos Walairi (ver Mapa n° 3), na região da atual Wariwari, os
quais, por abrigarem os fugitivos, foram exterminados pelos Wèrè, juntamente com os
vizinhos Kuriawaku. Dos Kuriawaku, diz-se que alguns sobreviventes foram acolhidos por
Tòlòra, misturando-se ao povo Kuratanikèhè, de modo que hoje existem alguns

65
Bina tem o sentido pejorativo de algo “ruim ou feio’, em oposição a wii, o que é “bom ou bonito”.

89
descendentes seus. Um pequeno fragmento mítico fala de um casamento entre um homem
Wèrè e uma mulher Kuriawaku, não sei informar se antes ou depois do episódio narrado,
em que a sogra Kuriawaku reclamava do genro que só queria comer tartaruga e assim
sujava de gordura suas panelas. Dessa união também surgiram descendentes Kuriawaku
entre os Javaé atuais.
Continuando a fuga, os Karajá esconderam-se entre os Kubexi, na atual Serra das
Cobras (a leste, fora da ilha, na região de Wariwari), enquanto os Wèrè chegaram no
Lòreky e pararam para descansar no Lago Sòhoky. O mito, cheio de detalhes aqui
suprimidos, narra como os Wèrè descobriram o esconderijo Karajá e planejaram um ataque
fulminante, em formação circular (ikèrèsy), aos Karajá e Kubexi. Os Kubexi foram extintos
e, dos Karajá, apenas um pequeno grupo escapou (uma outra versão fala de apenas um),
correndo muito, até chegar ao Kaxiwe Ijò, uma entrada para o Rio Wabe (Riozinho), de
onde seguiu em uma canoa. Apesar da perseguição implacável, dia e noite, os Karajá
conseguiram chegar até Marani Hãwa, conseguindo abrigo seguro sob a guarda do
respeitado Tòlòra:

“(...) Prosseguiram a perseguição, até que os Karajá chegaram em Marani Hãwa, no


povo Kuratanikèhè, onde existia o grande Tòlòra, iòlò, prestigiado. Como ele era bom
conselheiro, iòlò, fez com que eles ficassem lá. Era a garantia de segurança deles.
Quando os Wèrè chegaram lá, ninguém ousou fazer guerra. Marani Hãwa era um lugar
muito místico, até hoje minha avó fala isso, então ninguém ousou entrar na aldeia,
como de costume, e procurar os Karajá. Só gritaram de longe, do outro lado, para o
iòlò, (perguntando) se realmente os Karajá estavam lá. O iòlò respondeu que não, que o
pessoal não estava lá. Mas viram a canoa em que (os Karajá) estavam fugindo: ‘para
que essa canoa aí?’. Falaram que sempre a viam com os Iwakyrè (Karajá). (O iòlò)
inventou uma mentira: ‘não, isso aí me deram como rynawi’, que são as coisas que são
dadas de graça, como um presente mesmo. Só que, claro, não convenceu os Wèrè. Mas
como os Wèrè não podiam guerrear com a família do Tòlòra, porque o Tòlòra era iòlò,
respeitado, falaram um tipo de praga para ele: ‘iòlò, já que você escondeu esse povo de
mim, você vai se arrepender um dia, porque os Iwakyrè não são gente, não são iny. Não
é à toa que eu estou matando pessoas e colocando sangue nas minhas mãos. Então, já
que você está escondendo os Iwakyrè de mim, eles vão triplicar, vai nascer Karajá,
Karajá, Karajá ...’. Porque na verdade foram os Iwakyrè que começaram essa guerra,
foi atrás dos Iwakyrè que eles foram matando alguns povos. No começo, foi com o
objetivo de se apossar das coisas, dos costumes. Mas depois disso mataram alguns
povos por causa dos Iwakyrè. (...) Como não conseguiram guerrear com o Tòlòra,
levaram avante e foram brigar com o pessoal do Halylyra, Mõri, mataram todos esses
povos. Os Wèrè foram acabando com os povos. Deixaram só o pessoal do Marani
Hãwa, que era o povo do Tòlòra, porque ele era iòlò, então respeitavam isso.” (palavras
do tradutor)

90
Depois de exterminar quase todos os povos da região, os Wèrè também tentaram
atacar a “aldeia redonda” (hãwa rurawo) dos Kanõanõ, que chamavam os Wèrè de
Turumahi, nome de um tipo de pica-pau cujo topete vermelho lembrava a pintura com
urucum que os Wèrè faziam em uma pequena faixa raspada na cabeça, da testa em direção
à nuca, em tempos de guerra 66 . Mas como a aldeia era muito grande, com milhares de
pessoas, o ataque não foi realizado e o Wèrè Kalyriki ira dizer depois, com reconhecido
respeito, que os povos de Kanõanõ e de Marani Hãwa nunca foram seus wetxu
(“subordinados”). Entretanto, os Kanõanõ ou Torohoni não deixariam descendentes entre
os Javaé atuais, uma vez que seriam exterminados pelos bandeirantes em um momento
posterior, como já foi mencionado antes.

A maldição dos Wèrè teve resultados. As duas famílias de Karajá que se


esconderam em Marani Hãwa geraram filhos e estes se misturaram com os Kuratanikèhè,
recuperando a população Karajá. Tempos depois Tòlòra casou-se com duas mulheres
Karajá, o que é considerado uma pequena mácula na biografia do iòlò, instituindo o
costume de que os homens que têm mais de uma esposa têm a honra de iniciar as tarefas
difíceis, como tirar mel de abelha, por exemplo, antes dos outros. Enraivecidos com a
proteção que Tòlòra deu aos inimigos, os Wèrè que perseguiram os Karajá mudaram-se
definitivamente para Wèrè Hãwa (atual aldeia Karajá São Domingos, Mapa n° 2), onde
começaram a se autodestruir através de feitiços que uns jogavam nos outros, pois quase
todos os Wèrè eram feiticeiros. Os Wèrè oscilavam entre dois extremos: ora estavam
unidos contra os outros, ora viviam em estado de desunião e conflitos internos.
Enquanto isso, Teribèrè, um menino Karajá que teve os pais assassinados pelos
Wèrè, preparou-se para a vingança de seu povo tornando-se um grande guerreiro e líder
dos Karajá. Um dia, aproveitando o enfraquecimento dos Wèrè causado por um grande
rubuna (“feitiço ou doença”) interno, dirigido a todos da aldeia porque um homem
casado desvirginara uma moça 67 , Teribèrè organizou um ataque a Wèrè Hãwa. Metade
dos Wèrè morreu, enquanto a outra metade fugiu para o Rio Hèrydèò, no vale do Xingu,
onde eles estão até hoje.

66
Obtive informações de que até relativamente recentemente os descendentes de Wèrè tinham o costume de
raspar uma faixa de cabelo e pintá-la com urucum, inclusive as mulheres.
67
Literalmente “o lugar (na) da morte (rubu)”, rubuna é traduzido como “feitiço” ou “doença”, pois se
acredita que toda doença (e morte) é causada por uma ação intencional (ver Rodrigues, 1993). O fim das
aldeias tem sempre duas causas, extermínio causado pela guerra ou grandes rubuna que atingem a população
inteira, colocados por feiticeiros enraivecidos com algo.

91
Alguns crêem que os Wèrè sejam os Trumai xinguanos (ver Monod-Becquelin &
Guirardello, 2001), uma vez que Turumahi é o nome dado aos Wèrè pelo povo de
Kanõanõ. Os Karajá, segundo Toral (1992), dizem que os Wèrè vencidos por eles são tanto
os atuais Javaé como um grupo xinguano. Na versão Javaé, apesar dos Karajá terem
vencido pela força física, diz-se que os Wèrè foram os vencedores morais da guerra que
deu aos Karajá o território onde vivem até hoje:

“(...) O Teribèrè atacou os Wèrè e acabou com isso, já lá no Araguaia. Depois, o Wèrè
foi lá e gritou para o Teribèrè, falou que estava deixando o lugar para os Karajá, o bero
(rio), os peixes, as comidas, tartarugas etc, ‘isso aqui vai ficar para vocês’, mas
comparou o peixe aruanã com barro, o kyryja (peixe) com cheiro de tòbòra (resina de
mel), ou seja, deixou todas as coisas ruins 68 . Acho que os Karajá não tinham costume
de comer essas coisas. Falou que ia embora porque enfraqueceu, (...) por causa do
rubuna. E xingou o Teribèrè de vários nomes, de muitos nomes mesmo, porque os
Karajá têm a fama de ser muito atirados. Qualquer um chega e ... quando acham bonito,
tanto homem como mulher querem agarrar mesmo! As mulheres Karajá têm uma febre
de se apossar dos homens. E os homens também querem conquistar as mulheres. Por
isso lá não pode entrar Tori (o branco), não pode entrar Kyrysatyhy (Xavante),
Karalahu (Kayapó), porque eles querem se casar! Por isso os Karajá tiveram tanta
mistura de vários povos! E isso é feio, tem que ser só de uma tradição.
(...) O Wèrè ficou com raiva e gritou para ele, xingou-o de ‘Tèòkaralahu
riòrèriòrè (descendente dos Xavante e dos Kaiapó)!’. Eu perguntei o que significa Tèò.
Significa Kyrysatyhy (Xavante) e Karalahu é Karalahu (Kaiapó) mesmo. E xingou de
Ditòryè, Kanawitxi, Hãwadòra, Haixè, Kananaburè, Bèwyrè, Kalatxina ... são uns
povos nojentos ixyju (“estrangeiros”) 69 . Eu te falei, as Karajá, quando viam um homem
bonito, atacavam qualquer um desses homens aqui. (...) Então, quando estava xingando,
usava esses nomes desses povos, se é verdade ou mentira eu não sei. Ou seja, pesou o
xingamento e ele ficou fraco. O que Teribèrè fez, vencer pela força física, não adiantou
nada, porque as palavras que saíram da boca dele, da língua, foram mais pesadas, mais
fortes. Então quem saiu ganhando foram os Wèrè.
(...) Os Karajá têm muitos nomes feios, por isso que é um povo muito
vergonhoso. Eles receberam o nome de ‘aixè mahãdu’, que ela não soube (traduzir).
Nós xingamos os Karajá de ‘Ixyhyky’, ‘muito povo, (povo) grande’. Diz que o pessoal
dos Karajá é muito nojento para nós aqui. E eles acham isso de nós também (risos), é o
contrário. Ela (a narradora) explicou que, pelo menos, eles dependeram dos nossos
avós. Você lembra que os Wèrè acabaram com eles? E o Tòlòra não salvou um deles e
depois foi gerando, gerando? Graças a nossos avós. Então nós temos o direito de xingar
eles assim.” (palavras do tradutor)

68
O Wèrè deixou os peixes e tartarugas para os Karajá, mas comparou-os ao barro, ao cheiro ruim dos favos
de mel etc, humilhando os vencedores.
69
Essa é uma lista de ixyjunani, “nomes (ni) dos ascendentes estrangeiros (ixyjuna)” dos Karajá atuais.

92
Com a partida dos Wèrè, os Karajá passaram a viver às margens do Araguaia, onde
ainda residem, e a serem chamados, também pejorativamente, de Bero Mahãdu (“Povo do
Rio”). Em razão da atitude nobre e pacificadora de Tòlòra, de quem os Javaé consideram-
se os legítimos descendentes, apesar do iòlò ter se casado com mulheres Karajá também, os
Karajá são vistos até hoje como devedores dos Javaé, pois devem sua sobrevivência ao
grande líder. Por causa disso, os Javaé e Karajá mantêm relações pacíficas desde então.
Mas os Karajá são considerados ixyju, com toda a carga negativa que essa palavra possui,
também por serem mais “misturados” com outros povos, condição profundamente
indesejada pelos Javaé. Os Javaé sempre lembram que a Dança dos Aruanãs e o Hetohoky
Karajá são desorganizados, simplórios e sem o mesmo respeito cuidadoso que os Javaé têm
com os segredos masculinos.
O desaparecimento de quase todos os povos ixyju não foi creditado somente aos
Wèrè. Antes da perseguição aos Karajá, ocorreu o episódio mítico, aqui resumido, sobre a
criação do grande Lago Sòhoky (Mapa n° 3), um dos locais preferidos de pescaria dos
moradores de Canoanã.

Durante uma caçada, os homens do povo Kujejeni encontraram um buraco onde


viviam muitos animais. Excitados com a novidade, começaram a retirar e matar os
animais, como o budoè (veado campeiro) e outros, encontrando ao fim exemplares de ixy
(porco queixada) estranhos, coloridos de diversas formas. Ao perceber a anormalidade da
situação, um xamã avisou que não deveriam tirar os animais do lugar, uma vez que eles
pertenciam a algum aõni 70 . O último queixada transformou-se em Hanatxiwe, nome de
uma pessoa que foi levada para a aldeia Kujejeni, mas que não falava e nem aceitava
nenhuma comida que lhe era oferecida pelas mulheres, apenas cantava uma música
dizendo que queria a “flor do Céu”, desconhecida por todos. Muito tempo depois, quando
um xamã do povo vizinho Lòreky veio visitar a aldeia dos Kujejeni, ele encontrou
Hanatxiwe e, preocupado, disse aos Kujejeni que não deveriam ter tirado o aõni do
buraco. Ao conversar com Hanatxiwe, este informou que a “flor do Céu” desejada era o
werikòkò (cachimbo com fumo) que o xamã usava e acabou lhe dando. Hanatxiwe avisou
ao xamã dos Lòreky para fugir com a família para Maitxari Hãwalò, um morro que existe

70
Sempre que alguém encontra alguma situação “fora do normal”, como um pássaro raro de se ver (em geral,
os gaviões) ou mesmo uma onça, os Javaé associam a anormalidade a um presságio negativo (dàdà) ou a
algo relacionado com o mundo dos aõni, seres temidos e que podem assumir várias formas ou permanecer na
forma humana.

93
até hoje no Mato Grosso, perto do Araguaia, onde ele estaria a salvo da grande enchente
que iria tomar conta do lugar.
Em sua vingança contra os Kujejeni, Hanatxiwe provocou uma chuva incessante que
fez transbordar o pequeno lago da aldeia, de onde surgiram o aõni Kanydurani (em forma
de peixe bicuda gigante) e as piranhas que começam a perseguir as pessoas e a roer a
terra ao redor em todas as direções [assim como na criação do Lago Kwely, já
mencionado]. O pequeno lago transformou-se no atual Sòhoky (“muito fundo”), imenso
lago com muitos braços que foram formados à medida que Kanydurani passava pelo
lugar. O único sobrevivente foi Buritxiwana, do povo Kujejeni, que conseguiu pegar a
planta rinõ, usada para feitiços, e subir em um pé de jenipapo, afastando o monstro. A
pequena ilha onde Buritxiwana se escondeu existe até hoje e é conhecida como
Kywakòbutè 71 . Kanydurani ainda perseguiu o xamã Lòreky e sua família, chegando a
roer um pouco do morro Maitxari, no Mato Grosso, que até hoje conserva a marca do
lugar onde o aõni entrou, mas não conseguiu matar os sobreviventes Lòreky. Hanatxiwe
entrou na água e mora até hoje no Berahatxi, abaixo do Lago Sòhoky. Buritxiwana
morou por muito tempo dentro no espaço oco da árvore uròdukò, onde se alimentava de
suas frutas e de jatobá.
Certo dia, Timyjuy, o filho de Tòlòra, seguido por parte do seu povo, fez uma
caminhada de Marani Hãwa ao lugar onde agora está o Sòhoky para encontrar o povo
Lòreky e Kujejeni. Em seu lugar, encontrou Buritxiwana esfomeado, de cabelos longos,
vivendo solitário dentro de uma árvore. Levado para Marani Hãwa, Buritxiwana teve os
cabelos cortados, foi alimentado e “transformado em iny de novo”. Como era um lugar
famoso e povos de todos os lados iam a Marani Hãwa, uma das Karajá visitantes acabou
casando-se com Buritxiwana e levando-o para morar com seu povo. Até hoje, quando há
conflitos, os Karajá xingam os descendentes do estrangeiro Buritxiwana de “filhos do
morador do pau oco, do que morava no mato, comia só frutas e quase virou um bicho”, o
que é tido como um passado vergonhoso. Alguns dos Lòreky conseguiram sobreviver e
hoje se têm notícias que eles moram em algum lugar a oeste do Rio Xingu, onde as
mulheres são muito bonitas e prendem o pênis masculino em sua vagina, assim como faz o
caramujo chamado lòreky, de onde tiraram seu nome, que se fecha e abre quando quer.

71
“O resto (butè) de terra onde ficaram pés de jatobá (kywakò)”. Em 1990, quando acompanhei os Javaé a
uma pescaria no Sòhoky, foi-me mostrada “a ilha onde Buritxiwana se escondeu”. Alguns dos moradores
atuais de Canoanã dizem ter visto o famoso pé de jenipapo mítico que até pouco tempo atrás ainda existia.

94
O lugar Lòreky ainda existe perto do Lago Sòhoky, tendo sido habitado pelos Javaé
até algumas décadas atrás, mas tanto o povo Kujejeni quanto Kujejeni Hãwa, a aldeia
deles, desapareceram durante a grande enchente. Muitos dos diversos povos da região
foram extintos ou mudaram de lugar, mas Marani Hãwa, um lugar encantado devido à
proteção do iòlò Tòlòra, continuava resistindo a todas intempéries e conflitos, além de dar
abrigo aos sobreviventes de alguns povos. Como comentam os Javaé, Marani Hãwa
resistiu até mesmo à chegada dos Torihuhu, os primeiros bandeirantes com suas armas
desconhecidas, ao contrário de Kanõanõ, a imensa aldeia que se tornou uma das únicas
poupadas pelos Wèrè em sua sede de vingança contra os Karajá.
O mito começa narrando o aparecimento de uma cabeça humana rolando e pulando
na aldeia Kanõanõ, como uma bola, enquanto olhava a todos de modo diferente e cantava
uma música conhecida até hoje. O fato foi interpretado como dàdà, um presságio de um
acontecimento negativo, deixando o povo de Kanõanõ em pânico. Sempre que alguém
tentava pegar a cabeça, ela desaparecia magicamente para reaparecer depois. O presságio
foi confirmado com a chegada dos Torihuhu, portadores de espadas compridas com as
quais decapitaram os Torohoni, exterminando toda a população de Kanõanõ, que por isso
não deixou nenhum descendente entre os Javaé atuais. Isso aconteceu depois que os Wèrè
já haviam partido para o Xingu.

Os brancos muito antigos continuaram andando pela ilha, encontrando pelo caminho
a aldeia do povo Kòriminikèhè, que também foi dizimado, até chegar na grande Marani
Hãwa. Mesmo sendo de fora e violentos, os bandeirantes acautelaram-se quando
chegaram à aldeia sagrada, por ser um lugar respeitado e encantado, pois havia algo
como um círculo de poder mágico protegendo Marani Hãwa. Os descendentes de Tòlòra
perceberam a intenção belicosa dos visitantes, mas subestimaram os brancos, delegando
às crianças a tarefa de atacá-los com suas flechas mirins. Reagindo violentamente, os
bandeirantes mataram as crianças e atacaram toda a população da aldeia, quando muitos
morreram e alguns conseguiram fugir. A família de Ihytyriè fugiu para um lugar chamado
Ikòròbi, bastante isolado até hoje, onde ainda se encontra sinais de pessoas que talvez
sejam os descendentes dos fugitivos, embora alguns pensem que sejam os Avá-Canoeiro
sem contato, sobre os quais há suspeitas de que ainda vivem dentro da Ilha do Bananal.
Um outro grupo de sobreviventes escondeu-se na beira das lagoas próximas a
Marani Hãwa, entre eles o neto de Tòlòra, que havia herdado o seu nome e a condição de

95
iòlò, como é costume até hoje. O iòlò havia sido ferido nas pernas por manajuwyhy
(“flechas de pedras”), o nome como as pessoas chamaram as desconhecidas balas das
armas de fogo. Alguns dos homens que estavam escondidos tiveram a idéia, na noite
seguinte, de voltar à aldeia para buscar comida e o que tivesse restado no lugar,
combinando com os sobreviventes que, caso voltassem com comida, viriam cantando uma
determinada música como aviso:

“(...) Quando o pessoal chegou na aldeia, acenderam hatèsi, um tipo de tocha de índio.
Quando foram ver a panelona lá, watxiwii, grandona, tinha um pescoço, uma cabeça de
alguém, já estava podre! Quando viam outro pote, estava uma cabeça, um corpo, um
braço... o resto dos corpos, de gente, tudo lá. Como eram poucos, só uns três ou quatro
homens, fizeram um tipo de kutò, “jirau”, bem alto, um lugar de dormir, mais afastado
um pouco. Dormiram lá, até que de madrugada chegou o pessoal, Torihuhu, porque de
costume chegava só de madrugada. Estavam andando, matando ainda em outras
aldeias! Voltaram e estavam andando debaixo deles, porque o jirau é bem alto, mas não
sei o que eles fizeram lá que Torihuhu correu e pegou-os, o resto do povo que sobrou.
Um pouco fugiu e foi gritando, o mesmo grito que prometeram quando iam voltar,
levando (comida). Só que não, eles estavam gritando com medo dos Torihuhu. Como
estavam gritando, o pessoal veio ao encontro deles. Aí saíram e (os brancos) mataram
tudo.
(...) Só essa família mesmo (de Ihytyriè) que sobrou um pouco, e Tòlòra, sobre o
resto ela (a narradora) não comentou. Tòlòra estava lá ferido nas pernas, feridíssimo,
com manajuwyhy, a bala. Estava lá cansado, sozinho. Então veio uma onça, Halòè.
Veio e ele ficou com medo: ‘essa aí vai me comer de verdade mesmo. Escapei dos
Torihuhu, agora Halòè vai me comer!’. Chegou lá e Halòè perguntou ... nesse tempo
Halòè falava. Halòè perguntou quem era ele e ele falou. E por que estava daquele jeito,
ele explicou. Diz que Halòè foi lá lamber o ferimento dele, só lamber. Tirou o resto de
um tipo de pólvora que estava lá dentro, diz que era pedra, só que acho que era bala.
Depois de muito tempo lambendo, foi sarando, sarando, sarou. Depois de muito tempo.
A onça curou o ferimento de Tòlòra e ele andou.
(...) Tinha o pessoal de Marani Hãwa ali, não tinha? Os que o Torihuhu acabou
com eles e um pouco que fugiu de lá. De qualquer jeito, um pouco estava morando ali
no Imotxi também. Quando ele melhorou, ficou ali na aldeia dele e chorou, lamentou,
lembrou dos pais, dos irmãos, que morreram todos. Ele foi para o Imotxi. Chegando lá,
o pessoal perguntou o que aconteceu e ele explicou que metade da aldeia foi morta e
metade fugiu. Ele não sabia explicar direito. Chegando lá no Imotxi, casou com uma
mulher e teve filhos. Logo depois, ele voltou para Marani Hãwa. Então refez a família,
a aldeia e juntou as pessoas que tinham fugido dessa guerra. O resto que ficou por ali
voltou. E ficou sendo aldeia.
(...) Outra coisa curiosa que ela (a narradora) falou é que Marani Hãwa é um lugar
realmente de encanto. Acaba e refaz. Entra em decadência e volta de novo. Marani
Hãwa é um lugar e tanto, ninguém sabe explicar. Diz que era uma aldeia enorme lá e
começou de novo! Ela acha que o dia que acontecer isso (de novo), vai todo mundo
para Marani Hãwa, porque lá é o começo, digamos assim, da humanidade, dos índios.
É eterno lá, não acaba a aldeia, não tem jeito.” (palavras do tradutor)

96
Os poucos povos ixyju que não haviam sido dizimados pelos Wèrè foram
exterminados pelos brancos, restando o que se conhece atualmente. A indestrutibilidade de
Marani Hãwa foi colocada à prova em outras ocasiões posteriores, como na época em que
a família de Beriaru foi perseguida por dois feiticeiros de Marani Hãwa e mudou-se para o
Lòreky.

Em um passeio, os três filhos dela foram capturados pelos Xavante, mas só Txirawa
sobreviveu. Beriaru mudou-se então para o Txuiri 72 , onde ficou sabendo que Txirawa
estava sendo criado pelos Xavante, tornando-se um grande guerreiro para vingar-se dos
perseguidores dos pais. Junto com os Xavante, organizou ataques a várias aldeias,
procurando os feiticeiros, até que chegou a Marani Hãwa, onde matou e violentou muitas
pessoas. Txirawa vingou-se dos feiticeiros e Marani Hãwa sobreviveu mais uma vez com
poucas pessoas.

Em tempos bem mais recentes, no fim do século 19 ou início do século 20, ao que
parece, um Javaé chamado Iòlòhoky trouxe um batelão do Araguaia com muitos brancos,
entre eles alguns soldados, para a aldeia Imotxi. O mito conta como os brancos
convenceram os Javaé a acompanhá-los no barco até Marani Hãwa, numa época em que
morava pouca gente nesta aldeia. Durante a viagem pelo rio, os brancos mataram as
crianças e mulheres que defecavam no batelão, jogando-as para fora do barco. Os homens
Javaé prepararam uma vingança e mataram Iòlòhoky e os brancos, fugindo a seguir para
Hãwalò, a aldeia Karajá de Santa Isabel (ver Mapa n° 2). Estes últimos os acolheram e
censuraram o fato de um Javaé ter levado os não-índios ao Imotxi. Algum tempo depois
surgiram conflitos com os Karajá e os Javaé retornaram para Marani Hãwa, reiniciando
mais um capítulo dos vários ciclos de auge e decadência da aldeia indestrutível.
Em um outro mito ficamos sabendo como, mais ou menos na mesma época, Ijaika, o
líder das famílias que moravam na região do Imotxi e Sòhoky, foi acusado de feitiçaria e se
mudou para Karalu Hãwa (no Lago de Pataca, mapas n° 3 e n° 6), um lugar então
abandonado e onde, em um episódio muito anterior, já mencionado, os irmãos Karalu e
Woureruja, do povo ixyju Karalu, saíram de baixo trazendo a banana de casca verde. Ijaika
e sua família tornam-se os primeiros Javaé a ter contatos com os bens dos brancos (colares,

72
Nome de uma aldeia atual Javaé (Mapa n° 2), no mesmo local referido no mito, mas que até 1995 era um
povoado habitado por não-índios, chamado Porto Piauí. O processo de retomada do lugar é narrado e
analisado por Bonilla (1997, 2000).

97
espelhos, facas etc) por meio de trocas com os Karajá, que estavam muito mais expostos
aos Tori através da navegação feita no Rio Araguaia.
Por volta do fim do século 19 e começo do século 20, antes de um contato regular
com a sociedade nacional, conforme lembram atualmente, os Javaé estavam morando em
várias das aldeias tradicionais, referidas na mitologia, a maior parte delas situadas dentro
da Ilha do Bananal. Muitas das aldeias então habitadas originaram-se na era das
transformações míticas, como Marani Hãwa, Imotxi, Wariwari, Lòreky e Iròdu Iràna.
Mesmo abandonada desde a metade do século 20, os Javaé dizem que Marani Hãwa não
acabou, na verdade, que nunca vai acabar, e que um dia será habitada de novo.

98
Capítulo 3

Quem são os Javaé?

3.1. A parte e o todo, uma mistura pura

As narrativas míticas são conhecidas pelos Javaé como lahi ijyky, “as narrativas
sobre o passado (ijyky) contadas pelas avós (lahi)”, e têm um sentido inquestionável de
“verdade” sobre o passado, como entre os Karajá (Donahue, 1982), o que é muito diferente
do nosso conceito de mito como ilusão ou “falsa história” (Lévi-Strauss,1976:278-279) 1 .
Com o tempo, descobri não só que todos os episódios narrados estavam interligados,
formando uma totalidade, assim como ocorre entre os Yanesha (ou Amuesha), um grupo
Arawak do Peru (Santos-Granero, 1998), mas também que apenas duas pessoas vivas entre
os Javaé conheciam a totalidade formada pelo conjunto de fragmentos. A maioria conhece
apenas partes isoladas ou mais lembradas do grande mito de criação, como o episódio da
conquista do sol por Tanyxiwè, por exemplo. Tive a oportunidade de estabelecer um
programa de trabalho ao longo dos meses com uma dessas pessoas, a famosa e respeitada
Kuraniasè, “mãe de Kurania”, mãe do único chefe cerimonial (ixytyby) Javaé atual 2 . Há
pessoas, entretanto, que aprenderam com seus antepassados versões diferentes de alguns
dos episódios aqui contados, não havendo uma unanimidade quanto ao conteúdo da
memória oral. A seqüência que apresento entre todos os episódios a que tive acesso não me
foi formulada explicitamente, embora alguns dos nexos principais tenham sido
estabelecidos em diálogos com os tradutores.

1
Òbiti é um conceito nativo para o que é “verdadeiro”, “idêntico ao original” ou “reto”.
2
Huiriru, seu nome pessoal, é pessoa de personalidade forte e muito respeitada em função de seu
conhecimento mitológico e ritual, sendo uma das únicas mulheres que podem entrar livremente na Casa dos
Homens para discutir questões políticas ou rituais de Canoanã. Nas sessões sempre a três – com participação
da antropóloga, da narradora e de um tradutor – os mitos eram gravados na língua nativa e traduzidos a seguir
para o Português. Alguns dos episódios míticos mais importantes foram contados três ou quatro vezes, a
critério da narradora, a cada vez que mudava o tradutor, uma vez que, por motivos variados, trabalhei com
cinco tradutores diferentes. O outro grande conhecedor de mitos era o respeitado Catarino, que já estava em
idade avançava e veio a falecer recentemente (2007), mas em geral as contadoras de mitos são as mulheres
mais velhas.

99
O modo como os Javaé concebem as relações entre as unidades significativas da
realidade, tema que percorrerá todo este trabalho, insere-os na discussão ameríndia da
“abertura para o outro” (Lévi-Strauss, 1993:14), já mencionada, em que o “exterior é
imanente ao interior” (Viveiros de Castro, 2002h:430, grifo do autor), idéia que nos levará
a uma concepção eminentemente histórica do social. Os fragmentos míticos são pensados
por eles como uma “parte relacional”, que só tem seu sentido completo na relação com o
todo maior, e para a qual existem os conceitos nativos kyrè e kèrè. Como na técnica de
interpretação aplicada aos textos literários e históricos, chamada círculo hermenêutico (ver
Mueller-Vollmer, 1992), em que a parte só faz sentido na relação com o todo coerente e
vice-versa, os Javaé têm uma aguda consciência da “relacionalidade” das coisas em geral
do mundo. Cada unidade, seja lá qual for a dimensão da realidade a que se esteja referindo,
é sempre pensada como uma “parte em relação” a um todo maior ou a um Outro.
Diferentemente da concepção ocidental, em que unidades podem ser tomadas como
entidades isoladas ou independentes, toda unidade é vista pelos Javaé como parte de um
contexto maior ou como totalidade constituída de partes relacionadas e interdependentes.
Assim, por exemplo, as danças do ciclo dos aruanãs são realizadas quase diariamente
durante um ciclo anual, e na maior parte desses dias de apresentações os aruanãs dançam
pela manhã e, depois, à tarde. A dança da tarde é tida como kyrè da dança da manhã,
ambas pensadas como partes de um todo (a totalidade de um dia) e não como eventos
isolados ou independentes. Quando os homens vão dançar à tarde, dizem que vão “buscar
wakyrè (meu kyrè)”, no sentido de que vão dançar mais uma vez porque a dança da manhã
só existe na relação com a dança da tarde.
O conceito de kyrè é traduzido pelos Javaé como “pedaço de outro”, de modo que
todos os “pedaços” ou partes só existem na relação com um outro ou com o todo. Toda
unidade, seja o pedaço de um bolo, a dança da manhã, uma pessoa ou um nível
cosmológico, é concebida como esse “pedaço do outro” ou parte relacional que só tem
sentido em sua relação com a totalidade da qual faz parte. De modo complementar, o
conceito de ikyrè, literalmente “parte dele”, em que a partícula i significa “dele”, refere-se
ao todo (i) do qual falta uma parte (kyrè). Ou seja, “a parte que falta ao todo”. O braço de
alguém do qual falta um pedaço de carne (dè) após a mordida de uma piranha é referido
como idèkyrè, literalmente “o pedaço de carne que falta dele”. A expressão não se refere
ao pedaço arrancado em si, mas ao braço (o todo, referido pela partícula i) do qual falta um
pedaço, ou seja, a uma relação entre a parte e o todo.

100
A mesma lógica aplica-se ao nome pejorativo atribuído aos Karajá, Iwakyrè,
traduzido em geral como “aleijado”, “sem um pé” (waa), que literalmente quer dizer “o pé
(enquanto um pedaço ou parte) que falta dele”. Tal expressão não se remete ao pé que falta
em si, como uma parte isolada, mas “ao todo (o corpo) do qual falta uma parte, o pé
(waa)”, embora possa ser também o todo (o pé) do qual falta um pedaço. Portanto, pode-se
dizer que kyrè (e seu complemento ikyrè) tem tanto o sentido de “parte de um todo” como
“o todo do qual falta uma parte”, ambos conceitos relacionais, em que o todo e a parte só
são compreendidos dentro de uma visão holista de complementaridade mútua (ver
Dumont, 1985). O mesmo vale para o conceito de kèrè (“metade”), também pensado
sempre como complementar ou em relação à outra metade.
Tanto o conjunto de músicas quanto o dos mitos são concebidos como totalidades
das quais só algumas pessoas têm o conhecimento completo. Quando se usa o conceito de
ikyrè para alguém que conhece pouco das músicas ou mitos, não significa que essa pessoa
conheça apenas uma parte de um mito ou música, mas que ela conhece apenas algumas
músicas ou fragmentos míticos dentro do conjunto total, ou melhor, um todo incompleto.
Quem sabe só alguns mitos, como a maioria das pessoas, sabe apenas ijyky kyrè, uma parte
do conjunto. O título honrado de ijykydu, o “experto em narrativas sobre o passado”, cabe
somente àqueles que conhecem a totalidade das narrativas interligadas, os ijykymy
ijykynadu. Aquele que sabe o conjunto total de músicas é wiièrydu, “o que (du) sabe (èry)
as músicas (wii)”, enquanto o que sabe só algumas ou nada é wiièrykõ (em que “kõ”
funciona como negação). O conceito de totalidade, entretanto, não deve ser aqui entendido
como uma dimensão da realidade fechada e impermeável ao que vem de fora. O todo é
permanentemente reproduzido e produzido, assim como o conjunto de mitos e músicas,
que não é estático, mas que contêm mitos e músicas antigos juntamente com os novos,
produzidos recentemente.
O conteúdo das narrativas, essencialmente sobre as transformações que levaram ao
surgimento do que hoje são os Javaé – ou o fluxo criativo original –, trata da sociedade e
da cultura Javaé sob dois pontos de vista complementares: como uma totalidade permeável
e inédita, constituída pelas relações com a alteridade (entre “partes” ou povos diferentes),
ou como uma parte (a cultura/sociedade) de um conjunto maior (o mundo e seus
habitantes). A sociedade Javaé é vista como uma totalidade que integra partes em uma
forma original e aberta a novas interações ou como uma parte de um todo maior externo,
formado pelos outros povos vizinhos e todos os tipos de humanos que povoam o cosmos.

101
Como veremos logo a seguir, os humanos sociais terrestres, incluindo os Javaé, são apenas
um dos vários tipos de humanos e povos que habitam os diversos níveis cosmológicos,
formando a totalidade do “mundo”, que neste caso tem limites definidos e é pensado como
um corpo.
Da leitura atenta das narrativas surge uma questão intrigante, porque não há uma
resposta óbvia, e que se impõe com toda força: – Quem são, afinal, os Javaé?! Não existe
uma resposta simples a esta pergunta, no sentido de se poder traçar uma linha clara de
continuidade entre um grupo ancestral definido e os Javaé atuais, ou de se poder identificar
uma essência original monogênica sobre a qual foram adicionados novos componentes.
Também não se trata de um simples plurigenismo, no sentido de origens múltiplas
independentes. Isso que se chama de “os Javaé atuais”, segundo a visão nativa, poderia ser
considerado como o produto de um amálgama de várias influências externas? Talvez essa
não seja uma proposição adequada, porque a idéia de “influências externas” pressupõe um
centro original a ser influenciado e moldado, quando na verdade, segundo a mitologia, não
existe tal centro ou essência interna. Creio que a melhor forma de traduzir o que o mito diz
quanto à criação da cultura ou da sociedade Javaé seja concebê-la não ao modo da
fagocitose social Jê (Carneiro da Cunha, 1993) 3 , como uma célula original (no sentido de
primordial) que ingere microorganismos externos, mas como o produto original (no sentido
de inédito) de “relações entre diferentes” que já vinham ocorrendo muito antes da chegada
do colonizador europeu.
Ao longo da narrativa vão sendo apresentados os vários povos que contribuíram
para a formação dos Javaé, seja em termos de substância física (os povos Ijèwèhè,
Kuratanikèhè, Wèrè, Imotxi, Wou [Tapirapé], Karajá, Werehina, Kuriawaku etc), seja em
termos de bens culturais e materiais (os povos Bisarukèrè, Ijèwèhè, Kuratanikèhè, Wèrè,
Karalu, Wou, Torohoni ou Kanõanõ, Karajá, Halàlàra, Hèryri Hetxi Tèbè, Mõri,
Kuriawaku, Koriminikèhè etc). Dentre essa legião de contribuintes, que não se esgota nesta
lista, os dois grandes doadores de substância e cultura são Tòlòra e seu povo (os
Kuratanikèhè) e o povo Wèrè, reconhecidos como os principais ancestrais dos Javaé atuais.
Estes dizem que “nós somos rikòkòrè rikòkòrè (descendentes) dos Wèrè e um pouco do
Tòlòra, uma mistura”. Entre eles, contudo, não há um mais especial que os outros, o
“verdadeiro” ancestral. É por meio da relação entre os dois principais, basicamente, com

3
Definida pela autora como uma política de “predação cultural” (1993:79) dos Jê em relação aos rituais,
cantos e “espíritos” de seus vizinhos, permitindo o alargamento do patrimônio cultural.

102
contribuições em menor grau de outros, uns considerados estrangeiros inferiores, como os
próprios Karajá, outros como estrangeiros de respeito, como os Wou (Tapirapé), que vai se
consolidando a cultura e a sociedade Javaé. O mito não fala de uma ou mais essências
originais sobre as quais influências externas foram sobrepostas e digeridas – nenhum dos
ancestrais mencionados é referido como “os Javaé originais” –, mas apenas de relações
entre fontes diversas que foram se fundindo ao longo do tempo e construindo uma nova
forma.
Tanyxiwè é o poderoso descendente dos Ijèwèhè, ancestrais também dos brancos, e
sua contribuição é fundamental, mas ela tem um alcance mais amplo para a humanidade
como um todo e não apenas para os Javaé. São as conquistas do herói criador, de quem os
Javaé se vêem como descendentes, que permitem o estabelecimento da estrutura espaço-
temporal cósmica atual, incluindo a marcação dos ciclos do tempo e a configuração do
espaço. É a caminhada mítica de Tanyxiwè, como veremos, que produz o espaço social
baseado na diferenciação ontológica entre rio acima ou o que é anterior, associado à
identidade, e rio abaixo ou o que é posterior, associado à alteridade. Foi a partir do
estabelecimento dessa estrutura cósmica do plano terrestre e social, originada da prestação
matrimonial de um homem a seus afins, um dos princípios básicos da organização social
Javaé, que se deu a ascensão da maioria dos povos cujas interações produziram as
diversidades e identidades culturais atuais.
As contribuições dos diversos ancestrais são como o conjunto diário das danças dos
aruanãs: partes relacionais que não são nada em si, mas plenas de significado somente na
relação com os outros e a totalidade. Na relação, a parte deixa de ser ela própria e adquire
uma outra qualidade. Não se trata de um mero somatório de pequenas unidades sólidas e
independentes, como tijolos aglomerados que não perdem a sua forma original, mas muito
mais de uma mistura entre diferentes que dissolve as formas anteriores e produz uma forma
nova, inédita, como o filho produzido pelos genitores. O todo é feito das partes, mas é
diferente delas. O todo, entretanto, nunca adquire uma forma completa e definitiva, como
será visto, pois está em permanente formação, sendo permeável e aberto às contribuições,
em forma de relações, que vão surgindo ao longo do tempo.
A fusão mencionada é tratada de forma sintética no episódio sobre como o povo de
Tòlòra funde-se física e culturalmente com os Wèrè e os povos vizinhos que vêm prestar
tributos ao iòlò consagrado na grande aldeia Marani Hãwa. Como já foi dito, o povo de
Tòlòra veio do Fundo das Águas, mas é chamado de Kuratanikèhè porque ascendeu no

103
local onde os Kuratanikèhè viveram. Os Kuratanikèhè já viviam no nível terrestre
originalmente e deles faziam parte os afins de Tanyxiwè. Além disso, o povo de Tòlòra
misturou-se com os descendentes dos Kuratanikèhè que viviam no local já chamado de
Marani Hãwa, os quais por sua vez já haviam se misturado antes com o povo Imotxi. Mas
é em razão principalmente da mistura posterior entre o povo de Tòlòra e os Wèrè, que a
aldeia Marani Hãwa, conhecida também como Hãwahaky ou Hãwatyhy, “aldeia honrada
ou verdadeira”, o epicentro das relações transformadoras, pode ser vista como um
caldeirão cultural onde relações entre diferentes ingredientes produziram uma criação
única.
A metáfora culinária não é inapropriada na medida em que os Javaé usam a palavra
“cozinhar” (ruara) para se referir ao processo de “criação” ou “invenção” das músicas por
seus autores (que podem ser homens ou mulheres). Diz-se que quando uma pessoa vê algo
inusitado em termos de comportamento entre os animais, por exemplo, ela se dirige a um
compositor (wiidu) e “entrega” a ele a história. Quando o compositor termina a música,
normalmente para os aruanãs cantarem, ele diz para aquele que o inspirou: atyhè ruare (“o
que você me entregou foi cozido”). O processo de criação da música é comparado ao
processo de cozimento de um alimento, em que um ou vários ingredientes trazidos por
outros têm sua forma originária transformada em algo diferente.
O essencial desse exemplo é a idéia de que toda criação depende de um Outro, uma
vez que, para os Javaé, a comida que a mulher prepara depende dos ingredientes
produzidos pelo trabalho masculino, por meio das prestações matrimoniais, de modo que
atividades masculinas e femininas formam uma totalidade. A narrativa mítica, que se refere
o tempo todo ao fluxo criativo que passou a existir nesta dimensão terrestre depois da saída
dos humanos de baixo para cima, onde nada se criava, propõe de forma clara que as
transformações e criações que deram origem à cultura e ao povo Javaé atual, o que não
significa uma consolidação permanente, são produtos de relações entre diferentes (o que
tem um potencial de conflito), que toda relação é criativa e que tudo que é criado existe por
causa de um Outro ou por meio de uma relação com um Outro.
O mito conta em detalhes como o processo de várias misturas (relações históricas
entre diferentes) ao longo do tempo, sem a existência de uma base anterior, constituiu a
forma inédita atual da sociedade, aparentemente fixa. Veremos que esse processo criativo,
entretanto, não está confinado a um tempo anterior e primordial que se opõe ao tempo atual
de repetições, como na clássica formulação a respeito do tempo mítico (Eliade, 2002). O

104
conceito de agência formulado pelo mito implica que a sociedade e a cultura, em todos os
tempos, são feitas tanto dessa relação imanente com o Outro que desestrutura e transforma,
em um movimento de abertura ou desintegração da estrutura anterior, quanto do exercício
ordenador do caos, em um movimento inverso de fechamento ou estabilização da nova
estrutura criada. Essa postura aplica-se também às transformações impactantes advindas do
contato com o colonizador europeu e consideradas pelo mito, as quais são concebidas
como altamente desestruturantes e criadoras de uma nova realidade, mas sobre as quais,
em última instância, os Javaé exercem algum tipo de controle ordenador.
A revelação, para mim, de que a cultura nativa é vista implicitamente como o
produto de relações e fusões transformadoras ao longo do tempo, de várias relações de
trocas interétnicas, em vários níveis, como casamentos, trocas culturais, trocas materiais e
guerras, e não como uma estrutura fixa que se repete desde sempre, talvez não tivesse tanto
impacto não fosse a verdadeira obsessão, observada desde o começo, que os Javaé têm em
evitar e negar as misturas e a alteridade. Isso é feito demonizando os outros (mulheres,
afins ou estrangeiros) e as misturas em geral, seja no plano das práticas matrimoniais, por
meio da endogamia de aldeia e parentela, da condenação de casamentos interétnicos e do
uso de uma terminologia de parentesco “consanguinizante”, referindo-se aos afins com
tecnonímicos (ver Pétesch, 2000); seja no plano cosmológico e ritual, em que o objetivo
maior da Dança dos Aruanãs é conectar os humanos terrestres e sociais, ainda que apenas
simbolicamente, com um mundo sem outros, onde tudo se repete e nada é criado. Pétesch
(2000:206) menciona um “ideal de cognação” Karajá sobre todo o grupo e Schiel (2002)
demonstra o desprestígio da categoria “mestiço” entre os Karajá da cidade de Aruanã.
A palavra ixyju (estrangeiro) é fortemente pejorativa, sendo surpreendente que, para
Toral (1992:8), ela indique “qualidades admiráveis” (“índio bravo/aguerrido”) entre os
Karajá. Ser descendente de alguma mistura com povos estrangeiros é um dos xingamentos
(lahadina) preferidos em situações de conflito. Quando os Javaé xingam-se entre si,
costumam invocar os ancestrais ixyju, mesmo que sejam os Kuratanikèhè, daqueles que
estão sendo xingados. Do mesmo modo, os Karajá têm um famoso xingamento para os
Javaé, chamados por eles de ixyju kydudu, ou seja, “os que foram originados entre os
ixyju”, uma vez que Marani Hãwa não só estava cercada por vários povos ixyju, como
recebeu contribuições importantes de muitos deles. No comentário do tradutor sobre o
episódio mítico em que o Karajá Teribèrè ataca os Wèrè, é dito que “os Karajá tiveram
tanta mistura de vários povos! E isso é feio, tem que ser só de uma tradição”. Os

105
casamentos interétnicos são profundamente estigmatizados, mas toda a constituição da
sociedade Javaé, narrada na mitologia, é produto de casamentos com estrangeiros, havendo
um reconhecimento implícito de que a condição de “estrangeiro” está, em algum nível,
dentro de todos 4 .
Tudo isso insere a cosmologia e as práticas Javaé dentro de uma temática ameríndia
maior da desconfiança em relação às diferenças, tidas como perigosas, mas indispensáveis
para a vida social, como já foi apontado por Kaplan (1981:163), para quem é um tema
geral nas terras baixas sul-americanas a idéia de que a junção das diferenças “implica em
perigo, enquanto o agrupamento de coisas semelhantes implica em segurança e o não-
social ou a anti-vida” 5 . Mais do que isso, só as misturas são criativas, tema essencial da
cosmologia Javaé. Não se deve, entretanto, confundir o desejo de neutralizar a alteridade,
manifesto nas práticas mencionadas, com um modelo nativo de sociedade minimalista,
monogênica, fechada ou amorfa internamente. Assim como os Jê e Bororo, os Javaé
possuem elaborados rituais, que ocupam praticamente o ano inteiro, e fortes marcações
internas, seja na forma de metades cerimoniais, classes de idade ou Casa dos Homens
versus espaço feminino etc. Também não estamos inserindo os Javaé dentro da oposição
entre sociedades fechadas ou sem exterior, que incorporam a diferença internamente
(centro-brasileiros), e sociedades sem interior, que projetam a diferença ou afinidade para
fora (amazônicos) 6 .

4
Segundo Fénelon Costa (1978:99), a respeito dos Karajá, “os índios de Santa Izabel admitem que os Karajá
descendem de torí (cristão, civilizado) e de indivíduos e outras tribos. Todos os informantes, entretanto,
preferiam atribuir aos outros da comunidade a ascendência estrangeira (...) preferindo não falar nos seus
próprios antepassados estranhos ao grupo”.
5
“Para os Piaroa da Guiana, (…) assim como se pode dizer para os Gê, os Bororo e para os povos do
noroeste amazônico, o universo e a sociedade existem somente na medida em que há contato e uma mistura
apropriada entre coisas que são diferentes umas das outras” (Kaplan, 1981:161). Em outro texto (1984:129),
é dito que “(…) Os Piaroa, e os ameríndios guianenses em geral, fazem o melhor dentro da organização local
do grupo para suprimir tais diferenças, enquanto os Gê e os Bororo as enfatizam”. Mais na frente a autora
diz, entretanto, que através das inversões rituais dos centro-brasileiros, “em que o ‘eu’ torna-se o ‘outro’ e o
‘outro’ torna-se o ‘eu’, (...) identidade e diferença entre as categorias sociais tornam-se tão misturadas como
por meio do casamento endógamo das Guianas” (1984:150).
6
Refiro-me aqui aos argumentos de Viveiros de Castro (1986, 1993, 2002), para quem as sociedades
amazônicas, com seu amorfismo interno, negariam a afinidade ou alteridade internamente, no plano das
relações sociológicas com os afins reais, projetando-as para o exterior (os afins “potenciais” não reais), ou
seja, a aliança seria feita num plano simbólico, com os outros externos (mortos, estrangeiros, inimigos etc). O
que seria diferente dos sistemas fechados dos centro-brasileiros conservadores, com um centro interno em
que os outros ou brancos estão excluídos e as diferenças do exterior são incorporadas e marcadas
internamente. Haveria então uma oposição entre sociedades abertas, sem interior, amorfas ou minimalistas,
que projetam as diferenças e o seu centro para fora (os Tupi-Guarani e “amazônicos”); e sociedades fechadas
e sem exterior, que incorporam e marcam internamente a diferença (os Jê). Mais recentemente (2002),
baseado em novas pesquisas, o autor fez uma autocrítica à idéia dos Jê como sociedades fechadas.

106
O desejo obsessivo de purificação revela, ao contrário, a consciência histórica de
que toda a realidade social é produto de relações intrínsecas e transformadoras com a
alteridade, o que é anterior às relações com o colonizador europeu, não havendo uma
separação entre um “dentro”, onde se salientam as diferenças ou se negam as trocas e as
relações, e um “fora”, em que a exterioridade é desconsiderada ou para onde as diferenças
são projetadas e valorizadas. Afinal, só se deseja o que não se tem. Não se trata de
sociedades “fechadas”, em absoluto, nem de subverter a troca interna pela troca externa,
“um englobamento hierárquico do interior do socius por seu exterior, (...) da ordem local
do casamento pela ordem global das trocas simbólicas” (Viveiros de Castro, 1993:184),
mas de reconhecer que a alteridade é condição sine qua non de qualquer relação social,
seja no plano das relações domésticas (entre homens e mulheres, parentes e afins), locais
(entre metades opostas) ou supralocais (entre os Javaé e os estrangeiros), todas traduzidas
como relações entre um princípio masculino e um feminino.
Elaborando de um outro modo, veremos que os Javaé não oscilam entre um interior
inexistente e um ou vários centros no exterior, de um lado, e um centro interno e um
exterior inexistente, de outro. Os Javaé não são uma sociedade amorfa internamente, nem
uma sociedade sem exterior. Na verdade, o centro é justamente a ponte entre o interior e o
exterior, se é que se pode dizer isso, dissolvendo essa oposição entre dentro e fora. O
modelo nativo reconhece que tanto dentro quanto fora a diferença é uma realidade
inescapável: as diferenciações internas são marcadas com a mesma ênfase dos Jê, ao
mesmo tempo em que a relação com a exterioridade é intrínseca à sociedade, como para os
amazônicos; mas tanto dentro quanto fora tenta-se igualmente neutralizar essas trocas,
relações, diferenças. O conceito Javaé de socialidade reside justamente nessa mediação
entre uma realidade de diferenças e um desejo de eliminá-las, não existindo uma oposição
entre um Outro interno e um externo ou a escolha entre um (Jê-Bororo) e outro
(amazônicos).
A tentativa de criar a ficção de que a “tradição” Javaé é pura, ou pelo menos de
purificar a sua condição intrínseca de relações entre diferentes, passou a ser o objetivo
maior da coletividade masculina desde os tempos da criação. No que se refere às relações
internas, essa tentativa toma forma por meio da Dança dos Aruanãs e da negação da
afinidade gerada pelo matrimônio; quanto às relações externas, ocorre principalmente
tratando as mudanças culturais, ficticiamente, como se fossem repetição de uma mesma
tradição original. As mudanças históricas significativas são incorporadas a isso que se

107
chama de “tradição”, intrinsecamente mutável, mas tratada pelo discurso mítico,
intencionalmente, como algo que sempre se repetiu, utilizando-se os clássicos ditos que
encerram os episódios mitológicos: “por isso até hoje é assim, nada mudou”. Ao final das
narrativas, as criações são reduzidas a repetições do mesmo, congeladas propositadamente
em uma forma fixa. Implicitamente, entretanto, há o reconhecimento de que o “fixo” é em
si uma construção artificial e histórica, variável ao longo do tempo, e não a repetição
automática da criação original.
Trata-se de um esforço imenso de neutralizar a alteridade, vista como indissociável
das mudanças históricas, ou uma tentativa de transformar em identidade fixa (ser) o fluxo
constante do processo criativo (estar), uma vez que toda criação é concebida como produto
de uma relação transformadora entre diferentes, como o filho produzido por um homem e
uma mulher, ou seja, de uma mistura. E toda mistura, ou melhor, todo produto de uma
relação, é tido como poluído, contaminado com a alteridade. Assim, a cultura Javaé seria
concebida, ao mesmo tempo, como uma totalidade constituída de transformações
intrínsecas, produto de relações fusionais e históricas entre diferentes (internos e externos),
e da tentativa permanente e relativamente bem-sucedida dos atores sociais masculinos de
purificá-la, fixando-a, repetindo-a, ou seja, como uma paradoxal mistura pura.

3.2. A invasão anunciada

A invasão dos brancos ao território indígena foi prenunciada pelos “antigos”


(hykyna mahãdu) quando o pássaro wòòtòkò, um tipo de pomba (“pombinha-de-nossa-
senhora”), antes desconhecido, começou a chegar na região. A imagem daquele pássaro
estranho foi considerada como Tori dàdà, um “presságio negativo sobre os brancos”.
Fénelon Costa (1978) registrou uma versão Karajá desse prognóstico. Há em vários autores
reconstruções históricas elaboradas com maior ou menor profundidade sobre as relações de
contato entre os Karajá e a sociedade nacional 7 . Neste item, a história da colonização do
vale do Araguaia nos séculos 17, 18 e 19 é narrada de modo a incluir também os dados
específicos a respeito dos Javaé, usualmente negligenciados.

7
Ehrenheich (1948), Krause (1940-1944), Tavener (1966), Chiara (1970), Bueno (1975, 1987), Fénelon
Costa (1978), Donahue (1982), Toral (1981, 1992), Lima Filho (1994, 2001), Pétesch (1992, 2000), Bonilla
(1997, 2000), Schiel (2002, 2005), Portela (2006), Almeida (2006).

108
A região interiorana da Ilha do Bananal, em especial a sua porção oriental, e a
região dos afluentes da margem direita do Rio Javaés (Bero Biawa, “Rio Companheiro”,
em referência ao Araguaia), fora da ilha, são vistas como o território de ocupação
imemorial 8 onde os Javaé sempre estiveram morando ou perambulando em expedições de
pesca, principalmente, caça e coleta. Em outras palavras, toda a bacia do Rio Javaés e as
áreas adjacentes atingidas pelas inundações anuais, que abrigam os lagos e rios que os
Javaé sempre utilizaram para pescar tanto dentro como fora da Ilha do Bananal.
A Ilha do Bananal, originalmente chamada de “Ilha de Sant’Anna”, nome dado pelo
Alferes Pinto da Fonseca (1867) em 1775, é conhecida pelos Javaé como Iny Òlòna, “O
lugar de onde surgiram (ou saíram de baixo) os humanos”, ou Ijata Òlòna, “O lugar de
onde surgiram as bananas”, em razão de um grande bananal nativo cuja origem mítica é
atribuída aos parentes de Tòlòra e que se localiza na região de Marani Hãwa, ao lado do
atual Lago do Bananal 9 . Para os Javaé, os principais locais onde se deu a ascensão mítica
dos seus ancestrais, dos Karajá e dos Tapirapé para a superfície terrestre são os seguintes
(ver Mapa n° 6):

• Um buraco situado ao lado da antiga aldeia Marani Hãwa, junto ao bananal nativo
da Ilha do Bananal, de onde surgiram o líder Tòlòra e seu povo.

• Um lago conhecido como Bòra (ou Lago do Aristóteles), dentro da Ilha do


Bananal, a cerca de cinco quilômetros da aldeia Macaúba (dos Karajá), onde
surgiram os Wèrè.

• Um grande lago conhecido como Bèlybyranõra, próximo da Barra do Rio Verde,


fora da Ilha do Bananal (a leste), outro local de saída dos Wèrè.

• A Lagoa da Confusão, que dá nome a um balneário turístico fora da Ilha do


Bananal, onde surgiu o povo Ijèwèhè, ancestral do herói Tanyxiwè e dos brancos.

• Um aglomerado de pedras que se situa no Rio Javaés, muito próximo da atual


aldeia Canoanã, de onde saiu o povo Torohoni ou Kanõanõ, que foi exterminado
pelos bandeirantes.

8
Aqui no sentido de “antiqüíssimo” (Ferreira, 1986) e não no sentido daquilo sobre o que não há memória,
pois a mitologia histórica Javaé cultiva de forma extraordinária a memória do passado.
9
Tanto os Javaé quanto os posseiros mais antigos da ilha dizem que o bananal, com espécies diferentes e
muito altas, era imenso até os anos 60, pelo menos, tendo sido drasticamente destruído pelo gado. Em um
dicionário geográfico de 1894 (Pinto, 1894:200), o autor diz que “é prodigioso o número de bananeiras que
nella se encontram e que fizeram mudar-lhe o nome de Sant’Anna pelo de Bananal que hoje tem”. Quando
estive lá, em 1997, foi difícil achar o bananal, ainda muito alto, mesmo acompanhada por um guia Javaé, de
tão reduzido que estava.

109
• Um lugar próximo da antiga aldeia Karalu Hãwa, às margens do Lago de Pataca,
dentro da Ilha do Bananal, onde surgiram personagens míticos que deixaram
descendentes entre os Javaé atuais.

• Um buraco que se enche com as águas da estação chuvosa, chamado Inysèdyna,


situado a alguns quilômetros ao sul da aldeia Macaúba, dentro da Ilha do Bananal,
onde surgiram os Karajá.

• Um local próximo à atual cidade de São Félix do Araguaia, onde surgiram os


Tapirapé (Wou).

A partir desses pontos, também conhecidos como iny òlòna, locais de surgimento
dos humanos, os diversos povos espalharam-se pela Ilha do Bananal e arredores, dando
origem aos Javaé atuais, aos vizinhos Karajá e Tapirapé. Outros locais de passagem
apresentados na narrativa mítica, situados tanto dentro quanto fora da Ilha do Bananal,
referem-se ao surgimento de povos não mais existentes, como o povo Wariwari, que surgiu
em um local próximo da antiga aldeia Wariwari, ou os Werehina, povo canibal que
ascendeu em um lago entre o Rio Formoso do Araguaia e o Rio Javaés, entre outros. Os
Javaé se vêem, principalmente, como descendentes de parte dos Wèrè, em especial os de
Bèlybyranõra, e do povo de Tòlòra, atribuindo aos Karajá um local de origem diferente.
Os Karajá também reconhecem Inysèdyna como o único local de sua origem mítica,
e o Lago Bòra como o lugar de ascensão dos Wèrè (Rodrigues, 2008). Nos mitos Karajá
relatados a mim pelos especialistas em mitologia das aldeias Fontoura, Macaúba, São
Domingos e Itxala, os Wèrè guerreiros surgiram no Lago Bòra e viviam no Araguaia,
envolvendo-se posteriormente em conflitos com os Karajá, que nessa época moravam no
baixo Javaés e foram quase dizimados. Depois da vingança organizada pelo líder Karajá
Teribrè (Teribèrè, no dialeto Javaé), os Wèrè fugiram rio acima e os Karajá passaram a
dominar o território onde vivem atualmente. Na versão Javaé, os Karajá se recuperaram do
massacre dos Wèrè graças à intervenção de Tòlòra, e só depois disso o Karajá Teribèrè
organizou a vingança que expulsou os Wèrè do Araguaia e deu aos Karajá a terra em que
vivem desde então 10 .
Não é difícil enxergar no relato Javaé sobre os ataques dos Torihuhu (os brancos
muito antigos) aos vários povos que habitavam a Ilha do Bananal uma versão nativa dos

10
Toral (1999:107) ignora a origem mítica diferenciada dos Karajá e Javaé e adota apenas a versão Karajá,
segundo a qual Inysèdyna seria o local de origem dos dois grupos. O autor admite que “muitos Javaé, no
entanto, afirmam que o local de saída para a superfície se deu próximo à atual aldeia de Canoanã’”.

110
ataques dos bandeirantes registrados por documentos de época. Há registros da existência
de diversos povos indígenas, a maior parte atualmente extinta, habitando dentro da Ilha do
Bananal e arredores na época da chegada dos colonizadores, como os Tapirapé, Xavante,
Mangariruba, Cururu, Craya, Gradaú, Tessemedú, Amadú, Guayá-Guasú, Capepuxi,
Coroá, Coroá-mirim, entre outros, além dos Javaé e Karajá 11 . O Padre Aires de Casal
(1945:338), que escreveu sua “Corografia Brasílica” em 1817, cita como “convizinhos”
dos Xavante que moravam no norte da Ilha do Bananal os Carajás, os Noroguagés, os
Pochetys, os Appynagés, os Cortys e os Xerentes. É inevitável a comparação com as
referências do mito Javaé à existência de vários grupos indígenas diferentes na Ilha do
Bananal e arredores, que seriam em grande parte extintos ou expulsos pelas guerras
internas e, posteriormente, pelos brancos que usavam grandes espadas e armas de fogo. O
mito também menciona o tempo em que os Xavante e Tapirapé teriam morado dentro da
ilha (os primeiros no local chamado Watxi Hãwa, entre as aldeias Marani Hãwa e Imotxi),
fato mencionado na tradição oral Karajá (Toral, 1992) e na literatura 12 .
Expedições de bandeirantes paulistas, vindos do sul, e de missionários jesuítas,
vindos do norte, mapearam o território goiano no século 17 13 . A primeira bandeira que se
tem registro em Goiás, segundo Americano do Brasil (1961), é a de Sebastião Marinho,
que lá chegou em 1592 em busca de escravos indígenas. Depois vieram as bandeiras de
1596, quando se atingiu o Rio Tocantins (assim conhecido pelos missionários do Pará, mas
chamado de Paraupava pelos bandeirantes paulistas), e as de 1607 e 1608. Em seu estudo
sobre o bandeirismo, Brasil mostra que a bandeira de 1615 foi a última registrada na época,
pois os exploradores paulistas deslocaram-se para o sul do país e para Minas Gerais. Só na
segunda metade do século 17 iniciam-se novas entradas nas vastas terras de Goiás.
Seguem-se as bandeiras de 1665, 1668, 1670, 1671, 1674.
Rodrigues Ferreira (1977), por sua vez, sustenta que a primeira bandeira feita nessa
região foi a de Domingos Luí Grou Antônio de Macedo, de 1590 a 1593. Baseado nas
informações dadas na Língua Geral pelos índios capturados, o bandeirante trouxe notícias
pela primeira vez da lendária Lagoa de Paraupava, cujo ouro passou a ser cobiçado por
todos os sertanistas paulistas do final do século 16. Após um maior conhecimento do
território, os bandeirantes já sabiam, no começo do século 17, que a imensa lagoa nada

11
Pizarro e Araújo (1948), Silva e Souza (1849), Chaim (1974).
12
Ver Aires de Casal (1945), Chaim (1974), Baldus (1970), Wagley (1988).
13
Ver Alencastre (1864), Serafim Leite (1943), Brasil (1961), Chaim, (1974), Ferreira (1977), Palacin
(1994).

111
mais era que uma imensa ilha fluvial, inundável durante parte do ano, do Rio Paraupava,
nome como ficou sendo conhecido o Rio Araguaia na época 14 . Ou seja, a Lagoa de
Paraupava era a atual Ilha do Bananal. O escrivão Pero Domingues participou da bandeira
de André Fernandes, realizada de 1613 a 1615, e relatou ao Padre Antônio Araújo, que
escreveu sua história, que a grande ilha do Rio Paraupava, com 30 léguas de comprimento
e 6 de largura, era habitada pelos índios Caraiúnas ou Carajaúnas, um dos nomes pelos
quais os Karajá ficaram conhecidos na literatura até o século 19. Rodrigues Ferreira
encontrou evidências que outros moradores de São Paulo já haviam chegado às aldeias dos
índios Carajaúnas antes, pois constava no inventário de Lourenço Gomes, de 1611,
membro da bandeira de Martim Rodrigues, a posse de diversos índios Carajaúnas.
Por volta de 1682 (Silva e Sousa, 1849, Alencastre, 1864), são realizadas as
famosas bandeiras de Antônio Pires de Campos, o primeiro a chegar ao Rio Cuiabá,
acompanhado do filho primogênito de mesmo nome, ainda muito jovem 15 ; e a de
Bartolomeu Bueno da Silva, acompanhado do filho primogênito Bartolomeu Bueno da
Silva Filho. Os dois paulistas encontram-se no sertão do Brasil Central, na região do alto
Araguaia, e Pires de Campos dá notícia a Bueno dos índios Araé, moradores da região do
Rio das Mortes, o maior afluente do Araguaia (ver Mapa n° 8, ao lado), das minas de ouro
dos Martírios e da “ilha dos Carajás” 16 . Segundo Alencastre (1864), historiador da
Província de Goyaz, o Rio das Mortes é assim chamado por causa da carnificina de índios
Araé e Karajá que Pires de Campos teria perpetrado em sua passagem pela região, tendo
levado consigo grande número de cativos para a região do Rio Cuiabá. Bartolomeu Bueno
foi em vão atrás dos Martírios, que se transformariam em uma lenda desde então,
encontrando na volta para São Paulo amostras de ouro junto aos índios Goya, nas
proximidades da atual Cidade de Goiás, dos quais teria recebido o nome Anhanguera antes
de acorrentá-los e escravizá-los junto com os Araé.
A esta se seguiram uma infinidade de expedições, cujo objetivo eram as minas de
metais preciosos. A de 1719, seguindo o roteiro do primeiro Pires de Campos, descobriu
ouro nas minas da futura Cuiabá, fundada em 1727.

14
Paraupava, na Língua Geral, quer dizer “mar cortado”, em referência à seca do Araguaia na época da
vazante (Ferreira, 1977:178).
15
O primeiro Antônio Pires de Campos é assim referido de modo mais recorrente na literatura, embora
também seja referido como Manuel de Campos Bicudo (Brasil, 1961) ou Manuel Pires de Campos (ver
Ehrenreich, 1948).
16
Essas informações constam do famoso roteiro sobre as minas dos Martírios feito por Antônio Pires de
Campos, o filho, muitos anos depois da viagem com seu pai (apud Silva e Sousa, 1849:458).

112
Mapa 8
55°W 50°W
Belém
Localização aproximada de aldeamentos
e presídios dos séculos 18 e 19

Capitania de Goiás no século 18


Aldeamentos:
(1) São Francisco Xavier do Duro (ou Duro) – 1751
(2) São José do Duro (ou Formiga) – 1755
(3) São José de Mossâmedes – 1755, 1775
(4) Nova Beira – 1776
(5) Dona Maria I – 1780
(6) Pedro III ou Carretão – 1786
(7) Salinas – 1788

Rio
Presídios:
(8) São Pedro do Sul – 1776

Toca
ntins
Rio Araguaia no século 19 5°S

Principais aldeamentos ou missões: MARANHÃO


(9) São Joaquim do Jamimbú – 1845
(10) São José do Araguaia – 1863
(11) Xambioá – 1872
(12) Conceição do Araguaia – 1897 PARÁ
17
Presídios: 11
(13) Santa Maria – 1812, 1861 aia
(14) Santa Isabel – 1851 gu

o Ara
(15) Santa Leopoldina – 1856
(16) São José do Araguaia – 1864 Ri
(17) São José dos Martírios – 1864

s
in
nt
ca
To
Rio
Cidades atuais 12
Limites interestaduais
Rios
13
Rio C aia p
ó
gu

in 10°S
R io X

Palmas
l
na

Porto Nacional
na

MATO GROSSO
Ilha do Ba

Rio J ava
te

14 4
2 1
van

8
és

TOCANTINS
Xa
io
ór
it

s
rt e
rr

Mo
e

9
T

Rio
da

10 7
Cr
Rio

16
ixá s
Rio

-A
Crixá
Rio do

ú
ç

GOIÁS
s-
M
irim
Pe

15 15°S
ixe

6
io
R
a

Fontes: Silva e Souza (1849), Cunha Ver


uai

Mattos (1979), Aires de Casal (1945), el


m
r ag

Alencastre (1864), Couto de Magalhães ho


A
(1957), Coudreau (1897), Brasil (1961), R io Cidade de Goiás
Audrin (1946), Chaim (1974), Karash 3 Brasília
(1992), Ataídes (2001). 5 N
0 300 km
Projeto: Patrícia de M. Rodrigues
Cartografia: Dan Pasca
Goiânia

113
A última grande bandeira em Goiás que se tem registro oficial nos anais paulistas,
segundo Brasil (1961), é a célebre expedição do obstinado Bartolomeu Bueno da Silva
Filho, o segundo Anhanguera, que se transformaria no “descobridor” da Capitania de
Goiás, inspirado nos caminhos percorridos por seu pai. Partindo em 1722, Bueno e seus
companheiros encontraram inúmeros grupos indígenas e descobriram ouro no local que
ficou conhecido como Serra Dourada, nas cabeceiras do Rio Vermelho, formador do
Araguaia, região onde seu pai encontrara os Goyá 17 . Outras bandeiras continuaram sendo
realizadas no século 18, existindo a possibilidade de que o ataque devastador a vários
grupos referido nas narrativas míticas dos Javaé tenha sido o realizado pelas bandeiras de
Antônio Pires de Campos, o filho do afamado caçador de índios de mesmo nome, como
veremos adiante.
A outra frente de exploração importante do território goiano eram os missionários
jesuítas que partiam de Belém do Pará e subiam os rios Tocantins e Araguaia. Segundo
Serafim Leite (1943), que estudou a presença da Companhia de Jesus no Brasil, o primeiro
jesuíta que esteve no baixo Tocantins foi Luiz Figueira, em 1636. Em 1653, o célebre
Padre Antônio Vieira e outros foram mais além no mesmo rio, chegando acima da
cachoeira Itaboca. Esta teria sido “a primeira grande entrada missionária dos jesuítas em
toda a Amazônia” (Serafim Leite, 1943:315-316), produzindo também, através dos escritos
de Vieira, “o primeiro grande aproveitamento literário de motivos amazônicos”. Em seu
relato, Vieira descreve as expedições posteriores aos rios Tocantins e Araguaia e menciona
a do Padre Tomé Ribeiro, que teria chegado aos Karajá ainda em 1658, embora frustrada
pela morte de vários membros pelos índios hostis. Seguiram-se as entradas de 1659, 1668 e
1671. Gonçalo de Veras (apud Serafim Leite 1943:343), comandante da última, escreveu:

“(...) Não posso de deixar de referir o que sucedeu no sertão com os Carajás. Iam eles
com 25 canoas bem armados com seus arcos e flechas e outras armas de guerra. Apenas
viram chegar os Portugueses, empunharam as armas, e puseram as canoas em posição
de guerra, mas logo que advertiram que vinham também Padres da Companhia de
Jesus, remando com mais força atiraram os arcos a meus pés e rodearam-nos, e, para
darem mostras de sua confiança e generosidade, não tornaram a pegar em armas, vindo
oferecer os seus pequenos presentes, aos quais correspondi com os que permitia a
minha pobreza.”

17
Ver Pizarro e Araújo (1948), Silva e Souza (1849), Alencastre (1864) e Palacin (1994).

114
Há registros de outras expedições missionárias (Brasil, 1961), mas em 1721-1722
os jesuítas realizariam a última entrada no Tocantins, segundo Serafim Leite (1943), cujo
objetivo eram mais os “descimentos” ou remoção de índios do que os aldeamentos em seus
locais de origem. Além dos missionários, do Pará partiram também algumas expedições
oficiais, como a do Capitão Diogo Pinto de Gaia, a primeira enviada pelo governo local,
em 1720, com o objetivo de explorar o Rio Araguaia, e que logrou alcançar a Ilha do
Bananal (Baena,1848, Alencastre, 1864).
Com a descoberta definitiva do ouro goiano pelo segundo Anhanguera em 1722,
fundou-se o arraial de Sant’Ana em 1727, nas cabeceiras do Rio Vermelho. O arraial seria
chamado posteriormente de Vila Boa, a primeira capital de Goiás, depois conhecida como
Goiás Velho e atualmente como Cidade de Goiás (ver Mapa n° 8). Muitos índios Goyá
foram exterminados e outros fugiram da escravidão, enquanto inúmeros “arraiais” foram
fundados entre 1730 e 1750 no sertão de Goiás, a partir de então conhecido como “Minas
de Goyazes” 18 . Vários outros grupos indígenas, porém, resistiam e atacavam os invasores,
como os Xavante, Canoeiro, Xacriabá e Kayapó. Em 1746, atendendo aos apelos dos
colonos, o governo local encarregou o Coronel Antônio Pires de Campos, o filho, da
vigilância permanente do território habitado pelos índios. Nesse contexto, realizou-se em
1747 a bandeira de Pires de Campos contra os Kayapó meridionais, quando foi
acompanhado de 500 índios Bororo 19 . Famoso pelas “barbaridades espantosas e grande
mortandade” (Silva e Souza, 1849:447), o coronel recebeu dinheiro e o “hábito de Cristo”
como recompensa pelas expedições contra inúmeros grupos indígenas, morrendo flechado
em 1751.
Após a instalação da Capitania de Goiás em 1749, em pleno ciclo do ouro (1722-
1822), englobando os atuais estados de Goiás e Tocantins depois de ser desmembrada da
imensa Capitania de São Paulo, teve início a política de aldeamentos, caracterizada pelo
alojamento e catequização dos índios da região em aldeamentos auxiliados por prisões. Na
nova política indigenista formulada pelo Marquês de Pombal a partir de 1750, em especial
pelo Alvará de 1758, contrastava-se a filosofia segregacionista dos antigos aldeamentos
jesuítas da colônia ao propósito oficial de “integrar” e “assimilar” os índios à vida
civilizada. A prosperidade econômica dependeria de uma aliança com os índios, do
povoamento do território com os seus nativos, da miscigenação e da transformação dos

18
Ver Silva e Souza (1849), Aires de Casal (1945), Pizarro e Araújo (1948), Alencastre (1864), Brasil
(1961), Chaim (1974) e Palacin (1994).
19
Ver Silva e Souza (1849), Alencastre (1864), Brasil (1961), Chaim (1974).

115
novos cidadãos em útil mão de obra (Chaim, 1974). A concentração de índios em núcleos
populacionais controlados pelos colonizadores liberava grandes áreas para as frentes de
expansão e os aldeamentos, nas palavras de Carneiro da Cunha (1992c:144), “serviam de
infra-estrutura, fonte de abastecimento e reserva de mão-de-obra”. A legislação colonial
recomendava um tratamento “bondoso e pacífico” (Perrone-Moisés, 1992:122) aos índios
aldeados, considerados como homens livres, mas a violação da lei era constante e na
prática os índios eram regularmente submetidos a condições de servidão.
A literatura mostra que, na segunda metade do século 18, em Goiás, teve lugar uma
política que alternava entre o extermínio ou escravização dos índios hostis pelos
bandeirantes e o aldeamento dos menos resistentes 20 . Como lembra Karasch (1992:400),
“embora a política oficial de Lisboa proibisse a guerra ofensiva contra os índios e
recomendasse tratamento pacífico, os governadores de Goiás e os goianos resistiam aos
ataques dos índios com a força e organizavam expedições agressivas (...)”. Em Goiás, a
finalidade das bandeiras e dos aldeamentos era liberar as estradas e rios das hostilidades
indígenas para o comércio, inclusive de prisioneiros índios, a busca de novas minas de
ouro e a obtenção de mão-de-obra para a agricultura e a pecuária que começavam a surgir.
A navegação, entretanto, estava oficialmente proibida por ordem real desde 1730
(inicialmente no Rio Tocantins), como forma de se evitar a evasão de ouro em pó por
caminhos não controlados pelas autoridades (Alencastre, 1864).
Em seu estudo sobre os aldeamentos indígenas de toda a Capitania de Goiás na
segunda metade do século 18, Chaim (1974) mostra que nos anos 50 foram fundados os
aldeamentos São Francisco Xavier do Duro (ou Duro), São José do Duro (ou Formiga) e
São José de Mossâmedes com os índios Xacriabá e Akroá, entrando em declínio pouco
tempo depois (ver aldeamentos no Mapa n° 8). Os maus tratos a que foram submetidos os
índios nesses primeiros aldeamentos, sob o rigor de disciplina militar, deram origem a
mortandades, fugas e resistência ao trabalho forçado. Os jesuítas opuseram-se à autoridade
militar e apoiaram rebeliões indígenas, razão pela qual foram proibidos de administrar os
aldeamentos e expulsos da colônia pela carta régia de 1759 (ver Alencastre, 1864, Pizarro e
Araújo, 1948). Em 1770, José de Almeida Vasconcelos, depois conhecido como Barão de
Mossâmedes, foi nomeado governador de Goiás por influência do Marquês de Pombal. O
novo governador retomou com rigor as diretrizes pombalinas, reconstruindo nos anos que
se seguiram São José de Mossâmedes, próximo a Vila Boa, e investindo sistematicamente

20
Brasil (1961), Chaim (1974), Karasch (1992), Carneiro da Cunha (1992c), Palacin (1994), Ataídes (2001).

116
na atração pacífica dos índios para novos aldeamentos dirigidos por leigos. Imbuídos da
útil missão civilizadora, emissários do governo foram enviados aos lugares onde os índios
ainda eram hostis, fundando os aldeamentos de Nova Beira, D. Maria I, Pedro III ou
Carretão e Salinas 21 . Ao mesmo tempo, novas bandeiras foram estimuladas em razão da
decadência do ouro.
A infrutífera expedição originada no arraial de Traíras, comandada por José
Machado em 1774 (Silva e Sousa, 1849), “partiu para a margem do Araguaya em procura
dos célebres Martyrios; mas apenas chegou à ponta meridional da grande ilha, que
denominou-se Bananal, onde teve encontro com os carajás e javaez, receiando ir mais
adiante atravez de tão numerosas tribus, regressou para Villa Boa” (Alencastre, 1864:263).
Nas palavras de Brasil (1961:73), a bandeira trouxe “tão boas informações dos Carajás e
Javaés, que o Capitão-General resolveu enviar uma expedição para celebrar com os
mesmos um tratado de paz”. Assim, em junho de 1775, o governo local envia outra
bandeira à procura dos Araés e do ouro dos Martírios, mas com a missão também de
contatar os moradores da Ilha do Bananal (Silva e Souza, 1849, Alencastre, 1864). Na
condição de emissário oficial do Capitão-General de Goyazes e acompanhado por mais de
100 soldados, um padre e outras autoridades, o Alferes José Pinto da Fonseca faz penosa
viagem durante 24 dias até chegar à ponta meridional da ilha, onde tenta estabelecer
relações cordiais com os habitantes locais e assim liberar o Araguaia para a navegação,
apesar da proibição oficial. O alferes torna-se a primeira pessoa a produzir um relato
escrito sobre os Karajá e Javaé depois de visitar aldeias e dialogar com eles (Fonseca,
1867).
Sua carta oficial informa que os índios estavam traumatizados e assustados em
razão das experiências com a bandeira de Antônio Pires de Campos há mais de 20 anos
antes. Só depois de muita insistência e persuasão os Karajá aproximaram-se desconfiados
de Fonseca, que permaneceu instalado com seu grupo na margem direita do Araguaia,
onde o rio se bifurca para formar a Ilha do Bananal. Evitando a princípio que os forasteiros
conhecessem suas aldeias, instaladas em lugares escondidos, as negociações e trocas de
presentes foram feitas em uma praia do Araguaia por meio de uma intérprete Karajá que
havia sido capturada na bandeira de Pires de Campos. Na ocasião, Fonseca ouviu dos
próprios Karajá que o bandeirante paulista tratou-os com paz e amizade no início, mas logo
depois matou vários índios, aprisionou outros tantos, açoitou-os e conduziu-os

21
Ver Silva e Souza (1849), Cunha Mattos (1979), Aires de Casal (1945), Alencastre (1864) e Brasil (1961).

117
acorrentados pelas fazendas que passava, onde trocava os prisioneiros com os moradores
por gado e cavalos. Alguns índios fugiram e retornaram às aldeias para contar o
acontecido. Sabe-se também que Pires de Campos era oficialmente acompanhado por uma
“Companhia de Pedestres”, feita de “soldados do mato” (Chaim, 1974:76, 106) armados
basicamente com espadas, fato este salientado na mitologia Javaé 22 .
Em uma das reuniões na praia, Fonseca presenciou o encontro emocionado da
intérprete – que não era mais uma cativa – com seus parentes, que choraram e lamentaram
o ocorrido ao modo tradicional. A estratégia de pacificação do alferes também incluiu
sessões musicais que deixaram os índios fascinados. Na véspera do dia de Santa Ana, o
alferes finalmente foi levado a uma aldeia Karajá, depois de vários dias, batizando a ilha
como Ilha de Sant’Ana, o seu primeiro nome português. Os Javaé ficaram sabendo das
novidades pelos Karajá, com quem tinham relações próximas, e vieram ao encontro do
alferes, em busca de paz, em um grande número de canoas. No texto a seguir tem-se a
primeira referência escrita à palavra “Javaé”:

“(...) Sabendo a nação Javaê, que tem paz com os Carajás, o modo com que nós os
tínhamos tratado, e as utilidades que tinham tirado de nossa amizade, se determinaram
vir communicar-nos. (...). E acabados estes cumprimentos, embarcou-se o maioral
Carajá com o Javaê, conduzindo-o á minha tolda. Com este pratiquei o mesmo que
tinha praticado com o outro, e lendo-lhe uma cópia da carta de V.Ex., fez n’elle ainda
maior impressão, e perguntou se aquelle papel era Deus. Brindei-o com os mimos que
tinha reservado aos Carajás, desejando que a gloria de V.Ex. não parasse só n’esta
nação, podendo também attrahir a vontade das outras: ficaram os Javaês muito
satisfeitos, entregando o maioral a sua lança e penacho em penhor de sua amizade, e me
disse que estavam promptos para fazerem alliança conosco, pelas boas notícias que lhes
davam os Carajás.” (Fonseca, 1867:384-385, grifo do autor)

Depois que Fonseca e seus soldados espantaram os Xavante que pilhavam as roças
dos Karajá, tanto “Alve Nona” quanto “Acadibu-ani”, os respectivos “maiorais” dos
Karajá e Javaé, assistiram a uma missa e prestaram juramentos de fidelidade e vassalagem
ao rei de Portugal, ocasião em que o chefe Karajá pediu “ao grande pai dos brancos”
(Fonseca, 1867:388) para livrá-los dos Xavante (ver Chaim, 1974).
Fonseca (1867:387-388) visitou aldeias Karajá, uma delas com “mais de 2.000
almas”, e relatou que existiam seis aldeias Karajá e três aldeias Javaé, totalizando “9.000
almas”. A principal aldeia Karajá foi batizada de São Pedro do Sul. Segundo Alencastre

22
Ver o relato Kuikuro sobre as bandeiras de Pires Campos no Xingu em Franchetto (1992).

118
(1864:275), Fonseca visitou a “grande aldeia dos javaêz, a que o ouvidor Cabral pôz o
nome de Ponte de Lima”. As outras aldeias Karajá receberam o nome de Angeja (ou
Bananal), que se tornaria a mais freqüentada pelos negociantes, Seabra, ambas situadas
perto da extremidade meridional da ilha, Anadia, Lavradio e Lamaçaes, todas três nas
margens do Araguaia, mais ao norte; enquanto as outras duas aldeias Javaé foram
chamadas de Cunha e Mello, ambas situadas um pouco afastadas das margens do Rio
Javaés 23 . Ao fim de sua missão, o alferes trouxe 5 índios Karajá e Javaé a Vila Boa, onde
conheceram pessoalmente o governador Vasconcelos (Alencastre, 1864). Uma outra
expedição de 1774 (Cunha Mattos, 1979) ou 1775 (Aires de Casal, 1945:312) nomeou três
aldeias dos longínquos Xambioá: Lapa, Almeida e Semancelhe, mas logo os índios
“tornaram ao seu natural modo de viver”.
Alencastre (1864) relata que, empolgado com os resultados obtidos na Ilha do
Bananal, o governador de Goiás enviou no ano seguinte, em 1776, uma expedição de 135
pessoas ao Rio Javaés, por via fluvial, para fundar o presídio de São Pedro do Sul (ver
presídios no Mapa n° 8). Ao ser nomeado inspetor geral do presídio, o Ouvidor Antônio
José Cabral d’Almeida, que participara da bandeira de Fonseca no ano anterior, organizou
outra expedição, ainda no mesmo ano de 1776. Partindo desta vez por via terrestre, do
arraial de Traíras, com grande carga de alimentos, o ouvidor tinha a intenção de socorrer o
grupo anterior de algum contratempo. Antes de chegar ao seu destino, Cabral soube através
de carta do governador da morte do chefe Javaé que havia prestado juramento de
vassalagem ao rei. O governador recomendava que o ouvidor influísse na “eleição do
futuro cacique”, escolhendo “Abinaré-quê” para tal, o que teria ocorrido logo depois. Ao
chegar ao Rio Javaés, o ouvidor ficou “encantado pela perspectiva do lugar” e deu o nome
de Nova Beira ao novo aldeamento (Alencastre, 1864:276). Nova Beira era o único
aldeamento da região do Araguaia na época, tornando-se a sede do grande distrito de Nova
Beira, segundo o padre Silva e Souza (1849), que escreveu sobre a Capitania de Goiás em
1812 24 .
Ainda segundo Alencastre (1864:288), o governador José de Vasconcellos era um
fiel seguidor das diretrizes pombalinas e tratava os índios de Goiás “com a maior
brandura”. Assim, em 1778, o cacique “Abinaré-quê”, acompanhado de outros líderes
23
Ver Aires de Casal (1945), Cunha Mattos (1979), Spínola (1999).
24
Há controvérsias quanto a essa data. Segundo Aires de Casal (1945), o aldeamento e o presídio teriam sido
fundados no mesmo ano da expedição de Fonseca, em 1775. Baena (1848), por sua vez, cita o ano de 1774
como o de fundação de Nova Beira, enquanto Pizarro e Araújo (1948) fala de 1777 e Silva e Souza (1849) de
1778.

119
Javaé, visitou a capital Vila Boa para “pedir-lhe um sacerdote” junto ao presídio, sendo
logo atendido. No que se refere aos índios aldeados, o próprio governador escreve em
relatório de 1778 (apud Alencastre, 1864:309) sobre as “nações dos carajás, javaez e
xambioaz”, que compreendiam então “o immenso valor de oito para dez mil almas”: “(...) a
experiência tem mostrado não serem feras indômitas, mas sim homens hábeis para toda a
educação, estando em própria idade”. O relatório relata as visitas freqüentes dos índios ao
presídio São Pedro do Sul com bens para trocar “por facas, tesouras, e contas e todas as
espécies de missangas (...)”.
O aldeamento e o presídio militar durariam poucos anos, uma vez que em 1780 o
governador resolve transferir os 800 Javaé e Karajá que ali habitavam para o aldeamento
São José de Mossâmedes, o maior e mais importante da capitania. Mossâmedes foi re-
fundado em 1775 como um aldeamento modelo, dotado de grande infra-estrutura e para
onde os índios seriam levados por meio de convencimento, chegando a abrigar 8.000
índios de diversas etnias em fins do século 18, como os Akroá, Xavante, Karajá, Javaé,
Karijó e Naudez 25 . A transferência dos Karajá e Javaé para Mossâmedes levou à extinção
de Nova Beira e de São Pedro do Sul, dificultando a navegação pelo Araguaia, o que já era
uma empresa complicada em razão dos ataques indígenas, dos altos custos, da imensa
distância em relação a Belém e das cachoeiras a jusante (ver Palacin, 1994).
A política do governador José de Vasconcelos de relações pacíficas com os índios
não foi mantida pelos governos que o sucederam após 1778 (Alencastre, 1864). O militar
José da Cunha Mattos (1979:43), que escreveu a “Corografia histórica da Província de
Goiás” em 1824, relata que o aldeamento Pedro III ou Carretão, ao norte de Goiás Velho,
foi fundado em 1786 “para repelir os ataques contínuos dos bárbaros Chavantes e Javaés”,
dando a entender que as relações de paz estabelecidas em 1775 com os últimos não mais
existiam. Os índios ali aldeados e “subjugados” alcançavam 3.500 pessoas e grande parte
morreu de sarampo. Em 1788, foi fundado o aldeamento Salinas na porção meridional do
Araguaia, na região do Rio Crixás-Mirim, com os sobreviventes de Carretão. Segundo
Cunha Mattos (1979:44), o lugar foi fundado “para habitação dos índios Chavantes e
Javaés que se separaram da aldeia de Pedro III, os quais se acham extremamente atenuados
e reduzidos hoje ao número de 76, sem indústria, nem civilização” 26 .

25
Ver Silva e Souza (1849), Aires de Casal (1945), Alencastre (1864), Brasil (1961), Chaim (1974).
26
Ver Silva e Souza (1849), Pohl (1951) e Castelnau (1949).

120
O primeiro encontro significativo com os brancos registrado na mitologia foi o
ataque dos bandeirantes, quando vários povos foram exterminados. O aldeamento de Nova
Beira e o presídio não são mencionados, talvez por sua curta duração, mas pude ouvir da
narradora dos mitos, após a narrativa sobre o ataque dos bandeirantes aos povos da ilha,
baseada no que seu avô lhe dissera, que índios Javaé e Kyrysatyhy (os Xavante) teriam sido
levados para um lugar chamado “Janirataba”, próximo à cidade de Goiás Velho, onde os
índios organizaram-se e chegaram a realizar o ritual Iweruhuky. Em Janirataba eles foram
escravizados, as mulheres estupradas, e depois o local extinguiu-se. É bastante provável
que Janirataba seja um outro nome do aldeamento de São José de Mossâmedes 27 . Chaim
(1974:122), referindo-se a Mossâmedes, ainda no fim do século 18, relata que “anos
depois, extinguindo-se os Javaé e Karajá, este aldeamento esvaziou-se”, sendo reerguido
depois com a transferência de índios Kayapó, que teriam fugido no início do século 19. Em
seus escritos de 1812 sobre Mossâmedes, Silva e Souza (1849:494-496) menciona os
“Acroás, Javaés e Carajás vindos do Duro, que já se extinguiram”. Saint-Hilaire
(1944:118), que visitou os Kayapó de Mossâmedes em 1819, registrou o desaparecimento
dos “Carajás e os Javaês” que lá habitaram.
Chaim (1974:150-151) conclui que vários motivos levaram a um fracasso
generalizado dos aldeamentos goianos no fim do século 18, de modo que no século
seguinte “perduram apenas alguns em estado de decadência”. Entre as principais razões,
tem-se a má administração, os maus tratos infligidos aos índios a despeito da legislação em
contrário, o que resultou em fugas e rebeliões, e a atuação deficiente do clérigo secular,
cuja “falta de gabarito moral e religioso” nas atividades de catequese e direção dos
aldeamentos contrastavam notavelmente com a atuação dos primeiros missionários
jesuítas. No ano de 1824, Cunha Mattos (1979:158-159) informava que “o rio Araguaia
(...) está infestado de índios Carajás” e lamentava que as aldeias Karajá e Javaé nomeadas
pelas autoridades locais em 1775, algumas tendo servido de fonte de mantimentos para os
navegantes, já quase não eram mais freqüentadas pelos moradores da província e que “tudo
cahiu em desprezo”.
O declínio dos aldeamentos onde viviam os Javaé, especificamente, é demonstrado
no livro recente que reúne a documentação histórica sobre os povos indígenas encontrada
nos principais arquivos de Goiás (Ataídes, 2001). Pode-se ver a correspondência dirigida a

27
Segundo comunicação pessoal do lingüista Eduardo Rivail Ribeiro, estudioso da língua Karajá, Janirataba
provavelmente significaria “aldeia de Jandira”, palavra da Língua Geral de origem Tupi da qual os Karajá e
Javaé incorporaram vários vocábulos.

121
Cunha Mattos em 1823-1824 com a relação dos habitantes remanescentes do aldeamento
Pedro III ou Carretão, no qual moravam apenas 9 índios Javaé, em sua maioria mulheres 28 .
No mesmo livro, tem-se o registro feito pelo primeiro jornal goiano, em 1830, sobre a
decadência de alguns aldeamentos, incluindo a “Aldeia da Piedade”, de “índios Javaés”,
reduzidos a “poucos casais” 29 . Porto da Piedade é mencionado por Silva e Souza
(1849:471) em 1812 e situava-se ao sul da Ilha do Bananal, em lugar alagadiço, entre a foz
dos rios Peixes e Crixás-Açu (Couto de Magalhães, 1957, Aureli, 1962b). É notável,
entretanto, que até hoje os moradores de Carretão, conhecidos como Tapuios, reconhecem-
se como descendentes dos Javaé, Xavante e Kayapó que para lá foram levados em ocasiões
diversas (Almeida, 2003).
Com o término do ciclo do ouro no início do século 19, a antiga Capitania de Goiás
iniciou um longo período de acentuada decadência econômica e populacional,
caracterizado pela extinção de vários núcleos urbanos, pelo quase abandono da navegação
incipiente no Araguaia e por um processo de “ruralização”, de “dispersão atomizada da
população pelos campos” (Palacin, 1994:138). Tal estado de miséria e ruínas foi
constatado pessoalmente tanto por João Emanuel Pohl (1951), médico e naturalista que
viajou pelo interior da Capitania de Goiás em 1819, chegando a visitar aldeias indígenas
setentrionais do Rio Tocantins, quanto por Auguste de Saint-Hilaire (1944:303), naturalista
francês que viajou pelo Brasil e esteve na porção meridional da capitania no mesmo ano,
constatando que “a província de Goiás era uma das que (...) mais índios ainda possuía”. O
esvaziamento populacional de brancos e negros foi mais intenso no norte do estado, de
modo que os Javaé continuaram vivendo em suas aldeias do interior e arredores da Ilha do
Bananal.
O fim do aldeamento Nova Beira e do presídio de São Pedro do Sul em 1780 teve
como resultado imediato uma dificuldade maior de navegação na região do Araguaia. Em
razão dos ataques indígenas, o Rio Javaés – então conhecido como Furo do Bananal ou
braço menor – foi mais utilizado que o Araguaia propriamente dito no fim do século 18 e
primeira metade do século 19. Mesmo assim, os Javaé foram preservados de um contato
regular com a sociedade nacional por cerca de um século, até as primeiras décadas do
século 20, o que Toral (1992:42) atribui a uma atitude “isolacionista” do grupo. Desde o
fim do século 18, houve por parte dos governos locais várias tentativas de fomentar o

28
Correspondência dirigida ao Comandante das Armas Raimundo José da Cunha Mattos, 1823-1824 (apud
Ataídes, 2001:173-174).
29
Jornal A Matutina Meyapontense, n° 32, de 12.6.1830 (apud Ataídes, 2001:152).

122
comércio fluvial em direção ao Pará, cujo principal obstáculo eram as hostilidades dos
diversos grupos indígenas do Araguaia e Tocantins. Em 1792, a navegação entre Goiás e
Pará foi liberada oficialmente, após grande insistência dos governadores locais e depois de
mais de 50 anos de proibição (Alencastre, 1864, Brasil, 1961). Como conseqüência, o
governo do Pará, contando com o patrocínio de três negociantes locais, organizou uma
expedição de reconhecimento da navegabilidade entre as capitais de Goiás e do Pará, com
vistas ao estabelecimento de relações de comércio.
Segundo o informe do Tenente Coronel Antônio Baena (1848) ao presidente do
Pará, tornou-se célebre, então, a expedição de Tomaz de Sousa Villa Real. Este partiu de
Belém do Pará para a cidade de Goiás em 1791, retornando em 1793, após ter navegado
pelo Furo do Bananal, nome originado de uma fazenda da região. Villa Real registrou a
presença de 19 ilhas entre a foz do Araguaia e a Ilha do Bananal, informando que
encontrou habitações Karajá a partir da décima nona ilha, no sentido norte-sul. A décima
ilha era chamada de “Tanaxiúe” (Baena, 1848:98), nome derivado do herói mitológico dos
Karajá (Kanyxiwè) e Javaé (Tanyxiwè). Paralelamente, no mesmo ano de 1791, o
governador do Pará conseguiu levar alguns índios Karajá à cidade de Belém, “para saber
d’elles se o rio era empecilhado de cachoeiras”, obtendo várias informações do chefe
“Auribedú”, que foi escoltado à aldeia de origem no ano seguinte (Baena, 1848:89). A
expedição de Villa Real teve sucesso, mas não encorajava outros navegantes pelo fato de
não haver “uma única povoação” em toda a imensa extensão do Araguaia (Alencastre,
1864:339). Brasil (1961) registra as grandes expedições comerciais que se seguiram, de
governos diferentes, em 1796, 1800, três entre 1804 e 1809, o surgimento de companhias
de navegação nos anos seguintes e o fretamento de barcos a particulares para o comércio
fluvial (ver Silva e Souza, 1849).
No início do século 19, a política indigenista em Goiás deixou de ser influenciada
pela legislação protecionista dos governos portugueses, sob inspiração do Marquês de
Pombal, e passou a ser marcada por uma atuação abertamente ofensiva aos índios por parte
dos governantes e colonos goianos, legitimada pelo Alvará de 1811, por exemplo, que
defendia a sumária extinção dos índios (Chaim, 1974:97 e Karasch, 1992). Uma ordem
régia de 1809 isentava de impostos os que morassem às margens do Araguaia e Tocantins,
dando a eles o privilégio de escravizar os índios que aprisionassem (Silva e Souza, 1849,
Brasil, 1961). Com a diminuição de recursos para a compra de escravos de origem
africana, o objetivo explícito dos colonizadores era utilizar a mão de obra indígena tanto na

123
agricultura incipiente, carente de recursos humanos, como na condição de remadores 30 .
Saint-Hilaire (1944:304) menciona o “odioso” comércio de índios entre Goiás e Pará em
1819. Estimula-se então a criação de novos aldeamentos e presídios no interior de Goiás,
percebidos como núcleos de povoamento “civilizadores”, e às margens do Tocantins e
Araguaia, com vistas à navegação, mas agora em um contexto de guerra aberta, expedições
punitivas e escravização 31 .
Assim, no que se refere ao Araguaia, em 1812 foi fundado o presídio de Santa
Maria – “no meio do grande deserto despovoado” (Silva e Souza, 1849:470) – pelo
Capitão-General Delgado de Castilho, um pouco ao norte da Ilha do Bananal (ver presídios
no Mapa n° 8). O padre Silva e Souza (1849) menciona, na mesma época, a existência de
sete aldeias dos “Carajás e Carajaís” no Araguaia. O presídio seria destruído por um
ataque devastador em 1813, comandado por uma aliança entre os Karajá, Xavante e
Xerente 32 . Segundo o Capitão Francisco de P. Ribeiro (1848:37), que fez em 1815 uma
viagem oficial a fim de estabelecer as fronteiras entre Maranhão e Goiás, os “Carajás e
Apinagés” eram mais pacíficos antes, mas as violências que “cruel e injustamente lhes
foram feitas nas suas passagens pelas guarnições dos presídios de S. João das Duas Barras
e de Santa Maria de Araguaia, os tornaram irreconciliáveis inimigos nossos, e fizeram com
que este ultimo presídio fosse há muito pouco triste victima do seu resentimento”.
Em sua viagem de 1819 ao norte de Goiás, Pohl (1951:181) ouve dos habitantes
locais que, em razão da destruição do presídio, “ninguém ousa navegar o Araguaia” pelo
braço ocidental, pois “não permitem as tribos selvagens que seja navegado”. O autor
reconhece, entretanto, que “aqui também os brancos deram causa a essas crueldades”. Os
“Carajás” são descritos como “tribo muito numerosa” e a respeito dos “Javaés”, Pohl diz,
referindo-se aos aldeamentos: “já estiveram na aldeia real e fugiram, tornando-se os mais
figadais inimigos dos brancos. Vivem na Ilha do Bananal”.
Cunha Mattos (1836, 1979) escreve em 1824 que os navegantes da época preferiam
a descida pelo Furo do Bananal pelo fato deste ser mais abundante em caça e pesca, por
encurtar o caminho e porque assim evitavam encontrar os Karajá e os outros povos
ribeirinhos que impediam a passagem das embarcações pelo braço maior. O autor

30
O “Ofício dirigido ao Ministro e Secretário do Estado dos Negócios do Império, em 11.3. 1825” (apud
Ataídes, 2001:373), estimulava a catequização para transformar os índios do Araguaia e Tocantins em
“remeiros”.
31
Ver Carneiro da Cunha (1992c) e ofícios (manuscritos) do Procurador da Fazenda de Goiás de 23.4.1811
(apud Ataídes, 2001:237-238).
32
Ver Cunha Mattos (1979), Ehrenreich (1948), Brasil (1961).

124
menciona em suas correspondências do mesmo ano os brindes ofertados aos Karajá e
Tapirapé na povoação de Salinas com o objetivo de “conservar-mos franca a comunicação
com o Pará pelo sobredito Araguaya” 33 ; e propõe que sejam estabelecidos “comboios
regulares e sujeitos às leis policiais, para resistirem aos insultos dos bárbaros índios
Carajás, Carajaís e Javaés dominantes no furo do Bananal ou ilha de S. Ana, e nas duas
margens do Araguaia até o lugar do extinto presídio de Santa Maria” (Cunha Mattos,
1979:74-75). Documentos oficiais de 1836 e 1838 mencionam as visitas amistosas e
periódicas que os Karajá faziam a Salinas em busca de ferramentas 34 .
A política indigenista oficial da época oscilava, entretanto, como mostra Carneiro
da Cunha (1992c), de modo que em 1831 uma lei revogou a autorização de confronto
direto com os índios de fronteira. Decretos de 1843, 1845 35 e 1857 (ver Karasch, 1992)
incentivaram a fundação de novos aldeamentos ou missões para a catequese e assimilação
dos índios, embora na prática a violência contra eles não cessasse. Em conseqüência, como
será visto adiante, o governo recorreu novamente aos missionários, revogando a imposição
da legislação pombalina de diretores leigos nos aldeamentos. As novas missões contariam
a partir de então com a direção de capuchinhos italianos.
Em 1845, a navegação pelo grande rio estava há tempos abandonada. No relato
sobre a descida que fez pelo Araguaia em 1844, o naturalista francês Francis Castelnau
(1949:275) escreve ingenuamente que o braço esquerdo da Ilha do Bananal, ou seja, o Rio
Araguaia, “nunca tinha ainda sido explorado”. Castelnau desceu o Araguaia pelo braço
menor, que era ainda “a via utilizada pelo comércio” em razão do temor às possíveis
hostilidades dos Karajá, cujo número era “muito grande”. Procurou as ruínas do
aldeamento Nova Beira em vão e não avistou os Javaé, que “vivem nas terras do interior”
(Castelnau, 1949: 304) e cuja aldeia estaria situada “dois dias acima da foz” de um grande
rio que desembocava no braço menor. Mas o naturalista teve a rara oportunidade de visitar
grandes aldeias Xambioá no baixo Araguaia, uma delas com 1.500 habitantes, cujos
habitantes evitavam estranhos e “tremiam” de medo ao avistar armas de fogo (Castelnau,
1949:312). Foi também o primeiro a descrever as máscaras secretas destes índios
guardadas na Casa dos Homens, das quais tentou obter um exemplar.

33
Correspondências diversas do Governador José da Cunha Mattos, 1824 (apud Ataídes, 2001:199-200).
34
Ver manuscritos dirigidos ao Inspetor da Tesouraria da Província de Goiás, em 28.5. 1836 e 5.11.1836, e
Correio Oficial de Goyaz, de 4.8.1838 (apud Ataídes, 2001:200-201).
35
O “Regulamento das Missões”, o “único documento indigenista geral do Império”, nas palavras de
Carneiro da Cunha (1992c:139).

125
O governo de Goiás tentou revitalizar o comércio fluvial com a capital do Pará,
fundando em 1845 uma sociedade de navegação, dirigida pelo Juiz e Deputado Rufino
Theotônio Segurado (Brasil, 1961). Em razão de sua experiência descendo o Rio
Tocantins, Segurado foi convidado pelo Presidente da Província de Goiás para realizar
novo levantamento das condições de navegação do Araguaia (Ramalho, 1996b). No relato
da difícil viagem que fez subindo o Araguaia em 1847 e 1848, entre a sua foz e a do Rio
Vermelho, Segurado (1848) descreve tanto o pavor que seus companheiros tinham de
encontrar os Karajá na Ilha do Bananal, quanto o temor dos Karajá que o receberam em
suas aldeias, embora fossem receptivos aos brindes ofertados. No baixo Araguaia, o juiz
encontrou vários Xambioá, com quem estabeleceu trocas amigáveis, chegando a visitar
uma de suas aldeias. Os Xambioá portavam armas de fogo e, frente às indagações de
Segurado, posicionaram-se contra a instalação de novos presídios na região devido às
crueldades sofridas em Santa Maria. Na altura da Ilha do Bananal, o juiz registrou a
existência de 9 aldeias Karajá, em algumas das quais teve a oportunidade de dormir e de se
alimentar por algumas vezes.
Em 1848, foi instituída outra sociedade de navegação pelo Vice-Presidente da
Província, durando poucos anos, enquanto a Corte Imperial enviou o Capitão de
Engenheiros João B. Moraes Anta para levantar a carta hidrográfica do Araguaia e
Tocantins (Brasil, 1961). Mas em 1854, o curso do Araguaia era ainda considerado
“desconhecido” em sua maior parte pelos relatórios oficiais (Cruz Machado, 1997a:32). O
estímulo à navegação comercial também incluiu retomar a política de aldeamentos em
Goiás.
No que diz respeito aos índios do Araguaia, em 1845, em cumprimento ao
Regulamento das Missões, o Presidente da Província (Ramalho, 1996a) determinou a
fundação do aldeamento São Joaquim do Jamimbú pelo missionário capuchinho Frei
Segismundo de Taggia, com índios Karajá e Xavante 36 (ver aldeamentos no Mapa n° 8). O
aldeamento situava-se próximo da foz do Rio Crixás-Açu, em região inundável, a seis
quilômetros de Salinas, de modo que pouco tempo depois foi iniciada a construção do
aldeamento São José do Araguaia, acima da foz do Rio Crixás-Açu 37 . O Presidente da
Província Ignácio Ramalho (1996a) argumentou na época sobre a necessidade, em prol da
36
Ver Alencastre (1998a), Pereira (1999) e o Correio Oficial de Goyaz, n° 485, de 16.8.1873 (apud Ataídes,
2001:213).
37
Ver Alencastre (1998a), o “Ofício do Palácio do Governo de Goiás, 12 de novembro de 1863, enviado ao
Inspetor da Tesouraria da Fazenda” e correspondência da Repartição Especial das Terras Públicas, 1858-
1860 (apud Ataídes, 2001:212).

126
navegação, de se fundar outros aldeamentos no antigo presídio de Santa Maria e no braço
direito do Araguaia, no lugar então denominado Furo do Bananal, “onde existem índios
incitados pela pesca e de fácil catequese (...)” 38 , referindo-se provavelmente aos Javaé, o
que acabou não ocorrendo. Um ofício da presidência da província, em 1855, autoriza
pagamento aos missionários capuchinhos para despesas com “viagem e visitas das aldeias
além do Araguaia em território dos Javaés” 39 . No mesmo ano, um relatório oficial relata a
expedição fluvial que o missionário Taggia realizou ao Rio das Mortes no ano anterior,
acompanhado de índios Karajá e Xavante, conseguindo manter contato com uma distante
aldeia Xavante (Cruz Machado, 1997b; Spínola, 2001a).
Uma ordem imperial de 29.1.1849 recomendava a fundação de presídios militares
para auxiliar a navegação, servindo para o suprimento de alimentos, conserto de barcos e
socorro à tripulação (Spínola, 2001a, Brasil, 1961). Era comum instalar os presídios,
“praças-fortes com destacamentos militares”, ao lado dos aldeamentos ou missões a fim de
combater os índios resistentes e transformar os aldeados em reserva de mão-de-obra
(Carneiro da Cunha, 1992c:137). Mas devido à ignorância quanto à topografia local,
muitas vezes eram escolhidos lugares inadequados, em regiões alagadiças, fazendo-se
necessária a transferência dos presídios para outros sítios (Spínola, 2001a). Para estimular
o povoamento junto aos presídios do Araguaia, no mesmo ano o governador de Goiás
concedeu uma série de benefícios aos possíveis moradores, incluindo a isenção de
impostos por 20 anos, o que estimulou a transferência de muitas famílias para a região da
futura Santa Leopoldina 40 . Assim, na administração de Olímpio Machado (1996a, 1996b),
o Engenheiro Moraes Anta construiu em 1850 os presídios de Santa Leopoldina, no Porto
de Manoel Pinto, nas proximidades da foz do Rio Vermelho, e Santa Isabel do Araguaia,
na região meridional da Ilha do Bananal, o único na grande ilha (ver Silva Gomes, 1996,
Moraes Jardim, 2001).
O presídio de Santa Isabel era visitado “por quase todos os Chefes das tribus
Carajás”, segundo Silva Gomes (1996:51), Presidente da Província, que também relatou a
transferência de 34 índios Karajá de São Joaquim de Jamimbú para as vizinhanças de Santa
Isabel. Em 1851, por causa das enchentes, o presídio de Santa Isabel foi transferido para

38
Correspondência do Presidente da Província ao Ministério dos Negócios do Império, 1845-1848 (apud
Ataídes, 2001:167).
39
Ofício do Palácio da Presidência de Goiás para o Inspetor da Tesouraria da Fazenda em 14.6.1855 (apud
Ataídes, 2001:207-208).
40
Ver Olímpio Machado (1996a, 1996b) e Correio Oficial de Goyaz n° 5, de 31.10.1849 (apud Ataídes,
2001:240).

127
um lugar mais alto, na margem esquerda do Araguaia, a cerca de 15 quilômetros abaixo da
foz do Rio das Mortes (Couto de Magalhães, 1998; Moraes Jardim, 2001). O corpo militar
de Santa Leopoldina e Santa Isabel foi transferido para o Rio Tocantins em 1853, tendo
como conseqüência a desativação dos presídios 41 . O relatório oficial de 1855 (Cruz
Machado, 1997a:34) descreve a existência de 14 aldeias conhecidas nas margens do
Araguaia: “7 de Carajás, 4 de Chambioás, e 3 de Carajahys”. O presídio de Leopoldina
seria transferido definitivamente para junto da foz do Rio Vermelho em 1856, tornando-se
depois a atual cidade de Aruanã (Alencastre, 1998a; Spínola, 2001a). O presídio de Monte
Alegre, que foi fundado em 1857 abaixo da foz do Rio Crixás-Açú, alguns quilômetros a
leste da margem direita do Araguaia, não durou muito por ter sido instalado em lugar
inundável e distante das margens do Araguaia (Alencastre, 1998b; Couto de Magalhães,
1998). Em 1871, o Inspetor Geral dos Presídios recomendava ao Presidente da Província a
revitalização do estratégico presídio de Santa Isabel junto aos “mansos” Karajá, o que
acabou não ocorrendo (Paes Lemes, 1871:3 apud Cícero de Assis, 1999a) 42 .
Em alguns relatórios de presidentes da Província da época (Cruz Machado,
1997b:34) 43 , há menção a visitas que os Karajá e Xambioá, de “índole pacífica” e
“obsequiosos”, faziam aos presídios e à Cidade de Goiás em busca de mercadorias, como
roupas e ferramentas. Ou então há referência à “hospitalidade” dos Karajá, “afáveis para
com os navegantes” e habituados às trocas com os estrangeiros (Alencastre, 1998b:47).
Mas as relações dos Karajá e Xambioá com os colonizadores, muitas vezes retratadas
como de trocas pacíficas, continuavam marcadas, também, pelos ataques dos indígenas aos
invasores do seu antigo território.
O presídio de Santa Maria, destruído por uma aliança indígena em 1813, sofreu
infrutíferas tentativas de reconstrução em 1852 e 1859, desta vez na margem ocidental do
Araguaia, um pouco mais ao sul, quando os “Carajás” e “Carajais” incendiaram as novas
construções e expulsaram o capuchinho italiano Frei Francisco Vitto e seus acompanhantes
(Alencastre, 1998a:4). Frei Vitto visitou 15 aldeias dos “Carajá” e “Carajahys” em 1852
(Alencastre, 1998b). Coudreau (1897) relata que a Ilha da Mortandade, no Araguaia, tem
seu nome originado de um massacre dos Karajá pelos Kayapó em 1859, nas imediações da

41
Ver Spínola (2001a), Couto de Magalhães (1957), Brasil (1961).
42
O antigo Presídio de Santa Isabel do Araguaia, de curta duração, foi construído a cerca de 15 km ao norte
da foz do Rio das Mortes, em local próximo à atual São Félix do Araguaia. Atualmente, Santa Isabel do
Morro é o nome Português da aldeia Karajá Hãwalò, situada na margem direita do Araguaia, cerca de 3 ou 4
km ao norte de São Félix do Araguaia.
43
Ver Ramalho (1996b), Fleury (1996).

128
nova Santa Maria. O presídio, localizado em posição considerada estratégica (ver Mapa n°
8), só seria restaurado definitivamente pelo historiador e Presidente da Província José M.
P. de Alencastre (1998a, 1998b) em 1861, onde hoje está a cidade de Araguacema (TO),
próximo a uma aldeia Kayapó. O presídio foi atacado novamente em 1862, durante três
dias, desta vez por cerca de 800 Karajá, Kayapó e Xambioá reunidos, que, no entanto,
foram repelidos (Gomes de Siqueira, 1998). Em 1867, uma canoa com militares de Santa
Maria foi atacada pelos Karajá, que tinham reputação de “mansos” em comparação aos
Kayapó, ocasião em que mataram alguns membros da tripulação e raptaram uma mulher
(Coudreau, 1897:138).
Santa Maria, que tinha 690 habitantes em 1871 (Paes Lemes, 1871:3 apud Cícero
de Assis, 1999a), estava situada “no centro de tribus indígenas” (Spínola, 2001a:33), no
fim da parte calma do Rio Araguaia, para quem desce o Araguaia, pois logo a seguir
começam as cachoeiras e travessões de pedras que tornam perigosa a navegação e marcam
a transição entre o território Karajá e o Xambioá. O povoado tinha ligação direta, via
terrestre, com as cidades do Rio Tocantins, de onde recebia mercadorias, e ao seu redor
expandiam-se as frentes agropecuárias vindas de Goiás. Há registros de ameaças de
ataques dos índios ao presídio de Santa Maria em 1873 e 1874 (Cícero de Assis, 1999d) 44 ,
quando ainda eram comprados como escravos 45 , e em 1875, quando o missionário Padre
Sabino teve que usar a força para se defender dos Karajá (Coudreau, 1897). Em 1882, um
relatório oficial (Rodrigues de Moraes, 2001:2) informa que os Kayapó atacaram uma
aldeia Karajá situada em uma ilha “fronteira ao presídio de Santa Maria do Araguaya”,
ocasião em que morreram 15 índios Karajá.
Na “Viagem ao Araguaia” que Couto de Magalhães (1957) realizou em 1863, como
Presidente da Província de Goiás, ele menciona o aldeamento Estiva, próximo a Salinas,
sob direção de Frei Segismundo de Taggia, com 200 Xavante, Karajá e Canoeiro. No
mesmo ano, atendendo às solicitações do missionário, Couto de Magalhães transferiu os
habitantes de Estiva, situado em lugar interiorano e inóspito, e de São Joaquim do
Jamimbú para São José do Araguaia (atual São José dos Bandeirantes) 46 . No ano seguinte,
obedecendo ao Aviso Imperial de 29.3.64, seriam construídos nas margens do Araguaia os
44
Ver também Correio Oficial de Goyaz, n° 484, de 9.8.1873, e Correio Oficial de Goyaz n° 36, de
15.8.1874 (apud Ataídes, 2001:292-293).
45
Correspondência (manuscrito) da presidência para os presídios, 1864-1872, p.118 (apud Ataídes,
2001:291-292).
46
Ver Spínola (2001a), Karasch (1992), correspondência da Repartição das Terras Públicas, 1858-1860
(apud Ataídes, 2001:212), e ofícios da Diretoria das Rendas Provinciais ao Governo, 1866-1870 (apud
Ataídes, 2001:309-310).

129
presídios de São José do Araguaia, junto ao aldeamento de mesmo nome, e de São José dos
Martírios, o mais setentrional e inóspito, que não durou muito tempo 47 . Ainda em 1864, foi
fundado o presídio de Jurupensem, às margens do Rio Vermelho, o mais próximo da
Cidade de Goiás, como sede de construções de botes (Pereira, 1999) 48 .
O aldeamento Xambioá, localizado próximo a estes índios, no baixo Araguaia, em
trecho de difícil navegação, seria fundado em 1872 por Frei Savino de Rimini, sendo
referido então como o mais distante da população branca (Cícero de Assis, 1999c; Spínola,
2001a). No mesmo ano, foi restabelecido o presídio de São José dos Martírios em local um
pouco mais ao sul do anterior. Um relatório do Inspetor Geral dos Presídios em Goiás, de
1873 (apud Cícero de Assis, 1999c), informa que o presídio foi fundado pelo Capitão
Joaquim Alves de Oliveira depois de muitas dificuldades para chegar à região. E que o
capitão encontrou seis aldeias de índios depois dos travessões de pedra existentes no rio,
abaixo de Santa Maria, referindo-se provavelmente aos Xambioá, com os quais não
conseguiu manter contato. Em 1874, os Xambioá atacaram e mataram, em ocasiões
diversas, os soldados de São José dos Martírios que estavam em viagem de barco para
Santa Maria; os soldados que faziam a escolta de um militar em viagem; e os soldados que
compunham a pequena guarnição do Presídio de São José dos Martírios, o que resultou no
envio de reforços militares ao presídio (Cícero de Assis, 1999b, 1999e, 1999f). Em 1882, o
presídio seria transferido de lugar mais uma vez (Leite Moraes, 2001).
No relatório que fez em 1875 sobre as condições de navegabilidade dos rios
Araguaia e Tocantins, encomendado pelo Ministério da Agricultura, o Major Antônio
Florêncio P. do Lago (1931) listou as colônias militares que encontrou no Araguaia, no
sentido norte/sul: São João do Araguaia (ou São João das Duas Barras), na foz do
Araguaia, São José dos Martírios, Xambioá, Santa Maria, São José, Leopoldina e Itacayú,
no alto Araguaia. O Major Lago (1931:105) deparou-se com índios “de boa e obediente”
índole em sua viagem exploratória, muitas vezes “alugados” por dois ou três anos em troca
de uma espingarda, e sugeriu que fossem transformados em colonos para que o governo
aproveitasse a fertilidade das terras da região.
No vale do Araguaia havia, então, um grande contraste entre o tamanho da
população indígena, em número muito maior, apesar de séculos de relações violentas com
os colonizadores, e a reduzida população de não-índios, cujas tímidas frentes agropecuárias

47
Ver correspondência da presidência da Província de Goiás ao Ministério da Guerra, 1867-1872 (apud
Ataídes, 2001:311), e Brasil (1961).
48
Ver Correio Oficial de Goyaz n° 125, de 15.3.1866 (apud Ataídes, 2001:257).

130
utilizavam-se dos presídios e aldeamentos como pontos de partida para as regiões
adjacentes. No que se refere apenas aos Karajá, Javaé e Xambioá, em 1860, o Presidente
da Província da época (apud Alencastre, 1998a:27) estimava a “numerosa família Carajá,
que se subdivide com as denominações de Carajás, Carajahys, Javahés, Chambiouás e
outras”, em mais de dez mil índios. Um outro relatório oficial de 1862 informa a existência
de 4 aldeias Karajá nas margens do Araguaia, ao norte da Ilha do Bananal, e 16 ou 18
aldeias na Ilha do Bananal, além das aldeias Javaé “não longe do braço pequeno ou furo do
bananal” 49 . Ainda segundo o mesmo relatório, os Karajá mantinham relações comerciais
com as povoações vizinhas e trabalhavam como remeiros nos serviços de navegação.
Em seu famoso livro de 1876, “O Selvagem”, o General Couto de Magalhães
(1975:79) escreve que os “Chambioás com os Carajás, Carajaís e Javaés formam uma só
nação, com sessenta ou oitenta aldeias espalhadas à margem do Rio Araguaia, desde o furo
do Bananal até às Intaipabas 50 (...), e com uma população de cerca de sete a oito mil
indivíduos”. O Ministro da Agricultura relatava, em 1877, que nos “desertos do Araguaia”
havia 4 mil índios catequizados nos presídios e aldeamentos remanescentes, enquanto a
população de não-índios da imensa região alcançava apenas 3.170 pessoas, distribuídas em
92 fazendas (apud Karasch, 1992:406). Spínola (1999:33-44) lastimava em relatório oficial
de junho de 1879 que “a grande ilha do Bananal, que já foi antigamente povoada, esteja
somente occupada por índios bravios”. Em outro relatório do mesmo ano, Spínola lamenta
o abandono dos aldeamentos e o retorno dos índios ao “gentilismo”, como no caso dos
“selvagens da Ilha do Bananal” 51 .
Nas décadas de 70 e 80 do século 19, os relatórios das autoridades locais fornecem
os primeiros registros de aldeias permanentes Karajá, que não se confundem com os
aldeamentos oficiais, ao sul da Ilha do Bananal, indicando um movimento de expansão
meridional que seria consolidado nos anos seguintes. Os Karajá começaram a se fixar em
lugares de moradia permanente na região que sempre havia sido usada até então para a
instalação de acampamentos nas praias de verão e como território de pesca. Cícero de
Assis (1999e:38) mencionou em 1874 a existência de aldeias Karajá, “volantes em suas
residências”, entre a foz do Rio Crixás e a ponta sul da ilha. Spínola (2001a), pouco tempo
depois, descreve que “os Carajás que, durante a secca, aldeão-se em praia fronteira a S.

49
“Relatório da Repartição dos Negócios da Agricultura, Commércio e Obras Públicas” (1862:36).
50
Nome antigo das corredeiras ou travessões de pedra no baixo Araguaia que dificultam a navegação.
51
Ver “Catequese”, pág. 3, informe anexo ao relatório de Spínola (2001a), e Correio Oficial de Goyaz, n° 91,
de 31.12.1879 (apud Ataídes, 2001:157-158).

131
José, vivem em estado selvagem, completamente separados dos habitantes do povoado”.
Tais acampamentos provisórios dariam lugar, cada vez mais, a moradias permanentes, em
grande parte influenciadas pelas relações de troca com os aldeamentos e presídios
instalados pelos colonizadores.
Atendendo às ordens oficiais de Aristides S. Spínola, Presidente da Província de
Goiás, em 1879 o Engenheiro Joaquim R. de Moraes Jardim (2001) realizou mais uma
expedição de estudos hidrográficos e geográficos do Araguaia, no trecho entre Leopoldina
e Santa Maria. O engenheiro encontrou 21 aldeias Karajá, com cerca de 600 pessoas no
total, espalhadas entre os presídios de São José, ao sul da Ilha do Bananal, e Santa Maria,
ao norte; e mencionou os “sympathicos e doceis” Javaé encontrados em aldeias Karajá, os
quais teriam aldeias no “Furo do Bananal” (Moraes Jardim, 2001:15). A despeito dos
muitos índios que lá moravam, o longo trecho entre São José do Araguaia e Santa Maria
era concebido como um grande vazio demográfico. Na época, cogitava-se reverter a
situação fundando outro presídio em algum ponto entre os dois povoados (Spínola, 2001a,
2001b). Em novembro de 1879, em carta dirigida ao Ministro da Guerra, baseada nos
estudos de Moraes Jardim, Spínola sugere fundar o novo núcleo na localidade de Santa
Isabel do Morro, em razão de sua excepcional localização, à salvo das cheias, no “centro
do Império” 52 . O autor lembrava que:

“(...) Do aldeamento São José do Araguaia ao presídio de Santa Maria, em uma


extensão de mais de 800 kilometros, não existe uma só habitação christã. A tribu Carajá
domina toda esta grande secção do rio, franca à navegação. (...) A creação do presídio
não só serviria para auxiliar immensamente a navegação, como para a catechese dos
Carajás, dos Javahés e dos índios habitantes da margem esquerda, que com aquelles
vivem em lutas: Cayapós, Chavantes, Tapirapés. Seria, ainda mais, um núcleo de
população para a futura colonização da immensa mesopotâmia do Bananal” 53 .

Santa Isabel, onde existira por pouco tempo o presídio abandonado em 1853, estava
localizada a meio caminho entre o alto e o baixo Araguaia, tendo-se como referência o eixo
norte-sul; e entre o Rio Xingu e o Rio Tocantins, tendo-se como referência o eixo leste-
oeste. O presídio não foi fundado novamente, mas tal posição estratégica no Brasil Central
seria apropriada pelos governantes no século 20 para o projeto de ocupação do interior
(oeste) do país, como veremos adiante (Lima Filho, 2001). O próprio Araguaia, situado no

52
“Catequese”, pág. 2, anexo a Spínola (2001a).
53
“Catequese”, pág. 1, anexo a Spínola (2001a).

132
centro do país, foi pensado pelos governantes da época como o grande canal de ligação
entre o sul (a Bacia do Prata) e o norte (o Rio Amazonas) do Brasil. O General Couto de
Magalhães (1957, 1975, 1998), que foi presidente das Províncias de Goiás, Pará e Mato
Grosso, foi o grande idealizador da utilização do Araguaia para a integração do país.
O general conseguiu trazer do alto Paraguai ao alto Araguaia – por terra, em 1868 –
o primeiro navio a vapor, inaugurado em Leopoldina. Em 29.6.1869, foi celebrado o
contrato de navegação a vapor pelos rios Araguaia e Tocantins entre o presidente do Pará e
Couto de Magalhães, então diretor de uma empresa de navegação, ligando o presídio de
Leopoldina, no alto Araguaia, a Belém do Pará 54 . Correspondência oficial de 1885 informa
que a “navegação do Araguaia e do Tocantins tem contribuído muito para a catequese ao
norte da Província. Os selvagens fornecem toda lenha aos vapores em troca de utensílios
de ferro (...), permuta assim feita estabelece entre eles e os homens civilizados relações tão
amistosas que hoje as tripulações e passageiros percorrem desassombradamente toda
extensão desses rios (...)” 55 . Entre os principais fornecedores de lenha estavam os Karajá,
os Kayapó e os Xambioá (ver Gallais, 1942). Embora a navegação pelo Araguaia tenha
sido bastante precária no século 19, de sua segunda metade em diante o grande rio foi
muito mais freqüentado pelos não índios que o Rio Javaés, o que expôs os vizinhos Karajá
e os mais distantes Xambioá a um contato muito maior com a sociedade envolvente.
Couto de Magalhães (1957, 1975) também seria nomeado pelo Ministério da
Agricultura como Diretor Geral de Catequese no Vale do Araguaia, supervisionando o
Colégio Isabel. Criado por ele em 1871, o colégio foi transferido em 1880 para a Fazenda
Dumbazinho (Spínola, 2001a), próxima ao lago de mesmo nome na margem ocidental do
Araguaia, um pouco ao norte de Leopoldina, que era então a “mais florescente povoação
do alto Araguaya” 56 . O internato, para onde iam índios do presídio de Santa Maria e
arredores, principalmente, era o centro da catequese na região e abrigava crianças Karajá,
Tapirapé, Kayapó, Xavante e Guajajara, entre outras 57 . Em 1876, quando o general não
mais dirigia a catequese, seriam criadas outras três escolas nos aldeamentos São José do
Araguaia, Santa Maria e Xambioá 58 . O colégio contava com 33 alunos em 1879, 5 dos

54
Ver correspondência da Presidência da Província com o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras
Públicas, 1861-1873 (apud Ataídes, 2001:375), Cícero de Assis (1999b, 1999c, 1999d), Ehrenreich (1948) e
Brasil (1961).
55
“Correspondência da Presidência da Província com o Ministério da Agricultura, 1883-1885” (apud
Ataídes, 2001:162).
56
“Catequese”, pág. 7, anexo a Spínola (2001a).
57
Ver Cícero de Assis (1999a, 1999b, 1999c, 1999f) e “Catequese”, anexo a Spínola (2001a).
58
Correio Oficial de Goyaz n° 61, de 9.8.1876 (apud Ataídes, 2001:156).

133
quais eram Karajá (Spínola, 1999), mas teria o serviço de catequese suspenso em 1888
(Espírito Santo, 2001). Carneiro da Cunha (1992c:139-140) lembra que a experiência de
Couto de Magalhães junto ao Colégio Isabel, baseada no “abandono da política de
concentração e aldeamento dos índios”, seria “a única inovação perceptível” da política
indigenista do século 19 depois do Regulamento das Missões, de 1845. O governo tentou
estender a outras regiões a idéia do general (Couto de Magalhães, 1975:27) de criar um
“corpo de intérpretes”, a fim de facilitar o processo de assimilação cultural e “civilização”
dos índios, cujo objetivo último era a colonização do interior.
No fim do século 19, entretanto, por várias razões, constata-se a “decadência” de
quase todos os aldeamentos e presídios, que “não têm satisfeito os fins de sua creação” 59 .
Em sua correspondência ao Diretor Geral dos Índios, em 1879, Luiz Augusto Crespo
(1999:14), Vice-Presidente da Província de Goiás, atendendo a recomendações do
Ministério da Agricultura, solicita informações a respeito dos presídios e aldeamentos para
extingui-los. Em outro relatório de 1879, Spínola (1999) informa que o presídio de Santa
Leopoldina foi extinto pelo Aviso de 10 de março de 1879 do Ministério da Guerra e que
faltavam recursos para a catequese, para os aldeamentos e para os presídios remanescentes.
Em 1881, recomenda-se oficialmente a extinção dos presídios militares da província, em
razão do tratamento improdutivo e cruel dos militares aos índios, e sua substituição por
colônias agrícolas, dedicadas à catequese e educação de indígenas e “cristãos”60 .
Apesar da decadência geral, em 1886 ainda seria retomado o aldeamento de Santa
Maria Nova e seriam fundados novos aldeamentos em Dumbazinho e no Rio Caiapó, sob
direção de missionários. Havia a intenção de se transferir o presídio e o aldeamento de
Santa Maria para o lado ocidental da Ilha do Bananal, o que acabou não ocorrendo (Cruz,
2001). Em 1889, o Ministro da Agricultura relata que o Colégio Isabel havia sido
transformado pelos professores em “casa de especulação e opressão para os índios que
delle fugiam horrorisados, transmitindo aos seus a má impressão que levavam das suas
primeiras relações com a gente civilisada” 61 . Um missionário dominicano (Gallais, 1942,
1954) que esteve na região na virada do século testemunhou tanto que alguns dos chefes
Karajá que falavam o Português tinham sido educados no colégio quanto o declínio
generalizado dos presídios do Araguaia em 1901, reduzidos a ruínas. Um relatório oficial

59
Ver, por exemplo, o Relatório da Secretaria da Presidência de Goiás, de 1879, p.96 (apud Ataídes,
2001:247), e o Relatório da Coletoria de Tocantinópolis, de 25.6.1884 (apud Ataídes, 2001:252).
60
Ver Ofício do Inspetor Geral dos Presídios, de 21.2.1881 (apud Ataídes, 2001:161).
61
Ofício do Ministro da Agricultura, de 3.8.1889 (apud Ataídes, 2001:359).

134
de 1904 informa sobre o fim da catequese patrocinada pelo Estado em Goiás, “tendo sido
supprimida a verba consignada no orçamento da União para esse fim” 62 .
Com o relativo isolamento dos Javaé após o fim dos primeiros aldeamentos do
século 18, informações a seu respeito eram obtidas por meio dos vizinhos Karajá, com
quem sempre mantiveram relações de troca próximas. Em expedição realizada no Araguaia
em 1888, o etnógrafo alemão Paul Ehrenreich (1948) – integrante da famosa expedição de
Karl Von den Steinen ao Xingu – produz o “primeiro estudo sistemático sobre os Karajá”,
nas palavras de Baldus (1948:9), dedicado em sua maior parte à cultura material. O
pesquisador foi o primeiro a registrar a diferença entre a fala masculina e a feminina na
língua Karajá e a reconhecer as semelhanças culturais entre os Karajá, Javaé e Xambioá,
embora não tenha visitado os Javaé. Ehrenreich (1948:26) encontra os Karajá distribuídos
em cerca de 15 aldeias, entre os aldeamentos de São José e Santa Maria, e relata que a
povoação Karajá próxima a Santa Maria, a mais setentrional, foi destruída por um ataque
Kayapó em 1881, evitando a partir de então “estabelecer-se muito além da ponta norte da
Ilha do Bananal”.
Os Karajá mais meridionais viveriam em aldeias menores e mais espalhadas em
razão da “escassez dos meios de subsistência” (Ehrenreich, 1948:34), enquanto as aldeias
mais ao norte seriam mais populosas, em alguns casos alcançando 200 habitantes. O autor
ouve notícias a respeito de três aldeias Javaé no interior da ilha, estimando os “Javahé,
Karajahi e Xambioá” em 4.000 pessoas ((Ehrenreich, 1948:25). Ehrenreich menciona o
receio dos Javaé em relação a doenças contagiosas e o desejo por instrumentos de ferro,
obtidos através dos seus vizinhos Karajá, que por sua vez os recebiam em troca da lenha
para os vapores. Um ofício do Ministério da Agricultura 1889 confirma a existência de três
aldeias Javaé na parte central da Ilha do Bananal, descrevendo os habitantes como
“pacíficos e dóceis” 63 .
Alguns anos depois, em 1897, o explorador francês Henri Coudreau (1897) subiria
em um vapor o Tocantins e parte do Araguaia, até o Rio Tapirapé, contratado pelo
Governo do Pará para determinar os limites do estado. O autor comete alguns equívocos,
como considerar os Tapirapé como um subgrupo Karajá, além de se referir aos índios com
palavras bastante depreciativas, mas descreve com relativa precisão a sua distribuição
territorial: os “Carajás” propriamente ditos eram habitantes do braço ocidental do

62
Semanário Oficial n° 239, de 21.5.1904, ano VIII, Goyaz (apud Ataídes, 2001:361).
63
Ofício de 3.8.1889, apresentado pelo Ministério da Agricultura (apud Ataídes, 2001:67).

135
Araguaia, da Ilha do Bananal até Leopoldina; os “Carajás-Chambioás” ou “Chambioás”
habitavam abaixo da Ilha do Bananal, até as imediações de São José dos Martírios,
aproximadamente; e os “Carajás-Javahés” ou “Javahés” (Coudreau, 1897:185), “a fração
mais importante da tribo” (1897:110), habitavam o interior da ilha. Coudreau teve contato
pessoal apenas com alguns Karajá e Xambioá, subestimando a população total dos Karajá,
Xambioá e Tapirapé em apenas 380 pessoas. O autor menciona um ataque dos Xambioá,
juntamente com os Xicrin, à missão existente em São José dos Martírios alguns anos antes
de sua viagem. Coudreau refere-se brevemente a aldeias dos Karajá propriamente ditos
acima de São José do Araguaia, indicando uma expansão do território Karajá um pouco
mais para o sul.
Durante sua missão, Coudreau encontra-se em Barreira de Santana (atual Santa
Maria das Barreiras) com Frei Gil Villanova, o missionário da ordem dominicana de
origem francesa que desde o ano anterior tentava instalar uma nova missão para a
catequese dos índios da região (Karajá, Javaé, Xambioá, Xavante), em especial os
Kayapó 64 . Baseado em seus levantamentos, o francês indica ao missionário o excepcional
sítio, a salvo das inundações periódicas, onde seria fundada por Frei Gil, dias depois, a
missão de Conceição do Araguaia (ver Mapa n° 8). Situada abaixo da Ilha do Bananal, a
futura cidade atrairia muitas famílias de Goiás, Maranhão e Piauí a partir de 1904, durante
o primeiro ciclo da borracha. Quando ainda atuava em Porto Nacional, anos antes, Frei Gil
tentara sem sucesso visitar aldeias Xavante no Rio das Mortes e aldeias Javaé, padecendo
de grandes dificuldades, na volta, em sua travessia à pé pela região setentrional da Ilha do
Bananal durante a estação cheia de 1890 (Audrin, 1946) ou 1891 (Gallais, 1942). Alguns
anos depois, em 1896, antes da fundação de Conceição do Araguaia, o Bispo de Goiás,
Dom Eduardo Duarte da Silva, e o dominicano Frei Joaquim Mestelan conseguem se
encontrar com os desconhecidos Javaé em sua descida a vapor pelo Rio Javaés:

“(...) Na Ilha do Bananal existem três aldéias dos Javaés. A que pudemos visitar está
situada em campo amêno, distante do braço menor do Araguáia, por onde descemos, e
conta cerca de 1500 indígenas. Era a primeira vez que estes índios recebiam a visita de
cristãos, motivo portanto de grande susto que levaram à nossa vista, e que quase nos
custou a vida. Presos e condenados a morrer às cacetadas, conseguimos aplacar a ira
dos selvagens pela distribuição de muitos presentes. Gratos, os Javaés tornaram-se
amigos, nos franquearam sua aldéia, acompanhando-nos depois até o vapor, com os
maiores sinais de alegria e satisfação” (Bispo Silva apud Audrin, 1946:142-143).

64
Ver Krause (1940b, 1940c), Gallais (1942, 1954), Audrin (1946).

136
Demoraria ainda 20 anos, entretanto, para que os missionários de Conceição do
Araguaia, desde 1905 sob a chefia de Dom Domingos Carrérot, futuro Bispo de Porto
Nacional, retornassem aos Javaé, fato este ainda lembrado pelos mais velhos, como
veremos adiante. Quando os padres franceses chegaram a Santa Leopoldina em 1896, com
o objetivo de descer o Araguaia e instalar a futura missão, o vilarejo estava em estado de
abandono, não existindo mais o presídio e o Colégio Isabel nem a navegação a vapor. O
Padre Estevão Gallais (1942, 1954), que esteve na região em 1901, estimou a população
Karajá em menos de mil pessoas, e relatou que “o vale do Araguaia é quasi na sua
totalidade país selvagem”: a margem esquerda era ocupada apenas por grupos indígenas,
principalmente os Karajá, Xavante e Kayapó, e “em um percurso de 180 a 200 léguas, não
há sinal de habitações cristãs” (Gallais:1954:15).
Em 1902, Frei Gil Vilanova informou aos seus superiores franceses que pretendia
“preparar uma fundação junto aos Carajás da Ilha do Bananal”, onde havia pelo menos dez
aldeias, pois “desde há muito que os Carajás se acham em relações conosco” e “seus chefes
mais importantes pedem com insistência que nos vamos estabelecer junto a eles” (apud
Gallais, 1942:245). Frei Gil faleceu em 1905, mas os dominicanos conseguiriam instalar
uma missão muito próxima dos Karajá da ilha na década de 30, fundando o que se
transformaria na atual cidade de Santa Terezinha (MT).
Em 1900, restavam apenas os restos dos três vapores do Araguaia, colocados à
venda em edital oficial (Couto de Magalhães, 1957), o que resultou na decadência dos
poucos povoados ribeirinhos até meados do século 20. No quadro abaixo, temos um
resumo dos dados populacionais sobre os Karajá, Xambioá e Javaé entre 1775 e 1902,
lembrando que os 9.000 Karajá e Javaé estimados pelo Alferes Pinto da Fonseca, em 1775,
já eram os sobreviventes dos massacres anteriores promovidos pelos bandeirantes
paulistas; e que a variação no número de aldeias Karajá, principalmente, tem relação com a
época em que foram observadas, uma vez que os Karajá tendiam a se concentrar em menos
aldeias na estação cheia e a se dispersar em um número maior de aldeias nas praias da
estação seca:

137
Tabela n° 1: População Karajá, Javaé e Xambioá entre 1775 e 1902

Autor Data População N° de aldeias


Pinto da Fonseca 1775 9.000 (Karajá e Javaé); uma aldeia 6 Karajá, 3 Javaé
Karajá com mais de 2.000 pessoas.
Silva e Souza 1812 7 Karajá
Castelnau 1844 Grandes aldeias Xambioá, uma “algumas” Xambioá
delas com 1.500 pessoas.
Segurado 1847 9 Karajá, “algumas”
Xambioá
Frei Vitto 1852 15 Karajá
Cruz Machado 1855 10 Karajá, 4 Xambioá
Alencastre 1861 Mais de 10.000 (Karajá, Javaé e
Xambioá).
Relatório Oficial 1862 22 Karajá
Couto de 1876 Entre 7.000 e 8.000 (Karajá, Javaé
Magalhães e Xambioá).
Moraes Jardim 1879 600 Karajá 21 Karajá
Ehrenreich 1888 4.000 (Karajá, Javaé e Xambioá). 15 Karajá, 3 Javaé
Bispo Silva 1896 Uma das aldeias Javaé com cerca 3 Javaé
de 1.500 pessoas.
Coudreau 1897 165 (Karajá), 195 (Xambioá) e 20 6 Karajá, 10 Xambioá
(Tapirapé). e 1 Tapirapé
Padre Gallais 1901 Menos de 1.000 (Karajá)
Frei Gil Vilanova 1902 10 Karajá

3.3. As aldeias do século 20

Até o fim do século 19, a história do contato dos Javaé e Karajá com a sociedade
nacional fez parte de um mesmo processo geral de colonização do Araguaia, embora tenha
sido vivenciada pelos dois grupos em graus diferenciados, com os Karajá servindo de
intermediários entre os Javaé e os não-índios. Só a partir do século 20, os Javaé passam a
ter uma experiência de contato direto e permanente com os não-índios, cuja história, já
abordada em Toral (1981, 1992, 1999), Rodrigues (1993, 2008) e Bonilla (1997, 2000), é
caracterizada por circunstâncias relativamente diferentes das enfrentadas pelos vizinhos
Karajá.
Segundo a memória oral nativa, os Javaé habitaram em mais de 40 aldeias até o
início do século 20, de duração e tamanhos diferenciados (ver Mapa n° 3): aldeia Marani

138
Hãwa, tida como a maior de todas, antiga aldeia Wariwari, também um núcleo de maior
população, Imotxi, Lòreky. Aldeias menores localizavam-se na porção centro-norte da Ilha
do Bananal, região conhecida como Bèdèky. As mais conhecidas são as aldeias Karalu
Hãwa, Syrahaky, Wararèkòna, Raraòky e Kywakoro (ou aldeia Jatobá), próxima a essas
outras. Nas margens do baixo curso do Riozinho havia a aldeia Narybykò (2), próxima do
Rio Araguaia, onde os Javaé moraram junto com famílias dos Karajá, tendo havido vários
casamentos interétnicos. Com o fim de Narybykò (2), no início do século passado, outras
pequenas aldeias foram fundadas nas margens do médio Riozinho, ainda na primeira
metade do século 20: Bòtòrèriòrè, Hãwarahedà e Wajukabà. Também no interior da Ilha
do Bananal, havia pequenas aldeias das margens do Rio Jaburu, mais ao sul, como as
chamadas Juani e Kuritiwi.
Além destas, existiam outras nas margens do médio Rio Javaés, como as aldeias
Hèdèdura Luku, situada primeiramente do lado da Ilha do Bananal e depois na margem
oposta, Txukòdè, Wyhy Raheto Dijarana e Kyrysa Hãwa (“Aldeia dos Avá-Canoeiro”).
Fora da Ilha do Bananal, existiram as aldeias Ijanakatu Hãwa e Tabàlàna, esta última
fundada nos anos 40. No interflúvio entre o Rio Javaés e o seu principal afluente, o Rio
Formoso do Araguaia, os Javaé moravam nas aldeias da região do Rio Loroti, conhecidas
como Horeni, Hãwariè, Kuirahaky Hãwa e Nõbò, que eram atacadas pelos Kraho, Xerente
e Apinajé; e na aldeia Walairi, cujo nome origina-se de um antigo povo estrangeiro (os
Walairi) que habitava o local. No Rio Formoso do Araguaia, algumas famílias moravam na
aldeia Hauteheky, na porção inferior do rio. Por um breve período de tempo existiu a aldeia
Hurèratya nas margens do Rio Verde, importante afluente da margem direita do Rio
Javaés.
Nas margens do baixo Javaés, ao norte da atual aldeia Boto Velho, no sentido
sul/norte, existiram as aldeias Hatõmõkò, Waderikò, Latèni Ixena (ou Kunahija), Asukò,
Hãrikò, Narybykò (1), Hãrèwèkò, Manaburè, Hãriwatò, Kòbyryra Tèburena,
Hãriwatòrikòrè, Walu, Iròdu Iràna, Bòròrèwa, Kòtèburè, Txireheni, Oxiani (ou aldeia
Ponta da Ilha). Kòtu Iràna e Iròdu Iràna eram conhecidas também como antigos e famosos
pontos de encontros rituais e trocas entre os Karajá, Javaé e Xambioá. Iròdu Iràna é
conhecida como o local mítico onde Tanyxiwè roubou o fogo dos animais e, devido à sua
localização espacial e à sua importância em termos de trocas, era considerada como uma
espécie de “meio” ou “centro” do território maior ocupado pelas três etnias no vale do
Araguaia (ver Rodrigues, 2008). Em termos gerais, a região do baixo Javaés e a porção

139
setentrional da ilha eram habitadas, desde tempos antigos, por aldeias em que famílias
Javaé e Karajá viviam juntas (ver Toral, 1999, Rodrigues, 2008).
O quadro a seguir oferece uma descrição mínima da localização das aldeias – no
sentido de sul a norte – e informa se elas são ainda habitadas ou não pelos Javaé. A sigla
I.B. significa “Ilha do Bananal”:

Tabela n° 2: Principais aldeias Javaé no início do século 20*

Nome Localização Situação Atual


1. Hurèratya Fora da I.B., às margens do baixo curso do Não habitada
Rio Verde.
2. Ijanakatu Hãwa Fora da I.B., próxima da atual aldeia Wahuri. Não habitada
3. Tabàlàna Fora da I.B., próxima da atual aldeia Wahuri. Não habitada
4. Marani Hãwa Dentro da I.B., ao sul, às margens do Lago do Não habitada
Bananal ou Kwely Ahu.
5. Kuritiwi Dentro da I.B., ao sul, às margens do médio Não habitada
curso do Rio Jaburu ou Ikòròbi Bero.
6. Juani Dentro da I.B., ao sul, às margens do médio Não habitada
curso do Rio Jaburu ou Ikòròbi Bero.
7. Lòreky Dentro da I.B., a sudeste, às margens do Lago Não habitada
Sòhoky.
8. Imotxi Dentro da I.B., no centro-sul, às margens de Habitada
um afluente do médio curso do Riozinho ou
Wabe.
9. Wariwari (antiga) Dentro da I.B., no centro-leste, próxima do Não habitada
Rio Wariwari.
10. Hãwariè Fora da I.B., na região do Rio Loroti. Não habitada
11. Horeni Fora da I.B., na região do Rio Loroti, no atual Não habitada
vilarejo Capão de Coco.
12. Kuirahaky Hãwa Fora da I.B., na região do Rio Loroti. Não habitada
13. Nõbò Fora da I.B., na região do Rio Loroti. Não habitada
14. Kyrysa Hãwa Dentro da I.B., ao sul da foz do Rio Loroti, a Não habitada
cerca de 1 km das margens do Rio Javaés.
15. Hedèduraluku Fora da I.B., às margens do Rio Javaés, ao Não habitada
norte da foz do Rio Loroti ou Làràtxi.
16. Txukòdè Dentro da I.B., às margens do Rio Javaés, Habitada
próxima e ao sul da foz do Rio Verdinho ou
Dejueho.
17. Wyhy Raheto Fora da I.B., às margens do Rio Javaés, um Não habitada
Dijarana pouco ao norte da foz do Rio Verdinho ou
Dejueho.
18. Walairi Fora da I.B, no interflúvio entre o Rio Javaés Não habitada
e o Rio Formoso do Araguaia, ao norte da foz
do Rio Verdinho.
19. Hauteheky Fora da I.B., às margens do baixo curso do Não habitada

140
Rio Formoso do Araguaia.
20. Karalu Hãwa Dentro da I.B., no centro-norte, às margens do Não habitada
Lago de Pataca.
21. Wararèkòna Dentro da I.B., no centro-norte, às margens do Não habitada
Lago do Mamão.
22. Syrahaky Dentro da I.B., no centro-norte, às margens do Não habitada
Lago do Ananás.
23. Kywakoro (aldeia Dentro da I.B., no centro-norte. Não habitada
Jatobá)
24. Raraòky Dentro da I.B., no centro-norte, às margens do Não habitada
alto curso do Rio Urubu.
25. Hãwarahedà Dentro da I.B., no médio Riozinho ou Wabe. Não habitada
26. Bòtòrèriòrè Dentro da I.B., no médio Riozinho ou Wabe. Não habitada
27. Wajukabà Dentro da I.B., no médio Riozinho ou Wabe. Não habitada
28. Hatõmõkò Dentro da I.B., às margens do Rio Javaés, ao Não habitada
sul da foz do Rio Formoso do Araguaia.
29. Waderikò Dentro da I.B., às margens do Rio Javaés, ao Não habitada
sul da foz do Rio Formoso do Araguaia.
30. Kunahija (ou Dentro da I.B., às margens do Rio Javaés, ao Não habitada
Latèni Ixena depois) norte da foz do Rio Formoso do Araguaia.
31. Asukò Fora da I.B, às margens de um lago ao norte Não habitada
da foz do Rio Formoso do Araguaia.
32. Hãrikò Dentro da I.B., às margens do Rio Javaés, ao Não habitada
norte da foz do Rio Formoso do Araguaia.
33. Narybykò (1) Dentro da I.B., às margens do Rio Javaés, ao Não habitada
norte da foz do Rio Formoso do Araguaia.
34. Hãrewèkò Dentro da I.B., às margens do Rio Javaés, ao Não habitada
norte da foz do Rio Formoso do Araguaia.
35. Manaburè Dentro da I.B., às margens do Rio Javaés, ao Não habitada
norte da foz do Rio Formoso do Araguaia.
36. Hãriwatò Dentro da I.B., às margens do Rio Javaés, ao Não habitada
norte da foz do Rio Formoso do Araguaia.
37. Kòbyryra Fora da I.B., às margens do Rio Javaés, ao Não habitada
Tèburena norte da foz do Rio Formoso do Araguaia.
38. Hãriwatòrikòrè Dentro da I.B., às margens do Rio Javaés, ao Não habitada
norte da foz do Rio Formoso do Araguaia.
39. Walu Dentro da I.B., a alguns quilômetros da Não habitada
margem do baixo curso do Rio Javaés.
40. Iròdu Iràna Fora da I.B., às margens do Rio Javaés, junto Não habitada
à foz do Riozinho do Ezequiel ou Ijòrina.
41. Bòròrèwa Dentro da I.B., às margens do Rio Javaés, Não habitada
junto à boca de um lago pequeno, ao norte da
foz do Riozinho do Ezequiel.
42. Kòtèburè Fora da I.B., às margens do Rio Javaés, junto Não habitada
à boca de um grande lago, chamado Kòtèburè
Ahu, ao norte da foz do Riozinho do Ezequiel.
43. Txireheni Fora da I.B., às margens do Rio Javaés, junto Não habitada
à boca de um lago pequeno, chamado

141
Txireheni Ahu, ao norte da foz do Riozinho do
Ezequiel.
44. Kòtu Iràna Dentro da I.B, às margens do Riozinho, junto Não habitada
à foz do Rio Wariwarizinho.
45. Oxiani (Ponta da Dentro da I.B., às margens do Rio Javaés, Não habitada
Ilha) junto à foz do Riozinho.
46. Narybykò (2) Dentro da I.B., no baixo Riozinho ou Wabe. Não habitada
47. Nibònibò Dentro da I.B., no baixo Riozinho ou Wabe. Não habitada

* Há três exceções na lista. Segundo a mitologia Javaé, Kunahija (depois conhecida como
Latèni Ixena, que se situa a poucos quilômetros ao norte da aldeia Boto Velho), Waderikò
e Hatõmõkò (ambas ao sul da aldeia Boto Velho) eram aldeias fundadas pelos Karajá no
baixo Rio Javaés, logo depois da ascensão mítica dos Karajá em Inysèdyna, ou seja, antes
da chegada dos bandeirantes ao Brasil Central. São originários dessas aldeias não mais
existentes os Karajá que entraram em antiqüíssimos conflitos com os Wèrè antes de se
mudarem definitivamente para o Araguaia. Em Macaúba, ouvi de Sebastião Waihore
Karajá a mesma versão. Toral (1999:12), por sua vez, inclui as aldeias “Unahija, Otxisaò e
Hatomoò”, que teriam sido habitadas pelos Karajá no baixo Javaés, como parte das aldeias
do início do século 20.

Como veremos a seguir, a grande maioria das aldeias listadas foi extinta por causa
de epidemias diversas na primeira metade do século 20. No caso do baixo curso do Rio
Javaés, restaram pouquíssimos remanescentes das aldeias Asukò, Kòtèburè, Iròdu Iràna e
Bòròrèwa entre os Javaé atuais. As outras da mesma região, em sua maioria, já tinham se
acabado antes, em tempos mais ou menos remotos, por motivos variados. A maior parte
dos Javaé atuais é descendente dos moradores das antigas aldeias Marani Hãwa e
Wariwari, os dois maiores núcleos populacionais da época. Estas duas aldeias, juntamente
com Imotxi, Lòreky, as aldeias do Rio Loroti e da região do Bèdèky, são consideradas as
aldeias mais antigas de todas, onde os Javaé dizem que “sempre” estiveram morando,
desde tempos imemoriais. Quase todas as aldeias listadas eram aldeias de inverno, ou seja,
pontos fixos de maior concentração populacional na estação cheia, a partir dos quais os
grupos familiares se dispersavam nas praias, durante a estação seca 65 .

65
Toral (1999) fornece uma lista de cerca de 45 aldeias Javaé antigas, das quais um pouco mais de 20 teriam
existido entre 1900 e 1939 na porção central e setentrional da Ilha do Bananal. Em sua lista estão incluídas
como aldeias Javaé algumas das aldeias dos diferentes povos que habitavam a Ilha do Bananal no passado
mais remoto, referidos pela mitologia, e que são citados por mim no Capítulo 2. Há também algumas aldeias
Javaé sobre as quais não obtive informação, assim como aldeias mencionadas aqui não estão na lista do
autor, de modo que o número de aldeias era ainda maior. O autor também menciona a existência de aldeias
mistas (Karajá e Javaé) no interior da ilha no passado.

142
Os Javaé reconhecem três tipos de sotaque diferentes na língua em que falam:
aquele do povo originário do Bèdèky, o do povo de Marani Hãwa e Imotxi, e o daqueles
originários do Wariwari e região do Làràtxi. A porção meridional (ibòkò) da Ilha do
Bananal, cujo centro sagrado e simbólico era a grande aldeia Marani Hãwa, sempre foi
mais habitada – seja pelos povos estrangeiros extintos e referidos pela mitologia histórica,
seja pelos não-índios mais recentemente –, porque é uma região mais alta e com mais
pontos secos que o resto da Ilha do Bananal, periodicamente inundável.
Em 1908, o etnógrafo alemão Fritz Krause (1940-1944) desceu o Araguaia, de
Leopoldina até Conceição do Araguaia, ocasião em que visitou todas as aldeias Karajá
existentes. O pesquisador conseguiu visitar por alguns dias uma pequena aldeia Javaé
interiorana no norte da Ilha do Bananal, acompanhado de guias Karajá, onde seria
recebido, segundo o seu relato, como o primeiro branco visto pelos moradores (Krause,
1941a, 1943b, 1943c). Krause produziu uma rica descrição sobre a cultura material dos
Karajá, além de recolher grande quantidade de objetos etnográficos e registrar a viagem
através de fotografias que foram publicadas. O autor esclareceu definitivamente que os
“Carayahi” ou “Carajahis” da literatura nada mais eram que os próprios Karajá,
denominados desde então com a grafia atual. A expedição encontrou 23 pequenas aldeias
Karajá “estáveis” (Krause, 1941c:237) entre Leopoldina, o ponto máximo da expansão
meridional do grupo, e a extremidade norte da Ilha do Bananal, em contraste com os
Xambioá e Javaé, que teriam menos aldeias, porém com muito mais habitantes. O autor
registrou que os Xambioá viviam no trecho encachoeirado do baixo Araguaia, enquanto os
Karajá viviam na parte do rio livre de cachoeiras, no médio Araguaia, em ambas as
margens, embora estendessem suas atividades de pesca e caça a leste e a oeste.
Os Karajá dividiam-se entre o grupo meridional, na época já consolidado, que
morava entre a foz do Rio Vermelho e a foz do Rio Crixás, com um número de 1 a 4 casas
por aldeia, e o grupo setentrional, mais populoso, com uma média de 5 a 6 casas por aldeia,
que morava entre a foz do Rio das Mortes e a região ao norte da Ilha do Bananal (ver Mapa
n° 4). Krause (1943b) encontrou cerca de 50 índios Javaé morando junto com os Karajá
meridionais e calculou a população total dos Karajá propriamente ditos em apenas 815
pessoas (Krause, 1941c:238), número que o autor atribuiu à epidemia de sarampo que se
alastrara entre os Karajá nos últimos dois anos. Na época de sua viagem, a aldeia Karajá
mais meridional era Xixamãdo, junto a Leopoldina, na foz do Rio Vermelho, onde famílias
Karajá já estavam morando definitivamente há cerca de 5 anos e onde cerca de um século

143
depois seria reconhecida a Terra Indígena dos Karajá de Aruanã 66 . Como observou o
próprio Krause (1941c), tal movimento em direção ao alto Araguaia teria sido um produto,
em parte, do próprio contato, na medida em que os Karajá buscavam manter relações de
troca com os aldeamentos e presídios meridionais para onde foram levados membros do
grupo, como São José do Araguaia, Salinas e Leopoldina.
Krause foi recepcionado pelos Javaé – que já sabiam de sua presença entre os
Karajá e o haviam convidado para uma visita – com grande afabilidade e de acordo com o
formalismo polido que caracteriza a etiqueta social Javaé, da qual fez parte uma luta ritual
entre os visitantes Karajá e os Javaé. O etnógrafo impressionou-se com a limpeza e a
riqueza dos moradores, entre 100 e 150 pessoas distribuídas em 5 casas, além da qualidade
superior das instalações de moradia e dos adornos utilizados, quando comparados aos dos
Karajá. Segundo as informações obtidas in loco, os Javaé morariam em 3 aldeias principais
no centro da ilha, uma delas “do tamanho duma cidade” (Krause,1943b:187), com cerca de
6 fileiras de 20 a 25 casas cada. Contando com outras duas aldeias menores situadas ao sul
e ao norte das aldeias centrais, Krause estimou a população Javaé entre 800 e 1000
pessoas. O autor assinalou as relações pacíficas entre os Karajá e Javaé, sustentadas por
casamentos e “intensas trocas de mercadorias”, uma vez que os Javaé eram tidos como
“ricos em enfeites e gêneros alimentícios”, ao passo que os Karajá tinham acesso em
primeira mão aos objetos de ferro, tecidos e miçangas cobiçados pelos Javaé (Krause,
1943b:188). Dessa visita resultaram importantes informações etnográficas sobre os dois
grupos, considerados pelo autor como culturalmente idênticos, apesar das pequenas
diferenças observadas.
Pouco tempo depois da visita de Fritz Krause, o Serviço de Proteção aos Índios
(SPI), criado em 1910, organizou uma expedição de reconhecimento à Ilha do Bananal.
Francisco de Borja Mandacaru e Araújo assumiu o cargo de Diretor do SPI em Goiás em
21.6.1911 e viajou pelo Araguaia entre novembro de 1911 e agosto de 1912, a partir de
Leopoldina, com o objetivo de visitar todos os grupos indígenas ali existentes, incluindo os
desconhecidos Tapirapé e Javaé 67 . Jornais da época, como “O Paiz”, louvaram o feito do
inspetor do órgão indigenista em encontrar aldeias dos Javaé, “até então desconfiados e
esquivos a todo o contacto com os civilisados” 68 . O inspetor Mandacaru “foi hóspede de
uma poderosa porção de javahés que ficaram tomados de pasmo quando o viram chegar.

66
Ver Schiel (2002), Lima Filho (2006), Portela (2006), Almeida (2006).
67
Recortes de jornais (microfilme da FUNAI n° 324, fotogramas n° 1, 6 e 9).
68
Recortes de jornais (microfilme da FUNAI n° 324, fotograma n° 21).

144
Foi bem tratado pelos javahés, tratamento que correspondeu com mimos que os filhos da
selva recebiam joviais” 69 . O Diretor do SPI visitou 18 aldeias Karajá nas margens do
Araguaia, totalizando cerca de mil habitantes, e “seis aldeias de Javahés em diversos
pontos da Ilha do Bananal, com seiscentos habitantes” no total 70 . Os Javaé – descritos ora
como “exemplo de moral e modêlo de honestidade” ora como “de índole pacífica, muito
ordeiros e intelligentes” – receberam roupas para serem fotografados junto à bandeira
nacional 71 .
Nas primeiras décadas do século 20, teve início um contato cada vez mais intensivo
com a população regional, através de mineradores em busca de cristal de rocha, criadores
de gado de origem predominante do Maranhão, Piauí e Goiás, que começaram a penetrar a
Ilha do Bananal, e pescadores e caçadores de pele, em especial a de jacaré. Como já disse
Toral (1981:72), a atividade mineradora trouxe um “pequeno surto de desenvolvimento” à
região, entrando em decadência logo depois e sendo substituída pela pecuária. Em 1990,
conheci um dos primeiros moradores não-índios de dentro ilha, que havia chegado ao Rio
Jaburu para a atividade pecuária ainda nos anos 30, assim como um fazendeiro da região
de Lagoa da Confusão (TO), o Sr. Nilo Sardinha, ex-garimpeiro, que dizia ter sido o que
primeiro incentivou os Javaé do Rio Loroti a vender pirarucu salgado e peles de jacaré na
década de 40 (Rodrigues, 1993). Toral (1992, 1999) calcula que regatões paraenses
entraram na ilha, atingindo o Riozinho e afluentes, nos anos 30, quando então compravam
peles de animais dos Javaé em troca de mercadorias pelo sistema de aviamento. O
jornalista Hermano Ribeiro da Silva (1935) encontrou quatro barcos de comerciantes
paraenses no Araguaia em 1932.
A descoberta de cristal de rocha propiciou a fundação de vilarejos na região a leste
do Rio Javaés (ver Mapa n° 2), cuja população, com o fim da mineração, passou a viver
majoritariamente da agropecuária. A atual cidade de Cristalândia, com cerca de 7.000
habitantes, surgiu na região em que um grupo de garimpeiros descobriu grandes jazidas de
cristal de rocha em 1939, fundando o povoado da Chapada, que em 1953 seria batizado de
Cristalândia e se tornaria o centro de um município emancipado do grande e antigo
município de Porto Nacional. Um dos Javaé mais idosos de Canoanã, atualmente com mais
de 90 anos, abandonou a aldeia Wariwari na juventude em razão de conflitos internos e
chegou a trabalhar em um dos garimpos da região de Cristalândia por alguns meses. Há

69
Recortes de jornais (microfilme da FUNAI n° 324, fotograma n° 9).
70
Recortes de jornais (microfilme da FUNAI n° 324, fotograma n° 10).
71
Recortes de jornais (microfilme da FUNAI n° 324, fotogramas n° 10, 11 e 15).

145
registros sobre grupos de Javaé visitando o garimpo de Pium, mais ao norte, em 1946, para
realizar trocas com os garimpeiros (Aureli, 1962b). Uma notícia do Jornal do Brasil, de
21.6.1945, informa que “o cacique dos Javaés – Inai Cachirêrê – viajou para o Rio de
Janeiro, de avião, a fim de se entender com o General Rondon. Vinha protestar contra um
comerciante desta cidade que roubara à sua tribo 2.966 quilos de cristal de rocha” 72 . O
cacique protestou também contra o “rapto de sua própria filha” de uma aldeia da Ilha do
Bananal pelos garimpeiros.
Formoso do Araguaia, atualmente a maior cidade vizinha dos Javaé, com cerca de
20.000 habitantes, foi fundada em 1949 por descobridores de minas de cristal. A cidade era
um pequeno vilarejo até os anos 70, quando começou a se expandir consideravelmente em
função de um grande projeto estadual de rizicultura (Projeto Formoso). A partir dos anos
90, o local tornou-se um centro de pesca amadora na região, passando a contar com infra-
estrutura turística para tal. A cidade tem o nome do maior afluente da margem direita do
Rio Javaés, o Rio Formoso do Araguaia (ver mapas n° 2 e n° 3), chamado pelos Javaé de
Toriuhu Bero, “Rio dos Antigos Brancos”, porque os primeiros não-índios que chegaram à
região vieram dessa direção, ou simplesmente de Tori Bero (“Rio dos Brancos”)73 . Dueré é
atualmente uma pequena cidade com menos de 5.000 habitantes, mas foi um dos maiores
centros de atração de garimpeiros quando foi fundada, em 1950, por outro grupo de
mineradores que descobriu jazidas de cristal na região. Segundo os Javaé, os não-índios
perguntaram aos próprios Javaé pelo nome do local, recebendo a resposta de que era um
lugar “dos Wèrè”, surgindo daí o nome Dueré.
Outros nomes que se incorporaram ao vocabulário dos não-índios também derivam
da língua Javaé, como o nome do Rio Loroti, outro afluente do Javaés, que é um
aportuguesamento da palavra Làràtxi, que designava o rio em questão e a região ao redor.
O nome do Rio Verdinho ou Diderrô, um afluente da margem esquerda do Rio Javaés,
abaixo da foz do Loroti, deriva do nome original que os Javaé dão ao rio, Dejueho (ver no
Mapa n° 3 os rios mencionados, incluindo do Rio Dueré). Das cidades vizinhas que foram
fundadas nessa época, cito ainda Gurupi, localizada a uma distância maior das aldeias, mas
que é um importante centro regional, sede da FUNAI local, à beira da rodovia Belém-
Brasília, com cerca de 73.000 habitantes. Gurupi teve início em 1951 com a instalação de
um agricultor no local, ao qual juntaram-se garimpeiros remanescentes de Dueré nos anos

72
Recorte de jornal (microfilme da FUNAI n° 382, fotograma n° 662).
73
Os dados históricos sobre as cidades do Tocantins podem ser encontrados no site
www.terratocantins.com.br e os dados populacionais (de 2006) no site do IBGE.

146
que se seguiram. Mais recentemente surgiram as cidades Lagoa da Confusão, o núcleo
urbano mais próximo dos Javaé setentrionais, com pouco mais de 9.000 habitantes, e
Sandolândia, a cidade onde estudam alguns jovens Javaé de Barreira Branca, com menos
de 4.000 habitantes. A primeira é um vilarejo turístico, situado às margens de uma pequena
lagoa, tida pelos Javaé como o lugar mítico de onde surgiram os Ijèwèhè, ancestrais do
herói Tanyxiwè e dos brancos, como já foi dito.
Uma maior aproximação dos não-índios foi seguida de muitas mortes nas aldeias,
interpretadas pelos Javaé, nos anos 90, como produtos de rubunahaky, “grandes feitiços”
mortais coletivos causados por comportamentos imorais dos próprios Javaé ou violações
aos segredos rituais 74 . Como já disse Toral (1981, 1992), que encontrou apenas 286 Javaé
em 1978, os dados indicam “a incrível mortandade verificada no grupo” (1983:3) nos anos
que se seguiram, atribuída pelo autor a epidemias de “crupe, sarampo e gripe” entre 1940 e
1950 75 . Em outro texto, Toral (1999:19) situa nos anos 50 o início do consumo cada vez
maior de álcool pelos Javaé e os “surtos de malária, catapora, tuberculose, doenças
venéreas e gripe, que passam a se tornar crônicos”.
Documentos históricos e os relatos mais recentes dos Javaé indicam, entretanto, que
as epidemias entre os Javaé começaram antes dos anos 40, possivelmente através do
contato com uma equipe de funcionários do SPI posterior à do inspetor Mandacaru e por
meio das visitas dos Javaé ao posto do SPI fundado na aldeia Karajá Santa Isabel em 1927.
Além disso, o pesquisador alemão Krause (1940a, 1942b) registrou que, em 1906 e 1907,
uma grande epidemia de sarampo se alastrara entre os Karajá, entre os quais viviam alguns
Javaé. Na viagem feita em 1932 ao Araguaia, o jornalista Hermano Ribeiro da Silva (1935)
testemunhou a existência de epidemias de sarampo, coqueluche, escarlatina e gripe que
dizimavam aldeias.
É mais do que provável que o intenso intercâmbio entre os próprios Karajá e entre
os Karajá e Javaé tenha contribuído para alastrar as doenças contagiosas. O médico
Haroldo C. de Oliveira (1950, 1952), por exemplo, que em 1947-1950 realizou uma
investigação das condições de saúde dos grupos indígenas do Araguaia a convite do SPI,
encontrou vários casos de tuberculose aguda e deterioração da saúde bucal, além de
verminoses e doenças venéreas, entre os Karajá da aldeia Santa Isabel. O médico
74
A mesma visão sobre a decadência populacional foi relatada a Toral (1992) e é encontrada entre os Karajá
(Donahue, 1982). Exemplos de interpretações xamânicas sobre o contato e as epidemias subseqüentes em
Albert & Ramos (2000), em especial os artigos de Albert (1992, 2000b), Buchillet (2000) e Baines (2000).
75
Em trabalho mais recente, porém, o mesmo autor (1999) cita dados da FUNAI da época e diz que “o ponto
mais negativo” da população Javaé foi o número de 353 pessoas em 1976.

147
identificou que algumas dessas doenças contagiosas foram transmitidas pelos Karajá de
Porto Luís Alves, que junto com os de Cocalinho e do Posto Indígena Heloísa Torres (na
foz do Rio Tapirapé) sofriam de malárias e verminoses crônicas. Em 1947, seis Javaé
moravam na aldeia Karajá apegada a Leopoldina (Baldus, 1948). Toral (1992) mostra que
sempre foi comum, pelo menos no século 20, encontrar alguns Javaé vivendo nas aldeias
Karajá.
Os Javaé lembram com nitidez das visitas dos funcionários do SPI, registradas em
relatórios oficiais dos anos 30, à aldeia Imotxi, no interior da Ilha do Bananal, cujo acesso
ainda é bastante difícil na época das chuvas, devido às inundações. A população da aldeia
Imotxi foi praticamente dizimada depois que os funcionários do SPI partiram,
provavelmente tendo contaminado os Javaé com doenças desconhecidas. Segundo as
palavras daquele que traduziu a história contada por José Wèrèkumari, um dos Javaé mais
idosos:

“(...) Não teve posto, só veio o pessoal do SPI para morar com os índios. Davam roupa,
as coisas de Tori (o branco), facão, foice, ferramentas, panelas para mulheres. Passou o
verão, começou inverno de novo... porque lá é difícil (de morar). Aí voltaram de novo.
Diz que o nome do Tori era... Mauro, antigamente o povo falava ‘Maru’. (Veio) com a
família, o irmão dele, Antônio”.

O Capitão Manuel S. Bandeira de Mello, paulista colaborador próximo do General


Rondon, que o encarregava de tarefas consideradas mais difíceis (Mello, 1982), fundou o
Posto Indígena Carajás em 1927 76 . Situado ao lado da aldeia Karajá Santa Isabel (ver
Mapa n° 2), o primeiro posto do SPI na Ilha do Bananal passou a se chamar Posto
Redenção Indígena em 1928, mas permaneceu abandonado entre 1931 e 1939 por causa
das turbulências políticas relacionadas ao Estado Novo 77 . Nos anos 40, em razão da visita
do Presidente da República, seria renomeado como Posto Indígena Getúlio Vargas. Em
1929, a comitiva do General Rondon, que ia de Cuiabá a Belém do Pará, visitou o Posto
Redenção Indígena, onde foi hasteada a bandeira nacional e cantado o hino nacional na
presença do convidado ilustre (ver Cunha, 1953). Em um relatório oficial de 16.01.1930,
Bandeira de Mello, conhecido como o “Capitão Bandeira” (Mello, 1982:142), descreve a
expedição que realizou naquele mês para encontrar os Javaé depois de descer o Araguaia,

76
Microfilme da FUNAI n° 270, fotogramas n° 1219 a 1221.
77
Ver Ribeiro da Silva (1935), Cunha (1953), Aureli (1962a), Mello (1982).

148
atingir a ponta norte da Ilha do Bananal e subir o Rio Javaés78 . Na época, o SPI tinha
dúvidas se os índios que habitavam o interior da ilha eram os Javaé ou os Avá-Canoeiro.
O funcionário do SPI e seus guias Karajá foram levados pelos Javaé receptivos e
curiosos que encontraram nas margens do Rio Javaés até a antiga aldeia Wariwari, onde
encontraram 66 pessoas morando em 8 casas. O “Chefe Uachiracô” e os outros
“mostraram-se muito satisfeitos, quando souberam que ia ser fundado um Posto para elles,
que pediram para ser logo”. O autor relata que fez uma “distribuição de ferramentas e
roupas a todos” e que encontrou um rancho de um outro grupo de 15 pessoas, da “Aldeia
do Sorrocam” (provavelmente a aldeia Lòreky), onde já não morava mais ninguém. Mello
menciona um total de sete aldeias na ilha, cinco das quais não visitou então por causa da
enchente.
Os Javaé indicaram um local no Rio Javaés, alto, seco e coberto de matas, para a
fundação do novo posto. Em junho de 1930, Darcy S. Bandeira de Mello, filho do Capitão
Bandeira e seu auxiliar no Posto Redenção, partiu de Santa Isabel com alguns Karajá e
não-índios, por terra, “com o fim único de explorar e abrir caminho pelo interior da ilha,
com destino ao local (...) escolhido para a futura fundação do Posto Felicidade Indígena,
dos índios Javaé” 79 . No caminho, às margens do lago onde os Javaé e Karajá costumavam
se encontrar, o funcionário do SPI encontrou alguns Javaé da aldeia Imotxi. O chefe do
grupo convenceu-os de que era impossível, naquela época, a travessia por terra até o local
escolhido para o posto, dada a quantidade de lagos, rios e áreas pantanosas no caminho.
Darcy Mello decidiu então aceitar o convite para conhecer a aldeia Imotxi, a mais próxima
de Santa Isabel no interior da ilha, onde encontrou “grande fartura” nas roças e foi
“festivamente” acolhido, “com verdadeiro carinho e contentamento”. Nos primeiros
momentos, porém, os animais de carga “causaram verdadeiro pânico entre as mulheres e
meninos, por terem pela primeira vez visto tais animais”. A aldeia, situada em “lugar lindo,
livre de inundações”, era composta de seis casas.
A equipe tentou mais uma vez, em julho do mesmo ano, atravessar a Ilha do
Bananal por terra, de Santa Isabel até o Rio Javaés 80 . Mas a expedição não alcançou seu
objetivo e o Posto Felicidade Indígena nunca foi fundado. No livro que escreveu muitos
anos depois, recordando os três anos vividos no Araguaia, Darcy Bandeira de Mello

78
Microfilme da FUNAI n° 271, fotogramas n° 1968 a 1972.
79
Microfilme da FUNAI n° 380, fotogramas n° 69 a 71.
80
Microfilme da FUNAI n° 380, fotogramas n° 74 e 75.

149
(1982:161) acentuou o caráter “pacífico” e a “boa-índole” dos Karajá e Javaé, que se
visitavam mutuamente com freqüência.
O Capitão Bandeira informou oficialmente ao SPI, em 1.1.1931, a quantidade de
machados, foices, enxadas, facões, anzóis e linhas de pesca que haviam sido distribuídos
aos Javaé no posto de Santa Isabel 81 . Um relatório geral do Coronel Alencarliense F. da
Costa 82 , encarregado do SPI em Goiás, de 5.01.1931, enfatizava a necessidade de reativar
a navegação do Araguaia com barcos a vapor, de construir uma estrada cortando a Ilha do
Bananal, entre Santa Isabel e o Rio Javaés, para atingir o posto que seria destinado aos
Javaé, e mencionava as visitas que os Javaé estavam realizando ao Posto Redenção
Indígena para “receber ferramentas de lavoura, roupas, outros auxílios materiais e a
segurança moral da nossa proteção” 83 .
As incursões do SPI às aldeias interioranas ocorreram aproximadamente na mesma
época em que os missionários dominicanos, oriundos da distante Conceição do Araguaia,
tentavam catequizar os Karajá e Javaé. Os Javaé ainda lembram quando alguns moradores
do Wariwari foram até Imotxi, acompanhados dos missionários que queriam visitar outras
aldeias, e encontraram apenas os vestígios dos corpos que foram enterrados pelos
sobreviventes depois da partida dos funcionários do SPI. Segundo a memória oral Javaé, os
missionários Frei Luiz e Frei Sebastião chegaram na aldeia Wariwari em um batelão,
trazendo muitas roupas, facões, fósforos, tesouras, entre outros bens, para os Javaé. Na
segunda viagem, depois de visitar algumas aldeias e batizar muitos índios em Wariwari, os
missionários obtiveram a autorização de algumas famílias, após grande resistência dos
Javaé, para levar três jovens adolescentes com eles para Conceição do Araguaia. Os
meninos eram provenientes das aldeias Kyrysa Hãwa, Wyhy Raheto Dijarana e Wariwari.
Partiram de Wariwari em junho e chegaram na cidade em outubro, permanecendo no local
até abril do próximo ano, quando as famílias respectivas foram buscá-los. Na ocasião, os
jovens já estavam aprendendo a ler.
Segundo a versão de Audrin (1946), a primeira visita dos missionários de
Conceição do Araguaia aos Javaé ocorreu em 1916, quando o Frei Francisco Bigorre foi
acompanhado do Frei Sebastião Tomás, vindo de Uberaba. Os missionários tentaram entrar
em contato com os Javaé com o objetivo explícito de se opor à “catequese leiga”
(1946:143) iniciada pelo “Dr. Mandacaru”, do SPI. Guiados por um índio Karajá, os

81
Microfilme da FUNAI n° 271, fotograma n° 1942.
82
Microfilme da FUNAI, n° 342, fotogramas n° 45 a 93.
83
Microfilme da FUNAI n° 342, fotograma n° 93.

150
religiosos encontraram apenas um acampamento provisório de verão nas praias do Rio
Javaés, com mais de 30 habitações. Frei Francisco (apud Audrin, 1946:146-147) relatou
que:

“(...) Os Javaés ali reunidos eram numerosos e pudemos assim, no prazo limitado de
tempo de que dispúnhamos, obter muitas informações preciosas (...). A alguns capitães
pudemos aí saudar, prometemos novas e próximas visitas e convidámo-los a chegar até
Conceição, afim de conhecerem, como os Carajás, o “Papai Grande” que os esperava.
Na hora da despedida escolhemos algumas armas e outros enfeites diversos para nossas
coleções e para nossos benfeitores. Deixámo-lhes sobretudo provas de amizade com a
distribuição de muitos ‘agrados’ em ferramentas, sal, rapaduras, roupas, além do
indispensável fumo. Levamos e conservamos bem viva até hoje a ótima impressão que
produziu sobre nós o Capitão principal ‘Ouachirékó’. Esse índio jovem ainda, esbelto e
possante, tratou-nos com verdadeira fidalguia, e nos cumulou de presentes e víveres.
Até o momento do embarque continuou insistindo para que voltássemos sem muita
demora, e prometendo-nos seu auxílio nas excursões projetadas a todas as aldeias do
interior da Ilha do Bananal ...”

Os Javaé das aldeias do interior da ilha, no entanto, só seriam visitados alguns anos
depois. Em 1925, Dom Domingos Carrérot, bispo de Porto Nacional e antigo responsável
pela missão de Conceição do Araguaia, visitou “sucessivamente a aldéia do ‘Muaré’, nas
beiras do rio ‘Dedjueó’ (...), – a aldéia de ‘Dorotibéró’, – a de ‘Uaruari’, – e enfim a aldéia
de ‘Imutí’” (Audrin, 1946:220). O Padre Reginaldo Tournier (1942), por sua vez, relata em
detalhes a penosa viagem que ele e os bispos de Porto Nacional (Dom Domingos) e de
Conceição do Araguaia (Dom Sebastião Tomás) realizaram em janeiro de 1926 em busca
dos Javaé. Carrérot e Tomás eram os missionários que, em 1914, haviam estabelecido o
primeiro contato amistoso com os Tapirapé 84 . Na viagem de 1926, os missionários
partiram de Leopoldina e decidiram descer o Araguaia pelo Rio Javaés, que praticamente
não era utilizado na época pelos navegantes por temor aos Avá-Canoeiro. Depois de um
naufrágio em que quase perderam a vida, os missionários dominicanos encontraram várias
roças que supuseram ser da “aldeia Wary-Wary”, na margem esquerda do Rio Javaés, e a
aldeia do “capitão José Muaré” (Tournier, 1942:149), a cerca de 10 km acima da foz do
Rio Dejueho (ou Rio Verdinho). O capitão Javaé já falava algumas palavras em Português
e já havia sido batizado por outros missionários, chamados pelos Karajá e Javaé de “Papai
Grande” (1942:165).

84
La Falaise (1939), Baldus (1970), Wagley (1988).

151
Os missionários convidaram o grupo para conhecer Conceição do Araguaia, com a
promessa de batismos e distribuição de presentes, e calcularam a população Javaé, com
base nas informações obtidas, como algo entre 400 e 500 pessoas. No livro de Tournier há
várias fotos dos Javaé em suas aldeias e algumas de uma visita deles a Conceição do
Araguaia. Segundo Audrin (1946), na volta a Porto Nacional, o Bispo Dom Carrérot
solicitou formalmente ao governador de Goiás que fossem asseguradas aos Javaé as terras
por eles habitadas. Na sua última viagem, em 1931, na companhia do dominicano Frei
Luiz Palha, um ano depois das expedições dos funcionários do SPI (do Posto Redenção
Indígena), Dom Carrérot visitou as aldeias de “Narbéó” e a do “Marrecão” (Audrin,
1946:220-221). Palha (1942) recorda em outro livro que, na última viagem, ele e o bispo
visitaram também uma aldeia do Lago do Mamão, onde distribuíram vários presentes e
foram os primeiros viajantes a chegar no local montados em cavalos, e outra nas margens
do “Uabè” (Wabe, o nome Javaé do Riozinho). As visitas dos dominicanos não tiveram
continuidade depois, embora muitas crianças e adultos tivessem sido batizados. Nos
escritos de Audrin, Tournier e Palha, há menção aos missionários de nome Sebastião e
Luiz, cujas curtas visitas são lembradas ainda hoje por José Wèrèkumari.
Em 1930, um outro grupo de missionários também tentou se aproximar dos Javaé
com o objetivo de evangelização (ver Pinheiro, 1994). O Pastor Alvin Allen, da Igreja
Adventista do Sétimo Dia, havia fundado a Missão Araguaia no povoado de Piedade, ao
sul da Ilha do Bananal, em 1928. Dois anos depois, acompanhado de algumas pessoas, o
pastor realizou uma viagem por terra ao interior da Ilha do Bananal, chegando faminto e
exausto a uma aldeia Javaé, onde foi bem recebido, tendo distribuído presentes e pregado
em nome de Deus por alguns dias. Mas a Missão Araguaia não prosperou nos anos que se
seguiram, tendo continuidade apenas entre os Karajá da aldeia Fontoura, e o projeto junto
aos Javaé foi abandonado.
Retomando os relatos dos próprios Javaé, após a visita do SPI, os poucos
remanescentes de Imotxi dividiram-se entre os que mudaram para as margens do Riozinho,
fundando a aldeia Wajukabà, e os que foram para Marani Hãwa. As epidemias alastraram-
se também nesta última, na mesma época, de modo que cerca de metade da população
morreu. Parte dos sobreviventes continuou morando na aldeia, enquanto outros refundaram
Hèryrihiky (Cachoeirinha, atual Wahuri) às margens do Rio Javaés, no mesmo local onde
existiu a aldeia Hèryrihiky mencionada pela mitologia (ver Mapa n° 2). Outros ainda foram
morar nos lugares chamados Juani e Dikutati, ambos às margens do Rio Jaburu, na porção

152
meridional da Ilha do Bananal. Alguns anos mais tarde, aproximadamente no começo da
década de 40, outro grupo de remanescentes de Marani Hãwa fundaria a aldeia Tahakala
(atual Barreira Branca), às margens do Rio Javaés. As famílias do Rio Jaburu
permaneceram pouco tempo no local, juntando-se algum tempo depois aos moradores da
antiga aldeia Lòreky, fundada em tempos mais antigos por moradores do Wariwari, às
margens do grande lago mítico Sòhoky.
Ainda na década de 30, os Karajá foram visitados e descritos por jornalistas e
escritores paulistas aventureiros que percorreram o Araguaia e seus afluentes, como
Hermano Ribeiro da Silva (1935) e Willy Aureli (1962a, 1962b, 1963); pelo casal de
franceses Richard e Rayliane de La Falaise (1939); e por antropólogos, como Herbert
Baldus (1948, 1970) e o norte americano William Lipkind (1940, 1948). Enquanto os
franceses desejavam conhecer os distantes Tapirapé, os jornalistas paulistas tentaram
reviver as bandeiras de seus antigos conterrâneos penetrando no temido território Xavante
para alcançar a famosa e misteriosa Serra do Roncador, divisor de águas natural entre o
Rio Xingu e o Rio Araguaia, então célebre em razão do desaparecimento do Coronel
Fawcett em 1925. Havia na época outros grupos tentando entrar no território Xavante a
partir das margens do Araguaia, por motivos variados, como os missionários salesianos da
Prelazia de Registro do Araguaia em busca dos Xavante (ver Duroure, 1936), os
garimpeiros sertanejos em busca de diamantes no alto Araguaia (Villas Bôas & Villas
Bôas, 1994, Lima Filho, 2001) e os expedicionários estrangeiros em busca do inglês
Fawcett.
As terras vizinhas às margens do médio Araguaia, especialmente a margem oeste,
eram ainda consideradas como “sertão”, território muito pouco conhecido a ser desbravado
e colonizado, embora tenha havido expedições de sucesso ao Rio das Mortes, como a de
Frei Segismundo de Taggia, em 1855, de caráter missionário (Cruz Machado, 1997b), ou a
do Engenheiro José Feliciano R. de Moraes, em 1891, de caráter oficial (Paixão, 2002). No
início dos anos 40, segundo os irmãos Villas Bôas (1994:41), integrantes da Expedição
Roncador-Xingu, “o grande sertão do Brasil Central (...) até poucos anos era a região
menos conhecida de todo o continente americano, talvez do mundo”. De um ponto de vista
dos brasileiros que viviam na costa, a grande maioria, “a faixa-limite do conhecimento
civilizado morria ali mesmo no Araguaia” (1994:24).
Hermano Ribeiro da Silva, que comandou a Bandeira Anhanguera em 1937 (ver
Brasileiro, 1938 e Mello, 1982), e Willy Aureli, que comandou a Bandeira Piratininga a

153
partir de 1936, tendo alcançado o cume da Serra do Roncador em 1938, navegaram pelo
Rio das Mortes, coração do território Xavante, e tiveram ampla divulgação de seus feitos
pela imprensa e apoio dos governos federal e paulista. Com exceção de Baldus, todos os
outros tentaram ou realizaram efetivamente expedições ao também muito pouco conhecido
território Javaé nos anos 30. Mas era comum nos escritos dos modernos bandeirantes e de
outros viajantes enfatizar o forte contraste entre os guerreiros e irredutíveis Xavante e os
pacíficos Karajá e Javaé, receptivos ao contato com os forasteiros.
Na viagem a remo que fez em 1932, o jornalista Hermano Ribeiro da Silva (1935)
constatou que o Posto Redenção Indígena, em Santa Isabel, estava abandonado desde 1930
e descreveu com detalhes minuciosos os nomes, a localização e a distância entre todos os
vilarejos por que passou, contando 14 pequenas localidades habitadas por não-indígenas
(incluindo o posto do SPI e um posto protestante) entre Leopoldina e Santa Maria. As duas
cidades eram os principais centros de expansão agropecuária nas margens do médio
Araguaia na segunda metade do século 19. Em 1880, cerca de 50 anos antes, conforme
relatório oficial já citado (Spínola, 2001a), não havia uma única povoação de brancos entre
São José do Araguaia e Santa Maria, trecho fluvial habitado exclusivamente pelos Karajá
(ver Mapa n° 8) .
Na ocasião em que realizou sua viagem, a atual cidade de Santa Terezinha era
apenas o pequeno vilarejo que o dominicano Frei Gabriel estava fundando, naquele ano,
com igreja e colégio, em frente a uma aldeia Karajá. Na aldeia já atuava uma missão
evangélica, fundada pelo Pastor Archibald MacIntyre no final dos anos 20 (Donahue,
1982) e comandada por um casal de ingleses que atendia índios e brancos portadores de
hanseníase, sífilis, malária e verminoses. Quando Ribeiro da Silva esteve na Missão
Evangelista, um casal de pastores tinha sido enviado para uma visita a uma aldeia Javaé
próxima. O autor (Ribeiro da Silva, 1935:134) registrou também que “o sarampo, a
coqueluche, a escarlatina, a gripe (...) aqui abatem de quando em quando numerosas vidas,
dizimando aldeias. A nação dos carajás, por exemplo, calculada em 10 mil almas há 50
anos atrás, na atualidade reunirá no máximo duas mil”.
Guiado por dois Karajá, entre eles o célebre chefe Watau, anfitrião de dois
presidentes da República nos anos que se seguiram, Hermano Silva realizou uma
expedição terrestre à aldeia Javaé Imotxi, partindo da aldeia Karajá Santa Isabel. Na aldeia,
de cerca de 150 pessoas, foi bem recebido pelos “pacíficos” (Ribeiro da Silva, 1935:252) e
hospitaleiros Javaé, que, no entanto, apresentavam “crescida porcentagem de barrigudos

154
opilados por vermes intestinais” (1935:258). O autor visitou várias casas, observou as
roças, notou a abundância de caça e pesca, trocou presentes, tirou fotografias, entrou na
Casa dos Homens e escreveu, por fim, que “a tribo espalha-se em uma dúzia de aldeias
semelhantes a esta, todas situadas no interior da ilha, nas cercanias dos seus limites do
oriente” (1935:258).
Quando chegaram de barco a Conceição do Araguaia em fevereiro de 1933, vindos
de Leopoldina, os franceses Richard e Rayliane de La Falaise encontraram um grupo de 13
índios Javaé nus na missão dominicana, para o escândalo dos moradores cristãos da cidade.
Conduzidos por um velho Karajá da aldeia Santa Isabel, o grupo viera de Imotxi atendendo
ao convite que Dom Sebastião Tomás fizera dois meses antes. Alguns índios foram
batizados e todos receberam presentes. Rayliane de La Falaise (1939:116), que tentou se
aproximar do grupo na ocasião, obteve a informação de que Imotxi, “a Aldeia-Capital”,
tinha entre 150 e 160 pessoas, enquanto o resto do grupo “se reparte entre uma dúzia de
aldeias secundárias, de uma centena de almas”. O salesiano J. Duroure (1936), que esteve
no Araguaia em 1935 e contou a história do assassinato dos missionários Jean Baptiste
Fuchs e Pierre Sacilotti pelos Xavante, em 1934, estimou a população dos Karajá, Javaé e
Xambioá em cerca de duas mil pessoas.
Dois anos mais tarde, Darcy Bandeira de Mello, ex-funcionário do SPI, tomaria
parte da Bandeira Anhanguera, organizada por Hermano R. da Silva em 1937. Como parte
das expedições, o subgrupo comandado por Mello partiu da fazenda do criador de gado
Lúcio Penna da Luz em Mato Verde, na margem esquerda do Araguaia, em direção ao
interior da Ilha do Bananal, “com o objetivo de fazer contato com os arredios Javaé, em
suas aldeias” (Mello, 1982:253). O fazendeiro forneceu os animais de montaria e
acompanhou o grupo guiado pelo Karajá Texibrè, que foi recebido com hospitalidade pelos
Javaé. Mato Verde era o nome do lugar onde os Karajá de Wèrè Hãwa faziam parte de suas
roças. Em troca de brindes aos Karajá, Lúcio da Luz instalou-se pioneiramente em Mato
Verde, em 1934, vindo da atual Santa Maria das Barreiras, no Pará, embora de origem
nordestina. Os Karajá passaram a morar na aldeia Krè Hãwa, junto ao vilarejo, que ficou
conhecido décadas depois com o nome atual de Luciara, dado por seus moradores em
homenagem ao fundador da cidade 85 .
O antropólogo norte-americano William Lipkind (1948), que realizou um censo
demográfico mais preciso a respeito dos três grupos em 1939, quando então alcançavam

85
Ver Baldus (1948), Aureli (1962b), Lima Filho (2001)

155
cerca de 1510 pessoas, encontrou 20 aldeias Karajá entre Leopoldina e Barreirinha, ao
norte da Ilha do Bananal, com uma população total de 795 pessoas, e duas aldeias
Xambioá, com apenas 65 habitantes. O autor estimou em 650 pessoas a população das 8
aldeias Javaé existentes então, embora não tenha visitado todas, situadas no Rio Javaés e
no interior da Ilha do Bananal. Na carta dirigida à diretora do Museu Nacional do Rio de
Janeiro, de 1941 (apud Donahue, 1982:179), Lipkind informa o nome das aldeias Javaé:
“Wariwari, Andeduralu, Tchuode, Waha, Marani Hawa, Imontchi, Wabi, Loroa,
Warareona”. No censo realizado pelos municípios goianos em 1940, segundo o
organizador do Museu de Goiás, Zoroastro Artiaga (1959), constatou-se a existência de
706 Karajá, distribuídos em 18 ou 20 aldeias.
O posto do SPI em Santa Isabel foi reativado em 1939 e Lima Filho (2001:41)
mostra como a histórica visita do Presidente Getúlio Vargas à aldeia Karajá em 1940, onde
ficou por cinco dias em um acampamento de caça e pesca, deu o impulso definitivo à
criação da Expedição Roncador-Xingu, que, “oficialmente, tinha a finalidade de abrir vias
de comunicação do litoral com o Centro-Oeste e a Amazônia”. O Araguaia foi escolhido a
partir de então para ser o ponto de partida do movimento de interiorização do país
conhecido como a Marcha para o Oeste (ver Villas Bôas & Villas Bôas, 1994), lançado por
Vargas em 1938 e depois retomado por Juscelino Kubitschek com a construção de Brasília.
Em 1943, o governo criou a Fundação Brasil Central (FBC), cujo objetivo era o
desbravamento e a colonização do Brasil Central, em especial a região do Araguaia e
Xingu. A FBC foi responsável pela estrutura de apoio da Expedição Roncador-Xingu, que
partiu no mesmo ano de Aragarças (antiga Barra Goiana), nas margens do Araguaia, rumo
ao Rio das Mortes e à Serra do Roncador, abrindo o caminho para a colonização efetiva da
região. A expedição, comandada em campo pelos irmãos Villas-Bôas, teve continuidade
por toda a década de 40, transformando-se na Expedição Xingu-Tapajós nos anos 50. A
equipe de vanguarda da colonização executou a abertura de estradas e campos de pouso de
aviões que deram origem a núcleos de povoação, além de estabelecer o contato definitivo
com os grupos indígenas do Xingu e vale do Teles Pires considerados “arredios” até então.
A cidade de São Félix do Araguaia, importante centro regional do médio Araguaia,
a cerca de três ou quatro quilômetros ao sul da aldeia Karajá Santa Isabel, originou-se do
vilarejo fundado em 1941 por Severiano de Souza Neves, cunhado de Lúcio da Luz, e um
grupo de criadores de gado, provenientes do Piauí, sobre o sítio abandonado da antiga
aldeia Karajá Hãwalò. Em 1942, o dominicano Dom Sebastião Tomás batizou o lugar com

156
o seu nome atual, dado em homenagem ao santo invocado pelos moradores locais para
protegê-los dos ataques dos Xavante (ver Ferreira, 2001).
Em 1945, Tilbor Sekelj (1948) realizou uma expedição em território Xavante e
depois desceu o Araguaia, a partir de Aragarças, tendo a oportunidade de passar dois meses
entre os Karajá da Ilha do Bananal e alguns dias entre os Javaé. O autor estimou a
população Karajá em apenas 600 pessoas. Sekelj adentrou a porção setentrional da Ilha do
Bananal por terra e alcançou um grupo de cerca de 20 índios Javaé acampados no
Riozinho, dos quais tirou fotografias, calculando em três as aldeias Javaé. Estes são
descritos como “puros”, “intactos”, “donos da selva e do rio”, e vivendo tal qual viviam
“há centenas de anos” (Sekelj, 1948:203), em contraste com os Karajá, que estavam
“perdendo” seus costumes. Nessa época, a aldeia Wariwari também seria vitimada por um
“grande feitiço”, segundo ouvi dos Javaé nos anos 90, embora de menores proporções que
aquele que acometeu Marani Hãwa.
O explorador paulista Willy Aureli (1962a, 1962b), que havia tentado alcançar os
Javaé por via terrestre, sem sucesso, em 1938, circunavegou a Ilha do Bananal em 1945 e
1946, visitou os Karajá, os Tapirapé e os Javaé, encontrando estes últimos, “hospitaleiros”,
“mansos” (Aureli, 1962b:210) e de “índole pacífica” (1962b:166), em aldeias a leste e a
oeste do Rio Javaés. Acompanhado de guias Karajá, entre eles o famoso Arutana,
informante de vários antropólogos e pesquisadores no século 20, Aureli encantou-se com a
beleza dos Javaé e de seus artefatos, a limpeza das aldeias e a fartura de suas grandes
roças, mas constatou que “estavam sendo dizimados por epidemia gravíssima: espécie de
peste pulmonar” (1962b:214). Aureli encontrou também quatro casos de Hanseníase. Na
ocasião, “famílias inteiras” (1962b:215) já haviam abandonado a antiga aldeia Wariwari,
visitada pelo autor, “buscando guarida em outras aldeias distantes e onde o mal ainda não
se propagara”. Em outro trecho a respeito da mesma aldeia, Aureli diz que “não
encontramos tantos índios, conforme esperávamos. A epidemia que assola o núcleo fizera
emigrar a maioria da população e as casas tinham sido destruídas ou simplesmente
abandonadas” (1962b.254). O autor (Aureli, 1962b:292) também descreve um episódio
anterior em que os Javaé, “pacíficos agricultores”, obtiveram carabinas Winchester e
reagiram aos ataques dos Avá-Canoeiro, matando vários deles.
No começo da década de 40, em razão de sérios conflitos internos, mencionados
também por Toral (1981), os moradores remanescentes da antiga Wariwari dividiram-se
entre um grupo que seguiu para as aldeias do Rio Loroti e para Hèdèraluku, fundadas

157
muito antes por moradores de Wariwari, e um grupo de três irmãos e respectivos familiares
que se deslocaram rio acima e se instalaram em local bem mais distante, nas margens do
grande lago Bèlybyranõra, pouco acima da Barra do Rio Verde. Alguns poucos moradores
ainda permaneceram em Wariwari e parte do grupo que se deslocou rio acima juntou-se
aos moradores da aldeia Hèryrihiky (Cachoeirinha, atual Wahuri). Por volta de 1946, o
grupo de Bèlybyranõra decidiu retornar rio abaixo e fundou a aldeia Canoanã (Kanõanõ)
na margem direita ou oriental do Rio Javaés, ao lado das pedras míticas onde o líder
Kanõanõ ascendeu em tempos antigos. Durante a viagem de volta, o grupo convidou os
moradores de Hèryrihiky para morar no novo local. Em meados da década de 40, os Javaé
refundaram a aldeia Tabàlàna, um pouco abaixo da aldeia Cachoeirinha, mas do lado
direito do Rio Javaés 86 .
Na mesma época, seria fundada uma aldeia no lugar conhecido como Kòtxisakò
(atual Barreira da Cruz, na margem direita do Rio Javaés) por cerca de 12 famílias.
Algumas das famílias eram de sobreviventes de uma epidemia de catapora em Karalu
Hãwa (no Lago da Pataca), adquirida nos anos 30 durante visita de trocas ao posto do SPI
da aldeia Karajá Santa Isabel, enquanto as outras, com quem tinham vínculos de
parentesco, eram originárias da região do Loroti, de onde saíram após a chegada dos
primeiros fazendeiros. Antes de se instalar em Kòtxisakò, os sobreviventes moraram em
dois outros locais à beira do Rio Javaés. No fim dos anos 50, o grupo de Kòtxisakò mudou-
se para Hòròtoro Hãwa, nome original do lugar onde foi fundada a atual aldeia Boto
Velho, situada poucos quilômetros rio acima, do lado da Ilha do Bananal. Boto Velho
situa-se muito próxima do sítio Inywèbohona, referido em importante episódio mítico
(narrado no capítulo 7), que deu o nome à atual Terra Indígena Inãwébohona.
Ainda em meados dos anos 40, a aldeia Syrahaky, no Lago Ananás, também foi
atingida por uma grande epidemia e seus sobreviventes dirigiram-se para uma das aldeias
do Riozinho e, depois, para o Boto Velho. Anos depois, na década de 60, moradores de
Wariwari e Txukòdè mudaram-se para a aldeia Boto Velho, que também abrigou outros
remanescentes das pequenas aldeias interioranas setentrionais, como Wararèkona, no Lago
do Mamão. Na versão recolhida por Toral (1999:90) a respeito da formação da aldeia Boto
Velho, acrescida de mais detalhes, o autor ouviu de um de seus moradores atuais que, na
época das epidemias, “morria gente de manhã, ao meio-dia, de tarde e à noite. Enterrar os

86
Levando em consideração a descrição de sua localização espacial, Tabàlàna é a aldeia a leste do Rio
Javaés visitada por Aureli (1962b) em 1946, chamada pelo autor de “Tahuelahuâ”.

158
mortos tornava-se quase impossível. Aldeias inteiras foram praticamente extintas”. A
aldeia chegou a ter apenas 40 remanescentes de vários locais em 1965 (1999:88).
Ainda segundo a memória oral dos Javaé, os irmãos Estevão e Lino Passarinho,
acompanhados de uma terceira pessoa, moradores do pequeno povoado Veneza (atual
Dorilândia), chegaram a Canoanã em 1949 (data mencionada na época aos Javaé), com o
objetivo de “amansar os índios”. Eles foram os primeiros não-índios a visitar a aldeia por
via terrestre, uma vez que até então não havia nenhum tipo de contato com os moradores
regionais que estavam começando a se instalar em povoados a leste da ilha, embora os
Javaé já soubessem que estavam sendo espionados à distância pelos brancos. Os não-índios
que chegavam à Ilha do Bananal até então vinham sempre por via fluvial. Depois desse
primeiro encontro, Vicente Mariquinha entrou em acordo com os Javaé e instalou-se ao
lado da aldeia, onde criava gado e mantinha um relacionamento amistoso com os índios,
enquanto outros regionais procuravam terras dentro da Ilha do Bananal.
No que se refere à margem leste do médio Araguaia, antigo território Javaé, no
começo dos anos 50, um grande fazendeiro originário de Goiânia, de nome Valterlô,
segundo os Javaé, comprou uma vasta área na margem direita do Rio Javaés, incluindo as
terras ocupadas por Vicente Mariquinha e seus filhos, e conseguiu a ajuda dos próprios
índios para a instalação de uma pista de avião, próxima ao Rio Formoso do Araguaia. O
novo proprietário das terras iniciou o desmatamento do local, a plantação de capim para
pasto e instalou um barracão vizinho à aldeia Canoanã, cujos empregados assediavam
sexualmente as mulheres Javaé.
Em 1952, o SPI instalou o Posto Indígena Damiana da Cunha no lugar onde existia
a aldeia Tahakala (ou Barreira Branca), fundada por remanescentes de Marani Hãwa na
beira do Rio Javaés. O posto foi chefiado por João Américo Peret no início (Toral, 1999) e
seria chefiado no começo dos anos 60 por Valentim Gomes, regional que atuara como
funcionário do SPI entre os Tapirapé, anos antes, para onde fora levado como auxiliar de
pesquisa por Charles Wagley (1988) em 1938. Peret informou a Toral (1999) que, nos anos
50, os Javaé de Barreira Branca, com 60 ou 70 habitantes, chegaram a trabalhar em
fazendas de arroz nas cabeceiras do Rio Formoso do Araguaia. Nos arquivos da FUNAI
(microfilme n° 270), os registros relativos a “guias de remessa” do SPI e “movimento da
renda indígena” dão conta que este posto – que incentivava a criação de gado – continuou
existindo até 1968, pelo menos, último ano de existência do SPI.

159
Devido aos conflitos gerados em Canoanã, que resultaram em episódios de
violência física dos novos moradores contra os índios, alguns Javaé dirigiram-se ao Posto
Indígena Damiana da Cunha e prestaram queixas contra os abusos dos funcionários da
fazenda. O SPI teria instalado um processo para apurar o ocorrido, ao mesmo tempo em
que convidou o grupo para fixar residência em Barreira Branca. Após um pequeno período,
entretanto, um pequeno grupo decidiu retornar a Canoanã, sendo aconselhado pelo chefe
de posto a se instalar, então, do outro lado do rio (margem esquerda), dentro da Ilha do
Bananal, para evitar os confrontos com os não-índios da fazenda. Na versão recolhida por
Toral (1981:73), o “fazendeiro conseguiu que os índios saíssem da aldeia” no fim da
década de 50, que o fizeram “inconformados com a perda do local”.
A nova aldeia, a menos de um quilômetro rio acima, foi fundada exatamente no
lugar onde antes existiu a aldeia Kanõanõ, do extinto povo Torohoni. Antes disso, um
grupo reduzido retornou para a aldeia Cachoeirinha, enquanto algumas famílias Javaé que
estavam no Araguaia passaram a morar definitivamente junto aos seus parentes de
Canoanã, aumentando o grupo. Assim surgiu a atual aldeia Canoanã, ainda na década de
50, que se tornaria a maior aldeia Javaé na fase pós-contato.
Em 31.5.1961, Valentim Gomes escreve ao chefe da 8ª. Inspetoria Regional do SPI,
sediada em Goiânia, pedindo providências urgentes após visitar as aldeias Canoanã e
Cachoeirinha 87 . Segundo seu relato, do outro lado do rio, em frente à aldeia Canoanã,
estava instalada “uma fazenda de criação de gados, pertencente à Sociedade Anônima
Agro Pecuária, possuidora de grande gleba de terra, adquirida do senhor Waldemar
Prudente”, originário de Goiânia. Gomes relata que os empregados da fazenda invadiram
as terras ao redor da aldeia Canoanã, na Ilha do Bananal, de onde extraíram mais de mil
peças de madeira de lei valiosas, como aroeira e cedro, que “foram atravessadas pelo rio
para a sede da referida Sociedade”. O funcionário do SPI menciona ainda a existência de
outras invasões “não menos graves” e conclui que é “humilhante e de pavor a situação dos
Javaés, chegando ao cúmulo de serem proibidos por civilizados de fazerem roças em suas
próprias aldeias”.
Na década de 50, aumentou a penetração das frentes pastoris e agrícolas no médio
Araguaia, em ambas as margens, tanto em função da “pacificação” dos Xavante como dos
efeitos da Marcha para o Oeste. As construções de Goiânia nos anos 30 e a de Brasília no
fim da década de 50 inauguraram um novo fluxo migratório no Brasil Central. A instalação

87
Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1328.

160
de pequenas e grandes fazendas nas duas margens do grande rio ocorreu paralelamente à
entrada cada vez maior de posseiros de menor poder econômico na Ilha do Bananal.
Em 1959, a etnóloga Wilma Chiara (1970) testemunhou em uma aldeia Javaé
setentrional do Riozinho, dentro da Ilha do Bananal, que um criador de gado tentara trocar
as terras ao redor da aldeia com o cacique local, que mal compreendia o Português, por um
revólver. Os moradores da aldeia ainda não realizavam transações econômicas em
dinheiro, mas já trocavam mantas de pirarucu salgado por mercadorias diversas com
comerciantes de Belém. Aureli (1963:198-199) descreve que, também em 1959, nas
cercanias de São Félix do Araguaia, quase todos os dias chegavam famílias de pobres e
famintos sertanejos goianos, expulsos de suas terras de origem, em busca de acolhimento
nas margens do Araguaia e nas terras interioranas do Mato Grosso. Na expedição que
realizou ao longo de todo o Riozinho, no mesmo ano, a partir de sua foz, Aureli (1963)
encontrou vários moradores fixando residência no interior da ilha.
Chiara (1970) relata que, nos anos 50, ainda não havia sido retomado o transporte
fluvial regular do Araguaia, interrompido na virada do século, e que a ligação da população
ribeirinha com os centros do sul e do norte era feita apenas por comerciantes
independentes, proprietários de barcos a vapor. Os vilarejos ao norte da Ilha do Bananal
tinham vínculos comerciais com Belém, enquanto os vilarejos ao sul da ilha eram ligados a
Aruanã (antiga Leopoldina) e a Goiás Velho ou a Goiânia, fundada em 1937, por meio de
uma estrada que chegava até Aruanã.
Em sua análise da Marcha para o Oeste, Lima Filho (2001) mostra em detalhes
como a Ilha do Bananal e o Araguaia também foram considerados pelo governo de
Juscelino Kubitschek (1955-1960) como pontos estratégicos para o processo maior de
ocupação do interior do país e de construção da brasilidade. O presidente tinha o objetivo
de estabelecer núcleos agrícolas na região para expandir a frente agropecuária e teve a
idéia, já no fim do seu governo, de inaugurar um luxuoso hotel na Ilha do Bananal, ao lado
da aldeia Karajá Santa Isabel, como forma de estimular o turismo naquele que era
considerado um verdadeiro paraíso de caça e pesca. Dentro desse contexto, a ilha foi
transformada no Parque Nacional do Araguaia no fim de 1959.
O presidente visitou a aldeia Santa Isabel em maio de 1960 e, logo a seguir, foi
deflagrada a Operação Bananal, definida por Lima Filho (2001:100) como “o último
desdobramento” do plano de metas desenvolvimentista do governo JK. Em poucos meses,
a Fundação Brasil Central foi encarregada de construir ao lado da aldeia Santa Isabel o

161
Hotel JK, projetado por Oscar Niemeyer, uma grande pista asfaltada para aviões, uma base
militar da Força Aérea Brasileira, um hospital indígena, uma escola primária e a residência
oficial onde Juscelino e sua comitiva se hospedavam em suas expedições de caça e pesca,
conhecida como Alvoradinha. O hotel e o Alvoradinha, parte do “capricho modernista”
(Lima Filho, 2001:97) de Kubitschek, e a própria Fundação Brasil Central entraram em
decadência nos governos militares que se seguiram, mas a invasão de várias centenas de
trabalhadores ao local contribuiu para a expansão de casas, bares, doenças, violência e
prostituição na vizinha São Félix do Araguaia, cuja influência foi sentida diretamente pelos
Karajá 88 .
Nos anos 60, incentivadas pelos financiamentos oficiais da SUDAM, imensas
propriedades de moradores ricos do sul do país começaram a ocupar a margem oeste do
médio Araguaia, como a pioneira Fazenda Suiá-Missú, que chegou ao centro do território
dos Xavante setentrionais (atualmente Terra Indígena Marãiwatséde) no começo dos anos
60, tornando-se o maior latifúndio brasileiro nos anos 70 (Rodrigues, 1992); e as grandes
fazendas da CODEARA (Companhia de Desenvolvimento do Araguaia) e da Tapiraguaia,
alojadas no território dos Tapirapé e Karajá (ver Wagley, 1988). Tendo como pano de
fundo os governos militares que se instalaram no Brasil a partir de 1964, teve início uma
série de graves conflitos e disputas pela terra entre os grandes proprietários e os posseiros
da região. Os camponeses e os índios foram apoiados em suas demandas pela Igreja
católica, cujo principal representante local deixou de ser a atuação missionária indigenista
dos dominicanos de Conceição do Araguaia e passou a ser a ação fortemente politizada da
Prelazia de São Félix do Araguaia, envolvida com os ideais da Teologia da Libertação e os
movimentos sociais.
Os Javaé não sofreram diretamente o impacto da atuação da Fundação Brasil
Central no Araguaia, mas a violência por parte das frentes agro-pastoris era freqüente na
época, como já foi enfatizado por Toral (1981, 1999), que menciona a extração de madeira
de lei ao redor da aldeia Boto Velho. Em um ofício de 1961, o Chefe de Posto Valentim
Gomes sugere a necessidade de mudança do Posto Indígena Damiana da Cunha para a
aldeia Canoanã, que funcionaria com um “posto avançado de vigilância para evitar a
invasão por parte de civilizados” 89 . Um informe do mesmo Valentim Gomes à 8ª. IR, desta

88
Ver Aureli, (1963), Chiara (1970), Tavener (1973), Lima Filho (1994, 2006).
89
Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1329.

162
vez de 15.5.1964, relata que, dois dias antes, um índio Javaé havia sido espancado a 18 km
de distância do Posto Damiana da Cunha 90 :

“(...) Foi espancado o índio de nome Luiz, por quatro rapazes, com o fim de manter
relações sexuais com a índia sua esposa. Depois de ter dado tiro no índio e espancado,
fugiram do local, sem que nós pudéssemos tomar as devidas providências. O índio
estava pescando para si, com aviação a crédito adquirida por mim, evitando dos
exploradores, mas nem assim os índios ficam em paz desses crimes. Senhor Chefe, há
anos que os Javaés vêm sofrendo, sem que os criminosos fossem punidos. Comunico
que o posto é desprovido de pessoal, material e recursos para repelir esses abusos”.

Em 1966, um outro chefe do Posto Damiana da Cunha informava à 8ª IR que


fazendeiros vizinhos “continuam ameaçando os índios e funcionários, inclusive estão
escorraçando o nosso gado” 91 . A população Javaé do posto era de apenas 44 pessoas em
1966 92 . Em 1967, com o retorno de uma família e a mudança de pessoas de outras aldeias,
alcançou 86 pessoas 93 .
Canoanã passaria a contar com a relativa proteção do Estado em 1964, quando o
SPI fundou o Posto Indígena Canoanã, onde então moravam 177 índios, com vistas à
criação de gado. O encarregado do posto “recentemente criado”, Sallim Costa de Oliveira,
escreve em relatório de 30.4.1965, para o SPI, que entre Canoanã e a ponta norte da Ilha do
Bananal viviam cerca de 150 índios Javaé “carecidos de assistência”. O chefe de posto diz
ainda sobre os Javaé de Canoanã 94 : “Os índios são bons e ordeiros, bastante trabalhadores,
vivendo do marisco, no que são explorados pelos regatões que ali aportam para o marisco
de pirarucu e jacaré. Este ano os índios não terão colheita de suas lavouras, pois o gado dos
fazendeiros que rodeiam o Sub.Posto invadiu suas roças, depredando-as”. Um outro
informe do encarregado do Posto de Canoanã ao SPI, também nos anos 60, relata que
fazendeiros estavam soltando o gado nas roças dos índios da aldeia Wariwari e
prejudicando a sua alimentação 95 .
No censo realizado pelos lingüistas David e Gretchen Fortune (1986) em 1962 e
1963, foram encontradas 33 aldeias dos Karajá, Javaé e Xambioá, e apenas 900 falantes da
língua Karajá. Mas segundo dados do SPI de 1964 (Malcher, 1964:193), a população total

90
Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1428.
91
Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1438.
92
Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1439.
93
Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1470 e 1471.
94
Microfilme da FUNAI n° 272, fotograma n° 933.
95
Microfilme da FUNAI n° 272, fotograma n° 961.

163
dos Karajá, Javaé e Xambioá totalizava cerca de 1200 pessoas. Os Javaé tinham então 8
aldeias: “Barreira Branca, Morrinho, Cachoeirinha, Canoanã e Ponta da Ilha”, situadas no
Rio Javaés, e “Jaburu, Imuti e Lago do Mamão”, no interior da Ilha do Bananal. A aldeia
Ponta da Ilha, a mais setentrional, situava-se na foz do Riozinho. Em 1966, o antropólogo
Christopher J. Tavener (1966) viajou por 4 meses pelo Araguaia e visitou todas as aldeias
Karajá. Baseado no que ouviu dos Karajá, calculou a população Javaé em cerca de 200
pessoas, distribuídas nas aldeias Canoanã e Loroti.
Depois da instalação do Posto Indígena Canoanã, de acordo com os Javaé, aos
poucos o SPI convidou os moradores da aldeia Lòrèky, não muito distante de Canoanã, os
de Cachoeirinha e os remanescentes do Wariwari a se transferirem para o local. Os
moradores do Riozinho vieram para Canoanã nos anos 70, quando o órgão indigenista já
era a FUNAI. Conforme já relatou Toral (1981:73), em razão da atuação do SPI, da
pressão sofrida pelos criadores de gado e das grandes perdas populacionais nas aldeias
antigas, os sobreviventes Javaé “começam a se concentrar na aldeia Canoanã. Esse
processo de concentração populacional se completou, de certa maneira, em 1973 com a
chegada dos que moravam nas aldeias de Jatobá, Ariuari, Lorotí, Marani-hawá, Imotí,
Cachoeirinha, Barreira Branca (com a desativação do P.I. Damiana da Cunha) e parte dos
que moravam em Barreira da Cruz (Boto Velho)”. O antropólogo Noraldino V. Cruvinel
(1976), funcionário da FUNAI, visitou Canoanã em 1976 e calculou a sua população –
incluindo outras etnias – em 336 pessoas.
Na época estava sendo implantada pelo órgão indigenista uma até então inédita roça
coletiva (de arroz e milho), com vistas à comercialização. Toral (1981:76) menciona os
outros “projetos de desenvolvimento” iniciados pela FUNAI nos anos 70, como a criação
de gado pelos próprios índios, corte e costura ou venda do pirarucu, ressaltando que
“nenhum desses projetos conseguiu ser assimilado pelo grupo indígena”. Os Javaé foram
estimulados a participar da Guarda Rural Indígena (GRIN), logo desativada. Ainda
segundo o autor, em 1979 os Javaé estavam em sua maioria morando na aldeia e Posto
Indígena Canoanã, havendo apenas 17 pessoas em Boto Velho e 20 pessoas em Porto Luís
Alves, pequeno povoado de não-índios às margens do Araguaia. Em Canoanã,
aglutinaram-se “acusados de feitiçaria, homicidas, líderes de facções minoritárias” e o líder
de uma facção dominante (Toral, 1992:48), os quais tiveram que conviver sob a tutela da
FUNAI. O processo de reunião dos remanescentes de outras aldeias pressupôs um

164
deslocamento populacional do interior da Ilha do Bananal e arredores (a leste) para as
aldeias da beira do Rio Javaés.
Na década 70, ao mesmo tempo em que a população Javaé chegava a um número
crítico de sobreviventes, tinha continuidade a ocupação tanto da Ilha do Bananal por
posseiros quanto da margem direita do Rio Javaés por grandes fazendas de vocação
agropecuária. Em 1973, uma violenta frente de atração da FUNAI contatou na região da
Mata Azul, a alguns quilômetros da aldeia Canoanã, os Avá-Canoeiro que perambulavam
em fuga, há muitos anos, do cerco crescente da sociedade envolvente, tendo adentrado o
antigo território Javaé no século 19 (ver Pedroso, 1994, 2006). Os poucos Avá-Canoeiro
que sobreviveram ao contato foram instalados pela FUNAI na aldeia Canoanã, de seus
inimigos tradicionais, enquanto o grupo BRADESCO adquiria vastas áreas na margem
direita do Rio Javaés, nas terras que foram habitadas pelos Javaé e, depois, pelos Avá-
Canoeiro. Após a rendição dos Avá-Canoeiro, o grupo BRADESCO instalou a sede da
Fazenda Canuanã no mesmo sítio onde existira, quase 30 anos antes, a primeira aldeia
Canoanã, cujo cemitério foi destruído pelos tratores da fazenda. Na fazenda surgiu a
Fundação BRADESCO, instituição educacional que passou a ter importante impacto na
vida dos vizinhos Javaé.
Também em meados dos anos 70, seria instalada a sede da Fazenda Capão de Côco,
da Companhia Brahma, dedicada à criação de búfalos, no local onde existira a aldeia
Horeni (“côco babaçu”), habitada pelos Javaé até 1971 ou 1972. Uma outra aldeia Javaé
abandonada na época, chamada Hãwariè, também estava situada nas terras adquiridas pela
fazenda na região do Rio Loroti. Em meados dos anos 90, a sede da fazenda Capão de
Côco transformou-se em um pequeno vilarejo dentro das terras inundáveis adquiridas pelo
INCRA para assentar os posseiros retirados da Ilha do Bananal pela FUNAI, assunto a ser
retomado no próximo item. Mais recentemente, a Companhia Brasileira de Agropecuária
(COBRAPE), do grupo português Espírito Santo, proprietária de grandes extensões de
terra, iniciou em 1996 um grande projeto de produção de arroz e gado de corte na região
vizinha à aldeia Wariwari. No novo milênio, a Fazenda Dois Rios, de um grupo de origem
norte-americana, instalou-se nas imediações da aldeia Boto Velho, desmatando grandes
áreas para a plantação de arroz irrigado e soja. No século 20, as antigas aldeias interioranas
foram abandonadas e a margem direita do Rio Javaés seria aos poucos ocupada por
fazendeiros, pequenas cidades e, cada vez mais, por grandes latifúndios dedicados à
atividade agropecuária.

165
A partir dos anos 70, porém, como já constatara Toral (1992, 1999), teve início a
recuperação populacional do grupo, que atingiu 1.371 pessoas em julho de 2007
(FUNASA, 2007), e a retomada de antigos locais de moradia dentro da ilha. Assim, Toral e
Maia (1983:4) relatam que, em 1979, em razão tanto das tensões políticas em Canoanã
quanto do “desejo explícito de controlar a ocupação indiscriminada de seus territórios
tradicionais”, um grupo de famílias lideradas por Juraci Javaé deixa Canoanã e dirige-se à
mata de São João, onde funda uma nova aldeia com o objetivo de controlar as derrubadas
ilegais de não-índios; os de Boto Velho voltam à sua aldeia, no mesmo ano (ver Maia,
1986); e em 1982, “os de Barreira Branca retornam à sua aldeia liderados pelo cacique
Jorge Tãhãré” (Toral e Maia, 1983:4), descendente de um dos fundadores da aldeia.
Tempos depois, a FUNAI reativaria o Posto Indígena da aldeia Barreira Branca. Quando
cheguei aos Javaé pela primeira vez, em 1990, eles tinham uma população de pouco mais
de 700 pessoas e estavam distribuídos nas quatro aldeias mencionadas: Canoanã, a maior
de todas, com mais de 500 pessoas, Barreira Branca, São João (Ikòròtòbò) e Boto Velho,
todas situadas às margens do Rio Javaés.
Nos anos seguintes, a dispersão e retomada territorial teve continuidade, seja em
razão do crescimento populacional, de conflitos internos, do esgotamento de recursos
naturais (ao redor de Canoanã) ou em função do projeto político de reocupação do
território tradicional. Em 1991, moradores de Canoanã, originários de Wariwari,
retornaram para o local mítico, fundando a nova Wariwari, situada na beira do Rio Javaés,
a cerca de 5 km da antiga aldeia Wariwari 96 ; em 1995, houve o retorno de um pequeno
grupo para a aldeia Cachoeirinha, que recentemente passou a ser conhecida como Wahuri,
e a tensa tomada do povoado branco Porto Piauí, situado em terras indígenas, que se
transformou a partir de então na aldeia Txuiri (Bonilla, 1997, 2000); em 1998, outro
pequeno grupo, constituído de um sogro e seus filhos e genros, seguiu para Imotxi, seu
local de origem; em 2001, um grupo que morava na nova Wariwari retornou para a antiga
Txukòdè e, no mesmo ano, por causa conflitos internos, um grupo de 36 pessoas originário
de Barreira Branca tentou fundar a aldeia Taimy, na embocadura do Rio Caracol.
Entretanto, as difíceis condições de locomoção fizeram com que o grupo desistisse
da empreitada e se instalasse na Barra do Rio Verde. O local é um conhecido ponto
freqüentado por turistas, banhistas e pescadores amadores na época da seca e há muitos

96
Antes das perdas populacionais pós-contato, a aldeia Wariwari, agora nas margens do Rio Javaés desde
1991, situava-se a cerda de 6 ou 7 quilômetros para dentro da Ilha do Bananal, no lugar chamado Capão de
Areia, o qual tive a oportunidade de visitar em junho de 1997.

166
anos era habitado, em suas imediações, por um pequeno grupo de índios Karajá casados
em sua maioria com não-índios. Estes últimos fundaram a aldeia Waritaxi, perto da Barra
do Rio Verde, em 2002. Também em 2002, um grupo de 30 pessoas originário de Boto
Velho, ao qual se juntaram 36 moradores da nova Wariwari, fundou a aldeia Inyhija (Boa
Esperança), com o estímulo da FUNAI, em razão de conflitos na aldeia de origem. Em
2005, uma família residente em Txukòdè fundou a aldeia Wakòtyna em antigo local de
moradia na região entre Txukòdè e Boto Velho, com o objetivo explícito de proteger a área
de possíveis invasões.
Atualmente, os Javaé estão distribuídos em 13 aldeias, cerca de 115 pessoas vivem
nas cidades próximas (FUNASA, 2007), e está nos planos de uma família de Canoanã
retornar à mítica Marani Hãwa ainda este ano. Com exceção da aldeia Imotxi, que se
localiza no interior da Ilha do Bananal, no mesmo lugar referido pela mitologia, todas as
outras estão situadas na beira do Rio Javaés, embora a maioria esteja em sítios já ocupados
pelos Javaé antes do contato regular com a sociedade nacional. Nos quadros a seguir,
temos um resumo dos dados populacionais sobre os Javaé e Karajá (ver Rodrigues, 2008) a
partir do século 20 e da data de fundação das atuais aldeias (ver Mapa n° 2):

167
Tabela n° 3: Dados Populacionais dos séculos 20 e 21 (Javaé)
Autor Data População N° de aldeias
Memória Oral Javaé Até o início do Mais de 40
século 20
Fritz Krause 1908 Entre 800 e 1.000 5
SPI (Mandacaru) 1912 600 6
Padre R. Tournier 1926 Entre 400 e 500
SPI (M. B. de Mello) 1930 7
H. Ribeiro da Silva 1932 Cerca de 12
R. de La Falaise 1933 Cerca de 12
William Lipkind 1939 650 8
Zoroastro Artiaga 1940 160 5
Tibor Sekelj 1945 3
SPI (Malcher) 1964 8
SPI (Sallim Oliveira) 1965 177 em Canoanã e 150
mais ao norte
Christopher Tavener 1966 Cerca de 200 2
FUNAI (N. Cruvinel) 1976 336 em Canoanã
André Toral 1978 286 2
Patrícia Rodrigues 1993 740 5
FUNAI (Gurupi) 1998 839 8
FUNAI (Gurupi) 1999 849 8
Patrícia Rodrigues 2002 1.053 11
FUNASA 2005 1.250 12
FUNASA 2007 1.371 13

Tabela n° 4: Distribuição da população Javaé atual (julho de 2007)


Aldeia Data de fundação População (segundo
FUNASA)
Boto Velho (Hòròtoro Fim da década de 50 132
Hãwa)
Canoanã (Kanõanõ) Fim da década de 50 301
São João (Ikòròtòbò) 1979 211
Barreira Branca (Tahakala) 1982 133
Wariwari (nova) 1991 115
Cachoeirinha (atual Wahuri) 1995 42
Txuiri 1995 127
Imotxi 1998 34
Txukòdè 2001 74
Barra do Rio Verde 2001 24
Boa Esperança (Inyhija) 2002 30
Waritaxi 2002 18
Wakòtyna 2005 15
Cidades próximas
Gurupi 14
Formoso do Araguaia 101
Total 1.371

168
Tabela n° 5 – Dados Populacionais dos séculos 20 e 21 (Karajá)
Autor Data População N° de aldeias
Memória Oral Karajá Até o início Mais de 40
do século 20
Padre Gallais 1901 Menos de 1.000
Frei Gil Vilanova 1902 10
Fritz Krause 1908 815 23
SPI (Mandacaru) 1912 1.000 18
SPI (M. B. de Mello) 1927 650 10
Darcy B. de Mello 1927 3.000
Rayliane de La Falaise Começo dos 14
anos 30
Hermano R. da Silva 1932 Menos de 2.000
William Lipkind 1939 795 20
Zoroastro Artiaga 1940 706 18 ou 20
Tilbor Sekelj 1945 600
Othon Machado* 1945 18
Pastor McIntyre** 1945 Menos de 700
Herbert Baldus 1947 12
Mário F. Simões*** 1958 18
Fortune & Fortune 1962/1963 Cerca de 900 33 aldeias (Karajá, Javaé
(Karajá, Javaé e e Xambioá)
Xambioá)
SPI (Malcher) 1964 1.200 (Karajá, 19
Javaé e Xambioá).
Tavener 1966 791 15
Fénelon Costa 1968 Mais de 1.000
George Donahue 1977 1.500
Fortune & Fortune 1986 2.700 (Karajá,
Javaé e Xambioá)
Marielys Bueno 1987 8 principais
André Toral Anos 80 1.588 14
Manuel F. Lima Filho 1990 Cerca de 1.400 15
Nathalie Pétesch 1998 2.500 (Karajá, 12 principais (Karajá)
Javaé e Xambioá)
FUNAI (Almeida)**** 2006 2.413 15 aldeias mais centros
urbanos
FUNASA 2006 2.752
FUNASA 2007 2.927

* Ver Machado (1947)


** Ver Machado (1947)
*** Ver Lima Filho & Alvarenga Nunes (1992).
**** Ver Almeida (2006a, 2006b, 2007)

169
Tabela n° 6: Distribuição da população Karajá atual (dezembro de 2007)*
Aldeia Data de fundação População atual
(segundo FUNASA)
Èhyho (atual Barreira de Anterior ao século 20 14
Campo)
Rènõà (ao lado do atual Lago Início do século 20 25
Grande)
Fontoura (Botõiry) Segunda metade do século 612
19
Aruanã (Buridina) Início do século 20 190
Cocalinho Início do século 20 40 (Karajá e Guarani)
Maranduba Primeira metade do século 33
20
Santa Isabel do Morro 1927 653
(Hãwalò)
Itxala (nova) Início dos anos 40 204 (Karajá e Tapirapé)
Macaúba (Hèryri Hãwa) 1956 393
Mirindiba 1971 87
Santo Antônio 1971 47
São Domingos (Krè Hãwa) 1983 172
JK 1992 63
Hãwalora 1992 64 (Karajá e Tapirapé)
Maitxàri 1993 78 (Karajá e Tapirapé)
Kaxiwè 1995 24
Watau 1997 44
Nova Tytema 2000 71
Teribrè 2004 50
Hurehãwa 2006
Ibutuna 2007 63
Total 2.927

* A lista a FUNASA inclui indivíduos de origens étnicas diferentes e não-índios, mas não
deixa claro se inclui os Karajá que moram em outros centros urbanos. A estatística
referente a Buridina (Aruanã) inclui os habitantes da vizinha aldeia Hurehãwa. De acordo
com um relatório oficial recente da FUNAI (Almeida, 2006b), há cerca de 100 Karajá
morando em São Félix do Araguaia (MT), Luciara (MT), Santa Terezinha (MT), Goiânia,
São Miguel do Araguaia (TO), Lagoa da Confusão (TO), Palmas, Redenção (PA), São
Paulo e Brasília.

170
3.4. Reagindo às transformações

3.4.1. A retomada do território

Um marco histórico decisivo para a recuperação populacional do grupo e


manutenção parcial do território tradicional Karajá e Javaé seria a criação – pelo Presidente
Juscelino Kubitschek – do Parque Nacional do Araguaia em 31.12.1959, instituído pelo
Decreto nº 47.570, cuja área correspondia à totalidade da Ilha do Bananal. Em razão de sua
importância extraordinária, a Ilha do Bananal, dotada de uma biodiversidade única e
riquíssima, foi incluída pelo Brasil na Lista de Zonas Úmidas de Importância Internacional.
A lista integra a Convenção Relativa às Áreas Úmidas de Importância Internacional,
conhecida como “Convenção de Ramsar”, um acordo de cooperação internacional datado
de 1971, destinado à proteção de zonas úmidas e aves aquáticas em todo o mundo, que foi
ratificado pelo Brasil em 1996 (Decreto n° 1.905, de 16.5.1996).
Em 1971, a Ilha do Bananal seria dividida entre o Parque Nacional do Araguaia
(PNA), ao norte, com 460.000 ha (Decreto nº 68.873, de 5.7.1971), destinado à proteção
ambiental, e o Parque Indígena do Araguaia (PIA), com cerca de 1.540.000 ha (Decreto nº
69.263, de 22.9.1971). Em 1973, um novo decreto (71.879, de 1.3.1973) retificaria os
limites entre os dois parques [“onde se lia ‘paralelo 10º 5’ de latitude sul, (...) passa-se a ler
‘paralelo 10º 50’ de latitude sul”], de modo que a aldeia Macaúba, dos Karajá, ficaria fora
da nova área do Parque Indígena, diminuída para 1.433.000 ha. Nova retificação é feita em
1980 (Decreto nº 84.844, de 24.6.1980), diminuindo mais uma vez a área indígena, que
passa a totalizar 1.395.000 ha. Desta vez, corrige-se o erro anterior, incluindo a aldeia
Macaúba na área indígena, mas se deixa de fora a aldeia Boto Velho e região vizinha, dos
índios Javaé (ver Mapa n° 9, ao lado). O Parque Indígena do Araguaia passou a ser
conhecido como Terra Indígena Parque do Araguaia em 1998, depois da homologação da
sua demarcação administrativa.
O Rio Araguaia é caracterizado por um regime de inundações periódicas que divide
o ciclo anual entre a estação seca e a estação cheia. Na seca, o rio começa a secar em
meados de maio, aproximadamente, atingindo o ápice da seca em setembro ou outubro.

171
Mapa 9
1959 Evolução dos limites das 1980
Terras Indígenas e Unidades de
Conservação na Ilha do Bananal
Parque
Nacional
do Araguaia
Macaúba Macaúba
Boto Velho Boto Velho
aia

aia
A ragu

A ragu
Parque
Nacional
Rio

Rio
do Araguaia

Parque Indígena
do Araguaia
tes

tes
Ilha do Bananal
s Mor

s Mor
Unidade de Conservação
da

da
de Proteção Integral
Rio

Rio
Terra Indígena
Aldeia indígena afetada
és pelo PNA és
va

va
Ja

Ja
Rio
Rio

Rio
N
0 100 km

Fontes: FUNAI 2008 Parque Estadual


1985 Projeto: Patrícia de M. Rodrigues do Cantão 2008
Cartografia: Dan Pasca

Parque Nacional Parque Nacional


do Araguaia do Araguaia

Macaúba Macaúba
Boto Velho Boto Velho
Área Indígena TI Tapirapé/Karajá Terra Indígena
Boto Velho * Inãwébohona *

TI Krahô-
Kanela
aia

TI São Domingos
A ragu

TI Cacique
Rio

Fontoura

Parque Indígena Terra Indígena


do Araguaia Parque do
Araguaia
tes

Parque
tes

s Mor

Estadual
s Mor

do Araguaia
da
da

Rio
Rio

és és
* Identificada em 1999,
va
va

Ja

demarcada em 2002,
Ja

homologada em 2006.
Rio
Rio

* interditada em 1985 Área restante do PNA


em identificação

172
Na estação cheia, o rio começa a encher em novembro, aproximadamente,
atingindo o ápice da enchente em fevereiro ou março. As inundações produzem o
alagamento da Ilha do Bananal e planícies adjacentes às margens dos rios Araguaia e
Javaés durante vários meses do ano, tornando impossível a instalação de casas e o tráfego
de carros na região inundada. A única alternativa para estes últimos são as poucas estradas
aterradas construídas pelo governo local, não existindo até o momento nenhuma estrada
deste tipo dentro da Ilha do Bananal, que só é atravessada por carros na seca, de julho a
outubro. O regime de inundações foi, em certa medida, um impeditivo histórico à
colonização mais intensa da região. As aldeias e suas roças, sedes de fazendas, casas de
posseiros e pequenas cidades situam-se nos poucos pontos a salvo das cheias, como
Tavener (1966) e Toral (1992) já disseram.
Devido às peculiaridades climáticas e ambientais do vale do Araguaia, as savanas
periodicamente inundáveis são constituídas de vegetação natural propícia à pastagem.
Diferentemente do que ocorre nas áreas não-inundáveis, a Ilha do Bananal tem “clima
úmido com pequena ou nenhuma deficiência hídrica” (Atlas do Tocantins, 2001:7), de
modo que suas pastagens naturais não secam totalmente durante o período de estiagem.
Aproveitando-se dessas facilidades, o próprio SPI introduziu a criação de gado na aldeia
Karajá de Santa Isabel no final dos anos 20 (Baldus, 1948). Tavener (1973) relata que, nos
anos 60, os funcionários do SPI entre os Karajá dedicavam muito mais atenção à criação de
gado, por meio da qual o órgão indigenista esperava obter rendimentos, do que aos
índios 97 . Em 1986, segundo Pétesch (2000), a FUNAI criava 8.000 cabeças de gado para
as comunidades Karajá e seus funcionários. Com a instalação de fazendas dedicadas à
agropecuária nas margens do Araguaia e Javaés ao longo dos anos, a ilha tornou-se o
refúgio predileto para o gado das fazendas vizinhas durante a estação da seca.
A construção de Brasília, nos anos 50, e da rodovia Belém-Brasília (BR-153), nos
anos 60 e 70, estimularam de forma irreversível a penetração e ocupação do centro-oeste
brasileiro. A partir da década de 60, houve uma intensificação da invasão de criadores de
gado na Ilha do Bananal, chegando a tal ponto que, em 9.4.1969, a própria FUNAI, recém-
criada, instituiu uma cobrança de taxa pelo uso “das pastagens, aguadas e trânsito de
animais” através da Portaria nº 81. O SPI já tinha planos de cobrar pelo “arrendamento” da

97
Ver o relatório do chefe do Posto Getúlio Vargas, da aldeia Karajá de Santa Isabel, de 1964, sobre o abate
controlado do rebanho bovino do posto para a “compra de utilidades essenciais” (microfilme da FUNAI n°
271, fotograma n° 1386).

173
área em 1963 98 . Segundo Toral (1981:77), “até 1969 os posseiros e arrendatários do
Parque pagavam ‘aforamento’ à prefeitura de Formoso do Araguaia”. A criação do Parque
Nacional do Araguaia não teve grande efeito prático quanto à proteção ambiental da ilha,
pois só os pequenos criadores de gado foram retirados do parque e os brasileiros
continuavam a pescar na ilha com redes e dinamite em 1966 (Tavener, 1966). Fénelon
Costa (1978:18) calcula que, nos anos 70, havia na ilha “aproximadamente 100.000
cabeças de gado na estação das chuvas e 200.000 durante a estiagem”.
O ato da FUNAI contribuiu para legitimar indevidamente a invasão do PNA e do
PIA, de modo que o número de invasões aumentou consideravelmente, atingindo seu auge
nos anos 80. Na época, dois povoados estavam consolidados dentro da Ilha do Bananal,
embora situados nas margens do Rio Javaés: Porto Piauí (antes conhecido como São João
do Javaés) e Barreira do Pequi (ao lado da atual aldeia São João) eram habitados por
posseiros de baixa renda, em sua maioria dedicados à criação de gado, pesca e agricultura.
Porto Piauí, o maior deles, chegou a ter cerca de 1.000 pessoas em meados dos anos 90
(Bonilla, 1997, 2000). Segundo dados da SUCAM, havia 11.000 moradores não-índios na
Ilha do Bananal em 1990 e, de acordo com a FUNAI (Lima Brito, 2007), 300.000 cabeças
de gado utilizavam suas pastagens naturais em 1991.
Os moradores não-índios da ilha dividiam-se historicamente entre os posseiros de
residência permanente, em sua maioria campesinos de baixa renda, e os “retireiros”. Estes
últimos são moradores de residência temporária (dos “retiros”) que entram na Ilha do
Bananal todos os anos, quando as águas começam a baixar, na condição de empregados
(vaqueiros) das fazendas de médio e grande porte da região, sendo encarregados de cuidar
do gado durante a estiagem. O gado é criado “na larga”, solto, e contribui para a introdução
de doenças entre os animais silvestres e para a destruição das roças, dos cemitérios
indígenas, da vegetação nativa e sua substituição por pragas antes inexistentes. Quando
visitei o cemitério da antiga aldeia Wariwari, em 1997, este havia sido tombado
recentemente pelo IPHAN a pedido dos Javaé, que colocou uma placa no local, em razão
do gado ter pisoteado e quebrado algumas das urnas funerárias ali existentes.
Toral (1981:77) descreve o estado de tensão crescente entre os posseiros e os Javaé
na década de 70, em especial na aldeia Canoanã, onde os primeiros desmatavam áreas para
o plantio de roças e “começavam a formar um verdadeiro cinturão em torno à aldeia”; e
também o início da retirada esporádica de posseiros, a partir de 1972, feita pelos

98
Microfilme da FUNAI n° 270, fotograma n° 1429.

174
funcionários da FUNAI com o apoio dos índios. Em 1976, o chefe do Posto Canoanã,
Albertino Soares, promoveu algumas desapropriações e diversas famílias foram “retiradas
da área sem indenização e muitas vezes com o uso indevido da violência” (Toral, 1981:78).
O autor (1999:25) afirma ainda que em 1978 os líderes de Canoanã “passaram a controlar a
verba dos arrendamentos próximos” da aldeia. Bonilla (1997) registrou a insatisfação
crescente dos Javaé com as cercas e porteiras que limitavam o seu trânsito para expedições
de pesca dentro da Ilha do Bananal, antes um território livre. Em 1989, um grupo de índios
Javaé denunciou a invasão de posseiros junto à Procuradoria Geral da República e o
Ministério Público Federal propôs uma Ação Civil Pública, que resultou em uma
determinação judicial para que a FUNAI retirasse os invasores, colocasse fim aos contratos
de arrendamento irregulares e impedisse a entrada de estranhos ao parque indígena.
Durante minha primeira pesquisa de campo, em 1990, os Javaé estavam divididos
entre os que aprovavam o arrendamento das pastagens, cuja renda era recolhida pelos
fiscais da FUNAI e os caciques de algumas aldeias, e aqueles que eram contra o
arrendamento. Na época havia forte campanha dos funcionários locais do órgão indigenista
contra o fim dos aluguéis (ver Rodrigues, 1993). Em fins de 1991, a FUNAI criou o Grupo
de Trabalho Interinstitucional (GTI), por meio da Portaria n° 1296/91, que contou com a
participação de várias entidades governamentais e não governamentais, além de
representantes dos posseiros e dos índios Karajá e Javaé, destinado a promover estudos e
medidas práticas para a remoção, indenização e assentamento dos não-índios fora da Ilha
do Bananal. No mesmo ano, foi criada a COMIBA (Comissão Indígena da Ilha do
Bananal), associação dos Javaé e Karajá que participou ativamente do processo de
evacuação da ilha, apesar da resistência articulada tanto pelos pequenos posseiros quanto
pelos grandes proprietários de gado e políticos locais (ver Bonilla, 1997).
Durante os anos 90, a FUNAI realizou um levantamento fundiário e deu início à
retirada dos moradores não-índios, em colaboração com os índios, o que contribuiu para
um agravamento da tensão entre os Javaé e os regionais. Em 1994, segundo o laudo de
vistoria e avaliação de benfeitorias realizado pela FUNAI (1994), havia 930 retiros dentro
da Ilha do Bananal, com uma população de cerca de 4.650 pessoas 99 . Parte dos posseiros
foi considerada como cliente da reforma agrária e assentada em áreas de antigas
propriedades particulares, adquiridas pelo INCRA, situadas em terras vizinhas à Ilha do

99
Segundo informações obtidas junto à FUNAI de Gurupi em 2007, a população de não-índios era calculada
multiplicando-se o número de retiros por 5, que seria o número médio de pessoas por casa.

175
Bananal, no Estado do Tocantins: antiga fazenda Capão de Côco, da Companhia Brahma,
na região do Rio Loroti (com 29.000 ha para 413 famílias, segundo Bonilla, 2000:16), e
parte da antiga fazenda do grupo BRADESCO, próxima a Canoanã. Nos dois casos, trata-
se de área inundável durante a estação das chuvas, em sua maior parte imprópria à moradia
permanente, tendo havido uma perda da qualidade de vida dos posseiros. Com o fim das
operações da FUNAI em 1997, a ilha como um todo sofreu um considerável esvaziamento
populacional de não-índios na sua porção mediana e setentrional, tendo inclusive havido
uma recuperação visível da fauna e flora local em razão disso. Segundo Toral (1999:31),
789 ocupantes da terra indígena “foram considerados como invasores de boa-fé, com
direito a indenização”.
Apesar do esforço empreendido pela FUNAI, que instalou postos de fiscalização
em pontos diversos do Rio Javaés (ver FUNAI, 1999, Lima Brito, 2007), e pelos índios
Karajá e Javaé, não se conseguiu retirar todos os moradores não-índios, em especial
aqueles de maior renda. Alguns dos moradores que resistiram à desocupação portavam
armamento pesado e na porção meridional da ilha, onde ainda vive a maioria dos
ocupantes, existem proprietários de casas luxuosas. A decisão judicial em favor da
desocupação da ilha gerou uma série de recursos legais por parte dos moradores não-índios
ainda nos anos 90, os quais alegaram em sua defesa o pagamento de taxa pelo
arrendamento da terra durante décadas, além de questionarem o modo como foram feitas as
indenizações aos ocupantes considerados de boa-fé e o valor das mesmas atribuído pela
FUNAI. Duzentos e onze moradores não-índios ainda vivem na Terra Indígena Parque do
Araguaia amparados legalmente, ainda que de modo provisório. O processo judicial
continua se arrastando e, no presente momento (2007), segundo a Procuradoria Federal em
exercício na FUNAI de Gurupi, a Justiça está procedendo à reavaliação pericial dos valores
da indenização determinados pela FUNAI (ver Porantim, 2007).
O momento-símbolo desse processo de recuperação territorial, descrito e analisado
em maior profundidade por Bonilla (1997, 2000, 2003), ocorreu durante a retirada tensa,
porém sem violência, dos moradores regionais do povoado Porto Piauí em 1995. Na
ocasião, índios Javaé e Karajá construíram casas de palha nas ruas do vilarejo e deram
prazo de alguns meses para a saída dos não-índios. O movimento de tomada das casas dos
brancos, onde os índios passaram a morar desde então, for liderado por Ijahuri Karajá,
então presidente da COMIBA. O líder Karajá tinha grande envolvimento com o
movimento indígena nacional, tendo participado da fundação da UNI (União das Nações

176
Indígenas) e da ECO-92, e foi apoiado por famílias Javaé, em sua maioria, às quais se
juntaram outras famílias Karajá posteriormente. A nova aldeia, considerada uma aldeia
“misturada” pela autora (Bonilla, 2000:4), pois lá coabitam Javaé, Karajá e brancos
casados com índios em maior proporção que nas outras aldeias, é localizada em um sítio
referido pela mitologia e é denominada desde então “Aldeia Txuiri”. Aproximadamente na
mesma época, os moradores não-índios de Barreira do Pequi também deixaram o lugar.
O arrendamento das pastagens para não-índios, contudo, nunca foi totalmente
interrompido. Quando a decisão judicial suspendeu os contratos de arrendamento ilegais da
FUNAI no início dos anos 90, os Javaé e os Karajá de Santa Isabel decidiram continuar
cobrando pelo aluguel enquanto os invasores não fossem totalmente retirados do local.
Uma minoria de posseiros de baixa renda não chegou a sair da ilha, continuando a pagar
aos índios pelo direito de moradia. Nos últimos anos, embora o grupo como um todo não
tenha uma posição unânime em relação a essa questão, os caciques das aldeias Javaé da
Terra Indígena Parque do Araguaia têm novamente permitido a entrada periódica de
vaqueiros e gado na área indígena. Estes não têm autorização, contudo, para que se fixem
em moradia permanente, de modo que os retireiros são impedidos de abrir roças, por
exemplo. O CIMI regional (Porantim, 2007) calcula em cerca de 4.500 os não índios
morando na Terra Indígena atualmente, número que inclui os moradores fixos e a grande
maioria de vaqueiros transitórios. Segundo relatório da FUNAI de Gurupi (Lima Brito,
2007), além dos 211 moradores amparados por decisão judicial, há outros 94 fazendeiros
que moram na Terra Indígena Parque do Araguaia com base em acordos mantidos com os
índios de algumas aldeias. Em 2006, havia 95.065 cabeças de gado circulando na Ilha do
Bananal (Fonseca, 2006).
O dinheiro obtido com o aluguel das pastagens é agora uma importante fonte de
renda entre os Javaé da Terra Indígena Parque do Araguaia. Em 1999, os Javaé criaram a
organização indígena CONJABA (Conselho das Organizações Indígenas do Povo Javaé da
Ilha do Bananal), da qual participa a maioria das aldeias, que se tornou responsável pelo
controle sobre a arrecadação proveniente dessa fonte de renda e fiscalização da entrada de
bovinos na área. Apesar do contato muitas vezes difícil com os criadores de gado locais, os
Javaé, com raras exceções, nunca viveram a experiência histórica de trabalhar como
empregados das fazendas vizinhas. Em uma situação atípica, a comunidade de Canoanã,
nos anos 80, possuía um rebanho de gado – adquirido dos criadores como pagamento pelo
uso da terra – que era cuidado por vaqueiros regionais, os quais trabalhavam como

177
empregados da comunidade. Atualmente, alguns índios possuem gado próprio, que é
criado por vaqueiros não-índios em retiros da ilha. Em 2003, a CONJABA firmou
convênio com a FUNASA, instância governamental responsável pela saúde indígena,
adquirindo o poder de gerenciar a verba respectiva e indicar vários Javaé para as novas
funções assalariadas na área da saúde.
Nos anos 80, após intensa mobilização, os Karajá conseguiram que a FUNAI desse
início ao processo de regularização fundiária de terras habitadas imemorialmente pelo
grupo na margem esquerda do Araguaia, no Estado do Mato Grosso, como a Terra
Indígena Tapirapé/Karajá e a Terra Indígena São Domingos. Atualmente está em
andamento o reconhecimento oficial de outras áreas Karajá no Mato Grosso, de uma área
dos Karajá e Javaé na ponta norte da Ilha do Bananal, e os Javaé estão se articulando para
retomar terras habitadas no passado na margem direita do Rio Javaés.

3.4.2. Terra Indígena e meio ambiente

Com a sobreposição de uma área de proteção ambiental (Parque Nacional do


Araguaia) sobre o território indígena, começa então um longo período de atritos, narrados
por Toral e Maia (1983), entre os Karajá de Macaúba e os Javaé de Boto Velho com os
fiscais do antigo IBDF, atual IBAMA, que reprimiam a pesca, caça e coleta na área e a
instalação de benfeitorias na aldeia (ver Ricardo, 2004). Nos anos 80, segundo Toral
(1999), os próprios funcionários da FUNAI pressionaram os Javaé de Boto Velho para que
saíssem da área do PNA e se juntassem aos Javaé do Parque Indígena. Em 1983, os
moradores de Macaúba e Boto Velho paralisaram a construção de um posto do IBDF e de
uma estrada projetada para cortar a Ilha do Bananal em sua porção setentrional (ver Toral e
Maia, 1983). O envolvimento dos Javaé de Boto Velho, em separado, na luta pelo
reconhecimento oficial de sua terra indígena, juntamente com o fato de que eles estavam
espacialmente mais distantes dos Javaé de outras aldeias, deu origem a uma história
diferenciada desses Javaé setentrionais.
Os moradores de Boto Velho vieram várias vezes a Brasília e escreveram várias
cartas aos órgãos envolvidos, com os quais realizaram várias reuniões, o que levou a
FUNAI a interditar a “Área Indígena Boto Velho” provisoriamente em 22.5.85, com

178
145.000 ha (Portaria nº 1875/E), sobreposta ao parque ambiental (ver Mapa n° 9).
Entretanto, o ato administrativo não resolveu o problema, ao contrário, de modo que as
tensões acirraram-se crescentemente. Atendendo às antigas reivindicações do grupo, a
FUNAI enviou à área um grupo de trabalho em 1998, coordenado por André de A. Toral
(Portaria n° 941, de 5.10.1998), para realizar uma identificação antropológica, o que
resultou na proposta da Terra Indígena Inãwébohona (Toral, 1999), com superfície de
376.545 ha (ver Mapa n° 9). No mesmo ano, em razão de nunca terem conseguido a
instalação de um posto indígena da FUNAI na aldeia, os moradores de Boto Velho
decidiram fundar a Associação Natureza Viva da Ilha do Bananal (ANVIB), que participa
do movimento indígena estadual e cujo principal objetivo desde então tem sido firmar
convênios ou parcerias com entidades governamentais e a busca de uma autonomia
econômica 100 .
As operações da FUNAI de evacuação dos moradores não-índios e do gado da Ilha
do Bananal, finalizadas em 1997/1998, atingiram também a então Área Indígena Boto
Velho. No ano de 2002, os Javaé uniram-se aos Karajá para expulsar os fiscais do IBAMA
instalados ao lado da aldeia Macaúba e, logo depois, retiraram definitivamente o posto de
fiscalização flutuante que se localizava na Barreira da Cruz, próximo a Boto Velho. A
equipe de fiscalização do IBAMA transferiu-se então para Lagoa da Confusão, a cidade
mais próxima, mas no ano seguinte novos conflitos entre os Javaé e os fiscais levaram à
prisão do chefe dos fiscais e dos carros de sua equipe por alguns dias na aldeia Boto Velho.
Atendendo às exigências dos Javaé, o IBAMA desativou a fiscalização ambiental na Ilha
do Bananal desde então, cuja porção setentrional ficou mais vulnerável à invasão por parte
de pescadores profissionais (ver Rodrigues, 2008).
A Terra Indígena Inãwébohona foi declarada pelo Ministério da Justiça como de
posse permanente dos Javaé em 20.4.2001 (Portaria n° 359) e foi demarcada durante o ano
de 2002 com recursos do PPTAL (Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras
Indígenas da Amazônia Legal). Permaneceu, entretanto, o conflito de interesses e
competências entre o órgão indigenista e os índios, de um lado, e o IBAMA, de outro,
sobre uma mesma terra da União. A partir de então, os Javaé da aldeia Txukòdè, que ficou
dentro da nova terra indígena, resolveram também alugar os pastos de sua área, cujo
100
Tendo como motivo o seu histórico específico de relações com a sociedade nacional, a grande distância
em relação ao Pólo Base de Formoso do Araguaia e conflitos internos, os Javaé setentrionais decidiram não
fazer parte da CONJABA. O atendimento à saúde nas aldeias Boto Velho e Wakòtyna é feito separadamente
pela Base de Apoio da FUNASA instalada na Lagoa da Confusão em 2007, por meio da ONG Projeto
Rondon, após de uma série de reivindicações do grupo junto ao Ministério Público e à FUNASA.

179
exemplo foi seguido pelos Javaé de Boto Velho em 2003. A entrada de gado na área foi um
componente a mais no histórico de conflitos com o órgão ambiental.
Os Javaé da aldeia Txukòdè criaram em 2003 a Associação Ilha Verde, presidida
por Valter Waxure, que acabou se responsabilizando pelo Projeto de Vigilância da área
demarcada. O projeto está sendo implementado também pelos moradores das aldeias Boa
Esperança, Wariwari e Boto Velho, em parceria com o PPTAL, que apóia o
desenvolvimento de atividades sustentáveis não predatórias (ver PPTAL, 2005 e
Cavalleiro, 2005).
Em 2005, o IBAMA obteve uma liminar judicial garantindo a retirada dos não-
índios e do gado do Parque Nacional do Araguaia, de modo que os Javaé do norte da ilha
entraram em confronto direto com os fiscais do órgão ambiental mais uma vez. Houve
então um acordo intermediado por representantes do Ministério Público e da FUNAI para a
retirada do gado da área de interesse do IBAMA. Desde então, a Terra Indígena
Inawébohona e o Parque Nacional do Araguaia estão totalmente desocupadas de não-
índios e bovinos. Apenas alguns Javaé têm gado próprio.
Tendo em vista as pressões do órgão ambiental junto ao Ministério da Justiça
contra a homologação da terra indígena, este recomendou, em abril de 2005, que fosse
criado um grupo de trabalho com representantes do IBAMA e FUNAI para buscar uma
solução para o impasse. Mas após grande mobilização política dos Javaé de Boto Velho e
da ANVIB, presidida por Paulo César Huruka, que vieram a Brasília em 2005 e 2006, a
Terra Indígena Inawébohona foi homologada pelo Presidente da República em 19.4.2006,
embora em regime de “dupla afetação”, destinando-se à “preservação do meio ambiente e à
realização dos direitos constitucionais dos índios”. Nasceu então a necessidade de uma
atuação em conjunto por parte dos dois órgãos.
Ambientalistas reagiram indignados ao reconhecimento oficial da terra indígena,
repetindo o discurso equivocado de antigos funcionários do IBAMA, que atribuíam as
queimadas ocorridas na Ilha do Bananal exclusivamente à população indígena (ver Correa,
2006). O biólogo Plácido da Costa Júnior (1999), responsável pelo relatório ambiental
sobre a Terra Indígena Inãwébohona, demonstra que não foram os Javaé, e sim os não-
índios que moravam na ilha, os maiores responsáveis pelos focos de incêndio que
resultaram na grande queimada da Mata do Mamão noticiada pela imprensa em 1998.
A identificação antropológica da Terra Indígena Inawébohona não englobou todo o
território indígena dentro da Ilha do Bananal, restando uma área do Parque Nacional do

180
Araguaia, ao norte da ilha, que está legalmente sob domínio exclusivo do IBAMA. Diante
das novas demandas dos Karajá e Javaé pelo reconhecimento também dessa área como
terra indígena, um novo grupo de trabalho foi designado pela FUNAI em 13.10.2003
(Portaria n° 957). O grupo foi coordenado pelo antropólogo da FUNAI Alceu C. Mariz,
que veio a falecer em 2005, não concluindo os trabalhos. Em fins de 2006, o PPTAL e a
FUNAI abriram edital para nova identificação da área (ver Rodrigues, 2008).
Em 2005/2006, os Javaé setentrionais começaram a sentir mais diretamente os
graves impactos ambientais produzidos por grandes fazendas particulares dedicadas à
agricultura irrigada, em especial a Fazenda Dois Rios, recém-chegada à região. Desde os
anos 70, entretanto, o Rio Javaés sofre com as agressões ambientais dos grandes projetos
de rizicultura de várzea do governo estadual, como o Projeto Formoso (no médio curso do
Rio Formoso), iniciado nos anos 70, e o Projeto Javaés (no baixo curso do Rio Formoso),
nos anos 90, que foram implantados na margem leste do Rio Javaés e foram responsáveis
por um maior fluxo de pessoas para a região de Formoso do Araguaia. A canalização da
água do Rio Javaés para a irrigação de imensos arrozais é responsável tanto pela
mortandade de enormes quantidades de peixes quanto por um uso inadequado dos recursos
hídricos. A mesma prática danosa tem sido adotada por fazendas da região dedicadas à
monocultura do arroz ou da soja, esta última mais recentemente. O resultado visível de tais
atividades, além do desmatamento e da contaminação da bacia do Araguaia com
agrotóxicos, tem sido um menor volume de água do Rio Javaés a cada ano.
A atividade irregular das grandes fazendas vizinhas que atuam na região em
desacordo com as normas de licenciamento ambiental foi denunciada pelos Javaé de Boto
Velho ao Ministério Público Federal e à Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados em 2006 e 2007, o que resultou no embargo das atividades da Fazenda Dois
Rios pelo IBAMA em 2007 (ver Porantim, 2007). Atualmente, há por parte das lideranças
de várias aldeias o projeto de se investir em futuro próximo em ecoturismo e etnoturismo,
como alternativa tanto à venda de peixes quanto ao aluguel das pastagens.
Diante do novo contexto, e em razão tanto de um maior envolvimento dos Javaé
com os movimentos sociais locais e nacionais quanto da homologação da terra indígena em
regime de dupla afetação, muito recentemente o IBAMA passou a ser encarado por uma
parcela do grupo como um possível aliado na proteção ambiental da terra indígena, tendo
em vista que as ameaças mais sérias ao vale do Araguaia partem das fazendas vizinhas
dedicadas ao agronegócio. Assim, logo após a homologação da terra, os Javaé de Boto

181
Velho tomaram a iniciativa de procurar o Ministério Público Federal para a realização de
uma histórica reunião na aldeia, em 30 de maio de 2006, com representantes do IBAMA,
da FUNAI, do PPTAL, da Secretaria de Pesca do Tocantins (SEAP), da Universidade
Federal do Tocantins e do CIMI, além de políticos locais (ver IBAMA, 2006, Rodrigues,
2008).
O objetivo principal da reunião foi tentar superar os atritos de décadas e inaugurar
uma parceria inédita dos próprios Javaé e da FUNAI com o IBAMA no que diz respeito à
fiscalização da área. Atualmente (2007), os Javaé setentrionais e a nova direção regional
do IBAMA, o que conta com o apoio do PPTAL e da FUNAI, estão se preparando para
firmar um “Acordo de Pesca” a fim de legalizar a pesca comercial na Ilha do Bananal,
atividade ainda reprimida pelos órgãos de fiscalização regionais, e alcançar o manejo
sustentável dos recursos pesqueiros, tornando a venda de peixes uma atividade não
predatória. Como não há mais arrendamento de pastagens da Terra Indígena Inawébohona,
a pesca comercial voltou a ser a principal fonte de geração de renda no momento.
O vale do Araguaia é internacionalmente famoso por sua piscosidade fora do
comum, que atraiu, além dos pescadores profissionais, de membros de distantes clubes de
caça e pesca amadores a presidentes da República. Nos relatórios dos presidentes da
Província de Goiás, do século 19, já havia menção à abundância extraordinária de peixe e
caça no Araguaia. A fama ainda persiste, apesar das agressões ambientais variadas nos
últimos quarenta anos, que provocaram uma redução considerável da quantidade de peixes.
Desde os anos 40, a pesca comercial do pirarucu, principalmente, tornar-se-ia aos poucos a
principal fonte de renda monetária dos homens Javaé, que tradicionalmente vendem o
peixe por valores irrisórios aos atravessadores com quem negociam todos os anos, em
especial na época da seca 101 .
O Presidente da Província de Goiás, José M. P. de Alencastre (1998a, 1998b),
mencionou os carregamentos de peixe que os moradores do Presídio de Santa Leopoldina
enviavam para o Pará na metade do século 19. Nos anos 30, São José do Araguaia era o
centro da pesca regional deste imenso peixe de escamas, capaz de atingir dois metros de
comprimento e mais de 150 quilos, e os Karajá estavam organizados em equipes sob as
ordens de um patrão brasileiro (La Falaise, 1939). Schultz (1953) relata que, entre os
Karajá, o próprio SPI estimulou a industrialização da pesca do pirarucu, cujas mantas
salgadas eram levadas em avião militar para a venda no Rio de Janeiro. Tavener (1973)

101
Ver Toral (1981, 1999), Rodrigues (1993), Bonilla (1997, 2000), Costa Júnior (1999).

182
argumenta que nos anos 60, entretanto, o SPI não exercia nenhum tipo de controle sobre a
pesca comercial nem tentava proteger os Karajá de relações prejudiciais com os
comerciantes regionais, uma vez que o seu interesse era totalmente voltado à criação de
gado na Ilha do Bananal. Desde o início da pescaria profissional, nas primeiras décadas do
século passado, os Karajá mais setentrionais mantêm vínculos comerciais com os
compradores de peixe do Pará.
Essa atividade está em franca decadência nos últimos anos, tanto em razão de uma
diminuição considerável das fontes naturais como pela restrição cada vez maior dos órgãos
governamentais à comercialização do peixe, em especial o pirarucu, cuja venda está
proibida oficialmente, por estar ameaçado de extinção. Além da pescaria comercial
realizada pelos próprios índios Karajá e Javaé, que em alguns casos pescam acompanhados
dos compradores de peixe, existe também a pescaria profissional em larga escala realizada
por comerciantes provenientes do Pará, em sua maioria, que entram sem permissão na Ilha
do Bananal por via fluvial, causando grande depredação ambiental. A autorização para a
entrada de “caravanas” de pescadores amadores ou o acompanhamento de turistas
interessados na pesca esportiva aos lagos e rios da Ilha do Bananal durante a estação da
seca tem sido uma fonte menor de renda há muitos anos, embora muitas “caravanas”
entrem na ilha sem autorização. Tal atividade interessa às prefeituras e empresários do
ramo do turismo das cidades locais, mas ainda não é regulamentada formalmente.
Na estação da seca, em especial, a Ilha do Bananal como um todo se torna
extremamente vulnerável à ação predatória de diferentes agentes da sociedade envolvente,
com potencial de menor ou maior destruição ambiental, como os moradores das cidades
vizinhas que usam os rios Araguaia, Javaés e afluentes, além da própria ilha, para lazer, os
praticantes de pesca esportiva de cidades próximas ou mais distantes, os turistas, os
moradores permanentes e os transitórios da ilha, as pessoas que cruzam a ilha de carro e os
pescadores profissionais, entre outros, cujas ações podem incluir pesca de todo tipo de
peixe ou tartaruga, em pequena ou grande quantidade, caça, coleta, desmatamento e
poluição. Em função da extensão da área e da histórica carência de recursos financeiros, a
FUNAI, o IBAMA e os próprios índios Karajá e Javaé sempre tiveram muita dificuldade
para exercer a fiscalização de toda a Ilha do Bananal.
No momento, os Javaé setentrionais, em especial, têm total interesse em buscar
soluções junto aos órgãos oficiais para a legalização da pescaria comercial e o manejo
sustentável dos recursos pesqueiros, uma vez que a pesca é a atividade geradora de renda

183
que mais se aproxima das características culturais tradicionais do grupo (ver Rodrigues,
2008). Outras alternativas de geração de renda, como os projetos agropecuários, por
exemplo, que diferentes agências (SPI, FUNAI, missionários) tentaram impor em aldeias
Karajá e Javaé, ocasionaram custos ambientais ainda maiores e a ameaça permanente de
perda de controle dos índios sobre seu território. A pecuária praticada pelos próprios
Karajá e Javaé, que não possuem nenhuma tradição pastoril, os grandes projetos de roças
comunitárias ou o aluguel das pastagens a terceiros são atividades até certo ponto
incompatíveis com determinadas lógicas culturais internas. A agricultura tradicionalmente
é feita por famílias nucleares, inexistido o conceito de “comunidade” gestora que a própria
FUNAI tentou implantar, e o arrendamento de pastagens tem gerado muito mais benefícios
individuais e conflitos internos, além da destruição ambiental, do que ganhos visíveis para
a coletividade.
Apesar da criação do Parque Estadual do Cantão em 1995 e, posteriormente, da
Área de Proteção Ambiental (APA) Ilha do Bananal/Cantão, uma grande área no Estado do
Tocantins, contígua ao extremo norte da Ilha do Bananal (ver Atlas do Tocantins, 2001), as
ameaças à integridade do grupo e do território continuam presentes mais do que nunca. No
começo dos anos 80, as obras da Transaraguaia (BR-262), estrada projetada para cortar a
Ilha do Bananal em sentido transversal, chegaram a ser iniciadas na altura da aldeia Boto
Velho, com o objetivo de facilitar o escoamento da produção das fazendas vizinhas do
Mato Grosso e Tocantins, uma vez que as estradas existentes têm que contornar a Ilha do
Bananal, aumentando em mais de 400 km o percurso (ver Bonilla, 1997). Mas a resistência
dos Karajá de Macaúba e dos Javaé de Boto Velho, que impediram a continuidade das
obras, além do parecer contrário de antropólogos da FUNAI e ambientalistas do IBDF,
levaram à suspensão do projeto 102 .
As autoridades governamentais e fazendeiros locais, entretanto, nunca desistiram de
tentar construir uma estrada aterrada cortando a Ilha do Bananal, que agora está planejada
para ligar a aldeia Txuiri, dos Javaé, à aldeia Santa Isabel, dos Karajá, sendo conhecida
como “Transbananal”. Trata-se do mesmo percurso utilizado por carros que cruzam a ilha
na estação seca desde os anos 80, pelo menos, época da fundação do antigo Porto Piauí, e
que chegou a ser fiscalizado por um Posto da FUNAI em 1995/1996 (Bonilla, 1997, 2000).
Assim como o arrendamento, essa é uma questão que divide os Javaé, pois uma minoria

102
Ver Toral e Maia (1983), Lima Filho (1994), Toral (1999), Maia (2002) e recortes de jornais em Ricardo
(2004).

184
acredita que as comunidades terão alguma vantagem com a cobrança de pedágio, ainda que
uma estrada signifique uma porta aberta à invasão e à destruição ambiental.
Além do projeto da ELETRONORTE para a construção de várias usinas
hidrelétricas na bacia Araguaia-Tocantins, ao qual os Javaé e o movimento indígena do
Tocantins se opõem, não se pode deixar de mencionar o plano de construir uma hidrovia
no Rio Araguaia, parte do projeto Avança Brasil, do governo de Fernando H. Cardoso
(1994-2002), suspenso momentaneamente. A navegação livre pela bacia do Tocantins e
Araguaia, constituída de vários trechos encachoeirados, é uma meta perseguida pelas
autoridades nacionais e locais desde o início da colonização do Brasil Central, tendo sido
relativamente posta de lado depois da construção da rodovia Belém-Brasília. O plano
original da hidrovia, entretanto, vai além da conquista de relações pacíficas com os índios e
da utilização de sua mão-de-obra barata, objetivo dos primeiros navegadores. A hidrovia
prevê alterações radicais no ecossistema local, requerendo afundamentos em todo o leito
do Rio Araguaia, em cerca de 30 pontos diferentes, para permitir a navegação de grande
porte diária, com conseqüências altamente danosas para a reprodução da fauna aquática.
Os afundamentos seriam precedidos de explosões dentro do rio e, como medida
paliativa para as aldeias, dado que os navios de grande calado, planejados para passar pelo
rio três vezes ao dia, todos os dias, produziriam ondas que desmoronariam os barrancos do
rio, estava prevista a construção de muros de concreto nas aldeias, a fim de sustentar os
barrancos respectivos. Em reunião oficial realizada com as comunidades envolvidas, em
1997, à qual estive presente, os técnicos responsáveis pelo projeto reconheceram que havia
possibilidade de que os afundamentos provocassem uma alteração radical do tradicional
regime de inundações do rio, que assim não mais escoaria suas águas para as áreas de
várzea adjacentes que são inundadas todos os anos, incluindo a própria Ilha do Bananal.
Mais do que isso, o Rio Javaés, como um braço menor do grande rio, corria o risco de não
mais receber suas águas e, assim, secar (ver Costa Júnior, 1999).
Por fim, é preciso registrar que a própria população indígena do vale do Araguaia
tem percebido como altamente contraditória a atuação dos órgãos ambientais federais e
estaduais. A complacência das agências oficiais com os grandes projetos agropecuários ou
hídricos da região (concessão de licenças ou fiscalização deficiente), de muito mais grave e
irreversível impacto ambiental, tem ocorrido paralelamente à perseguição aos índios que
vendem o peixe pescado em seu território de ocupação imemorial para a própria
sobrevivência. Além do mais, partindo de uma visão cômoda, por um lado, e etnocêntrica,

185
por outro, fundada em uma ignorância sobre a questão indígena, alguns ambientalistas
elegeram os Karajá e Javaé como os vilões ambientais do Araguaia, como já foi comentado
criticamente por Lima Filho (1994), invertendo a essência de um processo histórico de
longa duração 103 . O próprio Estado, por meio do SPI e, depois, da FUNAI, estimulou a
venda de grandes quantidades de peixe pelos índios e a criação de gado na Ilha do Bananal
por seus funcionários e pelos índios, o que nunca teve os resultados esperados, além de ter
sido tolerante com a invasão da área por não-índios.
Se a Ilha do Bananal ainda é verde em sua maior parte, e não apenas na área
administrada pelo IBAMA, que não esteve imune às invasões de criadores de gado e
pescadores profissionais, isso se deve à presença dos índios no local e à sua resistência
cultural e política. A Ilha do Bananal sempre esteve sob o relativo controle dos Javaé e
Karajá, a despeito do processo histórico de perdas populacionais e invasões territoriais, o
que impediu que ela estivesse atualmente desmatada ou destinada aos grandes projetos
agropecuários ou hidro-agrícolas regionais. Foi a população indígena que tomou a
iniciativa de buscar o Ministério Público Federal para dar início à retirada histórica dos
criadores de gado da Ilha do Bananal, ainda não finalizada, assim como foram os Karajá e
Javaé que se uniram para impedir a construção de estradas definitivas dentro da área. A
pressão de políticos regionais e grupos econômicos sobre as lideranças locais, em favor de
seus interesses próprios, é cada vez maior e provoca divisões internas. Mas apesar do
benefício evidente de alguns com o aluguel das pastagens, a grande maioria da população
indígena deseja ver o seu território livre de ocupantes não-índios.
Um olhar mais distanciado permite perceber que os Karajá e os Javaé como um
todo têm se oposto historicamente aos interesses que atentam contra a integridade de seu
território e o bem estar da coletividade. Os novos desafios ambientais, sociais e
econômicos têm sido acompanhados da busca de novas soluções por parte dos dois grupos,
que têm dado o exemplo histórico de serem capazes de se reinventar criativamente dentro
de um contexto adverso. Nas grandes aldeias, onde a maioria dos observadores externos,
incluindo agentes dos próprios órgãos públicos, insiste em enxergar apenas alcoolismo,
suicídio e o lixo industrializado que agora faz parte do cotidiano, especialmente entre os
Karajá, a vida ritual e a cosmologia que a sustenta se perpetuam notavelmente. Os mesmos
103
Ver o artigo de Correa (2006), em que o autor reage ao reconhecimento oficial da Terra Indígena
Inãwébohona e acusa “os usos, costumes e tradições dos índios que vivem na Ilha do Bananal” de terem
acabado nos últimos anos com “o piraruru, as tartarugas, os jacarés e as matas”, baseando-se nas informações
da ambientalista Maria Tereza Jorge de Pádua, que foi diretora do Departamento de Parques Nacionais do
antigo IBDF.

186
Karajá e Javaé que foram levados a vender grandes quantidades de pirarucu em um
passado relativamente recente, devido a circunstâncias históricas específicas e ao abandono
do Estado, têm se mostrado agora capazes de repensar esse modelo de relações predatórias
com o meio e buscar alternativas compatíveis com as novas circunstâncias, como já vem
ocorrendo em algumas aldeias (ver Rodrigues, 2008).
Segundo a cosmovisão Javaé, como veremos adiante, a realidade material e física é
inseparável do fenômeno social e a perpetuação da cultura e do meio ambiente é parte de
um mesmo e complexo processo. Os recursos naturais só existem porque os seres humanos
realizam os procedimentos rituais corretos e as oferendas sagradas ao Povo do Fundo das
Águas e ao Povo do Céu. De modo complementar, as oferendas das cerimônias
tradicionais da Casa dos Homens só existem porque os humanos capturam os animais e
peixes disponíveis que compõem as refeições especiais. De um ponto de vista interno, o
fortalecimento cultural é intrinsecamente associado à preservação do meio circundante e
vice-versa. As atividades produtivas tradicionais não são concebidas como destruição do
meio ambiente, mas como garantia de manutenção da ordem social e cósmica, pois animais
e plantas integram o circuito de reciprocidade entre humanos e divindades.

3.4.3. Os Karajá e os Javaé

Há importantes diferenças históricas entre os Karajá e Javaé. Os Karajá, que desde


os primeiros registros históricos dos séculos 17 e 18 sempre tiveram suas aldeias situadas
nas margens do Rio Araguaia, embora em pontos diferentes (ver Rodrigues, 2008), não
sofreram o processo histórico de deslocamento da população de aldeias interioranas para a
margem do rio, o que acarretou mudanças no padrão de relacionamento dos Javaé com o
meio ambiente (ver Costa Júnior, 1999). Por outro lado, os Karajá têm uma experiência de
convivência próxima com os não-índios muito mais antiga que os Javaé, responsável tanto
pela exacerbação dos efeitos mais deletérios do contato como por um esforço mais antigo,
e com resultados mais visíveis, de apropriação dos novos bens, conhecimentos e espaços
de poder. Assim, os Karajá têm uma visibilidade nacional muito maior, apesar do processo
mais geral de apagamento da presença indígena no imaginário regional (Portela, 2006), e
uma maior presença em espaços institucionais importantes.

187
Como alguns exemplos significativos, temos o caso de Watau Karajá, da aldeia
Santa Isabel, que acompanhou o Presidente Getúlio Vargas, de avião, ao Rio de Janeiro,
onde visitou o Palácio do Catete (ver Pinheiro, 1994), teve fotos suas estampadas nas capas
das mais conhecidas revistas nacionais da época (Gutemberg, 1975), negociou a instalação
do Hotel JK com Juscelino Kubitschek, em troca de benfeitorias na aldeia, e foi recebido
pelo presidente em Brasília, no Palácio do Planalto (Lima Filho, 2001); Ijahuri Karajá, que
participou do movimento indígena nacional e ocupou um cargo na Secretaria de Ação
Social do Governo de Tocantins a partir de 1992; de Isariri Karajá, que visitou os Estados
Unidos em companhia do antropólogo Manuel F. Lima Filho nos anos 90 e é o atual chefe
da administração regional da FUNAI em São Félix do Araguaia; e Kõhalue Karajá, que
desde 2005 atua como Gerente do Núcleo Indígena da Secretaria de Cidadania e Justiça do
Governo do Tocantins e foi empossado recentemente como o representante dos índios do
Estado de Tocantins na Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), instalada pelo
governo federal em 19 de abril de 2007. Vários Karajá já são formados em cursos
superiores, experiência ainda não alcançada por nenhum Javaé, ou já foram eleitos para
cargos públicos, o que só um Javaé conseguiu até agora.
O tráfego fluvial pelo Araguaia, “uma veia aberta nas terras Karajá” (Lima Filho,
1994:28), trouxe um número muito maior de bandeirantes, missionários, diversos agentes
do Estado, pesquisadores de diferentes áreas, exploradores de minérios, aventureiros,
jornalistas, comerciantes, turistas e pescadores, entre outros. A fauna aquática e terrestre
abundante deslumbrava a todos que viajavam e escreviam sobre o Araguaia, como os
jornalistas paulistas Hermano Ribeiro da Silva (1935) e Willy Aureli (1962a, 1962b,
1963), que lá chegaram pela primeira vez na década de 30. A popularidade cada vez maior
do Araguaia e dos Karajá (ver Chiara, 1970) atraiu os presidentes da República Getúlio
Vargas, em 1940, Juscelino Kubistchek, em 1960, e Costa e Silva, em 1969, que visitaram
a aldeia Karajá Santa Isabel com o intuito, a princípio, de pescar e caçar na região.
Posteriormente, visitaram a aldeia os governadores Henrique Santillo, de Goiás, em 1988,
e Siqueira Campos, de Tocantins, em 1989 (Pinheiro, 1994, Lima Filho, 2006).
Como os governantes do século 19 já haviam notado, a aldeia Santa Isabel, dos
Karajá, ocupa uma “posição espacial estratégica” (Lima Filho, 1994:25) para adentrar a
Amazônia. Por essa razão, Santa Isabel foi fortemente impactada pela ação estatal depois
do início da Marcha para o Oeste (Lima Filho, 2001). Em 1950, o SPI obteve ajuda da
FAB para religar os postos indígenas longínquos, instalando uma primeira pista de avião

188
na aldeia Santa Isabel. Desde então, segundo Chiara (1970), pequenos aviões de variados
lugares chegavam regularmente com turistas nacionais e estrangeiros à aldeia Karajá, que
se tornou um importante centro de venda de bonecas de cerâmica. Em 1960, o fluxo de
não-índios aumentou consideravelmente com a Operação Bananal e as ações da Fundação
Brasil Central, que destruiu casas e roças indígenas da aldeia Santa Isabel e para quem os
índios trabalharam realizando pequenos serviços (Aureli, 1963). Santa Isabel, a maior
aldeia Karajá, foi escolhida como lugar para a instalação do Hotel JK, do hospital indígena,
de um destacamento da Aeronáutica e de uma base área da FAB, desativada somente em
1992 104 . Os Karajá foram convidados para participar da primeira missa oficial de Brasília
em 1957 e estamparam a cédula de Cr$ 1.000,00 (um mil cruzeiros) no ano de 1990, como
lembra Lima Filho (1994, 2001).
Alguns dos aglomerados populacionais do Araguaia transformaram-se em cidades
(São Félix do Araguaia, Luciara e Santa Terezinha) situadas em locais muito próximos das
grandes aldeias Karajá, acentuando tanto as possibilidades de trocas variadas como o grave
problema do alcoolismo. No caso Javaé, não existe nenhum vilarejo ou cidade às margens
do Rio Javaés, embora banhistas, pescadores e turistas aglomerem-se em algumas de suas
praias no mês de julho, quando o rio já está secando. Os núcleos urbanos da região estão
situados a uma distância mínima de 40 km da margem do Rio Javaés em razão tanto das
inundações em suas margens como da impossibilidade de navegação durante o período
crítico da seca.
O impacto maior nas aldeias Javaé se deu menos pela ação do Estado e pela
indústria do turismo, que até hoje não tem grande relevância, se comparada ao caso Karajá,
que pela penetração de criadores de gado e pescadores profissionais na Ilha do Bananal. O
arrendamento das pastagens é um fenômeno histórico associado mais aos Javaé e ao
território que ocupam. Na estação seca, o gado entra na Ilha do Bananal mais facilmente
através de sua porção oriental, atravessando o Rio Javaés, que é bem mais estreito e raso
que o Araguaia, como já havia sido mencionado por Aires de Casal (1945) em 1817. Nos
últimos anos, entretanto, as grandes aldeias Karajá (Santa Isabel, Fontoura, Macaúba)
também têm permitido a entrada de gado em terras sob o seu controle enquanto permanece
a pendência judicial com os não-índios que ocupam a ilha (Rodrigues, 2008).
Há indícios de que a pesca comercial também foi praticada em maior escala no
território Javaé, embora os Karajá de várias aldeias também trabalhem com a pesca

104
Ver Tavener (1973), Pinheiro (1994) e Lima Filho (2001).

189
comercial do pirarucu e outros peixes 105 , que são vendidos para comerciantes que chegam
às aldeias vindos das cidades mais recentes e próximas do Mato Grosso, por via terrestre,
ou das cidades mais antigas e distantes do Pará, por via fluvial, incluindo Belém. Os Javaé
historicamente tiveram uma maior acesso aos lagos e rios do interior da Ilha do Bananal,
vendendo peixes aos comerciantes que chegam à área principalmente por via terrestre, em
especial dos estados de Tocantins e Goiás. Como o leito do Rio Javaés seca bastante de
julho a outubro, compradores de peixes profissionais ou pescadores amadores podem
atravessar o rio de carro em vários pontos e entrar na ilha durante a seca, o que não ocorre
no Rio Araguaia. Em algumas aldeias Karajá, como Santa Isabel, a maior fonte de renda
monetária vem da nacionalmente conhecida e apreciada cerâmica figurativa fabricada pelas
mulheres 106 , que não é mais cultivada entre os Javaé, e que contribui para um outro
panorama de relações econômicas e sociais internas 107 .
As missões religiosas protestantes ocuparam o espaço deixado pelos missionários
dominicanos e foram muito presentes entre os Karajá até recentemente, tendo imposto
“restrições alimentares e culturais” (Lima Filho, 1994:28) 108 . Elas atuaram em favor da
melhoria das condições de saúde, mas também influenciaram decisivamente para que os
Karajá do norte da Ilha do Bananal abandonassem suas aldeias nos anos 50 e se
concentrassem, até os dias de hoje, na aldeia Macaúba (ver Tavener, 1966, Rodrigues,
2008), o que contribuiu para a perda de áreas de ocupação antigas e para a intensificação
de conflitos internos. Por outro lado, a atuação política da famosa Prelazia de São Félix do
Araguaia, até recentemente comandada por Dom Pedro Casaldáliga, e do CIMI, ambos de
origem católica, foi determinante nos anos 70 e 80, em especial, para o processo de
reconhecimento oficial das terras Karajá localizadas no Estado do Mato Grosso (Terra
Indígena Tapirapé/Karajá e Terra Indígena São Domingos). As organizações religiosas
tiveram pouca presença entre os Javaé, comparativamente, apesar do SIL ter treinado
monitores bilíngües nos anos 70 e ter traduzido a bíblia para a língua Karajá. Bonilla

105
Ver Schultz (1953), Tavener (1973), Fénelon Costa (1978), Pétesch (2000).
106
Ver Castro de Faria (1959), Chiara (1970), Fénelon Costa (1978), Bueno (1987), Lima Filho (1994).
107
Huiriru é a única mulher Javaé que se dedica à fabricação de bonecas e panelas de barro, com fins
comerciais, na aldeia Canoanã. Segundo a explicação que ouvi em 1990, antigamente os Javaé praticavam a
arte cerâmica nas aldeias interioranas, incluindo a fabricação de bonecas, que foram vistas por Krause (1940-
1944) em 1908, de modo que ainda se encontram urnas funerárias ou restos delas nos antigos cemitérios
abandonados (ver Toral, 1999). Wilma Chiara (1970) não encontrou bonecas Javaé na aldeia do Riozinho
que visitou em 1959, mas obteve alguns exemplares depois de encomendá-las a uma mulher. Nas novas
aldeias pós-contato, como Canoanã, não existe o tipo de barro considerado adequado para tal.
108
Ver Tavener (1973), Bueno (1975), Donahue (1982), Toral (1992), Pinheiro (1994), Pétesch (2000), Cruz
(2005).

190
(1997, 2000) menciona a atuação de missionários de origem protestante entre os Javaé de
Txuiri e, desde meados dos anos 90, o CIMI iniciou e intensificou sua atuação política
entre o grupo como um todo.
Além das diferenças contextuais entre os Javaé e os Karajá, há também diferenças
relativas à história entre os próprios Karajá. Wilma Chiara (1970) constatou nos anos 50
diferentes influências da sociedade nacional entre os Karajá meridionais e os setentrionais
(que não se confundem com os Xambioá). Enquanto os Karajá da ponta norte da Ilha do
Bananal e arredores sofriam mais o impacto das frentes de extração de produtos naturais
(em especial a fauna aquática), oriundas do baixo Araguaia e de Belém, os Karajá da ponta
sul da ilha e arredores estavam muito mais expostos à crescente indústria do turismo,
originada no centro e no sul do país, diferença que ainda se mantém. Baldus (1970)
considerou os Karajá setentrionais como mais “rudes” e “pobres” em termos de cultura
material que os meridionais, enquanto Tavener (1973) enfatizou o contraste entre extração
de diamantes e agricultura de subsistência ao sul da ilha e criação de gado ao norte, no que
se refere à população ribeirinha, além das diferentes especialidades artesanais de cada
aldeia Karajá conforme os recursos disponíveis (buriti ao norte, madeira ao sul etc). Tal
divergência era apenas um capítulo a mais em uma história de diferentes frentes de
penetração ao território indígena iniciada nos séculos 16 e 17, uma vez que já naquela
época havia uma diferença entre os bandeirantes vindos de São Paulo, ao sul, e os jesuítas
vindos de Belém, ao norte. Na segunda metade do século 19, o contraste se dava entre as
frentes agropecuárias instaladas em Leopoldina, ao sul, e as de Santa Maria e outras
localidades do baixo Araguaia e Tocantins, ao norte.
Note-se por fim que a população Karajá estabilizou-se no início do século 20, como
já havia argumentado Donahue (1982), mantendo-se localizada ao longo do médio
Araguaia, onde sempre esteve, ao contrário do que ocorreu com os Javaé, que vivenciaram
no século passado um processo dramático de deslocamento territorial e de grandes perdas
populacionais. Os dois grupos tinham uma população, cada um, com cerca de 800 pessoas
(um pouco mais no caso Javaé) em 1908, segundo Krause (1940-1944). Em 1978, porém,
enquanto os Javaé chegavam a menos de 300 pessoas (Toral, 1992), os Karajá alcançavam
cerca de 1.500 pessoas (Donahue, 1982). George Donahue chegou à conclusão de que os
Karajá sofreram uma perda de mais de 90% da população original desde o início do
contato, nos séculos 17 e 18, o que pode ser estendido aos Javaé, apesar de suas
peculiaridades históricas. Nos últimos 30 anos, porém, os dois grupos têm recuperado seu

191
contingente populacional de forma acelerada. Atualmente (2008), a população Javaé é de
cerca de 1400 pessoas, enquanto a população Karajá alcança cerca de 3000 pessoas.

3.4.4. O novo contexto histórico

Os Javaé permaneceram mais isolados da sociedade envolvente que os seus


vizinhos Karajá, é verdade, mas nos últimos tempos têm experimentado transformações
visíveis muito aceleradas. Em 1990, havia um certo controle sobre o alcoolismo, restrito a
algumas pessoas e a algumas situações especiais. Visitar as pequenas cidades vizinhas
ainda era uma aventura que amedrontava a maioria das pessoas, sendo conhecidos por
todos os poucos Javaé que, por motivos variados, tinham vivido por mais tempo entre os
brancos. A grande maioria das casas era de palha, as roças ainda eram fartas, a luz elétrica
originava-se de motores à diesel, durante algumas horas apenas, e somente em Canoanã
havia um aparelho de televisão coletivo, objeto de grande curiosidade. Visitas a grandes
centros urbanos, como Brasília, eram uma experiência rara de poucas pessoas.
Em 1997/1998, já havia luz elétrica permanente em Canoanã, televisores em
praticamente todas as aldeias, e já era um hábito instituído que os carros da comunidade
levassem os aposentados e respectivos parentes para receber suas aposentadorias mensais e
realizar compras de produtos industrializados nas cidades próximas. As visitas às pequenas
cidades, seja para tratamento médico ou compras, já não mais assustavam e eram bem mais
freqüentes. O alcoolismo tornara-se um mal endêmico em Canoanã, situação que tem se
agravado desde então e se alastrado para as outras aldeias, estando associado a
praticamente todos os casos de mortes violentas (em razão de conflitos) ou acidentais
(como afogamentos ou acidentes de trânsito) das últimas décadas.
Bonilla (1997:75) descreve uma situação de forte interdependência econômica,
territorial e política entre os Javaé e os brancos em 1996, além de caracterizar como
contraditório o tom das relações interétnicas no mundo urbano vizinho, em que os
comerciantes são receptivos aos índios, mas “a população de Formoso é em geral hostil e
os menospreza”. A autora lembra, inclusive, o assassinato de um Javaé pela polícia local
em 1995, ocorrido em Formoso do Araguaia. Em outro texto, Bonilla (2000:12) relata que,

192
“até hoje, a atitude dos Tori diante dos Índios é ambivalente, ora eles louvam a docilidade
destes (‘eles são mansos’), ora os acusam de serem os culpados de suas desgraças”.
Na virada do milênio, aproximadamente, iniciou-se um processo, até então limitado
a alguns casos raros, de mudança de famílias ou indivíduos Javaé para as cidades vizinhas,
em especial Formoso do Araguaia, com o objetivo principal de estudar ou trabalhar,
embora praticamente não haja índios Javaé trabalhando para a iniciativa privada. Em 2002,
um levantamento que fiz sobre os Javaé morando fora das aldeias mostrou que quase cerca
de 10% da população total estava vivendo nas cidades próximas, ainda que a maioria
retornasse com freqüência às aldeias, surgindo um novo panorama de relações interétnicas
a ser pesquisado. A lista a seguir, com dados populacionais de 2002, está em ordem
decrescente de população e inclui os poucos moradores não-índios ou não Javaé das
aldeias:

Tabela n° 7: Distribuição da população Javaé (2002)


Aldeias Moradores Moradores Total
(2002) permanentes transitórios
Canoanã 229 43 272
Txuiri 162 3 165
São João 110 10 120
Barreira Branca 95 14 109
Boto Velho 89 9 98
Wariwari 78 2 80
Boa Esperança 66 66
Txukòdè 44 2 46
Cachoeirinha 34 2 36
Barra do Rio Verde 33 3 36
Imotxi 22 3 25
Total 962 91 1053

Os “moradores transitórios” são, em sua maioria, crianças Javaé estudando na


Fundação BRADESCO, jovens Javaé matriculados em escolas de nível secundário nas
cidades vizinhas (Formoso do Araguaia, Lagoa da Confusão, Sandolândia), funcionários
da área de saúde, que possui um centro (ligado à FUNASA) voltado exclusivamente à
comunidade indígena em Formoso do Araguaia e em Lagoa da Confusão, ou pessoas
ligadas às associações indígenas. Como se trata de cidades relativamente próximas às
aldeias, os Javaé em questão vivem a maior parte do tempo nas cidades, mas costumam
retornar às aldeias de origem nos fins de semana, férias e feriados. Nos últimos anos,

193
alguns poucos Javaé começaram a freqüentar cursos de graduação em diferentes
faculdades do Estado de Tocantins e Goiás e cada vez mais os jovens estão tentando
ingressar em algum curso superior.
Em fevereiro de 2005, inaugurou-se o Centro de Inclusão Digital (CID) da aldeia
Canoanã, após esta ter recebido da Fundação BRADESCO a doação de 10 computadores,
ligados à internet. Poucos anos antes disso, foram instalados telefones públicos em todas as
aldeias e alguns indivíduos agora possuem casas na cidade e até carros, antes restritos à
posse coletiva. Até a década de 80, apenas dois filhos de um influente cacique tinham
estudado na Fundação BRADESCO, escola primária e secundária em regime de internato
que atende às crianças e adolescentes de baixa renda da região. Desde meados da década
de 90, um número cada vez maior de crianças Javaé é matriculada na escola da fundação
todos os anos, sendo comum a expulsão de crianças e jovens Javaé que não se adaptam às
novas condições de vida. Também aumentaram consideravelmente os casamentos
interétnicos, com mulheres ou homens não-índios, principalmente na aldeia Txuiri, e o
número de filhos “mestiços”, o que antes era um grande tabu.
Um número cada vez maior de homens Javaé vem trabalhando como funcionários
públicos (professores, agentes de saúde, motoristas etc) e recebendo salários, embora a
maioria continue vendendo peixe. Pétesch (2000:32) aponta as conseqüências deletérias da
“funcionarização” entre os Karajá, tais como exacerbação dos conflitos e disputas internas,
dependência crescente de produtos industrializados, contração de dívidas, perda da
capacidade produtiva etc. As mulheres Javaé que ocupam funções assalariadas são em
número bem menor, mas a fabricação e venda do artesanato de palha e penas, nas cidades
vizinhas e para turistas eventuais, têm gerado alguma renda extra para as famílias
envolvidas. Todos os idosos agora recebem aposentadorias do Estado, não sendo incomum
encontrar cada vez mais jovens em idade produtiva dependentes dessa nova fonte de renda
familiar, que tem estimulado uma menor dedicação ao tradicional cultivo das roças.
Na presente década, houve uma crescente inserção dos Javaé em movimentos
políticos mais amplos, seja por meio da ida cada vez mais freqüente de representantes
indígenas aos centros políticos regionais ou a Brasília, em busca de soluções para questões
variadas juntos aos órgãos governamentais, ou por meio da participação no movimento
indígena nacional, como na marcha dos 500 anos, em 2000, em Porto Seguro (BA), ou na
mobilização “Abril Indígena”, que ocorre todos os anos em Brasília desde 2004. Em 2004,
pela primeira vez na história, um Javaé (o presidente da CONJABA, Darci Makurehi) foi

194
eleito como vereador (pelo Partido Liberal) do município de Formoso do Araguaia. Os
Javaé passaram a ter uma maior visibilidade no Estado de Tocantins e passaram a ser
convidados, por autoridades locais e de outros estados, para solenidades oficiais e
apresentações de danças, pinturas, músicas etc, chegando a se orgulhar que suas exibições
são consideradas “mais bonitas” que a dos vizinhos Karajá.
Atualmente, as antenas parabólicas individuais tornaram-se parte integrante da
paisagem nas aldeias maiores, aumentou o número de casas de alvenaria e a dependência
de produtos industrializados, algumas casas em Canoanã estão cercadas com arame
farpado, as tradicionais esteiras estão sendo substituídas por cadeiras. As estradas estaduais
próximas às aldeias, algumas ainda em região de difícil acesso, estão em adiantado
processo de asfaltamento e a aldeia São João, onde reside Darci Makurehi, firmou-se como
um importante centro político. No final de 2005, passou a contar com uma rede de
eletrificação permanente e nos últimos anos tornou-se a aldeia que mais cresce, atraindo
novos moradores, em contraste com Canoanã, cuja população tem diminuído
gradativamente desde os anos 90. Os assentamentos vizinhos dos não-índios removidos da
Ilha do Bananal foram consolidados e agora está na pauta do governo estadual, com a
aprovação de grande parte dos Javaé, a substituição das casas de palha por casas populares
de alvenaria. Muito recentemente têm havido casos de suicídio de jovens, ocorrências que
antes estavam restritas aos vizinhos Karajá (Bueno, 1987, Pétesch, 2000).
As transformações têm sido abruptas e velozes, mas a recuperação do contingente
populacional, o movimento de reocupação de parte do território tradicional e uma maior
participação na arena política regional e nacional têm sido acompanhados, paralelamente,
de uma revitalização das formas tradicionais de ser. Em fins de 2005 e início de 2006,
quando fui convidada para “fazer a história” dos Javaé, nas palavras do líder local que me
convidou, filmando e fotografando o ritual de iniciação masculina (Hetohoky) que ocorreu
na aldeia São João, ouvi de várias pessoas, incluindo alguns dos novos líderes, um discurso
inédito sobre a necessidade de “preservar a cultura”, o que deve ser compreendido também
dentro do movimento muito mais amplo de afirmação cultural, étnica e política dos povos
indígenas no Brasil. Apesar de um contexto um tanto diferente, Portela (2006:182)
descreve o intenso envolvimento dos jovens Karajá da cidade de Aruanã pela
“revalorização” da “cultura tradicional” como parte de um complexo processo de
resistência histórica e política em um meio bastante adverso.

195
O Hetohoky Javaé, ápice do ciclo ritual anual da Dança dos Aruanãs, que era
realizado quase todos os anos, em todas as aldeias, teve sua continuidade interrompida por
muitos anos após o contato, tendo sido realizado apenas seis vezes entre a década de 50 e
90, somente em Canoanã. Embora os mais velhos digam que os jovens não estão mais
interessados como antes na vida ritual, de 1991 até agora (2008), com a escolha de um
novo chefe ritual, os Javaé realizaram nove rituais de iniciação completos, quatro em
Canoanã, um em Wariwari, um em Boto Velho, dois em São João e um em Barreira
Branca, além de várias outras versões menores. Na reunião realizada com os caciques de
várias aldeias em 2006, ouvi do chefe ritual o propósito de retomar o ritual Iweruhuky, não
mais realizado desde 1981 ou 1982, no ano de 2010. Quase todas as aldeias têm insistido
em construir a Casa dos Homens, centro de uma vida ritual intensa, e continuar realizando
a Dança dos Aruanãs, cerimônia que integra toda a coletividade e conecta os Javaé aos
ancestrais mágicos do Fundo das Águas.
Os Karajá e Javaé são alguns dos poucos povos indígenas da antiga Capitania de
Goiás que sobreviveram às capturas e grandes mortandades promovidas pelos
bandeirantes, à política repressora dos aldeamentos, às epidemias trazidas pelos
colonizadores em épocas diferentes e à invasão crescente do seu território. Além disso,
quase todos os antropólogos que pesquisaram os Karajá e Javaé destacam a notável
capacidade de resistência cultural desses dois grupos, que souberam dialogar com as
mudanças drásticas impostas pelo contato mantendo aspectos essenciais da estrutura social,
ritual e cosmológica anterior. Tal capacidade, como veremos, relaciona-se em grande parte
à sua habilidade cultural e histórica de estabelecer relações pacíficas e de trocas variadas
com os povos vizinhos, de modo similar ao que ocorreu no alto Xingu, enfatizando mais o
engrandecimento mútuo do que o desejo de conquista ou aniquilamento dos diferentes.
Apesar de apresentar os fatos mais relevantes do contexto histórico, no que se
refere à relação dos Javaé com a sociedade nacional, minha intenção aqui não é considerar
esta a única “História” possível, como se o contato fosse o fato determinante de uma
consciência histórica ou mesmo de uma sociedade histórica, nem me basear apenas nos
registros escritos ou no ponto de vista do colonizador. Pretendo dar crédito ao mito
enquanto memória coletiva sobre as relações interétnicas e sobre o processo de
constituição histórica da cultura e da sociedade Javaé antes e depois da chegada do europeu
à América, levando em consideração os critérios nativos de reconstrução do passado e de
formulação de uma teoria da agência social, a ser explicitada no Capítulo 6. No que se

196
refere às relações com os brancos, fatos empíricos registrados por diversas fontes são
também registrados pela memória oral do grupo, ainda que não na forma de cronologia
linear realista a que estamos acostumados.
Chama a atenção que a mitologia escolheu como fato significativo a ser lembrado,
em cerca de 400 anos de relacionamento com a sociedade nacional, seja de forma
esporádica ou intensa, o primeiro e devastador ataque de um povo de poderes superiores,
cuja gênese não é interpretada como separada da gênese Javaé, juntamente com a primeira
reação Javaé (representada pela sobrevivência de Marani Hãwa como um grande centro e
daqueles que herdaram o nome e os títulos de Tòlòra). O primeiro encontro e a primeira
reação Javaé, afinal o povo de Marani Hãwa não foi exterminado pelos bandeirantes,
conservando sua dignidade e uma posição de assertividade dentro da assimetria
tecnológica de poder, são os fatos artificialmente congelados no mito e mantidos
paralelamente aos outros primeiros encontros com outros povos. Veremos que o conceito
Javaé de agência histórica, independentemente do contato com o europeu, funda-se
exatamente nesta idéia de reação criativa a uma transformação imposta pelas relações com
a alteridade, o que é associado a uma posição de controle relativo da desordem sempre
ameaçadora.
O que o mito registra e congela não é a narrativa realista sobre os primeiros
encontros reais, embora se refira a eles com precisão, mas o primeiro padrão profundo de
relações que foi estabelecido e que ficou desde então sendo repetido: as relações são
assimétricas e os brancos têm um poder tecnológico superior, porém os Javaé reagem a ele
ativamente porque partilham de um mesmo ancestral e da mesma fonte de poder (Ijèwèhè é
ancestral dos brancos e de Tanyxiwè, o poderoso herói criador). Mesmo que uma série de
fatores objetivos das relações interétnicas tenha mudado de modo inequívoco, tais como os
tipos de relacionamento entre índios e brancos (antes vistos como objeto de caça dos
bandeirantes; agora, por uma parcela da população, como cidadãos com direito à proteção
do Estado), os atores específicos (bandeirantes antes, depois os fazendeiros, pescadores,
agentes da FUNAI e do governo local e federal, turistas, moradores locais, antropólogos
etc), o espaço físico do contato (antes dentro da Ilha do Bananal, agora nas cidades), o
contexto histórico no tempo (o antes do Brasil colônia e o agora da globalização) etc; em
termos efetivos, o padrão geral de relacionamento a que o mito se refere, relativo a uma
dimensão mais profunda da realidade, ainda não foi alterado.

197
Trata-se ainda, desde o começo, de uma relação assimétrica de poder, na qual,
porém, os atores não se vêem como sujeitos passivos ou derrotados, mas como moralmente
superiores aos brancos e capazes de construir a própria história dentro das limitações
impostas. Nesse sentido, o mito não só contém aguda consciência histórica, como é
extremamente objetivo e fidedigno, considerando-se que o seu foco (as estruturas difíceis
de mudar) difere daquele das crônicas históricas lineares (as superfícies mutantes).
Pretendo argumentar ao longo deste trabalho que a posição intermediária que os Iny
ocupam no cosmos, segundo a teoria cosmológica Javaé, significa também uma ativa
mediação histórica entre os extremos de identidade e alteridade, continuidade e
transformação. A posição de agente histórico é traduzida espacialmente como esse “estar
no centro do mundo”, sendo concebida como uma posição intermediária de recriação
constante da estrutura, situada entre a tradição herdada dos semelhantes e as mudanças
introduzidas pelas relações com os diferentes.
O mito não dirige seu olhar às relações ordinárias e específicas, ao longo do tempo,
entre os diversos atores Javaé e da sociedade envolvente, como em um relato histórico
ocidental, mas à grande e única relação criadora (e por isso extraordinária) entre os Javaé e
os brancos, a partir do qual um novo padrão de relacionamento foi estabelecido (uma nova
realidade criada), o que não significa dizer que não pode ser mudado. A narrativa focaliza
um padrão profundo que se repete dentro de uma contingência histórica específica (a
chegada do colonizador europeu ao Novo Mundo), dissolvendo a rígida oposição entre o
mito das verdades essenciais e eternas e a história dos fatos contingentes e mutantes (ver
Turner, 1988b), assunto ao qual retornarei ao longo deste trabalho.

198
3.5. A hipótese Arawak

3.5.1. O mito como consciência histórica

Tenho a intenção de levar a sério o conteúdo do mito, enquanto uma forma de


consciência social que contém uma objetividade (relação entre fato empírico e valor
subjetivo) condicionada por critérios culturais específicos, mas que não deixa de ser
legítima. Gostaria de propor que o mito Javaé contém informações dignas de crédito, do
ponto de vista etnológico e histórico, sobre a formação da sociedade Javaé atual.
Uma análise etnográfica atenta pode revelar que tudo que os Javaé consideram
como contribuição e criação do povo Wèrè tem ligações óbvias com o panorama cultural
Jê-Bororo; que o que foi herdado de Tòlòra e seu povo é sem dúvida associado aos Arawak
em geral, em especial aos alto-xinguanos; e que há influências menores dos Tupi, seja
através dos Wou (Tapirapé) ou outros povos. O estudo da organização social e da
cosmologia Javaé revela que a relativa excentricidade cultural dos povos de língua Karajá
no Brasil Central, fato originalmente apontado por Ehrenreich (1948) e depois retomado de
modo mais aprofundado por Pétesch (1987, 1992, 1993a, 2000), no sentido de que eles têm
características similares aos Jê e Bororo, mas ao mesmo tempo possuem outras muito
diferentes e intrigantes (ver Padberg-Drenkpol, 1926), pode ser explicada – validando-se o
que diz o próprio mito – pelas fusões culturais entre povos de origens diferentes ao longo
do tempo.
As influências Jê-Bororo são mais perceptíveis ao observador, talvez pela
associação a priori que se faz entre língua e cultura. O triadismo cosmológico, interpretado
por Pétesch (2000) como uma forma aberta do dualismo Jê-Bororo, o cerimonialismo
intenso associado à Casa dos Homens ou ao pátio masculino, a importância da
uxorilocalidade e do princípio de residência, as relações assimétricas entre genros e sogros
(Turner, 1979a), a endogamia de aldeia, a autonomia das aldeias, as classes de idade, os
rituais de iniciação masculina, o faccionalismo, uma série de oposições marcadas (entre as
metades cerimoniais, entre espaço masculino e feminino, rio acima e rio abaixo, tio
materno e pai, casa natal e casa dos afins etc), o cosmos inscrito no espaço, a importância
dos mortos como identidade contrastiva dos vivos (Carneiro da Cunha, 1978), a pouca

199
validade de princípios de descendência, o tema da identidade social oposta à identidade
substancial, tudo isso é encontrado entre os Javaé e associa-se ao complexo Jê-Bororo 1 .
Por outro lado, há fatores importantes que os distanciam dos Jê em geral. Em uma
coletânea relativamente recente (Hill & Santos-Granero, 2002a), apresenta-se o resultado
de uma conferência internacional onde se reuniram, pela primeira vez, vários especialistas
sobre povos da grande família lingüística Arawak (também conhecida como Aruak ou
Maipure), inigualável em termos de dispersão geográfica pelos ambientes mais diversos do
continente americano, cujo início teria se dado por volta de 1000-500 a.C. (Heckenberger,
2002), ou seja, há pelo menos 2.500 anos (ver Mapa n° 10 ao lado) 2 . Como lembram Hill
& Santos-Granero (2002b), a grande diaspora Arawak, cujo centro de dispersão parece ter
sido o noroeste amazônico 3 , oferece condições únicas para um estudo comparativo de
diferentes membros de uma família lingüística, possibilitando repensar os conceitos de área
cultural e a relação entre cultura e língua dentro de uma perspectiva eminentemente
histórica. Assim, alguns dos autores da coletânea identificam traços comuns do que é
chamado de um “ethos Arawak” por Santos-Granero (2002:28), o qual deve ser entendido
não apenas dentro de uma perspectiva histórica, mas principalmente interétnica 4 .
Este último autor analisa três grandes regiões, associadas a outras grandes famílias
linguísticas [leste do Peru (Pano), noroeste amazônico (Tukano) e nordeste da América do
Sul (Carib)], em que grupos de origem Arawak estiveram (e estão) envolvidos em
situações históricas que configuram “identidades transétnicas, ou seja, grupos que adotam
o ethos cultural de outro tronco lingüístico, mas retêm sua língua, ou, inversamente, grupos
que adotam uma língua diferente, mas retêm seu ethos” (Santos-Granero, 2002:28, grifo
meu). No leste do Peru, por exemplo, há evidências que os Piro e Campa (Arawak) do Rio
Ucayali sofreram um processo de “Panoização” (2002:32), adotando características
marcantes de grupos vizinhos da família lingüística Pano, como a prática de “endo-guerra”,
assim como se encontra “falantes Pano Arawakizados” (Hill & Santos-Granero, 2002b:17).

1
Ver Crocker (1979, 1985), Lave (1979), Da Matta (1976, 1979), Maybury-Lewis (1979a, 1984), Melatti
(1976, 1979), Turner (1979), Lea (1993) e Seeger (1980, 1981), por exemplo.
2
Segundo Heckengerger (2002:102), “nem todos os grupos culturais na América do Sul eram tão inclinados
a se mover, e nenhum de modo mais abrangente que os Arawak. E nem todos os grupos carregaram consigo
tanto de seu passado e sua herança cultural através dos tempos”.
3
Ver Wright (1992) Zucchi (2002) e Heckenberger (2002).
4
“Meu uso do termo ethos tem consonância mais com o uso feito por Bourdieu do que o de Bateson ou
Geertz (…). O ethos de um povo é feito não de regras, estratégias ou construtos ideológicos, mas de
disposições inconscientes, inclinações e práticas que moldam essas regras, estratégias e ideologias, ao mesmo
tempo em que são moldadas por elas” (Santos-Granero, 2002:44).

200
Mapa 10
Expansão dos povos Arawak

Localização dos principais agrupamentos Arawak


na época do contato com os europeus

Áreas de povos falantes de Arawak

Áreas de outros povos


Os grupos não falantes de Arawak
ocupando as principais áreas são:
oco 1 Karib
Orin
o 2 Tukano
Ri

1 3 Pano

Oc
ea
no 4 Tupi-Guaraní
A tl 5 Jê
ân t
2
i co

mazonas
Rio A Rio Xingu
jós
pa
Ta

us 4
Ri o U

Rio

aia
3 Pu r 4
ira
agu

Ri o de 5
cayali

r
a

Rio A
M
Rio
Oc
ea
no

ac
P

íf i c
o

0 500 1.000 km

Localização de povos contemporâneos


falantes de Arawak
Goajiro

rinoco
Rio O Lokono
Achagua Arawak

Pa´ikwené
Oc

Piapoco
an
e

Wapishana o
Baniwa A tl
Wakuénai Warekena ânt
Tariana Baré ico
Kabiyari
Yukuna
zonas
Ama
Rio
gu

jós
Rio Xin

pa
a
oT

Chamicure
s

Ri
u ru

ira
R. U c a

de

Rio P
ia
Ma

g ua

o
Ri
y al

Ara

Apurinã
i

Yanesha
Rio

Ashéninka Piro
Ashaninka
Nomalsiguenga
Matsiguenga Saluma Yawalapiti
Bauré Mehinaku
Paressí Waurá
Mojos

a
Terena ragu y
Pa
Fonte: Hill & Santos-Granero
Rio

N
(2002: 2-7)
Projeto: Patrícia de M. Rodrigues 0 500 1.000 km
Cartografia: Dan Pasca

201
No noroeste amazônico, uma série de eventos complexos pré e pós-contato “deu
origem a um processo intensivo de trocas culturais e étnicas que levaram à Tukanização de
grupos Arawak e à Arawakização de grupos Tukano” (Santos-Granero, 2002:35), como no
caso dos Tariana que adotaram a língua Tukano, ao mesmo tempo em que mantiveram um
ethos Arawak (ver Wright, 1992, sobre a relação histórica entre os Tukano e Arawak);
quanto ao nordeste sul-americano, “os Karipuna são um exemplo notável de identidade
transétnica. Apesar de sua língua materna ser Arawak, sua organização social e práticas
culturais estavam mais próximas daquelas dos Kariña, falantes Caribe, do que dos Taíno
ou Lokono, falantes Arawak” (Santos-Granero, 2002:40).
Por trás das variações imensas, entretanto, é possível identificar traços em comum
do ethos ou matriz cultural Arawak, sem que isso implique na noção de um tipo específico
de cultura ou organização social 5 . Algumas características principais do ethos Arawak,
identificadas durante a conferência, são então relacionadas por Hill & Santos-Granero
(2002b:16) em sua introdução à coletânea 6 : “a característica mais ampla e clara que
emergiu dos trabalhos da conferência é um padrão distintivo de circulação sócio-
geográfica, conectividade, abertura e expansividade dos povos falantes da língua Arawak
que moram ao longo dos maiores rios das terras baixas da América do Sul”. Em outras
palavras, o caráter aberto e inclusivo das formações sociais Arawak, muitas vezes expresso
através de amplas redes de trocas e alianças políticas, rituais, comerciais ou de casamento
entre grupos locais ou regionais e em níveis intra ou interétnicos.
Trata-se daquilo que Heckenberger (2001a, 2001b, 2002) chama de “regionalismo”,
como no caso alto-xinguano, associado à freqüência do multilingualismo e ao
desenvolvimento das identidades transétnicas em situações diversas de contato: “povos
Arawak tendem a formar sociedades regionais (ou seja, comunidades morais que partilham
uma mesma cultura e ideologia), reproduzidas através de redes formais de interação,
incluindo intercasamentos, trocas, interdependência cerimonial e padrões difusos de
socialidade dentro e entre as comunidades” (Heckenberger, 2002:114). As alianças muitas
vezes associam-se a “redes amplamente espalhadas de trocas cerimoniais e ligadas a sítios
sagrados” (Hill & Santos-Granero, 2002b:17), de modo que se observa também uma ênfase

5
Para Santos-Granero (2002:42), “enquanto um produto histórico, uma matriz cultural não é uma
totalidade fixa, coerente, integrada e fechada, mas muito mais uma rede frouxamente organizada que, de
modo parecido com a Internet, constitui simultaneamente o pano de fundo, a estrutura e a fonte de
informação que informa as práticas socioculturais dos membros de uma dada família lingüística. Assim, a
marca que ela deixa e os ethos de seus membros têm elementos em comum sem serem idênticos”.
6
Ver também Santos-Granero (2002), Zucchi (2002) e Heckenberger (2001a, 2001b, 2002).

202
na elaboração social do espaço, o que se dá em termos de centros sagrados comuns a vários
grupos (ver Wright, 2002 e Zucchi, 2002) ou de “uma variedade de práticas associadas à
apropriação da paisagem. Elas incluem performances rituais elaboradas, nomeação de
lugares e movimentos através de grandes áreas, atribuindo significado histórico a marcos
naturais (...). Toponímias reiteradas, cartografias sagradas e paisagens encantadas são
encontradas entre povos Arawak amplamente dispersos” (Hill & Santos-Granero,
2002b:16).
Outras características de destaque são o repúdio a qualquer tipo de “endo-guerra”
(Santos-Granero, 2002:45), ou seja, a guerra contra povos linguistica ou culturalmente
relacionados (ver Heckenberger, 2002). Hill & Santos-Granero (2002b) combatem a idéia
simplista e longamente difundida de que os Arawak eram povos “pacíficos” em
comparação com os Carib e Pano guerreiros, por exemplo (ver Whitehead, 2002), uma vez
que há muitas evidências de que os Arawak guerreavam contra outros povos não-Arawak,
chegando a aprisionar escravos ou praticar o canibalismo (ver Wright [1992] ou Menget
[1993] sobre as guerras dos grupos alto-xiguanos com os de fora). Entretanto, “a guerra e
sua ritualização não são constitutivas das identidades sociais Arawak, como é o caso entre
os Jivaro, Carib, Pano, e Tupi. Esse contraste notável sugere a existência de uma ontologia
Arawak profundamente enraizada em que o poder ritual e as relações de comércio e troca
cerimonial predominam sobre a predação e o conflito enquanto princípios básicos para a
ordenação da vida social e para a construção da socialidade (Hill & Santos-Granero,
2002b:18). Heckenberger (2001a, 2001b, 2002) fala de “ideologias não-predatórias
recorrentes, relações de acomodação com grupos vizinhos, e estratégias militares
defensivas” (2002:111) entre os Arawak. Em sua proposta de um novo modelo para a
compreensão da expansão Arawak no norte da América do Sul, baseada em materiais
arqueológicos, históricos, etnológicos e na tradição oral local, Zucchi (2002:221) conclui:

“(…) A informação disponível sobre os mecanismos de migração dos Maipure


setentrionais parece sugerir que a diáspora dos Maipure setentrionais foi alcançada por
meio de mecanismos pacíficos baseados em um tipo de organização sociolingüística
aberta e inclusiva, ligada a uma noção transformacional do mundo e a uma acentuada
flexibilidade em relação à mudança, o que facilitou os processos de negociação e
agregação e também o estabelecimento de redes lingüísticas, identidades transétnicas,
alianças regionais extensas e redes de comércio”. (grifo meu)

203
Finalmente, tem-se uma ênfase nos princípios de hierarquia social, “baseados em
noções de descendência, ancestralidade e consangüinidade” (Hill & Santos-Granero,
2002:18), o que pode se manifestar de variadas formas: “expressões comuns de hierarquia
são o reconhecimento destacado de genealogias, a primogenitura, a residência
patrivirilocal, a poliginia, a endogamia de classe e outras práticas sociais que resultam na
sobredeterminação das relações de descendência entre as pessoas de alto status”. Segundo
Wright (1992:260), “embora a ordenação hierárquica seja uma característica tanto das
sociedades arawak como das sociedades tukano, o seu desenvolvimento mais forte e claro
aparece entre os Arawak”. Mais recentemente, Hill (2002:225) diz que as evidências
etnográficas atuais são de que os princípios de “classificação hierárquica das comunidades
locais” originaram-se entre os Arawak e foram posteriormente adotados pelos Tukano
orientais.
A valorização das genealogias e ancestrais míticos ocorre geralmente apenas entre
as famílias de maior status, associadas a chefias hereditárias, havendo distinção entre
famílias nobres ou de elite e comuns, entre primogênito e caçula. Esta última distinção –
também encontrada entre os Bororo (Crocker, 1976) e os Tapirapé (Wagley, 1988) –
constitui o princípio elementar da distinção hierárquica 7 . Heckenberger (2002:113) lembra,
entretanto, que “a hierarquia social, embora seja legitimada e naturalizada pela genealogia
e pela história, não requer princípios de descendência fortemente lineares, particularmente
os unilineares (grupos de descendência corporados ou linhagens baseados na descendência
de um ancestral específico ou apical). Ela é geralmente traçada por meio dos predecessores
imediatos de um indivíduo, incluindo os pais e, notavelmente, os avós (...) e uma
conectividade metafórica com ancestrais distantes e mitológicos. (...) Genealogia é
importante, mas é mais importante para os poderosos”.
Em seu trabalho etno-arqueológico sobre o alto Xingu, Heckenberger (2001a:28)
propõe a existência de uma província cultural distinta na chamada “Periferia Meridional da
Amazônia”, região que está situada entre duas grandes “províncias macroculturais”, os
Tupi amazônicos e os Jê do Brasil central, e compreende a vasta área entre as terras a leste
do alto Xingu e as terras baixas da Bolívia. Apesar da heterogeneidade sócio-cultural que
caracteriza a região, “a Periferia Meridional tem tanto a ver com história quanto com

7
Segundo Heckenberger (2002:113), “reconstruções lingüísticas preliminares também sugerem a
possibilidade de que um contraste institucional entre irmãos mais velhos e novos (ou seja, a primogenitura), a
base fundamental da hierarquia social nos grupos etnográficos Arawak, já estava também presente entre os
Proto-Arawak”.

204
geografia; e, enquanto o corpo social é diverso, o esqueleto, a estrutura social profunda, é,
em boa parte da região, de origem Aruak” (Heckenberger, 2001a:29). Grupos Arawak
muito antigos teriam migrado para a região do alto Rio Madeira, de onde, posteriormente,
“se expandiram para oeste (Acre e Peru), para sul (terras baixas da Bolívia) e para leste
(Periferia Meridional)” (2001a:30-31).
Nesta expansão a leste, os grupos Arawak que alcançaram o alto Xingu e arredores
teriam sido “o ponto terminal a leste de uma expansão que se originou a oeste no fim do
primeiro milênio d.C. (c.800-900)” (Heckenberger, 2001a:38). Assim, a “cultura
xinguana” (2001a:30) atual seria uma espécie de adaptação histórica e multilíngue de
vários povos diferentes, chegados à região posteriormente, a uma “protocultura” ou um
“substrato Aruak” muito antigo (representado atualmente pelos Yawalapiti, Mehinaku,
Waura e Kustenau), o que é corroborado por Franchetto (2001) e Ireland (2001) 8 . Dentro
dos vários grupos Arawak da Periferia Meridional, os Pareci e os Arawak xinguanos,
chamados de “ramo central Maipure” (Urban, 1992:96) ou “aruak centrais”, estariam
“estreitamente relacionados e representam um movimento de aruak na Periferia
Meridional, chegando ao Alto Xingu por volta de c. 800-1000” (Heckenberger, 2001a:31).
Entre os Arawak centrais e os povos influenciados por eles, como os Bakairi, os
Karib e os Tupi alto-xinguanos, manifestariam-se características milenares dos Arawak,
com variações significativas em cada grupo: grandes aldeias anulares relativamente
permanentes e interligadas; economias de agricultura intensiva (roças fixas), baseadas na
mandioca e nos recursos aquáticos (pescaria) (“as primeiras populações Arawak preferiam
viver em aldeias estabelecidas em áreas ribeirinhas [Heckenberger, 2002:112]);
“integração sócio-política regional baseada em cultura e ideologia comuns e padrões
desenvolvidos de troca (como comércio, casamento, visitação e cerimonialismo
intertribal)” (Heckenberger, 2001a:31); ideologias basicamente não-ofensivas (não-
predatórias), em que a agressão aos outros ocorreria apenas como reação à provocação;
hierarquia social interna (como a distinção entre chefes e comuns, dando origem a

8
“É, portanto, um erro considerar o Alto Xingu uma área cultural discreta e isolada, produto de condições
singulares de aculturação simétrica entre os diversos grupos, ou, por outro lado, subsumi-lo a um substrato
cultural geral do tipo floresta tropical (isto é, Amazônica) ou Brasil Central. No alto Xingu, esse padrão
cultural básico (aruak) reteve sua forma por mais de mil anos, ainda que tenha sofrido transformações
substanciais ao longo do tempo (...)” (Heckenberger, 2001a:29).

205
parentelas hierarquizadas, primogênito e caçula) e ascensão hereditária à chefia. Em suma,
sedentarismo, regionalismo, hierarquia e um pacifismo ideológico 9 .
Embora sem uma análise maior, o autor sugere que os Bororo e os Karajá (cujo
território seria o limite máximo da expansão Arawak a leste, ver Mapa n° 10) teriam sido
influenciados por esse padrão, devendo, entretanto, ser tratados separadamente, por terem
uma história específica diferente dos grupos da Periferia Meridional. A análise dos meus
dados e do que já se publicou sobre os Karajá e Javaé leva à conclusão que ambos têm
ligações com a matriz Arawak, de modo muito mais antigo e profundo do que os Suyá
orientais (Seeger, 1981), outro grupo de origem Macro-Jê exposto às influências Arawak,
mas cuja interação com a cultura xinguana não vai além de um pouco mais que 150 anos.
Lima Filho (1994), estudioso do ritual de iniciação Karajá, já havia argumentado
que “a sociedade Karajá não está isolada da área cultural do Brasil Central como um grupo
alienígena destoante”. Como já foi mencionado, o autor aponta semelhanças notáveis entre
o Hetohoky Karajá e o Kwarìp alto-xinguano: nos dois casos é central a figura de uma
chefia herdada e com fortes traços hierárquicos, associada a um banco zoomorfo bicéfalo e
ao Urubu-Rei mítico; os dois rituais dramatizam a rivalidade entre aldeias por meio de
lutas rituais, semelhantes na forma e conteúdo simbólico, e têm a morte como tema central.
Por outro lado, Lima Filho também aponta semelhanças igualmente notáveis entre o
Hetohoky e o rito Tepyarkwa dos Kraho.
Quando retomamos o que é dito pelo mito histórico Javaé, pode-se argumentar que
praticamente tudo que é dito sobre os Wèrè na mitologia associa-se de modo bastante
evidente aos vizinhos Jê. Aos Wèrè são atribuídas algumas características Jê, tais como o
belicismo (acompanhado de captura de cativos e crianças) em sua fúria conquistadora (o
modo como conquistam os bens culturais e materiais lembra a predação cultural ou
fagocitose referida por Carneiro da Cunha [1993] e a conquista Kayapó dos “nêkrêtch”
(prerrogativas ou bens cerimoniais) e crianças de outros povos [ver Turner, 1992, Lea,
1993]); os constantes deslocamentos espaciais10 , o intenso cerimonialismo, associado às
metades cerimoniais, à casa ou pátio dos homens e ao ritual de iniciação masculina
(embora estes não sejam exclusividade Jê), a divisão rígida entre espaço masculino e

9
“Cada um desses traços varia consideravelmente entre os grupos; considerados individualmente, eles
também podem ser encontrados em grupos não-aruak (...), mas, considerados em conjunto, esses traços ligam
claramente os grupos da Periferia Meridional e os separam de outros grupos do sul da Amazônia e do Brasil
Central” (Heckenberger, 2001a:31).
10
Lima Filho (1994:28) relata que, segundo os Karajá, “os Were andavam muito. Há notícias deles na beira
do mar, onde falam a língua Karajá e usam enfeites (...)”.

206
feminino da aldeia e, o mais importante, a Dança dos Aruanãs, a qual, pretendo propor, é
uma versão Javaé do tema da identidade onomástica entre os Jê-Bororo. Também segundo
o mito, a língua Wèrè (depois influenciada pela dos Kuratanikèhè de Tòlòra) é a base
principal da língua atual, situada dentro do tronco lingüístico Macro-Jê 11 .
Por outro lado, creio não haver dúvidas de que as contribuições mítico-históricas de
Tòlòra e seu povo são, de forma inequívoca, associáveis à grande e antiga matriz cultural
Arawak, da qual o complexo cultural alto-xinguano é o representante geograficamente
mais próximo dos Karajá e Javaé, fazendo sentido a hipótese de que seus territórios teriam
sido o limite extremo de expansão Arawak a leste. A análise da mitologia e das práticas
atuais mostra que os Arawak não deixaram sua marca apenas na forma de “forte liderança
hereditária, feitiçaria pronunciada, regionalismo e sedentarismo (...)”, como sugere
Heckenberger (2001a:58) brevemente para os Karajá e Bororo 12 .
O ethos Arawak tem ramificações mais profundas, como veremos, embora algumas
de suas características sejam atualmente registradas apenas pela mitologia, tendo deixado
de ser praticadas em função de razões históricas, em especial o fim da maioria dos povos
vizinhos aos Karajá e Javaé após guerras interétnicas (extermínio causado pelos Wèrè
guerreiros, segundo a tradição oral) e, principalmente, após os massacres promovidos na
época dos bandeirantes (relatados na tradição oral e nos registros históricos). Os Bororo,
dentro do pano de fundo Macro-Jê, seriam os mais próximos culturalmente dos Karajá,
como já notou Pétesch (1993a, 2000), e dos Javaé, inclusive no que diz respeito a
características do ethos Arawak, de modo que faz sentido supor que eles também teriam
sofrido influências Arawak, como propõe Heckenberger (2001a), em razão de sua
localização espacial relativamente próxima da periferia meridional e dos Karajá e Javaé
(segundo Crocker, 1985, o território Bororo inclui as cabeceiras do Araguaia e do Rio
Paraguai, abrangendo a área entre as duas nascentes).

11
Segundo Gregor (1992), estudos da língua Karajá sugerem uma separação de mais de 3 mil anos de outros
membros da família Jê.
12
É digno de nota que não há qualquer referência sobre o povo de Tòlòra e a importância de Marani Hãwa
na literatura sobre os Karajá. Sobre os Wèrè há apenas esparsas referências, segundo as quais estes, apesar de
serem parecidos em aparência e cultura aos Karajá, teriam dominado o Araguaia e sido expulsos pelos
últimos para o oeste (Donahue, 1982, Lima Filho, 1994). Na versão recolhida por Toral (1992:4) entre os
Karajá, os Wèrè ora são os próprios Javaé, ora são as “tribos que se coligavam com eles” em um passado
remoto e que migraram para o Xingu. O autor especula que os Wèrè talvez sejam os Araé da literatura
histórica. Diz também que os Wèrè, segundo os Javaé, seriam “um outro grupo que não eles próprios” e com
os quais aprenderam “muitas coisas fundamentais” (Toral, 1992:23).

207
3.5.2. Regionalismo e espaço

O caráter inclusivo e aberto às influências de outros povos é explicitamente


assumido pela mitologia histórica, que considera a sociedade/cultura Javaé atual como o
produto de diversas trocas interétnicas matrimoniais, cerimoniais, culturais, lingüísticas e
econômicas do passado. Mas é o povo de Tòlòra que tem nitidamente uma postura
“acolhedora” e “aculturativa”, capaz de absorver “tanto traços culturais quanto pessoas de
fora”, ou seja, um padrão de “regionalidade” receptivo ao Outro que estaria presente na
“estrutura prototípica aruak” (Heckenberger, 2001a:35). Marani Hãwa é considerada como
o local sagrado onde povos diversos, em especial os Wèrè, contribuíram com novos
ingredientes materiais e culturais para o enriquecimento do povo de Tòlòra.
Além dos casamentos interétnicos ocorridos em Marani Hãwa, em especial com o
povo Wèrè, o mito relata detalhadamente como variados grupos (o povo Mõri, os Karajá,
os Wèrè, os povos de Kuriawaku, de Hèryry Hetxi Tèbè, de Kanõanõ, de Kõriminikèhè, de
Hèlylyra, entre outros) foram amistosamente acolhidos ao trazer bens materiais
desconhecidos e, principalmente, bens culturais ou cerimoniais, novas formas rituais que
foram sendo incorporadas sem resistência às cerimônias locais, tornando-as mais belas e
ricas. A Dança dos Aruanãs, o Hetohoky e o Iweruhuky foram contribuições rituais dos
Wèrè ao povo de Tòlòra, às quais, ao longo do tempo, novos componentes foram
adicionados por outros povos. O mito deixa transparecer claramente que a aldeia mítica era
apenas o centro sagrado de uma região culturalmente similar mais ampla, ao modo alto-
xinguano, uma vez que povos como os Wou (Tapirapé), Wala, Kanõanõ ou Kuratanikèhè
(o povo de Tòlòra) já possuíam versões anteriores (chamadas dòrèmykò) da versão muito
mais rica e bonita da Dança dos Aruanãs e outros rituais trazidos pelos Wèrè. A relação
com os Tapirapé será examinada em maior detalhe no próximo item.
Em um artigo sobre os Trumai, Monod-Becquelin e Guirardello (2001) sugerem
que há evidências que esse povo, que quase foi extinto e é associado pela mitologia Javaé
aos Turumahi, remanescentes dos Wèrè, teve alguma convivência próxima com os Karajá
no interflúvio Araguaia-Xingu, no século 19 (ver Ehrenreich, 1948, sobre a mesma
hipótese). Além de se referirem a uma importante aldeia chamada Karajajan ou Krajajan
(Monod-Becquelin and Guirardello, 2001:403), possuindo hábitos similares aos Karajá,
introduziram no alto Xingu o ritual Tawarawanã, “uma variante do ritual Aruanã dos

208
karajá” (2001:417), o qual foi posteriormente adotado pelos Kuikuro (Dole, 2001). Para
Menget (1993), inspirado em Pétesch (2000), isso revelaria uma influência dos Karajá no
alto Xingu. Creio, no entanto, que este seria apenas um indício a mais no sentido do que
diz a mitologia histórica, segundo a qual havia um pano de fundo cultural comum a vários
povos na região do Araguaia, uma grande rede de alianças e trocas, da qual provavelmente
os Trumai, que foram quase extintos, faziam parte.
De acordo com o mito, embora cada povo fosse dotado de uma especificidade,
contribuindo com novas criações e bens desconhecidos para a tradição cujo centro era
Marani Hãwa, existia uma mesma linguagem cerimonial compreendida por todos: povos
diferentes contribuíam para um mesmo ritual central, ao mesmo tempo em que aprendiam
novas formas nesse lugar que era um verdadeiro ponto de convergência entre diferentes e,
ao mesmo tempo, de irradiação cultural. Marani Hãwa era o pólo cultural que incorporava
as diferenças, mas também um centro hierarquicamente superior e irradiador das novas
formas criadas, que eram adotadas pelos povos visitantes. Tem-se, portanto, a indicação de
que antes dos ataques mortais praticados pelos Wèrè aos vários grupos existentes e, depois,
pelos bandeirantes, havia na região do médio Araguaia algo parecido com o regionalismo
que Heckenberger (2001a, 2001b, 2002) identifica entre os Arawak, à moda do alto Xingu
ou alto Rio Negro, seja no sentido de “comunidades morais que partilham uma cultura e
ideologia comum” ou “redes formais de interação, incluindo intercasamentos, trocas,
interdependência cerimonial” (2002:114).
O regionalismo, contudo, não é mais uma característica tão presente: o ritual de
iniciação masculina Karajá pressupõe disputas rituais entre aldeias Karajá diferentes, o que
não existe no Hetohoky Javaé, mas não entre outros grupos indígenas. E os casamentos,
como entre os Bororo e Jê do Norte, seguem a regra da endogamia de aldeia, sendo
altamente desprestigiado o casamento com etnias diferentes, incluindo os Karajá, embora
estes tenham ocorrido no passado e ainda ocorram. O contato favoreceu uma união política
entre as aldeias Javaé e Karajá em situações de confronto com a sociedade envolvente (ver
Bonilla, 1997) e sempre houve algum tipo de troca de bens materiais com os Karajá,
interessados nas penas para confecção ritual ou artesanal obtidas com mais facilidade no
território Javaé, por exemplo, enquanto estes se interessavam antigamente pelos bens
“civilizados” obtidos em primeira mão pelos Karajá, como aparece na memória oral, em
Krause (1942d), nos relatos do SPI e em Toral (1992). Atualmente, os Karajá e Javaé
visitam-se mutuamente para participar de partidas de futebol ou festas, ao estilo regional,

209
associadas a datas como o Dia da Independência ou o Dia do Índio. Mas ainda assim não
se pode dizer que os Javaé ou mesmo os Karajá estão inseridos em uma rede maior de
alianças e trocas intra ou interétnicas do tipo existente no alto Xingu ou no alto Rio Negro
(ver C. Hugh-Jones, 1979, Jackson, 1983). Porém, é inegável que o mito reconhece o
regionalismo como a base histórica da cultura Javaé atual.
Marani Hãwa é apresentada como o centro espacial sagrado de vários povos inter-
relacionados, tema recorrente entre os Arawak, cujas alianças associam-se a “redes
abrangentes de trocas cerimoniais ligadas a sítios sagrados” (Hill & Santos-Granero,
2002:17). Por meio do mito ficamos sabendo que a aldeia famosa era um centro regional
de importância extraordinária, onde Tòlòra emergiu do Fundo das Águas, e para onde
convergiam grupos diferentes, ao redor da qual gravitavam grupos-satélites, por
permanecer como um lugar sagrado desde sempre, indestrutível, uma fonte de renovação
constante dos Javaé atuais e seus ancestrais. Para os alto-xinguanos, o ponto de confluência
dos formadores do Xingu, conhecido como Morená, é o centro sagrado do mundo
(Agostinho, 1974, Viveiros de Castro, 1977); para os Wakuénai (Hill, 2002) ou Baniwa do
alto Rio Negro, a área cultural mais ampla em que estão imersos “compreende um ‘centro
sagrado’ (as cachoeiras chamadas Hípana) do qual os ancestrais emergiram e que
representa uma fonte eterna de refúgio e poder criativo (...)” (Wright, 2002:291).
No que se refere à apropriação simbólica do espaço, o que envolve “movimentos
por áreas imensas, atribuindo significado histórico a marcos naturais”, “cartografias
sagradas” e “paisagens encantadas” (Hill & Santos-Granero, 2002:16), os Javaé também
são um caso exemplar. Além da importância do centro mítico-histórico que é Marani
Hãwa, não é difícil perceber que a mitologia enfatiza grandes movimentos espaciais, como
a caminhada de Tanyxiwè pelo vale do Araguaia, com seus quase 3.000 km de extensão, e
os constantes deslocamentos dos Wèrè pela Ilha do Bananal (2.000.000 ha) e arredores,
exemplos paradigmáticos. A trajetória mítica de Tanyxiwè, inclusive, é extremamente
parecida, em termos de forma e conteúdo, à caminhada mítico-histórica empreendida por
Yompor Ror, o herói mítico dos Yanesha, um grupo Arawak peruano (Santos-Granero,
1998), que realiza uma série de transformações e conquistas através de uma extensa
caminhada.
É digno de nota que o principal mito fundador dos Tukano do alto Rio Negro 13 ,
povo fortemente influenciado pelos Arawak e com quem os Javaé partilham estruturas

13
Ver C. Hugh-Jones (1979), S. Hugh-Jones (1979), Jackson (1983), Chernela (1988, 2000).

210
simbólicas muito parecidas, como será visto adiante, também se baseia em um vasto
deslocamento espacial, realizado pela sucuri ancestral que teria dado origem aos grupos
exogâmicos atuais. Enquanto Tanyxiwè transforma o mundo descendo o Rio Araguaia, a
sucuri mítica cria a realidade física e social Tukano por meio de um movimento inverso,
subindo o Rio Amazonas e o Rio Negro.
Assim como no alto Xingu (Viverios de Castro, 1977), o mito Javaé promove um
mapeamento simbólico-sagrado do território nativo, atribuindo à agência humana a criação
das formas espaciais e das paisagens tal como existem hoje, de modo que praticamente não
há um lago, rio ou ponto de referência importante da região da Ilha do Bananal e arredores
que não seja mencionado pela mitologia, os quais, em sua maioria, têm sua forma atual e
nomes originados nos acontecimentos ocorridos no local. Embora todas as narrativas sobre
o passado sejam chamadas de ijyky, conceito que contém um sentido de “verdade”, os
Javaé consideram especialmente verdadeiras aquelas histórias que são localizadas em
algum lugar específico da região, atribuindo uma menor validade às narrativas sobre
eventos descontextualizados de qualquer referência espacial. É como se a “realidade” de
um evento estivesse condicionada à sua localização em um determinado espaço, o que
costuma estar associado à agência humana criadora do espaço em questão. Em outras
palavras, é como se apenas a interferência humana ativa revestisse os acontecimentos de
seu caráter de realidade, algo indissociável de uma identidade espacial precisa.
Alguns dos lugares especiais criados pelos humanos nos tempos míticos despertam
grande curiosidade nas pessoas. Além de Marani Hãwa, são locais como a ilha onde
Buritxiwana se escondeu no lago Sòhoky, o lugar onde os homens arrastaram o jacaré
amante das mulheres Anirahu (ver Rodrigues, 1993), o cemitério da aldeia Boto Velho (Iny
Wèbòhona), onde ocorreu o episódio mítico que dá nome ao lugar, o Lago do Bananal
(Kwely Ahu), criado por Kwely ao quebrar o pote escondido, ou os locais específicos onde
Tanyxiwè conquistou algum bem para a humanidade, como Iròdu Iràna, onde ele tomou o
fogo dos animais, entre muitos outros. Essa memória toponímica, centrada nos efeitos da
agência humana, não é o mesmo que a “história espacial” que Seeger (1981) encontrou
entre os Suyá, e que também existe entre os Javaé, em que os nomes de diferentes lugares
ao longo de um rio, por exemplo, originam-se de eventos ocorridos no local, mas que não
são necessariamente criadores do espaço ao redor.

211
3.5.3. Pacifismo ideológico

Em se tratando do pacifismo ideológico, esta é uma característica central da


cosmologia Javaé e das práticas do dia a dia, o que não significa dizer que não se
reconhece a existência de conflitos ou mesmo guerras no passado. Pelo contrário, o esforço
coletivo pela manutenção da paz (identificado com a masculinidade) indica que se concebe
os conflitos, tanto internos como externos à sociedade, como condição inerente ao mundo
social. A mitologia é plena de referências ao estado de confronto permanente dos Wèrè
com a maioria dos povos existentes à época (anteriores à chegada do colonizador), o que
incluía o apresamento de cativos. Refere-se também aos conflitos mais recentes dos Javaé
com os Xavante e Tapirapé que habitavam o interior da Ilha do Bananal, por exemplo, até
o início do século 19, pelo menos 14 .
Em sua reconstituição histórica sobre as relações dos povos de língua Karajá com
os grupos vizinhos, a partir dos séculos 17 e 18, Toral (1992) enumera intensos conflitos
(alternados com períodos de intercâmbios pacíficos), em especial dos Karajá propriamente
ditos, com os vizinhos Kayapó, Xavante/Xerente, Apinayé, Tapirapé e Avá-Canoeiro (ver
Krause, 1943a). Tais episódios de guerra relacionam-se, sem dúvida, com os
deslocamentos espaciais de todos estes grupos em função do avanço das frentes de
expansão nacionais no Brasil Central, levando-os a penetrar o antigo território
Karajá/Javaé 15 . Os Tapirapé serão considerados separadamente, no próximo item, por dois
motivos: embora a literatura sobre os Karajá (Toral, 1992) e Tapirapé (Baldus, 1970,
Wagley, 1988) mencione episódios tensos nas relações históricas mais recentes entre estes
dois grupos, a mitologia Javaé enfatiza mais uma antiga relação de respeito e troca com
eles do que de guerra; além disso, os Karajá e Javaé têm um contato muito mais antigo
com os Tapirapé do que com os outros, cujos primeiros registros históricos (Fonseca,
1867) dão conta de um relacionamento pacífico.
A questão aqui não é negar a existência das tensões interétnicas ou dos estados de
retaliações recíprocas entre grupos estrangeiros de uma mesma região, o que seria um
contra-senso. As tensões entre os grupos diferentes também existem no alto Xingu, por
exemplo (Galvão, 1979, Menget, 1993), mas isso é diferente de um ideal bélico, existindo,

14
Ver Fonseca (1867), Baldus (1970), Chaim (1974), Toral (1992), Wagley (1988).
15
Ver Chaim (1974), Turner (1992), Lopes da Silva (1992), Toral (1984/85), Baldus (1970).

212
ao contrário, a valorização de uma ideologia pacifista (ou não-predatória), em que os Javaé
se vêem sempre como reagindo a agressões externas, e nunca como os provocadores
ativos de conflitos, como no episódio paradigmático do primeiro ataque dos bandeirantes a
Marani Hãwa. Nos vários relatos apresentados por Baldus (1970) sobre conflitos entre os
Karajá e Tapirapé, relativos ao fim do século 19 e começo do século 20, as narrativas
recolhidas dos Karajá pelo autor ou por outros apresentam sempre os Karajá procurando
vingança contra um ato de agressão que não partiu deles. O mesmo em Lima Filho (1994),
que descreve as guerras Karajá muito mais em termos de defesa do território e dos ataques
de outros grupos, em especial dos Xavante. Muito mais do que o comportamento guerreiro
dos Wèrè, a mitologia enfatiza positivamente a vocação pacifista do grande Tòlòra, o
primeiro iòlò, título de chefia transmitido hereditariamente.
O grande líder ascendeu a este plano visível com a tarefa extremamente honrada,
para os Javaé, de conciliação e pacificação dos conflitos reinantes até então (entre os
grupos de irmãos de Ijanakatu e de Nabio, precursores das metades cerimoniais Saura e
Hiretu). Foi ele também quem interrompeu a guerra dos Wèrè aos Karajá, estas sendo as
principais funções dos iòlò que sucederam Tòlòra. O modo como o iòlò recebe os outros
povos em Marani Hãwa, alguns deles na condição de refugiados (como os Karajá), outros
na condição de guerreiros (como os Wèrè), ocorre sempre de forma acolhedora ou
conciliatória. O que é bastante diferente do ethos predatório de que fala Viveiros de Castro
(1993, 2002b) para os “ameríndios” ou das relações hostis com a exterioridade por parte
dos amazônicos (Descola, 1992); e do comportamento belicoso Jê, associado nos mitos aos
Wèrè e exemplificado pelos Kayapó, Xavante e Suyá, cuja referência é encontrada na
literatura histórica, como em Chaim (1974), ou antropológica, como em Turner (1992) e
Bamberger (1979) sobre os Kayapó, Maybury-Lewis (1984) e Lopes da Silva (1992) sobre
os Xavante, ou Seeger (1980, 1981) sobre os Suyá, que falam de um ethos guerreiro desses
grupos.
No dia a dia, a sociedade Javaé evita a todo custo o conflito público por meio de
uma série de regras de etiqueta que tornam a convivência diária extremamente
formalizada, característica do alto Xingu 16 e dos Bororo (Crocker, 1976, 1985).
Tradicionalmente, o conflito público deveria ocorrer somente em situações controladas
socialmente por regras disciplinadoras, como no caso das lutas rituais (ijèsu) entre homens

16
Ver Viveiros de Castro (1977), Menget (1993), Ireland (2001), Heckenberger (2001b) ou Gregor (2001),
por exemplo.

213
ou entre mulheres de metades cerimoniais opostas, assunto do Capítulo 7, similares na
forma e conteúdo ao huka-huka alto-xinguano (ver Viveiros de Castro, 1977), como já foi
dito tanto por Toral (1992) quanto Lima Filho (1994); ou no caso dos embates orais,
associados às mulheres, que são feitos na forma de xingamentos e choros ritualizados (ver
Capítulos 8 e 10). Estes últimos, juntamente com práticas funerárias mais elaboradas, são
considerados uma herança do povo de Tòlòra, em contraste com o descaso dos Wèrè para
com o luto.
Os Javaé (Toral, 1992, Rodrigues, 1993) e Karajá 17 possuem, inclusive, um ciclo
anual de variados jogos rituais, relacionados à Dança dos Aruanãs, em que a maioria
expressa oposição sexual, ao modo dos jogos xinguanos (Agostinho, 1974, Gregor, 1985),
o que os aproxima mais ainda dos Arawak. Segundo Heckenberger (2002:115), os Arawak
distinguem-se dos Tupi-Guarani, Jivaro, Carib e Jê na medida em que “não há uma função
simbólica vinculada à predação; de fato, entre vários povos Arawak havia freqüentemente
elaborados aparatos rituais para a redução da tensão, tanto entre como dentro das aldeias,
por meio de rituais de antagonismo sexual, eventos esportivos (lutas, jogos de bola,
competições de corrida) e conflitos ritualizados”. As acusações de feitiçaria veladas e
endêmicas são a forma cultural típica de se lidar com os conflitos nos bastidores (assim
como entre os Karajá, segundo Donahue, 1982). A guerra é (e era) vivida muito mais no
mundo invisível dos xamãs, onde estes atuam como inimigos, do que na relação com
outros grupos indígenas.
Segundo Chaim (1974:65), “no século XVIII, os Javaé e Karajá constituíam
exceção, pois de índole pacífica, inicialmente, em conseqüência dos sucessivos ataques e
traições do colonizador em sua marcha de penetração pela região, foram tornando-se
hostis”. Nos vários episódios tensos registrados na literatura histórica, como a reação
adversa aos que exploraram a região depois das bandeiras de Pires de Campos ou os
ataques ao presídio de Santa Maria no século 19, é quase um padrão recorrente que os
Karajá e Javaé reagiam mais agressivamente somente depois de terem sido atacados,
aprisionados e escravizados. Mesmo assim, tiveram quase sempre uma disposição
receptiva àqueles que pretenderam estabelecer trocas amigáveis. Apesar da tendência dos
autores em atribuir comportamentos bárbaros e selvagens aos índios do Araguaia, chama a
atenção que, muitas vezes, em contextos variados, os Karajá e Javaé dos séculos 19 e 20
são descritos como “pacíficos”, “simpáticos”, “mansos”, “dóceis”, “afáveis”,

17
Donahue (1982), Toral (1992), Pétesch (2000).

214
“hospitaleiros”, “ordeiros” e de “fácil catequese”. Tal recorrência foi notada antes por
Schiel (2002), para quem os Karajá se empenharam em estabelecer relações pacíficas com
a sociedade nacional.
Fénelon Costa (1978:79) registrou entre os Karajá que “o propósito de resolver
pacificamente conflitos que ocorram na comunidade” é uma das “idéias mais geralmente
partilhadas nesta cultura indígena”. Além disso, “as pessoas calmas e corteses são
apreciadas, e censuradas as hèhè (zangadas)”. Donahue (1982:66) salienta a notável
habilidade dos Karajá em manter uma coexistência “independente” e “pacífica” com os
ribeirinhos do Araguaia no século 20. Para Pétesch (2000:34-35), os Karajá herdaram “a
natureza móvel, mas pacífica”, do grande Araguaia. Quando comparados aos grupos
indígenas vizinhos e aos “néo-brasileiros”, segundo a autora, os Karajá são “mais
comerciantes do que guerreiros”, privilegiando “a troca à agressão”. Tal capacidade
notável para a troca com os estrangeiros (ver Tavener, 1973) já havia sido enfatizada por
Alencastre (1998b), no século 19, e por Chiara (1970), para quem essa característica revela
uma flexibilidade intelectual e espiritual. Em seu trabalho sobre os Karajá que vivem na
cidade de Aruanã, Schiel (2002:26-29) nota o “ideal de relações pacíficas na comunidade e
fora dela”, enfatizando o desejo que os Karajá têm de se mostrar como “gente pacífica e
amistosa para ganhar prestígio frente aos regionais e serem reconhecidos como
diferenciados dos grupos que os rodeiam nesta região do Brasil Central”.
Na retomada do antigo Porto Piauí, conduzida pelos Javaé e Karajá, havia a
intenção de preservar construções como a igreja utilizada pelos brancos como
“monumentos” em memória da “reconquista (pacífica e não destrutiva) da ilha” (Bonilla,
1997:84). Em um documento da COMIBA, de 1994, analisado pela autora (1997:81), está
escrito que os Karajá e Javaé desejam “viver em paz, mantendo a harmonia e as boas
relações com a sociedade englobante (...)”. Bonilla (2000:87) relata que, em sua pesquisa
com os Karajá e Javaé, “perguntava sobre as guerras de antigamente e respondiam-me que
(...) eram pacíficos e não gostavam de briga”. A autora cita a fala de um líder Karajá que
menciona, com orgulho, a forma pacífica e controlada com que todo o processo de
evacuação da Ilha do Bananal foi conduzido, fato “constantemente relevado pelo líder”
(1997:85):

215
“(...) Porto Piauí é um símbolo da evacuação da ilha, que foi feita de uma maneira
pacífica, sem derramar sangue, o que é raro no Brasil. (...) Nós evitamos isso, nós
controlamos nossa gente para que isso não acontecesse (I.K., le 13/10/96).”

Não se encontra entre os Javaé a lembrança nostálgica de um passado guerreiro,


nem a valorização do “matador/predador” (Viveiros de Castro, 1986a). Não existe como
ideal de masculinidade a figura do “guerreiro” envolvido em confrontos interétnicos, mas
apenas a do “lutador”, como no alto Xingu, associada ao autocontrole e à resolução formal
de conflitos internos. Entre os Javaé existe uma concepção parecida à dos Yawalapíti
(Viveiros de Castro, 1977) e Waura alto-xinguanos (Ireland, 2001), para quem o
autocontrole e a paz são valores supremos, em oposição ao descontrole dos guerreiros.
Segundo Pétesch (2000:165), a terminologia Karajá sobre a guerra “comporta uma
conotação negativa importante”, pois a guerra é referida como ão bina, “coisa ruim”, e o
guerreiro, como ão bina du, “aquele da coisa ruim”, termos também existentes entre os
Javaé. Em um trabalho anterior, Pétesch (1993a) compara o papel do predador e do
guerreiro entre os Karajá. O último teria um status superior, representado pela exibição de
suas façanhas por meio de escarificações corporais, também registradas por Albisetti &
Palha (1948) e Maia (1997), em razão da possessão dos “espíritos” dos mortos inimigos,
assunto a ser retomado na parte final. Entre os Javaé, contudo, não encontrei informações a
respeito das escarificações enquanto símbolos de alguma glória guerreira, mas apenas
como parte do complexo do resguardo, definido como um conjunto de técnicas de
purificação e separação da substância contaminada do Outro.
Em seus comentários às narrativas míticas, os Javaé censuram o comportamento
belicoso dos Wèrè (chamados de insensíveis, dominadores, “sem coração”), embora
considerem uma grande honra descender de um povo tão rico culturalmente.
Diferentemente dos Xavante (Maybury-Lewis, 1984) ou dos Kayapó (Bamberger, 1979,
Turner, 1979b, 1992), cujo faccionalismo levava a ataques entre aldeias, mas de modo
parecido com os Bororo (Crocker, 1985), não há registros históricos na mitologia ou na
memória não-mitológica de qualquer prática de “endo-guerra” (Santos-Granero, 2002). Ou
seja, não há referências a guerras contra grupos lingüística ou culturalmente relacionados,
como os Javaé de outras aldeias, os Karajá e os Xambioá, o que foi notado por Krause
(1940-1944), Donahue (1982) e Toral (1992). Um relatório do SPI, de 1931, destacava que

216
os Karajá e Javaé “vivem em perfeita harmonia, sendo amistosas as suas relações” 18 . Toral
(1992:99) atribui a ausência de relações hostis entre aldeias a fatores como a “fluidez de
arranjos faccionários internos, a inexistência de chefias fortes e o recurso constante das
migrações como solventes de conflitos”. O missionário Frei Luís Palha (1942) relata,
porém, um conflito que teria havido, na década de 30, entre os Javaé de uma aldeia situada
no Riozinho e os Karajá de uma aldeia próxima.
O mito narra os conflitos dos ancestrais Wèrè com os Karajá, episódio tomado por
Toral (1992:4) como indício de conflitos entre os Karajá e os Javaé no passado longínquo,
mas esse é um fato que precisa ser contextualizado. Os Karajá eram (e ainda são)
considerados como um dos povos estrangeiros (ixyju) que adotaram a língua e as práticas
similares aos Javaé atuais depois do convívio em Marani Hãwa, tendo contribuído com
bens materiais diferentes e criações próprias, como o ritual Marakasi. Desde esse processo
de “assemelhamento” cultural e lingüístico, o mito enfatiza apenas os casamentos e trocas
culturais e materiais com os Karajá, o que parece ser consistente com a prática histórica.
Os Javaé dizem que “foram os criadores dos Karajá”, referindo-se ao episódio mítico em
que Tòlòra dá abrigo aos sobreviventes Karajá, salvando-os dos Wèrè. Por essa razão, os
Karajá devem a sua continuidade histórica a Tòlòra, com quem os Javaé atuais se
identificam, o que levou a um relacionamento pacífico entre os Javaé e Karajá desde então,
embora tenha havido alguns conflitos esporádicos com indivíduos Karajá. Os conflitos
lembrados ocorreram porque os Javaé mataram algum xamã Karajá, que vivia na mesma
aldeia, acusado de feitiçaria. Mesmo assim, os Karajá que se vingaram “disfarçaram-se” de
Avá-Canoeiro, inimigos tradicionais dos Javaé, porque as relações interétnicas entre os
Javaé e Karajá como um todo sempre tiveram uma marca de cordialidade formal. Há
lembranças de um convívio duradouro e harmonioso com os Karajá em aldeias do baixo
Rio Javaés e do baixo Riozinho.
O povo de Tòlòra não se envolveu em guerras com nenhum dos grupos, referidos
na mitologia, que adotaram as práticas geradas em Marani Hãwa, processo similar às
relações de paz estabelecidas pelos Arawak do alto Xingu com os povos estrangeiros
(Tupi, Carib, Jê) que foram “xinguanizados” (ou “arawakizados”) ao longo da história.
Pode-se dizer que no médio Araguaia teve lugar algo parecido com a “excepcional” paz

18
Microfilme da FUNAI n° 342, fotograma n° 77.

217
xinguana (Gregor, 2001:175) descrita por vários autores 19 . Nas falas cotidianas, os Javaé
se representam como um povo sedentário, “que não gosta de andar como os Kayapó e
Xavante”, e que está mais interessado nas suas festividades internas do que em fazer a
guerra com outros povos, atitude bastante recriminada. Havia uma relação de inimizade
com os Kayapó, Xavante, Xerente, Kraho, Apinajé e Avá-Canoeiro, é verdade. Mas em
todos os casos trata-se de grupos que adentraram o antigo território Javaé em razão de uma
vocação guerreira ou porque estavam em fuga das frentes de expansão nacionais. Não se
buscava a guerra com nenhum deles, que eram enfrentados apenas quando ocorria algum
encontro não programado com membros do grupo, assim como no alto Xingu (Galvão,
1979).
Veremos que este comportamento pacifista – só reagir quando provocado –, que se
manifesta no conjunto de relações interétnicas hostis, não tem em absoluto um caráter de
“passividade”. Constitui, na verdade, o cerne mais profundo de uma teoria nativa geral
sobre a ação social histórica, em que toda ação criadora/destrutiva é vista como uma reação
a uma coação alheia.

3.5.4. Hierarquia e sedentarismo

A hierarquia é o outro item distintivo do ethos Arawak que se manifesta


explicitamente entre os Javaé. Os iòlò, descendentes diretos de Tòlòra, são chefes políticos
tradicionais (que coexistem com outros tipos de chefia, como será visto no Capítulo 8) que
assumem o cargo de pacificador da coletividade hereditariamente. Apesar das mudanças
introduzidas com o contato, tal função ainda tem enorme prestígio, está associada ao
estatismo/paz do nível celeste e promove a distinção entre famílias “nobres” e comuns.
Embora os Javaé concebam a descendência de modo cognático, como entre os Jê do Norte
e os alto-xinguanos, as famílias entre as quais se transmite o cargo de iòlò enfatizam a
genealogia, estabelecendo uma conexão direta com o ancestral mítico Tòlòra. Ter um iòlò
na família é a honra suprema, sendo o cargo hereditário associado a uma série de
comportamentos rituais específicos e de grande prestígio.

19
Ver Agostinho (1974), Viveiros de Castro (1977), Galvão (1979), Heckenberger (2001a) e Franchetto
(2001), por exemplo.

218
Como a mitologia evidencia abundantemente, Tòlòra, o iòlò ancestral, era portador
de uma condição “nobre” que o diferenciava hierarquicamente de todos os outros povos
vizinhos. Segundo o tradutor do mito, “o pessoal de Marani Hãwa era iòlò mahãdu (“o
povo dos iòlò”), por isso que esses povos de cada pontinha (da Ilha) traziam comida para
eles. Eles adoravam os iòlò, que eram pessoas especiais, como um rei ou uma rainha.
Então aquele povo da redondeza tinha que trazer alguma coisa para eles.” Era em função
dessa nobreza inerente, geradora do prestígio excepcional de Marani Hãwa e transmitida
depois para seus descendentes, que os povos da região vinham prestar homenagens ao líder
famoso, chamado pelo tradutor do mito de “rei”. Até os Wèrè, que a ninguém temiam,
respeitaram o iòlò e seguiram suas orientações quando chegaram na aldeia sagrada em
busca dos Karajá fugitivos. Os povos vencidos ou dominados pelos Wèrè eram chamados
de wetxu, “subordinados”, um conceito – a ser retomado – que expressa de modo muito
similar a relação hierárquica entre os Tukano do alto Rio Negro e os índios Maku, tratados
como inferiores, subordinados ou prestadores de serviços 20 .
Há ainda um outro detalhe revelador: a narrativa mostra que são os filhos de
Tòlòra, o chefe nobre, que se casam com as mulheres do povo Wèrè, exatamente como
ocorre no alto Xingu, onde os filhos de comuns casam-se preferencialmente dentro da
aldeia ou com povos lingüisticamente familiares; enquanto os filhos de chefes têm duas
vezes mais chance de se casar exogamicamente, com membros de famílias de chefes de
outras etnias, visando a expansão das alianças políticas (ver Ireland, 2001, sobre os
Waura). Os Javaé mencionam a prática de “endogamia de classe” até o passado recente
(Hill & Santos-Granero, 2002b:18), no sentido de que os iòlò deveriam se casar
preferencialmente com mulheres iòlò, embora estivesse associada também a um ideal de
endogamia étnica e de aldeia. O mito também atribui ao iòlò a inauguração da prática de
poliginia, característica dos chefes Arawak que ainda é praticada entre os Javaé, embora
não mais necessariamente associada aos iòlò.
Finalmente e mais importante, assim como entre os Proto-Arawak, a hierarquia
manifesta-se principalmente por meio da distinção entre primogênito e caçula, associada à
diferença entre chefe e servo ou vencedor e cativo. A primogenitura (independentemente
do sexo) é o principal critério utilizado para a transmissão dos bens culturais, como
identidades sociais (aruanãs) e cargos cerimoniais (iòlò), geradores de prestígio e honra
para as famílias. O filho primogênito de Tòlòra, chamado Timyjuy e herdeiro de sua

20
C. Hugh-Jones (1979), Jackson (1983), Silverwood-Cope (1990).

219
condição de iòlò, foi referido pelo tradutor do mito como o “príncipe” de Marani Hãwa,
tendo se tornado o primeiro da linha de transmissão do título de iòlò de primogênito para
primogênito, existente até hoje. A distinção entre primogênito e caçula, veremos, baseia-se
nas concepções a respeito da corporalidade e associa-se aos extremos assimétricos (em
termos de valor) rio acima e rio abaixo, cabeça e pés, masculinidade e feminilidade,
continuidade e transformação, entre outras oposições. A primogenitura e a troca simétrica,
pretendo propor, são os mais importantes princípios da estrutura social Javaé.
Outras características Arawak (em especial do alto Xingu) podem ser evidenciadas:
embora as aldeias não sejam circulares, como propõe Heckenberger (2001a, 2002) ou
como ocorre entre os Jê-Bororo (Maybury-Lewis, 1979a), os Javaé praticavam o
sedentarismo, ainda que associado a um padrão de alternância sazonal de aldeias. Tanto o
pacifismo Javaé quanto o sedentarismo espacial (que reflete um desejo de estatismo
cósmico), como será visto, são expressões, em última instância, de um desejo maior de
negação das transformações, associadas a deslocamentos espaciais, e da morte. Como já
foi dito antes, as aldeias mais importantes do passado recente, como Marani Hãwa,
Wariwari, Imotxi, Iròdu Iràna, Lòreky ou as da região do Bèdèky, entre outras, eram
consideradas como lugares de habitação permanente e imemorial. A maior parte das treze
aldeias atuais localiza-se em antigos sítios de importância mitológica, que foram habitados
em tempos muito antigos e depois abandonados, como Kanõanõ e Iny Wèbohona (Boto
Velho). Conforme o mito, Tòlòra e as gerações que o sucederam viveram e morreram no
mesmo lugar onde surgiram, a aldeia Marani Hãwa, ao contrário dos deslocamentos
constantes (ou semi-nomadismo) dos Wèrè.
Assim como os Karajá em relação às praias do Araguaia 21 , famílias Javaé
costumavam mudar-se no verão (seca) para temporadas de pesca nos lagos e rios da Ilha do
Bananal e arredores, acampando nas praias que surgem com a seca, hábito que diminuiu
bastante após o contato. Nas últimas décadas, as pescarias de verão têm sido feitas
principalmente por pequenos grupos de homens com o objetivo de vender seu produto a
compradores externos, o que já havia sido registrado por Toral (1981). Embora houvesse
um padrão de alternância entre aldeias fixas de inverno e acampamentos de verão,
relativamente parecido com o padrão Kayapó, e uma intensa mobilidade em função das
pescarias, caçadas e trocas com os vizinhos Karajá, por exemplo, as aldeias fixas não eram

21
Ver Ehrenreich (1948), Krause (1940b, 1940c, 1941f), Baldus (1970), Tavener (1966, 1973), Donahue
(1982), Toral (1992), Pétesch, (2000), Rodrigues (2008).

220
abandonadas. Tal modelo de ocupação territorial é muito diferente do seminomadismo dos
Kayapó, que abandonavam suas aldeias a cada 2 ou 5 anos (Turner, 1992), ou dos Xavante
(Maybury-Lewis, 1984).
Pode-se até especular se os Javaé teriam uma vida mais sedentária que os seus
vizinhos Karajá, cujos etnógrafos tendem a enfatizar a grande mobilidade de pequenos
grupos ao longo do Araguaia desde o século 19 (sem chegar ao ponto, entretanto, de
definir os Karajá como “nômades”) 22 . Não se deve esquecer, no entanto, que as aldeias de
inverno não eram abandonadas e que a transferência definitiva de aldeias só ocorreu no
caso dos Karajá meridionais, associada à busca de uma proximidade com os pioneiros
centros de troca regionais – os aldeamentos oficiais do século 19 ao sul da Ilha do Bananal.
Toral (1992) argumenta em favor da mobilidade das aldeias Karajá, mas em outro texto
(1999:47) reconhece que “as aldeias Javaé ocuparam secularmente com roças e habitações
os mesmos locais” em razão dos poucos lugares secos à salvo das inundações anuais. Em
geral, a literatura antropológica atribui a sedentarização e aglutinação nas maiores aldeias
Karajá atuais ao contato, uma vez que tanto o SPI (ver Baldus, 1948) quanto os
missionários protestantes do século 20 (ver Tavener, 1966, Donahue, 1982)
desestimularam os antigos acampamentos de verão e encorajaram a concentração das
famílias de aldeias menores em grandes aldeias.
Mas é revelador que as primeiras notícias sobre os Karajá (Fonseca, 1867) dão
conta de grandes aldeias, com milhares de pessoas, e que, desde os primeiros registros do
século 17, os Karajá sempre estiveram morando na região da Ilha do Bananal e arredores,
nas margens do trecho livre de cachoeiras do médio Araguaia, em cujo centro geográfico
está o lugar de sua origem mítica imemorial (Inysèdyna). Chiara (1970:16) chama a
atenção para a “persistência das aldeias” (ao contrário dos acampamentos de verão) nos
mesmos lugares “durante várias gerações” do século 20, “um fato importante que no
entanto nunca chamou a atenção dos etnólogos que se ocuparam dos Karajá”. Em minha
recente pesquisa (Rodrigues, 2008) com os Karajá sobre seus padrões de ocupação
territorial, ficou evidente que as aldeias de inverno do passado eram grandes aldeias
situadas desde tempos remotos, e de forma duradoura, nos poucos lugares altos e secos das
duas margens do Araguaia.
Na estação cheia, quando grandes áreas são inundadas e as praias desaparecem, os
moradores das aldeias de verão, instalados provisoriamente e de modo mais disperso nas

22
Ehrenreich (1948), Krause (1940-1944), Tavener (1973), Donahue (1982), Toral (1992), Pétesch (2000).

221
diversas praias, retornavam sempre para a aldeia de inverno mais próxima. Esta era
concebida como um lugar perene e de concentração de uma grande população, ao qual seus
moradores estavam permanentemente ligados, por duas razões básicas: por ser um lugar
sempre seco, com áreas propícias à agricultura, e por ser o local onde os mortos
aparentados eram enterrados. Os Karajá se dispersavam nas praias com o objetivo de
pescar nos lagos e rios onde os peixes se concentravam na seca e, também, para fugir dos
ataques dos grupos indígenas vizinhos hostis, como os Kayapó e Xavante, que chegavam
às margens do Araguaia durante a seca. A perícia na arte de nadar e remar é invocada
como o principal recurso de defesa dos Karajá contra os ataques dos inimigos que tinham
dificuldade em se locomover na água. Conflitos internos podiam levar à fundação de novos
lugares ocasionalmente, mas idealmente os membros do grupo deveriam viver juntos nas
aldeias populosas, onde havia uma vida ritual intensa e vários mecanismos formais de
redução das tensões internas, assunto a ser retomado.
As grandes aldeias de inverno muito antigas, conhecidas e visitadas pelos
moradores das aldeias atuais e cujos sítios e cemitérios são encontrados ao longo de todo o
território Karajá, são concebidas como os lugares onde os primeiros ancestrais se
instalaram após os eventos míticos fundadores e onde os Karajá sempre estiveram morando
desde então. Santa Isabel, Fontoura, São Domingos, Itxala e Macaúba, as grandes aldeias
atuais, cuja constituição no século 20 foi fortemente influenciada pelo processo histórico
de perdas populacionais e pela ação de agências externas, estão situadas em sítios
antiqüíssimos referidos pela mitologia ou de ocupação Karajá imemorial. As grandes
aldeias de inverno Karajá e Javaé eram e são concebidas como o centro de um território ao
redor, usado para agricultura, pesca, caça e coleta, cujos limites eram e devem ser ainda
respeitados pelos moradores de outras aldeias, assunto a ser retomado no Capítulo 8.
Assim como os antigos Arawak (Heckenberger, 2001a, 2002), pratica-se a
agricultura intensiva de roças fixas, com destaque para o cultivo da mandioca, e usa-se
primariamente os recursos aquáticos: os Karajá são, antes de tudo, exímios pescadores e
senhores das águas, dando pouca ênfase às habilidades cinegéticas ou ao consumo de caça,
como foi exaustivamente registrado pelos pesquisadores, funcionários do governo,
viajantes ou escritores que estiveram em suas aldeias 23 , além de serem habitantes das
margens de cursos d’água. Um critério histórico fundamental para a construção de aldeias,

23
Ehrenreich (1948), Krause (1940-1944), Ribeiro da Silva (1935), Lipkind (1948), Schultz (1953), Aureli
(1962a, 1962b, 1963), Tavener (1973), Bueno (1975, 1987), Fénelon Costa (1978), Mello (1982), Donahue
(1982), Toral (1999), Pétesch (2000).

222
como já foi observado por Toral (1992, 1999) e Pétesch (2000), é a proximidade de
importantes cursos d’água ricos em peixes e tartarugas, base da dieta alimentar. Grande
parte dos sítios das antigas aldeias Karajá estava situada junto ou nas proximidades da foz
dos rios ou bocas de lagos que se emendam ao Rio Araguaia em ambas as margens. O
mesmo pode ser dito dos Javaé. Muitas de suas aldeias antigas estavam situadas no interior
da Ilha do Bananal ou no território a leste da ilha, mas elas se localizavam sempre à
margem de grandes lagos ou rios extremamente piscosos (ver Toral, 1999).
A pesca também era e é a maior fonte de alimentação dos Javaé, não
correspondendo à realidade a imagem que os Karajá, segundo Pétesch (2000), fazem dos
Javaé como mais voltados ao consumo de animais terrestres ou como moradores distantes
dos cursos d’água, ou seja, distantes do Araguaia. Em seu relatório ambiental, o biólogo
Costa Júnior (1999:32) mostra o “uso da biodiversidade” pelos Javaé de Boto Velho:
45,90% do que é utilizado vem da pesca, enquanto 25% vem da caça, 21,6% da coleta e
7,4% da agricultura. O autor descreve em maiores detalhes o uso do território em função
da pesca, que teria “uma posição singular no campo sócio econômico e religioso” (Costa
Júnior, 1999:37) do grupo; e argumenta que “a caça é uma atividade praticada de maneira
periférica” (1999:69) e que “a proximidade de um dos corpos d’água permanentes na ilha”
(1999: 92) era e é um dos fatores preponderantes para o estabelecimento de aldeias.
Apesar da predominância atual da pesca, no passado a agricultura era também um
importante componente dentro desse complexo peculiar de sedentarismo. Há fortes
indícios de que a agricultura tinha um papel essencial da vida Karajá e Javaé, embora a
literatura sugira, ainda que de modo superficial, que os Javaé tenham se dedicado com
mais empenho ao plantio de roças que os seus vizinhos Karajá no século 20 24 . Atualmente,
a atividade agrícola está em declínio entre os dois grupos, especialmente nas grandes
aldeias, o que tem relação com vários fatores, entre eles o recebimento de salários e
aposentadorias. Donahue (1982) chega a dizer que a agricultura entre os Karajá é uma

24
Krause (1943b), Lipkind (1948), Aureli (1962b), Tavener (1973), Donahue (1982), Toral (1981, 1992,
1999). O inspetor Mandacaru, do SPI, notou em 1912 que “os carajás são pouco dedicados à agricultura”, em
contraste com o povo Javaé, que “entrega-se exclusivamente à agricultura para cuja indústria tem decidida
vocação. Cultivam em grande escala a mandioca, o milho e a bananeira, em menor, a canna, batatas,
abóboras, carás, amêndoas, algodão etc. etc.” (microfilme n° 324 da FUNAI, fotogramas n° 10 e 11). Em
1932, o jornalista Hermano Ribeiro da Silva (1935:260) observou “grandes plantações” Javaé, com produtos
variados, surpreendendo-se com tal “estranho” e “devotado desvêlo à cultura de solo”, que seria
desnecessário em razão da abundância de caça e pesca na região. Lipkind (1948:181) disse que “os Javahé
são agricultores mais laboriosos que os outros Carajá, cultivando extensas plantações” (grifo do autor). Toral
(1981) supôs que uma ênfase maior dos Javaé na agricultura seria um produto da invasão da Ilha do Bananal
por posseiros, causando o declínio da antiga mobilidade em função das pescarias.

223
atividade de segunda classe, pela qual os homens têm pouco interesse, quando comparada
à pescaria. Segundo a memória mitológica Javaé, os Wèrè eram caçadores e coletores,
enquanto o povo de Tòlòra era agricultor. Os Karajá teriam saído do Fundo das Águas
apenas com frutas silvestres, sem conhecer a agricultura.
Pétesch (2000:163), no entanto, comenta o caráter surpreendente da importância de
dois “ritos agrários” Karajá, hoje desaparecidos, associados ao momento de plantação e de
colheita (ver Palha, 1942), uma vez que “estes índios são geralmente descritos na literatura
etnográfica como fracos agricultores, em particular o subgrupo étnico de cima” (os Karajá
propriamente ditos). A autora lembra ainda que não se observa traços de cerimônias
equivalentes entre os vizinhos do Brasil Central Jê-Bororo. Embora de modo um pouco
diferente dos ritos Karajá, os Javaé também possuíam um ritual dedicado ao favorecimento
da agricultura (ver Capítulo 4). Bueno (1975) destaca a importância da lavoura para os
Karajá, que estaria em decadência por causa das novas relações econômicas, enquanto
Lima Filho (1994) insiste que a importância da agricultura seria anterior ao contato com o
colonizador europeu em razão da importância de produtos agrícolas em rituais como o
Hetohoky.
Um outro importante critério para a fundação de uma aldeia é a existência de terras
altas e secas o suficiente na beira de um rio ou lago para a instalação de cemitérios e para o
cultivo de lavouras pelas famílias nucleares 25 . O lugar ideal para a plantação de roças são
as áreas mais altas cobertas de mata seca, mais férteis e imunes à enchente, uma vez que a
água das inundações deteriora as plantações. O terreno mais adequado para a agricultura é
a terra escura chamada bèdèlyby (“lugar escuro”), onde se concentra a mata alta, densa e
seca conhecida como bidiu (“mata”) ou bidiutyti (“mata seca”) pelos Karajá e Javaé, que
não se confunde com a mata mais rala do “cerrado” (bèdèburè) nem com as savanas
inundáveis, que são conhecidas regionalmente como “varjão” e chamadas de bedero (ver
Rodrigues, 2008).
As grandes extensões de mata alta e seca, como a famosa Mata do Mamão, no
centro-norte da Ilha do Bananal (Bèdèky), onde os Javaé tinham várias aldeias no passado,
são chamadas de bidiunihiky, “mata (bidiu) muito grande (nihiky)”. As grandes aldeias de
inverno, como as atuais Itxala e Macaúba, e as antigas Inysèdyna e Utaria Wyhyna, dos
Karajá, ou as atuais Wariwari e Canoanã, e as antigas Marani Hãwa e aldeias do Bèdèky,

25
De acordo com Costa Junior (1999:68), considerando-se a escassez de áreas não inundáveis, “tudo indica
que a disponibilidade de terras agricultáveis seja um importante fator para o estabelecimento das aldeias, uma
vez que os recursos pesqueiros não são um fator limitante”.

224
dos Javaé, por exemplo, estão situadas em locais cercados por áreas de mata seca
relativamente extensas e propícias à plantação de todos os produtos tradicionais. Devido à
escassez de terras altas e permanentemente secas, muitas das roças das aldeias de inverno
Karajá eram e ainda são feitas no kòtiratyti, que são as ilhas de mata seca – conhecidas
regionalmente como “capão de mato” – em meio às grandes áreas de savana inundadas na
época das enchentes. Não é raro que os moradores de uma aldeia plantem suas roças em
terras situadas a várias horas de canoa, como Krause (1942a) já havia observado entre os
Karajá.
Os Javaé, em especial, e os Karajá ainda cultivam suas “roças de toco”, utilizando a
técnica da coivara, o que implica em preparar o terreno antes das chuvas, derrubando e
queimando uma pequena área de mata, e na rotatividade anual de roças nas áreas secas ao
redor de uma aldeia. Em termos gerais, o tempo de plantar é no início das chuvas, no
começo do inverno, e o tempo de colher é a partir do início do verão, quando não chove
mais, embora alguns produtos possam ser colhidos o ano inteiro, como a mandioca, e
outros durante a estação chuvosa. Costa Júnior (1999) mostrou em seu relatório etno-
ambiental sobre a Terra Indígena Inãwébohona que nas antigas aldeias Javaé do centro-
norte da Ilha do Bananal, próximas da grande Mata do Mamão, haveria uma menor
rotatividade de lugares para agricultura ao redor de uma aldeia, ao contrário das atuais
aldeias instaladas nas margens do Rio Javaés, uma vez que os solos da beira do Rio Javaés
não são tão ricos em nutrientes 26 .
O mito também se refere à prática de reclusão (iwòtè) dos adolescentes entre o povo
de Marani Hãwa, característica marcante do alto Xingu (Gregor, 1977, Viveiros de Castro,
1977, 2002a) e que ainda é praticada entre os Javaé, embora seja cada vez mais rara 27 .
Além disso, assim como no alto Xingu, há uma separação marcada entre a função de chefe
político e de xamã (Heckenberger, 2001b), além de acusações crônicas de feitiçaria, esta
entendida como a causa principal de doenças e mortes (ver Rodrigues, 1993). Além das

26
Em outro texto, Toral (1999:47-48) atribui a maior importância da agricultura para os Javaé, que seria mais
rica e mais diversificada que entre os Karajá, à “relativa pobreza dos solos Karajá” e à “melhor qualidade dos
solos em território Javaé”. Costa Júnior (1999:64), porém, conclui que a “maior produtividade das roças
Javaé”, pelo menos no que se refere às antigas roças interioranas da porção centro/norte da Ilha do Bananal,
situadas nas matas, “não está relacionada com solos mais férteis, e sim possivelmente com o maior acúmulo
de nutrientes na biomassa da floresta aluvial” em função das práticas nativas de queimada e coivara.
27
Em 1990, havia uma adolescente reclusa por um tempo relativamente longo em Canoanã. Os Javaé dizem
que a reclusão feminina pós-menstruação poderia durar até 6 meses antigamente, não passando de alguns dias
atualmente (ver Rodrigues, 1993). No ritual de iniciação masculina, os jovens ficam reclusos na Casa Grande
por cerca de 15 dias, no mínimo. Os iòlò eram criados reclusos, antes do casamento, a maior parte do tempo,
uma vez que a condição de iòlò, como será visto, associa-se ao estatismo do paraíso sem outros.

225
lutas rituais, Toral (1992:5) aponta a semelhança da cerâmica Karajá, do “uso cerimonial
do propulsor de flechas” (ver Galvão, 1979) e do “xamanismo desenvolvido” com a área
cultural alto-xinguana, supondo que tais influências decorreram de contatos com extintos
habitantes do Rio das Mortes, “que provavelmente estavam em contato com grupos
indígenas dos formadores do Xingu”. Já foi dito que os Javaé e Karajá partilham com todos
os alto-xinguanos e Tapirapé não uma nomenclatura de parentesco com traços Crow-
Omaha, como os Jê do Norte 28 , mas uma variação consanguinizante iroquês-havaiana do
tipo dravidiano, comum na Amazônia (Viveiros de Castro, 1993, 2002b). É altamente
significativo que o mito alega, de modo explícito, que foi com o povo de Tòlòra que os
Javaé atuais aprenderam a terminologia de parentesco, ou seja, o modo correto de se dirigir
às pessoas.
Por fim, a concepção da sociedade como uma “mistura pura”, em que a
exterioridade lhe é inerente, ao mesmo tempo em que há um esforço coletivo para
neutralizar o que vem de fora, caracterizando o “centro” social cosmológico como uma
mediação constante entre interior e exterior, talvez seja uma versão Javaé de uma aparente
contradição do ethos Arawak. Por um lado, como já foi mostrado, existe uma permanente
disposição de abertura às influências estrangeiras, um ethos de receptividade pacífica; por
outro, tem-se uma predominância da interioridade. Segundo Heckenberger (2001b:91),
“embora os limites da identidade xinguana sejam marcados em termos de sua relação como
o exterior, (...) a identidade coletiva é constituída através da afirmação ritual (recriação)
das raízes cosmológicas e da própria ordem social xinguana: o lócus da fecundidade social
é o interior. As coisas estrangeiras são dotadas de significado simbólico positivo, mas não
há nenhuma necessidade ontológica que requeira a incorporação da ‘substância
estrangeira’ para a reprodução da sociedade, como o é em certas sociedades ameríndias”.
Em outras palavras, a capacidade de acomodação das diferenças é constitutiva da
sociedade, mas isto não implica uma postura ativa de incorporação da alteridade. Mais do
que isso, Santos-Granero (2002:46) chega a falar de um “ideal de consangüinidade” entre
os Arawak, tema este presente na cosmologia Javaé, diferentemente da ênfase colocada na
afinidade por outros povos indígenas (ver Turner, 1979a, 1979b, Viveiros de Castro, 1993,
2002b). No caso Javaé, há uma radicalização do contraste Arawak, pois a alteridade é
demonizada, ao mesmo tempo em que é parte inerente do eu. Vive-se na prática um tema

28
Ver Da Matta (1979) e Melatti (1979), por exemplo, sobre os Apinayé e Krahó, embora haja terminologias
Jê de troca simétrica, como os Xavante (Maybury-Lewis, 1984) e Bororo (Crocker, 1985, 1979).

226
maior da cosmologia e mitologia, a idéia de que toda ação é vista como reação a um
estímulo alheio: incorpora-se o que vem dos outros não porque se deseja, mas porque é
quase uma imposição vinda de fora, uma necessidade originada na existência da alteridade
circundante. Essa visão da realidade pressupõe a consciência de que a sociedade é
construída através da relação intrínseca entre interioridade e exterioridade, embora haja
uma maior valorização da primeira (ou do parentesco sobre a afinidade).
A “hipótese Arawak” é diferente tanto da de Pétesch (1987, 1993a, 2000), para
quem os Karajá em geral seriam o ponto de ligação no continuum Jê-Bororo/Tupi, a ser
discutida a seguir, quanto da de Toral (1992), para quem “todos os grupos Karajá vieram
do norte”, talvez empurrados por grupos Tupi. Baseado em relatos fragmentados dos
Karajá, no movimento mítico dos povos subaquáticos de “baixo para cima”, na expansão
dos Karajá para o alto Araguaia (de norte para sul) no século 19, e em uma associação
cosmológica entre o “alto” e o “sul” (o rio acima), este autor supõe que os Karajá, Javaé e
Xambioá seriam originários de um grupo “proto-Karajá” Macro-Jê, cujo ponto de
dispersão seria o baixo Araguaia, ao norte. Em um texto que resume a sua proposta, Toral
(1999:7) diz que “os Javaé foram os primeiros a atingirem o médio Araguaia e a Ilha do
Bananal, instalando-se nas proximidades da atual aldeia Karajá de Santa Isabel, às margens
do Araguaia. Depois vieram os Karajá que derrotaram e ‘empurraram’ os Javaé para leste,
para o interior da Ilha do Bananal. Os Karajá do Norte, por sua vez, permaneceram nas
proximidades do local de onde os outros dois grupos precedentes emigraram: o baixo
Araguaia”.
Tal movimento norte-sul, entretanto, parece valer exclusivamente para os Karajá do
médio Araguaia mais recentemente (fim do século 19), os quais foram em grande parte
influenciados pela ação dos colonizadores. Não há dados históricos sobre um deslocamento
antigo para o sul de qualquer um dos três grupos, que desde os primeiros registros dos
séculos 17 e 18 estavam aproximadamente onde se encontram hoje, como já havia sido
notado por Lipkind (1948). Também não há nenhum subsídio na mitologia Javaé ou Karajá
que fundamente a hipótese do autor. Segundo a mitologia Javaé, os ancestrais dos Javaé
surgiram na Ilha do Bananal e arredores, onde seus descendentes estiveram morando desde
sempre. Os Karajá de Macaúba (Rodrigues, 2008) dizem que os Javaé, chamados de ixyju
mahãdu, “povo estrangeiro”, viviam no Fundo das Águas e ascenderam ao nível terrestre –
em um lugar no interior da Ilha do Bananal – depois que o herói Ijanakatu e seu irmão
Alubederi conheceram o mundo aqui de fora e os convidaram para conhecê-lo também. E

227
tanto para os Javaé quanto para os Karajá, os Karajá surgiram em Inysèdyna, na porção
noroeste da Ilha do Bananal, de onde foram viver no baixo Javaés. Só depois de conflitos
com os Wèrè, os Karajá chegaram ao médio Araguaia, incluindo lugares ao norte da Ilha
do Bananal.
Os Xambioá, por sua vez, ainda segundo a versão Javaé, seriam um grupo
originário da região de Marani Hãwa que teria descido o Araguaia, em direção ao norte,
depois de morar um tempo entre os Karajá. Toral (1992:263) informa que os Xambioá se
dizem “mais próximos culturalmente” dos Javaé do que dos Karajá e o lingüista Eduardo
Ribeiro (2002) mostra que, em termos fonológicos, os dialetos Javaé e Xambioá têm
semelhanças que os distinguem dos dialetos dos Karajá do sul e do norte. Já os Karajá de
Santa Isabel disseram a Pétesch (2000:54) que teriam relações mais cordiais e uma maior
identidade cultural (lingüística, morfológica e alimentar) com os Xambioá do que com os
Javaé. Estes últimos seriam chamados de “Ixãju riore”, “filhos de índios não Karajá”, e
teriam um xamanismo mais forte e temido, associado a relações interétnicas às vezes
hostis. A autora também afirma, a partir do que lhe disseram os Karajá, que os três grupos
se consideram como parte da “grande família Karajá”.
Voltando ao que dizem os Javaé, por sua vez, os Karajá seriam simplesmente um
dos povos estrangeiros regionais que partilharam do processo que eu chamo de
“arawakização” local. Para a consciência mítico-histórica Javaé, portanto, nunca existiu
uma matriz “proto-Karajá” no baixo Araguaia nem sequer isso que se chama de “os Karajá
em geral”, mas apenas uma fusão única de matrizes culturais diferentes, da qual os Javaé
consideram-se os legítimos herdeiros, no coração meridional da Ilha do Bananal.

3.6. Nem Aruak nem Macro-Jê, nem fora nem dentro: “entre”

Como já foi dito, Pétesch (1987, 1992, 1993a, 2000) teve o mérito de problematizar
a excentricidade cultural Karajá, que salta aos olhos quando estes são comparados a outros
povos do Brasil Central. Em sua busca por um “modelo dualista” (2000:7) deste povo
centro-brasileiro, e em diálogo com o modelo teórico proposto por Viveiros de Castro
(1986, 1993, 2002), a autora sugere que os Karajá representariam uma estrutura
intermediária no continuum Jê-Bororo/Tupi. Do ponto de vista da cosmologia e da

228
organização social, eles estariam situados entre a estrutura concêntrica, fechada, dualista
(natureza x cultura), estática, de centro único e horizontal dos Jê-Bororo (Macro-Jê), de um
lado; e a estrutura aberta, triádica (natureza, cultura, sobrenatureza), evolutiva,
pluricêntrica e vertical (busca da transcendência divina, o tornar-se Outro) dos Tupi, de
outro. O dualismo triádico, assimétrico e vertical Karajá (os três níveis cosmológicos –
aquático, terrestre e celeste – são interpretados pela autora como um centro oposto a duas
polaridades semelhantes), que existiria paralelamente a um dualismo diametral horizontal
(leste/oeste, espaço masculino/espaço feminino), representaria uma abertura
(exteriorização do centro) da estrutura concêntrica Jê-Bororo, alcançando um equilíbrio
dinâmico entre forças centrípetas (Jê-Bororo) e centrífugas (Tupi).
Segundo Pétesch, a estrutura Karajá, enquanto passagem entre um e outro, possuiria
uma verticalidade que os Jê-Bororo não têm, mas que não alcança a mesma dimensão da
verticalidade transcendente Tupi, uma vez que a ênfase escatológica Karajá seria muito
mais um “voltar a si” do que um “tornar-se outro” Tupi, ou seja, uma transcendência
limitada. A autora atribui influências Tupi na importância do xamanismo para os Karajá e
nas suas concepções cosmológicas, dada a convivência próxima com os Tapirapé; e afirma
que a terminologia de parentesco dravidiana com inflexões do tipo iroquês-havaino, um
tipo mais amazônico, comum aos Tapirapé, Tenetehara e alto-xinguanos, é a principal
característica destoante dos Karajá em relação aos povos do Brasil central. Como não
acredito que possa haver estruturas estáticas e fechadas que se opõem a estruturas abertas e
evolutivas, pois toda estrutura é em algum grau aberta e histórica, independentemente do
contato com o colonizador europeu, parece-me inadequado situar a estrutura Karajá como
passagem ou ponto intermediário entre essas duas polaridades. A tarefa não é encontrar o
lugar dos Karajá e Javaé no modelo, mas questionar a sua validade.
O alegado “conservadorismo” Jê (Maybury-Lewis, 1979c ou Viveiros de Castro,
1986:76, por exemplo) não deve ser reduzido a estatismo ou ausência de relações com a
exterioridade. Os Javaé também são conservadores, mas no sentido de que desejam
controlar ou neutralizar, na medida do possível, as mudanças indesejáveis e as relações
intrínsecas com a alteridade. Vários dos pesquisadores que trabalharam com os Karajá
chamaram a atenção para a sua notável resistência e tenacidade cultural, apesar de tantos
anos de contato intensivo com a sociedade nacional 29 , o que pode ser estendido aos Javaé.

29
Baldus (1948), Lipkind (1940), Fénelon Costa (1978), Donahue (1982), Toral (1992), Pétesch (1992),
Lima Filho (1994), Whan (1998), Maia (2001). Toral (1992:278-279) associa a “capacidade de acomodação

229
Isso não implica em rigidez ou fechamento da estrutura, mas o contrário, ou seja, uma
capacidade flexível de incorporar o que vem de fora sem desfazer de modo irreversível a
estrutura que foi herdada. Esta se perpetua, a um só tempo, apesar e por causa do Outro.
Fenelón Costa (1978) mostrou como, mesmo se levando em conta a situação
adversa em que se encontravam, os Karajá do século 20 souberam enriquecer a sua arte
cerâmica a partir das novas influências externas, ao invés de permitir o caminho mais fácil
da sua descaracterização completa. Bonilla (1997, 2000, 2003), por sua vez, em sua análise
do processo de tomada do vilarejo Porto Piauí, em que os índios passaram a morar nas
casas dos brancos, em uma “aldeia” sem Casa dos Homens, recusou-se a enfocar o novo
espaço em termos de uma etnologia da “aculturação”, como em Bueno (1975, 1987). A
autora mostrou convincentemente que os Javaé e Karajá souberam reproduzir a estrutura
espacial e cosmológica tradicional no novo lugar, ainda que de forma limitada e
improvisada, de modo que a tradição inclui também transformação.
Outra coisa, entretanto, quando retomamos a discussão de Pétesch (1992, 1993a,
2000), é aceitar que os Tupi tenham tido alguma influência entre os Karajá e Javaé, e vice-
versa, o que é muito provável. Dos vizinhos Wou (Tapirapé, da família Tupi-Guarani), os
Javaé dizem ter herdado um tipo de milho, o uso do algodão, do urucum e do jenipapo, o
estojo peniano e a tanga de entrecasca. Mas as informações levantadas até aqui dão conta
que as influências Tupi entre os Javaé não foram muito além disso, ainda que tenha havido
trocas e alguns casamentos no passado com os Tapirapé, que moraram próximos ou em
aldeias Javaé, e os Tapirapé sejam considerados um povo superior entre os outros
estrangeiros. E que, embora tenha havido conflitos mais recentes dos Karajá e Javaé com
os Tapirapé, registrados tanto na literatura 30 quanto na mitologia aqui apresentada,
provavelmente os Tapirapé participaram da comunidade regional arawakizada em um
passado mais distante, tendo partilhado, a seu modo, do ethos regional local. Em outras
palavras, pode-se tanto apontar indícios a respeito dessa hipótese na etnografia sobre os
Tapirapé quanto argumentar que as principais características destoantes dos Karajá e Javaé
em relação aos povos do Brasil Central relacionam-se muito mais com a hegemonia de um
ethos Arawak do que com influências marcantes de origem Tupi.
Segundo o mito Javaé, os Tapirapé estão na região desde tempos muito antigos,
pelo menos muito antes dos Xavante, Kayapó e Avá-Canoeiro com quem os Javaé e Karajá

dos Karajá na sociedade brasileira” a um desejo cosmológico de ascensão vertical, ligado à exploração de
novos espaços e à “receptividade a elementos de culturas diferentes”.
30
Ver Krause (1940-1944), Baldus (1970), Wagley (1988), Toral (1992).

230
tiveram conflitos depois que as frentes de colonização deslocaram estes últimos de seus
territórios originais. Ainda de acordo com a mitologia, quando os Wèrè chegaram à região,
os Tapirapé praticavam uma versão imoral ou inferior da Dança dos Aruanãs, sinalizando
que eles já faziam parte de uma rede cultural mais ampla no que se refere aos rituais com
mascarados. Baseado em sua análise etnográfica e na tradição oral Tapirapé, Wagley
(1988:52) diz que:

“(...) Os Tapirapé têm um repertório de canções e danças com máscaras, as quais,


segundo alegam, teriam sido aprendidas com os Kayapó e Karajá. (...) Por algum tempo
devem ter vivido em estreita relação com os Karajá e Kayapó. Na verdade, os Tapirapé
citam episódios de um passado distante em que isso ocorreu. Um desses relatos informa
que, um grupo de índios Tapirapé, efetivamente partilhou uma aldeia com os Iriwehe
(nome atribuído pelos Tapirapé ao ramo Javaé da tribo Karajá)”.

Em outro trecho, o autor (1988:256) nos revela que “a tradição oral ou a mitologia
Tapirapé conta que, por algum tempo no passado, eles viveram perto ou mesmo com a
divisão Javaé da tribo Karajá”. É digno de nota que a palavra Iriwehe tem alguma
semelhança com Ijèwèhè, o nome de um dos ancestrais Javaé que, segundo o mito, teriam
surgido na mesma época que os Tapirapé. Segundo Baldus (1970:36), o antropólogo
Lipkind lhe disse, em carta, que “Irewehe”, uma versão Tapirapé da palavra Karajá
“Ijewehe”, é o nome que os Tapirapé dão aos Javaé; e que os Tapirapé disseram a ele que
aprenderam a Dança dos Aruanãs com os Irewehe.
Apesar das diferenças entre as duas sociedades, são inúmeras as semelhanças
notáveis do complexo cerimonial encontrado por Wagley e Baldus, nos anos 30, entre os
Tapirapé, com o que existe entre os Javaé e Karajá 31 : Casa dos Homens como centro
cerimonial, interdição dos segredos rituais às mulheres, segredo quanto à identidade dos
dançarinos e a sua condição mortal, punição pela descoberta do segredo com o estupro
coletivo, duplas de mascarados (os anchunga) idênticas na forma aos aruanãs Karajá e
Javaé, papel central do xamã na vida ritual como o que vê o invisível e controla os
mascarados, entrega de alimentos pelas moças aos mascarados durante as danças,
associação dos rituais com as metades cerimoniais, lutas rituais entre as metades,
representação ritual do estrangeiro morto em batalha etc.

31
Ver Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994) e Pétesch (2000) sobre o complexo ritual entre os
Karajá. Sobre os rituais Javaé, ver Toral (1992) e Rodrigues (1993).

231
Baldus (1970:63), antes de Wagley, já havia notado o “parentesco cultural” entre os
três, referindo-se, em especial, aos cantos que constituem os rituais mascarados dos
Tapirapé e que teriam sido importados dos Karajá. Alguns dos mitos apresentados por
Wagley (1988:174-177) são versões incontestáveis dos mitos mais importantes
apresentados aqui, como o mito Tapirapé sobre o surgimento das armas de fogo (uma
versão do mito de Myreikò e seus filhos gêmeos), que se insere no grande ciclo ameríndio
dos mitos sobre a gemelaridade analisado por Lévi-Strauss (1993). Lipkind (1948) afirma
que os Javaé tiveram relações próximas e amistosas com os Tapirapé no passado. Mais
recentemente, dois estudos confirmam esse antigo intercâmbio cultural: o de Whan (1998),
a respeito dos jogos de cordéis Karajá, que a autora revela serem compartilhados pelos dois
povos, e o do lingüista Eduardo Ribeiro (2001/2002). Em seu estudo sobre empréstimos
lingüísticos Tupi-Guarani na língua Karajá, o autor demonstra que esta inclui em seu
vocabulário uma série de palavras, algumas de origem mais recente, outras mais remotas,
oriundas dos vizinhos Tapirapé (e vice-versa), de outros povos de origem Tupi, que o autor
supõe tenham sido adquiridas por meio de povos do alto Xingu, e da Língua Geral,
sugerindo que os Karajá atuaram como intermediários dos brancos e seus objetos com os
Tapirapé (assim como fizeram com os Javaé).
Não é nenhuma novidade, portanto, constatar que, apesar das tensões e inimizade
no último século, pelo menos, os Tapirapé tiveram uma convivência muito próxima com os
Javaé e Karajá no passado mais distante, com influências recíprocas. As intensas trocas de
objetos materiais entre os Karajá e Tapirapé foram registradas por Krause (1941e, 1942d,
1943a, 1944) em 1908. Os Javaé ainda se lembram de quando os Tapirapé moraram juntos
com eles em aldeias próximas do Lago Sohoky, da aldeia Imotxi e no local Wou Kuberena,
acima da atual aldeia Wariwari, casando-se entre si, e também dos conflitos que se
seguiram. Toral (1992) ouviu dos Javaé setentrionais que os Tapirapé mantinham contatos
pacíficos com os moradores de Wariwari e que estes aprenderam com os primeiros o ritual
“Ixè”. O autor (1999:9) também observou que “a toponímia Javaé também preservou uma
série de designações indicativas da presença dos Tapirapé na Ilha, como o ‘lago da antiga
aldeia Tapirapé’ (Wouhãwatyby), ‘lago onde o gavião pegou a canoa dos Tapirapé’
(Woulawòmynyna ahu) e assim por diante”. Mas interessa aqui sugerir que os Tapirapé
provavelmente estavam inseridos – sendo fortemente influenciados – na rede de trocas
cerimoniais da comunidade regional ali existente. Afinal, além dos rituais em comum, a

232
literatura registra traços de duas importantes características do ethos Arawak entre os
Tapirapé: uma disposição pacífica e a distinção hierárquica entre primogênito e caçula.
Ao invés de serem descritos como guerreiros, característica atribuída aos povos
Tupi (Viveiros de Castro, 1986, 2002c, 2002d), ressalta-se a “brandura” (Baldus, 1970:62)
do “padrão de comportamento” dos Tapirapé, que são descritos como “pacíficos e
laboriosos Tupi” (Baldus, 1948:138), tão “amáveis” como os seus vizinhos Karajá (Baldus,
1948:140), em contraste com os vizinhos Xavante e Kayapó (ver Pizarro e Araújo, 1948).
Na carta do Alferes Pinto da Fonseca ao General de Goyazes, de 1775, fruto de
conversações com os Karajá e Javaé, o autor menciona que “estas duas nações nos dão
notícias dos Araés, Tapirapés e Comocures, com os quaes tem paz” (Fonseca, 1867:338).
Apesar de considerar os Tapirapé como prováveis remanescentes dos Tupinambá da costa,
“intimamente relacionados” em termos culturais, Wagley (1988:50) ressalta que “os
Tapirapé não possuem, contudo, um importante complexo cultural, ao qual os antigos
cronistas deram muita ênfase em suas descrições dos Tupinambá: o canibalismo e o
endêmico estado de guerra”. O mesmo foi notado por Baldus (1970).
Além disso, os Tapirapé (Wagley, 1988) têm em comum com os Karajá e Javaé não
só uma terminologia dravidiana com variação havaiana na G0 e iroquesa na G-1,
característica do alto Xingu (Gregor, 1977, Coelho de Souza, 1995), como incluem na
terminologia a distinção entre primogênitos e caçulas. Pétesch (2000) demonstrou que essa
distinção, incorporada à nomenclatura de parentesco Karajá (e Javaé), associa-se ao
contraste não explícito entre paralelos e cruzados. O critério de idade relativa, fundamental
entre os povos Arawak ou entre aqueles influenciados por eles, é uma importante
característica da estrutura e cosmologia Javaé que os distingue dos povos Jê do Brasil
Central, o mesmo tendo sido apontado por Crocker (1976) em relação aos Bororo. Wagley
(1988:132-133) também descreve o status superior e herdado de alguns primogênitos
especiais, independentemente do sexo, chamados de “criança bonita” ou “criança favorita”
(Baldus, 1970:341). Exatamente como os iòlò Javaé e Karajá, assunto do Capítulo 8,
primogênitos herdeiros de uma nobreza mítica e chamados de “criança nova” (kuladu
tymyra), tais crianças eram tratadas com uma série de cuidados especiais, exercendo
importante liderança na vida adulta. Segundo Baldus (1970), os chefes Tapirapé também
tinham o direito exclusivo de usar o banquinho zoomorfo típico do Xingu e dos Karajá e
Javaé, associado a uma diferenciação hierárquica.

233
Na questão do xamanismo Karajá e Javaé, pode-se especular que as influências
seriam de origem Tupi, como faz Pétesch (1992, 1993a), em especial dos vizinhos
Tapirapé, para quem o xamã é essencialmente ambíguo (ver Baldus, 1976 e Wagley, 1976,
1988), “um life-giver e um life-taker, fecundante e mortal, protetor e inimigo; ele é um
aroe-bope, para usarmos a terminologia filosófica Bororo” (Viveiros de Castro, 1986a:114,
grifos do autor). Diferentemente dos Jê, o xamanismo tem papel central entre os Javaé e
Karajá, uma vez que todas as mortes e doenças são atribuídas à feitiçaria, como já
registraram Krause (1942b) e Lipkind (1948) pioneiramente, e toda a vida ritual da Casa
dos Homens depende da existência dos hàri (xamãs), que são os condutores oficiais da
Dança dos Aruanãs. A arte tanto de curar quanto de matar ou causar doenças dirige-se aos
membros do mesmo grupo ou da mesma aldeia. A principal justificativa para a ausência da
Casa dos Homens em alguma aldeia é a inexistência de xamãs que têm o conhecimento e
capacidade de controle dos aruanãs.
Os hàri Javaé, assim como os xamãs Tapirapé e Karajá 32 , conforme já sugeri em
análise anterior (Rodrigues, 1993), são essencialmente ambíguos, alternando entre uma
face pública e apreciada, de curadores e “donos” dos aruanãs, e uma face secreta e
repudiada, de feiticeiros matadores e anti-sociais, associados à acumulação de bens. O
próprio Viveiros de Castro (1986a:114) lembra, entretanto, que esta ambivalência é uma
característica excepcional do xamã Tapirapé, não sendo comum nem mesmo entre os Tupi-
Guarani, o que reduziria a suposta “influência Tupi” geral a uma “influência Tapirapé”
específica. Esta última, por sua vez, também pode ser questionada, não sendo absurdo
supor que foram os Karajá/Javaé que influenciaram assim os Tapirapé, e não o contrário. A
mitologia sugere que o xamanismo foi trazido pelos Wèrè, o que é confirmado por Toral
(1992), juntamente com seus rituais complexos: os Wèrè eram originalmente tanto
feiticeiros mortais quanto curadores e conhecedores dos aruanãs.
No xamanismo Javaé pode-se encontrar tanto características alto-xinguanas, já
mencionadas, quanto Bororo (Crocker, 1976, 1979, 1985), com quem há várias
semelhanças estruturais, simbólicas e rituais notáveis, como veremos ao longo deste
trabalho. Toral (1992) já havia sugerido uma similaridade entre o xamanismo Karajá e
Bororo, enquanto Pétesch (2000) estendeu a comparação entre ambos para a esfera
cosmológica e mitológica, além de apontar as mesmas combinações de princípios
classificatórios da organização social. As semelhanças, entretanto, parecem ser maiores em

32
Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994).

234
relação aos Javaé, que se distinguem dos Karajá em aspectos importantes da estrutura
social. Os Karajá possuem um princípio patrilinear de filiação aos grupos cerimoniais,
exatamente como seus vizinhos Tapirapé (Wagley, 1988), enquanto os Javaé, fato este não
registrado na literatura, adotam um princípio matrilinear, aproximando-se muito mais dos
Bororo (Crocker, 1979, 1985) e Timbira (Melatti, 1979, Da Matta, 1976, 1979). A
duplicidade dos xamãs Bororo (um xamã do Bope e um xamã do Aroe, com funções
antagônicas) seria vivida na forma de um único xamã, porém internamente contraditório,
entre os Karajá e Javaé. Na caracterização geral dos Tupi-Guarani feita por Viveiros de
Castro (1986a:113), a ambivalência tem papel de destaque:

“(...) Se comparados às propriedades cristalinas das sociedades Jê, os Tupi-Guarani


evocam certamente a natureza de corpos amorfos, nuvens, fumaça, em sua organização
social frouxa e casual, sua ausência de fronteiras conceituais claras entre os domínios
do cosmos, sua fragilidade ao contato com a sociedade ocidental (mais em aparência
que em essência), sua plasticidade, e seu estilo extra-mundano ou ‘místico’ de
pensamento” (op.cit.:30). (...) Se, no entanto, procurarmos que tema insiste nas
descrições sobre os Tupi-Guarani, iremos esbarrar em uma palavra, que foi usada para
caracterizar diferentes aspectos das sociedades TG: ‘ambivalência’.”

Se houve alguma influência Tupi entre os Karajá e Javaé, esta não foi a frouxidão
da organização social nem a aparente fragilidade ao contato, mas o papel essencial da
ambivalência nos vários domínios da vida social. Segundo o autor, a pessoa Tupi não é
dual (oposição entre identidade física e social) nem definida no contraste especular com os
mortos, como entre os Jê, mas ambivalente, situando-se provisoriamente entre duas outras
referências extremas, a animalidade e a divindade, “algo entre dois outros” (Viveiros de
Castro, 1986a:617). A polaridade espiritual da pessoa, que ao morrer divide-se entre um
espectro terrestre e uma alma celeste, exprimiria a ambivalência da cultura, que seria uma
mediação entre um aquém (natureza) e um além (sobrenatureza), nas palavras de Hélène
Clastres (1995) sobre os Guarani.
Os Javaé são o “Povo do Meio” (Rodrigues, 1993) porque também vêem a
socialidade como estando entre um extremo repudiado (dos corpos abertos e que sangram,
da afinidade, alteridade e transformações) e um desejado (dos corpos fechados, dos
parentes, da semelhança e perenidade), bastante semelhantes, em termos de conteúdo, aos
extremos de “total ‘bopeness’” e “pure ‘aroeness’” do continuum Bororo, no centro do qual
estão os seres humanos (Crocker, 1985:121-122), embora não traduzíveis em termos de

235
“natureza” ou “sobrenatureza”. E a pessoa Javaé, como pretendo mostrar, em sua
identificação com os aruanãs, também está “entre” ou realizando uma mediação entre esses
dois estados opostos. Há, entretanto, uma diferença básica entre a ambivalência Tupi-
Guarani e a Javaé: a ambivalência a que Viveiros de Castro (1986a) se refere é um estado
transitório da pessoa, em que o vivente não está em nenhum dos extremos, mas em um
estado intercalar que se define mais pela ausência do que pela presença das polaridades;
em que os extremos estão “fora” da pessoa que vive, de modo que sua condição aqui, no
mundo terrestre e visível, é definida como um estado de passagem de um extremo a outro,
muito mais um tornar-se do que um ser.
A ambivalência Javaé não está fora do ser humano social, mas lhe é inerente, como
mediação entre opostos assimétricos. Assim como a cultura, todo ser social é uma síntese
paradoxal das relações entre as polaridades feminina e masculina, mudança e estatismo, pai
e tio materno, contendo em si os extremos. O estar “entre” Javaé não é deixar de conter os
dois extremos, como no caso do vazio ontológico transitório da pessoa Tupi-Guarani, mas
conter em si a relação entre os opostos. A mediação Javaé não é “passagem” de um estado
passado a um outro futuro, mas o resultado presente da fusão entre os extremos (embora
haja um desejo de voltar a si, ao extremo desejado, e não o de tornar-se Outro, como já
apontou Pétesch [2000] em relação aos Karajá). É muito mais uns “centros” preenchidos,
lembrando as concepções espaciais e cosmológicas Arawak, apresentadas a seguir, do que
um “vazio” ao estilo Tupi-Guarani.
Esse resultado de uma fusão não é, também, o mesmo que a pessoa dual Apinayé
(Da Matta, 1976) e Kraho (Melatti, 1976, Carneiro da Cunha, 1978), em que os opostos
coexistem, mas se mantêm separados, na forma de substância e nome (ou natureza e
cultura). A ambivalência ou o estar “entre” da pessoa e da cultura Javaé, enquanto produto
de uma verdadeira relação dialética, estariam mais próximos, então, do axioma Bororo:
“tudo existe em razão de uma dialética interna. De todo modo abstrato possível, tudo
contém algo de si próprio e de sua própria antítese” (Crocker,1985:134), de modo que todo
ser humano seria uma síntese – “alma vital” (Crocker, 1985:288) – dos opostos
Bope/substância e Aroe/nome.
Como veremos, tanto a cultura como a pessoa Javaé são vistas como “misturas
puras”, o equivalente do “meio” cosmológico: sínteses de fixação e transformação,
identidade e alteridade, masculino e feminino, interior e exterior, embora haja sempre uma
hierarquia de valor da pureza sobre a mistura, de um extremo cosmológico (rio acima)

236
sobre o outro (rio abaixo). Enquanto a pessoa Jê é constituída de uma identidade
contrastiva no jogo especular de relações de oposição, em que se é o que o Outro não é; e a
pessoa Tupi-Guarani dissolve a própria noção de identidade, “sendo” apenas quando se
torna o Outro; talvez pudesse ser dito que a pessoa Javaé/Karajá, similar ao que ocorre
entre os Bororo, não se espelha simplesmente no Outro nem se torna o Outro ao longo do
tempo, mas o contém dentro de si própria desde sempre, paradoxalmente.
Não tenho como reconstituir a origem da importância da noção de ambivalência
para os Bororo, Karajá e Javaé 33 . O que tem se mostrado produtivo, por enquanto, é levar a
sério o conteúdo da mitologia, uma vez que a pesquisa aponta para a pertinência do que é
dito. Sendo assim, adotarei a versão mítica, muito convincente, do ponto de vista
etnográfico, de que a relação histórica entre duas grandes matrizes culturais/linguísticas,
por mim identificadas como de origem Arawak e Macro-Jê (ou Jê-Bororo, mais
especificamente), sintetizada no episódio de trocas e fusões intensas (de substância e
cultura) dos Wèrè com o povo de Tòlòra em Marani Hãwa, deram origem à cultura e ao
povo Javaé atual. O que leva à suposição de que este modo ambivalente e paradoxal de
construção da realidade talvez seja uma versão Javaé (ampliada da pessoa para a cultura
também) de um tema encontrado entre os Bororo e os Arawak, uma vez que estes possuem
a noção de centro mediador entre opostos. Como já foi dito, Heckenberger (2001a)
considera que os Bororo também estariam incluídos na área da Periferia Meridional
Amazônica, influenciada por um antigo ethos Arawak.
A idéia essencial para os Javaé de que a sociedade está no “centro” ou “meio” de
dois extremos opostos, o nível celeste e o nível subaquático (por enquanto em sua
conotação meramente espacial), o ponto de se autodenominarem “O Povo do Meio”, tem
seu paralelo entre alguns povos Arawak. Na verdade, segundo Passes (2002:192), “a
centralidade do espaço parece constituir um tema ideológico maior para os povos que
falam a língua Arawak”. Citando outros trabalhos anteriores, Passes (2002:173) mostra que
o termo Pa’ikwené (etnônimo dos Palikur do Amapá, extremo nordeste do Brasil), também
significa “O Povo do Meio”, em que o “meio” em questão é o Rio Aúkwa (ou Urucauá) e a
região ao seu redor, a terra de origem ancestral, situada entre dois outros rios. Tal
localização é refletida identicamente no nível cósmico, pois Aúkwa está no “meio” do

33
Viveiros de Castro (1986b:237), em sua resenha sobre o livro “Vital Souls” (Crocker, 1985), sugere que há
fortes analogias da cosmologia, mitologia, xamanismo, escatologia pessoal e teorias da alma Bororo com
“complexos não Jê”, em especial a cosmologia Tupi-Guarani. Anteriormente, Lévi-Strauss (1991:142) já
havia dito que “o pensamento bororo é impregnado de mitologia tupi”.

237
grande rio da Via Láctea, também situada entre os mesmos dois rios, um à direita e outro à
esquerda. Passes argumenta que a noção de “meio” ou “centro” para os Pa’ikwené não tem
apenas um sentido espacial, constituindo-se como uma postura ativa de recriação da
tradição dentro de um contexto histórico multicultural ou multiétnico. Estar no “centro do
mundo” refere-se muito mais a um processo de contínua reinvenção, adaptação e
incorporação – sem perder a distintividade em relação aos outros – das várias influências
estrangeiras que fizeram parte da história transétnica dos Pa’ikwené.
Temos também o exemplo significativo dos Enawene-Nawe, um subgrupo Pareci,
que junto com os alto-xinguanos formam os Arawak centrais. Silva (1998:36-38) mostra
que, “segundo o modelo nativo os Enawene Nawe habitam o patamar intermediário do
universo, entre a esfera dos espíritos celestes e a dos espíritos subterrâneos. (...) Enquanto
o patamar celeste se define fundamentalmente como um mundo do ‘entre-si’, o patamar
subterrâneo é regido pela clave da alteridade em toda a sua potência. (...) Logo, o mundo
dos humanos corresponde a uma combinação de princípios cosmologicamente opostos,
mas tornados sociologicamente complementares”. Embora haja algumas diferenças, a
serem expostas ao longo do texto, tal descrição dos cosmos não difere, em sua essência, da
concepção paradoxal que os Javaé têm de sua posição espaço-temporal no mundo, no
“meio” cosmológico, inclusive no que se refere à associação entre identidade (parentesco)
e nível superior e alteridade (afinidade) e nível inferior. Veremos que os Javaé também
constroem de modo ativo e histórico o significado do conceito de “centro” (Passes, 2002),
assim como a idéia de que o meio é uma posição de controle entre dois opostos (Hill,
2002) está na base dos conceitos de agência histórica Javaé.
Para os Baniwa, povo Arawak do alto Rio Negro, o “mundo atual da humanidade é
concebido como ‘Mundo do Meio’ (...)”, situado entre o “Outro Céu” superior e o “Lugar
de Nossos Ossos” inferior (Wright, 2000:446). Por fim, temos novamente o exemplo dos
Barasana, um dos subgrupos lingüísticos Tukano. Segundo C. Hugh-Jones (1979:241), “os
índios insistem em que eles vivem no meio do mundo, entre esses poderes supernaturais
opostos”, referindo-se à oposição horizontal e hierárquica entre leste/boca do rio, origem
dos ancestrais, e oeste/cabeceiras, terra de espíritos canibais. Embora no caso Javaé o oeste
seja associado à boca do Rio Araguaia e o leste às suas cabeceiras, eles também acreditam
que seu território está situado exatamente no meio desse eixo fluvial, em que os dois
extremos se opõem hierarquicamente e são associados respectivamente ao nível inferior e
ao superior.

238
Tais concepções cosmológicas parecem ter relação com o lugar de origem histórica
dos Arawak, no noroeste amazônico, cujos remanescentes atuais ainda estão
estrategicamente posicionados nas cabeceiras do alto Rio Negro (Hill, 2002), em especial
nos rios Guainía e Isana. Ali não só está situado o centro mítico do mundo, a cachoeira
Hipana (ver Zucchi, 2002 e Wright, 2000, 2002), como é o lugar extraordinário de onde se
pode controlar “redes de comércio entre as duas maiores bacias hidrográficas da América
do Sul, a do Orinoco e do Amazonas” (Hill, 2002:229-230). Ou seja, o centro mítico é uma
posição de controle situada entre dois outros “lugares”, aqui opostos espacialmente, um ao
norte e outro ao sul, contendo o mesmo significado que os Javaé atribuem ao conceito de
“meio”.
Assim, no que diz respeito à suposta influência cosmológica Tupi sobre os Karajá,
pode-se também questionar a idéia de que o triadismo cosmológico Karajá teria sido
influenciado pela verticalização evolutiva (natureza, cultura, sobrenatureza) Tupi-Guarani,
diferenciando-se assim do dualismo natureza/cultura fechado dos Jê. Veremos que há uma
distinção etnográfica importante entre a concepção cosmológica Javaé (um centro espacial
entre dois extremos hierarquicamente valorizados) e aquela descrita por Pétesch (1992,
2000) com relação aos Karajá (um centro oposto a duas polaridades), o que configuraria,
segundo a autora, um dualismo triádico. O centro ou meio (tya) Javaé, o qual contêm em si
os princípios dos extremos opostos, em forma de mediação, não é uma das polaridades de
um suposto dualismo mais aberto, mas a própria relação entre os extremos, constituindo-se
como um “outro” original, um terceiro fator. Tal princípio ternário, veremos, não se reduz
à cosmologia, sendo recorrente em diversas áreas da vida social.
Resta, portanto, muito pouco dos Tupi de realmente significativo entre os Karajá e
Javaé do ponto de vista estrutural, embora a mitologia indique que os vizinhos Tapirapé,
os quais o mito considera como contemporâneos de Tanyxiwè, estavam inseridos no
complexo cultural regional de Marani Hãwa há muito tempo, influenciando e sendo
influenciados. As principais diferenças em relação aos Jê-Bororo, segundo Pétesch (1987,
1992, 1993a, 2000), ou seja, a terminologia de parentesco, a cosmologia ternária e o
xamanismo, parecem estar muito mais associadas aos Arawak centrais e aos Bororo do que
aos Tupi. No caso da nomenclatura de parentesco, que é encontrada tanto entre os Tapirapé
quanto entre os alto-xinguanos, é o mito que não deixa dúvidas quanto à sua origem,
considerando-a como um conhecimento específico do povo de Tòlòra que teria sido
adotado pelos Wèrè e outros.

239
Tudo o que foi dito até agora aponta para a hipótese de que a sociedade Javaé atual
(e também os Karajá) formou-se em um contexto tipicamente “transétnico”, no sentido que
Santos-Granero (2002:28) dá a esta palavra: “grupos que adotam o ethos cultural de outro
tronco lingüístico, mas retêm sua língua, ou, inversamente, grupos que adotam uma língua
diferente, mas retêm seu ethos”. São os Javaé um povo de origem Macro-Jê
“Arawakizado” ou um povo de origem Arawak “Jê-Bororoizado”? Seriam eles um povo de
língua Macro-Jê que adotou o ethos Arawak, como no primeiro caso, ou um povo Arawak
que adotou uma língua (e muito mais) Macro-Jê, como no segundo caso34 ?
O mito sugere uma anterioridade cronológica do povo de Tòlòra, como se os Wèrè
tivessem chegado muito depois à região. Isso não parece significar que os Arawak tenham
chegado à Ilha do Bananal e arredores antes de qualquer povo do Brasil Central, mas
apenas que a influência Arawak teve uma proeminência cultural sobre aquela oriunda dos
Jê (Wèrè) e outros povos. Afinal, como será discutido, o que vem “antes”, como o
primogênito, é muito mais valorizado do que o que vem “depois”, como o caçula,
associado a uma maior transformação. O mito diz que antes do iòlò Tòlòra ascender
através da passagem mítica existente em Marani Hãwa, o que traduzo simbolicamente
como a chegada dos Arawak à região, outros povos já haviam estado lá, como os antigos
Bisarukèrè e os Kuratanikèhè, dos quais são provenientes Myreikò, a esposa de Tanyxiwè,
e Kwely, pai de Dimarani, sua filha primogênita, que deu o nome ao lugar.
“Quem chegou” e “quando chegou” são questões extremamente interessantes, mas
não posso respondê-las aqui. Posso apenas argumentar que esta talvez não seja a questão
central da mitologia, no sentido de se estabelecer uma anterioridade e, assim, uma primazia
ancestral de um povo sobre outro. Pode até haver uma maior valorização do ethos Arawak,
como proponho a seguir, mas a questão central do mito, a ser aprofundada ao longo deste
trabalho, não é quem é o verdadeiro ancestral Javaé, mas a idéia de que a sociedade é o
produto de uma relação criativa entre diferentes, assim como um filho é o produto da
relação física e social entre um homem e uma mulher.
A identidade transétnica Javaé não significa que eles se vêem como um povo
Arawak com influências Jê-Bororo nem como um povo de origem Macro-Jê com
influências Arawak, o que seria pressupor uma origem primordial ou uma essência interna
influenciada por algo externo ou posterior. Trata-se muito mais de se perceber como o

34
Uso o conceito de “Macro-Jê” não tanto para definir o que seja isso culturalmente, algo ainda não possível,
mas mais com o espírito de contrastar o que se sabe sobre os Jê e Bororo (que são parte significativa do
tronco Macro-Jê) ao que é agora reconhecidamente Arawak (enquanto um outro tronco lingüístico).

240
produto original de relações históricas entre diferentes, exatamente a perspectiva que se
tem no “centro” do mundo, conforme a cosmologia nativa, que é estar em um meio
paradoxal que liga dois opostos assimétricos (Jê-Bororo e Arawak, ou os Wèrè e o povo de
Tòlòra). Uma perspectiva transétnica, portanto, não significa aqui estar mais de um lado do
que de outro, ou ser mais um do que o outro, mas constituir-se enquanto mediação
paradoxal entre os extremos, ou seja, ser a própria relação entre os opostos.
Como mostra uma leitura cuidadosa dos mitos, houve uma sobreposição
hierárquica, ao final das contas, do ethos pacífico de Tòlòra ao ethos guerreiro dos Wèrè.
Embora os Javaé orgulhem-se em dizer que descendem destes últimos, fato já relatado, há
sempre um comentário crítico ao comportamento guerreiro e dominador dos Wèrè. No
mito, os Wèrè submeteram-se à disposição conciliatória de Tòlòra, que abrigou os
fugitivos Karajá e afastou os guerreiros apenas com sua superioridade moral e nobre. Os
Wèrè foram embora, mas Tòlòra e seus descendentes continuaram em Marani Hãwa desde
então, dando continuidade ao processo de domesticação e incorporação do exótico. A
análise da cosmologia e organização social mostra que, de fato, os valores de contenção do
conflito público (autocontrole) e sedentarismo (estatismo), associados à neutralização da
alteridade e da transformação, sobrepõem-se a qualquer ética guerreira ou predatória que
por acaso tenha feito parte, no passado, da formação da cultura Javaé.
A forma relativamente definida, porém permeável, que a cultura e a sociedade
Javaé tomaram é vista como o produto de uma relação entre diferentes. Colocando isso em
palavras mais precisas, eu diria que a forma atual, em sua essência, seria vista como o
produto de uma mediação entre opostos, o estatismo e pacifismo de Tòlòra sendo
associados à masculinidade, e o deslocamento espacial constante e o belicismo dos Wèrè, à
feminilidade. Como será visto, a realidade social é concebida como o produto de relações
(ou mediações) entre diferentes, reduzidos em sua essência à oposição entre
masculinidade/identidade e feminilidade/alteridade. O discurso mítico, identificado com
um ponto de vista masculino, que define o feminino como alteridade, assume os valores
representados por Tòlòra como mais importantes que aqueles representados pelos Wèrè.
A análise mostrará que o estatismo e o pacifismo Arawak associam-se ao
autocontrole masculino mais valorizado, ou melhor, à imagem que os homens têm de si
nos mitos e no cotidiano como mais controlados do que as mulheres; e que o belicismo e
deslocamento espacial Jê associam-se ao suposto maior descontrole feminino, uma
característica altamente repudiada. Em outras palavras, o mundo sem outros (paraíso

241
celeste) com o qual a coletividade masculina se identifica é o lugar do estatismo temporal e
espacial e da paz; enquanto o mundo dos mortos ensangüentados (hure mahãdu),
identificado com a feminilidade, é o lugar dos outros, dos conflitos e das transformações
(que são interpretadas como produtos de deslocamentos espaciais). Assim, pode-se dizer
que o fato do ponto de vista masculino associar-se às influências Arawak significa uma
posição hierárquica superior dos valores Arawak em relação aos valores Jê, pelo menos no
sentido limitado da oposição entre paz e guerra, estatismo e movimento.
E que o permanente esforço masculino em controlar as mulheres (ou o maior valor
das influências Arawak em relação aos Jê) corresponde, em um outro nível, à dialética
constante entre ordem e desordem, entre a tentativa masculina de fixar e repetir o que foi
criado, por um lado, e a existência inevitável de transformações e conflitos associados à
feminilidade. A cultura, enquanto totalidade mutável que se tenta fixar, é vista como o
centro onde se trava o permanente embate entre forças e valores contraditórios, entre o
pacifismo Arawak e o belicismo Jê, ou entre o princípio conservador masculino e o
transformador feminino. Os Javaé, diz o mito, não são agora nem Arawak nem Jê-Bororo,
mas o produto da relação histórica entre ambos (e entre outros, mas de influência menor),
criadora de uma nova totalidade, que é única, mas contêm em si, transformados, os
componentes do passado. Assim como um filho em relação aos seus genitores.
Talvez a grande diferença em relação às representações dualistas Jê-Bororo, em que
a realidade é concebida dentro de uma cosmologia binária, é que para a cosmologia
ternária Javaé, como será visto, o centro representa a fusão entre os opostos. Os extremos
não permanecem estáticos ou separados na relação, mas fundem-se produzindo uma nova
realidade (de mediação), o que se aplica tanto à pessoa quanto à representação da
sociedade (ou melhor, do processo de construção da sociedade e da cultura). A
representação nativa seria fiel a uma estrutura composta de forças conflitantes e
contraditórias, seja no plano das relações entre homens e mulheres, genros e sogros ou
Javaé e outros povos (incluindo os brancos), dissolvendo a oposição entre cosmologia e
história 35 .
Quando falo em opostos, não me refiro simplesmente à realidade interna e
supostamente fechada dos centro-brasileiros, que apenas incorporaria a exterioridade à
35
Enquanto Maybury-Lewis (1979c, 1989b) interpreta o dualismo cosmológico Jê como uma expressão
estática de uma estrutura homogênea e igualitária, não afetada por relações com o exterior (separando
cosmologia de história), Turner (1984) aponta a diferença entre uma representação simétrica da realidade
(cosmologia binária) e uma estrutura assimétrica (relação de dominação entre sogro e genro), constituída de
conflito e contradição.

242
estrutura dual, levando a uma negação das transformações, como em Maybury-Lewis
(1979c, 1989b), que caracteriza os Jê como imunes a influências exteriores; ou em
Viveiros de Castro (1986a, 1993, 2002b), que define os centro-brasileiros como sociedades
fechadas e conservadoras, em sua comparação com a estrutura aberta dos “amazônicos” de
terminologia dravidiana. O centro é a mediação permanente entre o exterior e o interior, a
exterioridade tornando-se um componente inerente e transformador da estrutura: o modelo
nativo, representado espacialmente, supõe que a estrutura é essa relação histórica com o
exterior 36 .
Na verdade, é inadequada a caracterização do modelo cosmológico Javaé em
termos de oposição entre uma dimensão interna e uma externa, uma vez que a totalidade
social está “entre”, e por isso é tida como altamente permeável às influências da
alteridade 37 . É no centro, no sentido de uma situação espaço-temporal “entre”, enquanto
mediação, que se exerce a socialidade referida pelo conceito de tya, que pode ser
interpretado, de modo mais estático, como “centro”, “núcleo”, “meio” ou, de modo mais
dialético, como “mediação”, “relação entre opostos”, “paradoxo” ou “síntese”. Os Javaé
autodenominam-se o “Povo do Meio” justamente porque a socialidade não está nem dentro
da sociedade, enquanto sistema fechado, nem fora, enquanto estrutura que se relaciona
com a exterioridade, mas “entre”, contendo em si os opostos. Em outras palavras, pretendo
preencher o conceito de tya com uma significação processual e histórica, em que a
estrutura é muito mais o produto paradoxal de uma mediação contínua entre diferentes que
se contradizem do que um centro estático. A existência de uma concepção ternária da
realidade não será tratada aqui como um princípio classificatório apenas (Schiel, 2005),
mas como uma postura de ação prática dos sujeitos históricos, como um conceito de práxis
que orienta as relações com a alteridade no passado mais distante ou no presente atual.
Distancio-me, assim, de uma abordagem estruturalista, como a de Pétesch (1987,
1992, 1993a, 2000), para quem o triadismo cosmológico Karajá não é visto como um meio
que funde opostos – uma relação criativa –, mas como um centro oposto a dois extremos

36
O que é radicalmente diferente do que Maybury-Lewis (1989a, 1989b) atribui aos Jê, que teriam um senso
de história, mas separariam a estrutura da história. As organizações dualistas, em sua natureza ideológica,
seriam intemporais, “porque elas não são dependentes de circunstâncias políticas, demográficas ou
ecológicas e assim estão isoladas das mudanças em tais circunstâncias” (Maybury-Lewis, 1989b:113-115).
Para Seeger (1989), por sua vez, os Jê não negam o tempo ou a história, mas apenas opõem o centro,
associado ao que é constante, à periferia das aldeias, associada às mudanças e à diacronia.
37
Bonilla (1997, 2000) mostra como a construção ou apropriação material, simbólica e lingüística do espaço
da aldeia Txuiri, de modo a reproduzir estruturas antigas dentro dos limites possíveis, foi baseada nessa
relação indissociável entre o interior e o exterior da sociedade.

243
semelhantes, ou seja, uma forma travestida de dualismo, dentro do espírito lévi-straussiano
(1975, 1982). Mesmo que a autora tenha tido a intenção de dotar a representação Karajá de
um dinamismo e uma abertura que estariam ausentes, segundo os antropólogos
estruturalistas, na representação concêntrica Bororo, dinamismo não é o mesmo que
História. A estrutura social Javaé não é vista aqui como ocupando uma posição
intermediária em um continuum estrutural que liga os Tupi aos Jê-Bororo, mas como
dotada de uma historicidade intrínseca que é feita da relação permanente entre
interioridade e exterioridade. O meio a que me refiro não é um mero centro exteriorizado,
ou uma abertura relativa de uma estrutura estática, mas uma relação histórica e
contraditória, que pode ser entre homens e mulheres, genros e sogros, entre os povos de
origem Arawak e Macro-Jê ou entre os Javaé e os não-índios, o locus da socialidade.

244
Capítulo 4

O Povo do Meio: vivendo no centro do mundo

4.1. O Território da Totalidade (Butu Hãwa)

Para poder responder à pergunta inicial sobre quem são os Javaé, levando em
consideração as respostas elaboradas pela própria consciência social nativa, falta ainda um
último componente, que seria a relação dos Javaé com os povos das outras dimensões não
visíveis. Assim como eles se percebem dentro do contexto de relações com os povos da
dimensão terrestre e visível, os outros povos que habitam a vastidão do cosmos também
fazem parte dessa identidade construída sempre na relação com a alteridade. Até aqui a
cultura e a sociedade Javaé foram vistas como totalidade permeável constituída de partes
que interagem e se transformam na relação entre si; agora, de um outro ponto de vista, o
povo Javaé e o nível cosmológico em que habitam serão vistos como uma parte integrante
de uma totalidade maior. Essa totalidade é, antes de tudo, humana, na medida em que todos
os seres do cosmos, sociais ou não, são em algum grau humanizados, sejam os animais, as
árvores, os ancestrais mágicos, os monstros invisíveis canibais ou os astros.
Apresento neste item uma descrição espacial do mundo em sua totalidade, dos
lugares onde habitam esses personagens cósmicos, argumentando que os Javaé não
concebem dois eixos espaciais opostos (um vertical e um horizontal), como sugerem Toral
(1992) e Pétesch (1987, 1993a, 2000) em versões diferentes a respeito dos Karajá, mas um
único “eixo corporal” – uma vez que o mundo é visto como um grande corpo –, em que a
cabeça e os pés do mundo são equivalentes simbólicos, respectivamente, do leste, do rio
acima e do nível superior, de um lado, e do oeste, do rio abaixo e do nível inferior, no
outro extremo oposto.
O espaço aberto em que vivem os humanos terrestres, o Ahana Òbira, é definido
sempre em relação aos espaços fechados (o nível subaquático e o celeste) que já existiam
antes dos humanos do mundo subaquático resolverem conhecer este plano em que
vivemos. A mitologia discorre sobre as transformações que ocorreram aqui depois dessas
saídas primordiais, de baixo para cima, mas também mostra que, ao final ou durante,

245
alguns personagens retornaram para baixo, muitos continuaram vivendo aqui ou já estavam
aqui, e outros retornaram ou subiram pela primeira vez para o nível celeste. O quadro que
descreverei a seguir refere-se, portanto, ao mundo tal como é hoje, ou seja, depois das
transformações míticas, em que os personagens dos vários níveis vivem de acordo com as
conseqüências do que foi gerado naqueles tempos. O conhecimento profundo de como é a
vida atual nessas dimensões invisíveis pertence principalmente aos poucos xamãs
publicamente assumidos, aqueles que exercem o poder de cura e controlam a vida ritual na
Casa dos Homens 1 .
A divisão ternária básica do cosmo entre o Berahatxi, um nível subaquático (abaixo
dos leitos dos rios) e fechado, o Biu Wètyky, o nível celeste, igualmente fechado, e o
Ahana Òbira, o nível terrestre, aberto e amplo, já foi tratada em outros trabalhos 2 .
Interessa aqui mostrar que cada nível e seus habitantes só existem quando pensados em
relação aos outros e a um todo maior, principalmente porque a totalidade e cada parte
relacional são pensadas como corpos humanos, o que não foi explorado anteriormente.
Para isso é preciso relembrar ou adicionar as características principais de cada lugar e
refinar alguns conceitos. Òbira (“lado” [bira] do “rosto” [ò]) é a face lateral de uma
pessoa, entre as orelhas e a maçã do rosto, enquanto ahana tem o sentido de “fora”, de
modo que os humanos terrestres em geral são Ahana Òbira Mahãdu, ao pé da letra, “o
Povo com a Face de Fora” 3 . A humanidade é ainda Itya mahãdu, “o Povo do Meio”,
expressão também registrada por Taveira (1982). “O Povo do Meio” é um etnônimo
específico dos Karajá e Javaé, porque, entre outras coisas, o Ahana Òbira situa-se no meio
exato do cosmo, entre o nível celeste, acima, e o nível subaquático, abaixo.
Para se localizar espacialmente o nível subaquático, usa-se a expressão
wahetxiraworeny, “o que está dentro do que está embaixo de nós”, em que hetxi
(“nádegas”) associa-se ao que está “embaixo” e rawo refere-se a “dentro da cabeça/corpo”,
com sentido figurado de “dentro da terra” 4 . Ou seja, o espaço terrestre fechado que está

1
As informações sobre os mundos invisíveis que apresento neste item originaram-se, em sua maior parte, de
conversas feitas em 1997/8 com o mesmo xamã Javaé com o qual já havia trabalhado em 1990, de papel
destacado na Casa dos Homens de Canoanã e “dono” de muitos aruanãs ao longo da vida.
2
Ver Toral (1992) e Rodrigues (1993) sobre o cosmos Javaé; e Lipkind (1940). Donahue (1982), Toral
(1992), Lima Filho (1994) e Pétesch (2000) sobre o cosmos Karajá, que é estruturalmente semelhante, mas
contém algumas diferenças significativas, em especial a existência da Terra dos Ensangüentados, não
mencionada entre os Karajá.
3
Em Pétesch (2000:48), os humanos terrestres são simplesmente ahana mahãdu, os habitantes de fora ou do
espaço aberto.
4
Como será visto mais à frente, ra (cabeça) tem aqui o sentido geral de “corpo” também. Em outras
expressões, são as palavras ò (rosto/face) ou tyky (pele) que tomam o lugar do corpo inteiro.

246
abaixo do Ahana Òbira. Este espaço chama-se Berahatxi, “as nádegas (hetxi) do rio
(bero)”, em sentido literal, ou “o que está abaixo (do leito) do rio” 5 . Já o nível celeste, Biu
Wètyky (ou Biu Wèratyky), tem o sentido literal de “invólucro ou pele (tyky) da barriga
(wè) da chuva (biu)”, em que wètyky tem o sentido geral de “corpo”. Em outras palavras, o
espaço fechado que contém a chuva dentro de si é pensado como o “corpo da chuva”,
também chamado simplesmente de Biu (que é a “chuva” ou todo “espaço superior”: o teto,
a tampa, o avião, o alto de um prédio ou o Céu estão no Biu) 6 . Para localizar o Biu, diz-se
que está waratyareny, “no centro (tya) de nossas (wareny) cabeças (ra)”, no sentido de
que está acima dos seres humanos, mas ocupando o centro do espaço superior. Assim
como as nádegas associam-se ao que está embaixo, a cabeça associa-se ao que está em
cima. A posição exata e central do Biu no nível superior, em relação às cabeças/pessoas, é
o Biu tya (“meio do Biu”) ou Bèdè tya.
Os três níveis integram Butu Hãwa, “o mundo”, literalmente “o território da
totalidade” 7 , cujos limites são definidos e para além dos quais não há mais nada. Seus
limites são bèdè kõnana ou bèdè wèsi (“o fim do mundo”). Os limites externos do Biu e do
Berahatxi também são bèdè kõnana, porque eles coincidem com o fim do mundo total,
como pode ser visto no Desenho n° 1, ao lado, um dos vários mapas e desenhos feitos pelo
xamã Javaé 8 . Esse território total é concebido como um corpo humano, dotado de uma
passagem interna, por onde o Sol (Txuu) caminha. O Sol, com letra maiúscula, é o nome
de uma pessoa que usa o raheto, “cocar”, de cor vermelha, como o fogo (que no desenho
aparece nas duas extremidades do mundo), que Tanyxiwè conquistou do Rararesa (o
Urubu-Rei) para os humanos. Nas extremidades do mundo localizam-se uma entrada e
uma saída, por onde o Sol “entra” (Txuu rotena) e “sai” (Txuu òlòna), análogas à boca e ao
ânus 9 . São conceitos espaciais, referidos pela partícula na (“lugar”): o lugar de saída e o
lugar de entrada do Sol.

5
Pode-se dizer também que o Berahatxi está no bèdè, palavra polissêmica que tem o sentido de “mundo”,
“espaço”, “tempo” e também de “baixo” e “embaixo”, entre outros. Segundo Toral (1992:147), o nível
inferior cósmico é o Berahatxi webàro, “por trás das profundezas da água”, uma vez que se encontra abaixo
dos leitos dos rios ou lagoas.
6
Wètyky, “invólucro, pele ou corpo (tyky) da barriga (wè)” também tem o sentido geral de “corpo”, assim
como wèratyky, “invólucro, pele ou corpo (tyky) da cabeça (ra) da barriga (wè)”.
7
Hãwa é tanto uma “aldeia” quanto um território definido ao redor de uma aldeia, e butu é “tudo”, o “todo”.
8
Na cor azul estão as palavras escritas por mim durante a sessão de desenhos, o que vale para os dois
próximos mapas cósmicos. As outras palavras foram escritas pelo xamã.
9
Txuu rotena, “o lugar onde entra (rotena) o sol (txuu)”; txuu òlòna, “o lugar onde sai (òlòna) o sol (txuu)”.
Ver Toral (1992) para definição semelhante das mesmas expressões entre os Karajá, que descrevem a rota
solar como um círculo ao redor de 5 níveis cósmicos (o subaquático, o terrestre e três planos celestes).

247
Desenho n° 1: O Território da Totalidade

248
A estrada do Sol, que passa somente pelo Biu e pelo Berahatxi, como veremos (o
caminho em vermelho no mapa), é Txuu ryy, sendo que ryy tem tanto o sentido de “boca”
quanto “caminho”, porque a boca é pensada como o início do caminho da comida dentro
do corpo, o caminho cujo fim é o ânus. Os três níveis cósmicos possuem dois pés/pernas
(ti) cada um, de forma que os pés do nível inferior são também os pés do mundo todo 10 .
Em todos os três níveis existe a terra (suu) sobre a qual seus habitantes vivem. Suu era uma
pessoa antigamente, que foi transformada por Tanyxiwè na terra em que todos pisam, e por
isso os três níveis possuem pés/pernas atualmente 11 .
As passagens por onde o Sol entra ou sai são do mesmo tipo que as passagens que
os humanos subaquáticos usaram para ascender ao nível terrestre no início dos tempos (iny
òlòna). Não são túneis, apenas passagens entre os dois mundos, as mesmas por onde os
xamãs viajam para atingir as dimensões invisíveis e por onde passam os aruanãs, os outros
seres que participam dos rituais Javaé, e os que morrem e reencarnam. Todos esses
viajantes cósmicos, assim como o Sol, entram pelo Txuu rotena e saem no outro mundo
pelo Txuu òlòna, ou seja, quem vai do nível terrestre (ou do celeste) para o nível
subaquático, por exemplo, “entra” na passagem pelo oeste terrestre (Txuu rotena) e “sai”
no Fundo das Águas pelo leste deles (Txuu òlòna deles). E vice-versa. Enquanto territórios
definidos, todos os três são Hãwa (Biu Hãwa, Berahatxi Hãwa e Ahana Òbira Hãwa).
Como já foi dito, Biu Hãwa é o Biu wètyky do Ahana Òbira, ou seja, o nível celeste é o
corpo da chuva que cai no nível terrestre intermediário. A chuva que cai na terra e as
nuvens celestes (bèdè bina ou bèdè wètyky hèdà) saem pelos pés do Biu (Biu wètykyti).
De modo análogo, o Ahana Òbira é o Berahatxi Biu wètyky, ou seja, o nível
terrestre é o “Céu” dos que moram no nível subaquático. O nível terrestre é uma espécie de
teto do Berahatxi, também sendo pensado como um corpo (wètyky) ou invólucro da chuva
(e das nuvens) que cai no mundo subaquático, e que também sai pelos pés do Ahana
Òbira. Entre o nível celeste e o terrestre há um espaço vazio, representado no mapa. A
superfície do nível subaquático, por onde passa o caminho do Sol, está abaixo da água
(bèè) dos rios do nível terrestre, embora no desenho se tenha outra impressão, dada a
dificuldade que o xamã teve em expressar graficamente uma realidade, no mínimo,

10
Wati tem o sentido mais exato de “minhas pernas” (a parte entre os joelhos e os pés), embora o xamã que
me deu essas informações, cujo domínio do Português era relativamente precário, tenha traduzido ti como
“pés”. Ti também são os “ossos” e as “extremidades”, “pontas” ou “margem”, no sentido de “fim” (noção à
qual as pernas são associadas), de qualquer coisa.
11
O xamã mencionado deu essa informação, mas não coletei nenhum mito sobre a condição humana antiga
do nível terrestre.

249
tridimensional. Tudo que aparece em azul abaixo do Ahana Òbira Hãwa é a terra (suu) do
nível subaquático. Os seus habitantes, porém, moram apenas na superfície (ou margem
superior) desse ambiente, chamada Berahatxi ityti ou aõni sy (“casa ou residência dos
humanos mágicos”), representada no Desenho n° 2, que se refere apenas ao Berahatxi
Hãwa.
O lugar onde o Sol se põe (Txuu rotena) no nível terrestre é conhecido também
como bèdè bòrò, “as costas do tempo, lugar ou mundo”, o que tem relação com a palavra
wabèdè (“meu mundo, tempo ou lugar”), usada para designar os cemitérios. Toral
(1992:57) traduz “wabàdè” como “o lado/lugar dos meus ascendentes nessa terra”,
referindo-se ao lugar específico dos mortos de cada aldeia. Em outro trabalho (Rodrigues,
1993), mostro que os cemitérios Javaé tendem a ser situar na direção oeste das aldeias, de
modo que bèdè bòrò seria “as costas (no sentido de ‘atrás’) do cemitério (bèdè)”, o que
coincide sempre com o lugar onde o Sol se põe (Txuu rotena). Nas aldeias Karajá da Ilha
do Bananal, os cemitérios estão em lugares altos ao longo do Rio Araguaia (Donahue,
1982), pois este é o lado oeste das aldeias, diferentemente das aldeias Javaé, em que o
oeste muitas vezes coincide com o “lado do mato”, oposto à margem do Rio Javaés. O
lugar onde o Sol surge (Txuu òlòna), por sua vez, chama-se também biura (“céu ou chuva
branca”), um outro conceito para o “leste”, o que tem relação com o fato do Céu ser a
origem do Sol e da claridade no mito em que Tanyxiwè conquista o Sol do Urubu-Rei
celeste 12 . Biura (leste) e bèdè bòrò (oeste) são, junto com as noções de rio acima (ibòkò) e
rio abaixo (iraru), as mais importantes referências espaciais Javaé, cujos significados mais
amplos serão retomados.
A trilha do Sol situa-se na superfície do nível subaquático e do nível celeste. Os
desenhos n° 2 e n° 3 (ao lado) representam o nível subaquático e o celeste,
respectivamente. Cada um deles aparece subdividido em inúmeras hãwa, que são os
territórios de seus habitantes (aruanãs e heróis criadores em sua maioria). Quando o Sol
caminha pelo Céu (a trilha azul do Desenho n° 3), ele ilumina o nível celeste e o nível
terrestre ao mesmo tempo, pois há apenas um espaço vazio entre ambos. Segundo os
Karajá (Lima Filho, 1994), os habitantes celestes enxergam os humanos terrestres.

12
O que foi lembrado por Manuel Lima Filho em comunicação oral. Biura pode ser traduzido também como
“cabeça (ra) do Céu (Biu)”, uma vez que a cabeça de algo é associada simbolicamente ao que está no “início”
de algo, como veremos adiante. O leste seria o começo do Céu, portanto, ou da trajetória do Sol pelo Céu.

250
Desenho n° 2: O Fundo das Águas

251
Desenho n° 3: O Céu

252
O Sol que surge a leste, do ponto de vista dos humanos terrestres, é o mesmo Sol
que está começando a sua caminhada no Biu (Céu), como pode ser visto no Desenho n° 1
(que tem o ponto de vista dos humanos terrestres, por isso o Txuu òlòna que aparece no
mapa é o leste terrestre e celeste), no sentido òlòna para rotena. Quando o Sol faz essa
caminhada celeste, o nível terrestre e o Céu ficam iluminados, mas o nível subaquático,
imediatamente abaixo do nível terrestre, permanece escuro, pois este último impede que a
luz chegue até lá.
Enquanto é dia na terra ou no Céu, por exemplo, o ponto intermediário exato do
caminho do Sol corresponde ao meio-dia (Txuu tya, “o meio do Sol”); o mesmo momento,
no Fundo das Águas, é o “meio” ou “centro” da noite (ruwè tya), o seja, a meia-noite do
nível abaixo das águas, e vice-versa. A estrada celeste do Sol (Txuu ryy) durante a noite
corresponde à Via Láctea que os humanos terrestres vêem. Ao “entrar” a oeste, do ponto
de vista terrestre, o Sol está “surgindo” a leste, do ponto de vista dos moradores do
Berahatxi. Ou seja, ao se pôr aqui, o Sol nasce lá, o Txuu rotena do Céu e da terra são o
Txuu òlòna do Fundo das Águas e vice-versa, visão compartilhada pelos Karajá, segundo
Lipkind (1940), Toral (1992) e Lima Filho (1994). O xamã que me deu essas informações
comparou os habitantes do Berahatxi aos japoneses, que vivem no escuro enquanto no
Brasil é dia e vice-versa.
A utilização da palavra Txuu rotena (“lugar de entrada do Sol”) para o oeste e Txuu
òlòna (“lugar de saída do Sol”) para leste revela que o caminho do Sol só é pensado pelos
humanos terrestres (ou celestes) em sua relação com os humanos das profundezas
aquáticas e vice-versa: pois o leste, se o ponto de vista terrestre fosse autocentrado, não é
onde o Sol sai, mas onde a luz do Sol entra no Ahana Òbira, assim como o oeste não
deveria ser onde o Sol entra, mas onde o Sol sai do nível terrestre. Só tem sentido chamar
o oeste de “entrada” do Sol a partir de um ponto de vista relacional, em que os humanos do
nível terrestre e celeste só se pensam através da relação com os humanos do mundo
inferior e vice-versa. Os Javaé são o “Povo do Meio” porque o ponto de vista deles não
está de um lado ou outro, mas na relação entre os extremos, o equivalente do meio.
A escatologia nativa já foi apresentada em maior profundidade antes (Toral, 1992,
Rodrigues, 1993) e será brevemente resumida aqui em sua relação com os níveis cósmicos.
Em um primeiro momento, durante o período do luto, aproximadamente, todos que
morrem passam por uma desintegração da pessoa, formada pela parte visível que se chama
tykytyhy (“pele de verdade”) e pela parte invisível chamada tykytyby (“pele velha”), dois

253
conceitos que não se reduzem ao nosso par “corpo” e “alma”, como veremos adiante. A
“pele velha” torna-se um kuni, o ser que se transforma em um completo estranho e não
mais conhece seus antigos parentes, perseguindo e aterrorizando todos os vivos à noite. O
kuni é um solitário errante que sofre muito e movimenta-se sem parar em desespero,
excessivamente carente de alimentos e afeto. Ele é considerado um canibal em potencial,
especialmente dos próprios parentes, que o temem profundamente e se utilizam de alguns
procedimentos, em alguns casos ajudados pelo xamã, para mantê-lo afastado de suas casas
(ver Lipkind, 1940). Segundo Aytai (1983b), entre os vários procedimentos de proteção
utilizados pelos Karajá inclui-se o de não pronunciar o nome do morto. Toral (1992:143)
refere-se ao estado de privações e perigos dos “tyytyby”, que comem “porcarias”, passam
frio e têm saudades dos parentes vivos.
Enquanto o kuni anda pela aldeia à noite, a “pele de verdade” passa por uma série
de provações quando chega ao wabèdè, o cemitério invisível situado do lado oeste das
aldeias. Não há menção ao conceito de “pele de verdade” em outras etnografias sobre os
Karajá e Javaé. A “pele de verdade” é maltratada pelos mortos (worosy) do wabèdè, sendo
obrigada a comer comidas estragadas, água podre, apanhar, lutar. O morto é levado pelos
worosy para o lado iraru (rio abaixo), “onde é afogado, obrigado a comer lesmas, leva
surras, bebe água suja etc (Rodrigues, 1993:390). A pessoa não sabe que morreu e precisa
ser convencida pelos outros, que mostram a ele o próprio corpo em decomposição. Com o
fim do luto, a pessoa pode seguir para diferentes destinos e deixar de ser kuni, dependendo
de como foi a sua morte e dos acordos que seus parentes fizeram com os xamãs, os
condutores dos mortos. Seu destino depende também do “conselho secreto” dos xamãs e
worosy, os mortos que já não são mais kuni, que se reúne sempre que alguém morre.
Segundo Donahue (1982), entre os Karajá a “pele velha” não mais existe após a morte e o
kuni do morto vive na aldeia que existe abaixo do cemitério. Para Pétesch (2000:57), a
“pele velha” é um “duplo” do indivíduo, a “imagem corporal” que desaparece após o
último suspiro, enquanto o kuni perigoso é um prolongamento dela.
A palavra worosy tem mais de um sentido entre os Javaé: pode ser os “mortos” em
geral, que são os wabèdè worosy ou rubu mahãdu, “o grupo dos mortos”; uma classe de
humanos subaquáticos que participa do ritual de iniciação masculina e é conhecida também
como aõni aõni; e, por fim, sempre que os homens estão reunidos na Casa dos Homens,
diz-se que eles estão na condição de worosy 13 , o que remete a um mito a ser narrado no

13
Ver Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

254
Capítulo 7. Literalmente, woro quer dizer “claridade, luz acesa”, mas uma claridade
intermediária entre a luz solar e a escuridão, como o farol baixo de um carro, segundo um
Javaé, que é referido por iworosy, palavra que pode ser usada também para se referir a
quem tem uma voz fraca. Sy quer dizer “casa” ou “parente”, de modo que worosy seria
“parente com pouca claridade” ou “parente com a luz fraca”. Um Javaé traduziu worosy
como “o parente cuja luz está se apagando”, ou seja, que morreu, o que foi confirmado por
outro, o qual acrescentou que o sentido da palavra tem a ver também com o fato de que os
worosy vivem em um mundo de pouca luz, procurando pela claridade que nunca
encontram. Toral (1992:213) escreve que os “tyytyby” das pessoas comuns tornam-se kuni,
em caso de “morte violenta”, ou “worosy”, em caso de morte causada por “feitiço”. Em
ambos os casos, viveriam na “superfície da terra”.
O lugar onde o Sol se põe é associado aos lugares escuros e invisíveis que existem
abaixo do cemitério, para onde vão os que morreram enfeitiçados ou assassinados. O
wabèdè é dividido ao meio pelo “Rio dos Mortos” (Rubuo mahãdu Bero), entre o wabèdè
propriamente dito, para onde vão os que morreram enfeitiçados, e a “Terra dos
Ensangüentados” (Hure mahãdu Hãwa), para onde vão os que morreram “assassinados”
(hure), ou seja, os que morreram “perdendo sangue”. Dependendo do que foi decidido no
conselho secreto, os que morreram enfeitiçados (o que inclui todos, com exceção dos
assassinados) podem permanecer no próprio wabèdè, transformados em worosy, ou podem
ir para o nível subaquático ou para o nível celeste, onde permanecerão na condição de
“pele velha”. Todos os mortos podem, em algum momento, ser trazidos de volta pelos
xamãs na condição de “pele velha” das novas crianças que nascem. Os assassinados,
excepcionalmente, não têm outra opção a não ser permanecer como kuni eternamente na
Terra dos Ensangüentados.
Os que permanecem como worosy vivem separados da Terra dos Ensangüentados e
encontram condições difíceis de vida. Os feitiços (doenças) que causaram sua morte não os
abandonam, tornando o cemitério um lugar contaminado para os vivos que visitam os
túmulos dos parentes, que devem se lavar a seguir. O ambiente é escuro, a comida é podre,
coberta de vermes, a água é suja e amarelada, a roça não produz quase nada, os worosy têm
que trabalhar para comer, mas mesmo assim passam fome e sede. Os objetos de uso
cotidiano são cheios de furos e quebradiços, o chão é enlameado, fezes espalham-se por
todos os lados, o fogo é escasso, a terra não tem consistência, a comida é pouco cozida,
existem brigas e fofocas, a água da chuva é quente. Existem muitas arraias, cobras e

255
piranhas, que atacam os habitantes quando vão caçar e pescar com as próprias mãos. Os
que morrem perdendo sangue, perdendo energia vital ou de corpos abertos, a pior morte de
todas, perpetuam esse estado posteriormente na Terra dos Ensangüentados, o pior dos
infernos. Eles são enterrados com a face virada para o lado onde o Sol se põe, como entre
os Karajá (Donahue, 1982, Lima Filho, 1994). Pétesch (2000:58) revela que, “na etiologia
Karajá”, as doenças hemorrágicas são atribuídas à ação deletéria dos kuni.
Os que assim morreram permanecem como kuni ensangüentados eternamente, pois
as feridas nunca cicatrizam e o sangue jorra sem parar de seus corpos. Todo o sofrimento
descrito para o wabèdè é acentuado de forma extremada na Terra dos Ensangüentados,
onde todos são absolutamente estranhos entre si, não havendo qualquer tipo de relação de
parentesco entre as pessoas. Os habitantes dessa terra de horrores sofrem e choram
constantemente, acentuando as perdas energéticas, e andam sem parar à procura dos
parentes que nunca encontram. A fofoca é exacerbada, as pessoas vivem em permanente
conflito (lutam fisicamente e agridem-se oralmente), os bens disponíveis são imprestáveis,
a água é vermelha, não existe fogo, a carne é crua, não existe roça, bebe-se sangue
humano, a água da chuva é fervente e queima o corpo das pessoas, embora o lugar seja frio
e escuro. É um lugar poluído, pois o sangue de todos está misturado, de carências extremas
e tempo acelerado, associado aos fluxos intensos de substâncias corporais exteriorizadas.
Não há na literatura sobre os Karajá nenhuma referência à Terra dos Ensangüentados,
associada ao oeste e à descida ao nível inferior. Tal ausência tem repercussões importantes
na construção do modelo cosmológico feito por Pétesch (2000), como veremos.
Os mortos que vão para o Fundo das Águas ou para o nível celeste transformam-se
em “pele velha”. Para o Fundo das Águas vão especificamente os que morreram
rubuoraruna (ver Rodrigues, 1993), ou seja, os que cometeram alguma infração ritual na
Dança dos Aruanãs (cair, tropeçar, tossir etc), denunciando ao público o grande segredo da
coletividade masculina: que os aruanãs mascarados não são os verdadeiros aruanãs
mágicos do fundo dos rios, mas apenas os humanos mortais mascarados terrestres (ver
Toral, 1992, sobre o mesmo entre os Karajá). Os que ficam rubuoraruna (“o começo da
morte”) estão “marcados para morrer” enfeitiçados pelo xamã, como punição por suas
infrações. Os que moram no Fundo das Águas são todos parentes entre si e não têm
relações sexuais. Quando alguém quer algo (comida ou filhos), basta falar e o desejo se
realiza. Os moradores usam os enfeites e pinturas tradicionais, comem caça e peixe, mas
não conhecem os produtos agrícolas. A água não é totalmente transparente, as carnes não

256
são muito cozidas, não há brigas ou fofocas nem feitiços-doenças. O ambiente é um pouco
escuro e menos quente que o Céu, embora seja mais fresco ou frio que o plano terrestre, e
existe lama até a altura dos tornozelos. Toral (1992) descreve o Fundo das Águas como um
ambiente frio em que a água brota do chão.
Os xamãs e seus parentes (como em Toral, 1992), e não só os xamãs 14 , podem
deixar a condição de kuni e ascender para o nível celeste. Repetindo o que ocorre entre os
Karajá, os que não morreram perdendo sangue, “a boa morte” (Lima Filho, 1994:120), são
enterrados com o rosto virado para o leste (ver Pétesch, 2000), enquanto os que morrem de
forma violenta (ou perdendo sangue, entre os Javaé) são enterrados com o rosto virado
para oeste 15 . No Céu vivem os heróis criadores originais, para onde todos os vivos desejam
ir depois de mortos. É o lugar da abundância, da juventude e beleza eternas, do estatismo
espacial e temporal, da reprodução mágica, dos corpos fechados e belamente adornados. O
Biu Mahãdu (Povo do Céu) vive em plenitude total, não precisa trabalhar, realiza todos os
desejos magicamente (seja para comer ou ter filhos), não tem dívidas a pagar nem conhece
qualquer tipo de alteridade (afins, esposas, estrangeiros), pois todos são parentes entre si.
A comida é bem cozida e farta, as pessoas não fazem fofoca e não brigam jamais. O
ambiente é quente e muito claro, de onde se enxerga qualquer lugar, pois está perto do Sol,
e as pessoas estão sempre dançando e alegres, morando em suas casas ao estilo
tradicional 16 .
Em vários momentos importantes da vida, as pessoas devem ficar com o
corpo/rosto virados para o leste, de forma a se conectar com as emanações positivas desse
pólo espacial e temporal desejado (pois o contrário é bèrèbuna, “faz mal”): a “Casa
Grande” (Hetohoky) do ritual de iniciação masculina é construída com sua face principal
virada para o leste, os aruanãs são alimentados dentro da Casa dos Homens com a face em
direção ao leste, os meninos a serem iniciados sentam-se no terreiro masculino virados

14
Como em Lipkind (1940, 1948), Donahue (1982), Lima Filho (1994) e Pétesch (2000).
15
Destoando um pouco dos outros etnógrafos, Aytai (1983b) informa que, segundo ouviu em Aruanã, são
enterrados olhando para o leste os que tiveram “morte normal” (de costas) e os que tiveram “morte violenta”
(de bruços); e, olhando para o oeste, os feiticeiros que tiveram “morte normal” (de costas) e “morte violenta”
(de bruços).
16
Tanto Lima Filho (1994) quanto Pétesch (2000) diferenciam os worosy anônimos dos kuni
individualizados. A esta diferença, Pétesch (2000:58) sobrepõe a oposição entre o destino “maléfico” dos
kuni e o “benéfico” dos “woràsã”, baseada nas circunstâncias da morte e a realização ou não do ritual
funerário correto: os que morreram “a sós”, sem os funerais, ou “no sangue”, as piores mortes, permanecem
como kuni no nível terrestre, junto aos aõni, uma espécie de “regressão ontológica” da pessoa; os “woràsã”
são a transformação posterior dos kuni que receberam o tratamento funerário adequado, morando no Fundo
das Águas ou do Céu. Entre os Javaé, o conceito de worosy, em sua acepção de “morto”, é mais comumente
associado aos que vivem sofrendo abaixo do cemitério.

257
para o leste e assim estão quando o mascarado latèni vem levantá-los no ar, na casa de
suas mães. A casca de jatobá ou tamboril que será utilizada em uma infusão que ajuda os
jovens a crescer durante o ritual de iniciação deve ser tirada do lado da árvore que está
virado para o leste. E na mesma posição devem ficar todos que dormem à noite, os aruanãs
que flecham os aõni em uma parte importante da Dança dos Aruanãs, os noivos que
ouvem os conselhos dos parentes e as crianças que recebem a saliva (contendo o dom da
voz poderosa) das grandes cantoras, entre outros exemplos. No alto Xingu, segundo
Agostinho (1974:49), há um tipo de sepultura que é alinhada no sentido leste/oeste, o
morto também é enterrado “olhando para o nascente, para que veja surgir o sol todo os
dias”, e diversas cerimônias funerárias são realizadas com seus participantes virados para o
leste.
No que se refere ao destino escatológico, a Terra dos Ensangüentados e o Céu são
os extremos máximos, no meio dos quais situa-se o nível terrestre, onde se faz a mediação
entre um mundo só de outros e um mundo sem outros. Para muitos grupos indígenas, o
destino após a morte é único e opõe-se à vida em sociedade, como entre os Kraho
(Carneiro da Cunha, 1978) ou os Piaroa (Overing, 1984). No caso Javaé, o destino dos
mortos divide-se em pelo menos duas esferas não-sociais, ambas marcadas pela não-
reciprocidade: um mundo só de outros, repudiado, e um mundo sem outros, desejado.
Como veremos, o primeiro associa-se aos corpos abertos, que perdem substâncias sem
nenhum controle, como os que morreram ensangüentados; e o segundo aos corpos
fechados, aqueles que não têm qualquer tipo de relação física entre si. Em termos de
localização espacial, o destino desejado (Biu) associa-se ao leste, enquanto o repudiado
(wabèdè) está claramente associado ao oeste. Entre os dois extremos há uma gradação
entre o perfeito e o terrível, em que o nível subaquático é uma espécie de paraíso
imperfeito, pois lá tudo (comida, ambiente, os habitantes etc) é menos perfeito que no Céu;
e o wabèdè propriamente dito é um inferno não tão ruim quanto a Terra dos
Ensangüentados.
Em meu trabalho anterior (Rodrigues, 1993), propus que, em termos de conteúdo, o
nível terrestre estaria em uma posição intermediária entre o nível celeste e o nível
subaquático, de um lado, e os dois locais do wabèdè, de outro. Também reconhecia que,
em termos de localização espacial, essa proposta era problemática, uma vez que Céu (em
cima) e Fundo das Águas (embaixo) opõem-se claramente, estando o nível terrestre entre
ambos. Agora, à luz de novos dados e de uma compreensão mais profunda, percebo que a

258
localização espacial reflete, de fato, o que os Javaé pensam quanto ao conteúdo simbólico
dos níveis cosmológicos. A oposição a que estão se referindo não é entre um paraíso
perfeito (Biu) e um imperfeito (Berahatxi), de um lado, e os destinos temidos de outro,
como eu pensava, mas entre um paraíso perfeito (Biu), simplesmente, e todos os outros
lugares menos perfeitos ou terríveis (Berahatxi e o wabèdè).
O nível subaquático (Berahatxi) é a origem ancestral e um mundo sem mortes e
sem outros, para onde alguns dos primeiros humanos que saíram debaixo resolveram
retornar após encontrar a morte aqui (como Koboi). Mas não é tão pleno quando o celeste,
como será retomado logo adiante. Afinal, não há nenhum desejo ou curiosidade pelo
diferente onde tudo é perfeito: foram os humanos aquáticos (e não os celestes) que
decidiram ascender ao nível terrestre porque aqui havia comidas mais gostosas, o espaço
era amplo e, principalmente, havia a luz do Sol que eles não conheciam. A subida mítica
primordial revela algum tipo de insatisfação com a vida no Fundo das Águas, um desejo de
conhecer o outro ou o novo. E desejos, como se sabe, só existem onde há carências.
Enquanto um plano de carências, ainda que mínimas, quando comparadas ao wabèdè, o
nível subaquático opõe-se à abundância e plenitude do nível celeste, situando-se
simbolicamente junto com os destinos escatológicos repudiados, embora haja grandes
diferenças gradativas entre eles.
Quanto à localização espacial, os novos dados também mostram que o nível
subaquático e o wabèdè (nível inferior) situam-se no extremo oposto ao nível celeste (nível
superior). Agora se sabe que a passagem que os xamãs, aruanãs, aõni ou mortos usam para
chegar ao Fundo das Águas ou ao nível subterrâneo invisível é a mesma passagem que o
Sol utiliza para “entrar” (Txuu rotena) no mundo de baixo. O oeste terrestre (que coincide
com o oeste celeste) é a entrada para os mundos que estão abaixo, de modo que ir para
oeste é ir para baixo também (ver Desenho n° 1). O Sol e todos que morrem,
transformando-se em kuni, deslocam-se em um primeiro momento para o oeste e para
baixo (onde está o wabèdè). A ligação entre o oeste e a morte é feita também pela
expressão que se refere ao instante em que o Sol está próximo de desaparecer no horizonte,
por volta das 5 da tarde. Bèdètyky rurunymy, traduzida antes por um Javaé como “o mundo
escurecendo” (Rodrigues, 1993:89), tem o sentido literal mais próximo de “a morte (ruru)
do corpo (tyky) do tempo, lugar ou mundo (bèdè)”.
Creio que o “corpo” ou “mundo” mencionado é o próprio nível terrestre, uma vez
que a escuridão, em graus diversos, é associada à morte ou aos mundos inferiores dos

259
mortos que sofrem, em oposição à claridade da vida eterna no nível celeste. Aqueles que
morrem também encontram a escuridão, em um primeiro momento. O mundo dos worosy e
dos kuni é mais escuro 17 e os kuni só andam pelas aldeias perseguindo os parentes à noite.
Afinal, foi para conhecer a claridade do Sol, também, que o povo do nível subaquático
resolveu ascender ao nível terrestre, como conta o mito. Do mesmo modo, ao inverso, o
leste associa-se ao “nascimento” do Sol ou daqueles que reencarnam, uma vez que o
momento do surgimento do Sol no horizonte é Txuu ijara, “o Sol nasceu” 18 .
Segue-se então que tudo que está abaixo do nível terrestre visível (como o wabèdè
ou o nível subaquático), embora haja gradações de distância (assim como de conteúdo)
entre eles, está, de algum modo, a oeste, ou seja, para além da passagem onde o Sol entra.
Pois sempre que o Sol entra, do ponto de vista terrestre, ele já está, ao mesmo tempo,
descendo para os mundos inferiores, não havendo, portanto, distinção espacial entre o
oeste e o abaixo. Mas é importante enfatizar, pois será importante mais à frente, que o que
está “abaixo”, o nível inferior, tem diferentes conteúdos simbólicos, diversamente ao que
está acima, que se define como um único Céu paradisíaco. O nível inferior é tanto o
paraíso imperfeito de onde os humanos surgiram (o nível subaquático) quanto o destino
terrível de todos, em um primeiro momento, após a morte (wabèdè), contendo uma
duplicidade de significados não existente no nível celeste e que será retomada adiante.
Por outro lado, do ponto de vista terrestre, quando o Sol surge do Fundo das Águas
(de baixo e a leste), está indo em direção ao Céu (para cima), de modo que ir para o leste
equivale a ir para cima (o Céu). Assim, o caminho a leste possibilita a ascensão celeste do
Sol ou de qualquer outro viajante cósmico. Dito de outro modo, do ponto de vista dos
humanos terrestres, a ascensão dos que vêm de baixo ou dos que vão para cima é sempre
pelo leste, enquanto a descida dos que vêm de cima ou dos que vão para baixo é sempre
pelo oeste terrestre. O que explica o porquê dos mortos que desejam ascender ao Céu
serem sempre enterrados com a face para o leste, em oposição aos ensangüentados, que
têm o rosto virado para o oeste. Deste modo dissolve-se a contradição aparente entre um

17
Toral (1992), Lima Filho, (1994), Rodrigues (1993).
18
Carneiro da Cunha (1987b:74) diz que os Krahó costumam localizar a única aldeia dos mekarõ (o que
sobrevive após a morte) “no khoikwa-yihôt”, literalmente o ‘fim do céu’, isto é, o ocidente, onde o Sol se
põe”. Entre os mortos, apesar de mantida a vida cerimonial, não existe mudança e “a afinidade é esquecida: é
o reino da consangüinidade, o paraíso perdido, o estar entre si”. Mas a sociedade dos mortos sofre uma
contínua “involução”, em que as imagens dos mortos tornam-se imagens de animais, levando à conclusão
que “uma sociedade sem aliança é inviável, leva ao estado de natureza (...)” (Carneiro da Cunha, 1987b:79).
A única aldeia dos mortos Krahó, em sua oposição aos vivos, parece concentrar as polaridades que os Javaé
localizam em dois extremos opostos: é ao mesmo tempo o “estar entre si” desejável e a involução
indesejável.

260
eixo vertical (abaixo/em cima) e um horizontal (leste/oeste). Na verdade não existem dois
eixos espaciais opostos, mas um só, constituído de um centro terrestre visível (Ahana
Òbira) entre dois opostos hierarquicamente assimétricos (nível inferior/ descida/ oeste x
nível superior/ ascensão/ leste).
Esta é uma importante diferenciação, com base etnográfica, do modelo dualista
proposto por Pétesch (1987, 1993a, 2000), baseado na distinção Karajá entre um dualismo
vertical assimétrico (acima/superior e abaixo/inferior), de tendência centrífuga, e um
dualismo horizontal diametral (leste x oeste, espaço masculino x espaço feminino), de
tendência centrípeta. O eixo horizontal é representado por um círculo fechado, enquanto no
eixo vertical a divisão ternária (nível subaquático, terrestre e celeste) torna-se um dualismo
triádico: o nível intermediário opõe-se aos dois extremos, como um ponto/centro paralelo a
uma reta. Para a autora, o nível celeste e o subaquático seriam, apesar da assimetria de
status (superior e inferior), associada nos rituais ao critério de idade (mais velho e mais
novo), essencialmente semelhantes quanto à sua natureza última: ambos representam a
identidade cósmica aquática inalterada (lugares fechados, estáticos e imortais), em
oposição à alteridade terrestre transformadora do nível intermediário (aberto, dinâmico e
mortal). A subida ao Céu seria equivalente a uma volta ao Fundo das Águas, de modo que
nível celeste e subaquático opõem-se ao nível terrestre. Dietschy (1978), na década de 60,
mencionou a relação dialética entre um triadismo (baseado na existência de três subgrupos
rituais) e um dualismo (baseado na oposição de um dos grupos aos outros dois). Schiel
(2005), mais recentemente, reinterpreta os dados das outras etnografias propondo uma
relação não muito clara entre um triadismo sociológico e um dualismo concêntrico
(interior/exterior) 19 .
Não há nenhum registro etnográfico sobre a Terra dos Ensangüentados entre os
Karajá, mas isso não significa necessariamente que não exista tal conceito entre eles. A
literatura revela que o kuni (ou os espectros que perseguem os vivos à noite) é aquele que
sofreu “morte violenta” 20 ou uma “morte má” – “afogado, a facadas, suicídio, a tiros, por
brigas” (Lima Filho, 1994:120). E que a “morte no sangue” e “morrer só” são as piores de
todas (Pétesch, 2000:58). Na falta de uma Terra dos Ensangüentados, é mais difícil
19
A partir de um ponto de vista Karajá, Pétesch (2000:53-54) propõe a existência de uma “hierarquização
intra-étnica” associada a essas distinções cosmológicas e espaciais: os Karajá (habitantes do rio cima) e os
Xambioá (habitantes do rio abaixo) teriam uma maior proximidade cultural e espacial (como moradores do
rio) e, portanto, uma identidade mais “aquática”. Os dois estariam em oposição aos Javaé, que teriam uma
identidade mais “terrestre”, pois são chamados pelo mesmo termo que designa os estrangeiros (ixyju) e estão
mais distantes culturalmente e espacialmente (moradores do interior da Ilha do Bananal).
20
Toral (1992:143), Lipkind (1940, 1948), Aytai (1986).

261
visualizar que o nível inferior, que contém em si tanto a origem ancestral como os corpos
abertos dos que morreram ensangüentados, opõe-se ao nível superior dos corpos fechados.
E que o centro se distingue das duas polaridades. Tem-se uma concepção verdadeiramente
ternária (um centro original entre dois extremos diferentes) entre os Javaé e não o dualismo
triádico (um centro oposto a dois extremos semelhantes) que Pétesch (2000) propôs para os
Karajá. Como veremos neste e no próximo capítulo, no caso Javaé não se pode falar de um
eixo vertical oposto a um eixo horizontal, ambos dualistas em sua essência, mas de um
único eixo corporal ternário, em que o meio é realmente distinto das duas extremidades
que se opõem 21 .
Resta ainda contemplar a importante orientação espacial baseada na oposição entre
ibòkò (rio acima) e iraru (rio abaixo), extremos associados às metades cerimoniais Saura
(macaco) e Hiretu (gavião), respectivamente. Foi somente após a análise etimológica
dessas palavras que sua significação simbólica alcançou uma complexidade bem maior, até
então desconsiderada. I refere-se ao que é “dele”, e raru tem o sentido metafórico de “raiz”
(iraru, “raízes dele”), que deriva de uma analogia com as coxas de uma pessoa, pois ru
pode ser as “coxas” (waru, “minhas coxas”) e também o “ânus”. As raízes de uma planta
são o que estão para baixo dela, assim como as coxas e o ânus de uma pessoa (se a cabeça
for tomada como referência do que está em cima). Wararu (“minhas nádegas/coxas”) pode
se referir às nádegas e coxas de uma pessoa sentada, como se ela estivesse enraizada no
chão.
Ira é “cabeça dele”, mas pode ter o sentido geral de “corpo dele”, uma vez que
tanto ò (face) quanto ra (cabeça), como já foi dito, muitas vezes substituem a noção de
corpo nas expressões. Assim, iraru é algo como as “coxas do corpo dele”, no sentido que
são a parte de baixo do corpo de alguém, assim como as raízes de uma planta são o que
está abaixo dela. As coxas são o que estão “abaixo” porque o corpo humano, assim como o
cosmo, é pensado como uma totalidade tripartida: tanto a wè (a parte externa da barriga)
quanto o wo (o que está dentro da barriga) são considerados como iny tya ou umy tya, o
“meio ou centro (tya) do corpo (umy) dos seres humanos (iny)”. A wè (barriga) é o centro

21
Lima Filho (1994:151) utiliza alguns argumentos etnográficos para questionar a identificação entre o nível
celeste e o subaquático feita pela autora, que para ele seria apenas “relativa”. Entre eles, a idéia de que o
nível celeste seria um espaço fechado e apertado, uma vez que o Céu Karajá, segundo dados do autor, é um
lugar de grandes espaços e as aldeias celestes são muito mais afastadas entre si do que no nível subaquático.

262
corporal, associado simbolicamente ao nível terrestre, situado entre dois opostos
assimétricos, a cabeça (nível celeste, acima) e as pernas/pés (nível subaquático, abaixo) 22 .
A palavra ibòkò, traduzida geralmente como “rio acima”, também é reveladora. Ò,
como já foi dito, é “face” ou “rosto”. Bò é uma palavra mais antiga, e agora pouco usada,
que significa “cor branca” (referida mais comumente pelo termo ura), e que se aplica aos
tubérculos ou frutas verdes, que não amadureceram ainda, ou seja, que ainda estão no
começo de suas vidas. É uma palavra aplicada também às crianças recém-nascidas: a
expressão tohokuy ibòmy roirèri, por exemplo, refere-se ao bebê (tohokuy) ainda muito
novo (ibòmy) que está deitado (roirèri), e que por isso se deve segurar com cuidado. Ibòkò
seria, mais ou menos, “o rosto ainda não maduro ou branco dele”, ou seja, refere-se a um
rosto (ou corpo) em seu estágio inicial de vida. A cor branca surge associada ao que está
em um estágio inicial, “não maduro”, ou o que não foi transformado ainda, ou seja, o
começo de algo. Como já vimos antes, as cabeças (e rostos) situam-se simbolicamente
junto com os “começos”, em oposição às pernas e pés, situadas nos “fins”, de modo que há
uma dupla associação da palavra ibòkò com o começo de algo, mais especificamente, o
começo de um rio.
Por outro lado, sabe-se também que as cabeças/rostos simbolizam o que está em
cima, em oposição às pernas e pés, símbolo do que está em baixo, não sendo difícil
concluir que o que está em cima é também o que está no começo, e que o que está em
baixo é também o que está no fim de algo. Tal associação é corroborada pelo fato de que a
cabeça (ra), onde se situa rosto ou face (ò) e que está “em cima”, também tem seu
significado ligado ao começo de algo: por exemplo, as músicas do tipo iranyky, que eram
do povo de Tòlòra, cantadas até alguns anos atrás, eram músicas lentas que anunciavam o
começo das danças, começo este referido pela palavra ra. Há então a possibilidade de que
o começo de um rio, ao ser pensado como algo que está acima, esteja associado ao nível
celeste. Essa hipótese é confirmada na medida em que o leste, ligado simbolicamente ao
Céu (Biu), que está acima, é referido pela palavra biura (“céu branco”), e o sentido rio
acima, referido por uma palavra que contém a partícula ibò, contém a noção de “branco”
também. Lima Filho (1994:111) enfatiza o maior valor do “lado de onde o rio vem
descendo”, que “pode ser interpretado também como o lado de onde o sol nasce”.

22
Pétesch (2000) observa que o hitxekò, um artefato de madeira trabalhado artisticamente, colocado nas
extremidades do túmulo do morto Karajá (um na cabeça e outro nos pés), é pensado como uma representação
do corpo humano tripartido (cabeça, meio e pernas).

263
Então, pode-se dizer que, assim como o que está rio abaixo tem a ver com o que
está em baixo e no fim (as pernas), aquilo que está rio acima tem a ver com o que está
acima e no começo (o rosto, a cabeça). Dito de outro modo, quanto mais alguém se desloca
no sentido rio acima, mais próxima esta pessoa estaria do leste e da passagem para o nível
celeste; e quanto mais se desloca no sentido rio abaixo, mais próxima estaria do oeste e da
passagem para o nível inferior. Do ponto de vista terrestre, o leste, onde o Sol “surge”, é
realmente o início da caminhada do Sol pelo nível celeste, enquanto o oeste, onde o Sol
“entra”, é o fim da sua jornada. Ao que parece, o início do caminho do Sol (no Céu) é
pensado também como o início do caminho do rio (na terra), assim como o fim do caminho
solar celeste coincide com o fim do caminho do rio no nível terrestre. O rio em questão,
claro, é o Araguaia, o grande rio do território Karajá e Javaé.
Teríamos então uma associação entre o leste, a nascente do rio (sul), o nível celeste
(ou o que está acima) e a cabeça/rosto de um corpo (entre o ibòkò, o biura e o Biu). No
outro extremo, hierarquicamente inferior, entre o oeste, o fim do rio (norte), o nível
subaquático (ou tudo que está embaixo) e as pernas/pés de uma pessoa (entre o iraru, o
bèdè bòrò e o Berahatxi). De modo que o eixo horizontal sul/norte (que coincide com rio
acima e rio abaixo no Araguaia) também estaria aglutinado ao eixo único que funde
leste/oeste e acima/embaixo, discutido antes. Toral (1992) já havia sugerido que o
deslocamento histórico dos Karajá para o sul, rio acima (o que não ocorreu com os Javaé),
seria uma continuidade do mesmo impulso dos humanos das profundezas que ascenderam
ao nível terrestre, refletindo um desejo de alcançar o nível celeste. Embora sem muitos dos
dados que são expostos aqui ou sem a compreensão de uma lógica corporal subjacente, em
Rodrigues (1993:425-426) havia uma proposição preliminar de que haveria uma
coincidência entre leste, sul e a “aldeia do céu”, de um lado, e oeste, norte e o wabèdè, de
outro. O que era corroborado por informações Lipkind (1940:249), para quem “apenas o
quadrante sudeste do céu interessa aos Karajá. O resto são florestas inabitadas”.
Esses extremos opostos do grande eixo espacial não são pensados, contudo, como
permanentemente isolados um do outro. Um tema recorrente da cosmologia Javaé,
analisado em detalhes anteriormente (Rodrigues, 1993), é que tudo que inicia um
movimento retorna às origens, de modo que caminhar para a frente é, a partir de algum

264
ponto, voltar para o começo 23 . Mas veremos no último capítulo que não se trata de uma
volta exata, como em um círculo ou mesmo um pêndulo, mas de uma espiral, em que cada
retorno é também um pequeno avanço para frente. Meu trabalho anterior enfatizou apenas
o primeiro movimento, estático, porque não tinha uma perspectiva histórica. Para o ponto
de retorno existe o conceito essencial de tya, que se refere justamente ao ponto
intermediário (o meio ou centro) entre as extremidades, a partir do qual tudo que vai
começa a voltar. Assim, o meio-dia, chamado de Txuu tya, “o centro (do caminho) do Sol”,
é o ponto a partir do qual entende-se que o Sol, em seu percurso celeste, começa a retornar
ao ponto final (o oeste), que é o início de sua caminhada pelo nível subaquático. Do
mesmo modo, a estação da cheia (bèora) é considerada o ponto tya de um ciclo anual de
chuvas, em que o esvaziamento progressivo do rio é concebido como um retorno das águas
às cabeceiras (e não como seu escoamento em outro rio ou no mar, como para nós)24 .
O fim da vida na terra (enterro a oeste e descida do kuni ao wabèdè situado
embaixo) é sempre uma volta à origem primordial, uma descida a um espaço situado
abaixo do nível terrestre (de onde os humanos míticos ascenderam), mesmo que depois os
mortos tenham destinos diferentes 25 . Não se retorna, porém, às condições exatas da vida
antes da ascensão mítica, quando não se conhecia a morte, pois cada morte e o conseqüente
renascimento implicam em várias mortes anteriores do mesmo corpo, várias
transformações vividas. Em 1997/8, obtive a confirmação da informação anterior de que
durante o enterro secundário (titarasa, “tirar os ossos”), alguns meses depois do primeiro
enterro, o cadáver era colocado dentro de uma urna funerária (watxiwii) na posição fetal. A
cabeça ficava próxima das pernas/pés, simbolizando o reencontro do fim com o começo. A

23
Ver em Rodrigues (1993) o calendário Javaé, relativo a um dia, em que o movimento do sol é concebido
como um “vai e volta”, pois o fim sempre coincide com o início, e sua associação com o fluxo energético do
corpo humano, em que a morte é concebida como um retornar ao início.
24
Embora não tenha obtido essa informação, imagino que o fim da rota de um rio terrestre é o início, em
sentido oposto, do rio ou rios que correm no Fundo das Águas, assim como o fim do caminho solar aqui (o
nosso oeste) é o início do caminho do Sol embaixo, o leste subaquático. Tal hipótese é auxiliada pela
representação visual do ciclo das águas, feita por um Javaé em forma de círculo, ou seja, igual à rota do Sol:
o auge ou meio da enchente é bèora tya (equivalente ao meio dia solar, Txuu tya); e o auge da seca, wyra tya
(equivalente à meia-noite, ruwè tya). Em Lima Filho, (1994:38), o auge da seca é wyra wetya, que eu traduzo
como “o meio (tya) da barriga (wè) da seca (wyra)”. Entre o auge da enchente e o auge da seca existe o
bèhetxi (“nádegas da água”) para os Javaé, passagens entre as duas estações em que as águas estão
estagnadas, no fim das chuvas, equivalentes às passagens do Sol (Txuu òlòna e Txuu rotena). Pétesch
(2000:12) traduz beora como “cabeça (ra) da água (bèè)” ou “água nova”, relacionando a expressão ao
começo das chuvas. Aqui também cabeça e nádegas associam-se ao começo e ao fim de algo. Donahue
(1982) apresenta o calendário anual Karajá em maiores detalhes.
25
Como não existia a morte antes da ascensão mítica inicial, não existiam também os lugares dos mortos.
Mas como toda morte ou todo fim é pensado como um retorno ao começo, é significativo que o primeiro
destino de todos os mortos seja descer, a oeste, à terra invisível que existe abaixo do nível terrestre (wabèdè),
associada simbolicamente ao nível subaquático inferior.

265
idéia de vai e volta permanente é representada nos desenhos das pinturas corporais Javaé e
das cestarias Karajá (Taveira, 1982), analisadas em meu trabalho anterior (Rodrigues,
1993) em sua relação com os conceitos nativos de tempo.
Todo rio, assim como a rota solar, o ciclo de vida, o mundo e o corpo humano,
possui um ponto intermediário, chamado bero tya, “centro (tya) do rio (bero)”, em relação
a duas extremidades assimétricas. No caso do Rio Araguaia, a Ilha do Bananal corresponde
ao bero tya. Tanto o começo como o fim dos rios, ou seja, as duas extremidades, são
chamados de bero kõnana (extremidades do rio, o fim do mundo). E tanto o leste como o
oeste solar são ihuti (as “pernas” [ti] ou “extremidades” de algo) do mundo. Em Lipkind
(1940), encontra-se a informação de que existe uma aldeia de Kanyxiwè (versão Karajá
para Tanyxiwè) no limite norte do mundo (rio abaixo) e outra no limite sul (rio acima). A
coluna vertebral de uma pessoa (tityby) também tem um ponto central (tityby tya) e duas
extremidades, raroko, a extremidade (roko) ligada à cabeça (ra), e rokoti (o cóccix),
extremidade (roko) ligada às pernas (ti), apontando para a idéia de que cabeça e pés/pernas
são igualmente pensados como extremidades que se encontram.
O que reforça a proposição de que caminhar do começo dos rios (associado à
cabeça) para o seu fim (associado às pernas) é voltar ao início a partir de um ponto
intermediário, de modo que caminhar para frente/futuro é equivalente a retornar para
trás/passado. A terminologia para o futuro e o passado ilumina essa idéia, uma vez que o
passado e o futuro mais distantes são referidos pelo mesmo termo 26 :

• antes de ontem – kanau kanau


• ontem – kanau ou kau
• hoje – wiji
• amanhã – rudi
• depois de amanhã – kanau ou kau
• depois de depois de amanhã – kanau kanau

26
Toral (1992), em sua sugestão de que o deslocamento histórico dos Karajá rio acima/sul seria uma
continuação da ascensão mítica, sugere que ir para o alto/frente seria futuro e ir para baixo/trás seria passado.
O que eu proponho, já formulado antes (Rodrigues, 1993:426), é que ir para o alto/frente/futuro em algum
momento torna-se ir para baixo/atrás/passado. Pétesch (1987:79) já havia sugerido que, cosmologica e
ontologicamente falando, “a ‘subida’ quase equivale à ‘descida’, a posterioridade à ancestralidade, o futuro
ao passado” (tradução minha).

266
Os mitos, chamados de lahi ijyky (“histórias das avós”) ou hykyna ijyky (“histórias
de antigamente”), podem ser chamados também de ihetxiu ijyky, “narrativas (ijyky) sobre
as nádegas dele (ihetxiu)”, referindo-se ao que aconteceu no tempo antigo. A palavra hetxi
(“nádegas ou ânus”) pode ter o sentido não só do que está embaixo, mas também do que
está atrás 27 . Afinal, a cabeça é o que sai na frente quando o bebê nasce – momento crucial
para o pensamento Javaé, do qual a saída mítica de baixo para cima é um equivalente
simbólico, como se verá –, enquanto as nádegas e as pernas saem depois, atrás. De onde
viria a associação da cabeça, rosto ou boca com o começo ou o primeiro e a frente do
corpo; e pés, pernas, nádegas ou ânus com o fim ou último e o que está atrás do corpo.
Do ponto de vista atual, a expressão refere-se a um tempo passado, mas o conceito
de “nádegas da história”, digamos assim, está se referindo, mais precisamente, ao que
ocorreu “depois” dos primórdios da humanidade, quando os ancestrais dos humanos
sociais viviam debaixo das águas. As narrativas referem-se aos tempos de transformação
posteriores à ascensão inicial, havendo uma associação – que se mostrará recorrente ao
longo deste trabalho – entre tudo que vem “depois” ou está no fim e uma maior
“transformação“; e entre tudo que vem “antes” ou está no começo e um maior “estatismo”.
As “nádegas da história”, portanto, são aquilo que aconteceu depois que a humanidade saiu
de baixo para cima, quando teve início a transformação do mundo no que ele é hoje.
O corpo humano é concebido como o produto de um acúmulo gradual de energia
vital, desde a infância até o início da vida adulta, o ponto tya do ciclo energético humano
(Rodrigues, 1993), assunto a ser retomado. Quando homem e mulher têm o primeiro filho,
simbolicamente eles começam a retornar ao início, perdendo energia vital. O momento
exatamente anterior à concepção e ao nascimento do primeiro filho equivale
simbolicamente ao ponto tya do ciclo de vida das pessoas. Assim, o início e o fim da vida,
do ponto de vista energético, são concebidos como simbolicamente similares, embora
nunca seja um retorno às mesmas condições primordiais da vida.
A idéia de que o fim e o começo coincidem, entretanto, só faz sentido dentro de
uma perspectiva relacional: o fim de algo é sempre o começo de outro, e esse fim pode ser
simbolicamente equivalente a um começo, inclusive terminologicamente falando, como
será visto mais à frente, porque o olhar nativo não se dirige a quem está de um lado ou

27
Toral (1992:147) fala que o nível subaquático é chamado pelos Karajá de berahatxiwebàro, “por trás das
profundezas das águas”, de modo que “abaixo” equivaleria a “atrás”. Como bàro (bòrò entre os Javaé) são as
“costas” de uma pessoa, o sentido literal dessa expressão, traduzida por mim, seria “as costas da barriga das
nádegas do rio”, ou seja, o que está atrás e abaixo do rio.

267
outro, mas ao que está “entre” ambos, ou seja, a relação constituída. O foco de interesse
não é nos opostos isolados (acima/leste e embaixo/oeste), mas na caminhada (do Sol, da
água, dos mortos) que liga os extremos – constituindo o meio – e transforma-os em uma
totalidade. Por isso que é no nível terrestre intermediário, espacialmente falando, que se dá
a ligação/mediação entre os dois mundos.
Por ora basta deixar claro que tanto cada um dos níveis cosmológicos como Butu
Hãwa (o mundo) são pensados como corpos, o que é evidenciado mais explicitamente, nos
mapas respectivos, pelos pés de cada um e pela estrada do Sol, cujas entradas e saídas
remetem claramente a bocas e ânus; e também pelo fato de que a parte terrestre de cada um
dos níveis cosmológicos (suu) era uma pessoa/corpo antigamente. O fato do começo do rio
(leste, ascensão para o nível celeste) ser chamado de “o rosto branco dele”, e o fim do rio
(oeste, descida para o nível subaquático) de “as raízes dele”, não deve ser entendido como
mera analogia metafórica, mas em seu sentido literal: significa que tais extremidades são,
de fato, pensadas como sendo a cabeça (ou rosto) e as pernas/pés (ou coxas e ânus) do
corpo do mundo (o “ele” a que se referem as expressões). Embora cada nível do mundo
seja tido como um corpo em si, por um ângulo, o conjunto formado pelos três níveis é um
corpo maior englobante, em que o nível celeste é a cabeça, a parte do corpo/cosmos mais
valorizada, como entre os Kayapó (Turner, 1995), o nível terrestre mediano o meio do
corpo cósmico – a sua barriga interna (wo) e externa (wè) –, e o nível subaquático a sua
parte inferior, nádegas e pernas.
Certos indícios levam a crer que tudo que entra e sai é comparado simbolicamente
à comida que entra no corpo humano, através da boca, para nutrir e trazer vida, assim
como a luz do Sol e as “peles velhas” que entram no nível terrestre. O Sol ou os outros
seres que surgem no mundo dos humanos sociais, a leste, trazem consigo a luz solar
benéfica ou as peles velhas que retomam a vida terrestre. Do mesmo modo, a comida que
sai do corpo, pelo ânus, transformada em algo não mais aproveitável ou mesmo repudiado,
na forma de fezes, é comparada ao Sol que se põe e deixa em seu lugar a escuridão, ou às
pessoas que morrem e deixam os parentes sofrendo. A estrada por onde o Sol caminha é
chamada Txuu ryy, em que ryy tem tanto o sentido de “estrada ou caminho” quanto o de
“boca”. Há duas palavras para boca, ryy e ijò. “Minha boca” pode ser wary ou waijò,
embora esta última possa se referir também à parte da boca acima dos lábios, onde nascem
os bigodes de um homem. Uma análise das expressões mostra que ryy é usada mais no

268
sentido da boca por onde entram os alimentos, enquanto ijò é, em geral, a boca por onde
eles saem.
As saídas do corpo, tais como o ânus ou a extremidade externa do canal uretral ou
vaginal, por exemplo, também são referidas pela palavra ijò, assim como toda
desembocadura de um rio é bero ijò (a “boca do rio”), ou seja, onde um rio acaba e cai em
outro. Ijò pode ser “porta” também, mas seu sentido está sempre associado às saídas de
algo: o ânus pode ser hetxi ijò (a “boca das nádegas”), a extremidade externa do canal
uretral, nõõ ijò (a “boca do pênis”), a extremidade externa do canal vaginal, tyy ijò (a
“boca da vagina”), e a extremidade externa do canal auricular, nõhõti ijò (“boca do
ouvido”). Enquanto ryy associa-se às “entradas”, à boca que recebe o que é desejável, ijò
associa-se às “saídas” do que é inaproveitável. Mas não deixa de ser revelador que, apesar
da assimetria, as duas extremidades do canal interno do corpo humano são pensadas
igualmente como bocas, como se o fim (ânus) e o começo (boca) coincidissem 28 .
Na ponta sul da Ilha do Bananal está o bero ijò ibòkò, “a boca do rio acima”, e na
ponta norte o bero ijò iraru, “a boca do rio abaixo”. Apesar do Rio Araguaia correr no
sentido sul/norte, as duas extremidades são “bocas do rio”. O mesmo vale para a entrada e
saída do caminho do Sol (Txuu rotena e Txuu òlòna), em sua rota circular, uma vez que o
fim sempre será uma volta ao começo. O conceito de volta às origens, ou de que os fins
coincidem com o começo, embora de modo relativo, pois aquele que retorna traz consigo
as experiências vividas, não sendo mais o mesmo, expressa-se através de uma imagem
corporal surpreendente no mito em que Tanyxiwè conquista as pinturas corporais e a
escrita: o humano chamado Worosy olha o próprio ânus, fazendo coincidir a face (início)
com o ânus (fim). De um ponto de vista relacional, em que é a relação com o outro que está
no centro da atenção, e não o próprio ponto de vista, a mesma passagem que serve de saída
(ânus) do nível celeste serve de entrada (boca) para o nível subaquático e vice-versa, não
havendo distinção simbólica significante entre um e outro.
Por isso, tanto as entradas como as saídas podem ser bocas (ryy, ijò), por que o que
sai para um é ao mesmo tempo o que entra para o outro, assim como a morte de alguém é o
nascimento em outro nível, o oeste de uns é o leste de outros, o fim de um rio é o começo
de outro, a morte da vida dentro do útero é o nascimento da vida fora do corpo materno, o
fim da vida no mundo subaquático é o começo da vida terrena. Talvez essa seja a razão da

28
Significativamente, a palavra waijyny, “minhas fezes”, pode ser utilizada, em tom jocoso, no sentido de
“minha comida” (warasyna).

269
palavra ryy significar tanto “boca” quanto “caminho ou estrada”, pois a função essencial da
boca não é apenas receber ou expelir comida, mas fazer a ligação entre uma extremidade e
outra, do mesmo modo que o que interessa não é onde o Sol entra ou sai, mas o caminho
que ele percorre. Dito de outro modo, o centro não é uma das polaridades (como para
Pétesch, 1993a, 2000), mas o caminho que liga as duas entre si (o que não significa uma
mera passagem de uma a outra, como no caso Tupi-Guarani, mas um caminho que se
constitui fundindo em si os dois extremos).
A mesma lógica ocorre em relação à palavra raru (“raiz”), cujo sentido pode ser
tanto o de fim de algo como o de começo. Em iraru (“as raízes dele”), palavra que designa
o sentido rio abaixo ou a extremidade final de um rio (a sua “boca”), “raiz” associa-se a
coxas e ânus, como já foi dito, com o sentido do que está abaixo e no fim. Mas em várias
palavras, raru aparece com o sentido de “começo” ou “origem”, enquanto a raiz que se
localiza abaixo da terra, a origem da planta. Afinal, para os Javaé, embaixo da terra está o
fim de todos os caminhos, para onde vão os mortos, mas o nível inferior é também a
origem da vida em sociedade, de onde os humanos originais subiram para o nível terrestre.
Assim, warutiraru é a “raiz (raru) da extremidade (ti) da minha coxa (waru)”, a parte do
corpo onde a coxa começa, ligada ao quadril; wadèbòraru é “raiz (raru) da minha mão
(wadèbò)”, ou seja, o “pulso”, que é o começo da mão; rubuòraruna, “o começo (òraruna)
da morte (rubu)”.
Mais significativa ainda é a expressão lahi òraru, literalmente “raiz (raru) da face
(ò) da avó (lahi)”, em que ò pode ter o sentido geral de corpo, como já mencionei, ou seja,
“a raiz do corpo da avó”; ou mais simplesmente, “a origem das avós”, pois òraru tem
sempre o sentido de “origem”. Essa expressão designa o conhecimento que os especialistas
(os lahi òraru èrydu), em geral as mulheres mais velhas, têm sobre as origens das pessoas,
seja em termos de sua ancestralidade, as origens dos vínculos de parentesco, ou sobre o
começo dos tempos em geral. Ocorre então que iraru (rio abaixo), assim como ijò (boca),
pode ter tanto o sentido de fim do rio (relativo às suas coxas) como o de começo: uma das
expressões usadas para o leste, associado ao rio acima, é Txuu rarusi (“as raízes do Sol”),
pois o fim/oeste/abaixo do rio no nível terrestre (iraru) pode ser também a
origem/leste/acima do rio no nível subaquático (rarusi), e vice-versa. Assim como as
bocas, as raízes podem ser tanto o fim de algo quanto a sua origem 29 .

29
Em termos literais, a expressão raru é em si paradoxal, pois ela significa “ânus ou coxas da cabeça”,
contendo as duas extremidades do corpo em uma única palavra.

270
Alguns dados apontam para uma associação respectiva entre boca/cabeça e
ânus/pernas com a cor branca (ou luz) e o negro (ou a ausência de luz). Em primeiro lugar,
existe o fato de que o Sol já estava no Céu (acima) quando Tanyxiwè o conquistou, em
oposição à escuridão do nível subaquático (abaixo); em segundo, o leste, associado à
cabeça, é o biura (céu branco): quando o Sol está perto de surgir, e a noite começa a
clarear muito de leve, por volta das 4 horas da madrugada, os Javaé nomeiam esse horário
de bèdèrarasò, traduzido antes como “o lugar ou tempo está começando a clarear”
(Rodrigues, 1993:89). Mas a expressão parece conter uma conexão com “a cabeça (ra)
vermelha (sò) do tempo ou lugar (bèdè)”, o que seria uma alusão, sugiro, à cor vermelha
do cocar (raheto) que o Sol usa na cabeça e que clareia a escuridão. A claridade teria a ver,
então, com a cabeça que surge no horizonte.
Por outro lado, o horário equivalente à meia-noite é chamado de ruwè tya, “o centro
ou núcleo na noite”, que se opõe ao Txuu tya (meio-dia). A palavra usada para “noite”,
literalmente falando, significa “barriga (wè) do ânus (ru)”, ou seja, “o meio (a barriga é o
meio do corpo) do que está abaixo (o ânus)”, pois a meia-noite, para quem está na terra ou
no Céu, é quando o Sol está no meio espacial da caminhada pelo nível inferior
subaquático. Ruwè tya seria, então, o centro exato (tya) do meio (wè) do Fundo das Águas
(ru). Assim a escuridão máxima tem seu sentido ligado ao ânus, ao que está embaixo.
Quando é meio dia no Céu, e o Sol está com o seu cocar na cabeça, no meio da caminhada
celeste (Txuu tya), é meia noite embaixo (ruwè tya), no nível subaquático (e vice-versa),
porque o nível intermediário impede que a luz celeste ilumine o nível inferior. Aquilo que
está abaixo teria menos luz, como o mundo escuro dos mortos que vivem do wabèdè, o
cemitério invisível abaixo da terra.
Tudo leva a crer que a oposição cabeça versus pés/pernas tem o mesmo significado,
em termos corporais, da oposição boca e ânus, podendo agregá-las, junto com claridade e
escuridão, ao grande eixo cósmico corporal que opõe espacial e temporalmente começo,
cabeça ou boca, comida, luz ou branco, leste, nível superior (Biu) e rio acima, de um lado,
a fim, pés/pernas ou ânus/nádegas, fezes, escuridão ou negro, oeste, níveis inferiores
(Berahatxi e wabèdè) e rio abaixo, de outro. Como veremos ao longo deste trabalho, ao
primeiro grupo, hierarquicamente superior, juntam-se o estatismo, a paz, os parentes, os
tios paralelos (destacados pelo termo ura, “branco”), os primogênitos e os heróis criadores,
enquanto ao segundo juntam-se as transformações, os conflitos, os afins, os cunhados
(referidos pelo termo lyby, “negro”), os caçulas e os aõni. Todos são manifestações da

271
grande e essencial oposição entre homens e mulheres ou identidade e alteridade. Tòlòra e
seu povo, de um lado, e os Wèrè, de outro, associam-se aos extremos respectivos de
masculinidade e feminilidade, ou paz e conflito, estatismo e transformação, os Javaé atuais
constituindo o produto da relação entre ambos, equivalente ao “meio” cosmológico.
Nesse grande mundo/corpo, em que a estrada do Sol e dos habitantes cósmicos é
também o canal que liga a boca ao ânus dentro de cada corpo e do corpo total, existe
sempre um ponto intermediário entre as oposições assimétricas mencionadas, que pode ser
a barriga, o meio dia ou a meia noite, o nível terrestre ou o meio do rio, todos equivalentes
simbólicos. Assim como o estômago é o ponto intermediário do corpo humano em que a
comida não é mais a delícia que entrou pela “boca que recebe” nem os restos repugnantes
que saíram pela “boca que expele”, veremos que o meio cósmico – o nível terrestre – é o
locus da socialidade, o grande “centro estomacal” cosmológico que faz a mediação tensa
entre um extremo desejado e um repudiado, ambos igualmente anti-sociais.
O fim do caminho do Sol (no Céu) é também um começo (no Fundo das Águas),
porque o caminho do nível celeste só é concebido em relação ao caminho do nível
subaquático e vice-versa, assim como o meio-dia celeste só existe em relação à meia-noite
do Fundo das Águas. Os fins só coincidem com os começos porque o ponto de vista
adotado é o da relação com o outro, ou seja, nem o eu nem o outro, mas o que está no
centro, “entre”. O meio é mediação entre opostos, em outras palavras, a relação em si, um
terceiro produto que liga e contém os dois extremos opostos internamente, mas que ao
mesmo tempo não é nenhum dos dois. Ao se considerar o ternarismo como uma forma de
dualismo triádico, considerando o meio como um dos opostos (Pétesch, 1987, 1992, 1993a,
2000), perde-se de perspectiva justamente a relação entre os opostos, a caminhada que liga
os extremos e possibilita a transformação.

272
4.2. Os habitantes do Fundo das Águas (Berahatxi mahãdu)

4.2.1. Os aruanãs e os aõni

Quando Tanyxiwè conquistou o Sol aqui no nível terrestre – quando “começou o


mundo”, dizem os Javaé –, uma mulher de cor escura que morava no nível subaquático,
chamada Torijyby 30 , ascendeu à terra para conhecer o novo mundo ensolarado. Aqui
chegando, Torijyby conheceu Tõrikòkò, um humano chamado “Lagartixa”, habitante do
Ahana Òbira, e descobriu que o calor terrestre era muito incômodo e que as árvores, os
peixes e todo o resto morriam. Decidida a retornar para o Berahatxi, Torijyby convidou
Tõrikòkò para se casar e descer com ela para o nível subaquático xiburè (“mágico”), onde
era muito mais fresco do que aqui e, principalmente, não havia a morte. Depois de refletir
um pouco, Tõrikòkò aceitou o convite e desceu para o Berahatxi, onde teve muitos filhos
magicamente com Torijyby. Os filhos do casal nasciam como iny (gente) e depois
transformavam-se nos aruanãs, seres humanos mascarados e mágicos que vivem no Fundo
das Águas até hoje. Como todos aruanãs são filhos do casal, são todos parentes entre si.
Torijyby e Tõrikòkò não usam máscaras e são Berahatxi wèdu, “os donos do nível
subaquático”.
Essa versão para a origem dos aruanãs é “história de hàri (xamã)”, não se
confundindo com os mitos narrados pelas avós (lahi ijyky) sobre os tempos da criação já
no nível terrestre, pois faz parte do conhecimento dos xamãs e da Casa dos Homens sobre
o mundo dos aruanãs. Em outra versão (ver Rodrigues, 1993:190), os aruanãs são os iny
roko (“os últimos humanos”), assim como em Toral (1992), aqueles humanos subaquáticos
que não passaram para o nível terrestre quando os outros subiram para conhecer a
iluminação solar, sendo transformados então em aruanãs. Em ambas as versões, os
humanos do Fundo das Águas tornaram-se aruanãs após a cisão mítica inicial. Nos
trabalhos de Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994) e Pétesch (2000)
encontram-se descrições sobre o nível subaquático Karajá.

30
Torijyby, literalmente, seria o “homem ou mulher não-índio (Tori) de cor negra (ijyby)”, mas trata-se
apenas de um nome e não uma referência a um não-índio.

273
Também existem aruanãs no nível celeste, em número menor e considerados
xamãs, embora estes não sejam iny roko. Dizem que os aruanãs celestes já nasceram no
Céu, que existia antes da cisão mítica, não sendo produtos de transformações dos tempos
da criação. Apesar de ninguém ter formulado isso explicitamente, conclui-se que os
humanos originais que se transformaram em aruanãs são os remanescentes de todos
aqueles povos diferentes que existiam no Fundo das Águas e saíram para conhecer a luz
solar, uma vez que não há mais relatos sobre a sua existência nos dias atuais. Os que
ascenderam deram início à vida em sociedade, enquanto os que ficaram lá embaixo – os
aruanãs mascarados – são os ancestrais mágicos da humanidade atual. Além dos aruanãs
celestes, existem alguns poucos aruanãs que moram no nível terrestre, em lugares como
cupinzeiros e aglomerações densas de mata. Lima Filho (1994:41) menciona a existência
de aruanãs Karajá que chegam “do mato” e Toral (1999:100) fornece uma lista de quatro
aruanãs Javaé que habitam a “superfície da terra”, em contraste com os mais de setenta,
listados pelo autor, oriundos do nível subaquático. A grande maioria dos aruanãs provém
do Fundo das Águas.
Chamados de iasò pelos Xambioá, ijasò pelos Karajá e irasò pelos Javaé, os
aruanãs fazem parte da categoria geral aõni, traduzida por Toral (1992:169) como “os que
parecem ser (diversas coisas)”, referente a todos os seres mágicos e não sociais e que
engloba desde os heróis criadores aos monstros antropomorfos canibais temidos, os aõni
propriamente ditos. Tanto aõni quanto irasò são palavras traduzidas pelos Javaé como
“bicho”, em Português, o que gera alguma confusão, pois não se trata de animais nem de
demônios, esta última uma possível acepção da palavra no Português da tradição popular.
É apenas de uma forma de diferenciar os seres humanos dotados de poderes mágicos, que
se reproduzem magicamente, dos seres humanos terrestres sociais, cuja reprodução é
física. A palavra “aruanã” é a tradução portuguesa (de origem tupi-guarani) para irasò, o
nome do peixe amazônico osteoglossum bicirrhosum.
É importante deixar claro que os aruanãs não são peixes, mas apenas os humanos
mascarados mágicos e não sociais que, na maior parte, vivem no nível inferior, abaixo das
águas, e que comparecem aos rituais realizados pelos humanos terrestres. Esses humanos
que ficaram debaixo das águas ou para lá retornaram, transformando-se em aruanãs, são
“parentes” dos que saíram e aqui se tornaram humanos sociais, não há dúvidas, mas os
Javaé não se referem aos aruanãs como seus “ancestrais”, uma vez que a reprodução física
teve início entre os humanos que ascenderam, aqui no nível terrestre. Para Toral (1992), os

274
Karajá “se vêem como uma continuidade, embora transformada”, dos aruanãs. Aproveito
aqui o que já foi dito em outro trabalho sobre os aruanãs (Rodrigues, 1993:194-6):

“(...) Foram inúmeras as vezes em que, insistindo na pergunta ‘o que são os Aruanãs’,
obtive a resposta de que eles têm o nome de ‘bicho’, mas na verdade são pessoas, que
usam máscaras e são dotadas dos poderes mágicos dos tempos míticos. (...) Além de
serem chamados de ‘Aruanãs’, os humanos originais possuem nomes com os quais são
identificados aqui e diferenciados um dos outros. (...) Os Aruanãs vêm (ao nível
terrestre) sempre em dupla, formando um casal de aparência e movimentos idênticos,
chamados por um só nome. Quando alguém se refere a um Aruanã, está falando de um
casal. Há exceções, como o txireheni, que vem sozinho e é considerado o ‘avô’ dos
outros. (...) Por exemplo, existem vários tipos de Aruanã weru, que é o nome do
chocalho que estes carregam consigo quando dançam. Todos Aruanãs weru têm
chocalho. Entre os weru, existem o bisani (arara) e o harià (peixe pacu), por exemplo.
Então, uma dupla de Aruanãs pode se chamar bisani weru ijasò (humano original com
chocalho chamado arara), ou harià weru ijasò (humano original com chocalho
chamado pacu)” 31 .

Cada aruanã é uma dupla de mascarados quase idênticos, mas isso não significa
serem “dois”, uma vez que a dupla é um único ser. A cor da pena solitária de arara que é
colocada no alto de cada máscara, o alto da “cabeça”, é o único indício que marca,
sutilmente, a diferença entre os membros da dupla. A porção superior da máscara
representa um rosto. Embora se diga que seja uma dupla de dois homens, a pena de cor
azul (ou verde) é “masculina”, e a de cor vermelha, “feminina”, o que não foi levado em
conta por mim antes (Rodrigues, 1993). A pena da máscara dos aruanãs é chamada de
tõbòtò, literalmente “pescoço (bòtò) do pênis (tõõ), palavra usada para se referir às
“pontas” de algo. O tõbòtò do aruanã é o equivalente do raheto dos homens, o cocar que
representa o sol. Em sua descrição e análise da constituição material das máscaras de
aruanãs Karajá, o ornitólogo Dante Teixeira (1983:220) constatou, “no par de máscaras,
existirem identificações de ‘machos’ e ‘fêmeas’ ao menos em certos casos”. Embora às

31
Apresento algumas definições dos autores que trabalharam com os Karajá, cujas máscaras foram descritas
pioneiramente por Ehrenreich (1948): para Fénelon Costa (1978), as máscaras dos aruanãs personificam
animais que têm também um lado humano; no mito transcrito de forma romanceada por Peret (1979:95-98),
os aruanãs “eram peixes eternos que habitavam os lagos profundos”; para Donahue (1982), os aruanãs Karajá
são espíritos mascarados; em Toral (1992), são os humanos que ficaram embaixo depois da cisão mítica, os
quais são representados aqui com as máscaras e adornos que usam no Fundo das Águas; para Lima Filho
(1991:62), “o Aruanã é como uma pessoa no fundo da água”; Teixeira (1983), que teve a oportunidade de
examinar as máscaras Karajá, chega à conclusão que o “bicho” referido não é nem homem, nem animal, mas
um ser de natureza diversa. Os Karajá foram categóricos com Pétesch (2000:71-73) em dizer que os aruanãs
não são animais, apesar do nome, mas gente. A autora insiste, entretanto, em sua identidade “ambígua”,
meio-humana, meio-animal, representando um estado de indiferenciação entre cultura e natureza.

275
vezes fosse quase imperceptível, um dos membros da dupla era sempre mais ricamente
ornamentado que o outro, segundo o autor.

Foto n° 1: Dupla de aruanãs (aldeia Canoanã, 1997)

Pétesch (2000:75) descreve uma leve “distinção vocal” entre os membros da dupla
quando estão cantando no nível terrestre. A dupla seria formada entre os Karajá por dois
irmãos classificatórios diferenciados pelo critério de idade (mais velho, mais novo), de
grande importância na terminologia de parentesco. Em sintonia com o seu modelo
estrutural, a autora atribui a cada par de aruanãs uma constituição dual: um aspecto
horizontal (oposição entre animal e humano) e um vertical (oposição assimétrica entre
mais velho e mais novo, superior e inferior). No caso Javaé, eu diria que a diferenciação da

276
dupla refere-se muito mais à representação de uma androginia (ou da ausência de gêneros
definidos) pré-social, assunto a ser retomado.
Em meu trabalho anterior, dediquei-me à descrição e análise da Dança dos Aruanãs
tal como ela ocorre aqui no nível terrestre, sem associá-la às relações de parentesco e
afinidade, como pretendo fazer agora. Os humanos sociais realizam aqui uma “cópia” da
dança e dos jogos associados que ocorrem no Fundo das Águas e no Céu, o mesmo
ocorrendo entre os Karajá (Lima Filho, 1994). Os xamãs trazem ao nível terrestre e levam
de volta tanto os irasò tykytyby (as peles velhas dos aruanãs), que são usadas pelos homens
mascarados daqui, para dançar nos rituais, quanto as peles velhas dos que tornam a viver
no nível terrestre, de modo que as pessoas, mesmo as crianças, costumam saber de onde é
o seu tykytyby. Os xamãs comandam a realização dos jogos no nível terrestre, que
obedecem a uma seqüência determinada e implicam em um intenso e extenso calendário
ritual anual, na medida em que todos os jogos realizados em um ano devem ser repetidos
com cada dupla de aruanã que é trazida em uma aldeia. O número de duplas é maior
quanto maior for a população de uma aldeia. Em aldeias menores, são 3 ou 4 duplas de
aruanã a cada ano, enquanto a aldeia Canoanã chega a receber 8 de uma vez. Há uma
descrição de cerca de 20 jogos rituais em Rodrigues (1993), cujo tema geral são disputas
entre os sexos.
Concentrei-me também na descrição dos níveis cosmológicos sob o ponto de vista
da escatologia, pois tanto no nível subaquático quanto no celeste os aruanãs e outros
personagens co-habitam com as “peles velhas” dos humanos sociais que morreram no
nível terrestre, o conjunto total de moradores sendo chamado de Berahatxi mahãdu (povo
do Fundo das Águas) ou Biu mahãdu (povo do Céu) 32 . Descrevi como eram as condições
de vida dos que morreram naquela que eu acreditava ser a única e grande aldeia do Fundo
das Águas ou do Céu. Não eram claras ainda as condições de existência dos aruanãs e
outros personagens em seus mundos de origem. Nem tampouco de como se dava a
convivência entre os aruanãs e as peles velhas dos humanos terrestres, o que ainda é uma
lacuna nas etnografias sobre os Karajá. Neste e no próximo item apresentarei uma
descrição dos níveis subaquático e celeste com respostas a essas questões no que se refere
aos Javaé. Ela é em sua maior parte inédita, embora seja compatível com o que já foi

32
Também entre os Karajá, segundo Pétesch (1987:77), o povo do Fundo das Águas reúne “os verdadeiros
ancestrais, ou iny originais (aruanãs), assim como os espíritos dos mortos”. Não existem aruanãs no wabèdè,
o nível invisível inferior para onde vão os mortos em geral em um primeiro momento, e de onde os que
morreram perdendo sangue não saem mais.

277
apresentado previamente, e importante para as discussões posteriores. Há diferenças
essenciais em relação às descrições existentes sobre o cosmos Karajá, relacionadas
principalmente à ênfase sociológica matrilinear dos Javaé.
As danças dos aruanãs e seus “jogos” respectivos (narakyna) são concebidos como
um ciclo anual, cujo início e fim são marcados ritualmente com cerimônias específicas,
assunto tratado antes (Rodrigues, 1993) e a ser retomado no Capítulo 10. O ciclo como um
todo ocorre, em geral, paralelamente ao ciclo das chuvas, que começa em
setembro/outubro e termina em abril/maio. Como já foi enfatizado por outros autores em
relação aos Karajá (Toral, 1992, Lima Filho, 1994), a vida ritual mais intensa é associada
ao período de chuvas e rio cheio, quando antes havia uma maior concentração das famílias
nas aldeias. As danças e jogos são precedidos de uma cerimônia pública de apresentação
dos aruanãs à comunidade, que ocorre a cada vez que um novo aruanã é trazido ao nível
terrestre no mesmo ciclo, e são seguidos pelos quatro rituais de despedida coletiva dos
aruanãs:

• Imonariòrè – “pouca bebida deles”


• Idòriòrè – “pouca comida de origem animal deles”
• Imonahaky – “muita bebida deles”
• Idòhoky – “muita comida de origem animal deles”

O “deles” é uma referência aos aruanãs, a quem a bebida e a comida são oferecidas
em quantidade maior nas cerimônias de encerramento, o que estende o ciclo anual por um
ou dois meses a mais em junho ou julho. Antigamente, no período entre o fim das
danças/jogos e as quatro cerimônias de encerramento do ciclo ocorria o ritual Iweruhuky,
do qual os Karajá possuíam uma versão um tanto diferente antes (Pétesch, 2000). O ritual
tinha início em maio ou junho, no começo da estação seca, durando cerca de um mês. O
ritual de iniciação masculina (Hetohoky), cujo período mais intenso também abrange cerca
de um mês, era realizado no auge/meio do ciclo das chuvas (fevereiro/março), época de
maior fartura nas roças, como uma espécie de ápice do calendário ritual, ocasião em que
ocorre uma breve interrupção das danças dos aruanãs, que são retomadas logo a seguir.

278
Tais datas, entretanto, são apenas um modelo ideal, uma vez que vários fatores, com o luto
ou a disponibilidade de alimentos, podem alterá-las 33 .
Atualmente, os homens levam em consideração o calendário escolar das crianças e
adolescentes para a realização do Hetohoky, transferindo-o para dezembro/janeiro. O
Hetohoky é associado ao espaço masculino e à separação entre os sexos, enquanto o
Iweruhuky, de forma complementar, era associado ao espaço feminino e às misturas entre
os sexos. Os breves rituais relacionados aos inimigos estrangeiros mortos em guerra
(ixyjukuni), com duração de dois dias, são ainda realizados logo antes ou depois do ritual
de iniciação masculina, aproveitando também a época de maiores recursos agrícolas
disponíveis. As atividades cerimoniais ocupavam praticamente o ano inteiro, o que ainda é
uma realidade nas aldeias maiores, com exceção do período mais intenso da seca
(agosto/setembro), em que as famílias acampavam nas praias em expedições de pesca.
Mesmo assim, como já disse Toral (1992), a Casa dos Homens podia ser construída nas
praias de verão, onde se dava continuidade às danças de aruanã.
Com os novos dados, tornou-se evidente que os níveis subaquático e celeste são
constituídos de uma série de territórios definidos (hãwa), separados entre si por rios, onde
moram grupos de parentes (sy) distintos, como pode ser visualizado nos desenhos n° 2
(Fundo das Águas) e n° 3 (Céu), já apresentados. Há grupos de parentes separados, mas
toda a população do Fundo das Águas ou do Céu é concebida como uma grande parentela
(assim como os Javaé terrestres se vêem). Ambos os mapas são uma representação parcial,
33
É recorrente nas etnografias sobre os Karajá a idéia de uma certa imprecisão do calendário ritual, o que
leva a algumas disparidades quanto a alguns eventos específicos. Donahue (1982:259) descreve, dentro do
“vago ciclo” dos aruanãs, os quatro rituais de “peixe” e “mel” Karajá (“Idoriore, Ityboriore, Idohyky,
Itybohyky”), os quais são considerados como ritos de encerramento não pelo autor, mas por Pétesch (2000).
O conteúdo, a se levar em consideração a descrição de Donahue (1982), é bastante diferente dos ritos de
encerramento Javaé. O autor assistiu à sua realização parcial entre meados de setembro e dezembro. Toral
(1992), referindo-se tanto aos Javaé quanto aos Karajá, considera como “jogos” os quatro rituais que apenas
marcam o encerramento do ciclo para os Javaé, os quais seriam realizados de março a novembro. Lima Filho
(1994:41) afirma que a “Festa dos Aruanãs (...) não tem um tempo específico de começo”, embora tenda a
ocorrer paralelamente ao Hetohoky, que é claramente associado ao ciclo das águas pelo autor e cujo ápice se
dá também na época da colheita de importantes produtos. Lima Filho (1994:52-55) associa as festas “do Mel
Grande” e “do Peixe Grande” ao fim do ciclo anual, dizendo que há um grande intervalo, de semanas ou até
meses, em relação às festas “do Mel Pequeno” e “do Peixe Pequeno”, o qual pode ser preenchido pelos jogos
dos aruanãs. Pétesch (2000:95), por sua vez, afirma que as danças dos aruanãs não formam um ciclo,
propriamente dito, uma vez que os Karajá não as realizam em um tempo certo, sendo dotado de um “ritmo
permanente”. Tanto a autora quando Lima Filho (1994) dizem ainda que os aruanãs continuam dançando
regularmente durante a iniciação masculina, o que não ocorre no Hetohoky Javaé, cujos aruanãs param de
dançar e podem aparecer apenas para rodear a casa dos jyrè em um dia especial. A se levar em consideração
a descrição de Lima Filho (1994), a que melhor situou os eventos da iniciação masculina em um calendário
anual, o Hetohoky Karajá teria uma duração maior que o dos Javaé, pois este último concentra em menos
tempo o que os Karajá fazem de modo mais gradual em um período mais extenso. Em minha recente visita
aos Karajá (2007), ouvi na aldeia Macaúba que a chegada e partida dos aruanãs acompanha,
aproximadamente, a chegada e partida das chuvas, exatamente como entre os Javaé.

279
contendo apenas alguns dos muitos territórios que compõem os níveis cosmológicos. Uma
diferença importante é que no nível subaquático vivem muitos dos aõni propriamente
ditos, temidos pelos humanos sociais, o que praticamente não existe no Céu, enquanto
apenas neste último estão os heróis transformadores, os quais não moram no nível inferior.
O Desenho n° 2, por exemplo, é a representação dos diversos hãwa que existem no
nível subaquático apenas na região da aldeia Tahakala (a atual aldeia Barreira Branca), ou
seja, no espaço que existe abaixo dos rios e lagos que se situam próximos a Barreira
Branca. Há, inclusive, um lugar no mapa também chamado Tahakala. Pode-se ver que na
extremidade leste (Txuu òlòna), mais valorizada, está o território de Tõrikòkò e Torijyby,
os “donos” do Berahatxi. No mapa que representa o Céu, o desenhista reservou dois
territórios para os xamãs e seus parentes (Hàri Hãwa no mapa, “Território do Xamã”), os
quais se distinguem nitidamente dos outros (dos aruanãs e outros personagens míticos).
Entretanto, as peles velhas dos humanos terrestres também vivem junto com os aruanãs,
como veremos.
No nível subaquático existem basicamente três categorias de seres mágicos: os
aruanãs mascarados, os aõni antropomorfos e os worosy (ou aõni aõni). Todos os hãwa
representados no Desenho n° 2 pertencem a diferentes aruanãs, referidos pelos seus nomes:
Bisani, Dèbò, Iòbèsè, Warakurani, Warareni, Hakiriri, Bejuy, Kereni, Irasòni, Ijauhi,
Waije, Ijareheni, Iraburè, Iradesò, Benõra etc. Os espaços em azul no desenho, onde não
há nenhum nome escrito, são representações dos lagos e rios que circundam os territórios
onde vivem os aruanãs. Ao que parece, a todo rio e lago do nível terrestre intermediário – e
eles existem em profusão no vale do Araguaia – corresponde um rio e lago similar no nível
inferior, à margem dos quais situam-se as aldeias dos aruanãs. Toral (1992:148) menciona
a existência desses diversos territórios subaquáticos entre os Karajá, “realizando uma
ocupação paralela e simultânea” à que existe no nível terrestre. Em outro trabalho, o autor
(1999) fornece uma lista de dezenas de aruanãs Javaé e os locais que habitam na região
setentrional da Ilha do Bananal.
O animais de caça e os peixes são controlados pelos aruanãs do Fundo das Águas
(irasò Berahatxidudu, “aruanãs originários do Fundo das Águas”), mesma informação
obtida por Toral (1992) entre os Karajá. Pétesch (2000), por sua vez, menciona apenas a
fauna aquática. Os animais são “criados” pelos aruanãs, segundo Toral (1992:150), e são
considerados nohõ deles (“animais de estimação”). Entre os Javaé, os aruanãs são iròdu
wèdu (“donos da caça”) e kutura wèdu (“donos dos peixes”). Quando os homens vão

280
juntos “buscar a comida dos aruanãs” em momentos rituais importantes, como nos rituais
de encerramento do ciclo anual dos aruanãs, o Idòriòrè (“pouca comida deles”) e o
Idòhoky (“muita comida deles”), expressões que se referem à comida dos aruanãs, os
xamãs pedem autorização aos aruanãs que são os “donos” dos rios e lagos específicos onde
os homens vão pescar, por exemplo, para que seja facilitada a pescaria. Todos os rios e
lagos do nível terrestre são controlados pelo aruanã que habita em seus correspondentes
inferiores, assim como os bandos de animais de caça. Ainda segundo Toral (1992:150), “os
animais que se encontram na superfície são como amostras dos que existem, em
quantidade inesgotável, junto com seus senhores nas profundezas” (ver Teixeira, 1983).
Lipkind (1940:249) já havia dito que “todo poço de água, todo lugar nas profundezas do
rio, todo pedaço de floresta ou savana, tem seus donos sobrenaturais”.
O desenho ao lado (n° 4), feito pelo xamã e referente ao lugar chamado Horenio,
um pouco ao norte da aldeia São João, mas situado no espaço subaquático correspondente,
fornece o modelo básico das aldeias onde vive cada um dos aruanãs em seus hãwa no
Fundo das Águas. As aldeias dos aruanãs constituem-se, sinteticamente, da Irasò Heto
(“Casa dos Aruanãs”), da Irasò Didi Heto (“Casa das Irmãs dos Aruanãs”) e dos vários
cercados (kòtity) laterais onde estão as casas de cada um dos aõni temidos (os nomes de
alguns deles aparecem junto aos cercados: Ihihi, Ajuesani, Inyni, Halokòè, Ijorobari,
Myriwè). Como se vê no desenho sobre Horenio, toda aõni sy (“casa de aõni”, aqui
incluindo as dos aruanãs também) contém ou está cercada de pedras (mana) e tem suas
portas (ijò) viradas para o biura (leste). Os Karajá informaram a Toral (1992:147-148) que
os aruanãs vivem em casas de pedra enormes, situadas dentro de “gigantescos buracos,
interligados por túneis”.
No nível terrestre, a “Casa dos Homens” (Ijoi Heto) é conhecida também como
“Casa dos Aruanãs”, mas ela não tem as portas viradas para o leste, o que seria permitir
que as mulheres vissem o que está lá dentro. Ela não tem a parede que fica virada para o
mato, em oposição ao lado das casas das mulheres. Os aruanãs, porém, ficam virados para
o leste quando se alimentam e fazem xiwè, refeição ritual, dentro da Casa dos Homens. No
Fundo das Águas, as portas das casas das irmãs dos aruanãs não são viradas para o leste,
como nas casas dos humanos terrestres. Ligando todas as casas existem as irasò ube
(“estradas dos aruanãs”), por onde os aruanãs dançam com suas irmãs, tanto no nível
subaquático quanto no aqui no Ahana Òbira.

281
Desenho n° 4: O lugar Horenio no nível subaquático

282
As casas de aruanã situam-se no meio (tya) da aldeia, em relação aos extremos rio
acima e rio abaixo, modelo este que é repetido no nível terrestre e será analisado em
maiores detalhes no Capítulo 5.
Como já foi descrito antes (Rodrigues, 1993), os aõni propriamente ditos são seres
temidos, agressivos, que emitem grunhidos ininteligíveis, ávidos por sangue, dotados de
órgãos sexuais, descontrolados, agitados, canibais, antropomorfos, morando em sua
maioria do Bèdè Rahy, dimensão terrestre invisível, onde passam fome e têm que procurar
alimentos (ver os desenhos n° 5 e 6, ao lado, feitos pelos Javaé, de alguns aõni). Lipkind
(1940:249) menciona a existência de dois tipos de seres “sobrenaturais” Karajá, os
mascarados que têm relações amigáveis com os humanos nos rituais e os monstros feios e
perigosos que não podem ser aplacados. Esta última é a mesma definição dada por
Donahue (1982:214) para os aõni, que não podem ser apaziguados por meio da oferta
ritual de alimentos, diferentemente dos aruanãs e dos kuni dos mortos Karajá. Toral
(1992:141) considera os aruanãs e aõni, respectivamente, como versões “benignas” ou
“malignas” de “‘estados’ de existência”.
Em Pétesch (1993a, 2000) os aõni canibais e monstruosos são a alteridade em sua
forma mais acentuada e habitam apenas o nível terrestre invisível, o Bèdè Rahy, sendo
incapazes de qualquer tipo de troca com os humanos terrestres. A autora aponta a diferença
entre as máscaras tripartidas e mais bem elaboradas dos aruanãs, baseada em uma divisão
conceitual entre cabeça (ra), barriga (wè) e pernas (ti), em oposição às dos outros
mascarados, que distinguem apenas a cabeça e o corpo. Os aruanãs assexuados opõem-se
radicalmente aos aõni, mas não apenas em razão de suas belas músicas e de seu
movimento formalizado e repetitivo nas danças, como Pétesch apontou em relação aos
Karajá, mas principalmente pelo seu verdadeiro horror ao sangue ou qualquer outra
substância corporal, incluindo também a saciedade alimentar, beleza e autocontrole.
Os aõni que moram no Fundo das Águas são mantidos sob controle ao lado da Casa
dos Aruanãs, dentro de cercados que os aprisionam, por duas razões: porque os aõni são
perigosos e porque os aruanãs “gostam de brincar” flechando os aõni, demonstrando o seu
controle da situação. Os jogos rituais, incluindo os outros que não são realizados com os
aõni, são comumente chamados de “brincadeiras” (um dos sentidos da palavra narakyna)
pelos Javaé, que enfatizam o aspecto lúdico das interações entre os personagens rituais.

283
~
Desenho n° 5: O aõni Inyni

284
Desenho n° 6: O aõni Ijoroderu ou Ijorobari

285
Embora não haja qualquer tipo de contato sexual entre as pessoas no Fundo das
Águas, os aõni são metaforicamente chamados de irasò wèdèna, “os que são penetrados
sexualmente pelos aruanãs”, enquanto estes últimos estão na posição, também metafórica,
de wèdèdu, “os que penetram” os aõni 34 . O pênis dos humanos terrestres é chamado
jocosamente de flecha (wyhy), de modo que o ato de flechar remete simbolicamente à
cópula. Quando os aruanãs vêm ao nível terrestre, trazidos pelos xamãs, eles pedem aos
humanos que tragam também os aõni, para que eles repitam, aqui, a brincadeira
subaquática, momento este que se constitui em uma importante e tensa parte do ciclo anual
da Dança dos Aruanãs, uma vez que há o risco terrível de que os aõni escapem dos
cercados e devorem os habitantes da aldeia. Alguns homens usam a “pele velha” dos
temidos aõni durante o ritual, o que requer um controle maior dos xamãs. Não há
referência na literatura sobre os Karajá a esses jogos de flechar os aõni do Fundo das
Águas.
Ao final das brincadeiras terrestres, os aruanãs e os aõni entram em uma espécie de
resguardo, estado de purificação em que não se pode ingerir nada com sangue e que
termina com o iwokytyna, quando podem voltar a comer peixes e carnes. O resguardo das
brincadeiras, reconhecido como tal pelos Javaé em 1997/1998, é simbolicamente similar
ao resguardo por que passam o pai e a mãe de um recém-nascido, ao fim do qual (ikytyna)
também podem voltar a comer carnes e peixes. Em suma, aruanã e aõni estão,
simbolicamente, em uma relação similar à de homens e mulheres, ou masculino e
feminino, como já foi demonstrado antes e será retomado aqui. Em geral são as mulheres
que são associadas aos aõni nos mitos, sendo transformadas em aõni ou possuindo
características deles, como o canibalismo. No paradigmático mito de Lykyni, do povo
Torohoni, já analisado antes (Rodrigues, 1993), em que uma irmã engana o irmão e
mantém relações sexuais com ele, sem ele saber que ela era a própria irmã, a mulher é
punida transformando-se em Leimylò, um aõni terrível das águas, enquanto Lykyni
transforma-se em um lindo aruanã que segue para o nível subaquático. O mesmo ocorre
em vários outros exemplos, como no mito de Kwely, neste trabalho, em que sua mulher,
que esconde o pote de água, é um aõni que retorna ao Fundo das Águas.
Não é à toa, portanto, que as irasò didi ou irasò lery, as irmãs dos aruanãs, que são
as únicas mulheres que existem no nível subaquático, também sejam mantidas à distância e

34
Wèdè é a palavra para o ato sexual. As mulheres são wèdèna dos homens, ou seja, quem é penetrado,
enquanto os homens são os wèdèdu, os que penetram sexualmente o outro.

286
sob controle, assim como ocorre com os aõni. As irmãs dos aruanãs vivem sozinhas em
suas casas, sem nenhum outro parente morando junto. Durante uma das sessões de
interpretação dos desenhos, o xamã Javaé revelou a razão básica que estrutura a
configuração espacial de todas as aldeias Javaé: assim como ocorre no nível subaquático,
as casas onde as mulheres moram são mantidas afastadas da Casa dos Aruanãs, porque as
didi são potencialmente poluidoras e os aruanãs têm horror aos fluidos que podem sair de
seus corpos. Se elas os tocarem, ainda que levemente, os aruanãs subaquáticos podem ficar
ikytyre, um estado de poluição associado à fraqueza e à preguiça 35 . Veremos na segunda
parte que o contraste simbólico entre aruanãs e aõni é o mesmo existente entre os Aroe e
Bope Bororo (Crocker, 1985), cujas mulheres ficam na periferia da aldeia porque a
menstruação ofende os Aroe.
Já foi mostrado em maior profundidade antes (Rodrigues, 1993) que kyty, traduzido
como o “cheiro forte” da carne do peixe, é um conceito que designa os estados poluídos
em que a energia vital que sai do corpo humano (em especial os fluidos sexuais e o
sangue) mistura-se com outras fontes de energia vital fora do corpo, seja durante a
menstruação, no pós-parto ou no assassinato de um inimigo. Há um conceito similar de
poluição, associado ao sangue, tanto entre os Suyá (Seeger, 1981) quanto os Bororo
(Crocker, 1985), por exemplo. Em todos esses casos, os envolvidos devem passar por um
período de purificação da mistura (resguardo ou couvade), a ser melhor descrito na
segunda parte. O princípio geral é que as misturas que ocorrem dentro dos corpos (do
sêmen do pai com as substâncias da mãe, por exemplo, produzindo um filho, ou a carne
que se ingere) são criadoras de vida, enquanto as misturas energéticas que acontecem fora
dos corpos, entre fluidos corporais de pessoas diferentes, são poluidoras e levam à doença
ou mesmo à morte. A poluição indesejada, em suma, é um estado de mistura com o
diferente.
A principal diferença entre os níveis subaquático e celeste, de um lado, e o
terrestre, de outro, enfatizada pelos Javaé várias vezes em contextos diferentes, é que os
habitantes da profundeza das águas e do Céu têm os corpos fechados (expressão que eu
proponho): ou seja, não exteriorizam energia vital, não têm relações sexuais entre si, não
menstruam e não procriam fisicamente (e não morrem sangrando, pois são imortais). Não
existe kyty no Céu e no Fundo das Águas, tema não abordado nos trabalhos escritos sobre

35
Em razão do horror dos aruanãs ao kyty, ouvi de alguns Javaé não xamãs que no Fundo das Águas não
existem mulheres, apenas homens, o mesmo ouvido por Toral (1992) entre os Karajá. Entre os Javaé, tal
informação significa, de modo mais apropriado, que não existem “esposas”, como veremos adiante.

287
os Karajá, e seus habitantes jamais misturam sua energia vital com a de outros corpos, ao
contrário do que acontece com os humanos terrestres em certas ocasiões, quando têm seus
corpos abertos e sua energia vital misturada com a de outros nessas situações críticas de
poluição. O Céu e o Fundo das Águas são lugares xiburè (“mágicos”), diversamente do
mundo social e mortal, conceito este que tem estreita relação com os corpos fechados e que
será retomado adiante. Dito de outro modo, os iny roko (os últimos humanos que ficaram
embaixo e se transformaram em aruanãs) nunca morreram, nunca passaram pelo processo
de acúmulo e perda de energia vital que caracteriza os corpos perecíveis dos humanos
mortais. Os Javaé dizem que, se os habitantes dos níveis mágicos tiverem relações sexuais
entre si, eles perderão o seu poder extraordinário.
A poluição associa-se sempre ao corpo feminino aberto, porque os corpos das
mulheres são os que exteriorizam mais substâncias (seja na forma de menstruação ou de
filhos). Mesmo não havendo relações sexuais ou procriação física no nível subaquático, as
irmãs dos aruanãs são mantidas à distância, em outra casa, porque elas são potenciais
poluidoras. Elas precisam ser isoladas e controladas como os aõni, em algum grau
feminilizados, e que têm fome de sangue cru (em especial o fígado humano) quando vêm
ao nível terrestre, embora em seu mundo de origem também evitem o kyty. Quando a “pele
velha” dos aruanãs é trazida pelos xamãs para o nível terrestre, o principal cuidado da
coletividade masculina, paralelamente à manutenção do segredo de que eles não são os
aruanãs verdadeiros, é evitar a contaminação dos aruanãs com os fluidos corporais dos
humanos sociais, em especial as mulheres. Homens que tiveram relações sexuais não
devem dançar, mulheres menstruadas devem se manter longe dos aruanãs, nenhum tipo de
atividade sexual pode acontecer na Casa dos Homens, enfim, tudo que tenha kyty deve ser
evitado.
Mesmo quando não estão menstruadas, a dança das irmãs rituais terrestres com os
aruanãs é sempre um momento de extrema tensão para os envolvidos e elas são mantidas a
uma distância segura. O xamã que teve relações sexuais recentemente e está ikytyre
(poluído) não pode “viajar” com sua “pele velha” para o Fundo das Águas em busca de
aruanãs, pois os aõni o matariam se chegasse lá assim. Dizem que o kyty “maltrata” os
aruanãs e, por isso, no fim do ciclo ritual, os aruanãs estão fracos, doentes, em razão da
poluição existente no nível terrestre, por mais que se tomem cuidados, necessitando voltar
para seus mundos de origem, onde se revitalizam purificando-se. Quem “maltrata” os
aruanãs expondo-os ao kyty, seja homem ou mulher, atrai para si a ira dos xamãs e vira

288
rubuoraruna, aquele que está marcado para morrer enfeitiçado. Os xamãs que são “donos
de aruanãs”, aqueles que os trazem e controlam aqui, dizem sentir compaixão por eles
quando ficam mais de um ciclo anual, por dois anos seguidos, por exemplo, porque eles
sofrem aqui com a poluição terrestre.
No que se refere às condições de vida no nível subaquático, o foco do presente
item, o grupo de parentes de cada aruanã específico é formado pela sua irmã (ou irmãs),
que mora em casa separada, e pelo seu tio materno (lana), que mora com o aruanã na
mesma casa. O tio materno do aruanã pertence à categoria de seres chamada latèni, o nome
geral de um outro tipo de ser humano mascarado, que também existe em dupla e é muito
parecido com os aruanãs, mas que os Javaé dizem que não é um aruanã. Os latèni (“falso
peixe cachorra”) têm nomes específicos, assim como os aruanãs, e são a principal entidade
mascarada que participa do ritual de iniciação masculina, diversamente do ritual Karajá 36 .
São eles que vêm buscar os meninos que são levados da casa de suas mães para a “Casa
Grande”, onde serão iniciados (no Hetohoky de 2005/2006, na aldeia São João, havia 17
duplas de latèni, correspondentes aos 17 meninos que foram iniciados). As máscaras quase
idênticas das duplas de latèni, que andam separados pela aldeia, possuem a mesma
diferença sutil dos aruanãs, uma pena “masculina” azul e uma “feminina” vermelha no alto
da cabeça. Não há referência em nenhuma etnografia sobre os Karajá e Javaé à relação
entre as irmãs mágicas e seu tio materno mascarado no Fundo das Águas.
Em todas aldeias e territórios de aruanã existem os latèni, eles são os “guardas” da
Casa dos Aruanãs que ficam nas portas vigiando as casas e têm uma postura mais
agressiva (são comparados pelos Javaé à “polícia”). Os latèni andam com tõnõri 37 (lança)
e são “bravos”, pois eles vigiam as casas dos aruanãs para impedir que os xamãs levem
suas peles velhas para o nível terrestre sem a sua autorização. Os latèni mais bravos são o
Hukumari latèni e o Irariti latèni. Os aruanãs gostam de vir para cá para conhecer as
novidades, a comida diferente, mas sofrem com o calor e o kyty humano, por isso os tios
maternos controlam as suas vindas. Uma diferença importante é que as irmãs dos aruanãs
(assim como os donos do Berahatxi, Tõrikòkò e Torijyby) não usam máscaras, elas vivem
afastadas e adornadas apenas com suas pinturas corporais, tanga de entrecasca e enfeites de
algodão tradicionais (diversamente do nível celeste, em que outras categorias de parentes
não mascarados vivem com os aruanãs).

36
Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).
37
Tõnõri (lança) deriva de nõõ (pênis), dando um sentido de agressão à cópula (assim como “flechar”), o que
faz sentido na medida em que a mulher é simbolicamente equacionada ao inimigo.

289
Foto n° 2: Latèni chamado Bòdòlèkè (“pirarucu”) (aldeia Canoanã, 1997)

Os aruanãs subaquáticos não têm mãe, pai, irmãos, sobrinhos ou outros tipos de
tios: o grupo de parentesco básico que existe em cada território ou aldeia de aruanã é
formado por um aruanã, sua irmã e seu tio materno. Os aõni não são parentes, mas uma
categoria de alteridade em relação aos aruanãs.
O tio materno e a irmã do aruanã são quem cuidam dele: o tio caça e pesca para seu
sobrinho, enquanto a irmã (ou irmãs) do aruanã é que prepara a sua comida. Os latèni são
tios das didi também, mas vivem junto com o sobrinho. Todas essas atividades são feitas
de forma mágica, pois não há necessidade de esforço físico na profundeza das águas.
Quando os aruanãs querem brincar de alguma coisa, como a brincadeira do mel ou de

290
flechar os aõni, eles pedem para o tio materno, que se encarrega de providenciá-las. No
Fundo das Águas, existem as brincadeiras Bidi, Orinyky, Axikòròrò, Hawyky Hojuju,
Worosy Hojuju, Hererawo, Wyhyraheto, Helykyrè, Ixy, Kàrinyky, Korotxu, Kobiku,
Iwodudu, Hanyky, entre outras, além das brincadeiras de fechar os aõni de nome Halòkòè,
Inyni, Ajuesani, Ijorobari, Kahõhõ ou Ihihi.
Segundo Toral (1992:152), em uma descrição centrada mais no que os Karajá lhe
disseram, o latèni é um tipo de aruanã que vive sempre junto à porta das casas dos aruanãs
do Fundo das Águas. Os aruanãs, que estão sempre ornamentados e mascarados para
cantar e dançar, vivem em posições fixas em suas casas. Estas são habitadas por aruanãs de
nomes diferentes que “costumam visitar-se uns aos outros”, não havendo informações
sobre o tipo de relação de parentesco que mantêm entre si. Para Lima Filho (1994:42), o
latèni é um “Aruanã especial, igualmente chamado pelo nome de Wedu”, ou seja, ele é o
chefe de todos os aruanãs. No nível terrestre, assim como para Pétesch (2000), ele anda
sozinho pela aldeia e com uma vara na mão, pedindo comida e assustando as crianças.
Os tios maternos também vigiam os aruanãs durante as brincadeiras ou enquanto
eles dançam com suas irmãs nas estradas da aldeia, para que não caia nenhum enfeite no
chão ou haja algum contato entre os irmãos, do contrário eles se enraivecem bastante 38 .
Quando os aruanãs querem se reproduzir, eles desejam principalmente sobrinhos (ou
irmãos), os quais aparecem magicamente. Nos aruanãs novos são colocados nomes de
peixe e pássaros, “porque eles não conhecem nome de gente”, ou seja, eles não conhecem
os nomes dos humanos sociais. O aruanã chamado Tuhè, um dos que estava em Canoanã
em 1997, era sobrinho do aruanã Kodiura, um antigo aruanã do xamã com quem trabalhei.
Os latèni têm sempre o mesmo nome que seus ra (filhos da irmã), ou seja, um aruanã
chamado Sõsõ (Sõsõ irasò) tem um tio materno chamado Sõsõ também (Sõsõ latèni).
Como não existem casamentos nem relações sexuais no nível subaquático, não existem
afins, tais como genros, noras, sogros ou cunhados, nem serviço da noiva (tykòwy), mas
apenas grupos de irmãos e seus tios maternos que não se misturam entre si.
O povo do Fundo das Águas vive em um lugar em que desejos (por comida, água,
filhos etc) são realizados magicamente (xiburè), em um estado de imortalidade, juventude
eterna, estatismo espacial e temporal, ausência relativa de alteridades (não existem afins,

38
Tal função é praticada no nível terrestre pelos jyrè (“ariranha”), nome da categoria à qual pertencem os
meninos recém-iniciados, os quais não existem no Fundo das Águas. Aos jyrè são atribuídas as tarefas mais
desagradáveis na Casa dos Homens, como buscar água, comida, os materiais necessários para os rituais,
vigiar a performance dos dançarinos mascarados etc.

291
mas os aõni moram junto e as irmãs são uma ameaça potencial) e de esforço físico. Não há
feitiços/doenças nem brigas ou fofocas e o ambiente é mais fresco que o nível terrestre,
porém a plenitude e abundância não são tão completas como no Céu: o ambiente é mais
escuro, a comida não é muito cozida, o chão é um pouco enlameado, a água não é
cristalina, eles não conhecem os produtos agrícolas (as pessoas comem apenas carne de
peixe e caça) e vivem em um espaço mais apertado que o nível terrestre. Afinal, como já
foi dito, a curiosidade pelas novas comidas do nível terrestre, pela luz do Sol e pelos
espaços amplos revela que havia algum tipo de carência no nível subaquático, que não se
tratava de um ambiente totalmente perfeito. Lima Filho (1994:145) diz que “no mundo sob
as águas não havia morte, dor ou perigo” e que era um lugar sem muito espaço e cujas
pessoas tinham pouca mobilidade.
Quando houve a cisão entre os humanos que ascenderam ao mundo do meio e os
que ficaram embaixo, transformados em aruanãs, dois xamãs do povo Wèrè, chamados
Ibòrò e Hãbu, conforme o mito já narrado, tiveram a idéia de trazer os aruanãs para o nível
terrestre, para que a brincadeira deles fosse repetida aqui. Como aqui havia a morte e a
poluição, os aruanãs não podiam vir com seus corpos imortais e puros. Então foi decidido
trazer apenas as peles velhas dos aruanãs, que aqui são controladas pelos xamãs na Casa
dos Homens e “usadas” pelos humanos terrestres, os quais usam máscaras idênticas às dos
aruanãs verdadeiros, copiadas aqui pelos xamãs. Aqui os aruanãs dançam com as adusidu
(dançarinas), as suas irmãs rituais terrestres. À brincadeira que era realizada embaixo foi
acrescentada uma série de novos componentes e proibições, a fim de regular a convivência
dos aruanãs com os corpos abertos e poluidores dos humanos sociais. Além disso, outros
povos contribuíram para o enriquecimento do ritual, como já foi narrado pelo mito.
Segundo os Karajá, “o povo do fundo das águas” trouxe as pinturas corporais, que em sua
maioria são imitação dos peixes, a tatuagem facial, os adornos corporais e objetos rituais
do (Lima Filho, 1994:145-146).
Em uma versão do xamã que descreveu os níveis cosmológicos, um pouco
diferente da apresentada no mito, os dois irmãos Wèrè que saíram do Berahatxi
chamavam-se Ibòrò e Byrykytxi, os primeiros xamãs do nível terrestre. Eles não gostaram
daqui após as primeiras descobertas, porque viram que as árvores, o capim, tudo, enfim,
secava e morria, o que não acontecia no Fundo das Águas. Depois de descobrirem que aqui
não tinha kohowena, um outro nome para “aruanã”, Ibòrò resolveu trazer os aruanãs,

292
cercados com os segredos necessários, para “comer o tykòwy (preço da vagina) da irasòsè
(mãe do aruanã)”.

Foto n° 3: Aruanãs dançando com suas irmãs rituais (aldeia Canoanã, 1997)

Somente na minha segunda ida ao campo, depois de muitos meses de pesquisa, é


que vim tomar consciência, através das palavras de um dos meus principais informantes,
que “tudo em uma aldeia Javaé existe por causa do tykòwy”, as prestações matrimoniais.
Toda a comida que circula nas casas ou nos rituais – e simplesmente não se realiza nem a
Dança dos Aruanãs nem o ritual de iniciação masculina se não existir a comida que é
levada à Casa dos Homens – é oriunda do serviço da noiva que os homens pagam aos seus
afins pelo direito de ter relações sexuais com as mulheres. Os aruanãs, dizem eles, “vêm
para comer o tykòwy” das mulheres. Assim como tudo que Tanyxiwè conquistou para a
humanidade, diz o mito, é Myreikò tykòwy, ou seja, foi em troca da vagina da Myreikò, sua
esposa. Ibòrò decidiu que cada aruanã que viesse seria entregue pelo xamã a uma família
terrestre, no sentido de que esta se responsabilizaria pela sua alimentação, uma vez que o
mundo do meio não é mágico e as pessoas precisam trabalhar para comer.
Assim, quando vem aqui, todo aruanã tem uma mãe (irasòsè, “mãe de aruanã”) e
um pai (irasòtyby, “pai de aruanã”) que cuidam da sua alimentação durante todo o ciclo
anual – o pai pesca, caça e trabalha na roça, enquanto a mãe prepara a comida produzida, o

293
mesmo ocorrendo entre os Karajá 39 . Essa é a sua família terrestre, seus “parentes
cerimoniais”, porque não estão ligados fisicamente entre si, através de relações de
substância ou descendência. Afinal, os aruanãs permaneceram de corpos fechados,
reproduzindo-se magicamente, enquanto os humanos sociais reproduziram-se através do
sexo, conectando-se fisicamente uns aos outros. Por isso se diz que o aruanã vem comer o
tykòwy da irasòsè, ou seja, o produto do serviço da noiva que o pai do aruanã presta para a
mãe do aruanã e seus afins. Segundo Pétesch (2000), em sua versão Karajá, estabeleceu-se
uma relação de troca entre os humanos aquáticos e os terrestres: os aruanãs protegem os
humanos e facilitam a pescaria em troca de alimentação nos rituais. A exploração da fauna
aquática sem a devida retribuição alimentar aos aruanãs causa doença ou morte 40 .
O dono terrestre verdadeiro do aruanã (irasò wèdu), entretanto, para quem o xamã
o entrega, é um filho ou filha desse casal, assim como entre os Karajá (Pétesch, 2000). A
criança estará identificada com ele até o nascimento do seu filho primogênito, para quem o
aruanã será transmitido hereditariamente, e assim sucessivamente. Tanto o(a) menino(a)
com o qual o aruanã está identificado quanto o aruanã propriamente dito são tratados como
“filho” do casal, cuja principal tarefa é alimentá-los. Os irmãos, tios ou avós do(a)
menino(a) são também considerados como irmãos, tios, avós do aruanã. Por ora, basta
saber que tanto a pessoa que está identificada com o aruanã, quanto os pais dos aruanãs e o
xamã que controla o aruanã são todos conhecidos como irasò wèdu, “donos do aruanã”.
Segundo Toral (1992:160), os aruanãs passam a ser “ixy nohõ”, uma espécie de xerimbabo
(animal de estimação) da aldeia e da criança que o recebeu.
O conceito de “dono”, ao qual retornarei, designa aquele que controla o aruanã (o
xamã), aquele que se responsabiliza por ele (os pais) e aquele com o qual o aruanã tem
uma relação de identidade (o filho do casal). O aruanã propriamente dito é o wèdu huky, “o
dono maior”, o verdadeiro dono de si próprio quando não está aqui no nível terrestre. Essa
relação de identidade entre o(a) filho(a) de um casal e o aruanã, já analisada anteriormente,
será retomada ao longo deste trabalho sob uma perspectiva diferente, relacionando-a com o
tema da construção da pessoa entre os Jê-Bororo 41 .

39
Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).
40
Temas parecidos se repetem no alto Xingu: Agostinho (1974:70) descreve uma pescaria ritual do Kwaríp
em que os homens fazem oferendas ao “dono dos peixes” (entidade tutelar dotada de “olfato sensível”, à qual
desagrada sobremaneira “o odor das relações sexuais”) em troca de abundância de peixes nas pescarias.
41
Em Rodrigues (1993) encontra-se uma descrição da chegada e despedida ritual dos aruanãs, além do
momento formal em que o xamã o entrega a sua família terrestre. No trabalho mencionado, o aruanã foi
considerado como um “parente de criação”, noção esta não totalmente adequada e que deverá ser
aperfeiçoada aqui.

294
4.2.2. Os Worosy

Um outro componente fundamental do Fundo das Águas é que apenas neste nível
cosmológico existe o Hetohoky, a “Casa Grande” em que vivem os humanos mágicos
chamados worosy. Estes são convidados para participar do ritual de iniciação masculina no
nível terrestre, cujo objetivo é apresentar os meninos aos segredos masculinos e, em última
instância, transformá-los nos dançarinos que usam as peles velhas dos aruanãs. Nesta
ocasião importante, uma casa idêntica à que existe no mundo de baixo é construída aqui
pelos humanos sociais. Não pretendo reconstituir aqui o ritual de iniciação masculina,
merecedor de um tratamento mais profundo e em separado tal a sua complexidade, mas
apenas as condições de vida dos moradores da Casa Grande do nível subaquático.
O Hetohoky original e a maioria de seus moradores não existem em nenhum outro
hãwa, a não ser, única e exclusivamente, na Marani Hãwa subaquática, no espaço inferior
correspondente à aldeia Marani Hãwa terrestre, berço da cultura Javaé. Esse é um lugar
especial tanto aqui como no Fundo das Águas, separado de todos os hãwa onde vivem
aruanãs, sobre o qual não há nenhuma referência nas etnografias sobre os Karajá e Javaé.
Como já foi contado no mito, foram os Wèrè, em sua passagem pela Marani Hãwa de
Tòlòra, que resolveram trazer (ou copiar) para o nível terrestre o Hetohoky e a Dança de
Aruanãs que eles já conheciam no Berahatxi. O desenho ao lado (n° 7), feito pelo xamã, é
uma representação da Casa Grande Javaé, exatamente como ela existe no Fundo das Águas
e como é construída aqui. É interessante notar que, no alto Xingu, segundo a mitologia
(Agostinho, 1974:70), a Casa das Flautas interdita às mulheres é “um lugar aquático e
ligado à origem dos rios”.
Diferentemente dos Karajá 42 , não existe entre os Javaé o Hererawo, uma espécie de
corredor, equivalente ao “meio”, que liga a Casa Grande e a Casa Pequena que são
construídas especialmente para a iniciação. O corredor Hererawo Karajá é estruturado a
partir de cinco (Souza Filho, 1987c), sete (Lima Filho, 1994) ou seis (Pétesch, 2000)
árvores diferentes associadas aos grupos rituais patrilineares, que se dividem nas metades
de cima (ibòkò) e de baixo (iraru). No Caso Javaé, constrói-se apenas uma Casa Grande,
com três portas, que é emendada à Casa dos Homens já existente.

42
Ver Dietschy (1977, 1978), Fénelon Costa (1978), Souza Filho (1987a, 1987b, 1987c, 1987d), Donahue
(1982), Toral (1992), Lima Filho (1994) e Pétesch (1992, 2000) sobre o Hetohoky Karajá.

295
~
Desenho n° 7: A Casa Grande (Hetohoky)

296
Hererawo é somente o nome de uma versão menos elaborada do ritual de iniciação,
quando não se constrói uma Casa Grande. Além disso, o formato da Casa Grande Javaé é
bastante diferente da Casa Grande Karajá, que não contém as três portas mencionadas,
além de ser mais alta, triangular e aberta dos lados. Há fotos da casa ritual Karajá em Lima
Filho (1994), Pétesch (2000) e Moura (2006).

Foto n° 4: Hetohoky emendada à Casa dos Homens (aldeia São João, 2006)

A pequena casa que aparece ao fundo no desenho só existe no Fundo das Águas,
não sendo construída aqui durante o ritual de iniciação. É a casa dos Ihõ, um dos tipos de
worosy que se divide entre os Hiretu e os Saura (grupos cerimoniais), para os quais há
portas específicas, ambas viradas para o lado leste. Entre as duas casas existe a Ihõ ryy
(“estrada dos Ihõ”), que é reproduzida no nível terrestre para a participação ritual dos Ihõ
aqui. A Casa Grande, tanto lá embaixo como quando é construída aqui, possui três portas
viradas para o leste, uma associada aos Hiretu (rio abaixo), outra aos Saura (rio acima).
Existe uma terceira porta, itya ijò (a “porta do meio”), em que entram os Saura Haky, um
grupo de worosy subaquáticos que só se constitui durante o ritual. Os humanos terrestres
dividem-se em duas metades cerimoniais, os Hiretu (gavião carcará) e Saura (macaco-
prego), ou seja, apenas os worosy do Fundo das Águas possuem a terceira categoria. Entre

297
os Karajá, existe um “grupo do meio” de prestígio que opera durante o ritual e é associado
ao corredor Hererawo 43 .
A cada porta corresponde um grande tronco, chamado tòò, cuja base é pintada de
urucum. Um dos “segredos do Hetohoky” no nível terrestre é que cada tronco, aqui,
contém em si um tykytyby (“pele velha”). Os mastros eram três pessoas antigamente, que
morreram, chamadas Hiretu, Saurahaky e Saura. Agora são worosy (no sentido de parentes
que já morreram) e no ritual terrestre vêm apenas as suas peles velhas. Segundo Lima Filho
(1994:85), as sete árvores do corredor Karajá, de sete espécies diferentes, têm “donos” e
são distribuídas entre os três grupos rituais 44 . A casa tem também dois Asy kòwona,
troncos de árvores com folhas onde o Asy worosy (“o worosy chamado macaco guariba”)
se pendura. No telhado do lado oeste da casa, não representado no desenho, tem o ijòrè
heto 45 , uma espécie de buraco por onde o Asy worosy passa para subir e colocar bananas
amarradas nas árvores, de onde ele gosta de olhar à sua volta. Na Marani Hãwa
subaquática também existem pedras, representadas ao longo da estrada, e um rio à beira do
qual situa-se a Casa Grande.
Os worosy que são convidados para o ritual de iniciação terrestre são também
chamados aõni aõni e provêm em sua grande maioria da Marani Hãwa subaquática,
havendo alguns convidados do ritual que não são do Fundo das Águas. Os aõni aõni são
humanos mágicos e são caracterizados com vários tipos de adornos corporais simples
quando comparados às elaboradas máscaras dos aruanãs (ver fotos a seguir). Na maior
parte dos casos, os convidados imitam o comportamento de animais quando vêm ao ritual
terrestre, seja através dos ornamentos, dos sons ou das performances rituais. Eles vêm ao
nível terrestre para “brincar”, dançar e se alimentar da comida oferecida pelos humanos
sociais, mas também para aconselhar os meninos que estão sendo iniciados (jyrè). Apesar
do mesmo nome, os worosy subaquáticos ou convidados não se confundem com os worosy
que vivem abaixo do cemitério (a coletividade de “mortos” que não ascendeu ao Céu,
chamada de wabèdè worosy) nem com a coletividade masculina, que se autodenomina
worosy quando está reunida nas atividades rituais ou na Casa dos Homens, como veremos
no Capítulo 7.

43
Ver Dietschy (1978), Fénelon Costa (1978), Souza Filho (1987d), Toral (1992), Lima Filho (1994),
Pétesch (2000).
44
No alto Xingu, um de seus principais rituais, o Kwarìp (ver Agostinho, 1974), é fundamentado na
transformação mítica e ritual de troncos em seres humanos.
45
Ijòrè é o nome de um tipo de mingau de peixe cozido.

298
Durante o ritual de iniciação masculina, há uma clara diferença entre os worosy
convidados (ou aõni aõni), que não são considerados como “mortos”, e os worosy da Casa
dos Homens, que constroem a Casa Grande para receber os convidados e que têm uma
origem específica que os distingue tanto dos aõni aõni quanto da categoria geral de
“mortos” anônimos. Os antropólogos que pesquisaram os Karajá 46 tendem a traduzir o
conceito de worosy – referindo-se aos diferentes tipos de participantes do ritual de
iniciação – com o sentido geral de “mortos”, o que parece fazer mais sentido entre os
Karajá, mas que é bastante inadequado no caso Javaé. Lima Filho (1994:55) mostra em
detalhes como grupos de mortos dos cemitérios (worosy), incluindo os de outras antigas
aldeias, o que não existe no ritual Javaé 47 , e “espíritos” de animais (aõniaõni) são a
principal categoria “representada” pelos Karajá na iniciação. Pétesch (2000:63) diz que são
os “woràsã”, enquanto representação da comunidade de mortos anônima e benéfica, que
“interpretam os espíritos de animais” (ver Lipkind, 1948), de modo que a comunidade de
mortos, durante o ritual de iniciação, seria muito mais uma “duplicação da sociedade dos
vivos” (Pétesch, 2000:82) do que a sua antítese 48 .
Entre os Javaé, os worosy do Fundo das Águas não são tidos como “mortos” nem
como intérpretes de “espíritos de animais”, uma vez que eles são iny roko também, assim
como os aruanãs. Ou seja, eles são em sua maioria parte daqueles humanos originais que
ficaram embaixo depois das subidas míticas e que nunca passaram pelo processo da morte,
ocasião em que a maioria transformou-se em aruanãs e alguns em worosy. Os worosy são
“gente”, mas, diferentemente dos humanos terrestres, não casam, não têm relações sexuais
entre si, não conhecem o kyty poluído, não têm afins nem dívidas a pagar. Quando querem
filhos, basta desejar/falar e eles aparecem magicamente. Assim como os aruanãs, os
worosy do Fundo das Águas têm nome de animais em sua maioria, mas não são animais
nem “espíritos de animais”, como é recorrente na literatura sobre os Karajá (ver Lipkind,
1948). “É só o nome”, dizem os Javaé. Além dos worosy que imitam animais, existe o

46
Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).
47
Como o ritual de iniciação Javaé não dramatiza a rivalidade entre aldeias, ao contrário dos Karajá, também
não existe essa figura dos “mortos” de outros cemitérios que aparecem para lutar com os da aldeia hóspede
(Lima Filho, 1994). Há um determinado momento, porém, denominado Imonahaky, sobre o qual não há
referência na literatura Karajá, em que as mulheres e crianças são autorizadas a entrar na Casa Grande para
assistir a todos os “convidados” sendo alimentados enquanto dançam e cantam. Neste momento especial,
apenas, um grupo dos mortos anônimos que vivem no cemitério da aldeia (os wabèdè worosy) em que está
sendo realizado o ritual – e não os de outras aldeias – comparece como mais um dos cerca de 70 convidados
que vêm se alimentar, formando uma categoria à parte.
48
Toral (1992:172) chama os seres que descrevo neste item de aõniaõni, simplesmente, definindo-os como
“aõni ligados a espécies animais”. O autor também se refere aos participantes da iniciação como “mortos”.

299
worosy da “roça velha” (Koworutyby), como se a roça fosse um ente humano. Há alguns
dos participantes do ritual terrestre, entretanto, que não são iny roko, que não possuem uma
origem subaquática, que não imitam os animais e que passaram pela morte. São
personagens relacionados a alguma transformação ocorrida nos tempos míticos e que
foram posteriormente incorporados ao ritual como convidados especiais, como peles
velhas que são usados pelos humanos sociais. É preciso conhecer a mitologia para
conhecer a sua história específica.
É o caso dos Wèrèkuni, dois Wèrè que praticaram feitos heróicos; das Hawyky
worosy (“mulheres worosy”), nome das peles velhas das mulheres do povo Anirahu que
habitavam a Ilha do Bananal e se transformaram em Avá-Canoeiro, embora se diga que os
worosy são homens, na verdade; e do Torikuni, entre outros, a pele velha de um branco
(Tori) que foi morto por Marihoko, do extinto povo Torohoni, e passou a fazer parte do
Hetohoky da Marani Hãwa terrestre. Ele foi originalmente entregue como um presente ou
homenagem a Tòlòra e tornou-se um dos mais importantes convidados do ritual. Outros
participantes são worosy que os Karajá “trouxeram” para os Javaé durante visitas que
coincidiram com a realização do Hetohoky Javaé, nas últimas décadas, como o Wabe, com
seu imenso falo, o Tuhè, o Kòbòròrò e o Ehy, embora haja um Ehy que já era dos Javaé. O
Kykòkykò e o Bodòlèkè worosy foram trazidos pelos Xambioá há mais tempo e passaram a
ser parte do ritual Javaé. O mesmo ocorreu com os Karajá, que conheceram novos worosy
entre os Javaé e os adotaram em seus rituais. Há também o Harisahaky, um worosy que os
Tapirapé “deram” aos Javaé na antiga aldeia Wariwari, antes do século 20. O Hetohoky
continua a ser recriado a partir de contribuições de povos diversos, em momentos
diferentes, o que acentua o seu caráter histórico e a idéia de que os habitantes da região da
Ilha do Bananal e arredores partilhavam de um mesmo complexo cerimonial.
Embora não haja meninos a serem iniciados, os worosy também têm um ritual da
Casa Grande na Marani Hãwa subaquática, quando dançam imitando os animais, durante o
bèora (auge da enchente), a mesma época em que é realizado aqui. A imitação dos animais
é uma espécie de “brincadeira” dos worosy, nas palavras de um xamã, que se divertem com
as imitações. Em geral, os worosy ficam virados para o lado leste, como devem fazer aqui
quando se alimentam dentro da Casa Grande, porque o lado oeste é escuro e “faz mal”
(ibinare). Durante o resto do ano eles se comportam como as pessoas daqui, caçando e
pescando. Sempre que eles dormem, quando é meio-dia ou durante a noite, eles se
transformam em hemylala (sucuri). De lá do Berahatxi os worosy enxergam o que acontece

300
aqui no nível intermediário, locomovendo-se para cá quando o ritual da Casa Grande
terrestre vai começar. Eles vêm por conta própria, diferentemente dos aruanãs e aõni, que
são trazidos pelos xamãs, e sem o Worosytyby (“pai dos worosy”). Este último é o
equivalente subaquático do Ixytyby (“pai do povo”), o chefe cerimonial que assume o
comando do ritual terrestre. Os latèni, os tios maternos mascarados dos aruanãs, são
personagens centrais do Hetohoky e também são trazidos pelo xamã depois que os worosy
chegam.
O ritual do Fundo das Águas, entretanto, é bem mais simples do que o realizado
aqui. Ele não tem o menino a ser iniciado (jyrè) ou a parte em que estes são levados para
fora da aldeia, onde têm seus cabelos cortados e o corpo pintado de preto. Não tem também
o público feminino que assiste ao ritual, o que leva a uma série de precauções aqui, não
tem os latèni dançando ao redor das casas dos futuros jyrè, não tem os dois rituais de
encerramento (Imonariòrè e Imonahaky) e não se conta com a participação dos iòlò (chefes
hereditários), entre outras variações. Os iòlò, aliás, apesar de terem surgido do Céu (com o
Urubu-Rei) e do Fundo das Águas (com Tòlòra), deixaram de existir no nível subaquático
depois das transformações míticas. Os worosy que vêm para o ritual terrestre moram quase
todos juntos dentro da Casa Grande subaquática, pois são todos parentes. A única
separação dentro da casa ocorre em função do pertencimento aos grupos cerimoniais
Hiretu, Saurahaky e Saura, pois cada grupo mora perto da sua porta de entrada e saída
respectiva.
Os Hiretu e Saura subaquáticos competem entre si para ver quem vai trazer
primeiro a caça ou os peixes e fazer a comida. O vencedor durante o ritual é conhecido
como ijoira biawa, literalmente “companheiro (biawa) da cabeça (ra) do grupo de homens
(ijoi)”. Várias competições análogas, como quem constrói a Casa Grande mais rápido, são
repetidas no ritual de iniciação do nível intermediário. Dentro da casa, os worosy comem
apenas peixes, caça e tartarugas, pois eles não conhecem a agricultura. A carne ingerida é
relativamente crua e a terra onde pisam é molhada, enlameada, tudo muito parecido com os
territórios dos aruanãs. Assim como estes últimos, os worosy gostam de vir ao nível
intermediário dos humanos sociais para conhecer o lugar diferente, comer a comida que
eles não conhecem, assada, cozida e com produtos agrícolas, ao mesmo tempo em que
reclamam que aqui é quente e ikytyre, poluído. Em alguns momentos do ritual terrestre,
eles xingam as mulheres, falando que elas estão fedendo a kyty. Eles também vêm apenas
com seus “corpos ou peles velhos”, que são usados pelos homens daqui.

301
Foto n° 5: Dupla de worosy (aldeia Canoanã, 1997)

Os worosy podem andar sozinhos, em duplas ou em grupos, cada um possuindo


músicas, modo de dançar e vestimenta cerimonial próprios. Não existem mulheres entre
eles e, embora um deles tenha aparência, nome e vestimenta de mulher, trata-se de um
worosy do sexo masculino (Kurisirisè, “mãe de Kurisiri”). Também os Hawyky worosy
(“worosy mulher”) são homens.
Apresento a seguir uma lista dos worosy que compareceram ao Hetohoky de
Canoanã em 1997, a relação de parentesco entre eles e sua filiação às metades cerimoniais.
Embora haja categorias gerais parecidas (worosy, aõniaõni, aruanãs, aõni etc), há uma
diferença considerável entre os Javaé e Karajá no que se refere aos nomes dos diversos
personagens cósmicos que compõem essas categorias abrangentes. Aqueles cujos nomes

302
não foram traduzidos ou não têm uma explicação são personagens que não imitam animais
e de origem desconhecida por mim:

Foto n° 6: Nawaki, “mutum” (aldeia Canoanã, 1997)

Os worosy que vêm juntos, formando um único grupo:

• Hakuri (“cotia”) – Saura


• Asy (“macaco guariba”) – Hiretu (Asy é tio materno do Hakuri)
• Õhõrè (“jacu”) – Saura (irmão classificatório mais novo [ixi] do Hakuri)
• Harià birè – Hiretu (é uma dupla de tio materno e sobrinho)
• Kanydura (“peixe bicuda”) – Saura (é uma dupla de tio paterno mais velho
[wahaura] e sobrinho)
• Irasò worosy (“worosy do peixe aruanã”) – Saura (é uma dupla de irmãos
classificatórios mais velhos [nyry] dos worosy tyhy [“worosy verdadeiros”], nome
de um grupo de várias duplas)
• Waritètè (nome de um tipo de sapo) – Hiretu (é uma dupla de dois irmãos)
• Ehy – Hiretu (é uma dupla de dois irmãos)
• Wakurau (“dono do fogo”) – Hiretu (tio paterno mais velho do Wabe, um dos
worosy solitários)

303
Os worosy que andam sozinhos:

• Harabòbò (nome de um importante personagem do mito sobre Inywèbohona, a ser


narrado no Capítulo 7) – Saurahaky
• Wou Harabòbò (“Harabòbò dos Tapirapé”) – Saurahaky (irmão de Harabòbò)
• Kurè (“camaleão”) – Hiretu
• Kuoru (“peixe elétrico”) – Saura (Kurè é primo mais novo de Kuoru)
• Wamybeju – Hiretu
• Torikuni (“pele velha do branco”) – Saura (Torikuni é o tio materno de Wamybeju)
• Worosy Wenona (“worosy especial”) – Hiretu (primo mais velho do Torikuni)
• Kobibiè (“peixe cari ou cascudo grande”) – Saura (ele é primo mais velho dos
worosy que andam em grupo) 49
• Koworutyby (“roça velha”) – Hiretu (tio paterno mais velho dos worosy que andam
em grupo)
• Huykowo (nome de uma pessoa cujos cabelos foram devorados pelas abelhas e
morreu) – Saura (avô [labiè] dos worosy que andam em grupo)
• Wabe (personagem que anda com uma borduna fálica e assusta as mulheres) –
Saura
• Kurisirisè (“mãe de Kurisiri”) – Saura
• Inyni labiè (“avô do Inyni”) – Saura (forma um par com Kurisirisè, mas não são
considerados uma dupla porque não são idênticos)
• Wema (o réptil “matamatá”)– Saura
• Kòtybyna (“jabuti”)– Saura (tio materno de Wema)
• Ahola (“lobo-guará”)– Saura (primo mais velho do Wema)
• Kòtèmahi (“caranguejo”) – Hiretu
• Hui (“traíra”) – Saura (primo mais velho de Kodemahi)
• Wyi (nome de um pequeno pássaro preto que fica na beira do rio) – Hiretu (primo
mais velho do Waritètè, do grupo anterior)
• Budura (nome de um tipo de abelha que mora no cupim) – Saura
• Wariri (“tamanduá-bandeira”) – Saura (tio materno do Budura)
• Koroètè (“sapo”) – Hiretu (Budura é tio materno do Koroètè)

Os worosy que vêm na forma de uma dupla, idênticos entre si (são todos duplas de
irmãos):

• Kòtu (“tracajá”) – Saura


• Nawakiè (“ema”) – um é Hiretu e o outro Saura
• Iòbèsè (personagem mascarado) – Saura
• Ijakuhi worosy (nome de um aruanã que participa do ritual) – um é Hiretu e o outro
Saura
• Wanitaratara – Hiretu
• Rahy (“peixe cascudo pequeno”) – Hiretu

49
Neste e em alguns outros casos, os worosy que andam em um único grupo foram referidos como se fossem
uma única pessoa, de modo que Kobibiè é o primo mais velho de todos eles.

304
• Harisahaky (“pacu grande”) – Hiretu
• Harisa (“pacu-amarelo”) – Saura
• Bòròhoky (“arraia grande”) – Saura
• Bòròsomõ (“arraia pequena”) – Hiretu
• Ijekeke (“jaó”)– Saura
• Ikòrò (“raposa”) – Hiretu
• Bòròrè (“cervo”) – Saur
• Tuhè (nome de um peixe pequeno) – Hiretu
• Botòè (“pombo”) – um é Saura e o outro Hiretu
• Kòbòròrò (“jacaré-açú”) – Saura
• Bòdòlèkè (“pirarucu”) – Hiretu
• Bòdòlèkè worosy dos Xambioá (“worosy pirarucu dos Xambioá”) – Saura
• Turè (“pirarara”) – Saura
• Worosy rehè (“worosy comprido”) – Saura
• Worosy tyhy (“worosy verdadeiro”) – Hiretu (constitui uma exceção, pois são
várias duplas iguais; os Worosy tyhy são irmãos classificatórios mais novos dos
Worosy rehè)

Os worosy que vêm na forma de várias duplas idênticas, em que cada conjunto forma
uma “família”:

• Ài (“perereca”) – Hiretu e Saura


• Bèdèrohõ (“abelha arapuá”) – Saura
• Weryry (“marreco”) – Hiretu
• Warure – Hiretu
• Nawaki (“mutum”) – Saura
• Jyrè (“ariranha”) – Hiretu
• Korera (“jacaré-tinga”) – Saura (ele vem acompanhado de vários dos seus
“filhotes”)
• Burukuku (nome de um tipo de gavião noturno) – Hiretu
• Hawyky worosy (“worosy mulher”) – Hiretu
• Budòè (“veado mateiro”) – Saura
• Ajuesani – Hiretu
• Ihõ – Hiretu e Saura
• Jõkõin Jõkõin ou Korobi worosy (“macaco-prego”)
• Kykòkykò (nome de um pequeno macaco do Pará)
• Huru (“sapo cururu”)

No Hetohoky de 2005/2006, realizado na aldeia São João, alguns dos worosy acima
listados não comparecem, enquanto outros que não vieram em 1997 participaram do ritual,
como Buhã (“boto”), Txyry (“peixe carapirosca”), Wakaxia (um tipo de socó pequena),
Harariè (um peixe pequeno), Hatana (um tipo de jacu), Huisomo (“traíra pequena”).

305
Outros personagens não listados comparecem sempre ao ritual, como o Taraytede, um ser
mascarado que aparece do mato andando muito devagar, e os wabèdè worosy, os mortos
do cemitério, cujas peles velhas são usadas pelos homens no dia do Imonahaky, em que
todos os convidados são alimentados com o caldo iweru na Casa Grande. Segundo Toral
(1992) e Lima Filho (1994), que apresentam os nomes dos worosy Karajá, a maior parte
deles chega bem antes da construção da Casa Grande terrestre Karajá, alguns com vários
meses de antecedência. No ritual Javaé, a grande maioria dos worosy convidados começa a
chegar somente depois que a casa é levantada pela coletividade masculina, dividida entre
os Hiretu e Saura.

Foto n° 7: Wabe (aldeia Canoanã, 1997)

306
Chama atenção que apenas dois deles (Harabòbò e Wou Harabòbò), os quais têm
um papel de destaque durante o ritual de iniciação, pertençam ao grupo cerimonial
Saurahaky. Também é notável o fato de que “um” worosy seja uma pessoa sozinha, uma
dupla de parentes, várias duplas de parentes, um grupo de parentes ou uma “família”
(assim como “um” aruanã é em geral representado por uma dupla), o que tem a ver,
suponho, com a idéia de que os parentes próximos são pensados como um único corpo ou
uma só pessoa. Embora cada worosy tenha relações de parentesco mais próximas com um
ou outro da lista, todos fazem parte de uma única e grande parentela (sy ou kyy), a maioria
residindo dentro da Casa Grande. As “famílias” grandes em geral são Saura. Alguns
worosy gostam de andar em outros lugares, fora da Marani Hãwa subaquática. Os
Bèdèrohõ, os Jokõi Jokõi e Ajuesani, por exemplo, gostam de andar em bandos nos outros
territórios do Fundo das Águas, nos hãwa e casas dos aruanãs, onde roubam comida.
Quando estão aqui, os Bèdèroho (“abelha arapuá”) puxam os cabelos de quem está
fora das casas enquanto eles andam pela aldeia, imitando as abelhas arapuá que entram nos
cabelos das pessoas; os Jokoi Jokoi (macaco prego) pegam tudo que acham estranho fora
das casas, como os macacos curiosos e atrevidos, e roubam e matam com varas os animais
domésticos comestíveis soltos pela aldeia. Enquanto isso, as mulheres e crianças
aterrorizadas, com medo deles e dos Ajuesani, permanecem trancadas e em silêncio total,
em um momento bastante tenso do ritual. No Fundo das Águas, o Asy (“macaco guariba”)
também costuma pegar comida alheia dentro da Casa Grande ou tudo de estranho que não
conhece. No nível terrestre, ele anda no telhado da Casa Grande, de onde urina nas
mulheres e crianças que entram na casa no único dia em que isso é permitido, durante o
Imonahaky, e joga casca de banana nelas. Elas tentam escapar de suas travessuras
enquanto se aglomeram, assustadas, no canto da Casa Grande, associada ao lado Hiretu,
onde estão autorizadas a assistir aos worosy dançando.
Os Ihõ, que andam pelas casas de aruanãs do Fundo das Águas atrás de comida,
fazem o mesmo nas roças dos humanos terrestres, roubando o que vêem pela frente
durante o ritual de iniciação masculina. Apesar da Casa Grande existir apenas em Marani
Hãwa, alguns worosy moram em outros hãwa subaquáticos, como os Worosy tyhy, que
têm uma aldeia no Sòhoky e ao norte do Boto Velho, onde os Ihõ também tem uma casa,
além da existente em Marani Hãwa. Outros que moram também fora de Marani Hãwa são
o Ijakuhi, o Wanitaratara, o Budoè e o Iòbèsè, o qual tem casas espalhadas em vários
lugares. Os Ihõ, que moram em uma pequena casa afastada da Casa Grande (ver Desenho

307
n° 7), estão entre os worosy mais temidos pelas mulheres quando vêm aqui, pois eles
andam em fila, nus, apenas pintados com uma tinta feita de um barro especial, em uma
espécie de marcha militar, emitindo roncos assustadores, ocasião em que elas mais uma
vez se trancam dentro das casas.
No encerramento do ritual, repete-se aqui a brincadeira deles realizada no fundo
subaquático, quando os Ihõ correm atrás da ikòrò worosy (“raposa”) para pegá-la,
momento em que ela (uma dupla), morrendo de medo, dispara a correr pela aldeia.

Foto n° 8: Ihõ (aldeia Canoanã, 1997)

Os Javaé dizem sentir compaixão por ela nesse momento, que começa a chorar em
voz alta ainda de madrugada, dentro da Casa Grande, quando ela e todos da aldeia sabem
que, ao amanhecer, os Ihõ aparecerão, vindos do mato pela “estrada dos Ihõ”. Chamo esse
worosy de “ela” porque, assim como os aõni em relação aos aruanãs na brincadeira de
flechar, a ikòrò é chamada de Ihõ wèdèna (“a que é penetrada pelos Ihõ”) e os Ihõ, de
Ikòrò wèdèdu (os que penetram a Ikòrò), contendo um sentido explícito de violência sexual
grupal que remete aos estupros coletivos de antigamente. Também não há referências
sobre o par Ihõ/Ikòrò nem a esse episódio de encerramento na literatura a respeito do ritual
de iniciação Karajá, que é finalizado de modo bastante diferente.

308
Não há, entretanto, nenhum contato sexual ou kyty entre eles aqui ou no Fundo das
Águas, apenas a relação ameaçadora e de controle. O fato dos Ihõ morarem em uma outra
casa é revelador da distância entre eles e a ikòrò (no contexto uxorilocal, a esposa é sempre
de outra casa): constituindo uma exceção, eles são “parentes” dos outros worosy, menos da
Ikòrò, que mora dentro da Casa Grande. Assim também ocorre em relação aos aruanãs e
aõni, que moram em casas diferentes. A brincadeira entre Ihõ e Ikòrò, ou entre aruanã e
aõni, é apenas uma “simulação” (raroimyre) do ato sexual entre homens e mulheres, não
sendo “verdade” ou “real” (obitimy), pois todos os habitantes do Fundo das Águas
detestam o kyty dos fluidos corporais.
Os novos dados agora esclarecem melhor as condições de vida dos humanos
terrestres que vão para o Berahatxi (para onde só vão as peles velhas dos humanos
terrestres que morreram rubuoraruna, ameaçando o segredo masculino, como já foi dito).
As pessoas daqui não querem ir para lá porque é mais escuro e a comida não é muito boa,
embora não seja tão ruim como o wabèdè invisível. As peles velhas dos homens são
levadas para a Irasò Sy, a Casa dos Aruanãs, onde vivem eternamente, longe de seus
parentes, de quem sentem muito a falta. As peles velhas das mulheres são levadas para a
Ihõ Sy, a Casa dos Ihõ, onde vivem como aderana (as mulheres que sofriam o estupro
coletivo por atentar, voluntariamente ou não, contra o segredo masculino), sofrendo
bastante. Foi dito que as peles velhas das mulheres que morreram rubuoraruna são
tratadas do mesmo modo que a Ikòrò, considerada como uma aderana simbólica dos Ihõ,
uma vez que não há relações sexuais reais entre eles.
Entre os worosy repete-se o mesmo tema dos aruanãs, relativo a uma certa carência
alimentar, daí o roubo de comida em outros lugares e o desejo de conhecer as comidas
diferentes do nível terrestre, e à existência potencial de alteridades: o Berahatxi é um
“mundo sem outros” relativo, pois não há afins ou esposas, todos vivendo em grupos de
parentes que não trocam mulheres entre si e não se misturam. Mas há “outros” em
potencial, como os aõni, a ikòrò (do ponto de vista dos Ihõ) ou mesmo as irmãs dos
aruanãs, em algum grau definidos como alteridade (do ponto de vista dos aruanãs), na
medida em que precisam ser mantidos à distância ou sofrem algum tipo de controle ou
perseguição. Mais do que isso, o outro é temido, mas também desejado, fornecendo assim
uma razão para a subida mítica em busca de comidas novas ou do sexo que não se
conhecia.

309
O fato do tio materno (latèni) ter que vigiar os seus sobrinhos durante a dança a fim
de evitar o contato entre eles pressupõe um temor quanto à possível poluição feminina,
mas também o desejo de contato físico entre ambos. Em um importante mito Javaé, já
mencionado aqui e analisado antes (Rodrigues, 1993), uma mulher do povo Torohoni, um
dos que ascenderam ao Ahana Òbira, tem desejo sexual pelo próprio irmão (Lykyni), o
qual é ludibriado e mantém relações sexuais com ela, à noite, sem saber que se tratava da
própria irmã. O mito revela o desejo entre irmãos, mais especificamente o desejo feminino,
num tempo em que o sexo estava sendo descoberto aos poucos pelas pessoas. Os aruanãs
temem os perigos dos aõni, mas desejam-nos por perto, sempre, assim como os Ihõ
desejam estar perto da ikòrò.
Durante a dança dos aruanãs no nível terrestre, é evidente o componente erótico
entre os dançarinos e as suas parceiras, apesar destas atuarem na condição de irmãs rituais
(irasò didi ou irasò lery), repetindo a relação existente no fundo subaquático. Cada aruanã
(uma dupla) dança com uma ou duas irmãs rituais ao mesmo tempo. Dietschy (1960),
Donahue (1982) e Pétesch (2000), que analisaram apenas a dança terrestre Karajá e não o
modelo do Fundo das Águas do qual a dança terrestre é uma tentativa de cópia, pelo menos
no caso Javaé, enfatizam apenas o aspecto sexual e sedutor da relação entre os parceiros.
Pétesch (2000:70), que não abordou o conceito de poluição corporal, chega a dizer que os
aruanãs “fecundam” as suas parceiras de dança com sua energia vital, o que seria uma
afirmação escandalosa para os Javaé, que insistem no caráter absolutamente assexuado da
relação ritual entre os dois.
Os aruanãs evitam qualquer contato físico poluidor com elas, inclusive o olhar
recíproco (indício de desejo sexual para os Javaé), de modo que as moças dançam de
cabeça baixa. Ambos mantêm sempre uma distância mínima e são constantemente vigiados
pelos jovens recém-iniciados (os jyrè). Mas os aruanãs relacionam-se com as parceiras de
dança, em suas canções, invocando o erotismo feminino, como se pode ver nas letras das
músicas que são analisadas em Rodrigues (1993), nas quais se tem o ponto de vista de um
humano social, e não de um aruanã mágico, falando com ou sobre as mulheres daqui. O
tema geral das músicas é a imoralidade feminina, que se manifesta especialmente através
de comportamentos sexuais transgressores ou obscenos. Segundo Lima Filho (1994:109),
referindo-se aos Karajá, “as músicas dos Aruanãs têm um teor pejorativo e geralmente
narram algum acontecimento em que as mulheres são insultadas” (ver Brígido, 1997).

310
Há uma ambigüidade essencial da dança terrestre, pois as mulheres que dançam
com os aruanãs são idealmente moças virgens, da classe de idade ijadoma, que estão no
papel de irmãs rituais subaquáticas, assim como os dançarinos mascarados são
preferencialmente os rapazes ainda não casados da classe de idade weryrybò. Mas aqui, no
nível intermediário, as canções falam de relações sexuais entre potenciais esposos ou
amantes, uma vez que os parceiros da dança não permanecem eternamente como irmãs e
irmãos de corpos fechados, dando início à vida sexual e ao contrato de casamento.
Dietschy (1960) e Pétesch (2000) chegam a interpretar o movimento das mãos das
dançarinas sobre o ventre, durante a dança, como uma indução da fertilidade potencial. Os
aruanãs se dirigem às dançarinas em suas canções pelo vocativo lery, termo
consanguinizante e ambíguo que designa todas as mulheres da geração de Ego, suas irmãs
reais e classificatórias, entre as quais se encontra a sua esposa preferencial (a prima
cruzada distante), também chamada de lery. Apesar dessa ambigüidade, fruto da disjunção
secreta entre os aruanãs verdadeiros e os humanos que dançam como aruanãs, a dança é
uma representação da relação estéril e assexuada entre irmãos anterior à ascensão mítica 50 .
A existência da alteridade, no nível subaquático, é apenas uma possibilidade temida
e ao mesmo tempo desejada, porém não concretizada, pois, apesar do desejo manifesto,
não se tem relações sexuais verdadeiras com as irmãs (ou com os aõni e o worosy raposa).
As irmãs nunca se transformam em esposas e nenhum tipo de reciprocidade é estabelecido
entre os grupos de parentes, uma vez que não existe a dívida pelo sexo e não se trocam
irmãs entre os habitantes das profundezas. Como veremos em maior detalhes, o serviço da
noiva prestado aos afins é concebido, antes de tudo, como pagamento pelas relações

50
Dietschy (1960) estabelece um paralelo lógico, inspirado no estruturalismo, entre a relação de duas duplas
(dois dançarinos homens e duas dançarinas mulheres) no ritual com dois conhecidos mitos Karajá sobre as
relações de aliança: o primeiro, sobre o casamento entre as filhas do Sol (Txuu) e os irmãos de Ijanakatu
(cuja versão Javaé é apresentada no Capítulo 5); o segundo, sobre o casamento entre os dois homens
sobreviventes do grande incêndio ocorrido no lugar conhecido como Inywèbohona (tema do Capítulo 7) e os
dois periquitos que se transformam em duas moças. O autor conclui que, assim como os mitos, o rito trata da
relação de aliança e fertilidade original que deu origem aos Karajá, proibindo-se o incesto entre irmãos. Na
versão do mito de Inywèbohona recolhida por Donahue (1978), os Karajá se concebem como os descendentes
dos filhos dos dois casais, atribuindo a sua origem a um casamento entre primos. Pétesch (2000:75),
inspirada em Dietschy, considera o mito de Inywèbohona como o modelo mítico da “interação fertilizante”
entre a dupla de aruanãs e as dançarinas. Baseada nos dados destes e outros autores, Schiel (2005:117)
reinterpreta a dança como uma relação de “afinidade ideal, a afinidade sem sexo da aldeia do céu”. Entre os
Javaé, contudo, há uma diferença essencial entre a Dança de Aruanãs, enquanto representação ritual da vida
mágica anterior à vida social, e os episódios tratados pelos mitos citados, que se referem a fatos ocorridos
depois que os humanos ascenderam ao nível intermediário. Os aruanãs se diferenciam dos humanos terrestres
justamente porque permaneceram assexuados no Fundo das Águas depois da ascensão primordial. Além
disso, a dança não é entre dois homens e duas mulheres, mas entre um único ser andrógino e mascarado e
uma ou duas dançarinas de corpos fechados, o que indica que não são concebidas ainda como esposas, como
veremos no Capítulo 5.

311
sexuais com a esposa. É como se o Berahatxi representasse as fantasias indissociáveis de
medo e desejo que cercam o incesto. A possibilidade de incesto é aterrorizadora, podendo
levar às misturas poluídas temidas e à morte (por isso as irmãs e aõni têm que ficar longe
um do outro); mas ao mesmo tempo é um desejo profundo (a brincadeira que dá prazer é
dançar bem próximo das irmãs, flechar os aõni, correr atrás da raposa, todos atos que
simulam a relação sexual entre os parceiros proibidos).
Os desejos e temores só são concretizados relativamente no nível intermediário,
quando os humanos passam do nível subaquático para o terrestre e iniciam a vida sexual;
quando começam a trocar irmãs entre si, ocasionando perdas (da imortalidade e da pureza)
e ganhos (da vida sexual). A reciprocidade até então inexistente implica em ganhos
relativos e concessões controladas: tem-se sexo, mas não com a irmã que se deseja
realmente; a vida sexual leva à impureza e à morte, mas pode-se controlar a impureza (com
a couvade), prolongando a vida do corpo perecível neste mundo. O mundo social é o
mundo das mediações exatamente por causa da ambivalência da reciprocidade – para ter é
preciso dar. Para conhecer o prazer do sexo, das novas comidas e o novo ambiente, o Povo
do Meio teve que perder a imortalidade, a pureza, ceder a irmã e pagar pela esposa aos
afins.

4.3. Os habitantes do Céu (Biu Wètyky mahãdu)

O nível celeste é o paraíso desejado pelos humanos terrestres, para onde todos
querem ir depois da morte. É um lugar mágico, sem poluição e sem relações sexuais, mas
sem as carências do nível subaquático. Enquanto os aruanãs do Fundo das Águas são os
“donos do peixe e da caça”, mas não conhecem a agricultura, alguns habitantes celestes
são os “donos das sementes” das plantações, além de também consumirem carnes de caça
e peixe. A mesma diferenciação existe entre os Karajá 51 . Rasyna é a comida de origem
agrícola dos humanos terrestres, como mandioca, milho, batata etc (controlada pelos seres
celestes), enquanto dò é a comida de origem animal, como peixe, tartaruga e animais de
caça (controlada pelos seres subaquáticos). O último ritual de fechamento do ciclo dos
aruanãs, por exemplo, chama-se Idòhoky, (“muita comida deles”), referindo-se à caça e

51
Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

312
peixe que os homens têm que buscar para os aruanãs comerem antes de voltarem para seu
mundo de origem.
As sementes do Céu foram trazidas aos humanos terrestres, nos tempos míticos, por
Takinahaky (nome da Estrela d’Alva), que veio do Céu a pedido de uma moça terrestre
para se casar com ela. Atualmente, os “donos” das sementes são Takinahaky, Tanyxiwè e
as peles velhas de alguns dos xamãs, todos habitantes do Céu, como veremos 52 . Os “donos
do Céu” (Biu mahãdu wèdu), por sua vez, são Rararesa, o humano chamado Urubu-Rei,
de quem Tanyxiwè tomou o cocar (que hoje é o Sol), e o próprio Tanyxiwè, que ascendeu
ao Céu depois das façanhas em prol dos humanos sociais. Após as transformações míticas,
os oponentes Tanyxiwè e Rararesa tornaram-se irmãos no Céu, Tanyxiwè sendo o
primogênito (Rararesa wakumydela). Os dois são os iòlò do nível celeste, o que não existe
no nível subaquático. Enquanto o Fundo das Águas é chefiado por um casal de marido e
mulher (Tõrikòkò e Torijyby), o Céu é chefiado por uma dupla de irmãos. O chefe terrestre
(Ahana Òbira wèdu) análogo é o Ixytyby (“pai do povo”), que comanda os rituais da Casa
dos Homens. Entre os Karajá, o dono do Céu é Xiburè e não há dono do Fundo das Águas
(Toral, 1992).
Uma diferença importante em relação ao Fundo das águas é que no nível celeste
não existe a Casa Grande (Hetohoky), nem os worosy e o ritual associado a eles. Os poucos
aruanãs que existem no Céu são especiais, curadores, mas não brincam com os aõni, que
não existem lá (existem alguns aõni, que não são os de flechar e nem moram juntos com os
aruanãs). O Povo do Céu, por sua vez, pratica o Iweruhuky, o qual inclui o Hàri Kòwona
(“Escada do Xamã”) e o Marakasi, rituais associados à agricultura que não existem no
Fundo das Águas e que atualmente não são mais praticados pelos Javaé terrestres 53 .
Os habitantes do Céu não gostam do Fundo das Águas porque este último é mais
escuro. O grande território celeste também é dividido em uma série de hãwa, territórios
52
Há uma versão desse mito Javaé em Rodrigues (1993). Existe uma aparente contradição entre informações
do xamã e outros e a narrativa mítica apresentada, segundo a qual muitos dos produtos agricultáveis foram
conhecidos com os Wou (Tapirapé), que saíram de baixo, ou com o povo Ijèwèhè, ancestral de Tanyxiwè,
também oriundo do nível subaquático. Ao que parece, a agricultura deixou de existir no Fundo das Águas,
depois da cisão mítica, de modo que a caça e pesca passaram para o controle dos aruanãs subaquáticos e as
sementes para o Povo do Céu (para onde Tanyxiwè ascendeu). De forma inversa, os animais de caça
comestíveis foram conhecidos pelos Wèrè aqui, mas agora é o Povo de Baixo que os controla. A contradição
se dissolve quando se tem em mente que as informações do xamã referem-se ao cosmos atual, à forma
adquirida depois das transformações primordiais, enquanto o objeto do mito é a vida no cosmos antes ou
durante as transformações.
53
Mais uma vez a informação do xamã aparentemente contradiz a narrativa mítica, segundo a qual o
Iweruhuky teria sido copiado ou trazido de baixo pelos Wèrè. Parece que, depois das transformações míticas,
o Iweruhuky passou ao controle do Povo do Céu, uma vez que parte importante do ritual envolve um contato
com os personagens celestes.

313
definidos ao redor de uma aldeia e limitados entre si por rios, como no Desenho n° 3 já
apresentado. São os territórios onde moram, separadamente, os aruanãs celestes (desde
sempre no Céu) e os heróis como Tanyxiwè e Ijanakatu, que subiram para lá depois das
transformações míticas, ou Rararesa e Takinahaky, que apenas retornaram para o Céu. São
personagens que nunca morreram e que não se transformaram em aruanãs. Alguns desses
territórios são Hàri Hãwa ou Rubu Hãwa, “território dos xamãs” ou “território dos
mortos”, respectivamente, para onde os xamãs terrestres e seus parentes mortais tentam ir
após a morte aqui na terra. Tanto Donahue (1982) quanto Toral (1992) informam que o
Céu, para os Karajá, possui três planos diferentes e que o mais alto deles é o mais perfeito.
Quando o xamã deseja ir ao nível celeste para resgatar a “pele ou corpo velho”
(tykytyby) de algum parente que um outro xamã levou a fim de matá-lo 54 , ou para levar a
pele velha de alguém que deseja matar, ele tem que passar pela Txuu ryy, a estrada em que
o Sol caminha no Céu e que é o seu limite superior. Assim como no nível subaquático
existem os tios maternos (latèni) vigiando as entradas das casas de aruanãs, para impedir
que o xamã traga os aruanãs ao nível terrestre, ao longo da estrada solar (desenhos n° 1 e
n° 3) os xamãs encontram uma série de seres humanos que criam obstáculos e tentam
impedir a sua entrada no Céu. Em razão dessas dificuldades há outras formas de chegar ao
nível celeste, mas não tenho informações sobre esses caminhos alternativos. Tanto
Donahue (1982) quanto Aytai (1986) falam de uma jornada difícil para o Céu Karajá, pois
o xamã tem que passar em seu caminho sobre troncos de árvores, segundo o primeiro, ou
cobras e lagartos, segundo Aytai. Toral (1992) fornece uma lista dos seres, de nomes
diferentes, que tentam impedir a viagem do xamã Karajá tanto para o Fundo das Águas
quanto para o Céu, este último um lugar de acesso mais difícil. Segundo Lipkind (1940), a
estrada celeste pela qual o xamã Karajá viaja em seus transes, em busca de poder
xamânico, é a Via Láctea.
Esses humanos celestes vigiam a estrada porque eles “estranham” as pessoas de
fora, como os xamãs, que tentam entrar no Céu. O xamã com quem trabalhei disse que é
como se fossem pessoas de um outro país visitando o lugar, desconhecidas dos habitantes
locais, que por isso atacam e tentam impedir a sua entrada. Os níveis celeste, terrestre e
subaquático foram descritos como “países diferentes”. A lista a seguir, cuja ordem é exata
apenas no que refere ao começo (a leste) e ao fim da estrada (a oeste), contém os nomes
54
Assim como entre os Waura (ou Wauja) do alto Xingu (Barcelos Neto, 2004), muitos dos estados doentios
dos humanos terrestres são atribuídos à prisão da pele velha de uma pessoa, por um xamã, em uma dessas
outras dimensões invisíveis, sem que isso signifique a sua morte. A cura é trazer a pele velha de volta.

314
dos seres humanos mágicos (iny xiburè) que falam e tentam impedir a todo custo a
passagem dos xamãs e outras peles velhas estranhas (alguns dos nomes estão nos desenhos
n° 1 e n° 3, ao longo da estrada solar no Céu):

1. Ramahaky (“Muito Pequi”) – é o primeiro humano da estrada, situado no Txuu


òlòna (leste), e que assume a forma de uma árvore de pequi que joga pequis em
cima do xamã, com a intenção de matá-lo.
2. Riuhyky (nome de um tipo de capim, comum no Céu) – tomando a forma de capim,
essa pessoa fecha-se e abre-se na frente do xamã, tentando impedir sua passagem.
3. Bòrò (“Arraia”)
4. Halòkòè (“Onça”)
5. Kunikuni – parecido com os ixyjukuni (“pele velha do estrangeiro”).
6. Warakurani (“Garça Branca”)
7. Weryry (“Menino”)
8. Kòworukyi (nome de um tipo de árvore) – assim como o capim Riuhyky, fica uma
de cada lado da estrada movimentando-se e tentando impedir a passagem de
estranhos.
9. Sikatewo (nome de uma das estrelas do Céu, ao sul).
10. Nawakiè (“Ema”) – não é o mesmo Nawakiè worosy que vem no Hetohoky.
11. Ixyjukuni (“Espírito do Estrangeiro”)
12. Hetohoky Byryby (“Cinza da Casa Grande”)
13. Larabòtò (nome de uma estrela)
14. Takinahaky (nome da Estrela d’Alva) – não se confunde com o herói mítico.
15. Bèora Takinahaky (“Takinahaky do Rio Cheio”, nome de uma estrela)
16. Ahãdu Weryrybò (“Lua Rapaz”)
17. Txuu Weryrybò (“Sol Rapaz”) – não é o Sol, mas outra pessoa.
18. Txuu Lahi (“Avó do Sol”)
19. Kõri Juraru (Kõri é “Anta”)
20. Asara (um tipo de “Lagartixa”) – o “Menino” brinca com Lagartixa jogando flecha.
21. Txuu Rikòrè (“Filhos do Sol”) – são dois filhos do Sol, um é aõni e o outro é
aruanã (a sua origem é explicada em um mito que não foi narrado aqui).
22. Hõí (“Socó”, nome de um pássaro)
23. Mana Rulyty (“Pedra Lisa”) – ao andar, o xamã escorrega em pedras lisas (que são
uma pessoa transformada) e pode morrer. Para passar, ele tem que se transformar
em onça e andar sobre as pedras vagarosa e astutamente como as onças. Este é o
último obstáculo da estrada, situado no Txuu rotena (oeste).

Todos esses personagens listados, com exceção dos filhos do Sol, são iny (gente) e
moram na estrada celeste. Se o xamã não estiver em alerta máximo, ou estiver fraco, eles
podem pegá-lo e matá-lo. Alguns vigiam a estrada de dia, como o Garça Branca, o
Kòworukyi ou o Muito Pequi; outros vigiam durante a noite, como o Onça, o Socó, o
Kunikuni ou o Riuhiky. Alguns não vivem apenas ao longo da estrada, mas moram e andam
em outros lugares do Céu, como o Menino, que fica brincando, o Sikatewo, o Larabòtò, o

315
Estrela d’alva, o Bèora Takinahaky, o Lua, o Sol Rapaz, a Avó do Sol (que mora junto
com o Sol rapaz), o Anta, o Lagartixa (que mora junto com Menino, que brinca com ele) e
os filhos do Sol (que moram junto com o pai).
Quanto aos territórios celestes, apresento em seguida uma descrição de alguns dos
hãwa celestes do Desenho n° 3 – uma representação de uma pequena parte do Céu – para
se ter uma idéia de como vivem essas pessoas atualmente, uma vez que há mais variações
do que a diferença básica entre as condições de vida dos aruanãs e dos worosy no nível
subaquático. Os minúsculos territórios pintados de preto, no mapa, são áreas vazias e sem
nome, “lugares novos” à espera dos novos aruanãs que possam nascer magicamente. Todos
vivem hoje as conseqüências do que foi transformado nos tempos relatados nos mitos:

• Takinahaky Hãwa – é o território de Takinahaky, o homem que trouxe as sementes


do Céu para uma moça do nível terrestre, nos tempos míticos, quando então
alternava entre a forma de jovem e de velho. No Céu ele vive hoje com a aparência
de velho, sozinho, pois sua mulher e filhos morreram aqui. Ele nunca morreu e
voltou sozinho. Agora vive magicamente, feliz.

• Kurukuru Hãwa – é o território do aruanã chamado Kurukuru, que é uma dupla de


primos (mais velho, nyry, e mais novo, ixi). Em sua aldeia ele participa de todas as
brincadeiras de aruanã, menos as de flechar os aõni, pois estes não existem no Céu.
Ele vem ao ritual da Casa Grande terrestre para visitar os Kurukuru worosy do
Fundo das Águas, que são seus primos e sobrinhos. Os primos e sobrinhos são
worosy subaquáticos e ele é aruanã celeste.

• Harariè Hãwa – é o território do aruanã chamado Harariè, que é uma dupla de


primos (nyry e ixi). Na mesma aldeia, mas em outra casa, mora sua “parentela
bilateral” (isyreny, nome também da “casa deles”), constituída do lana (tio
materno), labyry (tio paterno mais novo que o pai), wahaura (tio paterno mais
velho que o pai), labetery (tia paterna), nadikura (tia materna mais velha que a
mãe) e lery (irmãs reais e classificatórias). Só o Harariè é um aruanã (dupla)
mascarado, que vem ao nível terrestre. Os outros parentes são iny (gente), sem
máscaras, e não vêm para cá.

• Sõsõrikòrè Hãwa – é o território dos filhos (rikòrè) do Sõsõ latèni, o latèni


chamado Sõsõ, cujo território também está no mapa, mas bem distante. Os filhos do
Sõsõ são um par de irmãos. Em outra casa estão seus parentes bilaterais não
mascarados, tia materna mais velha, tia paterna, tio paterno mais velho, tio
materno, irmãos classificatórios.

• Sõsõ latèni Hãwa – é o território do latèni chamado Sõsõ, tio materno do aruanã
chamado Sõsõ (Sõsõ irasò), que mora junto com ele na mesma casa.

316
• Rararesa Hãwa – é território do humano chamado “Urubu-Rei”, “dono do Céu”,
assim como Tanyxiwè, agora seu irmão, e que roubou o cocar (o Sol) do Urubu-
Rei. Não existe Casa de Aruanãs ou aruanãs em seu território, pois ele não gosta
dos aruanãs. Ele é iòlò e perto dele moram seus parentes bilaterais, mãe, pai,
irmãos, irmãs, filhos das irmãs, irmãos classificatórios, tio paterno mais velho, tia
materna, tio paterno mais novo. Tem esposa e filhos também, os únicos que moram
em sua casa. Ele anda pelo Céu, visitando os outros moradores, que também o
visitam, mas em geral fica dentro de casa sozinho. Depois do episódio em que
Tanyxiwè tomou o seu cocar no nível terrestre, Rararesa ficou traumatizado. Muito
raramente sua pele velha vem ao nível terrestre, transformada no pássaro Urubu-
Rei, para comer a carne podre dos animais ou para passear. Quando vem, está
sempre acompanhado de seus tios maternos, de nome Kodiè, Hirè e Rara,
transformados em outros tipos de urubu, que não o abandonam em nenhum instante
(pois no mito eles foram enganados por Tanyxiwè). Eles também vigiam a casa do
Urubu-Rei para que os xamãs terrestres não se aproximem dele. A vida no Céu é
boa, mas ele sofre por não esquecer da perda que sofreu aqui no tempo das
transformações.

• Warakurani Hãwa – é o território de um dos humanos, chamado “Garça Branca”,


que vigia a estrada do Sol. São muitos Warakurani, eles se revezam para vigiar a
estrada. Não existe Casa de Aruanãs. A família constitui-se dos irmãos
classificatórios mais velhos, mais novos, pai, tio paterno mais velho, tio paterno
mais novo, tia materna mais nova. Quando querem se casar, magicamente, eles se
casam com a lery, irmã classificatória, que é a categoria mais certa para se casar.
Casa-se no Céu, mas não há relações sexuais. Há também afins, como genro, nora,
sogro e sogra, mas não se deve nada a eles, pois não há sexo com a esposa.

• Kõri Juraru Hãwa – é o território do humano chamado “Anta”, que vigia a estrada
do Sol. Os seus parentes bilaterais próximos também se revezam entre si, ajudando
a vigiar. Não existe Casa de Aruanã.

• Weryry Hãwa – é o território dos humanos chamados “Menino”, que vigiam a


estrada do Sol. São várias crianças, irmãos reais e classificatórios, que moram em
umas cinco casas diferentes. Não têm outros parentes vivendo com eles. Brincam
de jogar flecha no Lagartixa e nunca vieram ao nível terrestre.

• Kodiè Hãwa – é o território de Kodiè, o tio materno do Urubu-Rei, que mora junto
com todos aqueles parentes, com nome de urubus e gaviões, que participaram do
episódio da conquista do Sol junto com o Urubu-Rei. Alguns deles têm seus hãwa e
parentes separados (como Hirè e Rara, ver no mapa). Não existe Casa de Aruanã.

• Warakurani irasò Hãwa – é o território do aruanã chamado “Garça Branca”, e que


não se confunde com o Garça Branca que vigia a estrada do Sol. É um par de
irmãos classificatórios (mais novo e mais velho) que mora sozinho na casa deles.
Em outra casa mora a parentela bilateral (avô, avó, tia paterna, tia materna mais
velha).

317
• Tanyxiwè Hãwa – é o território do famoso Tanyxiwè, que conquistou o Sol e é o
mais importante herói transformador. Ele mora apenas com Tanyxiwèrikòrè e o
Kujãrikòrè em sua casa (os filhos da esposa, Myreikò, a quem ele abandonou, com
Tanyxiwè e Kujã, respectivamente, conforme o mito). Não existe Casa de Aruanãs
em sua aldeia porque ele não gosta de aruanãs. Ele é iòlò e fica sentado no banco
ritual antropomorfo korixà, mas às vezes anda pelos outros hãwa do Céu, onde
brinca e se diverte. Ele visita os vizinhos, com quem conversa, recebe visitas,
menos os aruanãs. Mas não tem inimigos, porque no Céu todos são parentes e não
há inimizades.

• Xiburè Hãwa – é o território de Xiburè, palavra que aqui é apenas o nome de uma
pessoa não mascarada, um rapaz (weryrybò) que mora sozinho em uma casa. Seus
parentes moram separados, em outras casas. Ele tem irmãs e irmãos reais e
classificatórios, tio paterno mais novo, tio paterno mais velho, tia materna mais
nova, tia materna mais velha. Todos se chamam Xiburè, não têm nomes
individualizados. Ele nunca se casou e nunca veio ao nível terrestre.

• Wèkò Hãwa – é o território do aruanã chamado Wèkò, que nasceu no Céu. Ele tem
irmãs, irmãos, primos, tio materno, tio paterno mais novo, avô, avó, mãe e pai. A
irmã e o irmão classificatório mais novo cuidam da comida dele, quando ele brinca
o jogo do mel e os outros.

• Hàri Hãwa – é o território dos xamãs terrestres e seus parentes mortais, onde vivem
as peles velhas que podem retornar ao nível intermediário novamente. Contém uma
aldeia como as daqui, dividida entre o ijoina (“lugar dos homens”) e o ixy mahãdu,
o lugar das mulheres, onde os homens dormem apenas. Tem Casa de Aruanã e
aruanãs no ijoina, todo mundo é jovem, bonito, alegre, vive adornado com os
enfeites tradicionais, come o que quer, realiza os desejos magicamente.

Além dos humanos que vigiam a estrada do Sol, existem três tipos de seres
humanos, e territórios respectivos, no nível celeste: os humanos não-mascarados com
poderes extraordinários de cura, e que em geral participaram das transformações míticas,
como Tanyxiwè, Rararesa, Ijanakatu, Xiburè; os humanos mascarados (que são os aruanãs
e latèni celestes), os quais também são atribuídos poderes de cura; e as peles/corpos velhos
dos humanos que morreram (não-mascarados), os quais, apesar do nome, têm corpos
bonitos, jovens e vivem adornados, felizes, satisfeitos. Estes últimos, quando morrem,
podem viver tanto como parentes mágicos dos aruanãs, no território deles, como no
território dos xamãs.
Os aruanãs (celestes e subaquáticos) e personagens míticos “subiram para lá com o
corpo original (umy) intacto”, taumydi rare, pois nunca passaram pelo processo da morte.
Ou porque nasceram por lá mesmo, onde não se morre, ou porque ascenderam ao Céu no
tempo das transformações, sem ter morrido. É justamente essa característica que os torna

318
curadores poderosos, aos quais os xamãs recorrem para buscar o poder de cura que usam
aqui na terra. Esse poder extraordinário de cura é chamado xiburè (“mágico”, e que pode
ser também o nome de uma pessoa) e é compartilhado por todos os moradores do Céu que
têm o corpo original intacto. Eles conhecem o segredo da vida eterna, traduzida às vezes
como “ressurreição” pelos Javaé, mas que tem o sentido de renovação constante da
pele/corpo (ixixa ou ixitykyrasa, “troca [ixi] de pele/corpo” [tyky]). No mito da conquista
do Sol, Tanyxiwè pergunta a Rararesa o segredo da vida eterna e só ele (e animais como a
cobra, que trocam de pele) escuta a resposta, que não foi ouvida pelos humanos terrestres.
Quando o xamã quer realizar alguma cura, sua pele velha vai ao nível celeste e pede
a algum dos curadores (kòhutibèdu) – em especial os humanos não mascarados – que o
ajudem, para que seja “abençoado” (ritèytènyra) com o poder xiburè celeste. Este será
usado através dos instrumentos do xamã, como a varinha mágica (hitxiwa) ou a raiz
chamada woixina, que o ajuda a entrar em estados de consciência alterados. Rararesa e os
Wèrè míticos são os “donos do poder do xamã”, os que têm a fonte do poder mágico que
os xamãs terrestres compartilham (Rararesa), embora em menor grau, ou os que foram os
primeiros a trazer a magia para a terra (os Wèrè, segundo o mito). O poder especial da vida
eterna está em duas raízes secretas, chamadas bèdèwona e ixixana 55 , que Rararesa mantém
sob seu controle no Céu. Seus tios maternos vigiam atentamente a sua casa para impedir
que os xamãs terrestres apropriem-se das raízes secretas.
Donahue (1982:221) informa que os xamãs Karajá são ajudados pelo xamã celeste
de nome Xiburè, que é tanto o “professor” mais poderoso quanto o poder em si. Para Toral
(1992:138), baseado em xamãs Karajá, Xiburè é um ser que vive no terceiro nível celeste e
a “entidade geradora de quase tudo que existe”. Todos os habitantes do Céu Karajá seriam
formas “fluidas”, “facetas” diferentes do mesmo Xiburè (1992:199). Segundo o autor
(Toral, 1992:209), “o conhecimento xamanístico” provém de grandes xamãs “mortos”,
como Xiburè, Alubederi e Ijanaòtu. Para Pétesch (2000:47), “Xibure” ou “hyri hykã
(grande xamã)” é o responsável celeste pelos diversos fenômenos atmosféricos e pela
alimentação de origem vegetal. No caso Javaé, os curadores do Céu não são “mortos” nem
transformações de um ser especial de nome Xiburè, mas humanos que compartilham o
poder xiburè, conceito corporal que se define em oposição à experiência da morte, como
será melhor elaborado no Capítulo 5.

55
Ixixa tem o sentido de troca ou renovação e na é “lugar”. Ixixana é a raiz que contém em si o segredo da
troca de pele, ou seja, da vida eterna. Bèdèwona seria, literalmente, “lugar (na) do interior (wo) do mundo ou
tempo (bèdè)”.

319
Uma característica de destaque das aldeias dos heróis transformadores ou curadores
poderosos, salientada pelo xamã que me deu essas informações, é que eles moram sozinhos
ou gostam de ficar sozinhos em suas casas, como Takinahaky, Xiburè, Ijanakatu, Rararesa
ou Tanyxiwè (que tem apenas os filhos por perto). Os parentes moram em casas próximas,
mas eles têm a sua casa separada, como no desenho (n° 8) ao lado, que representa o lugar
em que Tanyxiwè vive. Lá estão apenas a sua casa e a da sua avó (lahi), com quem
descobriu o sexo, aqui no nível terrestre, quando era rapaz, segundo o mito já apresentado.
Os desenhos subseqüentes (n° 9 e 10), também feitos pelo xamã, representam a casa do
Rararesa (Urubu-Rei) e a de Ijanakatu, onde gostam de ficar sozinhos. Todas as casas têm
as portas viradas para o leste. As casas do Céu, como as antigas casas tradicionais Javaé,
têm duas portas e nenhuma divisão interna.
Os curadores comem ou divertem-se juntos de seus parentes, mas moram em casas
separadas. No resto do tempo, caso desejem, podem plantar sementes nas roças, tomar
banho de rio, procurar mel, pescar, caçar, embora não haja necessidade real de esforço
físico para nada, porque lá tudo é mágico. Os habitantes do Céu em geral, incluindo todos
os outros tipos de humanos, vivem felizes, dormem em esteiras, cobrem-se com rià
(coberta de algodão tradicional), sentam-se no banco zoomorfo korixà e vivem enfeitados e
pintados ao modo tradicional, jovens, bonitos. As comidas são assadas, cozidas, a água é
cristalina, o ambiente é claro e quente, não há brigas, fofocas, feitiços (ver Rodrigues,
1993). Eles enxergam tudo que ocorre no nível terrestre e sua maior diversão são as
brincadeiras do Marakasi e Iweruhuky, mas não gostam dos aruanãs e por isso não visitam
suas aldeias 56 .
O fato de morarem sozinhos tem relação, principalmente, com a inexistência de
prestações matrimoniais no Céu ou no Fundo das Águas, pois não há vida sexual em
ambos os lugares. Porém, diferentemente do Berahatxi, “onde tudo começou”, os
moradores do Céu em questão às vezes se casam, o que gera afins. Entretanto, como são
casamentos mágicos, sem relações sexuais (basta desejar e os filhos aparecem), não geram
a obrigação de pagar pela esposa, não há o “preço da vagina”. A esposa que porventura
more junto, como no caso de Rararesa, é como se fosse uma irmã, com quem não se faz
sexo e a quem não se deve nada. Em outras palavras, existem os afins, mas não a afinidade,
o que desobriga os homens celestes a ter que morar na casa dos outros.

56
Há algumas semelhanças impressionantes com os dados cosmológicos encontrados por Agostinho
(1974:53-54) entre os Kamayurá alto-xinguanos no que se refere aos obstáculos que a “alma” do morto
encontra em seu caminho para o Céu, que pressupõe a passagem por um buraco situado a oeste.

320
~
Desenho n° 8: A aldeia de Tanyxiwè

321
Desenho n° 9: A aldeia do Urubu-Rei (Rararesa)

322
Desenho n° 10: A aldeia de Ijanakatu

323
Morar sozinho é um privilégio invejado, mas no nível terrestre social, onde os
casamentos geram a uxorilocalidade e a obrigação de pagar pela esposa aos sogros e
cunhados, trata-se de um comportamento altamente reprovado socialmente. Apesar de ser
um herói Javaé, Tanyxiwè é conhecido como hetxirò (“ânus fedido”), cujo sentido não
literal é “avaro”, “sovina”, expressão à qual voltarei, porque ele abandonou sua esposa,
Myreikò, após a conquista do Sol, negando-se a morar junto com seus afins e a pagar o
“preço da vagina” a seus cunhados, no episódio famoso já relatado. Ele é considerado
sovina porque deu “apenas” o Sol para ela e foi embora, não querendo partilhar sua comida
com os cunhados. Por fim, ascendeu ao Céu e por isso hoje mora sozinho, sem esposa ou
afins por perto. Toral (1992:199) relata, a respeito do Céu Karajá, ora que os seus
habitantes são grupos de homens aparentados que vivem “separadamente” uns dos outros,
ora que existem mulheres no terceiro nível celeste.
Nos territórios onde vivem os aruanãs temos uma configuração um pouco diferente.
O desenho ao lado (n° 11), referente ao aruanã chamado Teruteru, que foi o primeiro
aruanã trazido pelo xamã que fez os desenhos, é uma representação de como são as aldeias
de aruanãs celestes (irasò Biududu, “aruanãs originários do Céu”). Todas se constituem de
uma Casa dos Aruanãs (Irasò Heto) e de três casas de parentes dos aruanãs, com portas
viradas para o leste e ligadas pela “estrada dos aruanãs”, por onde eles dançam com suas
irmãs. As três casas estão no “lado das mulheres”, onde moram a “tia paterna” (ilabetery) e
a “tia materna mais nova que a mãe” (iladirà) do Teruteru. As outras categorias de
parentes do sexo feminino também ficam todas desse lado da aldeia, mas o desenho diz
respeito apenas aos parentes específicos do aruanã Teruteru. Na casa do meio estão aos
pais do aruanã, irasòsè, “mãe do aruanã”, e irasòtyby, “pai do aruanã”. Na Casa dos
Aruanãs propriamente ditos (Irasò Heto), do “lado dos homens”, ele mora junto com seus
parentes do sexo masculino, que no caso do Teruteru são os tios maternos e paternos.
Enquanto nas aldeias de aruanãs subaquáticos os aruanãs têm como parentes apenas
seus tios maternos, os quais moram junto com o aruanã, e suas irmãs, que moram
separadas, no lado oposto, nas aldeias celestes os aruanãs têm todos os parentes do sexo
masculino e feminino, também divididos espacialmente. Os homens moram com ele e as
mulheres do lado oposto, nas três casas do lado feminino. Na verdade, o pai do aruanã não
mora na casa do meio, apenas aparece por lá de vez em quando para visitar a esposa. Ele
tem que ficar a maior parte do tempo com os outros parentes do sexo masculino na Casa
dos Aruanãs, vigiando a casa para que os xamãs terrestres não levem o aruanã embora.

324
Desenho n° 11: A aldeia do aruanã Teruteru

325
Este papel é executado apenas pelos tios maternos dos aruanãs do Fundo das
Águas, os latèni. Em todas as Casas de Aruanã do Céu também moram os latèni, os tios
maternos dos aruanãs que ficam nas portas das casas vigiando os sobrinhos e que usam
máscaras um pouco diferentes dos aruanãs. Mas os latèni do Céu são chamados de latèni
irasò (“aruanã latèni”) e contam com a ajuda dos outros parentes masculinos para a tarefa
de guarda.
A explicação para esse controle obsessivo é que os aruanãs do Céu são mais
sensíveis ainda que os aruanãs subaquáticos ao kyty (poluição) dos humanos terrestres. Os
homens do Céu permitem apenas que os hàri nykydure, os xamãs de poder mais forte,
levem os aruanãs celestes para o nível intermediário. Eles não aceitam qualquer xamã para
essa tarefa, com quem brigam, pois temem que os aruanãs sejam contaminados com o kyty
dos corpos abertos dos humanos sociais. Por isso, nas danças terrestres, apenas as moças
(ijadoma) e rapazes (weryrybò) que ainda não iniciaram a vida sexual podem dançar com
os aruanãs do Céu ou usar as suas peles velhas, respectivamente. Os aruanãs do Fundo das
Águas também detestam o kyty, mas têm uma tolerância um pouco maior, de modo que as
kuladusè (“mãe de criança”) e os kuladutyby (“pais de criança”) podem dançar, desde que
tomadas as precauções necessárias.
Os homens que moram na aldeia dos aruanãs não vão ao lado feminino da aldeia,
com exceção do pai do aruanã, por causa do kyty potencial das mulheres. Os homens
jamais tocam nas mulheres. Assim como as irmãs dos aruanãs subaquáticos, as mulheres
do Céu são mantidas à distância dos aruanãs, ainda que não haja relações sexuais,
menstruação ou partos no nível celeste. E lá também se repetem as danças ameaçadoras
com as irmãs, em que estas ficam relativamente à distância dos aruanãs enquanto dançam.
Se alguém tem algum filho homem, magicamente, ele vive do lado das mulheres até a
categoria de idade weryry (pré-adolescência). Então o pai o leva para a Casa dos Aruanãs,
onde ele se transforma em aruanã e nunca mais retorna ao convívio da mãe e outras
mulheres. Às vezes algumas mulheres têm vontade de se transformar em aruanã, o que
fazem magicamente, deixando de ter um corpo potencialmente poluidor. Quando isso
acontece, os aruanãs chamam-se Hawyky irasò (“aruanã mulher”), usam a tanga de
entrecasca e cabelos e enfeites à moda feminina. Mas são “mulheres” apenas no nome, pois
não têm corpos femininos. Os Hawyky irasò também vêm ao nível terrestre.
Os xamãs evitam trazer muitos aruanãs do nível celeste, porque é mais trabalhoso
cuidar deles. Normalmente, os xamãs têm que fazer uma limpeza ritual do rosto ou face

326
dos aruanãs subaquáticos (tanto das máscaras em si quanto do dançarino que as utiliza)
quando eles estão aqui, para tirar o kyty endêmico do nível terrestre. Essa limpeza que
ocorre nos dias que antecedem aos jogos rituais chama-se òsurona (ò é “rosto”) e adiciona-
se a outras práticas de purificação, como o resguardo (iwokytyna) que os aruanãs e aõni
fazem após as brincadeiras de flechar, a sua cópula mágica. O òsurona é feito com a raiz
woixina. No caso dos aruanãs celestes, esse cuidado é redobrado. Os xamãs têm que fazer
o iòbènyky, um outro nome para a limpeza facial, usando o matyni (castanha do pequi)
todos os dias, às vezes até mais de uma vez num dia só 57 . Segundo Toral (1992:200), entre
os Karajá “reserva-se os mesmos cuidados e atenções” aos aruanãs celestes e subaquáticos,
que se diferenciam apenas pelo fato de haver um “dono” no Céu e não no Fundo das
Águas. Já Pétesch (2000) diz que os Karajá celestes têm um status superior e são mais
poderosos que os aquáticos, e que o ciclo agrícola depende dos humanos terrestres
alimentarem bem os parentes celestes que vêm visitá-los.
Ao lado da Casa dos Aruanãs, no desenho sobre a aldeia do aruanã Teruteru, está a
representação de uma pequena casa (em azul) onde ficam os itens usados nas brincadeiras
dos aruanãs. Como no Céu não existem os aõni e a brincadeira de flechá-los, os aruanãs
brincam apenas de Betò, Kohuro, Aõdèura, Bidi, Ixy, Kobiku, Axikòròrò, Orinyky, Korotxu,
Kuladu Biditò e Kuladu Iwodudu. Estas são brincadeiras menos perigosas que as dos aõni
e que em sua maioria são realizadas também no Fundo das Águas, embora haja variação
nos detalhes. Todas são repetidas no nível terrestre, a pedido dos aruanãs, mas com uma
diferença significante: apenas as brincadeiras de flechar os aõni são realizadas aqui do
mesmo modo que no Fundo das Águas, com os homens daqui usando as peles velhas dos
aõni verdadeiros (por isso chamam-se “brincadeiras de verdade ou grandes”, narakyna
tyhy ou narakyna haky).
As outras são realizadas pelos humanos terrestres, em geral divididos em um grupo
de mulheres e outro de homens, ou grupos em que os sexos se misturam, mas que
representam o feminino de um lado e o masculino de outro, em relação antagônica. Os
homens e mulheres tomam o lugar simbólico dos aruanãs e os aoni (e por isso chamam-se
narakyna somõ somõ, “brincadeiras pequenas”, pois têm um sentido de cópia, simulação).
No caso da brincadeira Ixy, por exemplo, em que os aruanãs gostam de flechar os porcos
queixada verdadeiros (estes últimos no papel simbólico de wèdèna, “os que são penetrados

57
Em Toral (1992:165-166), há uma descrição do “osorona” Karajá, que teria também a função de proteger
os aruanãs e “assegurar o fluxo contínuo de alimentos para a aldeia”. Em Rodrigues (1993:349), há uma
menção aos momentos em que ocorrem o òsurona Javaé.

327
sexualmente”), dois grupos terrestres dividem-se entre os iny (gente) e os ixy (porcos
queixada). Eles simulam de modo divertido a perseguição dos porcos pelos humanos, o
que corresponderia, nos outros níveis, à perseguição dos porcos pelos aruanãs.
O desenho ao lado (n° 12), um pouco confuso, porque é uma tentativa de síntese de
várias aldeias de aruanãs (Teruteru, Wekò, Koxitamaru) em um único desenho, embora na
prática sejam separadas, mostra alguns cercados onde ficam “os porcos queixada das
brincadeiras de aruanã” (ixy irasò narakyna rare), o “lugar do mel” (bidi hãwa) usado na
brincadeira Bidi ou as casas que contêm a parafernália das brincadeiras Kohurò, Betò,
Aõdèura. Os outros cercados, que na verdade não existem enquanto tal no nível celeste,
relacionam alguns dos produtos da roça (koworu) que existem no Céu (mai, “milho”, ijata,
“banana”, matyni, “castanha do pequi” etc). São apenas representações das roças, que não
são cercadas e que não existem no Fundo das Águas, sendo usadas pelos aruanãs celestes e
seus parentes. A diferença em relação às roças terrestres, como frisou o xamã com quem
trabalhei, é que as roças do Céu não são o produto de tykòwy, “pagamento pela vagina”,
como todas aqui da terra, pois elas são mágicas.
No nível celeste, apenas os aruanãs propriamente ditos e os latèni vestem-se com
suas máscaras. Todos os outros parentes vivem com seus corpos expostos, pintados e
adornados com os enfeites de penas e algodão. Os parentes dos aruanãs que vivem com
eles, seja no lado dos homens (ijoina) ou das mulheres (ixy), são na verdade as
peles/corpos velhos dos humanos terrestres que morreram e foram para o nível celeste.
Estes vivem tanto nas aldeias dos aruanãs como nas aldeias dos xamãs. Quando um xamã
morre, ele deseja ir para a aldeia em que vivem os seus nohõ, termo pelo qual os aruanãs
são referidos, e que tem o sentido de “bem precioso”, de algo ao qual uma pessoa está
apegada, como um colar preferido, por exemplo, ou um animal domesticado. O primeiro
aruanã que um xamã trouxe ao nível terrestre é o seu aruanã mais importante – o seu nohõ
principal –, para junto de quem ele e seus parentes próximos preferem ir após a morte. O
Teruteru é o nohõ principal do xamã com quem trabalhei e por isso a sua aldeia, onde
vivem muitos dos seus parentes já falecidos, foi escolhida para ser representada no
desenho.
Como já foi dito, aqueles que morrem podem ser levados também para os Hàri
Hãwa, “Territórios dos Xamãs”, um deles representado no desenho ao lado (n° 13). Esta é
a única opção que aparece nas etnografias sobre os Karajá (Toral, 1992).

328
Desenho n° 12: A aldeia dos aruanãs celestes

329
Desenho n° 13: Território dos Xamãs

330
Em cada território existe uma aldeia com muitas casas e cada família mora em uma
única casa ao estilo tradicional. Dentro de cada casa mora um xamã e sua família. A
“família” em questão é a parentela bilateral próxima e a esposa do xamã, excluindo os
outros afins. Os sogros, cunhados, noras ou genros de um xamã têm que ter seus próprios
xamãs aparentados – xamãs afins não contam – para serem levados ao Céu. Segundo o
autor do desenho, o xamã não tem que pagar o serviço da noiva no Céu, não tendo
nenhuma obrigação de levar afins para a aldeia de seus parentes. Nas palavras dele: “se
morre, acabou, não volta mais para sogro, sogra, nunca mais”. Se os afins de um xamã
tiverem um xamã parente, eles poderão se reencontrar no Céu; caso contrário, viverão
separados após a morte.
Quem não tem xamã na família vai para o wabèdè, o cemitério invisível repudiado,
abaixo e a oeste, onde muita gente mora. Nas aldeias dos xamãs, não existem casas de
aruanãs, apenas as peles ou corpos velhos dos xamãs e seus parentes próximos. Algumas
estradas ligam os territórios dos xamãs aos territórios dos aruanãs, para onde os xamãs e
seus parentes vão a fim de assistir as brincadeiras dos aruanãs. Pelo Hàri Hãwa desenhado
corre o Biu Bero, “Rio do Céu”. Segundo Lipkind (1940:249), o “bom” xamã (curador)
Karajá alcança o Céu após a morte, onde vive uma felicidade plena e é acompanhado de
uma cuia com água e um pote com comida, cujos conteúdos são inesgotáveis. Donahue
(1982) relata que os xamãs Karajá moram em casas muito distantes umas das outras na
aldeia dos xamãs celestes, sobre a qual se sabe muito pouco e aonde se chega depois de
uma jornada difícil. Toral (1992) distingue dois tipos de xamãs celestes Karajá, os que
completam a ascensão ao Céu (os mais poderosos e benéficos, que chegam ao terceiro
nível), e os que não conseguem completá-la (os mais perigosos).
A escada representada no desenho sobre a aldeia dos xamãs e no desenho anterior
chama-se kowona e faz parte de um importante episódio do Iweruhuky, que esteve
suspenso entre os Javaé nos últimos 25 anos, como já foi dito. No começo do ritual Javaé,
aqui na terra, o xamã sobe em uma escada como a desenhada, situada no terreiro
masculino, para receber do Céu as sementes usadas na agricultura. A escada terrestre é
ligada magicamente a uma escada invisível, por onde os xamãs daqui sobem até o nível
celeste. Ao subir a escada visível, o xamã terrestre canta e pede as sementes mágicas aos
“xamãs do Céu” (Biu hàri). Depois do pedido, o xamã desce da escada e entra para a Casa
dos Homens, onde fica sentado em uma esteira, de olhos fechados, em estado de
consciência alterado, enquanto sua pele velha sobe a escada invisível. Durante a viagem da

331
pele velha, os xamãs mais velhos daqui oferecem ao xamã em transe a raiz woixina, que é
mastigada por ele, ao mesmo tempo em que jogam sobre ele um preparado à base de um
tipo de amendoim selvagem, chamado òbena.
O xamã mastiga a raiz, que adormece a sua língua e o ajuda a manter a consciência
alterada, não podendo ser tocado por quem está poluído com kyty 58 . O òbena é para limpar
o kyty humano, mas também para trazer o xamã de volta de seu transe, pois ele corre o
risco de morrer e nunca mais voltar do Céu, como já aconteceu antigamente. Serve
igualmente para impedir que o xamã seja atacado por outros xamãs inimigos durante a sua
viagem invisível. Uma vez no Céu, ele pede as sementes aos xamãs celestes, onde brincam
juntos de subir a escada. Os “donos” das sementes mágicas são Takinahaky e Tanyxiwè,
mas quem as entrega ao xamã daqui são os xamãs do Céu, em suas aldeias celestes. Em um
momento posterior, quando o xamã sobe novamente a escada daqui, visível, as sementes
mágicas surgem de sua boca e caem ao redor, quando são recolhidas pelos humanos
terrestres que as utilizarão em suas plantações. Meu informante disse ter assistido ao
último ritual da escada mágica realizado pelos Javaé nos anos 70, o qual foi comandado
pelo xamã Sokoi, já falecido, e que na época era o Kowona Wèdu, “o Dono da Escada”.
Segundo ele, as sementes não eram levadas previamente por Sokoi, mas simplesmente
surgiam magicamente de sua boca. No desenho sobre o Território dos Xamãs, pode-se ver
a escada do Céu e o pé de milho mágico cujas sementes são trazidas para cá 59 .
Cabe argumentar, por fim, que parece haver entre os Javaé uma associação entre as
máscaras usadas pelos aruanãs, as quais cobrem cabeça, tronco e parte das pernas, e a idéia
de um corpo cujos orifícios estão fechados. As máscaras cobrem exatamente todos os
orifícios do corpo humano por onde se exterioriza energia vital, em especial os órgãos
sexuais, sobre os quais não há menção entre os aruanãs. É notável que as mulheres/irmãs
do Fundo das Águas, cujo corpo é uma potencial fonte de poluição, como se seus fluidos
vitais estivessem prestes a sair de seus corpos, não usam nenhum tipo de máscara, assim
como os aõni, que têm os órgãos sexuais ou orifícios corporais expostos. Na verdade, é

58
O woixina, uma raiz parecida com uma pequena batata, é o que dá aos xamãs o poder de controlar as visões
dos aõni invisíveis que aterrorizam os humanos não iniciados no xamanismo. Os aruanãs e os aõni também
são controlados aqui pelo xamã quando este sopra a fumaça do tabaco (ibuna) sobre eles, ao mesmo tempo
em que mastiga o woixina (ver Lima Filho, 1994).
59
Em Toral (1992) há uma breve descrição desta cerimônia Javaé com a escada mágica, relacionada ao
favorecimento do ciclo agrícola. O Iweruhuky não existe mais entre os Karajá, embora seja descrito por Lima
Filho (1994) e Pétesch (2000) em uma versão diferente da Javaé. Dele faziam parte a Festa do Mel (abril) e a
Festa do Peixe (setembro), que não se confundem com os rituais de encerramento do ciclo dos aruanãs e
sobre as quais nunca ouvi falar entre os Javaé. Palha (1942) descreve uma oferenda coletiva Karajá dos
primeiros produtos agrícolas aos habitantes do Céu.

332
como se elas fossem uma ameaça constante justamente por não cobrirem seus orifícios
corporais, embora elas usem a tanga de entrecasca que impede a exposição da vagina.
Tanto os aruanãs quanto os latèni, sobrinho e tio materno que não passaram pela
experiência do sexo e morte aqui, têm os corpos cobertos por máscaras e uma vestimenta
de palha que vai até abaixo dos joelhos. Em comparação aos outros tipos de humanos que
participam dos rituais terrestres, o conjunto de máscara e vestimenta dos aruanãs e latèni é
o que mais cobre o corpo humano, com ênfase para a parte que corresponde à “cabeça”,
ricamente adornada, que é considerada a mais importante, contendo a representação de um
rosto.
Já os heróis míticos curadores e as peles velhas dos humanos que já procriaram e
morreram depois de exteriorizar seus fluidos corporais não usam máscaras. Os ixyjukuni,
“pele velha dos estrangeiros” mortos pelos Javaé, usam máscaras menos elaboradas e que
cobrem a cabeça e parte do tronco, deixando os órgãos sexuais expostos. Como será visto
no próximo item, assim como os aõni, eles também são associados ao
feminino/esposa/Outro. Quanto aos worosy subaquáticos, a maioria deles não usa nenhum
tipo de máscara, apenas tiras de palha em lugares diferentes do corpo e os tradicionais
enfeites de algodão nos braços e pernas, além das pinturas corporais. Os Ihõ, que
perseguem a raposa, têm apenas o corpo pintado/coberto por um tipo de barro especial,
chegando a ter os órgãos sexuais expostos, assim como o companheiro de Kurisirisè; e o
Wabe, por sua vez, carrega uma borduna que simula um pênis ereto, provocando o riso por
toda a aldeia.
Os aruanãs (e seus tios maternos, os latèni), enquanto os únicos de todos esses seres
que não passaram pela experiência do sexo e da morte, são também os únicos que têm
quase todo o corpo cuidadosa e artisticamente coberto, em contraste flagrante com os
corpos seminus de suas irmãs-quase-esposas, cujo kyty é uma ameaça constante. Mas eles
não são os únicos que não concretizaram o desejo pelo sexo, pois os worosy subaquáticos,
em sua maioria, também não passaram por essa experiência. A característica que destaca
os aruanãs em relação a todos os personagens cósmicos, incluindo os humanos sociais,
parece residir no fato de que eles são os que têm maior capacidade de controlar os próprios
desejos. Os worosy subaquáticos podem ser tão controlados quanto os aruanãs no que se
refere ao desejo pelo sexo, apesar de alguns ostentarem os órgãos sexuais e adorarem a
brincadeira do estupro simbólico e coletivo à raposa, mas certamente têm um
comportamento bizarro e até inconveniente, que poderia se rotulado de descontrolado,

333
quanto mostram que, em nome de uma relativa carência alimentar, são capazes de roubar
comidas e pertences dos outros, chegando a invadir outros territórios. Os aruanãs do Fundo
das Águas também não conhecem a agricultura e desejam a comida terrestre, mas esperam
ser trazidos aqui para serem alimentados pelos humanos sociais e jamais roubariam algo de
alguém.
Os heróis míticos, por sua vez, embora tenham tido a oportunidade de ascender ao
Céu com o corpo intacto, coisa que os humanos sociais não tiveram, não são nenhum
exemplo de autocontrole: podem viver agora uma vida ascética e regrada, mas no tempo
das transformações deram vazão a seus desejos e viveram o sexo em toda a sua plenitude.
Os aõni são o descontrole em pessoa, só pensam em sangue, comida e têm um
comportamento agitado, sexualizado e esteticamente descontrolado, em oposição ao ritmo
monótono, repetitivo e contido dos aruanãs em suas danças. Restam os humanos sociais, os
quais podem não ser tão extremados como os aõni, mas também não possuem a virtude dos
aruanãs. Embora se contenham diante da irmã verdadeira, o verdadeiro objeto de desejo de
todos, eles realizam seus desejos sexuais com as irmãs dos outros, a quem pagam caro pelo
prazer. O mesmo pode ser dito sobre os mascarados que representam os estrangeiros, que
foram mortos pelos Javaé quando já viviam neste nível terrestre reproduzindo-se
fisicamente.
Isso tudo significa que os desejos parecem estar associados aos fluidos do corpo:
fluidos exteriorizados correspondem a desejos realizados, fluidos contidos a desejos
contidos. Ou corpos com orifícios fechados a humanos mais controlados, e corpos com
orifícios abertos a humanos menos controlados. A máscara é visivelmente uma película
protetora dos orifícios corporais, mantendo-os protegidos, mas também uma representação
dos limites que contêm os fluidos dentro do corpo. Ela representa os corpos que são mais
contidos, tanto em termos físicos como subjetivos. Na verdade, veremos no Capítulo 5 que
ela é pensada como um “outro corpo” e que ela representa a própria noção de controle (ou
limite). Para Pétesch (2000:83), levando em consideração um contexto em que não haveria
ruptura entre vivos e mortos nos rituais, de modo que os “mortos” não usam máscaras, as
máscaras Karajá retratariam a ruptura cósmica entre os humanos aquáticos e os terrestres,
de um lado, atuando como instrumento de comunicação entre os “diversos estágios do
universo”, de outro.
Talvez agora tenhamos um sentido mais completo para uma das autodenominações
Javaé, Ahana Òbira Mahãdu, “O Povo da Face/Corpo de Fora”. Tendo em vista o que foi

334
dito, o povo que tem a face ou o corpo de fora não significa apenas o povo que está com o
corpo no mundo de fora, mas principalmente o povo que não usa máscaras e tem o corpo
exposto. Com os orifícios corporais descobertos, é o povo que deu vazão aos fluidos
corporais e ao desejo de conhecer o prazer sexual, mas de forma relativamente controlada,
situando-se entre os extremos de recato dos corpos dos aruanãs e de exposição dos corpos
de suas irmãs ou dos aõni. Nos próximos capítulos veremos que os corpos femininos são
associados aos corpos mais descobertos ou abertos, caracterizados (pelos homens) como
mais descontrolados, enquanto os corpos masculinos são associados aos corpos mais
cobertos ou fechados, considerados mais controlados e, por essa razão, aptos ao exercício
do controle social.

4.4. Antes e depois do sexo

O grande tema da associação entre mortalidade e aliança social (Lévi-Strauss,


1991) repete-se entre os Javaé, mas aqui o início das trocas e da morte entre os humanos
sociais coincide com o início da procriação física. Tanto no Fundo das águas quanto no
Céu, os moradores constituem-se de grupos de parentes, ou mesmo de pessoas que vivem
sozinhas, que não se misturam entre si. Como não há relações sexuais – e
conseqüentemente não há o pagamento pelo sexo, a principal forma de reciprocidade no
nível dos humanos sociais –, não há nenhum tipo de interação física ou troca social. Como
o mito de Tanyxiwè deixa claro, tudo que ele conquistou com muito sacrifício para a
humanidade foi em pagamento pelo direito de fazer sexo com Myreikò.
O sexo é associado à perda de energia vital e ao início da morte do corpo, como já
foi descrito em maior detalhe antes (Rodrigues, 1993). A sexualidade, portanto, é o grande
marco que separa a vida imortal e mágica da vida mortal e social, os corpos fechados dos
corpos abertos, a pureza da mistura de substâncias, a vida mágica de auto-suficiência da
vida de trocas sociais, a ausência de relações físicas ou sociais da existência de relações
sociais assimétricas entre diferentes. Nos níveis onde tudo é mágico, todos são auto-
suficientes para se nutrir, ter casas, canoas, roças ou mesmo filhos, por exemplo. A
ausência de relações sociais implica na inexistência de conflitos, fofocas, feitiços, dívidas
ou relações assimétricas entre devedores e credores de mulheres. Não se conhece o prazer

335
do sexo, mas em compensação não se precisa pagar por ele aos afins. Em suma, não se
depende do outro – as pessoas ou grupos de parentes bastam-se a si mesmos e mantêm-se
separados uns dos outros – e por isso não se deve nada a ninguém.
Mas há uma diferença essencial entre o nível subaquático e o celeste, ambos
igualmente mágicos: o Fundo das Águas, “onde tudo começou”, representa a vida humana
anterior à vida sexual, em que o outro ainda é um desconhecido, com quem não há nenhum
tipo de relação física ou social (o conhecido/irmã ainda não é um outro/esposa), e o desejo
pelo novo/sexo é forte o bastante para superar o medo e impulsionar a subida mítica; o
Céu, por sua vez, representa a vida humana posterior aos prazeres da carne, quando já se
conhece as suas conseqüências inevitáveis, como a subordinação aos credores de mulheres
e a morte. E por isso o horror ao kyty, à poluição dos humanos que procriam fisicamente, é
muito mais acentuado no Céu. É um horror não a uma possibilidade teórica, mas a uma
experiência já vivida. Os outros em potencial, que despertavam o medo e o desejo no
Fundo das Águas, não mais existem no Céu (onde não se pratica as brincadeiras de flechar
os aõni ou a raposa). As mulheres celestes não são a irmã subaquática com quem se deseja
manter relações sexuais, mas de cujo corpo se tem medo, por ainda não se conhecer a
experiência do sexo e da morte, como ocorre com os moradores do Fundo das Águas. Elas
são as mulheres sociais que já tiveram seus corpos abertos e por isso são mais temidas
ainda.
Quando Tanyxiwè sobe para o Céu, no tempo das transformações mágicas, ele
ascende com o mesmo corpo que caminhou pelo nível terrestre, e passa a viver de corpo
intacto e longe de todos. Ele vive mais isolado ainda do que os grupos de parentes
subaquáticos, justamente por já ter conhecido o sexo, as dívidas subseqüentes e a
possibilidade de morte do nível terrestre. A obsessão dos humanos mágicos em preservar
os corpos fechados e purificados – ou a separação entre os corpos – expressa-se através da
relação de animosidade com os xamãs terrestres, em ambos os níveis cósmicos, quando os
tios maternos mascarados (latèni) tentam impedir que os aruanãs sejam levados ao nível
terrestre e lá contaminados com os fluidos poluidores dos humanos de corpos abertos. Mas
no Céu o controle é muito mais rígido: além dos guardas da estrada celeste, que não
existem no Fundo das Águas, aos tios maternos que vigiam as casas dos aruanãs juntam-se
todos os parentes (peles velhas) do sexo masculino.
No Céu, embora existam alguns aruanãs igualmente inexperientes em relação ao
sexo e à morte, moram os personagens míticos que conheceram as perdas e sacrifícios da

336
vida terrestre, como Tanyxiwè, Rararesa, Ijanakatu, Takinahaky etc, o que lhes dá a
qualidade de “posterioridade” em relação à vida social, em contraste com a “anterioridade”
do nível subaquático. A perfeição celeste, em comparação com a relativa imperfeição do
Fundo das Águas, derivaria desse conhecimento empírico e corporal da vida terrestre, seria
uma conseqüência da experiência acumulada por algumas pessoas após a realização de
seus desejos. Não por acaso, os personagens míticos do Céu, apesar de viverem no paraíso,
guardam uma memória dos traumas que viveram aqui. Rararesa tem medo de ser
enganado novamente e sofrer outra perda, Tanyxiwè não quer cunhados e sogros credores
por perto, Ijanakatu vive longe de sogros e esposas castradoras (cujo mito ainda será
narrado). O Céu representa um momento/lugar de maior maturidade do sujeito humano, o
que é diferente da inexperiência dos aruanãs subaquáticos, em especial, que ainda têm o
desejo pelas irmãs e aõni. A alteridade e o sexo são mais desejados do que temidos no
nível subaquático, porém mais temidos do que desejados no nível celeste 60 .
O Fundo das Águas Karajá descrito por Pétesch (2000:43) é habitado por uma
“humanidade aquática” indiferenciada e é um lugar fechado, sem exterior, sem alteridade,
sem troca, sem conflitos, sem mudança, em que as pessoas não morrem, não precisam
trabalhar e comem em poucas quantidades. O Céu é também um lugar fechado ou
limitado, imortal, onde se come muito pouco, os habitantes são indiferenciados, quase
imóveis e têm uma natureza “aquática” (2000:47), pois são os mestres da chuva, que sai de
seus olhos, e dos fenômenos atmosféricos, além da agricultura. Os Karajá aquáticos são
“conservadores” e os celestes, como o herói “Kanaxiwe”, são “transformadores”
(2000:44). Mas as homologias entre os dois ambientes seriam maiores que as diferenças,
segundo a autora. A partir deste modelo, que não inclui a Terra dos Ensangüentados e os
aõni subaquáticos no nível inferior, Pétesch propõe uma oposição entre Terra e Água (esta
última englobaria Fundo das Águas e Céu).

60
Para Toral (1992:140), os Karajá realizaram cosmologicamente um “movimento ascendente interrompido”,
que só é completado pelo xamã que atinge o Céu após a morte. O nível subaquático representaria o “passado
congelado” e o Céu, o “devir”, associado a mudanças de estado contínuas, pois seus seres teriam formas
fluidas e para lá iriam os novos personagens cosmológicos, como figuras cristãs (1992:212). Pétesch
(2000:41), por sua vez, fala de um “movimento ascensional” mítico baseado em duas rupturas, a dos Karajá
aquáticos, que trocaram a imortalidade pela abundância e pelo espaço aberto terrestre; e a dos Karajá
celestes, que se instalaram no Céu, posteriormente, devido a uma transgressão dos Karajá terrestres. Lima
Filho (1994) questiona essa caracterização e argumenta que, ao invés de uma ascensão cosmológica apenas,
os personagens cosmológicos realizam nos tempos míticos um movimento paralelo de subida (do Fundo das
Águas para a superfície) e um de descida (do Céu para a superfície), análogo à construção de aldeias no rio
acima e no rio abaixo. Em sua dissertação bibliográfica, Schiel (2005:71) tenta transpor as categorias
natureza e cultura para os níveis cósmicos, considerando o nível celeste como o domínio “supercultural”.

337
A morte experimentada no nível terrestre constitui-se de uma divisão entre um
corpo aberto e perecível e uma pele ou corpo velho eterno que se dirige ao Céu, de
preferência, deixando o sofrimento para seus parentes terrestres. A pele ou corpo velho não
tem o mesmo poder auto-suficiente dos humanos mágicos que nunca morreram e se auto-
regeneram permanentemente, como os aruanãs ou os heróis criadores que nunca se
dividiram: a pele velha de alguém que já morreu sempre dependerá de um outro (seus
parentes e um xamã) para atingir o Céu, tornar a viver junto aos seus parentes ou evitar um
destino terrível. Seu destino será condicionado pelas relações que manteve em vida. E
mesmo que atinja o Céu, todo morto é, num primeiro momento, um kuni, espectro errante e
desesperado que procura os parentes, sem contudo reconhecê-los, em sofrimento agudo.
Os que passaram pela experiência da morte terão sempre vivido a dor extrema da
separação por mais que alcancem a felicidade celeste em um momento posterior. Ascender
ao Céu é livrar-se de dívidas, da obrigação de trabalhar, das carências alimentares ou das
relações assimétricas, mas pressupõe a experiência desagregadora da morte, a divisão do
corpo. Mas há dois tipos de separação: a que existe no Fundo das Águas, anterior à vida
sexual, em que os corpos não se misturam e vivem separados, provocando no máximo o
desejo de um pelo outro, e que é indolor; e a que existe no nível intermediário, depois que
os corpos se fundiram fisicamente – pai e mãe geraram um filho e ligaram-se
substancialmente a ele –, e que é profundamente traumática.
Como veremos ao longo desse trabalho, entre o prazer altamente desejado do sexo e
a imortalidade almejada, os humanos sociais sonham com a segunda opção, desenfatizando
aqui a sexualidade e as misturas físicas, que levam à descendência e à reciprocidade. Para
o Povo do Meio, a imortalidade dos corpos que nunca se abriram e a negação da troca,
indissociáveis, são sua obsessão presente. Assim como o iòlò Urubu-Rei, o Rararesa, os
humanos terrestres parecem carregar em si uma ferida incurável, um trauma que não se
esquece: a dor profunda pela morte e separação dos entes queridos. O poder extraordinário
dos seres mágicos não é apenas o poder da autonomia e independência. É, principalmente,
o poder extraordinário da imortalidade, da capacidade de manter a vitalidade do corpo
inalterada ao longo do tempo.
O esforço considerável em desenfatizar a sexualidade, a procriação ou os laços de
descendência não é acompanhado de uma repressão do desejo sexual, como nas religiões
cristãs, por exemplo, que o condenam moralmente. O sexo, ao contrário, é amplamente
reconhecido como a principal diversão humana: as brincadeiras prediletas dos aruanãs e

338
worosy, como já foi visto, nada mais são que cópulas simbólicas. Trata-se simplesmente de
uma forma de negar a morte, pois a vida sexual é associada à mortalidade. A sexualidade e
a poluição decorrente são rigidamente controladas, mas apenas no sentido de se evitar as
misturas entre os humanos poluídos e os aruanãs e worosy mágicos. Não há controle rígido
quanto à esfera do prazer pessoal, embora idealmente os jovens de ambos os sexos
devessem se casar virgens e a sexualidade extramatrimonial seja motivo de fofocas e
condenação. As jovens que praticam o aborto não o fazem porque é um indício vergonhoso
da vida sexual, mas porque não há um pai – um pagador de serviço da noiva – assumido.
Fala-se abertamente de sexo, em tom jocoso, na frente de crianças e adultos, como
já registrou Fénelon Costa (1978) sobre os Karajá. Na verdade, os mitos e as músicas que
os aruanãs cantam (ver Rodrigues, 1993) falam de sexo o tempo todo. As aderana, palavra
que se refere tanto às mulheres que têm vários amantes quanto às que eram estupradas
coletivamente antes, atraindo homens de várias aldeias, são chamadas de narakyna
(“brincadeira, diversão”) dos homens, a mesma palavra utilizada para se referir às
“brincadeiras” dos aruanãs. Os encontros amorosos, pré ou extramaritais, de homens e
mulheres, agora incluindo os relacionamentos sexuais com os brancos, são talvez o assunto
predileto dos Javaé com quem se tem alguma intimidade. O sexo interessa aos idosos
também, a quem não é negado o exercício da sexualidade, havendo vários episódios
míticos que falam do apetite sexual das mulheres já idosas. A timidez das mulheres jovens
é compensada pela desenvoltura das avós, que falam dos prazeres do sexo, em tom de
brincadeira, abertamente.
Como já foi mostrado antes (Rodrigues, 1993), a principal forma de pagamento
pelos serviços de um xamã, ainda hoje, são os serviços sexuais de uma mulher aparentada
próxima, ainda que este seja um assunto não revelado publicamente. Embora estejam
expressando um ponto de vista masculino, vários episódios míticos e letras de músicas de
aruanãs mostram que, na maior parte dos casos, são as mulheres que tomam a iniciativa
nos encontros amorosos, como já notou Donahue (1982) entre os Karajá. Atribui-se um
grande apetite sexual às mulheres, embora o orgasmo feminino seja ainda um grande tabu
tanto para homens quanto para mulheres. O orgasmo é referido pela expressão nõsy reara,
“o esperma (fluido [sy] do pênis [nõ] saiu [reara])”, indicando que é tido como uma
exteriorização das substâncias vitais (pois todo fluido corporal é sy) e como um atributo
exclusivamente masculino, o que foi confirmado por um informante. A sexualidade é o
prazer ou a diversão suprema da vida terrestre, embora haja sempre uma ênfase no prazer e

339
no ponto de vista masculino, pois são os homens os que pagam e se sacrificam pelo prazer
sexual 61 .
Entretanto, o nível subaquático e o celeste, seja como momento anterior ou
posterior à experiência da vida em sociedade na terra, constituem-se como mundos em que
seus habitantes não mantêm relações físicas ou sociais entre si. Enquanto pessoas que
moram sozinhas ou como grupos de parentes (alguns pensados como uma pessoa ou um só
corpo) separados uns dos outros, seus moradores, dotados de corpos fechados, não
vivenciam nenhum tipo de relação de descendência (pois a reprodução é mágica, não
havendo vínculos de substância através das gerações entre os corpos) ou de reciprocidade
(sem contatos sexuais, não há o pagamento pela vagina que gera a aliança social). Sem
relações de substância, são todos parentes mágicos entre si. São esses moradores cósmicos,
os aruanãs subaquáticos e celestes, que são trazidos pelos xamãs para serem cuidados e
alimentados por uma família terrestre durante um ciclo ritual anual.
O meio cósmico é o espaço das relações sociais, situado entre dois extremos
logicamente opostos: o nível superior, onde seus habitantes não têm nenhum tipo de
relação entre si (seja de descendência ou de reciprocidade), sendo todos semelhantes; e a
Terra dos Ensangüentados, situada no nível inferior, onde todos estão permanentemente
ligados ou relacionados pelas substâncias exteriorizadas e misturadas, em uma espécie de
relacionalidade em estado puro e onipresente, tornando todos estranhos entre si. A não-
relação (identidade) e a relação total (alteridade) são ambas não-sociais, o social sendo
definido como mediação entre identidade pura e alteridade pura. Quando os humanos de
baixo saíram para o nível terrestre e começaram a procriar fisicamente e a morrer, eles se
tornaram diferentes dos parentes que continuaram vivendo em baixo com os corpos
fechados. A diferença, até então inexistente, surgiu desse contraste entre humanos mágicos
de corpos fechados e humanos sociais de corpos abertos, o mesmo tipo de contraste que é
associado, respectivamente, aos corpos dos homens e das mulheres terrestres, como será
visto adiante, e que estabelece o que é identidade e o que é alteridade.

61
A importância da “fruição lúdica e estética” entre os Karajá é analisada por Whan (1998:130) a partir do
jogo de cordéis (reru) manual. A autora inclui “a jovialidade e a alegria, e o seu apreço pelo lúdico e estético,
tão bem combinadas no brinquedo” dos cordéis, como qualidades inerentes ao “ethos Karajá”.

340
Capítulo 5

Tudo tem corpo

5.1. A imanência das relações físicas e sociais

Em sua teoria sobre o surgimento da sociedade, Lévi-Strauss (1982) considera o


tabu do incesto, fato existente em todas as sociedades humanas, como o primeiro ato
social, o marco de passagem entre um estado natural e um estado social definido pela
aliança entre grupos que trocam mulheres. Com a necessidade de se casar fora do grupo
familiar, instaura-se a reciprocidade entre grupos diferentes e com ela a sociedade.
Pressupõe-se a existência de um estado natural anterior, autônomo, autogerado e
autoregulado, independente das relações sociais entre os humanos e responsável pelos
processos do corpo físico e da matéria, e um estado social criado artificialmente e
condicionado pela subjetividade humana. Enfim, a clássica oposição ocidental entre
natureza e cultura. As convenções sociais ou a cultura pertencem a essa porção do espírito
humano que não se reduz aos instintos e que distingue os seres humanos de todos os outros
seres do mundo natural em sua capacidade de criar as próprias leis e o próprio destino. E
para a qual a tradição filosófica ocidental tem dedicado especial atenção, seja
categorizando-a enquanto livre-arbítrio, subjetividade transcendente, espírito, alma,
consciência, razão ou mente/cérebro superior ao resto do corpo; ou, em uma versão mais
recente, a capacidade de agência criativa do sujeito, ainda que relativamente condicionada.
Entretanto, seja na tradição durkheimiana (1965, 1982) que opõe sociedade a
indivíduo ou nos debates mais recentes que tratam da relação entre estrutura e agência
(Bourdieu, 1995, Giddens, 1993, 1994), subsiste em comum uma divisão radical entre
ordens antagônicas. A realidade experimentada pelos seres humanos está claramente
dividida entre o que é produzido pela agência humana e o que é dado naturalmente, ou
entre o que é produto da criatividade artificial de uma consciência subjetiva (a cultura, a
sociedade) e o que é produto da criatividade natural (a matéria, o corpo físico). Mesmo que
se admita que o acesso ao mundo natural seja sempre mediado por símbolos e limitado
pela consciência humana, como ensina a tradição weberiana (1949), ainda subsiste a crença

341
em uma base natural sobre a qual a cultura é arbitrariamente construída. Em suma,
procriação física opõe-se a criação subjetiva.
Nos últimos anos, alguns autores, como Latour (1994), têm proposto o abandono
daquilo que ele chama de o “Grande Divisor” da modernidade, a separação entre natureza
e sociedade, em prol de uma visão antropológica da realidade mais holista, que integre os
contínuos processos de mediação entre os dois domínios, os quais têm sido invisibilizados
pelo pensamento moderno. Outros autores, como Descola (1992, 1994) e Viveiros de
Castro (2002g), têm repensado a dialética entre sociedade e natureza nas sociedades
indígenas, enriquecendo-a com novos significados, sem que isso signifique, contudo, um
verdadeiro abandono do Grande Divisor, assunto ao qual retornarei 1 . Através de amplos
dados etnográficos, Descola (1992:116) demonstra que entre os Achuar e os nos sistemas
amazônicos anímicos “natureza e sociedade não estão (...) separadas por fronteiras
ontológicas” ou que existe um “continuum entre seres humanos e seres da natureza”
(1994:93). Entretanto, o autor hesita em transcender definitivamente essa oposição ao
conceber a relação dos Achuar com os seres não-humanos em termos de uma “socialização
da natureza” ou em termos de “projeção” dos modos de socialidade internos sobre as
formas de se relacionar com a “natureza” (relação feminina de consangüinidade com as
plantas e masculina de afinidade com a caça), pressupondo uma separação anterior entre o
natural e o social.
Além disso, postular o caráter social das relações entre os dois domínios é diferente
de imbuir toda a realidade circundante do poder transformador, criativo e imanente da
agência humana, característica essencial do pensamento-prática mitológico e cosmológico
Javaé 2 . Pretendo deixar claro ao longo deste trabalho que essa oposição clássica não tem
nenhum valor analítico para a interpretação dos dados etnográficos Javaé e que o
entendimento do que seja História, nos termos nativos, depende da transcendência dessa
separação arbitrária. Veremos que a grande distinção conceitual que o Ocidente faz entre
domínios opostos, natureza e cultura, instinto e livre-arbítrio, biologia e consciência, corpo
e alma ou matéria e espírito, entre outras paralelas, é inexistente entre os Javaé. Não há
uma oposição epistemológica entre a criatividade natural autônoma do mundo físico e a
1
Em seu texto sobre o perspectivismo ameríndio, Viveiros de Castro (2002g:349) diz que “a distinção entre
natureza/cultura deve ser criticada, mas não para concluir que tal coisa não existe. (...) O ‘valor sobretudo
metodológico’ que Lévi-Strauss (1962b:327) veio a lhe atribuir será, aqui, entendido como valor sobretudo
comparativo”.
2
Ver a crítica de Albert (2000b:257-259) ao conceito de “Natureza-Objeto, reificada como instância
separada da sociedade e a ela subjugada”, enfim, a “nossa fetichização da Natureza”, através das concepções
cosmológicas e xamânicas Yanomami.

342
criatividade subjetiva humana, produto do arbítrio e responsável pela História, uma vez
que as duas dimensões são pensadas como um fenômeno único e integrado 3 .
Em outras palavras, não existe o conceito de natureza tal como o definimos, como
uma dimensão independente, pois toda a realidade física atual, seja o próprio corpo ou o
meio ambiente, é constituída em sua essência pela ação social e histórica dos homens, que
se funde com a própria materialidade do mundo. Por ora, basta mostrar que a procriação
física, enquanto uma manifestação criativa do corpo humano, é concebida como o fruto de
uma interação social. A abertura dos corpos e o início da reprodução física humana
coincidem com a instauração da aliança social e a categorização dos humanos como
diferentes/afins entre si. Disso decorre que a procriação, entre os Javaé, não é percebida
como um fato biológico natural, a priori e independente de qualquer vínculo social, ou que
as relações físicas de descendência (sejam elas concebidas como matrilineares,
patrilineares ou bilaterais) sejam logicamente anteriores às relações sociais de
reciprocidade.
A cosmologia e a mitologia contêm, de modo subjacente, uma teoria da criação da
realidade que não se dissocia de uma teoria da corporalidade. Como já foi dito, o grande
marco separador entre a vida mágica e imortal subaquática e a vida social e mortal dos
humanos terrestres, a causa da queda do paraíso (que no caso Javaé é uma “subida”), é o
início da vida sexual. Mais precisamente, da procriação física. Esta última coincide
também com a criação de uma nova realidade, uma vez que no Fundo das Águas nada se
criava, tudo apenas se repetia indefinidamente. O estatismo espacial (seus habitantes
viviam confinados nesta dimensão fechada) coincidia com um estatismo temporal e ambos
com uma paralisia criativa, uma ausência crônica e estrutural de criação do novo. Não se
criavam filhos nem idéias, costumes ou hábitos novos.
O grande mito da criação narra como os seres humanos que subiram para o nível
terrestre ou que já habitavam aqui não conheciam a sexualidade e a procriação física, como
a mãe de Tanyxiwè, que engravidou magicamente. É através de suas andanças pelo nível
terrestre que Tanyxiwè descobre o desejo sexual (primeiramente pela própria avó) e a
função de seu pênis. Após seu casamento com Myreikò, os seres humanos começaram a ser
gerados fisicamente. Em outro momento, ele conquista o imenso pênis de Ijewe para que

3
Ver em MacCormack (2002), Gillison (2002) e Strathern (2002) críticas ao pressuposto de que a divisão
conceitual entre natureza e cultura é universal. Strathern critica a validade dessa divisão como uma realidade
externa e mostra que o contraste doméstico versus selvagem, entre os Hagen, aplicado à questão do gênero,
não tem o mesmo conteúdo que o nosso cultura/natureza.

343
os outros humanos terrestres pudessem conhecer o prazer do sexo e também começassem a
se reproduzir fisicamente. No episódio referente à origem da aldeia Marani Hãwa, Kwely
sente atração sexual por Bororèkuni, um aõni, mas para consumar o ato sexual tem que
transformar o corpo de Bororèkuni e criar a genitália feminina, até então inexistente. Esses
são apenas alguns exemplos significativos de um tema que se repete em toda a mitologia.
O início da procriação física e da conseqüente abertura dos corpos coincide com o
início da vida em sociedade e das relações sociais. Os casamentos que geraram
descendentes através de relações de substância, e não de forma mágica, aconteceram todos
no nível terrestre: entre o povo de Tòlòra e os Wèrè, entre Tanyxiwè e os Kuratanikèhè,
entre Kwely e Bororèkuni etc. Há uma simultaneidade entre a exteriorização da energia
vital, através das relações sexuais e da procriação, e o surgimento de relações sociais com
outros/afins, categoria até então inexistente. É apenas no nível intermediário, após a
abertura dos corpos, que surgem as relações assimétricas de reciprocidade com os afins, as
quais tomam forma através do serviço da noiva, e que as mulheres tornam-se esposas.
O início da procriação também coincide, paradoxalmente, com o início da morte
dos corpos. Conforme a teoria nativa já explicitada em meu trabalho anterior (Rodrigues,
1993), e aqui relembrada resumidamente, o ciclo de vida do corpo humano é concebido
dentro de uma lógica de acumulação e perda de energia vital. Do nascimento até a
fabricação do primeiro filho, os corpos vivem um processo de acúmulo de energia vital,
principalmente através da alimentação e do uso de substâncias energéticas, como a tinta de
jenipapo. Tradicionalmente, a vida sexual deveria começar apenas após o casamento e os
jovens deviam manter-se virgens até então (o que é muito pouco respeitado atualmente), de
modo a manter os corpos “fechados” e assim evitar a exteriorização da energia vital através
dos fluidos sexuais. Apesar da menstruação, no caso feminino, ser concebida como um
início de perda de energia vital, os Javaé consideram que é o nascimento do primeiro filho,
para ambos os sexos, o verdadeiro momento a partir do qual os corpos se abrem e tem
início o processo gradual de perda energética que leva ao envelhecimento e à morte.
O filho é a energia vital dos pais materializada e exteriorizada de uma forma mais
densa e definitiva do que a perda de sangue menstrual ou outros tipos de fluidos. Acredita-
se que o corpo do filho é feito do sêmen paterno, teoria a ser retomada em detalhes na
segunda parte, mas ele é também “contaminado”, digamos assim, pelas substâncias da
mãe, de modo que há o reconhecimento bilateral dos laços de parentesco. Enquanto
amálgama do sêmen e das substâncias femininas transformados em um novo corpo, fora do

344
corpo da mãe, o recém-nascido é a energia vital de seus pais fora de seus corpos.
Simultaneamente, os pais de um recém-nascido iniciam o processo inverso, de perda
gradual da energia vital. O primogênito que abre seus corpos, até então considerados como
“fechados”, inicia o processo de envelhecimento e morte de seus pais. O nascimento do
primeiro filho marca nitidamente a transição dos pais de um estado de corpos fechados
para um estado de corpos abertos. Como já foi mostrado antes (Rodrigues, 1993), o
nascimento do primeiro filho é simbolicamente o “meio” (tya) do ciclo de vida dos corpos
perecíveis, a passagem entre um período de acúmulo energético para um de perda de
energia, correspondente ao meio da rota solar (meio dia) ou ao meio do ciclo de águas (o
rio cheio).
O encontro de cada corpo com a morte, uma queda do paraíso simbólica, tem sua
origem na geração física de uma nova vida, exatamente como ocorreu com os personagens
míticos ancestrais. Ou como diria Crocker (1985:61), referindo-se ao mesmo tipo de
paradoxo entre os Bororo, “a mesma força que traz a capacidade de aproveitar a vida física
é permanentemente perdida durante a sua satisfação”. Procriação e morte, para os Javaé,
são fatos indissociáveis. Mais do que isso, ambos constituem-se como o marco separador
entre uma vida mágica e a vida em sociedade. A mistura primordial das substâncias
corporais, que se repete a cada filho que é gerado, dissolve a auto-suficiência que define o
estado de poder “mágico” (xiburè) dos habitantes subaquáticos e celestes. Precisa-se do
Outro para ter prazer e para isso é preciso dar algo em troca – o serviço da noiva e as
próprias substâncias –, acarretando a perda da imortalidade. Assim, o estado social é
associado à fertilidade, como entre os Piaroa (Kaplan, 1984) ou entre os Tukano (C. Hugh-
Jones, 1979) e Baniwa do alto Rio Negro (Wright, 2000:451), para quem a “transição de
condições (...) não-reprodutivas dos tempos primordiais” para a reprodução física da
humanidade atual é o acontecimento que funda o presente cosmos.
A procriação também gera a divisão do eu original mágico em dois (pai e filho ou
mãe e filho), entre o mesmo e o diferente, criando a diferença. O filho contém em si a
substância do pai e da mãe, sendo uma continuidade ou repetição de ambos, mas ao mesmo
tempo é a substância de ambos separada dos corpos originais e fundida em um novo ser,
que não é nem um nem outro, mas um diferente. Os corpos fechados que não procriam
representam o mesmo que se repete eternamente; os corpos que se fundem e se
multiplicam geram a diferença a cada filho que nasce. Por isso a criação do novo e da
diferença, nos tempos das transformações míticas, associa-se ao início da procriação física.

345
O princípio geral é que toda relação implica em dar ou perder algo de si para o Outro,
havendo uma associação entre relação (física ou social) e mortalidade, não-relação e
imortalidade.
Para os Javaé, o funcionamento “biológico” do corpo – ciclo de vida e morte,
capacidade reprodutiva – não decorre de um estado inerente à matéria de que é feito, mas é
visto como uma conseqüência das relações sociais. Na verdade esta não é uma idéia nova
nas etnografias sobre os indígenas sul-americanos, em que podem ser encontrados vários
exemplos de teorias não biológicas sobre a fabricação do corpo ou da matéria 4 . Turner
(1995:145) sugere que qualquer teorização a respeito da corporalidade deve levar em
consideração “o caráter intrinsecamente social do corpo humano, em todas as suas
dimensões materiais, fenomênicas, biológicas, psicológicas, sociais e culturais”. No que se
refere ao alto Xingu, Gregor (1977:237) já dizia sobre os Mehinaku, em se tratando das
práticas de reclusão, que “as mudanças no crescimento e na saúde que nós vemos como
naturais, eles consideram como sendo procedimentos pelos quais eles são responsáveis em
grande parte. Os meninos amadurecem sexualmente, crescem fortes e tornam-se bons
lutadores e pescadores porque os Mehinaku seguem certas regras”. Viveiros de Castro
(1987b:32-33), apesar de propor que os processos em questão possam ser articulados com
a tríade Natureza/Cultura/Sobrenatureza, referindo-se à “fabricação social do corpo” entre
os alto-xinguanos, em especial os Yawalapíti, fala claramente que:

“(...) o social não se deposita sobre o corpo Yawalapíti como sobre um suporte inerte:
ele cria este corpo. Esclareço que falo em ‘fabricação do corpo’ ao pé da letra, (...)
enquanto atividade humana, intervenção consciente sobre a matéria. (...) Os momentos
mencionados (fabricação de um filho, maturidade sexual e morte) não são, assim, vistos
como ‘naturais’, independentes da intervenção humana”.

A grande passagem mítica Javaé entre um mundo mágico e um social não pode ser
traduzida como uma passagem entre a natureza e a cultura. Os humanos que viviam
magicamente em um mundo estático não eram seres “naturais”, mas apenas grupos de
parentes que não dependiam nem se relacionavam uns com os outros. Esse estado de auto-
suficiência e imortalidade perene não tem o mesmo conjunto de significados atribuídos
corriqueiramente ao conceito de natureza, tais como “força ativa que estabeleceu e
conserva a ordem natural de tudo quanto existe”; “a condição do homem anteriormente à

4
Ver Gow (1989), Overing, (1993), Lea (1993), Taylor (2000).

346
civilização”; “o mundo visível, em oposição às idéias, sentimentos, emoções etc”;
“conjunto do que se produz no Universo independentemente da intervenção refletida ou
consciente” (Ferreira, 1986:1182). O mundo mágico não é um estado anterior à vida em
sociedade, pois continua existindo até hoje, nem produto de uma força universal da matéria
em permanente evolução, uma vez que tudo continua estático como sempre foi.
A socialidade não é concebida em oposição à matéria auto-regulada, mas apenas
como o produto das relações entre diferentes. Enquanto o nosso contraste entre natureza e
cultura remete à divisão entre o que é da matéria e o que é da não-matéria (corpo e alma), o
contraste mítico e cosmológico Javaé entre o mágico e o social diz respeito ao contraste
conceitual entre um mundo sem relações e um mundo de relações entre diferentes. O que
está em evidência neste contraste nativo é a ausência paralisante de relações (estado
mágico), de um lado, e a existência de relações que transformam e criam (estado social), de
outro. É verdade que Lévi-Strauss também concebe a sociedade como um estado de
reciprocidade, em oposição ao estado de natureza onde não se trocam mulheres. Mas a esse
par natureza/cultura vêm agregados uma série de outros significados incompatíveis com a
divisão conceitual nativa. Uma diferença radical é que a reciprocidade, em Lévi-Strauss,
não leva a um estado que propicia a transformação e a criação, como para os Javaé, mas a
uma estrutura profunda e estática que se repete indefinidamente.
No que se refere à qualidade perecível dos corpos humanos e à procriação, objeto
deste item, estes não existem enquanto dados da natureza ou fatos biológicos a priori. Não
se trata de dizer quem veio primeiro ou depois, a reprodução física (a natureza) ou a
reciprocidade (a cultura). A procriação instaura o ciclo de vida e morte dos corpos, as
transformações corporais, e também as relações sociais que criam uma nova realidade. As
relações físicas de substância não se opõem às relações sociais, mas são imanentes, um
único fenômeno, concomitante e simultâneo, o que tem importantes repercussões na teoria
nativa sobre o parentesco, assunto da segunda parte. Ou dito de outro modo, os corpos não
são um produto natural (visão biologizante) nem uma base natural sobre a qual a sociedade
se projeta e constrói algo cultural e relativo, visão construcionista criticada por Strathern
(1990, 1997) e McCallum (2001) justamente por pressupor o contraste entre natureza e
sociedade, projetado para as relações de gênero. Eles são, diversamente, um produto
puramente social, indissociável da agência humana, em sua própria essência material. A
materialidade do corpo é um produto em si social, pois a relação entre matéria e
socialidade é de imanência.

347
Em dois trabalhos anteriores (Rodrigues, 1993, 1995), baseados em uma análise de
um mito Karajá sobre a origem da menstruação, já era possível apontar uma origem social,
e não biológica, para o sangramento periódico feminino. Como este é um mito central para
o argumento aqui desenvolvido, além de outros temas que serão discutidos mais à frente,
apresento a seguir uma versão Javaé inédita, obtida em 1997, e que trata de um dos
episódios da vida adulta dos irmãos Ijanakatu, personagens já apresentados anteriormente.
Os Ijanakatu, assim como vários homens antes deles, desejavam casar e ter relações
sexuais com as filhas de um homem chamado Txuu (Sol), mas elas tinham piranhas
castradoras dentro de seu útero. Um mito sobre o mesmo tema da “vagina dentada” (ver
Lévi-Strauss, 1991) é encontrado entre os Mehinaku do alto Xingu (Gregor,1985):

“(...) Aqui está contando a história do Ijanakatu. Tinha uma pessoa, Txuu ... Txuu é o
Sol. Txuu também era um nome próprio. Ele tinha duas filhas que eram lindas, belas.
Vários povos do mundo, as pessoas, iam lá para casar. Só que não conseguiam. Acho
que no caminho Hararani (um aõni em forma de pássaro) comia, às vezes Halòkòè
(onça pintada) comia, às vezes Kòbòròrò (jacaré-açú) comia. Alguns que alcançavam,
Juata (piranha) cortava o pênis deles (dentro do útero delas). Isso os que chegavam lá,
pois o resto acabava no caminho mesmo. Ninguém conseguia fazer sexo. Cada pessoa
que ia lá falava que era Ijanakatu, só que não era, era uma pessoa normal mesmo. Um
dia, o Ijanakatu de verdade e os dois irmãos foram lá e pediram para Txuu. É claro,
com o tratamento (correto de parentesco). Falaram ‘labié’ (avô) e pediram para as
meninas casarem. Ele aceitou que se casassem com elas. Só que, quando casou, o irmão
mais velho falou para o iexi (“irmão mais novo dele”) que não tocasse nela
sexualmente, porque eles eram aõni, já tinham aquele dom de prever as coisas, tinham
poder. Ele sabia que as mulheres tinham um problema. Falou: ‘você vai dormir com a
sua mulher, mas não faça sexo com ela’. Então não fez. Logo depois foram caçar. Na
ausência dos rapazes, o velho, pai das moças, preparou um remédio e passou em
Halokòè, Kobòròrò, Leimylò (aõni em forma de sucuri), Hararani ... quando eles
voltassem, Hararani estaria em uma porta, Hakòkòè em outra, Kòbòròrò lá na casa ...
era para eles atacarem. Estavam todos enfeitiçados, ele passava remédio na boca (deles)
para ficarem mais valentes. Só que quando eles vieram da caça, para entrar na casa,
vieram usando woixina (erva usada pelos xamãs para controlar os poderes dos aõni).
Parece que usavam na unha e vinham soltando woixina. O que aconteceu? Halòkòè
perdeu o poder e nem ligou, Hararani também colocou o bico para baixo, Leimylò
ficou para lá mesmo, não agiu. E Txuu mandando atacar, mas eles não atacavam. E
Kobòròrò na casa, não comeu não. Os rapazes chegaram.
Txuu tinha um kowodihiky, um tipo de vulcão que tinha lá, para esquentar, o
aquecedor dele. Um formato de vulcão, com o fogo saindo de lá. Ele recomendou para
os rapazes que apagassem o aquecedor dele. Nesse formato de fogo, longe. Porque
todos os rapazes que vinham para casar com as meninas iam lá para apagar, só que não
conseguiam, porque morriam ou se queimavam, alguma coisa. Ele estava testando o
pessoal. Chegando lá, era um fogo enorme, tipo um vulcão mesmo, era gigante! Um
vulcão saindo da terra, como é que ia apagar? Então combinaram com Nawatxiè, um
pássaro, acho que é a andorinha, aqueles que jogam água no fogo. Não pode ver fogo,

348
que está jogando água no fogo. Você nunca viu não? Aqui tem muito! Combinaram
com eles: ‘walana (tio materno), vocês conseguem apagar esse fogo para nós?’. Ele
falou que apagava. Então veio aquele bando, muitos nawatxiè, para pingar água. Eles
pegaram dentro do rio e jogaram, jogaram ... apagaram tudo. O objetivo do velho, do
Txuu, era pegar kowodi (um tipo de resina vegeta), só que estava dentro daquele
fogaréu. Só que o Larabòtò, que é o cunhado dos rapazes, e irmão das moças, veio na
frente. Veio e contou para o pai: ‘os seus genros apagaram o fogo’. Ele reclamou: ‘por
que apagaram o meu aquecedor e não pegaram o kowodi?!’. Na verdade ele não queria
nada, estava só brincando com os rapazes. Perguntou a eles se conseguiram pegar e eles
disseram que não. ‘Então vamos lá tirar’. E foram lá. Era apenas uma armadilha. Na
chegada à aldeia, a mesma coisa, pediu para os bichos (aõni) pegarem os meninos, só
que não conseguiam pegar nunca.
Até que em determinado tempo, os rapazes não agüentaram mais, pois estavam
com muita vontade de fazer sexo com as moças. Combinaram um com o outro que
tinha que acontecer alguma coisa. Acharam axidèsõmõ, (um tipo de timbó, planta que
asfixia e mata os peixes na água), uma plantinha que o pessoal usa como timbó, só que
menor, você não conhece não. Amassaram e fizeram um tipo de soro, um chá. Sabe o
que eles fizeram? Colocaram dentro da vagina da mulher! E com isso saiu um bocado
de piranha. Aquelas piranhas mesmo, peixe. Saíram várias, grandes, pequenas, muito
mesmo. Só que diz que ficou um pouco, uma pequena, bem pequena mesmo,
minúscula. Com isso, ele falou: ‘acabou o problema das mulheres, está tudo bem. Tem
uma lá dentro, mas eu creio que isso não vai ser problema. Acho que agora dá para
fazer alguma coisa’. Ela (a narradora) está contando aqui que essa menstruação que tem
de mês em mês é devido a isso ... é a piranha que come a trompa ou o útero, mais ou
menos assim. A parede de alguma coisa lá, por isso que sangra todo mês.
‘Vamos fazer uma coisa? A gente não sabe o que as mulheres têm aí, se acabou
mesmo. Nós vamos chamar nosso labiè (avô), o Kòròbi (um tipo de macaco)’. Foram
lá, conversaram com Kòròbi e explicaram que eles queriam que ele fosse o primeiro a
fazer sexo com a mulher deles. Explicaram que antes tinha um problema, mas agora
não tinha mais. O Kòròbi foi lá. Não era parente não, mas o pessoal chamava de labiè,
tipo um ‘compadre’. O Kòròbi veio e começou a fazer sexo com uma delas. Diz que
entrou o pênis dele, do jeito que ela falou ... diz que foi, foi, foi, foi afundando e nada,
aí parou, foi afundando e nada, até que chegou e nada. Aí terminou. Então foi colocar
na segunda, foi, foi, demorou a entrar, demorando, foi, foi, não chegava, até que
chegou. Ficou gostando, até que eles repararam: ‘o velho não vai parar mais não?! ...
Avô! Está bom!’, eles falaram. Disse ‘está bom!’, e ele lá, continuando ... e nada! Diz
que ele falava ‘está bom’ e não ligava. ‘O que está acontecendo com esse velho?’. Um
deles pegou o cabelo dele assim e arrancou. Puxou a cabeça dele, porque não estava
agüentando. Falava para não parar e não parava, estava gostando! (risos). Com isso,
tiraram a cabeça dele, por isso que o macaco é careca, porque os Ijanakatu arrancaram
o cabelo dele. Por isso que tem a testa grande. Depois ele foi embora. Então o irmão do
Ijanakatu falou para o Ijanakatu que por causa de mulher a gente tem que brigar. Antes
ninguém brigava por causa de mulher. Agora a gente briga por causa de mulher.
Depois eles se casaram. O Ijanakatu casou com uma e o irmão dele casou com a
outra. Então inventaram de se pintar, os rapazes. As mulheres deles fizeram bidina
(tinta de jenipapo) e eles se pintaram. Em um determinado lugar estavam lá os dois, se
elogiando. Como é que chama? Não tem um negócio lá ... ‘narcisismo’ que fala? Pois
é, daquele jeito. Se achando lindos, cada um olhando para o corpo, as pernas, as
nádegas de cada um! Até que as mulheres deles falaram sobre Wiwijo, que no caso é

349
iny (gente). As duas eram amantes do Wiwijo. Elas tocaram no nome de Wiwijo sem
querer, saiu. Os rapazes perceberam que as mulheres deles tinham um amante. Depois
inventaram de ir rio abaixo para pescar. Pegaram a canoa e lá em determinado lugar,
distante, a Kerekelalo, que é a irmã deles, dos Ijanakatu, estava tomando banho no rio.
De repente, o Tyrè (pirarara) veio fazer ... queria namorar com a Kerekelalo. Ele se
fazia de iny. Diz que ela reclamou, chorou, fez o maior drama. Um dos irmãos veio lá e
achatou a cabeça do Tyrè, na forma de iny que eu estou falando. Achataram a cabeça
dele e colocaram sihò, um pente de antigamente. Por isso que a pirarara tem a cabeça
chata e um tipo de pente ... Ijanakatu que fez isso.
Então criaram outra lei também. Tem que defender o tyy (vagina) da irmã, tem
que defender a irmã. Então eles inventaram que tem que brigar por causa das mulheres,
por causa do tykòwy (pagamento pela vagina). Estavam criando a ‘lei daqui’, ãdèburè.
O seu irmão tem que defender você em qualquer cena, essas coisas que estão
acontecendo aí de briga. Até hoje tem. Nenhum irmão aceita que a mulher vá ter
relações sexuais com outro. Então fizeram uma lei. Os Ijanakatu sempre fizeram as
regras que têm até hoje. Fizeram essa lei que os irmãos têm que defender as irmãs. ‘Já
que nós puxamos o cabelo do nosso avô, essa lei sempre vai existir na vida da
humanidade, os irmãos sempre defenderão as vaginas das irmãs’.” (palavras do
tradutor)

O mito continua narrando a vingança dos Ijanakatu contra Wiwijo, o amante de suas
mulheres, e um outro episódio em que novamente “defendem a vagina” da irmã
Kerekelalo. Desta vez, contra Bòrò (arraia), que era gente naquele tempo e ficou em sua
forma atual, achatada, por causa da ação dos Ijanakatu em defesa das vaginas de suas
irmãs. Por fim, após a vingança, voltaram para a casa das mulheres:

“(...) Chegaram na casa, na Ijanakatu Hãwa (Aldeia de Ijanakatu, fora da Ilha do


Bananal), onde estavam as mulheres deles. Tem esse lugar até hoje. (...) Encontraram o
sogro e as mulheres. Ele falou: ‘é, vocês me venceram, porque muitos homens já
chegaram aqui usando o nome de vocês, Ijanakatu, mas fracassavam nessas
armadilhas. Mas vocês provaram que são os Ijanakatu de verdade mesmo’, ou seja, são
inteligentes, são diferentes. Ultrapassaram todos os obstáculos que ele colocava. Logo
depois foram embora, os Ijanakatu, e estão lá no Céu, eles são Biududu mahãdu (povo
do Céu). Moram lá até hoje, ou seja, são eternos.” (palavras do tradutor)

O casamento enquanto o grande desafio masculino, assim como no mito de


Tanyxiwè, o alto preço que se paga pelo prazer sexual, o valor das irmãs enquanto
geradoras de serviço de noiva, motivo da “defesa de suas vaginas” pelos irmãos, as esposas
imorais e adúlteras como motivos de conflitos entre os homens, entre outros temas, tudo
isso será retomado ao longo deste trabalho, principalmente na Parte 2. Sabemos, conforme
o relato de um xamã já apresentado, que agora os Ijanakatu vivem sozinhos no Céu, assim

350
como Tanyxiwè, Xiburè e Rararesa, longe dos afins pelos quais tiveram que enfrentar
tantos desafios aqui no nível terrestre.
Aqui interessa apenas mostrar que o sangramento mensal feminino não é pensado
como um fato biológico independente, mas como uma conseqüência de uma interação
social entre agentes humanos 5 . É a relação social entre um candidato a genro e um sogro
em potencial que vai resultar na abertura parcial do corpo feminino e no início da
menstruação como um fato periódico mensal. Antes do estabelecimento das relações
físicas e sociais entre diferentes, as mulheres não menstruavam, esta era apenas uma
ameaça latente. A menstruação não é vista como uma condição natural e intrínseca ao
corpo/matéria, mas como o produto de um ato físico e social ao mesmo tempo, do
estabelecimento de relações de reciprocidade.
Os irmãos Ijanakatu têm de enfrentar os desafios impostos por Txuu, assim como
Tanyxiwè enfrentou muitas dificuldades para conquistar o Sol como pagamento pela
vagina de sua mulher. Os desafios são um teste para revelar quem é o mais capaz de
realizar as prestações matrimoniais, indicando o alto valor do corpo feminino para os
homens do grupo (em especial o pai e os irmãos). O pagamento pelo direito de ter relações
sexuais com a mulher, muito mais do que o tabu do incesto, é apresentado, em mais de um
episódio mítico, como o verdadeiro ato que institui a vida em sociedade, “a lei dos
homens”, concomitante à abertura dos corpos (menstruação e procriação). A criação das
leis humanas, um ato social, ocorre paralelamente à instauração do processo criativo dos
corpos, desde então não mais estáticos, mas “organismos sociais” em fluxo constante, que
se deterioram ao perder energia vital.

5.2. Corpos em fluxo: a fusão produz a diferença

Dessa concepção não biologizante nem construcionista dos corpos decorre que não
há a clássica divisão, para alguns universal, entre corpo feminino mais próximo da
natureza e corpo masculino mais social, como na influente coletânea de Rosaldo e
Lamphere (1979), em especial no artigo de Ortner (1979). Ou entre feminilidade dada e

5
A menarca é marcada socialmente com um período de reclusão daquela que entra para a classe de idade
ijadoma (“moça”), período de aprendizado das tarefas femininas, o que já foi descrito antes em Rodrigues
(1993).

351
masculinidade adquirida em rituais de iniciação, como em Rosaldo (1979:42), por
exemplo, para quem a feminilidade seria concebida mundo afora como algo dado, ligada à
esfera doméstica naturalizante, enquanto a masculinidade é vista como um produto social
que é adquirido na esfera pública: “o status feminino surge ‘naturalmente’ (e mesmo em
sociedades que praticam a iniciação feminina, essas cerimônias parecem ser mais uma
celebração do desenvolvimento natural e biológico do que uma ‘prova’ de feminilidade ou
um desafio aos vínculos passados), enquanto ‘tornar-se um homem’ é um feito”. Donahue
(1982) interpreta assim a diferença entre a menarca da moça Karajá, que é marcada
socialmente, e o ritual de iniciação dos jovens do sexo masculino.
Tendo como referência as sociedades melanésias, Strathern (1990:92) propõe que,
ao invés de uma teoria da sociedade como a nossa, que se baseia no contraste entre o que é
social e o que não é (a natureza), é mais adequado falar de uma teoria da ação social, uma
vez que tanto homens quanto mulheres são concebidos como atores sociais completos,
havendo apenas diferentes tipos de “socialidade” ou agency. No que se refere aos Javaé,
não existe o contraste entre mulheres associadas às relações de substância (natureza), de
um lado, e homens às relações sociais ou cerimoniais (sociedade), de outro, comum nos
estudos sobre os Jê-Bororo baseados na oposição entre substância e nome 6 . As mulheres
não “nascem” mulheres nem estão mais “próximas da natureza”, enquanto criadoras de
corpos, nem os homens da cultura, enquanto criadores de leis. Veremos que tanto o corpo
feminino quanto o masculino são igualmente produtos (e produtores) de relações sociais,
não existindo como dados a priori da natureza, e que tanto um como outro são igualmente
criadores de filhos e de cultura.
A masculinidade e a feminilidade são, antes de tudo, estados sociais associados ao
plano terrestre e à abertura dos corpos proporcionada pelo exercício da agência humana.
No nível subaquático, onde não existem relações entre diferentes e os corpos são
igualmente fechados, a diferença de gênero é apenas uma possibilidade não concretizada.
Os corpos de irmãos e irmãs não são ainda diferentes, existe apenas a ameaça da diferença,
por isso as irmãs quase nuas são mantidas à distância dos aruanãs e latèni mascarados. A
máscara e a ausência dela são indicativos de um controle maior ou menor dos fluidos que
podem vir a surgir, como ocorre no nível terrestre. A diferença e a própria passagem do

6
Ver, por exemplo, a coletânea de Maybury-Lewis (1979a) com os resultados do PHBC (Projeto
Harvard/Brasil Central), Da Matta (1976), Crocker (1985) ou Seeger (1980, 1981). Em textos mais recentes
sobre a questão do gênero nas sociedades indígenas, Lea (1999) e Lasmar (1999) apontam as afinidades
teóricas entre o PHBC e a antropologia do gênero dos anos 70/80.

352
tempo surgem da exteriorização dos fluidos corporais. É essa possibilidade que faz os
aruanãs manterem as adusidu (dançarinas) do lado oposto da aldeia. Enquanto os corpos se
mantêm igualmente fechados e estáticos ou não-perecíveis, não existem relações entre
diferentes nem maridos e mulheres ou masculino e feminino. São todos parentes, iguais
entre si, e também indistintos quanto ao gênero. É quando se abrem, através das relações
que tornam os humanos mágicos em humanos sociais, que os corpos tornam-se diferentes e
com eles surge a diferença de gênero.
Não se trata, entretanto, de uma diferença de gênero baseada ou construída a partir
da diferença biológica, mas de uma diferença “biológica” produzida por uma interação
social entre agentes humanos. Quando os corpos até então fechados e iguais desejaram
misturar suas substâncias, produzindo um novo ser, o resultado dessa mistura é que os
corpos originais dos doadores de substâncias tornam-se diferentes, em termos físicos e de
gênero, um do outro. Se antes da fusão física e social ambos eram igualmente herméticos e
estáticos, não conhecendo o ciclo transformador de vida e morte, após a fusão um deles
passou a ser o que contém e expulsa de si o novo ser que surge, enquanto o outro, que não
gera o filho em seu próprio corpo, é apenas o doador do sêmen que o fabrica. O primeiro
tem seu corpo violenta e visivelmente aberto pelo ser gerado, expelindo com ele grande
quantidade de fluidos corporais, enquanto o segundo, embora tenha também o corpo
aberto, pois o filho é a sua própria energia vital exteriorizada, não traz em si as marcas
dessa mudança radical.
Apesar dos três estarem igualmente ligados energeticamente entre si, formando
uma “comunidade de substância” (Da Matta, 1976), cabe ao primeiro nutrir o novo ser com
substâncias de seu próprio corpo, exteriorizando mais fluidos ainda, enquanto ao segundo
cabe apenas esperar que esse processo chegue ao fim. O primeiro, que desde então é
conhecido como uma “mulher/mãe”, passa de maneira muito mais radical e visível por
uma série de mudanças corporais, enquanto o segundo, desde então um “homem/pai”, tem
seu corpo preservado de modo quase idêntico ao que era antes da fusão criadora. Tornar-se
“mulher”, enquanto gênero social, é simultâneo a tornar-se “mãe”, assim como tornar-se
“homem” é simultâneo a tornar-se “pai”. Até então, eram apenas como irmãos de corpos
idênticos e indistintos socialmente. A palavra usada para se referir às “mulheres” em geral
(hawyky) ou “homens” (hãbu), enquanto gêneros distintos, é a mesma usada para se referir
às “esposas” e “esposos”. Wahawyky (minha esposa) e wahãbu (meu esposo) são usados
como vocativos entre marido e mulher, ou seja, é só enquanto “esposo” e “esposa” que os

353
humanos são “homem” e “mulher”. Os Javaé também fazem uma associação entre sexo e
casamento (ambos deveriam se casar virgens tradicionalmente), havendo uma sobreposição
entre as categorias de esposa e mãe, e esposo e pai.
As diferenças corporais surgidas após a procriação, concomitantes ao surgimento
das diferenças sociais de gênero, até então inexistentes, são então vistas não como uma
realidade natural anterior e determinante, mas como o produto da agência humana, de uma
relação social e substancial entre os corpos. Como os processos físicos não estão
dissociados dos processos sociais, não existe uma diferença corporal natural a priori a
partir da qual se constrói a diferença social, de gênero: é a interação entre os corpos que
produz a diferença física e social. É a fusão, paradoxalmente, que produz a diferença. Ou
dito de outro modo, é o filho que produz os diferentes corpos dos pais, e não o contrário.
Ambos têm corpos e gêneros adquiridos, portanto, de modo igualmente social. Assim, a
diferença entre homem e mulher não é concebida em termos da oposição feminilidade
natural versus masculinidade social, mas traduzida na oposição entre um corpo social
menos transformado (homem) e um corpo igualmente social mais transformado (mulher).
A diferença de gênero associa-se a uma diferença corporal, porém não no sentido
de que a diferença de gênero está automaticamente atrelada a uma diferença biológica
natural, nem de que o gênero se “constrói” culturalmente, de forma artificial e arbitrária,
sobre uma base natural já dada. Como o corpo perecível dos humanos sociais não é um
organismo natural independente das relações entre os homens, mas um produto dessas
relações, as diferenças corporais são tão socialmente fabricadas como as diferenças de
gênero. A questão não é apenas dissociar o gênero da biologia, como alertava Reiter (1975)
nos anos 70, pressupondo o contraste entre ambos, mas abandonar o próprio contraste
entre biologia (natureza) e gênero (cultura).
Em sua análise do material etnográfico Cashinahua a partir de uma perspectiva
crítica da questão do gênero na Amazônia, MacCallum (2001:163) lembra que, apesar da
desconstrução da categoria “natureza” empreendida nos últimos anos, “a naturalização das
mulheres demonstra uma certa resiliência, nem tanto nos estudos sobre o ‘gênero’, que
raramente são o foco primário de pesquisa, mas na discussão das estruturas e processos da
própria vida social”. A autora lembra que, “para os indígenas amazônicos, as pessoas são
feitas, não nascem prontas” (2001:5), de modo que, no caso Cashinahua específico, a

354
produção da pessoa é simultânea à produção da diferença do gênero, que não existe como
condição natural ou “socialmente construído” 7 .
Influenciada por Strathern (1990) e utilizando-se dos conceitos de socialidade a
agência, McCallum propõe que a produção do gênero entre os Cashinahua é o resultado de
um processo de criação a um só tempo corporal e social, em que o feminino e o masculino
não são percebidos como identidades fixas, mas como diferentes capacidades de agência
igualmente sociais. Apenas adultos que se tornaram produtivos social e economicamente
são “completamente generizados” (McCallum, 2001:48), o que pressupõe o
desenvolvimento da agência feminina e masculina, baseadas em um aprendizado
“corporal” – “conhecimento incorporado” – de diferentes habilidades Em comum com os
Javaé, há a idéia geral de que é o exercício da agência humana que produz a diferença
social e corporal de gênero, e não o contrário, mas constataremos adiante que a agência
feminina e masculina não só são complementares e igualmente sociais, como propõe a
autora, mas constituem, juntas, o sujeito da ação social histórica, que não é um indivíduo,
mas uma relação entre esses dois pólos.
A fusão de substâncias torna corpos iguais, mágicos, fechados, estáticos, estéreis e
sem gênero em corpos diferentes, sociais, abertos, criativos e com gênero. A diferença
essencial que se produz através das relações sociais é entre um corpo que exterioriza mais
e um que exterioriza menos substâncias 8 . O corpo cujo fluxo de substâncias é mais intenso
é também um corpo que se transforma mais, enquanto o corpo que contém mais seus
fluidos é um corpo que se transforma muito menos. A gravidez (grande aumento da
barriga), o parto (grande abertura do canal vaginal e intensa exteriorização de substâncias,
entre as quais o próprio filho) e o pós-parto (acentuada adulteração da forma original do
corpo e contínua exteriorização de fluidos, como o leite materno) constituem
transformações radicais e intensas vividas pelo corpo feminino depois de iniciado o
processo da reprodução. Além da alteração visível da forma física, a exteriorização de

7
MacCallum (2001:182) afirma que “a própria noção de ‘gênero’ culturalmente construído, supostamente
livre das conotações biológicas do ‘sexo’, é de fato inseparável delas. Sexo e gênero são fundidos, e a
‘cultura’ representa ou meramente encobre a ‘natureza’ de um modo oculto e insidioso. (...) Dizer, com base
em cuidadosa etnografia, que os corpos são ativamente ‘fabricados’ (...) não é o mesmo que postular
teoricamente que o gênero é ‘construído’”.
8
Em sua crítica a uma visão individualista e reificada do corpo na teoria social contemporânea, Turner
(1994:44) lembra que o corpo deve ser visto sempre em sua relação com os outros corpos sociais: “é acima
de tudo por meio desta conexão que se deve confrontar o aspecto plural do corpo enquanto uma relação
(tanto fisiológica quanto social) entre corpos, ao invés do aspecto singular e individual do corpo como o
sujeito de sensações de prazer erótico ou dor. Enfatizar os últimos aspectos da corporalidade e excluir os
primeiros é distorcer a natureza do corpo suprimindo seu aspecto social, plural e coletivo, deixando apenas
seu aspecto privado e individualista (...)”.

355
substâncias pelos orifícios corporais das mulheres é incomparavelmente maior que a que
ocorre entre os homens. As mulheres liberam sangue menstrual todos os meses, fluidos
durante e após o parto e, principalmente, os filhos, uma materialização densa da energia
vital de seus pais. Embora o filho seja fabricado pelo sêmen paterno, segundo a teoria
nativa, é do corpo da mãe que ele sai, provocando nela uma perda e uma exteriorização
energética muito maior que a que ocorre entre os homens.
Como o processo de perda de energia vital leva a um aceleramento dos fluxos
internos e da passagem do tempo, quem perde ou exterioriza mais substâncias tem um
corpo mais perecível ou mesmo mais mortal. Corpos fechados são estáticos e, por isso,
imortais, enquanto corpos abertos que liberam fluidos por seus orifícios iniciam o processo
de transformação, degeneração e morte. Em contraste com as mulheres, os homens liberam
muito menos substâncias durante a vida. Teríamos então, após o início das relações de
substância e de reciprocidade, o estabelecimento de um contraste entre corpos masculinos
que se transformam menos, e por isso são menos mortais, e corpos femininos que se
transformam mais, e assim são mais mortais 9 . Ou entre um corpo que tem menos controle
sobre si, e por isso tem um maior fluxo de fluidos corporais por seus orifícios (o das
mulheres), representado pelas dançarinas que não possuem máscaras/limites externos; e
um corpo mais controlado, cuja liberação de fluidos é bem mais contida (o dos homens),
representado pela máscara dos aruanãs, que cobre todos os orifícios corporais 10 .
É importante destacar que o critério que estabelece as diferenças corporais não são
os atributos genitais, como pênis e vaginas, mas a qualidade dos processos internos de
cada um. Os corpos femininos e masculinos, enquanto corpos eminentemente sociais, não
diferem um do outro pelo que pode ser observado a partir de um ponto de vista estático e
externo, mas pelo que informam os diferentes fluxos energéticos que os caracterizam. Os
corpos sociais são concebidos de um ponto de vista processual, como fluxos constantes e
transformadores de energia vital, em oposição aos corpos mágicos, fechados e estáticos. É
a diferença entre os tipos de fluxo, dentro de uma percepção dinâmica e processual da
corporalidade, que fornece o critério nativo a partir do qual as diferenças são demarcadas.

9
No alto Rio Negro também se encontra a idéia de que os corpos femininos são mais “abertos”,
principalmente em períodos como a menstruação (S. Hugh-Jones, 1979). Da Matta (1976:185) diz que a
diferença entre homem e mulher, entre os Apinayé, baseia-se principalmente no fato de que a mulher tem
mais sangue do que o homem, por isso é mais lenta e fraca.
10
Esse é o mesmo contraste estabelecido entre os aruanãs e os aõni, já analisado em trabalhos anteriores
(Rodrigues, 1993, 1995), embora sob uma perspectiva diferente.

356
Enquanto uns fluem mais, outros se contêm mais; os primeiros são corpos femininos e os
outros, masculinos 11 .
Os Comaroff (1992:72) lembram que “o corpo, patentemente, é uma complexa
constelação de relações e processos, alguns dos quais nós experimentamos como mais ou
menos estáveis, outros como perpetuamente em fluxo”. Segundo os autores, pouca atenção
tem sido dada pela antropologia às concepções processuais do corpo mundo afora, sempre
tendo havido uma tendência para se privilegiar uma descrição do corpo em termos de
estruturas estáticas, a partir de oposições binárias (tais como direita/esquerda, frente/atrás,
cabeça/pés, dentro/fora, masculino/feminino). A visão do corpo enquanto processos
transformadores tem muito mais peso em vários contextos não-ocidentais, ao contrário das
estruturas corporais estáticas, privilegiadas pela tradição anatômica ocidental, e que são
usadas como modelos metafóricos para ordens sociais imutáveis. Aqui interessa citar a
seguinte passagem (Comaroff & Comaroff, 1992:73):

“(...) Tome a primeira categoria obrigatória de Friedrich: vários relatos culturais (...),
incluindo nosso próprio discurso freudiano, testemunham a respeito de elaborações de
categorias associadas com a percepção do ‘orifício’. O último não é meramente um
marcador universal do limiar entre ‘dentro’ e ‘fora’, ‘eu’ e ‘outro’; é também uma
metonímia de processos controlados (isto é, sociais) – em contraste com os fluxos não
sociais, não limitados. (...) Embora a eles sejam atribuídos ênfases variadas em
diferentes contextos, os orifícios sem controle da infância e da senilidade e os fluxos
desregrados do sangue menstrual significam amplamente estados infra-sociais do ser e
uma capacidade, abaixo do ideal, de contenção da pessoa dentro de seus limites
corporais. Por outro lado, o fechamento corporal sinaliza uma identidade claramente
distinta e centrada e a capacidade de se engajar em relações de troca estáveis com
outros seres e substâncias no mundo (...).
Ausência de fechamento é amplamente percebido como uma característica dos
corpos femininos: as mulheres são vistas, em muitas culturas, como ‘naturalmente’
abertas, notadamente durante os anos associados ao parto e à gravidez e na época da
menstruação. Onde este é o caso, tipicamente há um esforço para se conter seus corpos
desregrados.
(...) Em outras palavras, pelo fato de serem tidas como não contidas, as mulheres
freqüentemente são constrangidas em suas ações sobre o meio externo. É como se elas
ameaçassem ‘transbordar’ no espaço social, violando a sua ordem – em particular, a
distinção básica entre dentro e fora, pessoa e mundo. Mas essa fraqueza é também uma
fonte de força. Pois um corpo que é instável e penetrável pode ser a matéria de
transformações poderosas (...)”.

11
Viveiros de Castro (1987b:31), em sua análise sobre os Yawalapíti, grupo alto-xinguano Arawak, e a
“fabricação do corpo na sociedade xinguana”, mostra como a noção de fabricação social está intimamente
associada a uma visão do corpo enquanto processo, como um “conjunto sistemático de intervenções sobre as
substâncias que comunicam o corpo e o mundo: fluidos corporais, alimentos, eméticos, tabaco, óleos e
tinturas vegetais”.

357
Os corpos femininos não são abertos “naturalmente”, mas com certeza estão
associados a um menor autocontrole, enquanto os corpos masculinos associam-se a um
maior autocontrole dos fluxos corporais. Embora sem relacioná-lo à dimensão de gênero,
Lévi-Strauss (1991:125) já havia analisado nas “Mitológicas” o conceito de “abertura
corporal” e a recorrência, nos mitos dos Jê, da “dialética da abertura e do fechamento”
(1991:136), associada ao contraste corporal entre continência e incontinência, silêncio e
barulho, mesura e desmesura.
Não é difícil perceber que há uma associação da masculinidade com o rio
acima/leste, lugar dos habitantes celestes de corpos fechados e imutáveis, e da feminilidade
com o rio abaixo/oeste, onde os habitantes da Terra dos Ensangüentados (Hure Mahãdu
Hãwa) vivem com os corpos permanentemente abertos e em fluxo, sangrando sem parar. A
vida social no “meio” cosmológico é uma permanente mediação entre esses dois estados
extremos e não-sociais: os corpos não estão nem totalmente fechados nem totalmente
abertos o tempo todo. O primeiro – um estado de purificação – é desejado, e o segundo –
um estado de poluição –, evitado (através da couvade, que ajuda a restabelecer os limites
dos corpos que se abriram e se fundiram após a procriação). Lima Filho (1994) descreve as
categorias de idade masculinas Karajá, com o passar dos anos, em termos de uma ascensão
simbólica para o Céu.
O paradoxo do corpo feminino apontado pelos Comaroff – é considerado menos
social ou mais fraco por ter mais dificuldade de impor limites, e por isso precisa ser
controlado, e ao mesmo tempo forte por ser mais aberto às transformações – tem seu lugar
entre os Javaé de um modo específico. Na tradição ocidental, o corpo feminino é associado
diretamente às capacidades reprodutivas naturais, ao poder intrínseco de gerar novas vidas,
sendo considerado a fonte da vida material, enquanto o homem é a fonte das leis, da
cultura e, muitas vezes, da morte. Entre os Javaé, como já foi dito, a vitalidade é
paradoxalmente associada à mortalidade: quanto maior a capacidade criativa do corpo, o
que significa expelir grande quantidade de energia vital, maior a sua capacidade de ser
perecível, ou seja, de ser mortal. Quanto mais filhos têm um casal, maior é a perda de
substâncias vitais. E como é claramente a mulher quem mais expele energia vital ao longo
de seu ciclo de vida, tendo um corpo que polui e se transforma mais, o feminino é
associado não só às transformações, mas principalmente à mortalidade.
Assim como entre os Wakuénai (Arawak) do alto Rio Negro, a fertilidade feminina
é “ambiguamente carregada, com o poder de dar e de tirar a vida” (Hill, 2000, 2002:237).

358
O mesmo ocorre entre os seus vizinhos Baniwa, igualmente Arawak, para quem o
feminino, desde os tempos míticos, contém ambiguamente o poder da criatividade e da
contaminação ou destruição (Wright, 2000, 2002), exemplo a ser retomado mais à frente.
Afinal, foi por causa das mulheres, do desejo de fazer sexo com elas, que os humanos
começaram a morrer aqui neste mundo terrestre. Como lembra Jackson (1983:191) a
respeito dos Tukano, os quais também associam simbolicamente os fluxos mensais tanto à
destruição quanto à criação (ver S. Hugh-Jones, 1979 e C. Hugh-Jones, 1979), “essa
complexidade do significado simbólico depõe contra uma associação muito rígida em
estudos interculturais entre crenças sobre a contaminação da menstruação e a presunção de
que as mulheres e a menstruação são vistas apenas como poluidoras e perigosas”. Viveiros
de Castro (2002d:287) fala de uma equivalência simbólica geral, tanto na Amazônia como
em outras partes do mundo, “entre condições masculinas associadas à imposição da morte
e condições femininas envolvidas na produção da vida (homicídio e menstruação, reclusão
ritual e gestação, guerra e casamento etc)”. Entre os Javaé, contudo, menstruação e
gestação não são “naturalmente” associadas à vida, mas entendidas como o início, também,
do processo degenerativo 12 .
Todos os seres humanos morrem e viram kuni sofredores em um primeiro
momento, mas alguns conseguem alcançar o Céu e a imortalidade, enquanto os que
morrem sangrando eternizam essa “condição de transformação” indesejada, a da própria
mortalidade. O que é a morte, senão a maior e principal transformação do corpo humano?
Então, quanto mais vital e transformador é um corpo, mais mortal ele é. E quanto menos
vital e descontrolado, mais perto da imortalidade ele está. A maior vitalidade e capacidade
de expelir energia vital e novas vidas do corpo feminino é diretamente proporcional a um
maior descontrole e capacidade de poluição, ambos sinônimos de transformação e morte.
Tanto para os Tukano 13 quanto para os Bororo (Crocker, 1979, 1985), povos distantes
espacial e linguisticamente, mas possivelmente influenciados pelos Arawak, há o mesmo
tipo de associação entre o feminino e os processos de transformação e fecundidade, e entre

12
Lea (1999) considera como válida para os Kayapó a oposição entre “os que doam a vida” (mulheres) e “os
que tiram a vida” (homens) feita por Ortner (1979), o que não cabe no caso Javaé. Esta última (1979:116-
117), entretanto, sugere que “o simbolismo feminino, muito mais que o masculino, manifesta esta tendência
de polarizar a ambigüidade”, pois, freqüentemente, “a mulher representa tanto a vida quanto a morte”.
13
C. Hugh-Jones (1979), Jackson (1983), S. Hugh-Jones (1979, 1993, 2002).

359
o masculino e o imutável, a esterilidade e a ordem, o que já havia sido notado por Kaplan
(1981) 14 .
Como já foi dito, a fusão entre os corpos de um homem e uma mulher produz uma
mistura de substâncias: dentro do corpo feminino, ela é criativa, produz uma nova vida.
Quando essa energia é exteriorizada para fora do corpo, os doadores originais entram em
um estado de poluição porque já não são mais os mesmos, tornaram-se diferentes entre si,
e a partir de então são corpos perecíveis. A poluição é justamente esse estado de misturas
energéticas fora do corpo que produz a alteridade, através da diferença entre os doadores
de substância, e a mortalidade. Por isso existe uma associação simbólica recorrente entre o
mesmo e o imortal, o outro e a morte. Corpos e substâncias que não se misturam
permanecem em um estado de purificação, a repetição eterna do mesmo. Corpos e
substâncias misturadas configuram um estado de poluição, convivendo com a alteridade e
a transformação.
O nível cósmico intermediário é o lugar da mediação entre a ausência absoluta de
misturas e de diferenças no rio acima/leste e a existência absoluta de misturas e diferenças
no rio abaixo/oeste, na Terra dos Ensangüentados. No rio acima, não há outros porque os
corpos não se misturam; na Terra dos Ensangüentados, ao contrário, todos são estranhos
entre si porque têm sua energia vital permanentemente misturada fora do corpo, o sangue
de um com o sangue dos outros. A mediação social, através da couvade e outras práticas
que serão descritas ao longo deste trabalho, é a capacidade de poder interromper, ainda que
relativamente, o fluxo de energia vital e a poluição associadas à menstruação, à procriação
ou à contaminação com o sangue do inimigo morto. Do ponto de vista dos humanos
originais de corpos fechados que encontraram a alteridade no nível terrestre, o “Outro” que
se produziu após as relações e as misturas é o que tem o corpo mais aberto, o que se
transforma mais e por isso é mais mortal. Em outras palavras, é aquele que é mais diferente
em relação ao corpo original intacto.
Para a mitologia e a cosmologia Javaé, que têm um ponto de vista evidentemente
masculino, manifesto nos rituais, a alteridade deste mundo social é representada pelo corpo
poluente e ameaçador das mulheres. A alteridade, dizendo mais precisamente, é
feminilidade. São as mulheres os outros temidos os quais se deve controlar. Em termos
coletivos, são os homens que se identificam com o mundo original sem diferenças, que se

14
Já Da Matta (1982:123), em relação aos Apinayé, diz que “o sexo feminino é considerado imutável em sua
essência, enquanto a natureza masculina se transforma quando o homem envelhece”.

360
empenham para trazer os aruanãs de corpos fechados e mantê-los distantes das mulheres e
seus corpos poluídos. O masculino é identificado com a interioridade e o fechamento, em
contraste ao feminino, associado à exterioridade e à abertura. A realização do ritual é o
produto de um interesse masculino na reprodução da ordem mágica imutável e o segredo
que o constitui existe em relação às mulheres, pois elas são os “outros” para quem se deve
manter a ficção da imortalidade. No mito de Kwely, este cria o corpo de sua mulher,
Bòròrèkuni, para manter relações sexuais com ela. A especificidade ou diferença do corpo
feminino é apresentada no mito como inexistente até então, constituindo-se como o corpo-
outro que passou a existir neste mundo de diferenças.
O grupo de mulheres de uma aldeia, entre os quais se inserem as crianças que ainda
não passaram pela iniciação masculina, é chamado de ixy mahãdu, expressão comumente
traduzida como “o grupo das mulheres”. Espacialmente, o “lado do ixy”, onde estão as
“unidades uxorilocais” (expressão usada por Pétesch, 1987, 2000), opõe-se ao lado do ijoi
mahãdu, do “grupo dos homens”, situado na praça onde está a Casa dos Homens ou Casa
dos Aruanãs. A configuração espacial da aldeia Javaé, que assim como entre os Jê e
Bororo é uma expressão visível da cosmologia, será apresentada mais à frente. Por
enquanto interessa compreender os significados da palavra ixy, que literalmente quer dizer
“porco queixada”, mas que pode ser usada também com o sentido geral de “aldeia”,
incluindo todos os moradores, assim como hãwa, de um ponto de vista externo.
Segundo Pétesch (2000:49), entre os Karajá ixy teria também um sentido do ponto
de vista étnico, referente a “todo grupo diferente daquele ao qual pertencemos”, “toda
alteridade humanizada”. Mas quando se está dentro de uma aldeia, ixy refere-se apenas à
parte das casas, o que não inclui o ijoina (“lugar dos homens”). Por fim, o grupo geral das
mulheres ou um grupo de mulheres são sempre referidos como ixy, ou seja, as mulheres
enquanto coletividade distinta da coletividade masculina (ijoi). Este último é o sentido
mais importante da palavra entre os Javaé. Há uma coincidência simbólica entre a
totalidade de moradores de uma aldeia – a sociedade – e o grupo de mulheres, uma vez que
o surgimento do feminino/diferente é associado ao surgimento da socialidade terrestre 15 .

15
Ver o conceito de ixy em Pétesch (2000:49), que dá pouca importância à sua dimensão feminina,
preferindo uma ênfase na sua associação com a alteridade e o nível terrestre. Pétesch propõe a oposição entre
ixy e iny, reflexo da oposição Karajá do nível terrestre aos níveis subaquático e celeste. A autora cria os
conceitos de “ixycitè” (2000:49), “o outro”, identidade de todos os seres terrestres, ligada à alteridade,
transformação, mobilidade, predação e mortalidade, e “inycitè” (2000:41), o “nós”, identidade cósmica dos
seres aquáticos e celestes, ligada à homogeneidade, permanência, estatismo, partilha e imortalidade. Donahue
(1982) define ixy apenas como um grande grupo reunido, embora reconheça que possa ser usado como
referência pejorativa aos outros indígenas.

361
As brincadeiras favoritas dos aruanãs são as narakyna tyhy (“brincadeiras de
verdade”), aquelas em que os aruanãs gostam de flechar os aõni (ou outros seres e objetos)
que são mantidos sob controle nos cercados mágicos. O ato de flechar, como já foi dito, é
uma representação simbólica do ato da cópula, tanto que os seres que são flechados pelos
aruanãs são considerados metaforicamente como irasò wèdèna, “os que são penetrados
sexualmente pelos aruanãs”. As mulheres são as wèdèna reais dos homens, seus wèdèdu,
“os que penetram sexualmente”, mas os porcos queixada e os outros seres flechados nas
brincadeiras são os wèdèna simbólicos dos aruanãs em seu mundo de origem. No plano
terrestre, os humanos realizam também as narakyna somo somo, “brincadeiras pequenas”,
novamente a pedido dos aruanãs, mas estas envolvem apenas dois grupos de humanos que
se opõem. Tive a oportunidade de assistir e participar de algumas das várias brincadeiras
pequenas (Rodrigues, 1993), entre as quais a brincadeira ixy, em que dois grupos rituais
(incluindo homens e mulheres cada) representavam os iny (humanos), de um lado, e os ixy
(porcos-queixada), de outro, ocasião em que estes últimos eram “caçados/flechados” pelos
primeiros.
Não é absurdo levantar a hipótese de que as mulheres são conhecidas como ixy
porque estes estão na posição simbólica de wèdèna dos aruanãs, do mesmo modo como as
mulheres são wèdèna verdadeiras dos homens: assim como os porcos selvagens mágicos,
elas provocam o desejo e o temor ao mesmo tempo, a vontade de “brincar” (fazer sexo) e a
necessidade de serem controladas e mantidas à distância. Além disso, no único fragmento
mítico que possuo sobre os porcos queixada, estes são associados à transformação, à
alteridade e aos aõni. No episódio da criação do Lago Sòhoky, já narrado, os homens
encontram um buraco mágico durante uma caçada, de onde saem vários animais de caça.
Os últimos encontrados são os porcos queixada, porém, diversamente dos outros animais,
os porcos eram diferentes, pintados com cores estranhas e anormais. A seguir, um deles
transforma-se em Hanatxiwe, o aõni que iria provocar a inundação mítica que deu origem
ao grande Lago Sòhoky.
No mito, os porcos têm os corpos transformados, diferentes do seu aspecto normal,
contendo tanto as qualidades de transformação como de diferença, ambas atribuídas aos
corpos femininos. São também associados aos aõni. Em vários outros episódios, os aõni
transformam-se em mulheres ou o contrário, de modo que a mitologia estabelece uma
associação recorrente entre os aõni e o feminino. Além disso, veremos na segunda parte
que a oposição entre primogênito e caçula remete à oposição entre masculino e feminino,

362
continuidade e transformação. Não é uma coincidência, portanto, o fato dos porcos
queixada, em sua condição de últimos (caçulas simbólicos), terem os corpos
transformados, assim como são os corpos dos caçulas em relação aos dos primogênitos e
os das mulheres em relação aos dos homens.
Por fim, é digno de nota que a palavra para “estrangeiro”, no que se refere aos
outros grupos indígenas, é ixyju, literalmente “dente (ju) de porco-queixada (ixy)”. No
Brasil Central, o porco queixada, que anda em bandos, é considerado o animal mais
agressivo e perigoso de todos. Pétesch (2000:50) prefere traduzi-la como “grupos (ixy)
dentados (ju)”, referindo-se à alteridade agressiva e potencialmente canibal representada
pelos grupos indígenas inimigos. A palavra que indica a condição de alteridade ou
diferença é uma derivação da mesma palavra que designa o grupo das mulheres (ixy). Os
não-índios são conhecidos como Tori, a palavra mais comum, que talvez seja de origem
externa à língua Karajá (Donahue, 1982). São também chamados de Làwà, que seria o
nome que algum outro povo ixyju deu aos não-índios, Inyota, palavra traduzida como
“humano (iny) diferente (ota)”, Ixyjurikòrè, “filho do estrangeiro”, Wèku, termo associado
aos “que têm barriga grande” (iwèku), Tanyxiwè rikòrè, “filho de Tanyxiwè”, ou Kujy
rikòrè, “filho do Kujy”. Como foi apresentado, os filhos de Myreikò, que engravidou de
Tanywixè e Kujy, são os ancestrais dos não-índios, os que criaram as armas de fogo.
Quando nos reportamos ao mito, mais uma vez, lembramos que no tempo das
transformações míticas a maioria dos casamentos aconteceu entre povos diferentes ou com
mulheres de outros povos: Tanyxiwè, dos Ijèwèhè, com Myreikò, dos Kurahanikèhè; o
povo de Tòlòra com os Wèrè; Tòlòra com as Karajá; os Wèrè com as Kuriawaku; Kwely,
dos Kuratanikèhè, com Bòròrèkuni, aõni do Fundo das Águas; os irmãos Nabio, dos
Kuratanikèhè, com mulheres dos Imotxi; os Wèrè com os Imotxi, entre vários outros. As
mulheres com que os homens se casavam eram sempre estrangeiras, de outros povos
diferentes. Essa analogia entre o feminino e a alteridade é confirmada em um importante
mito sobre o povo Anirahu, um dos povos que saíram de baixo para cima na passagem que
existe em Marani Hãwa, já analisado em Rodrigues (1993), e que aqui é apresentado em
uma versão mais completa, colhida em 1997. Trata-se de uma versão Javaé do famoso
tema da “amante do Tapir”, encontrado em muitas sociedades indígenas, incluindo os
Karajá (Aytai, 1985) e as do alto Xingu (Agostinho, 1974), e analisado em Lévi-Strauss
(1991) e Carneiro da Cunha (1987a):

363
“(...) Ela (a narradora) está contando a história dos povos que saíram na época, Kòhònõ
e Hãbòkò. Eles tiveram uma passagem muito rápida desde o surgimento até a
existência deles, porque o pessoal do Kòhònõ já entrou em extinção e Hãbòkò também.
E o pouco do Hãbòkò que ficou ... você lembra dos Wèrè que saíram? Fizeram deles
escravos, porque eles eram minoria. Eram iwetxu (subordinados) dos Wèrè. Ou seja,
escravizaram, porque Wèrè dominava, entrou aqui, colonizou, aquelas coisas. Então é
bem antes dos Wèrè. Ela está contando também um pouco da existência dos Anirahu
mahãdu (“povo Anirahu”). Tem um lugar chamado Anirahu, é bem no Lòreky. Você
presta atenção, Patrícia, cada nome desses povos que tinham sempre tem uma ligação.
Era o nome de uma pessoa que liderava, aí transformava em nome da aldeia e depois no
nome do povo, e assim ficava.
Essa história, nós vamos falar agora das (mulheres) Anirahu mahãdu. Elas tinham
uns casos, estavam namorando com o Kõri, anta. Era iròdu (animal de caça) mesmo,
era animal. Eram muitas, as Anirahu mahãdu. Os maridos dessas mulheres que estavam
traindo descobriram, porque as roças deles estavam sendo muito devastadas, quebradas
as mandiocas, essas coisas. Desconfiaram, até que flagraram as mulheres deles
namorando com o Kõri (nas roças). E com isso os homens mataram o Kõri. Elas
acharam ruim, choraram e uma delas teve a idéia de fazer ijòrè ... eu já falei, é um
mingau feito de tartaruga, só que no caso aqui é de peixe. Só que o ijòrè delas estava
ralo demais: ‘então vamos deixar isso aqui. Vamos fazer uma coisa, já que não tem
mais peixe ...’, não é que não tinha, falaram assim porque não quiseram mais fazer.
Tiveram a idéia de ir morar lá com os peixes, para ter mais acesso aos peixes. Tiveram
a idéia de rachar a cuité (um tipo de cabaça, walu) como uma laranja mesmo, no meio.
Fizeram um buraquinho e aqui passou tipo um ... para servir como canal de respiração.
Essas pessoas colocaram na cabeça e foram virar boto dentro da água. Todo mundo
vendo isso, todo mundo assistindo. O pessoal fala que o boto é Anirahu mahãdu que
virou. É uma lenda. Lenda não, é história mesmo! Algumas delas foram embora porque
ficaram sem o namorado aqui, as mulheres. E os outros foram embora porque queriam
peixe ... essa história do ijòrè que virou ralo e não serviu. São três homens e três
mulheres que viraram boto. Por isso que o boto parece com gente, já viu, Patrícia? Eles
têm a vagina igual de mulher mesmo, você nunca viu não?! Eles têm vagina mesmo!
Igual de mulher! Eles têm peito. Eles são igual gente, têm vagina e pênis.
Essa história é aquela famosa, mas é bom a gente ver esse negócio com detalhes.
E tem o começo, você percebeu? Todo mundo sabe assim, do meio, mas é bom ter a
origem da história. Então o restante dos Anirahu mahãdu, que eram muitos, inventaram
de ir até Wakatu Hãwa, um certo lugar que tem aqui pertinho. No caso, as mulheres.
Procuravam lá, andavam muito antigamente para comer pequi, essas coisas, e tiveram a
idéia de arrumar uma pessoa ou alguma coisa para que pudesse trazer peixe com
facilidade. Uma delas falou assim: ‘que tal o Kòbòròrò (jacaré-açú)? É do rio mesmo!’.
Então cantaram a música que ela (narradora) cantou. Cantaram e ele veio, com um
bocado de peixes. Só que ele propôs para elas bem assim: ele traz os peixes e elas
ficam com ele. Colocaram um monte de gente assim deitadinha. Ele ia em cada uma
delas até ... sabe? Elas deitadas, ele em cada uma, todo mundo com as pernas abertas.
Ele era um aõni, da água. Ele ficou manso, elas amansaram. Kòbòròrò acostumou,
porque achou bom! (risos). Ficaram um bom tempo nesse negócio de vai e vem. Vinha
no mesmo lugar.
Interessante, Patrícia, é que realmente existe esse lugar. É uma coisa verídica da
história. As mulheres enganavam os maridos delas. Elas iam partir o pequi, só que na
verdade elas davam o pequi para o Kòbòròrò comer. A casca, levavam para os maridos.

364
E sempre chegavam à noite, as mulheres, enganando. Interessante o que ela (narradora)
falou, que tem uma Hawyky worosy (‘worosy Mulher’) que entra no Hetohoky (ritual de
iniciação da ‘Casa Grande’) e o pessoal prepara ... tira só aquele negócio do pequi.
Você nunca viu isso não? A castanha do pequi, porque ela vai comer já. Quando entra o
worosy, o pessoal prepara só para ela, Anirahu mahãdu, um bocado de gente. Hawyky
worosy que vem, são muitos! O pessoal tira a castanha do pequi exclusivamente só para
esses worosy. É dessa história aí, por isso 16 .
Então ficou um bom tempo esse negócio das mulheres virem e fazerem aquele
programa! Só que elas faziam um tipo de piquenique, traziam tudo, vinha tudo
arrumado, com a vasilha, watxiwii, essas coisas. Cozinhavam lá mesmo. A casca iam
trazer e o amante comia o pequi lá mesmo. Ficou naquele negócio, até que em um
determinado tempo um menino decidiu ir com as mães, um garoto esperto. As mulheres
não queriam e a mãe deles: ‘não, esse aqui não conta não!’. Trouxeram o menino para o
lugar. Estavam comendo o pequi, que é o caroço mesmo. Então a mãe do menino falou:
‘agora você vai passear lá, porque as mulheres vão tomar banho’. O garoto foi, mas
voltou rapidinho e subiu no pé de uma árvore para ver. As mulheres cantaram aquela
música, ‘jacaré woooo!!’, e lá vem o jacaré...
Primeiro estavam comendo pequi mesmo, o maty, que é a castanha. E ele vendo
aquilo e pensando: ‘que negócio é aquele?!’. O jacaré colocou as mulheres ... diz que
ele colocava as mulheres em fila, não eram as mulheres que deitavam. Ele mesmo que
colocava uma do lado da outra. Diz que o menino olhou assim e pensou: ‘o que está
acontecendo?!’. De repente o jacaré foi lá e fez sexo com a primeira, a mãe dele! Na
fila! Só que antes, quando estava comendo pequi, o menino escondeu o caroço de
pequi, porque ele nunca tinha visto pequi na vida dele. Eles comiam aquela casca. Ele
achou bom e escondeu para levar e mostrar para os homens, os pais, os parentes.
Depois a mãe chamou e ele veio, não contou para ninguém. Chegaram na casa e a mãe
quis que ele dormisse cedo, porque ele estava cansado, mas ele falou que não queria
dormir cedo. O pai do menino teve a idéia de ir para o ijoi (grupo dos homens), já tinha
ijoi nesse tempo. O menino se escondeu e correu, lá para uma e meia, para pedir ao pai
para reunir os outros homens. Contou o que estava acontecendo.
Logo no outro dia, os homens tiveram a idéia de fazer bèdètãí (uma espécie de
caçada ou pescaria coletiva), caçar pato no mato, e levaram o menino junto. A mulher
não queria que o menino fosse. O menino levou os homens onde estava acontecendo a
história. Então fizeram o mesmo processo. Tiveram a idéia ... tinha que ter uma mulher
para poder chamar o jacaré. Um homem mesmo se vestiu de mulher e chamou.
Chamou e veio. Quando o jacaré estava querendo fazer sexo com a mulher, que no caso
era um homem, flecharam ele e mataram no rio, afogaram e bateram. Mataram e
arrastaram. Nesse tempo, tiveram a idéia de matar um urubu, cortar o pescoço, o pé e
assar logo lá. Para que, quando chegasse na aldeia, falassem para as mulheres que era
pato. Está entendendo? Para as mulheres comerem, se vingando delas. Porque
descobriram que as mulheres estavam enganando eles. O principal, o que era bom,
quem estava comendo era o amante.
Os homens chegaram lá e fizeram as mulheres comer urubu. As mulheres
desconfiaram: ‘esse negócio não está certo não, pato com cheiro diferente’.
Desconfiaram, só que esqueceram e comeram. Era a vingança dos homens contra as
mulheres. Como de costume, elas tiveram a idéia de ir no outro dia no mesmo lugar,
atrás do jacaré. Chegaram lá, cantaram a música para vir e nada. Cantaram umas três
16
Hawyky worosy é o nome de vários worosy que vêm participar do Hetohoky e que, dizem, são as mulheres
Anirahu do mito em questão.

365
vezes e nada, até que na quarta vez desconfiaram. Não veio mais não. As mulheres
entraram em pânico. Logo depois viram um pedaço de flecha e desconfiaram que
alguma coisa anormal aconteceu. Então encontraram um tipo de rastro, o canal onde ele
foi arrastado. E que existe até hoje. Foram pegando cada pedaço de flecha que era
encontrado, as mulheres pegavam. Até quando chegaram no corpo lá, inchado ... estava
com o pênis em pé, você acredita? As mulheres foram abusar (sexualmente) do jacaré
morto, daquele jeito! E elas chorando, porque era bom! Só que outras mulheres
acusaram a mãe do menino, porque foi por causa do menino e dela que aconteceu isso.
Do contrário, não ia acontecer nunca. E elas decidiram que não iam mais entrar na
aldeia. Com raiva dos homens, porque morreu o amante.
Logo depois que aconteceu, as mulheres entraram em desespero e tiveram aquele
negócio lá, a festa ... (risos). Depois as mulheres decidiram não mais voltar para a
aldeia. Diz que andaram e acharam esse negócio, esse bambu que faz flecha, não tem?
Afinaram e tiveram a idéia, fizeram flecha, fizeram arco, dizendo ela que as mulheres
se transformaram em Kyrysa (índios Avá-Canoeiro), viraram bicho no mato. E sempre
cantando essa música, por isso que tem o Hawyky worosy que entra no Hetohoky.
Tiveram a idéia de cortar um dos seios, o da esquerda, porque a flecha a gente joga
assim. E como as mulheres tinham um peito avantajado, atrapalhava! Tiveram a idéia
de cortar para não atrapalhar. E outra coisa que ela falou também: ela acha que o
pessoal do Tutao 17 era do Anirahu mahãdu, isso é uma coisa que todo mundo fala.
Então, no caso, é briga entre teoria indígena e ciência.
As mulheres em desespero lá e tinha um pássaro chamado Lòrò, que é preto,
bonito. Diz que estava falando lá, gritando: ‘ei, o que aconteceu com essas mulheres?’,
agitando lá. Diz que as mulheres foram lá, com raiva já, em desespero, pegaram no
nariz do Lòrò. Por isso que o Lòrò tem o nariz esquisito, como se fosse amassado. Elas
estavam bravas e ele fazendo o maior alarme, contando, gritando para o mundo inteiro.
As mulheres ficaram com raiva, pegaram no nariz dele e ficou daquele jeito. Era o
mundo das mulheres, mas tinha uma mulher que levou uma criança, lembra? Então se
dividiram em duas turmas de mulheres: umas que viraram Kyrysa (Avá-Canoeiro), e
outras, as que estavam do lado da mãe do menino, que se bandearam para lá e ficaram
como mulheres. E as mulheres, metade, ficaram grávidas do jacaré. Engravidaram, já
tinha cortado a menstruação, aquele processo. Essas mulheres eram um tipo de
guerreiras.
Diz que fizeram uma norma por um tempo, que não nasceria homem no povo
delas, só mulheres. Se nascesse um homem, matavam. Por isso que entraram em
extinção, ela (narradora) fala, ‘por isso que acho que sumiram’, porque não tinha
homens para (fecundar). E ela acha que tem um pouco delas na Amazônia, porque diz
que tem um povo lá que só tem mulher, não aceita homem não. Eu já ouvi o pessoal
falar isso. Tem um pouco que virou Kyrysa e tem um pouco, que os avós dela falavam,
que se bandeou para o lado do norte, que é o Amazonas, que ela acha. Lá era assim,
uma aldeia formada de mulheres, mas mulher nenhuma casava. Elas aceitavam
qualquer (homem) que aparecesse, Tori (branco) ou ixyju (outros índios), qualquer
povo diferente que ia lá. Faziam sexo, mas não ficavam, era só o prazer mesmo. Então,
quando a mulher engravidava, se nascesse mulher, aceitavam. Essa mulher que crescia
ficava igual a elas. E os homens, matavam. Os avós contaram para ela (narradora) que
muita gente ia daqui para lá ver esse negócio. E outra coisa, se o homem não
conseguisse fazer sexo com elas, as mulheres matavam o homem lá. Agora não sei se
estão extintas hoje, ela falou que não ouviu mais falar. Essa história é bem antes dos
17
Nome de um dos Avá-Canoeiro que moram em Canoanã.

366
Wèrè. Lembra quando os Wèrè chegaram aqui? Devastaram alguns povos, colonizaram
... um dos povos que foram devastados foi esse pessoal, Anirahu mahãdu. Diz que os
Wèrè ordenaram que esse povo fosse embora para o lado onde o sol morre, Txuu
rotèna.” (palavras do tradutor)

Entre outros temas importantes, como a imoralidade feminina intrínseca, revela-se


uma associação explícita entre as mulheres e um povo ixyju. São elas que se transformam
em Avá-Canoeiro, um dos povos ixyju vizinhos dos Javaé existentes até os dias de hoje. A
imoralidade e o menor prestígio das mulheres, aqui representados pela prática compulsiva
e sem remorsos do adultério (visto como realização egoísta dos próprios desejos, em
detrimento da continuidade da família e da coletividade), associam-se aos povos
estrangeiros. Os ixyju, como já se viu antes, são desprezados e considerados “inferiores”,
contendo o mesmo tipo de desprestígio associado ao feminino, seja por serem mais
“misturados” (casamentos interétnicos) ou menos organizados que os Javaé. As mulheres,
do ponto de vista da substância, expelem mais energia vital e, conseqüentemente, têm um
potencial maior de “mistura” com os outros (e por isso são mais poluídas); e são menos
controladas (o egoísmo é uma menor capacidade de controlar os próprios desejos em prol
da coletividade), equivalente simbólico da desordem dos estrangeiros.
Já no episódio mítico apresentado antes, em que Myreikò, a esposa que foi
abandonada por Tanyxiwè, é assassinada e devorada por Halokòèlahi, a velha bruxa aõni,
os ossos desta última são transformados em nada menos que os poderosos relâmpagos e
raios (biumyta) e as armas de fogo dos brancos, chamadas mykawa, palavra originada da
Língua Geral Tupi (Padberg-Drenkpol, 1926). As balas ou cartuchos são conhecidos como
mykawaty, em que ty vem de tyy, “vagina” (as “sementes” das plantas também são
chamadas de tyy, sendo pensadas como suas vaginas). Ou seja, literalmente falando, a
munição mortal são as “vaginas das armas”. O corpo feminino é associado, mais uma vez,
aos estrangeiros e à poderosa capacidade de se transformar, como ocorre entre os Baniwa
alto Rio Negro (Wright, 2000) 18 , que também concebem a criatividade tecnológica em
termos de poderes corporais fora do comum (ver Rodrigues, 1993, 1999, 2005). No famoso
mito alto xinguano de Mavutsini (Agostinho, 1974), o herói que dá vida aos troncos rituais
(kwarìp) cria, a partir deles, as mulheres e vários grupos estrangeiros, incluindo os brancos.

18
Ao analisar o principal mito de criação Baniwa, Wright (2000:457) escreve que “a associação das mulheres
à mudança e à alteridade do mundo dos brancos é um tema presente em outros mitos e em várias histórias
orais do contato”.

367
No mito sobre os Avá-Canoeiro, o corpo e as atitudes das mulheres sinalizam
descontrole e desprestígio, enquanto no mito sobre o surgimento das armas de fogo, a
capacidade de transformação feminina é vista como fonte de poder extraordinária, por ser
capaz de causar a morte do outro. A valorização ambígua das capacidades corporais
femininas, como já apontaram os Comaroff (1992), é traduzida aqui nos termos do
paradoxo já apontado: quanto mais criativo e transformador (poderoso) é o corpo, mais
descontrolado e mortal (desprestigiado) ele é. Note-se que há dois tipos de poder
reconhecidos até aqui: o da transformação e criação obtido pelos corpos abertos, por um
lado, e o da autonomia e imutabilidade dos corpos fechados, por outro. Enquanto o
primeiro é associado à vida em sociedade e às misturas entre diferentes (tecnologia), o
segundo associa-se ao mundo mágico dos seres iguais e separados (imortalidade). O poder
da transformação e da criação é um poder extraordinário associado ao feminino, porém
desvalorizado porque ele pressupõe a diferença e a morte. Não por acaso, é o mesmo tipo
de poder que é atribuído aos brancos, através da associação que é feita entre os ossos
femininos e as armas de fogo: um poder extraordinário que se deseja, mas igualmente
opressor ou mortal e temido 19 .
Repete-se a mesma relação que se tem com as vaginas femininas e o poder dos
orgasmos proporcionados por elas, que representam um poder/prazer extraordinário, mas
também opressor e temido: por ele se paga com a subordinação aos afins e a morte. De
forma inversa, o poder da separação dos corpos, em que todos são autônomos e imortais,
ainda que sem o prazer do sexo, é um poder que não pressupõe a dor da morte. Assim, o
poder das transformações é imenso e feminino, porém desvalorizado, enquanto o poder da
conservação da ordem e do status quo, que evita o prazer e também a dor, ou a criação e a
morte, é masculino e muito mais prestigiado. Retornarei a esses paradoxos.
19
Há algumas semelhanças estruturais do mito de Myreikò e seus dois filhos, os responsáveis pela criação
das armas dos brancos, com o “antimito” Timbira (Da Matta, 1970) sobre o surgimento de Auké, o homem
branco (ver Da Matta, 1977 e Carneiro da Cunha, 1987a): nos dois casos, os brancos são os filhos de uma
mulher que inverte os padrões sociais. Entre os Timbira, ela é uma “má nutriz” (Carneiro da Cunha,
1987a:26) e entre os Javaé ela sai à procura do marido, invertendo a uxorilocalidade. Nos dois casos também,
a mãe conversa com o filho, ainda em sua barriga, que a incomoda seja fazendo pedidos ou agindo de modo
inconveniente; e ambos os filhos têm poderes extraordinários, associados posteriormente aos poderes dos
não-índios, que se manifestam quando eles crescem muito mais rápido que o normal ou transformam as suas
próprias cinzas ou os ossos de sua avó nos diferentes objetos do branco. Donahue (1982) já havia apontado
essa semelhança em relação a uma versão Karajá do mesmo mito, salientando em ambos a gestação
milagrosa e o fato da criança conversar com a mãe de dentro da barriga dela. O autor vê em ambos um
antagonismo entre mãe e filho, uma vez que há uma tentativa de matar Auke e, no caso Karajá, o estupro da
mãe pelo mucura (o que não ocorre na versão Javaé nem é tão aparente assim na versão Karajá apresentada
pelo autor). Lévi-Strauss (1993:59), por sua vez, notou a semelhança estrutural entre o mito de Maíra Tupi
(do qual o de Myreikò é uma versão incontestável) e o de Aukê dos Jê: “os Jê contam a mesma história que
os Tupi, mas contam-na ao contrário”.

368
Importa, por enquanto, lembrar que a ambigüidade feminina não é conceituada nos
termos da oposição natureza/cultura. Não são os poderes “naturais” do corpo feminino que
estão em foco. Ele é tão social quanto o masculino: a falta de prestígio do corpo das
mulheres não significa ser considerado “menos social” (o que para nós equivale a “mais
próximo da natureza”), mas apenas “menos controlado”, o que é muito diferente, uma vez
que tanto o extremo do máximo controle (rio acima) como o extremo do máximo
descontrole (rio abaixo) são igualmente anti-sociais. As relações substanciais e sociais
produziram a grande diferença entre masculino e feminino, entre corpos que se
transformam menos e corpos que se transformam mais. Tal acontecimento levou à
diferença rigidamente marcada, inclusive em termos espaciais, entre o grupo dos homens
(ijoi mahãdu), que se considera responsável pela continuidade social, e o grupo das
mulheres (ixy mahãdu), que deve ser mantido à distância e controlado por ser considerado,
pelos homens, como a verdadeira força da desordem e da mudança.

5.3. A santa trindade cósmica no espaço

A cosmologia e a mitologia mostram que o estabelecimento das diferenças


primordiais foi concebido, antes de tudo, como o surgimento social de diferenças
corporais. Como veremos, praticamente tudo que existe na realidade é dotado de uma
corporalidade humana ou pelo menos constituído pelos mesmos ritmos internos do corpo
humano. Não só os animais eram humanos (ou corpos humanos), como na discussão do
perspectivismo ameríndio em Viveiros de Castro (2002g) 20 , mas todo o resto que compõe
a realidade visível e invisível também o é.
A própria saída mítica, enquanto passagem de um mundo subaquático estático,
úmido e fechado, sem diferenças, para um mundo aberto, amplo e onde as pessoas se
definem como diferentes entre si, é descrita em uma linguagem que remete à passagem de
uma criança, de dentro do útero materno, para o mundo exterior: no útero, igualmente
fechado e úmido, a criança é indistinta da mãe, não conhece a diferença, enquanto no

20
“Se há uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado originário de
indiferenciação entre os humanos e os animais, descrito pela mitologia (...). A condição original comum aos
humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade” (grifo do autor, Viveiros de Castro, 2002g:354-
355).

369
mundo exterior, fora do corpo da mãe, encontra o movimento, a amplidão de espaços e a
separação do corpo original, tornando-se um ser individualizado e diferente. Os Javaé
concebem a saída mítica como a passagem de seres que saíram de dentro de um corpo, o
Fundo das Águas, para fora dele, o que seria uma espécie de nascimento cósmico. Afinal,
como já foi dito, tanto cada nível cósmico quanto a totalidade do mundo são todos
concebidos como corpos verdadeiros.
O útero é conhecido como rikòrèryna ou kuladuryna, “o caminho (ryna) da criança
(kuladu) ou filho (rikòrè)”, embora ryna possa ser também “o lugar onde alguém se senta”
ou “o lugar onde alguém mora”. Acredita-se que o útero está localizado no rokotiwo, uma
região das costas que se situa na base da coluna, “dentro (wo) da região do cóccix
(rokoti)”. As mulheres dizem que o primeiro filho é o que “abre” ou expande o rokotiwo,
que antes do nascimento era bem apertado, de modo que o primogênito pode ser chamado
também de warokotiwohytyhykyrikòrè, “o filho (rikòrè) respeitado (hyky) que abriu o meu
rokotiwo pela primeira vez”. A barriga da mãe como um todo é kuladu hyna, “o recipiente
ou receptáculo (hyna) da criança (kuladu)”. Quando uma criança nasce, utiliza-se a
expressão “ahana (fora) wèbòrò (costas da barriga) rohonyreri (o que saiu)”, ou seja,
“aquele que estava dentro da porção posterior da barriga saiu para fora”. Pode-se usar
também a expressão “kuladu ahana òbira rohonyreri”, “a criança (kuladu) que saiu
(rohonyreri) com a face ou corpo (òbira) de fora (ahana)”, a qual vem a ser a mesma
expressão usada para se referir aos primeiros humanos que saíram do Fundo das Águas ou
aos aruanãs que vêm de lá para cá.
Como já foi explicado antes, os humanos terrestres são conhecidos como Ahana
Òbira Mahãdu, “O Povo (mahãdu) da face ou corpo (òbira) de fora (ahana)”. No caso das
crianças, a expressão associa-se à sua primeira respiração “do lado aqui de fora”, o mesmo
lado dos humanos terrestres. Pretendo sugerir que a trindade cósmica (nível superior, nível
terrestre e nível inferior) é pensada como sendo a replicação, em um nível macro, da santa
trindade corporal e relacional humana: pai, filho e mãe, que se fundem enquanto
comunidade de substância no período de resguardo, quando estão misturados
energeticamente e ligados entre si. O corpo total do mundo é como se fosse o conjunto
holista formado pelo corpo masculino, o corpo feminino e o corpo do filho, em especial o
primogênito, que contém os dois tipos de substância em si, mas ao mesmo tempo não é
nenhum dos dois, constituindo-se um terceiro diferente.

370
O filho, enquanto produto da “mediação” ou fusão das substâncias vitais do pai e da
mãe, estaria associado ao nível terrestre intermediário, o que faz a ligação e está entre os
dois opostos, transformando-os em algo diferente. A mulher, que é tanto o útero protetor
(mãe), do ponto de vista do filho, quanto o outro pelo qual se misturou as substâncias e se
abriu o corpo (esposa), do ponto de vista do marido, estaria ligada simbolicamente ao que
está embaixo ou a oeste, como o Fundo das Águas (útero cósmico) e a Terra dos
Ensangüentados (lugar dos corpos abertos e estranhos entre si). A dimensão espacialmente
inferior do cosmos estaria associada simbolicamente às duas grandes condições femininas,
a de mãe e de esposa, assunto ao qual retornarei. O nível inferior é tanto a origem
imperfeita quando a dimensão onde vivem todos os tipos de “outros” feminilizados, como
os aõni e os mortos assassinados.
O útero é localizado na porção inferior do corpo humano, assim como o nível
subaquático inferior: tityby, como já foi apresentado, é a palavra para “coluna vertebral”, o
grande eixo corporal que liga e opõe a cabeça, em cima, aos pés, embaixo. Ti são as pernas
ou os ossos e tyby quer dizer “velho” e “pai”, o que parece significar que os pais são
anteriores (mais velhos) que os filhos, o sêmen sendo a origem primeira ou a base dos
corpos subseqüentes. Tityby seria, em uma tradução menos superficial, não “osso velho”
ou o “pai dos ossos”, mas a “base dos ossos”, ou seja, a estrutura (óssea) do corpo. Aqui há
uma associação entre o masculino e os ossos, a ser retomada adiante, como entre os
Tukano (C. Hugh-Jones, 1979, S. Hugh-Jones, 1979, 1993), que também pensam a terra de
origem ancestral como um útero cósmico e fazem uma analogia entre o nascimento de uma
criança e o início mítico.
Já foi mostrado que as duas extremidades da coluna são conhecidas como roko
(palavra que tem o sentido de último, fim, extremidade, resto), mas a extremidade que se
liga à cabeça é raroko (ra é cabeça) e a que se liga às pernas é rokoti (ti é pernas ou pés).
Ao se supor que o útero está “dentro (wo) da região do rokoti”, ou seja, no rokotiwo,
associa-se o receptáculo feminino à porção inferior do corpo, uma vez que o contraste
entre ti (pernas) e ra (cabeça), como já foi analisado, remete ao contraste inferior/superior.
O útero não está no “meio do corpo”, região essa que corresponde à barriga (wè) ou à
cintura (wètya, “o meio da barriga”), mas em sua porção inferior, assim como o Berahatxi,
o “Fundo das Águas”.
O nível superior celeste, por sua vez, onde estão os aruanãs mais sensíveis à
poluição e os heróis que fugiram do contato com os afins e as mulheres, estaria claramente

371
associado aos homens: é o lugar dos corpos fechados e contidos, onde o outro praticamente
não existe, e daqueles heróis do sexo masculino que, quando tiveram a oportunidade de
viver a condição de pais e maridos aqui na terra, conheceram tanto o prazer como a morte,
optando ao final pela vida imortal e sem relações com a alteridade. O Céu representa uma
volta simbólica ao útero, mas em um estágio de maior amadurecimento e experiência do
ser, como já foi dito antes, o plano daqueles que já conheceram o mundo das relações e das
diferenças, mas que puderam optar por viver longe delas. Assim como é a geração de um
filho, através da mistura de substâncias, que produz a diferença social e física entre corpo
feminino e masculino, foi a mistura entre diferentes, aqui no nível terrestre, que produziu a
diferença cósmica entre um nível inferior feminilizado e um superior masculinizado. Ou
entre um nível inferior em que tudo é diferença (Terra dos ensangüentados) e um superior
em que não há diferenças (Céu).
Ao se ligar simbolicamente o feminino aos pés/pernas, porção inferior do corpo, e o
masculino à cabeça, porção superior, também se pode acrescentar a esse contraste a
oposição movimento e estatismo. Enquanto corpo mais descontrolado e que flui mais
substâncias, o corpo feminino é um corpo que se “movimenta” mais, pelo menos no que se
refere aos seus processos energéticos internos, em contraste com o corpo mais controlado e
contido dos homens, muito mais próximo do “estatismo” mágico, pois substâncias que não
fluem são substâncias estagnadas. De fato, essa associação faz todo sentido, na medida em
que o movimento controlado, tendendo ao estatismo, dos aruanãs, contrapõe-se
visivelmente à agitação dos aõni nos rituais e dos ensangüentados no wabèdè, onde andam
sem parar, desesperados, em busca de seus parentes O sangue que flui sem parar
corresponde a um movimento incessante, assim como as substâncias estagnadas
correspondem a uma ausência de movimento. E é através dos pés, afinal, que o corpo
humano se movimenta, em contraste com a imobilidade da cabeça. Então teríamos uma
associação simbólica entre feminino, movimento, pés (ou porção inferior) e descontrole, ou
seja, transformação; e entre masculino, estatismo, cabeça (ou porção superior) e controle,
ou seja, permanência 21 .
Por fim, não menos importante, entre os dois opostos, no meio, equivalente
simbólico do primogênito e da barriga (wè), movimento e estatismo ou mistura e pureza

21
Pétesch (1987, 2000) já havia apontado a oposição entre aruanãs/estatismo e aõni/movimento, sem contudo
inseri-la nas discussões sobre corpo ou gênero. A autora cita, inclusive, a informação de Lipkind (1948) que,
para controlar os “espíritos” dos inimigos mortos, os Karajá retiravam o osso de seus pés, assim controlando
seu movimento.

372
existem em contradição permanente. O corpo do filho faz a mediação paradoxal entre as
substâncias de pai e mãe, assunto a ser retomado na no Capítulo 7, assim como o estômago
(wo, parte interna da wè, barriga) é o recipiente onde se dá a transformação da comida
desejável que entra pela parte superior do corpo nas fezes repugnantes que saem pela parte
inferior. O processo alimentar interno ao corpo revela que, quanto mais para baixo, maior a
transformação e a poluição, e vice-versa, sendo o meio corporal o lugar da mediação entre
os dois extremos.
A mesma lógica se repete em termos cósmicos: quanto mais para baixo/oeste,
maior a transformação, poluição e movimentação dos corpos, e quanto mais para
cima/leste, maior o autocontrole, purificação e estatismo. As fezes, enquanto alimento
deteriorado, são análogas simbolicamente ao corpo humano morto, em estado de
putrefação e intensa transformação. É interessante lembrar que kyty, o conceito nativo de
poluição, significa “cheiro forte”, no sentido de desagradável, o mesmo atributo das fezes e
corpos putrefatos. Suponho que um mundo sem misturas é também um lugar sem odores
ou pelo menos sem odores desagradáveis, enquanto um mundo de substâncias corporais
em contato, fora do corpo, é um lugar de odores repugnantes.
Na grande caminhada mítica de Tanyxiwè pelo mundo, o Rio Araguaia é visto
como o eixo principal (equivalente da coluna vertebral) do corpo terrestre, pois a direção
rio acima (ou para o começo) é chamada de ibòkò, “rosto imaturo dele”, enquanto a
direção rio abaixo (ou para o que está no fim), de iraru, “coxas dele”. No começo do
périplo, que se dá nas cabeceiras do grande rio, situadas a leste, o herói ainda não é pai,
tem o pênis pequeno, indicativo da ausência de vida sexual anterior, e ainda não
conquistou os outros bens que iriam mudar a vida dos humanos terrestres. Durante a
caminhada, entre um extremo e outro, nasce o filho que estava na barriga de Myreikò, a
esposa abandonada, e Tanyxiwè conquista o pênis maior que os humanos atuais usam para
procriar, o fogo, a escrita, as pinturas corporais e vários dos bens usados hoje em dia. A
caminhada tem início quando Tanyxiwè se cansa da opressão dos afins, para os quais teve
que trabalhar muito, chegando a se sacrificar para conquistar o sol. O herói abandona seus
cunhados, sua esposa grávida, e continua em sua saga transformadora pelo mundo, até
chegar ao fim extremo do rio (iraru hetxi hetxi, “o ânus do ânus das coxas dele”). Nesta
extremidade oposta, a oeste, de onde se desce para o nível de baixo, ele encontra os filhos
de Myreikò, futuros ancestrais dos brancos, e o poder transformador e destrutivo de suas
armas de fogo.

373
Partindo com o corpo fechado de um começo de imutabilidade, pois ainda não
havia procriado, Tanyxiwè chega a um fim onde seu filho já nasceu, abrindo seu corpo,
com o mundo radicalmente transformado. No fim de sua caminhada, muitos humanos
viraram animais, o sol ilumina o nível terrestre e o celeste, os humanos têm os corpos
abertos, são diferentes entre si, como homens e mulheres sociais, os primeiros tendo que
pagar pelo sexo aos seus afins, e, agora, conhecem a morte, até então um fato inexistente.
Em contraste com o começo onde todos são iguais, de corpos fechados, nesse extremo final
ele encontra os brancos e seu poder tecnológico, o símbolo máximo da alteridade. A
caminhada mítica de Tanyxiwè traduz, através de uma linguagem espaço-temporal e
corporal, a mediação social feita pelos humanos terrestres entre um estado de igualdade,
pureza e permanência (concebido como um “lugar” a leste e em cima), e um estado de
diferença, mistura e mudança (um “lugar” a oeste e embaixo). A passagem entre um
extremo e outro é efetuada pela procriação, que divide o ciclo vital humano entre um antes
de corpos fechados e um depois de corpos abertos. O estado de reciprocidade, por sua vez,
que configura a mediação social entre os extremos, é compreendido como estando situado
no “meio” espacial, o lugar das relações físicas e sociais.
Essa espacialização da socialidade, um tema elaborado tanto pelos povos da grande
família Arawak, para os quais “eventos míticos e históricos são associados com lugares
específicos da paisagem” (Zucchi, 2002:218), quanto para os Jê-Bororo, com sua ênfase no
princípio de residência (Maybury-Lewis, 1979a), associa simbolicamente estatismo
(espacial e temporal) a permanência e identidade, e movimento (no tempo e no espaço) a
transformação e alteridade 22 . Não é por acaso que a grande transformação mítica, a
passagem de um estado “entre si” para um estado “entre diferentes”, é concebida, antes de
tudo, como um “deslocamento espacial”, a saída de baixo para cima. As mulheres
associam-se ao movimento e à transformação também, porque foi por causa delas que os
homens deslocaram-se espacialmente (no mito e no cotidiano atual, através da
uxorilocalidade) e deram início à criação do mundo e dos filhos. A transformação de um
estado de indistinção para um de diferenças é traduzida em termos espaciais através da
passagem espacial, ontológica e fisicamente transformadora dos humanos que saem de
dentro do útero materno para o “lado de fora”, onde se tornam outros. A passagem

22
Em sua análise das narrativas orais dos Warekena e Baré (Arawak), Vidal (2002:257) mostra que “os
ancestrais são descritos como um grupo de homens construindo e abrindo estradas, escrevendo mensagens e
ensinamentos em pedras ribeirinhas (petroglifos), e viajando pelas rotas de Kuwé”, o principal herói mítico
de muitos grupos Arawak do noroeste amazônico (ver Hill, 2002 e Wright, 2002).

374
primordial é parte do fenômeno da procriação, o fato extraordinário a partir do qual toda a
reflexão cosmológica e mitológica Javaé parece se desenvolver 23 .
A mesma divisão espacial e social estabelecida pela caminhada de Tanyxiwè ao
longo do Rio Araguaia, a coluna vertebral do nível terrestre, em que o começo equivale à
cabeça, o meio à barriga (Ilha do Bananal) e o fim aos pés, é projetada na configuração
espacial das aldeias Javaé. No nível micro da aldeia são replicados os mesmos macro-
princípios cosmológicos derivados da realidade do corpo e da procriação. Seguindo o
mesmo modelo das aldeias do Fundo das Águas e do Céu, a Casa dos Homens (Ijoi Heto)
ou Casa dos Aruanãs (Irasò Heto) situa-se no “meio” da aldeia, que não é circular, em uma
posição chamada de itya (“meio dele”), conforme se pode ver nos dois desenhos (n° 14 e
15) ao lado 24 . As casas restantes, onde vivem as mulheres e crianças e onde os homens,
tradicionalmente, deveriam aparecer apenas para dormir ou comer, estão alinhadas em uma
ou mais fileiras ao longo do rio, dependendo do tamanho da população da aldeia. Não há
referência na literatura sobre os Karajá e Javaé a esse conceito nativo de que a Casa dos
Homens ocupa uma posição intermediária, embora Lima Filho (1994:40) seja o único a
dizer que ela está no “meio” da aldeia. Ela é chamada Hetokrè pelos Karajá 25 e descrita ora
como “rancho medicinal” (Ehrenreich, 1948:36) ou “rancho precário” (Bueno, 1987:118),
“casa dos espíritos” (Dietschy, 1977:298), fora ou escondida da aldeia (Donahue, 1982),
ora como uma casa a maior parte do tempo abandonada e que apenas se opõe ao lado das
mulheres (Pétesch, 2000) 26 .
Em razão da poluição dos corpos femininos, como foi informado por um xamã, as
casas associadas às mulheres devem ser mantidas à distância do espaço sagrado masculino.
Elas se opõem assimetricamente à Casa dos Homens, assim como entre os Karajá, cujo
modelo de aldeia é idêntico ao dos Javaé 27 . Como já descreveu Lima Filho (1994:40), a
casa tem apenas três paredes cobertas de palha, pois a que é virada para o lado do mato,
invisível às mulheres, é “totalmente aberta”.

23
Em Segato (2003: 99), um diálogo entre Antropologia e Psicanálise, a narrativa freudiana-lacaniana sobre
a relação entre um princípio paterno, materno e filial – a “cena original” de todas as sociedades – é vista
como “um mito a mais” sobre o tema, elaborado nos mitos e rituais de iniciação de outras sociedades, e
projetado para as relações sociais mais amplas.
24
Embora se trate de aldeias circulares, para os Kayapó “as casas dos homens, chamadas ngà ou ‘centro’,
compreendem conjuntamente o centro do círculo da aldeia e do espaço como um todo” (Turner, 1995:162).
25
Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).
26
A Casa dos Homens Javaé é sempre visível, cuidada e ocupada pela comunidade masculina, ainda que por
poucas pessoas nos dias em que não há atividade ritual explícita. Há uma preocupação constante em manter a
casa e os seus componentes secretos internos sob a vigilância e atenção dos homens.
27
Ver Ehrenreich (1948), Krause (1943b), Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

375
Desenho n° 14: A tripartição do Rio Araguaia

Rio Amazonas

Belém
iraru
a na l
itya
n
Ilha do Ba
ibòkò

376
itya W

S N

Casa dos Homens


E
ijoina

ira

e
ira s

ub
ube
ò

ò
Desenho n° 15: A tripartição da aldeia

ub


s
e

ira
ube

ira
ibyryra

~
ixybiti ~
ou ixykyitya

ixy~
ixy
~

ihuti

ihuti
bèkyti

ibòkò rio
iraru

377
O ijoina (“lugar dos homens”), que abrange a Casa dos Homens e também o espaço
masculino ao redor, onde é vedada a presença feminina, contrapõe-se, espacial e
socialmente falando, às casas restantes, associadas às mulheres, que estão no lado da aldeia
chamado ixy (“porco-queixada” ou “grupo das mulheres”). Segundo Toral (1992:54), “o
pessoal da aldeia” (ixyhãwa) é também chamado pelos Karajá de itxèredu mahãdu,
“aqueles que olham”, em uma referência aos que assistem a vida cerimonial comandada
pelos homens, “os que fazem as coisas aconteceram”, nas palavras do autor. É importante
lembrar, entretanto, que “as coisas acontecem” no pátio cerimonial por causa das
mulheres, que são a razão maior pela qual os homens se reúnem para recriar um estado de
purificação.
A Casa dos Homens está sempre do “lado do mato”, enquanto as das mulheres
estão sempre do “lado do rio”. No caso Javaé, situados atualmente à beira do Rio Javaés, o
lado do mato está quase sempre a oeste, e o lado do rio, a leste. O inverso vale para os
Karajá da Ilha do Bananal, situados ao longo do Rio Araguaia. Krause (1943b) foi o
primeiro pesquisador a descrever a aldeia Karajá sucintamente, mas Dietschy (1974, 1977)
foi quem a comparou ao modelo das aldeias circulares Jê-Bororo, considerando-a como
uma variação do mesmo tema. A sua disposição espacial expressaria uma abertura do
círculo, em que a Casa dos Homens deixa de existir no centro de um círculo e torna-se um
ponto ao lado de uma linha. Pétesch (1993a, 2000) levou a discussão adiante, propondo
que a exteriorização do centro equivale a uma abertura da estrutura concêntrica Jê-Bororo
do ponto de vista cosmológico.
As extremidades das fileiras de casas do lado feminino coincidem com o lado ibòkò
(rio acima ou “rosto imaturo dele”), de um lado, e com o lado iraru (rio abaixo ou “coxas
dele”), de outro. Ambas extremidades são chamadas também de ihuti (que aqui tem o
sentido de “extremidade dele” ou “fim dele”, associado a ti, “pernas”, mas que é também
uma palavra alternativa para a porção do “braço”, axiò, que exclui mãos e antebraço).
Como já foi falado, roko também é uma palavra para “fim” ou “extremidade”, sendo que
rokoti pode ser tanto a extremidade da coluna ligada às pernas (cóccix), quanto
simplesmente a “extremidade do osso (coluna)”, pois ti é “osso” ou “pernas”, referindo-se
a qualquer uma das extremidades. Deste modo, as duas extremidades do rio acima e do rio
abaixo de uma aldeia também podem ser chamadas de ixy rokoti, ou seja, “a extremidade
do ixy”. Os que moram na extremidade do rio abaixo, por exemplo, moram no iraru ihuti,
“extremidade das coxas dele”, ou no ixy iraru rokoti, “extremidade do osso das coxas dele

378
do lado do grupo das mulheres”, se fizermos uma tradução literal. O mesmo vale para o
outro lado: os moradores do ibòkò ihuti ou do ixy ibòkò rokoti moram na “extremidade da
cabeça imatura dele” ou “na extremidade da cabeça imatura dele do lado das mulheres”.
Os Karajá distinguem o ibòòihuti (“ponta de cima/do alto”) e o iraruihuti (“ponta de
baixo”) em uma aldeia (Toral, 1992:51).
As ruas sagradas (ube) onde os aruanãs (irasò) dançam, ligando a Casa dos Homens
às casas dos donos de aruanã no ixy, são chamadas de irasò ube, assim como entre os
Karajá (Pétesch, 2000). As linhas da palma da mão (wadebòube) ou do pé (wawaube) de
uma pessoa, estas últimas referidas por Pétesch, são chamadas também de ube. As ruas
sagradas são diferentes das ruas profanas que correm paralelas às fileiras de casas e são
chamadas ixy biti, “ruas do ixy”, ou ixy huti rèhè, “ruas compridas do ixy”. Biti é também
uma palavra derivada da linguagem corporal, em que a expressão wabiti refere-se ao que
está ao “lado (bi) do meu (wa) pé (ti)”, sendo usada, metaforicamente, para tudo que está
ao lado de alguma coisa. No caso em questão, refere-se às ruas que passam “ao lado”, ou
seja, paralelas, às fileiras de casas do ixy. Ixy huti, por sua vez, é uma expressão que se
refere às margens do ixy, à interface entre as casas e o mato ao redor. Mas pode ser usada
também com o sentido de “extremidade final da aldeia”, assim como ixy rokoti.
Uma outra divisão espacial importante é entre ibyryra, as casas que estão do “lado
seco” ou perto do mato, incluindo a Casa dos Homens, e bèkyti, aquelas que estão do “lado
do barranco do rio”. A palavra para “seco” (irubu) é a mesma palavra com a qual se
designa “alguém morto” (irubu), cujo corpo “secou”, em comparação ao corpo de “alguém
vivo” (iru). Bèkyti é, literalmente, “perna, extremidade ou beira (ti) da estrada (ky) da água
(bè)”, sendo que bèky refere-se às pequenas estradas que dão acesso ao rio descendo-se os
barrancos. Pétesch (2000:27) refere-se a elas como beà, versão masculina da palavra
Karajá, relatando que há um acesso principal, no meio da aldeia, por onde são recebidos os
visitantes. Bèkyti pode ser também a “rasura” próxima aos barrancos e portos das aldeias.
Entre as ruas que correm paralelas às fileiras de casas do ixy, existe também uma divisão
ternária: bèkyti ou bèkytidi pode ser tanto o lado do barranco quanto a “rua da beira do
barranco”, a que passa mais próxima do rio; enquanto ibyryra pode ser tanto o lado seco,
como a “rua do lado seco”, a que passa mais próxima do lado seco. Entre ambas, caso haja

379
pelo menos duas fileiras de casas, pode existir, paralelamente, ixyky itya, a “rua do meio do
ixy” 28 .
A mesma divisão cósmica entre um meio e duas extremidades (nível superior e
inferior), correspondente à divisão corporal entre cabeça, barriga e pés, ocorre no espaço
social da aldeia, em que a Casa dos Homens ocupa o meio em relação às duas
extremidades assimetricamente valorizadas, associadas ao rio acima (e ao leste) e ao rio
abaixo (e ao oeste). O fato curioso de o lado feminino da aldeia estar dividido em duas
extremidades opostas, em oposição ao lado masculino integrado em um centro, o que
configura uma oposição assimétrica entre o lado das mulheres e o lado dos homens, reflete
a divisão do feminino em dois papéis bem distintos, o de mãe nutridora e o de esposa
castradora. Tal divisão é similar ao que ocorre entre os Suyá (Seeger, 1981:110), que
distinguem “two kinds of women”, mães ou irmãs para os rituais e esposas ou amantes
para o sexo. Aqui não se trata do dualismo diametral horizontal (masculino x feminino)
proposto por Pétesch (2000) para os Karajá, nem dos “feixes de oposições” descritos por
Toral (1992:56) para a estrutura social e o espaço da aldeia (lado do mato x lado do rio,
lugar dos homens x lugar das mulheres, os do alto x os de baixo, os mortos x os vivos, os
locais x os de fora), mas de uma mediação feita pela Casa dos Homens entre os dois
extremos femininos.
O lado feminino da aldeia contém o mesmo tipo de ambigüidade encontrada no
nível inferior, associado em termos gerais ao “feminino”, em oposição ao nível superior. O
nível inferior comporta tanto um útero mágico primordial (o Fundo das Águas dos aruanãs
de corpos fechados), de onde “se vem”, a leste (rio acima), quanto o wabèdè dos
ensangüentados (de corpos permanentemente abertos após a morte), para onde “se vai”, a
oeste (rio abaixo) 29 . De um ponto de vista masculino, o nível inferior contém tanto a
identidade dos corpos contidos quanto a alteridade dos corpos que sangram. Veremos ao
longo deste trabalho que não existe uma simples oposição entre homens e mulheres, como

28
Fénelon Costa & Malhano (1987:60) descrevem a planta da aldeia Karajá, incluindo a “rua central”. De
acordo com o dialeto Karajá apresentado por Toral (1992:51), têm-se os conceitos de bàdebrò, que o autor
traduz como “lado do mato”, e beyra, “lado do rio”, no que se refere a uma aldeia. Fica-se na dúvida se os
conceitos não seriam uma versão Karajá de bèdèbòrò (“oeste”) e biura (“leste”), conceitos Javaé
apresentados anteriormente. Segundo o autor (1992:53), as ruas da aldeia Karajá são o “caminho do lado da
água” (beyrary), a “que fica por trás do povo da aldeia” (ixybròry), e o caminho do meio (ubetyary), entre as
fileiras de casas.
29
Segundo Lima Filho (1994:153), o xamã conduz o morto Karajá em um primeiro momento pelo Rio
Araguaia, na direção rio abaixo, em cujo extremo encontra água quente e procura pelos parentes, sem
encontrá-los, para depois retornar rio acima, onde encontra água fria e chega à “aldeia dos mortos”,
ressuscitando.

380
a representada nas aldeias circulares Jê-Bororo, mas entre um grupo de homens e dois
grupos simbólicos ou imaginários de mulheres: a mãe, de cuja casa “se vem” e à qual se
está ligado por um vínculo matrilinear, e a esposa, para cuja casa “se vai” e à qual se está
ligado por um vínculo de dívida matrimonial.
Tal ambigüidade ou duplicidade do feminino corresponde exatamente ao paradoxo
apontado anteriormente, pois o corpo da mulher é criador e nutridor, função que cabe às
mães, assim como mortal e castrador, papel que cabe às esposas. Afinal, por causa destas
últimas o corpo dos homens inicia seu processo de morte e os maridos têm que se submeter
aos poderes dos afins, uma castração simbólica (representada pelas piranhas devoradoras
de falos que moram no útero das filhas do Sol) 30 . Do ponto de vista de um filho, o corpo da
mãe, na verdade, não é pensado como “feminino”, no sentido de um gênero definido, mas
muito mais como “sem gênero”, assim como os aruanãs e suas irmãs de corpos fechados.
A feminilidade é uma condição adquirida pela esposa, quando procria e abre seu corpo,
tornando-se a mãe dos filhos de um homem, este agora também “masculino”. Desse modo,
a oposição simbólica entre o masculino e o feminino/esposa é sempre associada a uma
relação de afinidade. A divisão do feminino é explicitamente projetada na configuração
espacial das aldeias, na forma de um meio entre dois extremos assimétricos (rio acima e rio
abaixo, leste e oeste).
A condição paradoxal do corpo feminino – a origem e o fim dos corpos, o que dá a
vida e causa a morte – é representada pela duplicidade do nível inferior. De lá os homens
surgiram imortais, a leste, e para lá todos vão voltar após a morte, a oeste, pois todos, em
um primeiro momento, sem exceção, mesmo os que atingem o nível celeste depois, têm
que descer para o wabèdè invisível, situado a oeste, rio abaixo. O extremo do rio abaixo
representa justamente esta passagem para a experiência da morte que é propiciada pela
fusão de substâncias, fora do corpo, com a mulher enquanto esposa. A subida, a leste, e a
descida, a oeste, são representações espaciais das diferentes experiências que o homem
vive com o corpo feminino: dentro do corpo da mãe, acumulam-se substâncias criativas e
não se conhece a diferença e a morte (rio acima/leste); fora do corpo da mãe, no mundo de
“fora”, as mulheres são esposas/outro, e através delas perde-se substâncias e se encontra a
morte (rio abaixo/oeste).

30
O que é diferente da ênfase supostamente universal no papel materno da mulher e que levaria à oposição
entre doméstico e público, como postulada nos artigos pioneiros de antropólogas sobre a questão do gênero
nos anos 70 (ver Rosado, 1979 e Rosaldo e Lamphere, 1979, por exemplo).

381
O meio, como já foi dito, é a tentativa que os homens fazem de controlar,
relativamente, esse processo de degeneração e morte, através da couvade e da Dança dos
Aruanãs, situando-se entre um extremo desejado e outro repudiado. Esta divisão das
experiências com o corpo da mulher, traduzida em uma linguagem espacial, tem um
paralelo na divisão entre casa natal (da mãe) e casa dos afins (da esposa), tão importante
entre os Jê-Bororo, embora com pesos simbólicos diferentes e até opostos. Veremos na
segunda parte que a casa natal e o papel de tio materno são associados ao extremo do rio
acima, enquanto a casa da esposa e dos afins, onde o homem vira pai, associam-se
simbolicamente ao extremo do rio abaixo. Assim como entre os Jê-Bororo 31 , pode-se
constatar que o cosmos, embora ternário, é visivelmente inscrito no espaço habitado.
Como já foi dito, Pétesch (1992, 1993a, 2000) considera que o eixo espacial
horizontal, onde se situariam as aldeias, constitui-se de um dualismo diametral fechado
(homens x mulheres, leste x oeste), ao modo Jê-Bororo, em oposição ao dualismo triádico
e assimétrico vertical (nível terrestre oposto aos níveis celeste e subaquático), que
representaria uma abertura da estrutura, ao modo Tupi. A inadequação da distinção de
Pétesch (1993a, 2000) entre um eixo horizontal fechado e um vertical aberto, não ocorre
apenas porque o leste coincide com a subida para o Céu (acima), enquanto o oeste coincide
com a descida para a Terra dos Ensangüentados (abaixo), inexistindo a distinção entre o
que é horizontal e o que é vertical em termos simbólicos. Ela não é apropriada também, no
caso Javaé, porque o grande e único eixo corporal, tanto no que se refere ao cosmos quanto
à aldeia, é verdadeiramente ternário. Tanto em uma escala cosmológica maior quanto na
escala menor de uma aldeia tem-se uma mediação entre um extremo de identidade e um de
alteridade, e não uma variação entre um dualismo aberto e um fechado. A diferença entre
um meio e dois extremos opera tanto em termos cósmicos mais amplos como no espaço
visível da aldeia.
Há ainda um outro detalhe revelador na configuração espacial das aldeias Javaé: o
fato de que a casa ou lado dos homens está do lado seco ou do mato, enquanto que o lado
das mulheres situa-se do lado do rio ou das águas, aponta uma ligação entre o lado
feminino e o fluxo das águas que correm paralelamente às fileiras de casas. Do lado
masculino, “seco”, não há águas em movimento, assim como têm menos movimento as
substâncias dos corpos masculinos. Do lado feminino, o fluxo constante das águas remete
ao fluxo energético mais intenso de seus corpos pouco controlados. Em uma análise

31
Ver, por exemplo, Da Matta (1976), Maybury-Lewis (1984, 1989b), Crocker (1985) e Turner (1995).

382
anterior de uma outra versão do mito de Kwely (Rodrigues, 1993), já havia a sugestão de
que o fluxo das águas de um rio era associado metaforicamente ao fluxo das substâncias
corporais. O momento em que Kwely quebra o pote gigante que continha a água escondida
por sua esposa, Bòròrèkuni, passando de um estado de pote fechado e sem água para um de
pote aberto e com água, pode inegavelmente ser considerado como uma metáfora dos
corpos fechados que se abrem.
Quanto mais se navega na direção rio acima, a dos corpos fechados, menor é o
movimento das águas, e quanto mais se navega na direção rio abaixo, a dos corpos abertos
e ensangüentados, maior é o movimento e o fluxo das águas de um rio. As águas que
começam a correr nas cabeceiras, em mínima quantidade, calmas e tranqüilas, chegam ao
fim do rio com um volume muito maior, misturadas com as águas dos outros canais que
encontraram pelo caminho, agitadas e transformadas. Em seu percurso repetem a mesma
experiência vivida por Tanyxiwè em sua jornada ao longo do grande rio, que de um
começo inalterado chegou a um fim substancialmente transformado. Durante os rituais,
tem lugar a mesma associação entre o simbolismo corporal ou de gênero e a distribuição
dos grupos cerimoniais no espaço social da aldeia.
O fragmento mítico sobre a luta entre os irmãos de Ijanakatu e os irmãos de Nabio
explica o surgimento da metade cerimonial Saura (“macaco-prego”), ligada aos irmãos de
Ijanakatu, e da metade Hiretu (“gavião carcará”), ligada aos irmãos de Nabio. No mito, os
heróis vencedores com quem os Javaé atuais se identificam são Ijanakatu e seus irmãos,
origem da metade Saura. Durante as lutas e jogos rituais no pátio masculino, as metades
também são associadas aos extremos cosmológicos: os Saura sempre ficam do lado rio
acima e os Hiretu do lado rio abaixo. A aldeia Marani Hãwa que existe no Fundo das
Águas, de onde vêm a maioria dos worosy que participam como convidados do ritual de
iniciação masculina, está na porção meridional da Ilha do Bananal, associada ao rio acima,
de modo que os worosy, em sua maioria, chegam para a festa pelo lado do rio acima das
aldeias. É neste mesmo lado onde os worosy vão caçar e pescar e onde acontecem outros
episódios centrais do ritual, como o momento em que os meninos que vão se iniciar são
levados para o mato pelos worosy. Lá eles têm os cabelos cortados e o corpo pintado de
preto, entrando em um explícito estado de liminaridade, como já notou Pétesch em relação
à iniciação Karajá (Pétesch, 2000).
A Casa Grande que é construída para o ritual de iniciação tem três portas viradas
para o sol nascente, como já foi dito. A porta dos Saura é utilizada exclusivamente pelos

383
worosy, enquanto a porta dos Hiretu é utilizada apenas pelos “humanos”, categoria que
inclui os homens que não estão realizando nenhuma performance cerimonial (na condição
de worosy) e as mulheres, que são autorizadas a entrar na Casa Grande em um dia especial.
A porta do meio é usada apenas pelos poucos worosy pertencentes ao grupo cerimonial dos
Saurahaky (“os Saura respeitados”), mas do qual os humanos não fazem parte. Na região
da Ilha do Bananal, o eixo leste/oeste situa-se transversalmente em relação ao eixo rio
acima/rio abaixo, de modo que, idealmente, uma Casa Grande construída com as portas
viradas para o nascente tende a estar alinhada com o eixo rio acima/rio abaixo. Assim, a
porta dos Saura e dos worosy coincide com o lado rio acima, enquanto a porta dos Hiretu e
das mulheres ou dos humanos coincide com o lado rio abaixo das aldeias, como no modelo
ao lado (Desenho n° 16) 32 .
No mito, os irmãos de Nabio (Hiretu) são os que tomam a iniciativa do conflito
entre as partes, enquanto os irmãos de Ijanakatu (Saura) são os que vencem a luta e
restauram a ordem pacífica. Como veremos no próximo capítulo, em maiores detalhes, a
primeira é uma atitude relacionada ao feminino, enquanto a segunda, ao masculino. Assim,
os Saura associam-se ao rio acima, à ordem, à paz, aos worosy de corpos fechados e
também ao masculino. Os Hiretu, por sua vez, associam-se ao rio abaixo, à desordem, ao
conflito, aos humanos de corpos abertos e ao feminino. A mesma relação entre identidade
(rio acima) e alteridade (rio abaixo) é enfatizada durante os rituais que têm a participação
dos ixyjukuni, os estrangeiros mascarados que são trazidos à aldeia pelos xamãs, na
condição de bens rituais de algumas pessoas. Os mascarados que representam inimigos
mortos em batalha, assunto do último capítulo, chegam sempre à aldeia vindos do lado
iraru (rio abaixo), em oposição aos worosy subaquáticos, que chegam pelo lado ibòkò (rio
acima).
Não é por acaso, portanto, que as aldeias Javaé costumam reservar para os “outros”
a extremidade espacial do rio abaixo. Toral (1992) já havia falado que as famílias mais
antigas e de mais prestígio de cada aldeia situam-se do lado rio acima. Schiel (2002:37),
trabalhando com os Karajá da cidade de Aruanã, cita a informação de um Karajá de que as
novas famílias que chegam à aldeia “instalam suas casas ‘para baixo’”.

32
Isso nem sempre ocorre na prática, devido às curvas dos rios onde as aldeias se situam, o que faz com que
a posição da Casa Grande fique alterada em relação ao modelo ideal. Nas aldeias Canoanã ou São João, por
exemplo, o nascente coincide aproximadamente com o lado rio abaixo, de modo que a porta dos Hiretu fica
do “lado do mato” e a porta dos Saura do “lado do rio”, invertendo o simbolismo de gênero.

384
W

S N

saura saura hiretu


haky~
Desenho n° 16: A Casa Grande em relação ao eixo fluvial

(rio acima)
(rio abaixo)

ibòkò rio
iraru

385
Em Canoanã, a maior aldeia Javaé, onde ainda vivem os remanescentes Avá-
Canoeiro contatados pela FUNAI em 1973, em terras vizinhas, e algumas famílias de
índios Tuxá da Bahia, esses povos estrangeiros, juntamente com as instalações associadas
aos brancos (casa do chefe de Posto, escola, enfermaria etc) estão significativamente
localizados na porção iraru (rio abaixo) da aldeia. Embora haja exceções, a tendência geral
é situar as instalações dos não-índios – associadas também às festas ao modo regional, aos
namoros escondidos à noite, aos novos costumes que chegam à aldeia, enfim, à
transgressão da ordem – na extremidade associada ao fim do rio, de menor prestígio,
porém inegável poder. É o caso das escolas e enfermarias de Boto Velho, Wariwari e São
João, entre outras aldeias, repetindo simbolicamente o encontro de Tanyxiwè com as armas
de fogo, criadas por seu filho, no fim de sua longa caminhada 33 .
Entre um início masculino e sem outros e um fim feminino só de outros, o herói
conhece durante a sua jornada o “meio” das relações de reciprocidade, representado pelas
trocas alimentares e rituais entre afins, como pagamento pela esposa, que ocorrem no
centro simbólico e espacial que é a Casa dos Homens, as quais serão objeto de análise na
segunda parte deste trabalho.

5.4. A “realidade-corpo”

Embora isso não tenha sido formulado explicitamente por nenhum Javaé, podemos
dizer que o mundo em sua totalidade, cada nível cósmico e também os astros (sol, lua, as
estrelas) são vistos como corpos humanos, cujos processos internos são projetados no
espaço de escala macro e na micro realidade das aldeias, enquanto o fluxo das águas dos
rios são como substâncias que atravessam o grande corpo cósmico. Assim como a comida
dentro de um corpo, a água do Araguaia parte da boca/leste/rio acima e chega transformada
ao ânus/oeste/rio abaixo. Exemplos parecidos são encontrados em autores como Turner
(1995:163), que mostra como entre os Kayapó a estrutura do espaço interno e externo às
aldeias “é concebida como isomórfica em relação à estrutura de um corpo humano
33
Carneiro da Cunha (1987b:70) registra que, entre os Krahó, os mekarõ (princípio pessoal que perdura após
a morte) dos brancos estão situados a oeste: “a sociedade por excelência é krahó (e, portanto, a leste),
enquanto os estrangeiros são bárbaros (portanto, a oeste)”. A autora (1987b:70) também lembra que entre os
Xavante, segundo Maybury-Lewis (1984), há uma lógica semelhante: “cada metade situa seus próprios
mortos a leste, relegando os mortos da metade adversa ao ocidente”.

386
normal”, havendo um “paralelismo entre a forma do cosmo e a do corpo” ou entre “macro-
processos universais” e “micro-processos da atividade social” 34 ; ou C. Hugh-Jones (1979)
e S. Hugh-Jones (1993), que descrevem como as casas comunitárias são tidas pelos
Tukano como corpos femininos e o “universo-útero” como uma dessas casas que se
expandiu para fora.
Não só os níveis cósmicos e os astros são pensados como corpos humanos. Aytai
(1986:45) ouviu dos Karajá de Aruanã que, “com exceção da Via Láctea, todos os corpos
celestes, isto é, as estrelas, Taina/Takina, são pessoas”. Um mito narrado ao mesmo autor
(1977) mostra que a chuva, o trovão e os relâmpagos originam-se do corpo de uma pessoa.
Os animais, como a mitologia mostra fartamente, eram originalmente seres/corpos
humanos, os quais foram transformados em animais por Tanyxiwè, que os iludiu e assim
expropriou deles os bens utilizados atualmente pela humanidade. Acredita-se que todos os
animais têm “parentes”, mesmo formigas e mosquitos, por exemplo, embora só os parentes
de alguns animais, como a tartaruga e o urubu-rei, sejam referidos diretamente pelos
mesmos termos que designam os parentes e as classes de idade dos humanos. As tartarugas
dividem-se entre as ijadoma (moças), weryrybò (rapazes), bodu (rapazes jovens), matukari
(velhos), senadu (velhas) etc, aplicando-se às mais jovens, do sexo masculino, o termo
jocoso tõtorò, relativo aos adolescentes cujo pênis (tõõ) começa a se desenvolver mais
explicitamente. Os Javaé usam os mesmos termos de parentesco dos humanos para se
referir às relações entre os diversos tipos de urubus e gaviões, como já foi apresentado no
mito de Tanyxiwè, que são tios, primos, sobrinhos etc uns dos outros.
As araras (a azul é bisa, a vermelha, hedèdura), trazidas com os Wèrè do Fundo das
Águas, são tidas como animais especiais, assim como os tucanos (toriwa) e os urubu-reis
(rararesa), todos considerados iòlò. Há casos em que as mulheres entoam o choro ritual
típico do luto quando suas araras ou tucanos de estimação morrem e cuja morte pode ser
atribuída a feitiços. Esses pássaros especiais, considerados como irmãos ou filhos das
pessoas, podem inclusive ser enterrados no mesmo cemitério dos humanos, como alguns
casos em Canoanã, ter sua cova adornada com os hitxèkò (artefatos rituais colocados no
túmulo do morto) e receber o wabèdè xiwè, a oferenda alimentar que é colocada sobre o
túmulo do morto durante o luto. E assim como o túmulo dos humanos, o dos pássaros é
visitado de vez em quando. Segundo Krause (1942a:292), os Karajá acreditam que os

34
Ou Lea (1993), sobre o mesmo grupo, que registra que a aldeia Kayapó é concebida como uma projeção do
corpo humano, mas onde, ao contrário dos Javaé, é a cabeça que está a oeste, as pernas e leste e o pátio
representa a barriga.

387
animais são “parentes do homem, seres da mesma categoria; acreditam que os animais
falam e agem como os homens, apenas de forma diferente”. Em razão dessa “amizade
tributada aos animais”, “embora conservem, nas casas, um grande número de animais, não
os aproveitam para o seu sustento, nem os levam a procriar” 35 . Pétesch (2000:83)
considera que entre a animalidade e a humanidade, segundo o pensamento Karajá, haveria
mais um “continuum” do que uma oposição 36 .
O episódio em que Tanyxiwè encontra seu filho e o filho de Kujã mostra que as
plantas também eram pessoas/corpos humanos que falavam e expressavam a dor que
sentiam, antes de se calarem para sempre naqueles tempos. Como conseqüência, os Javaé
acreditam hoje que as plantas têm tyy (vaginas) e nõõ (pênis). Tyy (ou ty) tem também o
sentido de “semente” ou “grão”, enquanto nõõ (ou nõ) refere-se aos novos brotos das
plantas, em especial das palmeiras. Em outras palavras, as sementes e brotos são as vaginas
e pênis das plantas. Assim, temos os seguintes exemplos:

• matynity – “semente/vagina de amendoim”


• kubèrèkèty – “semente/vagina de melancia”
• tòkeraty – “semente/vagina de abóbora”
• toriwanaty – “semente/vagina de mamão”
• myriwèwonaty – “semente/vagina de gerimum”
• maity – “grão/vagina de milho”
• maisõmõty – “grão/vagina de arroz”
• komytaty – “grão/vagina de feijão”

Todas as frutas trazidas pelos brancos, cujos nomes são versões Javaé do nome em
Português, têm sementes referidas por ty, como a manga (mykaty), a laranja (rarajãty), a
goiaba (waiabaty). Já os brotos de algumas plantas são seus nõõ ou nõ:

35
Os Javaé têm o hábito de criar animais selvagens, em especial os pássaros (garças, colhereiros), de quem
tiram as penas para a confecção de objetos rituais e do cotidiano. Mas se pode encontrar emas, veados, antas,
ariranhas ou outros animais do tipo domesticados nas aldeias. Agora nem tanto, mas antes os Javaé ficavam
chocados com o hábito dos não-índios de matar animais domesticados, como galinhas ou porcos, para se
alimentar.
36
Aytai (1986:53) mostra que, apesar da pouca distância conceitual dos humanos em relação aos animais, os
Karajá possuem termos que apontam a diferença entre as partes do corpo dos animais e dos humanos, como
“iosydna”, que se refere ao rosto humano, e “isoo”, que se refere à face do animal. Tal diferença deve ser
contextualizada como resultado da transformação mítica que distinguiu humanos dos animais, mas sem
perder de vista que os animais são, originalmente, humanos.

388
• biditinõra – “broto ou cabeça (ra) do pênis (nõ) da cana”
• nõbònõ – “broto/pênis de palha de babaçu”
• heryrinõ – “broto/pênis de macaúba”
• ètèhõnõ – “broto/pênis de buriti”
• ijatanõ – “broto/pênis de bananeira”
• ijatanõra – “muda ou cabeça do pênis da bananeira”
• herynõ – “broto/pênis de tucum” ou o “palmito/pênis de tucum”

São vários os exemplos que mostram como as plantas são pensadas como corpos
humanos. Toda árvore tem tõbòtò, que é a ponta mais extrema dos galhos. Bòtò é tanto o
estado de gravidez quanto a “parte frontal do pescoço”. Literalmente, a ponta do galho
seria a “parte frontal do pescoço do pênis”. As “pontas” são associadas metaforicamente ao
pênis: a “ponta do meu cabelo” é waradènõbòtò, literalmente “parte frontal do pescoço
(bòtò) do pênis (nõ) do meu (wa) cabelo (radè)”. Mas tõbòtò, enquanto “pescoço do
pênis”, também pode se referir a todas as folhas novas que estão começando a nascer em
uma árvore ou mesmo ao capim que está nascendo. O ramo da mandioca é hãdiuraò,
“face/corpo (ò) da mandioca (hãdiura)”, ou seja, tanto o caule de um arbusto como o
tronco de uma árvore são considerados como sendo seu corpo (ò). Raru, a palavra usada
para “coxas” ou “raiz”, é também “muda”, como em ijatararu, “muda ou coxas (raru) da
banana (ijata)”. A raiz de uma planta pode ser também ruti, literalmente “pernas do ânus”.
Acredita-se que algumas plantas, como a cana de açúcar (biditi), têm pernas:
bidititi, “a perna (ti) da cana (biditi)” é a parte dura interna que as pessoas chupam ou
mastigam depois de descascar a cana. Outras plantas têm barriga, como a melancia:
kubèrèkèwè é “barriga (wè) da melancia (kubèrèkè)” e refere-se ao momento em que a
melancia está começando a crescer. Txiru é a palavra para “folhas”, como em biditiiru,
“folha (iru) da cana de açúcar (biditi)”, mas as folhas podem ser também chamadas de
“cabelos” das plantas, como em hãdiura radè, “cabelo (radè) da mandioca (hãdiura)”.
Cabelo (radè), por sua vez, literalmente quer dizer “carne (dè) da cabeça (ra)”. O caju é
chamado de hãbunõwètè, “pênis (nõ) sem pele (wètè) do homem (hãbu)”, e a castanha do
caju de hãbunõwètèty, “vagina ou semente (ty) do pênis sem pele do homem”. As pessoas
têm “carne” (dèè) em seus corpos, assim como a abóbora considerada boa de comer,
tòkèradèwii, “carne (dè) boa (wii) da abóbora (tòkèra)”. Quando as frutas estão maduras,

389
elas também têm a “carne” boa para comer, como a hèryridèwii, “carne (dè) boa (wii) da
macaúba (hèryri)”.
Vimos que a dimensão espacial da realidade é concebida dentro de uma linguagem
corporal. Contrastes binários como dentro/fora, embaixo/em cima, frente/atrás,
antes/depois, leste/oeste, rio acima/rio abaixo ou mesmo os processos dinâmicos de
deslocamentos espaciais, seja em referência a dimensões de maior ou de menor escala, são
percebidos como manifestações de uma lógica corporal. Mas o que está envolvido aqui
não é dizer que são meras “projeções” simbólicas das imagens que se originam em uma
acurada consciência corporal no mundo material ao redor, como no sócio-centrismo de
Descola (1992, 1994), por exemplo, o que seria equivalente a uma “construção social da
natureza” pré-existente. A matéria e sua dimensão espaço-temporal, tal como existem hoje,
não se constituem como realidade a priori para os Javaé, sobre a qual a “cultura”, um
estado posterior de manifestação do espírito humano, teria “construído” uma realidade
arbitrária paralela ou oposta. Assim como entre os Mehinaku (Gregor, 1985:114), “há um
(...) forte senso de que a biologia humana é criação humana ao invés de um produto natural
ou dado por Deus”.
Os animais, as árvores, os níveis cósmicos, os astros e o mundo em sua totalidade
só passaram a existir em sua forma material atual depois da decisão dos humanos em entrar
em relação uns com os outros, o que levou ao início da vida em sociedade. O
funcionamento ou a constituição atual da matéria não é independente das atitudes
humanas, como para nós, mas visto como um processo imanente e indissociável das
relações entre os seres humanos. Assim com o corpo humano é “fabricado socialmente”
(Viveiros de Castro, 1977, 1987a), no que se refere à sua materialidade intrínseca, e não
mero suporte “natural” ou independente de símbolos arbitrários, toda a matéria também o
é. Isso se deve ao fato de que a matéria de que o mundo, os planetas, as plantas e os
animais são feitos é pensada como tendo a mesma qualidade corpórea dos corpos dos
seres humanos, como um tipo ou variação do corpo humano. As aparências são diferentes,
mas na essência o sol, a lua, os níveis cósmicos, os animais e as plantas são todos humanos
na origem, como nos dizem os mitos e as informações atualizadas sobre o cosmos.
Tanto as dimensões espaciais quanto temporais dessa “realidade-corpo” são
igualmente dependentes da agência social humana, uma vez que não existe um espaço-
tempo, tal como o conhecemos atualmente, puramente abstrato ou dotado de uma realidade
intrínseca e autônoma. As ocorrências no espaço ou no tempo não são independentes das

390
relações sociais entre os corpos humanos, pois o espaço e o tempo dos humanos sociais
não existem fora dessa realidade-corpo-social. Por isso a associação entre deslocamentos
espaciais e transformações corporais/sociais: todo deslocamento no espaço associa-se a
algum fluxo das substâncias corporais e, concomitantemente, às transformações sociais. Os
deslocamentos míticos primordiais ou a passagem de um lugar embaixo, dentro e estático
para um outro em cima, fora e onde há movimento são paralelos à passagem de corpos
fechados e substâncias estagnadas para corpos abertos e substâncias em fluxo. Ou de
corpos mágicos e sem nenhum fluxo de substâncias, por isso imortais, para corpos sociais
cujas substâncias fluem de dentro para fora, e por isso são perecíveis e mortais.
Em uma realidade-corpo, são os movimentos espaciais do corpo (seja ele o corpo
cósmico ou o corpo de cada ser humano) que inauguram a própria noção de mobilidade
espacial. Onde o corpo é estático, principalmente no que se refere ao fluxo das substâncias
internas, o espaço é concebido de forma estática, caso dos níveis subaquático e celeste. De
forma inversa, onde o corpo começa a se movimentar, seja na forma de deslocamentos do
corpo de um ponto de vista externo, como os realizados pelos Wèrè ou Tanyxiwè, seja na
forma de um movimento espacial das substâncias internas, que saem de dentro para fora,
inaugura-se o conceito de mobilidade espacial, o que ocorre no nível terrestre. A
mobilidade ou não no espaço depende de uma mobilidade ou não do corpo e suas
substâncias, uma vez que a dimensão espacial não existe abstraída dessa realidade-corpo. E
como os processos relativos ao corpo são indissociáveis dos processos sociais, devido à
imanência das relações físicas e sociais, mudanças no espaço (deslocamentos), paralelas a
mudanças no corpo, são também mudanças sociais e vice-versa 37 .
Toda a narrativa mítica, cujo tema principal são as mudanças que foram instituídas
no início dos tempos, neste novo mundo social, é repleta de referências a deslocamentos
espaciais de seus personagens pelos lugares demarcados no espaço que existem até hoje.
Não é apenas o grande e paradigmático deslocamento espacial de Tanyxiwè pelo Araguaia
que corresponde às grandes transformações físicas e sociais de um começo onde tudo é
idêntico a um fim onde só existe a alteridade. Em geral, as transformações neste mundo
social são paralelas aos deslocamentos espaciais dos personagens míticos envolvidos: os
Ijanakatu só conquistaram o prazer sexual com as filhas do Sol (e a conseqüente ameaça
de castração fálica) após caminhar para encontrá-las e realizar várias tarefas em lugares

37
Ver em Seeger (1981), Chernela (1988), Hill and Wright (1988), Franchetto (1992) ou Basso (2001), por
exemplo, diferentes elaborações sociais de uma lógica espacial.

391
diferentes; Kwely precisou encontrar o pote escondido em outro lugar e quebrá-lo para
criar os rios que correm pelo espaço do nível terrestre, assim como as substâncias dos
corpos que se abriram; as mulheres Anirahu buscaram o prazer que seus maridos não lhes
davam fora da aldeia, com seu amante jacaré, e só assim transformaram-se nos Avá-
Canoeiro que não existiam.
As grandes e variadas conquistas materiais e culturais dos Wèrè ocorrem
paralelamente aos seus deslocamentos espaciais intensos e abrangentes. Do mesmo modo,
ao inverso, a “fixação” relativa da cultura Javaé atual se deu paralelamente ao
sedentarismo de Tòlòra em Marani Hãwa. Todas mudanças, por fim, começaram depois
que os humanos subiram do paraíso subaquático para o nível terrestre, o primeiro e
principal deslocamento espacial, o qual propiciou todos os outros deslocamentos e
transformações subseqüentes. Afinal, no nível subaquático onde as pessoas não se
deslocavam, nada mudava, tudo era o mesmo de sempre. Do ponto de vista masculino, o
mais importante deslocamento do nível terrestre, nos tempos atuais, vem a ser a saída da
casa natal para a casa dos afins, sob o regime da uxorilocalidade, quando então os homens
têm seus corpos e suas condições de vida totalmente transformadas, como veremos na
segunda parte. Não só a mobilidade espacial não é independente das relações sociais e
físicas entre os corpos, como a paisagem atual existente é um produto das relações
sociais/corporais.
Os mitos e a fala cotidiana estão repletos de exemplos de como a caracterização
espacial-visual do mundo atual é um produto das relações físicas e sociais ocorridas entre
os personagens míticos no nível terrestre. Nada existia como é agora antes da agência
humana dar início ao processo de “escrita topográfica” (Santos-Granero, 1998) e, assim,
produzir as mudanças tanto corporais como espaciais que se perpetuaram até os dias de
hoje. No mito das mulheres Anirahu, é dito que o lugar onde o jacaré-amante foi arrastado
pelos maridos traídos existe do mesmo modo até os dias de hoje. Outros exemplos são o
Lago Sòhoky e a ilha de Buritxiwana que lá existe, os quais estão do mesmo modo como
foram feitos no episódio ligado ao aõni Hanatxiwe; as falhas no barranco da beira do Rio
Javaés, em Canoanã, que são os locais exatos onde Lykyni, em um episódio de sua vida na
antiga aldeia Kanõanõ, do povo Torohoni, não relatado aqui, teria encostado com sua
grande canoa; o Lago do Bananal (Kwely Ahu) e o Riozinho existem como tal após Kwely
ter quebrado o pote gigante do qual escorreram as águas que formaram o rio e o lago em
questão; a depressão no terreno existente perto do Lago do Bananal e junto ao bananal

392
nativo é a passagem famosa por onde Tòlòra ascendeu a Marani Hãwa, entre muitos
outros exemplos.
A dimensão temporal da realidade também não é abstraída das relações entre os
humanos. O fluxo do tempo é diretamente proporcional ao fluxo das substâncias corporais.
Onde os corpos são fechados e têm as substâncias estagnadas, o tempo não passa, tudo é o
mesmo de sempre; onde os corpos são abertos e as substâncias se movimentam, o tempo
passa e a realidade muda, de modo que o tempo é um produto da agência humana e uma
dimensão indissociável dos fluxos corporais. Como já foi mencionado, o fluxo energético
do corpo humano é concebido em termos de um acúmulo gradual de substâncias até um
auge/meio (tya) energético, o momento exatamente anterior à procriação do primogênito, a
partir do qual inicia-se uma perda gradual da energia acumulada, de modo que o início e o
fim da vida, enquanto vazios energéticos, são coincidentes simbolicamente.
Tal fluxo de substâncias vitais foi analisado em sua associação com as classes de
idade Javaé e, o que interessa aqui, com as concepções temporais nativas, em especial o
ciclo de um dia, apresentado em detalhes antes (Rodrigues, 1993). Tentou-se mostrar que
os principais referenciais temporais, baseados no ciclo diário do sol e no ciclo anual das
águas, seguem o mesmo ritmo do fluxo das substâncias energéticas. Tanto o sol como as
águas partem de um ponto inicial a partir do qual atingem um auge/meio (o meio dia [Txuu
tya] ou o auge da enchente bèorawètya, “o meio da barriga [wètya] do rio cheio [bèora]”; e
seus opostos, a meia noite [ru tya] e o auge da seca, wyrawètya, “o auge ou meio da
barriga [wètya] da seca [wyra]”), quando então “retornam” ao ponto inicial, o fim
coincidindo com o início. Ou seja, o ritmo temporal é, antes de tudo, um ritmo corporal.
Em passagem importante do mito de Tanyxiwè, o herói aprende a dividir e
classificar o tempo com Rararesa, o urubu-rei de quem havia tomado o sol. Como o tempo
não passava antes, não havia categorias referentes ao fluxo do tempo, como aquelas que
indicam a passagem das horas e fazem parte do calendário diário Javaé, dividido em um
número de frações de tempo quase idêntico às nossas 24 horas. O mito associa o início da
passagem do tempo ao início das relações físicas e sociais entre os humanos. Só depois de
Tanyxiwè pagar com o sol aos seus afins pelas relações sexuais que teve com Myreikò é
que tem início a progressão linear e irreversível do tempo. Há uma coincidência entre o
fluxo das substâncias, geradoras da reciprocidade e da socialidade, e o fluxo do tempo,
que, assim como a mobilidade espacial, é concomitante às relações entre os seres humanos
do nível terrestre.

393
Talvez essa seja uma das razões para a polissemia do termo bèdè, utilizado em
inúmeras expressões, e que pode significar tanto “mundo” quanto “tempo”, “espaço”,
“baixo”, “embaixo” ou “cemitério” (wabèdè, “meu mundo inferior”). O “tempo” pode ser
também bèdènykynana. Donahue (1982:24) mostra que bèdè entre os Karajá (“bade”),
além de sinalizar para uma profunda inter-relação entre espaço e tempo, significa também
“conhecimento” ou “sabedoria”. O “sábio” ou o que tem muita inteligência, entre os Javaé,
é bèdèry, algo como “o caminho (ry) do mundo (bèdè)”. A expressão parece ter relação
com a jornada de Tanyxiwè pelo mundo, que é antes de tudo uma caminhada de aquisição
de conhecimento e sabedoria do começo ao fim do Araguaia. O herói é iniciado em um
conhecimento novo a respeito de si próprio (ele não sabia para que servia o seu pênis, por
exemplo) e dos outros enquanto caminha pelo mundo (ele não sabia que havia tantos
humanos habitando o mundo e com eles adquire os bens da humanidade e vive a
experiência da submissão aos afins e a sua redenção). Ele chega ao fim adquirindo uma
sabedoria originada na experiência vivida pelo corpo, que se abre durante o périplo, como
se o conhecimento estivesse associado às transformações no espaço e no tempo que
ocorrem por causa das novas relações. O saber só é possível através dos outros e o
caminhar pelo mundo equivale a conhecer o mundo e a si mesmo, a uma simultânea
ampliação de horizontes externos e internos.
Há indícios de que o tempo e o espaço a que bèdè se refere não são dimensões
“naturais” e independentes, mas sempre contextualizadas socialmente, como na expressão
bèrèbuna (“faz mal”), derivada de bèdè ibèrèbu, “o tempo faz mal”. É bèrèbuna para as
mulheres, no sentido de que é perigosa ou interditada a saída da aldeia, quando os homens
estão realizando alguma atividade secreta fora da aldeia, como a confecção de máscaras,
por exemplo. O fato de eles serem vistos pelas mulheres, que publicamente não devem
saber que as máscaras são fabricadas pelos homens, pode gerar algum tipo de punição. Por
outro lado, a expressão wiji bèdè awire, “hoje (wiji) o tempo (bèdè) está bom (awire)”,
pode significar tanto “o clima está bom”, não havendo chuvas, por exemplo, como “hoje
não há brigas”. É sabido que no paraíso celeste desejado não há conflitos e que muitas das
variações climáticas são atribuídas aos poderes maléficos dos xamãs e não a uma ordem
natural auto-regulada. O tempo que faz mal ou faz bem, portanto, não é um tempo
puramente natural e independente da sociedade, mas um tempo essencialmente social, cujo
conteúdo simbólico e “material” é fabricado pelos homens. Poderíamos dizer que há uma
“fisio-lógica” Javaé se esse conceito implicar, tão somente, em uma centralidade da

394
corporalidade nas concepções sociológicas, deixando de lado a idéia de uma
interpenetração dialética entre elementos naturais e sociais, como em Seeger, Da Matta &
Viveiros de Castro (1987), o que seria pressupor a distinção entre natureza e cultura.
Em razão de que variadas dimensões da realidade e da matéria são dotadas de uma
qualidade corpórea (o tempo, o espaço, os níveis macro e micro-cósmicos, os vários tipos
de habitantes do mundo etc), os principais conceitos nativos exprimem uma lógica
corporal: como tudo é corpo, não há como falar da realidade-corpo sem ser através de uma
linguagem corporal. Assim, o que está “atrás” está nas “costas” de algo, como em
bèdèbòrò, “as costas (bòrò) do tempo (bèdè)”, que é a palavra para oeste, o que está
“atrás” ou “nas costas” dos cemitérios (wabèdè); os invólucros são a “pele” ou “corpo”
(tyky) de algo, como em biu-wè-tyky, “a pele ou corpo (tyky) da barriga (wè) da chuva
(biu)”, ou seja, o nível celeste; o que está nas extremidades, margens ou fim está nas
pernas/pés (ti) de algo, como em bèkyti, “as pernas (ti) do caminho (ky) da água (bèè)”, ou
seja, as margens do barranco do rio; o que está “dentro” está no estômago (wo) de algo,
como em wahetxiraworeny, “o que está dentro (rawo) do que está embaixo (hetxi) de nós
(wareny)”, expressão que se refere ao nível subaquático: o que está “dentro” é o que está
no “estômago (wo) da cabeça (ra)” de algo, e o que está embaixo é o que está no “ânus
(hetxi)” de algo.
O que está “atrás” no tempo é também o que está no “ânus” ou “nádegas” de algo,
como em ihetxiu ijyky, as histórias do tempo antigo, literalmente “histórias (ijyky) do ânus
ou nádegas (hetxi) dele (i)”; o que está no “meio” está na “barriga” (wè) de algo, como em
wyrawètya, o “meio (tya) da barriga (wè) da seca”, palavra que designa o auge ou meio da
estação seca; ou em wèkèrè, “metade (kèrè) da barriga (wè)”, palavra referente às
“metades” em geral, pois o que é cortado pela metade é algo cortado em sua barriga; o que
está no começo ou no alto está na cabeça (ra) ou face/rosto (ò) de algo, como em ibòkò, “o
rosto (ò) não maduro (ibò) de alguém (i)”, expressão referente ao “rio acima”, o começo do
rio; o que está “ao lado” ou em minha “companhia” está wabiti, “ao lado (bi) dos meus
(wa) ossos/pés (ti)”, como em biradudu, expressão que se refere às outras esposas de um
homem polígamo, que são companheiras ou estão “ao lado” (bira) da sua primeira esposa.
Os exemplos análogos são inúmeros, parecendo não haver nenhum tipo de conceito que
escape a essa “formulação corporal” da realidade.

395
5.5. Dentro da carne

A palavra waumy, “meu (wa) corpo (umy)”, é o principal conceito geral de “corpo”.
Em muitas expressões, o corpo ou o sujeito humano é referido apenas por uma de suas
partes, como se cada parte contivesse em si o todo. É o caso da palavra ò (rosto, face), em
hitxekò, dois artefatos de madeira que são colocados nos túmulos e que representam o
morto (ver Toral, 1992 e Pétesch, 2000); òdudu, palavra para “inimigo”, mas que
literalmente é “o que se origina (dudu) do rosto/corpo (ò)”; iòbiawa, “companheira (biawa)
do rosto/corpo dele/a (iò)”, uma outra palavra que se refere às esposas “companheiras” da
principal esposa de um homem polígamo; òbiti, que quer dizer “verdadeiro”, “real” ou
“reto” e cuja tradução literal é “ao lado (biti) do corpo/rosto (ò)”.
Suspeito que o mesmo acontece com ra (cabeça), como em rawo, “dentro (wo) da
cabeça (ra)”, utilizada no sentido de “dentro do nível subaquático”, como se este fosse um
corpo, na já citada expressão wahetxiraworeny, “o que está dentro (rawo) do que está
embaixo (hetxi) de nós (wareny)”. A barriga (wè) está no centro/meio do corpo, mas
também pode ser usada no lugar do todo, como na expressão wèdu, “o dono (du) da
barriga/corpo (wè)”, que se refere aos vários sujeitos que são donos de aruanã ou outros
bens rituais. O mesmo para wo, “o que está dentro da barriga”, pois wawo pode ser “meu
(wa) eu (wo)”, “meu ânus” ou “minha vagina”. Por fim, e mais importante, tyky (pele),
palavra polissêmica que pode ser usada como “invólucro”, “casca”, “roupa” ou “corpo”,
como em Biuwètyky, “corpo/pele (tyky) da barriga (wè) da chuva (biu)”, o nome do nível
celeste (ver Rodrigues, 1993). Voltaremos a tyky e outros de seus sentidos.
Obtive uma descrição dos nomes de cada parte do corpo humano, tanto sob o seu
aspecto externo quanto interno. Quando os Javaé falam dos nomes das partes do corpo e
do próprio corpo como um todo, eles sempre utilizam a partícula possessiva wa
(“meu/minha”) antes, como se o corpo e suas partes não existissem por si só, como dados
“naturais”, mas sempre em relação a um sujeito. Apresento a seguir os nomes das partes do
corpo, dentro de uma etnografia da corporalidade. Algumas expressões foram traduzidas
literalmente (entre colchetes) e ajudam a ilustrar a lógica corpórea mencionada antes.
Seguindo a ordem estabelecida pelo informante, o corpo “começa” de cima (cabeça) para
baixo, o que é coerente com a visão de que o que está acima está também no começo de
algo:

396
A parte externa e frontal do corpo, de cima para baixo:

• wara – “minha cabeça”. Sòò é uma palavra menos usada para “cabeça”.
• waratykyubetya – “o meio (tya) do topo da cabeça”, que vem a ser o lugar onde as
mulheres usam o rasi, porção de cabelo tradicionalmente destacada no topo da
cabeça. Rasi, literalmente, é “ovo (si) da cabeça (ra)”, sendo também a palavra
para “sonho”. O topo, tykyube, literalmente é a “palma/linhas (ube) da pele (tyky)”.
• wakoru – “minha testa”.
• waòsyna – “meu rosto/face”.
• waruè – “meu olho”
• waruèty ou waruèlybyna – “minha pupila” ou “lugar preto (lybyna) do meu olho
(waruè)”, “(vagina ou semente [ty] do meu olho [waruè])”.
• waruèura – “parte branca (ura) do meu olho (waruè)”.
• waruèkosa – “os cantos dos meus olhos”.
• warutàtisira – “minha sobrancelha”, “(cabelos [sira] em cima do meu rutàti)”.
• waruèbòròtyky – “minha pálpebra”, “(pele [tyky] das costas [bòrò] dos meus olhos
[waruè])”.
• waruxe – “meus cílios”.
• warudèra ou waòmynytidè – “minhas maçãs do rosto”.
• wadeàrà ou wadeasy – “meu nariz”.
• waroburè – “o que está ao redor dos meus lábios”.
• wadeasy ijò – “minhas narinas”, “(boca [ijò] do meu nariz [wadeasy])”.
• waworuna – “meus vincos ao redor dos lábios”.
• waòbira – “(a parte lateral [bira] meu do rosto/face [waò])”, aquela que fica entre
orelhas e maçã do rosto.
• waòbirati – “(osso [ti] da minha face lateral [òbira])”
• wanõhõti – “minha orelha”.
• wanõhõtiwa – “meu lóbulo da orelha”, “(o pé [waa] da minha orelha [wanõhõti])”.
• wanõhõti ijò – “canal externo do ouvido”, “(porta/boca [ijò] da minha orelha
[wanõhõti])”.
• wanõhõtiwowèryna – “cavidade interna da orelha” (diferente do ouvido), “(lugar
onde mora [ryna] a barriga interna [wowè] do meu ouvido [wanõhõti])”.
• wanõhõtiwo – “meu ouvido” ou “(estômago [wo] da minha orelha [wanõhõti])”.
• wanõhõtiwowetà – refere-se a algo dentro do ouvido, cuja tradução não se
conseguiu fazer.
• wasuku ou waijòbòrò – “a parte superior do meu lábio”, a que está entre o lábio e o
nariz, “(as costas [bòrò] da minha boca [waijò])”.
• wary – “minha boca”.
• warydela – “canto ou extremidade (dela) da minha boca (wary)”.
• waijèti – “meu lábio”.
• wajuhute – “meu queixo”.
• waju – “meu dente”.
• wadòròtò – “minha língua”.
• wajutya – “(meu dente [waju] do meio [tya])”.
• wajuraruti – “meu dente do fim”, “(as pernas [ti] das coxas [raru] dos meus dentes
[waju])”.
• warary – “meu céu da boca”.

397
• wabòtò ou walòti – “meu pescoço”.
• walòtibòrò – “minha nuca”, “(costas [bòrò] do meu pescoço [walòti])”.
• wadorudè – “meu ombro”.
• wakuejuti – “minha clavícula”.
• wabèrèti – “meu peito”, a parte acima dos mamilos.
• wahuky ou watxutxu – “meus seios”. As duas palavras podem ser usadas no sentido
de “meu peito” pelos homens, embora seja raro.
• wakatara – osso não identificado acima do diafragma.
• Wahukyraty ou watxutxuraty – “meus mamilos” ou “frutas dos meus seios” (raty
são as frutas em geral, cujo sentido deriva de ty, “vagina ou semente”. Raty,
literalmente, é “vagina da cabeça”).
• wawèè – “minha barriga”.
• wawitxi – parte externa das costelas.
• wawèbirati – “os (dois) lados (bira) da minha barriga (wawè)”.
• wabinõ – “meu umbigo”, “(o pênis [nõõ] do meu lado [wabi])”.
• wawètya – “minha cintura”, “(o meio [tya] da minha barriga [wawè])”.
• waxiò – “meu braço”, o braço inteiro.
• waxiòraru – “meu antebraço”, “(a coxa [raru] do meu braço [waxiò])”.
• wadèrawo – “minha axila”, “[estômago (wo) da cabeça (ra) da minha carne
(wadè)]”.
• wadèkòhu – “meu cotovelo”
• waxiòrubòrò – “(costas [bòrò] do ânus [ru] do meu braço [waxiò])”, a parte que
liga o braço ao antebraço.
• wadèkòrutà – “meu braço”, a parte entre cotovelo e mãos.
• wadèbòraru – “meu pulso”, “(coxa [raru] da minha mão [wadèbò])”.
• wadèbò – “minha mão”.
• wadèbòrati – “meu dedo”, “(pé/osso [ti] da cabeça [ra] da minha mão [dèbò])”.
• wadèbòjuhududu – “meu polegar” (juhu tem o sentido de “antigamente” e dudu o
de “o lugar de origem”, como se o polegar fosse o dedo original ou mais velho).
• wadèbòtya – “meu dedo do meio”, “(o meio [tya] da minha mão [wadèbò])”.
• wadèbòroko – “meu último dedo”, “(a extremidade ou o último [roko] da minha
mão (wadèbò])”.
• wadèbòube – “minha palma da mão”.
• wadexikà – “minha unha”.
• wadexikàrawo – “embaixo da minha unha”, “(o estômago [wo] da cabeça [ra] da
minha unha [wadexikà])”.
• wadebòrubòrò – a parte que liga as falanges dos dedos, “(costas [bòrò] do ânus [ru]
da minha mão [wadèbò])”.
• wadebòdowysy – as entradas entre os dedos da mão.
• wawèloko – parte externa da barriga abaixo do umbigo.
• wawèroko – pele/excesso da barriga, continuação do wawèloko, que as mulheres
antigamente achavam bonito quando caía sobre a tanga de entrecasca,
“(extremidade [roko] da minha barriga [wawè])”.
• warutiraru – parte lateral e externa do corpo, ao redor dos quadris, onde “começa a
coxa”, “(raiz [raru] das minhas coxas [waruti])”.
• wararu ou waruti – “minhas coxas”, “(ânus [ru] da minha cabeça [wara] ou pernas
[ti] do meu ânus [waru])”.

398
• warukuxade – parte interna das coxas.
• waruku – “minha virilha”.
• warutinõra – parte acima dos joelhos ou “ponta da minha coxa”, “(cabeça [ra] do
pênis [nõ] da minha coxa [waruti])”.
• wamana – “meu osso do joelho”, “(minha pedra [wamana])”.
• watikohu – “meu joelho”.
• wati – “minha perna” ou “meu osso”.
• watikoratuti – a parte da frente do osso da perna.
• wadodè – “minha panturrilha”.
• watinõra – “meu tornozelo” ou “ponta das minhas pernas”, “(cabeça [ra] do pênis
[nõ] das minhas pernas [wati])”.
• wawaa – “meus pés”.
• wawaakòtusi – “osso do meu tornozelo”, “(ovo de tracajá [kòtusi] dos meus pés
[waa])”.
• wawalorokosi – “meu calcanhar”, “(ovo [si] da extremidade [roko] do meu pé
[wawaa])”.
• wawararutidèlètè – o nervo que liga o calcanhar à perna.
• wawawodè – reentrância lateral da planta do pé, “(carne [dè] do estômago [wo] do
meu pé [wawaa])”.
• wawaube – “linhas da planta (ube) do meu pé (wawaa)”.
• wawajuhududu – o maior dedo do pé, “(o mais antigo [juhududu] do meu pé
[wawaa])”.
• wawatya – “meu dedo do meio”, “(o meio [tya] do meu pé [wawaa])”.
• wawaroko – o dedo menor, “(a extremidade ou o último [roko] do meu pé
[wawaa])”.
• wawadowysy – as entradas entre os dedos dos pés.
• wawabòròti – “o peito do meu pé”, “(osso [ti] das costas [bòrò] do meu pé
[wawaa])”.
• wawadexikà – “unhas do meu pé”.

A parte externa e traseira do corpo, de cima para baixo:

• wararoko – “parte de trás da minha cabeça”, “(extremidade ou fim [roko] da


minha cabeça [wara], também se refere à ligação com a coluna vertebral)”.
• wabòròdè – “parte superior das minhas costas”, “(carne [dè] das minhas costas
[wabòrò])”.
• wanarihi – “meus omoplatas”, narihi é também a palavra para “remo”.
• watityby – “parte externa da minha coluna vertebral”, “(meu osso [wati] velho
[tyby] ou pai [tyby) do meu osso [wati])”. É também “meu esqueleto”, referindo-se
ao esqueleto dos mortos.
• warokoti – “extremidade inferior da minha coluna”, “(extremidade ou fim [roko] do
meu osso ou perna [ti])”.
• wahetxi – “minhas nádegas ou ânus”.
• wahetxidè – “meus glúteos”, “(carne [dè] das minhas nádegas [wahetxi])”.
• wahetxikotuti – “meu cóccix”.

399
• wahetxiworyna – o canal externo que divide as nádegas, “(o caminho do estômago
[woryna] das minhas nádegas [wahetxi])”.
• wahetxiwaa – “parte inferior das minhas nádegas”, “(pés [waa] das minhas nádegas
[wahetxi])”.
• wahetxi ijò – “saída do meu canal anal”, “(boca [ijò] nas minhas nádegas
[wahetxi])”.
• waru – “meu ânus”.
• wahetxirujyby – refere-se a algo “preto” (jyby) que existe dentro do ânus (ru) e que
não foi possível traduzir, mas que não são as fezes.
• wahetxisiri – “(os pelos [siri] das minhas nádegas/ânus [wahetxi])”.
• wahewodè – carne (dè) da parte traseira das coxas.
• watirubòrò – “emenda da minha perna’, a parte traseira que liga a coxa às pernas,
“(costas [bòrò] do ânus [ru] da minha perna [wati])”.

A parte interna do corpo, de cima para baixo:

• warawonisi – “meu cérebro”, “(ovo [si] do falso estômago [woni] da minha cabeça
[wara])”.
• waky – “dentro da carne do meu corpo”.
• warati – “meu crânio”, “(osso [ti] da minha cabeça [wara])”.
• waratityby – “meu crânio velho”, “(osso velho [tibyby] da minha cabeça [wara])”.
Refere-se apenas aos crânios dos mortos.
• waòti – “(ossos [ti] da minha face [waò])”.
• waruèraru ou waruèdena – “minha cavidade ocular”, “(coxa ou raiz [raru] do meu
olho [waruè] ou lugar [dena] do meu olho [waruè])”.
• wajuraruti – “meu maxilar inferior”, “(osso [ti] da coxa [raru] do meu dente
[waju])”.
• waderàti – a cartilagem do nariz.
• wakòruti – “osso da minha testa”, “(coxa [ruti] do meu rosto/face [wakò])”.
• warutàti – “osso por baixo da minha sobrancelha”.
• wabòtòti – “minha traquéia”, “(osso [ti] do meu pescoço [wabòtò])”.
• wabòtòkò – “meu pomo de adão”, a saliência da cartilagem tireóide, “(o rosto [ò]
do meu pescoço [bòtò])”.
• wabòtòwo – “dentro do meu pescoço”, “(estômago [wo] do meu pescoço
[wabòtò])”.
• wabèrètiwo – “dentro do meu peito”, “(estômago [wo] do meu peito [bèrèti])”.
• watitybyti – “minha coluna vertebral”, “(osso ou extremidade/perna [ti] do meu
osso velho [watityby])”.
• wawemakyri – “meu coração”.
• wamaa – “meu fígado”.
• walyty – “minha bílis”.
• watari – “minhas vísceras”.
• wakoha – “meu rim”.
• wawitxiti – “minha costela”, em que ti é “osso”.
• watxiroko – “(meu último [roko] osso da costela [txi])”.

400
• wawo – “parte interna da minha barriga”, “(dentro [wo] de mim [wa] ou meu [wa]
eu [wo])”.
• wawonahaky – “meu estômago”, “(a parte grande [haky] de dentro da minha
barriga [wawona])”.
• wawonasõmõ ou waweryrisõmõ – “meu intestino”, “(a parte pequena [sõmõ] de
dentro da minha barriga [wawona])”.
• wadèdèsõ – uma espécie de “pequeno coração” que sente o medo, “(minha carne
[wadè] pequena [sõ])”.
• wabexi – órgão interno não identificado.
• wamaatyby – nome de um outro órgão, parecido com o fígado, “(meu fígado
[wamaa] velho [tyby])”.
• wadysyna – “minha bexiga”, “(o lugar [na] da minha urina [wadysy])”.
• wabinõti – “extremidade interna do meu umbigo”, “(perna [ti] do pênis [nõõ] do
meu lado [wabi])”.
• watyrawo – “parte interna do que está logo acima do púbis”, “(barriga interna [wo]
da cabeça [ra] da minha vagina [watyy])”.
• wasararu – um tipo de caroço interno na região da virilha, dos dois lados.
• warokotiwo – “dentro da base da minha coluna”, “(estômago [wo] da extremidade
[roko] do meu osso [ti])”, onde se acredita estar localizado o útero.

Partes específicas do corpo feminino:

• warikòrèryna ou wakuladuryna – “meu útero”, “(caminho, lugar de morar ou sentar


[ryna] do meu filho [rikòrè] ou criança [kuladu])”.
• kuladu hyna – “recipiente ou receptáculo (hyna) da criança (kuladu)”, a barriga da
mãe como um todo.
• watyra – parte exatamente acima da região pubiana, tanto em homens quanto
mulheres, “(cabeça [ra] da minha vagina [waty])”.
• watyy – “minha vagina”, inclui toda a genitália externa e interna.
• watywa – parte entre o canal vaginal e o ânus, “(pé [waa] da minha vagina
[waty])”.
• watybòrò – “meu púbis”, “(costas [bòrò] da minha vagina [waty])”.
• watybòròsiri – “meus pelos pubianos”, “(pelos [siri] das costas [bòrò] da minha
vagina [waty])”.
• watyijèti – “(os lábios [ijèti] da minha vagina [waty])”.
• wadysyna òlòna – “saída do meu canal uretral”, “(o lugar de saída [òlòna] da minha
urina [wadysy])”.
• watyy ijò – “saída do meu canal vaginal”, “(boca [ijò] da minha vagina [watyy])”.
• watydò ou watyjyhy– “meu clitóris”, “(língua [dò] da minha vagina [waty])”.
• watydela – “os cantos (dela) do meu canal vaginal (waty)”.
• watywo – “meu canal vaginal interno”, “(estômago [wo] da minha vagina [waty])”.
• watyworyna – a divisão dos lábios vaginais na parte pubiana, “(o caminho do
estômago [woryna] da minha vagina [waty])”.

401
Partes específicas do corpo masculino:

• wanõõ – “meu pênis”


• wasikywè – “meu saco escrotal”, “(barriga [wè] da carne [ky] dos meus ovos
[wasi])”.
• wanõsiri – “(pelos [siri] do meu pênis [wanõ])”.
• wanõijò – “saída da minha uretra”, “(boca [ijò] do meu pênis [wanõ])”.

Substâncias produzidas pelo corpo:

• warubèè – “minha lágrima”, “(água [bèè] do meu olho [waru])”.


• warybèsy – “minha saliva”, “(fluido [bèsy] da minha boca [wary])”.
• watysybè – “meu líquido vaginal”, “(líquido [sybè] da minha vagina [waty])”.
• wanõsy – “meu esperma”, (fluido [sy] do meu pênis [wanõ])”.
• wahukysy – “meu leite”, (fluido [sy] do meus seios [wahuky])”.
• watèhè ou wahalubu – “meu sangue”
• wakybòtò – “meu suor”, (pescoço [bòtò] da minha carne [waky])”.
• wadysy – “minha urina”.
• waijana – “minhas fezes”.
• wahytybèsy – “fluido que sai do meu nariz”.
• watòsy – “meu catarro”.
• kuladu wanõra kylyty – fluido que fica saindo do útero da mulher por algum tempo
após o parto, mas que não é a placenta, “(fluido [kylyty] da ponta dos pés [wanõra]
da criança [kuladu])”. A expressão origina-se no fato de que o fluido uterino sai
depois que os pés da criança, a última parte do seu corpo, saíram do útero.
• wasaa – “minha placenta”.

Um conceito corporal complexo e essencial é a palavra ky ou waky (“meu ky”), com


múltiplos significados. Ky é traduzido pelos Javaé, em termos gerais, como “o que está
dentro do corpo”, não se confundindo com wawo, que é uma palavra para o que está dentro
da barriga, mais especificamente, mas que também pode significar o “meu eu” interno.
Waky é uma variação disso que está “dentro do eu” e costuma ser traduzido como “minha
carne” ou, mais precisamente, “o que está dentro da minha carne”, a própria consistência
intrínseca da matéria. Waky é diferente de wadèè, “minha carne” também, mas cujo sentido
não abrange esse dimensão interna ou profunda de ky. A carne do corpo em questão é tanto
a matéria a partir da qual se fabrica os corpos dos filhos quanto o lócus dos sentimentos,
como raiva, tristeza ou alegria. Diferentemente de certas concepções ocidentais, para quem
a alma extra-corpórea é a “sede os afetos, dos sentimentos e das paixões” (uma das
definições de “alma” em Ferreira, 1986), é “dentro da carne” que se sente as emoções
humanas, como mostra o diálogo abaixo:

402
1 – Hoje é dia 20 de outubro, ele está explicando o significado dessa palavra ky, que é
muito complicado. Waky.

2 – É assim, Patrícia, deixa eu te explicar. Por exemplo, se você – vou te falar de waky
(no sentido) de “carne” – levar um corte bem aí, aí a pessoa pergunta como se fosse
waky, ou seja, foi fundo, lá dentro de sua carne. Mas tem outro waky que se refere a
sentimento. (...) Vou traduzir assim, sentimento. Por exemplo, wakyki é ‘fiquei alegre’.
‘Fiquei triste’ é wakyki, ‘me machuquei’ é wakyki. ‘Me machucou’ assim ... no sentido
de só ‘senti’ machucado, mas não está rasgado. (...) Mas tem wakyki também que
machuca a carne. Por exemplo, foi fazer e me machucou lá dentro.

1 – Tem os dois sentidos, da carne mesmo e do sentimento.

2 – Carne mesmo e sentimento, mesma coisa.

Quando uma pessoa sente muita raiva, ela diz wakyreareri, o sentimento “está no
meu ky agora”, algo que se sente dentro da carne do corpo todo, incluindo a cabeça. O
sentimento de gostar dos parentes é sentido no wo, parte interna da barriga, feita da mesma
carne/matéria (ky) do corpo. Acredita-se que o wo está ligado internamente à cabeça e ao
ouvido, os lugares do pensamento, não havendo separação entre o sentimento e o
pensamento. Quando alguém está “pensando”, também está “sentindo” algo internamente
no wawo, “meu eu interno”. No wo as pessoas sentem alegria, tristeza, mas “sentem o
pensamento” também. As intuições estão tanto no wo quanto no rati (“crânio/cabeça”).
Dizem que as pessoas que têm o dom da premonição sentem ou vêem tudo
antecipadamente através do wo.
Os Javaé traduzem o sentimento de “saudade” pela palavra wèityky, “pele (tyky) da
barriga (wè)”, a mesma expressão usada como “invólucro” ou “corpo” em Biuwèityky,
“pele ou corpo da barriga da chuva”, o nome do nível celeste. Quando se tem saudade de
alguém, diz-se “fulano wèityky (pele da barriga) riwasarèri (sentir)”, ou seja, “eu estou
sentindo a pele da barriga (saudade) de fulano”. Saudade não é apenas lembrar do passado,
mas ter o desejo de “estar junto do corpo do outro”, sentimento este que “está” sempre em
algum lugar do corpo, como a pele da barriga, materializado em uma parte do corpo
humano.
É no ky também que se sente febre, quando alguém está doente, e de onde provém a
matéria que dá origem aos filhos. Um pai chama seu filho de wakydudu, “o que se originou
(dudu) no meu ky (waky)”, pois o corpo do filho é feito do sêmen do pai. Já a mãe, que
não fabrica o corpo do filho, mas apenas é o receptáculo onde ele é formado, chama o filho

403
de wawodudu, “o que se originou (dudu) dentro de mim (wawo)”, no sentido de onde ele
foi cuidado, mas não fabricado. O nõsy (esperma) do pai é o ky dele transformado no fluido
que vai dar forma ao corpo do filho. Não por acaso, kyy, uma derivação de ky, é tanto a
“colméia” onde as abelhas formam um grande grupo de parentes como “os parentes” de
alguém. Waky é “meus parentes” ou “minha carne”, o que está “dentro de mim”. Quando
alguém se casa, diz-se que “iny kyrenytxi raloreri”, “está entrando alguém em nossa
família” através do casamento. O ky de kyrenytxi é o mesmo ky de “dentro da carne”, aqui
no sentido de “dentro da família”.
A palavra kyty, “cheiro ruim”, o conceito nativo de poluição, é literalmente “a
vagina (ty) da carne (ky)”, como se as vaginas fossem a verdadeira parte poluída dos
corpos, por ser através e por causa delas que tem início a procriação. A palavra ikyki,
derivação de ky, refere-se a tudo que está bem no “fundo”, “dentro” ou no “meio” de algo.
Bèdèky, “o que está lá dentro ou no meio (ky) do mundo (bèdè)” é o nome de uma região
interiorana da Ilha do Bananal, mais ao norte, onde estavam localizadas as antigas aldeias
Karalu Hãwa, Syrahaky e Wararèkòna. O “dentro” a que se refere a palavra ky parece ter o
sentido do que está nas profundezas de algo, como uma parte intrínseca ou inseparável, a
própria essência. Por isso wakyki refere-se aos sentimentos intensos, a raiva que se sente
“lá dentro” da carne.
Ky, porém, não é só a matéria e os sentimentos a ela associados, é também o
próprio “pensamento”, a sede da consciência humana. Waraky, “carne (ky) da minha
cabeça (wara)” é uma das palavras para “meu pensamento”. Raky é “dentro da cabeça”.
Quando alguém quer perguntar “em que você está pensando?” ou “para que você teve essa
idéia?”, dirigindo-se a alguém que está triste ou fez algo errado, diz “timybo
tarakynyteri?”, expressão em que taraky, “sua carne da cabeça” ou “dentro da carne da sua
cabeça”, tem o sentido de “idéia” ou “pensamento”. A outra palavra para “pensamento” é
nõhõti, “ouvido”, havendo uma associação entre pensar ou compreender bem e ouvir bem,
similar à que existe entre os Kayapó (Turner, 1995) e Suyá (Seeger, 1980), por exemplo. O
ouvido é tanto o pensamento em si como o lugar mais exato do pensamento dentro da
cabeça. A mesma pergunta, “em que você está pensando?”, também pode ser dita assim:
“timybo tohõtinyteri?”, em que tohõti, “seu ouvido”, é aqui “seu pensamento”. Lembrar do
passado, recordar e criar/inventar também é nõhõti. As pessoas que são inteligentes, “que
têm cabeça boa para pensar/ouvir/lembrar/criar”, são nõhõtiwii, “bom (wii) ouvido
(nõhõti)”, ou irakywii, “boa (wii) carne da cabeça dele (iraky)”. Iratiwii é uma variação de

404
irakywii, com o mesmo sentido de “bom pensador”. Quem não tem cabeça boa é
ratibinare.
As pessoas de grande inteligência e memória também podem ser chamadas de
nõhõtitèrè, “ouvido duro”, como as mulheres de talento especial para chorar ritualmente e
lembrar histórias do passado ou os homens que são grandes compositores e contadores de
histórias. Quem é “ouvido duro” tem grande capacidade de improvisação criativa e rapidez
de raciocínio e fala, qualidades admiradas pelos Javaé, seja nos choros rituais ou nos
confrontos verbais. Os Javaé dizem que “o pensamento começa pelo ouvido”, o qual está
diretamente ligado ao cérebro e ao wo, lugar de alguns sentimentos. A música é uma forma
de “pensamento” também. Só quem é nõhõtiwii, “bom ouvido”, é capaz de fazer belas
músicas. Quem está “pensando”, está “ouvindo”. Arõhõtinyreri, “estou pensando”, é
literalmente “estou ouvindo”. Quando uma mulher está chorando ritualmente, momento em
que exibe o dom da oratória através da criação de um texto inédito e improvisado, ela está
lembrando do passado e ao mesmo tempo xingando os envolvidos na morte do parente.
Dizem que nessa hora elas estão usando o ouvido (pensamento, memória) e ao mesmo
tempo o wo, dentro da barriga, de onde tiram o fôlego (elè) que sustenta o choro
incansável.
Os animais e plantas também têm ky. Nas árvores, o ky fica “dentro da madeira”.
Mas só os humanos, os animais e os peixes têm kyty, o “cheiro ruim” poluído associado ao
sangue ou substâncias vitais, que as plantas não possuem. As árvores grandes têm cérebro,
mas não têm “pensamento”, por isso seu cérebro chama-se “rawoni”, “falso (ni) interior da
cabeça (rawo)”. Afinal, Tanyxiwè mostrou ser o mais inteligente de todos nos tempos da
criação, transformando os outros humanos menos inteligentes nas árvores e animais de
hoje, seres limitados em comparação com os descendentes criativos do herói mítico.
Podemos ver que os pensamentos e a memória, ou tudo aquilo que constitui a
consciência de um sujeito, assim como os seus sentimentos, não são abstrações imateriais
situadas fora ou além do corpo, em algum lugar transcendente que se opõe à realidade
intrínseca da matéria. Ao contrário, eles estão “dentro”, fundidos com a essência da carne,
como se fossem a própria matéria. O pensamento não está simplesmente no ouvido, mas
ele “é” o próprio ouvido, assim como não está na carne que está dentro na cabeça, mas “é”
a própria carne. O mesmo ocorre com a saliva dos grandes cantores ou oradores, que “é” o
dom da música ou da fala.

405
Os Javaé têm o hábito, já registrado antes (Rodrigues, 1993), de doar a saliva das
grandes oradoras, as mulheres mais velhas que sabem chorar ritualmente e com maestria
em público, para as suas crianças, de preferência viradas com a face para o lado onde o sol
nasce, na esperança de torná-las também grandes oradoras, de fala rápida. Os grandes
compositores de música (wiidu) também doam sua saliva. Através da saliva pode-se
transmitir a qualidade de falar, cantar, chorar ou xingar bem, pois todas essas qualidades
“vêm da cabeça” da pessoa. A saliva, feita da mesma matéria de que é feita a cabeça e todo
o corpo, transmite o que está dentro da cabeça. Assim, a habilidade de falar bem não deriva
de um talento abstrato e extra-corpóreo, mas está na própria saliva. Por isso a palavra para
“fala”, “linguagem” ou “língua”, como em Torirybè, “a língua dos brancos (Tori)”, é rybè,
que quer dizer “água (bè) da boca (ry)”, ou seja, a saliva. “Minha fala” é warybè, “a minha
saliva”. As grandes oradoras, conhecidas como rybèwii, “fala boa”, na verdade são aquelas
que têm “saliva boa”.
Do mesmo modo, o sonho (rasi), cujas premonições entre os Karajá foram descritas
por Aytai (1983a), não é uma manifestação puramente imaterial da psique ou da alma, esse
conceito ocidental (que inclui a consciência e o inconsciente) relativo a uma dimensão do
sujeito humano que se situa fora ou em oposição ao corpo material 38 . O sonho Javaé é
absolutamente “corpóreo”, assim como a fala e o pensamento: rasi são “os ovos (si) da
cabeça (ra)”, uma espécie de filhotes carnais do corpo/cabeça. Quando alguém “manda
lembrança” para um outro parente através de alguém, uma fala de saudade ou recordação,
ele manda rybètykyhyna, “receptáculo/barriga (hyna) do corpo (tyky) da saliva/fala (rybè)”
ou, em uma variação mais completa, rybèwèitykyhyna, “receptáculo do corpo da barriga da
saliva/fala”, sendo que wèityky (corpo/pele da barriga), como já foi dito, é a palavra para
“saudade”. Assim, a lembrança verbalizada é como se fosse um receptáculo que contém o
corpo da fala, que por sua vez é a própria saliva.
Tudo aquilo que no Ocidente está localizado “fora” do corpo – na alma, na psique
ou no intelecto – e que constitui o sujeito abstrato, seja a inteligência ou o pensamento, a
sensibilidade artística ou as emoções, a criatividade conceitual ou as imagens oníricas, a
consciência ou o inconsciente, para os Javaé está profundamente “dentro da carne”, é
imanente à matéria de que é constituído o corpo humano. Não se trata meramente de uma
não oposição entre emoção (sentimentos) e razão (pensamentos), ambos situados dentro do

38
Uma outra definição de “alma” (também válida para “espírito”), de uso corrente pelo senso comum, é “o
conjunto das funções psíquicas e dos estados de consciência do ser humano que lhe determina o
comportamento, embora não tenha realidade física ou material” (Ferreira, 1986:88).

406
ky, mas de uma inadequação total da clássica oposição entre os atributos e produtos do
corpo e os atributos e produtos da mente/alma, entre o concreto e o abstrato, entre o
material e o sutilmente invisível, entre o biológico e o conceitual.
O ky, a essência da corporalidade, é tanto o que está dentro da carne física, a
constituição concreta da matéria, quanto o cerne do pensamento e das emoções, como se
estes últimos também fossem “corpóreos”. Nele se manifestam as dores físicas e as
emocionais. Em suma, o sujeito humano não é uma abstração racional ou imaterial, mas
antes de tudo um corpo. Assim como entre os Kayapó, “a subjetividade e a agência devem
ser representadas (…) mais como algo incorporado em processos corporais discretos do
que como atributos de um ego cartesiano desincorporado e integral” (Turner, 1995:166).
Na verdade, como veremos no item a seguir, não existem níveis ou substratos da realidade
não-corpóreos: mesmo os conceitos e os espíritos são concebidos como corpos.

5.6. A substância das representações

Se o próprio pensamento tem uma constituição material e é intrínseco ao corpo, do


que serão feitos os produtos do pensamento, da criação humana? Para o Ocidente, criações
como a música, a literatura, os nomes ou os costumes – as leis humanas –, são produtos da
mente ou da sensibilidade humana, conceitos puramente abstratos. Afinal, um sujeito
criador que está fora ou se opõe à materialidade do corpo só pode criar idéias, conceitos ou
abstrações que partilham da mesma natureza essencialmente imaterial daquele do qual se
originaram. A criação literária ou os conceitos musicais e sociais, enfim, qualquer tipo de
representação abstrata, pertencem ao plano das idéias e pensamentos, o qual não é
constituído de nenhum tipo de substância física, pelo contrário: é o plano hierarquicamente
superior da antimatéria, uma realidade transcendente e não concreta, muitas vezes
associada à razão pura. O mesmo não pode ser dito sobre as concepções a respeito da
criação entre os Javaé. Um pensamento que é em si “substancial” não gera produtos não-
substanciais. Na qualidade de corpo, as criações do pensamento-corpo são igualmente
corpos. Um pensamento que tem “carne” só pode originar filhotes criativos também
corpóreos.

407
Vejamos as músicas, por exemplo. Os Javaé chamam as músicas de wii, a mesma
palavra que designa o que é “bom” ou os que são “generosos”. Aquele que compõe e canta
as “músicas de aruanã” (irasò wii) é o wiidu. Dizem que as músicas são como os nomes, as
pessoas não os esquecem e são passados de geração em geração. Alguns aruanãs, como o
Debò, cantam as músicas mais difíceis e “clássicas”, enquanto outros, como o Waije,
cantam as músicas mais fáceis e inventadas na hora. As músicas antigas são como os mitos
(ijyky), cada um dos mais velhos tem a sua própria versão. Todas as músicas cantadas
pelos aruanãs têm duas partes distintas, tanto em termos musicais quanto de conteúdo das
letras. Elas são chamadas de tõõ e iumy e a diferença de conteúdo é bem menos relevante
que a diferença propriamente musical. Pétesch (2000) também identifica duas partes
distintas nos cantos de aruanãs Karajá, além de mostrar a ordem em que cada membro da
dupla de aruanãs canta cada parte, entre outras informações importantes.
Em meu trabalho anterior (Rodrigues, 1993), existe uma análise das letras de várias
músicas de aruanãs, todas divididas na parte tõõ e na parte iumy, e uma descrição da
performance dos dançarinos/cantores e do ciclo ritual da Dança dos Aruanãs. As danças,
extremamente formais, são realizadas de acordo com um vasto conjunto de regras
detalhadas que regulam os horários em que são realizadas, a sua duração, a sua
periodicidade, a movimentação no espaço, a relação entre público feminino e masculino, o
papel de cada um etc. Tudo é acompanhado com um rigor que os Karajá não têm, dizem os
Javaé, entre os quais se alega haver uma grande desorganização e falta de respeito em
relação às proibições que dividem o espaço masculino do feminino. A maior parte das
músicas é composta pelos humanos daqui, mas algumas são trazidas pelos aruanãs de seus
níveis cósmicos de origem.
Como tudo entre os Javaé, a performance dos cantores envolve uma divisão ternária
(duas extremidades e um meio), dimensão esta não apresentada no trabalho anterior. Os
aruanãs, acompanhados de uma ou duas irmãs rituais, as irasò didi, dançam nas ruas (irasò
ube) que ligam a Casa dos Homens à casa de cada dono de aruanã, no lado ixy da aldeia.
Normalmente, cada aruanã dança na estrada do seu dono, todos ao mesmo tempo, embora
haja ocasiões especiais que uns dançam nas estradas dos outros. Salvo em ocasiões como
os rituais de despedida, os aruanãs e suas irmãs rituais dançam por sessões de duas horas
seguidas, aproximadamente, no fim da manhã, no fim da tarde ou à noite, o que inclui um
grande número de músicas diferentes. Descrevo a seguir o padrão geral, para o qual há
algumas exceções, não contempladas aqui: a cada música diferente, repete-se o mesmo

408
percurso. A dupla de aruanãs dança até o hirarina, “lugar das meninas”, na extremidade
feminina da pista de dança, volta até o ijoina, “lugar dos homens”, extremidade do lado da
Casa dos Homens e, mais uma vez, segue até o hirarina, onde termina a música. De lá,
volta em silêncio pela mesma estrada para a praça masculina, enquanto as dançarinas
retornam para a casa de origem.
Esse percurso musical (ver Desenho n° 17, ao lado), repetido por todas duplas a
cada nova música, inclui três deslocamentos: uma ida, uma volta e uma última ida. A cada
nova música, a dupla de aruanãs começa parada e cantando a parte tõõ da música no
terreiro masculino. Começa então a dançar, em seu primeiro deslocamento, cantando iumy,
quando chega até o meio da pista e muda para tõõ, onde para um pouco ou dá uma pequena
volta no lugar. Segue então com iumy até o extremo feminino, onde para e muda para tõõ.
Na volta, dança iumy até o meio, onde muda para tõõ. Continua iumy até a extremidade
masculina, onde para. Por fim, na segunda e última ida segue dançando iumy, para com tõõ
no meio e segue iumy até o hirarina das mulheres, o ponto final. De lá, a dupla volta em
silêncio até a pátio masculino, onde vai começar outra música. Em todos os deslocamentos,
a parte tõõ das músicas é sempre cantada no ube tya, “meio (tya) do caminho (ube)”.
No início de um conjunto de músicas de um período ou de um dia, toda dupla canta
uma primeira música, chamada iòlòna (“lugar de saída dele”), assim que sai da Casa dos
Homens, e uma última música, quando já acabou a sessão de danças e está prestes a entrar
de novo na Casa dos Homens, chamada iròtena (“lugar de entrada dele”). Quando a dupla
sai da Casa dos Homens, ela para no terreiro masculino e canta a parte iumy da música de
saída. Então começa a andar/dançar pela estrada até o ube tya, onde para por alguns
instantes e muda para a parte tõõ da música. Depois muda para a parte iumy e segue até o
fim da estrada, na extremidade feminina da aldeia. A dupla para no “lado das meninas” e
volta andando calmamente e em silêncio para o terreiro dos homens, quando vai dar início
ao conjunto de várias músicas do dia.
A performance da música de despedida, que marca o retorno à Casa dos Homens,
após algumas horas dançando, é mais elaborada. A dupla começa cantando a parte iumy da
música de entrada, parada no “lugar dos homens”. Ainda parada, muda para a parte tõõ.
Muda novamente para a parte iumy, com a qual começa a dançar até o meio da estrada,
onde muda para tõõ e para por alguns instantes. Segue com iumy até o lado das mulheres,
onde muda e fica dançando um pouco com a parte tõõ. Volta então dançando iumy até o
meio, onde novamente para e muda para tõõ.

409
Desenho n° 17: Percurso musical dos aruanãs

Casa dos
Homens

INÍCIO
ijoina 1

tõõ
3

ium
ium

~y
~y
ium

om
~y

eio
tõõ
tõõ
iras

tõõ
òu
be

ium
ium

~y
~y
ium
~y

tõõ

2
Fim

hirarina

~
ixy

rio

410
Continua dançando iumy até o terreiro dos homens, seu destino final. Lá chegando,
para e canta tõõ. Por fim, muda pela última vez e entra cantando iumy na Casa dos
Homens. Os jogos rituais são realizados sempre imediatamente depois das danças dos
aruanãs.
Note-se que a saída, o percurso e o retorno dos aruanãs à Casa dos Homens são
tratados como equivalentes simbólicos do percurso do Sol (e de outros viajantes, como
Tanyxiwè) nos níveis cósmicos, pois a saída do Sol (Txuu), a leste, é Txuu òlòna, e a sua
entrada, a oeste, é Txuu ròtena, os mesmos conceitos de “saída” e “entrada” associados às
músicas; e do mesmo modo que o Sol tem um ponto intermediário (o meio dia [Txuu tya])
em sua rota, entre o extremo da saída, a leste, e o da entrada, a oeste, os aruanãs tem um
ponto no meio de sua rota dançante (ube tya) entre o extremo masculino e o feminino da
aldeia, simbolicamente associados ao leste e ao oeste. Assim como na caminhada de
Tanyxiwè, entre uma extremidade e outra há sempre um meio que é diferente dos extremos
e ao mesmo tempo a ligação dos opostos. Donahue (1982), Brígido (1997) e Pétesch
(2000) apresentam uma descrição do percurso musical mais comum dos aruanãs Karajá,
mas só em Brígido (1997) há menção à parada no meio que caracteriza uma divisão
ternária da pista.
Talvez o leitor mais desatento não tenha percebido, mas tõõ e iumy, conforme já foi
apresentado, são derivações, respectivamente, de “pênis” (nõõ) e “corpo” (umy). Tõõ é
“pênis dele” e iumy é “corpo dele”. O “dele”, no caso, é da própria música. Foi-me dito
explicitamente que tõõ e iumy são, então, o pênis e o corpo da música que está sendo
cantada. Todas as músicas, como as dos rituais Iweruhuky, Marakasi e Hetohoky, incluindo
as dos worosy que comparecem ao ritual de iniciação masculina, têm a parte tõõ e iumy, ou
seja, um pênis e um corpo, dimensão esta que não havia captado em meu trabalho anterior.
Ao contrário das músicas de aruanãs, as músicas dos worosy são sempre as mesmas,
porque são trazidas por eles da Marani Hãwa subaquática, não sendo compostas e
renovadas pelos humanos terrestres. As músicas são percebidas como corpos masculinos,
nos quais o pênis parece estar associado ao “meio” do corpo, pois em todas as músicas é a
parte tõõ que corresponde ao meio do percurso dos dançarinos. Por outro lado, a parte final
das músicas, a sua “extremidade”, é chamada de irasòwii ranõra, “cabeça do pênis (nõra)

411
das músicas de aruanã (irasòwii)”. Ou seja, a extremidade final de uma música é a
extremidade ou ponta de seu pênis 39 .
Os choros rituais produzidos pelas mulheres durante o luto ou em momentos de
raiva também são considerados como corpos. Chamados de iburu ou iburu rybè (“fala do
choro”), os choros femininos são peças musicais de oratória improvisada admiradas por
todos, através das quais as grandes oradoras tornam-se famosas e lembradas com respeito
através dos tempos. Considerados como um tipo de música (wii), dos choros também se diz
que têm umy, nõõ e nõra, além de wètya, ou seja, “corpo”, “pênis”, “cabeça do pênis” e
“meio da barriga”. A parte nõõ do choro (iburu tõõ), equivalente ao seu pênis, é aquela em
que a mulher acusa e xinga os que fizeram algum mal para o morto antes dele morrer. A
parte iumy, que pelo menos em termos de conteúdo não parece ser tão diferente assim,
refere-se ao momento em que a mulher está xingando ou acusando alguém ainda vivo.
Alguém que está sendo acusado e ouve o choro pode dizer: “taburu (choro dela)
wamy (sobre mim) ritõnyrèri (fazendo tõõ)”, “ela está falando sobre mim no pênis do
choro dela”; ou taburu wamy riumynyrèri, “ela está falando sobre mim no corpo do choro
dela”. Há ainda também a expressão taburu ranõramy riwaatyrèri, “ela está se referindo a
mim na cabeça do pênis do choro dela”, em que tanto nõra (cabeça do pênis) como waa
(pés) têm o sentido de “parte final” do choro. Por fim, pode-se dizer taburu wètyamy
riwaatyrèri, “ela está se referindo a mim no meio da barriga do choro dela”, em que o
“meio” do choro é o “meio da sua barriga” (wètya). Tanto a parte “cabeça do pênis” quanto
a parte “meio da barriga” de um choro são também xingamentos e acusações.
Os nomes das pessoas, embora não pertençam à mesma categoria das músicas e
deles não se diga explicitamente que tenham pênis e barrigas, não deixam de ter algum tipo
de corporalidade, assunto a ser retomado na segunda parte. Assim como a substância física
transmite todo tipo de qualidades através das gerações, acredita-se que os nomes também
podem transmitir os mesmos atributos das substâncias físicas. Os Javaé atuais se dizem
descendentes (rikòkòrè) dos povos sobreviventes listados pela mitologia. As pessoas
chegam a traçar linhas de descendência dos ancestrais míticos, de curta profundidade

39
Embora Bastos (2001:349) não diga que as músicas sejam pensadas como corpos, é interessante notar que
há “vinhetas” do ritual Jawari, entre os Kamayurá xinguanos, em que tanto a música quanto a letra indicam o
ato sexual: “(...) o segmento 1 (repetido em 2) representa a fase pré-orgástica do coito, o de número 3
referindo o momento mesmo do orgasmo. Note-se que os exegetas Kamayurá se apercebem dessa vinheta
como transensorial, embora essencialmente sonora, reproduzindo, assim, não somente os sons da fornicação,
mas também o todo dela: odores, suores, tremores, visões, toques, sabores, moveres, tudo confluindo, enfim,
para a paralisação final, no agudíssimo – tesa, na tônica –, ascese a que se segue o escorrego (...) catártico
para o grave”.

412
genealógica, e que podem ser traçadas tanto pelo lado da mãe como do pai. Em geral,
todos estabelecem, com orgulho, alguma ligação ancestral com os Wèrè verdadeiros ou
com o povo de Marani Hãwa. E tentam omitir, envergonhados, algum antepassado
Kayapó, Karajá ou de qualquer outro povo ixyju desprezado. Essa ancestralidade
indesejada, como veremos mais à frente, é invocada pelos outros nos conflitos que
envolvem xingamentos e enfrentamentos verbais.
Acredita-se que os descendentes herdam – alguns menos, outros mais –
características físicas, emocionais, mentais ou mesmo comportamentais de seus
antepassados através da substância que é passada através das gerações. Afinal, dentro da
“carne” estão as características físicas e também os sentimentos e os pensamentos de
alguém. Embora seja dito que é o sêmen que fornece a matéria de que é fabricado o corpo
dos filhos, admite-se que os corpos são “contaminados” com as qualidades da mãe e seus
antepassados no útero, de modo que as características herdadas podem vir tanto do lado
paterno quanto materno. Vejamos o que é possível herdar de alguns dos povos que
contribuíram para a formação física e também psicológica, emocional, cultural, material
etc dos Javaé atuais:

• Wèrètyhy (Wèrè verdadeiros) e Wou (Tapirapé) – são inytyhy, “gente honrada”,


seus descendentes são pacíficos e trabalhadores.

• Wèrèlyby (Wèrè negros), Wèrètirèkè (Wèrè magros), Wèrèrakora (Wèrè com


cabelos enrolados), Wèrèhina (têm o rosto inchado e os xamãs viram onça) – são
algumas variações não desejadas dos descendentes dos Wèrè e que são muito
invocadas nos xingamentos.

• Karalahu (Kayapó) – seus descendentes brigam e xingam todo mundo


descontroladamente.

• Biri (periquitos) – alguns Javaé são Biririkòkòrè, “descendentes dos periquitos”, o


que remete ao mito de origem de Inywèbohona (antiga aldeia onde hoje é Boto
Velho, ver Rodrigues, 1993). Os dois homens sobreviventes do massacre mítico
encontraram dois periquitos que se transformaram nas duas moças com as quais se
casaram. Desse casamento ancestral surgiram alguns dos Javaé atuais. Diz-se que
os descendentes dos periquitos têm a voz fina e falam mais rápido.

• Bero mahãdu (Karajá) – os descendentes são labuijò ou hykywè (característica


feminina de promiscuidade sexual), ota ota (o mesmo para os homens). As
mulheres são rybè wii, “fala boa”, porque são hábeis para falar rápido,
principalmente nos xingamentos, nunca perdendo em confrontos verbais. Eles não
têm nádegas volumosas, têm a perna fina e os lábios e boca muito grandes. As
mulheres são preguiçosas.

413
• Bèdèky mahãdu (os Javaé da região do Bèdèky, ao norte da ilha) – seus
descendentes gostam de inventar mentiras sobre o comportamento das ijadoma
(moças), para que sejam punidas e levadas para o estupro coletivo na Casa dos
Homens. Homens e mulheres são promíscuos. Os homens têm voz grossa e bonita.

• Anirahu mahãdu (povo Anirahu) – é o povo das mulheres que traíam os maridos
com o amante jacaré e se transformaram em Avá-Canoeiro. Por isso, seus
descendentes entre os Javaé atuais (que são apenas alguns), principalmente as
mulheres, são traidores, mentirosos e promíscuos.

• Hãwahaky mahãdu (outro nome para o povo de Marani Hãwa) – as mulheres que
descendem deles não choram pelos mortos (o mesmo que fazia o povo de Tòlòra),
não têm consideração com a família. Os tios maternos não fixam plumas de
pássaros (dura) com resina em seus sobrinhos e não os levam para as brincadeiras
rituais (o mito explica que esses costumes foram aprendidos pelo povo de Tòlòra
com os Wèrè).

• Tori (os brancos) – seus descendentes (o que inclui os brancos propriamente ditos e
os filhos de brancos com Javaé) são mentirosos, ladrões, não obedecem as palavras
dos pais, não têm vergonha (ixyrutère) e tanto homens quanto mulheres são
promíscuos. Os brancos não respeitam os primos e primas próximos (querem fazer
sexo com eles), batem nas mulheres e são avaros.

Os próprios Javaé reconhecem que as versões sobre o que se herda mudam


conforme o narrador. Essa é uma versão de uma pessoa cuja família é originária do
Wariwari e se diz descendente dos Wèrè verdadeiros, e certamente seria diferente se fosse
de um descendente do povo de Marani Hãwa ou de outro lugar. Mas o que importa aqui é
evidenciar que há uma teoria da descendência física que é compatível com as concepções a
respeito do corpo apresentadas antes. A substância originada no ky traz em si, através das
gerações, tudo que o ky contém: pensamentos, desejos, atitudes, emoções,
comportamentos, os quais não são separados das características mais concretas e visíveis
da corporalidade. No novo contexto do contato, Bonilla (2000:78-79) mostra como “as
mudanças, misturas e apropriações de novas substâncias, roupas, alimentos provocam
mudanças corporais e comportamentais (o corpo fica pesado, os jovens perdem a coragem
e param de trabalhar)”. Os novos comportamentos são indissociáveis das transformações
físicas sofridas pelo corpo.
Dos nomes principais de ambos os sexos, pois os Javaé recebem vários nomes ao
nascer, é dito que também podem transmitir, embora não necessariamente, vários tipos de
qualidades. Os èhèhè (belicosos), os ota ota (promíscuos), os birèdu (preguiçosos), os
ityhy ou inytyhy (honrados), os itxãtère (loucos), os hawakyni (“falsa mulher”, os

414
homossexuais), as labu ijò (promíscuas), os rybè wii (bons oradores), os wiidu
(compositores), os ibèdèry (inteligentes e sábios), os bèdèrõkõ (ignorantes), todos eles
podem herdar essas características através dos nomes que receberam ao nascer. Essa
informação implica que os nomes contêm, em algum grau, algo de “substancial” ou
corpóreo, assim com as músicas e os choros, uma vez que tais qualidades são inerentes ao
ky e este é a essência da materialidade de que é feito o corpo humano. Como se vê, não se
encontra aqui a célebre oposição Jê-Bororo (ou Tukano, ver Hugh-Jones, S., 2002) entre
substância e nome, no sentido de sangue e alma, natureza e cultura, assunto ao qual
retornarei 40 . O nome parece ser visto como uma “extensão corporal” da própria pessoa, um
componente substancial do sujeito.
Se os nomes, músicas e choros são corpos, o que se dirá dos “costumes” ou
“tradições”, as leis criadas pelos sujeitos humanos nos tempos míticos? Nos mitos se conta
como, a partir da interação humana no nível terrestre, criou-se o que hoje se chama de
“tradição”. Algumas coisas foram trazidas prontas de baixo, como a agricultura herdada
dos Ijèwèhè (ancestrais de Tanyxiwè) e dos Wou (Tapirapé), mas a maioria dos hábitos e
costumes atuais, ao lado das transformações espaço-temporais da paisagem terrestre e da
forma atual de outros seres, como plantas e animais, foram produzidos aqui a partir da
interação física e social entre os humanos de corpos abertos. Como as leis dos homens são
fabricadas por pensamentos-corpos, nada mais natural do que imaginar que elas também
sejam concebidas como produtos-filhos que possuem alguma consistência material ou
corpórea. De fato, a palavra nativa para o conceito de “tradição” ou “costume” é tykydisi,
“brincadeira (disi) da pele/corpo (tyky)”. As tradições vividas através das brincadeiras dos
aruanãs não são brincadeiras produzidas pela alma ou pela mente, mas “brincadeiras do
corpo”.
Creio que este conceito não significa apenas que as tradições são as “brincadeiras”
que os corpos dos homens e mulheres realizam, mas principalmente que elas são também
corpos que brincam. Enquanto cria do pensamento-corpo, a tradição em si é dotada de uma
corporalidade imanente. Não só os rituais associados aos aruanãs e Hetohoky são tykydisi,
mas também pintar o corpo, fazer kòmaryrà (tatuagem facial circular), cortar o cabelo,

40
É interessante que, para os Apinayé, embora haja uma oposição entre nome e substância, “o sangue é a
alma” (Da Matta, 1976:86), e esta, “imagem física e social da pessoa” (1976:90), vai embora quando o
sangue ou energia vital de uma pessoa acaba. No caso Bororo, embora os nomes/almas Aroe sejam
considerados como entidades puramente lógicas e abstratas por Crocker (1979, 1985), é dito que de tudo que
existe no mundo, inclusive animais, plantas, mitos, músicas e pessoas, possuem um nome/alma. Mitos,
músicas, animais e plantas são, de algum modo, “humanizados”, assim como entre os Javaé.

415
enfeitar o corpo, falar inyrybè (“língua de iny”) etc. Os “costumes antigos” são “juhu
(antigos) tykydisina (lugar das brincadeiras do corpo)” ou juhu bèdè nykynyna. É
interessante notar que bèdè, a palavra para “mundo”, “espaço” ou “tempo”, aparece aqui
novamente associada ao conceito de tradições ou leis humanas, reforçando a idéia de que o
“mundo” e sua dimensão espaço-temporal não existem separados das relações sociais entre
os homens. Os “costumes dos brancos” (Tori tykydisina) entre os Javaé são assistir
televisão, usar roupas industrializadas, comer a comida do branco, jogar futebol, fazer
festas como as dos brancos etc 41 .
Parece não existir substratos da realidade não corpóreos. Não apenas seus aspectos
mais visíveis e concretos, como os planetas, os animais ou as plantas são percebidos como
corpos humanos, mas também aquilo que para nós pertence ao reino do invisível ou do
imaginário. Como a carne que cria filhos é a mesma que cria pensamentos, conceitos,
idéias etc, não havendo separação entre um corpo que produz matéria e uma mente/alma
que produz conceitos, todas as criações humanas são uma espécie de “filhos corpóreos”. A
representação da realidade é tão concreta quanto a realidade representada. Tanto as
criações conceituais quanto as substanciais, os filhos concretos, são igualmente “filhos” do
mesmo corpo, constituídos da mesma matéria que os originou, e por isso dotados de
corpos, pênis e barrigas, ainda que invisíveis em alguns casos.

5.7. Até os espíritos são corpos

Resta ainda falar de uma dimensão da realidade que no Ocidente é considerada


como inexistente, para os materialistas mais ortodoxos, ou extra-corpórea ou anti-matéria
para aqueles que acreditam na vida após a morte: aquela pertinente à porção da pessoa que
sobrevive à morte do corpo, as “almas” 42 , “duplos”, “fantasmas”, “espíritos” etc, que se
eternizam e se separam dos corpos, e que para muitos povos são de uma natureza
essencialmente diferente/oposta da matéria. Os Javaé possuem vários conceitos para esses
diferentes estados da pessoa que sobrevivem após a morte, como kuni, tykytyby, worosy, ou
41
Viveiros de Castro (2002h:445, grifos do autor) conclui que “nos mundos relacionais indígenas, o coletivo
é efetivamente algo orgânico, ou melhor, corporal”, como “um ente orgânico ou vivo, um corpo formado de
corpos, não de mentes ou consciências: corpos extraídos de outros corpos, corpos absorvidos de outros
corpos, corpos transformados em outros corpos”. O autor fala de uma “imaginação corporal do coletivo”.
42
Aqui em um terceiro sentido, diferente dos dois anteriores.

416
para os seres que são desde sempre imortais, como os aruanãs, aõni e heróis
transformadores. Entretanto, como veremos aqui, nenhum desses conceitos tem o sentido
de princípio imaterial oposto ao corpo concreto, a clássica oposição entre corpo e alma, o
que é muito parecido ao conceito de “fisicalidade” que Guimarães (2005) propõe a respeito
da constituição da pessoa e sua relação com as práticas xamanísticas entre os Sanumá,
subgrupo Yanomami.
Como já foi apresentado antes (Rodrigues, 1993), todo ser vivo tem um tykytyhy
(“pele de verdade”) visível e um tykytyby (“pele velha”) invisível. Este último conceito, o
único registrado na literatura entre os Karajá, foi traduzido do mesmo modo por Donahue
(1982) e Pétesch (2000). Já foi dito que a palavra tyky é tanto “pele” como “corpo”,
podendo ser usada como “invólucro”, “casca” ou “roupa”, de modo que tykytyhy e tykytyby
podem significar também “corpo de verdade” ou “corpo velho”. Há uma tentação imediata
em se traduzir tykytyhy e tykytyby como “corpo” e “alma”, uma vez que a pele de verdade é
“nós mesmos, agora” (Rodrigues, 1993:83), a imagem visível, palpável e mortal, o que
inclui o corpo físico, enquanto a pele velha é aquela porção invisível e imortal que só o
xamã vê e que é por ele trazida para reviver entre os vivos. As pessoas, inclusive as
crianças, costumam saber a procedência de sua pele velha, se vem do Céu ou do Fundo das
Águas, por exemplo, pois os humanos que já morreram e vivem nos outros níveis cósmicos
estão na forma de “pele velha”, a qual pode voltar para o nível terrestre ou não.
Entretanto, “a pele velha tem fígado, coração e todos os órgãos internos, mas só o
xamã pode ver. Não só os traços físicos, mas qualidades como ‘temperamento’, ‘humor’ ou
‘gênio’ podem ser reconhecidas em uma criança como sendo de alguém que já morreu”
(Rodrigues, 1993:82). Por outro lado, a pele de verdade é traduzida pelos próprios Javaé
como “alma” ou “espírito”. Assim, “tanto a pele velha quanto a pele de verdade têm
aspectos ‘materiais’ e ‘imateriais’, não cabendo aqui aplicar o clássico par corpo e alma.
Apesar da ‘materialidade’ aparente da noção de ‘pele de verdade’, os Javaé insistem em
traduzir essa palavra por espírito ou alma, assim como a pele velha também é traduzida por
espírito ou alma (...)” (1993:83-84). Embora esse não tenha sido um tema aprofundado
antes, já havia, portanto, indícios da inadequação da oposição entre corpo e alma, o que
também é sugerido por Donahue (1982) para os Karajá, embora no sentido de uma não
separação radical entre ambos. Toral (1992:144), por sua vez, considera o corpo como uma
“casca” ocupada por diversos tyytyby, que o autor traduz como “espírito” e que teria

417
consistência imaterial, dentro da idéia geral de que os seres do cosmos existem “sob muitas
formas”.
Depois dos novos dados coletados e agora apresentados aqui, creio que seria mais
exato traduzir os conceitos de tykytyhy e tykytyby como “corpo de verdade” e “corpo
velho”, uma vez que tyky, nessas expressões, não se refere apenas à dimensão superficial
da pele, mas ao corpo como um todo. E apesar dos próprios Javaé traduzirem ambos os
conceitos como “alma” ou “espírito”, na falta de palavras do Português mais apropriadas,
creio que nenhuma das duas é correta, uma vez que são conceitos ocidentais para aquilo
que o sujeito tem de imaterial, em vida ou após a morte, o que não é o caso dos conceitos
Javaé. Essa tradução equivocada, aliada à minha ingenuidade, na época, ao projetar a nossa
divisão entre corpo e alma, ou matéria e não-matéria, sobre os conceitos Javaé, fizeram
com que eu insistisse nos “aspectos imateriais” (Rodrigues, 1993) do conceito de pele
velha 43 .
Mesmo que a própria palavra, por si só, fosse bastante explícita quanto ao seu
conteúdo corpóreo, foi inevitável imaginar que essa porção invisível e que perdura após a
morte fosse em parte imaterial. Entretanto, como uma análise mais aprofundada e novos
dados mostram, tanto o corpo velho ou invisível quanto o de verdade ou visível são
igualmente “corpos”, uma vez que são dotados dos órgãos e todo o resto que constitui a
sua materialidade. É preciso lembrar que, entre os Javaé, assim como entre os Sanumá
(Guimarães, 2005), o critério da visibilidade não é o que define a materialidade ou não de
algo, uma vez que músicas, nomes e conceitos em geral, por exemplo, apesar de invisíveis,
mesmo assim são considerados como corpos. Assim, aquilo que é visível apenas aos olhos
do xamã, como o corpo velho, não é necessariamente não corpóreo.
Partindo dessa tradução equivocada, a relação dos homens com as peles/corpos
velhos dos aruanãs (irasò tykytyby) trazidas pelos xamãs foi considerada como de
“incorporação” (Rodrigues, 1993:201), no sentido clássico das incorporações de
“espíritos”, em que estes últimos “entram” nos corpos 44 . Porém, quando analisamos os
conceitos usados pelos Javaé para expressar a relação entre os homens e os corpos velhos
dos aruanãs e outros personagens cósmicos, percebemos que não se trata de um corpo

43
Um outro equívoco, desta vez só meu, foi considerar em Rodrigues (1993) que tyky pudesse ser a versão
feminina (com k) de tyy (vagina), o que foi definitivamente descartado com o aprofundamento da pesquisa.
Não existe a palavra tyy com k, uma suposta versão feminina, nem a palavra tyky sem k. Tyy é vagina e tyky é
pele ou corpo.
44
Como Crocker (1979, 1985), por exemplo, refere-se à relação entre os homens Bororo e os Aroe dos
mortos. Este também é o sentido geral nas etnografias sobre os Karajá.

418
mascarado “incorporar um espírito”. Tanto no caso dos aruanãs, dos aõni, dos worosy do
Hetohoky, como no dos vários tipos de estrangeiros mascarados, os Javaé dizem que os
“corpos velhos” (tykytyby) que vêm trazidos pelos xamãs são o tyky (pele/corpo) da pessoa
que vai “usá-lo” aqui no nível terrestre. No caso do Hetohoky, cada homem “usa” o mesmo
tyky em todos os rituais de iniciação, ou seja, é sempre a mesma pessoa que tende a se
transformar no Wabe worosy, no Kurisirisè worosy ou no Wamybeju worosy, por exemplo.
Aquele que o condutor do ritual escolhe para “usar o corpo” de um worosy deverá
permanecer como tal em todos os rituais, até quando puder.
Pétesch (2000:69) argumenta que “não existe na língua karajá um termo específico
para designar a máscara”. Cada participante do ritual de iniciação ou da Dança dos
Aruanãs Javaé, entretanto, refere-se ao ser do qual “usa o corpo” como watyky ou waumy,
literalmente “meu corpo”. As máscaras e enfeites que os homens usam são ityky ou iumy,
“corpo deles”, a materialização visível do outro corpo que é usado nos rituais. As máscaras
dos aruanãs (irasò) também podem ser chamadas de irasòtyky (“corpo/pele do aruanã”) ou
irasòky (“carne dos aruanãs”), simplesmente. Os adornos não são apenas “roupa” ou
“invólucro”, alguns dos significados da palavra tyky, pois os Javaé dizem que as
máscaras/enfeites “vêm trazendo” o corpo velho dos outros níveis cósmicos, no sentido de
que a máscara é o corpo do “outro” tornado visível. Note-se que tyky aqui tem o sentido de
“corpo”, e não meramente de “pele”, porque se utiliza igualmente a expressão waumy, que
significa corpo em sua totalidade, como já foi apresentado antes.
Assim, o Wabe worosy ou o aruanã chamado Ijakuhi não são “espíritos que entram”
nos corpos dos homens terrestres, mas são um segundo “corpo” (tyky) do humano social
que se transforma em Wabe ou Ijakuhi ao usar as máscaras e enfeites respectivos durante
os rituais. Não são, como se sabe, o “corpo de verdade”, mas um “corpo velho”, que aqui
parece ter o sentido de “mais antigo”, pois é em geral um corpo que sempre existiu,
imortal, ao contrário do corpo de verdade perecível dos humanos mortais. Afinal, tykytyby
também pode ser traduzido, literalmente, como “pai (tyby) do corpo (tyky)”, o que parece
ter o sentido de “o corpo original” (mais antigo), uma vez que é dos pais a substância
original de que são feitos os corpos. De fato, os corpos originais – antes dos humanos
decidirem se relacionar fisicamente – eram corpos imortais e invisíveis.
É inegável que existe uma dualidade entre os humanos sociais: todos eles têm um
corpo perecível (“corpo de verdade”) e, ao mesmo tempo, uma porção de si que é eterna e
invisível, tradicionalmente associada ao nosso conceito de “alma” imaterial. A grande

419
questão aqui é que essa porção eterna do sujeito humano não é um espírito ou alma
desencarnada que se opõe ao corpo de verdade, como na dicotomia corpo e alma, mas
apenas um outro tipo de corpo, também dotado de rins, coração, fígado etc, mas visível só
aos xamãs. Esse corpo velho invisível pode ser tanto aquele que permanece após a morte,
seguindo para lugares diferentes e podendo voltar para o nível terrestre na forma de uma
outra pessoa (junto a um outro “corpo de verdade”), como aquela parte do corpo dos
aruanãs e worosy eternos que os homens “usam” em seus rituais terrestres.
A expressão que os Javaé traduzem como “ressurreição” (ixitykyrasa) literalmente
significa “trocar de pele/corpo”. No mito de Tanyxiwè há um episódio em que ele pergunta
ao Urubu-Rei (Rararesa) o segredo da vida eterna. Rararesa responde, mas só Tanyxiwè e
alguns animais, como as cobras, camaleões e algumas aves, além das árvores, escutam. Por
isso eles “trocam de pele/corpo” periodicamente, ao contrário dos humanos terrestres que
não sabem trocar de corpo e por isso morrem. A vida eterna não é concebida como a
continuidade de um espírito eterno, mas como um corpo que se renova sempre, porque não
perde substâncias, ou como uma troca de um corpo perecível por um corpo originalmente
intacto 45 . Em sua análise sobre dois mitos Karajá a respeito da origem da “vida breve”
(cujas versões Javaé foram apresentadas aqui), Lévi-Strauss (1991:149-161) observa que
há uma inversão estrutural associada ao código auditivo: no primeiro mito, há um
movimento de subida e a perda da imortalidade por se ouvir um som (ascensão de “Kaboi”
– ou Koboi para os Javaé – por causa do canto de um pássaro); no segundo, há um
movimento de descida (do Urubu-Rei para o nível terrestre) e não se alcança a
imortalidade por não se ouvir um som (o segredo da imortalidade ou juventude eterna).
Voltando à cisão mítica primordial entre corpos fechados e corpos abertos, ficamos
sabendo que aqueles que não passaram pela experiência da morte, como os aruanãs ou os
heróis transformadores, permaneceram ou “foram de corpo (umy) inteiro” (taumydi rare)
para os níveis subaquático e celeste. A expressão significa que eles não experimentaram a
separação entre um corpo que se torna perecível e um corpo que permanece eterno,
vivendo até hoje com seus corpos originais intactos. Ou seja, não se refere aos seres
imortais como espíritos etéreos e desencarnados, mas antes de tudo como “corpos”
íntegros e fechados porque não exteriorizam substâncias. Os heróis experimentaram o sexo
aqui, perdendo substâncias, mas tiveram a oportunidade de ascender ao Céu de corpo

45
Viveiros de Castro (2002c:205) lembra que “o tema da troca de pele como signo ou instrumento de
imortalidade é central na cosmologia de vários grupos tupi contemporâneos”, assim como entre outros povos
não Tupi.

420
intacto, sem passar pelos processos de degeneração da carne, porque aquele ainda era um
tempo mágico, em que a morte estava apenas começando a fazer parte da realidade
humana. Dos worosy que comparecem ao Hetohoky, diz-se que no nível subaquático eles
têm dè (carne), ra (cabeça), ti (osso), ky (matéria), enfim, um corpo plenamente material
como o dos humanos mortais, embora seja imortal e invisível. Os corpos fechados e
mágicos são, portanto, corpos que não se dividiram, enquanto os corpos abertos e sociais
são corpos divididos.
Mas o que provocou a divisão dos corpos sociais? A fusão com o outro, a mistura
de substâncias que fez surgir a diferença entre os dois que se fundiram em um terceiro ser,
até então inexistente. Em outras palavras, a procriação. Ao misturar suas substâncias com
as de outro corpo, os corpos originais exteriorizaram as substâncias contidas produzindo
um novo corpo, o primogênito que abre os corpos dos pais. O milagre da criação de uma
nova vida é também o início da morte dos corpos originais (pai e mãe), pois a fabricação
de um filho pressupõe a abertura e a divisão do corpo de seus pais em dois: após o
primogênito, as substâncias do corpo de um homem ou de uma mulher, que são uma
extensão de seus corpos, estão em dois lugares: em seu próprio corpo e no do filho que
carrega em si dois tipos de substâncias misturadas, sendo ao mesmo tempo a continuação e
a mudança da substância de cada doador original.
A procriação é, portanto, o fenômeno que instaura não só a diferença entre os
corpos do pai e da mãe, como já foi mostrado antes, mas também a divisão interna do
corpo daquele que procria. A criação de uma nova vida é a transformação de um corpo
original e uno em dois corpos diferentes e separados. Para o filho nascer, o pai ou a mãe
precisam perder algo de si, uma vez que a exteriorização de suas substâncias é a separação
de uma porção do corpo original. O corpo de cada filho, ainda que produto de uma mistura
com outras substâncias, é o próprio corpo do pai ou da mãe separado da fonte original. É
essa divisão interna do corpo, originada no paradoxo da criação e morte, que estabelece a
diferença entre corpos fechados e íntegros e corpos abertos e divididos.
A dualidade dos corpos abertos e sociais, divididos entre um corpo perecível e um
corpo eterno, remete a essa cisão mítica inicial: o corpo eterno é o corpo velho e fechado,
aquele que existia antes das fusões e separações; o corpo perecível é o corpo de verdade e
aberto, aquele que os humanos sociais passaram a possuir depois da procriação. A morte
começa ainda em vida, quando o corpo intacto divide-se e fabrica um filho, o próprio
corpo tornado um outro, separado de si. Tal separação corresponde à cisão entre corpo

421
velho e corpo de verdade, entre aquela parte do sujeito que permanece eterna e aquela que
começa a morrer após a procriação. Sendo assim, a divisão pertinente não é entre uma
alma e um corpo, mas entre um corpo fechado e uno e um corpo aberto e dividido 46 .
Quando a pessoa morre, o corpo de verdade acaba, mas o corpo velho continua
existindo, seja na forma de kuni, em um primeiro momento, worosy, no cemitério (wabèdè)
invisível, ou tykytyby nos níveis subaquático e celeste. Os kuni dos ensangüentados não são
espíritos errantes, mas corpos abertos que ficam sangrando sem parar. Enquanto corpos, os
kuni e worosy têm fome e sede, sentem frio ou calor, saudade, dores físicas e emocionais,
não estando imunes às sensações físicas. Os aruanãs nunca se dividiram e permanecem
com o corpo original intacto em seus mundos de origem, embora toda a Dança dos
Aruanãs seja baseada no fato de que os homens mascarados “usam” seus corpos velhos
(tykytyby) aqui, os quais não são os corpos originais e imortais, em razão da poluição
terrestre ameaçadora. Embora os corpos dos aruanãs não conheçam a procriação e a morte,
não tendo se dividido em dois, há uma diferença implícita entre o corpo fechado imortal
que permanece no Fundo das Águas ou no Céu e o corpo velho que vem ao nível terrestre
mortal.
A imortalidade e o poder mágico curador dos corpos unos e fechados seria uma
espécie de vitalidade extraordinária que deriva da ausência de perdas energéticas, da não
divisão de si próprio, pois quem não procria deixa de misturar e exteriorizar substâncias.
Um corpo cujas substâncias estão perpetuamente contidas é um corpo que não perde seu
poder de renovação ou “ressurreição” (ixitykyrasa), porque não perde nada de si próprio
para produzir um outro corpo. O que é diferente da vitalidade mundana e paradoxalmente
mortal dos corpos que procriam e dão início à própria morte ao se dividir e perder parte de
si próprios. Em outras palavras, a imortalidade não é um estado que se opõe à
materialidade do corpo, mas é uma qualidade essencialmente corporal, definida como uma
capacidade de concentração energética absoluta. Pode-se dizer, portanto, que não existe

46
Em uma tentativa recente de repensar o dualismo corpo e alma, Fausto (2002:33) lembra que entre os
povos indígenas não há um dualismo do tipo simples, “seja porque as almas são múltiplas, seja porque o
corpo não é uma unidade discreta, seja porque a alma tem corpo e certas partes do corpo têm mais alma do
que outras, ou ainda porque o corpo não contém nenhuma alma dentro de si, sendo a presença da alma a
manifestação da ausência do corpo”. No caso de grupos em que o ato predatório é socialmente significativo,
ao invés do par corpo e alma, o autor propõe o contraste, interno à pessoa, entre parte-predador e parte-presa,
ou entre parte-ativa e parte-passiva do sujeito.

422
entre os Javaé o conceito de imaterialidade ou espiritualidade pura, dissociada de qualquer
noção de corporalidade. Até os “espíritos” são corpos, ainda que “corpos contidos” 47 .
Ao invés do contraste entre alma e corpo, tem-se o contraste entre tipos diferentes
de corpos, uns fechados, mágicos, unos e invisíveis, outros abertos, sociais, divididos e
visíveis. Mas todos são, em algum grau, corpos. Não se trata, portanto, de inverter ou
recombinar o contraste entre natureza (corpos) e cultura (espíritos/sujeitos), opondo o
“multiculturalismo” ocidental (unicidade na natureza e multiplicidade das culturas) ao
“multinaturalismo” ameríndio (unidade do espírito e diversidade dos corpos), como faz
Viveiros de Castro (2002g:349), para quem os ameríndios “imaginam uma continuidade
metafísica e uma descontinuidade física entre os seres do cosmos” (2002g:382). Partindo
do pressuposto de que “os animais são gente”, existiria uma idéia geral de que “a forma
manifesta de cada espécie é um envoltório (uma ‘roupa’) a esconder uma forma interna
humana”:

“(...) Essa forma interna é o espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade


formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em um
esquema corporal humano oculto sob a máscara animal. Teríamos então, à primeira
vista, uma distinção entre uma essência antropomorfa de tipo espiritual, comum aos
seres animados, e uma aparência corporal variável, característica de cada espécie, mas
que não seria um atributo fixo, e sim uma roupa trocável e descartável” (Viveiros de
Castro, 2002g:351)

O autor lembra que não se trata da oposição entre uma essência espiritual
verdadeira e uma aparência corporal inerte e falsa, uma vez que “trata-se menos de o corpo
ser uma roupa que de uma roupa ser um corpo” (grifo do autor, Viveiros de Castro,
2002g:393), pois “vestir uma roupa-máscara é menos ocultar uma essência humana sob
uma aparência animal que ativar os poderes de um corpo outro”. Essa é uma concepção
muito parecida com a dos Javaé, como já foi mostrado, a de que as máscaras ou os enfeites
rituais sagrados são um outro corpo que se usa. Entretanto, o contraste Javaé não é entre
uma “essência antropomorfa de tipo espiritual” e uma “aparência corporal variável”, mas
entre tipos de corpos humanizados diferentes. Não é uma mera inversão, ainda que

47
É justamente a qualidade de corpo contido, cujas substâncias não se exteriorizam através da vida sexual,
que confere aos aruanãs a “energia” (Pétesch, 2000:79) de crescimento e vitalidade transmitida por eles aos
humanos em alguns momentos, como no fim do ciclo anual, quando abraçam e levantam no ar crianças em
fase de crescimento (ver Rodrigues, 1993). Não se sustenta, pois, no caso Javaé, a idéia de que os aruanãs
“fecundam” suas parceiras de dança e têm com elas uma relação de afinidade, defendida por Pétesch (2000)
em relação aos Karajá.

423
ricamente elaborada, do nosso par conceitual corpo e alma, natureza e cultura. A essência
humana, que no caso dos Javaé não é inerente apenas aos animais, mas abrange toda
manifestação da realidade, não é espiritual ou imaterial, mas igualmente corpórea, uma vez
que não se concebe nenhuma dimensão do sujeito humano separada do corpo que lhe dá
forma. O sujeito, seja enquanto consciência ou princípio imortal, é imanente à matéria que
constitui os corpos e a realidade maior.
A sociedade (tanto os “corpos conceituais” como os corpos de seus representantes
humanos) e a própria realidade física espaço-temporal do mundo dos humanos sociais, o
que proporciona as condições materiais de existência, são produtos das relações físicas e
sociais assimétricas entre sujeitos/corpos. O trabalho que um genro realiza para pagar ao
sogro é uma intervenção humana que cria não só a realidade social, pois a sociedade é um
produto dessas relações, como também a realidade física ao redor, como no mito de
Tanyxiwè. Assim, a reprodução prática da sociedade, seja enquanto reprodução física dos
seres humanos ou enquanto reprodução das condições materiais de existência, é
inseparável da própria representação que os humanos sociais fazem de si. Não existem
consciências ou mentes independentes do corpo do qual fazem parte e nada do que
produzem é dissociado da reprodução prática da existência, principalmente porque as
representações da realidade são também concebidas como filhotes corpóreos da
consciência-corpo que as produziu.

424
Capítulo 6

O meio como o lugar da História

6.1. Uma teoria do poder

A mitologia Javaé contém uma teoria do poder implícita, cujos princípios partem
das concepções nativas a respeito da corporalidade. Como a subjetividade não está
separada dos corpos, então corpos mais controlados correspondem igualmente a sujeitos
mais controlados e, portanto, dignos de assumir o controle social ou o poder. Como já foi
observado, os discursos mitológico e cosmológico, com repercussões para as práticas
sociais, partem de um ponto de vista evidentemente masculino e concebem o corpo
masculino como mais controlado do que o corpo feminino, pois este último é um corpo do
qual flui mais substâncias (menstruação, os filhos) e, assim, transforma-se mais.
Um maior autocontrole físico, associado a uma menor poluição e menor capacidade
de se transformar, é uma característica dos corpos dos homens, que por isso acham-se no
direito de manter as mulheres à distância da Casa dos Homens, onde eles se identificam
com o estatismo e o hermetismo dos corpos mágicos. Partindo do pressuposto de que a
carne (ky) é o locus também da subjetividade, o que inclui a consciência, os pensamentos,
os sentimentos e os comportamentos, veremos que, para os Javaé, sujeitos de corpos mais
controlados são também sujeitos de pensamentos e sentimentos mais controlados em favor
da coletividade; enquanto sujeitos de corpos menos controlados são sujeitos cujas idéias e
emoções estão a serviço unicamente de seus próprios desejos, o que é interpretado como
uma falta de autocontrole.
Essa relação intrínseca entre a qualidade do corpo e a qualidade da subjetividade é
abundantemente explícita na mitologia. Em praticamente todos os fragmentos míticos em
que as mulheres são personagens centrais, estas são apresentadas como seres egoístas,
individualistas, desagregadores, causadores de conflitos e cuja única preocupação é a
realização de seus desejos pessoais, em especial os sexuais, em detrimento da coletividade,
tema que já foi apontado antes (Rodrigues, 1993), embora sem relação com a
corporalidade, como é feito agora. De modo inverso, os homens são aqueles que sempre se

425
sacrificam ou pelo menos agem em favor da comunidade ou da humanidade em geral,
contrabalançando as atitudes destrutivas das mulheres. Vejamos os exemplos da mitologia
já apresentada:

• No grande episódio da conquista do Sol, é a sogra quem cobra de Tanyxiwè pelos


serviços sexuais de Myreikò; e é ele quem se sacrifica pela humanidade, criando a
lei do pagamento da vagina ao conquistar o Sol e todos os outros bens para os seres
humanos.

• No mito da criação do Kwely Ahu, o grande lago que salvou o mundo da seca e deu
origem aos grandes rios da Ilha do Bananal, Bòròrèkuni é a esposa egoísta (também
aõni) que esconde o pote gigante com água de seu marido, enquanto Kwely é o
marido enganado que salva a humanidade ao quebrar o pote e encontrar a água para
todos.

• No mito dos irmãos Ijanakatu é a mãe deles, Wajamiri, pensando apenas em si


própria, que pratica pela primeira vez o adultério, ao trair o pai de seus filhos com
Ijewe, aquele cujo imenso pênis seria depois conquistado por Tanyxiwè para a
humanidade. Junto com o amante, ela prepara a armadilha em que o seu marido
morre. Como conseqüência, os irmãos Ijanakatu transformaram-se nos “defensores
de vaginas” das irmãs, que desde então passaram a seguir o exemplo da mãe.
Enquanto a atitude da mãe desagrega a família, a atitude dos Ijanakatu é
interpretada como algo em favor da coletividade, pois é através do preço pago pelas
“vaginas das irmãs” que toda a comunidade se alimenta. Todos os homens, desde
então, são “defensores das vaginas das irmãs”, e todas mulheres são libidinosas e
potencialmente traidoras/desagregadoras.

• Em outro episódio importante dos irmãos Ijanakatu, eles são traídos pelas esposas,
as filhas do Sol, após o imenso sacrifício que fizeram para se casar com elas,
submetendo-se a todo tipo de provas difíceis. Foram eles que mataram as piranhas
dos úteros das mulheres, possibilitando aos homens em geral que tivessem relações
sexuais com suas mulheres sem serem castrados. A partir desse episódio, eles se
tornam também os “defensores das vaginas das esposas”, como todos os maridos
têm que ser.

• No episódio das mulheres Anirahu, toda a coletividade feminina é infiel e trai os


maridos respectivos com o amante jacaré, com o único objetivo de realizar seus
desejos sexuais.Elas entregam a melhor parte do pequi para o amante, dando aos
maridos apenas as cascas. Após a morte do amante, metade delas cria uma aldeia só
de mulheres, onde não têm nenhuma obrigação social com maridos ou filhos e cujo
único objetivo é a obtenção do prazer sexual pessoal.

• Em muitos episódios, as mulheres são aõni canibais e maléficos, como


Halòkòèlahi, a velha bruxa que matou Myreikò, a esposa de Tanyxiwè, para comer
a sua carne: o seu desejo de comer foi mais importante que a ética de bem receber
as visitas.

426
Há vários outros fragmentos que não foram transcritos antes e que tocam no mesmo
tema da imoralidade feminina intrínseca. Na maior parte deles, as mulheres são aõni
canibais que ameaçam destruir as comunidades onde aparecem, embora sob a aparência
humana normal. Apresento alguns deles resumidamente:

• Uma neta esconde o peixe walokòtòbò de seu próprio avô. Com raiva, ele faz um
feitiço e a neta engravida magicamente. Envergonhada, a família dela (pais e
irmãos) muda de aldeia. O avô resolve então cuidar da moça, de um irmão que
ficou e do sobrinho-neto que nasceu. A mulher é egoísta e esconde a comida,
enquanto o avô é benevolente e passa a cuidar dela e do filho.

• Em um outro episódio, as mulheres também são aõni e não têm nenhum sentimento
de amor pela própria mãe: os homens de Marani Hãwa acharam um ovo no mato,
do qual nasceu uma menina. Quando ela virou hirari (pré-adolescente), ela pediu
para ficar sentada em cima de um jirau para esperar a mãe que estava por vir. Ela
era aõni, com olhos bem pequenos, e sabia que sua mãe, chamada Hanykywè, e que
também era um aõni, apareceria. A menina pediu para o povo local coletar muito
mel para dar para Hanykywè assim que ela chegasse. A mãe chegou à noite e
morreu depois de tanto comer mel. A menina matou a própria mãe com medo dela
matar o povo da aldeia e a si própria. Tempos depois, com medo, o povo local
matou a menina, porque ela era aõni também.

• Um fragmento já apresentado antes (Rodrigues, 1993) funde tanto o tema da mãe


egoísta, capaz de negar comida aos próprios filhos, quanto o da filha que não tem
remorso em consentir com a morte da própria mãe: uma moça chamada Hatohobè
era filha de Halòkòèni (“falsa onça”), uma mulher que tinha unhas muito grandes e
que precisavam sempre ser aparadas, característica herdada pela filha. Quando
ainda bebê, o leite de sua mãe acabou e Hatohobè foi entregue a uma mãe de
criação, que a alimentava com o caldo iweru. A filha tinha medo que a mãe
chegasse e comesse todo o iweru, pois ela sabia que a mãe era um aõni, até que um
dia isso aconteceu. A filha pediu então à mãe que a amamentasse, pois estava com
fome, mas a mãe se negou. Enquanto bebia o caldo da filha, os homens mataram
Halokòèni, sob o olhar de aprovação da própria filha, que também cresceu como
um aõni.

• Em nome do seu desejo sexual, uma mulher aõni tenta trair a sua própria neta com
o marido dela: uma moça muito jovem casa de modo harabiè (casamento
tradicional arranjado) com um rapaz. Ela era muito nova e apenas conversava com
ele à noite, na esteira, depois que ele chegava da pescaria ou da roça, não tendo
relações sexuais ainda. A avó da menina achava o rapaz bonito e sentia atração
sexual por ele. Um dia, a avó chama a neta para tirar uma fruta do mato com ela.
Chegando ao local, a menina tira seus enfeites pessoais e sobe na árvore. A avó,
que era aõni, faz com que a árvore fique muito alta, magicamente, impedindo a
neta de descer. Ela então coloca os enfeites da moça e transforma-se em um corpo
jovem, embora o rosto continue o mesmo. A avó passa o dia fingindo que era a
menina e, à noite, ao se deitar com o rapaz, não consegue esperar para fazer sexo.
Como ela é velha, ela tem muito sono e dorme logo a seguir, roncando muito. A

427
farsa é descoberta e a avó é xingada pela própria filha, que é a sogra do rapaz. Eles
buscam a menina no mato.

• Uma mulher aõni canibal tenta comer o próprio genro: no local conhecido como
“Barra do Rio Tapirapé”, havia uma velha aõni que se transformava em onça para
matar e devorar os homens que iam pescar em um lago. Um dia seu próprio genro
disse que ia pescar e que ia matar a onça. Ela não acreditou que ele fosse capaz de
matar a onça e atacou-o de frente, sendo flechada por ele. A velha voltou de canoa,
ferida e transformada em gente, para a aldeia. Ela morreu ao chegar e o genro
reconheceu que ela era a onça, pois ele era xamã.

• As mulheres são bonitas e desejáveis, mas aõni perigosos e canibais; os homens, ao


contrário, são defensores da comunidade e da família: no tempo em que o povo
Wariwari ainda não havia sido exterminado pelos Wèrè, apareceu um aõni na
aldeia Wariwari chamado Sibòsibò. Sanawe flecha o aõni e os homens correm atrás
dele até o Lago Sòhoky. Descobrem que é uma linda e desejável mulher, mas sem
olhos, sem dentes e com unhas afiadas. Temerosos, devolvem-na para o Fundo das
Águas, de onde veio. Um pouco depois, aparece uma outra mulher aõni na aldeia.
Hanykywè era bonita e comia o fígado das pessoas. Sanawe esconde sua mãe de
Hanykywè e descobre que a vagina é o ponto frágil da mulher aõni. Ele então flecha
Hanykywè em seu ponto frágil, matando-a.

A temática da sexualidade feminina exacerbada ou das mulheres insatisfeitas com


seus homens, dotadas de desejos incontroláveis e capazes de tudo para satisfazê-los (trair,
matar, masturbar-se, fazer sexo com crianças, cometer o incesto etc) é acentuada nas letras
das músicas dos aruanãs, expostas e analisadas antes (Rodrigues, 1993), em que se tem
quase sempre o ponto de vista de um homem falando com ou sobre a sua amante/esposa
(as primas cruzadas distantes, as lery). Há, por fim, um mito de especial importância, o
qual apresento aqui em uma versão mais completa que a já apresentada antes (Rodrigues,
1993), que estabelece a relação paradigmática entre os homens mais controlados e os
aruanãs, de um lado, e as mulheres menos controladas e os aõni, de outro. É a famosa
história de incesto (ikèsènabina) 1 entre um irmão e uma irmã, ocorrida na mítica aldeia de
Kanõanõ, do povo Torohoni, que seria depois devastada pelos primeiros bandeirantes. O
mito Bororo (Crocker, 1985) sobre o contrato inicial entre os Bope e os humanos é muito
parecido, em algumas partes, com a história a seguir:

1
Kèsè é “fazer”. Ikèsènawii é “o que foi feito (ikèsèna) de modo correto (wii)”, ou seja, os filhos de
casamentos arranjados entre parceiros das categorias ideais. Ikèsènabina é “o que foi feito de modo errado
(bina)”, os filhos de relacionamentos impróprios, próximos demais.

428
“(...) Essa é a história do Lykyni, que ela (a narradora) está contando. Ela está contando
que essa história aconteceu realmente aqui, em Canoanã mesmo. Na aldeia grande que
tinha naquela época. E Lykyni era daqui, dos Javaé, dos antecedentes deles. A família
da mulher dele tinha ido embora, deixaram Ahana Òbira (o nível terrestre) e desceram
lá para o Berahatxi (Fundo das Águas), bem ali, no Torohoni ryna (lugar das subidas
míticas do povo Torohoni, situado nas pedras que existem no rio, perto da aldeia
Canoanã). Não é ali que saiu um pouco do pessoal? Pois é. A família da mulher entrou
para lá, desceram (de volta), diz que não gostaram daqui. A mulher do Lykyni teve a
idéia: ‘meus parentes foram embora, então eu vou embora também. Aqui é cheio de
doenças’, reclamando da vida aqui. E o Lykyni deixou ir, porque estava fazendo a canoa
dele, aquelas coisas.
Só que em um determinado tempo, não sei o que aconteceu, a irmã dele se
interessou por ele. E por que se interessou? Essa é a pergunta. A mulher dele foi
embora. Teve um tempo que tinha uma mulher entrando no quarto dele e aconteceu o
que acontecia: sexo, é claro. Isso várias vezes, várias noites, vários acontecimentos. Até
que um dia ele teve a idéia de preparar bidina (tinta de jenipapo)... ele não sabia quem
era, essa que é a história. Era de noite, ele não via a cara dela e ela não falava também.
Só fazia e pronto. Teve a idéia de fazer a tinta de jenipapo. Pediu para ela fazer, a irmã
dele, só que ele não sabia que era a irmã dele que estava entrando para (fazer sexo com)
ele. Ele pediu para preparar bidina e ela preparou. Então esperou aquela noite e colocou
bidina mais ou menos perto de onde ele dormia. Quando ela veio, ele pegou bidina e
passou na mão dele. Sacudiu a mão para não ficarem resíduos. Quando aconteceu, ele
pegou na barriga, ombro, peito, essas coisas, e na perna (dela). Na perna, fez uma
marca bem forte mesmo.
Amanheceu, ele tomou banho e estava ansioso para saber quem era realmente. Só
que a surpresa veio antes, na casa dele, porque ele viu que a irmã dele que estava com
aquele sinal. Aí, claro, ele ficou espantado: por que a própria irmã fez isso com ele?!
Com isso, ele ficou muito decepcionado, triste. Foi no mato e achou uma fruta que é
típica daqui, que se encontra em qualquer rio daí, chamada ikòròsarirubu. Lykyni,
como ela falou, era uma pessoa que tinha um dom de feitiçaria. Ele sabia algumas
coisas de feitiço. Então ele transformou essa fruta em um tipo de pássaro e ensinou para
ele a música que ela cantou: ‘xukuru xukuru, você fala que Lykyni namorou com a irmã
dele, pensando que era uma pessoa de fora da família’. Ensinou, para poder o pássaro
cantar. Experimentou e cantou bonitinho que Lykyni estava namorando com a própria
irmã dele, pensando que era uma pessoa estranha.
Como ela falou, era aqui na aldeia. Como a aldeia era grande, ela não sabe onde
que colocou, acho que era ali ou na frente, ou no meio da aldeia. Diz que o Lykyni
ordenou que esse pássaro ficasse lá, pois os homens estavam chegando do riu, da caça.
Então ficou a concentração, as crianças correm, as mulheres dos homens correm para
poder receber os homens, aquelas coisas. Cheio de gente e ele colocou o bicho lá em
cima. Quando os homens chegassem, era para ele cantar. Quando ele cantou, fez o
maior escândalo! Todo mundo ficou surpreso, as mulheres ficaram rindo e falando,
sabe aquelas coisas? Que Lykyni estava namorando a própria irmã dele. Todo mundo
ficou sabendo! Até hoje sabe.
Com isso, Lykyni ficou decepcionado, a aldeia inteira ficou sabendo. Chegou em
casa e falou para Hanabururu, que é a irmã dele: ‘agora você prepara a tinta ... porque
logo você teve essa idéia de incesto”. Explicou que estava ressentido, magoado, essas
coisas. Prepararam o jenipapo e se pintaram os dois, ele e ela. Ele falou que os dois iam
embora para o Berahatxi, aí se pintaram. Primeiro, ele foi cantando. Isso, a aldeia

429
inteira acompanhando, o maior escândalo! Sabe aquelas coisas de se admirar? O povo
se admirando, porque nunca tinha acontecido de uma pessoa, gente, humana, ir para
dentro d’água. Igual ela (a narradora) falou, é uma coisa de escândalo, mas ao mesmo
tempo de admirar, porque foi pela primeira vez. Então ele cantou aquela música, a
primeira música que ela cantou, você lembra? Depois ela diferenciou um pouco. Então
tem uma música só para descer no rio e tem uma música, que ela cantou depois, que é
só para afundar, ‘entrando dentro d’água’. Não tem tradução.
Então desceu, só ele, a outra lá esperando. Isso provocou muita polêmica, porque
foi embora um humano para dentro d’água. Não se morria? Só que (ele) não morreu,
claro! Essa é a polêmica. Aí na segunda veio a irmã dele, cantando aquela música que
ela cantou. Da mesma forma, foi embora. Diz que até hoje estão lá, existentes, no
Berahatxi. Não morreram! Não é coisa de admirar? Viraram irasò (aruanã), os dois.
Meu avô de criação fala que Lykyni está lá até hoje. Diz que é um jovem bonito,
grande, gigante, musculoso, mas é irasò, morando lá até hoje.
(...) A história da irmã dele, Hanabururu, é assim: nas histórias se conta que se
transformou no Leimylò (aõni em forma de sucuri), realmente. E todo mundo viu se
transformar. Só que, na verdade, só os hàri (xamãs) que sabem, ela fugiu um pouco da
regra, não virou Leimylò coisa nenhuma, ela virou irasò! Diz que é linda, que é o irasò
dèbò. Sabe onde mora? Não tem um laguinho que ela (narradora) estava explicando
para nós, atrás das costas dela ali? É lá a casa dela, ela mora lá. E diz que está cheio de
lei (sucuri), realmente, porque desceu para lá, mas como lei. Só que na verdade é irasò.
Por isso que eu estou falando, ela fugiu da regra.” (palavras do tradutor)

Em outras versões, inclusive na ouvida em 1990 (Rodrigues, 1993), a irmã de


Lykyni transforma-se no aõni chamado Leimylò, que vive no Fundo das Águas. Mesmo que
não seja o que acontece nesta versão, a “regra” é essa, como o tradutor deixa claro, ou seja,
mulheres não se transformam em aruanãs, pois são sempre associadas aos aõni. No mito
em questão, a imoralidade feminina é levada ao extremo: em nome do seu desejo sexual,
uma mulher engana e faz sexo com o próprio irmão, tornando inviável a continuação da
própria sociedade. Ao fim, o irmão transforma-se em aruanã e a irmã é associada, ainda
que só nas aparências, segundo essa versão, aos aõni. Segundo a versão Karajá recolhida
por Aytai (1983b), a morte teve início entre os humanos por causa da relação sexual entre
os dois irmãos.
Como se sabe, os aruanãs são os seres mascarados que não exteriorizam nenhum
tipo de substância vital, símbolos do autocontrole e da manutenção do status quo, enquanto
os aõni, sem máscaras e agitados, dotados de órgãos sexuais, são o símbolo dos desejos
agressivos, da destruição das comunidades, do canibalismo, da fome por sangue humano,
do movimento ou da mudança. Como já foi dito, aruanãs e aõni, que têm nas brincadeiras
uma relação simbólica de wèdèdu (o que penetra) e wèdèna (o que é penetrado), a mesma
que existe na prática entre homens e mulheres, seriam modelos extremos da masculinidade

430
e feminilidade, dos que controlam e dos que são relativamente controlados. Afinal, o
autocontrole dos aruanãs, em oposição à movimentação excessiva ou descontrole
ameaçador dos aõni, são as mesmas características que os mitos atribuem aos homens e às
mulheres. E assim como os aõni precisam ser controlados pelos aruanãs e mantidos presos
em cercados, as mulheres precisam ser controladas pelos homens e mantidas à distância.
A narrativa mostra que nesses primeiros tempos de contato inédito com a
alteridade, em que tudo era novidade, não havia nenhum tipo de controle sobre as mulheres
e elas agiam conforme seus desejos, fazendo tudo o que queriam, desordenadamente: umas
cometiam incesto com o próprio irmão, outras escondiam a água da humanidade, outras
ainda matavam os genros, negavam comida ou desejavam a morte dos filhos, traiam os
maridos ou as netas, praticavam o canibalismo, a pedofilia ou destruíam as famílias
incipientes em nome do seu próprio prazer sexual, entre uma série de outros atos
condenáveis. Em outras palavras, o caos estava instalado nesses primeiros tempos em que
a alteridade reinava absoluta, sem nenhum controle efetivo. O surgimento das mulheres
originou os conflitos anteriormente inexistentes: os homens tiveram que se opor a elas e
entre si, defendendo as vaginas das irmãs e esposas em prol do grupo 2 .
A ação masculina é sempre apresentada como um contraponto ordenador a essas
situações de ameaça à continuidade dos grupos que começavam a viver em sociedade. Na
verdade, a “sociedade” é criada não só quando os homens iniciam a vida sexual, mas
também quando instauram as primeiras leis ordenadoras do caos feminino vigente. Em
todos os episódios apresentados, um tema único se repete: a função socialmente
desagregadora das mulheres, em geral egoístas e mesquinhas, em contraste com a atitude
altruísta e generosa masculina de pensar no bem e na continuidade da coletividade em
primeiro lugar. São sempre os homens que matam os aõni (em geral mulheres) que querem
destruir as aldeias; são sempre eles que se sacrificam com atos heróicos que geram
conquistas e leis em favor da coletividade; partem deles as atitudes moralmente aprovadas,
os sentimentos elevados, o cuidado pelo outro, a preocupação com a continuidade da
sociedade; é a condição masculina de “defensores das vaginas” das irmãs e esposas
potencialmente infiéis que fornece a garantia da perpetuação da sociedade através da
relação de aliança entre genros e sogros.

2
Um homem Javaé disse que as mulheres mostram ter consciência do fato de que as mulheres primordiais
são retratadas no mito como essencialmente imorais, mas as mulheres contemporâneas alegam que elas,
agora, não se importam com tal imagem porque são diferentes daquelas mulheres originais.

431
Em suma, os mitos dizem sempre que os homens atuam em prol da continuidade
social, mesmo que isso signifique o sacrifício pessoal, e que as mulheres atuam em
benefício próprio, mesmo que isso signifique a desagregação da coletividade. Quando os
Javaé relatam casos recentes de adultério, por exemplo, que não pertencem à esfera mítica,
atribui-se às mulheres a culpa pelos casos de traição. A palavra que designa o adultério,
hãburibiota, significa “mulher que deixou o seu próprio marido por outro”, não havendo o
correspondente masculino. Trata-se da velha oposição entre ordem e desordem, também
associada ao par aruanã/aõni (ou Aroe/Bope, entre os Bororo, ver Crocker, 1985), mas que
aqui não tem o sentido de cultura e natureza 3 .
São os homens que instauraram as várias leis ordenadoras enumeradas pelos mitos
(em especial o pagamento pela vagina) e os valores morais (o bem coletivo acima do bem
individual), tema comum nas mitologias mundo afora, como conseqüência da desordem
insuportável provocada pelas mulheres quando elas puderam experimentar a liberdade de
realizar todos os seus desejos 4 . Há, de fato, uma correspondência entre os corpos mais
poluidores ou que liberam mais substâncias – o corpo feminino – e uma maior
manifestação ou realização dos desejos humanos, sejam eles sexuais ou não. Afinal, como
já foi apresentado, os desejos, sentimentos, pensamentos, sonhos etc estão fundidos na
matéria (ky) de que é feito o corpo humano, estão dentro da carne. Quanto mais substâncias
saem do corpo, maiores são os desejos da carne e a sua expressão fora dele, de modo que
as mulheres são apresentadas como seres de apetite sexual ou alimentar insaciável nesses
primeiros tempos (assim como os aõni), capazes de tudo para satisfazê-los. Já os homens,
com suas substâncias bem mais contidas, são supostamente também seres com maior
capacidade de contenção e repressão dos próprios desejos (assim como os aruanãs).
A idéia central parece ser: quanto mais substâncias fora do corpo, mais difícil é
conter os desejos que se manifestam junto com elas, uma vez que agora não pertencem
mais ou pelo menos estão mais distantes do doador original. Inversamente, quanto mais

3
Em sua crítica à associação entre a oposição conceitual entre natureza e cultura e o imaginário sobre o
gênero, Strathern (2002:203-204) diz, a respeito dos Hagen, que as “mulheres e o grupo doméstico,
entretanto, simbolizam assuntos que são infra-sociais. Eles representam interesses pessoais e particularistas,
ao contrário do interesse público dos homens. Essa oposição entre indivíduo e social induz ao problema do
controle entre pessoas. Ela usa símbolos masculinos e femininos, mas não uma metáfora sobre natureza e
cultura”.
4
Para Segato (1997:237), “o portador da lei, o juiz – fonte do sentido e das regras para a organização da vida
social –, nessa como em outras sociedades, tem rosto masculino. Trata-se, uma vez mais, da lei fálica da
interdição e da separação. (...) Lacan chama essa lei ou interdição da fusão originária ‘castração’, e ela
representa a transposição, no campo psicanalítico, da proibição do incesto no campo antropológico do
parentesco” (1997:250).

432
substâncias dentro do corpo, mais fácil é conter internamente os desejos, pensamentos ou
emoções a eles associados, pois ainda são partes integrantes do ser. A primeira é uma
situação feminina, a segunda, aquela que caracteriza a masculinidade. Por isso na Terra dos
Ensangüentados, associada à feminilidade e onde os corpos jorram sangue sem parar, a
carência é a tônica dominante (seja de afeto, comida, água, calor etc), pois os
desejos/sangue estão permanentemente fora do corpo e não são jamais satisfeitos, enquanto
no nível celeste, associado à masculinidade e onde os corpos estão fechados, não há
desejos e a satisfação é plena.
Os momentos iniciais após as subidas míticas são concebidos como momentos de
intensa transformação do mundo porque as mulheres estavam agindo louca e
desordenadamente, realizando todos os seus desejos, ao mesmo tempo em que os homens
tentavam contrabalançar o caos instalado criando as leis e os limites que são relativamente
seguidos até hoje. A procriação e a abertura dos corpos que geraram a diferença entre um
corpo mais contido e um que se transforma muito mais também geraram o embate entre
um sujeito masculino mais controlado e mantenedor da ordem, de um lado, e um sujeito
feminino intrinsecamente menos controlado e, por isso, propiciador da desordem 5 . Corpos
que exteriorizam mais substâncias, dotados de menos controle sobre os seus processos
degenerativos, são também corpos de subjetividades menos controladas, que agem apenas
em proveito próprio. As mulheres são desagregadoras, traidoras ou imorais, promovendo o
caos dentro da coletividade, porque seus corpos não se contêm.
Uma maior degeneração da subjetividade – a imoralidade – é fruto de uma maior
capacidade degenerativa da carne. Ou uma maior poluição física é também uma maior
poluição moral 6 . A capacidade de ceder em favor do outro ou de priorizar o bem coletivo
em detrimento da satisfação pessoal – o que no fundo é uma capacidade maior de
autocontrole – é a base do conceito que os homens Javaé têm sobre si próprios como
moralmente superiores em relação às mulheres. Por outro lado, o sacrifício pessoal que

5
Entre os Tukano (S. Hugh-Jones, 1979:131), também existe uma associação entre a capacidade de se
submeter às leis sociais e “a habilidade de controlar os orifícios do corpo”. Segundo C. Hugh-Jones (1979),
também se atribui um autocontrole maior aos homens, enquanto as mulheres são vistas como mais fracas no
que se refere ao controle dos próprios desejos, porque não controlam seus processos corporais internos.
6
O que é bastante diferente da argumentação de Jackson (1988:31-32) sobre a origem da imoralidade
feminina entre os Tukano e os Munduruku (citando o trabalho dos Murphy), também associada ao interesse
pessoal: “Elas não devem ter o poder, porque, quando tiveram, não o usaram propriamente – um argumento
baseado em termos morais e não biológicos”. A autora tenta desvincular a feminilidade do determinismo
biológico ocidental, pressupondo a oposição entre natureza e cultura, biologia e moralidade. No caso Javaé,
como tal divisão não existe, a qualidade do corpo corresponde ao mesmo tipo de qualidade dos atos morais,
seja no caso masculino ou feminino.

433
fazem em nome da continuidade social, ao controlar e reprimir a satisfação plena dos
desejos (uma vez que é a irmã verdadeira que se deseja realmente, a irmã do outro sendo
apenas uma solução intermediária em prol do bem coletivo), é acompanhado, ainda que
veladamente, de um desejo profundo de ser como as mulheres que, nos tempos míticos,
pensaram mais em si mesmas do que nos outros, inclusive realizando o desejo do incesto
com o irmão.
Afinal, o grande herói e modelo masculino é Tanyxiwè, personagem dotado de uma
ambigüidade exemplar: assim como os homens, foi capaz de todo o sacrifício realizado em
nome da humanidade e para agradar aos sogros; mas um dia, assim como as mulheres,
pensou em si próprio e abandonou a esposa, deixou de pagar o serviço da noiva aos afins,
arrumou uma amante e, ao fim, subiu ao Céu, onde vive sozinho e sem credores ao redor.
Não por acaso, Tanyxiwè é um dos principais ancestrais dos Javaé, mas é também,
paradoxalmente, considerado como um descendente dos Ijèwèhè, os mesmos ancestrais dos
brancos. Pois tanto Tanyxiwè como os brancos e as mulheres são considerados mesquinhos
ou sovinas, os que priorizam o interesse pessoal, além de imorais em algum grau. O herói
transformador é tido como avaro porque não emprestava seus pertences nem partilhava sua
comida com os cunhados, porque abandonou a esposa e não quis mais pagar o serviço da
noiva (a principal causa de acusações de avareza entre os Javaé) e também porque negou
ao próprio filho as bananas que havia plantado na roça, como fazem os brancos, diz o mito.
Quando ouviu do Urubu-Rei o segredo da imortalidade, Tanyxiwè também foi sovina, pois
não o partilhou com os seus afins. Além disso, a sua criatividade fora do comum era
intrinsecamente imoral, manifestando-se através da capacidade de enganar ou iludir os
humanos dos quais tomou os bens, transformando-os em animais 7 .
Coincidentemente, o fato de negar bananas ao filho ocorre exatamente no iraru
hetxi hetxi, o fim extremo do rio abaixo, cosmologicamente associado aos outros em geral,
assim como o lado iraru (rio abaixo) das aldeias. É nesse extremo da alteridade e da
feminilidade, onde o mundo já havia sido totalmente transformado, que Tanyxiwè encontra
o seu filho e o filho de Kujã, que seriam a partir de então os ancestrais dos brancos do rio
acima e dos brancos do rio abaixo. Por fim, é também o filho verdadeiro de Tanyxiwè
quem cria a poderosa arma de fogo dos brancos, assim como é no extremo da alteridade e
das transformações que o herói resolve subir ao Céu, abandonando definitivamente esposa

7
Toral (1992:204-205) afirma que os “artifícios engenhosos” de Kanysiwè (versão Karajá) “incluem a
mentira, a dissimulação, trocas visando prejudicar o próximo, disfarces (...), fugas”, caracterizando-o como
um “cínico, um impudente incorrigível”.

434
e afins, para viver em paz em um mundo sem outros. Ao contrário dos humanos mortais,
que sempre têm que descer, a oeste, após a morte, em um primeiro momento, o poderoso
herói inverte o caminho e sobe diretamente ao Céu, sem passar pelo estágio doloroso que é
a transformação da pessoa em kuni.
Há ainda um outro dado revelador. A palavra para “sovina” ou “avaro” é hetxirò,
literalmente “ânus fedido”. Se voltarmos ao mito, veremos que Tanyxiwè, em determinado
momento da vida, tinha diarréias constantes, até que foi curado quando pediu à onça que
lambesse o seu ânus. Como foi dito antes, “desde então, Tanyxiwè é conhecido como
ibusurò (‘aquele que tem a diarréia fedida’) ou hetxirò (‘ânus fedido’), e passou a ser
xingado por todos que foram transformados por ele em animais de ‘ibusurò anahatxi
tèburè!’ (‘do seu ânus saem descontroladamente fezes muito fedidas’)”. Há, portanto, uma
associação entre a avareza de Tanyxiwè, reconhecida por todos, e o seu corpo incontinente
ou em descontrole, assim como o corpo feminino. A diarréia incessante é claramente um
sinal de um descontrole e de uma transformação intensa do corpo e suas substâncias, o
mesmo tipo de atributos do corpo feminino, associado à imoralidade do egoísmo 8 .
Por outro lado, o conceito de “generosidade”, wowi, traduzido como “tudo dentro
do corpo dele (wo) é bom (wii)”, também é expresso por uma linguagem corporal.
Enquanto o conceito de avareza associa-se ao corpo feminino imoral e em descontrole, o
que realiza os seus próprios desejos em detrimento do outro, pode-se dizer que a
generosidade depende do autocontrole em prol da coletividade. Tanyxiwè foi o herói que se
sacrificou pela humanidade, característica masculina, mas ele foi feminino ou
descontrolado o suficiente para se rebelar contra o sacrifício e pensar em si ao final, o que
seria impossível se não tivesse um corpo propício para tal, dada a associação intrínseca
entre substância e subjetividade. O grande herói Javaé é, portanto, um herói
paradoxalmente ambíguo e simbolicamente andrógino, masculino e feminino, o que se
sacrifica pelos outros e é avaro pensando em si, ancestral dos Javaé e descendente dos
ancestrais dos brancos, um autêntico humano “do meio” 9 .
O desejo secreto masculino, portanto, é ter a liberdade das mulheres, mas isso não é
possível neste mundo social. A única alternativa pós-ascensão mítica é viver entre outros, o

8
A “dialética da abertura e do fechamento” do corpo nos mitos Jê analisados por Lévi-Strauss (1991:136)
“opera em dois níveis: o dos orifícios superiores (boca, orelha) e o dos orifícios inferiores (ânus, uretra,
vagina; e, finalmente, a abertura se traduz ora por uma emissão (ruído, excreção, exsudação, exalação), ora
por uma recepção (ruído)”.
9
Em uma leitura diferente, Toral (1992) enfatiza apenas a imoralidade de Kanyxiwè, vista como desprezo
pelas convenções sociais, opondo-a às atitudes do herói Ijanakatu, que respeita as convenções.

435
que pode ser feito de modo regrado e controlado, como no nível intermediário, onde alguns
são parentes e outros afins e estrangeiros, ou como na Terra dos Ensangüentados, onde
todos são outros e não há leis de reciprocidade. Na alternativa do “meio”, vive-se entre
outros, mas de modo social, trocando e recebendo esposas, concedendo e recebendo
benefícios através do trabalho, o que não é tão bom como viver sem outros nem tão ruim
como viver só entre outros. A reciprocidade apresenta-se como a alternativa intermediária
entre os dois extremos não sociais, um desejado, porém impossível, outro temido, por ser
concretamente possível. No mundo celeste de autonomia perfeita, apenas se recebe: todos
são parentes entre si, seus corpos se autonutrem permanentemente e não há perdas de
substância. No mundo feminilizado dos ensangüentados, apenas se perde: em um lugar
onde todos são estranhos entre si, as pessoas estão em estado de perdas e carências
energéticas permanentes, perdendo sangue sem parar e sentindo fome, solidão, frio,
saudade. Em nenhum dos dois há trocas que possibilitam a mediação entre o dar e o
receber, entre o ceder e o conquistar.
Ao apresentar no discurso mitológico que quando as mulheres e suas substâncias
atuam em liberdade ou sem contenção o mundo torna-se um caos, como aconteceu nos
primeiros tempos, os homens justificam, aos olhos e ouvidos dos Javaé atuais, a
necessidade de terem tomado o poder naqueles tempos, estabelecendo as leis que são
seguidas e, principalmente, mantendo as mulheres poluídas longe do espaço sagrado e
purificado da Casa dos Homens 10 . Toda a disposição espacial das aldeias Javaé origina-se
dessa necessidade masculina de tentar manter sob controle os corpos e subjetividades
desagregadores das mulheres, o que não é concebido como um resultado alcançado, mas
como um desafio permanente.
As substâncias femininas que saem em abundância para fora do corpo têm que ser
afastadas e disciplinadas em sua movimentação no tempo e no espaço, porque são também
o autocontrole das mulheres dissolvido, quase inexistente. O controle da imoralidade

10
Tanto Schaden (1958) quanto Bamberger (1979a), esta última em um texto clássico, já haviam sugerido
que os mitos sobre o uso impróprio do poder em sociedades míticas matriarcais, ou pelo menos sobre as
ações imorais das mulheres no passado, atuam em várias sociedades sul-americanas como justificativas para
coagi-las e afastá-las do mundo masculino. Entretanto, Bamberger argumenta que os mitos separam de forma
proposital a fragilidade moral da biologia feminina, onde estaria situado o verdadeiro poder das mulheres,
que é a sua capacidade reprodutora natural. Mais uma vez opõe-se biologia a moralidade, natureza a cultura.
No caso Javaé, embora tenha sido dito antes (Rodrigues, 1993) que o tempo mítico era muito mais uma
situação de indiferenciação de poder do que propriamente um “matriarcado original”, pode-se dizer que, de
fato, as mulheres tinham o poder de realizar todos os seus desejos. Em S. Hugh-Jones (1979) e Gregor
(1985), têm-se exemplos do “matriarcado” mítico e suas conseqüências para a estrutura de gênero no alto Rio
Negro e no alto Xingu, respectivamente.

436
feminina, tarefa que os homens se deram ao direito de exercer desde os primórdios da
sociedade, se faz, principalmente, através da tentativa de controle dos corpos femininos e
seus fluxos. Como seres de corpos mais contidos, coube a eles a legitimidade de criar as
leis que contêm cada ser/corpo em seu lugar. Os homens são os responsáveis pelos
limites/leis que regulam a convivência entre os dois tipos de seres humanos, porque é deles
o corpo de limites mais definidos, havendo uma correspondência entre a forma do corpo
(mais contido) e o conteúdo da ação do sujeito (aquele que contém).
O controle social é pensado como uma forma de tentar alcançar a paz que reina
onde os corpos são fechados, em oposição ao conflito permanente dos ensangüentados,
onde todos são estranhos e brigam entre si, e que foi trazido a este mundo pelas atitudes
imorais das mulheres. Há uma associação simbólica entre os fluxos ou movimentos
corporais (as substâncias dos ensangüentados fluem sem parar dos seus corpos, assim
como eles caminham sem parar, à procura dos parentes) e o conflito e a feminilidade, em
oposição ao estatismo dos corpos do rio acima, associado à paz e à masculinidade 11 . Por
essa razão, a Casa dos Homens está situada no meio espacial e cosmológico, o lugar onde
se exerce a mediação – enquanto forma de controle social – entre as duas polaridades
extremas.
O meio, seja da aldeia, do nível intermediário ou do mundo em sua totalidade, é o
lugar do poder dos humanos sociais, que perderam o poder mágico dos que estão entre si
ao mesmo tempo em que evitam a deterioração dos que vivem entre estranhos. Tal posição
equivale simbolicamente ao meio do corpo humano, wè (“barriga”), que realiza a mediação
entre a comida desejável e as fezes imprestáveis, ou entre o que permanece inalterado e o
que foi totalmente transformado, como se a passagem simbólica mais importante não fosse
do cru ao cozido (Lévi-Strauss, 1991), mas do cozido ou cru ao deteriorado. A idéia de
“mediação” é vista, portanto, como o uso consciente do poder limitado, porém possível,
que cabe aos homens, a própria agência humana. Mas isso não significa que a agência
social é pensada como uma característica exclusivamente masculina, como será retomado
ao fim da primeira parte, e nem que a agência masculina é mais social que a feminina.
A teoria do poder Javaé subentende que, antes de controlar os outros, é preciso ter o
poder de controlar a si mesmo. A produção das condições de existência – o sacrifício que
os homens realizam para pagar o serviço da noiva e que transforma o mundo – depende,

11
Pétesch (1987, 1993a, 2000) já havia proposto que a subida para o nível terrestre, de um espaço fechado
para um espaço aberto, representa a passagem do estatismo para o movimento, da paz para o conflito,
também associando movimento e conflito entre os Karajá.

437
antes de tudo, de sua capacidade interna de controlar o fluxo de substâncias e desejos em
favor da coletividade. Assim como para os Waura (Ireland, 2001) e os Yawalapíti
(Viveiros de Castro, 1977) alto-xinguanos, repetindo uma temática geral Arawak 12 , o
autocontrole e a paz (associados ao povo de Tòlòra) são valores superiores ao descontrole
dos guerreiros, característica associada aos Wèrè conquistadores e insensíveis. Ireland
(2001:263-273), em seu estudo sobre os Waura, diz que:

“(...) Os waurá, por sua vez, não extraem prestígio da superioridade militar: a palavra
para ‘guerreiro’ ou ‘soldado’ denota certo desprezo e poderia ser traduzida livremente
por ‘homem cujo principal talento é perder o controle de si mesmo’. (...) Os waurá de
forma alguma sentem-se humilhados ou rebaixados se um povo inimigo os trata com
brutalidade e violência, ou os vitimiza. Contudo, sentem-se aviltados por terem
demonstrado um comportamento brutal que não lhes é característico.
(...) Em conversas informais ou cotidianas, os comentários sobre os brancos são
normalmente negativos. O homem branco é visto como intelectualmente arguto, porém
moralmente repulsivo. Do ponto de vista waurá, o autocontrole sobre os impulsos
violentos e agressivos, a compaixão pelas crianças e a consciência da responsabilidade
de dividir os bens materiais são os atributos básicos dos seres humanos.”

Entre os Javaé, parece que a raiva ou a agressividade também são vistas como uma
perda do autocontrole. A palavra para aquele que está “raivoso” ou “bravo” é tèburè. Na
expressão de xingamento a Tanyxiwè, ibusurò anahatxi tèburè!, “do seu ânus (anahatxi)
saem descontroladamente (tèburè) fezes muito fedidas (ibusurò)!”, tèburè tem o sentido de
descontrolado. A superioridade dos valores representados pelo povo de Tòlòra
(conciliação, paz) sobre o povo Wèrè (beligerância, conflitos) é uma forma de demonstrar
a superioridade da capacidade de autocontrole masculina sobre a capacidade feminina de
criar conflitos em razão de seus desejos pessoais. É interessante lembrar que no mito de
Ijanakatu que narra o surgimento dos conflitos entre dois grupos de irmãos no nível
terrestre, entre os irmãos de Ijanakatu e os irmãos de Nabio, motivando a ascensão do iòlò
Tòlòra a este mundo com a função de trazer a paz, são os Nabio que iniciam o conflito ao
humilhar o avô dos Ijanakatu. Como se sabe, os Nabio são os precursores da metade
cerimonial Hiretu, associada ao extremo rio abaixo, da feminilidade e dos conflitos,
enquanto os Ijanakatu, que agiram para disciplinar e moralizar os Nabio, são os
precursores da metade Saura, associada ao rio acima e à masculinidade moralmente
superior.

12
Heckenberger (2001, 2002), Hill & Santos-Granero (2002), Santos-Granero (2002).

438
Uma fala de um homem Javaé, já citada anteriormente (Rodrigues, 1993:358), em
um outro contexto, expressa de modo explícito e consciente a idéia de que as mulheres têm
uma menor habilidade de controlar os sentimentos em geral, em especial a raiva e a
agressividade, atuando conseqüentemente como ativadoras de conflitos. Por essa razão
cabe aos homens, donos de um maior autocontrole, o poder e a manutenção da paz. A fala
a seguir refere-se às mulheres que usam os poderes da feitiçaria:

“(...) Eu te expliquei que as mulheres podem ser mais fortes que os homens no poder de
feitiçaria, não é? Só que isso não é permitido, desde não sei quantos anos atrás. (Os
homens) não aceitam que as mulheres sejam poderosas, porque as mulheres são as
mulheres! Têm um coração diferente... coração, não. Diferente dos homens, porque o
homem agüenta as coisas. Se me xingar, eu agüento. ‘Deixa para lá, depois ele vai ver’.
Agora, mulher, não. Se eu te xingar, você vai ficar com raiva de mim, ‘ah, você vai me
pagar’. As mulheres são fáceis para agir, são sensíveis, qualquer coisa... Pois é, então
não é admitido.”

É inegável que existe tanto um discurso sobre a legitimidade do poder masculino e


a imoralidade feminina, quanto uma estrutura de poder originada desse discurso mitológico
fundador da realidade social e revivido nas falas cotidianas. Afinal, o controle que os
homens exercem sobre as mulheres no espaço público, na forma de ameaças e interdições
rituais, atingindo sua expressão máxima por meio do estupro coletivo realizado até os anos
60, como será visto mais à frente, é um sinal visível e evidente de uma estrutura de
desigualdade estabelecida. O que é muito diferente do contexto Cashinahua, por exemplo,
em que McCallum (2001:3) considera que “uma distinção binária entre ‘maculino’ e
‘feminino’ estrutura a vida social das sociedades amazônicas em foco, mas (...) não
subscreve uma ‘estrutura’ de poder’”.
Segundo a autora, citando o exemplo de Overing (1986), não é correto atribuir um
domínio masculino a todas as sociedades indígenas das terras baixas sul-americanas, uma
vez que, para os Cashinahua, “nem os homens nem as mulheres consideram que os homens
dominam as mulheres nas comunidades Cashinahua” 13 . Em outro momento, a autora
considera que “o fato relevante é que nas sociedades amazônicas o capital não é acumulado
e a desigualdade social não é institucionalizada em termos políticos e econômicos”
(MacCallum, 2001:158). Esta pode ser uma afirmação válida para os Cashinahua e outros
13
Ver Segato (1997) para uma releitura do mito Piaroa em que Overing (1986) defende um igualitarismo
ideológico. A autora mostra que, apesar da igualdade aparente, é a figura masculina que assume o papel de
portador da norma e definidor de limites, “a chave da compreensão do que seja a masculinidade” (Segato,
1997:250).

439
grupos, mas talvez não tenha um alcance tão geral, se levarmos em consideração o controle
que os sogros exercem sobre a produção econômica dos afins em muitas sociedades
(Turner, 1979a), projetado simbolicamente para as relações interétnicas assimétricas pelos
Javaé e Carib (Rivièrè, 1977), e o caso dos povos Arawak (Heckenberger, 2001, Santos-
Granero e Hill, 2002), em que a hierarquização política e social é um componente interno
essencial.
Por outro lado, McCallum (2001:157) lembra que, em muitos casos amazônicos,
ideologias de superioridade masculina são acompanhadas de uma prática diária
completamente diferente, baseada em relações não coercitivas e na cooperação mútua, o
que não significa dizer que as relações entre homens e mulheres são igualitárias.
“Crescentemente, o poder não é visto com um aspecto intrínseco das estruturas sociais,
mas como presente de forma difusa em todas as relações sociais, desenvolvendo-se e
enfraquecendo conforme ele é reiterado, negociado e contestado”. Do mesmo modo que
Lasmar (1999), a autora (McCallum, 2001:158) acredita que, independentemente da linha
teórica adotada, “é difícil sustentar as posições de que nas sociedades amazônicas as
‘relações de gênero são igualitárias’ ou que ‘elas são hierárquicas’”. Pois, como já foi
formulado por Segato (1997:248), “existe uma quase impossibilidade de se chegar a uma
conclusão com base em materiais etnográficos, deixando a descoberto a dificuldade de
observar o gênero. Surge a pergunta: é o gênero observável? Onde se observa? Quais são
os critérios para avaliar o caráter igualitário ou hierárquico que ele assume em uma
determinada sociedade? Essa questão não comporta uma resposta simples”.
Dentro do que foi possível observar entre os Javaé, deixando de fora dimensões
mais subjetivas que são igualmente importantes para se avaliar as posições dos sujeitos,
pode-se começar dizendo, dentro do espírito dos argumentos apresentados, que não se trata
de escolher entre um lado e outro, pois a realidade revela-se muito mais ambígua e cheia
de nuances. Dependendo do ponto de vista adotado, que pode se dirigir a fatos mais
explícitos ou sutilezas menos aparentes, pode-se ver hierarquia ou igualdade. Em primeiro
lugar, apesar de haver uma estrutura de poder masculina estabelecida pelo discurso mítico
e pelas práticas diárias no que diz respeito ao âmbito público, isso não significa que esta
seja constituída de relações inalteráveis, pois se trata antes de tudo de uma estrutura
histórica.
A questão então não é polarizar entre uma ausência de estrutura e uma estrutura de
poder fixa, mas considerar a historicidade intrínseca da estrutura. Uma vez que o feminino

440
para os Javaé é essencialmente a alteridade – e a relação dos homens com os vários tipos
de outros, internos ou externos, não é estática, mas variável conforme as circunstâncias
históricas –, a relação dos homens com as mulheres também é passível de mudança ao
longo do tempo, além de conter a duplicidade de sentidos associada ao outro, poderoso e
mortal, desprestigiado e criativo. Assim, veremos que a associação simbólica entre os não-
índios e os poderes criativos/destrutivos do corpo feminino trouxe, em um movimento
inverso, de fora para dentro, importantes transformações para as relações internas e
cotidianas dos homens com as mulheres.
Em segundo lugar, a tentativa permanente de controle das mulheres no âmbito
público não tem como conseqüência a subtração de qualquer tipo de poder ou autoridade
feminina, pelo contrário. Será mostrado que as concepções a respeito da corporalidade que
fundamentam o poder dos homens no domínio público são as mesmas que fundamentam,
em uma relação diretamente proporcional, o grande poder que as mulheres exercem na
esfera privada, que não é necessariamente menos valorizada que a esfera pública. Mais do
que isso, a condição paradoxal do corpo feminino, imoral/degenerado e criativo/poderoso,
pressupõe que a imoralidade também significa, subliminarmente, uma grande criatividade,
exercida pelas mulheres por meio das habilidades oratórias. Estas últimas não só não se
restringem à esfera privada, de modo que não existe entre os Javaé uma rígida separação
entre o feminino/privado e o masculino/público, como também são geradoras de um
prestígio feminino que não é aparente no discurso mítico. O mais importante, porém, será
mostrar que a agência feminina é concebida como integralmente social e complementar à
agência masculina no que se refere à produção histórica da sociedade, não se reduzindo às
capacidades reprodutivas do corpo das mulheres, que não é naturalizado.
Por fim, cabe definir melhor o conceito de controle e contrastá-lo com o de
dominação, tal como é utilizado no Ocidente. Os Javaé usam a noção de controle em vários
contextos, como no caso dos xamãs que controlam os aruanãs ou dos aruanãs que
controlam os aõni em suas brincadeiras. Mesmo no caso dos Wèrè, que consideravam
como inferiores ou subordinados (wetxu) os cativos dos povos vencidos, há um
pressuposto essencial na definição dessas relações hierárquicas que altera radicalmente o
seu sentido quando comparado ao conceito de dominação ocidental. Em geral, os
“dominados”, de um ponto de vista Ocidental, são também os mesmos que são
objetificados ou naturalizados, privados simbolicamente e muitas vezes na prática de sua

441
condição de sujeito humano. Strathern (1990:272) aponta a relação entre o conceito de
dominação e a “lógica mercantil”, em que as pessoas são tratadas como objetos.
No caso Javaé e de outros grupos indígenas, não é negada a humanidade essencial
do Outro, ainda que em uma relação de hierarquia ou controle, como bem mostra Viveiros
de Castro (2002c:248) a respeito dos Tupinambá e seu “reconhecimento integral da
humanidade do contrário” ou inimigo. Assim, o controle relativo das mulheres Javaé não
tem o sentido de uma objetificação da pessoa nem o de supressão simbólica de sua
condição inerente de sujeito social. Além de se acreditar que os diversos seres cósmicos,
incluindo os animais e as plantas, partilham de uma mesma humanidade, atribui-se às
mulheres uma capacidade de agência plenamente humana e social, como veremos nos
próximos itens. Não se trata, portanto, de descrever as relações de gênero como igualitárias
ou de dominação, um falso dilema aqui, mas de descolar das relações entre homens e
mulheres a oposição entre sujeito e objeto, cultura e natureza, social e biológico,
subjetividade e corporalidade.

6.2. Transformando dor em arte

Nos artigos pioneiros sobre a temática do gênero dos anos 70, como nas coletâneas
de Reiter (1975) e Rosaldo e Lamphere (1979), por exemplo, inspirados por uma visão
construcionista da cultura enquanto construção social sobre uma base natural, “a
maternidade e o papel materno parecem ser as características mais importantes na
consideração do status secundário universal feminino” (Chodorow, 1979:67). Para Rosaldo
(1979:41), o papel universal feminino de criar filhos é visto como o principal fator gerador
de uma estrutura geral que opõe a esfera doméstica, onde a mulher limita-se ao
desenvolvimento de suas capacidades reprodutivas e nutridoras naturais, à esfera pública,
onde o homem está livre “para formar essas associações amplas que chamaremos
‘sociedade’, sistemas universais de ordenação, pensamento (...)”. Enquanto a esfera
doméstica é limitante, a liberdade masculina possibilita criar laços mais vastos na esfera
pública, assumir papéis de autoridade e criar a própria sociedade e suas leis, atividades de
prestígio muito maior.

442
É Ortner (1979:100-101), entretanto, quem leva essas idéias ao âmago da questão:
as funções fisiológicas da mulher fariam delas um símbolo universal do que toda cultura
desvaloriza, de “uma ordem de existência inferior” à própria cultura, ou seja, a natureza. O
prestígio maior da cultura viria do fato de que “cada cultura reconhece e mantém
implicitamente uma distinção entre a atuação da natureza e da cultura (a consciência
humana e seus produtos)”, sendo que a cultura é superior porque tem a “capacidade de
transformar – ‘socialização’ e ‘culturação’ – a natureza”. O desprestígio feminino universal
teria origem no fato de que “as mulheres são consideradas ‘simplesmente’ como estando
mais próximas da natureza dos que os homens” (Ortner, 1979:102, grifo da autora), ou
seja, as condições específicas da capacidade reprodutiva das mulheres deixam-nas
envolvidas mais de perto e por mais tempo com a continuidade biológica da espécie, “em
contraste com a fisiologia masculina que o liberta mais completamente para assumir os
esquemas da cultura”.
A autora cita Beauvoir (ver Ortner, 1979:104), para quem a criação biológica
“somente resulta na repetição da mesma Vida em mais indivíduos”, função que cabe à
mulher, ao passo que “o homem assegura a repetição da Vida enquanto transcendendo a
Vida através da Existência (...). Exceto por seus serviços às espécies, o que ele faz é
imaterial. Ainda que servindo às espécies, o homem também modela a face da terra,
criando novos instrumentos, inventando e moldando o futuro”. Em seguida, conclui Ortner
(1979:104-106):

“(...) Em outras palavras, o corpo feminino parece condená-la à mera reprodução da


vida; o homem, em contraste, não tendo funções naturais de criação deve (ou tem a
oportunidade de) basear sua criatividade externamente ‘artificialmente’ por meio de
símbolos e tecnologia. Assim agindo, ele cria objetos relativamente duradouros, eternos
e transcendentes, enquanto a mulher cria seres perecíveis – os seres humanos (idem).
(...) As mulheres criam de sua própria essência, enquanto o homem é livre para ou
forçado a criar artificialmente, isto é, através dos meios culturais, e desta maneira
manter a cultura.”

Ou seja, em todas as sociedades haveria a distinção artificial entre os homens que


usam a consciência superior e criam abstratamente o que é imaterial e perene (e portanto
de maior prestígio), como os conceitos, as leis, a cultura; e as mulheres, por sua vez, que se
limitam a meras reprodutoras instintivas da espécie, recriando apenas a sua própria
essência material. A autora sugere, inclusive, que ao contraste entre mulheres e homens

443
estariam associados “panculturalmente” (1979:111) não somente o não-social (natureza) e
o social, mas as oposições entre concretude e abstração, o que remete à oposição entre
corpo e alma. Para Strathern (1990:89), “as mulheres ocidentais correm o perigo de parecer
como menos que pessoas completas socialmente, porque sua criatividade está associada a
domínios naturais, ao invés de culturais, ou porque elas pertencem ao mundo mais restrito
do grupo doméstico ao invés do mundo mais amplo e ‘social’ dos assuntos públicos”. A
questão que interessa aqui não é apenas se as mulheres são concebidas como próximas da
natureza ou como menos sociais que os homens, mas a idéia de que a criatividade feminina
resume-se ao poder de gerar filhos.
Mesmo nas sociedades onde as capacidades reprodutivas das mulheres não são
desprezadas como um tipo de criatividade inferior e de menor prestígio, mas são, ao
contrário, invejadas pelos homens, constituindo-se a fonte secreta do poder masculino atual
(roubada nos tempos míticos ou imitada pelos homens), pressupondo uma superioridade
feminina essencial, em geral é da criatividade corpórea, apenas, que se está falando 14 . Nos
trabalhos de S. Hugh-Jones (1979) e C. Hugh-Jones (1979:168), por exemplo, a imitação
dos poderes naturais femininos no ritual de iniciação masculina Barasana é uma criação
social dos homens, “fazendo-se o que as mulheres não podem fazer”. Mais do que isso,
“eles fazem a renovação ritual ser superior à coisa real” (C. Hugh-Jones, 1979:270), ou
seja, a imitação masculina dos poderes de renovação da menstruação, enquanto um
artifício humano, é superior à menstruação em si. Tal debate tem lugar importante na
análise de Strathern (1990) a respeito da noção de agência e socialidade melanésia, para
quem as mulheres são agentes sociais completos e não apenas reprodutoras naturais de
filhos, assunto ao qual retornarei.
No caso Javaé, a capacidade feminina de gerar filhos oriundos da carne
corresponde a uma capacidade equivalente de gerar filhos da subjetividade. Como já foi
bastante enfatizado, não se concebe uma separação entre os dois tipos de manifestação da
criação, de modo que uma criatividade corpórea é igualmente uma criatividade subjetiva.
O fato das mulheres não criarem as leis não significa que elas sejam incapazes de criar algo
além dos filhos, embora a criação feminina seja de natureza diferente das criações

14
Exemplos ameríndios significativos são o complexo do Yurupari no alto Rio Negro (C. Hugh-Jones, 1979,
S. Hugh-Jones, 1979, Jackson, 1983), ritual de iniciação masculina baseado no roubo mítico dos
instrumentos musicais (poderes naturais/criativos femininos), em que os iniciantes imitam a menstruação; a
imitação da fertilidade feminina que os homens Munduruku fazem na Casa dos Homens através das flautas
sagradas secretas (Nadelson, 1996); o roubo mítico dos poderes/flautas femininos nos mitos Mehinaku
(Gregor, 1977, 1985).

444
masculinas. Enquanto estas têm um conteúdo de contenção, o que é produzido pelas
mulheres lida mais diretamente com os estados de transformação. Como veremos a seguir,
uma maior imoralidade pressupõe um maior poder criativo, de modo que as leis dos
homens surgiram como uma forma de contenção desse excesso criativo.
Desde os primeiros momentos de trabalho de campo entre os Javaé, apesar deste
não ter sido um objeto de pesquisa escolhido a priori, ficou claro que há uma ênfase no
cultivo e valorização da oratória feminina, que não se restringe ao âmbito doméstico. Entre
os Kayapó, segundo Lea (1999:190), “o choro feminino, altamente ritualizado, é a
contrapartida da oratória masculina”. Mas diferentemente dos Suyá e Kayapó, e de modo
mais parecido com os Kraho e Apinayé 15 , a oratória masculina não é tão elaborada,
embora caiba ao chefe ritual o conhecimento das falas apropriadas em contextos
cerimoniais e sejam os homens, em geral, que exercitam a arte da fala nas relações com os
não-índios. Aytai (1979b, 1983a, 1983b), Maia (1997) e Brígido (2002) elaboraram
análises sobre as lamentações fúnebres Karajá que servem para uma comparação com as
lamentações Javaé. Lima Filho (1994:122) relata que, entre os Karajá:

“(...) As mulheres dominam a oratória no espaço doméstico. Isto impressionou os


primeiros viajantes e etnógrafos do Araguaia. (...) O fato causa impressão porque num
primeiro momento as mulheres são mais reservadas. Os homens são os interlocutores.
Mas no dia-a-dia da aldeia há uma inversão completa desta situação.”

As mulheres, em especial as mais velhas, não são vistas pelos Javaé como simples
geradoras de corpos físicos: a elas são creditados o dom da oratória e a capacidade
admirada e reverenciada por todos – geradora de imenso prestígio – de criar os choros
rituais (iburu) e os xingamentos formais (lahadina) que são habilmente produzidos em
momentos de extrema emoção. Não é uma mera coincidência o fato de que uma das
palavras para “criar/inventar”, pelo menos no que se refere à composição das músicas, é
ruara, “cozinhar”, uma atividade exclusivamente feminina. Além de serem as principais
narradoras dos mitos, chamados lahi ijyky, “histórias das avós”, atribui-se a elas o
conhecimento sobre as origens míticas ou não, incluindo as relações genealógicas, das
famílias atuais. Tal conhecimento, também dotado de muito prestígio e que inclui os fatos
do passado que honram ou humilham as famílias envolvidas nos momentos dramáticos de
conflitos orais, é chamado de lahi òraru, “o começo (òraru) das avós”, literalmente

15
Ver a comparação feita por Seeger (1980) entre os Jê setentrionais.

445
“raiz/coxa (raru) da face (ò) das avós (lahi)”, no sentido de conhecimento sobre a história
ou origens das famílias. Muitas mulheres também compõem músicas que os aruanãs
cantam, embora não possam “entregar” a música diretamente à Casa dos Homens, o que
deve ser feito por um parente do sexo masculino.
Os Javaé dizem que as mulheres são nõhõtitèrè (“ouvido duro”) ou rakywii (“carne
boa da cabeça”), ou seja, têm grande habilidade mental de criação, memória e aprendizado
para os choros rituais e os xingamentos formalizados, enquanto os homens têm as mesmas
capacidades para a composição de músicas e o conhecimento de toda a complexidade de
regras e segredos que envolvem os rituais da Casa dos Homens. Admite-se que
antigamente alguns homens também choravam e xingavam ritualmente, assim como se
sabe que antigamente era proibido, mas agora algumas mulheres compõem músicas de
aruanãs. Entretanto, a elaboração formal de choros e xingamentos é uma arte feminina,
enquanto a produção de músicas é uma arte masculina. Quanto aos mitos, estes são de
conhecimento de alguns homens mais velhos e respeitados também, mas a sua transmissão
através dos tempos é uma habilidade social feminina, como já se disse, sendo chamados de
“histórias das avós”. Há um contraste explícito entre o conteúdo dos mitos e músicas, de
um lado, e o dos choros e xingamentos rituais, de outro, os principais representantes da
produção oral, e que expressam, de forma mais acentuada, o contraste entre a criatividade
masculina e a feminina.
A mitologia é uma narrativa sobre o fluxo criativo original, sobre as transformações
que tiveram início nos tempos primordiais a partir da iniciativa feminina, mas é,
principalmente, uma narrativa sobre como os homens atuaram para fixar esse caos
transformador inicial. Todos os fragmentos míticos falam da criação de formas (hábitos,
instrumentos, paisagens, leis etc) que ficaram, desde então, sendo repetidas até os dias de
hoje: “por isso nós fazemos assim até hoje” ou “por isso o mundo é assim até hoje”, dizem
os Javaé ao final de seus relatos. Os atos masculinos são uma forma de tentar fixar os
fluxos corporais e subjetivos de criação, retomando relativamente a perenidade do mundo
mágico onde nada se transforma. Todas as leis foram instituídas para que ficassem sendo
repetidas desde então, interrompendo assim os processos de criação do novo instaurados
principalmente pelas ações desestruturantes das mulheres. Embora os mitos sejam
contados, em geral, pelas mulheres mais velhas, são uma narrativa que expressa um ponto
de vista masculino, uma tentativa de congelamento dos fluxos criativos.

446
Apesar disso não ter sido formulado por nenhum Javaé, tudo leva a crer que os
mitos, assim como os outros tipos de criações subjetivas, também são considerados como
corpos. Enquanto criações masculinas ou que expressam um ponto de vista masculino,
parte do corpo masculino, o mito é um corpo conceitual que contém as mesmas
características do corpo dos homens, associadas a uma maior contenção dos fluxos ou
tentativa de congelar as transformações. A criação do sujeito masculino, dono de um corpo
mais contido/controlado, é uma criação que promove a contenção/controle, que estabelece
limites, que disciplina a desordem, ou seja, impõe as leis sociais. Em outras palavras, é
como se o conteúdo da criação tivesse a mesma qualidade do corpo do criador, assim como
os filhos de carne e osso herdam as mesmas qualidades de seus antepassados. O mesmo
pode ser dito em relação às músicas de aruanãs compostas, em sua maioria, pelos homens,
cujo conteúdo repete o mesmo tema dos mitos (ver Rodrigues, 1993): enquanto estes
últimos falam da imoralidade feminina mítica, a maior parte das músicas expõe a
imoralidade feminina atual e, assim, justifica o controle da vida pública assumido pelos
homens nos tempos míticos 16 .
Seguindo a mesma lógica, as criações femininas têm um conteúdo explícito de
subversão e desordem. Enquanto produtos ou partes de um corpo feminino que se
transforma mais, atuam no sentido de transformar a ordem estabelecida. Os choros
originais são produzidos apenas durante os períodos de luto coletivo (atualmente com
média de duração de um mês), embora possam ocorrer em ocasiões em que as mulheres
lembram dos mortos por algum motivo específico (quando apenas se repete um choro
inventado antes). Tanto Aytai (1983a) quanto Maia (1997) falam que as mulheres Karajá
choravam antigamente por meses seguidos, mas o primeiro relata que os lutos mais longos
estavam associados a pessoas de maior prestígio. Tradicionalmente, os choros das
mulheres se opõem formalmente à vida ritual masculina, como já foi mostrado antes
(Toral, 1992, Rodrigues, 1993): quando alguém morre, imediatamente os aruanãs param de
dançar e qualquer outra atividade ritual é interrompida, ao mesmo tempo em que eclodem

16
Algumas músicas são compostas para expor algum inimigo ou desafeto, seja homem ou mulher,
ridicularizando-o e humilhando-o em público, quando se conta algum fato vergonhoso que tenha acontecido
com a pessoa. Também são feitas músicas ridicularizando o comportamento dos brancos que não sabem
como se comportar na aldeia. O atingido pode revidar compondo outra música. Uma diferença essencial em
relação aos choros e xingamentos acusatórios é que essas músicas não podem jamais revelar o nome do
personagem sobre o qual se está falando, o que é considerado um ato grave e rubuoraruna (passível de
punição por feitiçaria). Expor o nome de alguém publicamente, em um contexto de vexame ou
ridicularização, é equivalente a uma destruição moral da pessoa, uma agressão imperdoável.

447
em várias casas, do lado feminino da aldeia, as manifestações de dor e indignação das
mulheres. Enquanto dura o luto, a Casa dos Homens fica esvaziada.
As expressões orais masculinas (músicas) e femininas (choros) não podem ocorrer
simultaneamente, caracterizando tempos e espaços sociais que se opõem. Quando o luto
acaba oficialmente, a partir de uma negociação entre a família do morto, em especial com a
sua mãe, e os xamãs que conduzem a Dança dos Aruanãs, os choros das mulheres também
devem terminar. Na hipótese de uma outra morte ocorrer durante um período de luto, a
família do novo morto é quem passa a “comandar” o luto, adquirindo o direito de
suspendê-lo. A vida cerimonial, que pode ser entendida como uma recriação masculina da
imortalidade ancestral, é incompatível com o sentimento de contato com a morte que
invade a comunidade durante o luto coletivo. Há uma etnografia básica sobre o luto entre
os Javaé em Toral (1992) e Rodrigues (1993), que aqui é aprofundada no que se refere à
questão dos choros, a fim de se estabelecer, o que não foi feito antes, um contraste entre a
criatividade masculina e feminina.
Os choros e os xingamentos Javaé não são apenas manifestações informais e
espontâneas de dor, como entre nós, mas um tipo de fala formal (associada à música, no
caso dos choros), porém improvisada, cujo conteúdo requer grande capacidade oratória e
de memória. Segundo Maia (1997:8), o choro feminino Karajá apresenta “uma sequência
de enunciados organizados em estruturas rítmicas paralelas”. Os Javaé diferenciam as
músicas dos aruanãs, compostas em lugar tranqüilo e com o tempo necessário para tal, dos
choros e xingamentos formais, compostos sob forte pressão emocional e tendo como base
o improviso. No caso do choro, trata-se de uma letra inédita e longa, adaptada a uma
música também inédita, porém de estrutura repetitiva, altamente impactante na vida
coletiva e considerada pelos Javaé como uma elaboração original de grande valor artístico.
Quando uma grande oradora chora, horas a fio, chegando a perder a voz ao longo de uma
temporada de luto, todos na aldeia interrompem suas atividades a fim de escutá-la, com o
objetivo de ouvir tanto o forte conteúdo do que é dito como apreciar a sua habilidade
artística de criar um choro/fala “bonito”.
O choro e os xingamentos são feitos para serem ouvidos por todos, sendo
considerados como uma expressão essencialmente pública, de modo que são extremamente
valorizadas as vozes potentes que podem ser escutadas na aldeia inteira. Mais do que isso,
há choros que marcam época, tanto por sua beleza como pela construção precisa do texto, e
que são lembrados através das gerações. As mulheres que sabem chorar com todo esse

448
talento são chamadas iburudu (“experto em choro”), têm imenso prestígio e são muito
respeitadas e lembradas, mesmo muito tempo depois de mortas, por suas qualidades
intelectuais e artísticas 17 . O dom da oratória feminina é profundamente admirado pelos
homens Javaé, sendo um assunto que freqüentemente era mencionado por eles nos
diálogos comigo, como nos fragmentos transcritos a seguir, todos de uma única pessoa, em
que os nomes dos envolvidos são omitidos:

“(...) Não tem a voz ‘tã!’ que a gente fala? Pois é, tem as mulheres que são assim, são
as melhores da aldeia, melhores cantoras, melhores músicas, melhores ... falam mais
rápido e tudo mais certo, como se fosse o dicionário de vocês. Não tem o Português
certo, não tem? Pois é, nós temos a linguagem certa também, rybètyhy (“fala
verdadeira”), rybèwii (“fala boa”). (...) Minha mãe, agora que ela está ficando famosa.
A minha mãe é admirada porque ela é nova assim, porque não são todas as novas que
choram não. Só depois de velha. Minha mãe, com uns trinta anos já começou a chorar,
por isso que minha mãe é admirada por todas. (...) Minha mãe sabe chorar, falar certo.
A maioria não sabe. Então, ela é famosa.
(...) E aí também tem que ser rybèwii (para xingar), porque tem muitas palavras
certas na linguagem, certo mesmo, para xingar. Não é ‘não sei que, você é aquilo ...’,
não é assim não, tem as coisas certas. ‘Ei, Patrícia, você é alta, ridícula, não sei o que
...’, isso aí não é rybèwii não. (...) Minha mãe, agora que ela está começando (a ser
notada) publicamente, antes era só ... mas tem muita gente que é pública. Fulana é
famosa na Barreira Branca, tem isso. E tem umas cantoras que têm música boa assim e
não são conhecidas. A avó do Fulano chora bem mesmo, só que ela não é famosa.
(...) A avó de Fulano estava chorando e a gente estava na Casa de Aruanã. Então
eu escutei: ‘(reproduz parte da letra do choro dela)’. Quando ela estava chorando e
andando na ube (estrada dos aruanãs), todo mundo estava olhando. Todo mundo
começou a sair da Casa dos Homens para ver. Era a avó do Fulano e o Fulano
(acompanhando). Eu achei lindo! Não foi só eu não, muita gente achou lindo, a voz
(...), as palavras, as frases, o ritmo da voz ... essas coisas assim.”

Embora os homens também possam receber cuidados especiais para melhorar a fala
e a voz, em geral são as mulheres que se dedicam a se transformar em grandes oradoras
(rybèwii, “fala boa”). Antigamente os homens e mulheres jovens eram treinados para
objetivos diferentes, através de um conjunto de práticas chamadas jury, que incluíam
alimentação especial, escarificação, ingestão e vômito de raízes medicinais, abstinência
sexual (Rodrigues, 1993). Os homens tinham o objetivo de se preparar para as lutas rituais,
assunto do Capítulo 7, ou tornarem-se grandes corredores, enquanto a preparação das
mulheres era direcionada para o desenvolvimento da oratória.

17
Em meio às minhas gravações de várias músicas antigas de aruanãs e uma única fita com um choro ritual,
foi esta última, de 1990, que despertou a curiosidade de ser novamente ouvida por um Javaé com quem
trabalhei em minha casa em 2002.

449
Ainda nos dias de hoje, durante a lua nova, a avó ou uma das tias bilaterais rybèwii
de uma menina passa o pente em seu cabelo, desembaraçando-o, e diz aõsè aõsè iusè
radèti tihènykynykõmy teamyhyteusèmy, ou seja, deseja que a voz/fala da criança fique
parecida (iusè) com o seu cabelo reto ou desembaraçado (radèti), capaz de produzir
discursos “desembaraçados”, límpidos, claros, precisos. Ela também passa o pente na
língua da menina, que a coloca para fora da boca, virada para a lua nova, desembaraçando
não a língua, mas a própria fala da criança. Algumas mulheres doam a sua saliva (que
contém a própria fala) para as meninas que estão viradas para o sol nascente, como já foi
dito. Os talentos repudiados, como a capacidade de brigar à toa, por qualquer motivo,
também podem ser transmitidos pela saliva, de modo que se evita receber algo de pessoas
assim. Uma menina também pode passar na língua produtos à base de plantas, como o
kotxurukutxu, hèlakaju ou juasanasytyki, que têm o poder especial de ferir aquele que está
sendo xingado. A diferença entre as èhèhè (“belicosa”) e as rybèwii (“fala boa”) é que as
primeiras brigam e atacam os outros por qualquer motivo, enquanto as outras só
respondem na hora em que são atacadas, respeitando as regras que regem os conflitos
orais. Note-se que aqui se repete a idéia de que tem maior prestígio quem é capaz de se
controlar mais.
O luto é um momento especial e atípico de violenta interrupção da ordem cotidiana,
em que a vida ritual é suspensa, não se podendo mais cantar, falar ou rir alto, pintar o
corpo, cortar o cabelo, ouvir músicas dos brancos etc. Cabia à mãe do morto, entretanto,
como já foi dito, cortar o seu cabelo ao fim do luto, assim como entre os Karajá (Brígido,
2002). Os “parentes do morto” (warabusy) mais próximos não devem sequer andar pela
aldeia durante esse período. Aytai (1983a) registra que, entre os Karajá de Aruanã, a mãe
do morto cortava o seu cabelo bem curto e só podia voltar a lamentar a morte do filho
depois do cabelo crescer até os ombros, enquanto os outros parentes não podiam cortar o
cabelo por vários meses. Antigamente, as mulheres Javaé que perdiam um filho ou neto
verdadeiro, a warabusètyhy, “mãe verdadeira (sètyhy) do morto (warabu)”, ou a
warabulahityhy, “avó verdadeira (lahityhy) do morto (warabu)”, ficavam em casa
chorando durante todo o luto. Quanto maior o número de mulheres chorando por um
morto, maior o prestígio para a sua memória e para a sua família. A honra é diretamente
proporcional não só à quantidade de mulheres chorando, mas principalmente à qualidade
dos choros produzidos.

450
É uma grande vergonha quando ninguém ou poucas mulheres choram por um morto
adulto, seja porque não há mulheres que sabem chorar na família ou porque o morto tinha
poucos parentes. Qualquer mulher aparentada do morto pode chorar por ele, embora só
algumas tenham o talento mencionado. Em geral são as parentas próximas (e a esposa, no
caso de um homem) que choram pelo morto Além do marido, as mulheres podem chorar
pelos afins que eram mais próximos e com os quais tinham boas relações (genros, noras,
cunhados, sogros). Mas por estes não se chora mais do que um ou dois dias, ao contrário
do choro pelos parentes próximos, que pode durar o mês inteiro de luto. Quando uma
mulher é iburudu, mesmo sendo parente distante, ela pode honrar a família do morto
chorando por ele. Em tais casos, gera-se o iburu kòwyrare, “retribuição (kòwy) pelo choro
(iburu)”, em que a família do morto honrado fica devedora de tal honra, devendo fazer o
mesmo quando houver morte entre os parentes próximos daquela que chorou.
Iburu (ibru, entre os Karajá, segundo Aytai, 1983a e Maia, 1997) é o choro
enquanto letra e música inventados sob improviso, não se confundindo com lorari, o grito
forte que as mulheres emitem quando ficam sabendo que um parente morreu ou quando
chegam perto do corpo do morto. Maia (1997:6) diz que os Karajá chamam de sybina essa
parte inicial do choro, caracterizada apenas por “gritos, gemidos e soluços” 18 . As mulheres
famosas são aquelas que compõem choros diferentes e originais para cada morto, contendo
um grande número de belas criações ao longo da vida. Kuma é a voz das mulheres e
kumaburu é o choro mais importante de todos, aquele que lembra o passado e contém uma
letra original, que as mulheres cantam dentro de casa e que só começa depois que o morto
é enterrado. Algumas mulheres apenas sabem cantar o rowydà, o nome de uma música
especial que se canta na cabeceira da cova do morto, com a cantora virada para o lado do
sol nascente, o que teria repercussões benéficas para o destino do que morreu. Kumadi é a
voz potente para os sons agudos (tesè). Algumas mulheres têm apenas a voz kumadi, outras
apenas a capacidade de falar bem, rybèwii. Apenas as mais famosas têm todos os talentos,
relativos à potência da voz e ao conteúdo das letras dos choros. Os Javaé dizem que só as
mulheres que são grandes oradoras e que têm muita coragem é que são capazes de superar
a vergonha de chorar em público. Para tal, a mulher teve ter kumawii (“voz boa”) e
kumahaky (“voz grossa, forte”).

18
Note-se que sybina quer dizer, literalmente, “fluido corporal (sy) ruim (bina)”, como se este choro inicial e
descontrolado tivesse uma qualidade inferior ao iburu, que é uma espécie de domesticação ordenada da
emoção violenta. O autor nota que, depois dessa fase inicial de desespero, “pouco a pouco se inicia o lamento
verbal que permite racionalizar a emoção, configurando a dor e eventualmente alcançando controlá-la”.

451
É considerado desonroso uma família não possuir uma mulher capaz de chorar o
kumaburu, que começa com um comprido e forte “hààà!!!” e requer inventividade.
Lalõtòèburu ou lalõtòina é um choro mais rápido e mais alto que as mulheres produzem
enquanto andam pela aldeia. Rubèburu é o choro mais comum, realizado por qualquer
mulher e acompanhado de lágrimas (rubèè), em contraste com o mais difícil kumaburu,
que só as grandes oradoras têm capacidade de realizar, contendo as lágrimas. O rubèburu
não exige a criatividade do kumaburu e não começa com o som “hààà!!”, sendo realizado
apenas no primeiro ou segundo dia do luto. Quem chora com lágrimas escorrendo pelo
olho fica com a vista turvada, quase cega, dizem os Javaé, por isso o rubèburu deve ser
feito com os olhos fechados. Quando a mulher está chorando o kumaburu e não se contém,
deixando vir as lágrimas, então ela muda para o choro rubèburu, ao mesmo tempo em que
procura lavar os olhos com água. Mais uma vez repete-se aqui o contraste entre o maior
prestígio do autocontrole (chorar/criar sem lágrimas) e o menor prestígio do descontrole
(não conter as lágrimas).
Do começo do dia até cerca de 10 ou 11 horas da manhã, as mulheres choram o
kumaburu. Então param e começam o choro lalõtòèburu, por pouco tempo, quando então
retomam o kumaburu até cerca de 3 ou 4 horas da tarde, horário de repetir o choro
lalõtòèburu, por pouco tempo. As mulheres param um pouco e, no fim do dia, fazem o
último dos três choros do tipo lalõtòèburu. A alternância entre o kumaburu e o lalõtòèburu
pode ocorrer durante todo o mês de luto. No caso da morte de um homem, quando alguém
da Casa dos Homens chega no hirarina, a extremidade feminina da pista de dança dos
aruanãs, um dos lugares onde o morto dançava a parte tõõ (pênis) das músicas em suas
performances como aruanã mascarado, a mulher sente com mais intensidade a perda do
parente e grita o lorari. As mulheres também podem chorar caminhando pelas estradas de
aruanã onde o morto dançava 19 . Durante um período de luto, as mulheres podem inventar
três tipos de choro em um mesmo dia: o primeiro, ao amanhecer; o segundo, ao meio dia,
devendo ser um choro mais rápido, do tipo lalõtòèburu; e o terceiro, ao fim do dia, também
rápido. Quanto mais rápido, mais difícil é o choro, o que deixa as mulheres esgotadas
fisicamente, porque falam por muito tempo e com a voz alta. Esses três choros inventados
são a base do que fica sendo repetido ao longo do luto.

19
Ao fazer isso, ela inverte a ordem cotidiana, reforçando o espírito de subversão da ordem do luto, pois
revela publicamente que conhecia a identidade dos dançarinos mascarados, o que deveria ser um dos grandes
segredos do ritual.

452
Uma morte honrada é iruburityhyna, “lugar (na) da honra (tyhy) do morto (irubu)”.
As mulheres que choram recebem uma comida especial, o iweru bètòtèkè, uma espécie de
bebida quente, feita com milho, mandioca, macaúba ou arroz, não podendo tomá-la
enquanto estão chorando. Muitas mães ensinam a suas filhas, ainda crianças, o choro
famoso de alguma parenta que já morreu ou ainda está viva. O choro dos homens, um
acontecimento raro, chama-se kumamyhii ou simplesmente hii, este último registrado
também por Aytai (1979b, 1983a) e Maia (1997) entre os Karajá. É um choro mais lento
que o da mulher e que apenas lembra do passado do morto, não contendo a parte rápida em
que se xingam e acusam os inimigos. Os Javaé dizem que é raro os homens chorarem
porque eles têm que continuar trabalhando na roça ou pescando quando morre alguém, ao
contrário das mulheres, que podem se dedicar aos choros em casa. Os homens não gritam o
lorari e choram baixo (rybèhii), pois não é um choro acusatório e voltado para o público
em geral. Donahue (1982) fala que os homens Karajá não choram em público e expressam
a sua dor destruindo bens com certa violência, mas Maia (1997) descreve a existência de
lamentações masculinas, embora raras 20 .
As letras do choro, por sua vez, contêm dois tipos essenciais de mensagem. De um
lado, lembra-se com saudade do morto e enfatiza-se o que é motivo de orgulho em seu
passado. Não se menciona o seu nome em público, referindo-se ao morto apenas pelos
termos de parentesco corretos, aos quais se adiciona a palavra derawà, “querido”. A
mulher que chora enumera episódios marcantes do passado do morto, no caso deste ser um
adulto, tais como os Hetohoky, Iweruhuky, danças de aruanã ou lutas rituais dos quais
participou, os aruanãs ou worosy específicos que eram seu tyky (“corpo”), as estradas de
aruanã por onde dançou etc. Ela lembra que ele foi um grande lutador, corredor, cantor e
que não vai mais dançar, lamentando a ausência da sua participação alegre na vida ritual.
No caso das mulheres, fala-se da sua participação como dançarinas nos rituais. Lembra-se
também dos feitos que honram o morto, como o fato de ter sido primogênito, iòlò (chefia
herdada), descendente dos Wèrè, ter tido muitos parentes presentes em momentos
importantes, muitos bens rituais (aruanãs, estrangeiros mascarados), seu pai ter sido muito
trabalhador e dono de roça farta, sua mãe ter sido muito trabalhadora e prendada
(dekyrywè), capaz de fazer boa comida, esteiras de palha, potes de barro, enfeites de
20
Maia (1997:8) descreve também a existência de uma lamentação fúnebre masculina especial no ritual de
iniciação masculina, chamada ibruhuky, “o grande choro”, sobre a qual nunca ouvi falar entre os Javaé.
Segundo o autor, “o ibruhuky expressa a dor da separação do menino jyrè de sua família”. No passado havia
também outros tipos de ibruhuky Karajá, associados à menarca, ao retorno de um guerreiro, às tatuagens
faciais e ao enterro de um morto.

453
algodão etc. Para enumerar em detalhes todos esses atributos, é preciso ter o conhecimento
do passado, o que nem todos têm.
Por outro lado, e este é o seu lado mais marcante e causador de impacto, existe uma
parte do choro que é considerada xingamento (lahadina), chamada ità, através da qual as
mulheres acusam explicitamente aqueles que são suspeitos de terem causado ou
encomendado a morte do parente, no caso dos que morrem por feitiço, a morte mais
comum, ou os que assassinaram o falecido em confronto físico direto. Maia (1997:6) relata
que “os lamentos são geralmente constituídos por uma sequência de frases intercaladas por
um estribilho, denominado itõ em Karajá”. Nos exemplos apresentados, o itõ Karajá não
tem um conteúdo de ofensa, mas o autor identifica três temas no choro: o passado do morto
e suas qualidades pessoais; uma exaltação das perturbações emocionais sofridas pelos
parentes do morto após a sua perda; a causa de sua morte e a atribuição de culpas. Como já
foi dito antes, praticamente todas as mortes não violentas são atribuídas à ação de algum
feiticeiro, não existindo a idéia de causas naturais. Fénelon Costa (1978:44), para quem
todo Karajá é um feiticeiro em potencial, presenciou uma “lamentação cantada” Karajá em
que uma velha mulher acusa outra de ter enfeitiçado e matado o seu bisneto. Assim que
morre alguém, a primeira expressão verbal das mulheres Javaé aparentadas é o ità, o que
ocorre no dia da morte ou no dia seguinte. Só depois é que tem início o choro ritual
propriamente dito, cujas palavras incluem a lembrança do passado do morto.
Normalmente, essa expressão intensa de raiva é dirigida ao xamã e sua família, que
é identificado nominalmente durante as acusações. Aquelas que são consideradas èhèhè
(“belicosa”) xingam os acusados e seus antepassados enquanto andam na pista de dança
(ube) dos aruanãs e quando passam na porta da casa dos seus inimigos. Nesse momento,
cabe aos ofendidos apenas escutar, calados. As mulheres mais sábias são tidas como as
especialistas em identificar, no emaranhado caótico das relações cotidianas, os nexos de
sentido que explicam a morte de alguém, as causas e intenções ocultas por trás dos feitiços
que se manifestam como doenças. A causa da morte dos enfeitiçados é assunto de grande
interesse, provocador de retaliações futuras e que pressupõe o levantamento das ações do
morto e de seus parentes no passado. A morte de alguém é vista sempre como uma
conseqüência de alguma ação passada, em passado próximo ou mais distante, que gerou
uma vingança (kòwy) pelos atingidos por ela. Na maioria dos casos, as vinganças não são
pessoais: atinge-se com feitiços secretos não a própria pessoa que cometeu algum ato
condenável antes, mas algum membro de sua família, uma vez que os parentes próximos

454
são pensados como um só corpo. Assim, as retaliações que atravessam as gerações não são
entre indivíduos, mas entre grupos de parentes.
Quando morre alguém, as mulheres investigam o passado e lançam hipóteses e
acusações públicas sobre a causa de sua morte, tal como o fato do morto ou algum parente
próximo ter assassinado alguém no passado, ter cometido algum erro fatal na Dança dos
Aruanãs (no caso de homens ou mulheres), ou ter tido relações sexuais com alguma mulher
casada etc. Elas fazem uma espécie de inventário das atitudes do morto e de seus parentes
que podem ter provocado a ação dos outros. Citam também os parentes que falharam em
proteger o morto em situações perigosas do passado ou mesmo na própria morte. As
mulheres que choram referem-se apenas aos xamãs em geral como causadores de todas as
mortes, enquanto as grandes oradoras chegam a acusar nominalmente os supostos
feiticeiros responsáveis pela morte em questão, o que é considerado um ato de grande
coragem, uma vez que pode provocar a ira e a retaliação dos acusados. São mencionados
também os nomes dos mandantes ou interessados na morte e não apenas os nomes dos
xamãs que a tornaram possível. Quando morre alguém que tinha pouco prestígio ou
parentes, a mulher que chora lembra de todos os que não gostavam do morto e fala com
raiva, xingando, que eles ficaram satisfeitos com a sua morte. As mulheres xingam
nominalmente quem mandou matar, através de feitiço, e também citam os atos daqueles
que, embora não tenham sido os responsáveis pela morte da pessoa, bateram, xingaram ou
cometeram alguma violência contra o morto no passado 21 .
No caso das mortes violentas e sangrentas, o pior tipo de morte para os Javaé, em
que alguém é assassinado diretamente por um “matador” (inyrubunakydu) que usa
borduna, flecha ou armas de fogo, este último tem todo o seu passado revirado, de forma
vexaminosa, em público. Todas as desonras de seus antepassados e de seu próprio passado
são expostas virulentamente, para todos na aldeia, ocasião em que se xinga as partes do
corpo do matador e se relembra todos aqueles da sua família que foram ota ota
(promíscuos), biredu (preguiçosos), èhèhè (belicosos), aderany (mulheres que sofreram o
estupro coletivo) etc. Nestes momentos, não adianta apenas ser inteligente e ter voz boa: é

21
Como assinalou Viveiros de Castro (2002j:487-488) em uma entrevista onde compara a epistemologia
indígena e a ocidental, “eu diria que o que move o pensamento dos xamãs, que são os cientistas de lá, (...) é
ser capaz de atribuir o máximo de intencionalidade ao que se está conhecendo. (...) O bom conhecimento é
aquele capaz de interpretar todos os eventos do mundo como se fossem ações, como se fosse resultado de
algum tipo de intencionalidade. Para nós, explicar é reduzir a intencionalidade do conhecido. Para eles,
explicar é aprofundar a intencionalidade do conhecido, isto é, determinar o objeto de conhecimento como um
sujeito” (grifos do autor). No caso Javaé, esse conhecimento da intencionalidade é uma arte/ciência praticada
pelas mulheres.

455
crucial o conhecimento sobre a história das famílias (lahi òraru), transmitido pelas avós
aos seus netos, a principal arma para defesas e acusações nos confrontos verbais. Um dos
principais deveres dos irmãos reais e classificatórios é ajudar, entre si, nas lutas físicas e
nos embates orais, municiando aquele que xinga com as informações sobre o passado do
inimigo. Tanto os que não têm esse conhecimento como os mudos são chamados de
rybèkõ, “sem fala”.
As palavras de Lima Filho (1994:156), que associa o choro ritual Karajá às
lamentações pela doença de alguém, podem ser aplicadas aos Javaé: o ritual de iniciação
masculina, através dos homens, suprime o tempo, enquanto as mulheres “são as
responsáveis pela memória da aldeia”. Transcrevo a seguir alguns trechos inéditos de
choros de diferentes mulheres, os quais foram gravados durante o luto pela morte de um
homem de cerca de 30 anos, encontrado morto e alcoolizado dentro do rio e com a cabeça
ferida, o que causou forte comoção. A suspeita geral é que ele havia sido assassinado. É
importante lembrar que os choros rituais duram muitas horas ao longo de um dia e que o
trecho mais longo a ser citado corresponde, no máximo, a meia hora de um choro ritual.
Algumas vezes a cantora refere-se ao morto na terceira pessoa, mas na maior parte das
vezes ela dirige-se a ele usando termos vocativos, como se ele ainda estivesse vivo, como
entre os Karajá (Brígido, 2002). Ela cita os nomes (omitidos aqui) e os atos de várias
pessoas, em tom de acusação. Cada número refere-se a uma autora diferente:

1. “(...) ‘Lery (“irmã real ou classificatória”), você que é uma das conselheiras, fala
para o nosso neto (referindo-se ao morto) não ficar bebendo muita pinga, porque o
próprio primo dele, como o Fulano e outros, não cuidam direito dele, não o defendem
mesmo quando os outros vão brigar com ele. É isso que o seu avô falava para mim e eu
falei para você (o morto), mas você não me obedeceu. Kuladurikòrè (“filho do
menino”, a cantora dirige-se ao morto) não teve sorte como os outros e morreu para nós
todos da família. Filho do meu sobrinho (vocativo) morreu, e não era só do meu
sobrinho não, era como se fosse nosso filho mesmo, de todos nós. Morreu.
Sua avó (a cantora falando de si mesma) está chorando, não é por felicidade ou
alegria. Está chorando com essas músicas que ela não sabe muito bem falar, buarabukè.
Mas pelo menos eu estou chorando por você, eu gosto muito de você. E não é porque
eu estou feliz que eu estou chorando assim. Não é de alegria, é porque você morreu
para mim. Sua avó está chorando, não é porque está com a barriga cheia porque comeu
um cacho de bananas, nem porque comeu carne, perna de tartaruga, nem porque comeu
mel também. Não está chorando porque está feliz, porque está com a barriga cheia. Não
é por isso que está chorando não, é porque está esperando por você. É isso que você fez
comigo, me deixou sofrendo desse jeito, estou chorando por isso. Filho do meu
sobrinho morreu.

456
Foi assim que seu avô falou para mim: ‘cuida do nosso neto, que ele bebe muita
pinga e o próprio primo dele não gosta dele. Quando ele bebe, fica batendo nele e não o
defende de alguma coisa’. Eu já falei tantas vezes para você, dando conselho, dizendo o
que seu avô deixou de recomendação para você, e você não obedeceu. Agora você está
morto aí. (Ela cita as palavras do avô paterno antes dele morrer): ‘Também o labyri (tio
paterno mais novo) dele e os outros tios, e até o próprio pai, dão pinga para ele. Eu não
quero que, depois de morrer, vocês (as avós do morto) fiquem sofrendo’. (A cantora
dirige-se novamente ao morto:) Qualquer dia desses, você vai se matar, porque você é
tão danado e o Fulano, com quem você estava brigando, vai te matar. E foi isso que
aconteceu para você, bem que eu falei para você. É desse jeito mesmo que ia acontecer.
Rubu kuladu (“menino morto”), filho do meu sobrinho, que me deixou sofrendo, sua
mãe querida lutou para não acontecer isso que aconteceu hoje, para você não morrer.
São verdadeiras as palavras de Fulana (a mãe do morto), que tem uma voz forte e
bonita. Eu não choro desse jeito, mas pelo menos estou chorando por você. Não é com
uma voz bonita para mostrar para todo mundo, mas pelo menos estou mostrando que
gosto de você. É desse jeito que sua mãe está sofrendo, não é com sua voz bonita e
forte, mas está chorando por você e gritando, pode gritar bem alto. Eu estou gritando
sentada aqui na beira do fogo. ‘Chora, chora’, é o que os outros falam. O choro tem que
ser diferente, mas quem não sabe chorar fica repetindo o choro de uma outra cantora.
Mas não tem problema, não importa, vocês têm que chorar, nós temos que chorar com
a dor da morte dele 22 .
Filho do menino, morreu para nós. Coitado, ele foi tão sem sorte, foi azarado na
vida. Foi azarado na vida e morreu. Filho do meu sobrinho, tão bonito e morreu. Filho
do meu sobrinho, morreu para nós. Filho do meu sobrinho, nos deixou. Meu amor, eu
sei que mataram meu amor. Vocês (refere-se às inimigas em geral), mulheres, uma hora
dessas vocês estão se orgulhando de terem conseguido matá-lo através do tyy (vagina).
Ela (refere-se à esposa do morto) está se orgulhando porque conseguiu matar você
através da vagina dela 23 . Nossos avós, nossos tios, nossas mães, nossos irmãos falam a
verdade – natyhy – para nós, para não fazer isso. A gente tem que obedecer e você
(dirige-se ao morto) não obedeceu. É isso, meu neto, todo mundo despreza o conselho
da avó, da mãe, dos tios, da bisavó. Todo mundo ignora o conselho e acontece essa
coisa horrível que aconteceu com você.
Meu neto (o morto) teve muitas amantes, por isso os filhos dele não conseguiram
crescer até agora, morrem desde cedo, é por isso. Em sempre falei para você, meu neto.
Mulher é (coisa) perigosa. Com mulher não se pode namorar. Principalmente a mulher
do hàri (xamã), a filha do hàri. O hàri vê vocês fazendo alguma coisa e você não vê. O
hàri finge que não está vendo e depois ele age para matar vocês 24 .
22
Aqui ela se dirige às mulheres mais novas, parentas do morto, e recomenda que o importante é chorar pelo
morto, mesmo que elas não sejam capazes de elaborar um choro diferente e original, mas apenas de ficar
repetindo ou copiando o choro de uma outra cantora.
23
A cantora acusa explicitamente a esposa do morto de ter sido a causadora da morte dele, dizendo que ela
teve relações sexuais com um xamã em troca dos serviços de feitiçaria dele. Como a esposa desapareceu logo
após a morte do marido, ela se tornou a principal suspeita da sua morte. Uma das hipóteses era que ela teria
entregado o marido aos xamãs para salvar a própria pele, pois ela teria cometido várias infrações rituais e
estaria marcada para morrer por feitiço (rubuoraruna). A cantora a acusa de ter tido relações sexuais com
algum xamã, a principal forma de pagamento dos serviços dos xamãs (ver Rodrigues, 1993), para não morrer.
Assim, o marido teria morrido em seu lugar, “através da vagina dela”. Como já foi dito, as punições são
contra membros da família do infrator, e não necessariamente contra o próprio infrator.
24
Aqui ela levanta uma outra possível causa da morte do seu parente e dos filhos que ele teve e que
morreram antes: como ele teve muitos casos amorosos com outras mulheres, o que todo mundo sabia, ele
pode ter sido morto por algum feiticeiro que estava se vingando. As mulheres com quem se relacionou

457
A gente comete rubuoraruna (infrações rituais), mas a gente acha bom,
acreditando que não vai acontecer nada quando fazemos algo rubuoraruna. Mas algum
hàri acha ruim e acontece o que aconteceu com você 25 .
Filho do menino morreu para mim, ele tinha um corpo perfeito, lindo. Morreu
para nós. Filho do menino agora parou (refere-se ao modo bonito dele andar). Agora
parou, nunca mais vai ter isso, como ele era antes, ele não vai estar mais nessa vida
agora. Filha do hàri, mulher do hàri, acostumadas a trair os maridos, isso é perigoso,
eu falei para você. Elas acham bom o que estão fazendo, mas o hàri não. Só porque
elas acham bom, você (o morto) vai se envolver com elas? Você não pode fazer
isso.Você sabe muito bem que filha do hàri e mulher do hàri é rubuna (a palavra para
feitiço, literalmente “o lugar da morte”). É isso que os irmãos da minha mãe falavam
para elas. Chamavam-se Fulano e Beltrano. Isso mesmo que eles diziam para elas e
acontece hoje em dia. O irmão da minha mãe, Fulano, falava isso. Eles falavam porque
eles eram hàri e tinham o direito de falar isso comigo, porque eu não sabia de nada. Por
isso que todo mundo vive doente, porque ninguém obedece aos conselhos da avó. Por
isso que todo mundo vive doente, sofre e morre.
Filho do meu sobrinho, você que cometeu rubuoraruna, mas quem paga são os
seus filhos. Filho do meu sobrinho, você sumiu da face da terra. Menino especial que
nos deixou, sua avó velha (referindo-se a si própria) vira a boca e fala as palavras
chorando, tudo corretamente, òbiti (“reto”). Mas outras pessoas falam que não, que ela
está falando tudo de modo errado.
Ninguém sabe o que você sofreu quando você perdeu o fôlego dentro da água.
Ninguém sabe como você se sentiu quando você morreu. Ninguém viu você morrendo.
Sua avó está chorando agora para você corretamente (...).” (palavras do tradutor)

2. “(...) Ela (o tradutor explicando) está falando que os sèrikòrè (irmãos e primos) dele
acabaram-se todos por causa dessas coisas. Apesar de novo (o morto), diz que morreu.
Que os sèrikòrè dele foram todos mortos hure (assassinados), nenhum por doença
(feitiço). Ela está falando que está chorando e sofrendo, mas não é porque juata
(piranha), arraia nem marimbondo picaram ela. Não é por isso que ela está chorando e
sofrendo. ‘É porque ele morreu mesmo’.” (palavras do tradutor)

3. “(...) Warikòrè derawà (“o que ficou no lugar do meu filho”), você é meu querido e
você está morto. Quem tinha raiva de você está descansando agora, está achando bom.
Tiraram a preocupação da cabeça deles, resolveram o problema deles, porque eles
queriam ver você morto. E você morreu hure, assassinado. Warikòrè derawà morreu
tyhytymyra, casado novo, e sumiu do meio daqueles que gostavam dele, como nós.
Nunca mais vai viver no meio dos outros como vivia antes, sumiu daqui da terra.

podiam ser filhas ou esposas de feiticeiros ou simplesmente uma mulher bonita pela qual o hàri estava
interessado sexualmente. Por isso é sempre “perigoso” ter relações sexuais extramaritais com as mulheres.
No caso em questão, o morto era disputado por várias mulheres na aldeia. O tradutor do choro contou que
tanto os hàri tinham ciúme dele como muitas mulheres, uma das quais poderia ser a mandante da morte. Por
isso a cantora diz que elas, as mulheres da aldeia, orgulhavam-se de terem conseguido matá-lo através da
vagina delas, ou seja, pagando o serviço de algum feiticeiro com sexo.
25
Outra possível causa da morte: o morto teria cometido infrações rituais contra os segredos masculinos e,
por isso, estaria “marcado para morrer” (rubuoraruna) por algum xamã.

458
Procuro esse jovem que você era, tentando ver você no tempo, o seu rosto 26 . (...) Essas
suas parentas, suas primas, estão sorrindo, porque não sabem a dor da morte que a
gente está sentindo. Parece que não estão sentindo que você está morto. Deveriam pelo
menos chorar um pouco, ao invés de ficar só rindo. Não estão chorando, nenhuma das
suas primas chora por você, elas que deveriam chorar.”(palavras do tradutor)

Os xingamentos feitos pelas mulheres, cujo conteúdo mais detalhado será


apresentado na segunda parte, podem ser tanto uma parte do choro que é produzido no luto
quanto uma fala formalizada (lahadina) que surge fora do contexto do luto, nos momentos
tensos e evitados de conflitos públicos. Quando as mulheres chegam ao confronto físico,
que não é disciplinado ritualmente como no caso das lutas masculinas, a forma habitual é
puxar os cabelos da rival, havendo ocasiões em que se busca expor a vagina da outra, o que
é considerado uma forma de humilhação. As expressões verbais de raiva, os lahadina
propriamente ditos, começam sempre com um grito típico e alto, “kyyy!!!”, que anuncia o
confronto.
Durante o luto, as mulheres aproveitam para xingar as “famílias inimigas”
(òdudureny) com as quais estão envolvidas em antigos casos de retaliações/vinganças
(kòwy) recíprocas e que são realimentados através das gerações. Pode-se xingar não só a
família do que tenha causado a morte do parente por quem se chora, mas qualquer outra
família com quem se tenha uma questão pendente no passado. Mas há regras rígidas e
precisas para esses embates orais: durante o luto, cabe somente à família do morto o direito
de xingar os inimigos, que devem permanecer calados e atentos ao que é dito, até que
chegue a hora apropriada e socialmente consentida para o revide verbal, que ocorre quando
morre alguém na família dos que foram atacados. Então é a vez dos primeiros calarem-se e
agüentarem os xingamentos públicos.
Muitas vezes os xingamentos referem-se a fatos acontecidos em gerações passadas,
muito antigos (o assassinato de um parente sendo um fato que nunca se esquece), ou
passam-se anos entre um ataque de um lado e uma resposta de outro, o que só é permitido
nesse período desagregador e turbulento do luto. Os xingamentos que ocorrem fora do luto
também seguem regras, tais como o fato de uma mulher esperar a outra terminar a sua fala
para poder responder, mas em geral referem-se apenas a fatos específicos do presente.
Quando acaba o luto, todo esse estado de exposição de conflitos e tensões é suspenso
imediatamente, e as pessoas retomam a rotina repleta de regras e formalidades que ajudam
26
Segundo o tradutor, a expressão “procurar o rosto no tempo” significa relembrar, sentir saudade. A
narradora está dizendo implicitamente que acorda no meio da noite sofrendo e lembrando dele.

459
a manter a paz pública em um ambiente tão conturbado e abarrotado de acusações de
feitiçaria nos bastidores. Assim como entre os Bororo (Crocker, 1985), não há registros de
conflitos entre aldeias e a paz pública, dentro da aldeia, existe às custas dos conflitos
domésticos intensos, os quais tomam a forma de acusações crônicas de feitiçaria, que são
feitas de modo informal/privado ou formal/público, mais raramente, durante o luto.
Os xingamentos de mulheres hábeis na arte da oratória são temidos por todos, pois
os confrontos verbais fora do luto, assim como os físicos, sempre terminam com um
vencedor e um perdedor, fato que entra para a história pessoal dos envolvidos e que se
torna de domínio público. Aquele que fala bem, seja em termos de conteúdo ou de forma
(mais bonito, mais rápido, mais alto), ganha, enquanto aquele que não sabe responder os
ataques nem se defender, perde. Em geral, os homens não têm coragem de xingar as
mulheres de “fala boa”, mesmo quando estão sendo atacados por elas, com medo de serem
humilhados em público. Os homens evitam o enfrentamento verbal com as mulheres
porque elas “podem dizer tudo”, enquanto eles, tidos como mais controlados, evitam o
conflito ou não conseguem se defender no mesmo tom. Um Javaé disse que “uma pessoa
que não domina bem a linguagem, que não tem rybèwii, não pode se arriscar”. As pessoas
recorrem a feitiços, como aquele em que se pronuncia um encantamento mágico e se diz:
“tomara que seja você mesmo que vá dominar o seu inimigo, quando vocês estiverem
discutindo, que seja a sua boca e a sua língua que vão doer nele, e não a boca dele em
você”. Existem também os feitiços que são feitos para calar ou atrapalhar a voz/fala das
mulheres que têm o poder de destruir as reputações em seus choros, como é exemplificado
no diálogo com um rapaz Javaé:

“1- Tem um feitiço que se chama rybèna (“o lugar da fala”). Quando uma pessoa é
muito brava, tem muitas mulheres que ... mas agora não tem mais não, antigamente
tinha. Essa Fulana era uma das melhores cantoras, com voz mais forte, falava rápido e
falava tudo certo, assim, lahirybè (“fala das avós”). Então, na morte de uma menina, ela
chorou e acabou com a aldeia inteira, acabou com a aldeia toda, Canoanã mesmo. Foi
esses tempos.

2 – (antropóloga) Como assim, “acabou”?

1 – Xingando! Então alguns dos hàri (xamãs) pegaram ela com rybèna, para ela ficar
errando quando está chorando, ou com a voz assim pouca. Agora, dizem que ela parou
ou diminuiu o que era antes mesmo. Porque antes ela era melhor.”

460
Em uma sociedade que tradicionalmente faz um esforço imenso para evitar o
conflito público interno ou externo, seja através da atitude pacificadora dos iòlò ou
disciplinando formalmente os momentos de confrontos físicos (em sua maioria restritos a
lutas rituais controladas por regras rígidas) e verbais, o que as mulheres dizem em seus
choros rituais e xingamentos tem um conteúdo altamente explosivo e desestruturante 27 : os
conflitos prévios de bastidores são explicitados e outros, futuros, são ali gerados. A fala
ritual feminina é poderosamente destruidora do status quo e é a porta-voz do caos, ainda
que momentâneo, transformando a paz pública, mantida a duras penas pelos homens, em
conflito real e potencial. Cabe às mulheres fazer o trabalho de catarse social, trazendo à
superfície os conflitos, suspeitas e dores que se mantêm, durante a maior parte do tempo,
nos bastidores da consciência coletiva.
Não é uma coincidência, portanto, que as armas de fogo dos brancos, poderosas e
mortais, foram fabricadas a partir dos ossos da mandíbula de uma velha bruxa canibal,
como narra o episódio mítico em que Myreikò sai à procura do marido Tanyxiwè, havendo
uma associação entre a mandíbula/oratória feminina e a agressividade. Além disso, como
já foi dito, a palavra para estrangeiro (ixyju), que deriva daquela que designa a coletividade
feminina (ixy), significa literalmente “dente (ju) do porco queixada (ixy)”, mas poderia ser
traduzida também como “dente das mulheres”. Como se sabe, o porco queixada é
considerado um dos animais mais agressivos ou perigosos do continente sul-americano em
razão de sua “queixada” (mandíbula), dotada de grandes dentes afiados e potentes. Mais
uma vez, a alteridade é representada por uma mandíbula extremamente poderosa e
agressiva, que pode ser a mandíbula real dos porcos selvagens ou aquela que dá origem às
armas de fogo. Nos dois casos há uma associação entre um poder altamente destrutivo e a
mandíbula das mulheres, o que traduzo como uma indicação do poder desestruturador da
oratória feminina.
O simples fato delas revelarem publicamente os nomes dos personagens centrais ou
suspeitos da morte de alguém é profundamente subversivo, uma ruptura de um grande tabu
da ordem cotidiana, em que as pessoas se dirigem umas às outras usando apenas termos
vocativos de parentesco, sendo considerado ofensivo chamar alguém pelo nome. A
acusação nominal e pública de ações condenadas, crimes, omissões ou intenções imorais
27
O alcoolismo advindo com o contato com a sociedade nacional, em especial a partir dos anos 90, quando
passou a haver um contato mais intenso com as cidades regionais e um menor controle interno do consumo
de bebidas alcoólicas, tem alterado consideravelmente essa ênfase tradicional no controle do conflito público.
Os conflitos físicos e verbais agora surgem cotidianamente e sem nenhuma disciplina formal, sendo motivo
de vergonha para as famílias envolvidas.

461
durante os choros rituais é uma forma muito temida de destruição moral da pessoa,
principalmente porque os acusados não podem revidar na hora, diferentemente das músicas
compostas pelos homens, em que se evita mencionar os nomes dos envolvidos e se tem o
direito de resposta imediata. Entretanto, assim como nos tempos míticos, a coletividade
masculina logo intervém e restaura relativamente a ordem e a paz, suspendendo o luto e os
choros, para então retomar as atividades rituais dos aruanãs de corpos fechados e
movimentos controlados.
Não é difícil perceber, portanto, que o produto criativo dos homens (mitos e
músicas) tem um conteúdo controlador e limitante, assim como é o fluxo mais disciplinado
das substâncias de seus corpos, enquanto o produto criativo das mulheres (choros e
xingamentos) tem um conteúdo desagregador e transformador, repetindo em outro nível a
experiência de seus corpos. Mais do que isso: a ordem cotidiana é um tempo/espaço
dominado publicamente pelas criações dos homens, seja através das falas rituais na Casa
dos Homens ou pelos produtos da criação masculina (mitos e músicas); enquanto os
momentos de quebra ou desordem da continuidade – associados à morte – são um
tempo/espaço dominado publicamente pelos produtos da criação feminina. Assim como no
tempo mítico, a morte instaura no cotidiano a passagem entre o estatismo e a
transformação, a ordem estéril e a desordem fértil. Donahue (1982:188) estabelece um
contraste entre os homens Karajá, que seriam “silenciosos, dignos e não emotivos”, um
comportamento claramente contido, e as mulheres, o seu oposto, que seriam “animadas,
ousadas e excitáveis”. Lima Filho (1994:123) diz que “os homens são muito mais
reservados” que as mulheres, “discretos na falas e ações”. Brígido (2002:139), por sua vez,
tenta uma interpretação psicanalítica e sugere que o choro Karajá seria uma forma das
mulheres extravasarem “o erotismo pleno que lhes é negado” em uma sociedade “regida
pela lei dos homens”.
A vida ritual cotidiana é comandada pela voz ordenadora dos homens, enquanto o
luto que subverte a paz coletiva é comandado pela voz desagregadora das mulheres, que
surge para dar lugar às criações originais, pois é preciso destruir a ordem para se poder
criar o novo. Os mitos sempre terminam com alguma ação (em geral masculina) que
moraliza ou restaura a ordem, enquanto os choros e os xingamentos apenas iniciam a
dissolução da normalidade aparente. Como o corpo feminino é associado a uma maior
capacidade de degeneração ou transformação (ao extremo rio abaixo), ou seja, à própria
mortalidade, é a voz feminina que impera quando a morte/luto irrompe nas aldeias. De

462
modo inverso, é a voz masculina, associada ao extremo de maior contenção e
imutabilidade (rio acima), que domina nos momentos de continuidade da ordem social.
Pode-se falar, também, de uma alternância entre repetição (homens) e originalidade
(mulheres).
Há um paralelo óbvio entre a atuação feminina durante o luto e aquela que é
atribuída às mulheres nos tempos míticos. Tanto no início dos tempos quanto no luto, as
mulheres (enquanto esposas) são responsabilizadas pelos processos de transformação da
ordem anterior. Os humanos mágicos resolveram conhecer o sexo, e com ele a morte, por
causa das mulheres, assim como um mundo sem outros/mulheres é um mundo sem mortes
e sem transformações. A associação entre feminilidade e a morte se dá não só porque os
corpos femininos se transformam mais, e assim são mais mortais, mas também porque os
homens começaram a procriar/morrer por causa das esposas. Nos tempos míticos, as
atitudes imorais e originais das mulheres deram início aos conflitos e às transformações,
obrigando os homens a agir, impondo leis disciplinadoras, para controlá-las; durante o luto,
a fala original das mulheres instala os conflitos e as transformações, um caos momentâneo
que é interrompido após a intervenção dos homens, que suspendem o luto e retomam o
controle da vida cotidiana e ritual com sua ênfase na repetição da tradição.
Cada vez que um ser humano nasce e morre, repete-se a passagem traumática do
paraíso. O período de luto equivale, simbolicamente, ao caos inicial relatado pela
mitologia. Assim como o tempo mítico foi um tempo de intensa criação do novo (através
da criação dos filhos e das novas formas sociais, as leis humanas) e do surgimento da
morte que acompanha inevitavelmente as transformações, no luto também coexistem, em
igual intensidade, a criação do novo e a morte. Afinal, as letras produzidas pelas mulheres
têm que ser sempre inéditas e baseadas no improviso, a encarnação da originalidade
criativa, ao passo que a mitologia e as músicas masculinas enfatizam sempre a imitação do
mesmo ou a fixação de um padrão, ou seja, a continuidade da tradição que controla o
desregramento feminino. Os homens criam músicas novas também, mas a sua letra é
sempre uma justificativa para a necessidade de manter tudo como sempre foi, enquanto as
letras produzidas pelas mulheres acusam e desestabilizam 28 .
Em suma, tanto nos tempos míticos quanto no luto, as mulheres são associadas ao
impulso da criação do novo e à mortalidade, enquanto os homens são os que tentam conter

28
Note-se que as ceramistas Karajá se destacam justamente pelas “diferenças estilísticas” entre uma e outra,
enfatizando-se a criatividade artística. Segundo Fénelon Costa (1978:72), “as produções das melhores artesãs
são sensivelmente distintas umas das outras”.

463
ou fixar os fluxos criativos e mortais, apegando-se à repetição ou imitação dos costumes.
Significativamente, apenas os choros criados durante o luto são originais, enquanto aqueles
que ocorrem esporadicamente, por algum motivo que não a morte, são meras repetições. O
esforço cotidiano de manter a ordem cotidiana, através da manutenção da tradição, é
masculino; o impulso da desestruturação da ordem e conseqüente criação do novo,
manifesto nos tempos míticos e no luto, é feminino. A ordem é repetitiva, a desordem é
criativa. Em outras palavras, a tradição é masculina e a mudança é feminina 29 .
Por isso o outro/novo que introduz a mudança, como os outros povos indígenas e os
brancos, é feminilizado pelo discurso mítico e cosmológico Javaé. As transformações
geradas através do contato com outros povos, em especial os brancos, com seu poder
destrutivo de transformação do que existia antes, pertencem simbolicamente muito mais ao
espaço feminino de subversão da ordem, associado ao luto e à morte, do que ao cotidiano
comandado pela voz masculina 30 . O contraste entre a manutenção da ordem cotidiana
pelos homens e o descontrole criativo instalado pelas mulheres, seja nos tempos míticos ou
durante o luto, é o mesmo tipo de contraste entre os aruanãs, que se controlam, e os aõni,
que desestabilizam e ameaçam a ordem prévia com seu comportamento agressivo,
canibalismo potencial e agitação corporal.
O que chama a atenção é que o feminino não se limita a uma função procriadora ou
meramente desordenadora, em contraste com a função social ordenadora dos homens,
dentro de um esquema simplista e dualista que opõe homens/ordem/sociedade a
mulheres/desordem/natureza. O paradoxo da criatividade/mortalidade, que é revivido no
luto, implica que a capacidade de se transformar mais e ser mais mortal significa desordem
e mistura de um lado, mas ao mesmo tempo ser mais criativo/original e fértil, seja no que
se refere à produção do corpo (filhos) ou da subjetividade. A ordem e a pureza, por sua
vez, representam a não criação, a simples repetição do mesmo. O prestígio público é
daqueles que conseguem controlar as transformações e manter as formas imutáveis, o mais

29
Em uma interpretação diferente, Lima Filho (1994:155) associa os homens Karajá à morte, pois eles são os
mortos (worosy) nos rituais e lidam com essa esfera interdita às mulheres; e as mulheres à vida, pois são
associadas às atividades de nutrição e suas lamentações fúnebres seriam meios de “resgatar a vida”,
prevenindo e protegendo os parentes das ameaças de feitiços.
30
No único ritual em que as mulheres representam um Aroe Bororo, elas encarnam o “o velho Brasileiro”
(Crocker, 1985:102) que assusta as crianças, o que Crocker considera uma anomalia, pois as mulheres nunca
representam os Aroe, um tarefa masculina. Não deixa de ser significativo que, assim como os Javaé, são as
mulheres que são associadas aos brancos no ritual: em uma brincadeira dos aruanãs realizada pelas crianças,
os aruanãs mirins flecham não os aõni, mas um casal estilizado de brasileiros, que ocupa o lugar simbólico
do feminino (ver Rodrigues, 1993). Não deveria ser tão anômalo assim se lembrarmos que o Bope, associado
ao feminino, é o domínio dos processos de criação e transformação, ou seja, da incorporação do novo.

464
próximo possível da sua essência original e pura, embora isso não signifique assumir que
as transformações não existem, muito pelo contrário. Assim como as mulheres e os outros,
elas são parte intrínseca da existência e, por isso mesmo, é necessário tanto esforço para
controlá-las, o que é alcançado relativamente.
As mulheres podem ser tidas como imorais pelos homens por expelirem mais
substâncias/desejos e terem menos prestígio por serem associadas às transformações e à
morte, mas as concepções paradoxais sobre os processos corporais subentendem que elas
são também a fonte do impulso criativo e da originalidade. Embora os Javaé valorizem
muito mais a repetição, pois toda criação leva à morte, as grandes oradoras e seus produtos
adquirem enorme prestígio e respeito. Além do mais, a sua criação é geradora de honra
para as famílias dos que morrem. Assim como os brancos são tidos como avaros (de
sentimentos descontrolados e inferiores), porém tecnologicamente superiores, havendo um
contraste entre um desprestígio explícito e um prestígio implícito, as mulheres são imorais
e mortais, porém criativas e originais, partilhando do mesmo tipo de contraste. A
imoralidade feminina é indissociável da sua capacidade criativa, porque toda criação
pressupõe uma subversão da ordem anterior. A grande fertilidade feminina é
simbolicamente imoral, porque ela representa a subversão da ordem mágica e a perda do
status quo original que a coletividade masculina tenta recriar desde então.
O mesmo tipo de poder imenso que é atribuído às armas dos brancos é atribuído à
fala feminina, ambos criativos e destrutivos na mesma proporção intensa: as armas de fogo
são a expressão de uma criatividade tecnologicamente superior, porém mortal; as criações
femininas são mais criativas/originais e ao mesmo tempo poderosamente mais destrutivas.
O fato das armas de fogo terem sido feitas de partes do corpo feminino revela que a
tecnologia do branco é vista, portanto, como o fruto de uma criatividade extraordinária e
incontida, a mesma que os torna mais imorais/avaros e poderosos/mortais. O próprio
Tanyxiwè, em sua ambigüidade essencial, foi masculino quando se sacrificou pela
humanidade e criou as leis dos homens, mas foi feminino não apenas em sua avareza e
descontrole corporal, mas também através de uma criatividade excepcional que o
diferenciava dos outros humanos, capaz de criar truques e armadilhas originais. Não por
acaso, o seu filho foi o criador das armas dos brancos. Em termos espaciais, a criatividade
associa-se ao rio abaixo feminilizado, o ápice da caminhada de aprendizado e criação de
Tanyxiwè e onde seu filho criou as armas de fogo, enquanto a repetição associa-se ao rio
acima masculinizado, onde tudo começou a partir da imutabilidade anterior.

465
Como já foi dito, em termos corporais, o rio abaixo associa-se às porções inferiores
do corpo cósmico, como as nádegas e o ânus, enquanto o rio acima associa-se às suas
porções superiores, como o rosto ou a cabeça. A comida entra pela boca (em cima) e sai
transformada pelo ânus (embaixo), assim como o herói começa a sua caminhada puro e
ingênuo e chega ao fim tendo adquirido esperteza e sabedoria. O processo de
transformação e criação do novo ocorre entre o começo e o fim nos dois casos. As fezes
que saem pela parte inferior do corpo são um sinal de descontrole e de impureza, mas
também da capacidade de criar o novo, assim como o corpo feminino, situado
simbolicamente no rio abaixo, é descontrolado e impuro, mas também mais criativo. No
fragmento mítico em que Tanyxiwè conquista as pinturas corporais e a escrita, elas estão
localizadas no ânus de Worosy, o humano de quem o herói as tomou. Elas se chamam
Worosy hetxi ruritihiky (“a pintura ou escrita do ânus do Worosy”) e o Worosy tem que
olhar para o próprio ânus para copiá-las. Significativamente, a criatividade inerente ao
poder da escrita, um poder que também pode ser destrutivo e imoral, associado aos
brancos, está localizada no ânus de um corpo humano.
Se lembrarmos do contraste entre as contribuições dos Wèrè e do povo de Tòlòra
para os Javaé atuais, associadas ao contraste entre feminino e masculino, conflito e paz,
movimento e estatismo, veremos que os vários conflitos causados pelos Wèrè aconteceram
na mesma proporção em que estes conquistaram bens materiais e culturais de outros povos,
trouxeram os rituais que conheciam no Fundo das Águas e criaram novas regras e
procedimentos culturais quando passaram a conviver com Tòlòra em Marani Hãwa. Na
verdade, o mito fala explicitamente que as criações dos Wèrè eram bem mais bonitas e
ricas que as do povo de Tòlòra, cabendo aos primeiros a iniciativa de transformar o que
existia antes e enriquecer as tradições. Houve uma fusão entre duas matrizes culturais
diferentes, dando origem à cultura atual, mas a cada uma delas é atribuída um papel
diferente: enquanto os Wèrè iniciam as transformações de forma original, através de uma
criatividade mais elaborada, o povo de Tòlòra esforça-se para manter inalterada a nova
tradição criada, assim como mulheres e homens no seu dia a dia.
Assim, o mito e as práticas diárias deixam claro que o esforço de criação do novo é
associado a um princípio feminino, enquanto o esforço de manutenção do mesmo é
associado a um princípio masculino. Pode-se dizer que a criação feminina, assim como o
poder criativo e mortal dos brancos e dos Wèrè, contêm um prestígio subliminar e imenso,
mas real, pois os Javaé, enquanto Povo do Meio, não concebem a realidade em termos de

466
dicotomias simples, mas em termos de paradoxos e ambigüidades inerentes a este plano
social. A mortalidade e o conflito são desvalorizados, mas a capacidade de criação original
não deixa de ter grande prestígio, ainda que de forma subliminar. Ou dito de outro modo: o
poder da imortalidade, associado à imutabilidade, é o verdadeiro poder desejado pelos
homens, porém inatingível, enquanto o poder da criatividade tecnológica, associado às
transformações, é o poder possível aos humanos sociais, embora de menor prestígio. Aqui
se tem uma concepção diferente daquela do alto Rio Negro (S. Hugh-Jones, 1988), onde há
uma ligação entre saber técnico e imortalidade, comentada por Viveiros de Castro
(2002c:204), para quem há uma relação comum entre “os mitos de gênese dos brancos e a
etiologia da vida breve ou da mortalidade” 31 .
Na introdução de outra importante coletânea sobre a questão do gênero, Ortner &
Whitehead (1996) sugerem que as concepções a respeito do gênero remetem, antes de
tudo, a estruturas de prestígio. Lembrando o que propõe Ortner (1979), baseada na
oposição entre natureza e cultura, o maior prestígio masculino universal teria sua origem
na capacidade de criar cultura ou transformar a natureza, em oposição às funções
reprodutoras da mulher, que seriam mera repetição da vida biológica. A autora considera
que, em todas as sociedades, o prestígio vem da transformação e o desprestígio da
repetição. No caso Javaé, não existe a distinção entre natureza e cultura e a sua
transposição para as relações de gênero, pois as mulheres são tão sociais e tão capazes
quanto os homens de criar produtos outros que não só os filhos. Em segundo, a
transformação é desprestigiada explicitamente e as criações masculinas não são vistas
como intervenção transformadora sobre a natureza, mas como agentes da contenção e
repetição.
As leis não são a cultura transformando a natureza, mas um produto corporal/social
masculino cuja função é manter a ordem anterior, uma tentativa de imitação do estatismo
da ordem mágica. A criatividade das mulheres também não pertence ao passado (como nos
casos de roubo masculino das flautas femininas míticas, por exemplo) e seu produto não é
perecível como os corpos dos filhos, mas faz parte atuante e fundamental do presente e se
mantém perene na memória coletiva. Os Javaé dizem que ninguém esquece das grandes
31
Wright (2002:291), ao analisar as categorias “contaminação e pureza” nas tradições proféticas dos Baniwa
(Arawak), encontra o mesmo tipo de associação entre perigo/contaminação e criatividade. Mais interessante
ainda é que Amáru, a primeira mulher mítica, é a um só tempo “a dona das doenças” e “a mãe dos brancos”.
Após alguns episódios e graças a seu grande conhecimento, Amáru e as outras mulheres começaram a
produzir as fábricas dos brancos e seus bens tecnológicos. Estes, por sua vez, são considerados a origem das
doenças dos brancos. Em suma, as mulheres são associadas por esse povo Arawak, a um só tempo, tanto ao
poder de contaminação mortal quanto à criatividade tecnológica dos brancos.

467
iburudu e suas criações, assim como dos grandes compositores e suas músicas de aruanã.
Note-se que não faz sentido, aqui, a oposição entre público/masculino e
doméstico/feminino, encontrada entre os Jê-Bororo (ver coletânea de Maybury-Lewis,
1979a ou Seeger, 1981), por exemplo, e considerada universal por Rosaldo (1979), pois
tanto o homem como a mulher têm forte atuação e prestígio públicos, embora em tempos e
espaços que se opõem, de forma complementar e assimétrica, e dotados de significados
diferenciados.
Não deixa de ser paradoxal também o fato de que, apesar do descontrole atribuído
às mulheres, são elas que são capazes de conter de forma extraordinária as lágrimas, no
momento de maior sofrimento, e transformar a dor e a raiva em rica criação subjetiva. É
como se o corpo feminino, por ser aquele que se transforma mais, fosse também o mais
capaz de transformar as substâncias internas, transformando sêmen em filhos e dor em arte.

6.3. Toda criação é um tipo de procriação

Temos visto até agora que, para os Javaé, o sujeito humano é definido
primordialmente em termos de uma totalidade corporal que integra o concreto e o abstrato,
o visível e o invisível, a matéria e a consciência, o criador e a criatura. Para o Ocidente,
diferentemente, a humanidade seria portadora de uma capacidade única em relação às
outras formas do universo, uma “segunda natureza” (Giddens, 1993:168, 1994:161)
imaterial, a qualidade transcendente do sujeito humano, aquilo que o torna capaz de criar a
sociedade e a História, livre das amarras do determinismo biológico ou material. Nas
palavras de Viveiros de Castro (2002g:382), “o espírito é o nosso grande diferenciador: é o
que sobrepõe os humanos aos animais e à matéria em geral, o que singulariza cada humano
individual diante de seus semelhantes, o que distingue as culturas ou períodos históricos
enquanto consciências coletivas ou espíritos de época”.
A idéia de que existe uma essência humana compartilhada por tudo que se
manifesta na realidade, de modo visível ou não, indica que não se diferencia radicalmente
o que é humano do que não é. No Ocidente, o humano situa-se em um domínio superior a
tudo aquilo que é definido como não humano ou como determinado pelas leis intrínsecas
da matéria. O contraste entre o humano e o não humano desdobra-se no contraste entre o

468
que é social e o que é natural, o que pertence à sociedade e à natureza (ver Latour, 1994 e
Viveiros de Castro, 2002e). Dentro dessa oposição epistemológica à qual se associa o
contraste entre sujeito e objeto, identidade e alteridade, tudo aquilo que, em um
determinado momento, possa ser definido como pertencente ao domínio da alteridade,
como as mulheres, os povos indígenas, os loucos ou os homossexuais, por exemplo, é, em
algum grau, naturalizado. Mesmo a diferença entre as sociedades é interpretada em termos
da dicotomia social/natural, havendo grupos humanos que são considerados mais próximos
da natureza original. Em geral, preenche-se tudo o que pertence ao domínio da diferença
com um conteúdo naturalizante.
No que diz respeito aos Javaé, o material etnográfico mostra que a diferença
conceitual entre o que é humano e o que não é, entre uma província social e uma natural,
não tem a mesma relevância que entre nós, uma vez que não se concebe a existência de
qualquer nível da realidade que possa ser classificado como não humano ou autogerado. A
análise dos dados aponta que a grande diferença conceitual significativa não é aquela entre
humanos e não humanos, ou entre cultura e natureza, mas entre os tipos de humanos
existentes. Mais precisamente, entre os tipos de corpos humanos, pois o humano e seus
produtos são, antes de tudo, corpos. Como tudo é humanizado, o domínio da diferença não
se encontra fora dessa humanidade essencial, mas dentro dela. A cosmologia e a mitologia
Javaé não estão interessadas em ressaltar as diferenças dos outros seres do universo em
relação aos seres humanos, como no caso ocidental. O olhar cultural Javaé dirige-se muito
mais às semelhanças que existem entre os seres humanos e os “outros” cósmicos (aqui em
um sentido amplo, incluindo os animais, as plantas, os planetas, os conceitos, os seres
invisíveis etc) do que às possíveis diferenças.
Enquanto o Ocidente estabelece artificial e conceitualmente o isolamento dos seres
humanos de todo o resto que existe, o que se traduz na oposição básica entre o “nós” e os
“outros”, os Javaé consideram como mais significativo, igualmente de modo artificial, o
que os habitantes ou as diversas formas do universo têm em comum entre si. O olhar
nativo não focaliza a estranheza das outras formas cósmicas, mas a semelhança
compartilhada, o que é traduzido como uma humanidade em comum 32 . Esse modo de se
relacionar com o mundo é diferente do animismo sociocêntrico de Descola (1992),
32
Como diz Viveiros de Castro (2002g:358), a respeito do xamanismo em seu texto sobre o perspectivismo
ameríndio, na epistemologia objetivista da modernidade ocidental, “a forma do Outro é a coisa. O
xamanismo ameríndio parece guiado pelo ideal inverso. Como conhecer é personificar, tomar o ponto de
vista daquilo que deve ser conhecido – daquilo, ou antes, daquele; pois o conhecimento xamânico visa um
‘algo’ que é um ‘alguém’, um outro sujeito ou agente. A forma do Outro é a pessoa”.

469
“ontologia que postula o caráter social das relações entre as séries humana e não-humana:
o intervalo entre natureza e sociedade é ele próprio social”, nas palavras de Viveiros de
Castro (2002g:364).
No caso Javaé, não se trata de dizer que as relações com os não humanos são
sociais, isso que Descola (1994:326) chama de “domesticação mental da natureza”, mas de
acreditar que há mais semelhanças do que diferenças entre as diversas formas existentes no
universo. A continuidade entre os humanos e outros tipos de seres ou formas – ou a
imanência de uma condição humana em todo o universo – não significa aqui uma projeção
das relações sociais sobre uma natureza existente a priori, mas que o “nós” Javaé mais
englobante não se define no contraste com os animais, plantas e outros seres ou formas do
mundo material. A alteridade não está naquilo que diferencia os não humanos dos
humanos, mas naquilo que diferencia os próprios seres humanos (ou os seres humanizados)
uns dos outros 33 .
Como a “humanidade” dos seres humanos não reside em suas consciências
abstratas ou almas separadas, mas em seus corpos integrados, a diferença entre os humanos
remete à diferença entre os tipos de corpos humanos sociais. Em outras palavras, entre os
corpos mais fechados e os mais abertos, entre os que se controlam mais e os que se
transformam mais, enfim, entre os corpos masculinos e os femininos. O grande divisor de
águas conceitual nativo que demarca o que é identidade e o que é alteridade não toma
forma através das categorias cultura e natureza, ou da divisão entre humanos e não-
humanos, mas através da diferença corporal e subjetiva entre o masculino e o feminino,
ambos igualmente sociais e humanizados. Não é em uma “segunda natureza” humana
transcendental, contraposta à natureza básica de todos os outros seres, que reside a
principal divisão entre nós e outros, mas entre os atributos do masculino e do feminino. A
inteligência superior do herói Tanyxiwè não o distingue dos animais, mas de outros
humanos, que são então transformados em animais.
Por isso, tudo que pertence ao domínio da alteridade, entre os Javaé, não é
naturalizado, como entre nós, mas humanizado. Melhor dizendo, feminilizado. O diferente
não está mais próximo da natureza, mas tem um corpo/subjetividade mais próximo daquilo
que é considerado feminino 34 . Todos os seres que são vistos como outros (ou que se

33
Viveiros de Castro (2002h:421) refere-se à oposição entre “as interpretações ‘projecionistas’ e
‘imanentistas’ do chamado animismo”.
34
Tal concepção é diferente daquela proposta por Viveiros de Castro (2002g:382) a respeito do
“perspectivismo” e “multinaturalismo” ameríndios: “nossa cosmologia imagina uma continuidade física e

470
tornam outros em algum momento ou contêm alguma característica associada aos outros)
estão, também, na posição simbólica do feminino, seja no que se refere às suas
características corporais ou subjetivas. É o que acontece com os aõni, que são controlados
e penetrados de forma simulada pelos aruanãs, com quem os homens se identificam, assim
como as mulheres são penetradas pelos homens e mantidas à distância por eles. Ou com os
ixyju (povos estrangeiros), cujo nome deriva de ixy, a palavra usada para designar a
coletividade feminina, e que são associados às mulheres nos mitos.
Os Tori (brancos) têm sua origem mítica associada ao extremo feminino do rio
abaixo e suas armas de fogo poderosas são transformações do corpo criativo e mortal das
mulheres (os brancos são “flechados” pelos aruanãs na brincadeira dos weryry irasò,
“aruanã das crianças” [ver Rodrigues, 1993]). Os kuni, primeiro estágio de transformação
da pessoa após a morte, quando o morto vira um estranho que persegue os parentes à noite,
durante o luto, partilham de características atribuídas ao feminino, como a insatisfação
crônica (carência de comida, abrigo, afeto etc), o que tem paralelo simbólico como a
carência ou insatisfação das mulheres em relação ao sexo nos mitos e músicas (daí a
prática de incesto, adultério, pedofilia etc), e uma movimentação excessiva no espaço
(associada a uma maior transformação), pois não param de andar em busca dos parentes.
Os kuni também agridem e causam medo à coletividade principalmente durante o luto,
assim como as mulheres, de forma semelhante, em seus choros e xingamentos.
Outros personagens são caracterizados por uma ambigüidade essencial, contendo
em si características tanto da corporalidade e subjetividade masculina como feminina, estas
últimas sempre associadas aos valores e comportamentos criativos/mortais e imorais. Os
hàri (xamãs) ambíguos são masculinos através de sua face pública de curadores (atuação
em prol da continuidade social) e condutores dos rituais masculinos; e femininos através de
sua capacidade de matar (a mortalidade é associada à feminilidade) e seus
comportamentos, nos bastidores, considerados como individualistas e avaros pelos Javaé
(ver Rodrigues, 1993). Do mesmo modo, Tanyxiwè, como já foi dito, é ambiguamente

uma descontinuidade metafísica entre os humanos e os animais. (...) Os ameríndios, em contrapartida,


imaginam uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física entre os seres do cosmos, a primeira
resultando no animismo – ‘a participação primitiva’ –, a segunda, no perspectivismo. O espírito, que não é
aqui substância imaterial mas forma reflexiva, é o que integra; o corpo, que não é substância material mas
afecção ativa, o que diferencia”. Em outras palavras, “o grande diacrítico, o sítio da diferença de perspectiva
para os europeus é a alma (os índios são homens ou animais?); para os índios, é o corpo (os europeus são
homens ou espíritos?)” (2002g:381). Para os Javaé, não existe a oposição entre uma metafísica transcendental
e uma física concreta, e a continuidade com os seres do cosmos, que não se restringe apenas aos animais, é a
um só tempo corporal e “espiritual”, ignorando a distinção epistemológica entre natureza e cultura.

471
masculino (sacrifício pela humanidade, começo de sua caminhada no extremo masculino
do rio acima) e feminino (tem um corpo mais descontrolado, defecando sem controle, é
considerado avaro e egoísta quando sobe ao Céu no extremo feminino do rio abaixo,
deixando de pagar o serviço da noiva aos cunhados, e é mais criativo que os outros
humanos).
Por fim, podemos citar também o contraste entre os Wèrè e o povo de Tòlòra, cujas
diferentes contribuições à formação dos Javaé atuais são interpretadas em termos da
oposição entre um princípio feminino (os Wèrè são os outros causadores de conflitos,
movimentam-se no espaço e são muito criativos) e um masculino (Tòlòra é o pacificador e
permanece estático em seu lugar de origem, dando continuidade à tradição modificada
pelos Wèrè e outros). Em todos esses exemplos, a estranheza ou alteridade dos
personagens em questão não é situada no domínio da natureza, mas feminilizada ou
associada aos corpos sociais femininos.
Pode-se dizer que, entre os Javaé, é plenamente válido o pressuposto de Strathern
(1990:35), para quem, inspirada em uma proposição feminista mais geral, “ao se lidar com
as relações entre os sexos, lida-se com as relações sociais como um todo”. As relações de
gênero entre os Javaé, que aqui não têm o sentido de “identidade sexual” 35 , não são, assim,
uma dimensão a mais ou um domínio particular da vida social, mas a essência da própria
vida social, uma vez que toda e qualquer diferença é “generizada”. Como a procriação –
enquanto relação que produz a diferença física e social entre um corpo masculino e um
feminino – é o fato primordial a partir do qual toda diferença social é gerada, toda
categorização da alteridade remete à diferenciação entre masculino e feminino, o
parâmetro básico para as noções de identidade e alteridade.
Para Strathern, os conceitos de masculinidade e feminilidade não são
necessariamente apenas sobre as relações concretas entre os indivíduos de diferentes sexos,
o que pressupõe o conceito de indivíduo enquanto unidade autônoma e delimitada, mas
remetem aos domínios mais amplos da socialidade. Em sua argumentação a favor de se
considerar o gênero não como realidade observável, mas como “transposições da ordem
cognitiva à ordem empírica” ou estrutura abstrata de relações, Segato (1997:237) considera
que “a estrutura, a partir da primeira cena em que participamos – a cena familiar, ou
substituta, primigênia, não importa a que cultura de que se trate ou o grau de desvio em
relação ao padrão de uma cultura particular –, traveste-se de gênero, emerge nas

35
Ver a crítica de Strathern (1990) e McCallum (2001) a esse conceito naturalizante e individualista.

472
caracterizações secundárias com os traços do homem e da mulher, e nos seus papéis
característicos”.
O fato das diferenças em geral serem pensadas como traduções simbólicas da
diferença básica entre características masculinas e femininas é uma conseqüência da
“corporalização”, digamos assim, da realidade em todas as suas manifestações possíveis.
Onde tudo é corpo, as diferenças significativas são aquelas entre os corpos humanizados.
Mais do que isso: onde tudo é corpo, toda relação entre diferentes (entre masculino e
feminino) é concebida não como predação, que segundo Viveiros de Castro (1993,
2002b:164) seria “a modalidade prototípica da Relação nas cosmologias ameríndias”, mas
aos moldes da procriação, como uma relação criativa entre dois corpos. Como não há
separação entre a criatividade subjetiva (criação da sociedade) e a criatividade física (dos
filhos), pois o sujeito que cria é um corpo integrado, e não uma mente abstrata, toda
criação dos sujeitos humanos – seja os filhos ou as formas sociais e materiais – é tida como
uma forma de procriação do sujeito/corpo 36 .
Como será aprofundado na segunda parte, a afinidade é a “a categoria da diferença
ou da relação”, como propõe Viveiros de Castro (1993, 2002b:164) para as cosmologias
ameríndias em geral (assim como Kaplan, 1984), para quem “o Outro, em suma, é primeiro
de tudo um Afim” (Viveiros de Castro, 2002h:416). Mas ela aqui é concebida em termos
de uma relação de procriação com o Outro, que é antes de tudo um ser feminilizado. A
existência da alteridade é pensada muito mais como a existência de um princípio feminino
do que como a existência de afins. A afinidade, enquanto relação social entre diferentes, é
tida como uma conseqüência do surgimento dos corpos femininos, a origem das diferenças.
Quando os corpos se fundiram e produziram a diferença primordial, esta tomou a forma de
um corpo feminino, para a partir de então ser associada à existência dos afins.
O contraste entre o nível celeste autonutridor, onde se vive apenas entre parentes, e
a Terra dos Ensangüentados, onde se vive entre outros, perdendo energia vital, contém o
mesmo tipo de simbolismo, de um ponto de vista masculino, associado à casa natal, onde
se é nutrido, e à casa dos afins, onde se trabalha para nutrir os outros, perdendo suas
substâncias vitais através do trabalho e dos filhos que são produzidos. O mesmo contraste
entre receber e dar (ou perder), existente no Céu e na Terra dos Ensangüentados, é revivido

36
Rivière (1993) questiona a validade da predação como modelo geral das sociedades amazônicas para as
relações com os outros externos à sociedade. O modelo predatório também é questionado nos trabalhos
recentes relacionados à matriz cultural Arawak (ver Heckenberger 2001a, 2001b, 2002, Hill & Santos-
Granero, 2002).

473
na casa natal e na casa dos afins. Apesar de se referir também à oposição entre parentes e
afins, o que caracteriza a oposição entre os dois lugares origina-se da diferença entre os
corpos masculinos e femininos, entre contenção e desregramento, estatismo e
transformação. Em outras palavras, é da oposição entre masculino e feminino que surge a
oposição entre parentes e afins.
Em um mundo onde tudo o que existe na realidade é corporificado, os processos
corporais são a principal linguagem para todos os processos: o mistério sagrado da
reprodução, que é a capacidade de dois fundirem-se em um terceiro ser, uma nova criação,
é o modelo de toda criação, física ou subjetiva. Como as criações subjetivas são
consideradas como sendo tão substanciais como os filhos corpóreos, a criação histórica da
sociedade é concebida dentro dos mesmos termos da procriação. Por isso, tanto a mitologia
como a cosmologia Javaé deixam claro que todas as criações sociais (o que inclui a
sociedade e a própria matéria visível) são o produto de relações entre diferentes, entre um
masculino e um feminino, e que toda mistura entre diferentes é criativa (e mortal),
enquanto a pureza, ou ausência de relações, mantém a mesmice de sempre inalterada. Mas
o que realmente significa dizer que a procriação é o modelo de toda criação? Basicamente,
que toda criação depende da interação substancial e social entre dois princípios que se
fundem, produzindo um terceiro corpo.
Os dois originais tornam-se opostos entre si através da relação que cria a diferença
entre um e outro, assim como pai e mãe fundem-se para produzir um filho e tornam-se
estranhos entre si em um primeiro momento de poluição, durante a couvade. Em outras
palavras, toda criação está no lugar corporal e simbólico dos filhos, em especial o
primogênito, e só é possível a partir da relação com um Outro. O fato extraordinário da
procriação, o milagre da multiplicação de dois em três, ou do mesmo no diferente, significa
aos olhos dos Javaé que apenas as misturas são produtivas, contendo um poder
excepcional, que é o poder da transformação do status quo e da criação do novo. Seja no
nível das relações pessoais mais restritas, em que uma interação com outra pessoa
transforma o próprio corpo em um outro ser, ou no nível das relações coletivas mais
amplas, em que uma interação com outro povo transforma a antiga estrutura social, e ainda
que o novo não seja desejado culturalmente, há um reconhecimento implícito de que tal
capacidade transformadora configura um poder imenso.
Parece haver um conceito bastante parecido entre os Bororo (Crocker, 1985:54),
para quem, durante o nascimento de uma criança, a energia vital (raka) de cada um dos

474
pais “is so powerfully alive and creative that it endows the mother’s and the father’s aroe
with the capacity to transcend historical time, during those moments when their infant is
crystalizing a segment of local social history. If a man and woman can so alter the organic
flow as to introduce into it a new being, they are capable of bringing about other changes
in the sensate world”. O autor refere-se à potência profética fora do comum dos sonhos dos
pais de uma criança nos momentos que circundam o trabalho de parto. O poder de criar um
filho é tão grande que se expande para os sonhos dos criadores e seus Aroe (essências
espirituais), tornando-se nesse momento capazes de prever realmente o futuro e alterar o
fluxo histórico.
Mas esse é um poder, entre os Javaé, que não está acessível a um indivíduo, como
em nossa teoria social a respeito da agência humana, ou seja, sobre a capacidade dos
homens em criar as próprias condições sociais de existência. Ele é, antes de tudo, o fruto
de uma relação social, e não o fruto de uma ação individual, ainda que feita em conjunto
com outros indivíduos. Assim como um homem ou uma mulher sozinhos são incapazes de
gerar um filho, um indivíduo é incapaz de criar e transformar a sociedade. A potência
criadora não está no indivíduo, mas na relação entre dois sujeitos diferentes. Segue-se,
portanto, que a produção da sociedade e da História não é concebida como o fruto da ação
de sujeitos individualizados e dotados de consciências extracorpóreas, mas como o produto
de uma relação criativa entre dois sujeitos/corpos, um masculino e um feminino, em seu
sentido mais amplo, o que nos conduz a uma teoria nativa da agência humana e da práxis
social, assunto do próximo item, que entre os Javaé é inseparável de uma práxis corporal.

6.4. A unidade da ação: coação feminina e reação masculina

A discussão feita até agora aponta para uma teoria Javaé não apenas sobre o sujeito
da ação, mas sobre o modo como se dá a ação social como um todo, ou seja, sobre o
processo de produção da sociedade ao longo do tempo, o que inclui a relação entre
estrutura e agência, continuidade e mudança. Lembrando o que foi exposto logo no início
deste trabalho, a antropologia e a sociologia têm procurado, nos últimos trinta anos,
formular modelos teóricos sobre a construção histórica da sociedade em que os seres
humanos não sejam simplesmente determinados passivamente por uma consciência

475
coletiva transcendente e reificada, como na tradição durkheimiana, cujo foco são as
estruturas sociais, nem sejam considerados como agentes capazes de criar a sociedade
livres de uma coerção social anterior, como nas sociologias interpretativas, cujo foco é o
sujeito da ação.
Tanto em Giddens (1993, 1994) como em Bourdieu (1995), por exemplo,
inspirados na teoria marxista, tem-se a busca de uma teoria da prática que concilie a
relação dialética e histórica entre agência e estrutura, entre o ator e o sistema, de modo que
a sociedade seja considerada como um produto dos agentes humanos, porém não livre de
fortes condicionamentos, tentando escapar ao determinismo das normas e ao voluntarismo
dos sujeitos. Estes seriam reprodutores de uma tradição anterior e ao mesmo tempo
capazes de criar o novo, alterando a estrutura. Ou como já disse Ortner (1984:148), “a
teoria da prática moderna procura explicar (…) o impacto do sistema sobre a prática, e o
impacto da prática sobre o sistema”. Os atores sociais são vistos, então, como produtores e
reprodutores da estrutura social, na medida em que a tradição herdada é, a um só tempo, o
meio que propicia e constrange a ação dos seres humanos e também o resultado dessa ação
transformadora. Busca-se explicar como a estrutura age sobre os atores e vice-versa, ao
longo do tempo, em uma perspectiva que funde Antropologia e História.
Em todos esses casos, entretanto, o sujeito da ação, aquele que transforma “micro-
práticas em macro-processos” (Comaroff & Comaroff, 1992:38), e mesmo que as
transformações sociais sejam em sua maior parte conseqüência de ações não intencionais, é
o indivíduo racional, ainda que seja ignorante dos princípios da estrutura (Bourdieu, 1995)
ou tenha o conhecimento implícito dela, uma “consciência prática” (Giddens, 1994:70).
Para Ortner (1984:149-150), “o estudo da prática é, ao final das contas, o estudo de todas
as formas de ação humana (...). Em primeiro lugar existe a questão sobre o que se toma
como unidades de ação. A maioria dos modelos de uma teoria da prática na antropologia
considera os atores individuais como unidades”, podendo-se falar de um “individualismo
essencial na maior parte das formas atuais da teoria da prática”. Em geral, o agente é “um
ator essencialmente individualista, e um tanto agressivo, auto-interessado, racional,
pragmático, e talvez também com uma orientação de ganhos máximos” (1984:151).
Em seus comentários sobre a questão da desigualdade entre os gêneros, Strathern
(1987) considera que o conceito de “agência”, essencial para essa discussão, refere-se à
maneira como as pessoas delegam uns aos outros a causalidade ou a responsabilidade pela
ação, o que envolve questões a respeito da influência e do poder. Strathern cita a crítica de

476
Ortner ao individualismo da teoria da prática, cujo conteúdo resume-se a dizer que “nós
devemos reconhecer as origens culturais da motivação individual. Tal reconhecimento
ainda deixa o ator individual como o que conhece os seus interesses e também como o
sujeito de interesse teórico” (Strathern, 1987:22). Para a autora, “a discussão de Giddens é
também firmemente situada em uma conceituação do indivíduo como a fonte da ação”
(1987:24), dentro da oposição indivíduo e sociedade. Há então a proposta de se expandir e
investigar o conceito de “agência”, que pode ter outras conotações, não individualistas, em
outras sociedades:

“(...) Existem outras conotações do conceito de ‘agência’ (...), ou seja, o agente, no


sentido de agir em nome de outra pessoa, uma fonte de ação independente, embora não
necessariamente com intenções concebidas independentemente. As pessoas agem, mas
os interesses em termos dos quais elas agem podem ser ambíguos. (...) Como as
pessoas são vistas submetendo as outras; como elas são afetadas pelos outros? As
pessoas são os autores de seus próprios atos? Ou eles obtêm sua eficácia dos outros?
Se, em termos ocidentais, as relações de poder têm a ver com ações efetivas, então o
que, nessas sociedades não-ocidentais, conta como evidência disso – o que é visto
como a origem de eventos particulares, resultados, conjuntos de comportamentos? (...)
Então nós não deveríamos estar lidando, em primeiro lugar, com motivação individual,
mas com o tema mais geral de como os efeitos sociais são registrados.
(...) Ao se voltar, no lugar disso, para como a ação causadora é registrada, pode-se
encontrar interesses indígenas bastante diferentes. Já foi argumentado que ‘mentes’ não
são necessariamente consideradas como o autor ou o registrador dos atos. Além disso, o
indivíduo particularizado (corpo, pessoa) pode ser, de modo mais plausível, muito mais
o lócus do efeito do que a sua causa. Assim, a realização de certos relacionamentos,
por meio de transações ou fluxos de substância, pode ser considerada como tendo
conseqüências para a saúde de uma pessoa individual. A causa deve ser encontrada na
conduta da interação, o que pode não estar aberto a manobras. (...) Isso leva à a questão
de se a competência é percebida como uma questão de ação pessoal – se na verdade
atos registram ‘atores’. Ou se nós devemos levar em consideração teorias indígenas
sobre relacionamentos” (Strathern, 1987:22-24, grifos da autora)

No livro “The Gender of the Gift”, Strathern (1990) expõe e analisa concepções
melanésias de agência, as quais serão aqui resumidas com um maior detalhamento, uma
vez que a análise dos dados Javaé mostra que há importantes pontos em comum com o
material melanésio, no que se refere a uma teoria geral da ação ou da agência, apesar das
grandes diferenças contextuais. Segundo a autora, “o sujeito ou agente que age é
construído nesses sistemas como o pivô de relacionamentos. Não estou me referindo
àquele que é um conjunto de ou o locus de relacionamentos – ele é a ‘pessoa’, a forma da

477
sua objetificação. Por agente, estou me referindo àquele que age de sua próprio posição de
vantagem tendo outro em mente. (…) Um agente é aquele que age com outro em mente, e
este pode de fato coagir o agente a agir. (…) Na visão mercantilista, é verdade, um sujeito
age em relação a outro considerando-o como seu objeto. Aqui, eu sugiro, na relação
correspondente, um sujeito age tendo um outro sujeito em mente”. (1990:272, grifo da
autora).
A noção de agência melanésia pressupõe uma separação entre causa e agência, uma
vez que os agentes em si não causam as próprias ações, ou dito de outro modo, eles não são
os autores de seus próprios atos, como no modelo individualista ocidental do sujeito
racional que constrói o próprio destino. A causa da ação não está dentro daquele que age,
mas na outra pessoa com quem se relaciona. O agente é sempre o objeto da coerção de um
outro que o coage/estimula a agir. Não existe ação fora dessa relação entre uma pessoa que
atua como a causa da ação e a outra que realiza a ação coagido a tal. Há uma assimetria
entre o que causa a ação (uma pessoa) e o que age efetivamente (o agente), uma vez que
“alguém pode apenas fazer outra pessoa agir, e assim tornar-se a causa (passiva) do ato”
(Strathern, 1990:332).
As pessoas não são concebidas como as autoras ou a causa em si da ação, mas
apenas como tendo o poder relativo de coagir outro a agir, tornado-se assim a causa
passiva da ação de um outro; ou como aquele que é coagido, mas cuja causa da ação não
lhe pertence. A autora fala, então, do contraste entre “pessoa”, o que coage, e “agente”, o
que realiza a ação. Tanto homens como mulheres podem ser o pólo passivo ou ativo da
ação, de modo que estes são estados transitórios e relativos, não atrelados a gêneros
específicos. “A causa é sempre tecnicamente inerte ou passiva, mas com respeito àquele
agente ou àquela ocasião e não como uma condição geral. A assimetria está sempre lá, mas
o lugar que homens e mulheres ocupam nessas respectivas posições é sempre transitório”
(Strathern, 1990:332).
Assim, homens e mulheres dependem igualmente uns do outros para que certas
ações vitais sejam realizadas, inclusive no que se refere à constituição de seus corpos,
como se estes não fossem completos sem a relação com o sexo oposto: “considera-se que
um sexo tem um efeito direto no corpo do outro” (Strathern, 1990:332). No processo de
gerar filhos os homens podem apenas intervir causando a ação que é o nascimento dos
filhos, através dos corpos das mulheres; e nos rituais masculinos, a saúde dos homens
depende da intervenção feminina. “Se a esposa é um agente, aquele que age, então seu

478
marido neste caso é a casa de seus atos, embora ele mesmo não seja ativo. É simplesmente
em referência a ele que a esposa age. Esta é a coerção. (…) A separação entre o agente e a
pessoa que é a causa de sua ação é sistêmica e governa a percepção melanésia sobre a ação.
(…) Por meio da estética do gênero, as mulheres parecem, conseqüentemente, ser a causa
das ações dos homens, e os homens parecem ser a causa das ações das mulheres”.
(1990:272-273).
A autora insere tais conceitos em uma discussão sobre as relações de desigualdade
entre os gêneros, relativizando o conceito de “dominação”, que teria sua origem na “lógica
mercantil” e seria baseado na relação entre um sujeito e um ser humano considerado como
objeto, ou seja, privado de sua subjetividade e vontade própria. No caso Melanésio, uma
vez que ambos os sexos são igualmente assertivos em sua capacidade de sujeitos sociais,
embora haja contextos em que os homens controlem as mulheres, trata-se de uma relação
entre dois sujeitos que exercem sua subjetividade de forma plena. As mulheres não agem
para expressar a subjetividade dominante dos homens, mas porque supõe-se que as razões
para agir – os outros que elas levam em consideração – “estão sempre situados além do
momento do ato em si. Essas razões então parecem ser os atos de outras pessoas. Mas
desde que essas outras pessoas não podem agir por ela, apenas ela pode dirigir a sua
própria ação. Neste sentido, é somente a sua própria vontade que ela pode exercer”.
(Strathern, 1990:339).
O que interessa aqui é que a ação humana que move o mundo não está contida na
unidade chamada indivíduo, mas é fundamentalmente o produto de uma relação social
entre dois sujeitos, ainda que um tenha um papel passivo e outro ativo, o verdadeiro
agente. Não se age por interesse próprio apenas nem se tem o poder de causar e efetuar a
ação localizado dentro de si, como se cada um pudesse agir, criar ou produzir de forma
independente. Não só a causa da ação não está dentro do indivíduo, como a eficácia dela
depende de uma relação com o outro. As unidades geradoras da ação não são os
indivíduos, mas as relações entre as pessoas. Tem-se então o conceito de “divíduo”: “o
agente age conhecendo que sua constituição como pessoa existe em referência aos outros
(...). Um agente pode ter consciência de si como uma pessoa na forma de um divíduo,
potencialmente uma parte de um par, ou pode ter consciência de si como um microcosmo
composto, potencialmente limitado como uma unidade” (Strathern, 1990:275, grifo da
autora).

479
O agente socialmente significativo não é uma unidade corporalmente independente
e limitada, como o indivíduo, mas um par, uma vez que tem sempre o outro como
referência. Dito de outro modo, a unidade socialmente produtiva, responsável pela agência
social, é um par, o divíduo, constituído da relação entre as duas partes: “Na cultura
melanésia, as pessoas são imaginadas de modos contrastivos – masculino e feminino,
mesmo sexo e sexo diferente, uma pessoa sempre como um par de formas inter-
relacionadas. (...) Uma vez que as pessoas são a forma objetiva dos relacionamentos,
considera-se que os resultados de seus atos originam-se neles e assim pertencem a esses
relacionamentos. (...) Mas no que se refere à ação, o ato de um agente sempre pertence a
ele mesmo. Ninguém pode agir por outra pessoa. Apesar de alguém poder ser compelido
ou coagido a agir, o ato é a instância em que o agente exerce a sua subjetividade. Pois,
enquanto agente, alguém também age de uma posição de vantagem para si próprio”
(Strathern, 1990:338). A unidade da ação é a relação coercitiva entre dois sujeitos, mas as
duas pessoas envolvidas, seja o homem ou a mulher, exercem plenamente a sua
subjetividade, cabendo a cada uma delas a decisão final sobre seus atos.
Quando nos voltamos para os Javaé, percebemos um pano de fundo em comum
com o material melanésio, como já foi apontado por Rivière (1993) em relação à América
indígena, embora haja algumas diferenças significativas. A cosmologia e o discurso
mitológico, enquanto um modo de consciência social sobre os processos de construção da
sociedade (ver Turner, 1988b), contêm em si não apenas uma teoria do poder ou da
corporalidade/subjetividade, mas principalmente uma teoria sobre como se dá a ação social
entre os seres humanos. Ou melhor dizendo, sobre como os agentes sociais produzem
historicamente a sociedade.
No caso Javaé, a forma como homens e mulheres exercem a agência social ou a sua
subjetividade não são fenômenos independentes. Como veremos, o exercício da
subjetividade masculina e feminina, aqui no sentido relativo à forma como cada um cria e
interpreta, é indissociável da razão pela qual as responsabilidades são distribuídas para
ambos os sexos. Até aqui, as qualidades de transformação e conservação foram associadas
ao feminino e masculino, respectivamente, no que se refere à constituição da corporalidade
e da subjetividade de ambos, inseparáveis. Agora, os exemplos míticos serão apresentados
sob o ponto de vista de como os Javaé concebem as relações de causalidade ou a agência

480
social, o que também se mostra inseparável de suas concepções a respeito da corporalidade
e da subjetividade 37 .
Como foi dito aqui antes, “o conceito de kyrè é traduzido pelos Javaé como ‘pedaço
de outro’, de modo que todos os ‘pedaços’ ou partes só existem na relação com o outro ou
o todo. Toda unidade, seja uma fatia de um bolo, a dança da manhã, uma pessoa ou um
nível cosmológico, é concebida como esse ‘pedaço do outro’ ou parte relacional que só
tem sentido em sua relação com a totalidade da qual faz parte”. Esse modo de pensar
relacional e holista, em que as partes não existem como unidades independentes, mas
sempre tendo como referência um outro, está na base dos conceitos Javaé de causalidade
ou de como atribuem responsabilidade aos atores humanos pela produção das formas
sociais. A forma como a mitologia explica a criação da sociedade e do mundo não escapa a
essa lógica das relações: toda ação criadora é apresentada não só como o produto de uma
relação, mas também como o produto de uma relação entre um homem e uma mulher, ou
entre um princípio masculino e um feminino, enfim, como uma espécie de procriação.
Aqui, como entre os melanésios, não são indivíduos que agem e criam, mas interações
entre diferentes.
Em geral, o mito explica a formação da sociedade (e do mundo atual) a partir de um
mesmo princípio que se repete em seus fragmentos: as mulheres ou os povos estrangeiros
são apresentados como a causa das ações dos homens ou como aqueles que tomam a
iniciativa de alguma ação transformadora, de mudança do estado anterior; enquanto os
homens, reagindo a esse impulso feminino criativo e desestabilizador, criam uma nova
situação ao mesmo tempo em que agem para conservar o que foi criado em uma forma
fixa, evitando novas transformações. A ação masculina criadora é sempre apresentada
como uma reação conservadora, enquanto a causa ou a iniciativa da ação é quase sempre
um atributo feminino. Os homens criam as leis, as novas formas sociais, os recursos e bens
materiais, mas a criação masculina é vista como uma tentativa de reação, um modo de
conter as transformações iniciadas pelas mulheres ou pelos estrangeiros. Cabe ao feminino,
portanto, ter a iniciativa criativa da transformação ou ser a causa dela; e ao masculino, a
reação também criativa, porém de fundo conservador, às mudanças iniciadas.

37
Diferentemente, nesse aspecto, do que propõe Strathern (1987:24), para quem “um interesse em agents não
deve ser confundido com um interesse na subjetividade ou nos significados inter-subjetivos. A problemática
não é como indivíduos constroem e prolongam os significados nas situações, mas como os sistemas culturais
e sociais alocam a responsabilidade”.

481
Vejamos alguns exemplos de como a ação social, em termos de causas e
conseqüências, é construída pelo mito:

• as saídas míticas, a principal transformação primordial, como já foi apresentado,


ocorreram principalmente por causa das mulheres, em função do desejo masculino
de conhecer o prazer do sexo: por causa da visão de sua avó nua, Tanyxiwè sente,
pela primeira vez, o desejo sexual que abre os corpos e inicia a morte. Por causa
disso, os homens criaram as leis que tentam manter os corpos relativamente
fechados desde então.

• a mãe de Myreikò toma a iniciativa para que ocorra o casamento entre Tanyxiwè e
sua filha; por causa de Myreikò, Tanyxiwè submete-se aos sogros e cria a lei do
serviço da noiva, que rege as relações sociais entre genros e sogros.

• a sogra de Tanyxiwè cobra dele uma atitude para melhorar as condições de vida da
época, coagindo-o a transformar o mundo na forma de serviço da noiva; por causa
dessas cobranças, ele conquista o Sol, cria a lei do pagamento pela vagina e, por
fim, abandona a família, iniciando sua caminhada produtiva pelo mundo,
conquistando parte dos bens e costumes que constituem a tradição Javaé.

• a bruxa Halòkòèlahi tem a iniciativa de matar Myreikò, grávida do filho de


Tanyxiwè; por causa dessa atitude, os filhos de Myreikò vingam-se matando-a e
criando as armas dos brancos.

• a sogra de Kanõanõ começa a reclamar ao genro dizendo que estava enjoada de


comer milho todos os dias; por causa disso, ele ficou com raiva e queimou o milho
que nascia magicamente, e agora os humanos têm que cultivar o milho.

• a mulher de Kwely, chamada Bòròrèkuni, tem a iniciativa de esconder o grande


pote de água de todos; por causa disso, Kwely quebra o pote e cria os rios e lagos
que abastecem de água os humanos até hoje.

• os irmãos de Nabio, associados ao extremo feminino do rio abaixo, tomam a


iniciativa de agredir o avô dos irmãos Ijanakatu; por causa disso, os Ijanakatu
reagem e são criadas as metades cerimoniais Hiretu e Saura e o costume dos
irmãos defenderem-se uns aos outros; por causa da briga, o iòlò Tòlòra ascende
com a missão de paz.

• Wajamiri, a mãe dos Ijanakatu, tem a iniciativa de trair e matar o marido,


inaugurando a prática do adultério; por causa disso, os homens deram início à
tradição de se vingar pela morte dos parentes e defender as vaginas das irmãs e
esposas potencialmente adúlteras.

• O povo Wèrè, associado ao feminino, tem a iniciativa de experimentar as


novidades, conquistar os bens dos outros povos, exterminar a maioria deles e
introduzir as mudanças de costumes na grande aldeia Marani Hãwa; o povo de
Tòlòra, associado ao masculino, incorpora as mudanças vindas de fora e reage,

482
desde então, mantendo a tradição que os Javaé herdaram. Os Wèrè introduzem a
guerra que transforma; Tòlòra, a paz que conserva o status quo.

• As transformações dos costumes, em geral, são introduzidas pelos povos


estrangeiros; por causa das mudanças, os novos costumes são fundidos com o que
já existia antes e, a partir de então, tornam-se a tradição que fica sendo repetida sob
supervisão da Casa dos Homens.

• Os irmãos Ijanakatu submetem-se às provas impostas pelo sogro por causa do


desejo pelas mulheres; suas esposas os traem e, por causa disso, eles reagem
criando o costume dos homens defenderem as vaginas das irmãs e das esposas.

• As mulheres Anirahu começam a trair os seus maridos com o jacaré; em razão


disso, os homens intervém matando o amante e restaurando a ordem.

• A irmã de Lykyni toma a iniciativa de manter relações sexuais com o próprio


irmão; por causa disso, Lykyni transforma-se em um belo aruanã e ela em um
repugnante aõni.

Em todos os episódios apresentados, a iniciativa da ação parte de uma mulher ou


povo estrangeiro ou as mulheres são pelo menos a causa da ação, o motivo pelo qual os
homens tiveram que agir. A ação masculina, ao contrário, é na maior parte das vezes
tratada como uma reação a um fato indesejado – a transformação de um estado cômodo e
prazeroso anterior –, causado em geral pela imoralidade feminina. Os homens agem
criativamente para remediar, de forma paliativa, a ruptura irreversível da condição
paradisíaca em que viviam, para restaurar algo do que foi drasticamente alterado em
relação ao seu formato original.
Antes, a nutrição era mágica e abundante; pelo fato de uma mulher roubar o pote de
água, um homem teve que reagir criando os rios e lagos dos quais todos se nutrem
atualmente, embora não mais de modo mágico e ilimitado. Antes, os corpos eram fechados
e imortais; por causa do desejo pelas mulheres (ou do desejo delas por eles), os homens
começaram a morrer e tiveram que reagir a esse fato inventando as leis sociais que ajudam
a controlar o fluxo das substâncias, mantendo um tipo de vida intermediária entre a
imortalidade inalcançável e a morte como fato inarredável. Antes, ninguém morria nem
matava; por causa da imoralidade canibal feminina, os homens tiveram que reagir matando
a bruxa imoral e inventando as poderosas armas dos brancos, um poder extraordinário,
porém não tão grande como o da imortalidade mágica (xiburè).
Antes, ninguém brigava; por causa dos irmãos Nabio, associados ao extremo
feminino do rio abaixo, os Ijanakatu tiverem que reagir impondo a ordem moral e Tòlòra

483
ascendeu, como iòlò, para promover a paz entre os humanos sociais, que é melhor do que
viver eternamente em conflito, mas não se compara à paz eterna dos que vivem só entre si.
Antes, ninguém se casava nem se submetia aos sogros; por causa do desejo por Myreikò e
a cobrança feita por sua sogra, Tanyxiwè conquistou o Sol e vários outros bens para a
humanidade, criando a lei do pagamento pela vagina e da uxorilocalidade, em que os
homens têm que pagar com o serviço da noiva aos seus sogros, mas eles também têm o
direito de receber o mesmo de seus genros.
A criatividade masculina possibilitou aos homens viver em uma posição
intermediária depois das rupturas míticas: se já não têm seus corpos nutridos
irrestritamente como no paraíso original (só receber), pelo menos não perdem substâncias
descontroladamente como na terra para onde vão os mortos que não controlam seus fluxos
(só dar). A água não mais aparece magicamente, mas pelo menos não se passa sede como
na Terra dos Ensangüentados. Não mais existe a paz eterna dos que vivem só entre os
parentes, mas através da atuação dos iòlò os homens conseguiram se ver livres do
sofrimento dos que só vivem entre outros, em conflito. Enfim, paga-se pelas mulheres aos
sogros, mas recebe-se algo em troca dos genros.
O paraíso teve fim por causa das mulheres ou devido a alguma ação delas, mas foi
por causa delas, paradoxalmente, que os homens foram coagidos a criar as condições de
vida atuais como forma alternativa de sobrevivência. Ao fim do estado mágico, contrapôs-
se a necessidade de se criar formas possíveis – a vida em sociedade – para se sobreviver
nesse mundo mortal e limitado, onde as pessoas, não mais auto-suficientes, precisam dos
outros para viver. A ação dos homens pode ser vista como uma forma de compensação
criativa para evitar uma “feminilização” da realidade, como a que ocorre na poluída Terra
dos Ensangüentados, ao mesmo tempo em que se tenta aproximar a vida em sociedade do
que se vive no extremo masculino do rio acima.
As mulheres são responsabilizadas pela ação desordenada que levou ao fim do
estado mágico paradisíaco e os homens pela criação das leis sociais enquanto uma tentativa
de restauração parcial do paraíso perdido. A vida em sociedade, no meio entre os dois
extremos, é uma tentativa criativa de imitação do paraíso, porque não se pode mais
alcançar o extremo do rio acima em suas condições originais de imortalidade, mas pode-se
evitar a deterioração total do extremo rio abaixo. Mas a tentativa de restauração parcial das
condições da vida mágica é em si criativa e depende da agência dos seres humanos: a
tentativa de imitação não é vista como uma mera repetição de uma estrutura fixa original,

484
pois esta é inalcançável, mas como uma formulação criativa de algo novo – a ordem social
– que se situa entre a fonte original desejada e deterioração possível evitada.
Assim como no trabalho do ator teatral, é justamente no esforço de imitação ou
recriação de uma cena original que reside a criatividade do intérprete. Os Javaé têm
profunda consciência de que o esforço de imitação não se traduz em uma cópia idêntica,
mas que a imitação em si de um estado original é uma representação limitada, porque não
se pode mais reproduzir o original em sua íntegra, e ao mesmo tempo criativa, pois
qualquer tentativa de reprodução significa criar algo novo. A água não é mais abundante e
mágica, mas foram criados os rios e lagos dos quais os seres humanos se nutrem. Importa
aqui evidenciar que a criação da sociedade é concebida como uma reação necessária e
criativa dos homens a uma coação feminina igualmente criativa.
A ação masculina não ocorre porque os homens desejam, enquanto indivíduos, mas
porque são basicamente coagidos pelos outros a fazê-lo. Por isso, trata-se sempre de uma
reação, e não de uma ação propriamente dita. Os homens reagem aos limites impostos ou
aos estímulos indesejáveis que partem das mulheres ou de povos e pessoas feminilizadas.
Não é por prazer que Kwely quebra o pote gigante, mas porque foi coagido por sua mulher,
ainda que implicitamente, a fazê-lo, pois é a única saída para a sobrevivência dele próprio
e de toda a humanidade. Também não é por um desejo próprio que Tanyxiwè conquista o
Sol e os outros bens, mas porque foi coagido, desta vez de modo explícito, por sua sogra,
em troca do direito de fazer sexo com Myreikò. Mesmo quando a ação masculina decorreu
do desejo pelas mulheres, e não porque elas tomaram alguma iniciativa subversiva, a
conseqüente abertura dos corpos obrigou os homens a criarem as leis que controlam o
fluxo das substâncias e mantêm a poluição relativamente contida, longe da Casa dos
Homens.
Assim, as leis criadas pelos homens não são fruto de um desejo de transformar e
criar uma nova realidade, como no pressuposto individualista de que cada ser humano tem
o desejo e a capacidade de construir o seu próprio destino. O desejo masculino é muito
mais o de permanecer no estado inalterado de antes, em um mundo pacífico sem outros,
sem transformações e sem mortes. As leis dos homens são, ao contrário, a única alternativa
às perdas a que foram submetidos no nível intermediário desde que decidiram entrar em
relação com as mulheres: as leis existem para controlar, relativamente, as mulheres, os
fluxos corporais, a poluição que leva à morte, os conflitos, enfim, as transformações e a
alteridade, indissociáveis. A necessidade de controle não é apresentada como um desejo

485
individual masculino, mas como uma reação necessária a uma situação de transtorno
iniciada pelas mulheres ou por causa delas.
Em seu desejo de recriar o paraíso original, os homens foram obrigados a tentar
controlar as mulheres e seus fluxos. A vida em sociedade é vista como o produto da
capacidade criativa humana que só foi possível florescer a partir de uma situação de
restrição, limitação, escassez: onde os humanos tinham tudo o que desejavam,
magicamente, não era necessário criar nada. As perdas mobilizaram a necessidade da busca
de soluções alternativas e originais. A cultura é o substituto criativo e possível para a perda
da plenitude mágica, e não um “dado original” de natureza aquática que se perpetua, como
na formulação de Pétesch (2000:52) para os Karajá. Houve uma ruptura irreversível do
estado anterior e o que se colocou no lugar do que foi perdido, mesmo que seja tentando
imitar a antiga ordem, foi uma nova criação. Do mesmo modo, um filho, enquanto uma
nova criação, é o substituto criativo de uma perda original, ou seja, de uma perda das
substâncias que os genitores doam de si.
Segundo a teoria Javaé sobre a construção social e histórica da cultura, toda relação
com a alteridade implica em uma perda de algo de si próprio em um primeiro momento.
Quando os corpos originais entraram em relação com o Outro, teve início a perda de suas
próprias substâncias, levando à transformação e à morte. Mas à morte dos doadores de
substância mágicos corresponde, proporcionalmente, a criação de um novo corpo, mortal e
inovador: à morte da velha estrutura imutável corresponde o nascimento de uma nova
estrutura mutante. A reciprocidade é mortal e criativa, porque perder algo de si para o
outro e vice-versa também provoca a criação do novo a partir do que foi perdido. Toda
perda tem inerentemente um potencial criativo ou, formulado de um outro modo, toda
criação é a conseqüência de uma perda original causada por uma relação entre diferentes.
Toda criação subjetiva masculina tem um conteúdo conservador de contenção,
como já foi mostrado antes em um outro contexto. O mesmo vale para a ação masculina,
que é criativa em resposta a um estímulo indesejado, mas cujo objetivo final é o de evitar
mais criações, atuando em prol da repetição e da manutenção do que foi criado em uma
forma inalterada. Os homens criam coagidos, ao mesmo tempo em que fazem um esforço
imenso para evitar novas transformações, responsabilizando-se pela manutenção da
tradição enquanto repetição de uma forma original. Os mitos narram as transformações
iniciadas pela ação das mulheres e as reações masculinas conseqüentes, mas terminam
sempre dizendo que, desde então, os Javaé comportam-se do mesmo modo que os seus

486
antepassados míticos, ou seja, que as transformações foram congeladas ou domesticadas
pelos homens em uma forma fixa que se repete desde então, o que não significa que isso
realmente aconteça.
A agência masculina é, portanto, um produto criativo da relação com um Outro,
uma conseqüência de um estímulo que não está dentro do ator, mas fora dele. Os homens
sociais não são percebidos como indivíduos que agem orientados por seus próprios desejos
e ambições, contidos em um corpo limitado, a fim de construir o seu destino de forma
independente. Os humanos mágicos podem ter agido em função de um desejo próprio pelo
sexo, mas a ação masculina no mundo social é, ao contrário, movida pelo desejo/imposição
de um outro feminilizado, um outro que está fora do autor direto da ação, mas do qual não
se pode dizer que não participou da ação. Os homens agem em prol da coletividade porque
as mulheres impõem seus desejos, que transbordam de seus corpos junto com suas
substâncias, na forma de ações desestabilizadoras e egoístas. Eles não agem porque
querem, mas porque precisam, motivados pelas ações primeiras das mulheres. Em outras
palavras, assim como no caso melanésio, a causa de suas ações não está dentro de seus
corpos, mas se origina nos corpos e sujeitos femininos. O mito não apresenta os atores
masculinos como os responsáveis diretos pela ação que cria as formas sociais, mas como
aqueles que foram coagidos por outros a fazê-lo, situando a causalidade e a
responsabilidade das ações não em indivíduos, mas nas relações assimétricas entre
diferentes 38 .
No que se refere à participação feminina na criação da sociedade, esta responde
pelo estímulo criador original sem o qual nada seria realizado. Essa observação não tem o
sentido, entretanto, de reduzir a mulher à condição simples de causa da ação criativa
masculina, ou a mero objeto de desejo sexual e troca entre homens, como em Lévi-Strauss
(1982). Elas são vistas como a causa do desejo masculino que motiva os homens a interagir
produtivamente, sim, mas isso não é associado a uma supressão de sua capacidade criativa
ou a uma naturalização do feminino. As mulheres são concebidas pelos Javaé como a
causa da ação, mas também, ou melhor, principalmente, como co-autoras da ação. A ação
imoral das mulheres – incestos, adultérios, canibalismo, atitudes egoístas etc – que obriga

38
A diferença fundamental de Tanyxiwè (ou da humanidade) em relação aos animais, de status inferior, é que
estes últimos perderam a condição humana e permaneceram no estado em que foram transformados pelo
herói, enquanto os que são agora humanos reagiram às transformações comandadas pelas mulheres e
estrangeiros, exercendo uma agência restauradora que se perpetua até os dias de hoje.

487
os homens a reagir é, em sua essência, inseparável de uma subjetividade criadora e de uma
imposição da própria vontade, como já foi discutido anteriormente.
A desestabilização da ordem anterior, atribuída à iniciativa feminina, é um ato de
criação do novo, ainda que considerado como ato imoral. Afinal, através da realização de
seus desejos e de seus atos egoístas, as mulheres criaram uma nova ordem, anteriormente
inexistente. A imoralidade atribuída pelo mito às mulheres é vista como um ato
essencialmente criativo, pois toda transgressão pressupõe a criação de uma nova ordem.
Em termos míticos, a grande capacidade criativa feminina – o poder extraordinário de
gerar filhos – é associada à maior transgressão de todas, que foi a perda da imortalidade. A
grande fertilidade feminina é simbolicamente imoral, porque ela representa a subversão da
ordem mágica e a perda do status quo original que a coletividade masculina tenta recriar
desde então. Desse modo, as mulheres não são apenas a causa ou o pólo passivo da ação,
mas compartilham a autoria da ação socialmente criativa com os homens, pois o verdadeiro
impulso que dá início à criação de uma nova ordem social parte do corpo/sujeito feminino.
Sem a iniciativa criadora e imoral feminina, os homens estariam destinados a apenas
repetir indefinidamente o mesmo estado mágico e imutável que sempre existiu.
O fato das mulheres tomarem quase sempre a iniciativa da ação nos mitos origina-
se no fato de seus corpos fluírem mais substâncias, de se transformarem mais que o dos
homens. O corpo/sujeito que se transforma mais é o mesmo corpo/sujeito que toma a
iniciativa da ação que transforma e instaura a desordem nos mitos. Do mesmo modo, ao
inverso, o corpo/sujeito que tem um maior controle das substâncias e uma subjetividade
mais contida é o mesmo que age em prol do controle e da contenção, reagindo a todas as
ações transformadoras e tentando cristalizá-las em uma forma fixa. Não só o modo como o
sujeito age não se separa do modo como o seu corpo e a sua subjetividade se constituem,
como tanto homens como mulheres são percebidos como sujeitos cuja ação é igualmente
criadora e assertiva, embora em momentos diferentes e com conteúdos opostos. Enquanto
as mulheres criam ao desestruturar a ordem anterior, os homens criam em sua tentativa
de estruturá-la novamente. Os conceitos de agência e subjetividade, portanto, não se
referem a dimensões distintas da experiência humana, mas a uma única e integradora
práxis corporal e social.
Pode-se falar de uma assimetria de valor entre o que age/coage e o que age/reage,
mas os dois pólos da ação são igualmente autores das formas sociais. A sociedade não
existiria sem o impulso inicial desagregador feminino e a reação conservadora posterior

488
masculina: sem a coação feminina, os humanos estariam desde sempre vivendo como
corpos mágicos e imortais, mas sem conhecer o sexo; sem a reação masculina, os humanos
estariam vivendo permanentemente como corpos deteriorados e no estado poluído de
putrefação. Os dois extremos, horizontes possíveis, são estados não-sociais justamente
porque falta a cada um o outro pólo da criação. Tanto em um mundo masculinizado como
em um mundo feminilizado a existência da sociedade é inviável, pois nenhuma criação
social ocorre fora da relação criadora entre sujeitos/corpos diferentes 39 .
O meio cosmológico é o espaço das relações entre diferentes que se fundem em
uma nova forma, que pode ser tanto um filho como a sociedade. O corpo do filho, assim
como o “corpo social”, contém em si as duas polaridades, sem as quais a criação não seria
possível: em um primeiro momento, após a interação procriadora, o velho (o sêmen
masculino ou a ordem mágica anterior) é destruído/transformado por uma substância ou
ação feminina, para dar lugar a uma nova forma (o corpo do filho ou as novas formas
sociais); nesse estado poluído de mistura inicial, as substâncias femininas transformam a
essência do sêmen, a coação feminina destrói a estrutura anterior. É um estado poluído de
intensa mistura entre os diferentes, de transformação e contaminação com a alteridade.
Em um segundo momento, pós-couvade e pós-transformações míticas, os homens
agem para dar à nova criação uma forma mais definitiva, conservá-la o mais próximo
possível de sua forma original (pós-fusão), atuando em favor da purificação e
imutabilidade dos corpos dos filhos e da tradição. Mas tanto o corpo do filho quanto a
tradição criada contêm em si tanto o feminino que possibilitou a transformação inicial
quanto o masculino que lhes deu uma forma fixa posterior. A sociedade não se constitui
apenas da vida ritual ordinária comandada pelos homens nem só dos momentos
extraordinários de luto comandados pelas mulheres, mas é o produto da relação dialética
entre ambos, entre repetição e originalidade.
Torna-se evidente, então, que tanto nas relações internas da sociedade, entre
homens e mulheres que procriam, quanto nas relações externas, entre os Javaé e os outros
povos com os quais interagem, está presente a mesma dialética entre alteridade e
identidade, transformação e continuidade: uma vez que toda relação é concebida como

39
McCallum (2001) também enfatiza “as naturezas opostas mas complementares das agências masculina e
feminina” (1999:173), que no caso Cashinahua são associadas principalmente à produção dos corpos (filhos)
e às habilidades economicamente produtivas de homens e mulheres. O social deriva do encontro entre a
agência masculina, que lida com os espíritos do mundo da caça, e a agência feminina, que transforma o
produto desses encontros em alimento. A autora mostra também que a produção feminina (redes, potes,
esteiras, a comida etc) está no centro da identidade cultural e social Cashinahua e não na periferia.

489
procriação, a relação com a alteridade é intrínseca em todos os níveis da realidade, seja
dentro ou fora da sociedade, ao mesmo tempo em que se tenta neutralizá-la. Os
corpos/sujeitos humanos, assim como a tradição social, são inerentemente paradoxais,
misturas que se tenta purificar, constituídos igualmente das substâncias e das ações
contraditórias de homens e mulheres, dos Javaé e dos outros povos.
No que se refere ao modo como os Javaé e os melanésios concebem o agente e a
ação social, algumas palavras a mais ainda são necessárias. Embora Strathern (1990) esteja
mais preocupada com uma análise crítica dos conceitos de dominação e subordinação
aplicados às relações entre os gêneros, não entrando na questão de como se produz a
continuidade e a transformação na sociedade, algumas concepções gerais encontradas entre
os melanésios são válidas para os Javaé. Em ambos os casos, o agente social não é o
indivíduo, mas uma relação assimétrica entre diferentes, havendo uma separação entre o
que causa a ação e aquele que age. E tanto entre os melanésios como entre os Javaé,
homens e mulheres são igualmente concebidos como sujeitos ou co-autores da ação.
Mas no caso melanésio, “a causa é sempre tecnicamente inerte ou passiva, mas com
respeito àquele agente ou àquela ocasião e não como uma condição geral” (Strathern,
1990:332), ou seja, aquele que causa a ação, seja homem ou mulher, é considerado apenas
como uma pessoa ou o pólo passivo da ação. Embora este tenha a capacidade de coagir, a
ação criativa pertence ao pólo ativo da ação, o agente propriamente dito. Assim, homens e
mulheres são igualmente agentes não porque os dois pólos da ação sejam igualmente
criadores, mas porque ambos ocupam posições relativas e transitórias: tanto um como
outro podem ser o que compele alguém a agir e o que realmente age. A criação,
propriamente dita, cabe ao agente, e não àquele que o coage.
No que se refere aos Javaé, embora a agência também seja exercida através de uma
relação de coação, não existe essa inversão das polaridades: são sempre as mulheres que
causam ou tomam a iniciativa da ação, e são sempre os homens que reagem a elas. Os dois
são concebidos como agentes não porque podem inverter as posições, mas porque não há a
distinção entre uma polaridade inerte ou passiva (a pessoa que apenas causa) e uma ativa
(o agente que realmente cria). Como já foi exposto, tanto a mulher que causa a ação como
o homem que reage são concebidos como autores criativos da ação, embora um
proporcione a desordem e a originalidade e o outro atue para recriar a ordem e a repetição
dela.

490
Embora com objetivos e conseqüências opostas, aquele que coage é tão criativo
como aquele que reage, lembrando que Strathern não fala em termos de “reação” a uma
coação, mas apenas em termos da relação entre o causador e o que age. O pólo ativo da
ação melanésia não tem o conteúdo reacionário que tem entre os Javaé, assim como o pólo
passivo não é considerado agente criador. Enquanto no par melanésio apenas um dos dois é
o verdadeiro autor da ação, os dois sexos podendo ocupar as duas posições, no par Javaé os
dois são igualmente autores da ação, mas as posições são fixas. O contraste Javaé dentro
do par relacional não é entre pessoa e agente, mas entre agente que cria o novo e agente
que tenta recriar o velho.
Há uma outra diferença significativa em relação às concepções melanésias. Embora
a capacidade de agência também seja vista pelos Javaé como o produto de uma relação, o
conceito de “divíduo” é limitante entre eles40 . A procriação não se resume apenas à
existência do par constituído de homem e mulher, mas inclui, principalmente, o produto da
mistura substancial entre eles, o filho. Do mesmo modo, a ação social humana não se
esgota na existência de dois tipos de seres humanos, o que apenas reproduziria o mesmo
tipo de esterilidade que existe entre os aruanãs e suas irmãs mágicas no Fundo das Águas.
A agência social é, antes de tudo, o produto da fusão transformadora e criativa entre as
duas polaridades, e não apenas o fato de uma causar a ação da outra, como entre os
melanésios. Na medida em que a agência social é vista pelos Javaé como o produto de uma
ação compartilhada por dois, a unidade da ação não é o indivíduo nem o divíduo, mas a
comunidade de substância real e simbólica, a santa trindade cósmica: pai, mãe e filho.
Ou um princípio masculino, um feminino e o produto da interação entre os dois,
pois a relação que cria é indissociável da sua criação. Por isso, o modelo cosmológico
Javaé não pode ser reduzido a um dualismo triádico, do tipo postulado por Pétesch (1987,
1993a, 2000) para os Karajá: o meio é um terceiro fator, e não apenas uma das polaridades
de um dualismo assimétrico, justamente porque representa o filho que é gerado através da
fusão entre os opostos, representados pelos níveis superior (pai) e inferior (mãe). O
dualismo, dentro da visão de mundo Javaé, seria análogo à relação estéril e estática de
irmãos, que não se fundem fisicamente e, assim, não geram uma nova vida. Toda
fecundação – promotora da transformação – pressupõe a transcendência do par primordial
e a criação de um terceiro original.

40
Taylor (2000) trabalha com o conceito de “divíduo” entre os Jivaro, para quem toda pessoa é produto de
uma co-paternidade, dividida entre o esposo e o irmão de uma mulher. Ver em Kelly Luciani (2001) e Fausto
(2002) a utilização dos conceitos de Strathern para uma teoria da pessoa amazônica dual (matador/inimigo).

491
Também não se pode dizer dos “amazônicos” que “há apenas um tipo de posição do
sujeito disponível aos vivos: a humana”, o que resultaria em um sujeito singular, abstrato e
“sem gênero”, segundo o comentário de McCallum (2001:165) ao trabalho de Viveiros de
Castro (2002g). O sujeito da ação Javaé é humano, mas não unitário, pois a ação social
constitui-se da relação entre dois tipos diferentes de humano, o sujeito feminino e o sujeito
masculino. A diferença entre os dois tipos de sujeito é marcada inclusive pela língua,
através da diferença notável entre a fala masculina e a fala feminina.
Viveiros de Castro (2002h: 444) faz uma releitura do conceito de “divíduo”
melanésio, que é utilizado por Strathern (1990) com o sentido de que a relação entre duas
pessoas diferentes constitui um único agente. Para o autor, que o utiliza de modo diverso,
“divíduo” tem o sentido de uma única pessoa internamente constituída “pela polaridade
eu/outro, consangüíneo/afim”, corpo e alma, uma “singularidade compósita”. Em uma nota
a respeito do assunto, Viveiros de Castro propõe que “o divíduo (belo conceito, feia
palavra) amazônico não parece se ‘dividualizar’ segundo a linha de gênero, como na
Melanésia, mas segundo os contrastes entre consangüinidade e afinidade e entre humano e
não-humano (...)”. Como já foi apresentado até aqui, o gênero entre os Javaé é
indissociável de qualquer representação sobre a socialidade, inclusive no que se refere ao
conceito nativo de agência relacional.
A noção de tya, “meio”, refere-se, portanto, não apenas a uma posição espaço-
temporal intermediária dos humanos sociais no cosmos, mas à constituição essencial da
sociedade e dos filhos produzidos a partir da interação entre agentes ou sujeitos que se
opõem. Esse “meio” paradoxal não é um “entre” estático, mas é o resultado da relação
permanentemente criativa e contraditória entre os extremos, entre um princípio feminino
que transforma e coage e um masculino que reage tentando recriar o que foi perdido – é a
própria História. Como entre os Pa’ikwené (Passes, 2002) e Arawak do noroeste
amazônico 41 , estar no “centro do mundo” é uma posição de controle, tentativa de recriar a
própria distintividade dentro de um contexto maior de contínua incorporação de várias
influências estrangeiras.
A sociedade, assim como os filhos, é vista como o produto de uma mediação tensa
feita pelos agentes humanos, ao longo do tempo, entre forças desagregadoras e forças
estabilizadoras, entre o que vem de fora (substâncias femininas, influências dos povos
estrangeiros) e o que está dentro (sêmen, os costumes antigos), entre luto e ritual, entre

41
Ver Hill (2002), Zucchi (2002), Wright (2002).

492
misturas e tentativas de purificação. Assim como a agência social exercida por Tanyxiwè
só foi possível porque ele fundiu, no meio de sua caminhada, o início masculino e o fim
feminino, o sacrifício pelo coletivo e os desejos egocêntricos, os humanos sociais exercem
sua capacidade de agência na forma de mediação entre os opostos de continuidade e
transformação, produzindo uma História “generizada” 42 .
Embora a mediação propriamente dita seja concebida como uma tarefa mais
masculina do que feminina, pois são os homens, localizados espacialmente no meio da
aldeia, que criam as leis e instituições sociais e assumem o controle da sociedade ao reagir
ao impulso desestruturante das mulheres, ela é indissociável da intervenção criativa
feminina. O exercício do poder masculino na esfera pública e ritual confunde-se com o
exercício da mediação – enquanto reação – em prol da continuidade social, embora isso
não signifique excluir a participação feminina na criação da sociedade, mas, ao contrário,
afirmá-la. A mediação entre os extremos é uma tarefa assumida pelos homens, a forma
como os homens exercem o controle e a agência social, mas ela pressupõe a agência
feminina transformadora. Assim, o conceito Javaé de agência social, de um ponto de vista
masculino, expresso nos mitos, é exatamente essa idéia de mediação paradoxal entre um
estado celeste desejado, sem outros e transformações, de pura repetição das formas
originais, porém não mais alcançável; e um estado poluído de alterações e alteridades,
possível, mas evitado.
Tal mediação é exercida tanto no âmbito das relações internas da sociedade,
assunto da segunda parte, quanto no âmbito das relações externas, com aqueles que não são
Javaé, em especial os brancos. Como foi mostrado antes, o que o mito registra sobre a
chegada dos primeiros brancos, os Torihuhu (os bandeirantes), é exatamente o primeiro
ataque dos brancos (uma iniciativa/coação dos estrangeiros) e a primeira reação Javaé (a
42
Hill (2002:246) discute “um modo de consciência histórica modificado pelo gênero” entre os Wakuénai
(Arawak) por meio do importante ciclo mítico sobre o roubo das flautas sagradas realizado por Amáru, a mãe
do herói Kúwai, que vem a ser a mesma personagem que é considerada “mãe dos brancos” e “dona das
doenças” no mito coletado por Wright (2000, 2002) entre os Baniwa (Arawak), já referido. Amáru e outras
mulheres roubam as flautas sagradas, feitas das cinzas de Kúwai, que pertencem a Iñapirríkuli, o pai de seu
filho, e aos outros homens. Ao fim de vários episódios dinâmicos que se expandem no tempo e no espaço,
“Inãpirríkuli e os homens retomam o controle dos instrumentos musicais sagrados” (ver versão do mesmo
mito, entre os Warekena e Baré, em Vidal, 2002). Em outro mito, Amáru é associada ao colonizador e bens
europeus, assim como entre os Baniwa. Hill conclui que a “história, ou a reprodução das relações sociais, é
impulsionada pela luta entre homens e mulheres pelo controle dos poderes que originam a vida e são
incorporados nas flautas e trombetas sagradas de Kúwai” (Hill, 2002:238). O autor lembra que “é através da
figura mítica de Amáru que os Wakuénai unem as tremendas forces destrutivas da história colonial aos
poderes socializantes dos rituais xamânicos e dos ancestrais míticos” (Hill, 2002:242). Interessa aqui apontar
que, assim como entre os Javaé, são as mulheres que tomam a iniciativa imoral e desagregadora da ação
mítica, sendo associadas à criatividade tecnológica dos brancos, enquanto os homens retomam o controle da
situação ao final, a relação entre ambos constituindo o movimento espaço-temporal da História.

493
renovação e ressurgimento de Marani Hãwa enquanto centro sagrado). Desde então, este
marco histórico é apresentado como o padrão profundo do relacionamento existente entre
as duas sociedades, em que cabe aos brancos uma atitude de poderosa e criativa
desagregação e aos Javaé um comportamento de restauração igualmente criativa da ordem
ameaçada. Em seu estudo sobre a formação da aldeia Txuiri, Bonilla (2000:89) analisa o
mito da ascensão do nível subaquático em conjunto com o processo de reconstrução do
novo lugar e conclui que “o mito mostra justamente que a mudança faz parte da estrutura”.
Fica evidente que isso que é chamado de “pacifismo” – reagir só quando provocado
–, uma atitude associada aos Arawak em geral, em nenhum momento pode ser confundido
com passividade. Estar no centro do cosmos tem o sentido simbólico de mediação tensa e
consciente entre o fortalecimento da identidade ou tradição e a mudança desestruturante
provocada pelas relações históricas com os estrangeiros, o que não começou apenas depois
da chegada do colonizador de origem européia, tendo existido desde sempre. Não se trata,
portanto, de uma forma de agência humana que pertence apenas aos tempos míticos, como
se a sociedade fosse mera repetição do que lá foi criado. A alteridade e a transformação,
representadas pelas mulheres, pelos antigos povos estrangeiros ou pelos atuais não-índios,
não são características exclusivas dos tempos da criação, mas realidade inexorável desde
que os humanos decidiram viver em sociedade, cabendo aos humanos sociais, desde então,
o exercício dessa agência social mediadora ou histórica.
No embate entre o ideal de reproduzir a sociedade o mais próximo possível das
formas originais e a necessidade de lidar com as transformações inerentes ao mundo social,
os Javaé (o que inclui homens e mulheres) percebem-se como agentes históricos e
criativos, responsabilizando-se pela produção e reprodução permanente da sociedade em
que vivem. Tal visão a respeito da construção histórica da sociedade pressupõe um modelo
processual e dialético da realidade, em que o conflito e a contradição são a mola mestra da
criação social, constituindo-se um reducionismo tentar traduzir tal linguagem através de
um modelo não histórico como o estruturalismo, por exemplo. Afinal, não há nada mais
dialético que a procriação humana, através da qual homem (tese) e mulher (antítese)
tornam-se um novo ser, uma síntese corporal.
Em Marx (1978), a natureza existe como um dado a priori, anterior à vida em
sociedade, mas a natureza a que os homens têm acesso não existe pura, uma vez que é
modificada pelo homem que produz as suas condições de existência. A “atividade
material” não tem o sentido vulgar de que o mundo material determina a vida social, mas

494
significa que, ao intervir produtivamente na natureza, o homem transforma a realidade
natural e, de modo reflexivo, as condições sociais de sobrevivência, propiciando a
recriação da própria sociedade. O social, portanto, não é o produto de categorias mentais
do sujeito humano, apenas, e nem é simplesmente determinado pela realidade objetiva. Ao
transcender o idealismo e o materialismo reducionista, Marx vê a sociedade como o
produto histórico de uma interação reflexiva criadora entre sujeito e objeto, entre o homem
e a natureza.
Pode-se dizer que os Javaé concebem nas raízes da agência histórica o mesmo tipo
de reflexividade, mas, ao invés da relação entre o sujeito humano e o mundo natural
humanizado, a práxis socialmente produtiva ocorre entre um sujeito humano
masculinizado e um outro sujeito, igualmente humano, porém feminilizado. Em Marx, é a
relação entre sujeito e objeto que é socialmente criadora, pois tanto o objeto como o sujeito
são recriados por meio de uma interação produtiva: a realidade interna da mente do sujeito
ou a realidade externa da natureza não produzem a sociedade por si só, o que só é possível
através de uma relação que cria o objeto (a natureza humanizada e transformada) e,
reflexivamente, o sujeito (a sociedade). Para os Javaé, é também a intervenção humana
social – a subida do paraíso – que vai produzir a transformação do Outro (que aqui não é a
natureza, mas um sujeito humanizado), o feminino de corpo e alma mais descontrolados e,
reflexivamente, o sujeito masculino mais autocontrolado, cuja relação intrínseca é a origem
de todas as formas sociais.
Embora uma teoria da prática, responsável pela aproximação entre Antropologia e
História, seja muito mais adequada para se falar dos conceitos Javaé do que o
estruturalismo, por exemplo, temos que levar em consideração alguns pressupostos
essenciais e diferentes a respeito da agência humana entre os Javaé:

(1) Só se é sujeito/agente enquanto um corpo integrado, e não como um


espírito ou consciência que se distingue da materialidade do corpo e dos
outros seres do universo. São os corpos dos seres humanos que criam a
História e não as suas mentes, de modo que o produto da criação
humana é tão corpóreo quanto o criador. Desse modo, as estruturas
sociais criadas pelos seres humanos não são tratadas como entidades
independentes e reificadas, como na tradição durkheimiana, mas como
um produto das relações humanas diretamente ligado ao criador, assim
como os filhos.

495
(2) Só se cria por meio de uma relação assimétrica e de conflito com o
Outro, em termos de coação e reação. Assim, a unidade da ação não é o
indivíduo, mas a relação socialmente (pro)criadora entre um princípio
masculino e um feminino, incluindo o produto da procriação. Decorre
então que homens e mulheres são igualmente co-autores da sociedade,
não havendo a dicotomia entre produtores de cultura (homens) e
produtores de filhos (mulheres).

(3) A produção da realidade social não decorre da relação entre o homem e


o mundo natural dado, sujeito e objeto, mas da relação fusional e
reflexiva entre dois sujeitos (ou sociedades) humanos, um
masculinizado e um feminilizado.

(4) A sociedade é um produto da agência humana mediadora ao longo do


tempo, inexistindo a concepção de que os humanos atuais são meros
repetidores de uma estrutura fixa original; por outro lado, a agência
social não tem o significado apenas de transformação, sentido usual do
objetivo da ação histórica nas sociedades ocidentais.

(5) A criação do mundo material atual e do mundo social, aquilo que se


chama de “realidade”, é inseparável. Não se distingue uma natureza
observável e autogerada da sociedade gerada pela agência humana. O
conceito de realidade pressupõe a fusão da capacidade produtiva
humana com o mundo material ao redor, de modo que toda e qualquer
realidade é inerentemente humanizada ou contém, imanente, a agência
criativa humana. Os homens não vistos como observadores de uma
natureza a ser descoberta, mas como criadores do mundo em que vivem.

Pode-se argumentar que o mito Javaé contém uma formulação alternativa ao que
Turner (1988b, 1995) identifica no modo de consciência mítico em geral, em especial das
sociedades indígenas, para quem, no mito, “o poder de criar ou mudar as formas e
conteúdos da existência social, ou a agência social em seu sentido mais completo, não é
visto como disponível aos habitantes do mundo social contemporâneo” (1988b:244). Como
já foi dito antes, o autor define o modo de consciência histórico como aquelas formulações
que têm consciência “da agência social criativa com uma propriedade dos atores sociais
contemporâneos” (1988b:244).
Já no modo de consciência mítico, no que se refere à questão da agência humana,
“as formas da ordem social existente, apesar de serem na verdade produtos históricos da
ação social humana, assumem a forma fantástica de produtos de façanhas sobre-humanas
ou de seres pré-sociais, naturais ou super-naturais” (Turner, 1988b:243). O modo de
consciência histórico lida com um tempo homogêneo, em que a sociedade é um produto da
agência humana ordinária, seja no passado ou no presente. No mito existiria um tempo

496
dual heterogêneo, uma diferença qualitativa entre os primeiros tempos, aqueles em que
seres de poderes extraordinários teriam criado as formas sociais, e um tempo posterior, do
qual o presente faz parte, em que os eventos posteriores à criação original foram
determinados por uma estrutura social que foi congelada no tempo mítico.
O mito Javaé expõe uma forma de consciência social a respeito da agência humana
que, embora partindo de pressupostos diferentes, não deixa de conter também uma
formulação sobre uma práxis histórica, no sentido básico de conceber a sociedade como o
produto da ação humana ao longo do tempo, e não como a mera repetição daquilo que foi
criado por ações sobrenaturais ou não-sociais de seres não-humanos. Em um artigo sobre
os Wakuénai, Hill (2000:354) mostra como o mito de criação nativo trata o poder humano
de produzir instrumentos e sons musicais como uma “metáfora da agência social e de uma
consciência da capacidade dos atores humanos para efetuar mudanças na ordem política da
sociedade”, de modo que existe uma teoria mítica da agência humana. No caso do mito
Javaé, a unidade da ação pode não ser um indivíduo que deseja a transformação, mas não
deixa de ser humana. A produção da sociedade pode não ser vista como construção
artificial sobre a natureza, mas não deixa de ser percebida como uma produção social.
Pelo fato de que as mudanças significativas são concebidas como produtos
extraordinários da fusão criativa entre diferentes, e não como produto da soma das ações
individuais ordinárias ao longo do tempo, há realmente uma distinção qualitativa, aos
moldes do que Turner propõe, entre o tempo ordinário da tentativa de imitação,
comandado pelos homens, e o tempo extraordinário da transformação ou criação do novo,
ativado pelas mulheres ou influências de outros povos (como o luto ou as grandes
transformações culturais). Mesmo assim, porém, a diferença na qualidade do tempo,
assunto da parte final, não remete à diferença entre poderes humanos ordinários e poderes
não humanos extraordinários, mas à diferença entre agência masculina conservadora e
agência feminina desestruturadora; ou entre ausência e existência de relações. Não se trata,
portanto, da inexistência de uma formulação no mito a respeito da agência humana, mas da
formulação de um tipo de agência humana baseada em pressupostos diferentes dos nossos.
Nos mitos, os Javaé não se vêem como “copistas” do que “os antepassados nos
ensinaram”, dos “ancestrais criadores” (Lévi-Strauss, 1976:270-271), mas como agentes
que realizam a mediação permanente entre cópia e criação, continuidade e mudança 43 .

43
Os Javaé também possuem relatos sobre o passado recente mais próximos do que tradicionalmente é
chamado de “consciência histórica”, em oposição ao formato “mítico”. Mas a diferença entre ambos não

497
No que se refere aos poderes extraordinários do tempo mítico, estando agora
conscientes da epistemologia corporal Javaé, podemos dizer que tais poderes não são
concebidos como capacidades não humanas, pertencentes ao domínio da natureza ou a
seres fantásticos sobrenaturais: os poderes excepcionais a que o mito se refere, capazes de
criar uma nova realidade, nada mais são que os poderes milagrosos das relações, das
fusões substanciais e conceituais entre os corpos/sujeitos diferentes durante as procriações
reais e simbólicas, capazes de transformar dois em três, de fazer o mesmo criar o diferente,
de fundir as influências de outros povos no que são os Javaé atuais, enfim, de tornar os
humanos capazes de alterar o fluxo da História, exatamente como concebem os Bororo a
respeito do ato da procriação (Crocker, 1985). Pode-se dizer, portanto, que a consciência
mítica Javaé é também uma consciência histórica em sua acepção mais profunda,
inexistindo uma distinção conceitual entre Mito e História, uma vez que a sociedade é
concebida, desde sempre, antes e depois da chegada impactante do homem branco, como o
produto de relações criativas entre sujeitos/corpos humanos diferentes quanto ao gênero,
entre interioridade e exterioridade, perenidade e transformação.
Tais poderes sociais extraordinários, circunscritos aos momentos específicos das
misturas corporais e conceituais, são considerados de menor potência que aqueles dos
corpos mágicos que não se misturaram jamais e, por isso, permanecem imutáveis e eternos.
O verdadeiro poder, para os Javaé, reside na imortalidade e é expresso através do
conceito xiburè, que pode ser traduzido como “mágico”, mas que tem o sentido mais exato
de “ausência de relações”. Mas em sua capacidade de criar o novo, e com ele a morte, os
poderes mundanos estão acessíveis a todos os humanos desde os tempos primordiais,
quando os humanos de baixo resolveram conhecer o nível intermediário e com ele a
diferença que propicia a criação. Para ter acesso a eles, entretanto, é preciso abrir-se para o
Outro e, juntos, criar um novo mundo.

remete à existência ou não de uma concepção sobre a agência humana, mas muito mais à diferença entre
verdades essenciais e eventos ou relações particulares, como já apontou Turner (1988b) a respeito de uma
outra forma de diferenciar entre mito e história.

498
Parte II (O Meio)

Capítulo 7

Rio acima, entre o nascimento e a procriação (continuidade)

7.1. A historicidade da estrutura: primogenitura e exogamia

Em termos estruturais, os dois grandes princípios de organização social Javaé são a


primogenitura (hierarquia), que estabelece uma continuidade entre as diferentes gerações
ao longo do tempo, e a troca simétrica ou restrita de esposas (reciprocidade), que liga os
grupos de afins e é acompanhada de endogamia de aldeia e residência uxorilocal. Talvez a
característica Arawak mais marcante ou visível entre os Javaé seja o princípio da
primogenitura, que regulamenta a transmissão de identidades ou bens culturais e fornece os
fundamentos de uma diferenciação hierárquica dentro da sociedade. Assim como ocorre
entre os Bororo (Crocker, 1976, 1979), os Tukano 1 e os povos Arawak do noroeste
amazônico (Wright, 1992, 2002, Hill, 2002), os Javaé também estabelecem um contraste
hierárquico entre o primogênito e o caçula, em que o primeiro é o detentor legítimo de
prerrogativas, dos bens culturais e do prestígio social. Pétesch (2000) analisou em
profundidade a terminologia de parentesco Karajá e mostrou convincentemente que, apesar
da aparência não evidente, se trata de uma terminologia dravidiana, o que se repete entre os
Javaé, como será visto.
Desse modo, aproximou-os dos “amazônicos” (o que inclui os alto-xinguanos), em
oposição a alguns povos do Brasil Central, se utilizarmos aqui o contraste elaborado por
Viveiros de Castro (1993, 1995, 2002b, 2002h) com base na teoria da aliança (Lévi-
Strauss, 1982) e que aponta as peculiaridades do dravidianato amazônico, em alguns
aspectos muito diferente do que ocorre na Índia (Dumont, 1990). As características
Arawak ressaltadas no início deste trabalho (hierarquia por meio da primogenitura,
regionalismo, ainda que restrito ao passado, sedentarismo, ideologia não-predatória e uma

1
C. Hugh-Jones (1979), S. Hugh-Jones (1979, 1993), Jackson (1983).

499
cosmologia fundamentada na idéia de um centro entre opostos) somam-se à terminologia
do tipo dravidiano para distanciar os Javaé da maioria dos povos Jê do Brasil Central,
embora pertençam ao tronco lingüístico Macro-Jê. Por outro lado, tanto a primogenitura
como o casamento com primas cruzadas bilaterais distantes (o que altera o caráter de troca
direta, como mostra Viveiros de Castro, 1993, 1995, 2002b) são formulados por meio de
uma linguagem espacial, que tem relação direta com a centralidade do princípio de
residência, característica especialmente marcante dos Jê-Bororo (ver coletânea de
Maybury-Lewis, 1979, em especial Turner, 1979a) 2 .
Além disso, a clássica dualidade Jê-Bororo entre identidade social e identidade
física 3 também está presente entre os Javaé, embora não se associe aos nomes
propriamente ditos e não tenha sido abordada nas etnografias sobre os grupos de língua
Karajá. Entre os Javaé, relaciona-se não só às metades cerimoniais como também à troca
de mulheres entre grupos de irmãos, o que os aproxima dos Bororo, que também praticam
a troca restrita e vinculam a atribuição de uma identidade social às trocas matrimoniais
(Crocker, 1979, 1985). A relação entre o tio materno e o pai de uma criança, doadores de
dois tipos diferentes de identidades, como entre os Jê-Bororo, é integrada à relação
estrutural de afinidade entre doadores e recebedores de mulheres, expressa nas
terminologias dravidianas. A questão que interessa aqui não é determinar qual princípio
teria precedência ou seria mais relevante, se a identidade onomástica ou a residência, como
entre os Jê-Bororo, ou a aliança, como entre os amazônicos, mas deixar evidente que os
próprios Javaé percebem a estrutura social como algo historicamente construído através de
relações intrínsecas ou permanentes com a exterioridade e, portanto, mutável.
De um ponto de vista masculino, a primogenitura é associada simbolicamente ao
masculino, aos corpos fechados, ao parentesco, aos aruanãs, à casa natal e à continuidade
do rio acima, enquanto a exogamia é associada ao feminino, aos corpos abertos, à
afinidade, aos aõni, à casa da esposa e à mudança do rio abaixo. Tanto a primogenitura
quanto o casamento com as primas cruzadas bilaterais são concebidos por meio de uma
linguagem espacial, em que o critério de residência tem preponderância sobre o de
descendência. A exogamia é vista como o produto do deslocamento espacial de um
homem, oriundo de sua residência natal, a unidade exogâmica mínima, para a residência
2
Viveiros de Castro (1995:13-14) lembra, entretanto, que mesmo na “Amazônia” “a residência possui um
rendimento estrutural mais elevado que a descendência” e que “a paisagem das terras baixas mostra um
continuum multidimensional ligando as sociedades amazônicas e centro-brasileiras, onde as formas de
transição são tão ou mais freqüentes que os exemplares puros deste ou daquele tipo clássico”.
3
Ver, por exemplo, Da Matta (1976, 1979), Melatti (1976, 1979) Lave (1979) e Seeger (1980, 1981).

500
conjugal (análogo à passagem do Fundo das Águas para o nível terrestre), onde ele abre
seu corpo e experimenta as mudanças mais significativas do seu ciclo de vida. Um homem
ou uma mulher perdem as prerrogativas relacionadas à sua condição de primogênito assim
que têm o primeiro filho, o que no caso masculino coincide com a sua mudança de
residência.
Como já foi dito, os Javaé reinventam, a seu modo, o mesmo tipo de oposição
simbólica existente entre o Aroe e Bope Bororo (Crocker, 1985) ou a que os Tukano (C.
Hugh-Jones, 1979, S. Hugh-Jones, 1993) fazem entre alma/ossos/nomes (masculino) e
corpo/líquidos corporais (feminino). Esse contraste compõe a pessoa dual, constituída de
um porção perene (o nome, tanto para os Jê-Bororo como os Tukano) e uma perecível, o
corpo que se deteriora, ou seja, de continuidade e mudança. Mas enquanto Crocker (1979)
estabelece uma conexão entre esse simbolismo e a dualidade da pessoa (nome/masculino e
substância/feminino) entre os Bororo, C. Hugh-Jones (1979) mostra que, entre os Tukano,
a dualidade simbólica da pessoa reflete uma dualidade estrutural e complementar da
sociedade: aquela existente entre as relações de descendência hierárquicas (quem nasce
primeiro tem status superior), associadas ao masculino e à continuidade estrutural, e as
relações de afinidade simétricas e igualitárias entre grupos locais exógamos, associadas ao
feminino em razão dos movimentos de mulheres entre os grupos (trocas de esposas). Ou
seja, entre “hierarquia fixa e os patrões de interação sempre mutáveis, baseados no
princípio de igualdade” (C. Hugh-Jones, 1979:105-106). Dito de outro modo, as linhagens
hierárquicas representam a continuidade interna, e por isso são associadas ao masculino,
enquanto a exogamia representa a mudança que ocorre através das relações com a
exterioridade, em termos de troca simétrica de mulheres, sendo assim associada ao
feminino.
Os Javaé têm em comum com os Bororo do Brasil Central e os Tukano do alto Rio
Negro o mesmo tipo de complementaridade estrutural entre hierarquia e reciprocidade
(ver Lévi-Strauss, 1944), identificado tanto por Crocker (1976) quanto por C. Hugh-Jones
(1979). Crocker (1976, 1979) já havia notado que o princípio da idade relativa, da
diferenciação hierárquica entre siblings (primogênito e caçula), é a principal característica
destoante dos Bororo em relação aos Jê, o que é encontrado entre os Javaé, os Karajá
(Pétesch, 2000), os povos Arawak e os povos influenciados por estes últimos, como os
Tukano. Os Bororo concebem a descendência de modo cognático, paralelamente a uma
ideologia matrilinear e praticam a uxorilocalidade, a exogamia de metades e a endogamia

501
em uma aldeia autônoma; enquanto os Tukano têm um conceito de descendência
patrilinear e praticam a patrilocalidade e a exogamia de grupos locais e respectivas línguas
diferentes distribuídos em uma grande rede regional 4 .
Em comum, entretanto, além do simbolismo associado ao feminino e ao masculino,
ambos regulam o casamento por meio da troca simétrica entre afins (casamento com
primas cruzadas bilaterais) e possuem o mesmo princípio da diferença hierárquica entre
primogênitos e caçulas. Em outras palavras, seguindo o que já foi formulado por Crocker
(1976), existe uma complementaridade entre a hierarquia entre os semelhantes (interna às
linhagens) 5 e a reciprocidade ou igualdade entre os diferentes (troca simétrica entre
metades, no caso Bororo, ou entre grupos locais exogâmicos, no caso Tukano). Tentarei
argumentar que no caso Javaé existe o mesmo tipo de dualidade estrutural e simbólica
entre o princípio hierárquico da primogenitura (embora aqui não se manifeste associado a
linhagens ou clãs) e o princípio igualitário da troca simétrica ou restrita, no sentido de
reciprocidade simétrica de esposas entre afins 6 .
Isso não significa suprimir a assimetria das relações específicas entre genros e
sogros, na condição de devedores e credores, como mostra Turner (1979a) a respeito dos
povos do Brasil Central. O casamento com primas cruzadas bilaterais proporciona uma
troca recíproca ou igualitária de mulheres entre os grupos, mas as relações entre genros e
sogros são concebidas no idioma da subordinação, os genros sendo associados
simbolicamente aos caçulas e os sogros aos primogênitos, assunto a ser retomado.
A primogenitura representa o valor superior das relações de parentesco e a
continuidade social entre os Javaé, pois é o princípio que regula a transmissão dos bens e
identidades de valor dentro da sociedade, relacionando-se ao extremo cosmológico do rio
acima, símbolo da perenidade e do masculino. A linha de primogênito para primogênito,
sem que tenha qualquer relevância o sexo daquele que transmite algo ou daquele que

4
Ver Turner (1979a) para uma comparação dos diferentes padrões de residência e descendência e suas
conseqüências estruturais entre os povos do Brasil Central e do alto Rio Negro.
5
No caso Bororo, as relações entre as linhagens que formam os clãs são hierárquicas e baseadas no princípio
da idade relativa, originado no início mítico. As linhagens cuja origem é mais antiga são chamadas pelos
membros das linhagens mais jovens de “nosso irmão mais velho”, sendo consideradas superiores e, por isso,
detentoras de mais bens rituais e do direito de exercer a autoridade moral. Além disso, cabe ao primogênito o
direito de ser o chefe de cada linhagem. Algo muito parecido ocorre entre os Tukano, para quem a hierarquia
interna a um grupo de siblings, correspondente a papéis rituais e prerrogativas variadas, repete-se no nível
mais amplo: os diversos grupos exogâmicos são concebidos como irmãos diferenciados pela ordem de
nascimento, cabendo maior prestígio ao que surgiu primeiro nos tempos míticos.
6
Pétesch (2000:232) também identifica entre os Karajá, embora associadas à oposição cosmológica entre um
eixo vertical e um horizontal, “as mesmas combinações de princípios classificatórios (identidade-assimetria /
oposição-equivalência)” encontradas entre os Bororo.

502
recebe, é o que representa a continuidade do “mesmo” entre as gerações. O primogênito de
um casal, independentemente do seu sexo, pode herdar os bens/identidades preciosos que
se originam tanto da linha materna quanto paterna, de modo indiferenciado, mas ele ou ela
é considerado como um membro uterino da sua casa natal, uma vez que os Javaé
enfatizam, como os Bororo, uma ligação matrilinear à casa de origem, além de regularem a
filiação às metades cerimoniais pelo princípio matrilinear. Trata-se de um contraste notável
em relação aos Karajá, cuja filiação matrilinear às residências ocorre paralelamente a uma
filiação patrilinear aos grupos rituais 7 .
Como o primogênito perde as prerrogativas e bens associados à sua condição assim
que ele tem o primeiro filho, o que no caso do homem coincide com a sua mudança para a
casa conjugal, o status derivado da condição de primogênito coincide com a residência na
casa natal, cujo pertencimento se dá pela via matrilinear. Assim, a distinção hierárquica
entre os siblings é associada à matrilinearidade, que é definida muito mais em termos de
residência do que descendência, revelando um pano de fundo em comum com os Bororo,
embora os Javaé não tenham linhagens nem metades exogâmicas. Embora a primogenitura
seja aparentemente formulada na linguagem da descendência, constataremos que ela tem
um conteúdo simbólico essencialmente anti-genealógico, como a matrilinearidade
“espiritual” Bororo (Crocker, 1979, 1985), sendo acompanhada de uma concepção de
filiação cognática ou bilateral.
A troca de irmãs, por sua vez, é o grande marco mítico e cosmológico da mudança,
a prática que possibilitou a passagem de um tempo/lugar imutável para um tempo/lugar de
transformações. O sexo que abriu os corpos e inaugurou a passagem progressiva do tempo
está vinculado à primeira troca de mulheres, o que depois teve continuidade por meio da
passagem dos homens da casa natal para a casa dos afins, que se repete desde então. Na
medida em que a troca de irmãs é responsável pela abertura dos corpos e o conseqüente
fluxo de substâncias, indicativo das transformações corporais e da própria passagem do
tempo, ela associa-se ao feminino, ao extremo cosmológico do rio abaixo e à Terra dos

7
Ver Dietschy (1977), Fénelon Costa (1978), Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994). Pétesch
(2000:210) descreve com maior profundidade a estrutura social dos Karajá (que se concebem como grupos
de parentesco cognáticos) em termos de uma filiação bilateral a dois espaços distintos: filiação matrilinear a
um grupo de residência uxorilocal, associado ao espaço doméstico e feminino (identidade terrestre), e filiação
patrilinear a um “grupo de descendência sócio-cultural” (os grupos rituais), associado ao espaço público e
masculino (identidade cósmica ou aquática). O grupo seria caracterizado por uma notável “desarmonia” do
sistema (Lévi-Strauss, 1982), dividido “entre dois princípios antagônicos, a matrilocalidade e a filiação
patrilinear” (Pétesch, 2000:227). “O ideal de cognação” seria preservado “por uma valorização alternada de
duas linhas de filiação” ou de “dois princípios de organização, residência e filiação”.

503
Ensangüentados, onde os corpos sangram sem parar e o tempo passa acelerado. A
mitologia, afinal, concentra-se em explicar que foram as intensas trocas míticas entre os
diversos povos existentes, incluindo troca de substâncias, mulheres, bens materiais e
culturais, que possibilitaram a abertura da estrutura fechada e estática anterior,
introduzindo as transformações.
A mudança é conceituada, portanto, em termos de reciprocidade com a
exterioridade, seja na forma interna de troca de mulheres, responsável pela abertura dos
corpos e o início da morte, ou na forma externa de trocas com os outros povos diferentes,
responsável pelas mudanças culturais. A reciprocidade não é percebida aqui apenas como
um mecanismo que constitui e perpetua a estrutura social, como em Lévi-Strauss (1982),
mas como o próprio vetor das transformações históricas da estrutura, como a essência de
uma “desestrutura”. É o exercício da sexualidade entre diferentes – a troca de substâncias
criativas entre corpos masculinos e femininos – que propicia a criação do novo e a
transição entre corpos fechados e corpos abertos. Por isso o agente da ação histórica
criativa não é um indivíduo ou uma sociedade isolada, mas uma relação criadora e de
reciprocidade entre diferentes, o único modo capaz de se produzir o novo (filhos reais ou
simbólicos) e a mudança.
Seguindo a mesma lógica, a continuidade é concebida em termos de ausência de
relações com a alteridade, o que é representado pelo extremo rio acima, uma estrutura
permanentemente fechada, onde os habitantes não se relacionam entre si ou com os de fora
e tudo é o mesmo de sempre. A troca levada às últimas conseqüências lógicas, sem o
contraponto da continuidade interna, resulta na abertura total e incontrolável da estrutura,
simbolizada pelo extremo rio abaixo, onde os ensangüentados têm a energia vital
misturada, como se trocassem suas substâncias permanentemente, tornando-se estranhos
entre si. A relacionalidade pura entre os ensangüentados leva a um estado de mudança
crônica, em que o tempo passa acelerado, pois os fluxos de substâncias para fora do corpo
são contínuos, como se o corpo continuasse se transformando sem parar e perpetuasse a
própria mortalidade. A ausência de relações físicas e sociais do rio acima se associa à
continuidade e ao fechamento da estrutura (um mundo sem outros), enquanto a intensa
mistura do rio abaixo, o seu oposto lógico, associa-se à mudança e à abertura da estrutura
(um mundo só de outros).
A sociedade dos humanos do meio, portanto, é pensada como uma estrutura
inerentemente histórica porque se constitui como mediação constante entre a tendência

504
paralisante da primogenitura e a força desestruturante da exogamia, entre parentesco e
afinidade, entre o perene e o perecível, interioridade e exterioridade, casa natal e casa dos
afins, masculino e feminino. Em outras palavras, entre a estrutura fechada e estática do rio
cima (onde todos são semelhantes porque não há relações físicas ou sociais) e a estrutura
completamente aberta e mutável do rio abaixo (onde todos são estranhos porque se
relacionam substancialmente). A idéia de que a alteridade é imanente à sociedade
(Viveiros de Castro, 1986, 1993, 2002c) implica por dedução no caráter intrinsecamente
histórico e mutável da estrutura social, de modo que a socialidade terrestre, ou o exercício
da agência humana social, encontra-se na posição intermediária entre os extremos.
Em termos internos, de um ponto de vista masculino, a agência social significa
encontrar o ponto de equilíbrio entre as fortes ligações com a casa natal e a necessidade
imperiosa de viver na casa dos afins. Em termos externos, de um ponto de vista da
sociedade como um todo, significa mediar habilmente entre a tradição herdada e as
influências estrangeiras. A filosofia social Javaé desconfia da troca, como formulou
Overing Kaplan (1984) tendo em vista horizontes muito mais amplos, mas não porque a
troca é desigual, como argumenta Viveiros de Castro (1993, 2002b), mas porque a troca
leva à mudança e, conseqüentemente, à morte. Postular que a aliança é concomitante à
mortalidade, tema comum das mitologias indígenas sul-americanas (Lévi-Strauss, 1991), é
subentender que a troca é o vetor da transformação, cujo resultado último é a morte, a
maior de todas as transformações humanas.
O meio aqui não é uma negação das relações com a exterioridade, seja internamente
(amazônicos) ou externamente (centro-brasileiros), como no modelo geral de Viveiros de
Castro (1986, 1993, 2002b), mas uma mediação constante entre identidade e alteridade,
interior e exterior, seja nas relações internas ou externas da sociedade, dissolvendo-se a
oposição entre dentro e fora. Tanto dentro como fora a relação com a alteridade é
intrínseca, e tanto dentro como fora tenta-se anulá-la. Também não se trata da oposição
entre um dualismo diametral horizontal e um dualismo assimétrico vertical, como no
modelo de Pétesch (1987, 1993a, 2000), mas de um centro histórico em que os agentes
humanos fazem a mediação entre uma estrutura totalmente aberta e uma outra totalmente
fechada.
A exogamia não é vista apenas como troca de irmãs entre afins, sendo
compreendida como uma manifestação interna da questão maior das relações com a
exterioridade, o que toma a forma, em um nível mais amplo, das relações com os

505
estrangeiros em geral, incluindo os não-índios, indutoras das mudanças sociais. Do mesmo
modo, ao inverso, a primogenitura não trata apenas da continuidade entre as gerações
Javaé, mas relaciona-se com o tema mais amplo da perenidade dos corpos ou imortalidade
humana. Assim, o princípio da primogenitura, com seu caráter simbólico de continuidade e
estatismo, é associado ao povo de Tòlòra, enquanto a exogamia, promotora das
transformações sociais, é associada aos Wèrè, que são vistos como vetores da mudança
espacial e temporal, em razão do contato predador com os povos vencidos, dos quais
capturavam cativos, bens materiais e simbólicos. O mito narra claramente que as primeiras
trocas exogâmicas do povo de Tòlòra com mulheres de povos diferentes foram realizadas
com os Wèrè, em Marani Hãwa, os quais trouxeram os rituais da Dança dos Aruanãs que,
pretendo mostrar, são uma versão Javaé do tema da onomástica Jê-Bororo.
O que eu pretendo dizer, em outras palavras, é que o feminino não é relacionado
meramente às transformações repetitivas e cíclicas da mesma estrutura induzidas pelas
trocas exogâmicas, como no modelo de inspiração estruturalista de C. Hugh-Jones
(1979:167), em que as patrilinhagens e as trocas de mulheres, ao final das contas, são
apenas “modos de continuidade masculinos e femininos” (respectivamente cumulativo e
repetitivo): “O modo masculino representa extensão contínua no tempo, e o feminino
representa renovação contínua”. No trabalho da autora, a exogamia é associada à mudança,
mas ela surge como uma série de ciclos repetitivos internos que apenas renovam a forma
anterior, sem contudo alterar a sua essência.
Dentro desse mesmo espírito, a menstruação, que é relacionada ao corpo perecível
feminino e, portanto, às trocas exogâmicas, é vista por C. Hugh-Jones mais como
“renovação” do que propriamente “transformação”. O mito Tukano sobre o surgimento dos
brancos associa a menstruação à imortalidade, no sentido de renovação (S. Hugh-Jones,
1988). No que se refere aos Javaé, as mudanças associadas ao corpo das mulheres e à
feminilidade não são concebidas apenas como renovações crônicas internas de uma mesma
estrutura que se repete, mas como alterações históricas da própria estrutura que surgem das
relações de mediação com a exterioridade (que não se resume aos afins). Nesse modelo, a
menstruação não é a renovação do corpo, mas, assim como a procriação, o início de um
caminho irreversível que leva à morte, o fim da estrutura corporal anterior.
Ainda dentro de uma crítica à abordagem estruturalista, a oposição entre
primogenitura e exogamia não adquire aqui o significado da tradicional oposição entre
descendência e aliança, a qual presume a divisão ou passagem entre natureza (associada às

506
relações “naturais” de descendência) e cultura (associada às relações de aliança
“construídas” socialmente). Não se trata de consangüinidade versus afinidade, como parece
à primeira vista, mas de parentesco versus consangüinidade e afinidade ou, em termos mais
precisos, não-relação versus relação. Entre os Javaé, consangüinidade e afinidade não se
opõem, nem uma é anterior à outra, pois são ambas fenômenos sociais que se iniciam após
a abertura dos corpos. Do mesmo modo que entre os Tukano (C. Hugh-Jones, 1979:52),
“casamento e reprodução sexual levam a era original e ancestral ‘pré-descendência’ a um
fim, iniciando uma nova era de ‘descendência’ (...)”.
Como já foi visto, a passagem mítica fundamental não é de um estado de natureza
que liga as gerações através da descendência física para um de cultura que liga os grupos
de irmãos pela afinidade, como em Lévi-Strauss (1982). Mas de um estado mágico de
parentesco onde não há nenhum tipo de relação (seja de consangüinidade ou de afinidade),
para um estado social espacialmente intermediário, anterior ao extremo oposto, definido
como um lugar de relacionalidade total poluído (em que a consubstancialidade dos
ensangüentados e a afinidade simbólica que os liga são inseparáveis). Ou seja, o ato da
procriação cria a um só tempo tanto as relações de descendência entre genitores e filhos,
estranhos entre si em um primeiro momento, quanto as relações de afinidade entre os
genitores, antes inexistentes. Pretendo mostrar que a primogenitura é associada a este
estado mágico anterior de não-relação, aqui chamado de “parentesco”, opondo-se
simbólica e estruturalmente à exogamia, que é associada às relações concomitantes de
substância e afinidade.
Desse modo, uso o termo “parentesco” aqui, em oposição a consangüinidade e
afinidade, não no sentido lato de “sistema de parentesco” da teoria estruturalista, que inclui
tanto as relações de filiação quanto as de aliança, mas no sentido estrito de relações entre
parentes apenas, o que, paradoxalmente, entre os Javaé, significa ausência de relações
substanciais e de afinidade. Tentarei mostrar nesta segunda parte que os Javaé têm uma
teoria não naturalizante do parentesco (o que não significa desconhecer os vínculos
substanciais originados na procriação), de modo que o conceito de parentesco nativo não se
baseia nas ligações de substância ou consangüíneas entre as pessoas, mas no esforço social
de suprimi-las. Em termos precisos, o processo de construção social do parentesco é visto
como a criação de um semelhante, enquanto a procriação, indissociável da
consangüinidade e da afinidade, é vista como a criação de um estranho.

507
Primogenitura e exogamia, portanto, são pensadas muito mais como manifestações
internas e sociais de negação e afirmação, respectivamente, das relações com a alteridade
do que como oposição entre descendência e afinidade. A história do Povo do Meio é uma
história de mediação ou esforço consciente de controle, ao longo do tempo, desses dois
modos extremos de relação com a alteridade, que se referem tanto às relações internas
(trocas de irmãs) quanto às externas da sociedade (trocas com outros povos, que podem ser
os Wèrè ou os não-índios, mais recentemente). A interação permanente e paradoxal entre
os extremos de identidade e alteridade constitui a historicidade intrínseca da própria
estrutura social, que encontra sua forma entre o fechamento e a abertura absolutos. As
antigas estratégias de manutenção do mesmo, operadas na caminhada simbólica rio acima,
convivem em contradição com as forças de mudança, que caminham na direção do rio
abaixo e que podem ser mais ou menos poderosas.
Ao contraste entre primogenitura e exogamia ou parentesco e afinidade sobrepõe-se
a oposição entre hierarquia e reciprocidade, nos mesmos termos dos Tukano e Bororo, em
que se tem hierarquia entre iguais e igualdade entre diferentes. Entre os primeiros, C.
Hugh-Jones (1979:52) identifica uma oposição “entre a estrutura interna hierárquica e
unificada dos grupos de descendência e as relações externas de reciprocidade igualitária
formada com os grupos de afins (...)”. No que se refere aos Javaé, de um ponto de vista
masculino, o princípio hierárquico existente entre siblings é associado à casa natal e ao rio
acima, onde todos são parentes porque são semelhantes. Do mesmo modo, ao inverso, a
troca igualitária de mulheres ocorre entre afins e é associada à casa dos afins e ao rio
abaixo, onde todos são estranhos entre si. Lembrando o que ocorre entre os Tukano e
Bororo, tanto a pessoa como a estrutura social são concebidas por meio do mesmo
conjunto de oposições simbólicas, que traduzem a contradição entre o eterno e o
transitório, o masculino e o feminino.
O princípio masculino da primogenitura e sua relação com uma lógica espacial e
corporal serão analisados nos dois capítulos a seguir, o que será sucedido de uma descrição
sobre o princípio feminino da exogamia entre os Javaé. Veremos também que a
primogenitura Javaé não é o mesmo que uma patrilinearidade, como a identificada por
Lipkind (1948), Dietschy (1977, 1978), Toral (1992) e Pétesch (2000) em relação ao
pertencimento às metades rituais, à transmissão de bens rituais e à chefia hereditária entre

508
os Karajá 8 ; e que o critério que fundamenta uma maior importância do primeiro filho
deriva de uma ideologia corporal, como ocorre entre os Yawalapíti xinguanos (Viveiros de
Castro, 1977) e os Bororo (Crocker, 1985), para quem o primogênito tem mais prestígio
por ter um melhor raka.

7.2. O anti-parentesco: de corpo aberto

Foi dito até agora que os processos relativos à procriação de novos corpos são o
modelo de toda criação social, de modo que o estudo da etno-Física e da etno-Biologia
Javaé (a teoria nativa sobre a criação da matéria e dos corpos) é, ao mesmo tempo, o
estudo de sua etno-História (a teoria nativa sobre a criação da sociedade), desde que esses
conceitos sejam expandidos e entendidos a partir de uma epistemologia Javaé, fundada em
uma lógica relacional e na não-separação entre natureza e cultura, matéria e espírito.
Talvez esse seja um outro modo de dizer o que já foi formulado por C. Hugh-Jones
(1979:278) antes, em relação aos Barasana (Tukano), os quais concebem “e organizam
todos os processos que governam o desenvolvimento e manutenção tanto do corpo físico
como dos grupos sociais como se eles tivessem uma similaridade fundamental”.
Como os Javaé associam o início das relações físicas e sociais à abertura dos
corpos, marcando a passagem de uma ordem estática a uma ordem transformada, a
procriação é o modelo não só de toda relação/criação, mas de toda transformação que leva
ao surgimento de um novo ser ou estado. Veremos ao longo dos próximos capítulos que o
nascimento, o casamento/procriação e a morte são concebidos como as grandes passagens
do ciclo de vida que inauguram novos estados dos corpos/sujeitos, repetindo
simbolicamente a grande passagem mítica inicial, a saída do útero cósmico.
Todas as mudanças de estado do corpo durante a vida são vistas como repetições da
grande passagem inicial que transformou corpos fechados em corpos abertos através de
uma interação fusional com outro corpo. A transformação da ordem anterior é sempre um
produto da interação com um outro corpo/sujeito, resultando em um primeiro momento de
poluição (contaminação ou fusão com a alteridade responsável pela transformação) e um

8
Lima Filho (1994:133) identifica a filiação patrilinear às metades rituais, mas enfatiza também, ao contrário
dos outros, o critério da “primogenitura” na transmissão dos cargos de chefia Karajá (deridu e ixydinodu).

509
segundo momento de purificação (separação do outro e tentativa de congelamento dos
processos de transformação). Assim como todo nascimento gera um estado de couvade ou
resguardo em que os criadores e a criatura estão ligados entre si e poluídos, e um pós-
couvade em que os três se separam e se purificam relativamente, veremos que as mudanças
de estado proporcionadas pelo casamento e pela morte geram essa mesma dialética entre
alteridade e identidade, feminino e masculino, transformação e continuidade, contaminação
e purificação, fusão e separação.
E que nos casamentos, de um ponto de vista masculino, esse primeiro momento
feminilizado de mistura com a alteridade é também um momento de subordinação ao
outro/afim (do genro ao sogro), enquanto o momento masculinizado de purificação
equivale a uma tomada de poder (com o tempo, o genro torna-se sogro de outros genros)
que possibilita manter o outro/afim sob relativo controle. É como se, a cada transformação
ou criação, os humanos descessem até o extremo rio abaixo, em um primeiro momento,
para depois iniciar o caminho de volta rio acima, extremidade que nunca alcançam
realmente, ficando apenas no meio dessa caminhada, onde se situa o poder possível e
relativo do mundo mortal e social. Enquanto mudanças de uma ordem anterior, tanto o
nascimento de alguém quanto o casamento e a morte são vistos como o produto da
interação com um outro feminilizado que resulta em um primeiro momento de desordem,
poluição ou transformação (descida rio abaixo), e um segundo momento de ordenamento,
congelamento e purificação (subida rio acima).
Assim, os capítulos a seguir pretendem expor as idas e as voltas, as descidas e as
subidas simbólicas que ocorrem após a procriação (relações dentro da família nuclear), o
casamento (relações dentro da família extensa) e a morte. Entre um e outro extremo, os
humanos exercem a agência que possibilita a eles encontrar o meio desta caminhada entre
opostos. Nos períodos entre o nascimento e o casamento, entre o casamento e a morte,
entre a morte e o renascimento, os sujeitos/corpos masculinos repetem a grande passagem
mítica, quando os homens encontraram as mulheres enlouquecidas em um primeiro
momento e depois assumiram o controle relativo da situação: a cada nova transformação,
eles descem simbolicamente ao extremo da alteridade, onde encontram o caos e os corpos
sangrando, e tentam subir novamente ao extremo da identidade, onde a ordem impera e as
substâncias estão contidas, sem, contudo, jamais alcançar a origem imaculada e imortal do
rio acima, atingindo apenas a posição intermediária que a vida em sociedade pode
proporcionar. Desse modo, iniciamos a nossa caminhada detendo-nos nas ideologias e

510
práticas a respeito da procriação, o modelo primordial de todas as outras caminhadas dos
humanos sociais 9 .
Em meu trabalho anterior (Rodrigues, 1993), há uma descrição da ideologia nativa
a respeito do conceito de energia vital, categoria que eu proponho, o que envolve as idéias
e práticas a respeito da concepção e do resguardo posterior à menstruação, ao parto e à
morte de um inimigo estrangeiro. Alguns princípios básicos já foram resumidos aqui antes,
em especial a idéia de que as misturas de substância dentro dos corpos são criativas,
enquanto aquelas ocorridas fora dos corpos são poluentes e enfraquecedoras, essência do
paradoxo vida/morte, pois a mistura vital de dentro leva inevitavelmente à mistura mortal
de fora; e a idéia de que um recém-nascido (tohokuy) é concebido como a mistura de
energia vital de seus pais exteriorizada, a forma mais poluente de todas, sua saúde estando
ligada ao uso que eles farão dessa energia. Daí a proibição dos pais terem relações sexuais
nesse período ou quando a criança está doente, o que seria gastar o frágil estoque
energético do novo ser. Segundo Dietschy (1978), entre os Karajá da década de 50, a
interdição sexual durava todo o período de amamentação da criança, o que podia chegar a
três anos.
Durante o período de resguardo, entende-se que a energia vital da mulher que
menstrua, da mulher que teve um filho recentemente ou do inimigo morto está fora de seus
corpos, contaminando quem tiver algum tipo de contato, ainda que não necessariamente
direto com as substâncias exteriorizadas, em especial o pai da criança e o matador do
inimigo, pois os fluidos corporais têm capacidades invisíveis de emanação energética,
como entre os Apinayé (Da Matta, 1976), Bororo (Crocker, 1985) e Krahó (Carneiro da
Cunha, 1978), por exemplo. Já foi dito que essa energia vital que pode poluir também a
uma certa distância ou de modo invisível é chamada de kyty, o “cheiro forte ou ruim” do
sangue, noção similar ao jerimaga Bororo (Crocker, 1985). A contaminação é definida
como uma “mistura” externa com a energia vital alheia, que provoca um estado doentio
associado à fraqueza, preguiça, gordura ou inchaço do corpo. Findo o resguardo, é como se
os limites corporais daquele que polui fossem restabelecidos, voltando a conter as
substâncias em seu corpo, e aquele que foi poluído conseguisse se purificar, separando-se
da energia exteriorizada do outro. Para se purificar, tanto no caso do que polui como do

9
Embora detendo-se em diferentes significados e aspectos, Turner (1995:161) mostra que entre os Kayapó “o
próprio ciclo humano é dividido em fases consecutivas de forma repetitiva, (...) compreendendo a replicação
do estado inicial”.

511
que foi poluído, é preciso evitar contatos físicos com outras fontes de poluição, como os
fluidos sexuais, mantendo um certo isolamento das outras pessoas.
Assim como no alto Xingu (Viveiros de Castro, 1977, 1987b, 2002a), deve-se
praticar o jejum parcial (inarehè), evitando comer carnes em geral (porque têm sangue) 10 e
outros alimentos e substâncias “energéticas”, como ovos de tartaruga e tracajá ou a tinta do
jenipapo (capaz de ajudar no crescimento das pessoas, pois contém um poder criativo
análogo ao sêmen que forma um feto), a fim de não se agravar as misturas. Deve-se
também praticar a escarificação do corpo para retirar o “sangue pesado”, ou seja, o sangue
misturado (Rodrigues, 1993:53), e tomar eméticos para expelir os resíduos da energia vital
alheia, em especial o pai de um recém-nascido, embora a mulher também o faça em certas
ocasiões 11 . Práticas similares entre os Karajá são descritas por Ehrenreich (1948), Aytai
(1979c) e Donahue (1982), que associa a couvade Karajá a uma suspensão das atividades
econômicas da família nuclear. Segundo Lima Filho (1994), os Karajá praticam o
resguardo (jejum e escarificação) especialmente após o nascimento do primogênito. O fim
do resguardo chama-se ikytyna, “o lugar do kyty”, no sentido de que se pode voltar a comer
alimentos com sangue, ovos ou usar a tinta de jenipapo, ou seja, produtos que tenham kyty,
pois o corpo não está mais tão aberto e vulnerável à mistura com outras fontes de energia
vital. Todos esses conceitos já foram expostos em maior detalhe antes (Rodrigues, 1993).
Faço uma revisão atualizada aqui, com informações inéditas, especificamente, da
teoria Javaé a respeito da concepção, que é de importância central para o argumento
desenvolvido. Aparentemente, os Javaé partilham da “contradição entre teoria patrilateral
da concepção e reconhecimento bilateral da comunidade de substância” (Viveiros de
Castro, 1986:439), comum a vários grupos da região, como os Yawalapíti/Arawak
(Viveiros de Castro, 1977) e os Suyá/Jê (Seeger, 1980, 1981). Como já foi dito aqui antes,
atribui-se aos homens, exclusivamente, o fornecimento da substância material (ky) de que
são feitos os corpos humanos. Todos os corpos são feitos do sêmen (nõsy) de seus pais,
uma forma possível do ky. Por isso, os homens referem-se aos filhos como wakydudu,
“aquele que se originou (dudu) da minha carne/matéria (waky)”. Já as mulheres referem-se
aos filhos como wawodudu, “aquele que se originou (dudu) dentro de mim (wawo)”, mas
com o sentido de que os filhos foram apenas “cuidados” ou “criados” dentro de seu
10
O sangue animal é, no fundo, sangue humano, pois os animais eram humanos antigamente, por isso é
considerado sangue de “outro” e deve ser evitado no resguardo.
11
Ver Da Matta (1982:56) sobre a couvade, cujo propósito, entre os Apinayé, “é restaurar a ordem separando
domínios que foram levados a uma conjunção perigosa”. No caso, o autor refere-se às comunicações entre o
mundo natural e social.

512
útero/receptáculo (kuladuryna, “o lugar onde a criança se senta ou mora”). Criar, aqui, não
tem o sentido de fabricar, mas apenas de fornecer as condições necessárias para o
desenvolvimento de um ser. Do corpo masculino provém a substância que fabrica o corpo
do filho e do corpo feminino o ambiente protetor onde o corpo se desenvolve.
Em uma tradução literal, um filho pode chamar seu pai de wakesenakydu, “aquele
que é o lugar (na) da minha fabricação (wakese)”, e sua mãe de wajuranakydu, “aquela
(kydu) que é o lugar (na) da minha criação (wajura)”. Jurana é o lugar onde se cria/cuida
de algo, como na expressão hanikè jurana, referente às granjas, “o lugar da criação
(jurana) de galinhas (hanikè)”, ou kutura jurana, “o lugar da criação de peixes (kutura)”,
referente aos criatórios artificiais de peixes. Jura e kese também têm outros sentidos
complementares: jura pode ser “rachar, romper”, no sentido geral de “nascer”, de modo
que o corpo da mãe de alguém é wajurana, aproximadamente algo como “o lugar que foi
rompido ou rachado por mim” ou “lugar da minha saída”, pois se diz que tanto os humanos
como as tartarugas, os jacarés, os pássaros etc “rompem ou racham o corpo da mãe para
sair”. Portanto, a mãe, wajuranakydu, é tanto “o lugar da minha criação” como “aquela
cujo corpo eu rachei/rompi” ou “de onde eu saí para fora”. Kese, por sua vez, pode ser
tanto “fazer, fabricar”, quanto “deixar, depositar”, no sentido de que o homem deixa ou
deposita o sêmen no útero da mulher. O pai, wakesenakydu, é tanto “o lugar da minha
fabricação” quanto “aquele que deposita” a substância de que a pessoa foi feita,
aproximadamente.
Os Javaé dizem que o corpo da mulher é apenas um recipiente ou receptáculo
(ihyna), porque ele não possui um pênis e não ejacula, ato associado ao orgasmo (nõsy
reara, “o esperma saiu”) – daí se acreditar que as mulheres não têm orgasmo –, e à
produção da matéria que dá origem aos corpos, o sêmen. O desejo sexual feminino é
chamado de labu e o masculino, de qualidade diferente, por ser mais forte, de huu. As
mulheres promíscuas ou que têm muito desejo sexual (labujuku) são chamadas de labuijò,
enquanto os homens promíscuos são otaota. O ato sexual em geral é referido pela palavra
wèdè, literalmente “carne (dè) da barriga (wèè)”, palavra associada ao ato de “penetração”,
em que os homens são wèdèdu (os que penetram) e as mulheres as wèdèna (as que são
penetradas), como já foi dito.
As palavras labu e huu referem-se ao tipo diferente de desejo sexual de homens e
mulheres, mas também são usadas como o “ato sexual” em si, de modo que as mulheres
sentem e “fazem labu” e os homens sentem e “fazem huu”, o que também é associado a ser

513
penetrado e ser o que penetra. Acredita-se que o huu masculino é mais forte que o labu
feminino por causa do pênis e, por isso, não se consegue segurar os weryrybò (“rapazes”)
em casa, ao contrário das ijadoma (“moças”), que se movimentam menos pela aldeia. Tal
afirmação não deixa de ser contraditória com a imagem que os mitos e as músicas feitas
pelos homens têm das mulheres, retratadas como muito mais interessadas no sexo e no
prazer pessoal do que os homens. Como o casamento preferido tradicionalmente era entre
dois jovens virgens, acreditava-se que aqueles que ainda não tinham casado não tinham
desejo sexual (labukõ, “sem desejo”, no caso das mulheres, e hukõ, no caso dos homens),
como se o desejo sexual não fosse uma qualidade intrínseca do corpo individual, mas algo
despertado somente pela relação com um Outro.
Apesar da teoria patrilateral da concepção ser a mais difundida, foi-me dito que há
outras teorias conflitantes: a maioria das pessoas acha que apenas o esperma fabrica o
corpo dos filhos, mas outras acham que as substâncias femininas também influem na
formação dos corpos, de modo que muitos Javaé têm nitidamente características físicas e
de temperamento oriundas do lado materno. Uns ainda chegam a acreditar que os homens
fabricam as filhas com o seu esperma e as mulheres fabricam os filhos com suas
substâncias. Mas a teoria mais aceita, na qual vou me deter aqui, inclusive entre os Karajá
(Donahue, 1982, Lima Filho, 1994), é aquela segundo a qual o feto é formado
exclusivamente pelo sêmen paterno. Dizem, inclusive, que os Karajá, diferentemente dos
Javaé, chegam a chamar o próprio esperma de warikòrè, “meu filho/a”, o que é confirmado
por Donahue (1982). O corpo da mãe é apenas nõsyhyna, “receptáculo do sêmen”. Os
Javaé acreditam que até a placenta (saa) que envolve o feto é feita do sêmen paterno e que
o recém-nascido nasce ikytyre (“poluído”, “fedendo”) porque ele contém, misturados, o
cheiro do sêmen de seu pai e do sangue materno com o qual ele entra em contato. Na
verdade, o corpo do recém-nascido é tido como uma forma outra do próprio sêmen de seu
pai, que estaria contaminado externamente pelo sangue do corpo da mãe. Segundo Lipkind
(1948:187), em relação aos Karajá, “há uma bem desenvolvida couvade baseada na noção
de uma conexão íntima entre a criança e seu pai”.
No parto que assisti em 1997, eu estava em uma casa Javaé no momento em que a
avó paterna da criança, mulher de grande conhecimento, foi chamada para ajudar no parto
de sua nora, que não tinha parentes maternos morando por perto. Rapidamente ela buscou
ervas medicinais no mato e chamou duas parteiras experientes e aparentadas da criança
(suas tias paternas classificatórias). Uma delas era conhecida como saanykydu, especialista

514
em retirar a placenta do corpo da mãe após o parto, tendo direito a receber um pagamento
em troca pelo serviço. A mulher teve o filho sentada no chão, no quarto de sua casa, com
as pernas dobradas para cima e abertas, embora mantendo os pés no chão. Como costuma
ser representado pelas bonecas de barro Karajá, ela era amparada por trás por uma das
parteiras, que a acolheu sentada atrás dela, colada ao corpo da parturiente, com as pernas
abertas e seu corpo servindo de apoio, enquanto segurava-a por baixo dos braços. A avó
paterna da criança responsabilizou-se por passar as ervas medicinais na barriga da mãe e
receber a criança ao nascer. Essa movimentação durou cerca de uma hora, durante o que
entravam e saíam mulheres ou crianças curiosas na casa, mas não homens, que devem se
manter afastados da poluição associada ao parto.
Nos partos difíceis, o xamã pode entrar no recinto e atuar junto à parturiente. Uma
neta da avó paterna foi solicitada por ela a cavar um pequeno buraco ao lado da mãe da
criança, a menos de um metro de suas pernas. A parturiente chorava e gemia de modo
muito contido, com sons baixos, até que a criança nasceu, depois de um movimento brusco
da mãe para a frente, sendo recebida pelas mãos da avó paterna. A mãe deitou-se em uma
esteira, com a ajuda da parteira que a amparava. Logo a seguir, esta última amarrou o
umbigo da criança com uma tira de palha e cortou-o com uma tesoura. A especialista em
retirar a placenta esperava na casa ao lado, onde morava, e foi chamada assim que a
criança nasceu. Por alguns minutos ela pressionou a barriga da mãe para que a placenta
saísse, a qual foi enterrada imediatamente, pela avó paterna da criança, no buraco aberto
pouco tempo antes. Enquanto isso, o recém-nascido foi embrulhado em um pano de
algodão e levado para a sala, onde foi lavado com água e sabão pelas duas parteiras,
enquanto uma pequena multidão de mulheres e crianças curiosas assistia a operação. Mais
tarde, ele seria pintado com urucum. Donahue (1982) registra entre os Karajá as práticas de
furar as orelhas do recém-nascido, da criança ter o corpo massageado pela avó materna, a
fim de “moldá-lo”, o que também pode ocorrer entre os Javaé, e da depilação de seus cílios
e sobrancelhas. O autor considera que as técnicas corporais, entretanto, têm o objetivo de
transformar o corpo da natureza para a cultura 12 .
O recém-nascido é concebido como uma extensão da energia vital do pai, que está
fora de seu corpo e em contato direto com o sangue da mãe, por isso o resguardo

12
Uma descrição do parto e do resguardo Karajá, muito parecida com o que vi entre os Javaé, embora a
placenta seja enterrada na mata entre os primeiros, pode ser encontrada em Krause (1943a), Aytai (1979c) e
Donahue (1982). Este último enfatiza a participação das parentas matrilaterais da parturiente e em especial da
avó materna da criança, que se responsabiliza pelos cuidados do recém-nascido durante um certo tempo.

515
purificador do homem que teve um filho é o mais importante de todos. Em nenhuma outra
situação o homem tem sua energia vital misturada externamente com tanta intensidade
como durante a procriação. O contato do corpo do filho, uma extensão do corpo do pai,
com as substâncias maternas é o estado mais poluído que um homem pode alcançar.
Quando as mulheres limpam o corpo do recém-nascido com algodão embebido em água
(Rodrigues, 1993), para a seguir pintá-lo com urucum, acredita-se que elas estão limpando
ou retirando o próprio sêmen do pai, como se a substância paterna que deu origem à
placenta e ao filho não tivesse sido toda transformada. O esperma do pai e o sangue da
mãe, pegajosamente misturados, cobrem todo o corpo daquele que acabou de nascer e
quem faz o trabalho de limpeza do corpo que está “sujo” tem o direito de receber um
pagamento em troca pelo serviço desagradável.
A substância que fica saindo do corpo da mãe por vários dias após a saída da
placenta chama-se kuladu wanõra kylyty, “(fluido [kylyty] da ponta dos pés [wanõra] da
criança [kuladu])”, referindo-se, como já foi dito, ao fato de que o fluido uterino sai depois
que os pés da criança, a última parte do seu corpo, saíram do útero. O kylyty é altamente
poluído e, tradicionalmente, o fim dessa substância marcava o fim do resguardo da mulher,
enquanto o fim do resguardo masculino se dava após cair o umbigo da criança, o que
atualmente não é mais respeitado, o resguardo durando apenas alguns dias. Em meu
trabalho anterior (Rodrigues, 1993), obtive a informação que o resguardo da mulher durava
dois ciclos lunares, ou seja, cerca de dois meses.
Em 1997, eu estava junto a uma família quando a avó materna de uma criança
untou o corpo de seu neto, principalmente o rosto, com uma mistura de urucum e óleo de
tucum, marcando o fim do resguardo e o início do ikytyna, momento a partir do qual os
pais do recém-nascido voltam a ingerir carne e peixe. Enquanto o peixe que seria comido
pelos pais estava sendo assado, a mãe da criança atou nos tornozelos de seu filho os
tradicionais enfeites de algodão (dekobutè), com longas franjas de cor preta. Por fim, o tio
materno da criança passou a mesma mistura de urucum e óleo de tucum nos pais do recém-
nascido, suspendendo o resguardo. Durante o período de purificação, o pai da criança deve
ficar deitado, junto com a esposa, sem trabalhar. Quando cai o umbigo do filho, ele pode
começar a se movimentar pela aldeia e a trabalhar. Mas só quando vem a primeira
menstruação (tehè) da mulher, depois que o filho nasceu, chamada kuladu ijararè, é que o
homem deve retomar o trabalho de forma vigorosa, como antes do filho nascer.

516
Um dado muito importante, agora melhor esclarecido do que antes, é que, ainda que
o ky (carne/matéria) do qual provém o sêmen seja o mesmo do qual provêm todas as outras
substâncias, inclusive o sangue, não existe o conceito de “consangüinidade” entre os Javaé:
diferentemente dos Apinayé (Da Matta, 1976), por exemplo, não se diz que os filhos estão
ligados ao pai ou qualquer outro parente pelo “sangue”, mas apenas que são feitos de seu
sêmen. Diz-se que os brancos, por exemplo, são feitos de outro esperma (e não de outro
sangue). A idéia de que os parentes partilham o mesmo sangue, seja pela linha paterna,
materna ou bilateral, é totalmente exógena, assim como entre os Suyá (Seeger, 1981),
tendo causado espanto ao Javaé que me forneceu os dados relativos a este item, podendo-
se dizer, no máximo, que dois irmãos, por exemplo, partilham do mesmo esperma paterno.
Assim, a palavra wakydudu, que um homem usa para se referir àqueles que se originaram
no seu ky, pode ser usada também com o sentido geral de “parente”, ou seja, o primo de
alguém é seu kydudu, aquele que se originou no mesmo ky ancestral. Isso não significa,
contudo, uma concepção patrilinear do parentesco nem que a inexistência do conceito de
“consangüinidade” é uma ausência da crença na conexão física entre os parentes. Apenas
que a consubstancialidade, que se acredita ser bilateral, não é uma consangüinidade.
O fato dos corpos serem uma outra forma do sêmen paterno não significa,
tampouco, que as substâncias femininas não tenham nenhuma influência sobre o corpo dos
filhos. Na verdade, creio ser errôneo caracterizar a teoria Javaé da concepção como
meramente patrilateral, pois embora os corpos se originem apenas do sêmen, este último
não seria jamais transformado em um outro corpo se ele não fosse depositado no corpo
feminino. Como já foi mostrado até aqui, os corpos femininos são os que se transformam
mais ou, dito de outro modo, são os corpos que possuem uma maior capacidade, tanto
física quanto subjetiva, de transformação. É certo que o homem deposita o seu esperma no
útero, mas sem a qualidade transformadora de que é feito o corpo da mulher, o esperma
estaria destinado a permanecer inerte e estático eternamente, como sempre foi no mundo
mágico sem outros, em que não existia o corpo mais aberto das mulheres. Antes dos
homens entrarem em relação com os corpos femininos e, assim, iniciarem o processo da
procriação, suas substâncias internas estavam contidas e paralisadas, condenadas a se
repetir na mesma forma indefinidamente.
O pressuposto de que apenas as misturas são criativas origina-se dessa lógica da
procriação: o sêmen por si só não tem o poder de se transformar em uma outra forma ou de
se desenvolver no útero de forma independente daquele que o acolhe. A potência para se

517
criar um novo ser ou estado sempre depende da interação com um Outro, de modo que é
justamente a relação entre as substâncias masculinas e as substâncias femininas, a mais
poderosa de todas as misturas, que vai proporcionar a transformação criativa da matéria
depositada. Os corpos dos filhos podem não conter em si o sangue ou qualquer outra
substância feminina, como entre os Karajá (Donahue, 1982), mas o sêmen do qual foram
feitos foi decisivamente “contaminado” – e assim transformado – desde o primeiro
momento em que penetrou o corpo de suas mães e entrou em contato com o sangue
materno. A contaminação, que pode se dar de forma direta ou não, visível ou não, significa
incorporar algo daquele que contamina. Assim, o corpo do filho não é feito diretamente do
sangue ou outras substâncias maternas, mas ele adquire as qualidades das substâncias
maternas quando contaminado por elas. Embora o que é transmitido pela mãe não seja tão
visível como o sêmen paterno, o que não significa dizer que não seja “corpóreo”, suas
influências manifestam-se visivelmente na forma de crescimento e degeneração, ou seja, os
processos de transformação da matéria corporal 13 .
Logo após o nascimento, a comunidade de substância está misturada
energeticamente entre si, o que caracteriza um primeiro estado de poluição pura, ikytyre,
pois tanto o pai quanto a mãe estão com suas substâncias exteriorizadas (de corpos abertos)
e estão contaminados pela energia vital um do outro fora do corpo: a mãe exterioriza o seu
sangue e está contaminada pelo sêmen, na forma de placenta ou do próprio filho, enquanto
o pai, através do filho, que é uma extensão de sua própria energia vital, está contaminado
pelo sangue materno. O filho, por sua vez, contém em si (ou sobre si) tanto o sêmen
paterno, origem do seu corpo, como o sangue da mãe, com o qual está coberto ao nascer.
Assim como entre os Bororo (Crocker, 1985:61), é como se fosse algo ainda fluido,
“energia pura”, ou melhor, a mistura de duas fontes energéticas diferentes que aos poucos
vai se consolidando como uma forma nova e independente. O contato com a substância
alheia, fora do corpo, é uma forma de estar contaminado com a alteridade, ou seja, de
fundir-se com o Outro. É também um momento de maior transformação da forma original
(pois os corpos estão mais abertos, perdendo mais substâncias que o normal), em que a

13
Um mito citado anteriormente (Rodrigues, 1993) fala que dois homens tiveram relações sexuais e um deles
engravidou, mas que este último acabou morrendo porque não havia em seu corpo uma saída para o filho
gerado. Não interpreto essa informação como uma prova da capacidade do sêmen em gerar um outro corpo
de modo independente, mas como a confirmação de que só a mistura entre corpos diferentes é capaz de gerar
o novo. A procriação só ocorreu quando os dois interagiram fisicamente, aquele que engravidou tendo
assumido o lugar feminilizado do Outro.

518
poluição caracteriza-se como um estado de mistura das diferentes substâncias, mas também
como um estado que evidencia a degeneração (transformação) da carne.
A poluição é o “cheiro ruim” (kyty) do sangue porque este é o cheiro dos corpos ou
substâncias perecíveis, o cheiro repugnante dos corpos ou substâncias putrefatos, daqueles
que se decompõem, distanciando-se bastante da forma original: é o odor da morte, o ponto
culminante do processo de transformação de todos os corpos sociais. A degeneração do
sangue fora dos corpos (o sangue mortal) é a outra face do sangue potencialmente criador
que está dentro dos corpos (o sangue vital). O sangue “do outro” que flui
descontroladamente para fora, seja na menstruação, no parto ou na morte do inimigo, é o
sangue que inicia o processo inevitável da decomposição malcheirosa, é o sangue que traz
em si o anúncio da morte. Contaminar-se com as substâncias alheias exteriorizadas,
portanto, é mais do que se contaminar com a alteridade: é entrar em contado direto com a
qualidade transformadora do sangue, com a própria mortalidade.
Como os corpos femininos são os que exteriorizam mais substâncias, eles são
associados a uma maior poluição e capacidade vital/mortal. As técnicas operadas durante a
couvade objetivam conter esse processo e fechar os corpos, separando-se da energia vital
alheia e estancando relativamente, em última instância, a própria morte. Assim, de um
ponto de vista masculino, esse primeiro momento de contaminação total, em que os corpos
estão abertos e o homem está em contato com uma grande quantidade de substâncias
femininas, é um momento feminilizado da comunidade de substância, associado ao rio
abaixo, no sentido de que a alteridade, a poluição e a transformação imperam. A tentativa
de purificação é uma tentativa de voltar ao estado original de separação e hermetismo dos
corpos do rio acima, associado à masculinidade e ao congelamento dos fluxos.
Cada filho que nasce é feito, conseqüentemente, tanto da substância paterna que lhe
dá a sua forma relativamente fixa, quanto da influência das substâncias maternas que
possibilitam a transformação do sêmen em um corpo diferente. É o produto da fusão tensa
entre opostos: a forma do corpo que tende a se estabilizar vem do pai, mas a sua
capacidade de se desenvolver e degenerar, ao mesmo tempo vital e mortal, transformando-
se ao longo do tempo, origina-se da mãe. Sem o contato criativo e poluidor com o sangue
materno, o sêmen permaneceria como tal eternamente, do mesmo modo como ocorre com
os corpos fechados e congelados dos aruanãs mágicos. Por outro lado, os corpos sociais
não seriam capazes de adquirir uma forma minimamente estável caso existisse apenas o
sangue da mãe, pois seriam apenas substâncias em fluxo constante, como na Terra dos

519
Ensangüentados feminilizada, onde o sangue jorra sem parar. Assim, todo novo corpo
humano que nasce no Ahana Òbira, o plano cosmológico intermediário, é uma síntese de
substâncias paternas e influências maternas, estabilidade e desenvolvimento, ordem e
desordem, repetição e originalidade, masculinidade e feminilidade. Paradoxalmente, todo
ser humano contém em si a substância que dá início à sua vida, herdada do pai, e a
influência daquela outra que é responsável por seu próprio fim, oriunda da mãe 14 .
Há o reconhecimento de que os filhos são portadores, de modo variado, de
características físicas e subjetivas tanto da linha paterna quanto da materna, herdando-se
algo da mãe e seus ascendentes durante o período em que o feto mora em seu útero. A
influência das substâncias femininas vai além do poder de dotar o sêmen de seu potencial
de crescimento e degeneração, sendo capaz de transmitir outras características da mãe,
assim como os nomes que são herdados pelos filhos/as de ambos os lados. Quando um
Javaé diz que “o homem faz o filho”, essa informação tem que ser contextualizada dentro
de uma visão relacional da realidade, em que toda criação deste plano social existe sempre
e somente através de uma relação com a alteridade. Os homens são incapazes de gerar
filhos ou qualquer outro tipo de criação sozinhos, assim como é inadequada uma
concepção da cultura Javaé como um todo fechado em si mesmo. Embora não se possa
estabelecer um vínculo automático entre teoria da concepção e reconhecimento dos laços
de descendência em todas as sociedades, no caso Javaé o reconhecimento da bilateralidade
do parentesco é congruente com a teoria da concepção nativa, que é na verdade bilateral ou
relacional 15 . E esta é, como já foi dito, a teoria que fundamenta toda criação social.
A idéia de que a matéria de que são feitos os corpos dos filhos origina-se apenas
das substâncias paternas não implica, portanto, em uma teoria patrilateral ou androcêntrica
da concepção nem em um parentesco concebido patrilinearmente. Assim como os Jê do
Norte (ver a coletânea de Maybury-Lewis, 1979a) e todos os grupos alto-xinguanos

14
Para os Tukano (S. Hugh-Jones, 1993:113), “diz-se que uma criança herda os ossos do sêmen de seu pai;
tanto sêmen quanto nome contribuem para a alma da criança (…). Assim como os postes da casa, pedras e
montanhas com os quais são associados, esses componentes derivados dos homens são duros, permanentes e
duram com o passar do tempo; eles contrastam com o sangue e a carne derivados da mãe, mais efêmeros, que
circundam os ossos”. Entre os Bororo (Crocker, 1985), como já foi dito, existe o mesmo contraste entre
masculino/permanente e feminino/efêmero.
15
Seeger (1980:129) mostra que “a congruência entre a ideologia de descendência e a de concepção não se
confirma em todos os casos nas terras baixas da América do Sul. (...) Todavia, para os Jê e outros grupos no
Brasil central a hipótese de Leach é bastante sugestiva”. Coelho de Souza (1995:199) lembra que chamar de
“contradição” a diferença comum no alto-Xingu entre teoria da concepção androcêntrica e o parentesco
bilateral é ir contra “o reconhecimento generalizado de que a etnogenética nativa e o reconhecimento
sociológico de relações de parentesco não são a mesma coisa; apenas na América do Sul, sociedades
marcadas pelo ‘paradoxo’ do androcentrismo embriológico e do bilateralismo sociológico são legião”.

520
(Coelho de Souza, 1995), tem-se o reconhecimento bilateral dos laços de descendência,
inexistindo qualquer idéia de “linhagens” ou descendência unilinear. As pessoas estão
ligadas por parentesco tanto pelo lado paterno quanto materno, havendo a idéia de que os
Javaé como um todo, embora em graus variados, são todos parentes entre si. O cognatismo
ocorre paralelamente, porém, ao conhecimento das linhas genealógicas de transmissão dos
cargos de iòlò pelas famílias “nobres” respectivas, como entre os Arawak, assunto a ser
retomado. Aperfeiçoando então o que foi dito, a “consubstancialidade” transmitida
bilateralmente não é uma consangüinidade, mas uma mistura do sêmen paterno e de
influências menos visíveis das substâncias maternas, pois não se acredita que o parentesco
seja baseado no compartilhar de um mesmo sangue 16 .
O estado de consubstancialidade produzido imediatamente após a procriação – o
filho está ligado substancialmente aos pais e estes entre si – é um estado em que pai, mãe e
filho são pura alteridade entre si, um contaminando profundamente o outro. Esse momento
de exteriorização das substâncias é altamente poluído porque, mais do que em qualquer
outro momento, é quando os corpos se diferenciam um do outro, assim como na passagem
mítica inicial: um constitui-se como o mais fechado (pai) e o outro como o mais aberto ou
transformado (mãe). E o filho, por sua vez, como uma mediação entre os dois, é um
terceiro ser, diferente dos que lhe deram origem. O fim do resguardo, equivalente à
suspensão desse estado consubstancial poluído, representa a separação das substâncias
exteriorizadas e, principalmente, a supressão desse estado de diferenciação radical entre
pai e mãe, homem e mulher. Ambos voltam a ter os seus corpos relativamente fechados e,
assim, tornam-se novamente mais parecidos do que diferentes entre si. A purificação
obtida pela couvade tem o sentido de tornar semelhantes os corpos que se diferenciaram
durante o nascimento do filho 17 .
Assim como marido e mulher tornam-se outros entre si quando exteriorizam e
compartilham suas substâncias, o filho produzido também é um estranho em relação ao pai
e a mãe em um primeiro momento, no período equivalente ao resguardo. As substâncias
que estão contidas dentro dos corpos fechados não se distinguem desses corpos, formando
uma totalidade única e semelhante. Quando são exteriorizadas e misturadas com as

16
Cabe aqui uma correção ao que foi dito em Rodrigues (1993:50), onde projetei nossas próprias categorias,
ao dizer que “todos na categoria ‘parentes’ partilham o mesmo sangue, seja em que grau for”, pressupondo
que a consubstancialidade era consangüinidade.
17
Em sua revisão do material etnográfico Timbira, Coelho de Souza (2004:44) sugere que as relações de
substância não sejam vistas como dadas, mas construídas (ver Viveiros de Castro, 2002h), dentro de um novo
entendimento do parentesco como processo de “fabricação de corpos assemelhados”.

521
substâncias de outros corpos, perdem a sua identidade com o doador original, tornando-se
algo diferente. Assim, dentro do corpo o sêmen paterno ou o sangue materno são idênticos
ao corpo do pai ou da mãe, respectivamente, não se distinguindo deles. Fora do corpo, o
sêmen que se mistura ao sangue materno ou vice-versa perde a identidade com seu doador
original, tornando-se um novo ser. A substância contida nos corpos fechados significa a
repetição do mesmo indefinidamente, enquanto a substância exteriorizada e misturada à de
outros propicia a criação do novo. A passagem de dentro do corpo para fora, equivalente à
saída mítica do útero cósmico, quando os humanos mágicos encontraram aqui as esposas, a
desordem e as transformações, é a passagem do que é idêntico para o que é diferente, do
puro para o misturado.
O filho que nasce, portanto, vem ao mundo na condição de outro, idéia comum a
outras sociedades indígenas (ver Viveiros de Castro, 2002h), pois ele não é apenas o sêmen
paterno inerte nem o sangue materno transformador, mas a mistura dessas duas fontes, uma
nova criação. O filho, enquanto sêmen contaminado de sangue, é um estranho tanto em
relação ao pai (identificado com o sêmen apenas) quanto à mãe (identificada com o sangue
de seu útero apenas). A consubstancialidade em que a comunidade de substância está
imersa durante o período de couvade não produz um estado de semelhança dos corpos,
associado ao parentesco mágico, mas exatamente o inverso. A fusão de substâncias é
criativa dentro dos corpos, mas fora deles produz a diferença e, por isso, é um estado de
poluição. Mas a mistura interna (fecundação) inevitavelmente leva à mistura externa, de
modo que a reprodução física significa sempre produzir os membros da comunidade de
substância como corpos estranhos entre si, pelo menos no primeiro momento de poluição
associado ao resguardo. Talvez a prática do infanticídio (ver Bueno, 1975, sobre os
Karajá), ainda realizada nos casos de crianças que não têm um pai conhecido, embora bem
menos do que antes, seja moralmente aceita não apenas porque a criança não terá um
provedor, mas também porque os filhos não são automaticamente vinculados aos seus pais
ao nascer, não havendo uma ligação “natural” entre mãe e filho.
O que foi dito antes nos leva diretamente ao questionamento do próprio conceito de
parentesco nativo e a sua relação com a idéia de consubstancialidade. Se nos lembrarmos
do contraste entre os lugares onde todos são parentes entre si (Fundo das Águas e Céu) e
aquele onde todos são estranhos entre si (Terra dos Ensangüentados), constataremos que o
que define o “parentesco” entre os primeiros ancestrais não é a consubstancialidade, como
entre nós, mas justamente o contrário: os parentes são aqueles que têm os corpos fechados

522
e não têm qualquer tipo de relação física ou vínculo de substância entre si. Por isso mesmo,
eles são “semelhantes”. Os mortos ensangüentados e poluídos, por sua vez, são aqueles que
estão ligados externamente pelo sangue que flui sem controle de seus corpos, o que os
torna “estranhos” (ou afins simbólicos) uns dos outros. A Terra dos Ensangüentados, onde
todos vivem desesperadamente como estranhos, caracteriza-se por uma
consubstancialidade plena e total, pois todos têm os corpos abertos e sangram
continuamente, misturando-se permanentemente à energia vital alheia. Tal estado opõe-se
radicalmente à pureza e ausência de qualquer contato substancial dos corpos fechados onde
todos são parentes. Em outras palavras, as ligações de substância que surgem entre os pais
e o filho logo após o nascimento não implicam automaticamente na transformação do filho
em um “parente”, como estamos acostumados a pensar, mas o oposto.
Como os corpos deste mundo social intermediário são formados e contaminados
pelas substâncias de outros corpos, os Javaé sabem perfeitamente que existem conexões
físicas entre os humanos sociais que se consideram “parentes”. Os pais, tios e avós podem
chamar seus filhos, sobrinhos e netos de wanõrana, literalmente “lugar (na) da cabeça (ra)
do meu pênis (wanõõ)”, o que tem o sentido figurado de “extremidades” ou “emendas” dos
parentes em relação às próximas gerações. Também podem ser chamados de wadòbò,
“meu caule”, palavra que se origina de tòbò, o pedaço de tronco enraizado que resta
quando uma árvore é cortada, mas não morre, pois nele brota um novo caule que dá
continuidade à vida. Os filhos, sobrinhos e netos são pensados como esse caule que não
morre nunca e perpetua a essência original.
Dito de outro modo, eles são a continuação possível e transformada da forma
original que se perdeu com o começo da morte. Mas isso não significa que a
consubstancialidade inerente à descendência – o partilhar de substâncias em comum
através das sucessivas gerações – seja considerada como o principal critério para a
definição do que se conhece como “parentesco”. A pouca importância do critério de
“descendência” entre os Javaé não significa apenas a inexistência ou pouco rendimento
sociológico de princípios de descendência unilineares na organização social, como foi
evidenciado entre os Jê e Bororo 18 , mas principalmente que o próprio conceito de
parentesco não se reduz ao compartilhamento de substâncias.
Os vínculos de substância entre as gerações existem, mas estes não são
considerados como vínculos naturais ou dados, como para os Apinayé (Da Matta, 1979),

18
Ver Crocker (1979), Turner (1979b), Maybury-Lewis (1979b, 1979c) ou Seeger (1980), por exemplo.

523
que fariam a diferença entre relações dadas (de substância) e construídas (cerimoniais),
associadas a natureza e cultura; as relações de substância, para os Javaé, assim como as
cerimoniais, foram produzidas socialmente, quando os humanos decidiram sair de baixo e
se relacionar uns com os outros. Como já foi mostrado antes, a menstruação também não é
tida como um fato natural, mas como o produto de uma intervenção social. E os vínculos
físicos e sociais produzidos são considerados como a negação do parentesco ancestral ou
mágico dos mundos onde não há relações de qualquer tipo. A condição de descender
fisicamente dos antepassados maternos e paternos é inerente aos humanos sociais, porém
indesejada, pois o “verdadeiro” parentesco, aquele que os humanos sociais estão
interessados em construir, é o parentesco xiburè (“mágico”) existente entre os humanos
mágicos, os primeiros ancestrais, que jamais morrem porque não trocam substâncias entre
si. É um tipo de parentesco que não pressupõe a transformação da substância em um novo
ser, mas que mantém a forma original intacta.
Assim, para os Javaé, o vínculo de substância que liga os pais aos filhos, o que
seria a célula do parentesco para as concepções baseadas na consubstancialidade, sejam
elas unilineares ou não, é na verdade o anti-parentesco. Nesse primeiro momento que se
segue ao parto, de consubstancialidade intensa, todos os membros da comunidade de
substância são absolutamente estranhos uns dos outros, assim como os seres errantes e
poluídos da Terra dos Ensangüentados. O esforço de purificação que se segue através das
práticas de resguardo consiste em separar as respectivas substâncias, fechando os corpos e,
deste modo, tornando o pai e a mãe menos diferentes entre si. Diversamente dos Apinayé
(Da Matta, 1976) ou Kayapó (Turner, 1979b), para quem a troca de substâncias ou a
convivência entre os cônjuges produz o parentesco ao longo do tempo, marido e mulher
não serão considerados parentes próximos algum dia. Quanto ao filho, este novo ser que é
no começo de sua vida nada mais que a evidência explícita de uma mistura energética, a
contaminação e a alteridade em pessoa, o “fechamento” de seu corpo, aquilo que o tornará
um verdadeiro parente de seu pai e de sua mãe, ocorrerá quando ele herdar de um de seus
pais, pelo menos, e com ele se identificar, o aruanã de corpo fechado que é transmitido de
geração em geração.

524
7.3. O parentesco xiburè: de corpo fechado

Pretendo propor até o fim deste trabalho, sinteticamente falando, que o contraste
Javaé entre corpos fechados e corpos abertos, aruanãs purificados e mortos
ensangüentados, ausência de relações e mistura de substâncias, correspondente aos
extremos cosmológicos rio acima e rio abaixo, nada mais é do que uma versão nativa do
contraste Jê-Bororo entre nome e substância, nominadores e genitores, máscara social e
corpo físico. Ou seja, que a Dança dos Aruanãs, enquanto herança do povo Wèrè,
associados por mim aos Jê-Bororo, seria uma elaboração Javaé da oposição entre
identidade social e identidade física celebrizada nessas sociedades, de modo que os aruanãs
representam entre os Javaé aquilo que os nomes representam entre os Jê-Bororo. Para isso,
analisaremos as diferenças entre as práticas de nominação propriamente ditas dos Javaé,
que não se confundem com a Dança dos Aruanãs, em relação aos seus vizinhos do Brasil
Central.
Mas aqui se parte de pressupostos diferentes, abandonando-se as categorias
natureza e cultura ou a oposição entre relações dadas e construídas, associadas à oposição
entre substância e nome nos trabalhos de Da Matta (1976, 1979), Melatti (1976, 1979),
Lave (1979), Crocker (1979, 1985) e Seeger (1980, 1981), por exemplo, e a noção de que o
corpo físico opõe-se à máscara social nos mesmos termos da nossa oposição entre matéria
e não matéria, corpo e alma, físico e abstrato. O principal tema do contraste Javaé entre
corpo fechado e corpo aberto não é simplesmente opor uma identidade cerimonial pública
a uma identidade de substância privada, como nos trabalhos sobre os Jê-Bororo, mas
estabelecer a diferença entre o que é eterno e o que é transitório. Descrições sobre a Dança
dos Aruanãs Karajá, que em termos gerais é muito parecida com o ciclo anual Javaé,
apesar de algumas diferenças significativas, são encontradas principalmente em Toral
(1992) e Pétesch (2000).
O “fechamento” dos corpos das crianças que nascem, cujo objetivo maior é tornar
os corpos da comunidade de substância semelhantes e purificados, transformando o filho
em um parente de seus pais, é colocado em prática pelas técnicas do resguardo e,
principalmente, pela identificação daquele que nasce com um aruanã que lhe é transmitido
pelo pai ou mãe. Apesar de muitas diferenças, tal objetivo ocorre de forma similar a
algumas práticas rituais de alguns povos Jê, habitantes do Brasil Central. Os Kraho

525
(Melatti, 1976, 1979), Apinayé (Da Matta, 1976, 1979) e Krikati (Lave, 1979), grupos
Timbira, e os Kayapó (Lea, 1993, 1999) e Suyá (Seeger, 1980, 1981), por exemplo,
também reconhecem o parentesco físico bilateral, não possuem grupos de descendência
unilinear e estabelecem uma espécie de parentesco cerimonial através da transmissão ritual
de nomes (do tio materno, preferencialmente, para o filho da irmã, de um ponto de vista
masculino).
Os nomes são considerados como identidades ou máscaras sociais que transmitem o
pertencimento à mesma metade cerimonial do nominador pela via não da sucessão, mas da
substituição. Aqueles que recebem um nome podem se dirigir aos parentes mais distantes
do nominador pelos mesmos termos de parentesco. Os nomes são associados ao centro
ritual masculino, em oposição ao parentesco baseado nas relações de consangüinidade
bilaterais, a “identidade corporal” (Seeger, 1980, 1981) associada à periferia feminina das
aldeias. Os Kayapó (Turner, 1979b, 1984, Lea, 1993, 1999) também reconhecem o
parentesco cognático e transmitem nomes ritualmente, mas estes são vistos mais como
“bens” culturais de valor (os nêkrêtch) do que máscaras sociais, não transmitindo o
pertencimento às metades rituais.
Os Bororo (Crocker, 1979, 1985), por sua vez, embora possuam uma teoria bilateral
da concepção e estejam divididos em metades exogâmicas e cerimoniais, têm entre si uma
identidade clânica não baseada nas relações de substância, mas em um tipo de parentesco
cerimonial ou simbólico que é transmitido através dos nomes também, pelo tio materno aos
sobrinhos uterinos de ambos os sexos. Os nomes são considerados uma forma abstrata dos
Aroe, “um ser categórico”, “essência nominal” (1985:64), princípio masculino associado
aos nomes e à alma. Os Aroe são as primeiras formas/nomes/almas de tudo que existe no
mundo, animais, plantas, mitos, músicas e pessoas, e que foram nomeadas pelos ancestrais
míticos, ordenando o mundo. Eles são representados/materializados por enfeites rituais nas
danças masculinas e cerimônias de nominação. Os membros de um clã distinguem-se dos
outros não enquanto descendentes de ancestrais diferentes, mas enquanto proprietários de
um estoque original e limitado de Aroe, sendo responsáveis pela sua representação ritual.
Os parentes matrilineares daquele que recebe um nome/Aroe do tio materno, do
ponto de vista masculino Bororo, são considerados seus parentes meramente cerimoniais
ou espirituais, não podendo se falar em uma matrilinearidade clássica, baseada na
consangüinidade. Os clãs Bororo não são baseados em “substâncias comuns, mas em
identidade lógica, não em matéria física” (Crocker, 1979:256), de modo que o que os

526
membros de um clã percebem como partilhando em comum e transmitindo através das
gerações, pela via matrilinear, não é algum tipo de substância física, mas a propriedade dos
nomes e ornamentos ligados à representação ritual dos Aroe. Os nomes/Aroe são, assim,
um tipo de identidade social – as pessoas têm e são os nomes – que é transmitida pela via
matrilinear e que cria um vínculo de parentesco não substancial entre os parentes
matrilineares daquele que herda o nome e o pertencimento à metade. Esse parentesco
“espiritual” também é mais valorizado e é concomitante aos vínculos bilaterais de
substância, associados aos espíritos chamados Bope (princípio feminino ligado aos
processos de crescimento e degeneração, morte e sangue).
Tanto entre os Timbira orientais e os Suyá quanto entre os Bororo, os tios maternos
transmitem a identidade social e o pertencimento a uma metade cerimonial, enquanto o pai
transmite a substância física que constitui os corpos. Em razão da uxorilocalidade, todo
homem deve se mudar da casa natal (ou metade, espacialmente representada, no caso
Bororo) para se casar, dividindo-se entre o nome que deixa com o filho da irmã e a
substância física que leva para a casa dos afins, onde vai gerar seus filhos. Tal divisão
resulta no famoso dualismo entre identidade física ou corpo dado pelos pais, de um lado, e
identidade social ou nome/alma dada pelo tio materno ou outros parentes (no caso dos
Apinayé). Ou como formulou Melatti (1976), na dualidade entre genitores e nominadores.
De um ponto de vista masculino, pois são os homens que mudam, os nomes ficam na casa
natal e a substância segue para a casa dos afins. Toda pessoa seria dual, portanto, sendo
formada pelo nome que recebe do tio materno ou tia paterna (no caso das mulheres), o seu
social self, e a substância que recebe dos pais, o seu corpo físico, o que foi associado ao
contraste entre cultura/sociedade e natureza. Entre os Bororo, essa dualidade adquire um
caráter mais dialético, pois todos os humanos são “almas vitais” (Crocker, 1985), sínteses
paradoxais do Aroe e do Bope, nome e substância (ver Viveiros de Castro, 1986b).
Os Javaé, apesar de não possuírem os clãs ou linhagens Bororo e não se referirem
aos aruanãs como “nomes” abstratos, também consideram-nos como formas de identidades
ou máscaras sociais – representadas/materializadas por máscaras literais usadas pelos
homens nas danças rituais – que transmitem um tipo de parentesco cerimonial, não baseado
em relações de substância, de geração em geração. Os aruanãs Javaé não são simplesmente
bens ou patrimônios culturais de valor transmitidos entre as famílias, como propõe Pétesch
(2000) para os aruanãs Karajá, de modo similar aos nomes e prerrogativas (nêkrêtch)
Kayapó (Turner, 1979b, 1984, Lea, 1993); nem entidades protetoras ou guardiãs das

527
crianças frágeis, como propõe Toral (1992) para os Karajá e Javaé. Eles são, antes de tudo,
a forma material ou visível daquilo que os nomes/almas representam entre os Suyá,
Timbira e Bororo, ou seja, relações de parentesco não baseadas na consubstancialidade.
O parentesco sempre foi considerado sinônimo de “consangüinidade”, como se o
partilhar do mesmo sangue fosse universalmente tido como aquilo que os “parentes” têm
em comum, ainda que variassem as categorias de quem é definido como consangüíneo ou
não. S. Hugh-Jones (1993, 2002), lidando com concepções Tukano similares, tem dito que
“os grupos Tukano são constituídos muito mais por tal propriedade (nomes, títulos e outras
prerrogativas rituais) do que por qualquer noção de substância comum ou linhas contínuas
de parentesco através dos homens” (1993:97-98). Segundo este autor (2002:62-63):

“(...) Os nomes foram excluídos dos estudos de parentesco clássicos, em parte porque
eram considerados infra-sociais, em parte porque o parentesco era visto quase que
exclusivamente em termos de procriação. Embora não seja amplamente reconhecido
além dos círculos americanistas, o trabalho do projeto Harvard Brasil Central (ver
Maybury-Lewis 1979) sobre as relações baseadas nos nomes entre os Bororo e os Jê,
efetivamente, desafiou a identificação do parentesco à procriação e prefigurou o que
agora se tornou conhecido como o “novo parentesco” (ver Carsten, 2000). O papel das
relações baseadas nos nomes na constituição e perpetuação de grupos sociais no Brasil
Central colocou problemas para a aplicação de noções de ‘descendência’. (...) Esse
material também reforça a tese de que a procriação em si é uma noção culturalmente
específica, incluindo processos de transmissão e outorga de nomes.”

Na introdução de Carsten (2000b:4) à coletânea que propõe “um novo começo e um


retorno às raízes comparativas” no que se refere aos estudos de parentesco, utiliza-se o
conceito de “relatedness” (ser ligado a alguém) em oposição “ou, lado a lado, ao de
‘parentesco’, a fim de sinalizar uma abertura aos idiomas indígenas referentes a ligações
entre as pessoas, ao invés de uma dependência em definições ou versões fornecidas
previamente”. A partir da contribuição de Schneider (1984), que contestou o fato da
procriação como base universal do parentesco, discute-se o contraste entre o biológico e o
social que sempre acompanhou a definição do parentesco na literatura antropológica, o que
é questionado pela autora, porém não totalmente abandonado. Sem incluir nenhum
exemplo etnográfico das terras baixas sul-americanas, os artigos em questão sugerem “não
apenas que a biologia não tem, em outros lugares, o mesmo tipo de função fundadora que
ela tem no Ocidente, mas também que as fronteiras entre o biológico e o social (...) são em
muitos casos confusas, se é que elas chegam a ser visíveis” (Schneider, 1984:3). Dentro

528
dessa nova perspectiva, os conceitos de gênero, corpo e pessoa têm sido priorizados em
detrimento das análises formais de terminologias de relacionamento, o que é visto como
um produto da mudança de foco do conceito de estrutura para o conceito de prática.
Em seu comentário sobre o parentesco nas novas etnografias amazônicas, Coelho
de Souza (2004:28) cita a “nova antropologia do parentesco (ou da relatedness)” e
argumenta que “o ‘corrente entendimento de parentesco’ não como ‘identidades sociais
dadas no casamento e fixadas em um conjunto de posições estruturais, mas antes como um
processo de becoming (...) ameaça mesmo estabelecer-se como uma nova ortodoxia”
(2004:43). No que se refere aos Javaé, a procriação está longe de ser ignorada, pois não só
é concebida como um ato social como é o fato fundador da realidade social e histórica em
que os humanos terrestres vivem. Mas os laços de consubstancialidade plena que ligam os
genitores ao filho e os genitores entre si não são considerados como um sinal explícito ou
natural daquilo que caracteriza a condição de “parente”, sendo este um estado que precisa
ser construído anulando-se os vínculos substanciais poluídos. As ligações substanciais em
si são vistas como produtos sociais tão quanto a tentativa de neutralizá-las simbolicamente.
Embora os aruanãs sejam transmitidos como “bens de valor” (nohõ) familiares, o
menino ou menina que herda um aruanã, tornando-se seu dono (wèdu), estabelece uma
relação de identidade com o aruanã, assim como aquele Timbira ou Bororo que ganha um
nome adquire uma persona social que lhe fornece o pertencimento a uma metade ritual. Os
aruanãs, como se sabe, são todos parentes mágicos entre si: entre eles não há relações de
substância, não havendo nenhum tipo de descendência ou conexão física. Quando uma
criança herda um aruanã, ela assume uma identidade xiburè – em que o conceito de
“mágico” tem o sentido de ausência de relações – e torna-se um “dono de aruanã” (irasò
wèdu). Ela e seus parentes bilaterais passam a ser considerados, simbolicamente, como se
fossem parentes mágicos uns dos outros, ou seja, constroem entre si um parentesco não
baseado em relações de substância. Durante o ciclo ritual anual das danças dos aruanãs, em
que alguns aruanãs são trazidos ao nível terrestre pelo xamã, o irasò wèdu é tratado como
se fosse o próprio aruanã de corpo fechado: seus parentes bilaterais passam a ser referidos
por todos como irasò tyby (“pai de aruanã”), irasò sè (“mãe de aruanã”), irasò lahi (“avó
de aruanã”), irasò labiè (“avô de aruanã”), irasò lana (“tio materno de aruanã”), irasò
labetery (“tia paterna de aruanã”), irasò kumydela (“irmão mais velho de aruanã”) e assim
por diante.

529
Assim como o clã Bororo é uma entidade muito mais cerimonial do que
substancial, a parentela bilateral de um dono de aruanã terrestre é identificada com a
parentela mágica ou xiburè dos aruanãs em seus locais de origem. E assim como a
identidade clânica Bororo é constituída pela propriedade comum dos nomes/Aroe, a
identidade não substancial dos parentes do dono de aruanã também é baseada na
propriedade dos aruanãs. Um aruanã é um “bem” de valor inestimável transmitido dentro
de uma família e o pai e a mãe daquele que herda o aruanã também passam a ser chamados
de “donos dos aruanãs” (irasò wèdu), mas aqui no sentido de que têm que se
responsabilizar pela alimentação ritual dos aruanãs durante a sua permanência no nível
terrestre, assim como todo casal deve fazer em relação aos seus filhos. Os pais de aruanã
alimentam o “filho ritual” que está identificado com o seu filho substancial.
As características dos aruanãs e seu mundo de origem assemelham-se de modo
notável a tudo que se conhece sobre os Aroe Bororo, assim como o contraste entre Aroe e
Bope é bastante similar, do ponto de vista simbólico, ao contraste entre aruanãs e aõni,
masculino e feminino, como já foi constatado por Pétesch (1987, 2000) entre os Karajá. Os
Aroe, “espíritos da categorização”, assim como os aruanãs subaquáticos, moram em um
lugar úmido e abaixo dos rios, onde o tempo não passa e não existem mortes, não copulam
e não brigam entre si, são associados ao masculino, à eternidade, à permanência ou
estatismo, à repetição, à esterilidade, detestam o jerimaga dos pais de um recém-nascido e
de uma mulher menstruada (conceito de poluição muito parecido ao kyty Javaé), punem
quem dança/representa o Aroe após ter feito sexo, assim como ocorre entre os Javaé (ver
Rodrigues, 1993), não comem e são pensados como duplas que contrastam em sexo, cor e
tamanho. Enquanto os aruanãs têm nome de peixe e são donos/controladores dos peixes e
animais de caça, os Aroe são os controladores dos peixes (são associados aos peixes
porque sua reprodução é invisível, assim como a reprodução mágica dos aruanãs). Os Aroe
representam a vida mágica após a morte e os aruanãs a vida mágica antes da morte. Assim
como na Dança dos Aruanãs, os segredos da representação dos Aroe e da Casa dos
Homens são vedados às mulheres, que podem ser punidas pela coletividade masculina.
Os Bope, por sua vez, “espíritos do sangue”, opõem-se aos Aroe e associam-se ao
feminino, à morte, à poluição, ao mutável, à renovação, ao improviso, à fertilidade, ao
tempo, os fluxos orgânicos, às transformações, têm muito apetite e atração pelas comidas
sangrentas, pelo sexo, pelo sangue. Os aõni antropomorfos Javaé, que se confrontam com
os aruanãs nos rituais, também se opõem aos aruanãs nos mesmos termos simbólicos da

530
oposição entre Aroe e Bope: eles moram no Fundo das Águas, mas também no Bèdè Rahy,
como já foi dito, uma dimensão terrestre invisível onde passam fome, têm atração pelo
sangue, têm órgãos sexuais, têm que procurar a comida, que é escassa, só comem caça
crua, andam com bordunas ameaçadoras, correm e pulam desordenadamente, são
impulsivos e agitados (ver Rodrigues, 1993 e Pétesch, 1987, 2000). Assim como o Bope
Bororo, os aõni são um símbolo da feminilidade, associada aos fluxos orgânicos, à
transformação, à fertilidade e à passagem do tempo.
Como já foi mostrado antes em maior detalhe (Rodrigues, 1993), uma pessoa, não
importa o sexo, recebe o aruanã que era de um de seus pais ao nascer e com ele estará
identificada até o momento em que se reproduzir fisicamente e tiver o primeiro filho. O
período em que alguém é dono de um aruanã – do nascimento à geração do primeiro filho
– corresponde exatamente ao período em que esta pessoa é concebida como alguém de
“corpo fechado”, ou seja, como alguém que apenas acumula ou retém energia vital. É o
mesmo período em que esta pessoa não perde substâncias vitais e é alimentada por seus
genitores, sem obrigação de produzir alimentos, assim como eles devem fazer com o
aruanã durante o ciclo ritual. Há, portanto, uma correspondência simbólica entre a
alimentação dos filhos e a alimentação dos aruanãs identificados com os filhos, cujos
corpos fechados também apenas acumulam energia vital.
O nascimento do filho primogênito é o principal marco na vida de uma pessoa, o
ponto intermediário (tya, “meio”) do ciclo vital, aquele que separa a vida social entre um
antes de acumulação de energia vital, principalmente através da alimentação, e um depois
de perdas energéticas, iniciadas com a maior forma de exteriorização de substâncias: a
produção de um filho. A partir dessa grande transição, os pais passam a ser referidos
somente com tecnonímicos, como o pai ou a mãe do primogênito que nasceu. Repetindo
simbolicamente a passagem mítica de um mundo de corpos fechados para um mundo de
corpos abertos, a geração do primeiro filho transforma os corpos dos pais em corpos
abertos que exteriorizam energia vital, ou seja, filhos. Nesse novo estado corporal, os pais
perdem a sua identidade com os aruanãs de corpos fechados, transmitindo-os para o filho
primogênito. Este então será um dono de aruanã até ele próprio procriar e, assim,
sucessivamente.
A transmissão dos aruanãs não depende de uma autorização ou decisão consciente
daquele que era o seu dono. Assim que uma mulher engravida do primeiro filho,
sinalizando a abertura iminente dos corpos dos genitores, considera-se automaticamente

531
que o aruanã que era do pai ou da mãe passa a ser do filho gerado. Como se trata mais de
uma relação de identidade do que de propriedade, um aruanã jamais poderá permanecer
identificado com um dono que teve ou terá em breve o seu corpo aberto. Desse modo, a
condição de genitor é incompatível com a identidade/propriedade de um aruanã. E assim
como ocorreu na passagem primordial, a fusão interna das substâncias em um filho
inaugura o processo externo de perda de substâncias que leva à morte. Os humanos
mágicos que começaram a se reproduzir fisicamente encontraram a morte e assim ocorre a
cada vez que se tem o primeiro filho, pois desde então seus pais iniciam o processo de
degeneração corporal e envelhecimento que leva à morte.
Resumo brevemente aqui o que foi descrito antes (Rodrigues, 1993) sobre o ciclo
de energia vital do corpo humano, que é pensado como o modelo básico do percurso
circular seguido pelo sol e pelas águas de um rio, por exemplo. O nascimento do
primogênito marca a transição entre dois estados que se opõem, entre acumular e perder
energia vital, processos que ocorrem gradativamente. Como já foi lembrado aqui, o fim de
um percurso circular coincide com o seu início, havendo uma coincidência simbólica entre
o início da infância e o fim da velhice, entre o início da cheia e o seu fim, entre o nascer e o
pôr do sol. Entre o começo e o fim está o meio (tya) que propicia a transição de um estado
a outro, que pode ser o nascimento do primogênito, o meio-dia solar ou o auge da
enchente.
Tanto no início da vida de uma pessoa quanto no seu fim, quando se tem um corpo
com pouca energia vital, há uma menor rigidez quanto à separação das classes de idade e
ao formalismo do comportamento social, pois velhos e crianças novas podem se misturar
com todos e de modo informal, o que é expresso pelo descuido com a pintura corporal de
ambos, feita sem nenhum rigor. Conforme as crianças vão crescendo gradualmente, o que
corresponde a um acúmulo gradual de energia vital através da alimentação, elas passam a
fazer parte de diferentes classes de idade, também separadas por sexo. Quanto maior o
acúmulo de energia vital, maior é o formalismo requerido no que se refere ao
comportamento social e maior deve ser a separação entre as classes de idade diferentes. A
separação mais forte, contudo, deve se dar principalmente entre os sexos, e ocorre quando
os jovens acumularam em seus corpos a maior quantidade possível de energia vital, na fase

532
anterior à procriação. Nesse momento da vida, há um maior rigor com as pinturas e
enfeites corporais dos jovens adolescentes durante a vida cotidiana e as danças rituais 19 .
Os termos weryrybò e ijadoma referem-se às classes de idade de rapazes e moças,
respectivamente, anteriores ao casamento e ao nascimento do primeiro filho, quando então
passam às classes de idade kuladutyby e kuladusè, “pai de criança” e “mãe de criança”
(categorias gerais mais importantes, dentro das quais existem algumas subdivisões,
detalhadas em Rodrigues, 1993). As mulheres tornam-se ijadoma após a primeira
menstruação e os rapazes, weryrybò, quando já passaram das transformações corporais
iniciais da adolescência, sendo esta uma categoria que não está associada à iniciação ritual
masculina. Enquanto weryrybò e ijadoma, homens e mulheres não deveriam ter nenhum
contato sexual ou qualquer convívio próximo, incluindo a troca de olhares, indicativa de
desejo sexual. De acordo com Donahue (1982), o que poderia ser aplicado aos Javaé, estas
são as classes de idade mais idealizadas pelos Karajá, associadas ao tempo da vida mais
apreciado, quando se deve atingir a perfeição da força, para os homens, e da beleza, para as
mulheres, sem a obrigação de trabalhar para o sustento econômico. Toral (1992:115)
refere-se aos weryrybò como o “orgulho da aldeia” e a classe de idade que mais participa
da esfera cerimonial masculina. Segundo Fénelon Costa (1978:134), “a juventude é o ideal
de beleza e vida feliz, e assim, constitui o tema preferencial da artista Karajá”, referindo-se
às bonecas de barro.
Os jovens solteiros de ambos os sexos não deveriam jamais andar sozinhos pela
aldeia, apenas em companhia da família ou dos membros da mesma classe de idade,
normalmente em situações associadas a rituais. O mesmo é dito pelos autores citados a
respeito dos jovens Karajá, em especial quanto às moças. Na verdade, esperava-se dos
Javaé em geral quem saíssem de casa apenas para participar da vida ritual, uma vez que
“andar pela aldeia” ou estar fora de casa, para ambos os sexos, é associado a conflitos ou
namoros. Tradicionalmente, os jovens não deveriam se casar muito cedo, mantendo-se
virgens até o momento do casamento arranjado. Quando os corpos alcançam as categorias
weryrybò e ijadoma, atingindo o seu ápice energético, precisam ficar separados, pois estão
prontos para procriar e poluir. O comportamento ideal dos humanos terrestres em geral tem
como referência o comportamento dos aruanãs e heróis míticos do Fundo das Águas e Céu,

19
As classes de idade Karajá são descritas em maiores detalhes por Dietschy (1978:78-79), que considera os
“graus de idade”, de um ponto de vista masculino, como uma espécie da “compensação funcional” para a
cisão entre um princípio patrilinear público e um matrilinear doméstico; e Lima Filho (1994), que associa as
classes de idade masculinas aos níveis cosmológicos.

533
que não brigam nem mantêm relações sexuais entre si por causa de sua separação dos
corpos e ausência de movimentos, associados a um espaço fechado e interior 20 .
Nessa fase há uma correspondência simbólica entre a relação assexuada de pureza e
separação dos weryrybò e ijadoma, com seus corpos repletos de energia vital, e a relação
entre os aruanãs e suas irmãs mágicas, dotados de um extraordinário acúmulo energético
em seus corpos fechados, que apenas se nutrem, sem jamais perder energia vital. É
justamente nesta classe de idade que homens e mulheres participam mais intensamente da
Dança dos Aruanãs, quando os rapazes já iniciados dançam na condição de aruanãs
mascarados e a moças dançam como irasò didi ou irasò lery, as “irmãs” mágicas dos
aruanãs. As irmãs rituais dos aruanãs, que imitam as irmãs mágicas, devem dançar
evitando olhar para os aruanãs e a uma distância segura, capaz de impedir o contato dos
aruanãs com seus os fluidos poluídos. As ijadoma jamais devem dançar menstruadas. A
separação por sexo e classes de idade é maior justamente quando homens e mulheres
sociais representam ritualmente a separação estéril que existe entre os corpos dos aruanãs e
das suas irmãs mágicas.
Como já foi dito antes, “pode-se dizer que a relação de identidade entre o dono e o
Aruanã é maior nessa fase, havendo uma identificação gradual entre ambos, proporcional
ao acúmulo de energia do dono” (Rodrigues, 1993:232). Ou seja, quanto maior a retenção
de energia vital, caracterizando o fechamento do corpo, maior a identidade entre um
humano terrestre e seu aruanã mágico. Após o nascimento do primogênito, os pais “abrem”
seus corpos pela primeira vez e iniciam um processo de perdas energéticas cada vez
maiores, o que se agrava com o nascimento dos outros filhos. Mesmo que as moças já
tenham passado pela menstruação, a reprodução física é considerada como a grande
passagem que abre os corpos de forma irreversível, assim como ocorreu nos tempos
primordiais. De um ponto de vista masculino, isso talvez se deva ao fato da mulher não ser
concebida como um “outro” antes de procriar, quando só então intervém diretamente na
fisiologia do corpo dos homens. Antes da reprodução física, todos são “iguais” no que se

20
Essas são normas ideais cada vez menos respeitadas pelas gerações atuais, mas em 1990, por exemplo,
havia times de futebol feminino e masculino em Canoanã, organizados segundo o princípio das classes de
idade. As ijadoma (moças que já menstruaram) ou hirari (classe de idade anterior às meninas que
menstruaram) tinham times diferentes e que não se misturavam, o mesmo valendo para os times masculinos.
Quando os jovens se dirigem para a escola das aldeias atualmente, em geral eles vão juntos com os membros
da sua classe de idade. Desde o fim da década de 90, cada vez mais rapazes e moças têm ido estudar nas
cidades vizinhas, o que tem sido fonte de transtorno permanente para os pais das alunas, principalmente.
Mesmo permanecendo em alojamentos diferenciados por sexo, as famílias dos jovens preocupam-se com a
dificuldade de mantê-los separados um dos outros. Recentemente (2004), algumas das famílias estavam
organizando-se para trazer as moças solteiras de volta às aldeias.

534
refere à sua condição de corpos fechados assexuados e, por isso, homens e mulheres vivem
separados uns dos outros, em uma relação simbólica de irmãos, assim como os aruanãs e
suas irmãs mágicas dos outros níveis cósmicos.
Há duas questões básicas na relação de identidade com os aruanãs: uma é a herança
propriamente dita, ou seja, como alguém recebe e se torna o dono de um aruanã. A outra se
refere às vezes em que os aruanãs herdados vêm participar do ciclo de danças terrestres, o
que pode acontecer uma ou mais vezes e vai depender basicamente da capacidade dos pais
do dono de aruanã em alimentá-lo durante o ano ritual (cabendo ao homem plantar e pescar
ou caçar e à mulher, preparar o alimento). Os aruanãs são o bem mais precioso de uma
família, repassados de geração em geração, cuja vinda ao nível terrestre é capaz de gerar
um imenso prestígio tanto para o dono de aruanã, propriamente dito, quanto para os pais de
aruanã. Existem outros tipos de bens culturais ou identidades sociais transmitidos, como os
vários tipos de estrangeiros mascarados (ixyjukuni), mortos em batalha, e os korera, “corpo
velho do jacaré-tinga”, mas que não têm o mesmo prestígio dos aruanãs, assunto a ser
retomado no parte final.
Assim como entre os Karajá (Toral, 1992, Pétesch, 2000), a capacidade de produzir
muito alimento e distribuí-lo generosamente durante o ciclo ritual é a premissa
fundamental para um casal ser agraciado por um xamã, após discussões na Casa dos
Homens, com a tarefa honrada de cuidar/alimentar do aruanã de seu filho durante um ano.
Só os homens e mulheres que trabalham sem preguiça e são generosos podem tornar-se
inytyhy, “verdadeiros humanos”, o principal conceito de honra Javaé. Pode-se dizer,
antecipadamente, que a efetivação da identidade de alguém enquanto dono de aruanã vai
depender desse segundo momento, em que os pais do aruanã responsabilizam-se pela
produção de uma grande quantidade de alimentos durante um ciclo ritual. Alguém pode ter
herdado um aruanã, mas se este nunca foi trazido ao nível terrestre porque seus pais não
tinham condições de alimentá-lo, este fato torna-se uma vergonha da história familiar.
Assim, a herança por si só não é garantia de prestígio nem da consolidação de uma
identidade xiburè, o que vai depender, em última instância, do fruto do trabalho que um pai
de aruanã produz para pagar pelos serviços sexuais e domésticos da mãe de seus filhos aos
afins. Afinal, a retenção energética que caracteriza os corpos fechados dos donos de aruanã
terrestres origina-se, primariamente, da alimentação. Segundo Donahue (1982), a
realização anual do ciclo dos aruanãs entre os Karajá contribui também para o prestígio da
aldeia como um todo onde é realizado.

535
Idealmente, um aruanã é transmitido através das gerações de primogênito para
primogênito, independentemente do sexo, sucessivamente. Quando nascem os outros
irmãos de um primogênito, diz-se que todos são irasò wèdu, “donos de aruanã”, embora
apenas o primogênito seja o verdadeiro dono, aquele que tem o direito de transmiti-lo a
seus filhos. O filho pode herdar o aruanã que pertencia ao pai ou à mãe. Na hipótese dos
dois genitores serem primogênitos e possuírem aruanãs, o primogênito herda os aruanãs de
ambos os lados. Os filhos de criação primogênitos de casais que não tiveram filhos
também têm o direito de herdar e transmitir o aruanã de seus pais de criação. Quando uma
pessoa tem mais de um aruanã e têm dois filhos primogênitos, de casamentos diferentes,
ela pode passar uma aruanã para cada um dos primogênitos. Um dono de aruanã adulto que
não tem filhos ou quer demonstrar o orgulho que sente por ter muitos parentes, assunto a
ser retomado, pode decidir dar o aruanã para um filho de um irmão real ou classificatório,
de qualquer sexo. Geralmente escolhe-se um sobrinho primogênito, filho de um irmão ou
cunhado trabalhador. Os caçulas também podem ganhar aruanãs, mas isso é menos
comum. No caso de um dono ou dona de aruanã morrer sem filhos, normalmente os seus
irmãos têm o direito de decidir para quem será entregue o aruanã da família.
Caso a coletividade masculina reunida na Casa dos Homens avalie que os pais de
aruanã têm condições econômicas e morais para cuidar de um aruanã, os outros filhos do
casal, separadamente, podem receber um novo aruanã diretamente de um xamã aparentado.
O filho em questão inicia uma nova linha de transmissão que terá continuidade a partir do
seu filho primogênito e assim sucessivamente. Nesse caso, o aruanã recebido não era de
ninguém anteriormente, mas apenas um novo aruanã que é trazido ao nível terrestre pela
primeira vez. Esse é o modo mais comum de se trazer aruanãs, que também depende
exclusivamente da capacidade produtiva dos pais, mas não tem o mesmo prestígio que o
anterior. Nas linhas antigas de transmissão entre primogênitos estão os aruanãs que são
famosos e conhecidos por todos nas aldeias, por terem sido trazidos várias vezes ao longo
do tempo, em diferentes gerações. São raros, entretanto, esses aruanãs muito antigos.
Todos os anos, há um número de duplas de aruanãs nas aldeias onde existe Casa
dos Homens e se realiza o ciclo anual da Dança dos Aruanãs. Em 1990, em Canoanã, a
maior aldeia Javaé até os dias de hoje, com cerca de 500 pessoas na época, havia oito
duplas de aruanãs. Em 1997, Canoanã já era uma aldeia menor (com 324 pessoas), e o
número de aldeias havia aumentado para oito (atualmente são 12), mas seis duplas de
aruanãs participavam do ciclo anual. Em 2006, com menos de 300 pessoas, Canoanã

536
recebeu cinco duplas de aruanãs. Em outras aldeias menores, há uma média de três ou
quatro duplas. De todos esses aruanãs que são trazidos anualmente em Canoanã, que ainda
é o principal palco da vida ritual Javaé, a maioria é de duplas que foram entregues aos
humanos terrestres tempos depois da (re)fundação da mítica Canoanã no final dos anos 40.
Ou seja, são aruanãs novos que começaram a ser transmitidos mais recentemente, desde os
anos 60 ou pouco antes, abrangendo desde então o tempo de uma ou duas gerações, no
máximo, se considerarmos que um aruanã pertence a uma pessoa por um período médio de
20 anos.
Quanto aos aruanãs antigos de famílias que moravam em Canoanã, os Javaé
lembram-se que existiam apenas três duplas que começaram a ser transmitidas antes dos
anos 40. São aruanãs que foram entregues aos seus donos em outras aldeias, quando ainda
eram crianças, e que foram trazidos algumas vezes em Canoanã, por diferentes gerações,
ainda pertencendo a essas famílias atualmente. Entre os estrangeiros mascarados, cuja
regra de transmissão é um pouco diferente, também há apenas três dos mais antigos,
assunto da última parte. É o caso do aruanã chamado Malua, recebido por seu dono na
antiga aldeia Cachoeirinha, extinta e retomada em 1995, do aruanã Kwely, recebido por sua
dona na antiga Marani Hãwa, extinta na metade do século passado, e do Teruteru. O
primeiro dono do Teruteru irasò, atualmente com mais de 90 anos, não era um primogênito
quando o recebeu na antiga aldeia Wariwari, ainda criança, no começo do século passado.
Mas desde então, o Teruteru já foi passado para quatro gerações de primogênitos,
incluindo homens e mulheres.
Os Javaé dizem que esses aruanãs antigos não são mais trazidos agora porque os
xamãs não sabem mais como se faz a iòriti, a pintura (riti) da máscara que representa o
rosto (ò). Como foi mostrado antes (Rodrigues, 1993), o primeiro xamã que traz o aruanã
copia aqui exatamente o que ele vê em suas viagens oníricas aos territórios invisíveis onde
moram os aruanãs. É provável que as linhas de transmissão de aruanãs alcançassem um
maior número de gerações antigamente, como no caso dos cargos de iòlò, sendo inegável
que o impacto do contato e das epidemias desconhecidas sobre a população, mais intenso a
partir do início do século 20, deve ter provocado importantes alterações na distribuição dos
bens culturais ao longo do tempo. Entretanto, deve-se levar em consideração também que
linhas de transmissão constituídas pela primogenitura não formam os mesmos tipos de
grupos definidos ao longo do tempo de modo inequívoco pelas linhagens patri ou
matrilineares. O critério da primogenitura, não baseado na diferenciação pelo sexo, dá

537
origem a grupos de caráter mais provisório do que permanente, cuja forma é mais
imprecisa do que exata.
Quando um xamã decide entregar um novo aruanã para alguém, que pode ser ou
não um primogênito, pois as pessoas podem ter ou receber mais de um aruanã, ele escolhe
preferencialmente os filhos ou netos dos seus próprios irmãos ou irmãs, reais e
classificatórios, independentemente do sexo. Os xamãs têm a intenção de manter o aruanã
“dentro da família”, como dizem os Javaé, o que foi constatado em vários casos analisados,
embora não dêem os aruanãs para os próprios filhos. O primeiro xamã que traz um novo
aruanã e o entrega a uma família é considerado o hàri wèdu, o “xamã dono” do aruanã. Ele
é “dono” também, mas não no sentido de se identificar com o aruanã nem de ser o
responsável por sua alimentação, mas por ser aquele que o traz dos outros níveis cósmicos
e é capaz de controlá-lo aqui. No caso do hàri wèdu de um aruanã morrer e a família
querer que o aruanã volte para outro ciclo ritual, esta negocia na Casa dos Homens para
que um outro xamã seja responsável pelo aruanã, embora este último não possa mais ser
considerado como hàri wèdu. Com a morte do primeiro xamã, também não mais ocorre o
ritual da entrega de um novo aruanã a uma família, já descrito antes (Rodrigues, 1993). O
xamã também é chamado de wahy ou likina, palavras traduzidas como “amigo” dos
aruanãs e que podem ser usadas em outros contextos.
Segundo Donahue (1982) e Pétesch (2000), que descrevem procedimentos gerais
em relação à entrega dos aruanãs muito parecidos com o que é aqui relatado, o xamã
Karajá recebe uma recompensa por isso, assim como entre os Javaé, que recompensam os
xamãs também pelos latèni recebidos no ritual de iniciação masculina. Toral (1992:159)
registra, além disso, um segundo modo de entrega dos aruanãs, chamado “ijasòròte”, em
que o aruanã trazido pelo xamã seria entregue a uma família pelos weryrybò (rapazes) da
aldeia. Para Pétesch (2000:112), segundo lhe disseram os Karajá, a possessão dos aruanãs
se dá pela via patrilinear e é “comunitária, (...) sem afetação permanente de ijaso
específicos a indivíduos ou grupos sociais particulares”. Nenhum dos autores menciona o
critério da primogenitura. Os Javaé, por sua vez, dizem claramente que os aruanãs
pertencem a uma determinada “família”, unidade de possessão ou propriedade que deve ser
compreendida a partir do critério mais vago e sem grande profundidade temporal da
primogenitura, que ora privilegia a linha materna ora a paterna como canal de transmissão
dos bens, mas que delimita uma unidade menor que não se confunde com a “comunidade”
local.

538
A Dança dos Aruanãs ainda é o maior acontecimento das aldeias Javaé onde existe
Casa dos Homens, ocupando seus habitantes boa parte do ano, embora atualmente os
aruanãs de uma pessoa não sejam trazidos dos outros níveis cósmicos tantas vezes como
antes. Tradicionalmente, os aruanãs eram entregues pelos xamãs aos casais de
trabalhadores para participar de mais de um ciclo anual. Responsabilizar-se pela
alimentação de um ou mais aruanãs durante um ciclo ritual é uma tarefa extremamente
onerosa e desgastante para os pais de aruanã, de modo que, na maioria dos casos,
atualmente, o aruanã de uma pessoa não é trazido ao nível terrestre mais do que uma única
vez. E quanto mais duplas de aruanãs uma pessoa têm, mais alimento tem que ser
produzido em sua estadia terrestre. Há muitas famílias que, mesmo sendo donas de
aruanãs, nunca tiveram condições de alimentar um deles, não sendo honradas pelos xamãs
da Casa dos Homens com o convite irrecusável de assumir tal responsabilidade. Essa
incapacidade não é apenas uma questão de ordem econômica, envolvendo também
aspectos do passado moral dos possíveis candidatos.
O primogênito, por sua vez, herda os aruanãs independentemente da história de
seus pais ou do que estes serão capazes de fazer, tendo o direito de transmiti-los a seus
filhos mesmo que seu aruanã, vexaminosamente, nunca tenha participado de um ritual
terrestre 21 . A primeira vez que um dono recebe um aruanã na aldeia, normalmente quando
ainda é criança, ou mesmo quando ainda está na barriga de sua mãe, ele é trazido na
condição de nohõ da pessoa, como já foi dito por Toral (1992). Esta palavra tem o sentido
geral de “bem precioso”, o que pode ser tanto um objeto como um animal de estimação.
Ele é chamado de nohõreny, “nohõ de todos”, quando se refere ao conjunto de irmãos que
são também considerados donos do aruanã, embora só um seja o dono verdadeiro. No dia
da cerimônia de apresentação pública do novo aruanã ao seu dono ritual (Rodrigues,
1993:217), a dupla de aruanãs abraça e levanta no ar, em um ato chamado “dedekere”, as
crianças ou adolescentes que o aguardam ricamente adornados, junto de suas parentas, na
extremidade feminina da pista de dança. O ato tem o objetivo de “transmitir a energia
vital” (ritètè) dos aruanãs, a fim de que a criança cresça rápido e fique forte e alta,

21
Entre os Wauja (ou Waura) alto-xinguanos, da família Arawak, também existe o conceito de “dono ritual”,
aquele que custeia a fabricação de máscaras dos “apapaatai” (entidades invisíveis) e responsabiliza-se por sua
alimentação durante um ou vários ciclos rituais, lá associados à cura de um estado patológico causado pelos
apappatai aos humanos (Barcelos Neto, 2004). Há outros pontos em comum com os Javaé, como o fato de
que poucas pessoas possuem as condições econômicas de manter os rituais por longos períodos e de que o
xamã ajuda na “domesticação” dos apapaatai. Assim como estes últimos, os aruanãs Javaé também podem
aprisionar a porção invisível de uma pessoa, provocando um estado doentio cuja cura depende do doente
desenvolver suas habilidades xamanísticas e tornar-se o hàri wèdu do aruanã em questão.

539
evidenciando o caráter de concentração energética do corpo dos aruanãs. Os aruanãs
levantam apenas as crianças do sexo masculino, embora as donas rituais do sexo feminino
também sejam apresentadas a eles no lado das mulheres. Lima Filho (1994) descreve o
mesmo ato entre os Karajá, embora em época diferente – durante o ritual de iniciação.
No caso dos homens, o mesmo aruanã ou um novo recebido posteriormente voltaria
anos depois como hijèrurena. Na ocasião, o verdadeiro dono passava pelo ritual de furação
do “lábio inferior” (hijèrawo) com o osso do macaco guariba (asy), presenciado por Souza
Filho (1987c) e Lima Filho (1994) entre os Karajá, onde seria introduzido o botoque labial
cilíndrico chamado hijè, feito de pedra. Esse ritual era realizado também na Casa Grande,
mas no ano anterior à iniciação propriamente dita do dono de aruanã. A cada diferente
classe de idade correspondia uma forma diferente do adorno labial, sinalizando a mudança
de status:

• O weryry (criança não iniciada) usava o hijè, um pequeno botoque labial cilíndrico
de pedra, da espessura do lábio.

• Quando o menino era iniciado, tornando-se um jyrè, ele colocava o koluò, um


botoque de madeira bem fina, enrolado em forma de espiral abaixo do lábio.

• Na classe de idade rahetodu, depois da iniciação, o koluò adquiria um formato reto


e com a ponta virada para dentro (abaixo do queixo).

• O weryrybò, rapaz ainda não casado, usava um koluò mais comprido e totalmente
reto. Ele também usava o cabelo comprido e amarrado atrás pelo kòtuè, um adorno
de algodão.

• Quando o homem casava e tinha filhos, alcançando a classe de idade ijoityhy, o


koluò, também reto e comprido, atingia o seu tamanho máximo, na altura do
umbigo. Conforme os anos avançavam, o koluò começava a diminuir de tamanho.

• Os velhos (matukari) voltavam a usar o hijè, botoque pequeno e discreto de pedra,


da espessura do lábio.

540
Krause (1941e) registra entre os Karajá do início do século 20 o uso de tipos
variados de adorno labial, que atingiam de 4 a 11 cm de comprimento em crianças e cerca
de 25 cm no caso de jovens iniciados, para depois diminuir gradualmente conforme a idade
avançava. O tamanho do adorno indicava um aumento e uma diminuição gradual ao longo
do tempo, fazendo coincidir simbolicamente o início e o fim do ciclo de vida (ver
Rodrigues, 1993). Alguns dos homens Javaé mais velhos que tiveram o lábio furado,
prática não mais realizada há décadas, tiveram aruanãs que vieram como hijèrurena,
associados à furação do lábio. No ano seguinte, quando o menino era iniciado na Casa
Grande, o mesmo aruanã ou outro voltaria mais uma vez, no início do ciclo ritual, na
condição de radudu ou rasyna, então associado ao corte de “cabelo” (rasy) especial que é
feito nos meninos durante o ritual de iniciação masculina.
Em se tratando das mulheres, o aruanã pode vir como nohõ uma primeira vez e
depois como adusina, associado às danças (dusi) femininas no papel de irmãs rituais dos
aruanãs. O adusina irasò pode vir quando ela é ainda uma criança e depois na época de
uma moça começar a dançar como adusidu (“dançarina”). Quando os aruanã que foi
ijèrurena, rasyna ou adusina é transmitido para o filho do dono, ele volta novamente como
nohõ do novo dono. Atualmente (2008), ainda existem aruanãs radudu ou rasyna e
adusina nos rituais Javaé, tendo deixado de existir somente o ijèrurena. Todos os aruanãs
que vieram no fim de 1996 (Lateni irasò, Ijareheni, Debò, Weru, Hãkiriri e Ijakuhi), na
aldeia Canoanã, eram radudu dos meninos que foram iniciados no começo de 1997. Dos
cinco aruanãs que chegaram no ano de 2006, também em Canoanã, três eram radudu dos
meninos iniciados em dezembro de 2006. Para Toral (1992:160-161), os aruanãs são
“defensores” entregues às pessoas em momentos de “mudança de identidade social”, uma
vez que sua influência “benéfica” ajuda na saúde e no crescimento corporal. Pétesch
(2000) também acentua a capacidade dos aruanãs protegerem seus donos Karajá em troca
de alimentação ritual.
Apesar de se falar em uma “linha de transmissão” dos aruanãs, não existe um
princípio unilinear que identifique claramente patrilinhas ou matrilinhas através das
gerações, uma vez que o critério fundamental da herança é a primogenitura, não
importando o sexo daquele que herda ou transmite o aruanã. Assim, não só a família
nuclear, mas também os parentes bilaterais próximos, como primos, tios ou avós
verdadeiros de um dono de aruanã, podem dizer que o aruanã “está em nossa família”.
Entretanto, como já foi dito antes, ser um proprietário do aruanã coincide com morar na

541
residência natal, à qual seus membros estão ligados matrilinearmente. Um homem deixa de
ser dono de aruanã quando tem o primeiro filho na casa conjugal, onde este último é
considerado um membro uterino. Desse modo, através das gerações há uma coincidência
entre as prerrogativas da condição de primogênito de uma pessoa e a sua residência de
origem, com a qual se tem uma ligação uterina. Em outras palavras, a primogenitura é
pensada mais como um conceito associado à residência na casa natal do que como um
princípio de descendência.
Embora a primogenitura também seja o critério básico de transmissão dos nomes,
como veremos, estes são transmitidos através de linhas femininas e masculinas paralelas,
através de gerações alternadas, porque existem nomes femininos e nomes masculinos.
Assim como os nomes, os aruanãs também são uma espécie de identidade social, mas
bastante diferente, porém, por não ser afetada pelo critério de gênero. O que se está
transmitindo não é uma identidade baseada na diferença entre homens e mulheres, mas
uma identidade de parentesco baseada simplesmente na semelhança e separação dos corpos
fechados.
Os aruanãs não só são assexuados como também não têm um gênero definido, o
que é evidenciado pela androginia sutilmente representada nas máscaras dos aruanãs: cada
membro de uma dupla, que é um único aruanã, usa máscaras (na verdade, “corpos”, tyky)
idênticas, que são diferenciadas apenas por uma pena solitária de arara no alto da cabeça,
em que a azul representa o masculino e a vermelha o feminino. As duas máscaras, juntas,
constituem um único ser sem identidade de gênero definida. Como já foi dito, as pessoas
só tornam-se homens e mulheres, gêneros distintos, na condição de maridos e esposas,
quando fundem suas substâncias e produzem a diferença entre os corpos masculino e
feminino. Antes disso, os aruanãs e suas irmãs mágicas ou rituais são seres que não se
relacionam substancialmente e, por isso, não se diferenciam. Em outras palavras, os
parentes de corpos fechados e que não se misturam simbolicamente não têm gênero, em
oposição aos afins que produzem a diferença entre masculino e feminino ao fundir suas
substâncias.
A identidade com os aruanãs significa a transmissão de uma identidade de
parentesco através das gerações, mas não existe aqui qualquer idéia de “descendência”.
Não só porque se trata de um parentesco transmitido através da primogenitura,
impossibilitando assim a formação de grupos de descendência unilineares definidos, mas
principalmente porque o que se está transmitindo é uma identidade baseada na ausência de

542
conexão física entre os corpos de parentes. Cada vez que um novo corpo é identificado
com os aruanãs, transformando a si e a todos os seus parentes bilaterais em parentes
cerimoniais, transcende-se ou elimina-se o conceito de descendência física. Este pressupõe
um fluxo sucessivo de substâncias entre os corpos de diferentes gerações, uma conexão
física permanente que implica em uma transformação cada vez maior, a cada nascimento,
do estoque energético original.
Herdar um aruanã é identificar-se com um estoque energético – dos corpos dos
primeiros ancestrais – que permanece desde sempre o mesmo, enclausurado em um corpo
imutável e eterno, e que não doa nada de si para dar forma a novos corpos; é identificar-se
com um corpo purificado que não foi gerado pela substância exteriorizada e poluída de um
antecessor, mas que apenas repete a si mesmo; é identificar-se, enfim, não com um corpo
que é o produto de uma fusão substancial e social entre dois corpos que se opõem, mas
com um corpo auto-gerado e auto-nutrido que não é feminino nem masculino.
Assim como acontece quando se ganha um nome entre os Apinayé (Da Matta,
1979), virar um dono de aruanã não é suceder alguém no tempo, tornando-se um diferente,
mas apenas substituir alguém que usava a mesma máscara/corpo antes, tornando-se um
semelhante. Em suma, essa identidade não fundada na consubstancialidade é, antes de
tudo, uma identidade que tenta suprimir a alteridade e a temporalidade inerentes aos corpos
gerados por meio da mistura poluída de substâncias paternas e maternas. Sem outros, não
se procria e não se morre. Como já disse Kaplan (1981:151), “(...) para os ameríndios da
América do Sul o tempo social não é um tempo genealógico: a profundidade temporal é
uma noção que os ameríndios tendem a evitar e até lutar contra enquanto um princípio
perigoso para a sua existência social”.
Em sua apresentação da classificação interna dos vários tipos de bens possuídos
pelos Karajá, que incluem os bens materiais, cantos e papéis cerimoniais, animais
familiares, cativos de guerra, nomes, instrumentos xamânicos e “entidades espirituais”,
como os aruanãs e os “espíritos dos inimigos mortos”, Pétesch (1993b, 2000:173-174)
conclui que, “quanto mais se sobe na hierarquia de valores dessa classificação da
possessão, mais a personificação do bem é acentuada, evoluindo-se de uma ligação de
pertencimento a uma relação de filiação até acarretar a inversão da relação possuidor-
possuído. O dono-pai termina por ser dominado pelo bem-filho”. Os aruanãs são chamados
de wa nohõ riore rena, “meus bens-filhos”, e tratados, segundo a autora, como possessões
não reificadas que possuem uma “identidade própria, uma personalidade que requer (...)

543
um processo de socialização comparável a uma afiliação”, pois as famílias envolvidas
assumem uma “paternidade adotiva” em relação aos aruanãs. Mesmo sendo considerado
como um bem que é “personificado” e “socializado”, na interpretação de Pétesch o aruanã
não deixa de ser uma entidade espiritual externa com a qual se estabelece uma relação de
troca: alimentação regular por proteção espiritual. No caso Javaé, não se está dizendo que o
aruanã é transformado em uma espécie de filho adotivo por seus pais rituais, como se fosse
um “outro” filho, mas o contrário: que o filho de um casal é transformado simbolicamente
em um aruanã de corpo fechado, como se fossem uma única pessoa.
A parentela cerimonial bilateral, associada à propriedade dos aruanãs, é construída
socialmente como se fosse constituída independentemente de troca de substâncias
fecundantes, assim como os clãs matrilineares Bororo, associados à propriedade dos Aroe,
também não se concebem como ligados substancialmente (Crocker, 1979, 1985). Mas isso
não significa que entre os Javaé a oposição entre aruanãs e substância seja tratada nos
mesmos termos que Da Matta (1976, 1979), Melatti (1976), Lave (1979), Crocker (1979,
1985) e Seeger (1980, 1981), por exemplo, postulam para a oposição entre nome e
substância. Embora bastante parecidos com os Aroe Bororo, os aruanãs não são formas
abstratas puramente lógicas, mas são, antes de tudo, corpos. O contraste entre identidade
substancial e identidade cerimonial entre os Javaé não tem o mesmo conteúdo da clássica
oposição ocidental entre concreto e abstrato, matéria e não-matéria, corpo e alma, physical
self e social self, natureza e cultura, relações físicas e relações sociais, conceitos que os
autores mencionados associaram ao contraste entre substância e nome.
Os corpos fechados que não mantêm relações de substância entre si não são
entidades/identidades imateriais ou abstratas, como já foi mostrado antes. Não deixam de
ser corpos pelo fato de não misturar suas substâncias internas com a de outros. Ao
contrário, o que caracteriza a sua imortalidade é justamente a capacidade de retenção
energética extraordinária, a capacidade de não perder as substâncias que, concentradas em
um corpo hermeticamente fechado, geram o poder mágico de se auto-nutrir e se perpetuar
indefinidamente. Segue-se, então, que o contraste aqui não é entre não-corpo (nome/alma)
e corpo (substância), ou entre relações sociais (cultura) e físicas (natureza), mas entre
corpos fechados e corpos abertos, entre substâncias concentradas e substâncias que fluem,
entre ausência de relações e existência de relações.
Vimos então que isso que se chama de “parentesco” não existe entre os Javaé como
um atributo natural, algo gerado automaticamente pelo simples fato das pessoas estarem

544
conectadas fisicamente umas às outras. Os humanos sociais nascem ligados fisicamente
uns aos outros desde que decidiram ascender a este plano intermediário, mas esses vínculos
de substância não são vistos como o elo que faz dos filhos parentes de seus pais. Cada
novo e estranho corpo que nasce, transformado em uma mistura energética poluída e
coberto de substâncias alheias, requer um esforço coletivo para ser purificado e, assim,
construir um laço de parentesco com os seus genitores. Para isso, são necessárias as
técnicas de resguardo, que ajudam a separar as substâncias misturadas no momento crítico
posterior ao nascimento. Mas o fechamento dos corpos envolvidos, aquilo que
transformará o filho e sua parentela bilateral em parentes verdadeiros, só ocorrerá quando o
novo ser for identificado com um aruanã herdado de seus pais ou recebido de um xamã,
que deverá ser alimentado no nível terrestre para completar esse processo gradual de
construção do parentesco, de transformação do estranho que perde energia vital em um
semelhante que a retém 22 .
Veremos até o fim deste trabalho que, embora o pai e a mãe sejam os doadores de
substâncias (do corpo aberto e poluído do filho), como entre todos os Jê do Norte (ver
Maybury-Lewis, 1979a) e Bororo (Crocker, 1979), e do aruanã, é o tio materno quem
possibilita, em última instância, o fechamento e purificação dos corpos, pois é dele a
performance ritual que dá vida aos aruanãs terrestres. A identidade cerimonial não depende
apenas de ser transmitida pelo tio materno, como entre os Jê-Bororo, mas de ser
transmitida por um dos genitores, independentemente do seu sexo, e de ser colocada em
prática através do desempenho ritual do tio materno, evidenciando a ligação uterina à casa
natal. A dualidade entre transmissão e performance é o elo que liga a oposição entre
identidade física e identidade social à estrutura de troca matrimonial simétrica e às
prestações entre afins, diversamente dos Jê. Os Bororo (Crocker, 1979, 1985), por sua vez,
mais próximos dos Javaé, também associam a nominação às complexas trocas exogâmicas
entre as metades matrilineares 23 .

22
Entre os Timbira, segundo a releitura de Coelho de Souza (2004:45), “a identidade de substância é uma
função das relações e não o contrário”, como no caso Apinayé (Da Matta, 1976) em que marido e mulher
tornam-se “parentes” através das trocas de substância ao longo do tempo. Para a autora, “o que faz o
parentesco ‘verdadeiro’ não é tanto a (pressuposição de) consubstancialidade quanto o processo de
consubstancialização” (grifo da autora), do qual faz parte o convívio e a comensalidade, como entre os Piro
(Gow, 1991) ou Cashinahua (McCallum, 2001), por exemplo. Entre os Javaé, o parentesco social também é
construído, e não dado, mas isso não significa um processo de consubstancialização, mas o contrário, assunto
a ser retomado tendo como referência a “teoria geral da socialidade amazônica” de Viveiros de Castro
(2002h:404), que distingue entre afinidade dada e consangüinidade construída.
23
Aqui há uma diferença fundamental em relação ao modelo proposto por Pétesch (2000) para os Karajá, que
transmitem os aruanãs pela via patrilinear, segundo a autora. Em razão do princípio da uxorilocalidade, os

545
Assim como os Timbira orientais e Bororo, existe o mesmo contraste entre pai
(doador de substância) e tio materno (doador da persona social), embora aqui traduzido em
termos do contraste entre corpo aberto e corpo fechado; e uma maior valorização social do
papel ritual do tio materno e da casa natal (dos nominadores ao invés dos genitores),
diversamente da ênfase no papel do pai e da casa dos afins que ocorre entre os Kayapó
(Turner, 1979b, 1984) ou Suyá (Seeger, 1981). Pode-se dizer, por fim, que o primeiro
momento de estranhamento e poluição total após o nascimento, quando a comunidade de
substância é constituída de estranhos, é uma versão simbólica da Terra dos
Ensangüentados, como se cada novo nascimento promovesse uma descida de todos ao
extremo do rio abaixo. E que o processo que se desenrola a seguir, de tentativas de
purificação, separação e fechamento dos corpos, constitui-se de um esforço permanente
para se chegar ao extremo do rio acima, onde todos são parentes mágicos, o que jamais é
alcançado em sua plenitude. Em outras palavras, a oposição Jê-Bororo entre parentesco
substancial e parentesco cerimonial, entre substância e nome, equivale à oposição Javaé
entre Terra dos Ensangüentados e nível celeste, rio abaixo e rio acima 24 .
O máximo que os humanos sociais podem conseguir é ficar no meio dessa
caminhada – realizada pelo herói Tanyxiwè nos tempos míticos, ao descer o rio e subir ao
Céu –, em uma posição de mediação entre a consubstancialidade inerente, porém
indesejada, e o parentesco puramente mágico, desejado, porém inalcançável. Pelo fato de
que todos os humanos sociais estão necessariamente conectados fisicamente aos seus
parentes, ao mesmo tempo em que se empenham com vigor para anular essa conexão,
podemos dizer que o produto dessa mediação tensa entre o diferente e o semelhante, a
transformação e a repetição, é o parentesco social, uma terceira alternativa que não se
confunde com a consubstancialidade do rio abaixo feminilizado nem com o parentesco
mágico do rio acima masculinizado, igualmente anti-sociais 25 .

aruanãs – trazidos pelos homens que vêm de fora – seriam “afinizados” tanto quanto os homens que chegam
à nova casa na condição de esposos. Os aruanãs estariam na condição ambígua de “filhos” e “genros”
(2000:114) da família que os adotam cerimonialmente, em uma relação de afinidade potencial, pensados
como afins simbólicos.
24
Embora não se trate da oposição entre corpo e alma, mas entre corpo aberto e corpo fechado, pode-se dizer
que o “insight” de Rivière (1974:431) quanto à natureza da couvade – “não diz respeito à criação do corpo
físico, mas à sua existência espiritual” – aplica-se ao caso Javaé. Afinal, o resguardo nada mais é do que uma
tentativa de aproximar a criança e seus pais de um corpo eterno e imortal.
25
Ou como diria Crocker (1979:295), em uma formulação válida para os Javaé: “ao invés de basear seu
sistema social em noções de descendência, na idéia de continuidade biológica através do tempo, os Bororo
relacionam suas instituições a um complexo conjunto de crenças sobre fecundidade feminina e esterilidade
masculina”.

546
O parentesco que os humanos do meio constroem, cujos corpos não são totalmente
fechados nem totalmente abertos, é uma mediação permanente entre esses dois estados
incompatíveis, o que aproxima os Javaé mais ainda da idéia Bororo (Crocker, 1985) de que
os humanos são almas vitais, sínteses dialéticas entre nome e substância, Aroe e Bope,
desde que feitas as ressalvas já mencionadas. O parentesco social nada mais é que a síntese
paradoxal entre esses extremos que se opõem, o meio através do qual a humanidade
terrestre vive tentando encontrar o seu caminho entre a morte e a vida eterna.

7.4. A espacialização da socialidade

O Projeto Harvard do Brasil Central (ver coletânea de Maybury-Lewis, 1979a) e


outros autores que se seguiram, como Seeger (1980, 1981), demonstraram que entre os Jê-
Bororo o princípio de residência tem muito mais relevância dentro da organização social
do que qualquer noção de descendência, embora trabalhos posteriores tenham questionado
o abandono desta última categoria (Carneiro da Cunha, 1993 e Lea, 1993, por exemplo).
Autores como Seeger (1980, 1981) e Seeger, Da Matta & Viveiros de Castro (1987),
expandindo o foco para outros grupos indígenas, mostraram que a corporalidade tem
importância maior do que a noção de grupos corporados. No caso Javaé, a centralidade do
princípio de residência manifesta-se através das conseqüências da regra de residência pós-
marital uxorilocal, de modo muito parecido com o que Turner (1979a, 1979b, 1984)
descreve sobre a estrutura comum ao ciclo de vida dos Kayapó e dos Jê do Norte em geral.
Mas entre os Javaé a ênfase social está no avunculato e na ligação matrilinear com a casa
natal, como entre os Timbira orientais e os Bororo, gerando algumas peculiaridades. De
qualquer modo, o princípio de residência é indissociável das formulações a respeito da
corporalidade e decorre de uma conceitualização das relações sociais em termos de uma
lógica espacial.
O fluxo de substância entre os corpos, por meio do qual se estabelece a diferença
entre relações de parentesco ou de afinidade, identidade ou alteridade, é interpretado muito
mais em termos de deslocamento espacial (princípio de residência) do que em termos de
sucessão genealógica no tempo (princípio de descendência). A descendência é
desenfatizada não apenas porque os Javaé estão muito mais interessados na perenidade dos

547
corpos originais, mas também porque as relações de substância entre os corpos são vistas a
partir de um ponto de vista mais espacial do que temporal. Os parentes não são pensados
como sucessivas ramificações de uma mesma árvore genealógica ancestral, mas como
aqueles que moram juntos em um mesmo espaço, os co-residentes com os quais não se
troca substâncias férteis. Do mesmo modo, de um ponto de vista masculino, um afim
(esposa) não é o membro de uma outra linhagem de sangue, mas aquele que mora em um
outro espaço ou casa e com quem se mistura as substâncias corporais. Assim, a linguagem
das substâncias, aquela que define o contraste entre corpos fechados e abertos, pureza e
mistura, parentes e afins, não é genealógica, mas espacial.
A identidade com os aruanãs, o grande parâmetro para a definição do conceito de
parentesco, fundamenta-se principalmente na supressão da passagem do tempo. Se
lembrarmos do parentesco mágico que existe entre os aruanãs e seus parentes,
constataremos que a sua essência não é o pertencimento a uma linha genealógica especial,
mas a ausência de consubstancialidade em um lugar especial, que no começo de tudo era o
Fundo das Águas. A principal diferença entre o estado de parentesco mágico e aquele outro
onde todos são estranhos entre si, na Terra dos Ensangüentados, é o fato dos corpos
fechados e abertos estarem situados, respectivamente, em espaços opostos, uns no extremo
rio acima e os outros no extremo rio abaixo. A diferença entre corpos fechados e corpos
abertos, iguais e diferentes, não se dá em termos de diferentes origens genealógicas, mas
em termos de diferentes localizações (acima e abaixo) e constituições (fechado e aberto)
espaciais. Mesmo o surgimento da temporalidade é tratado como uma decorrência de uma
movimentação no espaço, pois o tempo só começou a fluir, junto com as substâncias,
depois que os humanos ascenderam do nível subaquático e começaram a procriar. É como
se privilegiar uma linguagem mais espacial (residência) do que temporal (descendência)
para expressar os diferentes estados dos corpos humanos, levando a uma espacialização da
socialidade, proporcionasse uma ferramenta a mais ao esforço coletivo de erradicar a
temporalidade e a alteridade e, com elas, a própria morte 26 .
Como já foi mostrado antes, é por meio de um deslocamento espacial pelo vale do
Araguaia que o herói Tanyxiwè deixa para trás um começo de semelhanças e repetições, no
extremo rio acima (cabeça), para chegar a um final de alteridades e transformações, no
extremo rio abaixo (pés). As transformações não são medidas através de uma escala

26
Em um artigo sobre a língua Karajá, Maia (2004:20) mostra a existência de um inusitado “sistema
direcional” e empático na gramática nativa, baseado em afixos que indicam tanto a posição espacial do
sujeito da fala como a capacidade de se colocar no lugar do outro.

548
temporal, como na concepção linear progressiva ocidental, mas através de parâmetros
espaciais: quanto mais se desloca no espaço em relação a um ponto de origem, maiores são
as transformações alcançadas pelo sujeito da ação. Onde não há ou são mínimos os
deslocamentos espaciais, como nos territórios dos aruanãs, não existem transformações;
onde os corpos se movimentam mais, como na Terra dos Ensangüentados em que os
mortos andam desesperadamente à procura de seus parentes, sem parar, os fluxos corporais
são intensos, indicando que os corpos transformam-se continuamente.
O contraste entre aruanãs e aõni, que também remete ao contraste entre identidade e
alteridade, tem um componente espacial, uma vez que os aruanãs cantam belas músicas e
dançam com movimentos regulares e espacialmente contidos, enquanto os aõni, que
emitem grunhidos ininteligíveis, movimentam-se muito mais, de forma desordenada e
agressiva pelo espaço, como já foi apontado por Pétesch (2000). Por fim, pode-se lembrar
da oposição entre o povo de Tòlòra, que permaneceu no mesmo lugar onde surgiu, atuando
pacificamente em prol do congelamento da tradição gerada em Marani Hãwa, e o povo
Wèrè, cujos deslocamentos espaciais constantes são associados a conquistas de novos bens
e costumes, ou seja, transformações da ordem anterior. No Céu, seus habitantes passam a
maior parte do dia sentados no korixà, o banco de madeira zoomorfo que era usado aqui
pelos iòlò e que sinaliza a ausência de movimentos. Assim, estatismo espacial (ou
sedentarismo) associa-se a pacifismo, repetição e masculinidade (Arawak), enquanto
movimentação espacial associa-se a beligerância, criatividade e feminilidade (Jê) 27 .
A principal mudança na vida de um homem, aquela que vai gerar as transformações
mais profundas, é o produto de um deslocamento espacial: a mudança que vai transformar
o seu corpo fechado e purificado, identificado com um aruanã, em um corpo aberto e desde
então mortal, ocorre quando ele deixa a residência natal, o “dentro” onde vive com os seus
parentes, e muda-se para a residência conjugal, o “fora” onde inicia a procriação. A
endogamia de aldeia parece ser a solução menos drástica em termos espaciais, conjugando
a necessidade de casar “fora” da casa natal ou da parentela próxima com a menor distância
espacial possível dos afins, evitando-se um grande distanciamento ou transformação da
situação original. Apesar de serem os homens que se mudam de lugar, são as mulheres, ou
melhor, as esposas, que são associadas à transformação, uma vez que foi por causa delas
que os homens abandonaram a vida mágica e se mudam da casa natal após o casamento.

27
Exemplos variados de como a passagem do tempo é interpretada em termos espaciais são encontrados em
Seeger (1981), Chernela (1988), Franchetto (1992) e Basso (2001).

549
Do mesmo modo, a principal transformação mítica, a passagem de um estado mágico para
um social e mortal, nos é apresentada pela mitologia em termos espaciais, ou seja, a subida
de baixo para cima, de um espaço fechado para um aberto, de dentro para fora.
É através de sua caminhada pelo rio que Tanyxiwè deixa a condição de corpo
fechado, no início do rio, para tornar-se um pai de corpo aberto quando chega ao fim, onde
se encontra com o filho já crescido. O meio do ciclo vital corresponde justamente ao
nascimento do primeiro filho, o que no mito é expresso através de uma linguagem espacial.
Os primeiros ancestrais sociais não são referidos como grupos de descendência, mas como
grupos de co-residentes que saíram juntos de um mesmo lugar, os iny òlòna, “lugares (na)
onde surgiram/saíram (òlò) os iny”. Também podem ser chamados de lahi òlòna (lugar de
saída das avós) ou labiè òlòna (lugar de saída dos avós). Veremos ao longo desta segunda
parte que a experiência que um homem vive na casa materna e, depois, na casa dos afins,
associa-se simbolicamente à experiência que os humanos não-sociais vivem,
respectivamente, nos extremos cosmológicos do rio acima, onde se é nutrido e se vive
entre os parentes, e do rio abaixo, onde se perde energia vital nutrindo os outros e onde
todos são estranhos. Por enquanto, vamos nos concentrar na casa natal, o “espaço do
parentesco” e da retenção energética.
Do ponto de vista de quem ainda não se casou e não procriou, ou seja, daquele que
ainda está identificado com os aruanãs, seja homem ou mulher, a casa natal é o espaço
onde se vive o mesmo tipo de experiência dos aruanãs em seus mundos de origem: não há
relações assimétricas entre devedores e credores, não se faz sexo com os co-residentes e
deles tem-se a expectativa de apenas receber os alimentos necessários à sobrevivência, em
especial dos genitores. Ou seja, como não se perde substâncias através do sexo e se é
apenas alimentado, é um espaço de acumulação energética, similar à autonutrição mágica
dos aruanãs e seus parentes. Em outras palavras, trata-se de relações entre parentes e
semelhantes, mas que vivem com os corpos separados no que se refere às trocas de
substância. Dentro de uma prática de endogamia de aldeia, assunto ao qual retornarei, a
casa natal é a unidade exogâmica mínima, devendo-se casar idealmente com uma prima
cruzada bilateral mais distante (3o ou 4o grau), residente em outra casa. Um irmão
classificatório próximo (1o ou 2o grau) não se torna “distante” ou casável porque é criado
longe, mas um genealogicamente distante torna-se um parceiro proibido se for criado junto
de Ego, em uma mesma casa. Ou seja, a distância espacial tem grande importância na
definição de quem é próximo ou distante em termos sociais.

550
Sy, a mesma palavra usada para designar a “família” ou os “parentes” em geral, tem
também o significado geral de “abrigo” (e não de “sangue”), podendo ser usada tanto como
“casa” (heto) ou “aldeia” (hãwa). A palavra wasyreny, “nossos parentes”, pode ser usada
no sentido de “nossa casa” ou “nossa aldeia”, embora wahawareny, “nossa
aldeia/território” seja mais adequado para se referir à aldeia propriamente dita. Ambas,
entretanto, têm o sentido geral de “lugar dos nossos parentes”. Wasy é tanto “meus
parentes” quanto “minha casa materna”, reforçando a conexão entre parentesco e co-
residência, assim como o clã Bororo (Crocker, 1979, 1985) não é feito de consangüíneos,
mas de co-residentes. As casas dos aruanãs em seus mundos de origem são chamadas de
aõni sy, “casa dos aõni”, lembrando que a categoria geral aõni engloba todos os seres
mágicos não-sociais. Heto também significa “casa”, mas em seu sentido meramente físico,
como em Hetohoky, o ritual da “Casa Grande”. Sy expressa com maior precisão a idéia de
que a casa materna é o espaço por excelência do parentesco, do ponto de vista de quem
ainda não se casou, a célula mínima dentro da qual os co-residentes devem ajudar-se
mutuamente, porém sem manter ligações de substância 28 .
Já foi relatado em maior detalhe antes (Rodrigues, 1993) que não se espera que os
jovens solteiros de ambos os sexos trabalhem para o próprio sustento ou de qualquer outra
pessoa antes do casamento/procriação, o que já foi registrado por vários autores entre os
Karajá 29 , em especial por Donahue (1982:157), que descreve esta como uma fase “idílica”
da vida Karajá. Antes do nascimento do primogênito, os jovens devem se concentrar,
sobretudo, no aprendizado e práticas relativas à vida ritual, em que os representantes das
classes de idade weryrybò e ijadoma são os principais participantes da Dança dos aruanãs.
Enquanto os jovens solteiros iniciados envolvem-se com as inúmeras tarefas associadas à
Casa dos Homens, seja na performance ritual propriamente dita ou apenas nas preparações
para os rituais, as jovens que já menstruaram dançam como irmãs rituais dos aruanãs e são
iniciadas pelas mulheres aparentadas mais velhas, em especial a avó materna, nas
habilidades relativas ao uso do algodão e outros materiais que possibilitam a confecção de
cobertores, esteiras, colares, artefatos rituais etc.

28
Toral (1992:57) traduz wasy como “meu lugar” ou “minha família” e interpreta a duplicidade de
significados como a “existência de grupos de descendência ou parentelas associados a locais determinados”,
ou seja, a aldeias específicas. Para Pétesch (2000:206), “wa sã”, é tanto “minha família”, “o núcleo de
consangüinidade pura”, quanto “a aldeia” (wa sã renã), a “extensão da unidade uxorilocal”.
29
Ehrenreich (1948), Lipkind (1948), Dietschy (1978), Bueno (1975, 1987), Fénelon Costa (1978), Toral
(1992), Lima Filho (1994).

551
É notável, entretanto, que em ambos os casos as tarefas descritas aqui
superficialmente não são consideradas como “trabalho” propriamente dito. O trabalho de
verdade é aquele associado à produção e preparação dos alimentos e começa somente
quando os jovens se casam e têm o primeiro filho. Até então, é dito que os jovens “não
trabalham” antes de se casar, assim como não devem ter relações sexuais. A grande
transição proporcionada pela procriação e tematizada pelo ritual do casamento, assunto a
ser retomado, é o abandono traumático, de um ponto de vista masculino, de um
estado/lugar em que se é nutrido para um estado/lugar em que se nutre os outros, seja na
condição de genitor ou de pagador de prestações matrimoniais. Ou de um lugar onde se é
um “semelhante”, porém de corpo separado, para um lugar onde se é um “diferente”, em
que os corpos se fundem através das trocas de substâncias entre marido e mulher.
Por essa razão, deve-se pagar aos afins pelo prazer que o corpo feminino
proporciona, instaurando as relações de reciprocidade assimétricas (entre credor e devedor)
entre os co-residentes. Nesse sentido, a identificação com a retenção energética dos
aruanãs não se refere apenas à ausência ideal de relações sexuais e filhos, mas também a
um estado em que se é nutrido permanentemente, ou seja, em que só se recebe alimento
dos semelhantes (parentes), sem a obrigação de produzi-lo para os outros (afins). Como os
aruanãs não precisam trabalhar onde moram, bastando desejar para que as comidas
apareçam magicamente, o trabalho físico que passou a existir no mundo social, de “fora”,
está associado aos conflitos e ao trabalho “para os outros” ou “por causa dos outros”:
trabalha-se para sustentar os filhos e, sobretudo, para pagar o serviço da noiva aos afins
depois que se fez sexo com as mulheres. Quando não havia outros, não era necessário
trabalhar, pois a nutrição era mágica e abundante, assim como no útero materno.
Parece então haver uma analogia simbólica entre exteriorizar substâncias,
produzindo um filho no corpo/casa de outros, e trabalhar para fora, produzindo alimentos
para outros corpos/casa, em um movimento de perdas energéticas de dentro para fora. De
modo oposto, o período anterior à procriação, de contenção das substâncias, ocorre
paralelamente à experiência de ser nutrido pelos parentes, em um movimento de ganhos
energéticos de fora para dentro. A casa natal é construída, portanto, como o espaço do
parentesco por ser o espaço da retenção energética – um corpo fechado simbólico –, assim
como ocorre no extremo rio acima, onde seus habitantes se nutrem magicamente e não
mantêm relações sexuais ou de dívidas entre si. Para um dono de aruanã do sexo
masculino, principalmente, a residência natal representa idealmente a auto-suficiência e a

552
ausência de conflitos do mundo xiburè, pois em ambos os lugares apenas se recebe ou se
retém energia vital sem qualquer esforço físico considerável ou mistura energética.
Segue-se então que a identificação com os aruanãs, que para os homens coincide
com o período em que moram na casa natal como membros uterinos, não é apenas uma
identidade com os corpos fechados, mas também com um lugar que propicia esse estado
de não consubstancialidade. É importante sempre lembrar que o discurso mitológico e
cosmológico que associa o contraste entre residência natal e residência conjugal a rio
acima e rio abaixo “fala” de um ponto de vista masculino, para quem as mulheres são o
Outro de corpo aberto e para quem a ruptura que a procriação promove, dentro de um
contexto uxorilocal, é muito mais dramática. Ao longo desta segunda parte, veremos os
pesos diferenciados da relação do homem com a casa natal e a casa dos afins, o grande
eixo espacial e social por onde se move ao longo de sua vida.
A casa natal é conhecida como a “casa da mãe” (nadi heto), à qual as pessoas estão
ligadas social e afetivamente por um vínculo matrilinear, ao modo Bororo (Crocker, 1979)
e Timbira (Melatti, 1979, Da Matta, 1976, 1979), que é definido muito mais em termos de
residência do que descendência. Para os Bororo (Crocker, 1979:271), assim como para os
Javaé, assunto do Capítulo 10, as mulheres mais velhas são as “donas” da casa. A ênfase
no princípio de residência, como ocorre entre os Jê-Bororo como um todo, manifesta-se
principalmente por meio da regra de pertencimento matrilinear às metades cerimoniais e da
grande relevância do papel social do tio materno. É a filiação uterina à casa natal que
garante, entre outras coisas, o direito de pertencimento a uma aldeia. De um ponto de vista
masculino, a residência natal, enquanto um corpo fechado simbólico, é associada à figura
da mãe, à parentela matrilateral próxima e aos aruanãs, em oposição à residência conjugal,
associado à esposa, aos afins, à abertura dos corpos e, portanto, aos aõni.
Uma pessoa refere-se a qualquer um dos seus siblings e irmãos classificatórios (de
preferência os mais próximos), pelo termo wasèrikòrè, “filho (rikòrè) da minha (wa) mãe
(sè)”. Apesar de uma teoria da concepção bilateral e embora o pai seja aquele que “faz o
filho”, o doador da matéria corporal, os irmãos em geral são concebidos como ligados ao
grupo materno, a referência de parentesco mais importante e que é constituído mais em
termos de residência do que descendência. Os worosy da Marani Hãwa subaquática –
todos parentes entre si – dirigem-se uns aos outros usando o termo wasèrikòrè, que tem o
sentido geral de “irmão/irmã”. É como se o lugar onde se foi criado e nutrido (o útero
materno, o Fundo das Águas ou a casa natal) fosse mais importante na definição do vínculo

553
de parentesco do que a substância de que se é feito, pois o deslocamento desta última
implica na abertura dos corpos e sua transformação. E de fato, como continuaremos a ver,
de forma coerente com o que vem sendo dito até aqui, a construção dos laços de parentesco
depende muito mais da relação social entre o genitor e o tio materno de uma criança do que
dos vínculos de substância em si.
Diversas outras práticas e conceitos reforçam a existência de uma ideologia uterina,
em que a casa materna é considerada pelos homens adultos como um refúgio seguro em
situações de tensão, o lugar onde pode guardar as suas coisas “mais íntimas”. O pai tem
importância fundamental devido à sua condição de doador de substância e pagador do
serviço da noiva, aquele que produz os alimentos que circulam pela aldeia. Mas veremos
que o papel de genitor tem menor valor social quando comparado ao do tio materno, por
estar associado à abertura dos corpos na casa de estranhos e à obrigação de pagar uma
dívida e nutrir os outros. Desse modo, o vínculo socialmente mais valorizado é aquele com
os parentes matrilaterais, com os quais também se tem forte vínculo afetivo, em especial a
mãe, a avó materna e o tio materno, este último associado ao fechamento ritual dos corpos
dos donos de aruanã. Entre os Javaé ainda há o costume de se entregar o primeiro filho de
um casal – o filho mais importante e figura simbólica central da sociedade Javaé – para a
sua avó materna legítima, que se responsabiliza por sua criação e educação, feita através de
aconselhamento diário, pelo fato dos pais serem ainda inexperientes.
Quando um homem comete alguma infração ritual que gera uma punição mortal do
xamã, por feitiçaria, contra algum membro de sua família, é comum a esposa do infrator
percorrer as casas de todos os xamãs e dizer a eles que podem matar o marido, pedindo ao
mesmo tempo que poupem os seus filhos, pois o laço entre mãe e filhos tem peso muito
superior do que qualquer relação de afinidade. A “mãe do morto” (warabusè) é a principal
figura durante o luto, considerada como a “dona” legítima do morto, a quem cabe cortar o
próprio cabelo para avisar aos outros sobre o fim do luto de casa em casa. É ela quem tem
o direito de decidir quando será o fim do luto e é para ela, no dia em que o luto termina,
que dois membros da Casa dos Homens entregam formalmente os dois artefatos de
madeira (hitxèkò) que representam o morto e que serão levados para o túmulo pelos
cunhados do morto, assunto a ser retomado.
Antigamente praticava-se o sororato, cabendo a um homem viúvo casar-se com
uma irmã solteira da esposa falecida, costume esse que tinha o objetivo declarado de
manter os filhos junto ao grupo materno. Isso ocorria quando o cunhado era um homem

554
honrado (inytyhy), capaz de se sacrificar pelos filhos. Os Javaé lembram de casos de
mulheres ainda vivas que relutaram em assumir o lugar da irmã falecida, mas que foram
coagidas pelo grupo a fazê-lo. Em caso de não haver uma irmã para se casar, o homem
simplesmente saía da casa de sua sogra, deixando com ela os filhos, e voltava para a sua
casa natal, regra que não se aplica aos homens já velhos, que se tornaram os sogros de
outros homens. Na hipótese de um homem jovem casado morrer, os filhos devem
permanecer junto à mãe e à avó materna. Esta última tradicionalmente é incumbida da
criação dos netos caso tanto o pai como a mãe tenham falecido. Como já disse Lévi-Strauss
(1991:95) a respeito da matrilinearidade Bororo, “o filho não pertence ao grupo do pai,
pertence ao grupo de seus aliados por casamento”.
Os que perderam a mãe podem ser criados pela avó paterna, opção possível quando
não há uma avó materna ou um parente matrilateral que assuma os órfãos. Quando alguém
perde a mãe e continua morando com a avó materna, o caso mais comum, a avó tem o
direito de buscar na roça o que o pai das crianças plantou naquele ano, não o fazendo mais
a partir do ano seguinte. O jovem viúvo pode visitar os filhos na casa da mãe da esposa
falecida e, eventualmente, chamá-los para comer com ele na casa de sua mãe. Mas em
geral é a avó paterna quem busca os netos para o convívio com o pai, pois os viúvos
recentes de ambos os sexos devem evitar freqüentar a casa de origem dos cônjuges
falecidos e, assim, evitar o sofrimento pela perda. Os órfãos de mãe ou pai chamam-se
wytè e aqueles que perderam os dois genitores são conhecidos como wytèrajuxu. De forma
significativa, tanto a viúva quanto o viúvo são chamados de wytèsè, “mãe do órfão”, não
sendo utilizado o correlato wytètyby (“pai do órfão”). E aquele que perde o cônjuge,
mesmo sem ter tido filhos, também é chamado de wytèsè.
Quando um casal se separa, o que antes era evitado com mais vigor pelas parentelas
envolvidas, mantém-se a ligação dos filhos do casal com a casa materna. A mãe tem o
direito não só de criar os filhos, como também de ficar com qualquer bem familiar que
tenha sido produzido ou adquirido através do trabalho do marido, como as roças, canoas, a
casa ou, atualmente, os bens industrializados, como rádios, televisões, panelas etc. Tudo
isso é considerado prestação matrimonial, pertencendo a ela em caso de separação.
Entretanto, quando a separação se dá por causa da infidelidade feminina, a mulher perde o
direito aos bens, que eram dados pelo marido em troca de exclusividade sexual, mas não
aos filhos. Entretanto, alguns dizem que, nesses casos, o homem tem o direito de levar os
filhos para a casa de sua mãe, como foi mencionado pelos Karajá a Bueno (1975, 1987). E

555
se o marido ainda assim quiser permanecer com a esposa, ele tem o direito de bater nela
com o consentimento de todos. O modo socialmente aprovado de uma mulher abandonar
um marido preguiçoso é fazer os enfeites rituais masculinos, entregá-los aos pais do
marido e dizer a ele que ela não recebia nada em troca. Então ele deixava com ela os
artefatos e voltava para a casa de sua mãe ou irmã. Bueno (1975) menciona que, em caso
de insatisfação com o casamento, a mulher Karajá devolve a cesta de seu marido para a
sogra. Nos casamentos entre mulheres Javaé e homens não-índios, é comum haver
conflitos na hora da separação, pois os Javaé consideram como direito exclusivamente
feminino aquilo que os ex-maridos querem partilhar.
Como será visto em maior detalhe à frente, uma criança ganha vários nomes logo
depois de nascer, por parte dos parentes matrilaterais e patrilaterais, tendo o primogênito
de um casal o direito de herdar o nome principal de um dos avós verdadeiros, dependendo
do seu sexo. Embora os genitores não dêem os nomes, em geral é a mãe que escolhe o
nome principal da pessoa – aquele com o qual ela será conhecida por todos – entre os
vários nomes recebidos. Um levantamento estatístico feito com 134 nomes de
primogênitos, incluindo todos os primogênitos das aldeias Canoanã e Barreira Branca,
mostra que há uma preferência maior por nomes matrilaterais, que se acentua no caso dos
primogênitos do sexo masculino. Em praticamente 70% dos casos, a grande maioria, um
homem primogênito é conhecido por um nome principal de origem matrilateral. Por ora,
basta evidenciar que o fato de um homem mudar de casa ao se casar e ser conhecido
publicamente por um nome de origem matrilateral, entre os vários nomes que possui,
incluindo nomes patrilaterais, parece ter aqui o significado de reforçar a sua ligação com a
casa natal, o que não se torna tão necessário no caso feminino pelo fato das mulheres não
mudarem de casa.
Os ancestrais de alguém são referidos como os seus lahina, palavra que contém um
componente espacial, ao invés de genealógico, expresso através do sufixo na. Literalmente
falando, lahina significa “o lugar (na) da avó (lahi)”, indicando que os ancestrais não são
um grupo de quem se descende pela via matrilinear, mas um grupo de pessoas que se
define pela co-residência em um determinado espaço, associado principalmente à figura
das avós ancestrais. Mais do que as mães, as avós maternas são o ponto maior de referência
da casa natal, as grandes conselheiras e principal autoridade do grupo doméstico, assunto
ao qual retornarei. Quando um casal tem um filho, diz-se que o lahina de uma família
misturou-se com o lahina de outra, como em “iny lahinareny (nosso lahina) rakurira

556
(misturou-se)”. A mistura de substâncias é traduzida através de uma linguagem
essencialmente espacial, como se fosse uma mistura dos diversos lugares de origem dos
antepassados, que podem ser os Wèrè, os Kuratanikèhè, os Karajá, os Kayapó etc.
Também existe a palavra labièna, “o lugar (na) do avô (labiè)”, com o sentido de ancestral,
mas é uma palavra pouco usada, pois o mais correto, dizem os Javaé, é a palavra lahina. O
local de origem mítica dos Karajá é chamado de Inysèdyna, traduzido por Toral (1999:107)
como “local de onde veio a mãe da gente”.
As conexões genealógicas de cada pessoa com os outros membros do grupo, vivos
ou mortos, e com os ancestrais míticos, o que normalmente se dá a partir de 6 gerações no
passado, são uma forma de saber chamada lahi òraru, que significa literalmente “a coxa
(raru) da face (ò) das avós (lahi)” ou, metaforicamente, “a raiz, começo ou origem das
avós”. Nessa expressão, as genealogias que se conectam ao começo de tudo também são
pensadas em termos de uma metáfora corporal e espacial: não se referem a um começo no
tempo, mas a um começo em um lugar definido, associado às avós maternas, como a raiz
de uma planta que surge de dentro da terra para fora. Como já foi mencionado, este é um
conhecimento associado às mulheres mais velhas e sábias, de uso valioso durante os
xingamentos e choros rituais. Quando alguém de fora e desconhecido chega a uma aldeia,
como um Javaé em uma aldeia Karajá, o primeiro interesse dos hóspedes é mapear as
possíveis redes de parentesco e, assim, situar com precisão o visitante dentro desse mapa
que abrange o presente e o passado. Nos casos de disputas entre diferentes facções
políticas sobre o direito de chefia da aldeia, caso típico de Canoanã, onde se aglomeraram
os remanescentes de várias aldeias, busca-se esse conhecimento junto às mulheres
aparentadas como forma de legitimar as pretensões políticas.
Apesar da preponderância cultural do princípio de residência, as questões como
origem ancestral, identidade étnica, direito de chefia política (assunto a ser tratado mais à
frente) ou pertencimento a uma determinada aldeia são passíveis de manipulação conforme
o interesse da comunidade ou daquele que fala. Desse modo, o apelo à descendência, ou
seja, o argumento de que o pai é que fornece a substância do corpo do filho – e por isso a
influência paterna seria mais forte do que o lugar de nascimento, associado à mãe – pode e
é invocado para justificar situações mais cômodas do ponto de vista político ou social. No
caso da ancestralidade, por exemplo, definida em termos espaciais, com os conceitos de
lahina ou lahi òraru, não há uma rigidez na aplicação de princípios explicativos. Admite-
se que todos os Javaé são descendentes de povos diversos, incluindo os estrangeiros dos

557
quais se tem vergonha de descender. Mas é um padrão geral se enfatizar apenas aqueles
dos quais se têm orgulho, como os Wèrè, o povo de Tòlòra ou mesmo os Wou (Tapirapé).
Assim, uma pessoa cujo pai descende dos Wèrè, mas que tem antepassados de
procedências diversas tanto por parte do pai como da mãe, pode se autodefinir como
Wèrèrikòkòrè, “neto/descendente (rikòkòrè) dos Wèrè”, recorrendo simplesmente ao
argumento de que o lado paterno é “mais forte”.
No caso do direito de morar em uma aldeia/território (hãwa), ou seja, o direito de
pertencimento a um lugar, os dois princípios podem ser utilizados, embora o princípio de
residência ou local de nascimento, com seu viés matrilateral, tenha prevalência. Em geral,
diz-se que o lugar de direito de uma pessoa é aquele onde foi enterrada a placenta (saa)
que cobria o seu corpo ao nascer, o que tradicionalmente é feito dentro da casa materna,
logo depois do nascimento, no mesmo lugar onde a criança nasceu, como tive a
oportunidade de assistir em Canoanã, em 1997. Esse direito é referido pelas expressões
wasaabòròna, literalmente “o lugar (na) das costas (bòrò) na minha placenta (wasaa)”, que
metaforicamente é “o lugar onde se enterrou ou tampou a minha placenta”; e
warudejurana, “o lugar de onde saí ou fui criado”. Pessoas que nascem casualmente em
uma aldeia, quando sua mãe estava de passagem por lá, têm o direito de morar e viver no
lugar.
O nascimento é o critério mais importante e o fato de alguém ter morado muito
tempo em um lugar também pode lhe garantir esse direito, embora quem não tenha nascido
na aldeia e não tenha laços fortes de parentesco sempre corra o risco de ser mandado
embora em momentos de conflito. Por outro lado, também é reconhecido que a parentela e
todos os descendentes do fundador de uma aldeia – o primeiro que chegou ao lugar – têm
pleno direito de pertencimento. A esposa do fundador de uma aldeia também pode
transmitir aos seus parentes o direito de morar no lugar, o que é considerado parte do
tykòwy – pagamento pela vagina – a que ela têm direito. Desse modo, mesmo sendo
considerado o princípio de descendência, que garante aos descendentes de um casal o
direito em questão, este não está totalmente desvinculado do princípio de residência.
Afinal, não basta descender de um homem ou mulher qualquer, mas apenas daqueles que
deixaram sua marca no lugar na condição de “primeiros”.
Segundo Donahue (1982), aquele que não nasceu em uma aldeia sempre será
considerado um estranho entre os Karajá, que teriam grande apego afetivo ao lugar.
Entretanto, o autor considera que o apego é muito mais ao grupo de parentes do que a um

558
lugar específico, o que parece estar relacionado à grande mobilidade das aldeias Karajá.
No caso dos Javaé, não se pode dizer o mesmo, uma vez que há uma relação afetiva, sim,
com o lugar onde se nasceu e onde estão enterrados os antepassados mais distantes e os
parentes mais próximos, mesmo que não esteja mais habitado. É o caso das grandes aldeias
antigas e seus cemitérios, como Marani Hãwa e Wariwari, por exemplo, espaços
considerados como sagrados e com os quais seus antigos moradores têm uma relação de
nostalgia, respeito, proteção e o desejo de lá habitar novamente.
A decisão sobre a identidade étnica de alguém parece envolver uma maior
flexibilidade, uma fluidez que vai depender das conveniências políticas e sociais. Aqueles
que são ikurinyky (“misturados”), produto recente de uma união entre membros de grupos
étnicos diferentes, podem apelar para os dois princípios, separadamente, ou mesmo ter as
duas identidades. Se uma mulher Javaé se casa com um homem Karajá, pode-se dizer que
é o homem que faz o filho e, por isso, ele é Karajá. Mas se o filho nasceu em uma aldeia
Javaé, pode-se dizer que ele é Javaé ou mesmo que ele é as duas coisas, Karajá e Javaé. O
mesmo vale para a situação inversa. Em situações de conflitos, as pessoas que são
“misturadas” com Karajá, mas que se consideram Javaé, podem ser xingadas pelos outros
de Karajá. A criança que é filha de um pai estrangeiro é conhecida, pejorativamente, como
Toririkòrè (“filho de branco”), Karajarikòrè (“filho de Karajá”) ou ixyjurikòrè (“filho de
estrangeiro”). Mas ela pode ser considerada Javaé se tiver nascido em aldeia Javaé ou se
tiver parentes Javaé do lado paterno, por exemplo 30 .
Recentemente, nos últimos dez anos, têm havido um aumento considerável das
uniões entre não-índios e Javaé, até então raras, principalmente na aldeia “misturada”
Txuiri. Como já havia sido registrado por Bonilla (1997, 2000), a maioria dos casos se dá
entre homens brancos e mulheres Javaé, o que os Javaé em geral vêem com desaprovação e
desconfiança. Argumenta-se que os não-índios estão interessados em ter acesso às
pastagens naturais e lagos da Ilha do Bananal para as atividades de agropecuária ou
pescaria, ou então para ter direito ao mesmo atendimento médico que é garantido aos

30
Nas uniões entre homens Tuxá e mulheres Javaé ou Karajá, acontecidas em Canoanã, é reconhecido o
direito de pertencimento à aldeia e à etnia Javaé ou Karajá aos filhos dessas uniões, valendo o princípio de
residência. Não há descendentes de uniões entre mulheres Tuxá e homens Javaé. Isso ocorre apesar dos Javaé
em geral sentirem-se incomodados com a presença dos Tuxá e seus descendentes “misturados” e invocarem a
sua condição de estrangeiros nos momentos de tensão. No caso dos filhos da união entre uma mulher Avá-
Canoeiro e diferentes pais Javaé, estes são bastante discriminados pela sua condição de filhos de Avá-
Canoeiro, antigos inimigos Javaé, mas têm reconhecido o direito de morar na aldeia em que nasceram e, se
esta for a sua opção, de serem consideradas como Javaé. Não há descendentes de uniões entre homens Avá-
Canoeiro e mulheres Javaé.

559
índios pelos órgãos públicos. Assim, em 2003, em uma reunião com representantes de
várias aldeias, realizada na aldeia Txuiri, na qual não estive presente, decidiu-se que, a
partir de então, apenas os filhos de homem Javaé com mulher branca teriam direito aos
bens da comunidade. E que os filhos de homem branco e mulher Javaé, o caso mais
comum, seriam excluídos. Nesse caso, aplicou-se o critério de descendência por ser o mais
vantajoso politicamente no momento 31 .
Entretanto, mesmo se falando em critério de residência ou de descendência, como
se fossem princípios independentes ou opostos entre si, é importante salientar, como já foi
dito, que o fluxo de substâncias entre os corpos – isso que chamamos de descendência e
que é associado à passagem do tempo – não é abstraído de uma lógica espacial pelos Javaé.
Afinal, o processo de fabricação dos corpos, aquilo que dá início às sucessivas gerações, é
concebido, antes de tudo, como o produto de uma mudança de lugar, que pode ser a
ascensão ao nível terrestre ou o deslocamento para a casa dos afins. O fluxo de substâncias
entre uma geração e outra – a produção de novos corpos – ocorre paralelamente e em
função do deslocamento espacial do pai, o doador de substâncias, da sua casa natal para a
sua casa dos afins.
Em última instância, o princípio de descendência não suprime ou se opõe ao de
residência, mas apenas se aglutina a um eixo espacial-corporal, pois a existência ou não de
relações de substância é uma decorrência de uma movimentação no espaço. Desse modo, o
contraste significativo aqui não é entre residência e descendência, mas entre ausência de
relações de substância e temporalidade, produto do estatismo espacial, e conexões de
substância entre corpos, através do tempo, produtos de uma movimentação espacial. Em
outras palavras, entre identidade e alteridade, que se manifesta através da oposição
espacial-corporal entre corpos fechados e iguais na casa ou lugar de origem (rio acima) e
corpos que se misturam e se tornam diferentes na casa ou espaço dos outros (rio abaixo).
Por fim, pode-se dizer que a aparente contradição entre uma concepção bilateral a
cerca do parentesco e uma ideologia matrilinear, como ocorre no clássico exemplo Bororo
(Crocker, 1979, 1985), dissolve-se quando se tem em mente que a matrilinearidade aqui
não diz respeito a relações de descendência propriamente ditas, mas a uma identidade com
um lugar/corpo de origem mágico, associado simbolicamente à primogenitura e à casa
natal, onde não há qualquer tipo de relação substancial entre as pessoas. Os genitores

31
Por outro lado, segundo Bonilla (1997:91, 2000), na aldeia Txuiri havia então um certo interesse político e
econômico dos pais Javaé e de suas filhas em casamentos com brancos: com isso, poderiam tanto “aprender
as coisas dos brancos” como ter um genro “que trabalha mais e ganha dinheiro”.

560
fornecem o corpo aberto do filho através da descendência bilateral, mas é o tio materno
quem irá fechá-lo ritualmente, daí a valorização das ligações matrilineares 32 .

7.5. O tio materno e as metades cerimoniais

A importância do princípio de residência e da ligação matrilateral com a casa natal


manifesta-se na filiação às metades rituais Hiretu e Saura, assunto que não se esgota neste
item. Assim como ocorre entre os Jê-Bororo e foi claramente demonstrado por Turner
(1979a, 1984), o princípio de recrutamento às metades é em si revelador da unidade social
valorizada, que pode ser a relação de parentesco de um homem com os filhos de sua irmã
(de uma perspectiva masculina), como entre os Timbira orientais; ou como entre os Suyá
(Seeger, 1981) e Kayapó, por exemplo, no outro extremo, em que a unidade social
32
Como já foi dito, Pétesch (2000) – dando continuidade a Lipkind (1948) e Dietschy (1977, 1978) – mostra
em maior profundidade que os vizinhos Karajá adotam um princípio patrilinear na esfera pública e um
matrilinear na esfera doméstica e residencial. A autora (2000:227) argumenta que o contato afetou mais o
“edifício patrilinear”, em razão do “empobrecimento” do patrimônio cultural associado às metades rituais,
aos bens e cargos hereditários, do que as unidades uxorilocais matrilineares, que ainda se mantêm.
Paradoxalmente, o princípio patrilinear é descrito com mais detalhes nas etnografias sobre os Karajá do que o
matrilinear. Quanto a este último, Ehrenreich (1948:60), o primeiro etnógrafo dos Karajá, propôs que “a
família dos Karajá” parece ser “família maternal”, por algumas razões: “o homem casado não come em
companhia de sua família, mas com a família da irmã casada. De acordo com isso, é, pois, considerado como
pessoa pertencente à família da irmã; na distribuição da presa de caça, também não recebe o seu quinhão na
própria casa, mas na casa da irmã; os filhos do viúvo entregam-se aos cuidados dos sogros, enquanto o viúvo
volta ao grupo dos solteirões”. Krause (1940a:221) notava com ênfase que “as saudades de sua mãe” (grifo
do autor) foram a principal razão de Kurixi ter voltado a morar na aldeia depois de uma experiência agradável
nas cidades do Rio e São Paulo. Disse também que “os órfãos são criados e sustentados pelo irmão da mãe”
(Krause, 1943a:200), e que “também sob ponto de vista jurídico os pais, sobretudo a mãe, conservam poder
sobre os filhos adultos” e os “adultos observam, à risca, os conselhos maternos” (1943a:203). Lipkind
(1948:186) disse que “a estrutura de parentesco deve ser descrita como dupla descendência. Ambas as linhas
são importantes, com maior ênfase na linha da mãe, e as duas linhas servem a diferentes funções.
Pertencimento à aldeia, adoção e os laços afetivos mais próximos são reconhecidos pela linha da mãe”.
Dietschy (1977, 1978:77) também fala de “dupla descendência” ou “filiação por sexo”, entendida como
filiação patrilinear aos grupos rituais, filiação matrilinear à residência matrilocal e uma maior predominância
da linha materna na vida diária. Fénelon Costa (1978) registrou que os órfãos Karajá tendem a ficar com a
família materna. Bueno (1975:57) descreve que “os laços afetivos que ligam a criança ao pai são bem menos
consistentes e duradouros do que em relação à mãe” e enfatiza que, nas histórias de vida que recolheu, era
um tema recorrente a preocupação de um homem com a reação e o sofrimento de sua mãe quando pensava
em abandonar a aldeia. Donahue (1982) não menciona nenhuma ideologia uterina, mas reconhece que os
laços entre irmãs mantêm os grupos domésticos unidos. Sem entrar em maiores detalhes, Toral (1992:102)
diz que as casas da aldeia são “uma área matrilinearmente definida” e descreve a importância do tio materno
na versão menor do ritual de iniciação feita com os latèni, e dos parentes maternos durante o encerramento
do luto. Lima Filho (1994:134) refere-se à “casa da mãe” como o principal ponto de referência de um homem
nas crises conjugais, além de ressaltar a forte ligação afetiva dos rapazes e homens casados com suas mães.
Pétesch (2000:164), por fim, descreve a importância de parentes matrilaterais nos rituais, e em especial do tio
materno, que ocuparia o papel de “mediador” entre o espaço doméstico e o ritual, o que é repetido por Schiel
(2005).

561
valorizada são as relações de afinidade entre um homem e os pais de sua esposa, de modo
que se enfatiza “a descontinuidade das ligações dos homens aos seus grupos domésticos
natais e sua ligação com os grupos domésticos de suas esposas” (Turner, 1984:348). Em
outras palavras, a estrutura das metades cerimoniais projeta, em um nível comunitário mais
amplo, os mesmos princípios de organização social que são priorizados no nível
doméstico, constituído de modo geral, entre os Jê-Bororo, pela família extensa uxorilocal,
ainda que com ênfases diferentes. O mesmo vale para o caso Javaé.
Como já foi apresentado, no Fundo das Águas, a origem dos humanos sociais, a
unidade familiar de cada território de aruanã subaquático é composta de um tio materno (a
dupla de mascarados da classe de seres chamada latèni) e seus sobrinhos uterinos (o aruanã
e sua irmã mágica). E assim como os Timbira orientais e os Bororo, embora em uma
dimensão invisível, os aruanãs-sobrinhos têm o mesmo nome que seus tios maternos.
Diferentemente dos seus vizinhos Karajá, que adotariam o critério patrilinear de filiação
aos grupos cerimoniais, as crianças Javaé de ambos os sexos pertencem automaticamente,
desde que nascem, à mesma metade cerimonial de suas mães e tios maternos. Tal distinção
significativa não foi levada em consideração por Toral (1992:132), que atribuiu
equivocadamente aos Javaé o mesmo princípio patrilinear encontrado entre os Karajá,
considerado como “reminiscências de um sistema clânico” exogâmico.
Dietschy (1977, 1978) encontrou apenas três ijoi na década de 50, mas Toral fala da
existência de mais de dez subgrupos rituais patrilineares (ijoi) entre os Karajá, dos quais
apenas seis, referidos também por Pétesch (2000), ou sete, segundo Lima Filho (1994),
teriam sido operantes no ritual de iniciação no passado. Tais subgrupos seriam englobados,
em uma aldeia, por duas metades cerimoniais patrilineares (ainda existentes e sobre as
quais os três últimos etnógrafos são unânimes): os ibòkò mahãdu (o grupo de cima),
associados à Casa Grande, e os iraru mahãdu (o grupo de baixo), associados à Casa
Pequena. No ritual de iniciação existiria também um “grupo do meio” (Mahãdu Mahãdu)
de grande prestígio, já mencionado. A esta divisão interna sobrepõe-se uma outra divisão
quando os moradores de outras aldeias chegam para participar do ritual de iniciação: os
homens da aldeia que os hospeda passam a ser associados como um todo ao grupo de cima,
enquanto os homens das aldeias visitantes passam a ser associados ao grupo de baixo. Os
dois grandes grupos patrilineares se confrontam ao redor do grande mastro de madeira
chamado tòò, um enorme “símbolo fálico”, segundo Souza Filho (1987b:53), ocasião em
que os hóspedes tentam manter o mastro em pé e os visitantes tentam derrubá-lo. A relação

562
de antagonismo explícita opõe hóspedes e visitantes, respectivamente associados a rio
acima e rio abaixo, identidade e alteridade 33 .
Os Javaé, por sua vez, possuem apenas duas únicas metades cerimoniais
matrilineares (ijoi), embora também associadas ao rio acima (ibòkò) e ao rio abaixo
(iraru), e um grupo do meio (os Saurahaky), de grande prestígio, constituído por alguns
dos worosy convidados durante o ritual de iniciação. O Hetohoky Javaé não se utilizada do
mastro tòò e não dramatiza a rivalidade entre aldeias, que nunca existiu, segundo a
memória nativa. A rivalidade ritual ocorre apenas entre os membros das metades de uma
mesma aldeia. Atualmente, em razão da interrupção histórica da realização do ritual da
Casa Grande, é comum que os Javaé de outras aldeias desloquem-se para assisti-lo, pois é
considerado um grande evento, mas isso não está associado a nenhuma disputa entre
aldeias. Há uma série de outras diferenças significativas em relação ao Hetohoky Karajá,
incluindo cerimônias específicas que existem entre os Javaé e não entre os Karajá, e vice-
versa, mas que não serão objeto de análise aqui. Tanto Lima Filho (1994) quanto Pétesch
(2000) dizem que os Karajá consideram o Hetohoky Javaé como o ritual de iniciação
masculina original ou verdadeiro.
No mito apresentado no início deste trabalho, as metades cerimoniais surgiram
associadas às desavenças e lutas corporais (ijèsu) entre os irmãos de Ijanakatu e os irmãos
de Nabio, o que incluía homens e mulheres. Os irmãos de Nabio tomaram a iniciativa de
humilhar o avô dos Ijanakatu, que reagiram e venceram as lutas, apesar de serem menores
em tamanho. Os vencedores são os fundadores da metade cerimonial Saura (macaco-
prego), na qual até hoje existiriam mais membros, dizem os Javaé, porque os Ijanakatu
mataram os irmãos de Nabio, fundadores da metade Hiretu (gavião carcará). E por isso,
também, as músicas dos Saura são muito mais alegres que as músicas dos Hiretu,
consideradas tristes. Como já foi dito, durante os rituais em que as metades participam, os
Saura são sempre associados ao rio acima e os Hiretu ao rio abaixo.
No “jogo pequeno” chamado Wyhyraheto, as metades cerimoniais são identificadas
por uma pena de arara colocada na ponta de uma vara de bambu, cabendo sempre a de cor
azul aos Saura e a de cor vermelha aos Hiretu. A cor azul é associada ao masculino e a cor
vermelha ao feminino na dupla de aruanãs, o que coincide com as cores das metades,
reforçando-se a conexão entre rio acima e masculino (Saura), rio abaixo e feminino
(Hiretu). São os precursores dos Hiretu que tomam a iniciativa da ação e do conflito,

33
Ver Fénelon Costa (1978), Donahue (1982), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

563
enquanto os precursores dos Saura reagem restaurando a ordem, estabelecendo-se a mesma
relação entre masculino e feminino ou estrutura e desordem já apontada em outros
episódios míticos.
A filiação às metades não é transmitida através de nomes rituais, em cerimônias
públicas, como entre os Timbira, Suyá e Bororo, mas segue o mesmo princípio matrilinear
que vincula uma pessoa à sua casa natal e se manifesta publicamente através da ligação
cerimonial entre uma criança (ou adolescente) e o irmão de sua mãe em vários momentos
diferentes.

Foto n° 9: Jogo Wyhyraheto (aldeia Canoanã, 1997)

564
Os “tios maternos” (lana) reais e classificatórios têm um forte vínculo ritual com os
“filhos de ambos os sexos das irmãs” (ra) reais e classificatórias próximas, em especial o
irmão real da mãe (lana tyhy), durante várias das situações em que se exige a atuação das
metades cerimoniais. Assim como o tio materno Bororo (de preferência o primogênito)
transmite seu nome para qualquer sobrinho uterino, independentemente do sexo, o tio
materno Javaé liga-se ritualmente a qualquer dos filhos de suas irmãs, independentemente
do seu sexo. Além disso, há cerimônias públicas em que a relação entre uma pessoa e o
irmão de sua mãe é colocada em evidência sem estar associada à participação das metades
rituais.
O tio materno de alguém pode já não morar na mesma casa de origem, mas esse
vínculo ritual dura exatamente o período em que o sobrinho uterino ainda não casou e
procriou, o que corresponde ao mesmo período em que este último está identificado com a
casa natal e com o aruanã que recebeu ou herdou. Em outras palavras, do ponto de vista de
um sobrinho uterino do sexo masculino, o vínculo ritual com o seu tio materno
corresponde ao período em que ainda mora na casa materna, assim como ocorre entre os
Timbira orientais ou Bororo 34 , que estão identificados com o nome ritual recebido do
irmão de sua mãe enquanto habitam a casa natal. Quando um homem se casa e muda para a
casa de seus afins, ele perde o vínculo ritual com o seu tio materno (ou o nome, no caso
Timbira e Bororo), mas o mantém com os filhos ainda não casados de suas próprias irmãs
reais e classificatórias, perpetuando o mesmo ciclo.
Embora a temática geral dos jogos da Dança dos Aruanãs seja a oposição entre os
sexos (Rodrigues, 1993), assim como os jogos rituais alto-xinguanos (Agostinho, 1974,
Gregor, 1985), em alguns dos jogos opera-se a divisão entre metades rituais, como nos de
nome Iwodudu (nome de um bolo de mandioca recheado com peixe), Wyhy Raheto (“cocar
da flecha”), Kuladu Biditò (“criança que come mel”) ou Kuladu Iwodudu (“bolo de
mandioca com peixe das crianças”). Em algum dos jogos é requerida a participação do tio
materno, como no Tudu (“mel”), Kuladu Biditò e Kuladu Iwodudu. Nessas ocasiões, o tio
materno deve acompanhar o sobrinho que ainda não teve filhos para a brincadeira, desde as
crianças pequenas até os rapazes e moças da categoria weryrybò e ijadoma, como na
brincadeira Kuladu Biditò, já descrita antes (Rodrigues, 1993:342-343), e realizada depois
que os aruanãs dançam:

34
Ver Lave (1979), Melatti (1979), Crocker (1979).

565
“(...) os lana (irmão da mãe), de preferência, saem da casa dos homens e vão buscar
seus sobrinhos de ambos os sexos de casa em casa, começando pelo lado ibòkò (rio
acima) da aldeia, ocasião em que estes últimos são enfeitados pelas mães e ficam
aguardando seus tios, sentados em esteiras, na porta das casas. Cantando, os tios trazem
as crianças, até as recém-nascidas, para o terreiro dos homens, onde são colocadas em
duas grandes esteiras: a esteira dos hiretu e a esteira dos saura. As mães das crianças
ficam do lado das esteiras segurando vasilhas com mel. Um homem ‘dá a ordem’ e os
tios das crianças correm para pegar as vasilhas das mulheres, iniciando o jogo. Caso
tenha trazido três crianças, de mães diferentes, o tio terá que correr em direção às três
mães, por exemplo. O tio passa seu dedo no mel e passa-o a seguir na boca do
sobrinho. Feito isso, as crianças pequenas vão embora com as mães e então os adultos e
jovens sentam nas esteiras e tentam uns lambuzar os outros com o mel que sobra,
havendo grande confusão, risos, e, principalmente, mistura de classes de idade e sexos,
ocasião em que os possíveis amantes lambuzam-se entre si.”

A brincadeira em questão é baseada na divisão entre as metades cerimoniais e o tio


materno deve brincar do mesmo lado ritual de seu sobrinho. Em outras brincadeiras, como
Tudu e Kuladu Iwodudu, os tios levam seus sobrinhos, mas não existe a divisão entre as
metades. A brincadeira de Bidi (o nome mais conhecido do “mel”), a primeira do ciclo dos
aruanãs, e que já foi descrita antes (Rodrigues, 1993), consiste simplesmente das irmãs
rituais entregarem um prato contendo mel aos aruanãs, enquanto dançam. A brincadeira
Tudu, descrita a seguir, é uma variante mais elaborada da anterior, que ocorre pela manhã.
À tarde, depois dos aruanãs dançarem novamente, os pais de aruanã colocam vasilhas
vazias nas extremidades masculina (ijoina) e feminina (hirarina) das estradas onde os
aruanãs dançam (ver Desenho n° 18, ao lado). As avós ou mães de aruanã convidam todas
as mulheres da aldeia para levarem mel (ou açúcar, atualmente) para a sua casa, o qual é
colocado nos recipientes vazios.
A seguir, os tios maternos, de preferência, buscam os filhos e filhas de suas irmãs
nas casas respectivas. Alguns levam os meninos (weryry) para o ijoina (pátio masculino) e
outros levam as meninas (hirari) para o hirarina (espaço ritual feminino), quando os tios e
sobrinhos de ambos os sexos fazem o xiwè (oferenda ritual aos mortos) juntos. O tio
materno coloca um pouco de mel recolhido na boca dos sobrinhos e, depois, em uma outra
vasilha menor, que será entregue por ele à sua irmã real ou classificatória, a mãe da
criança, quando ele trouxer os sobrinhos de volta às suas casas. Sem especificar a qual
grupo étnico se refere, Toral (1992:117) menciona cerimônias públicas com os grupos
rituais, cuja “função” é tornar pública a ligação das crianças com “o walana (MB)”.

566
Desenho n° 18: Extremidade masculina (ijoina) e feminina (hirarina) das pistas de dança

hirarina
Casa dos

ijoina
Homens

hirarina

rio
hirarina

567
Lipkind (1948:186) escreveu que, entre os Karajá, “o avunculato é muito
importante e envolve muitas obrigações sociais e especialmente cerimoniais”.
Durante o ritual de iniciação masculina, toda a coletividade masculina divide-se
entre as duas metades cerimoniais existentes, ocasião em que a atuação do tio materno e
sua ligação ritual com os filhos de suas irmãs são enfatizadas publicamente e têm
importância fundamental. Os outros tios do sexo masculino bilaterais, reais ou
classificatórios, podem realizar as tarefas associadas aos meninos ou rapazes que vão se
iniciar, mas o lana é o tio preferencial para a importante tarefa de conduzir os meninos até
a Casa Grande, carregando-os nos ombros 35 . Entre outras atividades, é ele quem deve
participar de uma luta ritualizada com os latèni, os tios maternos mascarados dos aruanãs
que vêm “buscar” os meninos para a iniciação; quem enfeita os jovens que se iniciam
(jyrè) com plumas de pássaro (dura) no dia em que estes serão apresentados publicamente
aos latèni; quem dá o banho com uma infusão à base de casca de jatobá ou tamboril nos
meninos, cujo objetivo é ajudar no crescimento corporal, no primeiro dia de reclusão ritual;
quem corta o cabelo do jyrè e pinta todo seu corpo de preto, marcando seu estado liminar;
quem deve acompanhar o jovem nas caçadas rituais que fazem parte da iniciação e,
cotidianamente, durante o período em que fica recluso na Casa Grande, cerca de 15 dias,
enquanto se alimenta, dorme, toma banho, realiza necessidades físicas etc.
Ainda durante o período de reclusão no ritual da Casa Grande, cabe ao tio materno
a função de levar o sobrinho todos os dias até a sua casa natal, ao fim da tarde e de mãos
dadas com o menino, para o momento conhecido como isèwèitykynyky, “matar a saudade
da mãe”, referindo-se à saudade que o menino sente da mãe. Nessa ocasião, não
mencionada na literatura sobre os Karajá, a mãe do jovem iniciando passa óleo de côco no
cabelo ou urucum no corpo do filho, por alguns breves minutos, sinalizando o cuidado
materno com o filho e a ligação entre ambos, até que os latèni, que têm “ciúme” dos
meninos e evitam que eles permaneçam muito tempo no espaço feminino poluído, correm
para buscá-los e levá-los de volta à Casa Grande. Quando o pênis de um menino começava
a engrossar e aumentar de tamanho, depois da iniciação ritual, cabia a seu tio materno, de
preferência, decidir a época em que o menino começaria a usar o estojo peniano de

35
No “He wi”, ritual de iniciação masculina Barasana (Tukano), embora o papel do tio materno não seja
enfatizado, os jovens também são carregados nos ombros por homens mais velhos (C. Hugh-Jones, 1979, S.
Hugh-Jones, 1979). Tanto entre os Tukano quanto entre os Javaé há uma associação entre a masculinidade, a
permanência e a cabeça. No caso dos Javaé, a prática citada evidencia a ligação do masculino com a porção
superior do corpo e com o estatismo, pois os jovens que se tornarão membros da coletividade masculina são
impedidos de se movimentar por si próprios.

568
algodão, nõtakana, “o amarrador (takana) do pênis (nõõ)”, com o objetivo de esconder a
nõsò, a “cabeça (sòò) do pênis (nõõ)”. O tio comunicava sua decisão aos pais do menino e,
então, amarrava o pênis do sobrinho, sendo recompensado com bens de valor (roça, pilão,
canoa etc) pelo ato.
Após o fim do período de resguardo de uma moça que menstruou pela primeira vez,
entrando para a classe de idade ijadoma, é o seu tio materno quem deve aplicar plumas de
pássaros (dura) em seu corpo, com resina vegetal, e acompanhá-la no momento em que sai
da casa natal, em sua nova condição, para ser apresentada ao mundo externo. Como nos
outros casos, um tio materno classificatório distante ou um tio paterno pode realizar essa
apresentação, mas há uma preferência pelo verdadeiro irmão da mãe ou pelos irmãos
classificatórios próximos da mãe, os co-residentes com quem as crianças têm maior ligação
afetiva e convivência. É considerado vergonhoso não ter nenhum lana para acompanhar
uma criança ou jovem nos rituais.
Quando um homem matava um estrangeiro (ixyju) inimigo, como um Xavante,
Avá-Canoeiro ou Apinajé, o seu kuni, primeiro estágio do “corpo velho” após a morte,
passava a ser “usado” pelo matador. Para isso ocorrer, o matador dava o ixyjukuni, “corpo
velho do estrangeiro”, como um presente de valor para o filho ou filha primogênitos de
uma irmã, preferencialmente, tornando-se um “bem de valor” (nohõ) dentro da família a
ser alimentado e transmitido por seus donos através das gerações, assim como os aruanãs.
Os ixyjukuni passavam a ser trazidos em sua forma mascarada todos os anos pelos xamãs,
o que ainda acontece, assunto da parte final.
Tradicionalmente, quando o homem se casava com alguém de outra metade e
mudava de residência, ele deveria se mudar também para a metade de seus afins, prática
não mencionada na literatura sobre os Karajá. A mudança era parte das prestações
matrimoniais e o homem deveria se solidarizar com seus afins em determinadas atividades
cerimoniais realizadas pelas metades Hiretu e Saura, procedimento agora cada vez menos
adotado. Tal mudança não ocorre com as mulheres, que permanecem a vida toda na mesma
metade ritual associada à casa materna. O homem deve ajudar a metade de seus cunhados
ou sogro principalmente nas situações em que se deve obter os alimentos para sustentar os
rituais, como nas caçadas e pescarias cerimoniais realizadas pelos homens na condição de
worosy, divididos em Hiretu e Saura. Por essa razão, alguns Javaé dizem que era preferível
se casar com alguém da mesma metade cerimonial.

569
Essas pescarias e caçadas ocorrem nos rituais de encerramento da Dança dos
Aruanãs, no ritual de iniciação masculina ou quando os mascarados que representam os
estrangeiros aparecem para ser alimentados por seus “donos”. Espera-se a solidariedade do
genro também na disputa ritual entre as metades cerimoniais para levantar a Casa Grande,
quando cada uma é encarregada de construir uma das extremidades da casa, ao mesmo
tempo em que compete com a outra para ver quem levanta o seu lado mais rápido. Toral
(1992:119) relata que “o único caso” em que uma pessoa muda de grupo ritual entre os
Karajá e Javaé ocorre “quando ela mata um guerreiro inimigo”, ocasionando também a
mudança de seu nome. Souza Filho (1987d) e Lima Filho (1994) mencionam a mesma
prática entre os Karajá, sobre a qual nunca ouvi falar entre os Javaé, o que não quer dizer
que não existisse no passado. De qualquer modo, em caso afirmativo, ela deveria coexistir
com a mudança de metade advinda pelo casamento.
Durante o ritual de iniciação masculina, o marido de uma mulher também pode ser
aquele que leva e acompanha cotidianamente os filhos das irmãs reais ou classificatórias de
sua esposa durante o ritual. Ou seja, um menino pode ser acompanhado no ritual pelo
marido da irmã de sua mãe, ao invés do tio materno, a categoria ideal.
Uma pesquisa sobre a filiação ritual – antes do casamento – de todos os homens e
mulheres casados das aldeias Canoanã (população total de 320 pessoas, incluindo 26
pessoas de outras etnias e 7 não-índios, em 1998) e Barreira Branca (96 pessoas, em 2002)
constatou que:

Tabela n° 8: Filiação ritual


Saura Hiretu
Canoanã (1998) - Homens: 70,3 % - Homens: 29,6 %
- Mulheres: 68,5 % - Mulheres: 31,4 %
Barreira Branca (2002) - Homens: 41 % - Homens: 59 %
- Mulheres: 31,8 % - Mulheres: 68,1 %

Pode-se perceber que a maioria dos homens e mulheres casados de Canoanã, em


1998, pertencia à metade Saura, enquanto a maioria dos homens e mulheres casados de
Barreira Branca, em 2002, pertencia à metade Hiretu (universo de 172 homens e mulheres
casados das duas aldeias). Mas quando olhamos a proporção da filiação às metades em um
universo maior de casos analisados (304 homens e mulheres casados), incluindo ex-
moradores de Canoanã e Barreira Branca ou os parceiros anteriores (falecidos, separados

570
ou que moram em outras aldeias), constatamos que, em termos gerais, independentemente
da diferença por aldeias, existe um maior número de pessoas filiadas à metade Saura,
repetindo o que ocorre em Canoanã, a maior aldeia Javaé: 66,2 % dos homens casados
como um todo eram Saura, enquanto apenas 33,7 % eram Hiretu. Entre as mulheres
casadas, a diferença era ainda maior: 73,7 % eram Saura e 26,2 % eram Hiretu. Os Javaé
recorrem ao mito de origem das metades, a ser lembrado a seguir, para justificar uma
suposta maioria Saura em todas as aldeias, embora a pesquisa em Barreira Branca tenha
revelado o contrário.
É interessante apontar que, em Canoanã, de maioria Saura, 49,6 % dos adultos
casados tinha famílias originárias da antiga aldeia Wariwari (retomada em 1991), enquanto
apenas 31,4 % eram de Marani Hãwa, abandonada na metade do século passado 36 ; ao
passo que, na aldeia Barreira Branca, 45,1 % eram do Wariwari e 46,2 % de Marani
Hãwa 37 . Há uma indicação de que a maioria Saura em Canoanã talvez tenha uma
correlação com a maioria de adultos casados procedentes do Wariwari, enquanto a maioria
Hiretu em Barreira Branca equivale, relativamente, a uma maior proporção de famílias
originárias de Marani Hãwa. No caso dos adultos casados como um todo (Canoanã e
Barreira Branca), em que pelo menos a mãe (de quem se herda a filiação) ou ambos os pais
são originários do Wariwari, 78,5 % das pessoas são Saura, enquanto 21,4 % são Hiretu,
indicando uma grande maioria de Saura na antiga aldeia Wariwari. Já entre aqueles
procedentes apenas de Marani Hãwa, 51,6 % são Saura e 48,3 % são Hiretu, indicando
uma proporção bem mais equilibrada, embora não uma maioria Hiretu.
Os dados revelam que, além de uma prática de endogamia de aldeia, como veremos
em maiores detalhes mais à frente, há uma tendência para uma prática de endogamia de
metades cerimoniais, embora estas não sejam associadas à troca de esposas, ao contrário
do que ocorre entre os Bororo (Crocker, 1979, 1985), por exemplo. Lima Filho (1994:130)
também diz, a respeito dos Karajá, que pertencer aos grupos cerimoniais “não orienta
nenhuma regra de casamento”. Dietschy (1977) e Pétesch (2000), entretanto, especulam
sobre a existência no passado de uma endogamia efetiva nas metades cerimoniais
patrilineares (grupo de cima e grupo de baixo) dos Karajá, atualmente não mais praticada.
Em um exercício de reconstituição hipotética, Pétesch sugere que os grupos cerimoniais
36
4,3 % dos adultos casados Javaé de Canoanã eram de famílias originárias do Bèdèky (2,2 %), Lyrytxi (1,2
%) e Imotxi (0,9 %), o restante (14,2 %) sendo constituído por descendentes de Tuxá (5,7 %), Karajá (3,8 %),
não-índios (3,2 %), Xambioá (0,9 %) e Avá-Canoeiro (0,6 %).
37
Em Barreira Branca, 1% dos adultos casados Javaé eram de famílias originárias do Bèdèky, o restante
sendo constituído por descendentes de Karajá (4,3 %), Xambioá (2,1 %) e não-índios (1 %).

571
endógamos estariam associados a unidades territoriais mais amplas antigamente,
compostas de várias aldeias, havendo uma conjunção de exogamia local e endogamia de
unidades territoriais. Entre os Javaé, não só a filiação às metades é matrilinear, como não
encontrei nenhum dado a respeito de uma possível exogamia local no passado ou sobre a
existência de unidades territoriais endógamas. No universo de casamentos das duas aldeias
em que se foi possível saber qual a prática adotada (93 uniões), pesquisou-se a proporção
de homens que se casaram com mulheres da outra metade ritual, chegando ao seguinte
resultado:

Tabela n° 9: Metades e casamentos


% de homens que se casaram com % de homens que se casaram com
uma mulher da mesma metade uma mulher de outra metade ritual
ritual
Canoanã (1998), 63,7 % 36,2 %
69 uniões
Barreira Branca 54,1 % 45,8 %
(2002), 24 uniões

Em termos gerais, estendendo-se o foco da pesquisa para casamentos anteriores


ocorridos em Canoanã e Barreira Branca com parceiros falecidos, que não moravam mais
na mesma aldeia ou dos quais houve separação, em um total de 177 uniões, a prática de
endogamia de metades mostrou-se uma tendência mais forte ainda, alcançando o índice de
66,6 %, contra 33,3 % de homens casados com mulheres de uma metade diferente. Esse
índice é proporcional à existência de uma maioria de membros da metade Saura entre os
Javaé com um todo, de modo que a endogamia de metades pode ser interpretada mais
como uma conseqüência desse fato do que como uma opção estrutural. Dentre os homens
que se casaram com uma mulher de uma outra metade cerimonial (36 casos), constatou-se
que:

Tabela n° 10: Mudança de metade


% de homens que mudaram % de homens que não mudaram
de metade após casamento de metade após casamento
Canoanã (1998), 25 casos 28 % 72 %
B.Branca (2002), 11 casos 9 % 91 %

572
A média geral, incluindo os casamentos com parceiros anteriores (em um universo
de 59 casos, nas duas aldeias), é de 64,4 % de homens que não mudaram de metade, contra
35,5 % de homens que passaram para a metade dos afins após o casamento. Os Javaé
dizem que, tradicionalmente, a maioria dos homens que se casavam com uma mulher de
outra metade cerimonial mudava para a metade dos afins nas situações que envolviam
prestações matrimoniais, esse índice tendo diminuído bastante entre as gerações mais
novas. Deve-se levar em consideração que o contato mais intenso com a sociedade
envolvente na primeira metade do século 20, seguido de uma forte desestruturação interna
do grupo, em razão de perdas populacionais dramáticas, abalou a realização dos rituais
tradicionais em que se exigia a participação das metades cerimoniais, como o Hetohoky, o
que vêm sendo retomado nos últimos anos.
Nos casos em que a esposa e os afins pertencem à metade oposta (cerca de 33 %), o
homem fica dividido, em sua nova residência, entre a ligação ritual que mantém com a sua
metade de origem, através dos filhos ainda não casados de suas irmãs, residentes na casa
natal, e a ligação ritual que passa a ter com a metade de seus afins, em nome das prestações
matrimoniais. Apesar disso, um homem sempre vai defender a sua metade de origem nas
lutas cerimoniais entre os Hiretu e Saura, ainda realizadas, e que podem ocorrer em
diversos momentos do calendário ritual. Nessas ocasiões, como veremos, ele não deve
jamais lutar contra os seus afins, caso estes pertençam à metade oposta. Em caso de
separação, os homens voltam à casa natal e não têm mais de ajudar a metade de seus afins.
Durante o ritual de iniciação masculina, os Hiretu e Saura de uma aldeia disputam
quem levanta mais rápido a Casa Grande ou quem pesca e caça mais rápido para as
cerimônias. O lugar dos Hiretu dentro da Casa Grande chama-se hètyby hiky, “lugar do
fogo grande da cozinha”, pois os membros da metade Hiretu não devem apagar a fogueira
existente, enquanto os Saura são em maior número, mas a sua fogueira deve ficar sempre
apagada. As mulheres casadas são chamadas de hètyby wèdu, “donas do lugar do fogo da
cozinha”, como será mostrado adiante, em oposição aos homens, que não devem ter
fogueira própria, mas apenas morar junto ao “fogo da cozinha” de uma mulher ao se casar.
Assim, a associação entre os Hiretu e o hètyby, em oposição aos Saura e a ausência do
fogo de cozinha, confirma, mais uma vez, a associação entre os Hiretu, o rio abaixo e as
mulheres, em oposição aos Saura, o rio acima e os homens.
Foi por causa dos conflitos entre os irmãos Nabio e Ijanakatu que o iòlò Tòlòra
ascendeu a este mundo com a missão de pacificação. Desde então, as metades aparecem

573
sempre associadas a alguma disputa ou embate entre dois grupos oponentes,
simbolicamente concebidos como o masculino e o feminino, o que ganha forma mais
explícita através das lutas cerimoniais. Em todas as ocasiões em que há participação das
metades cerimoniais há uma ritualização do conflito entre as duas partes. Juntamente com
os choros e xingamentos rituais protagonizados pelas mulheres, as lutas entre as metades
Hiretu e Saura são o principal canal social de expressão pública das tensões internas. Em
uma sociedade que evita fortemente o conflito aberto e não disciplinado por regras formais,
as lutas e os choros/xingamentos são formas de conflito público aceitas, por serem
controlados socialmente.
A relação entre as metades também pode ser compreendida como representação
simbólica da relação tensa entre afins, entre credores e devedores, ou seja, entre dois
grupos de irmãos que trocam mulheres, já que a aliança matrimonial é regulada pela troca
simétrica (embora esta não corresponda ao modelo clássico de casamento entre primos
cruzados reais, como veremos adiante). Afinal, os dois grupos que deram origem às
metades, os irmãos de Ijanakatu e os irmãos de Nabio, estão associados aos extremos
espaciais do parentesco e da afinidade, respectivamente, que se sobrepõem à dualidade
entre masculino e feminino. Não encontrei, entretanto, a confirmação de que são primos
cruzados do sexo masculino que se opõem no ritual, como no Jawari do alto Xingu
(Gregor, 1977), onde também se pratica o casamento com primas cruzadas bilaterais
distantes (Coelho de Souza, 1995). Na verdade, evita-se lutar com os afins efetivos, mas
se pode dizer que, em termos simbólicos, trata-se de um modelo de luta entre dois grupos
ligados por uma relação de afinidade.
Diferentemente tanto dos Timbira quanto dos Bororo, para quem as metades
regulam a transmissão de nomes/identidades sociais, entre os Javaé elas estão associadas
mais ao controle social e altamente formalizado dos conflitos públicos, como nos rituais
alto-xinguanos (Menget, 1993). As metades atuam, juntamente com os jogos cerimoniais
entre grupos opostos, como redutores da tensão gerada, basicamente, pelas relações de
afinidade, assunto a ser retomado. Repete-se aqui o espírito Arawak já mencionado,
relacionado à construção de um ethos pacífico e de uma imagem masculina de autocontrole
(Heckenberger, 2001a, 2001b, 2002, Hill & Santos-Granero, 2002). Os Javaé sempre
possuíram apenas um par de metades rituais, diversamente dos vários pares Timbira. As
metades não se associam às classes de idade, em contraste com os Kayapó, embora tenham

574
importante função no ritual de iniciação masculina, como ocorre entre estes últimos, que
também não vinculam as metades à transmissão dos nomes (Turner, 1979b, 1984).
Os Bororo, para quem também é importante não só a paz entre aldeias mas também
a evitação de qualquer conflito aberto (Crocker, 1976), mantêm a paz pública através da
interdependência ritual e exogâmica entre as metades, enquanto as metades Kayapó não
promovem qualquer tipo de reciprocidade, o que levava a uma grande instabilidade política
nas aldeias. Entre os Javaé, as metades não regulam a troca de esposas, mas os homens
devem ser solidários à metade dos afins nas situações descritas, na forma de prestação
matrimonial, o que cria um elo de reciprocidade entre os grupos rituais. Além disso, a
atuação das metades proporciona o controle dos conflitos, como entre os Bororo, mas isso
é feito a partir de lutas entre os grupos rituais e não através de trocas institucionais.
As lutas não têm o mesmo resultado dos duelos formais entre as metades Kayapó
(Turner, 1979b, 1992, Bamberger, 1979), associados ao faccionalismo da Casa dos
Homens, e cuja conseqüência era a mudança, para uma nova aldeia, do grupo perdedor e
de seus aliados. As lutas cerimoniais Javaé não existem para decidir quem fica e quem
parte, impossibilitando a convivência entre os oponentes, mas, assim como no alto Xingu
(Agostinho, 1974, Menget, 1993), propiciam uma catarse social curadora dentro (ou entre,
no caso xinguano) das aldeias, ainda que momentaneamente. Desse modo, tanto entre os
Javaé quanto entre os Bororo, não há qualquer registro de conflito entre aldeias diferentes,
o que entre os Kayapó era uma conseqüência da independência das metades e, ao mesmo
tempo, da forte solidariedade interna aos grupos, gerando a separação de facções inimigas
que fundavam novas aldeias e se atacavam mutuamente. Os Karajá, por sua vez, também
não atacavam outras aldeias Karajá, embora dramatizem o conflito entre aldeias, como no
alto Xingu, na forma de oposição entre metades cerimoniais, durante o ritual da Casa
Grande 38 .
A expressão ritualizada dos conflitos não ocorre somente por meio de lutas
corporais, podendo ocorrer de forma mais lúdica, quando os membros de uma metade
tentam lambuzar os da outra com mel, como na brincadeira kuladu biditò; ou como em
uma outra parte da brincadeira wyhyraheto, em que os membros de uma metade encontram
os da outra no meio da aldeia, do lado das mulheres, e tentam acertar os oponentes, rindo
muito, com todo tipo de lixo, terra, capim ou qualquer objeto que estiver no caminho. No

38
Ver Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

575
ritual de iniciação masculina, as metades cerimoniais estão também associadas a várias
disputas, já mencionadas, algumas das quais não envolvem lutas corporais.
A expressão waijoi significa “meu (wa) grupo cerimonial (ijoi)”, embora ijoi seja o
termo usado para designar “o coletivo formado pelos homens já iniciados da aldeia”
(Toral, 1992:117), como em Ijoi Heto (Casa dos Homens) ou ijoina, o “lugar (na) dos
homens (ijoi)”. Pelo fato do mito de origem referir-se às metades como dois grupos de
irmãos rivais, de ambos os sexos, waijoi pode significar também “meus parentes”,
designação não mencionada nas etnografias sobre os Karajá. O “grupo dos Hiretu” (Hiretu
mahãdu), por exemplo, é o ijoi de alguém, o que serve para homens ou mulheres. Quando
uma pessoa está em um grupo de pessoas diversas, podendo conter mulheres ou não-
parentes, como os alunos da mesma turma, ou mesmo não-índios, ela também pode se
referir a esse grupo como waijoi, “meu grupo ou turma”. Assim, waijoi tem um uso mais
abrangente que a expressão wasy, apresentada atrás, que só pode ser usada como “meus
parentes” ou “meu lugar/casa”, não incluindo estranhos. Segundo Donahue (1982:187), o
conceito de waijoi entre os Karajá opõe-se ao de “wathã”, “minha família” ou “meus
parentes”, sobre o qual não encontrei referência entre os Javaé.
Enquanto lutas entre os “meus parentes” e os outros, associadas ao rio acima e ao
rio abaixo, as lutas entre as metades, de “brincadeira” ou não, representam a tensão entre
identidade e alteridade, masculino e feminino, entre grupos de irmãos que trocam esposas
entre si (embora de modo egocentrado, em contraste com as metades exogâmicas Bororo).
Tais grupos constituem-se pelo vínculo matrilateral com a casa natal, o que é colocado em
evidência pela importância ritual do tio materno nessas ocasiões. Afinal, durante algumas
brincadeiras, a célula mínima de cada grupo que se confronta com o outro é um tio
materno e os filhos de suas irmãs, exatamente a mesma unidade de parentesco do território
dos aruanãs subaquáticos.
As lutas entre as metades cerimoniais diferenciam-se em dois tipos básicos: o
primeiro tipo são as que ocorrem logo depois de alguns dos “jogos pequenos” de aruanã,
como no caso das brincadeiras Wyhy Raheto (“flecha adornada com penas”) e Worosy
Hojuju (“vara do worosy”), sendo consideradas parte dos jogos. Embora sejam lutas em
que se tem a intenção de vencer o outro, há um caráter mais lúdico, pois estão inseridas,
antes de tudo, em uma brincadeira dos aruanãs, um espaço ritual onde não cabe usar o
confronto aberto para resolver desavenças pessoais e familiares. Os parceiros devem
exercer ao máximo o autocontrole e não podem demonstrar raiva um do outro mesmo

576
quando são derrubados no chão, o sinal público da derrota, o que seria ofensivo aos
aruanãs que estão brincando e aos xamãs responsáveis. Em outras palavras, deve
prevalecer sempre o espírito de “brincadeira” associado aos aruanãs. No jogo Wyhy
Raheto, ao qual tive oportunidade de assistir, as mulheres e crianças também podem lutar
entre si, respectivamente, mas separados de acordo com os critérios de sexo e classe de
idade. Na brincadeira Worosy Hojuju, apenas os homens lutam.
O outro tipo de lutas entre as metades, semelhantes na forma ao huka-huka do alto
Xingu (Agostinho, 1974, Viveiros de Castro, 1977), pertence exclusivamente ao mundo
masculino e não tem caráter lúdico, ao contrário, pois ocorre fora do contexto dos jogos de
aruanãs e é o meio por excelência de expressão pública dos conflitos entre parentelas. Elas
são conhecidas como “lutas de worosy”, pois os homens estão na condição de worosy, o
que remete a um importante mito, como veremos a seguir. Enquanto as mulheres
defendem-se e atingem publicamente os inimigos através da fala/saliva (rybè) durante os
momentos extraordinários do luto, os homens confrontam-se uns aos outros nas lutas
realizadas durante a vida ritual ordinária. A associação entre oratória e agressividade é um
fenômeno muito mais feminino do que masculino, em contraste com o que ocorre com os
Suyá (Seeger, 1980) e Kayapó (Turner, 1988a, 1995), por exemplo, para quem a oratória
pública, além de ser um atributo masculino, simbolizado e ativado pelos discos labiais,
ocorre em um contexto em que a belicosidade masculina é valorizada.

7.6. O delator mítico e sua mãe imoral

Sempre que os homens estão reunidos na Casa dos Homens ou realizando tarefas
relacionadas ao mundo ritual, diz-se que eles são worosy. Os homens também são
chamados de worosy quando se reúnem nos dois grupos cerimoniais, Hiretu e Saura, em
ocasiões diversas. Vale a pena relembrar, para não dar margem a mal-entendidos, que esta
palavra polissêmica também indica outras categorias de seres distintos: os mortos em geral,
em especial os que vivem abaixo do cemitério (os wabèdè worosy), e os moradores da
Marani Hãwa subaquática (ou aõni aõni), entre outros, que vêm participar do ritual de
iniciação masculina. Os homens são chamados de worosy em razão do episódio mítico que
deu nome a um sítio próximo da aldeia Boto Velho, conhecido como Iny Wèbohona, “o

577
lugar (na) onde explodiram as barrigas (wèboho) dos humanos (iny)”. Um mito já
apresentado antes (Rodrigues, 1993), do qual obtive a versão abaixo em 2007, na aldeia
Boto Velho, narra como um menino foi convencido por sua mãe a revelar um dos segredos
da Casa dos Homens.

Há muito tempo atrás, os meninos que iam entrar pela primeira vez na Casa dos
Homens (os jyrè) ficavam na casa de suas respectivas mães durante o ritual de iniciação
masculina. Quando os worosy iam caçar, os jyrè tinham que ficar dentro da casa da mãe.
Mas uma das mães insistiu com teimosia para que seu filho contasse o modo como os
worosy arrumavam suas mãos e o filho, diante da incômoda insistência da mãe, revelou o
segredo masculino. Um velho que estava junto à fogueira ouviu a revelação e, como
naquele tempo as normas eram muito mais rígidas, ele foi atrás de Harabòbò 39 , que
naquele momento passava por dentro da aldeia carregando uma borduna e um facão ao
chegar de uma caçada com os worosy. O velho contou a Harabòbò que ainda há pouco o
segredo tinha sido contado e Harabòbò reagiu enfurecido perguntando: “então por que
você ainda está vivendo?!”. Ele começou cortando a cabeça do velho para iniciar a sua
vingança ou maldição contra a aldeia. Quando o grupo de worosy conhecido como ijoimy
ijoinadu acabou de chegar, Harabòbò contou o que havia ocorrido e eles resolveram
tomar uma atitude drástica.
Entre os homens havia dois irmãos que eram os mais valentes e os principais
lutadores. Eles se chamavam Ijaura e Tabuhana 40 , este último o irmão mais velho, e
valorizavam a tradição e os segredos da Casa dos Homens acima de tudo. Em razão do
acontecido, os dois resolveram amaldiçoar a aldeia, desejando que todo o povo morresse
amaldiçoado. Os dois cavaram três buracos na terra, de tamanhos diferentes, para
homens, mulheres e crianças, separadamente. O buraco dos homens era maior que os das
mulheres e crianças. Ijaura e Tabuhana falaram para todos os homens da aldeia que não
era para ter compaixão de suas mulheres e filhos, pois o mais importante eram as leis da
aldeia e a tradição. Os dois lutadores ordenaram que todas as canoas da aldeia fossem
soltas no rio e que todos os worosy ficassem ao redor da aldeia vigiando as pessoas para
39
Harabòbò é um dos worosy moradores da Marani Hãwa subaquática, mas tem uma importância especial.
Ele é o primeiro convidado que comparece ao ritual de iniciação masculina terrestre, sozinho, assim como
entre os Karajá (Lima Filho, 1994), assumindo o lugar simbólico do primogênito e, no mito, de guardião dos
segredos masculinos. Há uma versão desse mito em Fortune (1988), Lima Filho (1994) e Toral (1992), que
supõe que Harabòbò é uma “entidade exclusivamente Karajá”.
40
Ijaura (ou Ijahura) era conhecido também como Ijòbyra, enquanto Tabuhana era conhecido também como
Ijaburi.

578
que ninguém fugisse. Então eles colocaram lenha dentro dos buracos, ateando fogo, e
jogaram todas as pessoas lá dentro, uma de cada vez, começando pelas mulheres. Cada
vez que uma pessoa caía no buraco, a sua barriga estourava, e por isso o lugar ficou
conhecido desde então como Iny Wèbohona, “o lugar (na) onde estouraram as barrigas
(wèboho) das pessoas (iny)”.
Restaram apenas Ijaura e Tabuhana, que se entristeceram profundamente ao
perceber que não tinha mais ninguém vivo e que haviam matado seus próprios parentes.
Um perguntou ao outro o que seria deles e ambos decidiram que eles também deveriam
morrer, matando-se reciprocamente. Os dois irmãos ficaram frente a frente e celebraram
a despedida dançando ao redor do buraco. A música que cantaram dizia que eles eram
muito valentes e bravos (èhèhè). Um flechou o outro e os dois morreram, tendo fim a
aldeia.
Havia, no entanto, dois cunhados que tinham saído para buscar filhotes de arara
quando houve esse conflito na aldeia. Depois de uma semana, os dois rapazes retornaram
ao local e não encontraram mais ninguém. Os dois imaginaram que algo muito grave
havia ocorrido por causa da revelação dos segredos masculinos e continuaram vivendo no
lugar sozinhos, sem mulheres ou crianças. Um dia foram pescar e, a uma certa distância
da aldeia, escutaram o barulho de alguém socando algo no pilão. Quando retornaram à
aldeia, encontraram uma refeição (iweru e ibòbesè) pronta. Espantados, os dois
indagaram um ao outro se alguém tinha sobrevivido ou se teria algum “espírito” no lugar.
No dia seguinte foram pescar de novo e novamente encontraram a comida preparada. No
terceiro dia, eles combinaram que iam flagrar o autor das refeições assim que escutassem
o barulho do pilão. Até hoje as casas têm duas portas, uma virada para o mato e outra
para o rio. Os rapazes combinaram que um ia entrar pela porta da frente (a do rio) e
outro pela de trás (a do mato), ao mesmo tempo, para descobrir o que estava acontecendo.
Assim que entraram na casa, os dois cunhados viram atônitos duas belas moças
cozinhando. Ao serem indagadas sobre sua identidade, elas responderam que eram
periquitos (biri) que se transformaram em humanos. Então os dois rapazes se casaram
com as duas moças e assim o povo Iny recomeçou novamente.

Alguns dos Javaé atuais são biri rikòkòrè, “descendentes dos periquitos”. Por causa
dessa história, que ocorreu durante um ritual de iniciação masculina, agora os jovens que
vão entrar pela primeira vez na Casa dos Homens, os jyrè, ficam separados de suas mães

579
durante o ritual. Até hoje existem os três buracos onde as barrigas explodiram, a cerca de
100 ou 200 metros de Boto Velho, que são um dos lugares sagrados de visitação dos Javaé.
Em uma outra versão, Teribèrè escapou com a mulher e os filhos antes de começar o
incêndio, dando início ao renascimento dos iny em um outro lugar. Em uma versão Karajá
recolhida por Donahue (1978), os dois protagonistas do mito também se chamam Ijaura e
Tabuhana, mas o lugar onde ocorreram os episódios míticos é conhecido como Nõserana.
Segundo o mito Javaé, todos morreram por causa da atitude transgressora da mãe
do menino, cuja curiosidade levou à ruptura da ordem antiga. A narrativa enfatiza a forte
ligação entre o menino e sua mãe e, mais uma vez, atribui à agência feminina imoral o
início das transformações do mundo que levam à morte e aos conflitos entre os homens. É
como se os homens se percebessem como um grupo original de irmãos ou parentes que se
separou e entrou em desavença em razão do comportamento subversivo de uma mulher.
Essa calamidade original, narrada em versões diferentes pelos Karajá, é associada por
Toral (1992:107) à “periculosidade potencial” dos jyrè que se iniciam, em razão de seu
estado de liminaridade “entre o mundo feminino e o masculino”, também ressaltado por
Lima Filho (1994); e por Pétesch (2000) à propriedade do saber esotérico ritual pelos
homens Karajá, por causa da indiscrição das mulheres ou crianças míticas.
Nos comentários à narrativa, os Javaé explicam que Ijaura e Tabuhana morreram,
mas, como não foram queimados, os seus “corpos velhos” continuaram vivendo no nível
terrestre, perpetuando o mesmo estado de desavença, assim como ocorre com os que
morrem perdendo sangue. Os que morrem queimados não têm mais a “pele/corpo velho”
que sobrevive após a morte. A coletividade masculina – na condição de worosy –
autodenomina-se Ijaura e Tabuhana boho, ou seja, “os Ijaura e Tabuhana”, uma vez que
os homens já iniciados concebem-se como os herdeiros legítimos dos irmãos míticos que
mataram a si e aos próprios parentes em nome da defesa dos segredos da Casa dos
Homens. Não há menção a essa autodenominação nas outras etnografias sobre os Karajá e
Javaé, cujo autores tendem a chamar os worosy da Casa dos Homens ou os membros dos
grupos cerimoniais de “mortos”, simplesmente, sem distingui-los dos mortos anônimos e
mais antigos dos cemitérios 41 .
Crocker (1985:165) descreve as caçadas rituais Bororo em que os homens iniciados
tornam-se os Aroe (“almas”) como representação dos mortos. No caso Javaé, não se trata
de mera “representação”, pois se acredita que a coletividade masculina transforma-se

41
Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

580
realmente nos worosy Ijaura e Tabuhana quando está reunida, como se estivesse usando
seus corpos velhos, assim como os Tukano do alto Rio Negro (C. Hugh-Jones, 1979, S.
Hugh-Jones, 1979) dizem que se transformam nos mortos ancestrais durante o ritual de
iniciação masculina 42 . Aqui não se trata, contudo, de uma identificação com a coletividade
anônima dos mortos ou ancestrais em geral, mas com os dois heróis míticos cujos nomes e
atos permanecem na memória coletiva.
Na época em que ocorre o ritual da Casa Grande, ocasião em que os homens devem
permanecer reunidos a maior parte do tempo, eles chamam-se uns aos outros de
wakumydela (“meu irmão mais velho”) ou wahelykyny (termo para se dirigir ao irmão
seguinte ao primogênito), termos usados por Ijaura e Tabuhana no mito para se dirigirem
um ao outro. Nessa ocasião, os Ijaura e Tabuhana xingam-se uns aos outros, falam
obscenidades, xingam os humanos terrestres que assistem ao ritual, em especial as
mulheres e seu odor poluído, reproduzindo o comportamento dos irmãos que entraram em
conflito com os próprios parentes e entre si por causa das mulheres. Os homens assumem a
identidade dos worosy Ijaura e Tabuhana sempre que usam o ratakana, nome de uma tira
de palha que é “amarrada” (takana) na “cabeça” (ra), e que também é conhecida como
hemylala (“sucuri”). Essa identidade ritual não se confunde com a dos outros worosy que
participam da iniciação masculina na condição de convidados (os aõni aõni), o que implica
em uma performance diferenciada, incluindo as músicas características que cada um traz
consigo do lugar de origem.
As lutas entre os worosy da Casa dos Homens, chamadas ijèsu, são realizadas
sempre como um confronto entre as duas metades cerimoniais (os ijoi), tendo como
paradigma conceitual, portanto, tanto o mito que trata do surgimento das metades,
constituído das lutas entre os irmãos e irmãs de Ijanakatu e os irmãos e irmãs de Nabio,
enquanto um confronto entre parentelas, quanto o mito sobre o surgimento do local Iny
Wèbohona, que trata basicamente do conflito entre um princípio masculino ordenador,
representado pelos irmãos Ijaura e Tabuhana, e um princípio feminino transgressor,
representado pela curiosidade e imoralidade da mãe do menino. Neste segundo mito, uma
mulher é a causa do conflito mortal entre um grupo original de parentes e entre os homens,
que desde então perpetuam tanto a ruptura dentro do próprio grupo, xingando-se uns aos

42
McCallum (2001:184-185) lembra que “assim como em qualquer lugar na Amazônia, ritual não dever ser
interpretado como ‘performance’, onde ‘atores’ ‘representam’ espíritos. Quando os Cashinahua dizem que
eles são espíritos é importante levá-los a sério. (…) Roupas, máscaras, cocares e outras decorações corporais
alteram a condição material da alteridade no corpo de uma pessoa”.

581
outros e as mulheres quando se transformam em worosy, quanto o compromisso com a
defesa do segredo masculino.
Os dois grandes confrontos míticos – entre dois grupos simbólicos de parentes e
entre o masculino e o feminino – são revividos durante as lutas rituais, mas há uma
precedência do último sobre o primeiro. As lutas atuam como um canal de expressão da
rivalidade entre parentelas articuladas por relações de aliança, remetendo ao primeiro mito,
mas este não é o seu objetivo explícito, o qual está associado a um contexto cerimonial
mais amplo, relacionado ao segundo mito fundador. Os conflitos entre grupos de parentes
podem ser resolvidos ou pelo menos trazidos a público durante as lutas entre os worosy,
ocasião em que o objetivo masculino de evitação do confronto dá lugar à sua manifestação
controlada. As lutas, entretanto, nunca ocorrem simplesmente porque um grupo ou uma
pessoa deseja se vingar de uma agressão sofrida. As pessoas apenas podem se aproveitar
desses contextos rituais mais abrangentes para as revanches familiares.
O confronto físico entre os worosy acontece em situações diversas do calendário
ritual, nas quais atualiza-se como tema básico a oposição descrita pelo mito de Iny
Wèbohona entre masculino e feminino ou estrutura e mudança, a partir da qual é construído
o contraste entre espaço sagrado e profano, segredo e transgressão, manutenção da ordem e
curiosidade pelo novo, lei e subversão, contenção e abertura, cumplicidade coletiva e
desejo individual egoísta, purificação e poluição, parentesco e afinidade, os Javaé e os
estrangeiros. As lutas de worosy entre as metades cerimoniais ocorrem em três situações
especiais: sempre que há uma violação ao segredo masculino, sempre que os estrangeiros
mascarados (ixyjukuni) são trazidos pelos xamãs ou sempre que um menino é iniciado na
Casa dos Homens. Todas essas situações, como veremos a seguir, têm como pano de
fundo o embate entre o mundo masculino, associado à identidade e à ordem, e o mundo
feminino, associado à alteridade e à desordem.
Além das lutas de espírito lúdico dos jogos rituais e as lutas de worosy, os Javaé
mencionam ainda um terceiro tipo de luta, chamada Malua, em que os homens não
lutavam como worosy, mas apenas como “iny (humanos) mesmo”. Diversamente dos
Karajá 43 , como já foi dito, os Javaé não enfatizam as relações entre aldeias durante o ritual
de iniciação masculina, quando os primeiros promovem disputas rituais, incluindo lutas,
entre moradores de aldeias diversas. Mas a luta Malua ocorria quando chegava algum
lutador famoso, um grande vencedor, de outra aldeia Javaé ou Karajá. Então os hóspedes

43
Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

582
convidavam o visitante para uma luta, que era parecida com o ijèsu, mas que era anunciada
por um grito diferente e por uma dança específica. Ao que parece, a luta entre os
moradores da aldeia e os visitantes, os de “dentro” e os de “fora”, ocupava o mesmo lugar
simbólico das lutas entre as metades opostas, associando-se os visitantes aos estrangeiros.
Em seu relato sobre o encontro que teve com os Karajá e Javaé em 1775, Fonseca
(1867) descreve uma luta ritual entre os Karajá e os visitantes Javaé que chegaram para
conhecê-lo. Assim que os Javaé chegaram à praia onde os Karajá estavam acampados, os
dois grupos alinharam-se em duas filas paralelas, uma de frente para a outra, dando início a
várias lutas entre membros dos dois lados. O mesmo foi presenciado por Krause (1941a,
1943a, 1943c) na ocasião de sua visita a uma aldeia Javaé, em 1908, acompanhado de
guias Karajá. A luta ritual entre os Karajá e os Javaé, descrita com importantes detalhes,
foi o primeiro evento social após a chegada dos visitantes.
As lutas masculinas são lutas “rituais” ou “cerimoniais” porque acontecem dentro
de um contexto cerimonial maior e são disciplinadas pela Casa dos Homens, mas isso não
significa que são meramente teatrais ou simbólicas. Ao contrário, são lutas em que se tem a
intenção de vencer e, em alguns casos, de atingir gravemente o outro, embora isso seja
raro. O objetivo explícito do lutador não é ferir ou causar a morte do inimigo ou rival, feito
bastante recriminado socialmente caso chegue a ocorrer, mas a honra e a fama adquiridas
como grande vencedor de lutas. Aqui não se tem o mesmo ideal bélico ou o ethos guerreiro
de algumas sociedades Jê do Brasil Central 44 , relacionado a um modelo agressivo de
masculinidade. Enfatiza-se muito mais o conceito de “lutador” (associado a relações
internas de disputa e manutenção da lei masculina), do que o de “guerreiro” (associado a
relações bélicas com estrangeiros). Os Javaé percebem-se como um povo pacífico,
interessado apenas em suas cerimônias e que somente reage às agressões ocasionais dos
inimigos estrangeiros, concebidos como os causadores dos conflitos.
No caso das relações internas, um “experto em lutas” (ijèsudu) rituais atinge
imenso prestígio e a honra adquirida se define menos pela exibição de uma agressividade
ou belicosidade em público do que pela demonstração de habilidade corporal e
autocontrole físico e emocional frente ao rival ou inimigo, como no alto Xingu45 . Os
grandes lutadores e os grandes corredores (ijaradu), estes últimos capazes de alcançar e
matar veados ou cotias durante uma perseguição, são conhecidos como inytyhy, palavra

44
Seeger (1980, 1981), Maybury-Lewis (1984), Lopes da Silva (1992), Turner (1992).
45
Agostinho (1974), Viveiros de Castro (1977), Galvão (1979), Gregor (1985).

583
que tem o sentido literal de “humano (iny) de verdade (tyhy)”. Inytyhy é um conceito
polissêmico, que pode ser utilizado tanto como uma das autodenominações da coletividade
Javaé como para definir as pessoas “honradas”, “pacíficas”, “generosas”, “trabalhadoras” e
“fortes” ou “vencedoras” 46 . Segundo Donahue (1982:39), a palavra inytyhy tem também o
sentido de “pacífico” entre os Karajá, ou seja, “pacífico significa literalmente ‘muito
parecido conosco’”. Trata-se antes de tudo de um conceito de honra que engloba os
atributos ideais de um ser humano, independentemente do gênero, e que pressupõe que a
qualidade de “forte ou vencedor”, como no caso dos grandes lutadores, não se opõe à de
“pacífico” 47 .
O conjunto de técnicas de preparo físico para as lutas chama-se jury e é muito
pouco praticado atualmente, incluindo jejum de dois dias, tomar eméticos baseados na
casca de uma árvore ou pimenta, passar pimenta no ânus, escarificar o corpo e comer
apenas a porção intermediária dos peixes (itya), excluindo cabeça e rabo. As escarificações
corporais são feitas com o comprido e fino dente do peixe-cachorra (latè), assim como no
alto Xingu (Agostinho, 1974), e ainda são praticadas ocasionalmente. Elas são associadas
ao objetivo de purificação do corpo, que se torna mais ágil ao retirar o “sangue pesado”.
Lima Filho (1994) ressalta as semelhanças notáveis do ijèsu Karajá com o huka-huka
xinguano (o preparo físico e espiritual, a forma de lutar, o prestígio adquirido, a resolução
de divergências internas ou entre aldeias) e apresenta alguns procedimentos xamanísticos,
sobre os quais não obtive informações, que ajudam o lutador.
Os embates físicos nunca são pensados como entre indivíduos, mas sempre entre
parentelas, repetindo a mesma lógica dos choros e do mito de surgimento das metades. Por
isso, dizem os Javaé, os parentes como um todo são chamados também de kyy, palavra que
designa os marimbondos, porque os ataques e as revanches, assim como se dá entre esses
insetos, ocorrem sempre em grupo. As tensões entre famílias inimigas só deveriam ser
transformadas em confronto corporal durante esses encontros cerimoniais, após os quais
proibia-se qualquer tipo de interação física, o que atualmente é difícil de respeitar por
causa do alcoolismo. O mesmo acontece com os seus correspondentes femininos, os choros
rituais, em que os ataques verbais devem ser imediatamente suspensos após o fim do luto.
46
Em seu estudo da língua Karajá, Maia (2004:10) mostra que a “forma -tyhy” é usada para “atestar a
veracidade de uma afirmação. –tyhy pode ser usado como uma forma verbal, significando ‘acreditar’,
‘respeitar’”.
47
Causa estranheza, portanto, Toral (1992:279) dizer que a belicosidade é “valorizada como expressão de
masculinidade”, ainda que não seja “acompanhada pela violência contra os de outras aldeias”, ou que o
comportamento violento ou agressivo é parte do que se espera dos futuros membros da Casa dos Homens
Karajá.

584
Brigar fora desses momentos é considerado uma perda do autocontrole e, por isso, motivo
de vergonha para os parentes dos envolvidos. As metades representam simbolicamente a
ligação com a parentela matrilateral, mas espera-se nas lutas a solidariedade dos parentes
bilaterais próximos como um todo.
Embora realizadas bem menos do que antes, as lutas de worosy são o espaço
socialmente aprovado para a revanche ou vingança (kòwy). Diferencia-se entre tomar a
iniciativa de uma agressão, uma atitude sempre recriminada e simbolicamente feminina, e
revidar uma agressão sofrida, uma atitude legítima e simbolicamente masculina. Entre as
agressões sofridas por uma pessoa ou família, o assassinato físico de um parente próximo é
considerado o fato mais grave de todos, seguido pelo ato de alguém levar uma mulher
aparentada próxima, como a irmã ou a filha, para se transformar em aderana da Casa dos
Homens, assunto a ser retomado mais à frente. Aderana é o termo que designa as mulheres
que infringiram alguma norma relacionada aos segredos masculinos e, como punição, são
estupradas pela coletividade masculina. Os Javaé dizem que ninguém esquece o
assassinato de um parente, o que condena o morto a viver na Terra dos Ensangüentados,
perpetuando o estado em que morreu. Este fato é lembrado às crianças e gera revides
recíprocos através das gerações, assim como nos choros são lembrados os assassinatos
ocorridos em gerações anteriores.
As pessoas ensinam às crianças quem são os “inimigos” (òdudu) da família,
havendo o costume, antigamente, de se criar o primogênito com o objetivo de vingar um
parente morto, preparando-o para isso desde pequeno. Os “descendentes de inimigos”
(òdudu rikòkòrè), em especial os mais próximos, como os filhos ou netos, tornam-se
inimigos entre si, devendo sempre lutar nesses encontros rituais. Nesses casos, eles
tornam-se “inimigos de luta” (ijèsu òdudu) ou “parceiros de luta” (ijèsu wyò), em que wyò
significa “par” por designar a região peitoral, que contém um par de mamilos. Alguns
dizem que os especialistas em luta preservavam-se apenas para essas lutas com os
inimigos. Uma situação de revanche mais comum, pois nem todas as lutas são entre
inimigos ou estão ligadas a conflitos de gerações passadas, podendo ocorrer apenas para
exibição de força/técnica corporal, acontece quando um rapaz ainda novo apanha de um
lutador mais forte. A palavra kòwy (vingança) também pode ter o sentido de “inimigo”,
mas muitas vezes significa simplesmente o rival de lutas que se deseja vencer, que não se
confunde com o inimigo herdado. Dois inimigos são representados como duas pessoas que
ficam face a face, encarando-se mutuamente. Olhar nos olhos é também sinal de

585
intimidade sexual, o que é evitado no dia a dia nas relações entre homens e mulheres e,
principalmente, entre as dançarinas e os aruanãs.
Outros conflitos de menor gravidade também provocam revanche ritual, mas a
vingança através das gerações é cultuada apenas no caso de assassinato físico de parentes
próximos. Durante o ritual de iniciação masculina, por exemplo, o latèni (o tio materno
mascarado do aruanã) busca os meninos que vão ser iniciados e anda pela aldeia
agressivamente, com uma vara ou borduna na mão, ameaçando as mulheres e crianças que
estiverem fora de suas casas em alguns momentos específicos. Aqueles que chegam a bater
em alguém enquanto usavam a máscara/corpo do latèni são chamados de latèni
deranykydu. Só os lutadores de grande potência física têm coragem de assumir esse e
outros papéis mais agressivos, como o dos worosy subaquáticos que roubam animais
domésticos nas casas, pois sabem que os parentes dos atingidos poderão se vingar em uma
luta. Ao crescer, a própria criança que apanhou pode tornar-se inimigo daquele que bateu
nela e descontar a agressão nas lutas rituais. Pode também se preparar fisicamente para se
tornar ele próprio um grande lutador, conhecedor de técnicas diferenciadas e cujo nome é
lembrado através das gerações.
As lutas das brincadeiras de aruanã e as lutas de worosy são conduzidas por
mediadores e obedecem a regras formais, sendo acompanhadas atentamente por toda a
comunidade. Aqueles que querem lutar ficam em lados opostos do terreiro da Casa dos
Homens, conforme a metade a que pertencem, localizadas espacialmente na direção do rio
acima e do rio abaixo. Nas brincadeiras, as lutas entre mulheres e entre crianças ocorrem
concomitantemente às lutas entre os homens, no mesmo pátio ritual. Os encontros são
mediados por um membro de cada metade, que é encarregado pela coletividade masculina
de assumir essa função em todas as lutas. O mediador escuta do lutador com quem este
quer lutar, informa quem é o escolhido ao mediador da metade oposta e conduz o lutador
ao palco das lutas, que em conjunto duram cerca de uma ou duas horas, quando os
parceiros podem lutar no máximo 3 vezes. Apenas aqueles que são inimigos verdadeiros,
em razão de morte ou estupro na família, podem lutar o número de vezes que quiserem.
A metade que acumula o maior número de vitórias fica conhecida como ityhy
mahãdu, “o grupo dos lutadores honrados ou de verdade”. Também se diz que os
vencedores estão com o hèkòty aceso (a fogueira associada a cada metade ritual) ou com o
fogo alto, enquanto os perdedores estão com a fogueira apagada. O mesmo vale para a luta
das mulheres. Quando alguém perde a luta, ao ser derrubado no chão, deve sair da arena e

586
voltar para o seu grupo. O perdedor pode chamar o vencedor para uma nova luta ou esperar
que os seus parentes próximos bilaterais lutem posteriormente com o vencedor para
conseguir a revanche.
Embora em termos simbólicos se trate de rivalidade entre grupos de parentes, ou
entre os worosy e os transgressores da lei, como será visto a seguir, as lutas propriamente
ditas são entre dois indivíduos apenas. Quando um dos parceiros de luta cai no chão ou se
cansa, ele pode ser socorrido por um parente, que entra em seu lugar para lutar com o
vencedor. A categoria ideal dos parentes que devem se solidarizar são os irmãos reais e
classificatórios próximos, como na luta mítica entre os irmãos de Ijanakatu e os de Nabio.
A solidariedade dos parentes próximos da mesma geração é esperada também nos
xingamentos/choros e nos jogos rituais de antagonismo sexual, ocasião em que não se deve
confrontá-los, ainda que “brincando”. Lima Filho (1994:132) fala de uma “solidariedade
entre os da mesma geração” tanto entre homens, no espaço público, incluindo as lutas
rituais, como entre mulheres, no espaço privado. Nas lutas de worosy, o chefe ritual deve
ser o mediador, cabendo a ele determinar o fim das lutas e mandar os worosy entrarem para
a Casa dos Homens.
Um homem sempre luta do lado da sua metade cerimonial de origem, associada à
casa natal, mesmo que seja casado e cumpridor do serviço da noiva junto aos afins de outra
metade nas ocasiões mencionadas. Ele não deve nunca lutar com parentes próximos nem
com os seus afins efetivos, seja qual for a metade a que pertençam; e só deverá chamar
para a luta, entre os membros da metade oposta, os inimigos próprios ou herdados de sua
família e os rivais de parentelas distantes. No caso de haver um conflito de maiores
proporções dentro da própria parentela, como alguém que matou um irmão classificatório
próximo, o que é considerado um verdadeiro escândalo, os envolvidos e parentes
respectivos não devem jamais lutar entre si. Um homem também não deve lutar com um
cunhado real (ou sogro), porque ele está pagando pela vagina da irmã ou prima desse
cunhado, dizem os Javaé. O pacto implícito de troca de comida e outros serviços pela
vagina de uma mulher torna os afins aliados entre si e, portanto, parceiros de luta
proibidos. As proibições indicam que só se pode lutar com parentes distantes, categoria de
onde saem os afins reais, embora não se possa lutar com aqueles que se tornam afins
efetivos. Em termos simbólicos, portanto, trata-se de uma luta entre afins.
Em seu estudo sobre o faccionalismo dos três povos de língua Karajá, Toral
(1992:60-61) associa os ijoi (grupos cerimoniais) às facções políticas, entendidas como

587
“coligações de famílias extensas pertencentes a uma ou mais (...) parentelas”. Segundo o
autor, as rupturas políticas em grandes aldeias são promovidas por disputas de facções,
ocasião em que grupos minoritários mudam-se e fundam outras aldeias menores. Talvez
este seja o caso entre os Karajá, que possuem vários grupos cerimoniais patrilineares
associados a disputas rituais entre aldeias, diversamente das duas únicas metades
matrilineares Javaé. Entre estes últimos, os ijoi dão vazão aos conflitos entre parentelas,
mas rivalizam apenas na esfera ritual e não estão relacionados às fissões de aldeias.
Descrevo a seguir os três contextos cerimoniais diferentes em que ocorrem as lutas de
worosy, nos quais os homens podem aproveitar para revidar agressões sofridas ou apenas
exibir técnica corporal apurada com rivais de luta.
Como já foi mostrado antes (Rodrigues, 1993), o principal objetivo da coletividade
masculina é manter publicamente – com a cumplicidade velada das mulheres – a idéia de
que os aruanãs terrestres são os verdadeiros aruanãs xiburè de corpo fechado e, assim, que
a imortalidade ainda persiste. O fato de que os aruanãs que dançam aqui são apenas
dançarinos terrestres usando os corpos velhos/máscaras dos aruanãs verdadeiros, e não os
verdadeiros aruanãs em si, é o principal segredo da Casa dos Homens. Isso não significa
que as mulheres não conheçam a verdade ou a identidade dos dançarinos, parte do segredo,
ao contrário, mas apenas que elas devem compactuar publicamente com a versão
masculina da realidade, o mesmo ocorrendo entre os vizinhos Karajá (Pétesch, 2000) e
Tapirapé (Wagley, 1988) 48 ou entre os Barasana (S. Hugh-Jones, 1979). Há uma
verdadeira obsessão dos homens em manter as aparências intactas, como já foi enfatizado
por Toral (1992), o que é colocado em prática através de regras que restringem o acesso
das mulheres e crianças ao pátio ritual, ao interior da Casa dos Homens ou à mata que
existe atrás, onde os homens buscam os materiais necessários à confecção das máscaras e
outras vestimentas rituais. Lima Filho (1994:40) chega a dizer que a mulher Karajá, “ao
passar por um caminho próximo, (...) não dirige o olhar para o lado onde está a Casa de
Aruanã” 49 .
Em razão das atividades secretas, há vários dias ou momentos do ciclo cerimonial –
em especial durante o Hetohoky – em que as mulheres não podem circular pela aldeia ou
48
É comum ouvir que o rigor com a manutenção do segredo ou com a confecção da parafernália ritual é bem
mais respeitado entre os Javaé do que entre os Karajá. De acordo com informações verbais de visitantes que
estiveram entre estes últimos, isso parece ser verdadeiro e não apenas mais um comentário da retórica
depreciativa que existe por parte dos Javaé em relação aos seus vizinhos. Em 1947, Baldus (1948:150) já
lamentava o “desleixo” Karajá em relação à confecção das máscaras, um produto da “aculturação”, uma vez
que até poucos anos atrás eram “magníficas obras de arte”.
49
Ver Bueno (1987), Donahue (1982), Pétesch (2000).

588
pelas roças, sendo ameaçadas fisicamente por alguns dos convidados subaquáticos do ritual
de iniciação, em especial os latèni, os bèdèrohõ worosy (worosy das abelhas arapuá), os
jõkõi jõkõi (worosy do macaco prego), entre outros. Toral (1992:55) descreve os
mascarados Karajá que perseguem as mulheres e as interdições a que são submetidas,
chegando a dizer que “o único espaço que verdadeiramente lhes pertence é o interior das
casas”. Tais interdições são conhecidas como bèrèbuna (“lugar do que faz mal”), porque a
desobediência à lei masculina leva a punições invisíveis pelos xamãs. Há muitos anos
atrás, quando as famílias Javaé ainda acampavam nas praias dos rios durante a estação
seca, um vento forte derrubou a precária Casa dos Homens que havia sido erguida no
lugar, carregando consigo as máscaras secretas, que rolaram na areia à vista de todos. O
escândalo que se seguiu foi imenso e a solução encontrada foi mudar de lugar
imediatamente.
O estado de vigilância permanente da comunidade masculina em relação às
mulheres é chamado de ijoi ixiharusuterere, traduzido como “desconfiança dos homens”.
Durante a iniciação, os meninos têm que dormir todos os dias de reclusão na Casa Grande,
porque os homens temem que eles contem os segredos às mulheres. Espera-se que os
homens estejam sempre alerta quanto às atitudes femininas, pois se supõe que as mulheres
estão também sempre interessadas em saber o que acontece no mundo masculino. Aytai
(1988a:48) sugere que as pinturas corporais masculinas no queixo e ao redor da boca
teriam o significado de uma vedação simbólica, de “não deixar a boca falar”, enfatizando o
“cuidado com os segredos” rituais. Quando as mulheres estão juntas, não é recomendado
que riam muito alto, o que pode levar à suspeita de que elas estão falando sobre os
segredos ou olhando indiscretamente as atividades dos homens. Ao dançar com os aruanãs,
as moças devem sempre olhar para o chão, evitando descobrir a identidade dos
mascarados, atitude que deve ser repetida pelas mulheres em geral quando os aruanãs
dançam em seus terreiros.
Quando alguém evidencia acidentalmente que os aruanãs são os humanos terrestres
dançando mascarados, seja porque o dançarino tropeça, cai ou deixa cair algo, tosse ou fala
enquanto dança, por exemplo, seja porque alguma mulher ou criança não iniciada vê por
acaso os homens preparando a parafernália ritual no mato, esta pessoa ou algum parente
próximo torna-se rubuoraruna, “marcada para morrer” por feitiço. O mesmo ocorre no
caso das dançarinas (adusidu) que acompanham os aruanãs, as quais não podem cometer
qualquer deslize durante a dança, que é sempre um momento de alta tensão para os

589
envolvidos e seus parentes próximos. A morte iminente pode ser revertida se a comunidade
masculina vingar-se do ocorrido, o que pode se dar através de uma luta ritual, entre os
homens como um todo e o transgressor, ou através do estupro coletivo da transgressora.
Em última análise, são punidos aqueles que contribuem para trazer à consciência pública
não apenas a verdade dolorosa da perecibilidade dos corpos, mas também o desejo
masculino de viver em um mundo sem mulheres 50 .
Se um homem que está dançando como aruanã cometer alguma falha grave, como
deixar cair no chão algum enfeite da máscara ou a vasilha com mel que está carregando, os
jyrè (recém-iniciados a quem cabe vigiar a performance ritual) denunciam o fato na Casa
dos Homens. Imediatamente, os aruanãs param de dançar e os homens/worosy dão um
grito especial dentro da Casa dos Homens, anunciando uma luta ritual. Revivendo-se o
mito, ocorre então um enfrentamento entre o homem que estava dançando, que pode ser
ajudado pelos parentes presentes, e os outros homens, principalmente os grandes lutadores.
Nesses momentos considerados graves, as duas partes que se opõem são os worosy da Casa
dos Homens – os Ijaura e Tabuhana – e o infrator e seus parentes, associados
simbolicamente ao delator mítico e sua mãe imoral. Em outras palavras, trata-se dos
guardiões da ordem versus os transgressores que provocam a desordem e, com ela, a
morte. O infrator é chamado explicitamente de òdudu (“inimigo”) dos homens em geral e é
associado à imoralidade feminina.
Os que lutam em nome da Casa dos Homens preparam-se dentro da casa usando
uma tira de palha na cabeça, na cintura, braços e pernas, além de uma pena dos aruanãs na
cabeça, como se fosse o raheto (cocar) dos homens/worosy. Um lutador famoso vem
correndo pela estrada onde os aruanãs estavam dançando e pega o enfeite caído, ocasião
em que emite novamente o grito dos worosy. Ele volta para a Casa dos Homens, onde
guarda o enfeite. A seguir, os representantes dos Ijaura e Tabuhana saem da casa para a
luta, em silêncio, seguidos então pelo “inimigo”, que deve idealmente vir acompanhado
dos parentes próximos. Como o aruanã é uma dupla, o companheiro de dança também
pode ser chamado para lutar contra os worosy, mesmo sendo inocente, tendo o direito de
ser ajudado pelos seus próprios parentes. Os Javaé lembram de um caso de um homem que

50
Em sua revisão da literatura etnológica amazônica sobre a questão do gênero, Lasmar (1999:151) lembra
que nos estudos sobre as sociedades secretas masculinas, em especial aquelas relacionadas aos instrumentos
musicais sagrados, como no alto Rio Negro e alto Xingu, as simbologias e práticas respectivas foram
interpretadas como “expressão de uma fantasia masculina de auto-suficiência” ou “tentativa de criação ritual
de um mundo unissexual”. Os Bororo (Crocker, 1985), próximos culturalmente aos Javaé, também convivem
com uma série de restrições rituais às mulheres, de modo mais marcante que os Jê centrais e setentrionais.

590
só tinha um tio já idoso para acompanhá-lo no momento da luta, quando então apanhou
muito dos worosy, chegando a perder sangue pelo nariz e pela boca. Dizem também que
aqueles que são lutadores famosos chegam a amarrar os enfeites das máscaras de aruanã
com displicência, propositadamente, para que caiam e possam exibir sua força e técnica
nas lutas.
O estupro coletivo das mulheres não ocorria como parte integrante de uma
cerimônia masculina, como entre os Kayapó (Lea, 1992), mas como punição à violação do
segredo masculino. É em muitos aspectos similar ao que ocorria entre os Tapirapé
(Wagley, 1988) e no alto Xingu (Gregor, 1985), onde há uma preocupação com os
segredos relativos aos instrumentos musicais sagrados. Tal forma de violência sexual é o
equivalente feminino, em termos de punição, das lutas masculinas. Em 1997/1998, ainda
viviam entre os Javaé 13 mulheres, já idosas, que passaram por esta experiência há
algumas décadas, interrompida a partir dos anos 70. Toral (1992) relata um caso de estupro
coletivo ocorrido em uma extinta aldeia Javaé nos anos 50.
Com exceção dos parentes ou afins próximos, um homem que visse alguma mulher
infringindo o segredo deveria denunciar o ocorrido na Casa dos Homens, ao xamã dono do
aruanã “ofendido”. Caso o xamã decidisse pela punição através do estupro coletivo, ele
pedia autorização aos pais da mulher e, à noite, os homens vinham buscá-la, liderados pelo
próprio xamã ou por algum parente seu respeitado, que fosse um grande lutador ou orador.
A mulher não era levada à força, cabendo a ela ou a sua família o direito de recusar a
punição na forma de violência sexual. Mas os Javaé dizem que, em geral, as mulheres e
seus parentes não ofereciam resistência nesses casos porque tinham que escolher entre a
morte da infratora ou de um parente, por feitiçaria, e o sacrifício do estupro, optando pelo
último. O líder do grupo que buscava a transgressora fazia-o em nome da Casa dos
Homens, mas ele sabia que, inevitavelmente, seria considerado um inimigo da família da
vítima a partir de então, que trataria de se vingar de algum modo. Chegando à Casa dos
Homens, cabia ao xamã o direito de ser o primeiro a estuprar a mulher.
Quando a infração envolvia um aruanã, a violência sexual ocorria dentro da Casa
dos Homens e a mulher era estuprada deitada sobre a máscara do próprio aruanã; no caso
do envolvido ser outro tipo de mascarado, como um ixyjukuni (“corpo velho do
estrangeiro”) ou korera (“corpo velho do jacaré-tinga”), o estupro ocorria no mato, tido
como o lugar de origem deles. Depois do xamã, os outros homens da aldeia eram
convidados para estuprá-la, o que era evitado somente pelos parentes ou afins mais

591
próximos, estendendo-se o convite, posteriormente, para os homens das outras aldeias. Os
Javaé lembram de um caso antigo, ocorrido na aldeia Marani Hãwa, em que vieram até
homens das aldeias Karajá, onde ainda se tem notícias da mesma prática 51 . Se uma
aderana se recusasse a ter relações sexuais com alguém em especial, como os velhos, feios
ou sujos, ele tinha o direito de bater nela. Nesses casos de recusa, a vítima poderia ter o
sofrimento agravado, sendo colocada em cima de um formigueiro enquanto era estuprada,
por exemplo.
Os parentes da mulher podiam lutar com os estupradores enquanto a vítima
permanecesse à disposição da Casa dos Homens. Durante esse período, ela continuava
morando com a mãe ou o marido, caso fosse casada, sendo levada pelos homens todas as
noites ou sempre que alguém a solicitasse, com exceção dos dias em que estivesse
menstruada. No caso de um homem ter sua esposa levada para a Casa dos Homens, não
cabia a ele lutar por ela, mas apenas aos parentes da mulher, em especial os seus irmãos
reais e classificatórios próximos. No dia seguinte ao primeiro dia de violência sexual, os
irmãos e primos da vítima tornavam-se worosy e lutavam com os que a violentaram
durante a noite para “passar a raiva” (tawoixina). Como era impossível lutar com todos os
homens da aldeia, eles convidavam para a luta, que poderia se repetir outras vezes, apenas
os seus inimigos ou rivais antigos, os quais não podiam recusar o convite. Segundo os
Javaé, apenas em alguns casos aconteciam essas lutas, pois nem todas aderana tinham
muitos primos e irmãos fortes o suficiente para desafiar os outros.
Tanto nas lutas decorrentes de um estupro quanto naquelas relacionadas a um erro
na performance ritual masculina, as partes que se confrontam são a Casa dos Homens e os
inimigos do segredo masculino, associados ao mundo feminino. Depois que todos os
homens de uma aldeia tivessem relações sexuais com uma infratora, cabia ao xamã que a
levou para a Casa dos Homens e a estuprou em primeiro lugar decidir o dia em que estaria
suspensa a punição, o que poderia durar dias, meses ou mesmo anos, diferentemente dos

51
Pouco tempo antes do meu primeiro trabalho de campo, em 1990, uma aderana Karajá, que havia se
encontrado com os homens no mato em um momento ritual proibido, ficou à disposição dos Javaé, em
Canoanã, depois de ter circulado em todas aldeias Karajá. Castelnau (1949), que esteve entre os Karajá em
1844, descreve pela primeira vez o tabu em relação às máscaras e a punição aos infratores, incluindo as
mulheres. Ehrenreich (1948) registra a prática de estupro coletivo das mulheres Karajá no fim do século 19,
associada às infrações rituais, assim como Fénelon Costa (1978), Donahue (1982), Bueno (1987), Toral
(1992), Lima Filho (1994) e Pétesch (2000) cerca de 100 anos depois. No começo do século 20, Krause
(1943a) relata a existência de mulheres Tapirapé e Javaé desempenhando o papel de “prostitutas” da aldeia
entre os Karajá, o que não estava necessariamente relacionado ao contexto cerimonial. Gutemberg (1975),
chefe da 8ª Inspetoria Regional do SPI em Goiás nos anos 40/50, descreve como reprimiu energicamente os
cerca de 10 Karajá de Santa Isabel que ele surpreendeu durante um estupro coletivo ritual. Na ocasião, tinha
sido dada a precedência do ato a um visitante de outra aldeia.

592
Mehinaku (Gregor, 1985), que não violentavam alguém por mais do que uma noite. Uma
mulher poderia ser levada para sofrer a punição pelo fato dela própria ter cometido alguma
infração ou no lugar de algum parente do sexo masculino infrator. Em geral, as substitutas
escolhidas eram mulheres solteiras, jovens ou viúvas, sendo raro se levar uma mulher
casada, que ficava no máximo uma ou duas noites com os homens. Quando era um homem
o marcado para morrer, os xamãs podiam puni-lo violentando sua irmã, a prima verdadeira,
uma filha ou mesmo a própria mãe, mas sua irmã era a categoria preferencial, não cabendo
nunca à esposa de alguém cumprir esse papel.
Há menção a mulheres que simplesmente fugiam do destino violento. Assim que
retornavam à aldeia, a punição estava prescrita, cabendo a ela e sua família apenas
aguardar pela morte de um parente enfeitiçado. Ao fim do período de punição sexual, a
mulher retomava a vida cotidiana com o marido ou casava-se com alguém, mas desde
então ela e seus descendentes estavam marcados pelo fato vergonhoso e poderiam ser
xingados pelos outros de aderana ou filhos/netos de aderana, uma desonra no passado de
qualquer um. A morte dos xamãs que levaram mulheres para a Casa dos Homens, por
feitiçaria, muitas vezes é atribuída a vinganças secretas das mulheres que foram
violentadas quando jovens. Apresento a seguir alguns exemplos de estupros ocorridos na
primeira metade do século passado, em aldeias diferentes:

• Uma mulher pediu para que sua irmã, uma moça jovem (ijadoma bodu), cuidasse
de seu filho durante uma tarde. Os aruanãs estavam dançando e a moça não quis
cuidar do menino. A irmã mais velha correu para bater na moça, que subiu em uma
árvore para fugir. Do alto da árvore ela podia ver o interior secreto da Casa dos
Homens e ser vista pelos homens nessa posição. Na mesma hora ela foi levada para
ser estuprada na Casa dos Homens, tendo gritado muito. Os próprios homens
deram-lhe ervas medicinais para aliviar a dor, mas ela ficou doente e sem andar por
um tempo. Mesmo assim permaneceu na Casa dos Homens.

• Uma moça mais velha (ijadoma raryna) estava dançando com os aruanãs, enquanto
alguns homens estavam chegando de uma caçada e carregando algo para a
confecção de uma máscara de aruanã. Eles vinham do mato, abaixados, para não
serem vistos, mas era uma aldeia pequena e, quando ela saiu da pista de dança,
pode ver os homens em suas atividades secretas. Ela foi levada para a Casa dos
Homens e permaneceu alguns anos como aderana, sendo solicitada sexualmente
por homens Javaé e Karajá de todas aldeias. Todos os dias ela era enfeitada por sua
mãe antes de ser levada para a Casa dos Homens, até que fugiu com um homem
que quis se casar com ela.

593
• Um aruanã estava dançando e um homem contou na Casa dos Homens que o
dançarino deu risadas enquanto dançava. O xamã dono do aruanã ficou com raiva e
buscou a irmã do dançarino, que havia sido abandonada pelo marido, para ser
levada para a Casa dos Homens.

• Uma adolescente de 12 ou 13 anos afastou-se da aldeia em um dia bèrèbuna, de


interdição à locomoção das mulheres, e flagrou os homens em suas atividades
secretas, acidentalmente, na mata vizinha. Nesse caso, ela não foi levada para a
Casa dos Homens, mas foi arrastada por um deles, chorando, com o consentimento
de toda a comunidade, para ser estuprada unicamente por ele, um homem de forte
liderança local, fora da aldeia. Depois ela se tornou aderana dos homens. Tal fato
gerou uma retaliação de um irmão classificatório dela, muitos anos depois, que
violentou a jovem irmã do estuprador, um tipo de vingança (kòwy) socialmente
admitida.

Nas últimas décadas, o termo aderana passou a designar as mulheres que têm
vários amantes antes ou depois de um casamento, muitas vezes em uma única noite, o que
é bastante comum, apesar do ideal de virgindade.
O outro contexto ritual em que as lutas de worosy podem ser convocadas se dá
sempre que um estrangeiro mascarado (ixyjukuni) é trazido pelos xamãs à aldeia, assunto
da parte final. Os homens podem se transformar em worosy e chamar os outros homens
para lutar. Os mascarados que representam estrangeiros mortos no passado chegam no fim
da tarde de um dia e vão embora no outro, depois de serem alimentados por seus “donos”
ou “pais cerimoniais”. As lutas de worosy ocorrem sempre no dia seguinte à chegada dos
ixyjukuni, como tive a chance de assistir em 1997. Nesse mesmo dia, os pais rituais partem
logo cedo para expedições de pescaria na condição de worosy, associados à sua metade
ritual e ajudados pelos parentes e afins respectivos. Ao chegar da pescaria pelo rio,
associado ao lado feminino da aldeia, o grupo de worosy emite o grito específico da sua
metade ritual no pátio masculino. Aproveitando a ocasião, aqueles que querem lutar
transformam-se em worosy e, de dentro da Casa dos Homens, respondem com o grito da
outra metade cerimonial, convocando os homens para uma luta a seguir com os que
chegaram.
Na luta que assisti, dois pequenos grupos de worosy (5 ou 6 pessoas cada)
postaram-se frente à frente no pátio ritual, associados ao rio acima e rio abaixo. Antes da
luta, trocaram de lado três vezes, enquanto emitiam o grito da sua metade de origem,
voltando ao fim ao lugar inicial. Iniciada a luta, quem derrubava o outro no chão
comemorava a vitória levantando o punho para o alto e anunciando, através de um grito, a

594
sua vitória. O mesmo chefe cerimonial que recebeu os ixyjukuni no dia anterior fazia a
mediação da luta. Essas lutas ocorrem independentemente de qualquer transgressão aos
segredos masculinos e são convocadas com o objetivo implícito de revanche contra os
inimigos familiares ou rivais de luta. Ao terminar a luta, os worosy entraram para a Casa
dos Homens e os pais de ixyjukuni retornaram para as suas casas a fim de buscar um
grande saco repleto de produtos agrícolas. Nas extremidades femininas respectivas das
pistas de dança dos aruanãs, os pais rituais aguardavam os ixyjukuni para entregar a eles o
saco maior, que seria carregado com a ajuda dos homens, e um outro pequeno, que serviria
para a alimentação deles durante a “viagem” invisível de volta ao mundo de origem.
Neste caso, trata-se de um confronto entre os worosy da Casa dos Homens e os
worosy que alimentam os “corpos velhos dos estrangeiros”, na condição de donos ou pais e
que, portanto, estão identificados com eles. O desdobramento da luta e a disposição
espacial dos personagens envolvidos mostra claramente que os donos de ixyjukuni são
vinculados ao lado feminino, em oposição simbólica aos worosy da Casa dos Homens. Os
pais dos estrangeiros mascarados opõe-se aos worosy da Casa dos Homens quando chegam
da pescaria pelo lado do rio, sendo desafiados pelos que estão na Casa dos Homens, e
quando alimentam os mascarados na extremidade feminina da pista ritual. Esta seria mais
uma forma de reviver o mito de origem, que opõe a coletividade masculina ao mundo
feminino, na medida em que o estrangeiro (ixyju) é associado simbolicamente à
coletividade feminina (ixy). Aqui, diferentemente do caso anterior, o antagonismo entre
masculino e feminino toma a forma de iny (Javaé) versus ixyju (estrangeiro), Casa dos
Homens versus donos de mascarados, uma versão possível da mesma antítese. No ritual de
iniciação Karajá, há uma versão dessa oposição, pois existe uma rivalidade ritual entre os
moradores da aldeia (em especial “os pioneiros”), associados ao rio acima, e os visitantes
(“os de fora”), associados ao rio abaixo 52 .
Por fim, segundo a “lei dos Javaé”, nas palavras deles, toda vez que um menino é
iniciado, sendo levado do ixy (coletividade feminina) para o ijoi (coletividade masculina)
pela primeira vez, os homens lutam como worosy, embora essa regra não seja tão seguida
atualmente. Isso pode ocorrer quando é realizado o ritual da Casa Grande completo, a
forma socialmente mais correta, porque resulta em grande quantidade de prestações
alimentares feitas pelos pais do jovem, ou quando o menino é iniciado de formas
alternativas, de menor prestígio, com pouca comida distribuída para a Casa dos Homens.

52
Toral (1992:120-121), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

595
As formas alternativas podem ser feitas realizando-se algumas partes apenas do ritual,
como a chamada de “Metade da Casa Grande” (Hetohoky Wèkèrè), o que seria uma
herança do extinto povo Halylyra, ou incluir apenas aquela parte em que os latèni (tio
materno do aruanã) vêm buscar o menino na casa de sua mãe, considerada a mais
importante, e que dá nome a essa iniciação alternativa, chamada simplesmente de Latèni
ou Hererawo (nome também de uma brincadeira de aruanã).
Os pais e tios de um menino também podem combinar com os homens que o
menino será levado para a Casa dos Homens, pela primeira vez, depois que são realizadas
uma das seguintes brincadeiras de aruanã: Kobiku, Hanyky ou Iwodudu. Então ocorre, de
modo mais resumido, o processo de “aconselhamento” que os meninos sofrem em todas as
iniciações, quando são instruídos pelos worosy, principalmente, sobre as razões do dever
de se respeitar os segredos masculinos. Um tipo de iniciação que existia antes, mas nunca
ocorreu em Canoanã, era chamada de Jyrè Saura, e ocorria quando havia uma necessidade
excepcional da Casa dos Homens de jyrè (os que estão se iniciando e os recém-iniciados)
para realizar atividades rituais. Alguns meninos eram então levados diretamente para a
Casa dos Homens, sem a participação de nenhum tipo de mascarado, quando ficavam um
ano inteiro sem cortar o cabelo, sem furar o lábio para colocar o kòluò, um batoque labial,
ou sem se pintar completamente com o jenipapo, os marcos da iniciação. Uma outra forma
de iniciação masculina, ainda realizada e considerada a mais vergonhosa de todas, assunto
da última parte, ocorre quando um menino é “roubado” (wasina) pelos homens a mando de
um xamã e transformado diretamente em ixyjukuni, o estrangeiro mascarado, sem passar
pela Casa dos Homens 53 .
Por ora basta saber que em todos esses tipos de iniciação masculina, os tios
maternos dos meninos devem se tornar worosy para lutar ritualmente com os outros
homens, também transformados em worosy. Como nas outras ocasiões, os worosy
aproveitam para lutar com os seus inimigos/rivais. É significativo que o que está sendo
colocado em evidência é o forte vínculo dos irmãos da mãe com os filhos de suas irmãs,
exatamente como ocorre nas brincadeiras de aruanã. A luta expressa simbolicamente a
ligação do menino com a casa natal e o tio materno, este último levado à posição de
defender publicamente o vínculo que a coletividade masculina tenta romper. Nas lutas
53
Toral (1992:260) descreve três formas de iniciação entre os Karajá e Javaé: a realizada com os latèni, a
mais “comum” e “econômica”, o ritual mais completo da Casa Grande, e a feita com os ixyjukuni, que era o
único ritual que ainda se mantinha entre os Xambioá. O autor afirma que, “geralmente, os Karajá e Javaé
fazem seus filhos passarem por todos os processos de iniciação” (1992:263) listados, o que não se aplica em
absoluto aos Javaé, que realizam apenas um único tipo de iniciação para cada pessoa.

596
entre os worosy da Casa dos Homens e os tios maternos dos jovens que se iniciam atualiza-
se novamente a mesma oposição do mito de origem. Afinal, o mito conta que foi a forte
ligação de um menino à sua mãe que desestruturou a ordem original, defendida por Ijaura
e Tabuhana.
Essa ligação à mãe/casa materna – e conseqüentemente ao mundo feminino – é
representada simbolicamente pelo tio materno durante as lutas rituais, opondo-se à
coletividade masculina. Neste caso, mais uma vez, a oposição relevante não é entre os
Javaé e os estrangeiros, ou entre parentes e estranhos, mas entre o mundo feminino imoral
(associado à casa materna) e o mundo masculino portador da lei (Casa dos Homens). Lima
Filho (1994:121) considera que o “grande tema” do Hetohoky Karajá é a relação de
complementaridade e oposição entre os sexos. O jovem iniciado e ainda não casado,
antigamente, tinha que passar a maior parte do tempo junto aos outros homens, nas
atividades cerimoniais, voltando para casa apenas para dormir, como se a convivência com
as mulheres fosse um risco sempre presente não só de contaminação, mas também de ser
seduzido para transgredir a ordem. Quando ele se casava, seu tempo deveria dividir-se
entre as atividades produtivas e as atividades cerimoniais, restando muito pouco para a
convivência com a esposa e os afins.

Foto n° 10: Um jyrè a ser iniciado no dia de chegada da dupla de latèni, que é controlada
pelo xamã (aldeia São João, 2006)

597
As lutas rituais indicam que é necessário um grande esforço por parte da
coletividade masculina para romper a ligação “imoral” de um menino ao mundo feminino,
embora isso não signifique, como veremos adiante, uma ênfase na ruptura das ligações
com a casa materna, ao modo Kayapó (Turner, 1979b) ou Suyá (Seeger, 1981). Além do
mais, qual a razão de tantas ameaças e punições concretas aos que revelam os segredos
masculinos a não ser a convicção profunda dos homens – ou o temor – de que a ligação de
um homem e sua mãe é mais forte do que a cumplicidade ritual masculina? Como já disse
Lima Filho (1994:132) a respeito da relação entre uma mãe e seu filho Karajá, mesmo
depois dele casado, “é uma relação tão forte que, se o Hetohoky não a rompe de uma vez,
no mínimo faz com que o grupo se manifeste ritualmente e socialmente no sentido de
atenuá-la”.
Não foi outra coisa a razão do fim dramático do povo da aldeia Iny Wèbohona há
muito tempo atrás, o motivo pelo qual, desde então, os homens assumiram o papel
vigilante a que estão acostumados. No entanto, tudo leva a crer que a vigilância maior não
se concentra no comportamento imoral das mulheres em si, mas na possibilidade de que o
vínculo entre um homem e sua mãe imoral, o que aqui não tem uma conotação
naturalizante, seja mais poderoso do que aquele construído a duras penas pela coletividade
masculina.

598
Capítulo 8

Primogenitura e hierarquia na casa natal

8.1. O Rei

Na mitologia histórica, o valor superior do primogênito surge através do povo de


Tòlòra, em Marani Hãwa, quando o iòlò transmite a sua condição nobre para o filho
primogênito, Timyjuy, inaugurando a linha de sucessão que continua até os dias de hoje. O
primeiro filho é chamado de kuladu tymyra ou kuladu dèla, expressões que aparentemente
se opõem, pois significam literalmente “criança (kuladu) nova (tymyra)” ou “criança
(kuladu) mais velha (dèla)”. O conceito de “novo” (tymyra) aqui não significa o filho que
nasceu por último e por isso é o mais novo, mas apenas que se trata do primeiro filho a
surgir, aquele que foi o “novo” para os seus pais. O caçula é referido pela expressão kuladu
roko, em que roko tem o sentido de “extremidade”, “fim”, “último”, ou simplesmente de
“resto”, como na expressão iny roko, que se refere aos humanos originais que restaram no
Fundo das Águas depois que alguns resolveram ascender a este plano.
Do mesmo modo, os primeiros que saíram são chamados de iny dèlè (variação de
dèla), os “primeiros humanos”, no sentido de serem os mais antigos no nível terrestre, em
comparação aos que saíram depois, havendo uma nítida analogia entre a saída mítica e a
saída do útero. O primogênito é mais respeitado por todos e pelos outros irmãos – ele é
chamado de hykyrikòrè, “o filho respeitado” – porque é concebido como “o primeiro que
abriu ou passou pelo caminho dentro do corpo” (rywinykydu) de sua mãe, assim como os
heróis míticos foram os que abriram os primeiros caminhos neste mundo, estabeleceram as
primeiras leis e feitos criadores. Essa expressão, cujo sentido geral é “o que faz o caminho
pela primeira vez”, pode ser usada também para o primeiro que fez um caminho no mato
ou o primeiro que teve relações sexuais com uma mulher. Os irmãos referem-se ao
primogênito como warywinykydu, “aquele que fez (kydu) o meu caminho (wary)
primeiro”, havendo uma associação entre a partícula wii, que tem o sentido de “bom” ou
“correto”, com o conceito de “primeiro”.

599
Os filhos em geral são associados ao nível cósmico intermediário, concebidos como
corpos que fazem a mediação entre a substância paterna estática (rio acima) e a influência
materna criativa (rio abaixo), entre o estado de fechamento e purificação (identidade de
parentesco com os aruanãs) e o estado de abertura e poluição do corpo (condição de
“estranho” durante o período de resguardo). Entretanto, dentro do conjunto de filhos de um
casal, primogênito e caçula são vistos como os extremos polares de um continnum corporal
formado por todos os siblings, enquanto versões diferentes de uma mesma mistura
substancial original. Nessa condição, o primeiro e o último filho são relacionados,
respectivamente, aos extremos cosmológicos rio acima e rio abaixo, havendo entre ambos
uma diferença radical de prestígio. Pretendo propor que o valor maior do primogênito está
no fato de que, quando comparado ao irmão caçula, ele é o que se encontra mais próximo
da essência original dos doadores de substância, por ser aquele cuja substância herdada
sofreu menos transformações, estabelecendo-se entre primogênito e caçula o mesmo
contraste simbólico e hierárquico que existe entre rio acima e rio abaixo, masculino e
feminino, estatismo e transformação. Em uma versão mítica, o povo Xambioá é o que saiu
mais “atrasado” de baixo, ou seja, por último, como os caçulas, indo por esta razão morar
no rio abaixo, onde estão até hoje, “envergonhados”.
O primeiro filho de um casal é o primeiro produto da mistura das substâncias
originais de um homem e uma mulher que dão forma a um novo corpo. O caçula, em
contraste, é o último produto de uma série de transformações da substância de seus pais,
supondo que tiveram mais de um filho, sendo quatro o número de filhos considerado ideal
pelos Javaé. O caçula é, na verdade, o que está mais distante da essência original dos
doadores de substância, uma vez que a geração de cada novo filho implica em uma nova
transformação da energia vital inicial dos genitores. De fato, a terminologia de parentesco
confirma essa hipótese, uma vez que o primogênito é chamado pelos outros irmãos pelo
vocativo wakumydèla, “o meu (wa) primeiro (dèla) corpo (kumy)” ou “o meu corpo
(wakumy) mais velho (dèla)” (ver Donahue, 1982, sobre o mesmo termo entre os Karajá).
O irmão mais novo pode chamar todos os outros irmãos de wakumydela boho, “meus
primeiros corpos”.
O caçula, por sua vez, pode ser chamado pelos outros irmãos de wanykybò ou
waroko, em que esta última tem o sentido de algo como “meu resto”, “meu fim”, “meu
último”. Pode ser chamado também de wakõnana, em que kõnana é o “limite final” ou
“extremo” de algo, como na expressão (já apresentada) bèdè kõnana, “o fim do mundo”,

600
que se refere ao limite extremo do universo. Assim, o caçula pode ser “meu (wa) fim
(kõnana)” ou “o fim de mim mesmo”. Ou seja, os siblings são pensados como versões
sucessivas de um mesmo corpo ou mistura energética original, como entre os Cashinahua
(McCallum, 2001:33), que chamam os irmãos (filhos de um mesmo pai e mãe) de “outro
eu”. Mas no caso Javaé, embora sejam feitos da mesma substância, subentende-se que, a
cada nova fusão energética, os irmãos que se sucedem tornam-se cada vez mais diferentes
do primeiro corpo gerado.
O primeiro corpo é a primeira versão – a menos transformada – de uma mesma
mistura substancial, enquanto o caçula é a última versão – a mais transformada – do corpo
fabricado pelos genitores. Como o primeiro filho é o que abre o corpo de seus pais pela
primeira vez, iniciando o processo mortal de perdas energéticas dos genitores, ele é feito da
substância original que se mantinha intacta e purificada dentro do corpo fechado de seus
pais antes da procriação; já os outros filhos, cada vez mais, são produtos das substâncias
dos genitores cujos corpos foram violados e contaminados pela alteridade antes, tendo
passado, pelo menos uma vez, pelo processo impuro de transformação radical que significa
gerar um filho. O último filho de um casal é desvalorizado por ser o “fim” ou “resto” de
uma mistura energética que atingiu o melhor de sua expressão na forma do corpo do
primogênito, porque os Javaé sempre consideram como de maior valor tudo aquilo que está
mais próximo da forma original e imortal, como o extremo rio acima e os corpos
masculinos 1 .
Pode-se dizer que, em termos simbólicos espaciais/corporais, é como se os
primogênitos e sua forma mais preservada estivessem mais próximos do extremo rio
acima, enquanto os caçulas, que estão no fim de uma série de transformações energéticas,
estão no extremo rio abaixo, repetindo a caminhada de Tanyxiwè entre um início estático e
um fim totalmente alterado. Ou que os primogênitos associam-se à cabeça e à comida
apetitosa e inalterada que entra no corpo pela boca, enquanto os caçulas associam-se aos
pés e à comida que sai pelo ânus, totalmente transformada, na forma de fezes repugnantes.
Assim, é possível sugerir que o corpo do caçula é um corpo feminilizado, associado a uma
maior transformação, enquanto o corpo do primogênito é um corpo masculinizado e, por
isso, associado ao prestígio social mais aparente e público. Entre os Barasana (Tukano) do

1
Entre os Bororo (Crocker, 1985:42), “o primogênito de um jovem casal deve ser uma criatura vigorosa que
reflete os atributos de seus pais quase perfeitamente. Mas ser um caçula de um casal idoso é entrar na vida
empobrecido de seu elemento mais essencial”. Os siblings que nascem após o primogênito “seriam menos e
menos imbuídos com o raka, sendo tratados cada vez menos com atenção especial” (1985:93).

601
alto Rio Negro (C. Hugh-Jones, 1979), encontramos um conjunto bastante similar de
oposições simbólicas, pois o contraste hierárquico entre primogênito e caçula também é
associado ao contraste entre masculino e feminino, permanência e renovação, leste e oeste,
chefe e servo, cabeça e porção inferior do corpo (ânus) 2 .
Em termos gerais, a diferença entre primogênito e caçula é equivalente à que os
Javaé atribuem aos irmãos gêmeos, que partilham da mesma heterogeneidade identificada
por Lévi-Strauss (1993), de modo recorrente, na mitologia do continente americano (ver
Guimarães, 2005, sobre o mesmo tema entre os Sanumá). Os Javaé chamam os gêmeos de
wihaju, “emendado”, e elaboram a temática da gemelaridade no mito de Tanyxiwè. Não
havia o costume de matar os gêmeos, ao contrário do que registra Bueno (1975, 1987)
entre os Karajá, que matariam o segundo a nascer, mas em geral eles eram evitados, se
possível, por causa da dor dupla no parto. As mulheres não deviam comer duas bananas
“emendadas”, pois se acreditava que elas favoreceriam o nascimento de gêmeos, o mesmo
tendo sido informado a Aytai (1979a) pelos Karajá de Aruanã. O episódio da gravidez
dupla de Myreikò e seus desdobramentos – ela conversa com o filho na barriga e depois ele
cria as armas dos brancos – é uma versão explícita do grande ciclo ameríndio de mitos de
gêmeos analisado por Lévi-Strauss. No mito, Myreikò engravida de Tanywixè e, depois, de
Kujã (mucura), não havendo menção a qual dos gêmeos nasceu antes. Mas sabe-se que
Kujã era um irmão mais velho classificatório de Tanywiwè, o que parece estabelecer uma
relação de anterioridade e posterioridade, respectivamente, entre o filho de Kujã e o de
Tanyxiwè, a mesma existente entre primogênito e caçula.
Ao fim do mito, o filho de Kujã estabelece-se no rio acima, onde os objetos são
mais fracos, e o filho de Tanyxiwè permanece no rio abaixo, onde os objetos são mais
fortes. No rio abaixo está a criativa e poderosa tecnologia dos brancos, pois é o filho de
Tanyxiwè que cria as espingardas. Por outro lado, é o filho de Kujã que cria os raios e
relâmpagos, de poder muito maior que as armas de fogo, embora inacessível aos humanos
terrestres, assim como a imortalidade. Há um poder inegável dos objetos, pessoas e

2
Entre os Tukano, porém, o movimento mítico da sucuri ancestral que deu origem aos grupos patrilineares
foi feito da boca do rio em direção às suas cabeceiras, em um sentido oposto à caminhada de Tanyxiwè (ver
Chernela, 1988, 2000). Desse modo, o prestígio social, o primogênito e o masculino associam-se ao rio
abaixo, invertendo o mesmo tipo de simbolismo no que se refere ao eixo espacial. Além disso, C. Hugh-
Jones associa o primogênito às relações com a exterioridade e o caçula com a negação dessas relações, o que
também seria o inverso dos Javaé. Por fim, os processos de desenvolvimento social masculino são
interpretados como uma abertura gradual do corpo, enquanto entre os Javaé o controle social exercido pelos
homens constitui-se do esforço de fechamento dos corpos.
3
C. Hugh-Jones (1979), Jackson (1983), Silverwood-Cope (1990).

602
situações associados ao rio abaixo, mas o rio acima é uma posição de controle (ou dos
corpos controlados), superioridade moral e do verdadeiro poder almejado, de modo que,
em última instância, embora tenham uma tecnologia inferior, os Javaé se vêem exercendo
algum poder ordenador sobre o caos representado pelo poder imenso dos brancos. Os dois
gêmeos míticos estabelecem ao final uma relação de reciprocidade e são associados,
respectivamente, a rio acima e rio abaixo, controle relativo e poder destrutivo, poder da
continuidade (imortalidade) e poder da transformação (tecnologia), prestígio e
desprestígio, identidade e alteridade. Trata-se da mesma caracterização simbólica
associada aos primogênitos e caçulas, como veremos a seguir.
No mito sobre Marani Hãwa, o filho primogênito de Tòlòra chama-se Timyjuy e o
caçula, Haruèsi. Enquanto o primeiro herda a condição do pai, dando continuidade à sua
missão de pacificador e conciliador, o segundo é o personagem central do contato entre o
povo de Tòlòra e o povo Wèrè, que havia se instalado na aldeia vizinha Imotxi. Haruèsi é
capturado e adotado pelos Wèrè, passando por um processo de transformação entre eles,
onde troca os adornos e costumes antigos pelos hábitos e enfeites mais bonitos dos Wèrè.
Segundo o tradutor, “transformaram (Haruèsi) numa pessoa civilizada”. É significativo,
portanto, que a condição de transformação corporal e social é associada no mito ao caçula,
ao passo que a continuidade social é atribuída ao primogênito. A oposição entre Tòlòra e
os Wèrè também pode ser interpretada como uma oposição entre o que surgiu primeiro e o
que veio por último, como primogênito e caçula. Tòlòra ascendeu logo depois da conquista
do Sol, enquanto os Wèrè são tidos como os últimos povos que ascenderam ao nível
terrestre. O primeiro representa a continuidade e o último a transformação, pois eram os
Wèrè que capturavam bens materiais e rituais de outros povos. No mito de Kwely, o corpo
feminino é o “último”, em comparação ao masculino, o “primeiro”, na medida em que o
herói cria o corpo e a genitália de sua esposa, que não existiam antes.
Em um outro fragmento mítico, incluído nas andanças de Tanyxiwè pelo mundo e
aqui resumido por mim, a mesma associação entre o caçula e a alteridade ou transformação
é reforçada:

Makolokolo é morto pela abelha Huy no alto de uma árvore. Sua avó fica sabendo
e chora por ele. Ao chegar ao lugar, encontra o neto transformado em um aõni que só se
alimenta de outros aõni (como Leimylò e Kwadi). Makolokolo e sua avó passam a morar
no alto da árvore do jatobá e ele coloca ovos pelo ânus. Em um outro episódio,

603
recusando-se a seguir o conselho de sua avó, Makolokolo morre novamente, no Fundo
das Águas. A avó espera os ovos eclodirem. Nascem vários tipos de gaviões, Toritori,
Burukuku, Asimydoho, Nawakihiky, Asybòròri, Weweni, Kositamaru, Kyrahèhiky.
Todos dizem que são tybyusè (“parecidos com o pai”), mas a avó de Makolokolo não
acredita, porque eles comem animais como lagartixa, rato, jacu, macaco, camaleão,
diferentes dos aõni que o pai comia. A avó manda os gaviões embora e desde então eles
têm a sina de comer esses animais e de aparecer como presságios negativos para os
humanos. Do último ovo, o caçula de Makolokolo, nasce Kobiku, um pássaro que não é
da família dos gaviões. Assim como o pai, ele se alimenta apenas de aõni e, então, a
bisavó o aceita como bisneto verdadeiro. A bisavó avisa Kobiku para que ele não tente se
alimentar de Tanyxiwè, que naquele tempo andava pelo mundo, porque ele era muito
poderoso. O bisneto não segue o conselho e tenta devorá-lo. Kobiku cai no meio da lama
e Tanyxiwè transforma-o, desde então, em um aõkõkõ, “um ninguém”, que não é capaz
de matar nada e que vive só na lama. Ele leva lama para a bisavó comer, mas ela o manda
embora e lança uma praga, para que ele só cante para as pessoas como mau presságio.
Assim é até hoje.

Ao lado da idéia de que o pai fabrica o filho e por isso os filhos são parecidos com
o pai, temos de modo explícito as duas características importantes do filho caçula: ele é o
“diferente” em relação aos outros irmãos, estando por isso ligado à idéia de transformação;
e, ao fim da história, ele é transformado por Tanyxiwè em um “ninguém”, um ser que só
desempenha funções desprezadas, como viver na lama e ser incapaz de obter algum
alimento de valor. Por isso, apesar de ser reconhecido como bisneto legítimo, sua bisavó
deserda-o e condena-o ao abandono e a uma vida de anunciante de maus agouros. Veremos
a seguir que o caçula, quando comparado ao primogênito, é de fato um deserdado social
nas práticas diárias. Embora não chegue a receber ordens do irmão mais velho, como entre
os Tukano (C. Hugh-Jones, 1979), trata-se de alguém cujo desprestígio contrasta
fortemente com o elevado status do filho mais velho. Repetindo o que ocorre entre estes
últimos, os Javaé também parecem associar simbolicamente a oposição hierárquica entre o
prestígio do primogênito e o desprestígio do caçula ao contraste entre chefe e servo,
vencedor e cativo ou, atualmente, patrão e empregado. Donahue (1982:191) diz que, entre
os Karajá, em uma mesma geração, “o mais velho é sempre o indivíduo dominante”.

604
Não parece ser mera coincidência o fato de Haruèsi, o filho que é capturado e
mantido cativo pelos Wèrè, ser justamente o caçula de Tòlòra. Os Javaé possuem o
conceito de wetxu, que pode ser traduzido como “cativo”, “subordinado” ou “empregado”,
conforme o contexto, e que denota uma posição inferior de subserviência ou de
desprestígio em uma relação hierárquica, em termos gerais parecida com a do povo Maku,
do ponto de vista dos Tukano do alto Rio Negro 3 . O conceito de wetxu contrapõe-se ao de
wèdu (“dono” ou “controlador”), como já havia sido notado por Pétesch (2000). Wèdu é
normalmente aplicado aos caciques (ixywèdu, “dono do povo”) e aos proprietários dos
bens rituais (irasò wèdu, “dono de aruanã”, por exemplo), ambos idealmente primogênitos.
Tanto os recém-iniciados (jyrè), ou seja, os que acabaram de passar por um estado de
transformação, como as mulheres de idade que freqüentam a Casa dos Homens são
conhecidos como worosy wetxu, “subordinados dos worosy”, porque devem realizar
pequenas tarefas a mando dos homens mais velhos.
Wèdu e wetxu seriam, basicamente, o que controla e o que é controlado ou o que
manda (a quem interessa a continuidade do status quo) e o que obedece (a quem interessa a
transformação). Em um certo sentido, é uma relação similar à de homens e mulheres na
esfera pública ou mesmo à de sogros e genros em um primeiro momento, na medida em
que os genros recém-casados estão em uma posição de submissão em sua condição de
devedores. Por outro lado, a relação de um cativo com o seu “dono” também pode ser
pensada como uma relação de “adoção”, similar à que se mantém com os animais
domésticos, como propõe Fausto (1999) de modo mais geral para a Amazônia. Segundo o
autor, as relações de proteção entre pai e filho adotivo ou entre alguém e seu xerimbabo
(animal selvagem domesticado), são “relações prototípicas de controle simbólico nas
cosmologias amazônicas” (1999:936). Esse modelo de relação com a exterioridade, que
pressupõe a dependência de uma subjetividade externa para a reprodução de pessoas ou da
própria sociedade (Viveiros de Castro, 1993), era aplicado aos cativos de guerra e não se
dava necessariamente apenas no idioma da afinidade. Pode-se falar em uma “predação
familiarizante” (Fausto, 1999: 936), em que se controla e protege aquele que é capturado,
transformando um afim simbólico em um parente, o selvagem em doméstico. Este seria o
caso também, muito comum, da relação do xamã com seus “espíritos” auxiliares.
O apresamento de cativos na guerra ou pelo menos uma relação de subordinação
dos vencidos para com os vencedores, o que parece ser mais adequado, é uma prática
associada na mitologia histórica aos Wèrè, que em suas expedições guerreiras pela Ilha do

605
Bananal e arredores mantiveram vários povos derrotados na condição inferiorizada de
wetxu. Ao mesmo tempo, é reconhecida a superioridade moral ou prestígio daqueles
poucos que foram respeitados pelos Wèrè, como os Tapirapé e o povo de Tòlòra. Os Wèrè
eram guerreiros vencedores, mas foram vencidos moralmente, ao final, por Tòlòra. A
relação entre o povo de Tòlòra e os Wèrè é entre o que surgiu primeiro e que surgiu por
último, o que tem mais e o que tem menos prestígio público, o que investe na repetição e o
que investe na criatividade, o que busca a paz e o que cria conflitos, enfim, a mesma entre
o masculino e o feminino. Nas falas cotidianas, os Javaé dizem que o apresamento de
cativos se tratava de uma relação de submissão, em que o vencido de guerra tinha a
obrigação de servir à comunidade com o seu trabalho, embora fosse também protegido e
livre para se movimentar, tendo inclusive acesso a canoas e remos ou arcos e flechas.
Os indivíduos capturados tornavam-se wetxu de toda a população de uma aldeia,
concebida como a “dona” ou wèdu dos cativos, cabendo a eles realizar serviços braçais de
todo o tipo, como cortar lenha, buscar água, pescar, preparar a roça, em troca de abrigo e
comida. Não há menção explícita sobre a captura de mulheres, mas apenas sobre homens
que tinham a obrigação de trabalhar, sendo que alguns eram subordinados a uma família
específica. Os donos dos derrotados abrigavam-nos em suas próprias casas, alimentando-os
e fornecendo os bens necessários para o trabalho. Crianças capturadas eram criadas como
filhos adotivos (bèdèòbyna), como no argumento de Fausto (1999), enquanto os adultos do
sexo masculino eram tratados como servos da comunidade. Em 1997/8, havia um não-
índio muito pobre em Canoanã que realizava serviços para uma família, em troca de abrigo
e alimentação, sendo considerado um wetxu dessa família. O empregado que cuidava do
gado da comunidade, um vaqueiro não-índio, em uma relação de patrão e empregado,
também era tido como uma espécie de wetxu local. A comunidade, por sua vez, na
condição de “patrão”, era “dona” ou wèdu do vaqueiro, responsabilizando-se por suas
necessidades básicas.
Os antigos wetxu eram considerados como devedores de seus donos, a quem
deviam pagar em troca da comida e do abrigo que recebiam 4 . Quando o wetxu de uma

4
Fonseca (1867) relata em 1775 que os Karajá, temerosos dos colonizadores, enviaram um cativo Bororo
para estabelecer contatos com o grupo. Krause (1943a:193) menciona o rapto de mulheres e crianças
Tapirapé pelos Karajá no começo do século 20, apesar das relações pacíficas no passado entre os dois grupos.
Dos inimigos em geral, disse que “as mulheres e crianças aprisionadas aproveitam-se como escravas para o
trabalho”, enquanto os homens eram mortos em batalha. “Os prisioneiros de guerra trabalham em proveito
do respectivo dono (i. é de quem os aprisionou). Em compensação, este lhes fornece comida e roupa. As
mulheres aprisionadas na guerra são usadas, além disso, como prostitutas da aldeia” (grifo do autor). Em
1908, o autor (1940a:181) encontrou uma menina Tapirapé como “escrava” dos Karajá meridionais. Lipkind

606
aldeia ou de uma família morria, ainda dentro da lógica analisada por Fausto (1999), seu
nome era perpetuado através das gerações, sendo dado aos animais domésticos especiais,
como as araras, ou para animais selvagens criados na aldeia, como filhotes de onça ou
outro animal capturado. Os nomes dos wetxu, que são muitos, não são jamais dados aos
humanos, mas podem ser transmitidos aos aruanãs de uma família, uma vez que eles não
conhecem nomes humanos em seus locais de origem. Tanto os animais domésticos de
maior valor (em geral, animais selvagens domesticados) quanto os aruanãs são
considerados nohõ de uma família, um bem especial estimado e cuidado com apreço, como
os nêkrêtch Kayapó (Turner, 1979b, 1984, Lea, 1993). Ao que parece, os estrangeiros
subordinados ocupavam o mesmo tipo de posição com o passar dos anos, pelos quais se
cultivava um sentimento parecido.
Katarawa era o nome de um famoso estrangeiro que servia aos Karajá, enquanto
Tòbòrabèdu, Bèti, Ijõkõkõ, Axiruta, Dèkòròròti, Huija, entre outros, eram servos dos Wèrè.
Outros estrangeiros que morreram tiveram seus nomes dados a duplas de aruanãs, como
Xiwararè, Hãbòkò, Kujairi, Kujahina, Nibònibò, Ijòbòè, Txuriwèdu. Alguns dos nomes
foram dados a araras (machos), como Txurinari, Tèhalari, Diwyhy, Wabiju, Waluniru etc.
Atualmente, esses nomes de antigos cativos do sexo masculino continuam sendo
transmitidos para animais domésticos como cachorros ou galos. São conhecidos como
nomes de cachorros machos Asibèdu, Karalumari ou Ijaraju, enquanto Tekueju foi dado a
um filhote de onça. Embora eu não tenha ouvido falar do apresamento de mulheres, há
indícios de que isso ocorria, pois nomes femininos são transmitidos para cadelas, como
Myrikò, Kusèhèru, Harisadidi, Hatxukòki, Ijaraweke, ou para gatos ou onças fêmeas, como
Dihãbòrò.
Diz-se que agora as pessoas estão esquecendo o nome dos antigos servos e estão
colocando nomes de não-índios em seus animais domésticos, como Maria, apesar dos
brancos não serem considerados um povo wetxu. Uma outra categoria de nomes provém
daqueles indivíduos pertencentes a povos vencidos pelos Wèrè, mas que eram convidados
a participar como aliados nas guerras. Os “ajudantes” (kòbihutinykydu) que morriam
durante as atividades guerreiras eram homenageados tendo seus nomes incorporados nas
músicas do ritual Iweruhuky. Os nomes dos ajudantes podiam ser transmitidos aos
humanos, havendo muitos nomes dos Javaé atuais que se originaram assim (Kurexiwà,

(1948:188) diz que, na guerra, “não se toma cativos, exceto mulheres e pequenas crianças, que são tratadas
como membros completos do grupo”.

607
Halykyja, Hèrytiwana, Wasabèdu, Maruaja, Warikina, Waxiraku, Werekina, Tatxirama
etc). O fato de se nomear os animais domésticos agora com o nome dos não-índios revela
uma associação entre os brancos e uma posição de status inferior, como a dos antigos
cativos, mas também com as qualidades simbólicas de alteridade e transformação dos
caçulas.
É justamente o poder de transformação que confere aos não-índios a sua grande
capacidade criativa e destrutiva. É óbvio que os não-índios como um todo não são nem
nunca foram “servos” dos Javaé, embora haja exceções individuais, mas a questão é que os
Javaé se vêem, de modo inegável, como moralmente superiores aos brancos e seu imenso
poder criativo e destrutivo, como na relação entre primogênitos e caçulas, donos e cativos,
Tòlòra e os Wèrè, homens e mulheres. Mais uma vez, tem-se a idéia de que o poder da
transformação ou criação (dos brancos, das mulheres, dos Wèrè, e dos caçulas ou dos
abandonados socialmente, a ser retomado adiante) é um poder imenso, mas de prestígio
inferior ao poder da manutenção da ordem. Isso explica o aparente paradoxo da associação
dos caçulas, a um só tempo, aos cativos, perdedores na guerra, e aos não-índios, opressores
no contato interétnico.
Tradicionalmente, o filho mais velho de um casal, independentemente do sexo, era
criado por sua avó materna, a principal autoridade doméstica, o que agora é menos
praticado do que antes. A criança tinha uma relação mais próxima com a mãe de sua mãe,
que a alimentava ou mesmo amamentava, quando possível, confeccionava seus enfeites
cotidianos e rituais e com quem deveria dormir junto. O kuladu tymyra é chamado também
de kuladu wènona, “criança especial”, título daqueles que não podem ter um
comportamento social condenável e com quem não se deveria brigar, bater ou xingar.
Tanto a mãe como o pai, mas principalmente a avó materna, deviam aconselhá-lo sobre a
conduta social cotidianamente, começando logo nas primeiras horas do dia.
Diferentemente do que ocorre com os outros irmãos, a avó paterna ou os tios paternos, que
não moram na mesma casa da criança, podem levá-la para passar o dia junto quantas vezes
quiserem, sendo considerado vergonhoso quando os tios ou avós de um primogênito, de
ambos os lados, não lhe dão um tratamento diferenciado. O primogênito, mais do que os
outros, deveria se unir a outra pessoa apenas através do casamento arranjado tradicional
(harabiè).
Cabia ao tio materno real ou classificatório próximo, idealmente, a tarefa de aplicar
em todo o corpo do primeiro filho ou filha de uma irmã, quase que diariamente, até a

608
adolescência, o enfeite belo e delicado chamado dura, feito das plumas de um pássaro
aquático (biguá) que são coladas sobre uma resina vegetal, e que em geral é utilizado pelos
outros filhos apenas em momentos rituais importantes. No caso das brincadeiras rituais, os
tios maternos (ou os tios paternos e os cunhados do pai e da mãe) apenas aplicam a resina,
sendo tarefa das tias bilaterais aplicar as plumas. Também apenas os primogênitos
deveriam usar cotidianamente o kwèju, um adorno auricular feito com penas e com o dente
da capivara, muito valorizado; o loru, um adorno de algodão pintado de preto e amarrado
nos braços e pernas, cujas longas franjas chegavam a se arrastar pelo chão; e, apenas por
parte das crianças do sexo masculino, o latènira (“cabeça de latèni”), um enfeite de palha e
penas de arara que se usava na cabeça até atingir a classe de idade weryry (marreco),
anterior à adolescência. O primogênito que se inicia no ritual da Casa Grande tem o direito
de usar uma pintura corporal especial, e tanto no ritual de iniciação masculina quanto nas
brincadeiras rituais em que o tio materno deve participar junto com o/a sobrinho/a, como
na kuladu biditò, há uma preferência para se levar o sobrinho mais velho. Diz-se que os
tios maternos classificatórios distantes pedem ao tio materno verdadeiro para ter a honra de
acompanhar um primogênito de prestígio nos rituais.
Uma criança que nasceu primeiro é também a causa das visitas freqüentes das tias e
avós classificatórias bilaterais mais distantes, que devem se empenhar em visitar um
primogênito aparentado com muito mais regularidade do que no caso de outros parentes
distantes. Essas mulheres visitantes não se confundem com os bòròtyrè, categoria de
parentes que realiza alguma tarefa e recebe algo em troca, como veremos adiante, e são
chamadas de ruradudu, palavra que tem o sentido geral de “visita”, em que rura significa
“o que está próximo, ao redor”. Ruradudu é “quem fica perto ou ao redor” da criança.
Durante esses encontros que caracterizam a relação de troca que se espera dos parentes, as
visitas pegam a criança no colo, brincam, conversam e riem, devendo ser bem recebidas e
alimentadas pelos pais e avós do primogênito com os produtos da roça ou a bebida típica
de milho ou macaúba, chamada iwèru. Depois que as visitas voltam para a sua casa, a avó
materna da criança pergunta o que elas gostariam de receber em troca pela visita,
entregando a elas o que foi pedido. Os Javaé dizem que, por causa dessa criança especial, a
casa está sempre cheia de gente e alegre, os pais e avós devendo sempre demonstrar
satisfação e contentamento com os visitantes que aparecem.
Os primogênitos são o centro das atenções e do afeto de uma família, sendo
referidos pelo termo derina (“querido”), que existe também na forma vocativa (waderina)

609
e que indica prestígio e um cuidado especial. Ouvi mais de uma vez dos Javaé que o
primogênito “é como um rei”, em razão tanto do tratamento especial que recebe de seus
parentes como do direito prestigiado de herdar os bens/identidades culturais e cargos
políticos que são transmitidos através das gerações. Pétesch (2000:176) reconhece a
importância central do filho mais velho “no sistema de possessão e de transmissão de bens
dentro da sociedade karajá”, embora tenda a enfatizar apenas a linha patrilinear. A criança
que possui tais bens é “amada, cercada de uma importante família que lhe dá os meios de
assegurar uma boa socialização (...)” (2000:175). A autora diz ainda que o status de um
homem depende da “beleza, riqueza e sabedoria de seu filho mais velho” (2000:180). E
que “ao redor dessas crianças-donos deve assim se mobilizar a parentela bilateral, a fim de
cumprir as obrigações freqüentemente pesadas” (2000:211) relacionadas à possessão dos
bens. Em outro texto, Pétesch (1993b:88) conclui que a “originalidade do modelo de
possessão-filiação karajá dentro do complexo amazônico” é o fato dos bens de maior valor
(materiais, rituais ou espirituais) pertencerem a uma criança.
Em contraste notável, os Javaé dizem que os caçulas não são derina dos parentes,
no sentido de que, em geral, eles recebem atenção e cuidado apenas dos próprios pais,
sofrendo um tipo de abandono social por parte dos outros parentes próximos e distantes.
Entre os Bororo, segundo Crocker (1985), até os pais dão menos atenção aos caçulas. O
mito a seguir narra, resumidamente, o desprezo de uma mãe imoral por seu filho caçula,
que é considerado o mais feio dos irmãos e tratado de forma inferior. Como no fragmento
anterior, também aqui é o caçula quem passa por uma série de transformações em vida,
alcançando ao fim do mito não só beleza corporal como uma superioridade moral em
relação à sua mãe. É digno de nota que, embora o último filho seja desprestigiado quando
comparado aos outros irmãos, quando ele é contrastado a uma mulher, caso ele seja do
sexo masculino, a sua condição de homem é identificada com a moralidade social, em
oposição à imoralidade feminina, não sendo relevante se ele é o caçula ou o primogênito:

Kyrè era um rapaz que morava na aldeia Lorèky e tinha quatro irmãos, Lymytyni,
Woubedu, Hararuè e Mytyhywè. Havia no lugar um aõni terrível que vivia dentro do rio,
devorava as pessoas e chamava-se Asyniwyhy (“flecha do falso macaco guariba”). Os
homens do local tentavam matar o aõni com flechas, mas havia um sapo (uma mulher
ainda em sua forma humana) que aparecia no caminho daqueles que iam tomar banho no
rio e avisava que o aõni era capaz de pegar a flecha e devolvê-la acertando os olhos de

610
quem a atirava. Todos os irmãos de Kyrè morreram assassinados por Asyniwyhy. Na
condição de único sobrevivente, a mãe dele começou então a desprezá-lo, por ser o caçula
e o mais feio de todos, com marcas de doenças espalhadas pela pele. Um dia, o feiticeiro
Hukumari, comovido com o sofrimento de Kyrè, que era rejeitado pela mãe, resolveu
ajudá-lo a fugir do aõni, ensinando-lhe alguns procedimentos e técnicas de magia. Como
a mãe o desprezava, Kyrè era cuidado pela avó, que cuidava dele e lhe dava de comer,
mas tudo que o caçula recebia era inferior ao que havia sido destinado antes aos outros
irmãos: a esteira onde dormia era a mais feia, a vasilha onde comia era feita de qualquer
jeito, a comida que recebia era de pior qualidade e assim por diante. Sempre que Kyrè
descia para o rio, sua mãe desejava que o aõni o atacasse e ele morresse, mas ele voltava
são e salvo graças aos segredos e truques mágicos de Hukumari, que o estava ajudando a
se vingar da morte dos seus irmãos. Um dia, Hukumari transformou Kyrè em um rapaz
alto e muito bonito e aconselhou-o a realizar os desejos de Ikòròhoky (nome de um tipo
de sapo), que era a mulher velha, gorda e muito feia que ficava na estrada que chegava ao
rio. Todos os homens que iam para o rio eram assediados por Ikòròhoky, que pedia a eles
que fizessem sexo, em vários tipos de posições diferentes, com ela. Como ninguém
aceitava, ela jogava uma maldição e assim eles eram assassinados pelo aõni que vivia no
rio. Alertado por Hukumari, Kyrè atendeu aos desejos sexuais mais íntimos da velha
bruxa e, em troca, ela lhe ensinou como matar Asyniwyhy. Em sua volta ao lar, quando a
mãe o quis receber de modo afetuoso, por ser agora um herói e um belo rapaz, Kyrè deu-
lhe uma lição de moral. Lembrou do desprezo que ela sentia por ele, falou de suas mágoas
e das lições que aprendeu com Hukumari, de como ser mais humano e compreensível com
os outros. A mãe reconheceu o seu erro e eles se reconciliaram.

O filho ou filha mais velho simbolizam, mais do que qualquer outro, a condição de
“corpo fechado” tão almejada pelos Javaé, associada à casa natal. O prestígio relacionado à
primogenitura dura do nascimento de uma pessoa até o momento da procriação, quando
um novo primeiro filho é gerado e são transmitidas automaticamente para este outro
primogênito, independentemente do sexo, as prerrogativas que lhe cabem. Como já foi
explicado antes, concebe-se que as pessoas em geral têm o corpo fechado do período que
vai do nascimento à geração do primeiro filho. Mas no caso do primogênito essa condição
é acentuada, pelo fato de seu corpo ter sido fabricado pela substância original e intacta que
seus pais carregavam dentro de si. Do ponto de vista masculino, a perda da condição de

611
primogênito e de um corpo fechado é associada à mudança da casa de origem para a casa
da esposa.
Tudo leva a crer que os primogênitos são pensados como os corpos através dos
quais é transmitida a versão mais purificada da substância mágica e mítica dos humanos
imortais que viviam no nível subaquático até ascenderem ao nível terrestre e iniciarem a
reprodução física. Os primeiros filhos dos que primeiro procriaram foram feitos da
substância original que conecta os humanos mortais aos seus ancestrais imortais, enquanto
os corpos dos filhos subseqüentes foram fabricados por uma substância que já passou pelo
processo impuro das misturas e transformações. Desde então, a cada procriação, os
genitores abrem seus corpos e deixam simbolicamente de ser imortais, mas seu primeiro
filho tem o privilégio de carregar em si – enquanto não procriar – aquela que se aproxima
mais da mesma substância ancestral xiburè de que eram feitos os corpos dos humanos
subaquáticos. Pode-se ver, portanto, que há uma linha de continuidade substancial entre os
ancestrais imortais e os primogênitos que ainda não procriaram.
É verdade que o primogênito não é um autêntico humano imortal, porque seu corpo
é feito da mistura impura da substância de seus pais, assim como o de seus outros irmãos.
Mas ele é o que está mais próximo dessa substância purificada original, ainda que tenha
sido misturada durante a fabricação de seu corpo. Como se trata de uma linha de
transmissão da substância dos corpos fechados originais, que não se distinguiam quanto ao
sexo, a continuidade não é alcançada através de matrilinhas ou patrilinhas, mas através dos
corpos dos primogênitos que se sucedem, independentemente de seu sexo. Não é uma
simples coincidência, portanto, o fato do filho ou filha mais velho ser escolhido pela
sociedade como o verdadeiro dono dos aruanãs, que são os mais valiosos bens/identidades
transmitidos através das gerações, de primogênito para primogênito, pois, dentre os filhos
de um casal, ele é o que está verdadeiramente mais identificado com os corpos fechados
dos humanos mágicos.
Também é o filho ou filha mais velho que tem o direito de herdar os ixyjukuni
(“corpo velho do estrangeiro”), os korera (“corpo velho do jacaré-tinga”), o nome principal
do avô ou avó verdadeiro (o mais importante de todos) e o título nobre de iòlò, cargo de
chefia associado ao estatismo e paz do extremo rio acima. No caso do ixyjukuni ou do
korera, o homem que matou um inimigo ou um jacaré entrega o seu “corpo velho” de
preferência para o filho ou filha mais velho da sua irmã real ou classificatória próxima, que
será alimentado ritualmente pelos pais do dono a partir de então. O ixyjukuni idealmente é

612
entregue aos filhos mais velhos de suas irmãs, assunto a ser retomado ao final. A partir de
então, ele será transmitido pelo primeiro dono para o seu filho primogênito, como um bem
de valor, e assim sucessivamente. Como veremos em maior detalhe adiante, quando nasce
um primogênito de uma linha de primogênitos, seus pais e avós reais bilaterais passam a
ser referidos por tecnonímicos, como o “pai”, “mãe”, “avô” ou “avó de fulano”, como se
ele fosse o centro de uma parentela, a sua razão de existir.
Nos mitos, os grupos de siblings são referidos pelo nome do irmão mais velho,
como Ijanakatu boho, “os Ijanakatu”. Seguindo a mesma lógica da tecnonímia, quando
algum casal ou o pai ou mãe de uma criança protagoniza algum evento memorável em um
lugar – como brigar entre si, pegar muito peixe ou tartaruga ou achar uma mata de
coqueiro – o lugar passa a ser conhecido pelo nome do filho mais velho do casal, como o
lugar chamado Hakotiaru kynyra, “praia de Hakotiaru”. Em geral, os nomes que
identificam lugares referem-se a fatos mítico-históricos muito antigos. No caso de aldeias,
também é comum usar o nome de algum primogênito para identificá-las. No exemplo
mítico mais famoso, o nome da aldeia Marani Hãwa, “território ou aldeia de Marani”, é
derivado do nome Dimarani, a filha mais velha de Kwely, o herói mítico que naquele lugar
quebrou o pote de água escondido por sua mulher. Outras aldeias, como Wariwari,
Kanoanõ, Làràtxi, Imotxi, Lòreky e Txuiri, também são conhecidas pelo nome de
primogênitos (e não apenas pelo nome de líderes masculinos, como afirma Toral, 1999).
Antigamente, quando um primogênito do sexo masculino, com cerca de 10 ou 12
anos, matava pela primeira vez uma caça considerada especial, como porco-queixada, pato
selvagem ou mutum, ou quando pescava tartaruga ou os peixes mais valorizados, o seu pai
ou um de seus tios bilaterais fazia um pequeno ritual chamado rirana. O pai ou o tio do
primogênito segurava a flecha usada na mão esquerda e pegava a mão do filho com a
direita. A seguir, ele caminhava com o menino pela aldeia, enquanto dançava e cantava a
música associada ao rirana, cujo conteúdo exaltava a competência do filho como caçador
ou pescador. Do mesmo modo, quando uma moça primogênita saía da reclusão pela
primeira menstruação tendo aprendido a fazer os artigos de algodão e palha associados às
mulheres, a sua avó materna também acompanhava a menina pela aldeia dançando e
cantando a música do rirana, para anunciar ao público a competência técnica de sua neta.
Os filhos mais velhos eram os filhos aos quais os pais ensinavam, preferencialmente, as
técnicas de preparo físico (jury) para as lutas.

613
Em suma, embora o nascimento do primogênito marque a principal transição da
vida de seus pais, cujos corpos fechados transformam-se em corpos abertos, ele torna-se o
detentor do prestígio e de tudo que se associa à continuidade social, porque o filho mais
velho, mais do que qualquer outro, simboliza a imortalidade desejada. Entretanto, apesar
do primeiro filho ser chamado tanto de kuladu dèla, “criança mais velha”, quanto kuladu
tymyra, a “criança nova” dos pais, apenas este último conceito refere-se ao prestígio que
um primogênito pode alcançar. Como me foi explicado, todo filho mais velho é um kuladu
dèla, mas apenas alguns primogênitos tornam-se kuladu tymyra, ou seja, a criança ou
adolescente que é o centro de atenções de sua parentela bilateral. Esse status superior em
geral cabe apenas aos primogênitos que são descendentes de outros primogênitos, dentro
de uma linha onde são transmitidos os bens/identidades e as prerrogativas já mencionados,
mas ele depende, antes de tudo, da capacidade de produção e generosidade de seus pais.
Como não se trata de um conceito baseado exclusivamente na biologia, um filho de criação
também pode se tornar um kuladu tymyra se seus pais de criação trabalharem para isso.
Como já foi dito, só o filho de um bom pagador do preço da vagina será agraciado
pelos xamãs da Casa dos Homens com a honra de receber os aruanãs, ixyjukuni e korera
que deverão ser alimentados por seus pais durante os ciclos rituais respectivos. Isso é
especialmente válido no caso do primeiro filho de um casal, que tende a concentrar a
propriedade dos bens/identidades preciosos que são transmitidos dentro da família, com
destaque para os aruanãs. A honra e o prestígio de um kuladu tymyra não dependem apenas
da quantidade de seres mascarados dos quais é o “dono”, mas muito mais do número de
vezes em que estes foram trazidos para serem alimentados ritualmente por seus pais. No
caso dos ixyjukuni, que vêm e vão embora várias vezes em um ano, eles são trazidos
principalmente para o filho mais velho de um casal. Quando os pais de uma criança têm
uma roça farta, os ixyjukuni vêm várias vezes durante a estação das chuvas para serem
alimentados. Assim, a responsabilidade de um casal, no que se refere à geração da honra
familiar – através da produção, pelo pai, e preparação, pela mãe, de alimentos que serão
distribuídos nos rituais –, é muito maior em relação ao seu primeiro filho, embora os outros
também possam ser donos de aruanãs e dos outros mascarados.

614
8.2. Produzindo riqueza: a recriação da semelhança

Uma outra forma de prestígio dos primogênitos – talvez a principal – também


deriva diretamente da capacidade produtiva de seus pais e diz respeito à quantidade de
parentes referidos como bòròtyrè que estão presentes em importantes momentos do ciclo
de vida de uma pessoa. Embora na literatura sobre os Karajá estejam registrados o conceito
de bòròtyrè (bròtyrè, na sua versão dialetal) e as práticas a ele associadas 5 , os Javaé dizem
que entre seus vizinhos usa-se mais o conceito de usè para definir esta classe de parentes,
cujo significado social é o mesmo. Literalmente, usè refere-se ao ato de “imitar” ou parecer
com algo, enquanto a palavra bòròtyrè significa “em cima (tyrè) das costas (bòrò)”, tendo
uma relação simbólica, segundo os Javaé, com a expressão lòtityrè, “em cima (tyrè) do
pescoço (lòti)”.
Esta última está associada à prática ainda existente do tio materno, de preferência,
carregar em seus ombros o menino que será levado para ser iniciado na Casa Grande.
Antigamente, os iòlò também eram carregados nos ombros por seus tios em alguns
momentos especiais, assim como os rapazes que iriam se casar ao modo tradicional. Em
sentido figurado, os bòròtyrè de alguém teriam um papel similar ao do tio materno que
carrega o seu sobrinho nos ombros, assunto a ser retomado. Entretanto, quando analisamos
as práticas associadas aos bòròtyrè, vemos claramente que elas têm o sentido exato de
“imitação” que é expresso pelo conceito usè. Os bòròtyrè de alguém, entre os Karajá,
segundo os Javaé, são iusè, “os imitadores dele” ou “os que se parecem com ele”. Essa
categoria de parentes surgiu miticamente quando Tanyxiwè cortou o cabelo do iòlò Urubu
Rei, de quem roubou o cocar/sol. Conforme o mito, os urubus que eram tios do iòlò,
incluindo homens e mulheres, imitaram o gesto, cortando os seus cabelos. Desde então
surgiram os bòròtyrè.
Durante vários momentos da vida, os parentes definidos como bòròtyrè poderão
pedir algo aos genitores de uma criança ou adolescente em troca de uma imitação,
simplesmente, de algum ato da pessoa em questão. Na maior parte das vezes, veremos que
se imita o ato de uma criança ou adolescente ainda não casado, cabendo aos seus pais a
obrigação de pagar aos imitadores, assim como cabe a eles sustentar os aruanãs e outros
mascarados. Em algumas ocasiões mais raras, pode-se imitar algo de algum adulto

5
Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994).

615
aparentado já casado, o que é feito apenas com pessoas consideradas especiais pela família.
Os genitores não podem atuar como doadores de nomes nem como imitadores.
Donahue (1982:149) chama de “brotyre”, equivocadamente, como já foi apontado
por Lima Filho (1994), apenas os presentes que se pedem em certas ocasiões e não uma
categoria de pessoas, considerando também de modo errôneo que o ato de pedir é tido
como algo vergonhoso pelos Karajá. Toral (1992:105) considera que os “brotyrè” são
“protetores formais” de uma criança que atuam em estados liminares, assim como os
aruanãs que lhe pertencem, partes de um “arsenal de defesa” contra os malefícios que
podem ser causados por um xamã. O autor reconhece também que eles – “só pessoas mais
velhas que as crianças” (1992:134) – realizam imitações rituais em várias ocasiões
diferentes.
Lima Filho (1994:135-136) define os “brotyre” Karajá como uma “categoria de
parentes consangüíneos” bilaterais dos jovens que se iniciam (jyrè), incluindo homens e
mulheres, e que os acompanham durante vários momentos do Hetohoky. O autor inclui
nesta categoria todos os parentes bilaterais das gerações 0, +1 e +2, “com exceção dos
irmãos verdadeiros” e “dos próprios pais” de Ego, contrastando os brotyre de alguém à sua
família elementar. Lima Filho foi o primeiro a notar que o termo bòròtyrè abrange a
mesma categoria de parentes dos Apinayé e Timbira que se distingue dos genitores,
especulando se tal contraste teria alguma relação com as regras de casamento. Schiel
(2005:92-94) por fim, interpreta a aglutinação dos parentes bilaterais de uma criança
(originários de grupos “antagonistas”) em uma única categoria como uma forma de
sancionar socialmente a tensa relação conjugal de seus pais, dentro da temática ameríndia
de “transformação de afins efetivos em consangüíneos”.
Entre os Javaé, a categoria bòròtyrè inclui todos os parentes bilaterais próximos
das gerações acima de Ego, com exceção de seus genitores. Mas dentro dessa categoria
mais ampla, normalmente só as mulheres mais velhas exercem o papel de bòròtyrè, que é
tradicionalmente vedado às jovens, não devendo ser exercido também pelas cunhadas dos
pais de Ego. Mais raramente, uma mulher aparentada distante ou mesmo um parente do
sexo masculino das gerações acima de Ego podem se tornar um bòròtyrè de alguém, caso
queiram. Na verdade, não há uma definição rígida dessa categoria no que se refere às
gerações acima de Ego, pois eu mesma tive a oportunidade de atuar como bòròtyrè em um
casamento Javaé. Estão excluídos dela apenas os genitores de Ego e os parentes da geração
de Ego, o que é um pouco mais restritivo do que diz Lima Filho (1994) sobre os Karajá.

616
Apesar do ônus econômico que significa para um casal que os seus filhos tenham
várias imitadoras em algum momento da vida, aqui se repete a mesma lógica associada à
distribuição de alimentos nos rituais: quanto maior a expressão da generosidade, o que
pressupõe um casal que trabalha muito, cada um em sua esfera de atuação, maior a honra
gerada para essa família. Os Javaé partilham com os alto-xinguanos (Agostinho, 1974,
Menget, 1993) não apenas uma ênfase no controle da agressividade, mas também um ethos
de generosidade. Na verdade, há uma ênfase cultural na evitação da acumulação material
individual, que é fortemente recriminada como um sinal de avareza. Existem mecanismos
coletivos que estimulam a circulação e distribuição da produção econômica entre os
parentes, paralelamente às prestações matrimoniais entre afins.
Desse modo, as pessoas devem mostrar contentamento com aqueles que se
oferecem para ser bòròtyrè, mesmo que seja um parente muito distante ou um não-parente,
porque isso resultará em prestígio para aquele que será imitado e para os pais capazes de
pagar por essa honra. Assim, ouvi muitas vezes, de pessoas diferentes, que quanto maior
for o número de imitadoras de uma pessoa durante a sua vida, principalmente durante a
infância e adolescência, maior será a sua glória e a de sua família, transformando-se na
principal forma de defesa durante os xingamentos rituais. Mas o que exatamente honra
uma pessoa com muitas bòròtyrè? À primeira vista, a resposta mais óbvia parece ser o
ideal cultural da “generosidade” (wowi), já mencionado, e que se contrapõe à avareza dos
xamãs e não-índios.
Creio, entretanto, que a resposta pode ser aprofundada, adicionando-se um outro
componente de igual ou maior importância. Em uma sociedade que valoriza a semelhança
em detrimento da diferença, o parentesco ao invés da afinidade, a continuidade no lugar da
transformação, ter muitas “imitadoras” em circunstâncias significativas é o equivalente
simbólico de ter muitos parentes, os quais são vistos antes de tudo como “semelhantes”. A
imitação, afinal, nada mais é do que o ato de tentar se parecer com o Outro, tornando-se
um igual. Durante a atuação das bòròtyrè, é como se elas fossem a própria pessoa que está
sendo imitada. Não sei responder porque as mulheres mais velhas são escolhidas
preferencialmente para assumir esse papel, mas a imitação exercitada de forma consciente
parece ter o objetivo de recriar simbolicamente o estado de semelhança ou parentesco
existente no mundo xiburè.

617
É significativo que, na grande maioria das vezes, essa recriação da semelhança
original ocorre exatamente no período em que a pessoa está identificada com os corpos
fechados e iguais dos aruanãs, que vai do nascimento à procriação do primeiro filho.

Foto n° 11: Jovem é levantado pelo latèni durante o Hetohoky (aldeia Canoanã, 1997)

Como já foi dito, a imortalidade xiburè é antes de tudo um estado de semelhança


corporal, em que os humanos mágicos são definidos como parentes e semelhantes por
terem corpos igualmente fechados. Desse modo, a recriação da semelhança também é feita
corporalmente, imitando-se os movimentos ou estados do corpo da criança ou jovem
adulto em questão. Também chama a atenção que essa imitação ocorre, na maior parte das
vezes, em momentos significativos de transição ou transformação do ciclo de vida, como o

618
nascimento, a iniciação, a doença ou o casamento, entre vários outros. Este último parece
ser considerado como a situação mais importante em termos das retribuições que os pais da
pessoa devem aos bòròtyrè, talvez por ser o marco mais importante da vida, aquele que
gera as mudanças mais importantes.

Foto n° 12: Bòròtyrè é levantada pelo latèni logo a seguir (aldeia Canoanã, 1997)

É como se as ocasiões de transformação que ocorrem no período em que as pessoas


estão identificadas com os aruanãs, possuindo um corpo fechado e imutável, precisassem
ser simbolicamente anuladas pela sociedade. A maior parte das passagens em que ocorrem
imitações são marcadas social e ritualmente, mas ao mesmo tempo parece haver um
esforço para diluir simbolicamente o seu caráter de transformação. Os parentes são

619
concebidos como semelhantes e aquele que passa por uma mudança durante a sua iniciação
ou o seu casamento, por exemplo, alterando a sua condição anterior, tem a chance de
converter-se em um igual na medida em que muitos dos seus parentes tentam se parecer
com ele na sua nova condição. Talvez a razão das mulheres mais velhas serem as
escolhidas para assumir esse papel nos momentos de metamorfose social resida no fato de
que seus corpos são associados à transformação, de modo que, durante uma situação de
mudança, elas são os semelhantes.
Fazendo sentido ou não esta hipótese, o fato é que os pais de uma criança ou jovem
pagam caro para aqueles que se oferecem para a performance da imitação, que atrai mais
pessoas no caso dos primogênitos. Os Javaé dizem que quanto mais trabalhador for o casal,
capaz de retribuir dignamente a atuação das bòròtyrè com os produtos do trabalho
masculino e feminino, mais imitadoras aparecerão e maior será a conseqüente honra que o
seu filho ou filha terá. De fato, durante o ritual de iniciação masculina de 1997, era visível
que os meninos que eram filhos dos mais “ricos”, termo usado agora pelos Javaé para
designar aqueles que têm alguma fonte considerável de renda monetária, eram os que
estavam acompanhados de mais bòròtyrè. Do mesmo modo, aqueles que são “pobres” ou
têm fama de preguiçosos ou avaros não só não são agraciados com os aruanãs pela Casa
dos Homens como seus filhos crescem sem as imitadoras e podem ser xingados por isso
durante os conflitos. Só os filhos de hãbutyhy ou hawykytyhy (“homem ou mulher de
verdade ou honrado”) ou de hãbu dèkyrèwè ou hawyky dèkyrèwè (“homem ou mulher
trabalhador”) podem ter muitas imitadoras durante a infância e juventude, sendo
considerado motivo de muita vergonha ter tido poucos ou nenhum bòròtyrè.
Mas os conceitos de “rico” e “pobre” têm uma outra conotação mais ampla e
anterior à atual, que diz respeito ao processo de construção do parentesco. Como já foi
dito, o parentesco não é compreendido como algo dado naturalmente, que dependa
exclusivamente das ligações substanciais entre uma criança e seus genitores, mas como
algo que está condicionado, ao contrário, aos processos sociais que propiciam a
purificação, o fechamento, e o assemelhamento dos corpos, que se realizam através do
resguardo, da identificação com os aruanãs e, vimos agora, através da presença de muitas
imitadoras junto aos filhos de um casal. Esta presença, contudo, depende das relações
recíprocas de solidariedade, afeto e generosidade entre os parentes, pois uma criança só
terá muitas imitadoras se seus pais forem capazes de cultivar solidamente as relações de
parentesco.

620
O conceito de “parente” (sy ou kyy) não tem um sentido meramente genealógico,
pois nem todos os parentes relacionados por substância bilateralmente, seja qual for o grau
de distância, são realmente “considerados parentes”, como ouvi inúmeras vezes. Trata-se
de um estado da pessoa que é construído através do fechamento dos corpos e,
paralelamente, através de uma relação mais próxima de troca generosa, associado a uma
convivência íntima em um mesmo espaço. Tal concepção lembra o que mostra Gow (1991)
a respeito dos Piro, para quem o parentesco é muito mais uma questão de memória dos
cuidados de nutrição e afeto que uma criança recebeu do que de laços físicos; ou o que
McCallum (2001:24) diz sobre os Cashinahua, para quem “o parentesco não é
compreendido como algo que deriva da ‘consanguinidade’ ou como substância partilhada e
herdada. O parentesco é constantemente fabricado, na visão Cashinahua, assim como são
os corpos, através de uma interação diária de natureza moral e social nos vários processos
que constituem a socialidade”. 6 Dentro de um contexto regional mais próximo, Da Matta
(1976), Gregor (1977) ou Crocker (1985), por exemplo, já haviam apontado, no caso dos
Apinayé, Mehinaku e Bororo, respectivamente, a relação intrínseca entre o parentesco
“verdadeiro” e a solidariedade mútua, seja no que se refere a trocas políticas, de trabalho
ou de alimentos.
Os Javaé possuem os conceitos inysykõ ou inykykõ, “gente ou pessoa (iny) sem (kõ)
parentes (sy ou ky)”, que se contrapõem aos conceitos inytyhy, “gente ou pessoa honrada”,
e inysysõere, “gente ou pessoa (iny) com muitos (sõere) parentes (sy)”. Os primeiros são
traduzidos também como “pessoa ou gente pobre” e os outros como “pessoa ou gente
rica”. Os ricos, segundo a definição nativa, são basicamente aqueles que são trabalhadores
e generosos e, por isso, atraem muitos parentes ao seu redor, no sentido de uma
convivência próxima de trocas materiais, rituais e sociais. O rico não é aquele que apenas
tem muitos bens, mas o que é “rico de parentes”. Tal conceito não significa ter um grande
número de parentes do ponto de vista biológico. Trata-se muito mais de uma grandeza
social, de ter muitos parentes com quem se pode contar socialmente, como no caso das
visitadoras, das imitadoras e dos que realizam as tarefas típicas dos momentos de luto.

6
Segundo Coelho de Souza (1995:136), em sua análise sobre o parentesco alto-xinguano a partir de várias
etnografias, é comum considerar um parente “distante” ou fora do círculo dos parentes verdadeiros não
porque algumas gerações o separam de um ancestral comum, mas porque ele não ajuda na abertura de uma
roça ou não fornece comida, por exemplo. Assim, “esta distância é pois determinada, pelo menos
parcialmente, em termos das atitudes, sendo tanto uma questão de intensidade, regularidade e qualidade da
interação quanto do número de vínculos intermediários entre dois indivíduos”.

621
A riqueza, cuja definição é muito mais moral do que material, não se origina da
acumulação de bens, mas do seu inverso: está em ser generoso/honrado e, assim, ser capaz
de atrair muitos parentes retribuindo a eles, adequadamente, pela sua valorizada
participação nos muitos rituais e momentos importantes do ciclo de vida de uma criança.
Retribui-se com gratidão pela presença das pessoas que ajudam a recriar a semelhança e o
estado de parentesco/imortalidade original; ao mesmo tempo, é a reciprocidade em si que
preenche essas relações com o conteúdo de “parentesco”, que não é concebido como uma
relação biológica a priori e fixa. Este é um vínculo cuja existência e durabilidade
dependem de serem criadas e cultivadas através dos processos de fechamento e
assemelhamento dos corpos, indissociáveis da reciprocidade honrada.
Do ponto de vista da criança, trata-se de uma reciprocidade entre parentes, entre
seus pais e seus parentes bilaterais. Mas do ponto de vista do pai da criança, por sua vez, é
o trabalho realizado para o pagamento pela vagina de sua esposa, em última instância, que
vai permitir não apenas a construção da honra familiar, como já foi discutido antes, mas
principalmente dos próprios vínculos de parentesco (a riqueza de parentes) entre seus
filhos e a parentela bilateral respectiva, incluindo os próprios genitores. Afinal, desse
trabalho depende tanto a realização da Dança dos Aruanãs que fecha simbolicamente os
corpos, assunto a ser retomado, quanto a presença assídua das imitadoras bilaterais que os
tornam semelhantes, embora o trabalho da mãe também seja considerado importante.
Os inysysõere são tanto os pais trabalhadores que atraem muitos parentes dos filhos
quanto os filhos que tiveram muitas imitadoras e bens culturais em sua vida por causa do
trabalho e generosidade de seus pais. Do mesmo modo, quem não trabalha para sustentar
os rituais e não distribui os bens e alimentos a eles associados acaba se transformando em
um inysykõ, “pobre de parentes”, rótulo que será herdado também por seus filhos, de modo
que ter ou não parentes é sempre uma condição relativa, que pode ser transitória ou não. A
existência de muitos filhos ou a ausência de um marido que atue como um provedor
eficiente, seja por preguiça, doença ou alcoolismo, são as principais razões para o uso de
métodos anticoncepcionais ou abortivos pelas mulheres Karajá de Aruanã (Aytai, 1979a).
Pode-se dizer que a verdadeira riqueza produzida pelo trabalho, seja através da
generosidade entre parentes ou do pagamento da dívida aos afins, é a criação da
semelhança original, que toma forma através dos laços de parentesco concretos.
A distribuição generosa de bens materiais é o fundamento da riqueza de parentes,
mas esta não se resume a isso, pois se diz que os èhèhè (quem briga muito com os outros),

622
os promíscuos, os que abandonaram os filhos para se casar com outra pessoa, os que não
sabem receber os parentes com educação, enfim, os que envergonham a família, não são
“considerados parentes” ou são “pobres de parentes”. Tanto os filhos de mãe solteira como
os filhos de pessoas violentas, em especial dos que cometeram assassinatos, não são jamais
agraciados com aruanãs pela Casa dos Homens, como os filhos de um antigo e temido líder
que nunca receberam aruanãs em razão do comportamento violento de seu pai. No caso
dos primeiros, há uma razão prática, pois inexiste o pai que sustenta o ritual. Mas no caso
dos últimos, a razão do abandono social pela Casa dos Homens é de natureza
essencialmente moral, de modo que as pessoas violentas são conhecidas como inysykõ
mesmo que tenham uma roça farta. Há, portanto, outros componentes morais, além da
generosidade, na definição e manutenção dos laços de parentesco.
Do mesmo modo, os Javaé dizem que só aqueles que foram criados juntos e que se
visitam com regularidade, que comem uns na casa dos outros, que conversam alegremente
e que brincam entre si, que dão conselhos uns aos outros, que se oferecem para ser
bòròtyrè das crianças da família, que levam os sobrinhos reais ou classificatórios para as
brincadeiras rituais (no caso dos tios), que se ajudam mutuamente nos duelos verbais e
corporais com os inimigos, que choram ritualmente uns pelos outros, entre outras
manifestações de afetividade e reciprocidade, é que são “considerados parentes”. Os que
não praticam a convivência cotidiana – associada a uma proximidade espacial – que leva à
intimidade e às parcerias rituais e sociais, mesmo que sejam classificados como próximos
do ponto de vista genealógico, não são tidos como parentes. Talvez essa seja a razão pela
qual os animais que foram domesticados, ou seja, que se tornaram próximos afetiva e
socialmente pela convivência diária, como verdadeiros parentes, não sejam utilizados para
consumo, assim como não se casa com os co-residentes. Krause (1943c) registrou que os
Javaé não consumiam as galinhas que criavam junto com aves de origem selvagem
domesticadas.
Uma das formas típicas de manifestar a intimidade oriunda do convívio é através da
kuladu rybè, “fala das crianças”, que é a fala infantilizada, carinhosa e em tom de
brincadeira por meio da qual os adultos se dirigem às crianças da família. Não se usa esse
tipo de fala com qualquer criança, mas apenas para os filhos, sobrinhos e netos próximos
socialmente. Quando os considerados parentes moram em outras aldeias, são eles que
alojam os visitantes em suas casas, alimentando-os ao modo tradicional, com a comida
disposta em uma grande esteira, no chão, onde todos se sentam para trocar informações

623
sobre os últimos acontecimentos. Nas reuniões políticas ou festivas realizadas em outras
aldeias, os que não têm esse tipo de relação próxima com alguém, mesmo sendo
relacionados genealogicamente, alojam-se nas escolas e enfermarias, algumas vezes não
tendo a alimentação garantida. Isso pode ocorrer até com o cacique de uma outra aldeia,
como tive a oportunidade de testemunhar.
As pessoas que exercem o papel de bòròtyrè podem pedir em troca de sua atuação
peixe, tartaruga, produtos da roça, como banana, milho, batata, mandioca ou melancia,
mel, óleo de tucum, urucum, o inytu (tanga de entrecasca), cestos ou balaios de palha,
remos, pilões, canoas, esteiras, panelas ou potes de barro, enfeites de algodão, colares etc,
ou seja, qualquer bem que estiver disponível na ocasião ou mesmo algo que ainda vai ser
produzido. Agora também podem pedir roupas ou os outros bens industrializados que
fazem parte do cotidiano. É parte do código de ética implícito que a família de uma criança
ou jovem jamais reclame dos pedidos, mesmo que os considere abusivos. Mas há uma
gradação na escala de valores, que varia conforme a importância da situação. Em
momentos menos marcados socialmente, os pedidos são mais modestos e fáceis de atender,
em contraste com ocasiões mais importantes, que implicam em grande transformação de
status, como o ritual de iniciação masculina ou o ritual de casamento harabiè, realizado
mais raramente.
Nestes últimos, é muito maior o número de imitadoras presentes e os bens
solicitados aos pais de um jovem são muito mais dispendiosos, de modo que às vezes um
casal pode levar meses ou até anos para poder atender aos pedidos, como no caso de
canoas ou esteiras de buriti, mais valiosas pela raridade do material e difíceis de fazer. Em
dezembro de 2006, os pais de um jovem iniciado no Hetohoky de 2004, em Canoanã, ainda
não haviam terminado de retribuir a todos os pedidos. Em ocasiões como o casamento ou a
iniciação de um filho, as pessoas podem pedir desde motores de popa ou mesmo a posse de
um “retiro” para aluguel de pastagens dentro da Ilha do Bananal, como ouvi no Hetohoky
de 2005/2006 na aldeia São João. Nessas situações, um casal que tenha boa situação
econômica e prestígio passa por um processo súbito de perdas materiais, inversamente
proporcional ao enriquecimento social, em termos de relações de parentesco, tendo que
entregar à imitadoras de seu filho ou filha praticamente tudo que possui, na forma de
retribuição agradecida 7 .

7
Krause (1943a:197) disse sobre os Karajá: “há gente rica e gente pobre. ‘O rico tem tudo, machados, facas,
potes; o pobre não tem nada. Vai falar com rico e diz: Dê-me um pote, um machado. O rico deve dar-lhe’

624
No começo do meu primeiro trabalho de campo, em 1990, ainda sem ter
consciência do que implicava ser bòròtyrè em termos de compensação material, aproveitei
a oportunidade de ser “imitadora” de uma moça que estava se casando ao modo tradicional
para poder participar mais de perto do ritual. Ao fim das festividades, fui solicitada a me
manifestar quanto ao que eu desejava como retribuição. Na tentativa de causar o menor
ônus possível, pedi apenas algumas bananas em troca, mas alguns dias depois fui
surpreendida, constrangida, quando um parente da noiva veio até minha casa empurrando
um carrinho de mão repleto de vários cachos de banana enormes, o suficiente para
alimentar muitas pessoas por vários dias.
Os dados parecem mostrar que, quanto maior a transformação pela qual uma pessoa
está passando, caso do casamento e da iniciação, maior deve ser o número de
acompanhantes que criam o estado de semelhança/repetição e também o valor do
pagamento devido, embora seja muito importante um grande número de bòròtyrè junto da
criança desde o seu nascimento. Na grande maioria das situações, relativas a momentos
menos importantes ou aos filhos que não são primogênitos, há apenas uma ou poucas
imitadoras presentes. Apresento a seguir as principais ocasiões em que alguém pode ser
bòròtyrè de uma criança ou jovem e, na maior parte dos casos, do que se constitui
exatamente a performance da imitação:

• Quando nasce uma criança, ela recebe uma pequena porção de mel chamada kuladu
wowina, literalmente “lugar (na) do que é bom (wii) dentro (wo) da criança
(kuladu)”, havendo uma associação entre o mel e o dom da generosidade (wowi).
As bòròtyrè então visitam a casa dos pais e comem uma pequena porção do mel,
como se fossem a própria criança.

• No fim do resguardo, o tio materno do recém-nascido passa uma mistura de urucum


e óleo de tucum nos pais da criança, fazendo o mesmo nas bòròtyrè que estiverem
presentes.

• Quando uma criança está doente porque em seu corpo estão os tykytyby (“corpo
velho”) de algum parente que já morreu e quer ser alimentado, o xamã realiza um
ritual de oferenda de alimentos à criança e aos tykytyby. As imitadoras comem a
mesma comida, como se elas estivessem doentes.

(Kuruxi)”. Arutana disse a Fénelon Costa (1978:26) que os “Karajá pedem aos civilizados não só porque o
costume de pedir é antigo, mas também porque ainda não compreenderam que os torí são diferentes dos
Karajá”. Segundo a autora (1978:26), “as mulheres, atualizando os padrões de conduta tradicionais, acham
natural receber o auxílio de uma pessoa mais rica, a quem não fizesse falta o que pudesse dar”.

625
• Em todas as brincadeiras rituais em que as crianças são levadas para o terreiro
masculino, como Wyhyraheto, Kuladu Biditò e Iwodudu, o que se repete no ritual
de iniciação, os tios devem aplicar dura (plumas) em todo o corpo dos sobrinhos.
Tal ato é imitado pelas bòròtyrè, que recebem uma pequena quantidade de plumas
nos braços, na forma de bracelete.

• Sempre que o pai de uma criança pesca muito peixe ou tartaruga ou quando há
fartura na roça, as bòròtyrè podem pedir um pouco desses alimentos em troca de
uma imitação. Elas pedem à mãe da criança para passar óleo de coco nos seus
cabelos, imitando o que a mãe deve fazer cotidianamente em seu filho.

• Quando um rapaz ou moça passa óleo de coco no cabelo ou aplica urucum no


corpo, em algum momento ritual, as bòròtyrè podem fazer a mesma coisa em si
próprias, em menor quantidade, assim como quando alguém escarifica o corpo ou
pinta-o com jenipapo.

• No primeiro dia do ciclo ritual dos aruanãs, há um momento em que o aruanã


abraça o menino que é o seu dono e levanta-o no ar (ver Rodrigues, 1993), para a
seguir também abraçar e levantar do chão as bòròtyrè do dono.

• Durante o ritual de iniciação masculina, cuja parte principal dura cerca de um mês,
há várias circunstâncias em que as bòròtyrè podem acompanhar o menino que está
se iniciando. Uma delas ocorre durante a chegada dos latèni, quando se repete o
gesto dos aruanãs levantando os seus donos no ar. Mas, diferentemente dos
aruanãs, os tios maternos mágicos “têm menos paciência” e podem ser brutos com
as bòròtyrè, jogando-as no chão de qualquer jeito. Enquanto os worosy aconselham
os meninos que ficam sentados na grande esteira que é colocada fora da Casa
Grande, as imitadoras sentam-se ao lado dos meninos e também ouvem os
conselhos. Quando os worosy cortam o cabelo dos meninos bem curto, rente à
cabeça, e pintam todo seu corpo de preto (com jenipapo), no meio do ritual, as
bòròtyrè também passam pelo mesmo processo corporal secreto, junto com eles,
que é realizado fora da aldeia, no lado rio acima. Elas têm o cabelo cortado e o
corpo pintado de preto. As mulheres podem imitar também o comportamento de
algum parente que dança como worosy convidado, dançando junto com ele. Um
outro exemplo se dá no final do ritual, quando as imitadoras acompanham os
recém-iniciados que surgem na aldeia transformados em alguns dos worosy
subaquáticos. Usando as mesmas vestimentas (tyky) secretas, elas vêm dançando
junto com eles pela aldeia, com pude assistir em 1997 e 2006 8 .

• No momento em que as moças saem da reclusão após a primeira menstruação, elas


saem pintadas, enfeitadas com os adereços de algodão, usando plumas no corpo e o
rasi (porção de cabelo destacada no alto da cabeça), o que é imitado pelas bòròtyrè.

8
A iniciação é uma situação absolutamente especial para as bòròtyrè, que devem ser mulheres já de idade.
Por causa desse contato com o mundo secreto masculino, em que elas acompanham tudo que ocorre na
Casa dos Homens e são apresentadas aos segredos masculinos juntamente com os que se iniciam, as bòròtyrè
dos iniciantes tornam-se worosy wètxu, “as subordinadas dos worosy”, a mesma categoria a que os jyrè
(recém-iniciados) passam a pertencer quando entram na Casa dos Homens. Elas devem se tornar cúmplices
do mundo masculino a partir de então, realizando pequenas tarefas na Casa dos Homens, quando são
chamadas, e brincando do “lado dos homens” nas brincadeiras rituais.

626
• Quando uma moça vai dançar com os aruanãs a primeira vez, as bòròtyrè também
colocam a tanga de entrecasca e dançam junto com a moça.

• Quando os weryrybò (rapazes ainda não casados) dançavam no Iwèruhuky, o ritual


da época seca não mais realizado, as bòròtyrè imitavam os rapazes.

• No final do Iwèruhuky, havia uma corrida chamada mahadu na parte feminina da


aldeia, em que as imitadoras corriam assim como seus netos e sobrinhos.

• Quando um rapaz ou moça apanham nas lutas rituais ijèsu e caem no chão, as
imitadoras vão até o lugar onde ocorreu a queda e também caem no chão,
provocando o riso de todos.

• O casamento arranjado, realizado através de um ritual que dura cerca de três dias,
acarreta vários tipos de imitações diferentes. Em duplas, como se fossem um casal,
as bòròtyrè imitam o momento em que os noivos recebem conselhos dos parentes
mais velhos, o momento em o noivo tem a sua cabeça lavada pela sogra, como
assisti em Canoanã, chegando mesmo a simular publicamente e de modo cômico as
relações sexuais do casal, como foi presenciado por Manuel F. Lima Filho entre os
Karajá (comunicação pessoal), entre outras atuações.

• Quando termina o resguardo de uma mulher que teve um filho e ela pode voltar a
comer peixe, as imitadoras também comem o peixe que marca o fim desse período
de interdições.

Depois do nascimento do primeiro filho, são mais raras as situações em que alguém
pode ser acompanhado pelas bòròtyrè. Isso pode ocorrer com o ixytyby, o chefe ritual, no
dia em que ele segura uma varinha mágica chamada koworulyby (“vara de madeira preta”)
no terreiro dos iòlò, durante o ritual da Casa Grande. Seu gesto é repetido pelas imitadoras,
que também seguram uma varinha. A mesma coisa elas podem fazer em relação a um
xamã aparentado que apresenta ao público e “entrega” um novo aruanã ou latèni ao seu
dono, segurando a varinha mágica (hitxiwa) que controla os aruanãs e latèni. Os Javaé
dizem que uma pessoa pode ter imitadoras em qualquer idade, mas quanto mais velha for a
pessoa, o que se acentua depois de ter o primeiro filho, só as pessoas especiais, como o
chefe ritual, ou as situações muito especiais, como o xamã que entrega o aruanã, contam
com a presença das bòròtyrè. O grupo das imitadoras que sempre acompanha uma
determinada pessoa durante a vida, as bòròtyrè “certas” ou “próprias” de alguém, é
chamado de bòròtyrènykydureny.

627
Foto n° 13: Um xamã e sua bòròtyrè aguardam os latèni (aldeia Canoanã, 1997)

O contraste entre riqueza e pobreza de parentes manifesta-se também através dos


xingamentos formais e do modo correto de se defender deles, assunto que era
freqüentemente mencionado nas conversas comigo e considerado prioritário na educação
de uma criança. Embora a arte da oratória, no que se refere aos choros rituais e
xingamentos formais, seja mais cultivada entre as mulheres, idealmente todas as crianças
devem crescer aprendendo os xingamentos de ataque, que pressupõem o conhecimento
sobre o que envergonha o passado da pessoa ou família atacada, e as falas correspondentes
de defesa, que se baseiam nas honras acumuladas. Dos filhos de um casal trabalhador, cabe
ao primeiro filho tanto ser chamado de tyhyna, “o lugar (na) da honra (tyhy)”, como dizer
que ele “tem muitos tyhyna”, referindo-se aos muitos bens/identidades preciosos geradores
de prestígio. É para o primogênito, descendente de outros primogênitos, principalmente, a

628
“criança nova”, “especial” e “detentora da honra”, por representar a continuidade da
parentela, que um casal deve trabalhar com maior afinco para dignificar a sua história
pessoal e familiar. Quando se fala dos xingamentos, os primogênitos tyhyna são citados
como o modelo ideal de histórico de vida, em razão do grande número de parentes. Eles
podem sair vencedores de qualquer embate verbal por causa dessa honra acumulada, desde
que saibam usar as palavras certas.
Refiro-me aqui especificamente à honra que é herdada por uma criança, que não se
confunde com os talentos pessoais que podem ser desenvolvidos por alguém durante a
vida, os quais não têm nenhuma relação intrínseca com o trabalho dos genitores. No caso
da honra herdada, as avós dedicam-se com empenho a ensinar uma série de expressões ou
orações às crianças, que variam conforme o passado da família e que são usadas durante os
confrontos verbais, embora na vida adulta esta seja uma atividade tipicamente feminina.
Nas falas citadas abaixo, tem-se o ponto de vista de um primogênito tyhyna que se defende
de alguma acusação e se vangloria do seu passado, cuja história pessoal confunde-se com o
resultado social das atividades produtivas de seus pais. Em resumo, ele deve saber exaltar a
sua riqueza de parentes, dizer que ele é derina (“querido”) dos seus parentes, que os seus
tios e tias cuidavam dele quando criança, que os seus tios maternos levavam-no para as
brincadeiras rituais, que ele tinha muitas bòròtyrè e muitas visitadoras, que ele era dono de
muitos aruanãs, ixyjukuni, korera, que ele tinha muitos bèrakòkòsurò (tios que faziam
òsurona no seu rosto, um tipo de limpeza ritual que também é feita nos aruanãs e pela qual
os tios recebiam alimentos da mãe da criança) etc. Tudo isso deve ser dito na hora certa,
em resposta a algum xingamento, através de uma fala rápida, límpida e formalizada, em
que se inclui enunciados como os exemplos a seguir:

• Dikary wasyreny sõere – “Eu (dikary) tenho muitos parentes (wasyreny sõere)”.

• Wabòròtyrè witxira witxira watxirèri – “Minhas imitadoras são muitas e são de


outras famílias ou outras aldeias”. Ou seja, elas eram tantas que extrapolavam o
círculo próximo de parentes da mesma aldeia.

• Wabòròtyrè dusa dusa aõkõ watxirèri – “Minhas imitadoras não ficaram


esquecidas”, no sentido de que elas sempre receberam a compensação solicitada,
pela qual não esperaram muito tempo.

629
• Dikary wadekoruty lyty aõkõ arare – literalmente, “eu não sou liso (lyty) no braço
(wadèkoroty)”, cujo sentido metafórico é “eu não sou uma pessoa sem enfeites
braçais”. Só os filhos de uma mãe prendada e trabalhadora usam os enfeites de
algodão tradicionais e que são indicativos da dedicação dos pais.

• Dikary wati lyty aõkõ arare – “Eu não sou liso nas pernas (wati)”, cujo sentido é o
mesmo da expressão anterior, referindo-se aqui aos enfeites de algodão e pinturas
das pernas.

• Dikary warymana rusõmõ hyky arare – “A minha esteira (warymana) tem o espaço
entre as embiras estreito (rusõmõ)”, ou seja, o cipó (embira) usado para juntar as
fibras da esteira daquele que fala foi amarrado de modo bem apertado e próximo, o
que só é feito pelas mulheres trabalhadoras (no caso, a mãe do que fala). Um
espaço grande entre as amarrações significa que a mãe da criança é preguiçosa.

• Watari ryna wèriti – “A vasilha (ryna) de colocar meu óleo de tucum (watari) tem
sua barriga pintada (wèriti)”. Mais uma vez, só as mães cuidadosas e trabalhadoras
pintavam os recipientes em questão, o que era motivo de orgulho antigamente.

• Wakysinararèhè – “O que passa (algo) no meu corpo (wakysina) é comprido


(rarèhè)”. Refere-se ao bastão comprido que as pessoas tinham em casa para passar
a tinta de urucum no corpo, feito e utilizado pela mãe da pessoa.

• Wakowodi halururèhèhèky arare – “eu tinha resina vegetal (kowodi) quando era
criança”. Considera-se vergonhoso uma pessoa pedir emprestado a outra família a
resina que se usa no corpo nos rituais.

• Wadura riti hiky arare – “eu tinha pintura corporal (riti) e plumas (dura) no corpo
quando era criança”.

• Wamonadena wèburèheky arare – “eu tinha uma panela de cor rosa (wèburè) onde
se colocava a minha bebida (wamona) quando era criança”. A pessoa diz que, além
de possuir a panela de barro onde era colocada a bebida típica iwèru, ela era feita
com cuidado e beleza, com a argila adequadamente queimada, de modo que assim
adquiriu a tonalidade de cor considerada bonita.

• Wakweju sòhoky arare – “eu tinha adorno auricular (kweju) vermelho quando era
criança”.

• Dikary waramamy rubu aõkõ arare – “eu não morria de fome quando era criança”,
o que tem o significado óbvio de que o pai e a mãe da pessoa eram trabalhadores.

• Wakumarinawi kòritilyralyra arare – “meu aruanã tinha a cara pintada bem clara
ou limpa quando eu era criança”, significando o cuidado dos parentes na confecção
das máscaras. O aruanã aqui é referido pelo termo kumarinawi.

630
Pelos poucos exemplos acima, percebe-se que praticamente tudo que cerca a vida
de uma pessoa, em seus mínimos detalhes, pode ser julgado pelos outros como um sinal
visível da dedicação ou não de seus pais, o que não se limita apenas aos seus aspectos
econômicos, ou seja, a quantidade de alimentos gerados e distribuídos. Embora em termos
gerais o trabalho masculino seja mais valorizado, há uma valorização dos produtos do
trabalho feminino, que não se restringem à preparação dos alimentos e são considerados
importantes que se refere à criação da honra familiar. Afinal, a honra dos filhos de um
casal também é aferida através do cuidado de uma mãe em relação à preparação dos
objetos de uso cotidiano (em sua dimensão estética e funcional) e em relação aos corpos de
seus filhos, o que inclui ornamentação, limpeza, saúde, através de exemplos como não
deixar a pele ressecada, o cabelo sem o óleo que dá brilho, o corpo sem os enfeites e
pinturas tradicionais etc. Assim, ter “muitos filhos” (kuladu rabòrò ou kuladu sõere), ou
seja, mais de quatro, o número ideal, também pode se tornar um xingamento, porque é
mais difícil para os pais cuidarem apropriadamente de todos eles.
Já que foram apresentados alguns dos enunciados formais que glorificam uma
pessoa ou família, associados ao status superior do primogênito, dedico algumas palavras a
mais ao seu opositor formal, os “xingamentos” (lahadina) que apontam o status inferior de
alguém, simbolicamente associados à alteridade do caçula e à sua pobreza de parentes. O
contraste entre as falas de defesa e os xingamentos remete à diferença hierárquica entre
glória e desonra, primogênito e caçula, riqueza e pobreza, dono e servo, beleza e feiúra, rio
acima e rio abaixo, parentesco (casa natal) e afinidade (casa dos afins), primogenitura e
exogamia, rito e luto, masculino e feminino, continuidade e transformação, identidade e
alteridade. A riqueza de parentes do primogênito-rei opõe-se à pobreza de parentes do
caçula, associado ao servo em sua condição de estrangeiro sem parentes.
A arte de insultar um oponente através de uma fala formal é tradicionalmente
cultivada pelas mulheres Javaé, embora haja alguns casos de homens que têm boa
reputação nessa habilidade. Durante o ritual da Casa Grande é comum a coletividade
masculina (na condição dos worosy Ijaura e Tabuhana) xingar – embora sem a mesma
habilidade feminina – as mulheres e crianças que se mantêm à distância, longe do terreiro
masculino, eu própria não tendo escapado de um desses ataques verbais durante o ritual.
Eles costumam xingar as mulheres de iruèjyby (“olho preto!”), iruèsò (“olho vermelho!”),
iruètòkò (“olho saltado para fora!”), iradèsò (“cabelo queimado ou vermelho!”),
ihetxiwèburesò (“ânus avermelhado!”), ihetxirurerure (“ânus frouxo!”), ityrure (“vagina

631
frouxa”!), itysiri (“vagina cabeluda!), itidesè (“perna fina!”), iòbina (“cara feia!”),
itxèrèluku (“as que gostam de ficar olhando!”) etc. Alguns worosy subaquáticos, como os
burukuku, nome de um tipo de gavião, também xingam as mulheres em vários momentos
do ritual. Aquelas que dominam a arte da oratória e são corajosas podem se atrever a
responder publicamente aos xingamentos, ganhando o duelo verbal. Lima Filho (1994:89)
relata que o personagem Hurukuku, do ritual de iniciação Karajá, insulta as mulheres,
“inferiorizando-lhes as vaginas”.
No cotidiano, os lahadina são falas ofensivas que surgem em razão de algum
conflito entre parentelas e que apontam as desonras familiares antigas e recentes. Uma
criança pode aprender com sua avó os fatos vergonhosos que ocorreram em outra família
na geração atual ou mesmo há várias gerações atrás, como em alguns xingamentos que
remetiam a 6 gerações anteriores. Todos os descendentes diretos de alguém que é lembrado
por algo imoral ou escandaloso podem ser insultados por essa razão nos momentos de
conflito. Alguns xingamentos referem-se às características repudiadas dos diferentes povos
que constituem os ancestrais de alguém, já citadas antes.
Os insultos têm como tema principal a pobreza de parentes, como nos exemplos
apresentados a seguir, destacando o abandono ou orfandade social sofrido por uma pessoa,
algum comportamento imoral de alguém ainda vivo ou de algum antepassado seu, ou
mesmo algum fato escandaloso que tenha ocorrido na história recente ou mais antiga de
uma família. Outros insultos comuns são baseados na depreciação de alguma característica
física da pessoa que é atacada, assim como fazem os worosy. Na maioria dos casos, os
lahadina são baseados no conhecimento sobre a história local que é transmitido pelas avós,
sendo também considerado um motivo de vergonha e xingamento uma pessoa não saber se
defender ou atacar os outros por desconhecer a história dos seus próprios antepassados e de
seus outros conterrâneos. Em termos gerais, quanto maior o conhecimento sobre o passado,
maior o potencial ofensivo de um orador.
A ética dos confrontos verbais requer que apenas os “iguais” devem brigar entre si,
ou seja, jovens com jovens, velhos com velhos, grandes oradoras (rybèwii) com grandes
oradoras, sendo considerado vergonhoso ou antiético uma rybèwii atacar alguém inábil na
oratória (rybèkõ). Em geral, homens adultos não se agridem oralmente, o que cabe apenas
às mulheres. Também faz parte do comportamento ideal que nunca se deve começar um
duelo verbal, mas apenas reagir a uma provocação. E assim como nas lutas corporais, os
parentes próximos sempre devem sair em defesa ou ajudar aquele que está sendo atacado,

632
fornecendo informações sobre o passado do inimigo ou defendendo o parente de um
xingamento caso ele não esteja presente, pois os conflitos nunca são entre indivíduos, mas
entre parentelas. Segundo Lima Filho (1994:122), que escreveu sobre os confrontos
verbais Karajá:

“(...) É muito comum as mulheres da aldeia ficarem horas a fio encenando um duelo
através de gestos e da oratória, em defesa de seus maridos, filhos e netos. Na maioria
dos casos, a razão das brigas são os homens. Neste diálogo, quase sempre ofensivo, os
homens e seus defeitos são colocados em público. Podem ocorrer agressões verbais e,
num último estágio de impaciência, como presenciei várias vezes, as brigas acabam em
agressões corporais. Este domínio da oratória pelas mulheres perante a aldeia é
novamente ativado quando algum de seus parentes, mesmo se de outra aldeia, fica
doente ou morre. (...) Os braços se movimentam para frente e para trás e de vez em
quando elas batem as palmas das mãos.”

Aquele que quer brigar começa chamando o oponente pelo nome próprio, uma
grave ofensa, e deve verbalizar os xingamentos de um modo típico dessas ocasiões: quanto
mais rápido e claro falar, enumerando um grande número de ofensas corporais ou fatos
desonrosos do passado do rival ou de sua família, maior terá sido o seu sucesso 9 . Aquele
que é insultado deve apenas ouvir enquanto aguarda o momento da réplica, defendendo-se
como foi mostrado antes, caso seja o seu caso, e assim sucessivamente. Aqui são exibidos
apenas alguns exemplos de lahadina genéricos:

• Wytè é a palavra para o “órfão” de pai ou mãe e pode ser usada como um grave
insulto, mas apenas quando a pessoa não teve um pai de criação ou mãe de criação
que o assumiram plenamente, ou mesmo um padrasto, no sentido restrito de marido
da mãe. Os órfãos criados com dedicação por alguém são wytè inytyhy, “órfãos
honrados”, e não são insultados, enquanto os órfãos de pai ou pais que foram
criados sem a riqueza de parentes podem ser xingados de wytèaõkõkõ, “os órfãos
sem nada” ou “órfãos-ninguém”. Estes últimos não têm como ter aruanãs, ixyujuni,
bòròtyrè, participar das brincadeiras rituais etc, mas podem se defender das
ofensas, legitimamente, dizendo “que ficaram assim porque o pai morreu” ou que
“quando ele era vivo não era assim”.

• Outros xingamentos relacionados aos órfãos de pai ou mãe, criados por parentes
desleixados, são wytè narakyna ou wytè adisina, “órfão-brinquedo”, no sentido
pejorativo de que a pessoa era alvo de brincadeiras de mau-gosto de outras crianças
e adultos; ou wytè ajuedena, “órfão-palhaço”, xingamento daqueles que eram

9
O ritual Jawari do alto Xingu inclui duelos entre membros de comunidades diversas, potenciais afins,
precedidos por insultos rituais em que o agressor ofende o oponente chamando-o pelo nome próprio, uma
atitude evitada no cotidiano (Menget, 1993).

633
ridicularizados ou eram motivo de piadas dos outros na infância. Nos dois casos, a
ofensa tem relação com a ausência de parentes que cuidassem propriamente ou
defendessem essas crianças.

• Tybykõ, “sem pai”, é usado como ofensa aos que foram abandonados pelo pai, que
desfez o casamento e não mais proveu os filhos. Nestes casos, é comum as mães
distribuírem os filhos entre os parentes e manterem vários relacionamentos sexuais
enquanto não casam novamente.

• Nõtxiwisikona significa, em termos gerais, “não ligam para ele”, e é um


xingamento comum dos que não são necessariamente órfãos, mas cujos pais não
fazem roça ou cujas mães não sabem fazer esteiras ou enfeites, por exemplo. Por
causa disso, os tios e avós não ligam para eles, que são xingados, por exemplo, de
tadi sèrikòrè nõtxiwisikona, “os irmãos da mãe dele (tadi sèrikòrè) não ligavam
para ele quando criança (nõtxiwisikona)”.

• Talahi derina kona, “sua avó (talahi) não tratava você como derina (querido)”.

• Lahikõ, “sem avó”, é o xingamento dos que têm algum defeito físico, pois os Javaé
acreditam que, se a avó da pessoa tivesse feito algumas massagens nela quando
nasceu, seu corpo teria adquirido a forma ideal. O xingamento não se dirige aos que
não possuíram uma avó real, mas aos que não tiveram uma avó que cuidasse do
neto.

• Waxirikòrè é o insulto aos que nascem sem saber quem é o seu genitor. Waxi é um
tipo de “anzol” tradicional e waxirikòrè significa “filho (rikòrè) do anzol”. Uma
mulher que não sabe quem é o pai de seu filho é como o anzol que “pega qualquer
peixe”, ou seja, que tem relações sexuais com vários homens.

• Talabièmytyby significa “seu pai (tyby) é seu avô (talabiè)” e refere-se aos casos
em que a mãe da pessoa se casou com um tio, ao invés de se casar corretamente
com um primo.

• Ikesenabina é o termo usado para xingar os que são frutos de relações incestuosas,
que foram “fabricados (kese) de modo incorreto (bina)”.

• Hirari bòròura, “menina (hirari) das costas brancas (bòròura)”, é um xingamento


típico de uma mulher que foi órfã ou não foi cuidada adequadamente por seus
parentes na infância. Como ela não foi adornada por nenhum tipo de enfeite
(ywina), como as braçadeiras (dexi) e perneiras (dekobutè) de algodão, não recebeu
nenhum tipo de tykywina (“perfume do corpo”), como óleo de tucum, não teve o
corpo pintado com jenipapo e urucum, não usou a tanga de entrecasca etc, ela ficou
com as “costas brancas”, ou seja, ficou com a pele ressecada pelo sol e
esbranquiçada.

• Hirari bòròura radèsò são as “meninas das costas brancas com o cabelo vermelho
(radèsò)”, ou seja, queimado de sol, porque a mãe não passou óleo de tucum no
cabelo da filha.

634
• Hirari bòròura lyra lyty refere-se às “meninas das costas brancas cujo corpo está
limpo (lyra) ou liso (lyty)”, ou seja, sem enfeites e pinturas.

• Hirari bòròura tuburusi weurahaky são as “meninas das costas brancas que tiveram
muitos piolhos na cabeça”, revelando falta de higiene por parte dos pais.

• Weryry bòròura, “menino das costas brancas”, é o correspondente masculino.

• As crianças devem estar sempre na companhia de seus pais. Os meninos que são
criados soltos pela aldeia e que podem ser alvo de brincadeiras maldosas ou mesmo
apanhar dos outros são chamados de weryry anarakana ou weryry disina, “menino-
brinquedo”, quando viram adultos, o mesmo valendo para as meninas. Os que
chegam a sofrer abuso sexual por parte de outras crianças são chamados de weryry
derana, “mulher pública dos outros meninos”.

• Ruxerehèrehè, “cílios compridos”, ou iruxela, “cílios enrolados”, são aqueles cujas


mães não tiravam os cílios de seus olhos, o que era considerado sinal de beleza e
cuidado materno, prática atualmente quase não mais realizada.

• Kohoru somõ tòbò, “o que foi sugado pelo mosquito kohoru somõ”, é o insulto
daqueles que andavam nus quando criança, sem o zelo das mães, e por isso foram
picados de mosquito.

• Hirari tohokuysènykyna é o xingamento das “meninas” (hirari) que brincaram


simulando que eram “mães de um recém-nascido” (tohokuysè), o que é recriminado
nas meninas criadas com dedicação pelos pais.

• Todas as partes do corpo podem ser xingadas, como fazem os worosy. Um exemplo
é iruèdenaweluku, “olho fundo”.

• Os defeitos físicos de nascença também podem virar xingamentos, como ruèty


(cego), nõhõtity (surdo), rybèkõ (mudo) ou itikèrè (“pernas pela metade”), que se
refere aos que não têm uma perna ou não andam.

• Karalahu rikòkòrè, “descendente (rikòkòrè) de Kayapó (Karalahu)”, é um exemplo


dos insultos associados aos descendentes de povos estrangeiros.

Quando o que ofende está com muita raiva, ele acrescenta a palavra binahaky, um
aumentativo (haky) do conceito de “feio”, “errado” ou “ruim” (bina), à palavra que designa
os que são xingados, como em Tori binahaky, “branco horroroso ou muito ruim”. O
mesmo vale para as aderana (mulheres públicas), povos estrangeiros, órfãos etc. Segundo
os Javaé, de todos, os piores xingamentos são “filho do anzol”, “menino ou menina das
costas brancas” e ixyjurikòrè (“descendente de estrangeiro”). Quem assassinou um parente
próximo, a vergonha suprema, será sempre xingado por isso.

635
Existem também os xingamentos das aldeias, como Canoanã, cujos habitantes são
xingados pelos moradores de outras aldeias de “colonião ky mahãdu”, “o povo que vive no
meio do colonião”, referindo-se ao capim-colonião que agora nasce na aldeia e que nem
sempre é capinado pela comunidade. Já os moradores de Canoanã respondem xingando os
outros de bèdèrahyky mahãdu, “o povo que vive no mato”, no sentido de que Canoanã é a
maior aldeia de todas, uma espécie de centro das aldeias Javaé, enquanto as outras estão no
mato ou periferia. Os Karajá também xingam os Javaé de bero kyja mahãdu, “povo do rio
pequeno”, pois acham triste o Rio Javaés, que é pequeno quando comparado com a
majestade grandiosa do Araguaia. Por fim, existem os lahadina específicos de determinada
pessoa, do qual obtive vários exemplos, que são criados com base em fatos vergonhosos e
únicos da sua história pessoal ou de seus antepassados, sendo transformados em
conhecimento a ser transmitido pelas avós de outras famílias aos próprios netos.
Já foi dito antes que a cultura é vista como o substituto criativo masculino para a
perda da plenitude da vida mágica, que é atribuída às atitudes egoístas das mulheres no
começo dos tempos. Como corolário dessas concepções cosmológicas, existe a idéia de
que o florescimento de talentos pessoais surge quanto o sujeito sofre alguma perda,
limitação ou frustração, capazes de levá-lo a uma transformação criativa. Os Javaé
costumam dizer que os socialmente abandonados tendem a se transformar em grandes
rybèwii (“oradoras”), ijèsudu (“lutadores”), aõèry (“sábios”) em assuntos da Casa dos
Homens ou do mundo dos brancos, podem desenvolver de modo especial o talento da
inteligência, tornando-se rakywii (“cabeça boa”), irasòdu (grande “dançarino de aruanãs”)
ou mesmo hawyky worena, uma espécie de “objeto de desejo sexual das mulheres”, em
razão de sua beleza. São características ou talentos pessoais adquiridos ao longo da vida e
que podem gerar muito prestígio, mas que diferem do prestígio que é herdado dos pais e
que se origina na riqueza de parentes. A mim foram citados vários exemplos de adultos
vivos, órfãos de pai ou mãe, ou que foram criados como gente pobre de parentes, mas que
– apesar disso e por isso mesmo – tornaram-se pessoas de destaque na comunidade por
seus talentos admiráveis.
De fato, no mito apresentado, é o órfão Kyrè que se transforma em um herói
honrado ao final, apesar da sua origem desprestigiada. Há aqui um contraste entre o
prestígio herdado, associado aos primogênitos e à continuidade social, e o prestígio
adquirido, associado aos órfãos ou caçulas e à possibilidade de transformação criativa em
vida. Simbolicamente, trata-se do mesmo tipo de contraste entre a criação masculina, fruto

636
de uma perda original, mas voltada para a manutenção do status quo, e a criação feminina,
intrinsecamente transformadora da realidade. Os dois tipos de atuação ou criação podem
resultar em grande prestígio social ou individual, mas em termos gerais há sem dúvida uma
maior valorização daquilo que representa a continuidade e a repetição ao invés da
mudança, o masculino ao invés do feminino, o primogênito ao invés do caçula, o herdado
ao invés do adquirido. O poder tecnológico opressor dos não-índios parece ser concebido
dentro dessa mesma lógica: trata-se de um poder real de transformação da realidade, daí
ser associado ao filho de Tanyxiwè e aos ossos femininos, mas de prestígio muito inferior,
porque toda transformação, criativa ou destrutiva, tem a conotação indesejada da
mortalidade.
A oposição entre o que é herdado e o que é adquirido, porém, não tem o mesmo
significado da oposição ocidental entre o que é dado naturalmente e o que é construído
socialmente, entre o que se origina na natureza e o que é produto da agência humana.
Afinal, o que é herdado – o prestígio da riqueza de parentes, que nada mais é do que as
próprias relações de parentesco em si – é igualmente um produto da intervenção humana
sobre o mundo: o parentesco não é uma questão de laços substanciais naturais, mas o
resultado de um processo social de fechamento (identidade com os aruanãs) e
assemelhamento (presença das imitadoras) dos corpos, o que depende das relações de
reciprocidade e afinidade entre os humanos sociais.

8.3. A nobreza da imortalidade

O princípio da primogenitura também regula a transmissão do título de iòlò, uma


chefia hereditária que é de longe o mais prestigiado dos diferentes tipos de chefia
existentes entre os Javaé. Segundo Lima Filho (1994:126), o “iòlò é considerado pelos
Karajá como a chefia mais importante”. A supremacia dos valores de pacificação e
conciliação ou a ênfase no controle formal dos conflitos, dominante entre os Arawak,
manifesta-se através da posição hierarquicamente superior dos iòlò, cuja função básica é a
mediação de conflitos. A paz caracteriza a vida mágica no extremo rio acima, enquanto os
conflitos são associados às mulheres e à Terra dos Ensangüentados, no extremo rio abaixo.

637
Conflito e paz também estão no cerne na oposição entre luto extraordinário e vida ritual
ordinária.
Voltando ao mito de origem novamente, Tòlòra ascende ao nível terrestre com o
objetivo de pacificar o mundo depois que ocorrem os conflitos entre os irmãos de
Ijanakatu e os de Nabio, precursores das metades cerimoniais Saura e Hiretu, tornando-se
então o primeiro iòlò terrestre. Embora o Rararesa (o Urubu-Rei mítico de quem Tanyxiwè
roubou o cocar/sol) fosse um iòlò celeste, como lembra Lima Filho (1994) a respeito dos
Karajá, os Javaé dizem que foi Tòlòra quem inaugurou a transmissão dos títulos de iòlò, de
primogênito para primogênito, ao ser sucedido por Timyjuy, seu filho mais velho, e assim
sucessivamente, até os dias de hoje. Desde então, não existem mais iòlò no nível
subaquático. Lima Filho (1994:169) também diz que os objetos que acompanham o iòlò
(banco zoomorfo e adornos corporais) foram trazidos pelos personagens míticos Wokubedu
e Koboi do Fundo das Águas. Na versão Javaé da mitologia, Koboi é o primo de Tòlòra
que ascende ao nível terrestre, mas depois volta para baixo desencantado com a morte que
aqui encontra.
Se os primogênitos descendentes de outros primogênitos são considerados como
“reis”, no que se refere ao prestígio social, os iòlò são como a casta superior dentro desse
grupo restrito, os reis dos reis. Nenhum outro título ou função alcança o mesmo status
superior dos iòlò, que parecem ser a encarnação suprema dos ideais coletivos associados ao
rio acima. Nessa condição privilegiada, idealmente os iòlò são o ponto de convergência
social e ritual de sua parentela bilateral, de modo mais intenso e prestigiado do que os
primogênitos comuns, contando com muitos parentes reais e classificatórios que desejam
visitar, cuidar e acompanhar as “crianças famosas” no cotidiano e nos rituais.
A diferença encontrada entre os povos influenciados pelos Arawak entre famílias
“nobres” e “comuns” manifesta-se entre os Javaé através da diferença de status entre os
ricos de parentes e os pobres de parentes. Dentro dessa oposição básica, entretanto, são as
famílias proprietárias do título de iòlò, o que idealmente deveria estar acompanhado de
uma conduta moral exemplar, incluindo a riqueza de parentes, que atingem o topo da
hierarquia social, diferenciando-se notavelmente das outras famílias em termos de
prestígio. Os próprios Javaé utilizam a palavra “nobre”, da língua portuguesa, para se
referir aos iòlò e suas famílias. Lima Filho (1994:126) diz que os Karajá chamam os iòlò
de “príncipe”.

638
Apenas os primogênitos de uma linha de primogênitos e que ainda não procriaram
podem assumir a função de iòlò, uma vez que são eles os portadores da substância mágica
e mítica dos corpos fechados originais. Assim que nasce o primeiro filho de um iòlò, o
título extremamente honrado é automaticamente transmitido para o sucessor,
independentemente do sexo de quem transmite ou de quem recebe, como no caso dos
aruanãs. Lipkind (1948), Dietschy (1974), Donahue (1982), Toral (1992) e Lima Filho
(1994) mencionam a existência de iòlò mulheres entre os Karajá, especialmente no
passado, mas Pétesch (1993b, 2000) relata que o título, hoje privado do status que possuía,
seria transmitido preferencialmente para os primogênitos do sexo masculino. Do mesmo
modo que a propriedade dos aruanãs, os Javaé consideram que todos os irmãos (siblings)
do primogênito são donos (wèdu) simbólicos dos aruanãs ou do título de iòlò, mas apenas o
primogênito tem o direito de exercer as funções associadas a este último e de transmiti-lo
aos seus filhos.
Entretanto, paradoxalmente, reproduzindo uma temática Arawak maior, encontrada
no alto Xingu, o cognatismo ou mesmo a negação da descendência convivem
paralelamente com uma ênfase em “relações de descendência entre pessoas de alto status”
(Hill & Santos-Granero, 2002:18). Ou como já disse Heckenberger (2002:113) a respeito
do papel da genealogia entre os povos Arawak, que não requer necessariamente fortes
princípios unilineares: “ela é geralmente traçada através dos predecessores imediatos de
um indivíduo, incluindo os pais e, notavelmente, os avós (...) e uma conectividade
metafórica com ancestrais distantes e mitológicos (…). Genealogia é importante, mas é
mais importante para os poderosos”. No caso Javaé, o conhecimento das genealogias é
mais importante para as famílias de maior status, em especial aquelas onde é transmitido o
cargo de iòlò, uma chefia hereditária que se conecta miticamente com o ancestral Tòlòra.
O conhecimento genealógico das avós (lahi òraru) pode alcançar seis ou até mais gerações
completas de antepassados dos adultos vivos, ponto a partir do qual, aproximadamente,
podem ser feitas conexões com os ancestrais mitológicos. Isso ocorre especialmente no
caso de famílias que reivindicam a descendência direta de ancestrais de prestígio, como os
Wèrè ou do povo de Tòlòra, por exemplo.
Embora haja um esforço cultural mais amplo para suprimir simbolicamente os
vínculos de descendência entre as gerações – pois o parentesco é pensado como um estado
de semelhança e cada descendente que é gerado representa a criação da alteridade –, as
informações sobre as genealogias das próprias famílias e dos outros, além do passado a

639
elas associado, são altamente valorizadas: através delas pode-se estabelecer a distinção
hierárquica entre os humanos terrestres, reivindicando a glória para a própria família ou a
desonra para os outros durante os confrontos verbais. O conhecimento sobre as conexões
genealógicas entre os iòlò atuais e seus ancestrais mitológicos não é de domínio público,
cabendo a cada família específica, privadamente, a informação detalhada sobre essas
ligações no tempo e a transmissão desse saber para os seus descendentes. Alguns alegam
ser descendentes diretos de Tòlòra, o iòlòtyhy (“iòlò verdadeiro”), ou de seus filhos, por
exemplo, enquanto outros se consideram descendentes dos Wèrè que se misturaram com o
povo de Tòlòra e passaram a ter o mesmo tipo de chefia política.
Em 1998, havia dez linhas de transmissão do título de iòlò entre os Javaé. Quatro
dos iòlò eram mulheres e cinco das linhas, ou seja, a metade, havia sido iniciada em
tempos recentes. Apesar da condição de iòlò ser hereditária, a sua transmissão não depende
exclusivamente dos vínculos biológicos entre as pessoas, pois o ixytyby (chefe ritual) pode
tanto decidir reiniciar uma linha de transmissão antiga quanto retirar o título de alguém
que se comportou inapropriadamente, interrompendo a hereditariedade. Trata-se de um
título cuja continuidade depende da aprovação do comportamento moral do proprietário
pelo chefe ritual. Um iòlò que matou um parente há algumas décadas atrás perdeu o seu
título, o qual foi retomado por seu filho primogênito muitos anos depois. Do mesmo modo,
o ixytyby retirou o título de uma primogênita que tinha muitos parceiros sexuais,
entregando-o a seguir para um de seus irmãos, que passou a ser o verdadeiro dono do
título, podendo transmiti-lo aos seus próprios descendentes. O chefe ritual pode intervir em
qualquer família, mas ele tem maior autoridade para fazer isso no caso da sua própria
parentela bilateral. Lima Filho (1994) menciona o poder do chefe ritual Karajá em tirar o
título de quem não desempenha as funções esperadas de um iòlò.
Por outro lado, o ixytyby pode decidir reiniciar uma linha de transmissão
convidando um grupo de irmãos que ainda não teve filhos para se tornar iòlò a partir de
então, o que é considerado uma grande honra por todos. Nesse caso, apenas o filho mais
velho passa a ter o direito de transmitir a sua condição nobre para o seu futuro filho
primogênito e assim por diante, desde que mantenha uma conduta aprovada. Esse convite é
dirigido apenas aos iòlò rikòkòrè, ou seja, os “descendentes de iòlò” antigos que, por
algum motivo, não estavam mais usando o título que pertencia aos seus antepassados.
Pressupõe-se que o chefe ritual deve conhecer a fundo as antigas conexões genealógicas a
fim de escolher alguém que retome essa função. Na verdade, não é o jovem em si que é

640
convidado, mas a sua mãe, que fica conhecida como iòlòsè, “mãe do iòlò”. No começo do
ritual de iniciação masculina, logo depois que os worosy Ijaura e Tabuhana levantam a
Casa Grande, as mães dos iòlò existentes devem colocar na porta de suas casas uma grande
panela de barro contendo o iweru feito por elas. A bebida típica será buscada e levada
pelos worosy da Casa dos Homens para o terreiro masculino, onde eles realizarão a
brincadeira chamada Iweru Bèura, “água branca do iweru”.
O chefe ritual aproveita essa ocasião para convidar a mãe de um descendente de
iòlò para que ela também faça o iweru ritual e coloque-o na frente de sua casa. A partir de
então, seu filho mais velho será considerado um iòlò e retomará a linha de transmissão
interrompida anteriormente, tendo o direito de dar continuidade a ela e de participar do
ritual em questão e de todos os subseqüentes na nova condição. Os iòlò convidados têm
menos prestígio que os iòlò tradicionais e são chamados de bèmonakydu, “os que fornecem
a água (bèmona)” para os iòlò principais, em uma alusão à sua participação recente na
brincadeira Iweru Bèura. Durante o ritual Iweruhuky, “muito iweru”, realizado até o início
dos anos 80, as cantorias e oferendas rituais que se estendiam noite adentro, durante um
mês, no início da seca, eram realizadas nos terreiros das casas dos iòlò existentes. Estes
últimos tinham importante participação durante todo o Iweruhuky, enquanto os iòlò
bèmonakydu não tinham direito a essa honra e suas as casas não eram incluídas no ritual.
O convite pode ser feito pelo chefe ritual com o objetivo de prestigiar uma
determinada família, que pode ter alcançado grande reputação e a conseqüente riqueza de
parentes, ou por motivos rituais. Os iòlò são filiados às metades cerimoniais e têm
participação fundamental no ritual da Casa Grande, pois são as suas mães, cada uma em
sua própria casa, que devem preparar parte da comida (peixe e caça) que os worosy trazem
para o ritual em vários momentos. Dos dez iòlò existentes em 1998, seis eram Hiretu e
quatro eram Saura. Os worosy da Casa dos Homens, divididos em Hiretu ou Saura,
distribuem a comida conforme a filiação respectiva dos iòlò. A comida chama-se iòlò dò,
“comida de origem animal dos iòlò”, mas é consumida pelos próprios worosy dentro da
Casa Grande. Além disso, a realização da brincadeira Iweru Bèura requer que exista um
iòlò, pelo menos, morando em cada extremidade da aldeia. Em Canoanã, no ritual de 1997,
não havia nenhum iòlò morando do lado rio acima durante o ritual, de modo que o ixytyby
convidou dois jovens descendentes de antigos iòlò, moradores do lado rio acima, para

641
retomarem o título que fora de seus antepassados e assim possibilitar a realização do ritual.
Segundo Lipkind (1948), cada aldeia Karajá tinha um ou mais iòlò 10 .
Tradicionalmente, um homem iòlò deveria se casar apenas com uma mulher que
também fosse iòlò, dentro da mesma aldeia e da categoria de parentesco adequada (prima
cruzada distante), através do casamento arranjado harabiè. A prática de “endogamia de
classe” é comum entre os Arawak (Hill & Santos-Granero, 2002:18, Hill, 2002:224),
incluindo os do alto Xingu (ver Ireland, 2001). Pétesch (1987) informa que os iòlò Karajá
deveriam se casar com alguém da mesma classe, permanecendo reclusos até o casamento.
Caso não houvesse uma mulher iòlò Javaé para outro iòlò dentro da mesma aldeia, este
último deveria se casar na própria aldeia, com alguma outra mulher da categoria ideal de
primos cruzados. Na genealogia de uma antiga linha de transmissão que obtive junto a uma
família, alcançando sete gerações, o iòlò mais antigo era casado com uma mulher
igualmente iòlò. Para os iòlò antigos não existia a possibilidade de separação no
casamento, que deveria se manter como uma aliança indestrutível até a morte de um dos
cônjuges, quando então poderia haver um casamento com um novo parceiro. Neste caso, a
condição de iòlò poderia ser transmitida ao filho primogênito tanto da primeira quanto da
segunda união. Atualmente, os iòlò não mais respeitam o tabu da separação nem se casam
apenas com outros iòlò, não podendo ser transmitido o título nobre para o primogênito do
segundo ou demais casamentos.
Antigamente, os iòlò que ainda não haviam se casado deveriam permanecer durante
a maior parte do tempo dentro de um “imenso pote de barro” (butxihiky) fabricado por sua
avó materna e que ficava dentro de sua casa. Dentro do pote, ele ou ela deveriam sentar-se
ornamentados e pintados ao modo tradicional em um banco ritual zoomorfo e bicéfalo de
madeira, onde se mantinham isolados dos olhares públicos, sendo vistos apenas pelos co-
residentes. O banco, também pintado e adornado com brincos de penas, foi herdado dos
Wèrè e é chamado korixà. Segundo Pétesch (2000:122), os Karajá concebem o banco de
madeira a partir da mesma “tripartição corporal de toda representação humana” (cabeça,
tronco e pernas), o qual representaria a “imobilidade imortalizada” (1987:85). Lima Filho
(1994:126) relata que o banco tem “dois rostos, ressaltando dois pares de olhos de
madrepérola” e que o iòlò nele “se aquieta, acompanhado por uma faca adornada com
penas de araras”. O iòlò Javaé passava então por um processo diário de aprendizado e

10
Toral (1992:91) menciona os iòlò “latentes” de aldeias pequenas, que presumo serem aqueles cujas linhas
de transmissão estavam inativas por alguma razão.

642
aconselhamento por parte de seus avós (MM e MF), principalmente, saindo da casa/pote
para circular pela aldeia apenas com o objetivo de intervir nos conflitos entre os
moradores. Dos iòlò esperava-se a conduta moral mais elevada, que não andassem pela
aldeia misturados com os outros, que não brigassem com ninguém e que tivessem um
comportamento sexual contido e monogâmico depois do casamento 11 .
Por outro lado, o mito narra que a poligamia foi instituída pelo iòlò Tòlòra, que
abrigou os remanescentes Karajá que fugiam dos Wèrè, acabando por se casar com duas
mulheres Karajá. A poligamia foi encontrada em 5,2 % de todos os casamentos das aldeias
Canoanã e Barreira Branca pesquisados em 1998, incluindo casamentos de gerações
passadas. Trata-se de uma prática comumente associada aos caciques (em geral, os
fundadores das aldeias ou seus descendentes), como entre os Arawak, mas não mais aos
iòlò, sendo ambiguamente valorizada pelos Javaé: é vista como vergonhosa, em razão de
denotar promiscuidade sexual, além de estar associada no mito ao casamento de prestígio
inferior com os Karajá. Os filhos de um polígamo podem ser xingados de nõsy rareasa
myheri, “o sêmen (nõsy) de que foi feito (myheri) foi dividido (rareasa)” em mais de um
útero. Mas pode também significar honra, na medida em que só os grandes trabalhadores
podem sustentar mais de uma mulher e seus filhos. Repetindo a mesma relação simbólica
entre o que aparece primeiro (maior prestígio) e o que vem depois (menor prestígio),
Bueno (1987:99-100) relata, a respeito dos Karajá, que “a primeira mulher freqüentemente
mantém uma posição de superioridade e cabe à segunda, além de uma posição secundária,
o serviço mais pesado”.
O iòlò aprendia com seus parentes a falar em um tom de voz suave, não agressivo, e
era ensinado, com mais ênfase do que os outros, a evitar qualquer tipo de confronto com os
próprios parentes, para assumir aos poucos a postura de “conselheiro e pacificador” de
todos os residentes da aldeia, o raybididu da comunidade. Diferentemente dos worosy, que
durante o ritual de iniciação masculina aconselham os meninos apenas sobre a importância
dos segredos masculinos, os iòlò têm autoridade para aconselhar ou opinar a respeito de
qualquer assunto. Apesar da prática de reclusão (iwòtè), originada entre o povo de Tòlòra,
os Javaé dizem que os jovens iòlò do sexo masculino podiam tornar-se grandes lutadores,

11
Segundo Krause (1943a:195), referindo-se aos “caciques” Karajá, “desde criança o cacique recebe uma
educação que o habilite a exercer as funções de seu cargo. Após uma ablução com água quente, ele vive
isolado, durante quatro anos, numa cabana especial; aí o pai lhe ensina as danças e as canções para as danças,
aí aprende a decidir questões de justiça e as demais coisas necessárias ao exercício do cargo. (...) O
aprendizado encerra-se com uma grande festa”.

643
porque recebiam a alimentação adequada por parte de seus parentes, embora não fossem
treinados como corredores.
Até hoje, os mascarados que costumam ser mais agressivos e chegam a bater com
varas nas casas das mulheres e crianças, como os latèni e korera, ou os worosy
subaquáticos que roubam os animais domésticos, são proibidos de tocar nos bens e casas
dos iòlò, protegidos pela aura de prestígio dos herdeiros de Tòlòra. As mulheres e crianças
podem se abrigar nas casas deles durante esses momentos, evitando qualquer tipo de
agressão. Os iòlò do sexo masculino tinham direito a uma pintura corporal específica
durante o ritual de iniciação, enquanto as mulheres usavam uma tanga de entrecasca
pintada diferentemente. Os iòlò em geral têm uma dieta especial, não podendo se alimentar
de camaleão, quati, macaco, mutum, jaó, jacu-cigano e caititu, mas podem comer porco-
queixada, veado e todos os tipos de peixes e tartarugas.
Quando o jovem iòlò do sexo masculino ia participar das reuniões ou das
refeições/oferendas coletivas (xiwè) na Casa dos Homens, quando ia ser iniciado na Casa
Grande ou quando ia ser levado para a casa de seus afins, no ritual do casamento, ele era
carregado nos ombros de seus tios reais ou classificatórios bilaterais, de preferência pelo
tio materno, do mesmo modo quando os meninos em geral são levados para o ritual da
Casa Grande. As mulheres iòlò também eram carregadas pelos tios, mas em situações mais
restritas, como será visto a seguir. No dia a dia, para realizar as tarefas cotidianas, eles
caminhavam por si próprios, devendo ir ao rio ou ao mato circundante muito cedo no dia
ou à noite, a fim de se manter fora do alcance da vista dos outros. Assim que nascia o
primeiro filho e o iòlò, homem ou mulher, transmitia o seu título especial, tornando-se
iòlòtyby (pai de iòlò) ou iòlòsè (mãe de iòlò), ele ou ela perdiam o direito de serem
carregados nos ombros, não mais tendo a necessidade de se manter em reclusão.
Na nova condição de provedores, passavam a ter uma vida normal, trabalhando
para sustentar os filhos e realizar as prestações matrimoniais, no caso masculino, devendo
manter o comportamento moralmente correto e honrado. Com o passar do tempo, porém,
os iòlò não perdiam a autoridade moral para aconselhar e intervir nos conflitos da
coletividade, principalmente enquanto o filho ou filha primogênita fosse ainda uma
criança. Os pais de um iòlò também colaboravam na educação do primogênito, que era
instruído por seus pais e avós sobre as recomendações que deveria distribuir pela aldeia.
Pétesch (2000:180) chega a distinguir entre a criança, que assumia a “representação” da
chefia, e o seu pai, que assumia a “responsabilidade” efetiva pelo cargo enquanto o filho

644
não tivesse idade para tal. Segundo Pétesch, o iòlò, em princípio, era o filho mais velho do
“ixã wedu” (um tipo de chefia política) (2000:179) e assumia a função de ixywèdu quando
se tornava pai. Para Lipkind (1948:186), o “chefe” nomeava o iòlò que iria sucedê-lo. Já
Toral (1992:91) define os iòlò dos Karajá e Javaé como os filhos ou netos do “capitão” ou
do “ixytyby” (chefe ritual). Entre os Javaé, entretanto, o título de iòlò não tinha nem tem
qualquer tipo de relação intrínseca com esses outros tipos de chefia, assunto do próximo
item.
Ao nome iòlò (ou ikòlòku, na versão feminina menos usada) pode ser acrescentada
a palavra deridu, que tem o sentido de “especial” ou “honrado”, mas que aqui não significa
um outro tipo de título de chefia cerimonial, como descreve Pétesch (2000) para os Karajá.
Na verdade, qualquer primogênito rico de parentes ou uma pessoa honrada (inytyhy), sendo
ou não iòlò, poderia ser qualificado também como deridu, que se refere às pessoas de uma
famíla deri (“boa”, “generosa”). Dietschy (1974:37) traduz deridu como “criança favorita”
e iòlò como “belo”, ambos termos referentes a cargos de chefia que lhe foram apresentados
pelos Karajá como “equivalentes”. Lima Filho (1994) reflete a respeito da questão e chega
à conclusão que os termos iòlò e deridu entre os Karajá são sinônimos. Os iòlò Javaé
existentes ainda são muito prestigiados e atuam nos rituais, mas nos dias de hoje os
herdeiros dessa condição especial não mais são criados isoladamente nem exercem o papel
formal de conselheiros e conciliadores da comunidade.
No caso da iòlò do sexo feminino, ela também era criada reclusa e com todas as
prerrogativas dos iòlò do sexo masculino. Mas ela era carregada pelos tios, nos ombros,
apenas para dar conselhos à coletividade masculina, permanecendo no ijoina (pátio ritual
masculino), sem entrar na Casa dos Homens, e por um curto período de tempo. Os tios
carregavam junto o banco zoomorfo, onde os iòlò se sentavam para transmitir as suas
palavras. A mulher iòlò só assumia essa função de aconselhamento público depois que
virava ijadoma, classe de idade das moças que já passaram pela menarca, mas que ainda
não se casaram, enquanto o mesmo ocorria com o homem depois do ritual de iniciação.
Lipkind (1948:186) relata que as iòlò Karajá eram chamadas de “mulher escondida”.
Nos dois casos, eles eram instruídos antes por seus, pais, tios e avós sobre o que
falar nas reuniões masculinas, sendo chamados para tal quando havia algum conflito na
aldeia. Segundo a tradição, as palavras sábias e conciliatórias dos iòlò deveriam ser
acatadas por todos, pois se diz que os iòlò existiam para evitar que as pessoas chegassem
ao confronto físico. Entretanto, repetindo o que os rapazes que ainda não haviam se casado

645
faziam, portando bordunas (kòhòtè), lanças (tõnõri) ou arco e flecha quando andavam pela
aldeia, os iòlò do sexo masculino carregavam bordunas mesmo quando eram carregados
por seus tios, o que é diferente do que diz Pétesch (1987) sobre o iòlò Karajá, submetido à
interdição de usar armas.
Os iòlò Karajá recebiam “tratamento preferencial” da comunidade (Lipkind,
1948:186) e eram acompanhados de importante escolta em suas visitas a outras aldeias,
onde “eram anunciados ao som de instrumentos de sopro” (Pétesch, 2000:179). Na aldeia
onde viviam, eles eram carregados nos ombros de alguém até a Casa dos Homens, não
podiam tomar banho no rio, mas apenas em um recipiente particular, e eram
acompanhados de seus bancos e esteiras especiais aonde fossem. Segundo Pétesch (1987,
2000), o xamã estaria associado à mobilidade espacial e exerceria sua função na velhice,
enquanto o iòlò estaria associado à reclusão e ao imobilismo, exercendo seu papel na
infância e juventude. Donahue (1982:194-195) menciona ainda que o iòlò, considerado
como um “déspota hereditário”, além de viver isolado das outras pessoas em sua casa e ser
carregado, sentava-se sempre em uma “pequena cadeira” para ficar acima dos outros. Toda
comida era trazida a ele e então distribuída na aldeia. Lima Filho (1994:168) refere-se à
criança que assumia o título de iòlò como “um pequeno imperador”, “um referencial de
sabedoria” cercado de “cuidados especiais” e “súditos”. Segundo o autor e Pétesch (1987,
2000), os iòlò não podiam participar de nenhuma atividade econômica durante toda a vida,
em especial das de predação (pesca e caça). Lima Filho diz ainda que os homens das duas
metades cerimoniais é que eram encarregados de alimentá-los.
Entre os Javaé, contudo, os iòlò do sexo masculino não estavam isentos das
prestações matrimoniais aos afins, comuns a qualquer homem. Eles podiam e deviam
pescar normalmente depois do casamento, assim como deviam se dedicar à agricultura,
pois não existia nenhuma estrutura coletiva de sustentação econômica dos conciliadores
formais. Como entre seus vizinhos, porém, a caça era evitada, o que é justificado por um
episódio mítico, em que o iòlò chamado Tatxiwana foi atacado pelo aõni canibal chamado
Inyni durante uma caçada. Desde então, diz-se que todos os iòlò têm medo de caçar,
temendo que o fato se repita. Pétesch (2000) também fala de uma interdição à participação
na guerra, o que se repetia entre os Javaé e é justificado em um outro fragmento mítico, já
apresentado aqui: o iòlò Tòlòra acolheu os Karajá que fugiam dos seus perseguidores, os
Wèrè, interrompendo a guerra travada entre os dois povos. Por causa disso, desde então, os

646
iòlò não só não participavam nas guerras (ou retaliações), como cabia a eles a decisão de
interrompê-las definitivamente, instaurando a paz.
Em sua análise sobre a chefia e o sistema político no alto Xingu, Menget (1993)
descreve que os chefes (não havendo distinção entre chefe político e ritual) são portadores
de títulos hereditários, como no caso dos iòlò, embora não faça nenhuma menção ao
critério da primogenitura. Essa chefia hereditária, da qual não se sabe a origem, é
acompanhada de marcas distintivas corporais, funerárias e discursivas. Como existem
muitas pessoas portadoras desses títulos, inclusive mulheres (“as mulheres transmitem a
chefia sem exercê-la” (Menget, 1993:68]), ao modo Javaé, assumir o cargo de chefe
efetivamente não é apenas uma questão de hereditariedade, mas também de mérito, pois
depende das disputas entre as diversas facções e da competência lingüística e política do
chefe, que deve saber se relacionar bem com as outras comunidades. Além disso, como no
caso dos iòlò, espera-se grandeza moral do chefe, que deve encarnar as virtudes do
“homem ideal” (Menget, 1993:68), devendo ser belo, campeão das lutas rituais, generoso,
pacífico, modesto e evitar a oratória agressiva. Com base nos dados de Pétesch (1992),
Menget salienta as semelhanças do sistema político e ritual xinguano com o sistema
Karajá, chegando a especular, como a autora, sobre uma possível influência histórica dos
Karajá sobre o alto Xingu.
Antes de Menget (1993), porém, Agostinho (1974) já havia descrito com outros
detalhes as principais características do “capitão” xinguano (morerekwat), que em sua
essência são extraordinariamente parecidas com as dos iòlò Karajá e Javaé, como foi
apontado por Lima Filho (1994) em relação aos primeiros. Além da transmissão hereditária
de tal título tanto para homens como mulheres e das marcas corporais distintivas, assim
como o direito de funerais especiais em sua memória, Agostinho (Agostinho, 1974:27-29)
salienta que o seu status de membro de uma classe “superior” tem maior preponderância na
esfera cerimonial; que o capitão é pensado como alguém que “fica só sentado, mandando”,
o que é simbolizado pelos banquinhos zoomorfos e bicéfalos que são de sua propriedade
exclusiva e nos quais se senta durante os rituais; que o capitão é chamado de “dono do
banco” (apìkawayat); que as antigas tatuagens corporais dos chefes, exclusivas dos grupos
xinguanos de língua Arawak, eram conhecidas como “figura de urubu-rei”, animal
freqüentemente representado no banco bicéfalo e que, no caso Javaé e Karajá, é associado
à origem mítica dos iòlò.

647
As prerrogativas dos iòlò estão claramente associadas ao estatismo (simbolizado
pelo imobilismo provocado pela reclusão e pelo banco ritual) e ao pacifismo, como já foi
notado por Pétesch (1987, 2000). O isolamento a que era submetido o chefe hereditário
também pode ser interpretado como uma forma de simulação da separação dos corpos
fechados, uma tentativa de evitação da mistura com as substâncias dos corpos abertos dos
humanos terrestres, ou seja, uma espécie de “resguardo crônico” e preventivo dos iòlò. O
fato de ser carregado nos ombros dos tios reforça a simbologia do imobilismo, pois se
impede que o iòlò se movimente por suas próprias pernas, mas também induz a uma clara
associação com a cabeça ou com o que está na parte de cima do corpo humano, a mesma
posição mais valorizada do rio acima em relação ao grande corpo humano cósmico. Além
do mais, o jovem chefe Javaé era carregado preferencialmente por seu tio materno, como
ainda ocorre com os meninos em geral no ritual de iniciação, evidenciando-se uma ligação
simbólica com a casa natal e o que ela representa, o lugar dos corpos fechados mágicos.
O princípio da primogenitura entre os Javaé, tanto no caso da transmissão dos
aruanãs quanto dos títulos de iòlò, atua como uma forma de supressão simbólica dos
vínculos de descendência entre as gerações. Embora o título seja transmitido através de
sucessivas conexões genealógicas, que são lembradas principalmente pelas famílias que o
detêm, ele não tem um conteúdo de linearidade progressiva do tempo: ao contrário, assim
como os aruanãs, ele constitui muito mais uma identidade com um corpo/lugar estático, a
grande casa materna xiburè do rio acima, onde não se procria e, por isso, as substâncias
não fluem e o tempo não passa. A procriação é o fato que cria não só a diferença, através
de cada novo corpo que é gerado, mas a própria passagem do tempo, associada ao fluxo
das substâncias. Trata-se de um lugar estático que está sendo enfatizado e não uma linha de
descendência no tempo. Em última instância, pode-se dizer que o princípio da
primogenitura é o mecanismo que põe em prática a própria noção de “parentesco” nativa,
ao conectar as gerações através da supressão simbólica dos vínculos substanciais.
A identidade com essa ordem imutável no período que vai do nascimento à
procriação, com o mesmo estoque energético inicial, é especialmente válida no caso dos
iòlò, que são, entre os primogênitos em geral, aqueles que se conectam aos primeiros
primogênitos míticos, portando em seus corpos a substância primordial que não foi
contaminada pela alteridade. A primogenitura, portanto, não significa apenas uma
identidade com o estatismo temporal e espacial, mas acima de tudo com a semelhança dos
parentes mágicos que vivem entre si com seus corpos fechados e separados, na condição de

648
parentes uterinos (um tio materno e seus sobrinhos), o que, no nível terrestre, é
simbolizado pela casa natal. Pode-se dizer que é a primogenitura que possibilita a imitação
social do estado de parentesco mágico almejado pelos Javaé. Cada novo iòlò que assume o
título honrado, independentemente do seu sexo, não representa um elo a mais em uma
linha que se sucede progressivamente, mas o mesmo corpo imortal e assexuado que se
repete desde sempre.
As prerrogativas originadas da condição de primogênito (seja em termos de
propriedade ou identidade) cessam após o nascimento do primeiro filho, de modo que a
primogenitura, no caso masculino, está associada ao período em que um homem mora na
sua casa natal. Em outras palavras, o exercício da primogenitura coincide com a filiação
matrilinear de um homem à sua casa de origem, de modo parecido com os Bororo
(Crocker, 1979), para quem o critério da distinção hierárquica entre primogênito e caçula
institui-se dentro das linhagens matrilineares. A conjunção entre primogenitura e
matrilinearidade – ou, de modo mais adequado, entre primogenitura e casa natal – tem um
papel muito semelhante à matrilinearidade “espiritual” Bororo, na medida em que os co-
residentes uterinos são concebidos como um grupo de parentes que não trocam substâncias
entre si, simbolicamente de corpos fechados e sem gêneros definidos.
Como já foi dito, os bens preciosos (nohõ) herdáveis dos Javaé (aruanãs, títulos,
nomes) lembram o conceito de nekrêtch Kayapó, bens de valor transmitidos através das
gerações e que tomam a forma de prerrogativas e nomes. Entretanto, não se pode dizer que
esse patrimônio pertence às unidades uxorilocais, “Casas” compreendidas como pessoas
jurídicas, como propõe Lea (1993) para os Kayapó. Embora os proprietários de bens
estejam associados à casa natal e seus parentes próximos ajudem nas obrigações
decorrentes, os bens são de uma pessoa em especial, não existindo nada parecido com o
conceito de “Casa” enquanto uma entidade moral que agrega ou detém os bens simbólicos.
A distribuição dos bens de valor não é dada miticamente a cada casa específica, como no
caso Kayapó, mas depende da habilidade dos humanos em se tornarem dignos o suficiente
– ricos de parentes – para recebê-los. Pétesch (2000) argumenta que as casas Karajá não
têm o mesmo sentido jurídico lévistraussiano, mas não podem ser reduzidas a simples
entidades domésticas devotadas à procriação, uma vez que elas têm importante
participação na Dança dos Aruanãs, pois delas depende o alimento que mantém o ritual.
É importante lembrar que o esforço coletivo e conservador em prol da repetição não
significa pressupor que a sociedade é imutável ou imune às influências externas, mas

649
justamente o inverso: é o reconhecimento implícito de que a sociedade é constituída
intrinsecamente de relações com a alteridade, e que por isso muda ao longo do tempo, que
torna necessário tanto empenho em nome da anulação simbólica dessas relações. Dito de
outro modo, há o reconhecimento de que as conexões genealógicas, enquanto produto da
procriação, do elo entre diferentes, são inerentes aos humanos sociais, sendo evidenciadas
com maior interesse pelas famílias nobres. Entretanto, o conhecimento das genealogias,
gerador de prestígio, paradoxalmente não significa cultuar a noção de descendência em si
(ou de sucessão), mas o contrário, pois o título honrado que é transmitido nada mais é do
que um símbolo da não-descendência e da não-sucessão. A nobreza acumulada pelos iòlò
não provém da hereditariedade em si, mas do fato que eles representam a recriação social
da imortalidade dos corpos que não procriam.

8.4. Os donos do meio

Além dos iòlò, existem outros tipos de chefes políticos (hãwawèdu, ixywèdu), o
chefe ritual (ixytyby) e outras chefias específicas (ijoiwèdu, hàriwèdu), com esferas de ação
diferentes. De modo similar ao que Heckenberger (2001b) aponta para o alto Xingu, em
contraste com outras sociedades amazônicas, as funções de chefe político e de xamã são
bastante distintas, em vários aspectos, embora nada impeça que o chefe de uma aldeia
(hãwawèdu ou ixywèdu) possa atuar secretamente ou mesmo publicamente como xamã, o
que é mais raro 12 . Em geral, porém, são figuras que se distinguem marcadamente, assim
como iòlò e xamã, o que já foi apontado por Pétesch (1987, 1993a, 2000). O chefe ritual,
por sua vez, também pode ser um xamã, mas não há uma associação inerente entre chefia
ritual e xamanismo. A distinção entre líder político e líder cerimonial lembra o que Seeger
(1980), em sua análise comparativa, encontra entre os Suyá, Kraho e Apinayé
(diferentemente dos Kayapó e Xavante), em que a função xamânica também não se
confunde com a chefia ritual, embora o xamanismo propriamente dito não seja tão
desenvolvido quanto entre os Javaé, Karajá, Bororo (Crocker, 1985) e alto-xinguanos.

12
Menget (1993), entretanto, afirma que no alto Xingu há uma forte tendência à aquisição das funções de
xamã pelos chefes titulares.

650
A hereditariedade é a base da chefia política Javaé, apesar de não se manifestar com
tanta rigidez como no caso dos iòlò primogênitos, enquanto a chefia ritual depende muito
mais do acúmulo do conhecimento necessário à vida cerimonial. Repete-se o mesmo
contraste entre descendência e saber associado por Seeger (1980) à diferença entre o líder
político e o ritual dos Suyá e Apinayé. Além disso, os chefes políticos (hãwawèdu ou
ixywèdu) não se intrometem nos assuntos do chefe cerimonial. Mas entre os Javaé não se
trata apenas de uma chefia política transmitida patrilinearmente, como entre os Suyá e
Xavante (Maybury-Lewis, 1984), ou mesmo entre os Karajá, segundo Donahue (1982) e
Pétesch (2000). Há uma preponderância do princípio da primogenitura, enfatizado por
Lima Filho (1994) com relação aos Karajá, aliado a um critério sexual: como as mulheres
não podem ocupar os cargos mencionados, cabe apenas ao mais velho, dentre os filhos do
sexo masculino do fundador de uma aldeia, o direito de se tornar o líder político da aldeia,
e assim sucessivamente. Entre os Bororo (Crocker, 1976), também é o primogênito do sexo
masculino que tem o direito de assumir a chefia das linhagens. Na prática, entretanto, isso
nem sempre ocorre, pois talentos como a oratória podem influenciar na escolha do chefe
político.
Toda aldeia teve ou tem um hãwawèdu, “dono (wèdu) da aldeia ou território
circundante (hãwa)”, que é aquele que primeiro chegou e fundou o lugar. O conceito de
hãwa terrestre é uma réplica das hãwa dos aruanãs em seus locais de origem, onde vivem
em aldeias circundadas por um território maior e limitado. Para Donahue (1982), hãwa
enfatiza apenas a dimensão espacial da aldeia Karajá, em contraste com ixy (as pessoas do
lugar) e mahãdu (a relação entre as pessoas). O wèdu é também aquele que tem o poder de
“controlar” algo, como já foi dito, em oposição ao wetxu, o que se submete ou é
controlado. Os Suyá também usam a noção de “dono ou controlador” (Seeger, 1980:108)
para definir o líder político, o que se repete no contexto do alto Xingu (Menget, 1993).
Toral (1992:78) traduz “wedu” como o “responsável” ou o “animador” dos grupos. A
palavra wèdu contém a partícula du, que indica expertise em algum assunto, tradução
também já feita pelo autor, como em ijykydu, “o experto (du) em mitologia (ijyky)”. E a
palavra wèè (barriga), que Pétesch (2000:175) traduz como “gordura do ventre”, de modo
que “wedu”, segundo a autora, seria “aquele que (du) tem gordura (wè)”, um conceito de
“riqueza” expresso em linguagem corporal.
Du também tem o sentido de uma “postura ativa”, como em wèdèdu, “o que penetra
sexualmente”, em oposição a na, que é “lugar” e também uma “postura passiva” ou

651
“receptiva”, como em wèdèna, “o que é penetrado sexualmente”. O especialista é aquele
que tem controle ou domínio sobre algum assunto ou prática, o que parece estar
relacionado a uma postura ativa de buscar o conhecimento e tornar-se um mestre ou
“dono” do saber. Na expressão wèdu há uma associação entre a noção de controle ou
propriedade, geradora de direitos, e a porção do corpo relativa à barriga. Wèdu,
literalmente, poderia ser “o que controla, domina ou é o mestre ou dono da barriga”. Um
cacique Javaé traduziu a expressão literalmente como “dono da barriga” e disse que, ao
contrário dos brancos, para quem o coração seria o órgão mais importante do corpo, a
barriga (o “meio do corpo”, nas suas palavras) é a parte mais importante para os Javaé.
Como já foi demonstrado, o “meio” do corpo é onde se faz a mediação entre a comida e as
fezes, assim como a Casa dos Homens está no meio da aldeia, fazendo a mediação entre o
rio acima e o rio abaixo. Wèdu é, portanto, o “o dono do meio” ou “o que controla o meio”,
uma posição simbólica e cosmológica de poder, de mediação entre os opostos. A maior
parte dos conceitos de chefia compõe-se da partícula wèdu. O hãwawèdu, por exemplo,
seria “o que controla o meio da aldeia ou território”.
Desde o início do século passado, quando os Javaé começaram a se deslocar do
interior da Ilha do Bananal e arredores para poucas aldeias situadas na beira do Rio Javaés,
o conceito de “fundação” significa quase sempre a retomada de algum sítio muito antigo,
na maioria dos casos referido pela mitologia, que estava abandonado. Dada a valorização
do sedentarismo ou dos lugares míticos, como ocorre entre os Arawak, associada ao
estatismo de Tòlòra, não se trata de fundar um lugar novo, mas apenas de retornar a algum
lugar que já foi habitado pelos antepassados, o que pode ter sido em passado mais recente
ou remoto, e que não foi esquecido. Alguns casos, porém, são relacionados a conflitos
internos que resultaram em rupturas, em congruência com o princípio mítico e
cosmológico de que os deslocamentos espaciais são associados a conflitos. Este último é o
mesmo motivo do surgimento de novas aldeias mais recentemente, nos últimos 30 anos,
aliado ao crescimento populacional, ao esgotamento de recursos naturais e ao projeto
político de reocupação do território.
Os Javaé dizem que, antes do contato, não era comum esse processo de “fundação”
de aldeias, no sentido de se morar em um lugar novo, sem qualquer referência anterior,
como ocorre entre os praticantes do nomadismo ou semi-nomadismo. As mudanças
ocorriam em decorrência de conflitos internos, mas na maioria dos casos as pessoas
mudavam-se apenas para outras aldeias já constituídas. Mais raramente, podia ocorrer de

652
um homem decidir fundar um lugar novo ou retomar um sítio antigo, em razão de algum
conflito no lugar de origem. As grandes aldeias de origem imemorial tinham uma
estabilidade e permanência que contrastava, ao que parece, com a menor durabilidade das
pequenas aldeias formadas por motivos diversos. Foram citados exemplos de três aldeias
antigas (Kyrysa Hãwa, Làràtxi e Karalu Hãwa) que foram fundadas a partir de conflitos
acontecidos na antiga aldeia Wariwari, todos envolvendo acusações de feitiçaria. Quando
ocorria ou ocorre a fundação ou retomada de uma aldeia, apenas os homens mais
poderosos conseguem realizar esse objetivo, pois ele precisa – antes de tudo – convencer
os afins a se mudarem junto.
Os Javaé explicam que a fundação de novas aldeias era muito difícil justamente
porque os homens estavam presos aos compromissos de prestação matrimonial uxorilocal e
as famílias das esposas não aceitavam que elas fossem embora. Os poderosos de
antigamente eram os homens muito trabalhadores e ricos de parentes, que, por causa disso,
conseguiam convencer os sogros, cunhados e famílias respectivas, além dos próprios
parentes, a acompanhá-los na nova empreitada. Mesmo assim, normalmente os afins
concordavam em acompanhar um homem apenas quando eles próprios estavam envolvidos
em algum conflito na aldeia, do contrário sendo muito difícil tirá-los do lugar. Ser filho de
um homem que se mudou para algum novo lugar levando apenas a esposa e os filhos, o
que é considerado morar “sozinho”, sem pagar aos afins e sem a riqueza de parentes, é
tornar-se alvo dos xingamentos tradicionais. Além dos afins, um fundador convidava
também seus próprios parentes, em especial as famílias de seus irmãos e irmãs reais e
classificatórios. Atualmente, os poderosos que conseguem retomar antigos sítios devem ter
os talentos de liderança necessários aos contatos com a sociedade envolvente, o que
estimula os afins a segui-los. Com o andar dos anos, o prestígio e a generosidade de um
líder tendem a atrair mais pessoas.
As aldeias tradicionais eram compostas da parentela bilateral (e afins respectivos)
do fundador da aldeia e de sua esposa (ou esposas), idealmente uma prima cruzada
distante. Com o passar do tempo, os moradores transformavam-se nos descendentes do
grupo original, um grande e único sy (grupo de parentes), dentro do qual se praticava a
endogamia de parentela e de aldeia. Toral (1992:61) descreve a formação das aldeias dos
três grupos de língua Karajá como “grupos de descendência” ou parentelas, de 3 ou 4
gerações apenas, reconhecidos pelos nomes dos fundadores dos grupos locais. O autor
descreve cada aldeia como um conjunto de parentelas formadas por famílias extensas

653
uxorilocais articuladas em facções políticas, em que as famílias pioneiras têm precedência
cerimonial e política. As facções convivem de forma nem sempre pacífica nas grandes
aldeias, dando origem a rupturas e fundações de novas aldeias, enquanto nas aldeias
pequenas uma única facção predominaria. Tal modelo, no que diz respeito à existência de
rupturas estruturais nas aldeias, que teriam curta duração, deve ser visto com algumas
restrições no caso Javaé.
As aldeias Javaé eram autônomas em relação às outras, como entre os Jê e Bororo
(Turner, 1979a), cabendo aos habitantes de cada uma o direito de pesca, caça e coleta em
um determinado território circundante (hãwa), o que incluía os lagos e rios específicos da
região. Tanto entre os Karajá, conforme minha pesquisa recente (2007) em aldeias Karajá,
como entre os Javaé, os habitantes de cada aldeia conhecem com precisão os limites do seu
território de uso, evitando adentrar nos rios e lagos utilizados pelos moradores das aldeias
vizinhas. Sempre que se funda uma aldeia nova, há uma discussão entre os membros de
aldeias vizinhas para se discutir os limites territoriais entre as duas comunidades locais.
Recentemente, por exemplo, os fundadores da aldeia Boa Esperança (2002), muito
próxima à nova aldeia Wariwari, tiveram que pedir autorização ao cacique desta última
para utilizar os recursos ao redor da aldeia, localizada no território reservado até então aos
moradores de Wariwari. Segundo os Karajá de Fontoura e São Domingos, para pescar ou
caçar na área de uma outra aldeia é preciso pedir autorização ao cacique. Antigamente,
quando havia esse pedido, o chefe local (ixywèdu) Karajá autorizava uma luta ritual entre
os moradores de duas aldeias. Só os vencedores da aldeia vizinha tinham direito ao uso do
território solicitado.
As aldeias maiores Javaé, como Marani Hãwa e Wariwari, esta última mais
recentemente, eram consideradas como centros de uma sub-região que incluía as aldeias
menores vizinhas. Conforme é narrado pela mitologia, sobre o que não há registro nas
etnografias a respeito dos Karajá, a Ilha do Bananal era divida espacialmente entre os
povos do lado rio acima (ibòkò mahãdu), os povos do meio (itya mahãdu) e os povos do
lado do rio abaixo (iraru mahãdu). Cabia à aldeia Marani Hãwa uma posição central ou
hierarquicamente superior em relação a todas as aldeias e povos mencionados, embora isso
fosse especialmente válido no que se refere à porção meridional da ilha (rio acima), onde
estava situada. É digno de nota que a principal aldeia Javaé (Marani Hãwa) estava
localizada na porção ibòkò (do lado do rio acima ou meridional) da Ilha do Bananal,
confirmando a posição hierarquicamente superior de tudo que está no lado rio acima.

654
Assim como entre os Bororo (Crocker, 1985) e alto-xinguanos (Frachetto &
Heckenberger, 2001), as aldeias Javaé mantinham relações pacíficas entre si e com as
aldeias Karajá, o mesmo ocorrendo entre as aldeias Karajá 13 . Para ser considerado uma
“aldeia” propriamente dita, segundo os próprios Javaé, um lugar deve conter pelo menos
três casas. Toral (1992) define uma aldeia como um grupo local formado por uma facção
de pelo menos 40 pessoas. Alguns Javaé dizem que a vida em uma “aldeia pequena” (hãwa
kija), com poucas pessoas, não é boa porque todos são parentes relativamente próximos, de
modo que os conflitos, as relações sexuais condenadas e os mexericos tendem a surgir
dentro de uma mesma parentela, causando um impacto muito maior e tornando mais difícil
a convivência. Além disso, em aldeias muito pequenas ou sem xamãs não ocorrem os
rituais associados à Casa dos Homens. Já nas “aldeias grandes” (hãwa haky), como
Canoanã, os conflitos e o sexo impróprio também acontecem com igual intensidade, mas
se diz que eles têm um efeito desestruturante bem menor, pois, além de estarem associados
com mais freqüência a relações entre parentes distantes, as tensões podem ser diluídas
através do convívio com outras famílias.
Um levantamento sobre os moradores das aldeias atuais mostra que a maioria delas,
embora não tão grandes como as aldeias do passado, é um retrato bastante fiel do modelo
antigo, no sentido de ser constituída pela parentela bilateral do grupo de fundadores ou
pelos descendentes desse grupo original, como as que foram re-fundadas mais
recentemente, como São João, a nova Wariwari, Cachoeirinha, Imotxi, Txukòdè e Inyhija
(Boa Esperança). Mesmo em Barreira Branca e Boto Velho, pequenas aldeias fundadas por
volta da metade do século passado pelos remanescentes das aldeias interioranas dizimadas,
esse foi o padrão que se impôs com o tempo. Já Canoanã, a aldeia para onde foi o maior
número de sobreviventes da época, desde o início sempre foi um aglomerado de parentelas
das antigas aldeias interioranas, o que contribuiu para a existência de um clima de conflitos
e rivalidades políticas que não era tão comum antes.
Txuiri tem uma história um tanto atípica, descrita por Bonilla (1997, 2000), pelo
fato de ter sido fundada onde havia um povoado de brancos, situado em um antigo sítio
Javaé; e ter tido como mentor da sua reocupação e retirada dos não-índios um líder Karajá,
embora alguns Javaé tenham tido participação fundamental, o que atraiu para a aldeia os
Javaé que tinham algum parentesco com os Karajá. É notável que, segundo a autora ouviu
de seus moradores, a aldeia não tem nenhum iòlò porque ela foi formada principalmente

13
Krause (1940-1944), Donahue (1982), Toral (1992).

655
pelos “pobres”, pelas famílias de “menos prestígio” de Canoanã (1997:27). Entretanto,
Bonilla mostra como os Javaé e Karajá projetaram estruturas tradicionais de ocupação do
espaço sobre o vilarejo branco, reconstruindo a tradição em um contexto moderno, de
modo que não se trata, em absoluto, de uma aldeia “aculturada” (1997:96).
Em seu estudo sobre a dinâmica de formação das aldeias, Toral (1992:73-74)
reconhece que os primeiros registros históricos sobre os Karajá revelam a existência de
grandes aldeias, com mais de 2.000 pessoas, e que circunstâncias específicas do contato
favoreceram o “fracionamento” da população e a “fragmentação” das grandes aldeias
antigas. Em 1888, Ehrenreich (1948:34) já havia notado uma distinção entre as
“comunidades mais numerosas” dos Karajá da Ilha do Bananal, com um mínimo de 150 a
200 pessoas, distintas dos “pequenos bandos” amazônicos, e os pequenos grupos Karajá
meridionais forçados a se espalhar pela “escassez dos meios de subsistência”. Krause
(1941c), por sua vez, conclui que a expansão do grupo para o sul, em pequenos grupos,
iniciada no fim do século 19, foi fortemente influenciada pela busca de um contato mais
próximo com os presídios e aldeamentos para onde foram levados outros Karajá, o que
parece ser verdadeiro.
Por outro lado, de modo um tanto contraditório, Toral (1992:75) descreve a
existência de um “mecanismo” ou “tendência físsil” estrutural, relacionado ao intenso
faccionalismo interno dos três grupos de língua Karajá: “famílias extensas tendem a se
separar dos grupos de descendência de que fazem parte e, coligadas com outras, tornam-se
independentes em outros locais”. Segundo o autor, essa tendência à dispersão e mobilidade
de pequenos grupos teria sido em parte neutralizada a partir dos anos 60, principalmente no
caso Karajá, em razão do impacto aglutinador da sociedade envolvente, cujas diversas
agências estatais ou não propiciaram a formação de “médias” e “grandes” aldeias
sedentárias. Paralelamente, a intensa vida cerimonial das grandes aldeias, através da qual
os homens se unem em oposição às mulheres, e assim transcendem as disputas políticas
faccionais, seria um fator interno de relativa neutralização desse potencial dispersivo. Não
se chega, portanto, a uma resposta definitiva. O contato teria produzido a mobilidade de
pequenos grupos ou o sedentarismo em grandes aldeias? A tendência ao sedentarismo atual
dos Karajá é uma retomada de padrões antigos ou uma influência exógena? A retomada
atual de locais antigos pelos Javaé dá continuidade a uma mobilidade estrutural ou é uma
resposta ao contato? Os Karajá teriam uma maior propensão estrutural à dispersão que os
Javaé?

656
Só posso responder, por enquanto, que, no caso Javaé, tanto os primeiros registros
escritos, ainda que esparsos, quanto a memória nativa apontam para a existência muito
antiga de grandes e estáveis aldeias interioranas. E que outros mecanismos internos de
controle formal e esvaziamento das tensões estruturais, além da oposição entre homens e
mulheres, garantiam a convivência de facções e oponentes em um mesmo espaço por
tempo indeterminado, como a atuação dos conciliadores formais, as lutas, os choros e os
jogos rituais. Como veremos adiante, tem-se ainda uma forte ênfase na supressão simbólica
e ritual da afinidade, a grande geradora de tensões internas, seja por meio da tecnonímia,
de uma terminologia de parentesco “consanguinizante” ou da Dança dos Aruanãs, o que
contribuía consideravelmente para a neutralização relativa dos possíveis conflitos. Além
disso, a relação cotidiana entre afins é mediada por uma série de comportamento e falas
formais que ajudam a minimizar o potencial de ruptura. Já foi mencionado antes que o
próprio Toral (1999:47) reconhece em outro trabalho, centrado na identificação oficial do
território indígena, que as aldeias Javaé e roças adjacentes ocuparam “secularmente” os
mesmos e poucos locais secos em razão das vastas inundações anuais.
No caso dos Karajá, há também uma referência a grandes e estáveis aldeias do
passado pela memória oral. E os primeiros registros escritos também falam de imensas
aldeias no trecho livre de cachoeiras do médio Araguaia, onde os Karajá sempre estiveram
morando desde então, e em cujo centro geográfico está o lugar de sua origem mítica
imemorial (Inysèdyna). A estabilidade das aldeias maiores, nos dois casos, parece ter
convivido, sempre, com a fundação de pequenas aldeias satélites de menor durabilidade em
razão de conflitos internos. Além disso, quando uma aldeia era extinta, seja em decorrência
de conflitos internos ou, mais recentemente, por causa de conflitos com os não-índios e as
novas doenças, sempre havia a possibilidade de retomada posterior dos antigos sítios de
ocupação imemorial, que nunca eram definitivamente abandonados. Várias das aldeias
Javaé, em especial, e Karajá do século 20 foram fundadas em sítios de antiqüíssima
ocupação que estavam temporariamente abandonados. Pode-se concluir que os dois grupos
partilhavam de um modelo de ocupação territorial sedentário, com ênfase na agricultura,
embora associado a uma alternância sazonal de aldeias, em função, principalmente, das
pescarias.
Dentro do contexto de retomada de lugares habitados em tempos imemoriais, que,
ao que tudo indica, era a prática existente mesmo antes do contato, embora em menor
escala, o título de hãwawèdu dá direito a algumas prerrogativas e é vitalício,

657
diferentemente do de iòlò. A priori, esse título não tem nenhuma relação com a honra, a
riqueza de parentes ou a conduta moral da pessoa, mas apenas com o fato de seu
proprietário ter sido o primeiro a chegar no lugar. Entretanto, na prática, quanto mais
generoso for um hãwawèdu com a população local, menos ele terá a sua chefia
questionada. O sucessor ideal de um hãwawèdu é o seu filho mais velho do sexo
masculino, e assim sucessivamente, mas o critério da hereditariedade é relativo, pois
aquele que é reconhecido como o “dono da aldeia” tem autoridade para transmitir as suas
prerrogativas a outra pessoa, mesmo que seja um afim ou um parente distante. Em razão do
contato, a habilidade oratória em Português passou a ter um peso considerável para a
chefia política. Bonilla (1997:80) chega a dizer que o poder dos caciques e líderes é
“baseado principalmente sobre o conhecimento da língua (Tori rybè) e das coisas de Tori
(o conhecimento da língua dos brancos e das ‘coisas’ dos brancos)”.
Em geral, o hãwawèdu permanece como líder do lugar até a morte, devendo ser um
autêntico rybèwii (“orador”), mas, quando ele não é dotado desse talento, o seu irmão tem
o direito de assumir o seu lugar. Pode ocorrer também, mais excepcionalmente, do
hãwawèdu, ainda em vida, indicar alguém para assumir a chefia política da aldeia. Nessa
hipótese, aquele que foi designado dependerá sempre da aprovação do “dono da aldeia”
para permanecer no lugar, devendo consultá-lo nas decisões mais importantes. O indicado,
de preferência o filho mais velho, deverá ter habilidades oratórias, mas caso isso não
ocorra, o hãwawèdu pode apontar um outro filho para assumir as suas funções, um parente
distante ou mesmo um cunhado de confiança e que tenha talentos de liderança, como
aconteceu em Canoanã por alguns anos. Aquele que opta por designar um sucessor não
perde nunca o direito de intervir com autoridade nos assuntos que lhe dizem respeito.
Conforme registrou Toral (1992) em relação aos três grupos, os Javaé dizem que “o nome
do fundador” e o prestígio associado a essa condição permanecem na memória de todos,
mesmo que já tenha morrido ou que não haja descendentes diretos seus morando no lugar.
O hãwawèdu e seus irmãos reais e classificatórios próximos de ambos os sexos,
assim como os descendentes desse grupo, em especial os filhos/filhas e netos/netas
verdadeiros, adquirem o direito inabalável de morar definitivamente no lugar e de usar os
recursos do território, não podendo ser expulsos da aldeia durante os conflitos. Segundo
Toral (1992:62), a descendência dos fundadores é a base dos “direitos territoriais e
políticos” dos habitantes de uma aldeia. Também cabe ao “dono da aldeia” a prerrogativa
de aceitar/convidar novos moradores ou mandar embora moradores indesejáveis do lugar,

658
como no caso dos estrangeiros que se envolvem em conflitos ou têm comportamento
imoral. Os chefes que sucedem o verdadeiro hãwawèdu, o legítimo fundador de um lugar,
independentemente do grau de parentesco, são chamados de ixywèdu, “dono (wèdu) do
povo (ixy)”, em que ixy, como já foi explicado, pode significar “porco-queixada”, a
coletividade feminina ou toda a população de uma aldeia. Apesar de sua autoridade, o
hãwawèdu ou seu sucessor tem pouco poder ou influência nas atividades cerimoniais, que
são comandadas pelo chefe ritual.
Tanto a esposa do hãwawèdu quanto as suas filhas podem ser chamadas também de
hãwawèdu, mas aqui no sentido restrito de que elas têm o direito de morar no lugar e de
expulsar alguém. A esposa adquire esse direito como parte das prestações matrimoniais
que lhe são devidas, enquanto as filhas representam, mais do que os filhos do sexo
masculino, dentro de um contexto de uxorilocalidade e de ideologia matrilinear, o direito
que surge associado à ocupação ou nascimento em um lugar. Conta-se que quando um não-
índio chegou à antiga aldeia Wariwari, no começo do século passado, perguntando pelo
“chefe da aldeia”, o homem que o recebeu indicou como tal a sua própria esposa, uma
mulher de grande reputação, que era descendente do fundador e a referência do principal
grupo de parentesco local, em razão do grande número de genros trabalhadores. No que se
refere às 12 aldeias Javaé atuais (2007), todas re-fundadas a partir dos anos 40, mais da
metade delas é comandada por seus hãwawèdu originais, em geral as de fundação mais
recente, enquanto as outras têm como chefe político um ixywèdu, que se trata de um
sucessor – nem sempre o filho mais velho – do que primeiro chegou no lugar.
Tradicionalmente, as atividades do “dono da aldeia” ou do “dono do povo”
consistiam mais em coordenar atividades coletivas do que propriamente “controlar” os
habitantes locais. Era ele quem decidia quando todos deveriam se juntar para limpar o
mato que cresce na aldeia durante a estação chuvosa ou mesmo para fazer uma estrada.
Embora não haja roças coletivas entre os Javaé, cada família nuclear sendo responsável
pela sua, o início das plantações dependia da decisão do hãwawèdu ou ixywèdu, que junto
com seus parentes deveria providenciar, para todos, uma refeição à base do peixe pirarucu
no dia marcado. Ele era o responsável por aglutinar as pessoas nas tarefas coletivas de
buscar a palha que cobre as casas, embira (casca ou cipó para amarrar) para fazer flechas,
macaúba, coco, ovos de tartaruga etc. Cabia ao fundador ou seu sucessor decidir, na
estação da seca, em quais praias deveriam acampar as famílias que desejavam pescar longe

659
das aldeias nessa época, além do organizar com cautela expedições coletivas de coleta,
tendo em mente os ataques dos Avá-Canoeiro.
Assim como os iòlò, o “dono da aldeia” ou “do povo” também deveria buscar a
harmonia da aldeia, intervindo nas brigas entre mulheres ou entre homens, embora sem o
mesmo prestígio. Ele também tinha a missão de aconselhar a coletividade a evitar brigas
internas e a receber os estranhos com educação e hospitalidade. Quando o chefe político
cometia alguma atitude imprópria, os iòlò tinham ascendência moral e hierárquica para se
reunir e instruí-lo corretamente, o qual deveria acatar as recomendações feitas. Lipkind
(1948:186) atribui o mesmo papel de coordenador de atividades, sem poder de coerção, e
de pacificador da comunidade para o “chefe” Karajá.
Na maioria das aldeias, é o hãwawèdu propriamente dito ou o ixywèdu que assumia
o cargo político de “capitão”, no tempo do SPI, ou que assume o de “cacique” desde a
atuação da FUNAI, a partir dos anos 70, embora isso não seja uma regra automática. Isso
significa ser o responsável pelas relações com a sociedade envolvente e ser considerado
pela mesma, em suas diversas instâncias, como a autoridade máxima de uma aldeia. São os
caciques que freqüentam as reuniões políticas com os diversos órgãos estatais, nacionais
ou locais, que têm o poder de negociar a entrada de pescadores ou criadores de gado na
Ilha do Bananal, de cobrar pela entrada de turistas, de autorizar ou não pesquisas de
antropólogos, lingüistas, visitas de jornalistas etc. Entre outras atividades, são eles que
indicam qual o lago ou rio em que os homens podem pescar para vender peixe, quais
retiros de gado podem ser alugados pelos Javaé para os fazendeiros, organizam as “festas
de branco” no dia do Índio ou no dia da Independência, por exemplo, as partidas de futebol
entre aldeias, responsabilizam-se pelo carro ou barco da comunidade ou têm o direito de
gerenciar os bens tomados das caravanas de turistas ou pescadores que invadem a região
sem autorização.
Diferentemente dos antigos hãwawèdu ou ixywèdu, cujas prerrogativas limitavam-
se ao direito de moradia na aldeia e uso dos recursos adjacentes, os novos direitos têm
propiciado aos que assumem a função de cacique um acúmulo de bens ou renda monetária
– e poder – que não existia antes. Segundo Toral (1992), o líder da facção dominante tende
a canalizar o máximo de benefícios para o seu grupo político, em detrimento de facções
minoritárias. O capitão Karajá é chamado de Toriwèdu, “chefe dos brancos” e atua no
ritual de iniciação como um “intermediador entre a aldeia e a administração” do órgão
indigenista, buscando recursos para viabilizar o ritual (Lima Filho, 1994:124). Bonilla

660
(1997:80) inclui entre os requisitos dos caciques e líderes atuais a capacidade hábil, por
meio da oratória, “para obtenção de ‘boas’ alianças com certos Tori contra os maus Tori
(Tori ibinare)”. O comércio “justo” com um branco, do ponto de vista Javaé, segundo a
autora, define-se pela “promessa de uma troca a longo prazo”, ou seja, do estabelecimento
de um vínculo duradouro.
Em razão dos novos privilégios associados à função de cacique, o que remonta aos
anos 60, pelo menos, quando se iniciou o arrendamento das pastagens da Ilha do Bananal e
a comercialização em grande escala de peixes, houve uma intensificação da disputa pela
liderança política das aldeias. Antes do contato havia uma maior legitimidade do chefe
político e, quando ocorriam disputas, elas se davam menos em função dos direitos
associados ao cargo, mas mais em torno do prestígio de ser conhecido pelos outros como
“o dono do lugar”. Além disso, o processo de aglutinação pós-contato de remanescentes de
origens diferentes em uma única aldeia, como ocorreu em Canoanã, Barreira Branca e
Boto Velho (ver Toral, 1992, 1999) a partir dos anos 40, contribuiu decisivamente para um
estado de maior conflito. Mas mesmo em algumas das aldeias menores que foram
refundadas posteriormente, em um processo motivado tanto por conflitos internos nos
locais de origem como pelo desejo de retomada dos locais antigos, há disputas pela chefia
política. Apenas em poucas aldeias tem-se um maior reconhecimento da legitimidade do
fundador local, o que não significa, entretanto, ausência de conflitos.
Na maior parte das situações, a discussão se dá em torno de quem seria o
verdadeiro fundador da aldeia, conceito flexível que pode incluir o que primeiro morou ou
construiu uma casa em tempos recentes, o antepassado de alguém que morou no lugar
antes da refundação da aldeia, o que primeiro fez uma roça no lugar, o que primeiro limpou
o mato do lugar, o que simplesmente teve a idéia de refundar a aldeia, o que convidou as
pessoas para mudar para a nova aldeia ou, por exemplo, o que já estava morando no lugar
antes de virar uma aldeia propriamente dita. Todos esses são argumentos usados nas
disputas recentes pelo cargo de cacique por aquele que se diz fundador, ou por um
descendente seu, em várias aldeias. Em sua descrição sobre as disputas faccionais, Toral
(1992:25) relata que os Karajá reivindicam a condição de “mais antigos” manipulando
dados históricos e genealógicos na disputa pela liderança de uma aldeia. Pétesch (2000)
menciona o surgimento, pós-contato, de disputas e rivalidades entre as famílias Karajá
aspirantes ao novo tipo de autoridade política.

661
É significativo, no entanto, que a contestação da legitimidade do fundador tende a
ser maior onde o cacique não distribui generosamente os novos recursos arrecadados entre
todos, enquanto os caciques considerados generosos sofrem um menor questionamento da
sua autoridade. Alguns dos argumentos de contestação não têm relação com a fundação do
lugar. Há quem tenha pretensões políticas de chefia pelo fato de ser descendente do
primeiro que foi chefe de posto, cargo assalariado da FUNAI instituído em Canoanã, que
se difere do cargo de capitão e cacique. Outros ainda fundamentam o seu direito pelo fato
de terem lutado contra a anexação das terras indígenas pelo antigo órgão ambiental IBDF
(atual IBAMA). Há ainda outros exemplos, como o caso da aldeia Txuiri, em que havia
uma disputa pela chefia entre o que iniciou a retirada dos brancos e o que primeiro morou
entre os brancos antes da retirada.
Algumas vezes, os argumentos invocados não têm como objetivo alcançar a
posição de chefia, mas apenas reivindicar o direito de morar no lugar e usar os recursos a
ele associados. Normalmente, a disputa pela chefia em um lugar onde alguém se firmou
como cacique não passa de retórica e se dá veladamente, na forma de mexericos ou
intrigas, pois o posto de cacique tende a ser vitalício, como eram os títulos de hãwawèdu e
ixywèdu antes. Mas essa vitaliciedade depende agora não apenas da legitimidade do chefe
enquanto fundador ou descendente de fundador, mas também da sua generosidade na
distribuição dos recursos arrecadados ou de uma personalidade forte, que saiba se impor
em meio às contestações. Em qualquer caso, porém, são fundamentais o apoio político de
um grande número de parentes e afins (cunhados, genros, sogro) e uma boa capacidade
oratória. Toral (1992:82) enfatiza no “capitão” as qualidades de “pacificador” e a
habilidade de se sintonizar com a vontade da maioria.
Alguns Javaé dizem que antigamente não havia grupos de parentes em conflito por
causa da chefia política, o que talvez seja um exagero, sendo mais factível a idéia de que
não era tão comum como hoje. Não existiam as reuniões em que a comunidade se une para
depor um líder que não tem representatividade, escolhendo outro em seu lugar, como já
aconteceu em Boto Velho ou Canoanã, por exemplo. Essas novas escolhas nem sempre
levam em consideração a descendência do fundador, mas apenas o domínio da língua
portuguesa e a capacidade de se relacionar com as várias áreas da sociedade envolvente.
No início dos anos 90, após a morte de uma pessoa que havia chefiado Canoanã por longos
anos, apoiado pelo hãwawèdu local, houve um período de eleições periódicas para o cargo
de cacique, estimuladas pela FUNAI nesta e em outras aldeias. Mas em 1994, um dos

662
filhos do hãwawèdu retornou à aldeia, depois de vários anos morando fora, e reivindicou o
posto de cacique definitivamente, encerrando o ciclo de eleições na maior aldeia Javaé. O
sistema de escolha de caciques por meio de eleições é utilizado às vezes, mas na maioria
das aldeias, atualmente, a tendência é respeitar – na medida do possível – os critérios
tradicionais de escolha do chefe político, que deve ser alguém relacionado ao hãwawèdu.
Não é mais tão comum a grande “rotatividade” de jovens caciques descrita por Toral
(1992:84) no início dos anos 90.
Chama a atenção que aqueles que se tornam hãwawèdu ou ixywèdu tendem a ter um
comportamento ou uma retórica mais impositiva, sobre o que não há registro entre os
Karajá, em contraste com a postura suave a pacificadora dos iòlò, hierarquicamente
superior. Entre os Jê centrais e setentrionais, o líder político deve ser um guerreiro
beligerante (Seeger, 1980), mas entre os Javaé essa função é dividida entre dois tipos de
líderes, um mais aguerrido e secular, e outro mais conciliador e ligado aos valores
sagrados. Não posso afirmar se esse é um contraste que já existia tradicionalmente ou se é
uma conseqüência mais visível das novas transformações econômicas e sociais, que
dotaram o posto de cacique de um poder que o “dono da aldeia” não tinha antes. Toral
(1992:82) nota que a violência física por parte do “capitão” ou de outros líderes é sempre
evitada, mas lembra um caso “excepcional” que teria ocorrido entre os Javaé.
De qualquer modo, trata-se de um contraste que remete à diferença entre a postura
feminilizada dos Wèrè beligerantes e a masculinizada do povo de Tòlòra pacifista, esta
última mais valorizada, e associado por mim ao contraste entre Jê e Arawak. Não deixa de
ser interessante também que os líderes políticos que se constituem como “fundadores” de
aldeia estão associados a algum deslocamento espacial, através da refundação de um lugar
antigo, assim como os Wèrè (Jê) e o rio abaixo; enquanto os líderes políticos que se
constituem através da primogenitura exclusivamente, como os iòlò, estão associados ao
sedentarismo ou estatismo real e simbólico, assim como Tòlòra (Arawak) e o rio acima.
Alguns dados relativos à chefia mostram-se diferentes do que Lima Filho (1994) e
Pétesch (2000) encontraram entre os Karajá e do que Toral (1992) generaliza para os três
grupos, valendo a pena uma breve comparação. Em primeiro lugar, entre os Javaé não há
relação intrínseca entre a função política do ixywèdu e o cargo hereditário de iòlò,
diversamente do que alega Pétesch (2000) para os Karajá. O ixywèdu (a autora não
menciona o conceito de hãwawèdu) também não acumulava as funções cerimoniais e
políticas. No que se refere às atividades econômicas, assim como os iòlò, o fundador da

663
aldeia ou seus sucessores também tinham e têm a mesma obrigação que os outros homens
de realizar as prestações matrimoniais aos afins, diferentemente do que diz a Pétesch sobre
o ixywèdu. Entre os Karajá, este detinha “os privilégios” de evitar “toda agressão física”,
sendo interditas a ele todas “atividades de predação” (guerra, caça e pesca), não precisava
se submeter à uxorilocalidade, tinha uma família poligâmica e era carregado nos ombros
pelos afins em certos momentos rituais importantes 14 .
Bueno (1975, 1987), Donahue (1982) e Toral (1992:79) apresentam o conceito de
ixydinodu, menos usado pelos Javaé, para se referir ao “líder do povo”, que acumulava
tanto as funções políticas quanto cerimoniais antes do contato. Para Lima Filho (1994),
entretanto, o ixydinodu Karajá exerce apenas a chefia ritual. Não encontrei entre os Javaé
qualquer referência a um conceito de liderança que no passado concentrava as duas
funções. Segundo Toral (1992:80), os ixydinodu, em sua dimensão mais secular, “eram os
cabeças das famílias extensas, pertencentes às mais antigas parentelas locais”, conhecidos
também como hãwawèdu ou ijoiwèdu. Toral não associa explicitamente o conceito de
hãwawèdu ao de “fundador” da aldeia, como no caso Javaé, embora diga que a autoridade
do ixydinodu deriva da maior antiguidade de sua parentela no lugar e que os líderes
políticos atuais são os “descendentes masculinos lineares dos fundadores” do grupo local.
Por outro lado, o autor diz que o ixydinodu era escolhido pela facção dominante, como o
atual capitão. A chefia cerimonial, que antes também era atribuída ao ixydinodu,
atualmente é exercida pelo ixytyby, que também é chamado de “ixywèdu” ou
“hetohokytyby” (Toral, 1992:78) 15 .
O ixytyby Javaé é o chefe ritual, mas é figura bastante distinta dos ixywèdu
seculares. O título de ixytyby entre os Javaé, “pai (tyby) do povo (ixy)” (mesma tradução
feita por Toral), é assumido por aquele que se torna o responsável, exclusivamente, pela
condução da vida cerimonial. Mais especificamente, ele é o condutor do Hetohoky, o ritual
de iniciação masculina, e do Iweruhuky, “muito iweru (bebida típica)”, o seu opositor
formal. Cabe a ele também o poder de dar ou tirar o título de iòlò de alguém e a mediação
das lutas de worosy, como já foi descrito. O ixytyby não é o responsável pela Dança dos

14
Segundo a autora, os moradores da aldeia tinham que pedir autorização ao ixywèdu para pescar ou coletar
nos arredores, mas os Javaé dizem que entre eles tratava-se apenas da atitude formal de comunicar ao chefe
local sobre as “expedições” (bèdètãi) nos rios e lagoas da região, pois não cabia a ele o poder para impedir a
realização de qualquer tipo de atividade econômica.
15
Tanto Ehrenreich (1948) quanto Krause (1943a) descrevem as qualidades do “chefe” Karajá, sem, contudo,
distinguir os vários tipos de chefia. Fénelon Costa (1978:35) distingue entre o “xandinodô”, o chefe
tradicional Karajá, e o “capitão de cristão”, que age como intermediário entre a sociedade neobrasileira e a
sociedade indígena.

664
Aruanãs em si, pois cada dupla é trazida e controlada ritualmente pelos donos/xamãs
respectivos, que se responsabilizam também pelas brincadeiras rituais a elas associadas.
No entanto, o chefe ritual comanda as brincadeiras mahãdu e ixo. A autoridade do líder
ritual não é traduzida pelo conceito de “dono/controlador” (wèdu), aplicado ao cacique,
mas pelo conceito de “pai” (tyby), de modo que o ixytyby é o correspondente terrestre do
worosytyby, o “pai dos worosy”, aquele que chefia os worosy na Marani Hãwa
subaquática.
Para se tornar um ixytyby de prestígio é necessário ter inteligência e memória
extraordinárias, domínio das falas cerimoniais específicas e um conhecimento profundo
sobre mitologia e as conexões genealógicas dos Javaé em geral. Além disso, o mais
importante, o chefe ritual deve conhecer a complexidade espantosa dos detalhes que
constituem os diversos rituais e músicas respectivas, que ocupavam praticamente o ano
inteiro, pois é ele quem dita a ordem espacial e temporal dos procedimentos realizados. O
ixytyby é tido com alguém de personalidade especial, ao mesmo tempo tranqüila e forte,
capaz de dar conselhos sábios para quem o procurar. Diferentemente do hãwawèdu ou
ixywèdu, mas de modo similar aos iòlò, espera-se dele um comportamento moralmente
exemplar, associado à evitação de conflitos e relacionamentos sexuais extra-maritais. O
ixytyby tem o papel de controlador terrestre dos worosy subaquáticos que são convidados
para participar do ritual e também pode assumir a função de conselheiro da comunidade.
Segundo Toral (1992), o ixytyby é o chefe que obtém mais respeito e reverência entre os
Karajá, chegando ao ponto de ser carregado nos ombros de outros homens durante o
Hetohoky, o que nunca presenciei nos três rituais da Casa Grande que assisti entre os
Javaé.
A função de chefe cerimonial é vitalícia e não depende do conhecimento
xamanístico, apesar do ixytyby lidar diretamente com os vários convidados subaquáticos
que vêm participar do ritual de iniciação. Os Javaé dizem que os wabèdè worosy, os
mortos que vivem abaixo do cemitério e não alcançaram o Céu, acompanham o ixytyby por
onde ele vai, espantando peixe e caça nas pescarias e caçadas em que ele está presente. O
fornecimento de alimentos que sustentam o ritual da Casa Grande é planejado ou
comandado pelo ixytyby: como as mulheres não podem freqüentar as roças durante o ritual,
pois os homens estão em intensa atividade cerimonial secreta na mata que circunda a Casa
dos Homens, e os homens não podem pescar ou caçar, em razão de seu envolvimento
pleno com o ritual, o ixytyby solicita aos habitantes locais, com muitos meses de

665
antecedência, que seja planejada uma reserva alimentar, oriunda da agricultura, para a
época do ritual. Antigamente, cada aldeia tinha o seu próprio especialista ritual, mas desde
o impacto mais drástico do contato, que acarretou grande perda populacional e
concentração dos Javaé em poucas aldeias, essa função foi aos poucos sendo assumida por
uma única pessoa, responsável pela realização intermitente do Hetohoky nas poucas aldeias
existentes.
O primeiro Hetohoky da nova Canoanã foi realizado no fim dos anos 50,
aproximadamente, por Kumahira, o penúltimo grande ixytyby Javaé. Ele atuou até a morte,
tendo comandado 6 rituais de iniciação na mesma aldeia, o último em 1979. Somente em
1991 foi retomada a realização do Hetohoky, com a escolha de Kurania como o novo
ixytyby, que passou a comandar os rituais em outras aldeias Javaé, antes concentrados
apenas em Canoanã. Segundo a tradição, quando morre o chefe cerimonial, os pais dos
meninos que devem ser iniciados reúnem-se para escolher quem deverá ser o próximo
comandante do ritual, que é convidado formalmente, em sua casa, pelas famílias
interessadas, como ocorreu como Kurania. A partir de então, ele torna-se o novo ixytyby
até a sua morte. Como já foi dito, desde a escolha de Kurania, os Javaé realizaram nove
rituais da Casa Grande completos entre 1991 e 2008, o que mostra uma regularidade bem
maior.
Em razão da sua função altamente prestigiada, o ixytyby tem o direito de receber,
em troca por sua atuação, bens de valor de cada família que o convida, como canoas,
esteiras, cobertas de algodão, por exemplo, ou mesmo bens industrializados. Esses bens, no
entanto, devem ser entregues por ele à sua esposa e afins, como qualquer homem deve
fazer, na condição de prestação matrimonial. Lima Filho (1994) registra que os pais dos
jovens que serão iniciados oferecem presentes ao ixydinodu Karajá, o condutor do
Hetohoky, e sua esposa. A esposa do ixytyby Javaé também tem importante função no ritual
de iniciação masculina, pois, assim como as mães dos iòlò, ela cozinha em sua casa a carne
e peixe que os worosy trazem de suas expedições rituais, que nesse caso são chamadas de
worosydò, a “comida de origem animal (dò) dos worosy”. De modo diverso do que diz
Pétesch (2000) sobre os Karajá, tanto o iòlò quanto o hãwawèdu ou ixywèdu e o ixytyby
devem praticar a uxorilocalidade e realizar as devidas prestações matrimoniais aos afins. O
mesmo vale para todos os outros tipos de chefia, descritas a seguir. Dizem os Javaé que, no
caso específico do ixytyby, não é proibido caçar e pescar, como ocorreria entre os Karajá,

666
mas apenas que para ele é mais difícil a pesca e a caça, em razão da presença dos mortos
que o acompanham e espantam os animais.
Diferentemente das chefias políticas, não existe uma regra automática para a
transmissão hereditária da chefia ritual, que deve ser assumida por quem acumulou o
conhecimento necessário, como entre os Suyá (Seeger, 1980) e Bororo (Crocker, 1979).
Normalmente, o filho de um ixytyby acaba aprendendo algo com ele, mas os dados
mostram que o título não era passado de filho para filho, mas para aquele que demonstrasse
maior capacidade de aprendizado e interesse pelo conhecimento ritual. O atual ixytyby –
que não é um iòlò – mora na aldeia Txukòdè e é o mais novo representante de uma linha de
transmissão de conhecimento que alcança 5 gerações na memória, pelo menos, entre chefes
rituais originários da antiga aldeia Wariwari, a origem de metade das famílias de Canoanã.
Não há, portanto, relação intrínseca entre a função de chefe ritual e a de iòlò, como
descreve Lima Filho (1994) para os Karajá e Toral (1992) para os Javaé e Karajá, uma vez
que este último é um título hereditário e de origem mítica, transmitido entre primogênitos,
enquanto o primeiro é baseado no saber adquirido.
Se considerarmos que a atuação do ixytyby é vitalícia, constata-se que essa linha de
transmissão, constituída pelos chefes Kariroma, Ixyjuwèdu, Wahuri, Kumahira, Kurania,
do mais antigo ao mais novo, remonta pelo menos a meados ou final do século 19. As
relações de parentesco entre eles mostram que, embora o conhecimento não fosse
transmitido de pai para filho, tendia a permanecer no círculo mais próximo de parentes
bilaterais: Kurania é filho de uma irmã classificatória próxima de Kumahira; Kumahira era
primo mais novo distante de Wahuri; Wahuri era filho de um irmão ou irmã classificatória
próxima de Ixyjuwèdu; este último era filho de uma irmã classificatória próxima de
Kariroma. É digno de nota que a transmissão do saber ritual de tio materno para sobrinho
classificatório repete-se em pelo menos dois casos.
O ixytyby também pode ser chamado de ijoiwèdu, “dono ou controlador (wèdu) da
coletividade masculina (ijoi)”, como registra Toral (1992), mas alguns Javaé dizem que
esta última é uma outra função específica e não apenas um nome alternativo para o ixytyby.
O dono do ijoi seria, mais precisamente, aquele que supervisiona as atividades rituais dos
homens, em especial as dos recém-iniciados (jyrè). Em 1998 não existia ninguém com esse
título em Canoanã, o último tendo atuado até o final dos anos 80. O ijoiwèdu tem a função
de averiguar as “anormalidades” da Casa dos Homens, na expressão de um Javaé, ou seja,
as violações dos segredos masculinos, os comportamentos que podem transformar alguém

667
em um rubuoraruna, “marcado para morrer” por feitiço. Quando alguém comete alguma
infração ritual, o ijoiwèdu reúne os homens à noite com o objetivo de comunicar o ocorrido
e aconselhar que não mais se repita, mas a decisão sobre o destino da pessoa é de
responsabilidade dos xamãs. O ijoiwèdu é escolhido pelos homens iniciados entre os mais
velhos e deve conhecer a fundo as regras da vida ritual e as infrações respectivas, não se
tratando de um cargo vitalício. Quando se quer diferenciar as atividades do Hetohoky, que
conta principalmente com a participação dos homens (ijoi), das atividades do Iweruhuky,
que conta com a participação também das mulheres (ixy), o condutor do primeiro pode ser
chamado de ijoityby, “pai do ijoi”, e o do segundo de ixytyby, “pai do ixy”.
Além dos títulos de chefia mencionados, existe ainda o de hàriwèdu, “dono ou
controlador (wèdu) dos xamãs (hàri)”, função que não é ostentada publicamente e que se
refere ao líder do grupo secreto de xamãs já descrito antes (Rodrigues, 1993), do qual
podem fazer parte mulheres hàri. Cabe a esse grupo, em suas reuniões noturnas e ocultas,
decidir não só o destino dos mortos, mas também o dos que violaram o segredo masculino,
escolhendo o tipo de punição adequada (morte ou doença através de feitiços).
No que se refere aos líderes políticos, Seeger (1980:120) mostra que “existe um
paralelo importante entre as ideologias de concepção e de herança da posição de liderança
em todas as sociedades Jê (...). Nas tribos em que se considera que os dois pais contribuem
para o desenvolvimento do feto (Kayapó e Apinayé), o filho da irmã é o herdeiro ideal da
chefia. Nas tribos que acreditam que só o pai contribui para o feto (Suyá e Xavante), a
descendência é patrilinear. Na única tribo (Krahó) em que as teorias da concepção são
relatadas como mistas, a forma de herança considerada ideal também é mista”. No caso
Bororo (Crocker, 1985), não mencionado pelo autor, a primogenitura também tem como
base a ideologia corporal, uma vez que aos filhos mais velhos atribui-se uma melhor
qualidade da substância vital. Entre os Javaé não é diferente, pois se acredita que o feto é
constituído pela substância paterna, apesar das influências transformadoras maternas, de
modo que a sucessão política do fundador de uma aldeia idealmente é de pai para filho.
Entretanto, o maior valor daquilo que está “primeiro” (o primogênito) sobrepõe-se à
patrilinearidade em si e também origina-se das concepções relativas à corporalidade,
alicerçando tanto a autoridade do que primeiro chegou a um lugar como a autoridade dos
iòlò primogênitos que trazem em seus corpos a primeira substância vital. Desse modo, a
legitimidade e o prestígio do fundador de um local ou dos primogênitos que se seguem
derivam não somente do princípio de sucessão patrilinear, mas da premissa de que o que

668
está em primeiro ou é anterior a algo tem o sentido simbólico de “menos transformado”,
em oposição ao desprestígio do que vem por último ou depois, “mais transformado”, o que
é, em última instância, o caminho percorrido por um corpo ou suas substâncias entre o
nascimento e a morte.
O contraste temporal entre primeiro e último ou estatismo e mudança é o que
fundamenta o contraste entre primogênito e caçula, líder e liderado, famílias nobres e
comuns, prestígio e desonra. Em outras palavras, a autoridade de um cacique origina-se
não tanto em ser o filho de um chefe, mas em ser o primeiro filho do que primeiro chegou
ao local. O que está sendo evidenciado na sucessão política não é a patrilinearidade em si,
que pressupõe sucessão e transformação no tempo, mas a primogenitura ou a anterioridade
no tempo, através da qualidade de “primeiro”, que tem o significado oposto e muito mais
valorizado de estar mais próximo da forma original.

8.5. Nominação por ordem de nascimento

O significado dos nomes Javaé e o seu respectivo mecanismo de transmissão


diferem em muitos aspectos essenciais do que ocorre entre os Jê-Bororo do Brasil Central,
embora haja também algumas semelhanças significativas. Ao mesmo tempo, outros pontos
notáveis coincidem em com o que existe no alto Rio Negro, tendo como referência aqui os
povos da família Tukano (C. Hugh-Jones, 1979, S. Hugh-Jones, 2002). Em seu trabalho
sobre os Karajá, Pétesch (2000:214) sugere que os nomes Karajá não são indicadores de
uma posição ou operadores de relações sociais, com entre os Jê-Bororo, mas “bens
simbólicos” (nohõ) cuja aquisição e acumulação são uma função da riqueza material do
grupo de parentesco cognático centrado na unidade uxorilocal, que deve compensar
materialmente um doador de nomes. Tal definição é válida para os Javaé, cujas práticas de
nominação são similares aos Karajá (ver Donahue, 1982), embora haja algumas diferenças
a serem destacadas a seguir. Pretendo mostrar aqui e no próximo item, entretanto, que os
nomes, assim como os aruanãs, são mais do que apenas bens de valor transmitidos entre as
gerações.

669
Assim como entre os Suyá, Timbira, Kayapó e Bororo 16 , os nomes não podem ser
doados pelos genitores, mas não há cerimônias públicas de transmissão de nomes, que não
regulam o recrutamento às metades rituais e não criam nenhum tipo de parentesco ou
relação de identidade cerimonial entre nominador e nominado. Uma criança recebe vários
nomes imediatamente após o nascimento (e não após alguns anos), de variados parentes
bilaterais (e não do tio materno para os homens ou da tia paterna para as mulheres). Não se
pode dizer, porém, que os nomes servem apenas para individualizar uma pessoa, uma vez
que há uma preocupação com a repetição dos nomes dos ancestrais dentro da família,
assim como os nomes Timbira, Kayapó e Bororo fornecem uma identidade de repetição de
um antepassado 17 .
Entre os Javaé, idealmente são os primogênitos que se tornam os legítimos donos
dos nomes (nii) que são transmitidos desde os tempos muito antigos e que têm mais valor,
assim como são eles que concentram a propriedade dos outros bens e títulos importantes.
Em geral, todas as pessoas recebem vários nomes ao nascer, de parentes bilaterais diversos,
mas apenas um torna-se o nome principal, aquele através do qual a pessoa será conhecida
publicamente. Segundo Pétesch (2000:212), cada Karajá recebe entre 6 e 10 nomes,
embora Donahue (1982) diga que o número total pode chegar a 20.
Tradicionalmente, cabe ao primogênito, em especial o que é filho de outro
primogênito, o direito de receber o nome que é considerado o mais importante de todos,
que vem a ser o nome principal de um de seus avós verdadeiros (MM, FM, FF, MF).
Todos os avós, reais e classificatórios, são referidos pelos termos lahi, para o sexo
feminino, e labiè, para o sexo masculino. O nome principal de uma lahi ou labiè que
também é um primogênito será o preferido entre todos. O nome principal de um avô ou
avó torna-se o nome principal de uma criança, dando continuidade à transmissão dos
mesmos nomes antigos através de gerações alternadas (de avós para netos), em linhas
paralelas (de homens para homens, de mulheres para mulheres). Krause (1943a:201) foi o
primeiro a registrar, a respeito dos Karajá, que “as crianças recebem o seu nome dos avós
paternos e maternos, logo após o nascimento”.
Dentro do repertório total de nomes familiares que podem ser transmitidos, tem-se
algumas categorias básicas de doadores de nomes: existem os nomes dos que ainda estão
vivos (principais e secundários) e os nomes dos que já morreram (principais e

16
Ver coletânea de Maybury-Lewis (1979a), Seeger, (1981), Da Matta (1976), Melatti (1976), Crocker
(1985) e Lea (1993).
17
Da Matta (1979), Crocker (1985), Lea (1993, 1999).

670
secundários). E tanto no caso dos vivos quanto dos mortos, pode-se diferenciar ainda entre
os nomes (principais e secundários) dos que são parentes mais próximos ou parentes mais
distantes, e entre os nomes dos parentes lineares e dos colaterais. Por fim, existe a
diferença fundamental entre os nomes dos antepassados primogênitos e os dos outros.
Entre todos estes nomes possíveis de serem transmitidos, pode-se estabelecer uma
hierarquia entre os nomes considerados mais importantes e os de menor valor.
Os nomes dos vivos têm mais valor que os dos mortos, assim como os dos
primogênitos sobrepõem-se aos dos outros, os principais aos secundários, os dos parentes
próximos aos dos distantes, os dos parentes lineares aos dos colaterais. Sendo assim, no
topo da hierarquia, encontram-se os nomes principais dos avós reais (os parentes lineares
mais próximos) vivos e primogênitos, enquanto na extremidade oposta estão os nomes
secundários de parentes mais distantes, já mortos, colaterais e caçulas.
Há uma tendência para se distribuir os nomes familiares respeitando-se o critério de
ordem de nascimento, de modo que os nomes mais importantes vão sendo distribuídos aos
primeiros netos (filhos dos primeiros filhos), e assim sucessivamente, sobrando os nomes
menos importantes aos últimos netos (filhos dos últimos filhos). Em termos gerais, há um
continuum hierarquizado de distribuição de nomes, que se situa entre um extremo de
máximo prestígio (o nome dado ao primeiro filho de um filho primogênito) e um extremo
de mínimo ou nenhum prestígio (o nome dado ao último filho de um caçula). Entre esses
extremos sociais, os nomes vão sendo distribuídos de acordo com os limites da história
específica da parentela bilateral de uma criança, que varia no que se refere aos tipos de
doadores de nomes, de modo que a prática nem sempre coincide com o modelo idealizado.
A regra geral é que os genitores não podem transmitir nenhum tipo de nome aos
próprios filhos e que os avós de ambos os sexos devem transmitir os nomes aos netos,
conforme o sexo respectivo e com preferência pelos mais velhos, como já foi dito. Na
prática, entretanto, outros parentes são considerados doadores legítimos de nomes, em
especial as mesmas mulheres que constituem o grupo das imitadoras (bòròtyrè), ou seja, as
tias reais e classificatórias bilaterais (MZ, FZ) de Ego (o nominado), as avós verdadeiras
bilaterais (MM, FM) e suas irmãs reais e classificatórias (MMZ, MFZ, FMZ, FFZ),
incluindo como avós (lahi) de Ego todas as gerações acima das avós reais. É desta última
categoria de parentes (avós classificatórias), aliás, que provém a maior parte dos nomes
que as pessoas em geral recebem, de ambos os sexos. Como no caso das imitadoras,

671
normalmente as mulheres mais velhas das categorias citadas, já avós, é que têm maior
legitimidade para doar nomes.
No que se refere aos epônimos do sexo masculino, não há menção a nomes doados
por tios reais ou classificatórios (MB, FB), enquanto que os avós do sexo masculino (labiè)
reais e classificatórios (FF, MF, MMB, MFB, FMB, FFB) também podem doar nomes,
embora seja muito mais raro. Na prática, a atuação dos homens que já têm netos restringe-
se, na maior parte dos casos, aos próprios netos verdadeiros, com preferência para os
primogênitos. Quem nunca teve filhos, mesmo sendo uma pessoa idosa, seja qual for o seu
sexo, não poderá jamais doar um nome. Pétesch (2000) e Donahue (1982) citam como
doadores de nomes entre os Karajá apenas as lahi (avó) e labiè (avô) reais e
classificatórios, não mencionando as tias reais e classificatórias bilaterais.
Há um outro critério fundamental na transmissão de nomes, que é a capacidade dos
pais de uma criança em cultivar a riqueza de parentes. A quantidade de nomes que alguém
recebe e o prestígio a eles associado não são um resultado exclusivo de sua posição
automática dentro da genealogia familiar, mas dependem também da quantidade de
parentes próximos socialmente em seu nascimento, os “considerados parentes”. Não basta
ser um primogênito de uma linha de primogênitos para receber os nomes mais valorizados.
É preciso igualmente ser um primogênito cercado do prestígio oriundo do trabalho e da
generosidade dos seus pais, capazes de atrair muitos parentes para o convívio próximo,
embora não haja nenhum tipo de compensação material pela doação de nomes.
Assim, a transmissão de nomes também é um modo de se aferir a riqueza ou
pobreza de parentes de uma família nuclear, pois não há muito interesse em doar os nomes
aos filhos de pobres de parentes. Um primogênito rico de parentes, independentemente do
sexo, tende a ser aquele que recebe não só os nomes mais valorizados como a maior
quantidade de nomes. Tanto no caso dos nomes como dos outros bens ou títulos
transmissíveis, a herança não é fundada apenas na biologia, mas depende das relações
sociais que constroem aquilo que se chama de parentesco e, por conseqüência, os herdeiros
dos bens valorizados.
Toda criança recebe nomes assim que nasce, pois é considerado muito vergonhoso
uma criança passar algum tempo sem a identidade do nome. Com exceção dos natimortos
ou dos que sofrem o aborto ou o infanticídio, os recém-nascidos que venham a morrer já
costumam estar devidamente nomeados. Logo que a criança nasce, uma das avós reais
comparece ao local para doar um nome, sendo seguida nas próximas horas pelos outros

672
parentes. Como as crianças nascem na casa que é de sua mãe e de sua avó materna, é mais
provável que a avó materna seja a primeira a doar um nome. Quando a criança é adotada,
ela recebe em primeiro lugar os nomes da família de origem, para a seguir receber os
nomes da família de adoção, que permanecerão como seus nomes principais.
Um epônimo pode doar tanto o seu próprio nome (principal ou secundário), em
vida, como o nome (principal ou secundário) de um irmão/irmã ou genitor já falecido.
Quando uma pessoa morre, sem nunca ter transmitido seus próprios nomes, tanto seus
filhos quanto seus irmãos de ambos os sexos tornam-se “donos” (wèdu) dos nomes do
falecido, tendo o direito de passá-los adiante conforme forem nascendo outras crianças. O
mesmo ocorre com aqueles que morrem sem nunca ter tido filhos, cujos nomes tornam-se
um bem precioso (nohõ) de família a ser repassado. Trata-se de uma posse coletiva, em
que tem direito de transmitir o nome em primeiro lugar aquele que tiver um neto ou
sobrinho primeiro e assim sucessivamente. Os netos que souberem os nomes de uma avó
ou avô que morreu também podem passar os nomes adiante, desde que já tenham
procriado.
A prática indica, entretanto, que a mera posse do conhecimento sobre os nomes dos
parentes próximos que já morreram (e que nunca foram transmitidos) autoriza alguém a
transmiti-los aos vivos, de modo que esse direito não se resume apenas aos nomes dos pais
e irmãos falecidos. Como esse é um conhecimento associado às mulheres de idade, que são
respeitadas pela memória e capacidade oratória, são elas que se tornam conhecidas também
como grandes doadoras de nomes, ou seja, pessoas que sempre têm um nome novo para
doar para cada criança aparentada que nasce. Há uma associação entre o conhecimento
genealógico (lahi òraru) e o conhecimento dos vários nomes dos parentes mortos, assim
como entre os Karajá (Pétesch, 2000). Também são as avós dos “donos de aruanã” (irasò
wèdu), ou seja, das crianças e adolescentes que estão identificadas com os aruanãs, que são
responsáveis por nomear os aruanãs que chegam para participar de um ciclo ritual terrestre.
Quando uma avó não transmite nenhum nome a um neto, isso é considerado uma grande
desonra para a família, pois significa que ela não possui esse saber sobre as genealogias e
os nomes dos antepassados.
O nome de um vivo só pode ser passado pelo próprio dono ou por algum parente
muito próximo (uma filha ou irmã, por exemplo) que tenha pedido ao dono para transmitir
o seu nome e recebido autorização para tal. Pode acontecer também, embora seja mais
raro, de uma mesma pessoa dar um mesmo nome mais de uma vez, como em um exemplo

673
ocorrido em Canoanã. Uma avó deu um nome seu, secundário, para uma neta verdadeira.
Depois, quando nasceu a filha de uma outra neta (nenhuma das duas era primogênita), ela
deu o mesmo nome para esta última criança. Isso pode ser feito apenas quando a primeira
pessoa que recebeu o nome já tiver procriado. Assim, uma mulher ou um homem que já
são avós podem dar tanto os seus nomes como os dos parentes mortos, mas o que tem mais
valor é o seu nome próprio, em especial o principal. Os nomes dos vivos são transmitidos
apenas para o próprio círculo de parentes próximos, para pessoas do mesmo sexo do
doador, não se recebendo nada em troca pela doação dos nomes 18 .
Aquele que transmite o nome de um morto, por sua vez, pode dar tanto nomes de
parentes do sexo masculino quanto do feminino. No caso de uma pessoa querer doar um
nome para um parente distante, como uma forma de honraria, o que ocorre em situações
mais excepcionais, ele deve doar apenas o nome de alguém que já morreu, recebendo
algum presente, em troca, da família agraciada. Não encontrei entre os Javaé nenhuma
menção ao ideal de nominação registrado por Pétesch (2000) entre os Karajá, para quem as
crianças de sexo masculino devem receber nomes apenas dos parentes patrilaterais do
doador, enquanto as crianças de sexo feminino devem receber nomes dos parentes
matrilaterais. Ainda segundo a autora, é preferível que um primogênito do sexo masculino
receba um nome de um ascendente patrilateral primogênito, o mesmo valendo no caso das
mulheres em relação aos ascendentes matrilaterais do doador.
Como o número de netos reais e classificatórios tende a ser sempre muito maior que
o número de nomes principais de avós reais bilaterais vivos, apenas os primeiros
primogênitos da geração de netos tendem a ganhar os nomes principais de seus avós reais e
os nomes dos vivos, já que a transmissão de nomes em vida é feita preferencialmente pelos
avós verdadeiros. Os outros netos, por sua vez, que constituem a maioria das crianças,
tendem a receber com maior freqüência – o que vai se acentuando conforme a ordem de
nascimento – os nomes secundários dos vivos e os nomes dos mortos.
Considerando-se o contexto de ideologia matrilinear, geralmente é a mãe de uma
criança que tem a prerrogativa de escolher o seu nome principal entre os vários recebidos.
O mesmo vale para todos os filhos, havendo uma preferência maior pelos nomes
matrilaterais. Os nomes secundários, por sua vez, que não são escolhidos, mas apenas

18
O que é diferente do que Donahue (1982) e Pétesch (2000) encontraram entre os Karajá, que recompensam
os poucos doadores de nomes, mulheres em sua maioria, os quais são tratados como especialistas. A autora
(2000:213) sugere a hipótese de que a “profissionalização” da função de doador de nomes seja um produto
recente da “aculturação”.

674
recebidos, são bilaterais. O pai pode interferir na escolha do nome principal quando entre
os nomes dados está o nome da própria mãe, do próprio pai ou de um irmão ou irmã que
morreu sem deixar filhos, por exemplo. Há também casos em que algum parente da família
paterna faz um pedido especial nesse sentido, sendo atendido.
Nos casos mais raros em que tanto uma avó real matrilateral (MM) quanto uma avó
real patrilateral (FM), no caso de uma menina, por exemplo, dão o seu nome principal à
criança, a família materna refere-se a ela pelo nome materno, enquanto a família paterna
refere-se a ela pelo nome paterno. O mesmo vale para um menino que recebe os nomes
principais de seus avós. Levando-se em conta uma preferência para os nomes matrilaterais,
pode-se dizer que os últimos que nascem também tendem a receber, além dos nomes
secundários e dos mortos, os nomes patrilaterais, que são escolhidos como nome principal
quando acaba ou diminui bastante o estoque de nomes de origem materna.
Um levantamento estatístico a respeito dos nomes principais dos primogênitos de
Canoanã (1998) e Barreira Branca (2002) mostra que, em um universo de 133 casos (113
de Canoanã e 20 de Barreira Branca), 57,5 % dos nomes vêm do lado materno e 42,4 % do
lado paterno. Dos primogênitos pesquisados, que não se restringem apenas aos primeiros
filhos dos primeiros filhos, 48,1 % estavam usando o nome principal dos avós reais. Nesta
categoria estão incluídos os bisavós e tataravôs lineares, que correspondem a 21,8 % dos
doadores de nomes da categoria “avós reais”. O restante (51,8 %) estava usando como
principal o nome de outras categorias de parentes. Dentro do universo mais restrito de
primogênitos que estavam usando os nomes dos avós, bisavós e tataravôs reais, 71,8 %
estavam usando o nome principal do doador, contra 28,1 % apenas usando um nome
secundário.
Dentro desse mesmo universo (63 casos, em que foi excluído um caso incestuoso),
há algumas diferenças significativas entre os nomes principais oriundos do lado materno e
do lado paterno:

675
Tabela n° 11: Nomes de primogênitos
Primogênitos usando os: Do lado materno (35) Do lado paterno (28)
Nomes dos avós, bisavós e 55,5 % 44,4 %
tataravôs reais
(idem) - 80 % (avós reais) - 75 % (avós reais)
- 11,4 % (bisavós reais) - 17,8 % (bisavós reais)
- 8,5 % (tataravôs reais) - 7,1 % (tataravôs reais)
(idem) - 60 % (nome principal) - 89,2 % (nome principal)
- 40 % (nome secundário) - 10,7 % (nome secundário)
Nomes de avós reais apenas - 53,5 % (nome principal) - 95,2 % (nome principal)
(MM, MF, FF, FM) - 46,4 % (nome secundário) - 4,7 % (nome secundário)
(idem) - 82,1 % (do avô materno) - 33,3 % (avô paterno)
- 17,8 % (da avó materna) - 66,6 % (avó paterna)
(idem) Nomes do avô materno: Nomes do avô paterno:
- 56,5 % (nome principal) - 100 % (nome principal)
- 43,4 % (nome secundário) - 0 % (nome secundário)
(idem) Nomes da avó materna: Nomes da avó paterna:
- 40 % (nome principal) - 92,8 % (nome principal)
- 60 % (nome secundário) - 7,1 % (nome secundário)

Dos primogênitos que estavam usando como principal o nome de outras categorias
de parentes (69 casos, dos quais a grande maioria era de nomes de avós classificatórios),
59,4 % tinham nomes originários do lado materno e 40,5 % do lado paterno. Dentro do
universo total de 133 casos de nomes de primogênitos pesquisados, 67,1 % dos nomes de
sexo masculino (73) eram de origem materna, enquanto 32,8 % eram de origem paterna.
No caso dos nomes do sexo feminino (61), 45,9 % eram de origem materna e 54 % de
origem paterna.
Os dados indicam que, em termos gerais, há uma preferência maior dos Javaé pela
escolha de nomes principais matrilaterais, que é um pouco mais acentuada no caso dos
nomes que não são dados pelos avós reais. Chama a atenção que, dos nomes de
primogênitos dados pelos avós maternos reais de ambos os sexos, apenas 53,5 % são
principais, cerca de metade, enquanto 95,2 % dos nomes dados pelos avós paternos reais
são principais, a grande maioria, acentuando uma tendência dos nomes dos avós em geral.
Além disso, no que se refere aos avós reais, do lado materno é o avô quem dá a maioria
dos nomes, enquanto do lado paterno é a avó. Por fim, constata-se que a maior parte dos
nomes dos homens primogênitos é de origem materna, enquanto os de mulheres originam-
se igualmente dos dois lados.
Dentro de um contexto de uxorilocalidade e ideologia matrilinear, pode-se deduzir
que, pelo fato da mãe escolher com maior freqüência nomes principais de origem

676
matrilateral, os avós paternos reais (em especial a avó) costumam transmitir quase que
apenas nomes principais, em contraste com os avós maternos, com o objetivo de que o
nome seja assim escolhido e perpetuado na geração dos netos (uma vez que o pai da
criança tem a prerrogativa de interferir na escolha do nome principal quando seus genitores
dão os próprios nomes principais). Por outro lado, revela-se que a maioria dos
primogênitos do sexo masculino (quase 70 %) tem nome de origem materna, o que não se
repete no caso das mulheres, com nomes igualmente originados dos dois lados.
Em conjunto, tais números parecem levar a duas conclusões básicas: em primeiro
lugar, como os homens procriam na casa da esposa, lugar ao qual os filhos do casal
pertencerão, os avós paternos utilizam-se da estratégia de doação quase exclusiva de
nomes principais, uma vez que só assim seus nomes serão perpetuados. Em segundo lugar,
os parentes matrilaterais da criança (representados pela mãe, que escolhe os nomes)
tendem a enfatizar a ligação dos filhos de sexo masculino (que terão que mudar de casa
após o casamento) com a casa materna. A mãe escolhe para a maioria dos filhos homens
nomes matrilaterais, o que não é necessário no caso das filhas mulheres, que não mudam
de casa. Assim, enquanto os parentes patrilaterais de uma criança primogênita do sexo
masculino preocupam-se com a continuidade de seus nomes na casa dos outros, os parentes
matrilaterais concentram-se em manter os homens ligados à casa natal, em ainda que
apenas simbolicamente. Os homens Timbira (Melatti, 1976, 1979, Da Matta, 1976, 1979) e
Bororo (Crocker, 1979, 1985) deixam seus nomes com os filhos de suas irmãs enfatizando
uma ligação ritual ou simbólica matrilateral com a casa natal, enquanto os homens Javaé
alcançam o mesmo objetivo de outro modo, levando o nome recebido de seus parentes
matrilaterais para a casa dos afins.
Os Javaé têm grande preocupação em passar os seus nomes e os nomes dos
antepassados mortos às gerações seguintes, porque se acredita que os nomes “vivificam”
os mortos, como ouvi de um deles. Dizem que os antepassados nunca serão esquecidos se
seus nomes forem transmitidos para as gerações que se sucedem, pois o nome é visto como
uma porção da pessoa que permanece após a morte. Faz parte da honra de uma família não
esquecer dos nomes de seus mortos e repassá-los adiante. Esse objetivo de perpetuação da
pessoa – dentro da mesma lógica endonímica Jê-Bororo e Tukano, analisada por Viveiro
de Castro (1986) e S. Hugh-Jones (2002) – alcança sua expressão máxima através dos
primogênitos, que são escolhidos como os portadores dos nomes mais valorizados por
serem aqueles cujos corpos se aproximam mais do ideal dos corpos imutáveis. Por outro

677
lado, como já foi mostrado antes, os nomes de estrangeiros cativos ou derrotados em
guerra, associados simbolicamente aos caçulas, eram dados aos animais domésticos ou
mesmos aos aruanãs, em sua condição de bens de estimação de um dono, seguindo um
princípio exonímico.
Decorre daí uma associação simbólica entre endonímia e o primogênito e exonímia
e o caçula, congruente com a idéia de que o primogênito representa a continuidade interna
e o caçula a transformação associada à exterioridade. De fato, na prática da nominação, os
nomes dos primogênitos provêm dos parentes mais próximos, do que está “dentro”,
enquanto os nomes dos caçulas vêm dos parentes mais distantes, do que está cada vez mais
“fora”. No que se refere aos Tukano, embora S. Hugh-Jones (1979:54) admita que o “tom
geral do sistema de nominação tukano é, na verdade, endonímico”, no sentido de que os
nomes sagrados mais importantes são transmitidos internamente ao grupo, como no caso
Javaé, o autor também estabelece uma complementaridade entre endonímia e exonímia,
esta última relativa aos nomes de estrangeiros usados como nomes mundanos e
individualizantes na vida diária.
Esta seria uma das grandes diferenças em relação ao sistema de nominação Jê-
Bororo, com sua ênfase puramente interna. Mais do que isso, para os Tukano, “os
elementos de exonímia em seu sistema de nominação, predominentemente endonímico, são
consistentes com uma complementaridade mais geral entre dois modos de reprodução e
continuidade” (S. Hugh-Jones, 1979:54). As linhagens patrilineares são associadas à
continuidade interna, por onde são transmitidos os nomes dos ancestrais, e a exogamia é
associada à reprodução física através das relações com a exterioridade (as mulheres). Em
outras palavras, “as identidades tukano provêm largamente do seu interior, no entanto é
como se dependessem do exterior para a produção de corpos” (1979:55).
Os Javaé também possuem um sistema de nominação com ênfase na endonímia,
mas, assim como os Tukano, pode-se falar em uma complementaridade entre nomes mais
importantes originados internamente e nomes menos importantes originados externamente.
Esta, por sua vez, associa-se à oposição complementar e hierárquica entre continuidade
interna através da primogenitura, que regula a transmissão dos nomes mais importantes e é
associada ao extremo espacial masculino, e transformação da estrutura através da interação
com elementos externos (mulheres, novas formas culturais, nomes de estrangeiros menos
importantes), associada ao extremo feminino. Note-se que a lógica de incorporação e
neutralização da alteridade que constitui a sociedade repete-se no caso dos nomes de

678
estrangeiros, que são dados tanto aos animais domésticos como aos aruanãs. Ambos são
cuidados como “bens preciosos” (nohõ) e os últimos representam o símbolo máximo da
identidade ancestral.
Tudo indica que entre os Javaé a transmissão repetitiva dos nomes dos
primogênitos tem o mesmo conteúdo antigenealógico (ou antisucessão no tempo)
identificado por C. Hugh-Jones (1979) entre os Tukano, que também transmitem os nomes
através de gerações alternadas. Para estes últimos, “apesar da firme estrutura patrilinear, há
pouca ênfase na genealogia (...), e a repetição dos nomes através das gerações ajuda na
destruição da memória genealógica” (1979:164). Os nomes Tukano são associados à alma
(ver S. Hugh-Jones, 2002), concebida como inerente ao nome, e representam a
continuidade da pessoa, através dos ciclos de duas gerações (os avós dão os nomes-almas
eternos aos netos), em oposição ao corpo perecível, associado ao ciclo de uma geração (o
pai fabrica o corpo mortal do filho com seu sêmen): “(...) os vínculos entre pai e filho têm
uma base fisiológica firme e são erodidos pelo tempo, enquanto os nomes, transmitidos
conscientemente e ritualmente, transcendem o tempo” (C. Hugh-Jones, 1979:164).
Entre os Javaé, parece operar uma lógica muito semelhante, embora não se possa
dizer que os nomes sejam pensados como “almas”, mas mais como um outro tipo de corpo
invisível. Afinal, como já foi mostrado antes, os nomes podem transmitir todo tipo de
qualidade corporal da pessoa, desde a capacidade oratória ou a falta dela até as qualidades
de promiscuidade, avareza, generosidade etc. Esses atributos podem ser passados apenas
pelos nomes principais, os que estão realmente identificados com a pessoa, de modo que,
quando algum doador de nome tem algum defeito muito pronunciado, ele dá apenas um de
seus nomes secundários à criança, para que ela não herde seus defeitos 19 . Assim como
entre os Tukano, os nomes-corpos Javaé transmitidos pela geração dos avós parecem
representar um tipo de continuidade da pessoa, em oposição ao corpo perecível transmitido
pelos genitores. Isso é especialmente válido no caso dos nomes dos primogênitos, que
tendem a ser repetir indefinidamente.
Em sua comparação dos sistemas de nominação Tukano e Jê-Bororo, S. Hugh-
Jones (2002) trata os dois como versões diferentes do extremo endonímico de um
continuum de nominação das sociedades indígenas sul-americanas, conforme proposta de
Viveiros de Castro (1986), em cujo extremo oposto estariam os sistemas exonímicos Tupi

19
Segundo S. Hugh-Jones (2002:51), “cada nome é pensado como incorporando qualidades particulares que
se ligam ao portador, um ponto vinculado à especialização de papéis. (...) para as crianças do sexo masculino,
o xamanismo e a escolha do nome ao nascer deveriam determinar o papel que assumirá na vida adulta”.

679
e de outros povos amazônicos. O autor lembra da similaridade das associações simbólicas
dos Tukano e Bororo (Crocker, 1985), em especial entre nome e permanência versus
sangue e processo, as mesmas existentes entre os Javaé e que já foram salientadas aqui em
sua dimensão de gênero. Os nomes Tukano provêm dos avós, como os Javaé, enquanto os
dos Jê “vêm de uma categoria que assimila aos avós os germanos (de sexo oposto) dos
pais” (S. Hugh-Jones, 2002:62). Além disso, acrescento que o conteúdo antigenealógico
dos nomes Tukano encontra eco entre os nomes Jê-Bororo, que não representam uma
identidade de sucessão, mas apenas de substituição de um mesmo antepassado, negando a
passagem do tempo entre as gerações (Da Matta, 1979).
A diferença crucial, segundo S. Hugh-Jones, seria que entre os Jê-Bororo os nomes
são transmitidos entre vivos e atuam como mecanismos classificatórios, dando origem a
uma identidade de parentesco cerimonial entre nominador e nominado; enquanto que, entre
os Tukano, os nomes provêm dos mortos, não geram posições sociais fixas ou uma relação
especial entre nominador e nominado, e a nominação não é tão ritualizada quanto entre os
Jê-Bororo nem pública e coletiva. Na questão dos epônimos, os Javaé encontram-se em
uma posição intermediária entre os Tukano e Jê-Bororo, uma vez que os nomes originam-
se tanto de vivos quanto de mortos, embora haja preferência pelos primeiros. Em outros
aspectos, partilham características encontradas tanto no alto Rio Negro como no Brasil
Central. Os primogênitos Tukano recebem o nome associado ao papel ritual especializado
mais importante, assim como os Javaé dão aos primogênitos os nomes mais valorizados,
cabendo aos caçulas, em ambos os casos, os nomes de menor valor. Nos dois casos, o
princípio de hierarquia é associado à transmissão de nomes. Os nomes Javaé também não
são transmitidos publicamente nem pressupõem uma relação de identidade de parentesco
cerimonial entre nominador e nominado.
Por outro lado, ao modo Timbira, a uxorilocalidade e uma ênfase matrilinear levam
a uma preocupação em manter os homens ligados à casa natal através de seus nomes. Além
disso, pretendo mostrar na última parte que a oposição entre o tio materno e o pai de uma
criança, que entre os Jê-Bororo é associada ao contraste entre nominadores e genitores,
também é concebida entre os Javaé como uma oposição entre identidade cerimonial e
identidade física. Entre estes últimos, entretanto, ela não é formulada na linguagem dos
nomes, como entre seus vizinhos do Brasil Central, mas através da oposição entre
performance e transmissão dos aruanãs, de modo que também há uma identidade

680
cerimonial entre o tio materno e os filhos de suas irmãs que se opõe a uma identidade física
entre os genitores e seus filhos.

8.6. O nome como um corpo invisível

Pretendo argumentar que tanto os nomes quanto os aruanãs são componentes


essenciais da formação da pessoa, porém com qualidades diferentes, mas que serão melhor
descritos se forem concebidos mais como tipos de corpos invisíveis ou estados corporais,
como propõe Guimarães (2005) para os nomes Sanumá, do que como “almas” ou
identidades abstratas 20 . Tanto os nomes principais quanto os aruanãs parecem estar
associados ao estado corporal dos humanos terrestres anterior à procriação, mas com uma
diferença básica: enquanto os aruanãs representam os verdadeiros corpos fechados
originais, cuja existência remonta a antes da ascensão mítica (por isso o critério de gênero
é irrelevante), os nomes representam apenas o período do ciclo de vida de cada pessoa em
que seu corpo ainda não procriou, em um tempo que é posterior à ascensão mítica (em que
os gêneros já são diferenciados, sendo por isso transmitidos conforme o gênero do
doador/receptor). Pode-se dizer que o nome – especialmente o nome principal de um
primogênito em uma linha de primogênitos – também é uma identidade de “corpo
fechado”, como os aruanãs, porém sem o mesmo poder e significado dos verdadeiros
corpos mágicos dos humanos subaquáticos. Como veremos a seguir, esta parece ser a razão
principal da proibição dos genitores atuarem como epônimos, ligada à prática da
tecnonímia.
Apesar de tanto empenho coletivo na transmissão de nomes de vivos e mortos, é
uma grande ofensa ou sinal de intimidade sexual usar o nome próprio de alguém como
termo vocativo, embora o nome não seja algo tão íntimo ou secreto como entre os Sanumá
(Ramos, 1990b). A regra geral é dirigir-se aos outros – o que inclui todos os Javaé,
concebidos com um grande grupos de parentes – utilizando-se apenas os termos de
parentesco respectivos. Os nomes dos próprios filhos, inclusive, não devem ser usados
como vocativo, o que é considerado uma grande falta de educação. Há, entretanto, algumas

20
Lea (1993:274), a respeito dos Kayapó, sugere que “nomes e nekrets são considerados como um
‘envoltório’ do organismo, uma segunda pele que a sociedade recupera do indivíduo na ocasião de sua morte
para poder se reproduzir”.

681
situações especiais em que aqueles que não procriaram ainda podem ser chamados pelo
nome próprio, mas desde que este seja acrescido do sufixo aumentativo hiky, que denota
uma forma respeitosa de tratamento.
Normalmente, os nomes podem ser proferidos em público ou na vida privada
apenas em termos referenciais, quando se fala de alguém na terceira pessoa. Os nomes
devem estar acompanhados do termo de parentesco referencial respectivo, como em “José,
walana” (“José, meu tio materno”) ou “Rosa, lery” (“Rosa, minha prima”), que é a forma
respeitosa de se falar de alguém que ainda não teve filhos. Os nomes são dispensados
quando a pessoa referida são os próprios avós reais bilaterais e genitores, principalmente.
O mesmo deve ocorrer, embora com menos ênfase, no caso dos irmãos reais e dos próprios
filhos.
Durante a Dança dos Aruanãs, os jyrè (recém-iniciados) da Casa dos Homens vão
buscar a comida que é preparada pelas mães de aruanã, devendo dirigir-se a elas,
formalmente, usando os termos corretos de parentesco. Tal comportamento deve se repetir
em todas as ocasiões rituais e no dia a dia, seja lá quem for o envolvido, com os parentes
próximos e distantes, reais e classificatórios. Como já foi dito antes, quando alguém quer
iniciar um confronto verbal, começa chamando a outra pessoa pelo nome próprio, o que é
interpretado como uma forma de xingamento (lahadina). Marido e mulher, entretanto,
podem dirigir-se um ao outro pelo nome próprio, o que acontece somente depois que
aumenta a intimidade sexual entre ambos. As aderana, palavra que se refere tanto às
mulheres estupradas ritualmente como às que estão descasadas e têm vários amantes, são
chamadas pelos homens, em público, pelo nome próprio e vice-versa.
Existe uma antiga convenção Javaé, ainda levada em consideração, segundo a qual
pessoas que possuem o mesmo nome não podem se agredir ou se matar nem ter relações
sexuais. Como se sabe, tais tabus são aplicados principalmente aos semelhantes, aos
parentes considerados próximos, de modo que ter um mesmo nome, portanto, significa ser
considerado como um semelhante ou um parente próximo. No mito da perseguição dos
Wèrè aos Karajá, há um episódio em que os dois grupos se encontram. Os guerreiros que
possuíam os mesmos nomes não se atacavam reciprocamente, isto tendo se repetido com
várias duplas de inimigos.
Quando um casal gera um filho pela primeira vez, os genitores e os avós reais
bilaterais (MM, FM, FF, MF) do primogênito passam automaticamente a ser conhecidos
através de tecnonímicos, o que já foi registrado por vários dos pesquisadores que

682
trabalharam com os Karajá 21 . A tecnonímia reforça o papel de destaque do primogênito,
como já foi apontado por Pétesch (2000), o qual, além de ser o centro da parentela bilateral
e o detentor dos bens e títulos sociais importantes, recebe o nome que servirá de referência
para identificar os parentes mencionados. Segundo Toral (1992:108), é o nascimento do
primeiro filho que marca a “plena entrada” de um homem para o grupo dos homens, no
sentido de poder se expressar e ser ouvido nas reuniões. Lipkind (1948) e Dietschy (1978)
relataram, a respeito dos Karajá, que a tecnonímia baseada no nome do primeiro filho
continuava operando mesmo que a criança morresse.
Os tecnonímicos atuam tanto como termos vocativos como referenciais. Assim, se
um primogênito chama-se João, por exemplo, seus pais serão conhecidos como João tyby
(“pai de João”) ou João sè (“mãe de João”) até o nascimento do primeiro neto (filho do
primeiro filho). Quando isso acontece, eles serão conhecidos a partir de então como a avó
ou avô da nova criança, ou seja, como Maria lahi (“avó de Maria”) ou Maria labiè (“avô de
Maria”), por exemplo. Em qualquer caso, o sexo do primogênito é irrelevante. Os parentes
poderão se relacionar com os pais e avós de um primogênito, cujos nomes próprios deixam
de ser referidos pelos outros, do seguinte modo, lembrando que há algumas diferenças
entre os termos de parentesco vocativos e referenciais, assunto do próximo capítulo:

Tabela n° 12: Tecnonímicos


Vocativo Referencial
1 – termo de parentesco vocativo: walahi
(“minha avó”), waixi (“meu primo”) etc.
2 – tecnonímico: Carlos labiè (“avô de 1 – tecnonímico: (idem ao vocativo)
Carlos”), Carla sè (“mãe de Carla”) etc.
3 – termo de parentesco vocativo + 2 – termo de parentesco referencial +
tecnonímico (ou vice-versa): wahi, Pedro tyby tecnonímico (ou vice-versa): waixirikòrè,
(“meu primo mais velho, pai de Pedro”), Sandra sè (“filha do meu primo mais novo, mãe
Mateus labiè, wahaura (“avô de Mateus, meu de Sandra”), Joana tyby, waisorurikòrè (“pai de
tio paterno mais velho”) etc. Joana, filho da minha prima mais velha”)

O modo que aglutina o tecnonímico e o termo de parentesco respectivo é


considerado o mais formal de todos. No que se refere aos tecnonímicos baseados nos
nomes de pessoas 22 , existem apenas os citados até agora, do tipo ascendente, envolvendo

21
Ver Lipkind (1948), Dietschy (1978), Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).
22
Diferencio aqui os tecnonímicos propriamente ditos, originados a partir do “nome” de alguém (“mãe de
fulano”), dos termos descritivos do tipo tecnonímico, centrado nos “filhos” de Ego, e usados para descrever

683
os genitores e avós reais de alguém. Não se utiliza tecnonímicos originados na família de
procriação, como “filho de fulano”, nem em termos de afinidade, como “esposa”, “sogro”
ou “cunhado de fulano”.
A mesma regra de tratamento vale para os afins, que continuam sendo chamados
pelos termos de parentesco com os quais eram conhecidos anteriormente, aos quais pode
ser acrescentado um tecnonímico. Os afins são referidos, entretanto, pelo termo de
parentesco anterior ou por termos descritivos do tipo tecnonímico (“avô do meu filho”, “tia
paterna do meu filho” etc). Quando alguém vai se referir a um sogro, por exemplo, tem três
alternativas: “Helena tyby, walana” (“o pai de Helena, meu tio materno”); “warikòrè
labiè” (“o avô do meu filho”) ou, de modo mais respeitoso, “Helena tyby, walana,
warikòrè labiè” (o pai de Helena, meu tio materno, avô do meu filho”). O mesmo vale para
os outros afins, cujos nomes podem ser referidos no lugar dos tecnonímicos caso não
tenham filhos.
No que diz respeito aos mortos, estes podem ser referidos pelo nome próprio
quando alguém lembra algum fato passado em que a pessoa estava envolvida. Adiciona-se
ao seu nome a palavra weleku, que significa “falecido”. Os personagens míticos que
realizaram façanhas notáveis no tempo das transformações, como Tanyxiwè, Ijanakatu ou
Koboi, são referidos apenas pelo seu nome próprio, sem o sufixo weleku ou qualquer outro
termo, pois considera-se que eles estão vivos até hoje nos outros níveis cósmicos.
Embora não se trate de um caso tão extremo como o dos Sanumá, em que o nome
representa uma das únicas esferas de intimidade ou privacidade de uma pessoa, pode-se
argumentar que o nome principal Javaé também se refere a uma dimensão interna do
sujeito/corpo. O fato significativo de ser ofensivo ou sinal de intimidade sexual chamar
alguém pelo próprio nome sugere que a verbalização do nome, principalmente em termos
vocativos, por uma outra pessoa, funciona como uma espécie de abertura do corpo do
dono do nome. É como se o que está dentro do corpo, mantido inviolável, fosse trazido
para fora através da pronúncia do nome na presença da pessoa, uma situação fortemente
evitada. Lembrando o que já foi apresentado antes, a sexualidade e os conflitos são
associados na cosmologia aos corpos abertos que exteriorizam substâncias, em oposição ao
estado de paz e ausência de contatos físicos dos corpos fechados. É expressivo, portanto,
que tanto a ofensa quanto a intimidade sexual sejam relacionados à pronúncia direta do

os afins, como será visto adiante (ex: warikòrèlana, “tio materno do meu filho”). Ver Pétesch (2000) sobre os
Karajá.

684
nome de alguém, que parece ter o caráter simbólico e concreto de exteriorização das
substâncias internas, como se o próprio nome fosse uma manifestação invisível, porém
corpórea, dessas substâncias.
Tudo leva a crer, assim, que um nome não falado equivale a substâncias contidas,
enquanto um nome falado na presença de seu dono equivale a substâncias exteriorizadas,
ainda que isso não seja visível. A verbalização direta do nome parece ser interpretada
como um tipo de estado poluído, de substâncias fora do corpo, equivalente em menor
escala ao resguardo posterior ao parto, à menstruação ou a um assassinato. Pronunciar o
nome de uma outra pessoa como vocativo, tornando o seu nome público, seria uma forma
de trazer a essência interna da pessoa para fora, daí a sua associação com a intimidade
sexual de um casal que compartilha seus fluidos sexuais fora do corpo. É considerado
altamente ofensivo, quando não se trata da relação entre marido e mulher, porque tem o
caráter de abertura do corpo do outro, associado simbolicamente ao início da morte.
Esta talvez seja a razão maior dos genitores não poderem doar os próprios nomes
aos filhos recém-nascidos, uma vez que a comunidade de substância está totalmente imersa
na consubstancialidade poluída. Doar ou pronunciar um nome para a criança neste
momento de grande abertura e vulnerabilidade dos corpos parece ser equivalente a
exteriorizar mais substâncias tanto dos genitores, que estariam na condição de doadores
dos próprios nomes/substâncias, como da própria criança, que está na condição frágil de
quem tem o seu nome pronunciado diretamente durante um estado de total abertura do
corpo. Afinal, a criança nada mais é que as próprias substâncias dos pais exteriorizadas,
um ser ainda sem limites corporais definidos, de modo que ter o seu próprio
nome/substância falado (exteriorizado) agravaria o estado de poluição e perdas energéticas
que se tenta neutralizar com as práticas de purificação e fechamento dos corpos.
O nome doado pelos genitores na situação pós-parto seria, portanto, apenas mais
um dos ingredientes poluídos, como as carnes sangrentas ou a prática de sexo, que se evita
durante o resguardo. O ideal de que só quem já procriou e abriu seu corpo pode se tornar
um doador de nomes é congruente com a hipótese de que doar um nome é uma espécie de
abertura do corpo do doador, uma forma invisível de exteriorizar as substâncias internas,
indissociáveis da essência/nome da pessoa. Doar o próprio nome para alguém é como doar
algo de seu próprio corpo, o que deve ser evitado tanto pelos que não procriaram ainda
como pelos genitores de um recém-nascido, porque neste caso seria agravar a perda e a

685
mistura de substâncias – tanto dos nominadores quanto do nominado – que caracterizam o
perigo do pós-parto.
Cabe, portanto, aos avós e outros parentes bilaterais próximos que já procriaram,
mas que no momento do nascimento têm os seus corpos relativamente fechados, a tarefa de
nomear a criança. Ao que tudo indica, o ato de nomear por parte de quem não está
passando pelo estado liminar de abertura dos corpos, associado ao resguardo, tem o efeito
contrário, que é o de contribuir para o relativo fechamento do corpo do nominado, o que só
é alcançado mais satisfatoriamente através da identificação com os aruanãs. É como se um
nome vindo de quem tem o corpo aberto (genitores) desse continuidade ao estado evitado
de substâncias exteriorizadas, enquanto um nome vindo de quem tem o corpo fechado
(avós) proporcionasse ao nominado o estado de substâncias contidas, como se ele
recebesse dos nominadores um tipo de corpo fechado. Quem não procriou ainda não pode
doar nomes porque ainda não abriu o corpo, não tendo como doar nada de si, de modo que
só os que procriaram, mas que já ultrapassaram o estado liminar de abertura dos corpos,
podem atuar como epônimos. Já os aruanãs podem ser doados pelos genitores,
diversamente dos nomes, porque eles representam o corpo pré-ascensão mítica que
continua eterno e fechado independentemente da abertura dos corpos de seus donos.
A escolha dos parentes mais velhos como doadores preferenciais de nomes parece
ter relação com o fato de seus corpos terem bem menos substâncias a exteriorizar que os
corpos dos genitores (as mulheres já tendo passado pela menopausa). Creio que os nomes
doados pelos avós são um tipo de corpo de substâncias contidas que fornece uma forma
contida às substâncias da criança, ou pelo menos ajuda a fechar os limites do novo corpo
em formação, em contraste com os corpos totalmente abertos dos genitores durante o
resguardo. Essa hipótese ganha sentido na medida em que, idealmente, os nomes principais
de um avô ou avó primogênito são os de mais valor, justamente porque estão identificados
com a qualidade de corpo fechado dos primogênitos, devendo ser transmitidos para os
netos que nasceram primeiro. O inverso parece ocorrer com os nomes dados aos caçulas de
filhos caçulas, que tendem a ser de menor valor por estarem cada vez mais afastados dessa
identidade que o nome principal tem com os corpos fechados. O que leva a supor que os
nomes dos caçulas, originados de categorias de parentes cada vez mais distantes, estão
identificados simbolicamente não apenas com os estrangeiros, mas também com os corpos
abertos.

686
Com o advento do contato, os Javaé passaram a aceitar, sem considerar ofensivo,
que os brancos, ignorantes das práticas tradicionais, dirijam-se a eles pelos nomes próprios.
Bonilla (1997, 2000) registra a importância política de possuir um pré-nome brasileiro no
novo contexto do contato. É interessante que, segundo a autora, “enquanto o pré-nome
brasileiro é escolhido pelos pais da criança, no seu nascimento, os nomes (série
nominativa) Karajá são sempre atribuídos segundo o seu próprio sistema de nominação”
(1997:90), ou seja, eles são doados pelos avós bilaterais. A lógica antiga da nominação é
re-apropriada diante de uma nova realidade, de modo que o nome “estrangeiro” é dado
pelos genitores de corpo aberto, enquanto os nomes “ancestrais” são dados pelos avós de
corpos fechados.
Considerar ofensivo ou sinal de intimidade sexual chamar alguém pelo próprio
nome indica que os nomes, quando usados como termos vocativos, têm um significado
parecido com o único termo específico de afinidade (waralyby, “minha cabeça negra”,
literalmente, ou “meu genro”). Trata-se de um termo que só pode ser usado em referência a
alguém, indicando a relação tensa e de subordinação entre um sogro e um genro, sendo
considerado uma grande ofensa dirigir-se a alguém pelo termo “meu genro”. O termo de
afinidade, mais do que qualquer outro, indica o estado (real ou simbólico) de corpo aberto
de uma pessoa originado na própria relação de afinidade. Verbalizar um nome na presença
de seu dono, desde que não seja o marido ou a esposa, é tão tabu quanto chamá-lo
diretamente de “afim”, porque ambas as situações associam-se ao estado poluído e mortal
derivado da exteriorização de substâncias corporais. É significativo que, entre os Karajá,
segundo Aytai (1983b), evita-se pronunciar o nome daquele que sofreu morte violenta – a
alteridade em pessoa – como medida preventiva contra a perseguição que o morto faz aos
seus parentes durante o luto.
Tais associações reforçam a hipótese de que a qualidade de corpo fechado significa
ter um nome não vocalizado e a substância internalizada, enquanto um corpo aberto
significa um nome revelado e a substância exteriorizada. Conseqüentemente, os nomes
mais importantes originam-se de dentro da sociedade (endonímia) e da dimensão interna
dos corpos (dos avós com suas substâncias contidas e em pouca quantidade), enquanto os
nomes de menor valor ou mesmo proibidos originam-se de fora da sociedade (exonímia) e
da dimensão externa dos corpos (dos genitores e suas substâncias poluídas fora do corpo,
em grande quantidade). Em outras palavras, pode-se estabelecer o contraste entre nomes
mais próximos do conceito de identidade (associados à endonímia, aos primogênitos, ao

687
fechamento dos corpos, aos parentes mais próximos ou vivos, à masculinidade, à
continuidade e ao rio acima) e nomes mais próximos do conceito de alteridade (associados
à exonímia, aos caçulas ou estrangeiros, à abertura dos corpos, aos parentes distantes ou
mortos, à feminilidade, à transformação e ao rio abaixo).
Paradoxalmente, na situação apresentada os genitores são associados ao extremo da
alteridade, dos parentes mais distantes e dos estrangeiros. Isso tem relação direta com uma
concepção não naturalizada do parentesco, pois o corpo doado pelos pais não transforma
automaticamente os filhos em “parentes”, mas o contrário, como já foi mostrado antes. Os
filhos nascem na condição de “outros” em relação aos genitores, dependendo dos
processos sociais de purificação (resguardo), assemelhamento (presença das imitadoras) e
fechamento dos corpos (através dos nomes e da identificação com os aruanãs) para, aos
poucos, tornarem-se semelhantes e parentes de seus pais. O fechamento dos corpos é
alcançado tanto por meio da nominação feita pelos avós, que pode ser entendida como uma
prática de contenção das substâncias do recém-nascido, quanto pela identificação com os
aruanãs, os verdadeiros corpos fechados originais, que depende da performance ritual do
tio materno, e que é considerada a forma mais completa e valorizada de fechamento
simbólico do corpo.
Desse modo, a construção da pessoa/corpo, seja do sexo masculino ou feminino, é
um processo que envolve a contribuição de toda a parentela bilateral (acima da geração de
Ego), de modo mais ampliado do que entre os Jê-Bororo ou Tukano: os genitores dão o
corpo visível, porém aberto; os avós reais e outros parentes bilaterais (os avós
classificatórios e as tias reais e classificatórias), em graus variados, dão os vários nomes de
uma pessoa – corpos invisíveis que tentam conter as substâncias dispersas do novo ser – e
são responsáveis pela imitação e assemelhamento dos corpos; e tanto os tios maternos
quanto paternos (reais ou classificatórios), embora o ideal seja o tio materno, propiciam o
fechamento simbólico do corpo através de sua atuação na Dança dos Aruanãs, assunto da
última parte. Trata-se de uma composição múltipla da pessoa, mas reduzível, em última
instância, à dualidade entre corpo aberto e corpo fechado (ver Diagrama n° 1, ao lado).
É significativo que, entre os parentes ascendentes de uma criança, apenas os seus
tios (MB, FB) reais e classificatórios não sejam citados como doadores de nomes, pois
cabe a eles um outro tipo de contribuição, ligada à esfera cerimonial.

688
( ou )

Tipos de contribuição para a construção da pessoa/corpo:

Corpo físico visível e alimentos

Fechamento ritual do corpo

Nomes e peformance da imitação


Diagrama n° 1: Contribuições dos parentes para a construção da pessoa/corpo

689
Aquele que nasce como primogênito, contudo, é o que recebe a maior atenção e
dedicação de todos no processo de fabricação de sua condição de “parente”, o que significa
se transformar na continuidade física e social dos ancestrais mágicos. Em termos de uma
linguagem espacial e hierarquizada, a contribuição dos avós e das outras doadoras de
nomes ou imitadoras estaria situada em um lugar intermediário entre o extremo de menor
valor do corpo aberto (doado pelos genitores e associado à mudança do homem para a casa
dos afins) e o extremo de maior valor do corpo fechado (propiciado pelo tio materno e
associado à filiação matrilinear à casa natal).
A tarefa de construção social da pessoa consiste essencialmente em tentar eliminar
do corpo do novo ser, o que nunca será alcançado plenamente, os traços de alteridade
oriundos do corpo feminino aberto e poluído, identificando a criança com um corpo
fechado e purificado. Em outras palavras, transformar alguém em pessoa é transformá-lo
em um “parente”, condição que se estende a todos os Javaé. É importante lembrar que o
processo de construção social da pessoa – ou o fechamento e assemelhamento do corpo de
alguém – aqui não tem o sentido tradicional de algo que se opõe ao que é dado
“naturalmente”, pois o corpo aberto feminilizado e doado pelos genitores também é
concebido como um corpo socialmente fabricado. A tentativa social de fechamento do
corpo, uma espécie de caminhada simbólica rio acima, segue-se à abertura também social
do corpo do recém-nascido, que nasce simbolicamente próximo do extremo rio abaixo,
como um estranho de fluidos exteriorizados. Como já foi apresentado, a fusão de
substâncias (ou procriação) é em si concebida como um processo social, em oposição à
ausência de relações substanciais e sociais dos humanos mágicos.
Cabe aqui mais uma breve comparação com a nominação entre os Jê-Bororo e
Tukano, compreendida por meio da oposição entre nome/alma e substância/corpo. Como
se viu até aqui, definitivamente essa oposição não serve aos Javaé, para quem o nome é
imanente à própria substância, ainda que seja invisível. A prática Karajá (Toral, 1994,
Lima Filho, 1994) de mudar o nome do matador que se contaminava com a substância
alheia do inimigo morto corrobora a associação entre nome e substância, já que uma outra
substância dentro do corpo do matador equivale a um outro nome. Entretanto, se o
contraste entre nome e substância for interpretado mais como uma diferença entre o que é
perene e o que é perecível na formação da pessoa dual, ao invés de uma tradução direta na
nossa oposição entre corpo e alma ou natureza e cultura, ele pode ser equiparado à

690
oposição Javaé entre corpo fechado e corpo aberto, substâncias contidas e substâncias
externas, como versões de um mesmo tema de importância fundamental nessas sociedades.
Os aruanãs, os nomes principais e o título de iòlò podem ser vistos como bens
simbólicos de valor (nohõ) possuídos e herdados pelas famílias, o que já foi sugerido por
Pétesch (2000), que em outro texto (1993b:90) afirma que “possuir”, entre os Karajá, “é
existir socialmente”. No entanto, além disso, como tentei mostrar, tais pertences estão
associados à identidade de “corpo fechado” de uma pessoa, em especial de um primogênito
em uma linha de primogênitos. Em última instância, são representações variadas do
próprio estado de parentesco que é transmitido por meio das gerações, principalmente
através da primogenitura, e que é pensado como a recriação social do estado mágico de
semelhança e separação de substâncias do rio acima. Depois da primeira procriação, perde-
se a identidade com o corpo fechado e com a casa natal, o que é mais acentuado no caso
masculino, acarretando a perda da propriedade dos bens e títulos ou do direito de transmitir
um nome ao próprio filho. Tal concepção tem uma semelhança óbvia com a constituição
dos clãs matrilineares Bororo (Crocker, 1979, 1985) ou dos grupos patrilineares Tukano
(S. Hugh-Jones, 1993, 2002), que não se dá por meio de relações de substância
propriamente ditas, mas através da propriedade simbólica dos nomes/Aroe, no caso dos
Bororo, ou de nomes, títulos e prerrogativas rituais, no caso dos Tukano.
O fato intrigante das ligações entre os parentes tomarem a forma simbólica de bens
externos que se possui, ou seja, da identidade tomar a forma de uma propriedade, tem
relação com a idéia de que o parentesco dos humanos terrestres não é uma condição
herdada “naturalmente”, mas o produto de relações sociais diversas. O parentesco em si
não é dado, mas antes algo que se adquire externamente e se cuida ou se cultiva com
empenho, como um bem precioso. Isso não é o mesmo que dizer, ao modo da teoria
construcionista, que o parentesco é “construído” arbitrariamente sobre uma base natural
dada, podendo tomar a forma cognática, matrilinear ou patrilinear, o que pressupõe uma
ligação de parentesco dada entre a criança que nasce e aqueles que são considerados
culturalmente como seus parentes. No caso Javaé, não existe esse parentesco dado, seja
qual for a sua forma específica, mas apenas uma condição de estranhamento dada,
associada às ligações substanciais entre os membros da comunidade de substância, que
precisa ser revertida socialmente.
A construção da pessoa ou das relações de parentesco ao redor de uma criança,
representadas pelos seus nohõ, depende de seus pais interagirem socialmente de modo

691
apropriado, produzindo com abundância e repartindo prodigamente o que produzem com a
parentela bilateral. A riqueza de parentes de alguém, aquilo que a torna uma pessoa
completa, é refletida na quantidade de aruanãs, nomes importantes, presença de imitadoras
e títulos hereditários possuídos. Para uma criança ter muitos parentes presentes
socialmente, ela deve possuir esses bens valiosos, o que indica a generosidade de seus pais,
assim como o contrário, pois ter esses bens valiosos depende de conquistar muitos parentes
ao redor com o produto do trabalho e sua distribuição generosa. Os nohõ também podem
ser considerados como diferentes componentes ou partes da pessoa, que é mais completa
ou prestigiada quanto mais fechado simbolicamente estiver o seu corpo. No caso específico
dos aruanãs, possuí-los e contar com a sua participação no ciclo ritual requer uma
complexidade maior, pois envolve a realização da Dança dos Aruanãs e as prestações
matrimoniais diretas entre afins, de um homem para seus cunhados do sexo masculino, o
que torna os aruanãs o componente da pessoa mais valorizado de todos.
Uma análise meramente formal da terminologia de parentesco e afinidade (Pétesch,
2000, Schiel, 2005), baseada no pressuposto da universalidade da oposição entre
consangüinidade e afinidade, que no Ocidente remete à oposição entre natureza e cultura,
pode ter um efeito mais mistificador do que iluminador. O caso Javaé indica que o estudo
do parentesco não pode ser dissociado dos conceitos nativos a respeito da corporalidade e
da pessoa, expressos no discurso mitológico e cosmológico, sob o risco de não se alcançar
a dimensão mais essencial do que significa, realmente, ser um “parente” para a sociedade
pesquisada. Como vimos até aqui, consangüinidade ou consubstancialidade não é o mesmo
que parentesco, ao contrário, já que homem e mulher são concebidos como afins e
diferentes justamente por fundirem suas substâncias. A extrema consubstancialidade dos
mortos assassinados (hure) é a pura alteridade ou afinidade, assim como o extremo
hermetismo ou isolamento substancial dos corpos mágicos é a pura identidade ou
parentesco. A oposição que funda a sociedade, entre identidade e alteridade ou entre
parentes e afins, não é traduzida pelo par consangüinidade e afinidade, mas pela oposição
entre ausência de relações corporais e relações instituídas.
A socialidade dos humanos do meio constitui-se do reconhecimento de que todos os
corpos são formados a partir de uma mistura substancial original, mas que essa é uma
condição de estranhamento indesejada, de modo que a construção social do parentesco e da
pessoa requer a supressão simbólica da alteridade e da passagem do tempo inerentes às
relações de substância. A pessoa encontra-se no meio paradoxal, entre um corpo aberto

692
doado pelos genitores e um corpo que se tenta fechar com a contribuição variada dos
outros parentes bilaterais. Dizer que o estranhamento é uma condição dada, e não o
parentesco, aparentemente tem ressonância com a “teoria geral da socialidade amazônica”
proposta por Viveiros de Castro (2002h:404), para quem há uma inversão, na Amazônia
indígena, dos valores associados à dualidade consangüinidade e afinidade, pois a afinidade
é dada e o parentesco (consangüinidade) é que seria construído.
Partindo do que dizem as mitologias sobre o “pré-cosmos”, o autor propõe que “a
afinidade é o estado fundamental do campo relacional” (Viveiros de Castro, 2002h:423),
opondo uma “afinidade miticamente dada” à “consangüinidade historicamente construída”
(2002h:451). Sendo assim, “a consangüinidade deve ser deliberadamente fabricada; é
preciso extraí-la do fundo virtual de afinidade, mediante uma diferenciação intencional e
construída da diferença universalmente dada”. Em outras palavras, “a identidade é um caso
particular da diferença” (2002h:422) (grifo do autor), e não o contrário, de modo que “as
relações de parentesco não exprimem ‘culturalmente’ uma conexão corporal
‘naturalmente’ dada; os corpos são criados pelas relações, não as relações pelos corpos
(...)” (2002h:447):

“(...) Esta, portanto, a regra cardinal: não há relação sem diferenciação. O que, em
termos sociopráticos, é dizer que os parceiros de qualquer relação estão relacionados
porque são diferentes entre si, e não apesar de o serem. Eles se relacionam através de
sua diferença, e se tornam diferentes através de sua relação” (Viveiros de Castro,
2002h:422-423, grifo do autor).

Mas aqui, além da inadequação do conceito de “consangüinidade” como sinônimo


de parentesco, o que é realmente “dado” originalmente, segundo a cosmologia e a
mitologia Javaé, é a condição de parentesco mágico, e não a afinidade, ou seja, um estado
de completa ausência de relações e, por isso mesmo, indiferenciado. As relações criam os
corpos e não o contrário, é verdade, como já havia formulado Strathern (1990), mas elas
não pressupõem uma diferença original. Não se trata de dizer que não há relação sem
diferenciação a priori, mas o contrário: não há diferenciação sem relação, pois são as
fusões substanciais – as relações – que produzem a diferença entre masculino e feminino,
criando a afinidade. Os semelhantes tornam-se diferentes porque se relacionam física e
socialmente e não o inverso. E os diferentes tentam se tornar semelhantes anulando as
relações.

693
O parentesco social constrói-se a partir de uma situação de estranhamento interna à
comunidade de substância, simbolizada pelas relações entre humanos diferentes no caos
mítico inicial, mas ele nada mais é que uma busca da não-relação, do estado anterior de
imortalidade e parentesco xiburè. Entretanto, para negar a alteridade e a afinidade,
paradoxalmente, os humanos dependem de seus afins, como veremos nos próximos
capítulos.

694
Capítulo 9

Rio abaixo, entre a procriação e a morte (transformação)

9.1. A afinidade enquanto perda

A vida em sociedade não é um valor absoluto, inquestionável, pressuposto da teoria


da aliança (Lévi-Strauss, 1982) baseado na idéia de que o social é um triunfo humano
sobre a natureza domesticada. Para os Javaé, ela é, ambiguamente, também sinônimo de
morte, o que os distancia de uma exaltação a priori da aliança ou da afinidade, tratada por
Viveiros de Castro (1993, 2002b) como princípio hierarquicamente superior ou englobante
em relação à consangüinidade nas sociedades indígenas “amazônicas”. A afinidade surge
nos trabalhos citados como o tipo de relação que se tem com a exterioridade imanente (na
forma de afinidade potencial), como uma conseqüência direta do fato de ser negada
internamente (os afins efetivos são consangüinizados), daí o seu caráter englobante.
Também surge, ainda que não explicitamente, como um valor superior, exatamente por ser
concebida como a relação por excelência que funda a sociedade e permite pensar “o que
está fora do Mesmo” (2002b:161) 1 .
Entre os Javaé, não parece ser adequado postular a negação interna da afinidade e a
sua projeção ou afirmação no plano das relações externas e mais vastas, onde ela existiria
absoluta e como “pura relação” (Viveiros de Castro, 2002b:157). E nem o oposto, segundo
o que é atribuído pelo autor às sociedades do Brasil Central, as quais “parecem-me o caso
por excelência de incorporação do fora, de interiorização das diferenças, de tal modo que
são efetivamente sistemas fechados, onde o exterior é um mero complemento diacrítico do
interior” (2002b:146-7), imagem colocada em dúvida mais recentemente pelo próprio autor
(2002b, 2002h). A linguagem da procriação – e não da predação – é aqui utilizada para se
referir tanto às relações internas quanto externas da sociedade, anulando uma possível
1
O autor (1995:14) menciona o “valor ideológico crucial da aliança para as sociedades da região”, o que
inclui as amazônicas e centro-brasileiras. Posteriormente a oposição entre afinidade e consangüinidade foi
reformulada pelo autor na linguagem do dado e do construído (2002h). Mas mesmo nessa nova versão,
subsiste o pressuposto da teoria da aliança de que a relação com o exterior, seja na forma clássica de alianças
matrimoniais internas ou na forma “amazônica” não-convencional de alianças simbólicas com os afins
potenciais externos, tem um valor superior.

695
dicotomia, porque as relações com os outros internos (esposas e afins) e externos
(estrangeiros em geral) são pensadas de acordo com o mesmo modelo fornecido pelas
relações entre os membros da comunidade de substância.
O produto da interação física ou social transformadora entre um eu masculinizado e
um outro feminilizado são filhos reais ou simbólicos que nascem como estranhos ou
diferentes em um primeiro momento, criando a afinidade real entre os genitores ou a
afinidade simbólica entre os Javaé e os estrangeiros, entre os matadores e suas vítimas
(assunto da parte final). Em termos de uma linguagem espacial e mitológica, o estado de
poluição e transformação do resguardo, associado aos intensos fluxos substanciais
femininos e à mudança de um homem para a residência conjugal, é equivalente
simbolicamente à descida de Tanyxiwè em direção ao fim do rio, através da qual ele
conheceu a sexualidade, a procriação e a assimetria da afinidade na condição de genro
devedor. Equivale também ao caos mítico relacionado à mistura de tradições entre povos
diferentes, quando as mulheres (ou os Wèrè guerreiros) reinavam descontroladamente.
Analogamente, assunto da última parte, o luto que se segue a uma morte também é
pensado como esse estado de transformação produzido a partir da interação entre
diferentes.
Em um segundo momento, os humanos sociais empenham-se em recriar a
semelhança original, neutralizando a afinidade/diferença ou a transformação gerada a partir
das relações, o que é feito pela coletividade masculina (identificada com o povo de Tòlòra)
fechando os corpos ritualmente, assumindo o poder público, repetindo propositadamente a
nova tradição criada ou interrompendo o luto e retomando a vida ritual. Cria-se
intencionalmente, por meio do discurso mitológico, a ficção de que a tradição atual é a
mesma que teria sido congelada nos tempos míticos, e não um produto histórico variável
ao longo do tempo, conforme as diversas interações entre os povos; assim como se cria a
ficção de que os aruanãs são os verdadeiros imortais e não os humanos mortais
mascarados. Usando ainda a linguagem espacial, é quando Tanyxiwè chega ao fim do rio,
cansado da opressão dos afins, e decide subir ao Céu, retornando simbolicamente ao
começo do rio, onde inexiste a afinidade.
Esta é a mesma dinâmica que constitui a relação entre cunhados, entre o pai e o tio
materno de uma criança, em sua condição de afins reais. Por meio de uma fusão
substancial, os genitores fabricam um filho na forma de corpo aberto e poluído, o que
equivale ao primeiro estágio de transformação e alteridade, associado à caminhada rio

696
abaixo. O tio materno da criança, por sua vez, mais do que os outros parentes, é aquele que
se responsabilizará pela neutralização desse estado poluído, iniciando uma caminhada
simbólica rio acima. Todo o esforço ritual que se segue para anular a diferença instituída
pela exogamia e pela procriação, indissociáveis, identificando o filho com um aruanã e,
assim, transformando-o em parente de seus pais, é acompanhado das práticas que
minimizam a relação de afinidade “poluída” entre os grupos relacionados pela aliança.
A geração de Ego é “havaianizada” na terminologia, transformando-se as esposas
efetivas em “irmãs” terminológicas; pratica-se a endogamia de aldeia e de parentela,
evitando-se fortemente o casamento com não-parentes; as pessoas dirigem-se aos afins
com os mesmos termos de parentesco com os quais eram conhecidos antes do casamento
ou referem-se a eles através de tecnonímicos descritivos, como o “avô do meu filho”, por
exemplo, evitando-se termos que expõem a relação de afinidade. Em todos os casos, trata-
se de práticas de negação ou minimização da afinidade interna ou efetiva identificadas por
Viveiros de Castro (2002b) como um traço geral das sociedades amazônicas. Tentar
manter os corpos femininos à distância do espaço ritual sagrado faz parte do mesmo
esforço masculino.
Entre os Kayapó (Turner, 1979a, 1979b), representantes dos Brasil Central em que
a diferença seria enfatizada internamente, ao contrário, a produção feminina tem um valor
crucial para a subsistência, de modo que os homens controlam os poderes produtivos e
reprodutivos das filhas e irmãs, mantendo-as junto ao grupo doméstico. Assim, estão na
posição de controlar genros e cunhados por meio da uxorilocalidade, os quais submetem-se
aos afins através do serviço da noiva e de um comportamento respeitoso. A posição de
sogro é a que alcança maior status internamente e a uxorilocalidade é o meio mais efetivo
de controle sobre os genros, que substituem os filhos do sexo masculino. Há, portanto, uma
ênfase cultural nas relações de afinidade, geradoras de controle e prestígio para os homens,
o que é acompanhado de um maior relevo do papel do pai ou marido do que o do tio
materno. Pode-se dizer que os Kayapó adotam o ponto de vista cultural dos sogros, a
posição ideal de prestígio e poder.
No caso Javaé, a afinidade é um estado a ser neutralizado, porque a coletividade
masculina está identificada culturalmente com a perspectiva dos genros. O grande herói
mítico Tanyxiwè não é um sogro que controla seus genros nem tem isso como meta. Ele é
apenas um genro que se subordina com sacrifício aos afins e que deseja se libertar deles, o
que alcança quando sobe ao Céu, onde vive sozinho e plenamente feliz atualmente. No

697
mito dos irmãos Ijanakatu e as filhas do Sol, os irmãos míticos, fundadores das metades
cerimoniais, não estão na posição do sogro que controla os outros e tem o poder, mas dos
genros que têm que enfrentar vários desafios para conquistar as esposas desejadas e que
estão sob a ameaça da castração. Ao fim do périplo terrestre, eles também sobem ao Céu,
onde vivem no paraíso sem afins. A afinidade, do ponto de vista dos genros míticos, que
parece ser o ponto de vista coletivo dos Javaé atuais, surge sempre como uma ameaça ao
poder masculino, uma castração simbolizada pela imagem mítica das vaginas dentadas das
esposas.
De fato, o casamento (e a procriação), descrito em maior detalhes nos próximos
itens, significa não só a submissão aos estranhos em uma outra casa, para quem se tem que
trabalhar muito, mas também a abertura dos corpos e a conseqüente perda dos
bens/identidades preciosos associados à casa natal e aos corpos fechados. Assim como na
ascensão mítica, trata-se, do ponto de vista masculino, de uma passagem de “dentro” para
“fora”; deixa-se de ser nutrido na casa de origem, o lugar dos semelhantes, para se ter a
obrigação de nutrir os outros na casa conjugal, o lugar dos estranhos. Em suma, a afinidade
tem, em um nível mais profundo, o significado temido de morte, em que o verdadeiro
poder suprimido é o da imortalidade. As relações do genro com o sogro, do marido com a
esposa ou dos Javaé com os estrangeiros são pensadas em termos de afinidade real ou
simbólica e se constituem de acordo com a dinâmica das relações de procriação.
Da interação entre as partes surge um produto que funde o que recebe de seus
criadores em uma forma original, criando a própria diferença e transformando as partes em
estranhos entre si. As relações ou a reciprocidade entre diferentes são sempre
criativas/mortais e geram a mudança do status quo. Genitores produzem filhos, inimigos
produzem a morte, misturas entre povos produzem novas tradições, relações entre genros e
sogros produzem a diferença/afinidade na forma da assimetria e subordinação que
caracterizam as prestações matrimoniais. O tykòwy, “pagamento pela vagina” da esposa, é
o produto incômodo e original das relações entre os grupos de afins, o que evidencia de
forma explícita a diferença entre credores e devedores, inexistentes no mundo original
onde todos eram parentes e não se relacionavam. A diferença fabricada na relação entre
sogros e genros toma a forma do serviço da noiva, assim como aquela fabricada por
inimigos toma a forma de um cadáver e o seu corpo velho correspondente, o kuni canibal
que persegue os parentes durante o luto.

698
A reciprocidade é pensada como uma relação entre diferentes, porque dar algo ao
outro é separar algo de si e criar a diferença em relação a si próprio, como as substâncias
dos pais que, doadas e separadas da fonte original, formam um corpo diferente dos
doadores. Por isso as relações são pensadas como criadoras e mortais, a um só tempo, pois
a criação do novo sempre corresponde à perda de algo do doador, a vida da criatura à
morte do criador. A perda de parte de si, portanto, é também o surgimento do Outro e da
diferença. O serviço da noiva que um genro presta aos sogros e cunhados é empregar a sua
força de trabalho em benefício dos outros, em um movimento de separação de algo de si
próprio de dentro para fora, percorrendo o mesmo caminho mítico das substâncias que
fabricaram os corpos dos filhos pela primeira vez. As prestações matrimoniais nada mais
são que algo daquele que trabalha separado de seu próprio corpo e entregue aos outros, na
forma de realizações visíveis, em troca de uma esposa.
O genro entrega seu trabalho, parte de sua pessoa/corpo, aos sogros e cunhados,
recebendo destes uma esposa, que por sua vez é parte do grupo original dos afins. A
relação de afinidade tem o sentido de separação e perda de ambas as partes, como uma
morte simbólica em prol da criação da própria aliança. No paraíso imortal, os parentes
mágicos não trocam substâncias nem trabalham uns para os outros, não se cria nem se
perde; e na Terra dos Ensangüentados, onde todos são afins simbólicos, perde-se as
próprias substâncias incessantemente. A perda é relativamente compensada pelas trocas do
plano terrestre, mas estas nunca vão ter um valor superior que o da não-perda, porque o
que se perde, em última instância, é a imortalidade, insubstituível.
A troca tem como conseqüência mais importante a geração da diferença entre as
partes. A reciprocidade é a criação do novo e da mudança, o que no caso da relação entre
afins reais corresponde à criação da própria sociedade, cuja essência reside nas prestações
matrimoniais. Mas ela também significa a transformação dos que se relacionam em
estranhos. Estes últimos estão ligados entre si por uma relação de perdas recíprocas, como
os genitores que perdem suas substâncias no pós-parto. Além disso, a diferença que
emerge entre os afins deriva não apenas do fato de que ambos perdem algo de si, mas de
que as perdas são diferenciadas, ou seja, são de tipos diversos.
Quando os genitores misturam as suas substâncias e produzem um filho, um deles
surge transformado em homem/pai, com um corpo relativamente mais fechado, enquanto o
outro se transforma em mulher/mãe, com um corpo de onde saem muito mais substâncias
e, por isso, é muito mais aberto. A diferença entre masculino e feminino ou identidade a

699
alteridade, associada aos diferentes fluxos internos, origina-se da relação entre as partes.
Analogamente, as perdas ocorridas na relação entre genros e sogros/cunhados, que revivem
metaforicamente a relação criativa entre masculino e feminino, instituem uma assimetria
dentro do par, pois uns perdem mais do que os outros. O grupo que perde uma mulher, aqui
no sentido de troca, pois no regime uxorilocal ela permanece junto ao grupo, está na
posição do que entregou algo mais substancial ou valioso de si ao outro, tornando-se o
credor, assim como é a mulher que perde mais substâncias na relação de procriação com
um homem.
A dívida de um genro aos afins permanece enquanto dura o casamento – ele será
sempre um devedor –, porque a perda de uma mulher é considerada como muito mais
significativa do que aquela vivenciada pelo genro, que entrega o produto da sua força de
trabalho aos credores. Como o casamento preferencial é entre primos cruzados bilaterais
distantes, a troca de mulheres não se dá diretamente, como na simetria perfeita entre dois
grandes grupos de afins associada ao casamento com primos cruzados reais. Ela ocorre de
forma dispersa ou difusa entre os Javaé. A imposição do “gradiente de distância” (Viveiros
de Castro, 1993, 2002b:133) sobre a terminologia de fundo dravidiano e a prática
matrimonial, ou do concentrismo sobre o diametralismo, promove uma certa
invisibilização do fato de que os grupos trocam mulheres entre si, como se a própria
reciprocidade ou afinidade é que fosse invisibilizada. Desse modo, um genro é visto menos
como o membro do grupo de onde virão as esposas, em troca das irmãs cedidas, de acordo
com uma reciprocidade verdadeiramente simétrica, mas muito mais como um eterno
devedor.
Ao longo do tempo, um genro será o sogro de outros homens, como no ciclo de
evolução dentro do grupo doméstico uxorilocal já descrito por Turner (1979a). A posição
inicial de subordinação poderá ser revertida parcialmente, o devedor tornando-se o credor
de outros homens. Entretanto, esta nunca será uma posição tão confortável como a dos
sogros Kayapó, porque os homens nunca deixam completamente de ser considerados
estranhos dentro da residência conjugal, de modo similar aos Bororo (Crocker, 1979). A
consubstancialidade progressiva não torna um homem um “parente” de seus afins, como
entre os Apinayé (Da Matta, 1979) ou Kayapó (Turner, 1979b), embora a co-residência
prolongada atenue consideravelmente o estranhamento inicial. É a convivência solidária e
generosa em um mesmo espaço, muito mais do que o partilhar de substâncias, que

700
promove a “desafinização” gradual de um homem na casa de seus afins, o que não
significa tornar-se um parente próximo, idéia considerada absurda pelos Javaé.
Todo homem que se casa percorre um caminho entre um extremo inicial temido, na
condição de estranho completo, correspondente ao estágio de máxima subordinação e
constrangimento em relação aos afins, e um extremo final mais confortável, em que ele
está muito mais familiarizado com os co-residentes e se transforma no sogro e credor de
outros homens, embora esta não seja uma posição que alcança exatamente o mesmo status
e prestígio que entre os Kayapó (Turner, 1979b). Creio, na verdade, que esta não é sequer
uma posição culturalmente desejada, mas apenas vista como um mal necessário, o melhor
dentro do pior, que é a necessidade de pagar aos afins em troca do sexo. O objetivo
perseguido parece ser mais o de estar entre si do que ter o poder sobre os outros: o herói
masculino mítico é um sovina que busca autonomia e não o controle dos afins. O
sofrimento do genro (como no mito de Tanyxiwè e dos irmãos Ijanakatu) é mais enfatizado
do que o poder do sogro.
A posição social desejada – o grande tema dos rituais – é a de não-afinidade, a
condição de parente simbolicamente imortal na casa de origem, onde se é nutrido pelos
semelhantes. Daí a maior valorização da ligação ritual de um homem, na condição de tio
materno, com seus sobrinhos uterinos, em oposição à de genitor/genro que abre o seu
corpo e inicia o caminho da morte na residência conjugal, onde deve nutrir os outros.
Como será mostrado no próximo capítulo, o espaço doméstico é dominado em termos
práticos e simbólicos pelas mulheres de idade, seja no papel de avó ou sogra, cabendo a um
sogro uma posição apagada se comparada à destacada proeminência de sua companheira.
O casamento, portanto, para um homem, é o início de uma caminhada simbólica
que se inicia em um extremo feminilizado e de máximo estranhamento ou subordinação,
em que a relação de afinidade é explicitada, como no rio abaixo, em direção a um fim
masculinizado, no rio acima, durante a qual há um esforço ao longo dos anos para a
neutralização parcial da relação de afinidade, seja através da reversão da posição de
subordinação inicial ou através de práticas que desenfatizam a afinidade. O início do
casamento corresponde simbolicamente à ascensão mítica, quando os homens encontram
em um primeiro momento o caos e o estranhamento através do comportamento
desagregador feminino, que depois foi revertido quando tomaram o poder e impuseram o
controle relativo às mulheres; ou ao momento imediatamente posterior à procriação, em

701
que a perda de substâncias incessante, associada à mistura poluída de substâncias,
transforma os genitores em estranhos e é revertida através das técnicas de resguardo.
A agência masculina reside exatamente nessa práxis de transformação da
alteridade em identidade, da desordem em ordem, que no casamento depende,
principalmente, da capacidade produtiva e da generosidade de um homem: o seu poder
enquanto agente que busca um retorno simbólico ao extremo rio acima, como fez
Tanyxiwè, manifesta-se canalizando-as para a realização da Dança dos Aruanãs, em que a
retribuição material à participação de seus cunhados – os tios maternos de seu filho – é
fundamental. Em termos mais amplos, a agência social é exercitada, seja no âmbito das
relações internas (protagonizadas pela coletividade masculina em relação ao público
feminino ou pelos homens individualmente em relação aos afins) ou externas da sociedade
(protagonizadas pelos Javaé como um todo em relação aos estrangeiros), sempre dentro
desse mesmo padrão associado à dinâmica própria da procriação, que é o modelo
arquetípico de todas as relações entre diferentes.
O exercício da agência social constitui-se, essencialmente, enquanto reversão de um
estranhamento inicial (produzido pelas relações entre diferentes) em uma semelhança final
(ausência de relações). Essa agência relacional, em que a desordem produzida pelo “Outro”
feminilizado é tão integrante da ação quanto a tentativa de ordem levada a cabo pelo “eu”
masculinizado, é condicionada e relativa, na medida em que é impossível realizar o
objetivo maior de supressão completa da afinidade ou diferença nas relações. A agência
humana está no esforço social e histórico de mediação entre os extremos da casa natal e
conjugal, parentesco e afinidade, primogenitura e exogamia, rio acima e rio abaixo,
influências estrangeiras e tradição herdada. Nesse sentido, as relações internas à sociedade
são intrinsecamente tão históricas quanto as relações externas, uma vez que a recriação
parcial do estado de semelhança não é herdada automaticamente pelos Javaé dos tempos
primordiais: ela é uma conquista histórica que depende da atuação cotidiana e prática dos
agentes sociais, desde sempre.
A ação de um genro que tenta neutralizar a afinidade ou de um pai que tenta
transformar um filho estranho em parente é tão histórica quanto a ação dos Javaé em
relação aos estrangeiros. O tempo do mito é um tempo histórico na medida em que o
processo de surgimento da sociedade é descrito por meio da linguagem simbólica da
procriação, como um encontro entre diferentes povos (ou entre homens e mulheres) do
qual surge o esforço masculino em domesticar a desordem/diferença e congelar

702
artificialmente a tradição herdada, o que significa repetir esse esforço a cada nova
transformação. Em suma, o modelo da procriação é inerentemente histórico, de modo que a
tentativa de construção do parentesco (ou de anulação da afinidade) equivale
simbolicamente à tentativa de construção da própria tradição. A anulação das diferenças ou
transformações não se dá repelindo-as, ao modo de uma sociedade teoricamente fechada,
mas incorporando-as e tratando-as ficticiamente como se fossem o “mesmo” que sempre
existiu.
E a diferença é tanto uma realidade interna quanto externa à sociedade, porque as
relações (entre homens e mulheres, genros e sogros, os Javaé e os estrangeiros etc) –
enquanto procriações simbólicas – produzem um inevitável estado de estranhamento em
um primeiro momento, ao contrário da teoria ocidental, segundo a qual a procriação
produz um semelhante biológico. Constata-se então que a diferença ou as relações com o
exterior mais próximo ou mais distante (mulheres, afins, inimigos, estrangeiros) são
imanentes e constituintes da sociedade, mas, ao mesmo tempo, que a socialidade é definida
justamente pela tentativa de suprimi-las tanto dentro como fora da sociedade. O social não
se manifesta na expulsão da diferença/afinidade interna para fora, onde a sociedade seria
verdadeiramente instituída através da afinidade potencial englobante, nem na marcação
interna da afinidade acompanhada de uma desconsideração da exterioridade (Viveiros de
Castro, 1993, 2002b, 2002h). A relação de afinidade real ou simbólica com a exterioridade
é intrínseca e produzida socialmente, mas ela por si só não representa o modo como o
social se institui e se perpetua.
A relação com as mulheres, afins, inimigos ou estrangeiros é vista – ao contrário –
como o vetor da mudança, como aquilo que desintegra a própria sociedade e os corpos. A
afinidade pura, digamos assim, não é o que instaura a sociedade, mas a qualidade que
define a sua transformação constante, ou seja, a sua desintegração. Na Terra dos
Ensangüentados, no rio abaixo, onde todos são afins e que é tão anti-social quanto o rio
acima onde todos são parentes, a afinidade é associada a mudanças e deslocamentos ou
fluxos constantes. A socialidade terrestre, portanto, não se dá pela afirmação das relações
de afinidade, seja no âmbito interno ou externo, mas pela sua negação histórica. A
construção histórica da sociedade encontra-se nessa mediação constante entre uma
sociedade inerentemente aberta ao exterior ou à mudança, representada simbolicamente
pela relacionalidade pura e desestruturante dos ensangüentados (onde todos perdem), e o
ideal de uma sociedade fechada, estável e estática, cuja imagem perfeita são os parentes

703
mágicos do rio acima que não se relacionam entre si (onde todos ganham). Do ponto de
vista interno, trata-se da mediação entre a exogamia/transformação e a
primogenitura/continuidade.
Como a criação do novo, seja da sociedade ou dos filhos, ocorre através das
relações, e isto significa que o criador perde algo de si, a manutenção de um estado de
relacionalidade ou afinidade, como entre os ensangüentados, é pensada como a
perpetuação de uma criação constante, um estado intrinsecamente mutável. A criação do
novo acarreta a perda constante das substâncias internas, uma aceleração do tempo, um
estado que tende a deteriorar progressivamente os corpos dos criadores (os genitores ou as
sociedades envolvidas), impedindo-os de alcançar uma forma minimamente estável. É o
que ocorre no resguardo, em que os genitores são apenas corpos abertos que perdem suas
substâncias; no início do casamento, em que o homem é apenas um genro que entrega seu
trabalho para os outros; ou durante o luto, quando o morto recente perde a própria vida e o
convívio com os parentes.
A estabilização das perdas progressivas se dá pela neutralização relativa da
afinidade e da diferença gerada pelas relações criativas. A sociedade e os filhos são
fabricados a partir das relações entre diferentes, mas para que se mantenham com um
mínimo de estabilidade é preciso, paradoxalmente, suspender as próprias relações entre os
criadores. O processo de fechamento parcial dos corpos é análogo ao processo de
fechamento parcial da sociedade, seja identificando artificialmente os filhos com os
aruanãs ou a nova cultura com o mesmo que se repete. No caso dos genros, o fechamento
da sua condição simbólica de corpo aberto, no início do casamento, corresponde à redução
gradual da subordinação e estranhamento, quando então se transforma de pagador/perdedor
em credor/recebedor.
A identificação da coletividade masculina com a posição simbólica de genro tem o
sentido de uma posição intermediária de mediação entre identidade e alteridade,
interioridade e exterioridade. Todo homem casado encontra-se bastante dividido entre a
casa natal e a casa dos afins, a obrigação com os sobrinhos uterinos, a quem está ligado
ritualmente, e com os próprios filhos, a quem tem que nutrir com o próprio trabalho, os
laços de parentesco confortáveis e os de afinidade tensos. A capacidade de agência, de
transformar relativamente subordinação em prestígio, estranhamento em proximidade, é
um potencial de todo homem que se casa. O sogro não é o que transforma, mas o que se
consolida em uma posição de maior status, associada simbolicamente aos primogênitos e

704
aos ricos de parentes. O genro, ao contrário, está identificado com a capacidade de
transformação, o que o aproxima metaforicamente dos caçulas e dos pobres de parentes,
que nos mitos e no discurso cotidiano são os que têm o poder de reverter o que lhes é
desfavorável em algo melhor.
No começo do casamento, todo homem está simbolicamente feminilizado em sua
condição de estranho, associada ao rio abaixo, podendo alcançar um status masculinizado,
associado ao rio acima, quando se transforma em sogro e se torna alguém mais próximo
afetiva e socialmente de seus afins. A capacidade produtiva e a generosidade são as
ferramentas que podem propiciar essa caminha simbólica de desafinização. Dizer que a
coletividade masculina identifica-se com os genros, e não com os sogros, pode parecer
contraditório, à primeira vista, uma vez que os genros associam-se ao feminino e aos
caçulas. Esta é uma proposição que deve ser compreendida dentro de uma perspectiva
processual, em que tanto a estrutura social como a pessoa não são ossaturas fixas e
imutáveis, mas produtos relativamente flexíveis da práxis cotidiana.
Enquanto estão identificados com os aruanãs, homens e mulheres são concebidos
como corpos sem gênero antes do casamento: o homem que está simbolicamente
feminilizado no início do casamento masculiniza-se à medida que o tempo passa. A mulher
passa por uma transformação semelhante, pois a sua intensa poluição inicial, associada à
procriação e à própria feminilidade, cessa gradativamente com o passar dos anos. Desse
modo, as mulheres mais velhas, que não mais exteriorizam substâncias, seja como filhos
ou menstruação, podem participar de atividades na Casa dos Homens e de jogos rituais
como worosy wetxu (“subordinadas dos worosy”), atingindo também um status
masculinizado. Em ambos os casos não há estados fixos do corpo e da pessoa, mas apenas
processos em andamento.
A identificação com a perspectiva de genro é uma identificação com a possibilidade
de mudança e com a capacidade agentiva dos sujeitos. Refere-se à habilidade de
transformar criativamente uma adversidade inicial em um ganho relativo. O objetivo de
todo homem é anular a afinidade mortal ou, pelo menos, tornar-se um sogro algum dia,
mas para isso ele tem que transformar as próprias condições de existência intervindo
ativamente na estrutura de poder originada em seu casamento, o que é possível trabalhando
e sendo generoso. O poder de agência é exatamente essa capacidade de transformar
estranhamento em familiaridade, subordinação em controle, contaminação em pureza,
mudança em estatismo, uma influência alienígena em tradição, como Tanyxiwè em sua

705
caminhada. Estar no meio do cosmos – ou entre a casa natal e a dos afins, entre a
primogenitura e a exogamia – não é herdar uma estrutura imutável na qual se tem uma
posição fixa, mas perceber-se como um verdadeiro agente histórico, como alguém a quem
é atribuída a possibilidade de criar a própria história na relação com a alteridade. A teoria
do parentesco nativa é indissociável de uma teoria da prática, pois a criação do parentesco
social é a criação histórica da própria sociedade.

9.2. Tratamento profilático

A terminologia de parentesco Javaé será apresentada a seguir, apenas em seus


aspectos essenciais, uma vez que uma análise formal em maior profundidade já foi feita
por Pétesch (2000) em relação aos Karajá. A autora revisou com propriedade
interpretações anteriores (Dietschy, 1978, Donahue, 1982) sobre a terminologia Karajá,
descrita também por Bueno (1975), que é estruturalmente semelhante à dos Javaé, embora
haja algumas diferenças. Enfatizarei aqui e no próximo item as particularidades Javaé e a
relação entre os conceitos relativos à corporalidade e o contraste terminológico entre
paralelos e cruzados, associado à oposição entre perenidade e transformação, o que não foi
feito antes.
A observância correta das normas que regulam com formalismo e complexidade os
modos de tratamento e referência entre as pessoas é um objetivo presente na educação das
crianças. Faz parte da honra de uma pessoa dominar esse conhecimento, o qual depende,
por sua vez, de se aprender com as avós as conexões genealógicas com um grande número
de pessoas, incluindo muitos já falecidos.
Pétesch (2000) mostrou que se trata de uma terminologia dravidiana (Dumont,
1990), apesar de uma aparência não evidente, o que tem relação com as peculiaridades do
dravidianato amazônico analisado por Viveiros de Castro (1993, 1995, 2002b, 2002h).
Segundo este autor, o critério concêntrico de “distância”, da diferenciação entre parentes
próximos e distantes, interfere “estruturalmente na sintaxe binária do paradigma
dravidiano”, (2002b:121), gerando o contraste entre a primazia da consangüinidade no
centro da sociedade e o inverso no seu exterior. Além disso, o que interessa aqui e se aplica
aos Javaé, diz o autor (2002b:131-132):

706
“(...) A distinção entre o próximo e o distante é característica de socialidades onde a
residência predomina sobre a descendência, a contigüidade espacial sobre a
continuidade temporal, a ramificação lateral de parentelas sobre a verticalidade
piramidal de genealogias. Ela pode atingir uma eminência absoluta, a ponto de
neutralizar a dicotomia dravidiana, particularmente na geração de Ego, como naqueles
sistemas com traços havaianos que consangüinizam os parentes dessa geração (...). Em
outros casos, porém, essa havaianização, contextual ou absoluta (Alto Xingu, Shiwiar,
Candoshi, Tapirapé), exprime um conceito positivo de distância matrimonial: o
casamento é visto como se dando preferencialmente entre germanos distantes, primos
cruzados distantes, filhos de primos cruzados. Cognatos distantes são, aqui, vistos
como afins preferenciais (...); nos sistemas havaianos e/ou naqueles que interditam o
casamento bilateral próximo, os afins são preferencialmente recrutados entre os
cognatos distantes, como estratégia de consolidação de parentelas amplas em contextos
políticos fortemente faccionalizados (...). Essas considerações podem ser estendidas
para as situações de neutralização da afinidade em outros níveis generacionais, como
no caso dos Aruaque alto-xinguanos”.

Entre os Javaé, a residência predomina sobre a descendência, o casamento


preferencial é dentro da parentela e da aldeia, com primos cruzados bilaterais distantes,
fazendo-se a importante distinção entre parentes próximos e distantes, o que tem relação
mais com residência do que genealogia. Além do mais, assim como os Tapirapé (Wagley,
1988), vizinhos dos Javaé, e os Mehinaku (Gregor, 1977), povo Arawak do alto Xingu, por
exemplo, entre outros alto-xinguanos de terminologia dravidiana, encontra-se o “paradoxo
iroquês-havaiano” (ver Coelho de Souza, 1995), em que a geração de Ego é havaianizada,
de modo compatível com a preferência pelo casamento entre primos distantes, e a G-1
possui um cruzamento do tipo iroquês. No que se refere a G+1, aparentemente tem-se uma
configuração do tipo bifurcação colateral, o que seria diferente dos Mehinaku, por exemplo
(bifurcação inclusiva). A mitologia histórica informa que a forma correta de se dirigir às
pessoas ou se referir a elas, ou seja, a nomenclatura de parentesco, foi herdada do povo de
Tòlòra.
Entre os aspectos mais notáveis, estão a importância do critério de idade relativa na
terminologia (o que se repete entre os Tapirapé na G0), a diferença significativa entre a
perspectiva de Ego feminino e Ego masculino e a diferença entre terminologia vocativa e
de referência nos dois casos, esta última não enfatizada por Pétesch (2000). Como já foi
mencionado, os afins são tratados diretamente pelos mesmos termos de parentesco com os
quais eram conhecidos antes do casamento, mas são referidos por termos descritivos do
tipo tecnonímico. Existe um único termo de referência específico de afinidade, aquele que
designa o genro de um homem ou de uma mulher (waralyby). Mas considera-se uma

707
ofensa usá-lo como termo de tratamento, assim como é afrontoso chamar alguém pelo
próprio nome. Na relação de tratamento entre afins, a afinidade é completamente suprimida
por termos “consangüinizantes”, para usar a terminologia clássica, sendo também
desaconselhável chamar algum afim pelos termos tecnonímicos, que só são apropriados
como termos de referência.
Os parentes podem ser designados pelo conceito sy, extensível à casa e à aldeia, e
também pela palavra kyy, que se aplica às “abelhas”, porque eles são pensados como um
conjunto de pessoas solidárias entre si, como as abelhas que atacam os inimigos em
conjunto, segundo os Javaé. Os parentes próximos são referidos pelo conceito tyhy, que
significa “verdadeiro”, “legítimo” ou “honrado”. Entre os Karajá, de acordo com Pétesch
(2000:196), os conceitos tyhy e teherarie (não encontrei este último entre os Javaé, o que
não significa que não exista) ajudam a diferenciar entre as irmãs classificatórias próximas
(lery tyhy) e as esposas (lery teherarie), uma vez que todas as mulheres da geração de Ego
masculino são chamadas e referidas pelo termo lery. Chama a atenção que tyhy seja
traduzido também como “honrado”, sugerindo que o parentesco “verdadeiro” não é apenas
uma derivação de laços substanciais reais, mas construído pela solidariedade, trabalho e
generosidade geradores da honra, como tem sido discutido até aqui. Afinal, como já foi
mostrado, os humanos honrados – os ricos de parentes – são conhecidos como inytyhy ou
ityhy.
A diferença entre termos vocativos e referenciais tem grande relevância aqui, uma
vez que o tratamento direto, cara a cara, tem um potencial transformador e de tensão muito
maior, como no caso dos nomes. O tratamento explícito de afinidade entre duas pessoas
estabelece uma relação de diferença entre ambas, do mesmo tipo da que existe entre
genitores ligados substancialmente, na condição de afins, após a procriação. A utilização
de termos de afinidade para tratamento parece ser interpretada como um tipo de abertura
simbólica dos corpos recíprocos, sendo por isso evitada. A relação de substância se dá
entre pessoas relacionadas diretamente, como os genitores ou o par matador e vítima, que
se contaminam com a substância alheia. Usar termos de afinidade nos contatos frontais e
diretos, ligando as partes entre si através de uma relação de diferença, equivale
simbolicamente à ligação substancial entre corpos abertos, que produz a poluição e a
diferença entre os envolvidos.
Além do mais, o conteúdo da fala não é desconectado ou desenraizado do corpo
daquele que fala, mas reflete a forma do corpo do qual se origina. Como já foi mostrado

708
antes, os corpos mais contidos dos homens produzem um discurso de contenção e ordem,
enquanto os corpos mais descontrolados das mulheres produzem uma fala que desestrutura
a sociedade. A saliva (rybè) é concebida como sendo a própria fala, não havendo separação
entre o que é dito e o veículo corporal que possibilita o discurso. Uma fala que expõe a
afinidade, através de um termo de afinidade, é pensada, ao que parece, como a exposição
simbólica das próprias substâncias, como um estado de poluição. Do mesmo modo, uma
fala entre pessoas que se tratam como “parentes” parece ser pensada, ao contrário, como
um estado corporal purificado, capaz de manter as substâncias – e a própria afinidade – sob
controle, resguardadas e internas ao corpo.
A relação de afinidade que se instala com o casamento é uma abertura simbólica
dos corpos dos envolvidos. A ausência de termos de afinidade nas relações de tratamento
afigura-se como uma medida purificadora e profilática, como uma outra prática de
fechamento simbólico dos corpos, equivalente ao resguardo praticado pelos genitores.
Tratar um afim como parente, pelo mesmo termo anterior à relação de aliança, é uma outra
forma de tentar ocultar a transformação e a diferença produzidas pela relação de afinidade.
Também se evita trazer a condição de afinidade à superfície através da maioria dos termos
de referência, mas estes têm um potencial menos desordenador, porque não envolvem a
relação direta entre as pessoas, associada simbolicamente à fusão de substâncias. O
tratamento direto e recíproco entre duas pessoas, diversamente da referência a alguém,
estabelece uma relação entre ambas; e como toda relação tem o potencial de produzir a
diferença entre as partes que estão ligadas entre si, transformando-as, como ensina o
discurso mítico e cosmológico, utiliza-se entre os afins os termos de parentesco que, por si
só, exprimem a semelhança ou a não-relação dos que não trocam substâncias.
Estruturalmente a terminologia Javaé é semelhante à Karajá, mas há pequenas
diferenças dialetais e algumas diferenças significativas quanto ao uso dos termos como
vocativos ou referenciais ou para designar parentes reais ou classificatórios. Alguns termos
encontrados entre os Javaé não têm registro na literatura Karajá e de alguns dos termos
registrados entre os Karajá não ouvi qualquer menção entre os Javaé. Além disso, pode-se
apresentar as terminologias masculina e feminina do mesmo modo havaianizado em G0
que os Karajá, como nas páginas ao lado, em que irmãos e primos de Ego são chamados e
referidos pelos mesmos termos.
Mas quando se comparam aos seus vizinhos, os Javaé dizem que, diferentemente
dos Karajá, é muito mais raro tratar ou se referir aos siblings pelos mesmos termos

709
utilizados para os irmãos classificatórios, embora não seja incorreto, preferindo-se o uso de
termos específicos para os irmãos reais, o que acaba por enfatizar a diferença de idade
entre ambos e destacar a família nuclear na terminologia. Apresento ao lado (diagramas n°
2 e 3) a terminologia vocativa, diferenciada por sexo, por facilitar a identificação da
configuração iroquesa em G-1, quando comparada à terminologia de referência,
especialmente no caso de Ego masculino.
Como se vê no diagrama, os irmãos reais e classificatórios de Ego são diferenciados
pelo critério de idade (apenas os homens, no caso masculino, e homens e mulheres, no caso
feminino), o que se estende à geração dos pais de Ego. No caso dos termos específicos para
siblings, de uso mais freqüente, parte-se de conceitos corporais explícitos para uma
diferenciação por idade mais elaborada. Ego relaciona-se com os irmãos através dos
termos apresentados a seguir, que podem ser usados tanto como termos de tratamento
como de referência e são considerados como rybè tyhy, “a fala correta” para o tratamento
dos irmãos verdadeiros. Os primos mais próximos, ocasionalmente, podem ser tratados por
estes termos, que denotam proximidade. O critério atuante é apenas o de idade relativa, não
importando o sexo daquele que fala (pois os temos são usados tanto por Ego masculino
quanto feminino) nem daquele que é objeto da fala:

Wakumydela – “meu corpo mais velho” ou “meu primeiro corpo”. Termo usado por
qualquer irmão para se referir ou se dirigir ao primogênito.

Wahelykyna – “meu helykyna”. Termo usado pelo primogênito para se dirigir ou se referir
ao segundo filho de seus genitores, do qual não obtive uma tradução literal.

Watykana – palavra originada do conceito de “meio” (tya, para os homens, tyka, para as
mulheres). Literalmente significa “o lugar (na) do meu (wa) meio (tya)”, mas pode ser “o
que está no meu meio”. Designa os irmãos que ocupam uma posição intermediária entre o
primeiro e segundo irmãos de um lado e o caçula de outro. Ou seja, tanto o caçula como o
primogênito e o segundo irmão tratam ou referem-se a quem ocupa essa posição como
watykana.

Wanykybò, waroko, wakõnana – Termos usados para designar o caçula. O primeiro é o


mais comum, mas não obtive sua tradução literal. Os outros, como já foi dito, significam,
respectivamente, “meu resto” ou “meu último” e “o fim de mim mesmo”.

710
Diagrama n° 2: Terminologia vocativa de Ego masculino

= = G+2
16 15 15 16 16 15 16 15 15 16 16 15

- + + -
= G+1
10 8 6 4 5 7 9 11

+ - + - + - + - + - + - + -
G 0
{

{
1 2 3 1 2 3 1 2 3
{
1 2 3 1 2 3 1 2 3 1 2 3

G-1
12 13 14 14 12 13 14 14 12 13 14 14 12 13 12 13 14 14 12 13 14 14 12 13 14 14 12 13 14 14

G-2
12 13

LEGENDA

711
Diagrama n° 3: Terminologia vocativa de Ego feminino

= = G+2
17 16 16 17 17 16 17 16 16 17 17 16

- + + -
= G+1
11 9 7 5 6 8 10 12

+ - - + + - - + + - - + + - - + + - - + + - - + + - - +
G 0
1 2 3 4 1 2 3 4 1 2 3 4 1 2 3 4 1 2 3 4 1 2 3 4 1 2 3 4
{
{
{
{

{
{
{
G-1
13 14 15 15 13 14 15 15 13 14 15 15 13 14 13 14 15 15 13 14 15 15 13 14 15 15 13 14 15 15

G-2
13 14

LEGENDA

712
Donahue (1982:331) registra os termos “waumydela, wahelykyna, watykyna 2 e
wadykybò” entre os Karajá, assim como Bueno (1975) e Lima Filho (1994), embora diga
que tais categorias aparecem apenas ao se recolher genealogias e não no uso cotidiano. O
autor destaca a dimensão corporal de alguns dos conceitos, o que não é levado em conta
por Pétesch (2000:196), que diferencia apenas entre waumydela (“meu primogênito”) e
tuhana (“caçula”). Este último não é mencionado por Donahue nem pelos Javaé. Pétesch
(2002:196) fala que waumydela e tuhana se estendem aos irmãos classificatórios próximos
e distantes. Além disso, o que difere bastante do que encontrei entre os Javaé, a autora diz
que o termo waumydela só será usado por Ego para se dirigir aos irmãos classificatórios
que são filhos de um irmão mais velho dos genitores ou netos de um irmão mais velho dos
avós. O mesmo vale para o uso do termo tuhana, apropriado apenas aos filhos e netos dos
tios e avós caçulas de Ego.
Como algumas das posições são relativas e variam conforme o número de irmãos,
as expressões podem ser compostas de variadas formas (ver Donahue, 1982, sobre os
Karajá). O primogênito pode usar wahelykyna boho, “os meus helykyna”, para se referir ou
se dirigir a todos os irmãos mais novos, com o sentido geral de “os meus irmãos mais
novos”. Os filhos mais novos podem chamar o segundo filho de wakumydela helykyna, “o
helykyna do meu primeiro corpo”. Um primogênito pode chamar um dos irmãos do meio
de wahelykyna tykana, “o do meio em relação ao meu segundo irmão”. Um irmão pode
designar todos os mais velhos de wakumydela boho, “os meus primeiros corpos” ou “meus
corpos mais velhos”. Um caçula pode chamar um irmão do meio de wakumydela tykana,
“o que está no meio em relação ao meu corpo mais velho”. Quando são apenas dois
irmãos, o primeiro pode designar o segundo tanto como wahelykyna como waroko.
A idéia de que primogênito e caçula são vistos como os extremos polares de um
continnum corporal formado por todos os siblings, versões de uma mesma mistura
substancial, é explicitada pela terminologia de parentesco. Entre os extremos, “o primeiro
corpo” e o “último”, estão aqueles que ocupam o lugar intermediário, revelando uma
concepção de gradação e transformação contínua da fusão de substâncias dos genitores,
que possui graus variados do começo ao fim. A distinção entre o mais velho e o mais novo
é utilizada como importante critério diferenciador na G0 e na G+1, com implicações para a
distinção entre paralelos e cruzados, parentes próximos e distantes, como veremos no

2
Em Rodrigues (1993:72), especulo sobre o significado do termo watykyna, assim registrado por Donahue
(1982:331) entre os Karajá, e sua relação com o conceito de tyky (pele, corpo). Na verdade, soube depois
entre os Javaé, a grafia correta é watykana, o que tem relação com o conceito de tya, “meio”.

713
próximo item. O critério de idade opera em G+2, mas apenas nos termos de referência,
como será visto a seguir. Todos os parentes reais e classificatórios das gerações abaixo de
G-2 e acima de G+2 são tratados pelos mesmos termos usados em G-2 e G+2,
respectivamente.
Um homem também pode usar como vocativo o termo genérico warikòrè (“meu
filho” ou “minha filha”) no lugar de dàà (S) e dee (D) 3 . A maior parte dos termos de
parentesco e de afinidade descritivos, a serem apresentados mais à frente, baseiam-se no
termo rikòrè (“filho” ou “filha”), como waixirikòrè, “filho/filha do meu primo mais novo”.
Do ponto de vista masculino, embora não seja muito comum, esse termo pode ser
estendido aos filhos dos irmãos reais e classificatórios próximos com quem se tem
convivência próxima (os “parentes considerados”), mas não aos socialmente distantes nem
aos filhos das irmãs (wara). O modo mais correto ou formal de tratamento é usar os dois
termos juntos, dàà warikòrè ou dee warikòrè. No caso das mulheres, a mesma lógica se
repete, com a diferença de que o termo é interditado aos filhos das irmãs mais velhas
(wanybòsò). Três termos têm tradução literal, cujo significado será retomado no próximo
item: nadikura (MeZ) significa “mãe (nadi) branca (ura)”, wahakura (FeB), “pai (waha)
branco (ura)”, e wara (ZS), “minha (wa) cabeça (ra)”.
Quando nos voltamos para a terminologia de referência, percebemos que ela difere
essencialmente em G-1 e G-2, constituídas por termos descritivos. Os termos que
constituem G0, G+1 e G+2 são os mesmos que já foram apresentados como vocativos,
tanto no caso feminino quanto masculino. Com exceção dos próprios avós reais e
genitores, dos quais não se menciona o nome, todos os outros parentes ou afins devem ser
referidos pelo seu nome principal acrescido do termo de referência respectivo. No caso dos
filhos e irmãos reais, o nome não é necessário, mas pode ser utilizado eventualmente. No
que se refere à G0, ocorre a mesma ambigüidade da terminologia vocativa: os siblings de
Ego também são referidos preferencialmente pelos termos específicos descritos acima,
embora possa se utilizar – mais raramente – os mesmos termos que designam os irmãos
classificatórios e dão um tom havaiano à geração de Ego4 .

3
Lembro aqui que o “k”, na maioria dos casos, indica a versão feminina de uma palavra. A palavra “meu
filho/a” é wariòrè para os homens e warikòrè para as mulheres. A palavra “mulher” é hawyy para os homens
e hawyky para as mulheres, e assim por diante. A versão feminina Karajá no caso de “meu filho/a” é
waritxòrè (Pétesch, 2000:193).
4
É digno de nota que Pétesch (2000:191-192) registra alguns termos descritivos para G0, que seriam usados
tanto como vocativos como referenciais, dos quais não obtive nenhuma menção entre os Javaé. São os termos
“tàby ura riore (FeBS, FeBD), sè ura riore (MeZS, MeZD), labri riore (FyBS, FyBD), ladire riore (MyZS,

714
Apresento as terminologias de referência ao lado (diagramas n° 4 e n° 5) de modo a
incluir as duas alternativas. Os números em G0 simbolizam os termos que estruturam a
terminologia ao modo havaiano, enquanto as letras expressam os termos preferidos no uso
cotidiano para os siblings. Em G-1, os números indicam os termos elementares (riòrè e
wara, de uma perspectiva masculina, expressando o cruzamento iroquês; rikòrè e
wanybòsò, na fala feminina), a partir dos quais são compostos os termos descritivos
específicos, simbolizados pelas letras. O mesmo vale para G-2 [cujos termos elementares
são riòrè wodudu para os homens e rikòkòrè para as mulheres], lembrando que os termos
descritivos de G-1 (“filho/a do primo ou irmão”) e G-2 (“filho/a do filho do primo ou
irmão”) compõem-se em referência aos termos de G0.
Pétesch (2000:191) descreve os termos sè (M), sè ura (MeZ), tyby (F), tyby ura
(FeB), relativos à G+1, como vocativos ou referenciais entre os Karajá. Os termos nadi
(M), nadiura (MeZ), waha (F) e wahaura (FeB), que designam a mesma categoria de
parentes (os genitores e os tios mais velhos), seriam apenas “termos vocativos
preferenciais”. Essa é uma diferença significativa em relação aos Javaé, para quem os
primeiros nunca são utilizados como vocativos e os últimos são usados tanto como
vocativos como termos de referência preferenciais por alguém. Os primeiros são utilizados
por Ego como referenciais, na maioria dos casos, apenas para se referir às mães, pais e tios
de outras pessoas, como em warikòrèsè, “a mãe (sè) do meu filho (warikòrè)”, Rodrigo
tyby (“pai de Rodrigo”) etc. Mesmo assim, os Javaé dizem que o termo tyby ura é correto,
mas quase não utilizado no cotidiano. Uma exceção é o termo wasèrikòrè, em G0, que
significa “filho (rikòrè) da minha mãe (wasè)”.
Como já foi mencionado no capítulo 7, ele é utilizado apenas como referência e
pode designar todos os irmãos reais e classificatórios bilaterais próximos de Ego,
independentemente do seu sexo. O termo indica uma ideologia uterina, centrada na
residência natal, apesar de uma concepção de descendência cognática. Para Pétesch
(2000:195), que tem como contexto um princípio de filiação patrilinear entre os Karajá, o
termo indica apenas o “caráter matrilocal do lugar de nascimento”. Somente em situações
formais e mais raras, quando alguém quer dar um conselho a um irmão ou primo próximo,
o termo pode ser usado como vocativo.

MyZD), lana riore (MBS, MBD), labetyrã riore (FZS, FZD)” e os respectivos correspondentes na fala
feminina.

715
Diagrama n° 4: Terminologia de referência de Ego masculino

+ - + - + -
G 0
1 2 3 1a 2b 3c 1 2 3

G-1
{
{
{

{
{
{
{

{
4d 4e 5a 4a 4b 4c 5a 4d 4e 5a

G-2
6e 6e 6f 6f 6g 6g 6b 6b 6c 6c 6a 6a 6d 6d 6e 6e 6f 6f 6g 6g

LEGENDA

716
Diagrama n° 5: Terminologia de referência de Ego feminino

+ - - + + - - + + - - +
G 0
1 2 3 4 1a 2b 3b 4a 1 2 3 4

G-1
{
{
{
{

{
{
{
{
5d 5e 5f 6a 5b 5c 5c 5a 6a 5d 5e 5f 6a

G-2
7d 7d 7e 7e 7f 7f 7g 7g 7b 7b 7c 7c 7c 7c 7a 7a 7b 7b 7d 7d 7e 7e 7f 7f 7g 7g

LEGENDA

717
O que é diferente do que ocorre entre os Karajá, segundo a autora, para quem o
termo pode ser usado regularmente como vocativo e designa apenas os siblings. Existem
também os termos de referência nadi rikòrè, “filho da minha mãe” e waha rikòrè, “filho do
meu pai”: o primeiro indica os irmãos e primos por parte de mãe, enquanto o segundo
indica os irmãos e primos por parte de pai.
Os Javaé dizem que o termo wasèrikòrè pode ser estendido aos primos bilaterais
próximos, em especial os de 1º grau, mas somente àqueles socialmente próximos, os
“considerados” parentes. Estes são referidos como wasè rikòrè tyhy, “os filhos verdadeiros
ou legítimos da minha mãe”, assim como os tios paternos próximos (de qualquer sexo) de
Ego podem ser chamados de waha sè rikòrè tyhy, “filhos legítimos da mãe do meu pai”; e
os tios maternos próximos (de qualquer sexo) de nadi sè rikòrè tyhy, “filhos legítimos da
mãe da minha mãe”. Os irmãos e irmãs próximos dos avós são chamados de walahi sè
rikòrè tyhy, “os filhos verdadeiros da mãe da minha avó” ou walabiè sè rikòrè tyhy, “os
filhos verdadeiros da mãe do meu avô”. O conceito tyhy indica aqui muito mais
proximidade social, geradora de honra, do que genealógica.
Mas assim como há termos específicos para os irmãos reais de Ego, os irmãos reais
dos genitores e os irmãos dos avós reais de Ego também podem ser especificados quanto à
idade quando referidos, não cabendo tal uso aos classificatórios. Os termos alternativos
para os tios reais e irmãos dos avós de Ego são compostos a partir dos mesmos termos para
os siblings de Ego e utilizados quando se quer indicar com maior exatidão qual pessoa está
sendo referida. Os Javaé dizem que, antigamente, tais termos eram usados como vocativos
ocasionalmente. Apresento a seguir os termos de G+1, os quais devem ser sempre
precedidos pelo nome da pessoa de quem se fala:

718
Tabela n° 13: Os siblings dos genitores de Ego
Termo geral em G+1: Termo alternativos para siblings dos genitores de
Ego:
Wahakura (FeB) - waha dela, “primeiro corpo do meu pai”
(“meu pai branco”)
Tio paterno mais velho
Walabyry (FyB) - waha helykyna, “o segundo irmão do meu pai”
Tio paterno mais novo - waha tykana, “o irmão do meio do meu pai”
- waha roko, “o último irmão do meu pai”
Walabetery (FZ) - waha dela, “o primeiro corpo do meu pai”
Tia materna - waha helykyna, “a segunda irmã do meu pai”
- waha tykana, “a irmã do meio do meu pai”
- waha roko, “a última irmão do meu pai”
Nadikura (MeZ) - nadi dela, “o primeiro corpo da minha mãe”
(“minha mãe branca”)
Tia materna mais velha
Waladirà (MyZ) - nadi helykyna, “a segunda irmã da minha mãe”
Tia materna mais nova - nadi tykana, “a irmã do meio da minha mãe”
- nadi roko, “a última irmã da minha mãe”
Walana (MB) - nadi dela, “o primeiro corpo da minha mãe”
Tio materno - nadi helykyna, “o segundo irmão da minha mãe”
- nadi tykana, “o irmão do meio da minha mãe”
- nadi roko, “o último irmão da minha mãe”

Os outros termos para caçula também podem compor os termos específicos, como
em nadi koñana e nadi nykybò, que se referem com mais precisão à irmã caçula da mãe, ou
waha kõnana e waha nykybò, que se referem ao irmão caçula do pai. No caso dos avós,
seus irmãos podem ser diferenciados conforme a idade pelos mesmos termos, como em
walahi kumydela, “o primeiro corpo da minha avó”, ou walabiè tykana, “o irmão do meio
do meu avô”. Pétesch (2000:194) apresenta alguns desses termos entre os Karajá, os quais
podem ser estendidos aos tios e avós classificatórios e são compostos apenas a partir de
“umydela” e “tuhana”.
Em G-1, os próprios filhos de um homem ou de uma mulher são referidos por
warikòrè (“meu filho/a”), um termo também vocativo, enquanto os filhos dos irmãos reais
ou classificatórios de ambos são referidos por termos descritivos. Estes são compostos do
termo “o filho de” (rikòrè) mais o termo para o irmão real ou classificatório em questão,
como em wahi rikòrè, “o filho do meu irmão mais novo”. A única exceção na terminologia
masculina são os filhos das irmãs reais e classificatórias de um homem (ZC), que
continuam sendo referidos apenas como wara, um termo elementar, pelo tio materno.

719
Pétesch (2000:194) registra que, entre os Karajá, os sobrinhos uterinos reais e
classificatórios de um homem também podem ser referidos como lery riòrè, “filho da
irmã”, termo que existe entre os Javaé, mas que é raramente utilizado. Do lado feminino,
os filhos da irmã mais velha (eZC), destacados na terminologia vocativa, também
continuam sendo destacados na terminologia de referência, pois podem ser referidos tanto
como wanybòsò, um termo elementar, como wanymy rikòrè (“filho da prima mais velha”),
termo descritivo. O destaque terminológico de wara e wanybòsò será retomado no próximo
item.
Em G-2, há uma diferença considerável em relação ao que Pétesch descreve para os
Karajá, para quem todos os netos reais e classificatórios de um homem são referidos
apenas como wariòrè riòrè (e os de uma mulher como waritxòrè ritxòrè), ou seja, “o filho
do meu filho”. Os homens Javaé distinguem os netos reais dos classificatórios e preferem
se referir aos seus próprios netos como wariòrè wodudu, “o que se originou (dudu) dentro
(wo) do meu filho (wariòrè)”, termo não registrado entre os Karajá, ao invés de utilizar o
termo wariòrè riòrè, que é conhecido pelos Javaé, mas pouco usado. Os netos
classificatórios de Ego, por sua vez, são distinguidos dos netos reais estabelecendo-se a
ligação entre eles e os irmãos reais ou classificatórios de Ego. Desse modo, o neto de um
irmão classificatório mais novo (waixi) é referido como waixi riòrè wodudu, “o que se
originou dentro do filho do meu irmão mais novo”; enquanto o neto do irmão mais velho
(waumydela) é referido como waumydela riòrè wodudu, “o que se originou dentro do filho
do meu corpo mais velho”.
Em se tratando das mulheres, o termo wodudu é bem menos usado, tanto no caso
dos netos reais como classificatórios. As mulheres podem se referir aos seus netos reais
como warikòkòrè (o equivalente do wariòrè riòrè masculino) ou warikòrè wodudu,
preferindo o primeiro termo, que pode ser usado também como vocativo. Os netos
classificatórios, repetindo a lógica da terminologia masculina, são referidos então como os
rikòkòrè (filhos do filho) de algum irmão real ou classificatório, como em waisoru
rikòkòrè, “filho do filho da minha irmã mais nova”. Para as gerações abaixo de G-2,
adiciona-se o termo rikòrè a cada geração. Os bisnetos são warikòkòrè rikòrè (“filho do
filho do meu filho”) para as mulheres e wariòrè wodudu riòrè para os homens. Os
tataranetos são os warikòkòrè rikòkòrè (“filho do filho do filho do meu filho”) para as
mulheres ou wariòrè wodudu riòrè riòrè para os homens e assim sucessivamente.

720
Em todos os casos, o nome da pessoa em questão precede o termo de referência,
mas apenas quando ele ainda não teve filhos. Não se deve esquecer, portanto, a regra
relativa aos nomes, enunciada antes, e que se aglutina ao que é exposto agora. Quando
alguém tem o primeiro filho ou o primeiro neto, passa a ser conhecido, respectivamente,
como o “pai ou mãe de fulano” ou o “avô ou avó de fulano”, deixando de ter seu próprio
nome pronunciado pelos outros. Se alguém vai se referir a um neto que já teve o primeiro
filho, por exemplo, pode falar algo como: Carla tyby, wanyry riòrè wodudu (“o pai de
Carla, o que se originou de dentro do filho do meu primo mais velho”) ou Henrique sè,
wanymy rikòkòrè (“a mãe de Henrique, a filha do filho da minha prima mais velha”).
Até agora foram apresentados os termos vocativos e referenciais de parentesco. No
caso dos afins, como já foi dito, estes permanecem sendo tratados pelo mesmo termo de
parentesco com o qual eram conhecidos antes da relação de aliança, ocultando-se a
afinidade nas relações pessoais diretas. Como será visto no próximo item, trata-se de uma
terminologia dravidiana, em que é possível identificar a distinção entre paralelos e
cruzados em G+1. Entretanto, a havaianização de G0 e a escolha de afins entre parentes
mais distantes, de acordo com as variações amazônicas do paradigma (Viveiros de Castro,
2002b), terminam por esvaziar ou pelo menos minimizar bastante o sentido de afinidade
dos termos que designam os parentes cruzados, uma vez que os cruzados reais ou próximos
não são concebidos como afins. Na prática matrimonial, os afins preferenciais são
escolhidos entre os primos cruzados distantes, diluindo-se o sentido explícito de afinidade
dos termos que designam os parentes cruzados reais ou próximos.
O termo lery, por exemplo, que define todas as mulheres da geração de um homem,
é essencialmente ambíguo, pois refere-se tanto às suas irmãs quanto às suas possíveis
esposas. Os aruanãs que são trazidos do Céu e do Fundo das Águas dançam aqui com as
irasò didi ou irasò lery, “as lery dos aruanãs”. Na imitação cerimonial do mundo original,
elas são concebidas apenas como as suas “irmãs” reais mágicas, com as quais não têm
qualquer tipo de contato físico, evitando-se até o olhar entre ambos. Mas os dançarinos
terrestres e as parceiras de dança que dão vida à encenação cerimonial, os weryrybò
(rapazes) e as ijadoma (moças), são, em sua maioria, afins potenciais, irmãos
classificatórios distantes em idade de se casar. Como já foi dito, as músicas que os
dançarinos cantam falando de encontros com mulheres, chamadas de lery, invocam o
erotismo próprio dos amantes e retratam uma sexualidade exacerbada e insaciável das
parcerias (ver Rodrigues, 1993). Essa ambigüidade terminológica e ritual, que elide a

721
afinidade em G0 e nas relações cerimoniais entre potenciais afins, tem relação com a
ambigüidade do próprio conceito de feminino, criador e mortal, protetor e canibal,
maternal e sexual.
Um homem é levado a tratar cotidianamente suas esposas potenciais ou reais como
“irmã” (lery) e a dançar como “irmão” ritual daquela que poderá ser a sua esposa efetiva.
Do mesmo modo, uma mulher chama o marido de “irmão” (wahi ou waixi). No que se
refere às outras categorias de afins, o critério de distância na escolha dos parceiros atenua
consideravelmente ou mesmo suprime o conteúdo de afinidade dos termos de tratamento
que indicam os cruzados terminológicos. Assim, o sogro ou a sogra continuam sendo
chamados de “tio” (walana, walabyry, wahaura) ou “tia” (walabetery, nadiura, waladirà),
o cunhado de “irmão” (wanyry, waixi), a cunhada de “irmã” (lery), a nora e o genro de
“sobrinhos” (wara) etc, o que é considerado a forma mais respeitosa de tratamento. Não se
deve chamar ninguém pelo próprio nome, apenas pelo termo de parentesco adequado. Mas
é correto tratar alguém que já teve filhos ou netos, como já foi explicado, seja parente ou
afim, pelo tecnonímico respectivo (“pai” ou “avó” de fulano, por exemplo), pelo termo de
parentesco vocativo ou pelos dois juntos, o modo mais formal.
No caso da referência aos afins, utiliza-se predominantemente termos descritivos
tecnonímicos, os quais são ofensivos como tratamento. Os diagramas ao lado (n° 6 e n° 7)
contêm mais termos do que os registrados para os Karajá. Um homem refere-se aos
parentes de sua esposa (ou uma mulher aos parentes do seu marido) de modo que quase
todos são transformados em “tios”, “avós”, “filhos dos tios” etc do seu filho, esvaziando-se
a afinidade também nos termos de referência. Por outro lado, como foi apontado por
Pétesch (2000:198), “a terminologia de afinidade bastante descritiva reproduz a
terminologia ‘bifurcada colateral’ utilizada por Ego no nível G+1, ao inverter o sentido da
referência tecnonímica. Os filhos dos irmãos cruzados ou paralelos (mais velhos ou mais
novos) do pai ou da mãe (de Ego) na nomenclatura de base tornam-se, na nomenclatura de
afinidade, os irmãos cruzados ou paralelos (mais velhos ou mais novos) do pai ou da mãe
do filho (de Ego)”. Ou seja, a G0 da terminologia de afinidade passa a conter, em
referência aos filhos de Ego, o mesmo cruzamento e diferenciação por idade da G+1 na
terminologia de parentesco, anulando o caráter havaiano original.
Os termos de referência devem ser precedidos do nome da pessoa (ou do
tecnonímico respectivo, caso a pessoa já tenha um filho ou um neto), como em Sandro
tyby, wariòrè sè labyry, “o pai de Sandro, tio paterno mais novo da mãe do meu filho”.

722
Diagrama n° 6: Terminologia de referência para afins de Ego masculino

= = G+2
14 13 13 14 14 13 14 13 13 14 14 13

- + + -
= G+1
12 10 8 5 6 7 9 11

+ - + - + - + - + - + - + -
= G 0
4 3 2 4 3 2 4 3 2 4 3 2 1 4 3 2 4 3 2 4 3 2

G-1
{
{
{
{
{
{
{
{
{
{
{
{

{
{
{
{
{
{
{
{
{
17 16 15 17 16 15 17 16 15 17 16 15 17 16 15 17 16 15 17 16 15

G-2
{
{
{
{
{
{
{
{
{
{
{
{

{
{
{
{
{
{
{
{
{
20 19 18 20 19 18 20 19 18 20 19 18 20 19 18 20 19 18 20 19 18

LEGENDA

723
Diagrama n° 7: Terminologia de referência para afins de Ego feminino

= = G+2
14 13 13 14 14 13 14 13 13 14 14 13

- + + -
= G+1
11 9 7 5 6 8 10 12

+ - + - + - + - + - + - + -
= G 0
2 3 4 2 3 4 2 3 4 1 2 3 4 2 3 4 2 3 4 2 3 4

G-1
{
{
{
{
{
{
{
{
{

{
{
{
{
{
{
{
{
{
{
{
{
15 16 17 15 16 17 15 16 17 15 16 17 15 16 17 15 16 17 15 16 17

G-2
{
{
{
{
{
{
{
{
{

{
{
{
{
{
{
{
{
{
{
{
{
18 19 20 18 19 20 18 19 20 18 19 20 18 19 20 18 19 20 18 19 20

LEGENDA

724
Mas o modo mais formal de se referir a um afim deve conter o seu nome (ou
tecnonímico respectivo), juntamente com o termo de parentesco de referência anterior e o
termo descritivo de afinidade. Assim, por exemplo, um homem vai se referir a uma tia
materna mais velha, que é avó de Lúcia e também a tia paterna da esposa, do seguinte
modo: Lúcia labiè, nadiura, wariòrè labiè lery (“a avó de Lúcia, minha tia materna mais
velha, irmã do avô do meu filho”) ou Lúcia labiè, nadiura, wariòrè labiè helyna (“a avó de
Lúcia, minha tia materna mais velha, a irmã mais nova do avô do meu filho”).
As palavras wahawyky (“minha esposa”) e wahãbu (“meu marido”) não podem ser
consideradas como termos de afinidade específicos propriamente ditos, como já notou
Pétesch (2000) para os Karajá, uma vez que hãbu e hawyky são os termos genéricos para
“homem” e “mulher”, respectivamente. Como já sugeri antes, isso indica que a
diferenciação por gênero é associada à condição de afinidade. Na G+1, todos os termos
compostos por warikòrè sè, “mãe do meu filho”, ou warikòrè tyby, “pai do meu filho”,
podem ser substituídos por wahawyky ou wahãbu, respectivamente, quando a pessoa
referida ainda não teve filhos. Por exemplo, wariòrè tyby tybykura, “tio paterno mais velho
do pai do meu filho”, pode ser substituído por wahãbu tybykura, “tio paterno mais velho
do meu marido”, assim como wariòrè sè lana, “tio materno da mãe do meu filho”, pode ser
substituído por “wahawyky lana”, “tio materno da minha esposa”.
Nota-se também que o termo 12 da terminologia masculina, wariòrè labiè lery,
“irmã do avô do meu filho”, segue uma lógica descritiva diferente dos outros termos da
mesma geração, tanto no caso feminino como masculino, que são apresentados como
“tios” da mãe ou do pai do filho. As gerações acima de G+2 são referidas pelos mesmos
termos (walahi, walabiè), enquanto nas gerações abaixo de G-1 pode-se acrescentar o
rikòrè para cada nova geração, seguindo a mesma lógica já enunciada para os termos de
parentesco de referência.
Os diagramas apresentados dizem respeito ao modo como um homem ou uma
mulher se refere aos parentes de seu cônjuge. Mas quando se trata do modo como um
homem ou uma mulher se refere aos cônjuges de seus parentes, um outro sistema se impõe,
de modo que há uma diferença entre se referir ao irmão da esposa (WB), warikòrè lana
(“tio materno do meu filho”), por exemplo, e ao marido da irmã (ZH), wara tyby (“pai do
meu sobrinho uterino”), porque são, na prática, pessoas diferentes, assim como entre os
Karajá. Tal discrepância em um sistema de troca restrita tem relação com a atuação do
critério de distância sobre a preferência matrimonial, uma vez que a troca de esposas nunca

725
ocorre de modo direto entre dois grupos de irmãos da mesma geração, mas de modo difuso
entre parentes mais distantes 5 .
De modo geral, os cônjuges dos parentes femininos são referidos adicionando-se as
palavras hãbu (“marido ou homem”) ou rikòrè tyby (“pai do filho”) ao termo de referência
que designa a parenta em questão; e hawyky (“esposa ou mulher”) ou rikòrè sè (“mãe do
filho”) ao termo que designa o parente masculino. O marido da “prima mais nova”
(waisoru), por exemplo, será referido como waisoru hãbu, caso não tenha filhos, ou como
waisoru rikòrè tyby (“pai do filho da prima mais nova”), caso tenha filhos. O mesmo vale
para as esposas dos parentes do sexo masculino, usando-se os termos respectivos. Aplica-
se essa regra geral, não explicitada na literatura sobre os Karajá, para se referir aos
cônjuges de praticamente todos os parentes, tanto de Ego feminino quanto masculino, de
todas as gerações, incluindo aqueles da G-1 e G-2 referidos por termos mais descritivos,
como wahi rikòrè (eBC), cuja esposa poderá ser referida como wahi rikòrè rikòrè sè (“mãe
do filho do filho do primo mais velho”). Mas há algumas exceções. O marido da walahi
(MM, FM) é apenas o walabiè (FF, MF) ou walahi hãbu, enquanto a esposa do walabiè é a
walahi ou walabiè hawyky.
Excepcionalmente, os cunhados de um homem são referidos apenas como wara
tyby (“pai do meu sobrinho uterino”), expressão que, literalmente, pode significar tanto
“pai (tyby) da minha cabeça (wara)”, quanto “minha cabeça (wara) velha (tyby)”. Aqui
também o termo wara (ZC) é destacado na terminologia, ainda que indiretamente. Mais
raramente, o marido das irmãs reais e classificatórias (ZH) de um homem, o cunhado que
lhe deve trabalho em troca da irmã, pode ser referido como lery hãbu (“marido da irmã”)
ou de lery rikòrè tyby (“pai do filho da minha irmã”), termos muito pouco usados e
baseados na mesma lógica aplicada aos outros termos.
Já quanto às esposas dos irmãos reais e classificatórios (BW) de um homem,
Pétesch (2000:192) registra algo diferente para os Karajá, para quem todas seriam referidas
pelo mesmo termo aplicado à esposa de um homem, “wariòrè sè”, “mãe do meu filho”. Os
homens Javaé diferenciam tanto as esposas dos irmãos classificatórios (waixi, wanyry)
quanto as dos siblings (waumydela, wahelyna, watyana, waroo), adicionando hawyy ou
riòrè sè a cada termo, de modo a especificar cada uma delas: a esposa do irmão mais
5
Para Pétesch (2000:199), “a distinção entre várias categorias de afins, tanto para Ego masculino (irmão da
esposa, marido da irmã, esposa do irmão, irmã mais velha / mais nova da esposa), quanto para Ego feminino
(irmã do marido, esposa do irmão, marido da irmã mais velha / mais nova, irmão mais velho / mais novo do
marido), argumenta em favor de uma regra de casamento não prescritiva e de opções matrimoniais diversas à
partir de um certo grau de parentesco” (tradução minha).

726
velho, por exemplo, será waumydela hawyy, “esposa do meu irmão mais velho”, ou
waumydela riòrè sè, “mãe do filho do meu irmão mais velho”.
Do ponto de vista feminino, os cônjuges de cada irmão real ou classificatório (de
ambos os sexos) também são diferenciados conforme a regra enunciada. Apenas o marido
das irmãs reais e classificatórias mais velhas de uma mulher (eZH) é destacado, podendo
ser chamado tanto de wanybòsò tyby (“pai da minha sobrinha uterina”), o equivalente do
wara tyby masculino, quanto de wanymy hãbu (“marido da irmã mais velha”) ou wanymy
rikòrè tyby (“pai do filho da irmã mais velha”). Pétesch (2000:192) registra tanto o “ra
tàby” (ZH) quanto o “nabeso tyby” (eZH) para os Karajá, mas, assim como no caso
masculino, não há registro de uma diferenciação para os maridos ou esposas de cada tipo
de irmão real ou classificatório.
No caso de G-1, há também algumas peculiaridades. O marido da filha (DH) pode
ser referido tanto por um homem como por uma mulher como wariòrè hãbu (“marido da
minha filha”) ou wariòrè riòrè tyby (“pai do filho da minha filha”), mas são termos muito
pouco usados. Em geral, usa-se a expressão waralyby, termo para “genro” que significa
literalmente “minha cabeça (wara) negra (lyby)”. A expressão waralyby é o único termo
explícito de afinidade em toda terminologia, como já observou Pétesch (2000:193) para os
Karajá (“ra làby”), e pode ser aplicado aos maridos das filhas classificatórias de um
homem ou mulher. Apesar de tanto os filhos dos irmãos reais quanto os filhos dos irmãos
classificatórios de um homem (BC) serem considerados como seus filhos classificatórios
(C), a terminologia de referência para os cônjuges respectivos acaba por diferenciar uns
dos outros. Segundo Pétesch, todos os maridos de filhas (reais ou classificatórias) entre os
Karajá são referidos apenas como “ra làby”.
Os cônjuges dos “filhos dos irmãos classificatórios” (wanyry riòrè [eBC] e waixi
riòrè [yBC]) são referidos por um homem adicionando-se os respectivos “marido” e
“esposa” ou “pai do filho” e “mãe do filho” a cada termo específico, como em wanyry
riòrè riòrè sè, “mãe do filho do filho do meu primo mais velho”. No caso dos “filhos dos
irmãos reais do sexo masculino (BC)” (waumydela riòrè, wahelyna riòrè, watyana riòrè,
waroo riòrè), seus cônjuges são referidos como os “maridos” ou “esposas” de cada um ou
como wariòrè riòrè tyby (“pai do filho da minha filha”) ou wariòrè riòrè sè (“mãe do filho
do meu filho”). Ou seja, os cônjuges dos filhos dos irmãos reais do sexo masculino (BDH,
BSW) são assimilados aos cônjuges dos filhos de Ego (DH, SW), que são referidos pelos
mesmos termos. O termo de afinidade waralyby, “minha cabeça negra”, entretanto, pode

727
ser aplicado indistintamente aos maridos das filhas reais e classificatórias de Ego, não
havendo nenhum termo específico de afinidade para “nora”. Tanto as noras reais quanto as
classificatórias são referidas por Ego masculino ou feminino conforme a regra geral: a nora
real, por exemplo, é referida como wariòrè riòrè sè , “mãe do filho do meu filho”, ou
wariòrè hawyky, “esposa do meu filho”.
Por outro lado, o marido ou a esposa dos “filhos das irmãs reais e classificatórias de
um homem” (wara, ZC), diferenciados de seus próprios filhos (C, BC), também são
referidos como wariòrè riòrè tyby (ou warikòkòrè tyby, na versão feminina), aqui traduzido
como “pai do meu neto”, ou como wariòrè riòrè sè (ou warikòkòrè sè), “mãe do meu
neto”. Mas o “pai do meu neto” neste caso é o “meu próprio filho”, assim como “a mãe do
meu neto” é a “minha própria filha”. Como a prática é de casamento entre primos cruzados
bilaterais, o que será mais detalhado no próximo item, os filhos de um homem idealmente
casam-se com os filhos de suas irmãs, de modo que os cônjuges dos filhos das irmãs são os
seus próprios filhos. O marido da wara também pode ser referido como wara riòrè tyby
(“pai do filho da minha sobrinha uterina”) e a esposa do wara como wara riòrè sè “(mãe
do filho do meu sobrinho uterino”). Na terminologia feminina, os cônjuges da wanybòsò
(eZC) são referidos conforme a regra geral.
Além dos termos descritos até aqui, há outros conceitos relativos às relações de
parentesco que são usados no cotidiano. A palavra derawà refere-se àqueles objetos ou
pessoas que ficam “no lugar” de algo que se perdeu ou de uma pessoa que morreu. A
expressão wakumydela derawà, “aquele que ficou no lugar do meu primeiro irmão”,
refere-se ao irmão que sucedeu o primogênito que, por algum motivo, morreu. Quando um
sobrinho mais próximo ou o próprio filho morre, aqueles que ficam podem ser chamados
de kuladu derawà, “o que ficou no lugar da criança”. A madrasta de alguém é sè derawà,
“a que ficou no lugar da mãe”, enquanto o padrasto é tyby derawà, “o que ficou no lugar
do pai”.
Já a mãe de criação é conhecida por isèmyrutona, “a mãe que olha por ele”,
aproximadamente, ou nadimywarutona, “reflexo ou cópia da minha mãe”; enquanto o pai
de criação é itybymyrutona, “o pai que olha por ele”, ou wahamywarutona, “reflexo ou
cópia do meu pai”. O filho de criação é bèdè òbyna, conceito traduzido por um Javaé como
“alguém que se torna parente milagrosamente” (Rodrigues, 1993). Òbyna é um conceito de
“felicidade, alegria”, de modo que bèdè òbyna é quando o mundo (bèdè) fica alegre em
razão de uma adoção: é um “milagre do mundo” ou uma “surpresa agradável da vida”,

728
opondo-se ao conceito de bèdè bura, “surpresa ruim” ou “infortúnio”. A “esposa do pai”
(FW), aqui no sentido de uma mulher que não tem nenhuma relação maior com os filhos
dele, é a waha hawyky, e não a nadi (M), como entre os Karajá (Pétesch, 2000:193); assim
como “o marido da mãe” (MH) é nadi hãbu e não waha (F).
Os filhos e netos de alguém, incluindo os de criação, podem ser chamados de
wakohowena, algo como “agrupamento dos meus parentes”. Faz-se uma analogia entre as
pequenas moscas (koho) que se juntam ou se agrupam (wena) em grande quantidade sobre
as fezes ou corpos em decomposição e os descendentes que se multiplicam. É um termo
afetuoso, como waderina (“meu querido”), mas tido como vergonhoso por algumas
pessoas. Outra expressão que designa os filhos e netos de modo carinhoso é wararudena,
originado do conceito de “raiz” (raruti). Segundo os Javaé, os parentes consideram seus
filhos e netos como a raiz que os mantêm firmes e junto aos parentes ou à casa nas
situações de conflito ou tensão, assim como uma raiz segura uma árvore no chão. Os pais,
os tios e avós podem chamar os seus filhos, sobrinhos e netos de watymyrana, literalmente
“o lugar do meu novo ou do meu começo”.
Os Javaé têm o conceito de usèna, derivado da mesma palavra (usè) que designa as
imitadoras (iusè ou bòròtyrè). Literalmente, usèna seria “o lugar (na) da imitação (usè)”.
Certas pessoas são consideradas usèna, “imitações” de alguém que já morreu. Se a família
do morto ou algum parente seu considerar que uma pessoa qualquer tem alguma
semelhança física ou mesmo subjetiva com o que já morreu (com algo do corpo ou com o
modo de andar, de falar, de rir, de cantar etc), ela será considerada usèna do morto. Em
razão disso, ela passará a ser tratada com o mesmo termo de parentesco com o qual se
dirigiam ou se referiam ao parente morto. O mesmo é registrado por Toral (1992:146), que
traduz wesena, do dialeto Karajá, como “o lugar do igual”. Ao termo em questão deve
também corresponder a atitude respectiva, não se podendo brigar ou ter relações sexuais
com o novo parente, por exemplo, independentemente do tipo de relação que se mantinha
com ele anteriormente. Quando ocorre essa identificação, a família do morto avisa a
família do usèna e passa a tratá-lo como se realmente fosse a pessoa que já morreu. Diz-se
que a pessoa em questão “transforma-se em alguém da mesma família”.
Em Canoanã havia várias pessoas tratadas como usèna de outros. Esse conceito
pode ser aplicado aos estrangeiros, de modo que eu mesma fui considerada por uma
mulher idosa Xambioá, que vivia em Canoanã, como usèna de uma parenta próxima sua
que já havia morrido há muitos anos. Uma outra situação similar é quando um xamã avisa

729
a uma família que trouxe o tykytyby (“corpo velho”) de uma pessoa que já morreu no corpo
de uma criança recém-nascida. A partir de então, os parentes do que morreu passam a
tratar e a considerar a nova criança como o parente falecido. Um jovem adulto de cerca de
25 anos, por exemplo, era chamado por uma mulher idosa, da qual não era parente
próximo, de wahelykyna, “meu segundo irmão”. Um xamã havia avisado às famílias
envolvidas, antes dele nascer, que o corpo velho do irmão dessa mulher, falecido algum
tempo antes, viria na nova criança. Nesse caso, o rapaz não só era chamado de “irmão”,
como também recebia presentes de sua “irmã” e o tratamento adequado a essa categoria.
Por fim, lembro aqui que os parentes de uma criança identificada com um aruanã
durante um ciclo ritual passam a ser referidos como “pai de aruanã” (irasò tyby), “mãe de
aruanã” (irasò sè), “avó de aruanã” (irasò lahi) etc, terminologia esta que, mais do que
qualquer outra, elimina qualquer vestígio de afinidade presente na relação social e
substancial que deu origem à criança que se transformou no “dono do aruanã” (irasò
wèdu).

9.3. Práticas matrimoniais

À primeira vista, não é possível identificar um contraste entre “consangüíneos” e


afins na terminologia de parentesco, ao modo dravidiano. Entretanto, Pétesch (2000)
demonstrou que o critério de idade relativa, ou seja, a diferença entre primogênito e caçula,
operante em G0, G+1 e G+2 entre os Karajá, distingue claramente paralelos de cruzados na
G+1, com conseqüências para a prática matrimonial, uma vez que os primos cruzados são
os parceiros preferenciais. Segundo a autora (2000:202), “o sistema de aliança possui um
caráter mais bilateral do que a nomenclatura de parentesco ou, mais exatamente, faz surgir
a bilateralidade terminológica um pouco ocultada sob uma linguagem ora bastante
generacional, ora bastante descritiva” (tradução minha).
Uma análise lingüística mostra que os termos para os tios paralelos mais velhos que
o pai (waha) ou mãe (nadi) de Ego têm em comum o sufixo ura, que significa “branco”.
Os irmãos mais velhos do pai de Ego (FoB) são wahaura, “pai branco”, enquanto as irmãs
mais velhas da mãe de Ego (MoZ) são nadiura, “mãe branca”. Por outro lado, os tios
paralelos mais novos que o pai ou mãe de Ego e os tios cruzados têm em comum a raiz la,

730
à qual se junta o pronome possessivo wa (meu): o irmão mais novo do pai de Ego (FyB) é
walabyry e a irmã do pai de Ego (FZ) é walabetery; enquanto a irmã mais nova da mãe de
Ego (MyZ) é waladirà e o irmão da mãe (MB) é walana 6 . A distinção por idade relativa
entre os tios paralelos não ocorre no caso dos tios cruzados. Nota-se que o termo para a
irmã do pai (FZ), labetery, compartilha o sufixo ery com o termo para as irmãs
classificatórias (esposas potenciais) de Ego (lery).
Desse modo, como evidenciou Pétesch, o sufixo ura aproxima os tios paralelos
mais velhos dos genitores de Ego, opondo-os aos tios cruzados e os tios paralelos mais
novos, identificados pela raiz wala. Em outras palavras, o cruzamento é associado ao
critério de idade relativa, de modo que, do ponto de vista dos genitores de Ego, um irmão
real ou classificatório do sexo oposto equivale a um irmão mais novo, enquanto um irmão
do mesmo sexo equivale a um irmão mais velho. Do ponto de vista de Ego, FoB ou MoZ
são tios paralelos, enquanto FyB e FZ ou MyZ e MB são tios cruzados. Assim, segundo a
autora (2000:204), apesar da aparência em contrário, existe uma bipartição
“consangüíneos” / afins na terminologia, com a ressalva de que ela não se sobrepõe à
simples dualidade paralelos / cruzados, “mas a um composto analógico-antitético do tipo
paralelos / cruzados : primogênitos / caçulas” 7 .
A prática matrimonial, tanto entre os Karajá como entre os Javaé, como será visto a
seguir, revela que a distinção terminológica sutil que opõe os tios paralelos mais velhos e
genitores aos tios paralelos mais novos e tios cruzados influi decisivamente na escolha dos
parceiros. Embora isso não seja assumido explicitamente pelos Javaé, que em geral dizem
apenas que o ideal é se casar com um primo bilateral distante, na prática os parceiros
preferenciais são os filhos dos tios cruzados ou dos tios paralelos mais novos distantes. Por
ora, basta constatar que a mudança de sexo na terminologia (o cruzamento em relação ao
genitor) é associada à uma menor idade (ao tio paralelo mais novo), enquanto o mesmo
sexo do genitor é associado à uma maior idade (o tio paralelo mais velho). De modo
congruente com o que é apresentado na mitologia e cosmologia Javaé, que expressa um

6
Pétesch descreve a raiz em comum entre os Karajá como wula, ao invés de wala, o que atribuo a uma
diferença dialetal. O pronome possessivo wu, ao invés do wa, seria usado entre os Karajá antes dos termos de
G+1 e G+2.
7
Quando se trata da terminologia de referência aos afins, Pétesch (2000:205) conclui que, “apesar de
‘consangüinizante’, a tecnonímia de afinidade que reproduz a terminologia de parentesco de G+1 introduz a
diametralidade consangüíneos / afins no seio da geração de Ego fortemente ‘havaianizada’. O papel da
tecnonímia parece neste caso invertido em relação a um sistema dravidiano. Ao invés de transformar os afins
em consangüíneos, como entre os Piaroa, por exemplo, ela transforma os consangüíneos em afins”.

731
ponto de vista masculino, o sexo diferente é associado ao caçula e à mudança, enquanto o
mesmo sexo é associado ao primogênito e à continuidade.
De um ponto de vista masculino, a afinidade terminológica está claramente
relacionada aos caçulas/cruzados, ainda que seja em referência à G+1 e os afins reais sejam
encontrados na periferia da parentela. Os caçulas, como foi mostrado até aqui, são
afinizados porque seus corpos mais transformados representam a alteridade em
comparação aos primogênitos de corpos mais preservados, por isso relacionados aos
parentes paralelos. Há uma nítida assimetria de valor entre ambos, pois a cosmologia e a
mitologia estabelecem que a relação entre o primeiro e o último, o começo e o fim ou entre
o próximo e o distante, é a mesma entre a ordem e a desordem, estatismo desejado e
mudança repudiada. A afinidade é desvalorizada por ser definida pela qualidade de
“transformação”, associada aos corpos abertos, ao feminino, aos caçulas, à pobreza de
parentes e ao rio abaixo, enquanto o parentesco é valorizado por ser definido pela
qualidade de “perenidade”, associada aos corpos fechados, ao masculino, aos
primogênitos, à riqueza de parentes e ao rio acima.
Além disso, como já havia sido observado por Donahue (1982) e Pétesch (2000), a
cor branca (ura) é associada aos tios paralelos mais velhos que os genitores, enquanto a cor
negra (lyby) compõe a palavra para “genro” (waralyby, “minha cabeça negra”), traduzida
por Dietschy (1977:299) como “sobrinho negro”. O contraste terminológico entre paralelos
e cruzados é simbolizado pela oposição entre branco e negro, associada cosmologicamente
à claridade valorizada do rio acima e à escuridão depreciada do rio abaixo. Como veremos,
essa oposição baseada nas cores também expressa a interferência do critério de distância
gradual sobre o binarismo terminológico, como argumenta Viveiros de Castro (2002b),
tendo em vista que os afins preferenciais são parentes bilaterais distantes, não havendo
termos para não-parentes, assim como entre os Karajá. Em seu trabalho, Pétesch
(2000:205), já observara que “o sistema de classificação identifica a alteridade menos sob a
forma de oposição do que de distanciamento”.
Um afim é um parente residencialmente mais distante, assim como o caçula é um
corpo mais transformado em relação ao corpo do primogênito, lembrando aqui que as
transformações são associadas a distanciamento no tempo e no espaço. Nem o afim nem o
caçula são vistos como alteridades absolutas a priori, mas apenas como o mesmo
transformado em outro através de um distanciamento gradual: um parente transforma-se
em afim, assim como uma mesma mistura substancial dá origem ao primogênito (menos

732
transformada) e ao caçula (mais transformada). Afinal, a alteridade ou a afinidade
mitológica não existiam previamente, como um dado, mas do mesmo surgiu a diferença,
através das relações. Estas produzem não só a diferença como o distanciamento entre as
partes, que é formulado por intermédio de uma linguagem espacial na cosmologia. Um
afim, para um homem, será sempre o residente de uma outra casa, um outro lugar.
A caminho seguido por Tanyxiwè expressa claramente que as diferenças
ontológicas entre o começo e o fim, entre identidade e alteridade, parentesco e afinidade,
são compreendidas em termos de deslocamentos espaciais progressivos, de modo que
quanto mais distante do início, maior o estranhamento e a transformação. O afim ideal é
um parente nem muito próximo, porque é incestuoso, nem muito distante, em termos
espaciais, como os de outras aldeias, porque estes tendem a ser assimilados
simbolicamente aos estrangeiros ou aos não parentes, como os ensangüentados, protótipos
da afinidade e da transformação, que estão localizados no extremo máximo da distância
espacial. Os parentes “considerados” próximos não são apenas os genealogicamente
próximos, como já foi mostrado, mas os que convivem no mesmo espaço cotidianamente,
expressando solidariedade e afeto.
A diferença entre primogênito e caçula, associada à diferença entre paralelos e
cruzados, é concebida em termos de gradações corporais. As categorias intermediárias
entre o primogênito e o caçula são pensadas como gradações entre um extremo de mínima
e outro de máxima transformação de uma mesma mistura substancial. A própria idéia de
meio entre extremos, tão essencial na cosmologia, atesta a concepção de que a diferença
não é vista como mera oposição. Entre os opostos existe tanto uma gradação, associada a
uma transformação progressiva, quanto uma assimetria radical de valor. A oposição de
base, entre masculino e feminino, não é imaginada em termos de um dualismo estático a
priori, mas em termos de processos contínuos acionados a partir de uma fusão substancial,
entre um corpo do qual saem menos substâncias, associado ao rio acima, e um que
exterioriza muito mais, menos valorizado, associado ao rio abaixo.
Quanto mais afinizada uma relação, maior a transformação dos envolvidos e o seu
distanciamento simbólico, como durante os períodos de resguardo reais e metafóricos,
associados ao espaço mais distante (rio abaixo). No início do seu casamento, um genro está
no grau máximo de afinização, uma vez que ele sofreu uma ruptura radical entre o estado
anterior e o novo estado de subordinação e exteriorização de substâncias. Essa
transformação radical da condição de parente (corpo fechado na residência natal) para a

733
condição de afim (corpo aberto na residência conjugal) é expressa pelo termo waralyby,
“minha cabeça (wara) negra (lyby)”, como veremos a seguir. A cor negra aparece
associada aos estados de grande transformação, como durante o ritual de iniciação
masculina, em que o jovem que se inicia tem o cabelo cortado bem curto e o corpo todo
pintado de preto.
Na terminologia masculina vocativa e referencial, a G-2, de configuração iroquesa,
destaca os sobrinhos uterinos (ZC) de um homem, referidos pelo termo wara, “minha (wa)
cabeça (ra)”, que se opõem aos seus filhos (C) e aos filhos de seus irmãos (BC), chamados
pelos termos dàà (FS, BS) e dee (FD, BD), sem considerar o critério de idade relativa.
Tendo em vista que a preferência matrimonial se dá entre primos cruzados, os sobrinhos
uterinos de um homem estão, idealmente, na posição de seus afins, de possíveis genros ou
noras, de modo que a terminologia explicita na G-1 a diferença entre paralelos (C, BC) e
cruzados (ZC) que é ocultada ou atenuada nas gerações anteriores, como já disse Pétesch.
De fato, os Javaé utilizam a expressão rawyòna, “juntar as cabeças”, da qual não há
registro na literatura sobre os Karajá, para se referir ao casamento entre os filhos de um
homem e os de suas irmãs classificatórias (lery). A palavra wyò, como já foi dito, significa
“par”, de modo que, literalmente, rawyòna significa “lugar (na) do par (wyò) de cabeças
(ra)”.
Mas como ao binarismo terminológico sobrepõe-se o critério de distância, o que é
expresso pela havaianização da G0, os sobrinhos uterinos reais e classificatórios (ra)
próximos, aqueles que convivem com o tio materno (lana) na mesma casa, não são
afinizados, assim como o tio materno real ou próximo não se confunde com aquele que se
tornará o sogro. Ao contrário, a relação entre lana e ra é tida como a célula do parentesco
cerimonial, cuja representação ritual revive o parentesco mágico original. Ao invés de um
casamento entre primos reais cruzados, a terminologia iroquês-havaiana expressa um ideal
de casamento entre filhos de primos cruzados, suprimindo a afinidade da geração de Ego e
expelindo-a para as gerações abaixo. Esse distanciamento terminológico e generacional da
afinidade é acentuado ainda mais pelo tabu em relação ao casamento de primos de 1º e 2º
graus, de modo que os filhos das irmãs reais e classificatórias próximas, o que equivale aos
co-residentes, não ocupam jamais a posição de afins (genros ou noras) efetivos.
O fato dos sobrinhos uterinos serem chamados de “minha cabeça” por um homem
tem relação direta com a sua forte ligação matrilinear à casa natal, associada
simbolicamente ao rio acima. Como já foi mostrado, em termos cosmológicos, o extremo

734
rio acima (ibòkò, “rosto dele”) é a própria “cabeça” estática do universo, ao passo que o
extremo rio abaixo (iraru, “as coxas dele”) são suas “pernas”, associadas à mobilidade,
cabendo ao meio terrestre o lugar mediador de barriga (wè) cósmica. A casa natal e os
sobrinhos uterinos são a “cabeça” simbólica e estática de um homem, a representação da
continuidade estrutural, enquanto a casa conjugal e os seus filhos são as “pernas” que
trazem mudança e movimento. Desse modo, a expressão “juntar as cabeças” refere-se, na
prática, o que é reconhecido pelos Javaé, apenas ao casamento arranjado entre primos
cruzados a partir do 3º grau, entre os filhos de um homem e os filhos de suas irmãs
classificatórias mais distantes.
Quando o filho de uma irmã classificatória torna-se um genro, expressa-se a
afinização (transformação) do parente distante acrescentando o sufixo lyby (negro) ao
termo wara. Para um homem, uma “cabeça” (sobrinho uterino) distante transforma-se em
uma “cabeça negra” (genro). Quanto mais distante um parente, em termos sociais ou
espaciais, mais próximo simbolicamente ele estará da cor negra, assim como os kuni (os
parentes mortos que se tornam estranhos canibais) e os ensangüentados que vivem na
escuridão, do lado onde o sol se põe 8 . A oposição entre a claridade do leste (os sobrinhos
reais) e a escuridão do oeste (os genros) é gradativa como o amanhecer e o entardecer,
assim como o ciclo diário do sol é percebido como um continuum gradativo entre o início e
o fim, o leste e o oeste (Rodrigues, 1993).
Um genro é a “cabeça negra” de um homem porque ele é a sua “cabeça
transformada”, um sobrinho distante tornado afim. Por outro lado, quanto mais próximo
um parente, mais próximo simbolicamente ele estará da cor branca. O lugar onde o sol
nasce, coincidente espacialmente com o rio acima, como já foi mostrado, é chamado de
biura, “Céu branco”. A cor negra ou a escuridão indicam estranhamento ou
distanciamento, perdas, subordinação e transformação, enfim, uma afinização e
feminilização simbólica. Note-se que, embora a terminologia feminina não faça uso do
termo “minha cabeça” para designar os filhos dos irmãos (BC), o equivalente estrutural em

8
Em sua análise formal, Donahue (1982) e Pétesch (2000) dão pouca importância ao significado literal e
corporal do termo wara. Mesmo assim, esta última também conclui que a cor negra adicionada ao termo
sobrinho acentua a diferença entre ZS e DH, indicando um casamento preferencial com uma prima
patrilateral. Tal preferência seria congruente com uma maior preferência patrilateral na prática entre os
Karajá, o que também ocorre entre os Bororo (Crocker, 1979). Entre os Apinayé (Da Matta, 1979:96), a
palavra krã (cabeça) compõe vários termos de tratamento e referência relacionados aos amigos formais. Em
sua revisão bibliográfica, Schiel (2005:86) chega a uma conclusão diversa, especulando de forma pouco
convincente a respeito de uma associação simbólica entre o nível subaquático, a consangüinidade e a cor
negra, de modo que aproximar um DH (referido pela cor negra) a um ZS seria uma forma de “assimilar os
afins, sobretudo os esposos, a verdadeiros consangüíneos”.

735
se tratando de uma troca simétrica, do ponto de vista feminino, é costume que as mulheres
também refiram-se aos seus genros reais e classificatórios usando a expressão “minha
cabeça negra”, assim como entre os Karajá. Pétesch (2000:199), entretanto, traduz ralyby
apenas como “sobrinho negro”, enquanto Donahue (1982:158) traduz como “black
mother’s brother’s son” (filho negro do irmão da mãe), o que indicaria o potencial
negativo, associado à cor negra, segundo o autor, de trazer um estranho para dentro de
casa.
É revelador que o termo waralyby é o único termo de afinidade não tecnonímico
existente, destacando a posição de genro como a mais afinizada de todas. É como se a
afinidade gerada pelo casamento fosse explicitada por aquele que assume a condição
subordinada de genro, assim como a afinidade produzida na procriação é explicitada pela
exteriorização abundante de substâncias durante o resguardo. O conceito de “cabeça
negra”, em que a cor negra associa-se ao sangue do rio abaixo, sugere que a relação inicial
de afinidade entre sogros e genros é, em termos simbólicos, como o sangramento visível do
parto que precisa ser atenuado aos poucos. As relações de aliança produzem a afinidade em
um primeiro momento, assim como as relações entre os genitores produzem a
consubstancialização. A afinidade gerada precisa ser suprimida, assim como o sangue que
flui após o parto deve ser controlado.
Em sua análise comparativa das terminologias masculina e feminina, Pétesch
(2000) nota que a terminologia feminina possui duas variações significativas quanto ao
critério de idade, respectivamente, na G0 havaina e na G-1 iroquesa. Na G0, Ego
masculino diferencia por idade apenas os irmãos classificatórios do mesmo sexo (nyry, eB,
e ixi, yB), desconsiderando o critério de idade quanto às irmãs classificatórias (lery, Z).
Ego feminino, por sua vez, diferencia por idade tanto as irmãs (nymy, eZ, e isoru, yZ)
quanto os irmãos classificatórios (hi, eB, e ixi, yB). Na G-1, por sua vez, enquanto o
critério de bifurcação estrutura a terminologia masculina, opondo os filhos de um homem
(C) e de seus irmãos (BC) aos de suas irmãs (ZC), é o critério de idade relativa que
estrutura a feminina.
Assim, na terminologia vocativa masculina, o termo wara (ZC) é destacado na G-1,
indicando o cruzamento em relação aos filhos de Ego (C) e de seus irmãos (BC), ou seja,
uma oposição entre paralelos (C, BC) e cruzados (ZC). Na feminina, por sua vez, é o termo
wanybòsò (eZD) que é destacado, indicando uma diferenciação por idade em relação aos
filhos de Ego, mas não um cruzamento. Os filhos de uma mulher (C) são assimilados aos

736
filhos de suas irmãs classificatórias mais novas (yZC) e aos filhos de seus irmãos
classificatórios (BC), opondo-se aos filhos das irmãs classificatórias mais velhas (eZC).
Trata-se de uma oposição entre os “mais novos” (C, yZC, BC) e “os mais velhos” (eZC).
Pétesch (2000:197) identifica as seguintes equações:

Ego masculino : (BC = C) ≠ ZC


Ego feminino primogênito : BC = C = yZC
Ego feminino caçula : (BC = C) ≠ eZC

Dito de outro modo, C = BC = yZC ≠ eZC. Em um exercício analítico, cujo


objetivo seria “restabelecer a simetria terminológica aplicando-se conjuntamente os dois
critérios de diferenciação”, Pétesch (2000:203) funde o critério de idade relativa e o de
cruzamento na G-1 das duas perspectivas: a masculina (onde falta idade relativa) e a
feminina (onde falta o cruzamento relativo ao sexo). A autora propõe então uma outra
equação, que se aplica também aos Javaé:

Para Ego masculino : (C = eBC) ≠ (ZC = yBC)


Para Ego feminino : (C = yZC) ≠ (BC = eZC)

Ou seja, para um homem, em termos lógicos, seus filhos estão identificados com os
filhos do irmão mais velho, opondo-se aos filhos da irmã e aos filhos do irmão mais novo.
Repete-se teoricamente em G-1 a mesma associação terminológica existente em G+1 entre
cruzados e menor idade, paralelos e maior idade. No caso de uma mulher, em uma
perspectiva oposta, a fusão dos dois critérios leva a uma identificação de seus filhos com
os filhos da irmã mais nova, em oposição aos filhos do irmão e os da irmã mais velha.
Desse modo, Pétesch conclui que um cruzado equivale a um caçula para um homem,
enquanto um cruzado equivale a um primogênito para uma mulher. De fato, assim como
entre os Karajá, idealmente as mulheres devem se casar com o irmão classificatório mais
velho (hi, eB), o que ocorre na maioria dos casos, considerando-se o irmão classificatório
mais novo (ixi, yB) como uma opção menos valorizada.
“Juntar as cabeças” de potenciais afins é uma prática atribuída às avós, que
dominam as genealogias e estabelecem os contatos com outras famílias para a realização
do casamento arranjado (harabiè), hoje muito menos freqüente. Apesar do conceito de
rawyòna exprimir um casamento com primos cruzados, os Javaé dizem apenas que os afins

737
preferenciais são os primos bilaterais de 3º e 4º graus. Isso equivale a três ou quatro
gerações abaixo de um grupo de siblings original. Segundo Pétesch (2000:200), os Karajá
dizem que um homem deve se casar preferencialmente com as irmãs classificatórias (lery),
mas admitem outras categorias de outras gerações, como eBD, ZD ou MyZ distantes, o
mesmo valendo para as mulheres.
No caso Javaé, embora existam na prática, considera-se como relativamente
desonrosos casamentos com parceiros de gerações que não a de Ego, o que tende a ser
mais comum em casamentos posteriores de uma mesma pessoa. Os primos de 3º e 4º graus
são tidos como a categoria ideal para o casamento arranjado por ocuparem uma posição
intermediária entre os primos de 1º e 2º graus, considerados “próximos demais”, com os
quais o casamento tem uma conotação incestuosa, e os primos mais distantes, considerados
“distantes demais”. O casamento com estrangeiros é fortemente recriminado, tido como
vergonhoso, embora nos últimos 10 anos tenha aumentado o casamento com não-índios.
Atualmente, entretanto, a grande maioria dos casamentos pesquisados se dá entre os
primos cruzados “distantes demais”, o que, suponho, está relacionado à desestruturação das
antigas aldeias sofrida após o contato, quando remanescentes de várias aldeias
aglomeraram-se em um ou dois lugares.
Apesar da linguagem genealógica, o critério de distância gradativa na definição de
quem é um afim adquire mais sentido se for pensado em termos do princípio de residência
ou de uma lógica espacial. Nas aldeias antigas, os moradores eram os descendentes de um
grupo de afins original, uma grande parentela dentro da qual se realizavam os casamentos,
prática que se repete hoje na maior parte das novas aldeias. O grupo doméstico era
formado pela família extensa uxorilocal, sendo interditado o casamento entre os co-
residentes da casa natal, grupo que tende a incluir apenas os primos de 1º e 2º graus de
Ego, em especial os matrilaterais. Ao mesmo tempo, a regra tradicional e seguida até hoje
é a endogamia de aldeia. Desse modo, “perto demais” é dentro da mesma casa, o que
coincide com os primos de 1º e 2º grau, principalmente os matrilaterais; “longe demais”
tende a ser os primos residentes em outras aldeias, o que coincide com os
genealogicamente muito distantes; enquanto o ideal, que é uma posição intermediária, um
“meio” tanto social quanto espacial, tende a ser os primos cruzados bilaterais de 3º e 4º
graus que moram em outras casas, mas dentro da mesma aldeia. Segundo Lima Filho
(1994:134), os Karajá dizem que o “casamento de perto é feio”, em um contexto de
exogamia de grupo doméstico e endogamia de aldeia.

738
Realizei uma pesquisa estatística a respeito de 183 casamentos da aldeia Canoanã
(1998) e 28 casamentos da aldeia Barreira Branca (2002), num total de 211 casamentos
(incluindo todos os casamentos da época e o que foi possível saber de uniões antigas, com
parceiros falecidos ou separados). Os dados de Barreira Branca indicam uma proporção
maior de casamentos com primas (67,8 %), o que é mais bem mais próximo do que Pétesch
(2000:201), que pesquisou 78 casamentos em 1990, e Dietschy (1977) encontraram entre
os Karajá (o mesmo índice de 78%), em comparação a Canoanã (55,1%). Como já foi dito,
Canoanã tem uma situação especial em relação às outras aldeias, por ter sido formada
como um aglomerado de remanescentes de diversos grupos locais, o que certamente
alterou as práticas tradicionais. Apresento a seguir o resultado:

Tabela n° 14: Categorias de esposas


Categorias de esposas: Canoanã Barreira Branca Total
Prima (lery, FBD, FZD, MZD, MBD) 54,6 % 67,8 % 56,8 %
Sobrinha (ra, ZD) 16,3 % 0,0 % 14,2 %
Sobrinha (nyryriòrè, eBD) 7,1 % 10,7 % 7,5 %
Tia (ladirà, MyZ) 4,9 % 0,0 % 4,2 %
Tia (labetery, FZ) 4,3 % 17,8 % 6,1 %
Tia (nadiura, MeZ) 0,5 % 0,0 % 0,5 %
Neta (rikòkòrè, SD, DD) 1, 6 % 3,5 % 1,9 %
Sogra 1,0 % 0,0 % 0,9 %
Não-Javaé 9,0 % 0,0 % 7,6 %

Em termos gerais, tem-se 56,8 % de casamentos com primas, 21,7 % de casamentos


oblíquos com sobrinhas, 10,8 % com tias e o restante (cerca de 10 %) com outras
categorias. Foram encontrados dois casamentos “escandalosos” com a própria sogra e um
considerado altamente incestuoso, com a irmã verdadeira por parte de pai. Entre os Karajá,
Pétesch (2000) encontrou 78 % de casamentos com primas, 20 % com sobrinhas e 2 %
com tias (ver Dietschy, 1977, para um recenseamento de 1955). O resultado total do
casamento com sobrinhas e tias apresentou as seguintes características, revelando que as
tias paralelas (MeZ) são um tabu e que a filha da irmã classificatória (ZD) é a preferida
entre as sobrinhas:

739
Tabela n° 15: Casamentos com sobrinhas
Tipo de sobrinha: Total
ra (ZD) 65,2 %
nyryriòrè (eBD) 34,7 %
ixiriòrè (yBD) 0%

Tabela n° 16: Casamentos com tias


Tipo de tia: Total
nadiura (MeZ) 4,5 %
ladirà (MyZ) 40,9 %
labetery (FZ) 54,5 %

No que se refere apenas ao casamento com primas, o mais significativo em termos


quantitativos, temos o seguinte quadro:

Tabela n° 17: Casamentos com primas (1)


Tipo de prima (lery): Canoanã Barreira Branca Total
Filha do irmão da mãe (MBD) 30 % 36,9 % 31 %
Filha da irmã mais nova da mãe (MyZD) 12 % 0% 10 %
Filha da irmã mais velha da mãe (MeZD) 12 % 0% 10 %
Filha da irmã do pai (FZD) 20 % 47,3 % 24,4 %
Filha do irmão mais novo do pai (FyBD) 12 % 15,7 % 12,6 %
Filha do irmão mais velho do pai (FeBD) 12 % 0% 10 %
Filha do MBD e FZD 1% 0% 0,9 %
Filha do FyBD e MyZD 1% 0% 0,9 %

Tabela n° 18: Casamentos com primas (2)


Tipo de primas: Canoanã Barreira Branca Total
Primas cruzadas (MBD, MyZD, FZD, 74 % 100 % 78 %
FyBD)
Primas paralelas (MeZD, FeBD) 24 % 0% 20 %
Primas bilaterais (MBD e FZD, FyBD e 2% 0% 1,8 %
MyZD)

Tabela n° 19: Casamentos com primas (3)


Primas cruzadas: Canoanã Barreira Branca Total
Primas cruzadas matrilaterais 56,7 % 36,9 % 52,6 %
Primas cruzadas patrilaterais 43,2 % 63 % 47,3 %
Primas paralelas: Canoanã Barreira Branca Total
Primas paralelas matrilaterais 50 % 0% 50 %
Primas paralelas patrilaterais 50 % 0% 50 %

740
Cerca de 80 % dos casamentos com primas são realizados com as primas cruzadas,
havendo uma tendência à bilateralidade tanto na escolha de primas quanto das tias. No
caso das sobrinhas, há uma ênfase matrilateral acentuada. Embora os dados estatísticos
sejam em número bem menor, é notável que as práticas na aldeia Barreira Branca, cujo
perfil pode ser descrito como mais parecido com o das aldeias antigas, tenham maior
similaridade com o que Pétesch (2000) encontrou entre os Karajá. Além de uma maior
preferência pelo casamento com primas, entre estas há uma totalidade de casamentos com
as cruzadas (Pétesch encontrou, do total, apenas 2 % de casamentos com primas paralelas)
e uma maior preferência pelas primas patrilaterais: de todos os casamentos pesquisados
entre os Karajá, 44 % se deram com primas cruzadas patrilaterais (FZD) e 29 % com
primas cruzadas matrilaterais (MBD).
Um outro dado que chama a atenção é que, além de quase não haver casamentos
com primas paralelas entre os Karajá, os casamentos com primas cruzadas se deram apenas
com FZD e MBD, não incluindo MyZD e FyBD, terminologicamente assimiladas aos
cruzados. Entre os Javaé, a distinção terminológica coincide com a prática, embora esta
última seja relativamente menos afirmada em Barreira Branca do que em Canoanã. Talvez
possa se especular que os 20 % de casamentos com primas paralelas Javaé também tenham
relação com a história desestruturante do contato, que é bem mais recente entre estes
últimos. No que se refere ao ideal de casamento das mulheres com um irmão classificatório
mais velho (wahi, eB), assimilado a um primo cruzado, tem-se um resultado similar aos
Karajá, ou seja, este é o parceiro escolhido na prática:

Tabela n° 20: Casamentos das mulheres


Casamentos de mulheres com: Canoanã Barreira Branca Total
Irmão classificatório mais velho (hi, eB) 81 % 100 % 84 %
Irmão classificatório mais novo (ixi, yB) 19 % 0% 16 %

Um desdobramento dos dados relativos à idade dos parceiros do sexo masculino,


dentro do universo total de uniões, revela que 95,6 % dos homens eram mais velhos nos
casamentos com sobrinhas e 65,2 % no casamento com tias. Por fim, ainda se tratando das
preferências matrimoniais, pode-se montar um último quadro, que aponta o grau de
distanciamento social das parceiras escolhidas, a partir da diferenciação feita pelos
próprios Javaé entre os casamentos considerados “próximo demais”, com conotação
incestuosa (1º e 2º graus), os considerados ideais (3º e 4º graus) e os considerados

741
“distantes demais”. O quadro a seguir refere-se exclusivamente ao casamento entre primos,
dos quais aproximadamente 80% foram realizados entre primos cruzados:

Tabela n° 21: Grau de distância social


Distanciamento entre esposos Canoanã Barreira Branca Total
(primos):
“Próximo demais” 20 % 5,2 % 17,6 %
Ideal 8% 0% 6,7 %
“distante demais” 72 % 94,7 % 75,6 %

Constata-se que a grande maioria dos casamentos é realizada com primos


considerados muito distantes, o que contradiz a norma ideal, que era colocada em prática
através dos casamentos arranjados tradicionais. No que se refere às outras categorias de
esposas (tias e sobrinhas), 76,3 % dos casamentos foram com mulheres aparentadas
distantes, 15,2 % com mulheres próximas demais e 8,3 % com mulheres consideradas de
uma categoria intermediária. Uma comparação com os Karajá não é possível porque não
existem dados a respeito do distanciamento genealógico-espacial entre os esposos.
Pode-se especular, no entanto, que, além da influência dos fatores históricos, os
casamentos ideais entre primos de 3º ou 4º graus talvez nunca tenham sido uma maioria,
restringindo-se às uniões mais prestigiadas entre os primogênitos ricos de parentes e os
iòlò. A prática de endogamia de classe no passado recente, no caso dos iòlò, era associada
a um arranjo ideal entre as famílias, de modo que fatores como prestígio e hierarquia
também devem ser levados em conta nas alianças matrimoniais, como no alto Xingu.
Como veremos em maior detalhe no próximo capítulo, um critério fundamental para a
escolha de um parceiro no casamento arranjado era a sua disposição para o trabalho, a
partir do que poderia ser gerado o prestígio da riqueza de parentes.
Em termos de uma estrutura de aliança matrimonial, Pétesch (2000) já sugeriu que
não se pode falar de casamento prescritivo em senso estrito entre os Karajá, uma vez que a
havaianização dá margem a grande liberdade de escolhas. Para Viveiros de Castro
(2002b:132), casos como os dos Karajá e Javaé demonstram estratégias “de consolidação
de parentelas amplas em contextos políticos fortemente faccionalizados”. Em seu estudo
sobre o faccionalismo dos três grupos de língua Karajá, Toral (1992) chega a dizer que os
arranjos matrimoniais orientam-se primariamente pelos interesses políticos, de modo que a

742
endogamia de facção é a grande prioridade, embora tenda a coincidir com a endogamia de
aldeia.
A prática de endogamia local é a norma seguida, assim como entre os Karajá 9 ,
desde que a tradição surgida a partir das relações entre os Wèrè e o povo de Tòlòra tomou
uma forma parecida com a atual. Nos tempos míticos, os casamentos se davam entre
grupos diversos e na maioria dos casos as mulheres (ixy) pertenciam a povos estrangeiros
(ixyju). A exogamia étnica era generalizada após a ascensão mítica, de modo que as novas
criações e o caos protagonizado pelas mulheres eram paralelos aos casamentos com
mulheres estrangeiras. Tal desordem foi parcialmente suspensa depois que os homens
tomaram o poder público e passaram a se dedicar coletivamente ao controle das mulheres
e, paralelamente, à supressão da afinidade gerada pelos matrimônios. Esse controle foi
acompanhado de um ideal de endogamia local e étnica. Quando a mitologia histórica se
refere às normas criadas em Marani Hãwa, há uma menção especial aos casamentos dos
filhos nobres do iòlò Tòlòra com as mulheres Wèrè, sugerindo uma endogamia de classe
(casamento entre filhos de nobres ou importantes chefes).
No alto Xingu (ver Ireland, 2001, por exemplo), a endogamia de classe aparece
associada a uma exogamia étnica e local, em razão do estabelecimento ou expansão de
alianças políticas entre os grupos relacionados pacificamente. No mito Javaé em questão,
tem-se uma exogamia étnica apenas, a base da sociedade atual, também associada aos
filhos de nobres. Desde então, os Javaé reconhecem a endogamia de classe como uma
prática tradicional do grupo, porém associada a uma endogamia local e étnica. No caso dos
iòlò, até pouco tempo atrás eles deveriam se casar preferencialmente com outros iòlò,
praticando a endogamia de classe e também a endogamia local, sendo “proibido” o
casamento fora da aldeia. Os Javaé dizem que tradicionalmente havia grande restrição a
que um homem se casasse em outra aldeia, sendo lembrados alguns casos antigos em que
isso aconteceu e que causaram comoção (os parentes choraram muito) e escândalo.
No universo de 208 casamentos em que foi possível saber a prática adotada,
relativos a Canoanã e Barreira Branca, constatou-se que 89,4 % dos homens casaram-se
com uma mulher que morava na mesma aldeia (2,6 % destes homens eram de outras
aldeias e estavam morando temporariamente na aldeia em que casaram, por motivos
variados), enquanto os 10,5 % restantes casaram-se com uma mulher que morava em outra
aldeia. No que se refere a este pequeno número dos que praticaram exogamia local, 68,1 %

9
Ver Dietschy (1978), Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

743
são homens que estavam de passagem em outra aldeia quando se casaram (seja para visitar
parentes, assistir ao Hetohoky ou pescar na região vizinha). O restante refere-se a mulheres
que estavam visitando outra aldeia junto com a família ou que eram aderana (aqui no
sentido das mulheres que têm muitos amantes). Há registro de um casamento entre pessoas
de aldeias diferentes que ocorreu na Casa do Índio de Gurupi (TO). Em nenhum caso
houve uma decisão deliberada de se casar com alguém de outra aldeia, mas apenas fatores
circunstanciais que levaram a isso 10 .
No que se refere à dissolução dos casamentos, na pesquisa sobre as uniões
realizadas nas aldeias de Canoanã (1998) e Barreira Branca (2002), foi possível obter
informações a respeito de 211 casamentos, o que revelou um número relativamente alto de
separações, como entre os Bororo (Crocker, 1985). No universo total de casamentos
pesquisados, o que inclui todo tipo de união, dos jovens e dos mais velhos, houve 83
separações, o equivalente a 39,3 % dos casos. Talvez esse número tenha relação com a
diminuição dos casamentos arranjados, embora haja indícios que os divórcios não eram tão
raros assim no passado. A grande maioria de pessoas acima de 50 anos já havia se
separado pelo menos uma vez ao longo da vida, não sendo difícil encontrar entre os mais
idosos pessoas que se separaram mais vezes. Bueno (1975, 1987) e Donahue (1982)
encontraram entre os Karajá adultos da aldeia Macaúba um histórico recorrente de
separações (uma média de mais de 4 casamentos por pessoa, segundo Donahue), por
motivos variados, junto com uma grande estabilidade após o nascimento do primeiro filho.
Em 60 % dos divórcios Javaé, o homem tomou a iniciativa da separação. No que se refere
a este universo específico:

• Em 43,7 % dos casos, o homem quis se separar por causa de outra mulher.
• Em 10,4 % dos casos, o homem quis se separar por que a mulher o traiu.
• O restante (33,4 %) inclui motivos variados, como voltar à esposa antiga, “não
gostar da mulher” (porque ela era “suja” ou porque foi um casamento arranjado) ou
desejo de voltar à aldeia de origem, entre outros.
• Em 12,5 % dos casos, não foi possível saber o motivo da separação.

Em 40 % dos divórcios, a mulher tomou a iniciativa da separação. Dentro desse


universo:

10
Dietschy (1978:77) interpreta a endogamia local Karajá como uma forma do homem “resolver as
dificuldades da ‘dupla descendência’, principalmente aquelas decorrentes da descendência patrilinear
associada à residência matrilocal”.

744
• Em 31,2 % dos casos, a mulher quis se separar porque o homem batia nela ou o
porque o casal brigava muito em razão do marido beber ou ser muito ciumento.
• Em 25 % dos casos, a mulher quis se separar por causa de outro homem.
• Em 15,6 % dos casos, a mulher quis se separar por que o marido era preguiçoso ou
avaro e não realizada as devidas prestações matrimoniais.
• O restante (22 %) inclui motivos variados, como não gostar do esposo porque foi
um casamento arranjado.
• Em 6,2 % dos casos, não foi possível saber o motivo da separação.

Concluindo este item, nota-se que o “gradiente de distância” (Viveiros de Castro,


2002b:133) expresso na terminologia de parentesco através da havaianização de G0 e do
contraste entre a cor branca e a cor negra, primogênito e caçula, representa não apenas o
afastamento da afinidade para a periferia da parentela, mas também uma visão histórica e
hierárquica da realidade. Viveiros de Castro (2002b:133) já sugeriu que “o gradiente de
distância é o terreno por excelência da performação, da interação entre norma e ação,
estrutura e história”.
A oposição entre masculino e feminino, paralelos e cruzados, mais novos e mais
velhos é dada estruturalmente e organiza a sociedade desde que os humanos começaram a
se relacionar; mas estar mais próximo ou mais distante de um dos extremos espaciais e
sociais depende unicamente da ação cotidiana dos sujeitos envolvidos, é o espaço da
história (gradação) dentro da estrutura (oposição). Através de seu trabalho e sua
generosidade, principalmente, os humanos podem construir o prestígio ou a desonra,
posicionando-se simbolicamente mais próximos do rio acima ou do rio abaixo ou
revertendo o distanciamento inicial em proximidade. A distância entre um extremo e outro
faz parte da estrutura do plano terrestre social, mas como se dará a caminhada entre ambos
depende do fazer histórico dos agentes humanos.

9.4. Harabiè, o casamento arranjado

Em sua associação com a procriação, o casamento é a transformação mais


importante na vida de um Javaé: é o meio do ciclo vital, o marco que divide entre um antes
de corpo fechado e um depois de corpo aberto, um antes em que se é nutrido pelos
semelhantes e um depois em que se nutre os outros. O casamento repete simbolicamente a

745
passagem mítica que funda a realidade social e a mortalidade. Enquanto a casa natal é o
espaço da retenção energética, a casa dos afins, para um homem, é espaço das perdas
energéticas, principalmente no período inicial do casamento. Dentro da lógica de que as
mudanças são provocadas pelas relações com a alteridade, o início das relações com os
afins é responsável pelas mudanças mais significativas na vida de um homem. O ritual do
casamento arranjado, assunto deste item, marca socialmente essa grande transição, que
remete simbolicamente à diferenciação de gênero.
Antes do casamento, não se esperava que os jovens “trabalhassem”, conceito que,
como já foi dito, está intimamente relacionado à produção e preparação de alimentos. As
mulheres da classe de idade ijadoma (entre a primeira menstruação e o casamento) deviam
apenas aprender com a mãe e a avó materna a fabricar os “adornos corporais” (ywina) de
algodão, cujo manuseio é atividade exclusiva feminina, e os objetos de uso doméstico,
como esteiras, cobertores de algodão, panelas de barro etc. Não cabia às jovens solteiras
cozinhar, mas apenas observar a sua mãe nessa tarefa. Elas podiam sair de casa apenas
para realizar as necessidades físicas, tomar banho ou participar da Dança dos Aruanãs e
jogos rituais associados, mas sempre acompanhadas de familiares, principalmente pela avó
materna. O período da puberdade anterior ao casamento – associado aos corpos fechados –
devia ser vivido como um período de reclusão ou isolamento da sociedade, simbolizado
pela reclusão ritual associada à menarca.
O mesmo valia para os rapazes da classe de idade weryrybò, anterior ao casamento,
que deveriam restringir suas andanças entre a casa natal e a Casa dos Homens. Ambos
deveriam manter-se virgens até o casamento e evitar conversar com qualquer pessoa pela
aldeia. Os enfeites corporais do rapaz eram preparados e colocados em seu corpo por sua
mãe, que cuidava de tudo que lhe dizia respeito. O jovem não tinha a obrigação de caçar,
pescar, buscar lenha ou plantar, devendo ir ao mato apenas matar gaviões e obter as penas
de suas flechas. Suas atividades estavam circunscritas à esfera cerimonial, na Casa dos
Homens. A responsabilidade pelas tarefas dentro da casa era de sua mãe, enquanto as
externas cabiam ao pai, estando reservado aos jovens de ambos os sexos, em casa, o direito
de apenas observar a execução das tarefas ou mesmo de permanecer deitados em suas
esteiras, sem fazer nada. Assim como antes da ascensão mítica, os corpos deviam se
manter isolados uns dos outros, sem perdas energéticas, para tal evitando-se os contatos
sexuais e o trabalho.

746
Antigamente, os jovens em idade de se casar já estavam comprometidos com
alguém desde criança, por meio de negociações feitas pelas avós maternas dos envolvidos.
Os casamentos deveriam ocorrer aproximadamente por volta dos 20 anos de idade, e não
tão cedo como hoje em dia. Essa idade era tida como o tempo certo de amadurecimento
tanto do útero quanto do esperma, sendo considerado inadequado muito antes ou muito
depois, quando estariam imaturos ou velhos demais. Quanto maior o prestígio da criança e
sua família, maior o empenho nas negociações e o cuidado com a escolha do futuro
cônjuge, o que tinham mais peso no caso dos primogênitos e dos iòlò.
O casamento arranjado, chamado harabiè, é o casamento ideal, embora seja muito
pouco praticado atualmente. Ele supõe a virgindade dos parceiros, as categorias de
parentesco adequadas (rawyòna òbiti) e um elaborado ritual. Os pretendentes cresciam
isolados um do outro, sem se conhecer. Mas quando o arranjo se dava entre jovens já
crescidos, a disposição para o trabalho – demonstrada por um “rapaz de verdade”
(weryrybò tyhy) em suas atividades rituais na Casa dos Homens – e um caráter pacífico
eram critérios fundamentais para a escolha de um parceiro. Segundo Fénelon Costa
(1978:88), um bom marido Karajá é aquele que não é “zangado”, tenha “boa saúde e goste
de trabalhar”. O mesmo valia no caso das mulheres, que idealmente deveriam mostrar as
mesmas qualidades. Atualmente, diz-se que as mulheres preferem como parceiros os
homens que tenham algum emprego como funcionário público, uma minoria privilegiada,
e assim recebem alguma renda regularmente.
Se uma moça não fosse mais virgem no casamento harabiè, os xamãs da família do
rapaz eram acionados para punir com feitiços mortais a família da jovem. Do mesmo
modo, se um homem rompesse o casamento com uma esposa que antes era virgem, ele
provocava a ira da família dela. Se um dos jovens se negasse a cumprir o acordo, causava
grande vergonha para a família respectiva, levando a possíveis conflitos entre as partes. Os
Javaé lembram de um caso conhecido, porém antigo, em que o jovem esposo não gostou
da esposa e, depois de alguns meses, abandonou-a. Com medo de represálias do irmão
dela, feiticeiro, ele se adiantou e assassinou o cunhado, provocando um escândalo que é
lembrado até hoje. Em situações de conflitos mais graves ou mesmo separação, o que no
passado era um tabu no caso do casamento arranjado, os parceiros tendem a atribuir a
culpa do fracasso do casamento aos familiares que fizeram o acordo. Quando um casal se
casa nessas circunstâncias, espera-se que as famílias envolvidas não intervenham nos
conflitos conjugais, tentando preservar a aliança entre os grupos.

747
O mesmo não ocorre nos casamentos não arranjados, de status muito inferior,
realizados de acordo com a vontade dos indivíduos. O mais comum deles é conhecido
como otaota e ocorre sem nenhum ritual associado. Quando um casal quer se casar sem o
acordo das famílias, a situação mais comum agora, é costume que eles “fujam” por uma
noite ou mais, voltando no dia seguinte ou alguns dias depois “casados”. O mesmo ocorre
quando alguém já casado quer trocar de parceiro. A palavra que designa esse tipo de união
deriva de ota (“diferente”) e tem uma conotação de “promiscuidade”, indicando que a
união entre indivíduos é dominada pelos desejos incontroláveis e associada à alteridade,
enquanto a união sacramentada pelos grupos tem um maior prestígio por estar associada ao
controle do desejo individual em prol da coletividade. Em outras palavras, é como se a
aliança entre famílias, em que o indivíduo é submetido a um maior controle social, de
prestígio muito maior, fosse uma relação simbolicamente masculinizada, associada aos
primogênitos, enquanto as uniões em que o desejo individual impera, em detrimento do
controle social, fossem relações feminilizadas e associadas aos caçulas. De fato, há um
empenho muito maior para que os primogênitos se casem de acordo com as regras mais
prestigiadas.
O outro tipo de casamento não arranjado é chamado ixidirira, também associado a
um menor status, embora não tão acentuado como nos casamentos otaota. As uniões assim
conhecidas caracterizam-se pelo pedido formal de casamento que uma pessoa – sozinha –
faz à família do parceiro em que está interessada. Pode ocorrer tanto por iniciativa de
mulheres quanto de homens, embora seja mais comum no último caso. Normalmente, o
pedido é feito por pessoas mais velhas e viúvas, mas há casos de jovens que tomam essa
iniciativa. Considera-se que quem faz esse tipo de pedido está em uma posição de
humilhação, sendo indelicado ou mesmo indevido que a família cortejada negue-se a
atendê-lo. Mesmo quando se trata de uma pessoa idosa desejando-se casar com outra
pessoa idosa, a primeira deve dirigir sua solicitação aos parentes do parceiro pretendido, a
quem cabe aceitar ou não. Fénelon Costa (1978) e Donahue (1982) registraram os três
tipos de casamento entre os Karajá. Fénelon Costa constatou em 1957 que o harabiè já era
uma raridade, o qual foi descrito sumariamente por Ehrenreich (1948) e Krause (1943a)
anos antes, e em maiores detalhes depois por Dietschy (1974, 1978), Donahue (1982) e
Bueno (1987), com pequenas diferenças em relação ao casamento arranjado Javaé.
Alguns anos antes da realização de um casamento harabiè de prestígio, os pais de
ambos os noivos começavam a se preparar para o evento, produzindo os alimentos e os

748
bens de valor, como bordunas, lanças, remos, esteiras, cobertas, cestos, panelas de barro,
entre outros, com os quais retribuiriam as demandas das muitas imitadoras que deveriam
comparecer ao ritual. Alguns dos objetos produzidos pelo pai do noivo, como a cesta
warabahi, usada para guardar as penas das flechas, ou a vara (hoju) utilizada na
navegação, eram decorados com uma pintura especial. A mãe da noiva também tinha que
confeccionar a grande esteira que seria usada pelo casal, com uma pintura preta (byrèsa)
em suas extremidades, e a panela de barro (watxiwii) onde seria colocada a água (sèbèna)
utilizada no ritual.
Além disso, o pai do noivo tinha que fabricar objetos como arco e flechas e canoas
ou preparar uma roça para uso do seu próprio filho e respectivos afins no começo do
casamento, pois o rapaz só começaria a trabalhar depois de casar. Durante o ritual, como
será visto a seguir, o noivo pescava com o arco e as flechas que eram adornados pelo pai
com uma pintura exclusiva para o evento. O “enxoval” do filho, segundo as palavras dos
Javaé, é chamado de rarairàmyhyre e não se confunde com o tykòwy, o serviço da noiva
que o rapaz prestará depois do casamento. Segundo Donahue (1982), que não menciona o
enxoval do noivo, entre os Karajá cabia aos parentes do rapaz anunciar formalmente o
casamento com um ano de antecedência, o que era feito levando alguns pertences do noivo
para a casa da futura esposa.
As avós maternas ou mães dos noivos combinavam o dia do casamento, data em
que a mãe da moça, preferencialmente, ou a sua avó materna, dirigia-se à casa do rapaz,
por volta do meio-dia, e avisava formalmente à mãe dele que naquele dia os parentes da
noiva buscariam os pertences pessoais do noivo. Com o acordo da família dele, a mãe da
noiva avisava então aos seus próprios primos próximos, ou seja, os tios e tias maternos da
noiva, que tradicionalmente eram encarregados de buscar os bens do rapaz para a casa da
moça, acompanhados de seus próprios cônjuges. Com exceção dos genitores e da própria
noiva, os únicos que não deveriam ir, os outros parentes bilaterais da noiva poderiam
acompanhá-los nessa missão. No caso dos nubentes nunca terem se casado antes,
pertencendo às classes de idade ijadoma e weryrybò, esse ritual começava no fim da tarde,
única opção registrada por Donahue (1982) entre os Karajá, contando com a participação
festiva dos moradores da aldeia. Se a mulher já fosse viúva, deveria começar à noite 11 .

11
Embora seja cada vez mais rara a realização desse ritual completo, tive a oportunidade de assistir uma
versão dele em 1990, um tanto improvisada e não considerada de grande prestígio, mas na essência parecida
com o que é descrito aqui. Os jovens noivos, solteiros até então, foram surpreendidos em um encontro

749
Depois da comunicação formal feita pela mãe da moça, a parentela bilateral do
rapaz é também avisada pelos genitores dele e aglomera-se na casa do rapaz esperando
pelos parentes da noiva. Estes devem ser recebidos pelos genitores do rapaz com palavras
respeitosas e de congraçamento, imperando uma atmosfera de muita alegria entre os
parentes de ambos os lados presentes, uma pequena multidão. Os tios maternos da noiva
retornam para a casa dela com os bens do rapaz, em especial o seu arco e flecha. Algum
tempo depois, o rapaz, todo enfeitado e pintado ao modo tradicional, é colocado sentado
nos ombros de um dos seus tios bilaterais, em especial o tio materno, como ocorre durante
o ritual de iniciação masculina, e carregado por ele até a casa da moça. Nesse trajeto, eles
são acompanhados pela parentela bilateral do rapaz, incluindo seus genitores, sendo
recebidos com “palavras formais e de respeito” (rybènyky) pelos genitores da moça, que
está acompanhada da sua parentela bilateral 12 . Na descrição de Donahue (1982), são os
parentes patrilaterais distantes do noivo Karajá, em especial os irmãos do pai, que devem
carregá-lo nos ombros.
O tio que carrega o rapaz é quem o entrega aos pais da moça, referindo-se a ele
como inywi rikòrè, “o filho de uma pessoa honrada, de respeito”. Antes do rapaz chegar, a
sua futura sogra estende no quarto a esteira onde o casal irá se sentar durante o ritual. Ela é
coberta pelo wèlò, um outro tipo de esteira que é colocado sobre quatro varas de madeira,
funcionando como uma espécie de teto sobre o casal e utilizado em outras ocasiões rituais.
Sobre a esteira do chão eram colocados dois banquinhos de madeira zoomorfos (korixà), os
mesmos que eram usados pelos iòlò, onde os jovens, estranhos entre si, ficavam sentados e
bastante constrangidos com toda a movimentação ao redor. Quando o rapaz chega, ele é
levado para a esteira, sendo seguido logo depois pela moça, também ricamente adornada,
que está esperando dentro da casa. Desde o começo do ritual, ambos são proximamente
acompanhados pelas bòròtyrè respectivas, que imitam o casal em várias situações, como já
foi relatado antes.
Enquanto os jovens estão sentados na esteira, por cerca de uma ou duas horas, as
várias imitadoras de cada um sentam-se bem próximo dos dois e aproveitam para dar uma
série de conselhos para a vida conjugal. O rapaz ouve de suas tias e avós (reais e

amoroso, decidindo-se pela realização do ritual no dia seguinte. O ritual não foi considerado um verdadeiro
casamento harabiè, o que causou desagrado às famílias envolvidas.
12
Obtive duas versões bastante detalhadas do casamento harabiè, de pessoas diferentes. Em uma delas, o
rapaz era levado para a casa da noiva por seus tios e tias coberto por uma “manta de algodão” (rià), que antes
era usada par ocultar o corpo dos jovens solteiros quando chegavam em uma nova aldeia ou, como ainda se
faz, pelos rapazes da Casa dos Homens para entregar o hitxèkò (objeto funerário) aos parentes do morto ao
fim do luto.

750
classificatórias) que não deve bater na esposa, que não deve traí-la nem ter ciúmes, que
deve trabalhar muito, ser generoso e evitar conflitos com as pessoas, o mesmo valendo
para sua esposa em relação às próprias conselheiras. Ambos comprometem-se com o que
foi dito enquanto a pequena multidão a tudo assiste divertida. Como em outros momentos
rituais significativos, o casal deve permanecer virado de frente para o biura, o lado do sol
nascente, simbolicamente associado ao rio acima. Em caso contrário, estão sob o risco de
sofrer influências negativas para a relação que ali se inicia.
Terminado o aconselhamento, as pessoas voltam às suas casas e o casal permanece
ainda junto. Logo depois, já no começo da noite, os primos bilaterais solteiros do rapaz,
seus irmãos classificatórios, levam-no para a Casa dos Homens. Lá o rapaz espera o tempo
passar até que seus sogros tenham ido se deitar, evitando o contado direto com eles. Por
volta de 11 horas ou meia-noite, ele retorna à casa da esposa, muito discretamente, sem
fazer qualquer tipo de barulho, para dormir. Sua sogra o cumprimenta formalmente e ele
responde, para depois se deitar junto à esposa, bastante envergonhado. O cumprimento
entre sogros e genro, embora seja feito das mesmas palavras usadas para as outras pessoas,
possui uma entonação diferente, sinal de um maior respeito e distanciamento.
Tradicionalmente, o casal não tinha relações sexuais nessa primeira noite nem nos
primeiros dias após o casamento, marcado for um forte constrangimento por parte dos dois,
que idealmente não tinham nenhuma experiência sexual. A mãe do rapaz é quem ensina a
ele o cumprimento formal entre afins e como se comportar nessa primeira noite, esperando
os sogros se deitarem, assim como é a mãe da moça quem ensina a ela como deve chamar
o rapaz, quando ele chega e se deita na esteira, para se cobrir com a mesma manta que ela
está usando.
Logo cedo, no segundo dia do ritual, os dois se levantam e vão tomar banho no rio
juntos, iniciando um comportamento que será repetido enquanto durar o casamento. A
seguir, o rapaz retorna sozinho ou acompanhado de sua mãe para a casa natal. Algumas
horas depois, no meio da manhã, a sogra do rapaz busca-o na casa da mãe dele, trazendo-o
de volta para a sua casa. A sogra coloca a água chamada sèbèna, que literalmente quer
dizer “lugar (na) da água (bèè) da mãe (sè)”, em uma vasilha de barro feita especialmente
para a ocasião. Na porta de casa, ela lava a cabeça do genro com a água, o que será
repetido pelas imitadoras do rapaz, que também terão suas cabeças lavadas pela mãe da
moça. O rapaz é então convidado a entrar e se sentar perto da esposa, na esteira, ambos
rodeados de suas várias imitadoras, que permanecem em pé. A sogra passa óleo de tucum

751
na cabeça dele, penteia seus cabelos e passa urucum em suas pernas, para a seguir servir o
iwèru (bebida típica) como refeição ao casal, que também será comido pelas imitadoras.
Ao fim da refeição, a mãe do rapaz surge para levá-lo de volta à sua casa natal,
sendo acompanhado de suas imitadoras, enquanto as da moça permanecem junto a ela.
Depois elas se dispersam, retornando às suas próprias casas, até o meio-dia,
aproximadamente, quando o mesmo procedimento se repete. A sogra busca o rapaz
novamente, lava a cabeça dele e das imitadoras, penteia o cabelo, pinta o corpo do genro e
serve uma refeição, que desta vez é mais completa, com vários ingredientes. As imitadoras
também comem e imitam o casal de modo hilário, provocando o riso do público que assiste
ao ritual. As imitadoras do homem e da mulher dirigem-se umas às outras pelos termos
vocativos wahãbu (“meu marido”) e wahawyky (“minha esposa”), abraçam-se como um
casal, chamam o par recíproco para fazer sexo, simulam a relação sexual deitadas no chão,
como entre os Karajá (Donahue, 1982, Lima Filho, 1994). Ao fim da refeição, o rapaz é
levado por sua mãe de volta para a casa natal mais uma vez.
Algum tempo depois, a mãe ou a avó materna do rapaz o trazem para a casa da
esposa para que ele tome banho no rio com ela, o que é assistido por todos presentes.
Terminado o banho, o casal retorna à casa da esposa, onde a sogra espera o genro para
pentear o seu cabelo e, mais uma vez, servir nova refeição, a terceira e última. E também
mais uma vez a mãe do rapaz o leva de volta para a sua casa. Sempre depois de servir as
refeições ao casal e às imitadoras, a sogra leva parte da comida para a casa natal do genro,
onde ele poderá se alimentar enquanto estiver lá. Ao entardecer, ele retorna sozinho para a
casa da esposa para tomar um outro banho com ela, onde permanece algum tempo até
dirigir-se para a Casa dos Homens, à noite, e se encontrar com seus parentes do sexo
masculino. Novamente ele retorna para a casa da esposa por volta da meia-noite,
discretamente, onde é esperado por seus sogros. Estes já estão deitados, porém acordados,
para recebê-lo com o cumprimento formal que marca a relação entre os afins. Ele se deita
junto à esposa, mas, mais uma vez, ainda não tem relações sexuais com ela. Em uma das
versões da cerimônia que ouvi, o rapaz tinha sua cabeça lavada pela sogra três vezes
durante a noite.
No terceiro dia do ritual, bem cedo, antes do dia nascer, os parentes do sexo
masculino do rapaz (o pai, os irmãos, os primos, os tios) e os seus cunhados (ra tyby), os
maridos de suas irmãs, comparecem à casa onde ele está para ajudá-lo na pescaria ritual
que integra o casamento. Antes de retornar da pescaria, por volta do meio-dia, o jovem é

752
pintado e enfeitado por seus parentes no mato, ao modo tradicional. Durante a pescaria, as
tias da moça e as outras parentas do sexo feminino ficam na casa dela preparando o
banquete que será servido na chegada do noivo. É considerado vergonhoso se o próprio
rapaz não consegue capturar nenhum peixe nesse dia, embora seus parentes e cunhados
ajudem a fim de que a pescaria seja farta. Paralelamente, ela também é adornada por sua
mãe e pelas imitadoras presentes com pinturas corporais à base de tinta de jenipapo
(bidina), óleo de tucum (tari) no cabelo, tanga de entrecasca (inytu), braçadeiras (dexi) e
perneiras (dekobutè) de algodão, plumas de pássaros (dura) coladas ao corpo com resina
vegetal, o brinco de penas e dente de capivara (kueju), colares de miçangas etc.
Essa é uma ocasião de grande alegria na aldeia, cujos moradores comparecem em
peso para assistir ao momento em que o noivo chega em uma canoa, segurando seu arco e
flecha, junto com seus parentes, no porto que é usado pela família de sua noiva. Junto ao
porto estão as imitadoras do rapaz, esperando a sua chegada. Assim que a canoa se encosta
ao barranco do rio, a noiva, sua família e suas próprias imitadoras descem até o local para
recepcionar o noivo e seus parentes. A moça pega as flechas do rapaz, como deverá fazer
sempre que ele retorne de uma pescaria, enquanto a sogra se encarrega dos peixes, como
dona simbólica do produto do trabalho de seu genro. Mas ela é ajudada nessa tarefa pelos
outros parentes da noiva presentes. A partir daí as bòròtyrè entram em cena, provocando o
riso em quem assiste à cerimônia: as imitadoras do rapaz tomam para si as flechas dele,
como se fossem ele próprio, enquanto as da moça carregam o peixe, como se fossem a
esposa que fará isso no futuro. Seguindo o costume, a noiva vem andando na frente,
seguida por seu noivo. O mesmo é feito pelas imitadoras respectivas, que se tratam
mutuamente e com galhofa como marido e mulher, “as mulheres” na frente, os “homens”
atrás.
Chegando à casa, os pais do rapaz oferecem o peixe ou a caça obtida, se for o caso,
para a família da noiva, enquanto a noiva entra para o quarto e senta-se na esteira estendida
para o casal, sob a armação do wèlò. Antes de o noivo entrar também, a sogra lava a sua
cabeça mais uma vez e passa óleo em seu cabelo, repetindo o mesmo com as suas
imitadoras. O rapaz e a moça sentam-se na esteira, acompanhados de suas imitadoras
respectivas, vários casais de “marido” e “mulher” em clima de brincadeira. Em outra
versão, o rapaz não chega a entrar na casa após ter a cabeça lavada, porque logo a mãe dele
irá levá-lo embora para a casa natal. Depois que o rapaz vai embora, a sogra dele distribui
parte do peixe obtido entre os parentes do rapaz que ajudaram na pescaria e os parentes da

753
moça que ajudaram a carregar o peixe na chegada. O restante é cozido e reunido à farta
comida que foi preparada pela manhã.
Esta comida será dividida em três porções: uma para a família da noiva; uma para o
noivo, que está sem se alimentar até então e receberá a comida pronta, na casa de sua mãe,
das mãos da própria sogra; e a outra para ser levada como xiwè (oferenda ritual) para a
Casa dos Homens. A terceira e maior porção é levada pelos lana (MB) ou labyry (FyB) da
moça, em especial, para ser oferecida aos lana e labyry do rapaz, que se confraternizam no
espaço ritual masculino, onde os parentes do noivo recepcionam os parentes da noiva. O
noivo também está presente nesse momento, mas não se alimenta da refeição ritual
coletiva.
No meio da tarde, o rapaz é levado pelos mesmos que o acompanharam na pescaria
matutina para buscar lenha com o bèhura, um grande cesto de uso dos homens, tarefa que
terá que realizar regularmente depois do casamento. Alguns dos parentes masculinos que o
acompanham podem agir como bòròtyrè nessa hora, imitando o rapaz que carrega a lenha
e ajudando-o, tendo o direito de receber algo em troca por isso. Quando o noivo chega do
mato, ele se dirige à casa da noiva, mas antes é recebido formalmente por ela. Sua noiva
dirige-se a ele chamando-o de wahi, “meu irmão mais velho”, e solicita que ele lhe
entregue as ferramentas utilizadas. Nesse momento, as imitadoras recíprocas estão
presentes, brincando de abraçar uma à outra e simular as relações sexuais. A moça caminha
na frente, seguida pelo rapaz, como deve ser no dia a dia, até que ele e seus parentes
chegam na porta da casa dela e entregam a lenha para a sogra, que mais uma vez lava a
cabeça do rapaz e de suas imitadoras. Considera-se que a cerimônia do casamento termina
aqui, no terceiro dia, após a entrega da lenha.
A mãe do noivo busca-o outra vez e ele passa o resto do dia com ela, até voltar para
tomar banho e dormir com a esposa. A mãe entrega ao filho o óleo de tucum que ela
preparou, para que a esposa passe a aplicá-lo em seu cabelo cotidianamente. Os Javaé
dizem que antigamente muitos dos jovens esperavam até duas semanas para consumar a
relação sexual, tamanho era o constrangimento entre o casal e em relação aos afins. O
rapaz inicia a rotina de tomar banho com a esposa, acompanhá-la ao mato para realizar as
necessidades físicas e dormir todas as noites com ela. Mas durante um tempo, que antes
poderia levar vários meses, ele volta logo cedo para a casa da mãe, após esta buscá-lo,
onde se alimenta e passa todo o dia, podendo seguir para a Casa dos Homens. Alguns
dizem que o recém casado continuava se alimentando na casa de sua mãe até nascer o

754
primeiro filho. Depois disso, aumenta gradualmente a presença na casa dos sogros, mas
ainda assim o homem é convidado frequentemente pela mãe e irmãs a fazer refeições na
casa de origem. Apenas depois do nascimento de outros filhos, como será mostrado no
próximo capítulo, é que se torna costumeiro o homem se alimentar com os afins. Segundo
Donahue (1982), a casa da mãe e das irmãs sempre será um importante refúgio para o
marido Karajá.
No dia seguinte ao fim do ritual, o agora esposo entrega todos os seus bens, como
arco e flecha, facas, enfeites de algodão etc para a esposa, que os distribui para os seus
irmãos reais e classificatórios, os cunhados do marido. O pai da esposa, por sua vez,
começa a retribuir materialmente aos parentes que ajudaram a buscar os bens do genro e os
peixes durante o ritual, o que não se confunde com o pagamento aos bòròtyrè, mulheres
em sua maioria, pela performance da imitação. Por fim, o sogro entrega ao jovem genro as
ferramentas de trabalho que possui para que ele comece a trabalhar. Algum tempo depois
do casamento, o jovem começa gradualmente a buscar lenha, pescar, caçar e plantar com
regularidade para os afins, assim como a sua esposa, com o tempo, começa a cozinhar para
ele. Mas no começo do casamento é a sogra que cozinha. Os Javaé dizem que no passado
os divórcios eram mais raros e que um casamento harabiè era muito difícil de ser rompido,
principalmente no caso dos iòlò. Autores como Donahue (1982) e Bueno (1987) afirmam
que o casamento Karajá só começa de fato com o nascimento do primeiro filho.
Uma análise da cerimônia de casamento mostra que ela acentua as obrigações de
provedor do homem, marcando a transição abrupta e um tanto traumática de um estado
anterior paradisíaco em que não se trabalha para um estado constrangedor de evitação e
subordinação aos afins, para quem o jovem terá que trabalhar regularmente, entregando o
produto do seu trabalho. Essa obrigação é simbolizada pela entrega de seus pertences
pessoais à esposa e irmãos respectivos ao fim da cerimônia. Para Donahue (1982:154),
deve-se relativizar a fala masculina Karajá de que o casamento é uma transição radical de
um “período dourado” para o trabalho opressivo, uma vez que a mudança efetiva de estado
é gradual e pode levar meses ou anos. O ritual enfatiza também a condição hesitante do
homem frente à nova situação, uma vez que, além dele retornar inúmeras vezes para o
refúgio seguro da casa da mãe, como no ritual de iniciação masculina, é a sogra quem toma
a iniciativa de realizar a cerimônia e são os afins que buscam seus pertences.
É como se ele precisasse ser trazido – quase contra a sua vontade – para a casa da
esposa, tema repetido no cancioneiro ritual (Rodrigues, 1993), em que os homens

755
“esperam” as mulheres tomarem a iniciativa das relações sexuais. O etnógrafo Fritz Krause
(1941b:250) já havia registrado o “ideal de solteirão” e a “aversão ao casamento”, uma vez
que este “obriga a pesado trabalho cotidiano (pescar, fazer roça)” (1941c:239). Segundo
Donahue (1982:154), a mulher Karajá é sempre apresentada como a que seduz o homem
para o casamento, enquanto este é a “vítima inocente”. O antropólogo suíço Hans Dietschy
(1974:38), que fez pesquisa entre os Karajá na década de 50, escreveu que nos mitos é
freqüente a iniciativa das mulheres “em matéria de amor, de casamento e de divórcio”, e
que os homens têm um comportamento envergonhado, associado a uma personalidade que
recusa a entrada plena no mundo adulto, representando pelo casamento. O autor chega a
associar o confinamento dos iòlò do sexo masculino a um objetivo de evitar a Casa dos
Homens e permanecer junto ao mundo materno. Em outro texto, Dietschy (1976:321) diz
que:

“(...) O comportamento mais reservado, quase tímido, do homem, principalmente


quando jovem – em comparação com o das mulheres – que faz parte das boas maneiras;
uma certa hesitação em contrair matrimônio, que, não raro, leva a moça a dar o
primeiro passo; a fuga do noivo (não da noiva) após a cerimônia do casamento; o “ideal
de solteiro”, já relatado por Krause; e a correspondente linguagem dos mitos de tempos
primitivos, (...) em que se fala de amazonas (como diríamos nós, os ocidentais), da
ignorância do ato sexual, da vagina dentata, até expressis verbis de frustrações do sexo
– (...) tudo isso indica que o homem tende para um tipo de personalidade que se poderia
descrever como a do puer aeternus, do eterno filhinho da mamãe.” (grifo do autor)

Em outro artigo, o autor (Dietschy, 1978:73) explica o “ideal de solteiro” pelos


temidos “serviços do matrimônio”. Eu diria que, mais do que uma personalidade masculina
de puer aeternus, o que está sendo enfatizado é a ligação dos homens com a casa e
parentes maternos, de modo que é preferencialmente o tio materno quem leva o seu
sobrinho, pela primeira vez, para a casa da futura esposa. Ele, aliás, vai carregado nos
ombros de seu tio, como se fosse a cabeça dele, assim como no ritual de iniciação
masculina, dando uma forma visível ao sentido do termo com que um homem chama os
filhos de suas irmãs: wara, “minha cabeça”.
Na condição de quem precisa ser cativado e seduzido para o novo e difícil status, o
rapaz torna-se a personagem central do ritual, aquele que é buscado e agradado de vários
modos pela própria sogra, embora seja ele quem terá que pagar aos afins depois. Mesmo
assim, ele continua retornando à casa da mãe, por um bom tempo, não suspendendo nunca
a sua ligação com ela. Como disse Donahue (1982:141) sobre o casamento Karajá, em uma

756
alusão ao “casamento por captura” praticado por outros povos, a impressão que se tem é
que o homem é que está sendo capturado. É notável também o simbolismo da sogra lavar a
cabeça do novo genro tantas vezes durante o ritual, quando se sabe que o genro é referido
pelos sogros como waralyby, “minha cabeça negra”. Talvez esse ato signifique uma
tentativa de purificação do seu status explícito e poluído de afim, associado
simbolicamente à cor “negra” de sua cabeça. Como já foi mostrado antes, tenta-se
neutralizar a afinidade de vários modos, de modo que os afins continuam a se tratar
reciprocamente, após o casamento, como “irmãos”, “tios”, “sobrinhos” etc.
Apesar desse papel de destaque do homem no ritual, ainda que não pela própria
vontade, as mulheres é que são as verdadeiras protagonistas das relações de aliança.
Melhor dizendo, o matrimônio é um assunto de mulheres, em especial as mais velhas, do
início ao fim. São elas que conhecem as genealogias a partir das quais serão escolhidos os
parceiros ideais, que negociam o casamento com as outras famílias, que comandam a
organização do ritual, que dão início ao ritual, que ensinam o procedimento ritual correto
aos filhos e que “disputam” entre si pelo rapaz: a mãe retorna com o filho para a sua casa,
várias vezes, enquanto a sogra busca o genro indeciso e tenta seduzi-lo para mudar de casa.
Segundo Krause (1943a) e Bueno (1975), é a mãe da noiva Karajá que decidia se aceitava
ou não o casamento ou quem escolhia o noivo. Donahue (1982:143) já havia dito que,
entre os Karajá, o casamento é uma “troca entre mulheres”, em que as mães e avós
negociam toda a cerimônia e os homens é que se mudam de lugar. Lima Filho (1994:132)
confirma Donahue e diz que são “as mães e as avós (tanto materna quanto paterna) que
manipulam os casamentos da aldeia”.
Além disso, o casamento Javaé está associado a uma estrutura mítica de troca entre
dois grupos de irmãos, os fundadores das metades cerimoniais, de modo que se trata de um
homem pagando a outros homens pelo sexo com a irmã ou filha cedida. Mas, como
veremos adiante, em termos simbólicos, a esposa e a sogra é que são as credoras do serviço
da noiva, porque a alteridade – o Outro com quem se troca – é feminilizada. No ritual do
casamento, assim como nos tempos míticos, a ação social decorre de uma iniciativa
feminina (a iniciativa da sogra em começar o ritual) que desestrutura uma ordem
paradisíaca anterior, à qual os homens apenas reagem tentando recuperar parte do que foi
perdido (assumindo uma posição menos desconfortável na casa dos afins com o tempo).

757
Capítulo 10

Exogamia e reciprocidade na casa dos afins

10.1. O pagamento pela vagina

As relações de produção dentro da família nuclear e da família extensa têm como


paradigma mítico as relações de Tanyxiwè com a família estrangeira de sua esposa
Myreikò, para quem o herói teve que conquistar o sol e vários outros bens da humanidade
atual em troca do sexo que o maravilhou e que ninguém conhecia antes. O sol, desde então,
é conhecido por todos como Myrèikò tykòwy, “o pagamento pela vagina de Myrèikò”.
Surpreendentemente, as prestações matrimoniais associadas à uxorilocalidade não são um
tema enfatizado ou descrito em maiores detalhes nas etnografias sobre os Karajá, embora
Bueno (1987:196) tivesse notado que a “submissão do homem” à família de sua mulher é
representada pelo mito do herói Karajá (Kanyxiwè). Pétesch (2000) fala de uma estrutura
de aliança baseada na troca de sexo por alimentação, assim como entre os Bororo (Crocker,
1985). Toral (1992:108) menciona a tensão estrutural da “relação genro-sogro” e Lima
Filho (1994:106) relata que o “‘genro’ tem como obrigação social sustentar a casa da
‘sogra’”. Em termos gerais, a ênfase dada ao serviço na noiva entre os Javaé – ou a
importância da contribuição material de um homem aos seus afins – parece ser maior do
que aquela descrita nas etnografias clássicas sobre os Jê-Bororo.
As prestações matrimoniais são referidas pela palavra tykòwy, já mencionada,
traduzida pelos Javaé como “pagamento (kòwy) pela vagina (tyy)” ou o “preço da vagina”.
Também são conhecidas pela expressão hawyky tybòrò kòwy, literalmente “pagamento
pelas costas (bòrò) da vagina (tyy) da mulher (hawyky)”. É para ter acesso a essa parte
interna do corpo feminino, abaixo do seu umbigo, que os homens devem compensar
materialmente os seus afins. A palavra kòwy é semanticamente complexa, pois ela é
associada a algum tipo de retribuição ou compensação, podendo ser utilizada no sentido
trivial de “troca”, mas também tem o sentido de “vingança”, “revanche”, “devedor” ou
“inimigo”, como já foi dito antes. Na expressão iburu kòwyrare, “retribuição (kòwy) pelo
choro (iburu)”, que designa o choro ritual que se retribui a alguém que chorou por um

758
parente próximo, a palavra kòwy tem o sentido básico de “troca”. O mesmo ocorre nas
cerimônias funerárias, em que certas atividades desempenhadas pelos afins de um morto,
como carregar o corpo ou enterrá-lo, geram uma retribuição (kòwy) equivalente pelos
parentes do morto.
Aqueles que realizam prestações matrimoniais, na condição explícita de afins
devedores, podem ser referidos como tybòrò kòwy, “pagadores das costas da vagina”, o
que tem o sentido de “devedores da vagina”. Por outro lado, os inimigos herdados através
das gerações e que lutam entre si nas lutas rituais também são denominados kòwy, de modo
que os tybòrò kòwy também são “os inimigos das costas da vagina”, assim como a palavra
tykòwy, literalmente, pode ser traduzida como “inimigo da vagina”. Kòwy é tanto o
“inimigo” em si como a “revanche” ou “vingança” contra os inimigos. Uma pessoa é
ensinada desde pequena a identificar os inimigos da família ou os seus descendentes,
aqueles a quem se deve “retribuir” por um ato ofensivo do passado, em especial a morte de
um parente. O inimigo, assim, é alguém a quem se está ligado por algum tipo de
reciprocidade, ainda que vingativa, assim como na relação com os afins. Pode-se especular
que a dívida em relação aos doadores de mulheres, apesar do contexto de reciprocidade, é
pensada como uma relação de inimizade implícita, razão pela qual as relações de afinidade
adquirem um caráter tão tenso e formal entre os Javaé.
Os Bororo (Crocker, 1985:112) e vários outros grupos indígenas (Fausto, 1999)
utilizam a mesma palavra para expressar tanto “vingança” quanto “compensação”. Apesar
dessa equivalência de sentido em várias sociedades, Fausto propõe uma dissociação da
noção de vingança ou revanche, como um tipo de “pagamento”, do conceito de troca
propriamente dito, diferenciando o fenômeno da guerra, cuja troca de violência opera em
desequilíbrio perpétuo e baseia-se em uma projeção para o futuro, do conceito de
reciprocidade simétrica, que teria uma função restauradora do equilíbrio social, entre
outros motivos. A autor propõe essa dissociação especialmente no caso das sociedades em
que a predação guerreira tem função central, distinguindo-as do caso alto-xinguano, por
exemplo, em que a troca pacífica e a circulação de bens têm papel preponderante. Os Javaé
possuem o conceito de vingança, mas este não está associado a uma lógica guerreira ou ao
cultivo sistemático de relações agressivas com a exterioridade, ao contrário. Dentro da
sociedade, a vingança deveria ocorrer somente em momentos disciplinados e aprovados
socialmente, como nos choros e lutas rituais.

759
É sugestivo que a compensação pelo sexo seja formulada com a mesma palavra que
traduz a inimizade e a revanche entre parceiros de luta, uma vez que o sexo é o responsável
por desencadear o processo mortal dos corpos. Como já foi dito, as lutas cerimoniais se
dão de acordo com um modelo mítico de luta entre dois grupos de irmãos e irmãs,
associados ao surgimento das metades cerimoniais. Embora na prática os homens devam
evitar a confrontação com os afins efetivos e as metades não regulem a troca matrimonial,
assim como é vedado o arranjo de casamento entre parceiros rawyòna (primos cruzados
distantes) de famílias que são inimigas, o modelo simbólico é de luta entre primos
cruzados distantes, como no alto Xingu (Gregor, 1977), entre aqueles com os quais se troca
irmãs. Assim, o “inimigo” de luta é, metaforicamente, o mesmo para quem se deve
retribuir materialmente. No mito fundador do Kwarìp alto-xinguano (Agostinho, 1974:16),
tem-se a transformação de inimigos potenciais em aliados por casamento “mais ou menos
hostis”.
No caso Javaé, parece-me que a noção de vingança ou revanche é efetivamente
associada ao conceito de troca, porque a reciprocidade tem um potencial mortal, tema
central da mitologia; e porque que a tensa relação entre afins, mediada por uma série de
regras formais de convivência, implica na subordinação real do devedor aos credores (ver
Turner, 1979a), concebidos como inimigos simbólicos entre si, embora na prática também
vivenciem uma sólida relação de cooperação mútua. As lutas rituais, sob este aspecto,
forneciam um importante mecanismo de redução da tensão acumulada nas relações de
afinidade cotidianas. A mitologia atribui à troca, às relações de reciprocidade entre afins, o
início da condição mortal e perecível dos corpos, de modo que a retribuição pelo sexo tem
o sentido simbólico de retribuição aos inimigos que causam a morte, ou seja, de vingança,
assunto a ser retomado.
Nenhum ritual ou aspecto relevante da organização social poderá ser compreendido
em maior profundidade sem se estabelecer as suas conexões com as relações de produção e
reciprocidade. Os Javaé dizem explicitamente que toda a população de uma aldeia é
alimentada por causa da vagina das mulheres. A Dança dos Aruanãs e o ritual de iniciação
masculina só existem porque os vários convidados celestes e subaquáticos vêm dançar no
nível terrestre com o objetivo de serem alimentados pelos humanos. Como já foi dito, os
aruanãs são trazidos para conhecer o nível terrestre e, principalmente, para “comer o
tykòwy de suas mães”, ou seja, os alimentos que sustentam o ritual. O mesmo vale para os
mascarados que representam os estrangeiros, que também vêm aqui para se alimentar da

760
comida que um homem produz para os seus afins e que circula pela aldeia durante os
rituais, chamada de tykòwy rasy, “comida (rasy) oriunda do preço da vagina (tykòwy)”. Do
mesmo modo, os worosy subaquáticos comparecem ao ritual de iniciação masculina para
comer o tykòwy das mães dos meninos que serão iniciados, os jyrè.
No aconselhamento ritual aos recém iniciados, os worosy dizem aos jovens que não
se deve revelar os segredos masculinos, porque a comida que é oferecida na Casa dos
Homens existe por causa dos aruanãs, que são alimentados aqui por seus “pais”
cerimoniais durante um ano. É dito que, sem os aruanãs, a Casa dos Homens não vai mais
receber a comida ritual que é consumida por todos os homens reunidos. A iniciação
masculina não ocorre em função de uma determinada idade biológica, associada às classes
de idade, como entre os Xavante (Maybury-Lewis, 1984) ou Timbira (Nimuendaju, 2001),
mas depende antes de tudo da disponibilidade econômica dos pais de um menino para
realizar o ritual. Desse modo, os jovens que se iniciam juntos, em um ano, podem ter
idades variadas, de 8 a 18 anos, por exemplo 1 . No mito sobre as leis instituídas pelos dois
xamãs Wèrè, o tradutor explica que:

“(...) Se uma pessoa fosse virgem e deixasse de ser virgem, uma moça, era uma coisa
devastadora, a aldeia inteira teria que pagar por isso. Porque tyy (vagina)... todo mundo
come através disso, (todo mundo) depende do tyy. É sagrado, é uma coisa da aldeia
inteira, que é a comida.”

A virgindade feminina é tradicionalmente valorizada, como já notaram Ehrenreich


(1948), Krause (1943a) e Donahue (1982) entre os Karajá, embora nos dias de hoje não se
tenha o mesmo controle sobre os jovens. Uma moça que deixa de ser virgem antes do
casamento ou que tem muitos amantes “não vai ter o tykòwy certo”, ameaçando a sua
família com a perda de um potencial pagador do preço da vagina (ver Fénelon Costa, 1978,
sobre o mesmo entre os Karajá). Ouvi de um Javaé que quando uma menina vira “moça”
(ijadoma), depois da primeira menstruação, toda a família está “esperando para comer o
tykòwy dela quando ela casar. Por causa disso que tyy é rubuna”. As crianças crescem
ouvindo de suas avós que as vaginas (tyy) causam a morte por feitiço (rubuna), no sentido
de que o sexo com uma mulher solteira ou fora do casamento é perigoso, podendo levar à

1
Comparando-se com os Jê-Bororo, há uma maior similaridade dos Javaé com os Bororo (Crocker, 1985),
mais uma vez, pelo fato destes últimos associarem, com maior ênfase que os Jê, a realização de suas
principais cerimônias às prestações alimentares, embora estas não pareçam ter o mesmo peso que entre os
Javaé.

761
morte. Os xamãs têm “ciúme” das mulheres de sua família e matam com feitiços aqueles
que praticam o sexo casual que não gera o pagamento devido aos parentes da mulher 2 . A
morte de grande número de pessoas em uma aldeia, antigamente, ainda hoje é atribuída aos
rubunahaky, “grandes feitiços” originados da ira de um xamã por causa da vagina das
mulheres.
Todo tipo de sexo, dentro ou fora do casamento, pressupõe uma retribuição (kòwy)
dos homens para as mulheres. A prática de sexo casual pelas mulheres, antes ou fora do
casamento, é fortemente condenada socialmente porque implica na perda de controle do
grupo familiar sobre o pagamento esperado. No sexo pré ou extramarital entre amantes,
apenas as mulheres recebem algo de seus parceiros, enquanto as relações sexuais entre
marido e mulher, regulamentadas socialmente, implicam nas prestações matrimoniais para
os sogros e cunhados. Na prática cotidiana, as mulheres têm uma grande liberdade em
relação à própria sexualidade, embora não seja ostentada em público, praticando
veladamente o sexo com outros parceiros que não o marido.
A vagina, entretanto, é pensada como algo que pertence ao grupo familiar, que
valorizava o casamento arranjado, a monogamia e a virgindade como a sua mais
importante moeda de troca. A vagina de uma mulher é referida como watyreny por sua
família de origem, “a vagina de todos nós”, porque é por meio dela que todos vão se
alimentar. Os parentes de uma mulher também dizem watyreny ikòwywire, “ele (o marido)
está pagando bem pela nossa vagina”, ou watyreny ikòwyhàkyre, “nossa vagina recebe
muito pagamento”. Os irmãos reais e classificatórios próximos, em especial, são
considerados os “defensores das vaginas” de uma mulher, como no mito de Ijanakatu,
mais do que o próprio pai, embora os genitores sejam tidos como os verdadeiros credores
do serviço da noiva.
As mulheres que se casam pela primeira vez ainda virgens e têm o comportamento
recatado esperado são conhecidas como ijadoma kyrakõ, “moça que não foi rasgada”,

2
A questão dos xamãs é mais complexa, pois se diz que eles “têm ciúme” – e matam por isso – tanto das
mulheres aparentadas como das mulheres jovens e bonitas em geral. O sexo é a principal moeda de troca não
só entre afins, mas entre uma pessoa e um xamã. É reconhecido amplamente (ver Rodrigues, 1993) que o
modo mais comum ou cobiçado pelos xamãs de pagamento em troca dos seus serviços como curador ou
matador, assunto mantido nos bastidores, é ter relações sexuais com as mulheres desejáveis da família
daquele que encomenda um serviço. Os Javaé fazem a diferença entre tykòwy, o “pagamento pela vagina”
resultante do casamento, e o tykykòwy, o “pagamento ou troco (kòwy) pela pele/corpo (tyky)”. Neste último
caso, as atividades xamânicas, o que pode incluir a cura de um parente próximo, o assassinato de um inimigo
ou mesmo a suspensão de uma punição originada na transgressão dos segredos rituais masculinos, é que são
o pagamento ou troco de um xamã aos serviços sexuais prestados pelas mulheres ou homens desejados (no
caso de xamãs homossexuais).

762
ijadoma tyhy, “moça de verdade”, ijadoma wèdèkõ, “moça que não foi penetrada” ou
ijadoma labuèrykõ, “moça que não conhece o desejo sexual”. O próprio conceito de
ijadoma, classe de idade da mulher anterior ao casamento, independentemente de qualquer
adjetivo adicional, tem tradicionalmente uma conotação de pureza sexual. Os rapazes
virgens são weryrybò hukõ, “rapaz sem desejo sexual” ou weryrybò huèrykõ, “rapazes que
não conhecem o desejo sexual”. As mulheres assim conhecidas não andam pela aldeia, o
que hoje em dia é cada vez mais raro, e nunca foram tocadas por nenhum homem, que as
vêem apenas à distância, quando dançam com os aruanãs ou quando estão acompanhadas
de seus parentes. Quando um homem se casa com uma virgem, o casamento mais
valorizado de todos, ele deve aos pais dela vários tipos de pagamento pelo acesso ao seu
corpo, embora o principal e mais conhecido seja o tykòwy.
A mãe de uma mulher diz aos seus parentes, quando o genro lhe traz peixe ou caça,
que os produtos são tyky kòwy, “pagamento pelo corpo ou pele” (que aqui não se confunde
com o pagamento ao xamã), huky kòwy, “pagamento pelos seios”, rukuxadè kòwy,
“pagamento pela parte interna das coxas”, wèroko kòwy, “pagamento pelo fim da barriga”,
binõ rudè kòwy, “pagamento pelo umbigo”, hetxidè kòwy, “pagamento pelas nádegas”,
wètya kòwy, “pagamento pelo meio da barriga”, entre outros pagamentos pelo corpo da
filha. Os sogros de um homem são considerados os credores legítimos da compensação
devida, além da esposa, porque se diz que eles “sofreram muito” para ter e criar a filha. O
pagamento existe para retribuir o sofrimento da sogra no parto que deu origem à esposa, o
sacrifício do sogro que praticou jejum alimentar durante o resguardo, o trabalho e o
cuidado que ambos tiveram para criar a filha durante muitos anos. Mas a primeira roça que
um jovem marido planta e a primeira canoa que fabrica são chamados de ijadoma tyky
kòwy, “pagamento pelo corpo da moça”, e considerados um pagamento específico para a
esposa pelo fato dele ter sido o primeiro homem a tocar em seu corpo.
Principalmente nos choros rituais, uma mulher refere-se aos seus irmãos e primos
bilaterais próximos como watykòwy rasydu, “os que comem a comida (rasydu) que é
devida em troca (kòwy) da minha vagina (waty)”. Cabe a eles proteger e defender suas
irmãs nos conflitos. Ocasionalmente, seus tios bilaterais também podem ser assim
referidos. Uma mulher só espera proteção dos maridos caso não tenha irmãos ou primos
vivos. Do mesmo modo, uma esposa só defende o marido, excepcionalmente, caso ele não
tenha irmãs e primas vivas, reforçando-se o elo de um homem com a casa materna. Apesar
do cognatismo, os irmãos classificatórios “próximos” tendem a ser aqueles ligados por um

763
vínculo matrilateral, com quem se conviveu proximamente na casa natal. O termo
wasèrikòrè, “filho da minha mãe”, pode ser aplicado a todos os irmãos e primos bilaterais
próximos, mas ele indica que essa proximidade social – que é também espacial – está
simbolicamente associada aos parentes uterinos. É tido como algo incestuoso e motivo de
escândalo um homem ter ciúmes da sua mãe, mas é socialmente aceitável e até estimulado
o ciúme/controle da vida sexual das mulheres solteiras ou separadas por parte de seus
irmãos reais e classificatórios próximos.
Essa relação é expressa com clareza nos mitos dos irmãos Ijanakatu, considerados
os “defensores das vaginas” de suas irmãs. Cabe aos irmãos reais e classificatórios
próximos o direito de bater em algum homem que tenha tido relações sexuais extra ou pré-
maritais com a sua irmã. Ter relações sexuais com as irmãs reais e classificatórias
próximas do wèdèdu (“o que penetra sexualmente”) também é parte desse direito de
vingança. Do mesmo modo, eram os irmãos e primos de uma mulher, e não o seu esposo,
que deveriam lutar para “descontar a raiva” caso ela fosse levada para o estupro coletivo na
Casa dos Homens, do qual estavam eximidos de tomar parte. Nas histórias sobre
assassinatos ocorridos desde a re-fundação de Canoanã, praticados por homens de caráter
especialmente violento e bastante recriminados socialmente, são comuns aquelas que
tiveram como pretexto a “defesa da vagina” das irmãs ou primas, que é apresentada como a
causa dos conflitos. A vingança (kòwy) em nome das irmãs ou primas (lery) chama-se tery
kòwy. Lima Filho (1994:135) diz que o pai e os irmãos de uma mulher Karajá têm o direito
e a obrigação de se vingar em caso do marido abandoná-la, ocasião em que o “genro ou
cunhado é agarrado pelos cabelos e ganha várias pauladas nas costas”.
Nos choros rituais, a mulher defende os seus irmãos e primos próximos, e não o seu
marido, e é a eles que ela pergunta alguma coisa a respeito da Casa dos Homens, como o
dia em que é proibido andar pela aldeia, por exemplo. Também é para os primos ou
sobrinhos que ela “entrega” uma composição própria de música de aruanã, que pode ser
cantada apenas por eles. Em termos gerais, espera-se que o vínculo afetivo e de
solidariedade entre uma pessoa e seus parentes próximos seja muito mais forte do que com
o cônjuge, o que não impede de haver casais muito ligados afetivamente. No episódio
famoso em que um homem e o irmão classificatório próximo de sua esposa mataram-se
reciprocamente, ocorrido há algumas décadas, causou escândalo na aldeia que a mulher
defendeu o próprio marido durante o conflito armado, e não o irmão. Em 1990, ouvi dos
jovens Javaé, mais de uma vez, comentários de espanto frente às novelas brasileiras, uma

764
novidade recente, em razão de sua ênfase no amor romântico ou na entrega afetiva sem
limites entre estranhos.
Os irmãos e primos próximos também são referidos por uma mulher como
walabuna, “meu labuna”, embora a palavra seja usada preferencialmente para os irmãos
classificatórios distantes. As irmãs e primas de um homem podem ser referidas por ele
como wadidi, que literalmente é “minha neném”. Nenhum dos dois termos deve ser usado
como vocativo. Literalmente, a palavra walabuna, que tem uma perspectiva feminina,
porque labu é o desejo sexual das mulheres, significa “lugar (na) do meu (wa) desejo
sexual (labu)”. O lugar onde elas se deitam para ter relações sexuais é chamado de labuna
das mulheres, assim como são labuna das mulheres os irmãos e primos próximos – o que
tende a ser os parentes uterinos – que têm o direito de receber o pagamento que é gerado
nesse lugar. Walabuna não é um termo jocoso, ao contrário, sendo usado pelas mulheres
como uma referência respeitosa aos primos próximos com os quais não é recomendado o
casamento.
A maior desonra que pode acontecer a uma esposa é ter um marido preguiçoso
(birèdu) ou avaro (hetxirò) e não receber a compensação devida, o que se torna motivo de
xingamento para ela e seus filhos (itykòwykõ, “sem pagamento pela vagina dela”). Uma
mulher de vida sexual livre, que não recebe prestações matrimoniais regulares, ouve dos
parentes que a recriminam: “atykòwy tahudi hãbu myteamyhytè”, algo como “você já
recebeu seu pagamento pela vagina e agora pode fazer sexo com os homens”. Quando uma
mulher se casa novamente, ela continua tendo o direito de receber as prestações
matrimoniais em seu novo casamento, seja ela viúva ou separada, mas não há a mesma
cobrança social para que o marido seja tão bom pagador como aquele que se casou com
uma virgem ou alguém que se casa pela primeira vez. Tanto a primeira esposa de um
homem (hawyky tyhy, “esposa de verdade”) quanto as esposas posteriores (biradudu, “as
que estão juntas”), em um casamento poligâmico, têm o mesmo direito de receber a sua
compensação matrimonial.
Todas as filhas de um homem, casadas ou não, deveriam morar por todo o ciclo de
vida junto aos pais, acompanhadas dos maridos e filhos respectivos. As casas antigas (iny
heto) eram bem maiores do que as atuais e tinham um formato parecido com a Casa
Grande que é construída no ritual de iniciação masculina, embora possuíssem apenas duas
portas. Em Fénelon Costa & Malhano (1987) há uma descrição detalhada sobre a forma
das antigas e atuais casas Karajá. Nas aldeias antigas não era comum a existência de ruas

765
paralelas entre duas ou mais fileiras de casas, como na Canoanã atual, mas apenas uma
única fileira de casas ao longo do rio, como na maioria das aldeias Javaé. Entretanto, não
eram comuns tantas casas como atualmente, porque as existentes eram maiores e
abrigavam um número maior de pessoas. Segundo Toral (1992), cerca de 20 pessoas
habitavam cada casa no tempo da visita de Krause, em 1908, em contraste com a média de
5 pessoas em 1992. Além disso, as casas eram construídas bem próximas uma das outras,
opondo-se à Casa dos Homens, do lado do mato. No começo de Canoanã, na década de 50,
as casas ainda seguiam o estilo tradicional.
A construção das grandes casas com muito esmero e sua renovação periódica eram
obrigações dos genros de um homem, parte do tykòwy devido à esposa e afins. Caso
fossem pequenas ou mal acabadas, os filhos do construtor poderiam se xingados em razão
da preguiça do pai. Um homem morar separadamente de seus sogros era e ainda é
considerado como um sinal de avareza bastante recriminado. Os mais velhos costumam
dizer, em tom de queixa, que os jovens de hoje estão agindo como os não-índios, que
fazem suas refeições separados dos sogros e cunhados. Atualmente, a grande maioria dos
homens continua seguindo o padrão da uxorilocalidade, mas há uma tendência crescente
para que os novos casais, com o tempo, morem em casas separadas, ainda que a maioria o
faça ao lado da casa dos pais da esposa. Da pesquisa realizada com todos os moradores de
Canoanã (1998) e Barreira Branca (2002), constatou-se que, nos 206 casamentos em que
foi possível obter informações a respeito, cerca de 80% dos homens praticavam ou
praticaram a uxorilocalidade, ainda que apenas 52,5% aos moldes tradicionais 3 :

• 52,5 % dos homens moravam na mesma casa dos sogros desde que se casaram ou
enquanto havia durado o casamento. Em alguns casos, os homens moravam com os
cunhados, pois os sogros haviam morrido.

• 14 % dos homens moraram por alguns anos (a maioria) ou menos na casa dos
sogros e depois construíram casa própria (para esposa e filhos) ao lado da casa dos
sogros.

3
Segundo dados de Toral (1992:69) sobre os Javaé, em 1978, na fase crítica de perda populacional, 50% das
casas de Canoanã eram compostas de famílias nucleares e apenas 37% por famílias extensas. Na pequena
aldeia Boto Velho, em 1983, o número de famílias nucleares subia para 72% das casas. O autor não revela
qual a porcentagem de casas construídas ao lado da casa dos afins, embora sugira que esta era a tendência
geral, em um movimento de “emancipação espacial” dos genros (1992:108). Os dados recentes sugerem a
retomada parcial dos padrões antigos. Sobre a uxorilocalidade Karajá e suas “numerosas exceções”, ver
Fénelon Costa (1978:44), que encontrou apenas 48,14% da população de Santa Isabel seguindo a regra estrita
em 1959. Lima Filho (1994:132) relata que a família nuclear que constrói sua casa ao lado da “casa da
sogra”, agora muito comum, passa a ter com esta uma relação meramente afetiva, não partilhando mais os
alimentos.

766
• 2,5 % dos homens moraram desde o início em casa ao lado dos sogros ou de
parentes da esposa.

• 10,1 % dos homens moraram por algum tempo na mesma casa dos sogros e depois
se mudaram com esposa e filhos para uma casa afastada ou próxima de seus
próprios familiares (casa dos pais, na maioria dos casos).

• 20,5 % dos homens não moraram na casa dos sogros nem ao lado em nenhum
momento: na grande maioria dos casos, porque os sogros já haviam morrido; em
alguns casos, porque não havia parentes da mulher morando na aldeia ou porque a
esposa era branca ou de outra etnia; em outros casos, porque eram uniões
reprovadas socialmente (com a sogra, com a meia-irmã ou com alguém de outro
grupo étnico). Em 3 casos, o homem não morou junto porque era um casamento
poligâmico, em que a segunda esposa foi levada para morar na casa da primeira.

No que se refere às prestações matrimoniais propriamente ditas, com informações


obtidas em um universo de 199 casamentos das duas aldeias referidas, constatou-se que
92,9 % dos homens prestavam o serviço da noiva na época ou prestaram enquanto durou o
casamento. Isso não significa que as prestações foram feitas com o mesmo rigor e
regularidade antigos, mas apenas que elas não deixaram de existir. Dos 7% restantes, a
maior parte referia-se a casamentos muito recentes, em que os maridos eram ainda muito
jovens, ou que duraram pouquíssimo. Alguns casos eram de pessoas reconhecidamente
sovinas e um caso era de um não-índio casado com uma mulher Javaé. Os Javaé dizem que
“todo mundo sabe” quem trabalha ou não para os afins. Dos que compensaram ou
compensavam materialmente os afins na época:

• 75,1 % o fizeram tanto para a esposa quanto para os sogros e cunhados.

• 24,8 % o fizeram apenas para a esposa (na maior parte dos casos, os sogros já
haviam morrido e os cunhados moravam longe; em alguns casos, o casal foi morar
em outra aldeia e, em outros, os maridos ou a esposa eram não-índios ou de outra
etnia; em cinco casos, o casamento ocorreu em idade mais avançada e o homem
pagou o serviço da noiva para a esposa e seus filhos adultos).

Quando nasce uma criança do sexo masculino, a mãe e a avó materna se


compadecem, porque ela “vai sair da casa delas e vai sofrer, vai trabalhar tanto!”, nas
palavras de um Javaé. O apoio político de um grande número de afins é fundamental para
um fundador ou chefe de aldeia, mas é comum que as mães de homens aconselhem a eles
que se casem com mulheres órfãs ou pobres de parentes, na tentativa de negar a

767
uxorilocalidade e as conseqüentes prestações matrimoniais. Quanto mais prestigiada, forte
politicamente ou rica de parentes for a família de uma mulher, menos chance o homem terá
de alcançar esse objetivo. Ao se casar com uma órfã, por exemplo, ele pode trazê-la para
morar com sua mãe e assim evitar os conflitos e as tensões que um número grande de afins
pode trazer. A possibilidade de negação de uxorilocalidade parece estar associada aos
filhos de importantes líderes políticos. Embora os Javaé não reconheçam essa como uma
prática regular, e eu não possua uma estatística a respeito, atualmente há alguns casos
significativos de filhos de importantes líderes políticos ou caciques que praticaram a
virilocalidade depois de um tempo morando junto à família da esposa ou mesmo a
exogamia local, levando a esposa para a sua aldeia de origem, onde o próprio pai é
cacique. Em qualquer caso, entretanto, a negação da uxorilocalidade é considerada uma
prática “feia”, de baixo status.
No começo do casamento, tanto o marido quanto a mulher têm muita “vergonha”
(ixyru) de seus sogros respectivos, como no alto Xingu (Viveiros de Castro, 1977),
mantendo-se uma relação de respeitosa distância, em especial no caso do homem, que evita
conversar com seus sogros. Idealmente, um homem casado, principalmente nos primeiros
anos do casamento, deve se dirigir à casa de seus afins apenas para dormir, dedicando o
resto de seu dia às atividades produtivas ou cerimoniais. Nas horas restantes do dia, ele
permanece na casa de sua mãe ou irmãs, onde se sente mais à vontade. Apesar de ser o
principal responsável pela produção de alimentos, um homem evita até mesmo alimentar-
se com seus afins, como veremos a seguir, embora essas práticas tradicionais não sejam
mais seguidas com o mesmo rigor atualmente.
A sogra ou o sogro acrescentam o sufixo hony quando cumprimentam o genro que
chega à casa: “tatere ambo (está chegando) hony, wanybòsò (eZS)!”, enquanto o genro
responde acrescentando o sufixo ny: “rareri (estou chegando) ny, waladirà (MyZ)!”. Essa
é uma forma de tratamento de respeito das gerações antigas (hykyna rybè, “fala dos
antigos”) que é usada exclusivamente entre os sogros e o genro, não ocorrendo o mesmo
com a nora. É impensável alguém olhar nos olhos dos próprios sogros ou um genro
permanecer sozinho dentro de uma casa ou de um quarto com a sua sogra, por exemplo, o
que tem a conotação de intimidade sexual. Quando genro e sogra olham-se nos olhos,
supõe-se que a sogra está interessada no genro, e não o contrário, repetindo o tema mítico
das mulheres que tomam a iniciativa nas relações sexuais. As mães e avós aconselham aos

768
homens que também evitem andar em companhia das irmãs de sua esposa, seja para ir à
roça ou a outro lugar.
Mesmo que a esposa esteja presente, acredita-se que há um risco permanente dele
se envolver amorosamente com as cunhadas, o que é um tabu, embora talvez não tão
grande como envolver-se com a própria sogra. O homem deve manter uma relação de
distância com as cunhadas, evitando qualquer tipo de fala mais íntima, brincadeira ou
contato corporal. Antes, as mulheres casadas jamais saiam de sua casa desacompanhadas,
seja para defecar, tomar banho, ir à roça ou visitar algum parente, o que idealmente deveria
ser feito junto com o marido. A relação com os irmãos reais e classificatórios da esposa
também deve se pautar pelo respeito, não sendo adequado um homem fazer algum gracejo
ou piada sobre o seu cunhado na sua frente. Em termos gerais, deve haver uma tônica de
“respeito” em relação aos afins, que permanece enquanto dura o casamento.
Conforme os filhos de um casal vão nascendo, a vergonha ou a timidez vão
diminuindo, o que se dá paralelamente à crescente proximidade que surge com a
convivência. As relações de respeito estão relacionadas com o distanciamento próprio da
afinidade, mas também têm como pano de fundo o princípio da idade relativa. Os mais
velhos sempre têm uma maior autoridade, cabendo apenas a eles o direito de
aconselhamento ou repreensão. Essa ascendência moral, que é antes de tudo corporal, e o
conseqüente distanciamento, aplica-se a todo tipo de relação diferenciada por idade, seja
entre sogros e genro, pais e filhos ou mesmo entre irmãos. Não é aceitável que um filho se
dirija aos pais para repreendê-los ou dar algum conselho, o mesmo não sendo adequado no
caso de um irmão mais novo em relação ao mais velho. Excepcionalmente, as crianças ou
jovens de inteligência acima da média (kuladu bèdèraru) podem inverter essa relação
quando seus pais se comportam mal.
A hierarquia das relações de afinidade é expressa quando a família extensa viaja na
canoa fabricada pelo genro para uso de seus afins. Enquanto durar o casamento, a ordem
pela qual as pessoas se sentam na canoa será sempre a mesma. O sogro tem o direito de
ocupar a parte posterior e hierarquicamente superior da embarcação, a sua popa (toru), de
onde controla a navegação, sentado, com um remo. Imediatamente à sua frente, vai sentada
a sua esposa. O lugar à frente dela, que corresponde ao meio da canoa, é da filha do casal.
Na frente da filha vão sentados os seus filhos. O marido da filha estará na proa (jura) da
canoa, em pé, realizando o esforço físico maior enquanto finca no fundo do rio a vara que

769
ajuda movimentar a canoa. Quem realmente puxa a canoa é o genro, que nessa posição é
conhecido como jura dudu, “o que rompe ou abre” o caminho.
Na hora de dormir, um casal de marido e mulher deita-se em sua própria esteira,
enquanto o sogro e a sogra do marido deitam-se juntos com os netos de ambos os sexos,
ainda crianças, em uma outra esteira. Os filhos pequenos do casal também podem dormir
com seus pais, embora o/a primogênito/a deva estar sempre junto/a da avó materna.
Quando uma filha do casal entra para a classe de idade ijadoma, após a primeira
menstruação, ela passa a dormir na esteira dos pais, junto de sua mãe. Já o filho
adolescente que entra para a categoria weryrybò, anterior ao casamento, tem o direito de
possuir uma esteira exclusiva para ele, que deve estar sempre muito limpa e não muito
distante da esteira de seus pais, preparando-se para a separação e mudança de casa que
virão após o casamento. Se um homem fica viúvo ou se separa, ele retorna para a casa de
sua mãe ou irmã e passa a dormir em sua própria esteira. Nas grandes casas antigas, as
várias famílias nucleares que coabitavam no mesmo espaço seguiam essa distribuição.
Com a substituição das casas grandes por casas menores e, mais recentemente, das esteiras
por camas, essas práticas antigas estão sendo alteradas.
Quando o homem tem filhos, ele passa para a classe de idade ijoi tyhy, “homem de
verdade” (ver Lima Filho, 1994, sobre os Karajá). O jovem pai pode ser conhecido como
ijoi tyhy bodu ou ijoi tyhy tymyra, “homem de verdade novo”, ou como tohokuy tyby, “pai
de recém-nascido”. Mais tarde, ele passa a ser referido como kuladu tyby, “pai de criança”,
ou kuladu labiè, “avô de criança”. A mulher casada, porém sem filhos, pertence à classe
de idade hãbu myheri, para depois do primeiro filho ser conhecida como tohokuy sè, “mãe
de recém-nascido”, kuladu sè, “mãe de criança”, ou kuladu lahi, “avó de criança” (sobre as
classes de idade Javaé, ver Rodrigues, 1993). Idealmente, o genro deve ter uma relação de
cordialidade respeitosa com seus sogros com o passar dos anos, devendo conversar com
eles sobre amenidades ou sobre as tarefas do dia, contar histórias engraçadas sobre os
outros etc. Assim como na relação com os cunhados, um homem não deve jamais fazer
comentários jocosos sobre os próprios sogros na sua presença, o que é ofensivo.
O principal defeito de um “genro ruim” (rikòkòrè tyby bina) é ser avaro ou
preguiçoso, mas aquele que está sempre com a expressão fechada, não se esforçando para
um convívio afável com os afins, é considerado uma pessoa muito desagradável. Em um
casamento arranjado, jamais seria escolhido como parceiro alguém mudo (irybèkõ), surdo
(tõhõtità) ou cego (iruètà). Um surdo tem maiores chances de se casar, mas apenas quando

770
procura, por vontade própria, um parceiro que o aceite. Entre os três, o que tem mais
dificuldades de se casar, mesmo depois de adulto, é aquele que tem problemas de fala. Os
Javaé dizem que ninguém quer se casar com um mudo, porque ele não tem como se
comunicar com os sogros na linguagem formal do dia a dia, o que é considerado um
impeditivo considerável. Do mesmo modo, um homem que tenha alguma deficiência física
grave dificilmente se casará, porque falta a ele a habilidade socialmente requerida de se
tornar um provedor. Em 1998, havia um homem, já de meia idade, que nunca havia se
casado, porque não tinha parte do braço desde que nasceu.
Quando o casal inicia a relação matrimonial, “o sogro manda na casa”, mas aqui
apenas no sentido de que é dele a iniciativa das tarefas masculinas, pois, como veremos
mais à frente, o exercício da autoridade doméstica é atribuído às mulheres de idade. Assim,
todas as solicitações do sogro devem ser atendidas prontamente pelo genro, a quem não
cabe tomar iniciativas ou argumentar em contrário. Mais do que isso, ao genro não cabe
sequer pedir a refeição que é feita com os alimentos que ele próprio trouxe, o que é tido
como desonroso para ele, devendo esperar o convite da esposa. Com o tempo, conforme
vão nascendo os filhos de um homem, ele passa a ter uma maior autonomia e uma relação
mais próxima com os sogros, embora a forma de tratamento respeitosa deva permanecer
por toda a vida.
Se o genro é um homem trabalhador, ele adquire respeito e autoridade dentro da
casa, tendo o direito e a obrigação de tomar a iniciativa para a realização das tarefas. Ele
pode se dirigir ao sogro formalmente e convidá-lo para uma “expedição de pesca e caça”
(bèdè tyi) ou pode convidar a esposa e os sogros para acampar no mato com o objetivo de
construir uma canoa, por exemplo, o que antes não era apropriado. Quanto mais velho vai
ficando o sogro, mais o genro vai assumindo a liderança das obrigações masculinas dentro
da casa. Na verdade, é uma expectativa de todos que o genro efetivamente assuma esse
lugar, de forma gradual, pois ele (e os filhos) poderá ser xingado como um fraco ou
incompetente (aõkõkõ, aõbinabina) se permanecer indefinidamente sob o comando de seu
sogro. Donahue (1982) e Bueno (1987) falam de uma transição gradual de
responsabilidade entre os Karajá e Lima Filho (1994:133) enfatiza que, embora um homem
tenda a ocupar o “papel de chefe residencial” com o tempo, na casa da esposa, ele não
deixa de continuar prestando apoio político ao seu pai.
Os Javaé dizem abertamente que as tarefas de um homem depois do casamento são
muito mais difíceis, tanto em qualidade como em quantidade, do que as tarefas de uma

771
mulher, o que é representado na mitologia pelo árduo sacrifício do herói Tanyxiwè.
Considera-se que as tarefas masculinas implicam em esforço e riscos corporais aos quais as
mulheres não se submetem, como ser picado por marimbondos na coleta de mel, cortar-se
com um facão na preparação do terreno para a roça, ser ferroado por uma arraia ou
mordido pelas piranhas durante uma pescaria. Faz-se uma nítida separação entre as
atividades masculinas fora de casa e as atividades femininas dentro de casa, embora estas
últimas não se restrinjam apenas ao espaço doméstico. O trabalho externo é
simbolicamente análogo à saída mítica de um espaço interno mágico e fechado para um
espaço externo e aberto, onde se encontra o risco da morte e a necessidade de trabalhar
para o próprio sustento. O trabalho feminino é considerado importante e gera prestígio para
as mulheres, mas culturalmente o trabalho masculino é muito mais valorizado. Em seu
estudo sobre as mulheres Karajá, Bueno (1987:106) atenua essa visão notando que, embora
as tarefas masculinas “exijam maior energia física, elas têm intervalos de descanso
maiores. A mulher, por outro lado, trabalha de maneira mais regular. Seu trabalho é
repetitivo, e, no total ela trabalha mais horas que o homem”.
Um homem só será considerado inytyhy (“honrado”) e, assim, respeitado dentro da
casa dos afins, se ele trabalhar sem preguiça e demonstrar generosidade. A grande
recriminação da preguiça entre os Karajá é ressaltada por Bueno (1987). Os inytyhy de
antigamente eram grandes lutadores (ijèsudu) ou corredores (ijaradu), eram agricultores
dedicados (aõidu), construtores de canoas (hãwòdu), construtores de casas (hetowinykydu),
pescavam todo dia, traziam lenha com freqüência, sabiam fazer os objetos masculinos,
como wèriri (cesta pequena de palha), kòri (abanador), behura (para carregar produtos
volumosos ou pesados) etc. No começo do casamento, o genro acompanha o sogro na
maioria das atividades masculinas, devendo seguir as orientações do pai de sua esposa sem
questionamentos quando é solicitado a participar de expedições de pesca, caça ou coleta de
material para confecção ou construção de algo. Quando o sogro derruba uma árvore para
fazer uma canoa, por exemplo, é dever do genro virar o tronco para o lado a ser escavado.
Absolutamente tudo que um homem casado produz é tido como compensação
matrimonial, devendo ser entregue aos afins ou ser usado por eles. Segundo os padrões
antigos, tudo que é recebido por um chefe político ou ritual, ainda hoje, como no caso dos
pagamentos que um chefe cerimonial recebe das famílias envolvidas pela realização do
ritual da Casa Grande, é considerado como parte do “pagamento pela vagina” que o chefe
em questão deve à sua esposa. Na ocasião da morte de um importante cacique Javaé, em

772
1989, incentivador do aluguel das pastagens, os moradores de Canoanã decidiram dividir
entre algumas famílias o gado que pertencia à comunidade, considerando que a viúva tinha
direito a receber metade do conjunto total. Lima Filho (1994:132) descreve a distribuição
que uma mulher Karajá faz dos bens produzidos ou adquiridos por seu marido, em especial
os alimentos, “o que muitas vezes é motivo para brigas entre o casal ou entre os grupos
familiares envolvidos”, uma vez que os homens reclamam que “acabavam sustentando (...)
outros homens”. A acumulação de bens materiais, um fenômeno recente por parte de
alguns, é atribuída ao fato da pessoa não distribuir o que tem aos sogros e cunhados.
Ainda é considerada uma grande desonra uma mulher solteira ou sem um marido
engravidar. Uma mulher assim é alguém sem o provedor das necessidades básicas do filho,
o que justifica o infanticídio aos olhos dos Javaé, uma prática ainda existente, porém em
franca decadência, em razão da desaprovação por parte da sociedade envolvente. As tarefas
masculinas tradicionais incluíam:

• Preparar a roça para o plantio que pode ser feito por ele ou pela esposa, dependendo
do tipo de produto a ser plantado.
• Coletar os produtos agrícolas mais pesados.
• Pescar e caçar.
• Buscar lenha.
• Coletar materiais diversos como mel, palha, barro, penas etc para uso dele ou da
esposa.
• Construir ou renovar a casa dos afins.
• Fabricar todos os objetos mencionados no mito de Tanyxiwè para uso dos afins:
pilão, canoa, remo, ralador de mandioca, pente, diversos tipos de cestos, arco e
flecha, lança, borduna, armadilha de pescaria etc.

Os genros dotados dessas qualidades adquirem prestígio e responsabilidade cada


vez maiores dentro de casa, aos poucos tomando o lugar de seus sogros. Os Javaé admitem
conscientemente que o início da ascensão social e política de um genro trabalhador dentro
da casa de sua esposa, quando ele já tem vários filhos, ainda que sejam crianças, ocorre
paralelamente ao início do declínio da posição ocupada pelo sogro, e assim
sucessivamente. Quando o genro torna-se ijoityhy raruna, “homem de verdade mais
velho”, ou seja, quando tem os primeiros netos, ele está no auge de sua ascensão, devendo
se responsabilizar completamente pelo bem estar material dos sogros muito velhos, caso
estes ainda estejam vivos. Ao mesmo tempo, ele está começando a receber o pagamento
devido pelos homens que casaram com suas filhas reais e classificatórias.

773
Na fase em que tanto o homem como a mulher já têm vários filhos e ambos
assumem plenamente as tarefas respectivas, os dois são conhecidos como heto wèdu
(“dono da casa”). Além de cuidar dos filhos, a mulher tem a obrigação de preparar todos os
alimentos que chegam à casa trazidos por seu marido, sendo apenas ajudada por sua mãe,
que com o tempo passa a atuar de modo cada vez mais periférico. O trabalho de uma filha
casada dentro de casa é tido como uma forma de compensação (kòwy) para os seus
próprios pais, uma retribuição devida pelo trabalho que tiveram em criá-la e educá-la.
Também faz parte dessa compensação entregar aos pais o que ela recebe como prestação
matrimonial. Assim como ocorre com o marido, espera-se que ela assuma o comando das
tarefas femininas aos poucos.
Logo no início do casamento, a jovem esposa tinha que aprender a dividir os peixes
em porções que eram distribuídas conforme as classes de idade, costume hoje em desuso.
A cabeça (ira) e o rabo (iwati) do peixe eram entregues aos homens e mulheres da classe
de idade dos velhos. A porção mediana do peixe (itya) cabia aos jovens em idade de se
casar, principalmente, às crianças e aos recém casados. Ao chegar de uma pescaria, por
exemplo, esperava-se que a esposa penteasse os longos cabelos de seu marido com cuidado
e, no fim da tarde, embelezasse o seu corpo com urucum, óleo de tucum e o açafrão
perfumado, para que ele seguisse belo e ornamentado para a Casa dos Homens. Depois das
refeições, era tarefa dela providenciar um recipiente com água e lavar as mãos de seu
marido.
Quando o homem traz algum produto para a casa de seus afins, principalmente no
começo do casamento, ele tem que entregá-los à sua sogra, dirigindo-se formalmente a ela,
que responde a ele no mesmo tom. No caso dos produtos agrícolas, que eram carregados
no grande behura, ele devia depositá-los na entrada da casa, ao lado da porta, para depois
comunicar à sua sogra que trouxe algo da roça. Ela respondia e então se dirigia à porta da
casa para trazer todos os produtos para dentro. Nas grandes casas coletivas antigas, sempre
que o genro chegava de uma pescaria, ele ficava em pé ao lado de um dos mastros (tòò)
principais da casa, esperando ser cumprimentado pelos presentes, para a seguir responder e
entregar o peixe para a sogra ou os cunhados. Só então ele podia sentar e descansar.
Em se tratando de peixe, tartaruga ou caça, conhecidos como waralyby rina, “o que
o meu genro matou”, tanto o sogro quanto a sogra devem se encarregar do preparo do
kobiku, as carnes ou peixes assados, quando o genro é ainda inexperiente. O sogro constrói
o kobikutò, o jirau onde o kobiku será assado pela sogra, tarefas que posteriormente devem

774
ser assumidas unicamente pelos jovens esposos. O mesmo ocorre com a lenha, que não
pode ser jogada de qualquer modo no chão, o que é ofensivo, mas depositada com cuidado,
sem barulho e devagar, “respeitando a sogra e a família da mulher”, segundo ouvi de um
Javaé. A lenha é chamada de hètona dos sogros, “a fonte de calor” dos sogros, e deve ser
entregue através de uma fala formal à sogra. Nas casas antigas, havia apenas uma única
fogueira para todos, onde todas as mulheres cozinhavam.
A esposa de um homem é conhecida durante o casamento como koworu wèdu, a
“dona da roça” que é plantada para ela como prestação matrimonial. Embora a maior parte
de suas atividades esteja circunscrita à preparação de alimentos e à criação dos filhos, cabe
a uma esposa plantar as sementes do algodão, urucum e açafrão que serão utilizados por
ela para fabricação de adornos (ywina) ou como perfumes (kysina) corporais dos parentes.
Essas sementes são hawyky dèbòna, expressão que literalmente significa “lugar (na) da
mão (dèbò) das mulheres (hawyky)”, mas cujo sentido é que elas são responsáveis por
armazená-las e plantá-las com suas próprias mãos, além de utilizar o seu produto no dia a
dia. O homem pode plantá-las se quiser, mas as esposas é que são consideradas as donas
dessas sementes. Tanto o homem como a mulher podem plantar batata, melancia, inhame,
mamão, amendoim, abóbora, entre outros, mas apenas os homens devem plantar banana,
mandioca, milho, cana de açúcar e abacaxi. Além disso, é o homem quem tem que preparar
o terreno para o plantio e manter a roça limpa de pragas, seus filhos podendo ser xingados
em caso contrário 4 .
A colheita dos produtos agrícolas é um direito das mulheres casadas, embora seja
obrigação do marido carregar os produtos mais pesados como mandioca ou banana. É
obrigação dele também fazer uma roça grande e mantê-la sempre limpa de ervas daninhas.
Segundo Costa Júnior (1999:67), “cada Javaé tem no mínimo duas roças – uma em
produção e outra nova”. Uma mulher viúva tem que plantar e carregar os produtos sozinha.
Em tempos de maior fartura, a esposa deve chamar suas irmãs e primas próximas para
acompanhá-la na colheita dos produtos, o que será retribuído da mesma forma. Nessas
ocasiões, a mulher vai caminhando na frente, sendo seguida por suas parentas convidadas
em um clima de alegria e confraternização. Ocasionalmente, ela também pode convidar as
esposas dos irmãos e primos ou dos seus tios, sendo considerado desonroso que algum
4
Ver em Krause (1942a), Donahue (1982) e Bueno (1987) uma descrição mais detalhada sobre o plantio das
roças Karajá. Para Donahue, é também uma atividade majoritariamente masculina, ao contrário da maioria
dos grupos indígenas. O autor apresenta a divisão de trabalho por sexo no que se refere à fabricação dos
objetos da cultura material, em sua maior parte obrigação masculina. Dietschy (1978:70) já havia dito que,
entre os Karajá, “o pai e marido arca com a responsabilidade principal da subsistência”.

775
parente tome a iniciativa de pedir para colher algo na roça. Faz parte da etiqueta esperar o
convite generoso para tal.
Todo ano, por volta de janeiro ou fevereiro, a primeira colheita de produtos como
melancia, milho, mandioca, entre outros, é conhecida como labuna rasyna, “comida dos
labuna”. As “famílias boas ou generosas” (inywii ou inytyhy) promovem um evento
chamado ralabuna myreri, “juntando os labuna”, conforme o amadurecimento da sua
própria roça. Nessa ocasião, após ser autorizada pelo marido, cabe à mulher convidar de
casa em casa os seus “irmãos e primos próximos” (labuna), preferencialmente, para comer
o alimento preparado. Ela separa os recipientes com comida dela, do marido e dos filhos
das vasilhas destinadas aos convidados. Antes, a refeição era servida em uma esteira que a
mulher fabricava especialmente para esse dia. Mesmo as mulheres já bem idosas
costumam convidar seus labuna igualmente idosos para essa refeição especial.
A “autorização” do marido, entretanto, é vista mais como um procedimento
meramente formal do que como uma prerrogativa dele, pois não é um direito masculino se
recusar a essa distribuição dos alimentos aos afins. Outros parentes “considerados”
próximos, como os tios e sobrinhos da esposa, também podem ser convidados para comer
o “pagamento pela vagina”. Não se convida, entretanto, primos ou parentes que praticaram
algum comportamento inadequado, como ter relações sexuais com alguém muito próximo,
por exemplo. Se o marido daquela que convida é costumeiramente generoso, ele é referido
pelos cunhados, de modo elogioso, como wara tyby wii (“pai do meu sobrinho uterino bom
ou generoso”).
Antigamente era comum que uma mulher casada convidasse seus “irmãos e primos
próximos”, com uma certa regularidade, para compartilhar com ela da comida preparada
que havia em casa, incluindo todo tipo de alimento, logo pela manhã. Embora não seja
propriamente o labuna rasyna, sempre que um homem trazia algum alimento de maior
valor para casa e em grande quantidade, como pirarucu, tartaruga ou pato selvagem, a sua
esposa deveria convidar os irmãos e primos para partilhar a refeição. Quando isso
acontecia, era parte da etiqueta apropriada que o marido se ausentasse para se alimentar
com a sua mãe ou alguma irmã em outra casa, ou se dirigisse para a Casa dos Homens,
deixando os cunhados à vontade. Antes de sair, ele falava formalmente à esposa: “pode

776
comer junto com os seus primos e não precisa guardar nada para mim” (wixinamy
inywiboho wana birosibèènykere) 5 .
Mas a esposa o aguardava, no fim do dia, com uma porção da comida para ele. Se
eles fossem recém casados, comeriam juntos apenas à noite, para o marido evitar o
embaraço causado pela presença dos cunhados ou sogros. Não era recomendado que o
marido pedisse pela comida nem que recusasse a que lhe era oferecida, mesmo se ele já
tivesse se alimentado antes na casa de sua mãe, o que seria considerado ofensivo pela
esposa. Nos dias de hoje é mais raro uma mulher convidar seus irmãos e primos para as
refeições, mas ainda acontece em algumas ocasiões especiais. As irmãs e primas próximas
também são convidadas por ela para partilhar o tykòwy recebido, mas o peixe ou a caça
devem ser preparados por elas próprias. Segundo Donahue (1982), é comum o homem
Karajá se alimentar na casa das irmãs ou da mãe.
Conforme o homem vai se familiarizando com os parentes de sua esposa, ele passa
a ser convidado pelos cunhados para acompanhá-los à Casa dos Homens, onde se juntam
no terreiro masculino (ijoina) para conversar e rir, contar e ouvir histórias. Entretanto,
apesar de uma maior proximidade, é sempre mantida alguma distância respeitosa. Um
homem pode ir até a casa dos irmãos da esposa e chamá-los quando vai haver alguma
pescaria conjunta de madrugada, por exemplo, mas ele não tem intimidade o suficiente
para visitar as casas de seus cunhados e famílias respectivas por iniciativa própria. Só é
adequado fazê-lo quando é convidado por sua própria esposa.
Em relação aos seus próprios irmãos e primos bilaterais próximos, um homem deve
sempre ser convidado por eles para acompanhá-los nas pescarias, nas caçadas, para buscar
lenha, ir à roça ou à Casa dos Homens. É tido como vergonhoso ser um hãbu sohodi, um
“homem solitário” que realiza suas atividades sozinho, pois a pessoa está mais exposta a
riscos no mato ou no rio e tem que trabalhar mais. Além disso, existe a conotação
indesejável da “pobreza de parentes”, que é acentuada no caso daqueles que moram com os
afins e que nunca são “resgatados”, digamos assim, por seus próprios parentes da situação
altamente constrangedora que é a relação de afinidade.
A relação de uma mulher com os parentes do marido, em especial os seus genitores,
também é marcada por muito acanhamento no início, de modo que a mulher evita visitar a

5
Em suas entrevistas a jornais da época (1912), o inspetor do SPI Francisco Mandacaru registrou, a respeito
dos Javaé, que “é costume quando casam, o marido passar a morar na casa do sogro retirando-se porém nas
horas das refeições das quaes elle vae se servir na casa paterna, e assim até virem a ter filhos, epocha em que
formam casa separada” (microfilme n° 324 da FUNAI, fotograma n° 10)

777
casa de seus sogros. Com o passar do tempo, ela começa a visitar a sogra acompanhada do
marido ou recebe convites da mãe e das irmãs dele para partilhar alguma refeição à noite.
Também é convidada para visitá-las no fim da tarde e assistir à Dança dos Aruanãs ou
apenas para conversar. Nesse momento do dia era comum (em 1990 e 1998) todas as
famílias reunidas sentarem-se nas esteiras em frente de suas casas. A sogra pergunta sobre
o filho à nora, como ele a está tratando, entre outros assuntos, sendo considerado
indelicado uma nora que permanece de cabeça baixa, sem saber conversar. Uma das
principais razões para se evitar o casamento entre jovens de pouca idade, antes dos 18 ou
20 anos, aproximadamente, era para dar tempo para que ambos desenvolvessem a
habilidade de se relacionar apropriadamente – com respeito, mas sem muita timidez – com
os seus sogros respectivos.
Ao se casar, o homem não tem direito de entregar aos seus próprios parentes nada
do que ele produz na roça ou nas pescarias e caçadas. Também não deve pedir à sua esposa
– a dona legítima de tudo que é produzido – para que ela o faça. Cabe a ele apenas contar
com a boa vontade e generosidade de sua esposa, que idealmente deve tomar a iniciativa de
partilhar algo do que recebe com a sogra e outros afins caso seja uma “nora boa” (rikòkòrè
sè wii). No começo do casamento, quando os sogros desejam comer algo da roça plantada
por seu genro, eles comunicam o seu desejo à filha e ela solicita ao marido que busque o
produto em questão. Quando os sogros de um homem já estão muito velhos, o genro
comunica a eles que podem buscar o que desejarem na sua roça ou então ele e sua esposa
trazem os produtos agrícolas para o casal idoso. Um homem trabalhador continua
plantando a sua própria roça mesmo em idade avançada, caso tenha condições físicas para
tal.
Com o passar dos anos, o genro adquire o direito de reservar metade da roça para o
seu próprio uso, ou seja, para a esposa, filhos e seus próprios parentes, sendo considerada
dos sogros a outra metade. Quando chega esse momento, o genro e sua esposa comunicam
aos pais dela que uma parte da roça será destinada a eles. O genro entrega à sogra,
guardando metade para si, as sementes que serão usadas na plantação. O que ele entrega
aos sogros não é uma roça já pronta, mas o terreno que será queimado e preparado por ele
para o próximo plantio. Depois dessa preparação, ele convida os sogros para acompanhá-lo
até o lugar e mostrar a eles, em detalhes, como será feita a divisão do terreno em que a
sogra poderá plantar as suas próprias sementes.

778
A metade reservada ao genro também é subdividida em porções conforme os seus
“donos”, pois tudo que é plantado na roça tem um rasyna wèdu, “dono da comida”. Trata-
se mais de uma divisão simbólica, entretanto, do que uma demarcação real da propriedade
dos produtos, que serão trazidos pelo homem e consumidos coletivamente. Assim, a roça
será dividida entre os filhos de um homem, sua esposa e sua mãe, de modo que cada um
sabe exatamente qual parte lhe foi destinada. Dos parentes dele, apenas a mãe terá um
lugar simbólico nessa divisão. O que foi plantado será conhecido como kuladu dela
rasyna, “comida da criança mais velha”, kuladu helykyna rasyna, “comida do segunda
criança”, kuladu tykana rasyna, “comida da criança do meio”, kuladu roko rasyna,
“comida da última criança” etc. A porção da esposa é chamada de kuladusè rasyna,
“comida da mãe de criança”, ou hawyky rasyna, “comida da esposa”. Por fim, existe uma
parte da roça conhecida como isè rasyna ou isè tòbò, “comida da mãe dele”. As
subdivisões também podem ser referidas pelo nome da pessoa, como “fulano rasyna”,
“comida de fulano”.
Os sogros, na sua metade respectiva, também destinam uma porção da roça aos
próprios netos. O homem que preparou o terreno, capinou, queimou, plantou e colheu,
entretanto, não é considerado como dono de nada. Na fase de plantação, ele avisa a cada
um dos futuros donos sobre a subdivisão feita por ele. Segundo Donahue (1982), que
enfatiza uma transição gradual da vida anterior para a vida de casado, no início do
casamento o homem Karajá trabalha também na roça do pai e tem o direito de distribuir o
peixe capturado entre a casa de origem e a dos afins. Pétesch (2000:215), por sua vez,
relata que “toda captura feita pelo homem karajá sobre o meio ambiente terrestre, seja de
natureza humana, animal ou vegetal, deve beneficiar em parte ou totalmente ao filho/a da
irmã”. A autora refere-se tanto aos alimentos de origem animal quanto aos “espíritos dos
inimigos” mortos, enquanto produtos do “exterior”, que eram transmitidos pela via
matrilinear.
Os Javaé transmitiam o corpo velho do inimigo morto para o filho/a da irmã em um
primeiro momento, assunto do último capítulo, mas não os produtos da caça ou da pesca,
uma vez que há uma oposição estrutural clara entre a figura do pai, enquanto provedor de
substância e alimentos, e a do tio materno, provedor de uma identidade cerimonial. Não
cabe a um homem alimentar os filhos da irmã, mas apenas receber alimentos dos maridos
das irmãs. Ainda é considerado vergonhoso, mas não tanto como antes, um genro
alimentar-se na casa do seu sogro com regularidade, pois teoricamente ele deveria ser

779
convidado com freqüência por suas irmãs e primas para partilhar com elas dos alimentos
produzidos pelos maridos respectivos. Segundo o modelo ideal, hoje bem menos praticado,
os homens alimentam-se na casa natal do que é produzido pelos “maridos de suas irmãs e
primas” (ra tyby) próximas, enquanto produzem o alimento que será comido pelos pais,
“irmãos e primos próximos” (riòrè lana) da esposa na casa dela.
Segundo a etiqueta, porém, não cabe ao homem tomar a iniciativa de se alimentar
na casa natal quando lá está, devendo esperar pelo convite de sua mãe ou irmã, que
separam uma porção especialmente para ele. Pode acontecer também, embora fosse mais
raro mesmo no passado, de suas irmãs e primas levarem a refeição preparada para ele até a
casa de sua esposa. Algumas mulheres, tidas como mais generosas, convidam não apenas o
irmão ou primo para comer na casa de origem, mas também as esposas e filhos respectivos.
Essas práticas ainda ocorrem atualmente em algumas famílias, mas costumam estar
restritas às situações em que um homem obtém um alimento especial, como uma grande
tartaruga. Aqui se tem um modelo diferente dos Bororo (Crocker, 1985), em que o serviço
da noiva parece ser bem menos enfatizado e os homens dividem a sua produção entre as
irmãs e as esposas, causando conflitos entre elas.
Obviamente, apenas as “mulheres trabalhadoras” (hawyky dèkyrèwè), que têm
maridos igualmente trabalhadores (hãbu tyhy dèkyrèwè), é que possuem condições de
cumprir com todos os mandamentos dessa etiqueta centrada na generosa distribuição
coletiva. Qualquer desvio do comportamento do marido ou da mulher em relação ao
modelo ideal pode ser invocado como xingamento do casal ou dos seus filhos nos conflitos
orais. Hoje em dia, as pessoas dizem que o serviço da noiva prestado pelos jovens inclui
apenas peixes pequenos e de menor valor, como o mandi, o piau, o pacu, a piranha etc.
Antes, só um “marido ruim” (hãbu aõbinabina) pescava pequena quantidade de peixes ou
peixes pequenos. A formalidade excessiva nas relações não impede que, nos bastidores,
seja comum ouvir reclamações, que nunca são feitas diretamente aos afins, sobre os genros
e cunhados, quase sempre acusados de preguiça ou avareza.
Para as gerações antigas, as prestações matrimoniais deviam incluir apenas kutura
tyhy, “peixes de verdade”, ou seja, os peixes nobres e cada vez mais escassos como o
tucunaré, o pirarucu, o pintado, a piabanha etc. As mulheres mais velhas, indignadas,
reclamam da preguiça atual dos jovens dizendo que “não são comedoras de piranha” ou
outros peixes de segunda categoria, xingamento tradicional dos Karajá. Os vizinhos do
Araguaia têm fama de preguiçosos e muito magros e são conhecidos como juata ròdu

780
(“comedor de piranha”), hui ròdu (“comedor de traíra”), ryriè ròdu (“comedor de peixe
cascudo”). As compensações matrimoniais atualmente incluem qualquer bem
industrializado que pode ser adquirido com dinheiro, mas é comum ouvir que hoje os
homens não trabalham como antigamente (ver Bonilla, 2000).
Quando um casal se desentende, a casa dos sogros torna-se um lugar mais
desconfortável ainda para o marido, que imediatamente procura outro lugar para passar o
dia. Se ele deseja a reconciliação, ele vai pescar ou trabalhar na roça, de onde volta com
algo para oferecer à esposa, que então o recebe bem. Às vezes ele retorna para a casa da
mãe, onde fica um ou mais dias até “passar a raiva”. A esposa pode visitar a casa de
alguma prima, por exemplo, mas se espera dela que permaneça em casa trabalhando, como
sempre. A mãe dela dá conselhos para que ela não brigue nem tenha ciúmes do marido,
havendo sempre um esforço das famílias para evitar a vergonha de um casamento rompido,
o que pode se tornar um xingamento da família.
A ligação de um homem com seus parentes matrilaterais não é jamais suspensa
definitivamente, nem durante a velhice. Os Javaé dizem que o homem continua ligado
social e afetivamente à família de sua mãe e irmãs durante toda a vida, mesmo depois que
algumas destas já tenham morrido, o que vai além da importante ligação ritual que
manteve com os filhos das irmãs reais e classificatórias quando era mais jovem. Ainda nos
dias de hoje, os homens com vários netos são convidados por suas irmãs, primas e
descendentes a partilhar os alimentos que chegam à casa delas em maior quantidade.
Quando chega de uma pescaria, no fim do dia, é costume que um homem de meia idade,
entre 40 e 50 anos, vá visitar a casa da mãe, se estiver viva, ou das irmãs, onde sempre será
recebido com uma porção de comida.
Na velhice, ele convive mais com sua esposa e respectivos descendentes, à medida
que os parentes maternos a quem era mais próximo deixam de viver. Além disso, quanto
mais o tempo passa e os netos vão crescendo, maior é a importância do que ele recebe dos
cônjuges de suas próprias filhas, na casa onde mora. A família materna, entretanto, nunca
deixa de ser uma importante referência social e emocional. Assim como entre os Bororo
(Crocker, 1985), um homem nunca será completamente integrado à casa dos afins, embora
tenha a possibilidade de adquirir familiaridade e um status respeitável na casa em que
entrou como um quase completo estranho.
A hierarquia entre irmãos na casa natal, onde um homem é apenas nutrido pelos
semelhantes, sem ter a obrigação de retribuir nada do que recebe, é substituída pela

781
reciprocidade na casa dos afins, onde o homem que se submete aos afins no começo do
casamento, entregando a eles tudo que produz, é o mesmo que receberá a produção dos
maridos de suas irmãs e, depois, na idade madura, dos maridos de suas filhas. Mas esta não
é a verdadeira compensação desejada, como veremos mais à frente, uma vez que o modelo
de masculinidade Javaé é Tanyxiwè, o ambíguo herói que impedia seus cunhados de usar
os seus pertences, de partilhar a sua comida e que acabou abandonando sua esposa grávida,
com a fama de sovina, para alcançar um ideal maior.

10.2. Entre o terror e o poder

Apesar de sua importância simbólica e ritual, o tio materno não detém direitos
legais sobre os filhos das irmãs ou o poder da autoridade doméstica dentro da casa natal.
Diversamente dos Kayapó (Turner, 1979b) ou dos Xavante (Maybury-Lewis, 1984), entre
os quais os homens são a principal referência de autoridade dentro do grupo doméstico, ou
dos Timbira (Da Matta, 1976, 1977, Melatti, 1979), em que não há uma categoria definida
de autoridade doméstica, entre os Javaé, ao modo Bororo (Crocker, 1979), que combinam
uma ênfase social matrilateral com a uxorilocalidade, apesar do cognatismo, são as
mulheres mais velhas que têm o poder da autoridade dentro das casas, seja na condição de
avó ou de sogra. Segundo Crocker (1985), as mulheres de idade Bororo não só dominam
dentro de casa como são dinâmicas, de personalidade forte, têm conhecimento esotérico, às
vezes dominam os maridos e têm influência nas decisões comunitárias, o que poderia ser
aplicado perfeitamente ao caso Javaé.
Já vimos até aqui que, no âmbito público, as mulheres são submetidas a uma série
de restrições pela coletividade masculina, em nome da preservação de um ideal masculino
de auto-suficiência e imortalidade. Veremos agora como o paradoxo inerente ao corpo
feminino – quanto mais criativo e transformador (poderoso), mais descontrolado e mortal
(desprestigiado) – fornece os fundamentos conceituais para o contraste notável da posição
social das mulheres na esfera pública e privada, embora esse contraste não seja assim tão
rígido, pois já foi mostrado que as mulheres têm importante atuação pública nos momentos
extraordinários do luto, quando são respeitadas e temidas por todos. Dessa maneira, não só
não cabe aos Javaé a divisão entre público/masculino e privado/feminino, característica

782
marcante dos Jê centrais e do norte (ver a coletânea de Maybury-Lewis, 1979a), mas que
tem sido questionada em estudos sobre a constituição do gênero em outras sociedades
amazônicas (McCallum, 1999, 2001), como é inapropriado atribuir o prestígio social
exclusivamente ao contexto cerimonial masculino.
Conforme o tempo passa, a mulher Javaé cresce em autoridade e poder na esfera
doméstica, o que está intimamente associado ao desenvolvimento de seus conhecimentos
sobre vários assuntos e suas habilidades oratórias. Não se trata de um poder oriundo de
uma postura autoritária, mas de uma autoridade que deriva, antes de tudo, do saber e da
capacidade de expressá-lo criativamente, despertando o respeito e a admiração entre os
mais jovens. Todos os Javaé com quem desenvolvi um trabalho de pesquisa mais intenso
eram pessoas marcadas por uma profunda admiração e respeito pelo conhecimento de suas
avós, por quem foram educados através do convívio próximo, ao modo tradicional. São
vários os indícios desse status especial da mulher na literatura sobre os Karajá, embora
esse tema não tenha sido aprofundado como merece. Marielys Bueno (1987:86), que
estudou “a mulher Karajá” da aldeia Macaúba, atesta que “todos os autores que estudaram
o grupo Karajá são unânimes em afirmar que a mulher ocupa uma posição privilegiada
nesta sociedade”.
De fato, Ehrenreich (1948:60), que esteve entre os Karajá em 1888, notava
admirado que “a posição da mulher não deixa de ser digna de todos os pontos-de-vista. (...)
A esposa está ao lado dele (marido) em igualdade de condições, e ele não dá um passo de
importância sem se aconselhar com ela. Também o cacique partilha a sua dignidade com a
esposa. Maus tratos infligidos às mulheres são coisa inaudita”. O etnógrafo alemão Fritz
Krause (1940a:221), que viajou ao Araguaia em 1908, relata que as mulheres
“desempenham papel muito saliente na vida dos índios, e em todos os assuntos dão o seu
parecer”. Em outro trecho, o autor (1943a:199) diz que “a situação da mulher é muito boa.
Pertencem-lhe a casa, os utensílios domésticos e a canoa; o marido mora apenas com ela.
Em todas as questões ela dá a sua opinião”.
O missionário dominicano Frei Francisco (apud Audrin, 1946:145) visitou os
Karajá e Javaé no início do século 20 e escreveu que “todo Carajá casado nada pode
decidir antes de ter consultado sua cara metade”. Frei Luiz Palha (1942:40-41), por sua
vez, dedicado à catequização dos Karajá nos anos 20, disse que, “nesta tribo, como é
sabido, a organização matriarcal confere à mulher privilégios e regalias excepcionais. (...)
Governa de modo absoluto a casa, dentro da qual, marido e filhos, igualmente, parecem

783
súditos. (...) Ela é, de fato, a DONA da casa. Se a habitação é singela, de aparência tosca e
primitiva, a autoridade da índia carajá, dona do lar, é realmente notável” (grifo do autor).
Segundo um relatório do SPI de 1931, do encarregado do Posto Redenção, na aldeia Santa
Isabel 6 :

“(...) Dizem que os carajás são muito valentes, que são capazes de matar os seus
inimigos (os chavantes, de preferência); entretanto, êlles me parecem uma raça de
maridos gallinhas. As mulheres é que mandam aqui. Os homens andam sempre
apanhando. Suas esposas lhes puxam furiosamente os cabellos e lhes dão pancadas de
doer mesmo. Um dia, appareceu na Administração um homem alto e corpulento,
pedindo para dormir alli, porque estava com mêdo de ir para casa. Brigára coma
mulher. Perguntei-lhe se não tinha coragem. Respondeu que sim, mas sòmente para os
homens. ‘Em mulher não se bate’ – accrescentou, todo cheio de dignidade”. (grifos do
autor)

Em 1932, o jornalista Hermano Ribeiro da Silva (1935:138), que chamou a mulher


Karajá de “Eva autoritária”, observou que “a mulher domina o esposo, qualquer resolução
depende em última instância da aprovação daquela” (1935:125). O também jornalista
Willy Aureli (1962a:31), que percorreu várias vezes o Araguaia em companhia dos Karajá
a partir de 1936, relatou que:

“(...) A mulher tem uma ascendência formidável e completa sobre o homem. É ela
quem determina tudo. Manda, despótica, irredutível! Jamais um marido Carajá se
atreverá à menor empresa sem o pleno consentimento de sua doce metade (...). Mesmo
na questão de ordem ‘política’, são as mulheres que resolvem tudo. Fazem ou desfazem
um ‘capitão’, obrigando os respectivos esposos a externar determinada inclinação (...).
E um cacique, que deseja viver em harmonia com sua gente e continuar com o bastão
de mando, deve usar tática finíssima com o elemento feminino de sua aldeia”.

Para o antropólogo Lipkind (1948:187), no final da década de 30, a mais notável


característica da etiqueta social Karajá é que “as mulheres podem se comportar com
perfeita liberdade, enquanto os homens, até que se tornem pais, comportam-se como uma
modéstia tímida e respeitosa que lembra, embora exceda, a de uma donzela vitoriana”.
Depois de dois meses entre os Karajá e alguns dias entre os Javaé, em 1945, Tilbor Sekelj
(1948:102) relatou que “existe um mútuo respeito entre os esposos, e o homem nunca
empreenderia nada sem consultar a mulher”. Em um relatório sobre os índios do Araguaia

6
Microfilme da FUNAI n° 342, fotograma n° 37.

784
feito ao SPI em 1947, Baldus (1948:147) comenta que “entre os Karajá era em geral, a
mulher quem mandava e os homens achavam natural obedecer-lhe. Tanto na aldeia pegada
a Leopoldina como em outros grupos locais dêsses índios pude observar que isso não foi
essencialmente modificado pelo contato com a nossa cultura”. O médico que o
acompanhou em uma das viagens, Haroldo Cândido de Oliveira (1950:81), descreve o
mesmo quadro em seu “Diário de Viagem”:

“(...) Na organização social Karajá a mulher desempenha um papel considerável. Ela é,


incontestavelmente, a senhora do lar, a cabeça do casal, dispondo de grande
ascendência sobre o marido, que lhe obedece cegamente, os negócios, as viagens, os
trabalhos de qualquer natureza devem ser ajustados com ela, pois depende
exclusivamente dela o desempenho de qualquer missão dada ao marido. (...) O marido
em geral reconhece este estado de coisas e raramente toma um compromisso sem falar,
primeiro, com a mulher, ou sem mandar que se fale primeiro com ela – e o que ela
resolver, está resolvido”.

O etnólogo Dietschy (1978:81), que pesquisou os Karajá nos anos 50, fala que “na
vida diária e na doméstica a mãe e a linha materna são tão predominantes, que se poderia
falar literalmente em matriarcado”. Em outro texto, o autor (1974) identifica a atitude
empreendedora e imperiosa das mulheres, associada à iniciativa nos encontros amorosos.
Segundo Fénelon Costa (1978:64), que também fez pesquisa nos anos 50, “a mulher
Karajá não pode ter interesse na modificação da estrutura tradicional da sociedade em que
vive, pois diversos fatores contribuem para que a sua posição dentro dela seja
relativamente satisfatória. Pertence-lhe a casa e tem a propriedade dos produtos da roça, e
os trabalhos mais pesados são tarefas masculinas”. Por isso, para a autora, “a mulher
Karajá é mais resistente que o homem à mudança”.
No início dos anos 70, Bueno (1975:49) constatou que “a mulher Karajá adquire
certos direitos e prerrogativas com o casamento. Há um certo predomínio da mulher sobre
o marido. As mulheres por regra geral são proprietárias do que produzem e dispõem
livremente de suas propriedades”. Nos anos 80, a mesma autora (1987:77) fala de um
“equilíbrio de desigualdades”, uma vez que as mulheres são subordinadas “política e
simbolicamente”, referindo-se tanto à não participação nos cargos de chefia quanto às
interdições da vida ritual. Mas elas dispõem, ao mesmo tempo, de “diversas formas
estabelecidas de resistência e de privilégios”, como o direito de escolha no casamento e a
capacidade de sancionar negativamente certas condutas através de seu “falatório”, o que

785
inclui o “choro público” (1987:230). A uxorilocalidade seria um fator decisivo para uma
maior solidariedade familiar e uma maior proteção psicológica da mulher, que seria o
“centro da casa” (1987:92). A casa, por sua vez, é um espaço dominado pelas mulheres
mais velhas, onde “raramente o marido dá ordens à mulher” (1987:102).
O antropólogo americano Donahue (1982:189) ressaltou várias vezes o prestígio
das mulheres mais velhas, que é muito maior do que os homens da mesma idade, e o
incontestável controle que elas exercem sobre o espaço doméstico: “a forte e voluntariosa
mulher Karajá é a força do grupo doméstico. Ela controla aquele domínio completamente”.
Ainda segundo o autor (1982:188), “viajantes expressavam surpresa pelo modo como os
homens Karajá sempre se dirigiam às suas esposas para pedir permissão para acompanhá-
los pelo rio”. O antropólogo americano, cujos dados são de 1977, chega a propor que a
Dança dos Aruanãs, com seu caráter de forte restrição às mulheres, oferece um importante
meio dos homens alcançarem uma posição superior, dado “o seu papel normalmente
subserviente às mulheres em grande parte da vida diária da aldeia” (1982:277).
Lima Filho (1994), que descreveu pioneiramente a importância da oratória feminina
Karajá, também se impressionou bastante com a autoridade das mulheres em 1989. O autor
relata, cem anos depois de Ehrenreich, que “é muito freqüente os homens discutirem suas
ações com as mulheres, ou as consultarem antes de tomar alguma decisão política”
(1994:122); e que “a mãe, ao contrário do pai, aumenta a sua influência na velhice. Ela é o
centro do grupo doméstico. Sua experiência e sua habilidade oral mantêm as famílias das
filhas unidas a ela” (1994:134).
Toral (1992:102), na contramão dos outros etnógrafos e observadores, tende a um
bias excessivamente masculino, ao dizer que, “apesar do poder informal das mulheres, as
lideranças domésticas são sempre homens”; que há uma “‘predominância’ da sociedade
masculina sobre o todo” (1992:103); que se trata de uma sociedade “hierarquizada”
(1992:168), liderada pela coletividade masculina, ou que a cultura Karajá “valoriza a
iniciativa masculina e põe as mulheres numa posição passiva” (1992:257), entre outras
passagens que enfatizam apenas uma faceta de uma realidade mais complexa. Os Karajá de
Aruanã disseram a Schiel (2002:46), mais recentemente, que “quem tem força na casa é
sempre a mulher. Aqui na casa a gente sempre presta homenagem à esposa, trabalha por
ela”.
Pétesch (2000:35), por fim, tendo como referência o contexto atual do contato,
caracteriza a mulher Karajá como o “elemento estático e conservador desta sociedade”,

786
assim como Fénelon Costa (1978), pelo fato de ser ela quem garante “a continuidade étnica
(...) no plano lingüístico e econômico”: as mulheres resistem a falar a língua portuguesa
como os homens (ver Pimentel da Silva, 2001), sendo as responsáveis pelo ensino da
língua nativa às novas gerações, além de terem transformado suas atividades tradicionais
(cerâmica) em importante fonte de sustento atual, o que teria reforçado a sua autoridade
frente aos homens. Bueno (1987:118) chega a definir a mulher Karajá como “guardiã da
cultura” em razão de seu papel proeminente na educação das crianças e a atribuir o seu
papel conservador a um recato ou discrição tradicional nas relações com o mundo exterior.
De um ponto de vista externo, tais afirmações podem fazer sentido, mas quando se leva em
consideração o ponto de vista nativo, pelo menos no que diz respeito aos Javaé, a figura
feminina é vista muito mais como a causa das transformações sociais.
Hoje é comum ouvir que as mulheres têm menos influência do que no passado,
antes do contato mais próximo com a sociedade nacional, quando se cumpria com maior
assiduidade o dever de entregar toda a produção masculina para a esposa e os afins. Essa
prática contribuía para uma posição de prestígio tanto dos homens que trabalhavam para
pagar pelo sexo como das mulheres que recebiam o pagamento. Culturalmente, os corpos
das mulheres têm mais valor pelo prazer que proporcionam, daí a expressão “pagamento
pela vagina”, do que propriamente por sua capacidade de produção de alimentos ou filhos,
como ocorre entre os Kayapó e outros Jê (Turner, 1979a, 1979b). O sexo é pensado muito
mais como fonte de prazer do que como meio de procriação, de modo similar aos
Mehinaku do alto Xingu (Gregor, 1985).
O caráter lúdico das brincadeiras rituais dos aruanãs simula o prazer alcançando no
ato sexual, não a procriação, e os mitos, como já foi analisado, não enfatizam as qualidades
maternais ou de fertilidade das mulheres, mas os seus desejos sexuais. Do mesmo modo, os
grandes heróis míticos, como Tanyxiwè ou Ijanakatu, não se submetem às mais duras
provas impostas pelos afins com o objetivo de procriar (Tanyxiwè chega a abandonar a sua
esposa grávida), mas para ter prazer através do sexo. Apesar dos Javaé considerarem
importante a continuação dos seres humanos por meio dos filhos, a procriação não é um
valor absoluto e inquestionável, porque ela é pensada, ambiguamente, como o processo
que dá início ao fim dos corpos. O valor do corpo feminino é uma fonte inegável de
controle dos sogros sobre a produção dos genros, como aponta Turner (1979a) a respeito
do papel da uxorilocalidade no Brasil Central, mas, no caso Javaé, ele também
proporciona, paralelamente, prestígio para as próprias mulheres, que tradicionalmente

787
tinham grande influência sobre seus maridos e conseqüente autoridade doméstica em razão
disso.
Os Javaé dizem que “tyy (a vagina) é que manda, porque huu (o desejo masculino)
é mais forte”, ou seja, as mulheres têm direito de cobrar pelo uso de suas vaginas, porque o
desejo sexual masculino é uma força imperativa. Homens e mulheres dizem, abertamente,
que “as mulheres mandavam nos maridos” por causa do pagamento que lhes era devido
pelo acesso sexual ao seu corpo. A ereção peniana (tèrèna) é considerada o sinal explícito
de um maior desejo sexual por parte dos homens, um desejo tão grande que, por ele, os
homens foram capazes de abandonar a imortalidade e se submeter cotidianamente aos
mesmos sacrifícios míticos dos heróis Tanyxiwè e Ijanakatu. A submissão aos afins é
justificada no mito e no dia a dia em função desse desejo incontrolável, o que não deixa de
ser uma ironia, se nos lembramos da imagem de um maior autocontrole que os homens
fazem de si, nos mitos, quando comparados às mulheres. Na verdade, o autocontrole em
questão é concebido como uma maior capacidade de se sacrificar em nome dos desejos e,
conseqüentemente, da coletividade, pois são os homens – e não as mulheres – que
começaram a pagar aos outros pelo sexo. As mulheres míticas, por sua vez, realizavam
seus desejos de modo egoísta, sem estabelecer nenhum tipo de reciprocidade.
Quando os Javaé utilizam a expressão “juhu hawyky ityhynykynamyraira”, que
significa “antigamente as mulheres eram mais respeitadas ou honradas”, querem dizer que
as prestações matrimoniais devidas às mulheres e seus parentes proporcionavam à mulher,
em especial, uma posição confortável de prestígio e poder, que tendia a aumentar com os
anos, em função do saber acumulado. É verdade que a produção masculina era e ainda é
distribuída para seus sogros e cunhados, que assim exercem controle sobre a produção do
genro; que o grupo familiar se refere à vagina de suas mulheres como “nossa vagina”; e
que o marido torna-se o “dono do corpo” da esposa quando se casa, dizem os Javaé, no
sentido de que ele paga o tykòwy e ela deve respeitá-lo por isso.
No entanto, as próprias mulheres é que são consideradas “tyy wèdu”, as “donas das
vaginas”, o que significa que são elas – mais do que seus pais e irmãos – as legítimas
credoras da dívida que é assumida pelos homens ao se casarem. Mais do que isso:
simbolicamente, são as esposas que representam a coação dos afins à qual um homem deve
se submeter ao se casar. A afinidade não é representada por um sogro canibal (Kaplan,
1981, 1984, Viveiros de Castro, 1993, 2002b), mas por um útero feminino repleto de
piranhas castradoras, como em um dos mitos de Ijanakatu, porque ela é feminilizada. A

788
expressão “dona da vagina” significa, mais apropriadamente, o direito que a mulher
casada adquire de exigir as prestações matrimoniais do marido, o que é feito sem uma
conotação autoritária. É este o sentido mais preciso da noção de que “as mulheres mandam
nos homens”. Segundo os Javaé, os homens não podiam se recusar a realizar as tarefas
encomendadas pela esposa, o que inclui desde a produção dos alimentos até os
preparativos para um enterro.
Quanto mais rituais um casal é capaz de sustentar economicamente, maior é o
prestígio dessa família nuclear e de seus herdeiros, que adquirem uma reputação honrada
através do tempo. Mas é significativo que a honra gerada por meio da capacidade
produtiva de um homem, embora a esposa também contribua na tarefa de preparação dos
alimentos, é concebida como um tributo a que as mulheres têm direito. Mais do que isso,
ela é transferida para as mulheres, as donas das vaginas, que têm o seu prestígio
aumentado na mesma proporção em que seus maridos são capazes de produzir mais e
sustentar os rituais. Um homem fica conhecido como uma pessoa honrada (inytyhy) ao
longo do tempo não só por ser trabalhador, mas também por ser generoso (wowii) e ter um
comportamento socialmente correto, ou seja, contido, assim como seu corpo, como não
andar pela aldeia à toa, não ser promíscuo, não brigar e não fazer mexericos. Segundo
Fénelon Costa (1978:88), “o Karajá se distingue pelo amor à conduta discreta”. Trata-se de
um conceito associado ao estatismo, à paz, à nutrição abundante e à separação dos corpos
do rio acima.
Entretanto, são as suas esposas que ficam realmente conhecidas por causa desse
trabalho, embora para isso elas também devam ser trabalhadoras e ter um comportamento
igualmente correto. As atividades femininas também geram prestígio para as mulheres, que
passam a ser respeitadas pelo seu trabalho, como no caso das ceramistas Karajá 7 . Mas os
Javaé sempre dizem que as mulheres “ficam famosas” porque o seu marido é trabalhador e
honrado e porque elas têm “muito tykòwy”, ou seja, porque elas recebem todos os tipos de
prestações matrimoniais enquanto dura o casamento. Em outras palavras, “são os maridos
que fazem o nome delas”, segundo um deles. As mulheres que alcançam essa condição são
chamadas de hawykytyhy, “mulheres honradas”, ou são referidas com respeito pela
expressão itykòwyhiky, que literalmente significa “o pagamento pela vagina delas é muito
grande”.

7
Fénelon Costa (1978), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

789
No levantamento feito por mim sobre a constituição histórica de todas as aldeias
Javaé existentes em 1998, os residentes à época foram classificados de acordo com as
“famílias” a que pertenciam, de modo similar às famílias ou segmentos residenciais
encontrados por Da Matta (1976) entre os Apinayé. As famílias mencionadas eram
identificadas como o grupo numeroso de descendentes de uma determinada pessoa,
incluindo os descendentes de seus irmãos e irmãs, espalhados por várias casas e, em muitos
casos, associados à ocupação de um determinado lugar em comum da aldeia. Toral
(1992:54) descreve em maiores detalhes as “parentelas, que se reconhecem como grupos
de descendência”, e se distribuem em uma “área física bem definida”, formando
“verdadeiros bairros” em uma aldeia. Em geral, a pessoa escolhida como referência de uma
parentela assim definida, apesar de idosa, ainda estava viva, embora em alguns casos fosse
alguém já falecido, membro de uma geração anterior da qual já não existia mais nenhum
representante.
Na grande maioria dos casos, os grandes grupos de parentes, alguns incluindo até
seis gerações, foram identificados através do nome de uma mulher de idade e de grande
reputação, famosa em todas as aldeias. Um número bem menor de grupos de parentesco foi
referido como sendo os descendentes de um determinado homem e de seus irmãos e irmãs,
também conhecido pelo prestígio adquirido. Os grupos identificados eram conhecidos
como os rikòkòrè (“netos ou descendentes”, na versão feminina da língua) de alguém.
Assim, em Canoanã, por exemplo, a maior parte das pessoas incluía-se entre os Ratxu
rikòkòrè, os Mikilo rikòkòrè, os dois maiores grupos, os Lawarairu rikòkòrè ou os Nysia
rikòkòrè, todos nomes de mulheres, embora houvesse os Wahuri rikòkòrè, por exemplo,
entre outros, nome de um homem na mesma situação. Tais grupos eram associados a
diferentes procedências, como os descendentes de Ratxu, originários da aldeia Wariwari,
ou os descendentes de Wahuri, originários de Marani Hãwa. Toral (1992:59), em sua
generalização sobre os três grupos de língua Karajá, registra que as famílias extensas são
referidas pelo homem que é “cabeça da família” e que as parentelas são reconhecidas em
geral por seus ascendentes masculinos, o que não se aplica aos Javaé.
O grupo de parentes não era identificado apenas por seus vínculos de substância,
mas principalmente pela honra da pessoa que lhe fornecia o nome. Para alcançar esse
status de muito prestígio, um homem ou uma mulher precisam ter parceiros igualmente
trabalhadores e de comportamento social ilibado. Diz-se que um casal assim constituído
fica “famoso em todas as aldeias”, mas que, em geral, é o nome da mulher que fica

790
conhecido. Todas as mulheres e homens mencionados como referência de um grande
grupo de parentesco pertenciam a essa categoria de prestígio e também tinham muitos
descendentes. Os Javaé utilizam a regra da uxorilocalidade para justificar o fato dos nomes
das mulheres alcançarem maior visibilidade: como elas são chamadas de hètyby wèdu, “as
donas (wèdu) do lugar do fogo da cozinha (hètyby)”, é vergonhoso uma mulher levar o
fogo de sua cozinha para a casa do marido ao se casar, cabendo ao marido vir para a sua
casa/fogo. Em outras palavras, as mulheres ficam famosas porque são os homens que se
mudam e trabalham por causa delas e não o contrário.
A expressão “dona do lugar do fogo da cozinha” revela mais uma vez que, embora
um homem trabalhe para pagar pelos serviços de sua esposa aos sogros e cunhados,
considera-se a mulher como a dona simbólica da comida que é recebida dentro da casa. O
sol é chamado normalmente de “o preço da vagina de Myreikò”, porque é Myreikò quem
ficou conhecida pelas conquistas de seu marido, o herói Tanyxiwè. Um comportamento
social indesejado que se iniciou com alguém e é repetido dentro de uma família ao longo
das gerações, como uma tendência ao incesto ou à preguiça, por exemplo, é chamado de
hètybybina, “lugar do fogo da cozinha errado ou ruim”. Do mesmo modo, ao contrário, as
qualidades desejáveis de alguém são chamadas de hètybywii, “lugar do fogo da cozinha
certo ou bom”, indicando que se atribui desvios comportamentais a “desvios espaciais”, ou
seja, à inversão do padrão da uxorilocalidade.
O prestígio de um casal aumenta ao longo do tempo quanto maior for o número de
genros morando em sua casa. Assim, as famílias grandes, com muitas mulheres, são
conhecidas como hètyby hiky, “lugar do fogo da cozinha muito grande”. Tal expressão
significa que uma casa com muitas mulheres casadas, hoje em dia cada vez mais raro,
teoricamente tem muitos genros pagando pela vagina de suas esposas e, conseqüentemente,
muita comida. Em contraste com a patrilinearidade e patrilocalidade dos Tukano do alto
Rio Negro, para quem as “noras são em última análise de maior valor para o grupo local do
que as filhas que ele entrega” (Jackson, 1983:188), no sistema uxorilocal Javaé, o interesse
do grupo doméstico é sempre no sentido de ter o número maior de filhas ou irmãs reais e
classificatórias dentro de casa, como mostra Turner (1979a) a respeito das sociedades do
Brasil Central.
Quando o homem leva a mulher para a casa dele ao se casar, diz-se que o “pênis é
mais forte”, nõõ iruru terere, ou que “a vagina está sem força”, tyy iruru kõre. Hoje em
dia, “a vagina está perdendo a força”, ouvi de um Javaé, porque quando um homem mora

791
na casa dele são os seus parentes que vão comer a comida que ele produz e não os parentes
da mulher. Uma das mulheres mais lembradas, falecida ainda na antiga aldeia Wariwari,
alcançou grande reputação pelo fato não só dela e do marido serem honrados, mas
principalmente porque tinham quatro genros trabalhadores morando em sua casa. Alguém
que tem muitos genros – mas ela própria ou o marido não são trabalhadores – jamais terá o
mesmo prestígio, que depende também do esforço pessoal. Pela mesma lógica, é muito
constrangedor ser filho ou esposa de um homem preguiçoso, sendo esse um dos principais
xingamentos nos confrontos verbais.
Por outro lado, uma mulher idosa que não tenha filhas ou netas por perto e tenha
ficado viúva, morando sozinha, passa por sérias dificuldades, como duas mulheres nessa
condição com quem tive a oportunidade de conversar mais intimamente, em 1990,
justamente porque moravam sozinhas. Sem genros ou maridos, elas não têm ninguém que
refaça suas casas, por exemplo, ou freqüente a roça nos dias em que há restrições rituais à
circulação das mulheres pela aldeia e fora dela, de modo que os animais selvagens
consomem os produtos agrícolas abandonados. Uma delas havia construído a própria casa,
tarefa tipicamente masculina. Quando ficou cega e foi morar junto com o filho, era comum
ouvir que a nora “sovinava” os alimentos para ela. Donahue (1982) argumenta que, entre
os Karajá, o homem que relutava em casar na juventude é, na velhice, alguém que
necessita muito mais de um parceiro do que a mulher Karajá; pois esta, ao contrário, cresce
em prestígio conforme os anos passam, controla a casa e pode viver sem um marido se
tiver os filhos morando por perto.
O prazer alcançado com o sexo tem duas conseqüências opostas, que definem a
condição paradoxal das esposas: por um lado, transforma as mulheres em corpos de imenso
valor, pelos quais os homens abandonaram a imortalidade do paraíso subaquático ou o
conforto da casa natal e trabalham arduamente desde então; por outro, foi através do sexo
que todos abriram seus corpos e as mulheres, em especial, tornaram-se mais poluidoras,
devendo ser mantidas à distância dos homens. Assim, os corpos das mulheres casadas têm
um valor que sempre dotou as mulheres de uma posição de muita influência e prestígio no
âmbito doméstico; mas esse mesmo corpo que sangra mais que o dos homens e acelera os
fluxos que levam à morte é a causa de seu desprestígio profundo no âmbito público e
cerimonial, a razão pela qual as mulheres como um todo não só devem ser mantidas longe
do espaço sagrado masculino, como também devem ser vigiadas, aterrorizadas e, no
passado, punidas com extrema violência.

792
Essa condição paradoxal dos humanos sociais, que vivem “entre” o desejo pelo
sexo, que os leva rio abaixo, para junto dos corpos prazerosos de suas esposas, e a vontade
de ser imortal, que os conduz rio acima, para longe dos corpos poluídos das mulheres, está
na raiz da contradição que chama a atenção dos visitantes das aldeias Javaé e leva-os a se
questionarem sobre o contraste tão notável entre o poder que as mulheres têm no espaço
doméstico e o terror a que são submetidas no espaço público. Mas é importante salientar
aqui que o prestígio das mulheres não deriva unicamente do valor que têm para os homens
a beleza e o prazer que seus corpos proporcionam. Considerar o prazer sexual como a
principal fonte de valor do corpo feminino seria reduzir mulheres e homens à velha
oposição ocidental entre corpos femininos que apenas procriam filhos (e são fonte de
prazer) e corpos masculinos que criam cultura. Como já foi mostrado antes, os corpos mais
poluídos e mortais das mulheres são também corpos muito criativos, física e
subjetivamente falando.
Assim, a capacidade poluidora que afasta as mulheres da Casa dos Homens e da
vida pública ordinária é, a um só tempo, a mesma capacidade criativa que confere a elas
grande autoridade no âmbito doméstico e nos momentos públicos extraordinários, como
durante o luto, através de suas habilidades oratórias. O desprestígio público das mulheres
nos contextos cerimoniais é proporcional, na mesma intensidade, ao prestígio feminino
existente no espaço doméstico e nas situações públicas como o luto, pois quanto maiores
são os fluxos mortais de sangue que poluem, maiores são as capacidades criativas físicas e
subjetivas do corpo em questão. Em outras palavras, o maior descontrole do corpo
feminino, que se transforma na imoralidade transgressora que assusta os homens na esfera
pública, é responsável, concomitantemente, pelo grande respeito e autoridade que as
mulheres adquirem em função de sua criatividade inerente. Donahue (1982:189) apontou a
“reversão de papéis” entre homens e mulheres no contexto ritual, em que as mulheres são
aterrorizadas pelos homens, e no contexto doméstico Karajá, que elas controlam 8 .

8
Para C. Hugh-Jones (1979) e Jackson (1983), a associação simbólica que os Tukano fazem entre
continuidade e masculino, e destruição (ou transformação) e feminino, deriva diretamente da estrutura social
patrilinear e patrilocal, na medida em que são os homens que representam a continuidade social, através das
linhagens agnáticas, em oposição às mulheres que se deslocam após o casamento e rompem a ligação com o
grupo de origem. No entanto, os Javaé possuem um outro tipo de arranjo social (uxorilocalidade e
cognatismo, aliados ao princípio da primogenitura e a uma ligação matrilinear com a casa materna) e têm o
mesmo tipo de simbolismo de gênero, assim como os Bororo (Crocker, 1985). Neste caso, pode-se dizer que
as mulheres são as “destruidoras” não porque abandonam o grupo doméstico, mas porque são a causa da
abertura dos corpos e do deslocamento espacial dos homens.

793
Tanto os homens como as mulheres de idade devem ser tratados de forma bastante
respeitosa pelos mais jovens, como entre os Jê centrais e setentrionais. Não existe entre os
Javaé uma categoria idêntica à dos velhos palhaços e marginais Suyá (Seeger, 1980, 1981),
embora isso não signifique uma ausência de bom-humor por parte deles, pelo contrário.
Donahue (1982), por sua vez, vê elementos do palhaço Suyá entre os homens Karajá
velhos e cômicos, que seriam alvos de piadas, não seriam tratados como homens sábios e
permaneceriam à margem das decisões da Casa dos Homens. Quando se pergunta para um
homem ou para uma mulher Javaé sobre quem tem o poder dentro da casa natal, relativo
aos assuntos domésticos, o entrevistado não tem dúvidas em apontar as lahi (“avós”), em
especial a avó materna, como a grande responsável pelas decisões mais importantes.
Refiro-me aqui não apenas às poucas mulheres que dão nome aos grupos de parentesco,
mas às mulheres mais velhas em geral, embora nem todas desenvolvam as habilidades
associadas à idade madura. O mesmo vale entre os Karajá, segundo Donahue (1982), para
quem as mulheres de idade têm muito mais prestígio que os homens e detêm o controle da
casa.
São as mulheres de idade sábias, dotadas de grande memória e de capacidade
oratória desenvolvida, as senadu rybèdu, “mulheres de idade (senadu) oradoras ou mestres
da palavra (rybèdu)”, também conhecidas como kuladulahi rybèdu, “avós (lahi) de criança
(kuladu) oradoras (rybèdu)”, que transmitem o conhecimento mitológico, inclusive o que
fundamenta os rituais. São elas que ensinam os lahadina (xingamentos) que tanta
importância têm na vida social Javaé e que pressupõem o conhecimento sobre o passado da
própria família e dos outros moradores. Ao contrário dos Suyá (Seeger, 1981), cujas
mulheres teriam muito pouco conhecimento genealógico em razão de não se
movimentarem pelas outras casas da aldeia, limitando-se às relações de parentesco mais
próximas, esta é uma área do saber dominada pelas mulheres mais velhas. Donahue (1982)
comenta que as mulheres Karajá de idade foram as suas melhores informantes no tocante
às genealogias. O conhecimento extenso das relações genealógicas entre famílias distantes
é o que habilitava as avós maternas a identificar o parceiro ideal (rawyòna) de alguém no
casamento tradicional arranjado, que é um assunto muito mais feminino do que masculino,
como já foi dito. Já Toral (1992:271) considera que a “insubordinação contra os
casamentos arranjados” seria uma das formas das mulheres aumentarem o seu “espaço
tradicional nessas sociedades”.

794
Em casa, os homens mais velhos também podem contar mitos, relembrar o passado,
ensinar músicas rituais ou dar conselhos aos filhos e netos, mas é amplamente reconhecido
que essas tarefas, com exceção dos conhecimentos relativos à Casa dos Homens, são
associadas principalmente às lahi. Um homem trabalhador, ao longo do tempo, pode
alcançar prestígio e autoridade moral, mas dizem os Javaé que a própria natureza das
atividades masculinas, que tradicionalmente deveriam resumir-se às atividades produtivas
ou cerimoniais, restando muito pouco tempo de convivência doméstica, impedia os
homens de uma participação maior nos assuntos familiares. Quando um homem se casa,
diz-se que ele deve mais respeito ao que diz a sogra do que ao próprio sogro. Se nos
lembrarmos dos mitos de Tanyxiwè e de Kanõanõ, é a sogra – e não o sogro – quem cobra
do genro os serviços matrimoniais.
Em geral, as decisões importantes de um homem, como mudar de aldeia, por
exemplo, ou fazer uma viagem, são compartilhadas com a sua esposa, que é consultada
sobre a conveniência de suas atitudes. Os Javaé chegam a dizer que, se uma mulher não
concordar com um plano do marido, ele terá que abandoná-lo. Quando uma mulher
envelhece e alcança uma reputação de respeito em casa, diz-se que “ela é famosa no hètyby
(lugar do fogo da cozinha) dela” apenas, ou seja, que ela não extrapola a sua autoridade
para a esfera pública. Mas quando essa mulher é parente próxima de um importante líder, é
comum que ela o aconselhe nas questões políticas ou no trato com a esfera coletiva,
havendo vários exemplos assim em Canoanã ao longo das últimas décadas.
Nas reuniões comunitárias, abertas a todos, que envolvem assuntos relativos ao
contato com a sociedade envolvente, como educação, política, saúde etc, as mulheres, em
sua maioria, têm uma certa timidez para expor suas opiniões, em razão da sua não
participação histórica das reuniões masculinas da Casa dos Homens. Como já disseram
Fénelon Costa (1978), Bueno (1987) e Lima Filho (1994) sobre a mulher Karajá, o mesmo
podendo ser dito no caso Javaé, desde a infância a mulher é muito mais preservada do
contato com os estranhos, incluindo os brancos, do que os homens, o que se reflete no fato
da fala feminina ser mais conservadora que a dos homens (Ribeiro, 2002). Mas é comum
que elas opinem sobre os assuntos comunitários dentro de casa e que os maridos ou
homens aparentados transmitam suas opiniões nas reuniões. Quando uma mulher fala
durante uma reunião dessas, normalmente as mais velhas, os homens calam-se e escutam

795
respeitosamente o que é dito 9 . Segundo um adulto Javaé, um dos meus principais
colaboradores, referindo-se ao espaço doméstico:

“(...) Assim ... a mulher que fala. Ou então o marido dela, se aprovar, acompanha
quando ela falar alguma coisa, para fazer alguma coisa. Marido dela colabora com ela,
aí vai ... ‘nós vamos fazer alguma coisa’. Eu acho que é a avó, a velha que comanda
tudo. O velho não, por isso que o pessoal fala, Patrícia, assim ... o homem não pensa
não, fica trabalhando. Pensamento dele, do homem, é negócio de trabalhar. A mulher
que fica aqui, ela que tem que resolver as coisas todas. (...) Ela que decide o que
acontece, ela que decide. Ele não sabe. Ele está andando no mato mesmo, (...) porque
eles vão para a roça, pescam no lago, em outra aldeia. A mãe e a avó que ficam aqui
com os filhos e os netos. Elas que resolvem.”

Em geral, as mulheres mais velhas que alcançam a condição de worosy wetxu, “as
que são mandadas ou controladas pelos worosy”, o que parece estar associado ao fim da
menstruação, têm receio de desempenhar suas funções no espaço ritual masculino e
limitam-se a um papel discreto. Elas entram no recinto masculino veladamente, vindas do
mato, para não sem serem vistas pelo público de mulheres e crianças. Idealmente, além de
brincar do lado masculino nos jogos rituais, as worosy wetxu atuam como “espiãs” dos
homens junto às mulheres, como defensoras dos segredos masculinos, prática que foi
instituída, segundo o mito, pelos dois xamãs Hãbu e Ibòrò, de povo Wèrè. Não há menção
sobre as worosy wetxu nas etnografias sobre os Karajá.
Mas é notável que algumas delas, em função de seu notório saber e do grande
respeito adquirido ao longo dos anos, adquirem o direito não só de freqüentar a Casa dos
Homens, como de opinar abertamente sobre os assuntos secretos ali discutidos ou mesmo
de ensinar o modo correto dos procedimentos rituais aos jovens, havendo duas mulheres
idosas nessa condição em Canoanã, nos anos 90. Essa não parece ser uma peculiaridade
das mulheres Javaé. Lima Filho (1994:106) descreve a “participação especial” no ritual de
iniciação Karajá da esposa do chefe ritual: “tudo o que se refere aos mortos é tratado com
ele, sua mulher e inclusive com sua filha mais velha”. Ao falar brevemente das mulheres,
Seeger (1981:177) reconhece que, entre os Suyá, “assim como os homens, elas conhecem

9
Um caso excepcional, em razão do tabu relativo à ocupação de chefias políticas ou rituais pelas mulheres, é
a trajetória de Lucirene Behederu, atualmente “representante comunitária” da nova aldeia Boa Esperança.
Em razão de sua desinibição oratória frente à sociedade envolvente, de sua formação como professora
bilíngüe, relatada por Maia (2001), e por ser filha de um antigo cacique, ela foi eleita para esse cargo, pela
primeira vez, ainda muito jovem, em 1979, na aldeia Boto Velho. Em novembro de 2002, ela teve a
oportunidade de participar, em Brasília, do primeiro encontro nacional de mulheres indígenas realizado pela
FUNAI.

796
bastante sobre história oral, mito e saber cerimonial. Na maioria das cerimônias que assisti,
as mulheres mais velhas eram consultadas a respeito de detalhes da performance”. Lea
(1992) fala que as avós Kayapó detêm o mesmo prestígio dos homens mais velhos e que
chegam a falar em reuniões importantes na Casa dos Homens. Toral (1992) registra a
existência, há algumas gerações atrás, de uma mulher Karajá que ocupava a importante
função de ixytyby, chefe cerimonial, na aldeia Fontoura 10 .
Um outro exemplo do alcance do saber feminino diz respeito à formação dos dois
últimos grandes chefes rituais Javaé. Ambos eram filhos ou netos de mulheres dotadas de
um saber fora do comum, às quais os Javaé atribuem parte importante da formação desses
especialistas rituais. Nos dois casos, o conhecimento dos mitos que fundamentam os rituais
foi transmitido por essas mulheres, ambas conhecidas como famosas ijykydu, “experto em
mitologia”. É de conhecimento público que Kumahira, o penúltimo chefe ritual, e seu
irmão Catarino, o maior especialista ritual vivo após a morte do irmão, aprenderam
mitologia com sua avó, a respeitada Làrinaru, reconhecida como uma descendente direta
dos Wèrè. O atual chefe ritual, Kurania, treinado no conhecimento cerimonial pelo antigo
chefe, seu tio materno classificatório, aprendeu mitologia com a sua mãe, Huiriru, também
grande conhecedora dos rituais e com quem tive a oportunidade de coletar os mitos aqui
apresentados. Como já foi dito, Huiruru e Catarino eram considerados, em 1998, os
maiores especialistas Javaé em mitologia. Donahue (1982) diz que os homens Karajá
contam mitos na Casa dos Homens, mas que a maioria das pessoas escuta-os pela primeira
vez na infância, contados por suas avós.
Apesar das lahi serem ativadoras dos conflitos através das acusações públicas
existentes nos choros e xingamentos ritualizados, elas também têm o poder de resolução
dos conflitos, de modos diversos das lutas rituais masculinas. Quando circulam mexericos
(rybèurina) pela aldeia que causam desconforto a alguém, são as mulheres que tentam
esclarecer o que foi dito, percorrendo as casas para indagar sobre a origem das intrigas ou
desfazê-las. Mas isso não pode ser feito pelas moças ou jovens mães (kuladusè tymyra), a
quem não é apropriado andar pela aldeia sozinhas, muito menos para resolver brigas
familiares. Quando alguém é ferroado por uma arraia, mordido por uma piranha ou perde
10
Foi-me relatado o caso de uma mulher, já falecida, que há alguns anos atrás assumia publicamente a sua
condição de xamã, chegando ao ponto de ser “dona de aruanã” na aldeia Boto Velho. Ou seja, ela se
responsabilizava ritualmente – no pátio masculino – por uma dupla de aruanãs trazida ao nível terrestre,
conduzindo as suas brincadeiras rituais. Dizem que antes havia outros casos assim. Existem muitas mulheres
xamãs, mas em geral elas são hàri wasi, xamãs de identidade oculta. Em 2004, durante uma visita a uma
aldeia Karajá, os Javaé encontraram uma mulher exercendo o papel de xamã e de dona de aruanã, embora
sem a mesma liberdade dos homens.

797
algum parente que morreu, espera-se das mulheres mais velhas aparentadas, o que inclui os
parentes bilaterais, o choro/lamento público que honra a família e identifica os supostos
autores da ação no plano invisível da feitiçaria. Atribui-se às mulheres sábias a capacidade
interpretativa, já mencionada, de estabelecer as conexões de sentido entre os fatos e as
atitudes das pessoas, revelando assim as intenções por trás da causa das mortes e acidentes
pessoais.
Uma outra forma de atuação de prestígio das avós no âmbito doméstico, mas que
não se restringe à resolução ou evitação de conflitos, ocorre através da prática de
aconselhamento cotidiano, integrante essencial de uma educação considerada correta. Seu
contraponto masculino é o aconselhamento cotidiano dos jovens na Casa dos Homens e,
mais especificamente, durante o ritual da Casa Grande, pelos worosy, quando é enfatizada
a importância do compromisso com o segredo masculino. Os “conselhos” em geral são
chamados dohonyky e os conselheiros são conhecidos como dohonykydu ou tamyrybèdu,
mas aquelas recomendações que têm o objetivo específico de evitar ou dissolver brigas
familiares são chamadas de raybidi lukure. Cabe às avós maternas, de preferência, ensinar
as tarefas tipicamente femininas e o aconselhamento diário das crianças e jovens de ambos
os sexos sobre os modos corretos de se comportar em todas as situações sociais, antes ou
depois do casamento, incluindo as regras de etiqueta formais que povoam o cotidiano
Javaé. Todas as mulheres através das quais se identificam as grandes famílias eram
honradas pelo trabalho de seus maridos, mas também eram consideradas sábias, capazes de
falar “com educação” e, na maioria dos casos, de não tomar a iniciativa em brigas,
respondendo só quando provocadas.
O conhecimento masculino constrói-se em torno da vida cerimonial, sendo
transmitido na Casa dos Homens para os jovens iniciados, independentemente do grau de
parentesco entre os envolvidos. Já as avós-conselheiras, por sua vez, devem se dirigir,
cotidianamente, apenas aos seus próprios netos. Em situações especiais, as mulheres mais
velhas podem fazer recomendações a outros parentes próximos, moradores de outras casas,
os quais devem escutar os mais velhos sempre demonstrando respeito. Por isso e pelo fato
das mulheres terem circulação restrita pela aldeia, é bastante incomum professoras
bilíngües nas escolas, cargo ocupado sempre pelos homens. Os Javaé atribuem os
comportamentos condenados socialmente, como a promiscuidade sexual ou as brigas em
famílias, à ausência de conselheiras na educação de uma criança. As recomendações a uma
pessoa devem acontecer em horários determinados durante o dia, por volta do meio-dia, no

798
fim da tarde ou de madrugada, antes do dia raiar. Em geral, uma mulher só exerce essa
função de aconselhamento dos netos após a morte de sua própria mãe, quando se espera
que ela tenha aprendido o que ensinar às gerações mais novas.
Com as mudanças das relações econômicas, os Javaé reconhecem que diminuiu o
prestígio das mulheres e o controle que exerciam sobre a produção de seus maridos, que
antes era totalmente entregue a elas e aos seus pais. Os homens não plantam nem pescam
ou caçam mais na mesma freqüência de antes e é comum que os homens assalariados ou os
que recebem alguma renda pelo aluguel das pastagens ou pela comercialização de peixe
não entreguem seus salários às mulheres, mas apenas os produtos adquiridos através do
dinheiro. Mesmo assim, coube a elas o controle sobre o arroz gerado no projeto
comunitário implantado pela FUNAI, nos anos 70, na aldeia Canoanã. Em contraste com
as mulheres Kayapó (Lea, 1999), que não produzem as peças de artesanato vendidas pelo
grupo, agora as mulheres Javaé de quase todas aldeias obtêm renda própria através da
fabricação do artesanato de palha e penas de pássaros, correspondente, em menor escala, às
famosas bonecas de cerâmica vendidas pelas mulheres Karajá.
Entre estas últimas, a renda advinda do trabalho como ceramistas e artesãs tem
contribuído para aumentar a carga de trabalho 11 , por um lado, mas também para manter
parte do prestígio perdido após o contato (Pétesch, 2000). Em geral, as mulheres Javaé
vendem o artesanato nas aldeias ou cidades vizinhas sem ter que pedir qualquer tipo de
autorização aos maridos e têm controle total sobre a renda obtida. Há ainda alguns casos,
mais raros, de mulheres que trabalham como funcionárias da área de saúde, por exemplo, e
recebem salários. Apesar desses novos fatos, a avaliação dos próprios Javaé parece ser no
sentido de que situação das mulheres piorou após o contato. Uma mulher Javaé de meia-
idade e bastante influente em sua pequena aldeia disse-me em 2002 que, ultimamente, os
homens têm falado que agora os tempos são outros, chegando a dizer em uma reunião de
caciques daquele ano que “agora não é mais como antigamente, quando as mulheres
mandavam nos homens”.
Embora a uxorilocalidade e as prestações matrimoniais ainda sejam um padrão
seguido pela maioria, pode-se especular que as novas relações sociais e econômicas com o
branco, o estrangeiro cujos conhecimentos extraordinários e tecnologia poderosos foram
simbolicamente associados à criatividade feminina, tenham aberto aos homens a
possibilidade de uma maior flexibilidade em relação à necessidade tradicional de se

11
Fénelon Costa (1978), Taveira (1982), Bueno (1987).

799
submeter aos afins. É como se a relação com esse Outro externo feminilizado, muito mais
poderoso e mortal, aos poucos esteja ocupando o lugar das esposas e afins. De um ponto de
vista masculino, por um lado está ocorrendo uma mudança libertadora, ainda que relativa,
do Outro interno igualmente feminilizado e ao qual os homens tiveram que se submeter
desde sempre; por outro, há uma reprodução criativa da estrutura “tradicional” em um
contexto moderno, uma vez que tanto agora como antes se tem uma reação masculina à
coação de uma alteridade femininilizada (o Branco), aos moldes do que Bonilla (1997,
2000) mostra em relação à apropriação do espaço.
No caso Karajá, Bueno (1975, 1987), que lidou mais diretamente com a questão,
tem uma abordagem centrada no paradigma da aculturação e conclui pelo agravamento da
antiga posição social da mulher Karajá em função de várias perdas causadas pelo contato:
os homens dominam as relações de troca com os brancos; as mulheres trabalham mais do
que antes por causa do artesanato comercial; as mulheres ficam restritas ao espaço da
aldeia; os homens se afastam com mais freqüência dos grupos domésticos para se dedicar
ao comércio; a mulher perdeu a proteção com que contava porque não se mantêm mais os
mesmos laços com a família extensa, que estaria sendo substituída pela família elementar;
as mulheres teriam uma suposta inabilidade em falar a língua portuguesa, dificultando seu
contato com o mundo exterior; o alcoolismo afeta na maior parte das vezes os homens e as
mulheres tornam-se vítimas da violência. Pétesch (2000), por sua vez, afirma que o contato
contribuiu para descaracterizar muito mais o complexo cerimonial Karajá do que a
estrutura das unidades uxorilocais.
É digno de nota que nos momentos em que os homens Javaé estão alcoolizados, a
revolta masculina que se manifesta nessas situações dirige-se principalmente às mulheres e
aos não-índios. São bastante freqüentes os casos de violência física contra as mulheres por
parte dos maridos alcoolizados. O efeito do álcool parece atuar no sentido de liberação da
agressividade tradicionalmente coibida, em razão da ênfase cultural em um ethos pacífico e
no autocontrole masculino. Embora sejam comuns os conflitos entre os homens nessas
ocasiões, normalmente as esposas são a vítima preferencial da violência masculina que
surge sem controle. Nesses momentos, é comum os não-índios residentes nas aldeias serem
ameaçados fisicamente ou pelo menos se tornarem o alvo dos discursos alterados em que
se expressa o ressentimento pela assimetria de poder, através de falas que apontam
explicitamente a desigualdade das relações interétnicas.

800
Não é coincidência, portanto, que a raiva liberada dirija-se justamente contra
aqueles que representam a alteridade que coage no plano empírico e cotidiano, seja interna
ou externamente. A possibilidade que as lutas rituais forneciam aos homens para “passar a
raiva” e aliviar as tensões acumuladas nas relações de afinidade, de modo socialmente
aceito, não é oferecida no contexto das relações externas. Essa talvez seja a razão pela qual
o álcool tem um apelo tão grande entre os Javaé e Karajá. A sociedade como um todo
resiste notavelmente às pressões desestruturantes do contato, dando continuidade ao
processo histórico de recriação interna, mas não existem mecanismos formais, ao modo
tradicional, para extravasar a tensão decorrente das relações interétnicas. Os Karajá e Javaé
esforçam-se para manter uma imagem pacífica e de autocontrole frente ao mundo exterior,
mas para isso pagam o alto preço do alcoolismo que corrói a sociedade e ao mesmo tempo
propicia uma importante válvula de escape. O alcoolismo aqui deve ser visto muito mais
como a forma patológica mais visível de reação ao contato opressivo do que como um
problema coletivo de saúde mental.
Nesse novo contexto, as mulheres têm perdido a autoridade e o prestígio
tradicionais em favor de uma posição mais confortável para os homens internamente, não
só porque em geral são esses últimos que dialogam com o mundo externo, repetindo o
padrão de domínio da vida pública ordinária, como também porque eles adquiriram uma
maior autonomia em relação aos novos recursos gerados. Na medida em que o feminino é
construído simbolicamente como alteridade, e a relação com a alteridade é parte
constituinte de uma estrutura histórica, a relação entre masculino e feminino não é fixa
nem dada, mas historicamente construída e variável.

10.3. As refeições rituais

As atividades masculinas são executadas para preencher as necessidades diárias da


família extensa, mas também são a base dos diversos rituais que compõem o intenso
calendário cerimonial Javaé. Quando os homens se casavam, eles deveriam se mudar para
a metade cerimonial de seus afins com o objetivo principal de ajudá-los nas atividades
rituais que requerem a produção de alimentos. Como já foi mencionado, toda comida que
circula nos rituais promovidos pela Casa dos Homens e gera a honra das famílias

801
envolvidas – não há ritual sem circulação de comida – provém do trabalho de um homem
para os seus afins, embora seja preparada pelas mulheres. Segundo dizem os Javaé, o ciclo
anual da Dança dos Aruanãs, objeto deste e do próximo item, só existe porque os aruanãs
comparecem ao nível terrestre para comer o pagamento pela vagina feito à mãe ritual de
um aruanã: itykòwy rysy mynade, “veio comer o tykòwy dela”. Do mesmo modo, tudo que
a população de uma aldeia come durante um ritual da Casa Grande, que dura cerca de um
mês, é conhecido como latènisè tykòwy, “o pagamento pela vagina (tykòwy) da mãe (sè) do
latèni”.
Como cada menino ou rapaz que passa pela iniciação é “dono” (wèdu) de uma
dupla de latèni, o tio materno mascarado dos aruanãs, os jovens estão identificados com os
mascarados durante o ritual. Seus genitores respectivos, por conseqüência, são chamados
nesse período de “pais do latèni”. A comida que o pai de um jovem iniciando produz para
sustentar o ritual, portanto, é conhecida como o pagamento pela vagina da mãe do latèni.
Aqui vou me deter predominantemente na questão das refeições rituais durante a Dança
dos Aruanãs (sem considerar o ritual de iniciação masculina), o que não fiz antes e sobre o
que há muito pouca informação nas etnografias sobre os Karajá e Javaé. Para Donahue
(1982:239), os principais rituais Karajá destinam-se de um modo geral a “apaziguar os
espíritos” sobrenaturais e a proteger a aldeia, servindo também como o principal meio de
troca econômica nas aldeias. Toral (1992:271-272) também ressalta o caráter de “instância
redistribuidora” de alimentos ou de “regulador econômico” do ciclo cerimonial,
especialmente entre os Javaé.
As prestações matrimoniais são a essência da vida cerimonial regular, cuja
existência depende dos alimentos produzidos e preparados pelos “pais rituais” dos aruanãs
(irasò tyby, “pai do aruanã”, e irasò sè, “mãe do aruanã”), pelos pais rituais dos
estrangeiros mascarados ou pelos pais rituais dos latèni. Sustentar um ciclo anual requer
grande produtividade e trabalho dos genitores de um “dono de aruanã” (irasò wèdu),
porque os alimentos produzidos são consumidos pelos aruanãs propriamente ditos e por
toda a coletividade masculina reunida na Casa dos Homens. Além disso, em alguns jogos
rituais, as mulheres também partilham dos alimentos na casa das mães de aruanã. Para que
isso seja possível, os pais de aruanã recebem a colaboração dos parentes e afins na
produção de alimentos e o número de duplas de aruanãs trazidas a cada ciclo, alimentadas
por pais rituais diferentes, é relativamente proporcional ao número de habitantes de uma
aldeia, de modo que Canoanã, a maior aldeia, sempre tinha um número maior de aruanãs.

802
O ciclo anual consiste basicamente de três partes: dos xamãs trazerem os aruanãs
para o nível terrestre, quando são apresentados à comunidade e aos seus donos pela
primeira vez; das brincadeiras que os humanos realizam ao longo do ano para alegrá-los, a
pedido deles, quando são alimentados; e da despedida ao fim do ciclo, quando retornam
aos lugares de origem e os humanos terrestres choram tristes pela sua partida. Como já foi
mencionado brevemente, o ritual de iniciação masculina é o ápice cerimonial do ciclo dos
aruanãs, tradicionalmente realizado durante o auge da estação das chuvas e da colheita das
roças, por volta de fevereiro ou março. Antes das cerimônias de despedida dos aruanãs, os
Javaé realizavam o Iweruhuky, por volta do mês de maio ou junho. Terminado o ciclo
anual, as famílias aproveitavam para acampar nas praias dos rios e se dedicar às
expedições de pesca, o que se mantém agora apenas entre os homens que pescam
comercialmente.
Os períodos descritos são as épocas ideais de realização dos rituais controlados pela
coletividade masculina, mas na prática há grande variação em relação a esse modelo ideal,
seja em função das mortes ocorridas ou das alterações advindas com o contato. Os
estrangeiros mascarados costumam ser trazidos pelos xamãs para serem alimentados por
seus pais rituais imediatamente antes ou depois do Hetohoky, fazendo parte da iniciação
masculina que os recém iniciados usem o corpo velho dos estrangeiros logo após o fim da
iniciação. O fluxo cerimonial é interrompido pelos períodos de luto, que duram cerca de
um mês quando se trata de um adulto e menos tempo no caso da morte de crianças ou dos
muito velhos. No último dia do luto, a mãe ou a avó do morto avisa às mulheres, de casa
em casa, que podem pintar seus filhos com jenipapo, e às mães de aruanãs que podem
preparar a irasò mona, a “bebida dos aruanãs”, a fim de que as danças sejam reiniciadas.
Após o contato, os compromissos externos dos homens nas cidades ou em reuniões
políticas, o calendário escolar e as festas ao estilo regional passaram a interferir no
calendário cerimonial.
Como já foi dito antes, “depois de negociações informais privadas entre o xamã e
os pais de uma criança, acerta-se quando o aruanã virá, o que pode se dar no ano seguinte”
(Rodrigues, 1993:207). Pouco antes do aruanã chegar, o xamã dirige-se à casa dos pais da
criança para entregá-lo formalmente, ocasião em que diz: “waberahatxi oitxerena
ariwahinykere”, “o que eu vou dar é igual o que estou vendo lá no Fundo das Águas”
(1993:207). O xamã deve ser acompanhado por um grupo de cunhados ou de parentes
próximos, que são chamados de hàri ihèdudu (“acompanhantes do xamã”). O grupo de

803
cunhados pode incluir os maridos das suas irmãs ou primas, os irmãos ou primos de sua
esposa ou mesmo as irmãs da sua esposa, embora os primeiros (os ratyby) o acompanhem
cumprindo uma das obrigações relativas às prestações matrimoniais. O mesmo ocorre
quando o xamã vai entregar os latèni aos meninos que serão iniciados, um dia antes dos
mascarados chegarem. O evento de entrega dos aruanãs ou latèni deve ser “animado”,
“alegre”, por isso o xamã deve ir acompanhado de um grupo de pessoas.
Depois que um casal é agraciado por um xamã, em um determinado ano, com a
grande e irrecusável honra de receber uma ou mais duplas de aruanãs – cujo “dono”
simbólico é o filho que está identificado com os aruanãs (irasò wèdu, “dono de aruanã”) –,
cada dupla deve ser “alimentada” por seus pais rituais em três situações mais importantes,
durante o ciclo anual que se inicia, já descritas em maior detalhe anteriormente (Rodrigues,
1993). Em primeiro lugar, no dia seguinte à data especial em que cada dupla de aruanãs
chega secretamente à aldeia, à noite, quando é apresentada à comunidade e aos seus donos
pela primeira vez. A dupla faz a refeição chamada wona, o que também foi registrado por
Toral (1992), constituída da contribuição de toda a comunidade aos pais rituais. Na noite
anterior, as mães dos aruanãs convidam as “dançarinas” (adusidu) jovens e ainda não
casadas que deverão acompanhar os aruanãs em todas suas danças como suas irmãs rituais
(irasò didi). Elas também convidam as mulheres mais velhas, já com filhos ou mesmo
netos, mas que gostam de dançar e em geral participam da bèdèsò dusina, “danças da
noite”.
Apenas algumas das brincadeiras são realizadas a cada ano, havendo as que se
repetem com mais freqüência e as que são mais raras. A chegada de novos aruanãs, em
dias diferentes, em geral ocorre na transição entre a estação seca e o início das chuvas,
dando início ao ciclo anual. Em segundo lugar, os aruanãs devem ser alimentados em
quase todas as vezes que dançam ao longo do ciclo, o que muitas vezes coincide com a
realização das brincadeiras rituais respectivas, que demandam peixe ou caça como
alimentos. Por fim, exige-se uma maior abundância de alimentos que o normal durante os
quatro rituais de encerramento ou despedida dos aruanãs já mencionados (Imonariòrè,
Idòriòrè, Imonahaky, Idòhoky), que são realizados na época de transição entre a estação
das chuvas e a estação da seca. Toral (1992:164) relata que, sempre que os homens saem
para buscar comida para os aruanãs, eles são guiados pelo xamã, a quem o aruanã “contou
onde está a comida”, ou seja, os animais de caça, ovos de tartaruga, mel, peixes etc.

804
Como pode ser visto nas tabelas ao lado (n° 22 e n° 23), referentes à periodicidade
dos rituais realizados durante a minha pesquisa de campo, na aldeia Canoanã, os aruanãs
dançam freqüentemente. As danças são interrompidas apenas para a realização do ritual de
iniciação, durante os períodos de luto ou entre o fim de um ciclo e o início de outro, de
modo que há uma grande demanda de alimentos para os pais rituais de cada dupla de
aruanãs durante um ciclo cerimonial. Quando um filho vai ser iniciado, a demanda é maior
ainda, pois, além dos alimentos quase diários que devem ser produzidos para o ritual de
iniciação masculina (para os latèni e worosy), que pode durar quase um mês, os genitores
devem se responsabilizar pelos aruanãs que vêm especialmente para a ocasião e
permanecem durante um ciclo anual inteiro, pelo menos. Um casal que não sustenta com
generosidade e fartura os aruanãs que recebeu não só sofrerá com a desonra pública,
transmitida aos seus descendentes, como poderá ter seus parentes próximos punidos com
feitiços mortais.
Os quadros apresentados detalham a ocorrência dos jogos ou brincadeiras rituais
dos aruanãs que aconteceram em 1997/1998. Os Javaé informam que há mais de 30 tipos
de jogos diferentes, dos quais cerca de 20 já foram descritos antes (Rodrigues, 1993),
divididos entre os narakyna somo somo (“jogos pequenos”) e os narakyna tyhy (“jogos de
verdade”) ou narakyna haky (“jogos grandes”). Além desses, há os jogos dos aruanãs “das
crianças”, em que estas imitam as danças de aruanã, porém com jogos específicos.
Nos “jogos pequenos”, em sua maioria, homens e mulheres ritualizam ludicamente
uma disputa ou conflito entre os sexos, assim como entre os Mehihaku (Gregor, 1985).
Ocorrem diferentes tipos de competições coletivas, como no jogo Axikòròrò (“círculo”,
feito com cipó), em que homens e mulheres disputam quem vai arrastar um imenso cipó,
em forma de círculo, para o lado respectivo (mato ou rio); ou no jogo Orinyky (“carvão”),
em que cada grupo deve pintar os membros do outro, que tentam escapar, com o carvão
produzido especialmente para essa ocasião. Cada jogo envolve um tipo de competição
diferente, de complexidade variada, como o Ixy (“porco queixada”), o Wyhy Raheto
(“flecha adornada com penas”), o Hawyky Hojuju (“vara das mulheres”) ou o Kohurò
(“lança de madeira”), entre vários outros. Em alguns deles opera-se a divisão entre metades
cerimoniais e, em outros, homens e mulheres participam indistintamente de um mesmo
“lado”, simbolicamente associado ao masculino ou feminino.

805
Tabela n° 22: Distribuição anual (1997/1998) dos jogos rituais*

Março 1997 9 10 11 13 16 18 20 21
Manhã / /B
Tarde / / /A / / /B
Noite / / /

Março 22 23 24 26 27 29 30
Manhã / /
Tarde / / /C /D /D /B
Noite / /

Abril 1 2 3 4 6 7 9 10 11 12 17 18
Manhã / / / / /
Tarde / /D /D /E / /B / /D / /
Noite / / / /

Abril 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30
Manhã / / /F /A
Tarde / / / / / /
Noite / / / / / / /

Maio 1 2 3 4 5 6 23 24 25 26 28 30 31
Manhã / /A / / / /
Tarde / /G / / / / / + /H /
Noite / / / / / /

Junho 1 2 3 6 7 9 13 14 15 17 18 19 20
Manhã /B / /B /B / /
Tarde /B / /B / /B /I / / /
Noite / / / / / / / /

Agosto 7 8 9 13 14 17 18 19 20 21
Manhã / / /
Tarde / /H / /H / / / /H
Noite # / / # / #

Agosto 22 23 24 25
Manhã
Tarde / / /H /
Noite /

Outubro 8 9 18 19 20
Manhã /
Tarde / / /H /
Noite /

806
Novembro 4 5 6 23 24 25
Manhã /B / / /
Tarde / /B / /J /H /B
Noite / /

Dezembro 5 6 7 8 9 10 11
Manhã
Tarde / / /H + / /H
Noite # / /

Fevereiro 1998 16 18 20 21 26 27 28
Manhã / / /A /A
Tarde / / / /B /
Noite

Março 5 6 7 9 10 12 15 20 21 26 27
Manhã / / / / /
Tarde /H / /D /D / /K /B / /B /
Noite / /

Abril 3 6
Manhã /L /
Tarde /L /E
Noite / /

* Legenda:

(A) Jogo Ixo (“Distribuir”)


(B) Jogo Orinyky (“Carvão”)
(C) Jogo Kuladu biditò (“Crianças chupando o mel”)
(D) Jogo Axikòròrò (“Cipó)
(E) Jogo Wyhy Raheto (“Cocar da flecha”)
(F) Jogo Iwodudu (massa de mandioca recheada com peixe)
(G) Jogo Hyty (massa de mandioca com mel)
(H) Jogo Bidi (“Mel”)
( I ) Jogo Hererawo
( J ) Jogo de flechar os aõni chamados Inyni e Ajuesani
(K) Jogo Tudu (variação mais complexa do jogo do mel)
(L) Jogo Hawyky Hojuju (“Vara das mulheres”)
( / ) Períodos em que os aruanãs dançaram
(+) Dia de chegada dos vários estrangeiros mascarados e do korera, “corpo velho do
jacaré-tinga”, que em geral vêm juntos. É também um dia em que os aruanãs dançaram.
(#) Dia da chegada de um ou mais novos aruanãs à noite.

807
Tabela n° 23 – Atividades rituais em 1997/1998* **

Mês / Data 1 2 3 4 6 5 7 8 9 10 11 12 13 14
Março 1997 L L L L L L L L / / * /
Abril / / * * * / / * / *
Maio / * / / * / H H H H H H H H
Junho * / / * / * * /
Julho D D D D D D D D D D D D D D
Agosto 0 0 0 0 0 0 # / * / *
Setembro L L L L L L L L L L L L L L
Outubro L L L L L L L / /
Novembro L L L L * / /
Dezembro # / / * + / * - - -
Janeiro 1998 L L L L L L L L L L L L L L
Fevereiro L L L L L L L L L L L L L L
Março / * / * * /
Abril * / * - - - - - - - -

Mês / Data 15 16 17 18 19 20 21 22 23
Março 1997 / / / * / /
Abril / / / / / /
Maio H H H H H H H H H
Junho / / / / / D D D
Julho D D D D D D 0 0 0
Agosto / # / / * # / /
Setembro L L L L L L L L L
Outubro / * / L
Novembro *
Dezembro - - - - - - H H H
Janeiro 1998 L L L L L L L L L
Fevereiro L / / / *
Março * * /
Abril - - - - - - - - -

Mês / Data 24 25 26 27 28 29 30 31
Março 1997 * * * / *
Abril / * / * / / /
Maio / + * / / /
Junho D D D D D D D D
Julho 0 0 0 0 0 0 0 0
Agosto * / L L L L L
Setembro L L L L L L L L
Outubro L L L L L L L L
Novembro * *
Dezembro H H H H H H H L
Janeiro 1998 L L L L L L L L
Fevereiro / * *
Março * /
Abril - - - - - - - -

808
* Legenda:

(L) Períodos de luto, em que as atividades cerimoniais são suspensas, sendo reiniciadas no
último dia do luto. Os períodos maiores referem-se a mais de uma morte, ocorridas
sucessivamente. No primeiro período de luto registrado, eu ainda não estava em Canoanã,
tendo iniciado a minha pesquisa no dia 9 de março de 1997.
( / ) Dias em que os aruanãs dançaram.
(*) Dias em que os aruanãs dançaram e houve algum jogo ritual.
(H) Realização do Hetohoky propriamente dito, embora o ritual comece a ser preparado
alguns meses antes e alguns procedimentos tenham continuidade depois, quando os latèni
são mandados embora, o que ocorre paralelamente às danças dos aruanãs. O primeiro foi
um Hetohoky completo, porém realizado em uma época considerada tardia por vários
motivos; o segundo foi apenas o Hetohoky Wèkèrè, quando se realiza uma parte apenas do
Hetohoky, o qual não foi presenciado por mim e foi interrompido antes do fim por um
período de luto.
(+) Dia de chegada dos vários estrangeiros mascarados e do korera, “corpo velho do
jacaré-tinga”, que em geral vêm juntos. É também um dia em que os aruanãs dançaram.
(D) Período total de realização dos quatro rituais de “despedida” dos aruanãs, os quais já
foram descritos em Rodrigues (1993). Neste período eu estava visitando outras aldeias
Javaé e, depois, estava em Brasília, tendo retornado à aldeia em 8 de agosto de 1997.
(0) Período entre o fim de um ciclo anual dos aruanãs e o início de outro, em que não se
realiza nenhuma atividade ritual.
(#) Dia da chegada de um ou mais novos aruanãs à noite.
(-) Dias em que eu não estava presente na aldeia.

** A ausência de atividades rituais em alguns dias de outubro ou novembro ocorreu


porque, em outubro, os homens foram convidados para participar de um dos rituais de
encerramento do ciclo anual na aldeia São João e para partidas de futebol em uma aldeia
Karajá; e, em novembro, para reuniões políticas em outra aldeia Javaé.

809
Foto n° 14: Crianças participando da brincadeira de “carvão” (aldeia Canoanã, 1997)

No segundo tipo, chamado de “jogos grandes”, os principais são os jogos entre os


aruanãs propriamente ditos e os vários tipos de aõni que dão nome aos jogos (Inyni,
Halòkòè, Ijorobari, Ajuesani, Kahõhõ, Ihihi etc). Os aõni são flechados pelos aruanãs
durante a brincadeira, que simula a cópula sexual. Afinal, o sexo é tido como a maior
diversão humana, sendo esta a “brincadeira” preferida dos aruanãs.
Os jogos rituais Javaé manifestam uma clara relação de antagonismo entre as duas
partes, associadas ao masculino e feminino, apesar do espírito lúdico. Segundo
Heckenberger (2002:115), “rituais de antagonismo sexual, eventos esportivos (lutas, jogos
de bola, competições de corridas) e conflitos ritualizados”, comuns entre os povos Arawak,
fornecem um mecanismo de redução da tensão acumulada nas relações cotidianas
extremamente formais 12 . No mito, entretanto, os jogos rituais teriam sido uma inovação
dos Wèrè, não sendo atribuídos ao povo de Tòlòra, por mim associado aos Arawak. Os
dois tipos de jogos incluem algumas brincadeiras rituais mais simples, que se constituem
basicamente dos aruanãs receberem das suas irmãs rituais, na extremidade feminina da
pista de dança, enquanto dançam, recipientes contendo alimentos muito valorizados e que
demandam maior esforço dos pais do aruanã para serem obtidos. É o caso das brincadeiras

12
Ver a crítica de McCallum (2001) ao rótulo “antagonismo sexual” para os jogos rituais, como em Gregor
(1985), que supõe, entre outras coisas, uma visão naturalizante do gênero.

810
de Bidi, em que se oferece mel aos aruanãs, Hyty, massa de mandioca com mel, Iwodudu,
massa de mandioca recheada com peixe, Kobiku, peixe assado, Hanyky, inhame ou
mandioca cozida banhados no óleo retirado da tartaruga ou do pirarucu.
Outros jogos envolvem a participação de todas as crianças e adolescentes,
acompanhadas de seus tios maternos. Há o consumo de alimentos preparados pela mãe de
cada criança, o que demanda a contribuição de toda a comunidade, e não apenas dos pais
dos aruanãs. É o caso da brincadeira Kuladu biditò, já descrita, em que os participantes
dividem-se nas metades cerimoniais e comem um pequeno bolo de mandioca embebido no
mel; da brincadeira Tudu, também já descrita, em que se consome mel, tanto no terreiro
masculino (ijoina) quanto no terreiro feminino, na porta da casa da mãe do aruanã,
chamado irasò sè ijò; e da brincadeira Kuladu Iwodudu (“Iwodudu das crianças”),
realizada nos mesmos dias, à tarde, em que se realiza a brincadeira Iwodudu pela manhã.
Na brincadeira Ixo (“distribuição”), os aruanãs são guiados pelo xamã e pedem alimentos
em todas as casas da aldeia. Donahue (1982), Lima Filho (1994) e Pétesch (2000)
descrevem vários jogos rituais dos Karajá, os quais, no entanto, parecem ser em número
menor que os dos Javaé, alguns com conteúdos bastante diversos, outros semelhantes
(embora com nomes diferentes).
Toda brincadeira começa quando o xamã que é dono/controlador da dupla de
aruanã avisa ao pai ritual respectivo que o seu aruanã “quer brincar”. Este último será o
“dono” da brincadeira do dia, o que lhe confere a prerrogativa de começar a dançar e
brincar primeiro, sendo seguido logo depois pelas outras duplas, que também participam da
brincadeira programada. Durante as danças, que em média duram cerca de 2 horas, cada
dupla de aruanãs dança e canta na sua pista (ube) respectiva, aquela que liga a Casa dos
Homens à casa de seus pais rituais, acompanhado de suas parceiras de dança (uma ou duas
irmãs rituais). Em algumas das brincadeiras, como Iwodudu e Kobiku, ou nos rituais de
despedida, os aruanãs dançam por toda a aldeia e nas pistas dos outros aruanãs. Quanto
mais forem as duplas de aruanãs, mais pistas diferentes estarão sendo ocupadas ao mesmo
tempo na aldeia. Durante as danças, os homens concentram-se no pátio ritual masculino,
enquanto as mulheres e crianças assistem a tudo de suas casas ou das casas dos pais de
aruanãs aparentados, de onde podem apreciar a dança mais perto.
Os jogos rituais devem seguir uma certa seqüência durante um ciclo anual, embora
esta não seja obedecida rigidamente, de modo que a primeira brincadeira sempre deve ser a
de Bidi, que tem uma versão um pouco diferente quando o aruanã em questão é do nível

811
celeste. Teoricamente, cada dupla, controlada por um xamã diferente, deveria repetir a
própria seqüência de jogos ao longo de um ciclo, o que nem sempre ocorre na prática. Nos
quadros ao lado, que apresentam o fim de um ciclo e o início de outro, pode-se ver que os
jogos realizados naqueles anos, simbolizados por letras, seguem uma seqüência relativa ao
longo do ciclo. Quando os jogos se repetem, significa que uma outra dupla de aruanãs é a
“dona” do jogo naquele dia. Alguns jogos, como o de carvão, são repetidos no dia
seguinte, para finalizar a disputa que foi iniciada no dia anterior. Dos jogos listados, apenas
o Iwodudu, o Hererawo e o jogo de flechar o Inyni e os Ajuesani fazem parte dos “jogos
grandes”, quem em geral são bem mais raros que os “jogos pequenos”. Além da seqüência
de jogos durante um ano, cada jogo ritual é constituído de um pequeno ciclo básico de três
dias, cujos detalhes apresentados a seguir são mais completos do que o que descrevi antes
(Rodrigues, 1993).
Quando o xamã avisa ao pai ritual que o aruanã “quer brincar”, o pai do aruanã
comunica na Casa dos Homens, no fim da tarde ou começo da noite, que haverá uma
brincadeira no dia seguinte, enquanto a mãe do aruanã avisa o mesmo às mães dos outros
aruanãs, de casa em casa. Logo após o aviso do pai do aruanã, os homens reunidos emitem
um grito especial que é conhecido como irasò riwahi anarakana, “aviso da brincadeira de
aruanã”. No dia seguinte ao aviso, os aruanãs dançam entre 10 horas da manhã e meio dia,
aproximadamente, fazendo uma pequena refeição com a bebida iweru (ou calogi, palavra
regional), feita à base de milho, macaúba, mandioca ou arroz, e adoçada com mel ou
açúcar, no início da dança, e outra mais completa ao final, com produtos agrícolas e,
opcionalmente, peixe ou caça. No meio da tarde, os aruanãs dançam novamente e, depois,
fazem uma outra refeição com iweru ou com outros alimentos, caso estejam disponíveis.
Depois de encerradas a dança e a refeição, tem lugar a brincadeira programada, já no fim
do dia.
Terminada a brincadeira, o pai ou o avô do aruanã utiliza a raiz woixina, preparada
pela mãe do aruanã, e faz a limpeza ou purificação do “rosto” dos aruanãs. Ele passa o
produto na parte superior das máscaras na Casa dos Homens, com o objetivo de retirar a
poluição terrestre (kyty), prática conhecida como òsurona e já mencionada antes 13 . O
produto à base da raiz woixina é dado também para aquele que dançou, que lava o seu
próprio rosto. Sempre que se faz a limpeza, os aruanãs dançam mais uma vez, à noite,

13
Toral (1992:165) menciona que o “osorona” pode ser feito também com sementes de algodão, urucum e
uma raiz chamada hãdora, além da raiz “wosina”. Para o autor, o “objetivo declarado” do “osorona” é que os
aruanãs facilitem a vinda ao nível terrestre dos animais de caça dos quais são donos no Fundo das Águas.

812
quando não há mais obrigação de alimentá-los, embora ocasionalmente os aruanãs ou os
outros homens peçam o caldo iweru às mães dos aruanãs mais uma vez, sendo atendidos.
Por fim, no terceiro e último dia, tem lugar o iwokytyna, a mais importante refeição ritual,
composta obrigatoriamente de peixe ou caça, além de outros ingredientes, que ocorre antes
dos aruanãs dançarem mais uma vez à tarde. Depois, toma-se o iweru mais uma vez,
encerrando o pequeno ciclo 14 .
Há variações do que foi descrito em algumas brincadeiras, como nos jogos Bidi ou
Tudu, por exemplo, cujos ciclos alcançam quatro dias, pois no segundo dia os aruanãs
dançam por três vezes (manhã, tarde e noite), fazendo as refeições respectivas, e depois
realizam o jogo propriamente dito no terceiro dia, deixando o iwokytyna para o quarto.
Além disso, a limpeza facial é feita duas vezes, no segundo e terceiro dias, e seguida de
danças noturnas. Em outros casos excepcionais, como no jogo Iwodudu, os aruanãs devem
dançar várias noites seguidas antes do iwokytyna. Além do mais, quando os aruanãs ficam
muitos dias sem dançar, o pai do aruanã pode pedir para fazer a limpeza ritual nas
máscaras, o que é seguido de danças na noite do mesmo dia e da refeição iwokytyna no dia
seguinte, depois da qual os aruanãs dançam. Isso é feito “para alegrar” a aldeia,
independentemente do aruanã ter brincado ou não. O quadro apresentado mostra que os
procedimentos ideais nem sempre são seguidos, por razões como a chuva que cai e impede
a dança programada para o dia, entre outras.
Entretanto, importa aqui perceber que em todos os casos, repetindo brevemente o
que já foi dito antes (Rodrigues, 1993), trata-se de uma representação simbólica da relação
de procriação entre homens e mulheres, da oposição miticamente fundadora entre
masculino e feminino, uma vez que todos os jogos, os “pequenos” e os “grandes”, só
terminam quando os aruanãs fazem o iwokytyna (“lugar do kyty dentro dele”) na Casa dos
Homens. Esta palavra é uma versão da mesma que designa o fim do resguardo de um casal
que acaba de procriar (ikytyna, “lugar do kyty dele”), quando ambos podem voltar a ingerir
as comidas sangrentas e poluídas. Os jogos são pensados como simulações da cópula
criadora, produzindo um estado de poluição ao colocar em contato direto aruanãs e aõni,
símbolos do masculino e feminino, e homens e mulheres, os quais são mantidos
relativamente purificados no dia a dia através da separação entre o espaço dos homens
(ijoina) e o das mulheres (ixy).

14
Segundo Pétesch (2000:97), os principais componentes da Dança dos Aruanãs Karajá são “a dança, o
canto, o jogo e o consumo de alimentos”, sendo que o último é o “elemento motor do ritual”.

813
Após o fim de cada jogo, os aruanãs (e aõni, caso estes tenham participado) entram
em um período de resguardo simbólico, o que foi confirmado conscientemente pelos Javaé,
uma vez que devem ser purificados com o woixina e não podem comer nenhum tipo de
caça ou peixe, que contêm o sangue ou “cheiro ruim” poluído (kyty), mas apenas o caldo
iweru. A carne produzida por seus pais só poderá ser ingerida no dia seguinte, na refeição
chamada iwokytyna, que deve ocorrer sempre que se faz a limpeza ritual. Trata-se dos
mesmos procedimentos que constituem o resguardo dos humanos, associado a técnicas de
purificação e interdição de carnes como alimentos. Assim como o ikytyna marca o fim do
resguardo dos genitores de um recém-nascido, o iwokytyna marca o fim do período de
purificação dos aruanãs, que então podem fazer a refeição mais completa de todas,
composta de peixe ou caça, necessariamente, e produtos agrícolas. Durante o ritual da Casa
Grande, a mesma lógica se repete, de modo que tanto os latèni quanto os worosy
convidados também entram em uma espécie de resguardo purificador após participar de
algumas “brincadeiras”, e que é finalizado com a refeição iwokytyna.
De fato, durante os “jogos pequenos” entre homens e mulheres, os Javaé admitem
que impera uma incomum informalidade nas relações entre os sexos. Há também uma
grande sensualidade nas brincadeiras, que põem em contado corporal direto homens e
mulheres, principalmente possíveis parceiros sexuais. O mesmo foi notado por Donahue
(1982) e Pétesch (2000:107) em relação aos jogos Karajá, que esta última chama de “ritos
de inversão” graças à sua “natureza dessacralizante” e “catártica”. Assim como nas lutas
rituais, irmãos reais e classificatórios próximos não devem atuar como antagonistas,
esperando a solidariedade recíproca nas divertidas disputas. No caso das moças (ijadoma)
e rapazes (weryrybò) que ainda não se casaram, os principais protagonistas dos jogos, as
disputas devem se dar apenas com os seus primos distantes, o que coincide, em termos
gerais, com a mesma categoria onde encontrarão seus futuros cônjuges. A extrema
formalidade e separação que caracterizam as relações cotidianas entre os sexos,
simbolizada durante a Dança dos Aruanãs pelo distanciamento obrigatório entre os
dançarinos mascarados e suas parceiras rituais, são substituídas nos jogos por uma grande
informalidade lúdica e proximidade física.
Como se sabe, são exatamente os weryrybò e ijadoma que devem dançar,
preferencialmente, como o aruanã mascarado e sua irmã ritual. A interação física entre eles
durante os jogos é interpretada como uma espécie de cópula simbólica que gera um estado
de poluição a ser purificado em seguida pelos aruanãs. Tanto as lutas como os jogos

814
rituais, associados às metades cerimoniais (em especial no caso das lutas), propiciam o
antagonismo entre parceiros simbolicamente associados ao masculino e ao feminino, rio
acima e rio abaixo, devendo ocorrer entre primos distantes nos dois casos. Enquanto as
lutas reduzem as tensões das relações de afinidade altamente formais e repressoras,
colocando frente a frente cunhados simbólicos ou inimigos reais, nos jogos são os
potenciais cônjuges que interagem fisicamente, dando vazão a uma licenciosidade que é
reprimida publicamente no cotidiano. Ambos estabelecem uma relação de afinidade
simbólica entre os dois grupos (ou metades rituais) que se opõem, expressando de forma
aberta, porém disciplinada, tanto o desejo sexual que une os grupos de afins (jogos) quanto
a rivalidade velada entre credores e devedores (lutas).
A interação metaforicamente sexual entre o lado masculino e o lado feminino nos
jogos é inseparável de uma relação de oposição ou conflito entre as partes, ainda que seja
expressa ludicamente, uma vez que o sexo sempre implica na submissão de um homem aos
seus afins, simbolicamente feminilizados. A lutas e os jogos podem ser vistos como
“elaborado aparato ritual para a redução da tensão” (Heckenberger, 2002:115), mas a
tensão que se tenta extravasar origina-se primordialmente das relações de afinidade, que
ao colocar em contato os corpos masculinos e femininos – e os grupos a eles associados –
gera o prazer e o pagamento devido, a vida dos filhos e a morte dos pais. Atualmente, a
tensão maior – expressa principalmente através do alcoolismo – advém das relações de
afinidade simbólica com os não-índios, o Outro feminilizado cujo grande poder oprime e
causa transformações profundas, mas ao qual os Javaé como um todo reagem ativamente,
dando continuidade ao exercício de uma agência histórica que tenta reverter transformação
em perenidade, o diferente em familiar.
Veremos no próximo item que a comida que é oferecida aos aruanãs, originada das
prestações matrimoniais, também opõe os grupos de afins dentro da Casa dos Homens,
mas que a Dança dos Aruanãs é a forma nativa mais elaborada e sofisticada de anular,
simbólica e paradoxalmente, a afinidade que constitui não só o próprio ritual como a
sociedade. Um homem tem a obrigação de plantar, coletar, pescar e caçar – como parte do
serviço da noiva – para fornecer os alimentos que sustentam os aruanãs de seus próprios
filhos nas situações descritas. Algumas refeições requerem apenas a comida de origem
agrícola, conhecida como rasyna, enquanto outras, mais valorizadas, requerem alimentos
de origem animal, conhecidos como dò. A comida dos aruanãs originada exclusivamente
da roça é chamada de irasò rasyna, “alimentos dos aruanãs de origem agrícola”. As

815
refeições rituais mais importantes incluem peixe e tartaruga ou caça, mais raramente, e são
conhecidas como irasò dò, “alimentos dos aruanãs de origem animal”. Atualmente, a irasò
rasyna tem incluído, cada vez mais, apenas o caldo iweru.
As refeições realizadas no segundo dia do pequeno ciclo de cada jogo são
chamadas de irasò rasyna, porque incluem apenas o caldo iweru ou outros alimentos
colhidos na roça. A presença de peixe ou caça é opcional, embora sempre desejada, sendo
bem mais freqüente nas refeições rituais de antigamente, em razão de uma maior
abundância dos recursos naturais. A presença de irasò dò, por sua vez, é obrigatória nas
brincadeiras em que os próprios aruanãs mascarados recebem alimentos de origem animal
das irmãs rituais, já mencionadas, na refeição conhecida como iwokytyna, que encerra o
período de resguardo de todas as brincadeiras, e em duas das cerimônias de encerramento
do ciclo (Idòriòrè, “pouca comida (de origem animal) deles (os aruanãs)”, e Idòhoky,
“muita comida (de origem animal) deles (os aruanãs)”. Nos rituais de despedida,
enfraquecidos que estão depois de um ano inteiro em contato com a poluição do nível
terrestre, os aruanãs são “super-alimentados” antes da partida para seus locais de origem.
Pétesch (2000:106) vê nos rituais de despedida Karajá uma “antinomia alimentar” entre os
alimentos líquidos e adocicados, como o iweru, associados a uma identidade “aquática”, e
os alimentos sólidos e azedos (fermentados), como a carne acompanhada de mandioca
fermentada, associados a uma identidade “terrestre”.
Quando se trata dos alimentos de origem animal, um homem deve participar das
pescarias ou caçadas coletivas para obtê-los em favor dos aruanãs que pertencem aos filhos
de ambos os sexos de seus cunhados, ou seja, aos filhos dos “irmãos e primos próximos de
sua esposa” (riòrè lana), moradores de outras casas. Essa colaboração é considerada parte
das prestações matrimoniais e implica, reciprocamente, que ele deve receber ajuda por
parte dos “maridos de suas irmãs e primas próximas” (ra tyby), moradores de sua casa
natal, para alimentar os aruanãs dos seus próprios filhos. Os maridos das irmãs da mãe do
aruanã também devem ajudar, como parte do serviço da noiva devido às esposas
respectivas. Além disso, conta-se tanto com os irmãos e primos bilaterais da mãe do aruanã
quanto com os irmãos e primos bilaterais do pai do aruanã para ajudar o casal na obtenção
dos alimentos necessários. Faz parte da etiqueta que tanto os cunhados como os irmãos dos
pais de aruanã doem metade (ibutè) do que foi pescado ou caçado por eles para ajudar nas
diversas refeições rituais, o que antes era bem mais freqüente em razão de uma grande

816
abundância de peixe e caça. É função de suas esposas respectivas levar o produto obtido
para a mãe do aruanã cozinhar.
Na tarefa de sustentação de um ciclo anual, em suma, a ajuda aos pais de aruanã
nessas ocasiões especiais do calendário cerimonial provém tanto dos encargos relativos às
relações de afinidade (cooperação dos maridos das irmãs dos pais do aruanã) quanto da
solidariedade das relações de parentesco (cooperação dos irmãos e primos dos pais do
aruanã), que deve ser retribuída na mesma medida. É a esposa de um homem quem solicita
a ajuda do marido nas pescarias e caçadas rituais comandadas por seus irmãos e primos
próximos, seus labuna, não cabendo ao esposo recusar o pedido. O pai e a mãe de aruanã
não devem pedir a colaboração de ninguém, o que seria vergonhoso, mas apenas esperar
que seus cunhados (ZH) ou irmãos e primos respectivos se ofereçam para tal, aos quais
cabe a iniciativa de organizar a expedição ritual um dia antes. Na volta das expedições de
pesca e caça coletiva, antigamente, os homens emitiam um grito especial, sinal de
“alegria”, antes de chegar à aldeia e encostar a canoa no porto da mãe de aruanã, que vinha
buscar a comida destinada aos mascarados. Na antiga aldeia Wariwari, de modo diferente
das outras, o próprio pai de aruanã estava livre da obrigação de buscar o peixe, a caça ou o
mel, atividade que cabia exclusivamente aos cunhados e irmãos reais e classificatórios dos
pais de aruanã.
Tradicionalmente, a irasò rasyna é obrigação exclusiva do pai e mãe de aruanã,
enquanto a irasò dò, de maior prestígio, origina-se da obrigação dos cunhados e da
colaboração espontânea dos irmãos e primos dos pais de aruanã. Ainda se mantém o
costume antigo de que os produtos da roça devem proceder apenas do que é produzido pelo
próprio pai da criança que está identificada com o aruanã. Não se espera a colaboração dos
cunhados (ZH) ou dos parentes para colher os produtos nem se pede para usar a roça deles.
Na verdade, torna-se um xingamento dos pais de aruanã ou de seus filhos se os primeiros
utilizam a roça de outra pessoa para alimentar o aruanã, indicando preguiça para trabalhar.
É considerado desonroso, uma evidência de preguiça, que os pais de aruanã incluam frutas
silvestres na comida oferecida aos aruanãs, com exceção da macaúba, muito valorizada; e é
tido como sinal de avareza, a ser punido com feitiços, que os pais de aruanã separem para
si uma porção da comida que é destinada aos aruanãs. Os Javaé dizem que cada aruanã
come apenas “o tykòwy de sua mãe”, o que é devido à mãe ritual respectiva como

817
“pagamento pela vagina”, ainda que isso implique na colaboração dos afins e parentes dos
pais de aruanã 15 .
Há algumas situações especiais, contudo, em que as mães dos aruanãs podem
solicitar a contribuição de alimentos das roças de todas as mulheres da aldeia. Na
brincadeira de Ixo, em que os aruanãs pedem comida em todas as casas, a mãe do aruanã
avisa às outras mulheres sobre o evento um dia antes. No dia seguinte, todas devem
colocar algo do “seu pagamento pela vagina” na porta das casas. Também um dia antes da
chegada dos aruanãs, a mãe ou avó do aruanã convidam todas as mulheres para levar até a
casa delas a comida que será oferecida aos novos visitantes no dia seguinte, chamada
wona. Em outras brincadeiras de aruanã, como Kuladu biditò, Tudu ou Kuladu iwodudu,
realizadas com as crianças, todas as mulheres são convidadas para contribuir com os
alimentos necessários, embora nesses casos não se trate apenas de produtos agrícolas.
Quando os aruanãs comem a comida de origem animal que é providenciada pelos
cunhados e primos de seus pais rituais, os Javaé dizem que eles comem o “pagamento pela
vagina das tias deles”.
Em geral, a comida preparada pela mãe de aruanã deve ser levada para a Casa dos
Homens pelo próprio marido, o pai do aruanã, ou entregue por ela aos recém iniciados, que
desempenham essas pequenas tarefas a mando dos worosy, na metade da pista de dança
dos aruanãs. Os jovens cumprimentam formalmente a mãe de aruanã, com os termos de
parentesco adequado, e levam a comida para a Casa dos Homens. Nas cerimônias especiais
em que há muita comida a ser levada, a mãe do aruanã deve ser ajudada, em primeiro
lugar, por seus irmãos e primos, podendo receber a ajuda dos irmãos e primos do pai do
aruanã caso seus parentes não estejam presentes, o que é constrangedor. Reciprocamente, o
que é considerado prestação matrimonial, um homem deve ajudar os irmãos e primos de
sua esposa a levar a comida dos seus aruanãs respectivos. Um genro também deve ajudar
se o aruanã for do seu sogro, mas a obrigação maior é para com a comida dos aruanãs dos
seus cunhados (WB).
As refeições rituais realizadas dentro da Casa dos Homens devem obedecer a uma
série de procedimentos. No segundo dia do ciclo de cada jogo, quando os aruanãs dançam
pela manhã, eles começam a dançar sem nenhum tipo de alimentação prévia. Depois de
15
Pétesch (2000:111) relata que a “unidade uxorilocal fornece a alimentação vegetal” dos aruanãs Karajá,
enquanto os “cognatos próximos não residentes” na mesma casa dos pais de aruanã ajudam a buscar os
alimentos de origem animal. É graças ao “aporte contínuo de alimentos da parte de seus irmãos respectivos e
afins recíprocos que um homem e uma mulher podem assumir por vários meses a pesada carga de realizar um
ritual” (2000:211) de aruanãs ou de iniciação masculina.

818
dançar na pista que liga a extremidade sagrada masculina (ijoina) à extremidade profana
feminina (hirarina) por três vezes, eles retornam à Casa dos Homens. A seguir, as mães
dos aruanãs trazem o caldo iweru até o meio da pista, que é carregado pelos recém
iniciados para o recinto masculino. Ainda mascarados, os aruanãs fazem o xiwè, oferenda
ritual aos mortos, e tomam um pouco do iweru, conhecido como irasò mona, “bebida dos
aruanãs”, em um recipiente separado especialmente para eles. Só então os outros homens
presentes fazem o xiwè e tomam o iweru restante. Os aruanãs saem para dançar de novo,
por aproximadamente duas horas, até cerca do meio-dia.
Quando acaba a dança e eles retornam à Casa dos Homens, as mães rituais levam
novamente uma refeição até o meio das pistas respectivas, desta vez mais substancial, a
qual será levada pelos rapazes à Casa dos Homens. Se o pai do aruanã estiver do lado das
mulheres (ixy), na casa de sua esposa, ele próprio leva a comida. Então os dançarinos, já
sem as máscaras, fazem xiwè de novo e comem uma quantidade maior de alimentos,
seguidos pelos homens reunidos na condição de worosy, que também fazem xiwè e se
alimentam. O mesmo ocorre na refeição da tarde, normalmente à base de iweru, depois que
os aruanãs dançam, antes da brincadeira do dia. Como já foi dito, as mães de aruanãs não
têm a obrigação de preparar alimentos para as danças noturnas, embora às vezes entreguem
mais iweru atendendo a pedidos. Os dançarinos não devem comer em grande quantidade
antes das danças, o que pode atrapalhar a performance esperada. A refeição mais
elaborada, descrita a seguir, é aquela conhecida como iwokytyna, marcando o fim do
resguardo simbólico dos aruanãs.
Antes de dançar na tarde do terceiro e último dia, os homens reúnem-se na Casa dos
Aruanãs. As duplas que vão dançar, ainda sem as máscaras, aguardam a chegada do pai
ritual respectivo. Quando ele chega trazendo a comida dos aruanãs, ajudado pelos afins ou
parentes, aqueles que vão dançar em sua pista levantam-se e postam-se lado a lado, em pé,
virados para a direção onde o sol nasce (biura ou txuu òlòna). O pai ritual coloca-se virado
de frente para eles, de costas para o nascente, enquanto o xamã segura o hitxiwa, a varinha
com poderes mágicos que controla os aruanãs, presenciando a cena sempre do lado rio
abaixo, como no desenho (n° 19) ao lado. Essa é a posição do xamã caso o eixo leste/oeste
esteja situado transversalmente ao eixo rio acima/rio acima, como no modelo ideal. A
comida oferecida aos aruanãs é disposta entre o pai ritual e os dançarinos. Ainda com todos
em pé, os dançarinos dirigem-se formalmente ao pai ritual através dos termos de
parentesco usados nas relações cotidianas e pedem para ser alimentados.

819
Casa dos Homens

dupla de
aruanãs

1º 2º

1 2 3 4 5 6

água banana farinha de mandioca peixe caldo xamã


madura mandioca cozida iweru

pai de
aruanã
Desenho n° 19: Disposição dos alimentos na Casa dos Homens

rio acima rio abaixo


(ibòkò) (iraru)

sol nascente (biura)

820
O pai dos aruanãs não serve a comida pessoalmente, mas apenas autoriza que eles
se alimentem depois de chamá-los pelo nome: “Latèni irasò, rirosikere!” (“aruanã
chamado Peixe-Cachorra, coma!). Como cada aruanã é uma dupla de mascarados, o pai
ritual sempre fala primeiro com o que está do lado rio acima e depois com o que está do
lado rio abaixo, reafirmando a associação entre o antes e o rio acima, o depois e o rio
abaixo. Esse procedimento é repetido por todos os pais de aruanã com as duplas
respectivas. A seguir, os dançarinos comem apenas uma pequena porção da comida que
lhes é oferecida, de modo a não atrapalhar a dança que terá lugar logo depois.
A comida deve ser disposta de forma linear no chão, sempre na mesma ordem
apresentada no desenho anexo, embora eu tenha obtido versões diferentes dessa seqüência.
A mesma disposição é repetida no ritual de iniciação e nas outras refeições dos aruanãs,
porém sem a presença do pai do aruanã. Antes de comer, o xamã, o pai ritual e os aruanãs
fazem juntos a oferenda ritual aos mortos. Os dançarinos devem começar se alimentando
da comida que está do lado do rio acima e assim seguir, sucessivamente, até chegar ao
alimento que está no extremo oposto. Ao que parece, trata-se de uma seqüência gradual do
cru (inalterado, rio acima) ao cozido (transformado, rio abaixo), embora o iweru possa ser
colocado em qualquer uma das extremidades.
Ao terminar, os dançarinos devolvem formalmente a comida restante ao pai ritual,
comunicando a ele que já estão satisfeitos e prontos para dançar mascarados. Depois dessa
refeição quase simbólica de todos os aruanãs, o ixytyby (chefe cerimonial) ou, na ausência
dele, algum dos homens mais velhos, autoriza que todos os outros homens presentes, na
qualidade de worosy, se alimentem, o que é feito depois do xiwè coletivo. A autorização é
dada através de uma fala ritual dirigida às metades cerimoniais Saura e Hiretu. Os
membros da metade Saura, associada ao lado do rio acima, são autorizados a comer
primeiro que os membros da metade Hiretu, associada ao lado do rio abaixo. Trata-se,
entretanto, de uma precedência meramente simbólica, pois na prática todos os homens
comem juntos, sem nenhum tipo de divisão hierárquica entre eles. No ritual da Casa
Grande, os Saura comem no lado da casa associado ao rio acima, enquanto os Hiretu
comem no lado oposto. Só depois do iwokytyna os aruanãs saem para dançar, voltando
junto com os outros homens, ao final da dança, para tomar o iweru que encerra o ciclo.
As refeições na Casa dos Homens são liberadas para todos, sem distinção, de modo
que “todos comem o pagamento pela vagina da mãe do aruanã”, dizem os Javaé, para
quem os homens cuidam dos aruanãs com cuidado principalmente por causa da comida

821
que é oferecida a eles. Segundo Toral (1992), quando as roças não produzem, muitos
homens só têm o que comer nessas ocasiões. Entretanto, em tempos mais antigos, os
alimentos que sobravam depois que os aruanãs comiam eram interditados (bèrèbuna) aos
rapazes ou jovens casados que se dedicavam às lutas, corridas, cantos ou danças,
conhecidos como èlèràwi. Apenas os mais velhos podiam comer dessas sobras, tidas como
causadoras de preguiça entre os mais jovens. O mesmo valia para a comida entregue pelas
dançarinas aos aruanãs em algumas brincadeiras, como Iwodudu (massa de mandioca
recheada com peixe), Kobiku (peixe assado), Hanyky (inhame com gordura de tartaruga ou
pirarucu) ou Bidi (mel), em que os aruanãs cantam músicas especiais.
Nessas brincadeiras, os xamãs conduzem cada dupla de aruanã, ao mesmo tempo,
até a casa de seus pais rituais respectivos, onde a dupla recebe das irmãs rituais um ou mais
recipientes com o alimento específico do jogo, muito apreciado. Ainda pela manhã, os
aruanãs dançam segurando as vasilhas até o pátio ritual, seguidos pelas dançarinas e os
homens, que os acompanham caminhando pela pista de dança. No pátio, eles devolvem os
recipientes à dançarinas, que os trazem de volta à extremidade feminina da pista, dançando
de costas, porém de frente para os aruanãs. Por fim, elas os entregam novamente aos
aruanãs, que voltam até o pátio masculino, dançando com suas irmãs, e entregam a comida,
definitivamente, aos recém iniciados, que a levam para a Casa dos Homens.
Quando a brincadeira acaba, os aruanãs entram para a Casa dos Homens logo a
seguir e as mães rituais entregam mais desses alimentos especiais aos recém iniciados. Lá
dentro, cabe ao pai do aruanã separar uma porção da comida para o xamã que é dono do
aruanã e para os visitantes, caso haja algum. Depois, ele convida os outros homens para
comer. Os aruanãs dançam mais um pouco e, ao final, as mães rituais levam a comida que
faz parte das refeições rituais regulares. As danças recomeçam outras vezes ao longo do
dia. As mulheres que participam dos “jogos pequenos” também são convidadas para uma
refeição ritual na casa da mãe do aruanã no dia seguinte às brincadeiras propriamente ditas,
como tive a oportunidade de participar algumas vezes. No caso dos jogos que envolvem
alimentos entregues diretamente aos aruanãs, a mãe do aruanã deve convidar também a
esposa e as filhas do xamã responsável pela brincadeira, assim como a sogra e as cunhadas
(WZ) dele, caso estejam morando na mesma casa. Isso ocorre no mesmo dia, após a
brincadeira, na hora em que os homens entram no recinto masculino para comer.
Todas as refeições realizadas na Casa dos Homens devem ser precedidas do xiwè,
palavra que pode designar tanto a refeição ritual em si como a oferenda que se faz aos

822
mortos, sentido este mais preciso. Os homens reunidos, antes de comer, falam “hãã!! Dedè
hãã!!”, um enunciado ritual que sempre é ouvido de longe pelas mulheres. Alguns homens
ainda acrescentam: “berosikere, walahi, walabiè!” (“coma, minha avó, meu avô!”),
dirigindo-se aos antepassados mortos. Todos ou, mais freqüentemente, os mais velhos,
pedem aos mortos “biwaijemy aonaonao kydèse”, algo como “protejam a minha saúde,
para que não aconteça nada de ruim comigo”, evitando que sejam mordidos pelas piranhas,
ferroados pelas arraias ou qualquer outro tipo de sofrimento físico. Os mortos a quem se
oferece o alimento e se pede proteção são os tykytyby (“corpo velho”) que os xamãs não
levaram para o nível celeste após a morte e que por isso vivem em sofrimento no wabèdè,
o lugar invisível que existe abaixo dos cemitérios, na direção do sol poente.
Os Javaé acreditam que esses parentes já falecidos acompanham os vivos em
algumas ocasiões, incluindo viagens, quando andam na frente das pessoas afastando os
perigos tais como cobras, onças, arraias, diversos tipos de aõni etc. Como eles passam
fome e sede no wabèdè, além de sentirem muita saudade dos vivos, eles juntam-se aos
parentes principalmente na hora das refeições. Nas refeições cotidianas, com destaque para
aquelas em que se tem os alimentos mais apreciados, as pessoas também fazem o xiwè de
vez em quando, oferecendo a comida aos antepassados (walabiè boho, “os avós”, walahi
boho, “as avós”) e aos parentes mortos. Aqueles que oferecem a comida esperam um
pouco, para que os tykytyby se alimentem, e só depois é que comem. Nas oferendas que se
faz aos mortos, também se pede para encontrar peixe e caça no dia a dia. Segundo
Donahue (1982:20), os Karajá apaziguam os diversos “espíritos” que habitam o mundo
realizando rituais e oferecendo-lhes alimentos de forma coletiva ou individual.
Se o xiwè não for feito com uma certa regularidade, os mortos ficam enraivecidos
com o abandono e punem os vivos assustando-os ou enviando piranhas, arraias, cobras etc
para atacá-los. Quando alguém está comendo e deixa o prato cair ou derruba a comida, por
exemplo, acredita-se que são os mortos fazendo isso àqueles que comem com gula ou
egoísmo. Por isso é aconselhável que se leve comida ao cemitério, depositando-a sobre os
túmulos uma vez por mês, pelo menos, para que os mortos não persigam os vivos. Tal
procedimento é realizado mais de uma vez durante o período de luto e a comida oferecida
chama-se wabèdè xiwè (ver Rodrigues, 1993). Nos encontros das mulheres após as
brincadeiras, elas também fazem o xiwè ritual. A oferenda normalmente é feita para pedir
proteção, mas também pode ser feita, individualmente, para pedir ajuda para se atacar um
inimigo. Durante o luto, quando a vida ritual é suspensa, os pais de aruanãs continuam

823
levando comida para o xiwè na Casa dos Homens, embora de modo bastante discreto, para
alimentar os aruanãs secretamente, os quais que têm que ser alimentados periodicamente.
Um dos objetivos centrais do ritual de iniciação masculina é oferecer alimentos
para os worosy, categoria que inclui tanto os mortos que vivem no cemitério da aldeia (os
wabèdè worosy), passando fome, quanto os visitantes subaquáticos que imitam os animais
(também conhecidos como aõni aõni). Durante o Imonahaky do ritual da Casa Grande, o
dia em que todos os worosy convidados são alimentados com o caldo iweru dentro da casa,
enquanto são observados pelas mulheres, alguns homens usam o corpo velho dos wabèdè
worosy. Os mortos que vivem no cemitério comparecem ao ritual em uma forma visível,
porém sem dançar ou cantar, apenas entrando e saindo muito rápido da Casa Grande,
esfomeados, onde comparecem para se alimentar com sofreguidão. Nos outros dias, crê-se
que as refeições rituais realizadas na Casa dos Homens durante as danças dos aruanãs e o
ritual da Casa Grande são as que mais atraem os mortos em sua forma invisível. Nesses
momentos especiais, todos os “corpos velhos” que vivem abaixo do cemitério ficam mais
animados e comparecem à Casa dos Homens para se alimentar junto de seus integrantes,
que oferecem a eles os alimentos coletivamente 16 .
Os Karajá e Javaé cultuam um forte vínculo, transmitido através das gerações, tanto
com os primeiros ancestrais que permaneceram imortais, os quais comparecem mascarados
aos rituais, quanto com os antepassados mortais enterrados nos cemitérios. Ambos estão na
categoria de “parentes” dos humanos atuais, aos quais se dá alimentos em troca da
liberação dos recursos da fauna (peixes, tartarugas, porcos selvagens etc), no caso dos
aruanãs, ou em troca de proteção “espiritual”, no caso dos mortos.

10.4. A troca pela vida eterna

O que não foi revelado de modo explícito até agora, embora esta seja a informação
crucial que permite desvendar a dimensão mais profunda da Dança dos Aruanãs, não
perceptível sem a análise conjunta das relações de parentesco e afinidade, é que aqueles
que dançam como aruanãs são os tios maternos (lana) da criança que está identificada com

16
Lima Filho (1994:56) relata que os homens Karajá oferecem alimentos aos mortos (worosy) “nas pescarias,
nas roças, nas caçadas” e “cerimônias coletivas”.

824
os mascarados. Em outras palavras, é aos próprios cunhados credores (WB, riòrè lana) que
o pai ritual do aruanã oferece diretamente a comida que é produzida para o ciclo
cerimonial. Veremos a seguir que este é o dado que permite também estabelecer uma clara
conexão do ritual Javaé, a principal herança dos Wèrè, associados por mim aos Jê-Bororo,
com a temática dos nomes cerimoniais entre esses povos, mas para tanto é preciso levar em
consideração os conceitos relativos à corporalidade. A Dança dos Aruanãs, aqui
considerada como um ritual-síntese da estrutura de aliança, trata essencialmente da relação
de afinidade entre o irmão de uma mulher e o seu marido.
Os irmãos reais e classificatórios próximos da mãe ritual – os tios maternos do
irasò wèdu (“dono do aruanã”) – são a categoria ideal, tradicionalmente, para dançar como
aruanãs mascarados na pista que liga a Casa dos Homens à casa dos pais rituais. A
performance cerimonial que dá vida aos aruanãs terrestres é responsabilidade dos mesmos
homens que levam os filhos de ambos os sexos das irmãs para as brincadeiras de aruanã,
que carregam nos ombros os sobrinhos uterinos de sexo masculino para a Casa Grande no
ritual de iniciação ou para a casa da esposa no casamento harabiè, que acompanham as
sobrinhas uterinas na saída da reclusão pós-menarca, que têm o direito de comer a “comida
que é devida pela vagina” (tykòwy rasy) das irmãs e a obrigação de protegê-las. Os Javaé
dizem que quando uma mãe de aruanã tem muitos irmãos e primos (labuna), os aruanãs
sempre dançam e brincam na sua pista ritual, que está sempre cheia e alegre durante um
ciclo anual. O inverso vale para quem não conta com essa categoria de parentes, o que é
motivo de vergonha.
Depois de se casar, os homens sempre devem dançar como aruanãs nas pistas das
irmãs e primas próximas deles, que antigamente moravam juntas, acentuando a ligação
com a casa materna. Um homem se refere ao seu par de danças como walikina ou wabiawa
(“meu companheiro”), cabendo a alguém de mais idade o direito de escolher entre os
recém iniciados (jyrè) aquele a quem ensinará como dançar e cantar apropriadamente, pois
as músicas são inúmeras. Para honrar a mãe do aruanã, o seu irmão ou primo deve ser
kumawii, um bom cantor das músicas rituais. Aconselha-se que os jovens iniciados sempre
dancem com alguém mais experiente no começo, pois é muito perigoso cometer alguma
falha durante a dança, o que tornaria a pessoa “marcada para morrer” (rubuoraruna) por
feitiço. Normalmente, os pais ensinam aos filhos ou os tios aos sobrinhos, de modo que os
órfãos de pai, principalmente, têm muita dificuldade para obter esse conhecimento.

825
Posteriormente, os irmãos e primos da mãe de aruanã tendem a estabelecer uma relação
duradoura entre si como membros de uma dupla de aruanãs 17 .
Uma mãe de aruanã refere-se aos seus irmãos reais e classificatórios próximos que
dançam em sua pista ritual como wakòtòbònykydu, “os que (kydu) tampam (tòbony) minha
face (wakò)”. Quando uma mulher está chorando ritualmente, lembrando de um irmão que
morreu, ela fala “wakòtòbònykydu ituèra”, “os que tampam a minha face se acabaram”.
Não obtive uma explicação para o significado desse termo que designa os dançarinos e que
não se usa como vocativo. Mas o mundo original de onde os humanos mágicos saíram era
um lugar fechado, em oposição ao nível terrestre, onde os humanos sociais passaram a ser
conhecidos como Ahana Kòbira Mahãdu, “Povo da Face de Fora”. Esta expressão já foi
associada por mim ao fato dos humanos sociais não usarem máscaras, como os aruanãs, e
por isso estarem não só com a face, mas também com os orifícios corporais expostos. Os
dançarinos mascarados seriam, portanto, os que permitem uma identificação do dono de
aruanã e seus pais rituais com esse estado corporal em que os orifícios estão fechados e as
substâncias contidas, simbolizado pelas máscaras que “tampam” o corpo.
Os irmãos e primos de uma mulher também podem ser referidos por ela como
wadinodu, “os que cuidam de mim”, aqui no sentido de que eles não a deixam esperando
quando ela vai desempenhar alguma função ritual na Casa dos Homens. Em algumas
situações, o que era mais comum antigamente, a mãe ou avó do aruanã é chamada na Casa
dos Aruanãs para pintar os pés dos dançarinos com urucum. Aquelas que têm irmãos
solidários não esperam muito tempo para realizar a tarefa, pois logo eles aparecem e
livram-na do embaraço de permanecer no recinto masculino por muito tempo. Pode-se
pintar os pés de tios e sobrinhos, mas a categoria certa são os irmãos e primos. A mãe do
aruanã fica de cabeça baixa, constrangida, esperando os homens aparecerem, os quais
viram-se para o lado do sol nascente na hora em que seus pés são pintados. Elas não podem
conversar nem sequer olhar para seus parentes, que permanecem quietos e mudos enquanto
ela realiza o serviço esperado. Os dinodu de uma mulher são os mesmos que aplicam dura
(plumas) no corpo de seus filhos e que limpam o rosto deles ritualmente (òsurona), o que
antes era feito com uma certa freqüência.

17
Segundo Dietschy (1960:3), a dupla de aruanãs é freqüentemente formada de “amigos perpétuos (wali)”,
categoria Karajá definida como “duplas de amigos cerimoniais que duram por toda a vida” (1978:72). Os
wali são considerados como “irmãos” verdadeiros, não podendo um casar com a irmã do outro. Pétesch
(2000) especula sobre sua relação com a instituição da amizade formal entre os Jê.

826
Além dos termos apresentados, os irmãos e primos da mãe de aruanã são
conhecidos também como irasò myrutèrè, “os que tomam conta do aruanã”, irasò derina
ou irasò myderinadu, no sentido em que os aruanãs (irasò) são “queridos” (derina) por
eles. São os irmãos reais e classificatórios próximos da mãe ritual que devem se
responsabilizar pela fabricação parcial e cuidado com as máscaras sagradas, cujo “rosto” é
feito pelos xamãs que copiam o que vêem em suas viagens invisíveis. A mãe ritual pode se
referir a eles como wamyrutèrè, “os que tomam conta para mim”. Além de pescar e caçar
para ajudar na alimentação dos aruanãs, como já foi descrito, os irmãos da mãe do aruanã
devem confeccionar as saias de palha ou não deixar que a máscara fique suja, por exemplo.
Outras categorias de parentes podem dançar como aruanãs para não deixar a pista de dança
da mãe do aruanã vazia, o que seria muito constrangedor.
Dentro de uma ordem de preferência, têm-se em primeiro lugar os tios maternos
(MB) do dono de aruanã, seguidos pelos seus tios paternos reais e classificatórios próximos
(FB), e, por último, os sobrinhos e tios respectivos dos pais de aruanã. No caso do ritual da
Casa Grande, também são os tios maternos próximos do jovem que se inicia que devem
dançar como os latèni com o qual ele está identificado. Da mesma forma, como será visto
no próximo capítulo, são os tios maternos do dono do “corpo velho do estrangeiro” que
devem idealmente realizar a performance cerimonial. Apenas os irmãos reais e
classificatórios “considerados” próximos, o que é uma relação mais social do que
genealógica, como já foi explicado, é que agem da maneira esperada e que, portanto, são
referidos pelos termos apresentados. Pétesch (2000) revela que entre os Karajá todos
homens iniciados podem dançar mascarados como aruanãs, embora haja uma preferência
pelos mais jovens. E que a estável dupla de dançarinos é constituída de irmãos
classificatórios diferenciados pelo critério de idade (um mais velho e um mais novo), os
quais estariam em uma relação de fertilização e afinidade com as dançarinas.
Uma mulher tem à sua disposição uma série de termos para designar os diferentes
tipos de relação – todas baseadas em um forte vínculo de mútua solidariedade e proteção –
com os seus irmãos e primos próximos, os quais tendem a ser aqueles a quem ela está
ligada por um vínculo matrilateral. Eles podem ser referidos como wasèrikòrè, walabuna,
watykòwy rasydu, wakòtòbònykydu, wadinodu, wamyrutèrè, irasò myderinadu, todos
termos já traduzidos e que indicam uma ideologia uterina, em que a continuidade simbólica
e social do grupo se dá mais pela relação de um homem com os filhos das irmãs do que
com os próprios filhos, que pertencem ao grupo de seus afins. Como veremos mais à

827
frente, é significativo que não se inclui entre os dançarinos o pai da criança que é dona do
aruanã. Lima Filho (1994:131) afirma que “o pai não dança Aruanã para o filho” e que os
genitores de uma criança Karajá, embora sejam os grandes responsáveis pela sustentação
econômica da iniciação masculina, nunca “estão em evidência no ritual”:

“(...) Os pais participam como mantenedores da festa e pagadores de obrigações rituais.


Posso dizer que os pais destacam-se muito mais pela exclusão do que pela evidência no
Hetohoky. Eles participam muito mais no privado do que no público. Os pais ficam na
retaguarda, nos bastidores, descortinando os atos rituais.”

O mesmo vale para a Dança dos Aruanãs e o Hetohoky Javaé. Repetindo o mesmo
padrão de solidariedade das pescarias rituais, um homem deve se responsabilizar pelo
cuidado com as máscaras dos aruanãs dos filhos de suas irmãs, que ele usará, e pelo
cuidado com as máscaras dos aruanãs dos filhos de seus cunhados (WB), o que é feito
como parte das prestações matrimoniais. Do mesmo modo, ele espera receber a ajuda dos
maridos de suas irmãs (ZH), reciprocamente, para cuidar dos aruanãs dos seus próprios
filhos, cujas máscaras serão utilizadas por seus cunhados (WB). Caso se tratasse de uma
estrutura de troca simétrica em senso estrito, sem a interferência do critério de distância, o
irmão da esposa (WB) de um homem e o marido da sua irmã (ZH) seriam a mesma pessoa.
Para um Ego masculino, portanto, o marido da irmã seria também o tio materno do seu
filho e vice-versa: Ego masculino seria o tio materno do filho do marido da irmã, de modo
que haveria uma reciprocidade simétrica também no que diz respeito ao cuidado com as
máscaras e a própria performance cerimonial. É inegável, entretanto, que esse é o modelo
ideal, o que significa que, na esfera simbólica, um homem dança como aruanã dos filhos
daquele (seu cunhado) que deveria dançar como aruanã dos seus próprios filhos,
reciprocamente.
Levando em consideração a regra da uxorilocalidade, Ego está ligado
cerimonialmente aos filhos da irmã, na casa natal, enquanto o irmão da esposa (ou o
marido da irmã) estaria ligado cerimonialmente aos filhos de Ego, na casa de sua esposa.
As prestações matrimoniais recíprocas implicam que aqueles que trocam esposas também
trocam alimentos, serviços e desempenhos cerimoniais. Segundo o modelo mítico, o pai
ritual (A) alimenta o irmão de sua esposa mascarado (B) na Casa dos Homens, o qual
dança como aruanã e é o tio materno do filho de (A); reciprocamente, (B) seria o marido da
irmã de (A). Assim, (B) seria o pai ritual que alimenta (A), este na condição de aruanã e tio

828
materno do filho de (B), invertendo as posições. Mas na prática, como já foi dito, o marido
da irmã de um homem nunca é o irmão da sua esposa, de modo que os irmãos da mãe
(MB) reais e classificatórios próximos também nunca são os sogros de seus sobrinhos
uterinos (ZC), mas apenas o tio materno com qual as crianças se identificam. Em termos
simbólicos, entretanto, ocorre uma complexa reciprocidade entre primos cruzados do sexo
masculino, idealmente os parceiros de luta cerimonial. Os cunhados envolvidos em uma
relação de subordinação recíproca trocam muito mais do que sexo por alimentos.
Um homem muda para a casa da esposa e dos cunhados ao se casar, mas retorna
sempre à casa natal para dançar na pista ritual que liga a casa de sua irmã, a mãe do aruanã,
à Casa dos Homens. O que está em evidência aqui é o forte vínculo cerimonial entre um
homem e o seu sobrinho uterino de qualquer um dos sexos, o “dono do aruanã”. Ao
procriar, um casal abre seus corpos e produz um novo corpo aberto e poluído, que ao
nascer nada mais é que a energia vital dos genitores exteriorizada e sem limites definidos.
Todo o processo social que se desenvolve a partir de então, através do resguardo, da
doação de nomes, do assemelhamento propiciado pelas imitadoras e, principalmente, da
identificação com os aruanãs, tem como objetivo principal a contenção e a purificação,
ainda que não completas, das substâncias do novo corpo. A tentativa de fechamento dos
orifícios dos corpos dos genitores e do corpo do filho, que nasce contaminado e na
condição de um corpo estranho, nada mais é que uma tentativa de estancar, parcialmente, o
fluxo vital que inevitavelmente leva à morte.
Em essência, a Dança dos Aruanãs oferece a um homem que abre o seu corpo na
casa dos afins, associada ao rio abaixo feminilizado, a chance de fechá-lo cerimonialmente
de duas maneiras: tornando-se o próprio aruanã ou o pai ritual do aruanã, duas posições
estruturalmente antagônicas. Na primeira forma, a mais prestigiada, ele é o tio materno da
criança (credor), ligado ritualmente à casa natal, associada ao rio acima masculinizado, que
é alimentado para dançar como aruanã. Na segunda forma, de menor status, ele é o pai da
criança (devedor) que retribui materialmente a seu cunhado (WB) para que este dance, a
fim de se transformar em um pai ritual. No primeiro caso, o homem identifica-se
ritualmente com os corpos dos seus sobrinhos uterinos, de ambos os sexos, que são
chamados por ele de “minha cabeça” (wara), porção do corpo mitica e cosmologicamente
relacionada ao extremo rio acima, onde os corpos hermeticamente fechados e purificados
vivem eternamente. Em um contexto uxorilocal e de ideologia matrilinear, a relação entre
o tio materno e os seus sobrinhos uterinos representa a continuidade social valorizada.

829
Os corpos dos sobrinhos que ainda não procriaram, com quem o tio materno está
identificado cerimonialmente, representam a retenção energética dos que não perdem
substâncias e por isso não se transformam. Quando um homem dança como aruanã, ele e
os filhos de sua irmã, os “donos do aruanã”, estão em uma relação de identidade ritual
absoluta, como se fossem a mesma pessoa, conectados aos ancestrais originais. Ambos são
alimentados, como filhos, pelos pais do aruanã. O tio materno e a criança pertencem à
mesma metade ritual e formam uma unidade cerimonial (ZC = MB), digamos assim, que
está identificada com a grande casa natal primordial, constituída da relação não substancial
entre um tio materno e seus sobrinhos uterinos. A identidade de “aruanã” dos dois é uma
identificação com a porção do corpo humano que transcende a decomposição da matéria
visível, representando a continuidade da própria sociedade.
No segundo caso, um homem é apenas o devedor que deve trabalhar com afinco
para alimentar cerimonialmente os cunhados (WB) na Casa dos Homens, os quais dançam
como aruanãs de seus filhos e são alimentados por ele no cotidiano. Mas com a
manutenção de um ciclo ritual, pelo menos, para o aruanã de cada filho, em especial para o
primogênito que abre os corpos dos genitores pela primeira e definitiva vez, o pai do
aruanã estará assegurando também o meio mais completo de fechar simbolicamente o seu
próprio corpo e o da esposa. Ao se tornarem “pais de aruanã”, um homem e sua esposa
estarão, também, identificados com a condição de corpo fechado associada aos aruanãs,
tornando-se publicamente “pais cerimoniais” – ou seja, pais não-substanciais – do filho
que geraram com suas próprias substâncias na casa da esposa.
Em suma, dançando como aruanã, um homem é nutrido pelo cunhado (ZH) e está
identificado com o estado de retenção energética associado aos corpos fechados, aos
sobrinhos uterinos e à casa natal; como pai de aruanã, ao contrário, um homem nutre os
cunhados (WB) para tentar neutralizar o estado de perdas energéticas associado aos corpos
abertos, aos filhos e à casa dos afins. A relação cerimonial com os filhos das irmãs,
hierarquicamente superior, representa a continuidade do rio acima, enquanto a relação
substancial com os próprios filhos representa a transformação do rio abaixo. Não é difícil
perceber aqui, a essa altura, o contraste clássico na literatura etnológica do Brasil Central,
já citada, entre uma porção eterna e mais valorizada da pessoa (nome), adquirida de seu tio
materno no espaço sagrado masculino, e uma porção perecível e menos valorizada
(substância), adquirida de seus genitores no espaço profano feminino. Ou seja, a dualidade

830
estrutural entre o doador de substâncias e alimentos (pai) e o doador de uma persona social
(tio materno).
Mas isso que os Jê e Bororo chamam de “nome” é traduzido entre os Javaé como o
aruanã mascarado de corpo fechado, em seu conteúdo simbólico muito parecido aos Aroe
Bororo (Crocker, 1985), embora este represente a porção eterna da pessoa que sobrevive
após a morte, enquanto os aruanãs Javaé representam a porção eterna da pessoa que não
viveu a experiência da morte do corpo visível. Mas em ambos os casos trata-se de uma
identidade/propriedade pública da pessoa que se contrapõe à substância herdada dos
genitores no espaço privado. Entre os Javaé, há algumas diferenças significativas em
relação aos seus vizinhos regionais, mas a estrutura de fundo parece ser a mesma: os pais
de uma criança, como doadores de substância e alimentos, contrapõem-se aos outros
parentes bilaterais (tios e avós), em especial ao tio materno, que têm a função de prover
uma identidade cerimonial pública não-substancial à criança, sendo compensados
materialmente pelos genitores por isso.
Aqui se tem uma composição múltipla da pessoa, com a contribuição diversa e já
exposta de todos os seus parentes ascendentes e bilaterais próximos, o que inclui o nome
propriamente dito e a performance da imitação. Em última análise, porém, essa
contribuição reduz-se à dualidade entre corpo aberto perecível, doado pelos genitores, e
corpo fechado eterno, composto de várias formas pelos outros parentes, o que seria uma
tradução Javaé da dualidade entre substância e nome. Lembrando o que S. Hugh-Jones
(2002) disse a respeito da pessoa Tukano, apesar de um contexto diferente, a produção dos
corpos perecíveis provém do exterior (representado pelo feminino e a casa dos afins, no
caso Javaé), enquanto as identidades sociais de valor provêm do interior da sociedade (o
espaço cerimonial masculino e a casa natal).
Os nomes Jê-Bororo são associados a uma cerimônia pública que destaca a relação
de identificação entre o tio materno e o seu sobrinho uterino, que adquire uma identidade
de “substituição”, e não de sucessão, do seu antecessor (ver Da Matta, 1979). Um homem
Timbira ou Bororo muda-se de residência, mas ele deixa com os filhos de sua irmã o seu
nome, através do qual ele transmite o pertencimento à mesma metade ritual, ligando-se a
seus sobrinhos cerimonialmente. Um homem Javaé muda de residência, mas também
continua ligado cerimonialmente aos filhos de sua irmã (de ambos os sexos), de diversas
formas, a principal delas quando ele dança como o aruanã que pertence aos seus sobrinhos
uterinos. Ao nascer, os filhos da irmã filiam-se automaticamente à mesma metade ritual de

831
um homem, cuja performance cerimonial também dá lugar a uma identidade social e
pública de substituição do “mesmo”, uma vez que os aruanãs representam um corpo
imutável. É verdade que é o pai ou a mãe da criança que transmite o aruanã, enquanto os
nomes Jê-Bororo, de um ponto de vista masculino, são transmitidos pelos tios maternos,
principalmente, o que configura entre os Javaé uma oposição entre propriedade do
bem/identidade e a performance cerimonial propriamente dita.
Mas é o irmão da mãe o responsável pelo desempenho ritual que dá vida aos
aruanãs, através do qual ele e os filhos ou filhas de sua irmã estabelecem uma identidade
cerimonial pública, característica central da relação entre nominador e nominado entre os
Jê e Bororo. No caso destes últimos, o grupo doméstico matrilinear é uma espécie de
corporação que detém a propriedade dos nomes, o que não ocorre entre os Javaé, mas é
alguém do clã paterno, o mesmo de onde veio a substância corporal, que garante a
“representação” do Aroe/alma de uma pessoa que morreu (Crocker, 1979, 1985). É digno
de nota ainda o paralelo entre a tríade ritual Bororo (pai, mãe e filho rituais), que
representa o nome/alma de alguém (o filho ritual) após a morte, e a tríade ritual Javaé (pai,
mãe e filho rituais), envolvida na representação dos aruanãs (o filho ritual) em vida (ver
Crocker, 1979, 1985). Parece haver uma inversão de um mesmo tema: entre os Javaé, um
dos genitores transmite o aruanã, enquanto o tio materno dança como o aruanã identificado
com uma criança ou adolescente vivo; entre os Bororo, o tio materno transmite o Aroe,
enquanto o pai ritual representa o Aroe identificado com uma pessoa morta.
A outra diferença notável, mas que talvez possa ser atribuída mais ao paradigma
teórico dos estudiosos da época, do que propriamente ao modo de ver dos povos estudados,
diz respeito à associação do contraste entre identidade social e identidade substancial às
oposições entre cultura e natureza, alma e corpo. Como já foi dito, ao invés de um “não-
corpo” construído (nome) oposto a um corpo herdado (substância), entre os Javaé trata-se
muito mais do contraste entre um corpo fechado composto de substâncias concentradas que
suspendem a passagem do tempo e um corpo aberto composto de substâncias que fluem
deteriorando-o; ou da oposição entre um corpo fechado e invisível que é o produto de uma
paralisante ausência de relações substanciais e um corpo aberto e visível que é o produto
de uma criativa (e mortal) existência de relações de afinidade. Afinal, a máscara usada
pelos aruanãs terrestres não é concebida apenas como o símbolo abstrato de uma persona
imaterial, como os enfeites rituais Bororo que representam os Aroe, mas como um “outro
corpo” (tyky) real que é usado pelos homens durante os rituais. Ambos os tipos de corpos –

832
ou formas de controlar as substâncias – integram a totalidade contraditória que constitui a
pessoa 18 .
A oposição entre identidade social e corpo físico aqui não tem o sentido de uma
oposição entre o que é construído culturalmente e o que é dado naturalmente, entre criação
humana e criação não-humana. Como a realidade em que os humanos estão inseridos é
indissociável da interferência humana criativa sobre ela, a oposição conceitual significativa
não é entre uma ordem material autônoma e uma ordem social humana, mas entre relação
entre humanos e ausência de relação entre humanos. O estado “anterior” à vida em
sociedade não é o da matéria que se autoperpetua por si só, mas apenas o dos humanos que
não se relacionam entre si. A “sociedade” é um estado intermediário de relações sociais e
substanciais situado entre um extremo humano de não-relação, onde os corpos são
totalmente fechados, e um igualmente humano de intensa relação/fusão, onde os corpos são
totalmente abertos, ambos não-sociais. A construção social da pessoa – através da sua
identificação com um aruanã – funda-se na mediação tensa entre esses dois estados não-
sociais, na tentativa nunca completamente alcançada de se tentar fechar/masculinizar, por
meio do tio materno, o corpo aberto/feminilizado doado pelos genitores.
Uma característica essencial da Dança dos Aruanãs, e nisso ela assemelha-se mais
aos rituais Bororo do que aos dos Jê, é que a dualidade entre doador da máscara social,
literalmente falando, e doador do corpo físico é indissociável da estrutura matrimonial de
troca simétrica. Entre os Bororo, cada casa depende de alguém da outra metade exogâmica
para representar o Aroe/nome/alma de uma pessoa que morreu, assim como um pai de
aruanã depende do irmão da esposa para este se transformar no aruanã de seu filho. Tanto
na Dança dos Aruanãs quanto no Hetohoky, há uma divisão clara entre aquele que sustenta
economicamente a festa (o pai) e aquele que é recompensado para dar vida à festa (o tio
materno), seja dançando mascarado ou realizando as várias performances diferenciadas
que fazem parte do ritual de iniciação masculina. No caso do Hetohoky, especificamente,
os pais não só fornecem alimentos aos participantes do ritual, com esperada abundância,

18
É significativo que na cerimônia de nomeação Suyá, chamada “cerimônia do camundongo” (Seeger,
1981:154), o doador do nome dança usando “uma veste de folha de palmeira” e faz uma vestimenta similar
para aquele que vai receber o seu nome. O ritual termina com os nomeadores morrendo simbolicamente e
tendo suas “roupas” retiradas por suas irmãs. Embora o autor não faça essa ligação, parece haver uma
coincidência simbólica entre dar ou perder o próprio nome, uma espécie de morte da “alma” ou corpo, e dar
ou perder a própria vestimenta ritual para o filho da irmã. O tio materno é aquele que doa o nome e também a
roupa ritual que será usada por seu sobrinho. O nome ou identidade social seria simbolizado pela roupa ritual
que a criança passa a usar, podendo-se especular se também não seria concebido como um outro tipo de
corpo.

833
como têm que retribuir com presentes caros aos tios que acompanham seus filhos. Os que
dançam como aruanãs de modo recíproco, em casas diferentes, idealmente são os mesmos
que trocam irmãs/esposas entre si ou, de acordo com o modelo mítico, lutam ritualmente
entre si 19 .
Como já foi dito, há uma associação simbólica da troca exogâmica com a relação
entre as metades rituais, embora na prática estas não regulem a troca matrimonial. A
relação entre as metades, associadas a opostos assimétricos, expressaria a mesma
complementaridade entre hierarquia e reciprocidade encontrada entre os Bororo, para
quem “cada metade é a um tempo devedora e credora, superior e inferior, oposta e
complementar à outra” (Crocker, 1976:181). A palavra nativa para “aruanã”, irasò na
versão masculina e ijasò na feminina, fornece mais algumas pistas para a compreensão
dessas relações rituais de reciprocidade. Ao pé da letra, irasò significa “cabeça (ra)
vermelha (sò) dele (i)”, conceito que se relaciona, também, com a máscara colorida
propriamente dita. A cor vermelha é associada à afinidade em contextos diferentes. Na
Terra dos Ensangüentados, a água é vermelha e a comida, crua, é descrita como isò
myrosidu, expressão associada a comer (rirosi) algo vermelho (isò) (Rodrigues, 1993).
Nessa terra de estranhos, até o caldo iweru é feito de sangue humano, cuja cor parece
simbolizar os estados de transformação.
Repetindo brevemente o que já foi dito antes, a fim de relacionar as informações
antigas com as novas, a pena vermelha colocada no alto das máscaras indica a porção
“feminina” dos aruanãs andróginos, em oposição à pena azul (ou verde) “masculina”. A
primeira é um símbolo da metade cerimonial Hiretu nos jogos rituais, associada à
alteridade do rio abaixo. A cor negra (lyby) ou a ausência de luz também é associada à
afinidade, em oposição à claridade do rio acima ou do lado onde o sol nasce. Enquanto o
sobrinho uterino próximo de um homem é referido pela expressão wara, “minha cabeça”, o
seu sobrinho uterino distante, aquele que se transforma em genro, é referido pela expressão
waralyby, “minha cabeça negra”. Já o marido da irmã de um homem, aquele que será o pai
do seu sobrinho uterino, é referido pela expressão waratyby, “pai da minha cabeça” ou
“minha cabeça velha”.

19
Essa é uma estrutura comum também no alto Xingu. Afinal, o importante rito funerário Kwarìp
(Agostinho, 1974) constitui-se, essencialmente, de dois grupos que se opõem: os que sustentam o ritual
economicamente (os enlutados) e os que são recompensados para realizar as performances cerimoniais (os
enterradores).

834
Como o que dança mascarado (MB) e o dono do aruanã (ZC) são como uma mesma
pessoa, identificados ritualmente, e os filhos da irmã são chamados de “minha cabeça” por
um homem, “minha cabeça” é, conseqüentemente, como se fosse “eu mesmo”. Assim, o
marido da irmã, o “pai da minha cabeça”, é, por uma questão de lógica, o “pai de mim
mesmo”. De fato, durante a Dança dos Aruanãs, o marido da irmã daquele que dança como
aruanã é o seu “pai ritual”, aquele que o alimenta na Casa dos Homens e no cotidiano,
posições que idealmente serão invertidas dentro da lógica da troca simétrica. Tanto o
conceito de “pai” como o de “velho” estão associados à idéia de “nutrição”: um pai é
definido essencialmente por sua função de provedor de alimentos e a paternidade, do ponto
de vista de um filho, é um estado de “anterioridade” no tempo. Uma pessoa é nutrida pelos
que surgiram antes dela (seus pais), assim como deve nutrir os que surgem depois dela
(seus filhos), a mesma relação entre rio acima (o “antes” onde se retém substâncias) e rio
abaixo (o “depois” onde se perde substâncias).
A relação de um homem com os filhos das irmãs reais e classificatórias na casa
natal (princípio de residência) tem um prestígio superior à sua relação com os próprios
filhos (princípio de descendência), nascidos na casa da esposa, porque na primeira trata-se
de um tempo/lugar “anterior” onde se é nutrido, enquanto na segunda vive-se um
tempo/lugar “posterior” onde se deve trabalhar para alimentar os outros. Pode-se dizer,
portanto, que o “pai da minha cabeça”, a “minha cabeça velha” ou o “pai de mim mesmo”
– eufemismos para designar o “marido da minha irmã” – é “aquele que me nutre”. O que
resulta dessas equações simbólicas é que a problemática relação de subordinação e
afinidade entre cunhados é transformada no ritual em uma relação de parentesco entre pai
e filho, elidindo publicamente da consciência coletiva o fato de que a sociedade é o produto
de uma tensa e mortal relação entre afins. O alimento que circula na Casa dos Homens,
originado do pagamento pela vagina, é transformado cerimonialmente no alimento que um
pai produz para os seus filhos, de modo que cunhados reais tornam-se pai e filho
cerimoniais. E o estado de afinidade gerado pelas relações de substância no espaço profano
feminino é revertido ritualmente, de forma sofisticada, em um estado de parentesco não-
substancial no espaço sagrado masculino.
A relação de antagonismo entre o tio materno e o pai de uma criança é expressa
pelo simbolismo associado às palavras irasò, “cabeça vermelha dele”, que designa o tio
materno mascarado, e waratyby, “minha cabeça velha” ou “pai da minha cabeça”, que
designa o pai da criança do ponto de vista daquele que dança. Como já foi dito, as cores

835
vermelha ou negra estão associadas ao extremo cosmológico da afinidade, enquanto as
expressões “cabeça velha” e “pai da cabeça” associam-se ao extremo do parentesco. Essa
associação é reforçada na medida em que o conceito de tyby (“pai” ou “velho”) compõe a
palavra que designa a coluna vertebral (tityby, “osso velho”), cuja maior perenidade após a
morte opõe-se à maior capacidade de metamorfose do sangue, que constitui a carne do
corpo e degenera com maior rapidez. O contraste entre ossos e sangue, a ser retomado na
parte final, ou entre “velho” e “vermelho”, por analogia, remete ao contraste entre
continuidade e transformação, retenção e perda, masculino e feminino, assim como no alto
Rio Negro.
Ao que parece, embora isso não tenha sido formulado por nenhum Javaé, aquele
que dança (WB) é a “cabeça vermelha” do que sustenta o ritual, enquanto este último (ZH)
é a “cabeça velha” ou o “pai da cabeça” do primeiro. O irmão da esposa mascarado é a
“cabeça vermelha” de um homem, porque a cor vermelha representa o afim a quem se deve
nutrir, a pessoa para quem se perde algo na relação de afinidade (rio abaixo); enquanto o
marido da irmã é a “cabeça velha” ou o “pai da cabeça” de um homem, porque ele
representa o “pai” nutridor, a pessoa de quem se recebe algo na relação de parentesco (rio
acima). Simbolicamente, a “cabeça velha” de alguém seria como a boca por onde entram
os nutrientes, enquanto a “cabeça vermelha” seria como o ânus por onde eles saem. O
conceito de “cabeça vermelha dele” refere-se àquele a quem se deve, enquanto a expressão
“minha cabeça negra” (waralyby) refere-se ao genro, aquele que deve.
O contraste entre identidade cerimonial e identidade substancial, de um ponto de
vista masculino, relaciona-se ao contraste entre casa natal e casa dos afins, residência e
descendência, hierarquia e reciprocidade, sobrinhos uterinos e filhos, rio acima e rio
abaixo, Saura e Hiretu, continuidade e transformação, estatismo e movimento, espaço
masculino e espaço feminino, paz e conflito, primogênito e caçula e, também, ao contraste
estrutural entre primogenitura e exogamia 20 . Os bens e prerrogativas de um primogênito,
aquele que melhor simboliza a continuidade social e a condição de corpo fechado, são
associados apenas ao período em que um homem vive na casa natal, por serem
incompatíveis com a fusão de substâncias na casa dos afins. A exogamia de casa relaciona-

20
Em sua análise sobre a estrutura social dos Karajá e Javaé, Toral (1992) propõe uma oposição que poderia
ser acrescentada aos contrastes acima: o espaço feminino, associado a fofocas, conflitos e mesquinharias,
contrasta com o espaço masculino, onde os homens comungam, em nome da vida ritual sagrada, de um ideal
de paz e de convivência harmoniosa que transcende o faccionalismo profano da aldeia. Ou seja, o espaço
masculino e o feminino correspondem respectivamente a sagrado e profano, harmonia e desentendimento,
integração e dispersão.

836
se ao período de vida em que um homem torna-se um genitor, identificado
substancialmente com a esposa e o filho, enquanto as prerrogativas da primogenitura
relacionam-se ao período em que ele vive na casa natal, à qual permanece ligado através de
sua relação ritual com os sobrinhos uterinos. Tanto a primogenitura quanto a relação de um
tio materno com os filhos da irmã representam a continuidade da estrutura ou o fechamento
dos corpos, enquanto a exogamia e a relação de um pai com os filhos representam a
transformação da estrutura ou a abertura dos corpos.
A Dança dos Aruanãs pode ser compreendida como o mais importante contraponto
purificador para as relações de afinidade poluidoras. Em síntese, a procriação gera e abre
os corpos no espaço feminino poluído, enquanto as cerimônias tentam fechá-los no espaço
sagrado masculino. Dito de outro modo, a procriação gera os laços de afinidade
substanciais no espaço feminino, enquanto os rituais tentam transformá-los em laços de
parentesco não-substanciais no espaço masculino. O constrangimento produzido pelas
relações iniciais de subordinação e poluição entre afins é acompanhado do “respeito” e a
“vergonha” característicos do alto Xingu (Viveiros de Castro, 1977), contrastando-se aos
momentos socialmente aprovados de relaxamento ou extravasamento das emoções
oferecidos pelas lutas, choros e jogos rituais. A separação cotidiana dos corpos expressa
uma forma masculina contida de ser, associada à manutenção da paz coletiva e da ordem,
enquanto a mistura de corpos e a liberação dos desejos e outros sentimentos ocorrida nas
lutas, jogos e choros rituais expressam, ao inverso, uma forma feminina expansiva de ser,
caracterizada pela transformação criativa do status quo.
O mais importante ritual Javaé é uma rica elaboração a respeito da relação de
aliança entre dois grupos ideais de afins que funda a sociedade, simbolizados pelas
metades cerimoniais Saura e Hiretu. Mas eu diria que, em sua dimensão mais profunda, a
Dança dos Aruanãs é na verdade um ritual anti-aliança ou anti-procriação, muito mais
interessada na recriação cerimonial da imortalidade do que na afirmação do valor da vida
em sociedade, que entre os Javaé é associada, com maior ênfase do que entre os Jê-Bororo,
a um grande sacrifício dos homens em prol das prestações matrimoniais. Não são as
relações de afinidade ou o social que estão sendo celebrados, mas, ao contrário, as diversas
formas de anulá-los simbolicamente. A relação de afinidade simbólica com a alteridade
interna (mulheres) ou externa (estrangeiros) é compreendida na linguagem da procriação,
como interação criadora entre o masculino e o feminino, mas nos dois casos há uma
mobilização coletiva para reverter ou purificar o estado de poluição criativa que gera os

837
novos corpos (os filhos ou a cultura). Nos dois casos, os Javaé estão interessados em
transformar afinidade em parentesco, fertilidade em esterilidade, o novo no velho, o que
tem origem externa em interioridade 21 .
Não deixa de ser paradoxal e até irônico que o privado é o grande tema público, na
medida em que o ritual mais significativo baseia-se em uma representação da relação entre
mãe, pai e filho, assim como entre os Bororo (Crocker, 1979, 1985), que não separam tão
rigidamente o público do doméstico; que na arena pública, a coletividade masculina,
contando com a cumplicidade velada e a participação fundamental das mulheres, a “causa”
de tudo, esteja interessada em reconstruir o cenário doméstico da casa natal primordial,
onde um tio materno mora com seus sobrinhos uterinos; e que a casa natal, o espaço social
mais valorizado, esteja sob o controle das mulheres. O público, aqui, representado pela
Casa dos Homens, não é um centro que se opõe à esfera doméstica circundante, como entre
os Jê do Norte, mas um centro que faz a mediação entre as duas polaridades assimétricas
que integram o espaço doméstico: o extremo espacial do rio acima, associado à casa natal,
e o extremo espacial do rio abaixo, associado à casa dos afins. A Dança dos Aruanãs
constitui-se exatamente da relação de mediação entre o esposo de uma mulher, um genitor
identificado substancialmente com seus filhos, na casa dos afins, e o irmão dessa mesma
mulher, um tio materno identificado cerimonialmente com os seus sobrinhos uterinos, na
casa natal.
Embora o ritual celebre o parentesco não-substancial, enfatizando um ideal de
parentesco que se repete em outras esferas sociais, como o existente entre os Arawak,
segundo Santos-Granero (2002:46), que fala de um “ideal de consangüinidade” 22 , o
máximo que se ponde atingir no plano terrestre é o parentesco social, construído através da
mediação entre relações substanciais poluídas e cerimoniais purificadas. Toda pessoa nasce
como um estranho ligado por substância a seus genitores, mas tem a possibilidade de se
tornar um parente dos que a antecederam por meio das relações cerimoniais: toda pessoa é

21
O que é o oposto da interpretação de Dietschy (1960), endossada por Donahue (1982), Pétesch (2000) e
Schiel (2005), no que se refere à Dança dos Aruanãs entre os Karajá, a qual seria um rito de “fertilidade”. O
ritual Javaé é sobre a aliança entre afins, como propõe Pétesch (2000) de modo refinado a respeito dos
Karajá, mas para desfazê-la simbolicamente, ao invés de afirmá-la. Entretanto, em se tratando da cosmologia
com um todo, a autora (2000:233) conclui ao fim de seu trabalho que os Karajá são “regidos por um ideal de
cognação que privilegia a consangüinidade unificadora em detrimento da afinidade conflitante”. Tal ideal
teria relação com um “modelo conceptual e relacional de natureza ‘haliêutica’, distinto do modelo amazônico
dominante de tipo ‘cinegético’”, em que o “ato de pescar” determinaria um sistema de representação da
relação eu/outro diferente das sociedades que enfatizam a caça.
22
O que é diferente do “englobamento da consangüinidade pela afinidade no plano político, ritual e
cosmológico” na Amazônia, segundo Viveiros de Castro (2002b:142).

838
vista como um corpo aberto que se tenta fechar, um composto contraditório feito da
contribuição substancial e cerimonial de dois grupos antitéticos. Na Casa dos Homens,
situada no meio (itya) da aldeia, faz-se a mediação entre os dois grupos de afins que
trocam alimentos e a performance cerimonial, os que abrem (genitor) e os que fecham os
corpos (tio materno), associados simbolicamente às metades rituais Hiretu e Saura, rio
abaixo e rio acima.
A Casa dos Homens ocupa o lugar simbólico da barriga (wè) no grande eixo
corporal e cósmico, a posição intermediária entre o rio acima, que corresponde à cabeça ou
rosto (ibòkò), e o rio abaixo, que corresponde ao ânus ou pernas (iraru). Assim como o
estômago, é lá que se faz a mediação/controle entre a comida que o tio materno recebe de
fora (boca) e a comida que o pai entrega para fora (ânus). O espaço ritual masculino, mais
do que o espaço doméstico, como entre os Bororo, é o lugar de mediação onde o esposo de
uma mulher e o irmão dela, juntos, tentam transformar uma criança que nasce como um
estranho de corpo aberto em um parente de corpo fechado, substâncias exteriorizadas em
substâncias contidas, afinidade em parentesco. Mas essa é uma transformação nunca
alcançada em sua plenitude e que depende de um casal exercer a agência que lhe é possível
na estrutura herdada, produzindo alimentos em grande quantidade e distribuindo-os aos
parentes e afins com generosidade.
Não por acaso, a palavra tykòwy, “compensação ou pagamento pela vagina”,
poderia ser traduzida também como “vingança à vagina” ou “inimigo da vagina”,
subentendendo-se a afinidade como uma relação de inimizade. O conceito de “vingança”
(kòwy), enquanto uma reação a uma agressão sofrida, aproxima-se da idéia nativa de
agência masculina expressa no mito, como uma reação ordenadora a uma iniciativa
desestruturante de um outro feminilizado, um potencial inimigo. Esse conceito de agência
é elaborado pelo mito como a recriação parcial, pelos homens, do paraíso original
destruído pelas mulheres, ou seja, como uma intervenção criativa contra o caos, cujo
objetivo é restabelecer parcialmente a ordem anterior. Nas relações com a exterioridade, os
Javaé se vêem como esse agente masculinizado que tenta recriar a tradição continuamente
transformada pelas relações desintegradoras com os estrangeiros, papel este assumido
agora pela sociedade nacional. No caso das relações internas à sociedade, as compensações
matrimoniais de um homem aos afins podem ser vistas como o exercício dessa agência –
uma reação ao Outro – que tem o potencial de transformar uma situação inicial adversa em
uma situação posterior mais favorável.

839
A prestação matrimonial não é concebida aqui apenas como uma mera retribuição
estrutural pelo sexo, mas como uma possibilidade de (re)ação criativa à mortalidade e
subordinação geradas pelo sexo, daí a equivalência entre os conceitos de vingança e
reciprocidade. Em outras palavras, como o principal modo de agência masculina, como a
forma cotidiana que os homens têm de exercer a agência social tal como ela é definida pelo
mito. O caos mítico que desestruturou a ordem paradisíaca anterior representa, em uma
linguagem simbólica, as fusões substanciais poluidoras geradas pelo sexo com uma
mulher. Ao se tornar um genitor, um homem não só inaugura a condição mortal do seu
corpo, como passa a ser um genro ou cunhado devedor e submisso aos afins, em oposição
radical à sua condição pré-paternidade. Trata-se de uma passagem análoga à ascensão
mítica primordial. Assim como as mulheres míticas impuseram seus desejos mais anti-
sociais, coagindo os homens, os afins feminilizados passam a ter um poder de coação. Do
mesmo modo que no mito, as relações de afinidade surgidas após a procriação levam ao
fim da estrutura de prazer anterior.
Ao compensar materialmente os afins, um homem tem a possibilidade de se “vingar
da vagina” ou do “inimigo” e reagir criativamente à sua posição inferiorizada inicial,
adquirindo honra, prestígio e, com o tempo, tornando-se o credor de outros homens. É
como pai ritual, entretanto, sustentando um ciclo anual para o aruanã de cada filho, pelo
menos, que um homem pode exercer de modo mais completo a sua capacidade de agência
ao recriar o estado mais parecido possível, embora nunca idêntico, com aquele que seu
corpo experimentou antes de procriar. Nos tempos antigos, os homens fizeram isso
tomando para si o poder e criando a cultura – uma imitação imperfeita da imortalidade –
como o substituto possível da ordem mágica perdida. Sendo trabalhador e generoso, o
poder acessível a um humano social, um pai ritual tem a chance de repetir simbolicamente
o que os seus ancestrais míticos fizeram: ele pode produzir cerimonialmente, embora
também de modo imperfeito ou parcial, o estado de fechamento do corpo que conhecia
antes de se tornar um genitor.
A criação ritual do parentesco não-substancial nada mais é que a imitação de um
estado imortal. Um homem sustenta um ciclo ritual para que o irmão de sua esposa dance
como aruanã e recrie parcialmente o estado de plenitude mágica ou energética anterior,
onde os corpos imortais não se relacionam entre si. Na verdade, um genitor retribui ao seu
cunhado não pela vagina da esposa que lhe proporciona prazer sexual, filhos e a vida em
sociedade, mas pela anulação ou reversão da própria aliança realizada. Ele paga para

840
alcançar a condição simbólica de não-reciprocidade, como se fosse uma troca pela não-
troca, dependendo de um afim, paradoxalmente, para anular a própria afinidade. Na
complexa reciprocidade estabelecida no ritual, os que permutam esposas e lutam entre si,
idealmente, são os mesmos que trocam, depois, a possibilidade de anular a troca realizada.
Em última instância, os homens compensam os cunhados, reciprocamente, não para dar
continuidade à sociedade, mas pela fabricação cerimonial da vida eterna.
Assim como um homem passa uma parte significativa de sua vida em uma posição
intermediária entre as ligações que mantém com a casa natal e as obrigações devidas à casa
dos afins, a pessoa também está no “meio” de dois extremos. Ou, para comparar os Javaé
mais uma vez com os Bororo (Crocker, 1985), para quem os seres humanos são “almas
vitais”, sínteses paradoxais do eterno e do perecível, talvez seja melhor dito que ela contém
os dois extremos dentro de si. Mas o “meio” aqui, em sua dimensão social, temporal,
espacial e filosófica, é mais uma postura ativa, um conceito de agência humana, do que um
lugar estático de mediação. O meio é o produto contraditório da relação criativa entre um
genitor e o tio materno de seu filho, entre interior e exterior, os Javaé e os estrangeiros, o
povo de Tòlòra e os Wèrè, um processo constante de desafinização ou de domesticação da
alteridade incorporada. A pessoa ou a cultura “estão no meio” não no sentido de que elas
ocupam um lugar fixo ou estrutural entre dois extremos, mas no de que elas são o produto
de uma caminhada histórica e criativa entre esses extremos.
Os homens mudam-se da casa natal para a dos afins, assim como Tanyxiwè
caminhou das cabeceiras do Araguaia, de onde partiu com um corpo fechado, em direção à
sua foz, onde chegou com um corpo aberto. Mas o herói subiu ao Céu ao fim de seu
périplo, assim como a História dos humanos de corpos abertos se faz através do processo
inacabado de tentar reverter a descida, recriando as condições originais da casa natal. Do
ponto de vista de uma criança ou adolescente, é a relação entre os seus genitores e os
irmãos de sua mãe, um princípio feminino de transformação e um masculino de
continuidade, que pode levar à fabricação de um corpo/sujeito que contém em si as duas
polaridades, a disposição de crescer/degenerar e os limites que o mantêm relativamente
estável. A construção da pessoa é um processo tão histórico quanto a construção da cultura,
descrita pelo mito, porque ambas pressupõem uma dependência essencial da alteridade
(Viveiros de Castro, 1986, 1993, 2002b, 2002d). O resultado é uma síntese paradoxal, e ao
mesmo tempo transitória, alcançada a partir da relação dialética (pro)criadora entre sujeitos
antagônicos, masculino e feminino.

841
As relações com a alteridade são concebidas na linguagem da procriação, porque
elas são tão férteis quanto as relações substanciais entre um homem e uma mulher. Mas a
agência masculina – a vingança à vagina – é definida como o esforço de reverter a
criatividade/destrutibilidade gerada na interação com o feminino. A Dança dos Aruanãs
nada mais é que o modo consagrado e público dos Javaé exercerem internamente o mesmo
tipo de agência histórica descrita no mito, uma tentativa masculina de reordenar
parcialmente – criando o parentesco – o mundo desestruturado pelas relações de afinidade
feminilizadas. A ordem que se tenta repetir não é dada desde sempre, mas o resultado
imprevisível de um esforço social contínuo. O meio aqui não é um lugar imutável entre os
extremos, mas uma postura de mediação constante, através da qual o Povo do Meio cria a
História em sua perene caminhada.

842
Parte III (O Fim)

Capítulo 11

Entre a morte e o renascimento

11.1. O Eu torna-se Outro

Nascimento, casamento/procriação e morte são os três momentos do ciclo de vida


que inauguram uma nova condição do corpo humano a partir da interação física e social
entre opostos, entre um princípio masculino ordenador e a um feminino desestabilizador.
Toda transformação corporal significativa, capaz de alterar a estrutura anterior, é pensada
como o produto de uma relação fusional com a alteridade e não como uma conseqüência
natural do desenvolvimento biológico autônomo do corpo. O corpo se transforma – nasce,
procria, envelhece e morre – não porque está programado biologicamente para tal, de
forma independente, mas porque as pessoas interagem socialmente entre si, na condição de
diferentes, provocando a transformação. Nos três casos em questão, a criação de um novo
estado da pessoa, exatamente como na ascensão mítica que deu origem à vida em
sociedade, é produzida por uma relação com um diferente cujo modelo básico é a
procriação.
A primeira mudança é o próprio nascimento de uma pessoa, cujo corpo surge como
um novo estado corporal da substância de seus genitores, como uma transformação
produzida pela interação física e social entre eles. O corpo de um recém-nascido é ele
próprio a substância paterna, que passou por uma alteração radical de sua forma prévia
inerte após o contato fértil com as substâncias maternas transformadoras. Segue-se um
esforço coletivo para que esse corpo readquira uma forma minimamente estável ou
fechada, o que é obtido parcialmente identificando-se a pessoa com um aruanã até ela
procriar. Ocorre então a segunda alteração radical da forma corporal, que (re)inaugura a
condição transformacional ou mortal do corpo, propiciada também pela relação física e
social com um outro feminilizado (a esposa e os afins). Mais uma vez, a coletividade tenta

843
recriar a estrutura corporal anterior modificada, o que é relativamente possível
identificando genitores como pais não substanciais de um aruanã. A cada passagem
significativa do ciclo vital, estabelece-se uma alternância entre relação com a alteridade
feminilizada (transformação estrutural) e tentativa masculinizada de negá-la
(continuidade), sucessivamente. A morte, por fim, é a terceira e última mudança radical do
corpo, concebida dentro dos mesmos parâmetros.
Ela corresponde à criação de um novo estado corporal, que por sua vez também
depende de uma interação social transformadora – uma procriação simbólica – com a
alteridade. Afinal, a morte em si é pensada como um produto da agência humana, ou seja,
como o produto de uma interação entre um matador, associado ao feminino (o que tem a
iniciativa da transformação), e a vítima, associada ao masculino (o que sofre a ação), como
nos tempos míticos. Os humanos começaram a morrer porque começaram a interagir física
e socialmente entre si, trocando substâncias e, posteriormente, agressões recíprocas. A
mortalidade não só é um estado associado à relacionalidade, como na Terra dos
Ensangüentados, como é um estado causado pelas relações entre diferentes. Embora possa
se ouvir que alguém morreu “de velhice”, toda doença e toda morte, em última instância,
são atribuídas à intenção e à ação de um outro humano, cuja identificação é o tema por
excelência dos choros rituais. Dentro da sociedade, tem-se basicamente dois tipos de
mortes: aquelas que são produtos de uma agressão física direta e visível, mais raras, e as
que são produtos dos “feitiços” (rubuna, “o lugar da morte”) encomendados a um xamã a
quem se deve retribuir pelo serviço, a grande maioria (ver Rodrigues, 1993).
Diferentemente de outras sociedades em que a ação agressiva do xamã é dirigida
para grupos locais distantes, como entre os Sanumá (Guimarães, 2005), o xamanismo
mortal Javaé atua contra os membros do próprio grupo local, o que gera um estado
permanente de acusações veladas de feitiçaria, como no alto Xingu. Os Javaé dizem que o
anti-social e canibal hàri (o xamã) é capaz de matar um parente próximo, havendo relatos
de casos em que isso teria acontecido. Antigamente era uma prática recorrente que os
suspeitos de feitiçaria mortal fossem assassinados, como entre os vizinhos Tapirapé
(Wagley, 1988), mas agora é mais comum que eles fujam e mudem de aldeia depois de
terem seus pertences destruídos ou queimados pelos acusadores. Como o confronto físico
direto fora dos contextos rituais apropriados é evitado socialmente, seja nas relações
internas ou externas à sociedade, há uma transferência do conflito para o plano invisível do

844
xamanismo, como já foi sugerido por Donahue (1982) entre os Karajá, o que agora ocorre
paralelamente à sua liberação pelo consumo do álcool.
O plano invisível canaliza também as agressões dos próprios xamãs entre si, que
atuam como verdadeiros guerreiros nessa esfera, apesar de sua faceta pública de curadores,
sendo habitual os relatos a respeito da belicosidade e disputas dos xamãs em suas viagens
cósmicas, assunto que não aprofundarei aqui. Por ora, interessa compreender que a morte
de alguém, seja por feitiçaria ou assassinato direto, é sempre causada por um outro
simbolicamente feminino e provoca imediatamente o mesmo tipo de transformação que
ocorre quando alguém nasce ou procria. Desde os tempos míticos, as mulheres são a causa
das mortes e transformações radicais, sendo por isso associadas aos matadores, aos brancos
e aos afins. Assim como aquele que nasce ou casa/procria passa por um processo inicial de
absoluto estranhamento em relação aos seus genitores ou afins, respectivamente, aquele
que morre adquire imediatamente a condição de alteridade radical em relação à
comunidade em que vivia, como entre os Araweté (Viveiros de Castro, 1986, 2002d) ou
Kraho (Carneiro da Cunha, 1978), uma vez que a morte é o produto de uma relação
transformadora com um outro feminilizado.
O estranhamento é maior em relação aos seus próprios parentes, a quem o morto
passa a perseguir na condição temida de kuni, um ser esfomeado, potencialmente canibal e
em permanente movimento, que não para de caminhar em desespero, à procura dos
parentes que ele não mais reconhece. Tal perseguição noturna, que leva os Javaé a
abandonarem a casa do morto, ocorre enquanto dura o luto (sabina). Este é um período em
que a vida ritual “alegre” e comandada pelos homens é suspensa por um período de
“tristeza”, comandado pela voz feminina e acompanhado das interdições corporais
coletivas já mencionadas, pois não se deve cantar, falar alto, rir, gritar, pintar o corpo,
passar óleo no cabelo, cortar o cabelo e, no caso dos parentes mais próximos, nem mesmo
andar pela aldeia, trabalhar ou ir à roça. Segundo Donahue (1982), no passado era comum
todos de uma aldeia mudaram-se quando morria um chefe Karajá, prática sobre a qual não
ouvi menção entre os Javaé. A confinação ou contenção corporal dos parentes, uma
condição masculinizada que visa recompor a ordem, contrasta fortemente com a
movimentação excessiva do morto, uma condição feminilizada desordenadora, acentuando
a diferença entre ambos.

845
O luto e o funeral Javaé já foram descritos antes (Toral, 1992, Rodrigues, 1993), o
mesmo valendo para os Karajá 1 , com quem os Javaé partilham mais pontos em comum do
que diferenças no que se refere às práticas funerárias. Aqui, porém, serão retomados com
várias informações novas, inclusive a respeito das prestações matrimoniais, e
contextualizados dentro do argumento maior. Segundo a consciência mítico-histórica, as
práticas funerárias mais elaboradas, incluindo os choros rituais, são uma herança de
Tòlòra, do povo Kuratanikèhè. Repetindo o que já foi dito no Capítulo 2, o mito relata que
“o luto dos Kuratanikèhè era muito longo e o choro ritual, que foi herdado deles pelos
Javaé atuais, era muito respeitado, de modo que mais nada era feito enquanto estivessem
chorando. Já os Wèrè, a não ser no caso de pessoas muito especiais, não tinham nenhum
respeito pela morte, não se dedicavam a práticas funerárias nem cultuavam o luto”. É
notável que um dos principais rituais alto-xinguanos seja justamente um grandioso rito
funerário (Kwaríp), do qual fazem parte lamentações fúnebres e que pode durar um ou
mais anos (Agostinho, 1974), e que em termos gerais o luto não seja tão elaborado entre os
Jê centrais e do norte.
Em meu trabalho anterior, já havia uma indicação de que tanto o recém-nascido
quanto o morto assumem a condição de estranhos, em um primeiro e breve momento, em
relação aos genitores ou aos próprios parentes, mas não do modo como pretendo
desenvolver aqui, no sentido de que as interações mais intensas com a alteridade são
sempre férteis e mortais, produzindo transformações estruturais do que existia antes.
Dentro dessa perspectiva, o que não foi dito antes, o luto nada mais é que um estado de
poluição simbólico, uma espécie de resguardo coletivo, associado às relações ou misturas
entre diferentes, em que operam, em uma dimensão mais ampla, as mesmas características
do resguardo pós-parto. Trata-se de um estado de profunda transformação corporal do
morto, cujo corpo visível se degenera rapidamente, produzido a partir de uma interação
com um Outro, mesmo que invisível, como no caso da atuação xamânica.
Tal interação é ao mesmo tempo fértil (criadora de uma nova condição do corpo) e
transformadora ou mortal (inaugura-se a condição mortal do corpo de modo definitivo),
exatamente como no nascimento e na procriação. Tanto a morte pode ser vista como um
nascimento às avessas, no plano invisível, como o nascimento pode ser visto como uma
morte às avessas, no plano visível. O luto é também um estado “contaminado” pela

1
Ehrenreich (1948), Krause (1943a), Lipkind (1948), Bueno (1975), Donahue (1982), Aytai (1983a, 1983b),
Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).

846
alteridade, como no resguardo, representada tanto pelo kuni canibal feminilizado, cujas
movimentações excessivas no espaço são associadas simbolicamente a transformações
excessivas, quanto pelas vozes femininas nos choros rituais, que desestruturam a forma
existente. Em outras palavras, o luto é feminilizado porque toda morte é um estado de
transformação causado por um Outro, assim como a procriação.
Por fim, tem-se um estado de interdições físicas à comunidade, que visam recompor
a ordem anterior, assim como aquelas impostas sobre os genitores, que não podem comer
determinadas comidas ou manter relações sexuais. E assim como se tenta purificar/conter
os corpos durante o resguardo, o xamã, acompanhado de sua varinha mágica, tenta
controlar o kuni no dia da morte, soprando um pó mágico sobre o corpo que ainda não foi
enterrado. Com a mesma substância que ajuda a controlar os aruanãs no dia de sua
chegada, o xamã tenta evitar que o kuni caminhe e ataque as pessoas, especialmente
quando se trata de um corpo que está sendo velado à noite, hora em que os kuni saem do
cemitério (wabèdè) para caminhar. Os parentes do morto também espalham cinzas ao redor
da casa, com o mesmo objetivo.
Nesse primeiro momento de transformação do corpo logo após a morte, ocorre um
desdobramento da pele velha (tykytyby) e da pele de verdade (tykytyhy) que compõem o
corpo da pessoa, independentemente do tipo de morte que tenha tido. Conforme já foi
descrito antes em maior profundidade (Rodrigues, 1993), a pele velha transforma-se no
kuni sofredor, canibal e caminhante, enquanto a pele de verdade é a porção da pessoa que
permanece no wabèdè, o lugar invisível que existe abaixo do cemitério, associado ao sol
poente ou rio abaixo. Lá, esta última passará por uma série de privações e provações
durante o luto, impostas por uma espécie de “conselho” formado pelos worosy mahãdu ou
rubu mahãdu, os “mortos” que vivem nesse lugar, e os xamãs em sua forma invisível.
Juntos, os mortos e os xamãs decidem o destino da pessoa ao final das provações. Ao fim
do luto, a pele de verdade deixa de existir e a pessoa seguirá existindo apenas como pele
velha ou, caso tenha morrido assassinada, perdendo sangue, continuará como kuni.
Dependendo das negociações entre os xamãs e os parentes do morto, do seu
histórico de vida e, principalmente, das condições de sua morte, a pessoa poderá deixar de
ser kuni e seguir como pele velha para viver na plenitude do Céu, o lugar mais desejado de
todos, ou para o Fundo das Águas, para onde vão os que cometeram infrações rituais
(rubuoraruna), “maltratando os aruanãs”; permanecer no wabèdè na forma dos worosy
(que também podem ser referidos como “pele velha”) que às vezes acompanham os vivos,

847
têm fome e saudade dos parentes, e para quem os Javaé oferecem as refeições rituais (xiwè)
e cotidianas; ou, no caso específico e temido daqueles que morreram assassinados,
permanecer na condição terrível de kuni na Terra dos Ensangüentados, que é uma parte
específica e separada do wabèdè. Esse primeiro momento de transformação e
desdobramento do corpo do morto, o que coincide com o período do luto, é associado ao
oeste, uma vez que os cemitérios (wabèdè) tendem a se situar na direção de onde o sol se
põe, como já foi dito, que por sua vez é associado simbolicamente ao rio abaixo.
Desse modo, a mudança radical de estado provocada pela morte é também, em
termos de uma linguagem espacial, uma descida rio abaixo. De modo inverso, aqueles que
conseguem transcender esse estado inicial e alcançar a condição desejada de perpetuação
da pele velha, chegando ao Céu da imortalidade, revertem a descida e dirigem-se ao rio
acima. Em termos simbólicos, tais movimentos espaciais, que representam a neutralização
da alteridade e da transformação corporal, atingindo-se um estado purificado de
estabilização da forma, são análogos às práticas que se seguem ao resguardo dos genitores.
A identificação de uma criança com os aruanãs ou de seus pais com a condição de pais de
aruanãs equivale, em termos simbólicos, à subida das peles velhas purificadas ao Céu. O
momento posterior ao luto é seguido não só pela retomada imediata da vida ritual como do
enterro secundário, que parece ter uma função simbólica similar às técnicas de fechamento
do corpo.
Como veremos a seguir, era o enterro secundário, prática abandonada, que
assinalava o início do fim do luto. Enquanto o enterro primário e o luto associam-se ao
período poluído de resguardo, o fim do luto e o enterro secundário têm como
correspondente o ikytyna, que marca o fim do resguardo pós-parto, quando se alcança um
mínimo de purificação ou neutralização da transformação. O corpo aberto ou degenerado
durante o enterro primário opõe-se a um estado de fechamento após o fim do luto, quando
o morto alcança idealmente a condição de pele velha celeste imortal. Tal estado posterior
não é a condição primordial da humanidade, o corpo verdadeiramente fechado, que não
havia ainda experimentado a morte, mas é o melhor que se pode alcançar depois da morte,
assim como a identificação com um aruanã é o melhor que se pode alcançar depois do
nascimento. Esse fechamento relativo e posterior ao luto é simbolizado, de forma explícita,
pelo enterro secundário, quando o corpo/ossos do morto eram colocados em uma urna
funerária fechada, metáfora evidente do fechamento ou isolamento do corpo.

848
O morto pode ser referido por várias palavras, cada uma indicativa de um aspecto
diferente da sua condição mortal. Um conceito geral para “morto” é a palavra rubu, mas
ela parece designar em especial os corpos em processo de transformação ou as peles velhas
que permanecem em sofrimento no cemitério, não sendo usada para se referir às peles
velhas eternas que vivem no nível celeste, por exemplo. A palavra irubu, “alguém morto”,
literalmente significa “seco”, opondo-se tanto ao conceito de “molhado” (ituku) quanto ao
corpo dos “vivos”, que são referidos como ikyru ou iru. Os mortos em geral também são
referidos como worosy, embora este conceito defina com mais precisão o conjunto
daqueles que vivem no cemitério invisível (wabèdè worosy), onde passam fome e de onde
vêm visitar os vivos, na forma de pele velha, durante as refeições e outras situações.
Warabu é a palavra que designa o corpo visível do morto durante o luto, exclusivamente,
mas que é utilizada apenas em referência aos parentes do morto, como em warabusè, “mãe
do morto”, warabutyby, “pai do morto” ou warabulahi, “avó do morto”. O conceito weleku
refere-se aos mortos mais antigos, assim como a palavra welèku designa os vivos que
sumiram ou desapareceram por muito tempo. Outros conceitos referem-se às diferentes
porções invisíveis do corpo após a morte, como o kuni canibal que atua durante o luto ou
tykytyby, a “pele velha” que permanece existindo nos outros níveis cósmicos ou mesmo no
cemitério.
O enterro primário chama-se rubu lukunyky, “enterro do morto”. Algumas horas
depois da morte, conforme assisti pessoalmente algumas vezes, o morto é enterrado
juntamente com os seus pertences pessoais, como entre os Kraho (Carneiro da Cunha,
1978). O corpo é colocado dentro de uma esteira cujas extremidades (na cabeça e nos pés
da pessoa) são fechadas e atadas, respectivamente, às duas extremidades de uma vara.
Antes disso, idealmente, o corpo do morto é adornado ao modo tradicional: pinta-se com
urucum uma faixa na região dos olhos, aplica-se plumas de pássaros (dura) com uma
resina vegetal sobre todo o corpo e coloca-se os enfeites de algodão nas pernas e braços.
Quando se trata de um xamã, ele é adornado de um modo diferente. Pinta-se o rosto com
urucum da boca para baixo e coloca-se dura acima das sobrancelhas e no nariz. Dentro da
esteira, a que já era usada pelo morto, são colocados seus objetos de uso pessoal,
dependendo do sexo, tais como flechas, machados, facão, roupas, panelas etc. No caso do
morto ser um xamã, coloca-se a sua varinha mágica (hitxiwa). Os Javaé dizem que os

849
objetos do morto “fazem mal” (bèrèbuna), de modo que as pessoas têm medo deles
também 2 .
O corpo é então carregado por dois afins, cada um segurando uma ponta da vara, e
acompanhado dos parentes próximos até o cemitério, onde é enterrado enquanto as
mulheres choram intensamente. Caso tenha morrido assassinado, derramando sangue, o
morto deve ser enterrado com a cabeça virada para o sol poente (bèdè bòrò), associado à
Terra dos Ensangüentados, enquanto os que não morreram assim são enterrados com a
cabeça virada para o lado do sol nascente (biura). Como já foi dito antes, o enterro dos que
passaram por mortes violentas com a cabeça virada para o oeste, apesar de não haver uma
menção à Terra dos Ensangüentados, é registrado por outros autores entre os Karajá 3 .
Lipkind (1948), Donahue (1982) e Pétesch (2000) acrescentam ainda que tais mortos são
enterrados afastados ou isolados dos outros. Logo após o enterro, os parentes depositam
comida sobre o túmulo, como bananas, peixe ou caldo iweru, para que o kuni esfomeado se
alimente durante o luto. Pode-se colocar também algo que ele gostava, como fumo ou
aguardente de cana, por exemplo. Nos últimos anos, alguns Javaé de maior poder
econômico têm enterrado seus parentes em caixões de madeira fabricados na cidade.
Recentemente (2005), um conhecido xamã Javaé, que já havia sido cacique, foi enterrado
com seu hitxiwa em um caixão, vestido de terno e gravata, mas enfeitado com o urucum e
as plumas em seu rosto.
Em geral, há uma predileção por enterrar alguém junto aos seus parentes próximos,
havendo vários casos, recentes ou mais antigos, em que o corpo do morto foi transportado
para outra aldeia. As pessoas preferem enterrar os seus parentes nos cemitérios das aldeias
grandes, onde há muitos outros enterrados, evitando, se possível, enterrar os mortos nas
aldeias pequenas ou recém fundadas. Muitos moradores de outras aldeias trazem os
parentes para serem enterrados em Canoanã, a maior aldeia pós-contato, onde há um
grande cemitério. Tal prática foi registrada por Bonilla (1997, 2000) em relação aos
moradores de Txuiri, considerada uma aldeia “sem cemitério” pelo fato de só haver o
cemitério dos brancos que deixaram o local. Do mesmo modo, é comum que as pessoas

2
Toral (1992:110) relata que os parentes do morto destroem a maioria de seus bens em uma demonstração
“barulhenta de dor”. Lipkind (1948:188) acrescenta a isso a “autolaceração”. Donahue (1982) nota que a
pintura de urucum e a fixação de plumas de pássaro também são feitas no corpo do recém-nascido Karajá,
enquanto Lima Filho (1994) diz que a pintura do morto/a é a mesma das classes de idade dos jovens não
casados (weryrybò e ijadoma) que dançam nos rituais. Aytai (1983b) diz que os pertences do morto Karajá
têm destinos variados: alguns são enterrados com ele, alguns pagam os serviços funerários dos parentes,
outros são destruídos e outros ainda ficam com a família.
3
Lipkind (1940), Donahue (1982) e Lima Filho (1994).

850
originárias de Wariwari transportem seus mortos à pé até o cemitério antigo, a mais de 5
km da nova Wariwari, para que permaneçam ao lado dos antepassados. Antes era usual
que uma aldeia onde houvesse parentes próximos de alguém que morreu em outra aldeia
também entrasse em luto. Nos dias de hoje ainda é comum, apenas, ouvir as mulheres
aparentadas chorando ritualmente por alguém que morreu em outra aldeia. Em relação aos
Karajá, Fénelon Costa & Malhano (1987:63) dizem que “pessoas da mesma família são
enterradas umas ao lado das outras”. Junto com Pétesch (2000), argumentam que a
disposição espacial do cemitério Karajá, grosso modo, reproduz a disposição espacial da
aldeia dos vivos, em especial a divisão acima/abaixo.
Quando ainda se praticava o enterro secundário, o que continuou ocorrendo nos
primeiros anos após a re-fundação da aldeia Canoanã, o enterro primário era um pouco
mais elaborado, preparando-se o corpo para a sua remoção posterior. Diante do objetivo de
isolar o corpo da terra, a cova aberta era forrada internamente por uma esteira, cujas
extremidades permaneciam para fora do buraco. Uma coberta de algodão (rià) enrolava o
corpo do morto e seus objetos, que eram colocados dentro da cova, sobre a esteira aberta.
A seguir, a coberta era amarrada, em três pontos diferentes, a uma vara de madeira,
chamada rubu hajutò, “vara do morto”, como no desenho ao lado (n° 20). Os três pontos
correspondiam à cabeça, barriga (o “meio” ou tya) e pés do morto, conforme a divisão
conceitual do corpo e do cosmos nativa. A vara permanecia por cima da cova, no nível do
chão, sendo coberta parcialmente pela esteira e, depois, por uma quantidade mínima de
terra. Essa forma de enterramento preservava o corpo e facilitava sua remoção posterior
para o enterro secundário 4 .
Depois do enterro, a mãe ou a avó real do morto cortavam o cabelo bem curto, rente
à cabeça, o que é raro atualmente, e permaneciam em casa chorando ritualmente, sem
andar pela aldeia. Só saiam à noite, para tomar banho. Ainda é mantida, entretanto, a
prática de um xamã convidar a comunidade, no meio do luto, aproximadamente, para o
wabèdè xiwè, a “refeição ritual do cemitério”, também mencionada por Lima Filho (1994),
ocasião em que todos, e não apenas os parentes do morto recente, podem colocar comida
em cima dos túmulos de seus mortos respectivos.

4
Há uma descrição do enterro entre os Karajá do século 19 em Ehrenreich (1948:66), com vários pontos em
comum com o que é descrito aqui, embora o autor mencione uma “dança mortuária” da qual nunca ouvi
nenhuma menção entre os Javaé. Bueno (1975:39) também menciona uma “dança mortuária em torno do
defunto” Karajá, realizada na forma de um diálogo cerimonial entre dois cantores.

851
Desenho n° 20: Enterro primário

rià
enrolando o
hajutò corpo do morto
esteira

nível da
Terra

852
Como já foi dito antes (Rodrigues, 1993:378), “as mulheres é quem levam as
comidas, que não é tão saborosa nem tão bem feita quanto a comida dos aruanãs (...). A
permanência no cemitério é rápida, pois os feitiços de quem morreu enfeitiçado estão todos
lá, contaminando os vivos. Para evitar ficar doente, deve-se tomar banho imediatamente
após a volta do cemitério”. Após negociações da família do morto com a Casa dos
Homens, interessada em retomar a vida ritual por causa dos aruanãs, que precisam ser
alimentados, o luto é suspenso.
Antes, a “mãe do morto” (warabusè) ia de casa em casa, no dia anterior ao fim do
luto, avisando às outras mulheres que podiam pintar os seus filhos a partir de então,
sinalizando o fim do luto ao cortar um pouco do seu próprio cabelo, caso não o tivesse
feito antes. Atualmente, as mães avisam apenas aos pais de aruanã que estes podem
preparar a bebida iweru, para que as danças recomecem no dia seguinte, à tarde. O reinício
da vida ritual é referido pela expressão bèdèreixiwahasè, que se relaciona com os pais
(waha, o pai, e sè, a mãe) dos aruanãs. No dia propriamente dito do fim do luto, bem cedo,
antes do amanhecer, o chefe ritual comunica o fim do luto, no pátio ritual masculino,
através de um aviso público chamado hitxèkò wahinyky, “aviso sobre os hitxèkò”. Por meio
de uma fala formal, de conhecimento de poucos, ele faz uma referência aos artefatos
funerários que são fabricados nesse dia. Atualmente, na ausência do chefe ritual, o aviso
ritual deve ser dado por alguém de fora da família do morto, um parente distante.
Há uma série de tarefas nas cerimônias funerárias que devem ser desempenhadas
pelos afins do próprio morto ou dos genitores do morto, ou seja, pelos cunhados (ZH) ou
genros respectivos, como parte das prestações matrimoniais. A expectativa maior,
entretanto, é que os maridos das irmãs e primas do morto é que assumam essas tarefas, a
quem as respectivas esposas dirigem-se solicitando a colaboração, que idealmente não
deve ser negada. Os Javaé dizem que, após a morte de um parente, as pessoas próximas
estão muito transtornadas, sem condição emocional para executar os procedimentos
funerários, de modo que é obrigação dos tybòrò kòwy (“devedores da vagina”) enfeitar e
pintar o corpo do morto, escolher o local do enterro, abrir a cova onde será enterrado,
carregar o corpo até o cemitério, enterrá-lo ou cobrir o túmulo com palhas. Caso não haja
nenhum afim efetivo para tal, o ideal é que um primo distante (um afim potencial) se
encarregue dessas atividades, sendo considerado desonroso um enterro realizado pelos
próprios parentes próximos da pessoa, pois é interpretado como desprestígio ou pobreza de

853
parentes 5 . Donahue (1982) diz que as tarefas funerárias entre os Karajá cabem aos parentes
patrilaterais distantes do morto, enquanto Pétesch (2000) atribui aos parentes próximos a
preparação do corpo e o restante aos parentes distantes ou afins. Lima Filho (1994)
menciona que o grupo de homens que realiza tais tarefas, sem especificar a que categorias
pertencem, é recompensado pela família do morto.
O luto é, assim, um período comandado pelas mulheres, em seus choros rituais, e
pelos afins do morto, que se encarregam das principais atividades funerárias,
estabelecendo-se, mais uma vez, uma relação próxima entre a afinidade/feminilidade e a
mortalidade. Espera-se que aqueles que ajudam nas cerimônias funerárias de seus afins
recebam deles, em troca (kòwy), o mesmo tipo de ajuda na morte de seus parentes
próximos, assim como na atividade ritual regular. Há casos de compensação material
àqueles que ajudaram durante o enterro, mesmo que estejam realizando prestações
matrimoniais, como no caso de dois genros que receberam algumas cabeças de gado pela
ajuda no enterro de seu sogro, que pertencia a uma família muito influente. Uma das
tarefas mais importantes que devem ser desempenhadas pelos afins do morto, idealmente
pelos mesmos que enterraram o corpo, é levar para o cemitério os hitxèkò, os dois artefatos
rituais confeccionados na Casa dos Homens e que “representam o morto”, como já foi dito
por Toral (1992:266). O autor descreve a cerimônia dos hitxèkò entre os Javaé, a qual não é
mais realizada entre os Karajá.
No último dia do luto, por volta do meio-dia, dois representantes da Casa dos
Homens, sem relação de parentesco próxima com o morto e não importando a qual metade
cerimonial pertencem, saem do recinto masculino em direção à casa da mãe do morto. Em
um momento solene, observado por todos e que pude presenciar mais de uma vez, ambos
caminham juntos, cada um carregando um hitxèkò e cobertos por uma mesma manta de
algodão (riàrahana) que encobre o rosto e parte do corpo deles. Durante o trajeto, eles
emitem o grito associado à metade cerimonial do morto. O grito da metade Hiretu é “ky,
ky, ky, ky ...”, enquanto o da metade Saura é “kyyyy ....”, sendo que este último, associado
ao rio acima, é tido como mais animado. Os hitxèkò são dois objetos de madeira,
idealmente de forma e pinturas idênticas, o que nem sempre é alcançado na prática, com
menos de um metro de altura. Eles são adornados com um arranjo de penas de pássaros e
seu “corpo” divide-se em uma porção superior, mediana e inferior, conforme o desenho ao

5
Aproveito para corrigir uma informação do trabalho anterior (Rodrigues, 1993:381), em que atribuía
algumas dessas tarefas “aos homens aparentados”.

854
lado (n° 21), feito por um xamã Javaé. Segundo Pétesch (2000:170), a “tripartição
corporal” refere-se à “cabeça” (ra), tronco (umã, wè), pernas (ti)”, e os hitxèkò Karajá
tinham formas diferentes conforme a metade ritual do morto.
A sua fabricação é encomendada um dia antes dessa cerimônia a algum especialista
da Casa dos Homens, alguém que não pode ser da “família do morto” (warabusy). É
vedado ao pai, aos irmãos, primos, tios, sobrinhos e netos próximos do falecido
confeccionar os artefatos. Aquele que é convidado, hoje em dia são poucos os que sabem
fabricá-los, recebe algo em troca pelo trabalho, que é realizado na manhã do último dia do
luto. Antigamente, cabia às irmãs ou primas do morto, ou então à sua própria esposa, a
confecção da byrè wèriti, um delicado trançado de palha (byrè) pintado com motivos
tradicionais, à base de urucum, que seria entregue à Casa dos Homens e colocado ao redor
da porção mediana do hitxèkò, como se fosse a sua “pintura da barriga” (wèriti). Nos
últimos anos, os artefatos têm sido pintados pelos próprios homens, com desenhos que são
de conhecimento de poucos e que variam conforme o morto, mas sem o trançado de palha.
Os Javaé dizem que a tradição dos hitxèkò é originária do povo de Tòlòra, enquanto o
costume de pintá-los com urucum foi trazido pelos Wèrè.
A pintura dos artefatos também varia conforme a metade cerimonial a que o morto
pertencia, independentemente do seu sexo. O grito emitido pelos dois representantes da
Casa dos Homens sinaliza para que os parentes e afins do morto reúnam-se na casa da mãe
dele, onde os hitxèkò são entregues pelos homens à “mãe do morto” (warabusè),
idealmente, que os recebe fora de sua casa. Ela é considerada a “dona” simbólica do corpo
do que morreu, enfatizando-se a ligação matrilinear de uma pessoa com a casa de origem.
Caso a mãe do morto não esteja mais viva, a sua esposa é que deve recebê-los. Em se
tratando de uma mulher, são as suas irmãs ou primas próximas que recebem os artefatos,
os quais nunca são entregues aos homens. Toral (1992:266) relata que os “postes
tumulares” foram entregues à avó materna do morto, a quem se perguntou se a vida ritual
podia ser reiniciada. Os hitxèkò são colocados em algum canto da casa e ali permanecem
por alguns minutos, enquanto os que os entregaram voltam em silêncio para a Casa dos
Homens, ocasião em que as mulheres aparentadas começam a chorar mais uma vez. Quem
é sy sõere, “rico de parentes”, conta com muitos parentes e afins esperando a chegada dos
artefatos.

855
Desenho n° 21: Hitxèkò

856
Logo depois, os afins do morto ou dos genitores do morto, com preferência para os
maridos das irmãs ou primas do que morreu, dirigem-se à mãe do morto com uma fala
formal e avisam que vão levar os hitxèkò até o túmulo. Durante o trajeto, eles são seguidos
pelos parentes do morto e pelas outras pessoas da aldeia que desejam visitar os túmulos de
seus parentes, limpar o mato ao redor e colocar comida sobre eles mais uma vez. Segundo
Toral (1992:266), em 1979, as mesmas pessoas que fabricaram os postes tumulares
carregaram-nos “nos ombros” até o cemitério. Os artefatos não podem permanecer muito
tempo na casa por dois motivos: o arranjo de penas que o acompanha, chamado de hitxèkò
bèdosi, é parte dos objetos sagrados dos aruanãs, sendo considerado bèrèbuna (maléfico)
às pessoas da casa. Além disso, é constrangedor para a família que eles permaneçam por
muito tempo na casa da mãe, o que sinaliza publicamente que se trata de uma família pobre
de parentes, em que nenhum afim realiza a sua obrigação. Por essa razão, as irmãs e primas
do morto ou dos pais do morto solicitam com antecedência aos seus maridos que
carreguem os hitxèkò, sendo considerado desonroso que os próprios pais do morto façam
essa solicitação.
Os hitxèkò são conhecidos como ruburadudu, “acompanhante do morto”, no
sentido de que permanecem junto ao morto no cemitério, ou rubutyhyna, “lugar da honra
do morto”, pois são um sinal de prestígio. Eles são colocados sobre o túmulo, um sobre a
cabeça do morto, associada ao masculino e à perenidade, o outro sobre os pés, associados
ao feminino e à transformação. Fénelon Costa & Malhano (1987:63) descrevem a mesma
relação dos “postes antropomorfos” Karajá com os diferentes gêneros, ao descreverem que
“uma representação masculina guardaria a cabeça, e uma representação feminina, os pés do
morto”. Pouco tempo depois, as pessoas devem se retirar do cemitério, para que
representantes da Casa dos Homens removam secretamente o arranjo de penas que
acompanha os artefatos. Ao que parece, os artefatos têm alguma relação com os aruanãs
que pertenceram à pessoa, embora isso não tenha sido formulado por nenhum Javaé. Neles
são colocadas penas sagradas e secretas associadas aos aruanãs e, em sua dualidade,
associada ao masculino e ao feminino, os hitxèkò replicam de algum modo o aruanã
andrógino, constituído de uma dupla associada ao masculino e ao feminino. Além disso, os
artefatos rituais são entregues por uma dupla que tem os rostos e grande parte do corpo
coberta por uma manta, cobrindo a mesma parte do corpo que as máscaras do aruanã 6 .

6
Pétesch (2000:170) menciona um jogo ritual Karajá que marcava o fim do luto, de forma descontraída,
como um verdadeiro rito de inversão, e era realizado com um par de pequenos postes tumulares (itxeò riore),

857
A morte desloca o centro da vida pública do espaço sagrado masculino, cujas
atividades são imediatamente interrompidas, para o espaço profano e poluído feminino.
Para Pétesch (2000), o morto faz o percurso inverso de um menino no ritual de iniciação.
No luto é a voz feminina, localizada espacialmente do “lado das mulheres” (ixy), que toma
conta do palco social e comanda as ações que transformam radicalmente o cotidiano da
aldeia. É no espaço feminino que o corpo é velado pelos parentes, adornado pelos afins e
de onde parte para ser enterrado. Como já foi dito, há todo um esforço ritual e coletivo de
desafinização para transformar aquele que nasce como um estranho de corpo aberto, no
espaço feminino, em um parente de corpo fechado, identificado com os aruanãs e o espaço
masculino (ijoina), independentemente do seu sexo. Nesse processo de construção da
pessoa, há um deslocamento simbólico e social do ixy para o ijoina, equivalente a um
deslocamento rio acima. Na morte de alguém tem-se o movimento oposto, de retorno do
espaço masculino sagrado para o feminino profano, o que é representado pelos dois
rapazes que saem do ijoina, associado à vida eterna, e entregam os hitxèkò às mulheres, no
ixy, associado à morte e à afinidade. Em uma interpretação diferente daqui proposta, Lima
Filho (1994) associa a morte ao mundo masculino, enfatizando que, entre os Karajá, os
assuntos relacionados aos worosy são de domínio exclusivo dos homens.
Ao fim do luto, o que ainda é praticado, espera-se que um casal, idealmente, ou
pelo menos uma mulher mais velha, assuma o papel de iiròduròdu, tirando a família do
morto do luto. A pessoa em questão dirige-se à casa da família enlutada e, respeitosamente,
demonstrando compaixão pelo sofrimento das pessoas, toma a iniciativa de pintar e
adornar os parentes do morto, marcando definitivamente o fim do luto. Ela pode inclusive
tirar a mãe do morto de dentro da casa, onde ela fica chorando, e conduzi-la para uma
esteira, no terreiro ao redor, local habitual de onde as pessoas assistem a Dança dos
Aruanãs e interagem com as visitas. A família do morto deve aceitar, mesmo que
internamente ainda esteja sofrendo com a perda, porque quem não tem iiròduròdu fica
chorando muito tempo e demora a terminar o luto, o que não é recomendado, dizem os
Javaé. A palavra iiròduròdu significa literalmente “o que come (ròdu) a caça (iròdu) deles
(i)”, ou seja, “o que come a caça da família do morto”, expressão cujo significado
simbólico ainda permanece obscuro para mim.

diferentes dos grandes postes (itxeò hykã) colocados no túmulo. A autora compara o jogo, sobre o qual nunca
ouvi falar entre os Javaé, em forma de corrida entre dois grupos masculinos, cada um carregando o artefato
respectivo, à corrida de toras Timbira, notando vários pontos em comum.

858
Paralelamente a essa ação, cabia a alguém da Casa dos Homens, costume
abandonado, convidar os parentes do sexo masculino do morto para retomar a vida ritual,
conduzindo-os ao pátio masculino. Aquele que convidava deveria ser um parente distante e
os parentes do morto encerravam o luto pintando-se e enfeitando-se ao modo tradicional
antes de se dirigir à Casa dos Homens. O que também não se pratica mais, conforme já foi
mencionado, é o enterro secundário, chamado de titarasa, “tirar (tarasa) os ossos (ti)”,
ocasião que os ossos do morto eram colocados dentro de uma grande urna funerária
chamada rubu watxiwi, literalmente “panela do morto”. Watxiwi é o termo que designa as
panelas de barro em geral, praticamente não mais usadas, embora as pequenas sejam
conhecidas como herana, e aquelas maiores, destinadas a carregar a bebida iweru para a
Casa dos Homens, sejam conhecidas como watxiweyla ou iweruna, “lugar do iweru”. Em
Pazinatto (1988) há uma relação, em parte similar, dos termos Karajá para panelas. As
urnas funerárias tinham a forma arredondada e eram cobertas por uma tampa de barro,
chamada bèsè. Aytai (1983b) informa que as urnas Karajá eram pintadas de preto com
jenipapo 7 .
O enterro secundário também fazia parte das prestações matrimoniais, “porque os
parentes não gostam de enterrar o morto”, e deveria ser realizado, portanto, pela mesma
categoria de pessoas mencionada. A iniciativa da ação cabia a um primo ou tio distante do
morto ou aos seus cunhados (ZH), a categoria preferencial, embora os cunhados dos
genitores do morto ou os genros respectivos também pudessem fazê-lo. Os parentes
próximos do que morreu ficavam esperando a ocasião em que os cunhados do morto
ofereciam-se formalmente para o ixiwoxièrynykymy, o procedimento de desenterrar o
corpo. Aquele que tinha essa iniciativa comparecia à casa da mãe do morto e comunicava
aos parentes respectivos que ele era um “amigo” do falecido. A seguir, ele convidada a
família para ir ao cemitério e realizar o ixiwoxièrynykymy, em primeiro lugar, e depois o
titarasa, o ato de depositar os ossos na urna funerária, cujo objetivo imediato era o de que
todos pudessem esquecer a dor da perda, associada ao período do luto.
O período entre a morte e o enterro secundário era maior do que o período máximo
de um mês que atualmente se consagra aos lutos, em especial os de jovens adultos, uma
7
Em 1997, tive a oportunidade de visitar o cemitério da antiga aldeia Wariwari, onde se podia encontrar
algumas urnas à vista, com a parte superior no nível do chão, mas sem as antigas tampas. No cemitério da
antiga aldeia Marani Hãwa, que visitei no mesmo ano, só foram vistos cacos de urnas funerárias na
superfície da terra, sendo provável que existam muitas enterradas. Em Canoanã, durante a minha pesquisa,
foi encontrada uma urna praticamente intacta em local um pouco afastado do cemitério atual. Toral (1999)
menciona a existência de várias urnas funerárias ou vestígios delas nos cemitérios abandonados das não mais
existentes aldeias setentrionais.

859
vez que os velhos e as crianças têm lutos menores, mas também não era muito maior.
Donahue (1982:163) fala de uma espera de “anos” entre os Karajá. Assim como no caso
dos hitxèkò, era considerado constrangedor para a família do morto, um sinal de
desprestígio, que os afins demorassem muito para realizar a cerimônia. Apesar desse
procedimento ser denominado como uma retirada dos “ossos”, aquilo que era desenterrado
e colocado na urna funerária era o corpo do morto, ainda em estado de decomposição, e
não apenas os seus ossos limpos, conforme já havia sido dito antes (Rodrigues, 1993),
embora de modo incompleto. Os Javaé lembram que, quando o corpo era desenterrado
envolto na manta de algodão, as parentas do sexo feminino, em especial a sua mãe ou sua
avó, choravam desesperadas como no primeiro enterro, aproximando-se e alisando o
cadáver em putrefação. Nessa fase avançada de decomposição, o cadáver é descrito como
tendo apenas rubura (“cabeça do morto”) e rubuti (“ossos do morto”).
O corpo então era colocado dentro da urna sentado, mas na posição fetal, com as
pernas encolhidas, os braços ao redor das pernas e a cabeça dobrada propositadamente para
baixo, contra o peito. A urna era tampada e enterrada parcialmente, do mesmo modo que se
fazia antes com as raízes utilizadas na roça, em que a parte superior daquilo que é
enterrado permanece acima do nível do chão, sendo depois coberta com um pequeno
monte de terra que marca o lugar do enterro. Durante o titarasa, todos da aldeia
aproveitavam a ocasião para comparecer ao cemitério, chorar pelos seus mortos e colocar
comida sobre os túmulos respectivos. A cerimônia de desenterrar e arrumar os ossos é feita
pelos afins ou parentes distantes como uma forma de consideração ou homenagem à mãe
do morto, a genuína dona do corpo. O pai do morto também tem esse status, mas de modo
secundário. Quando o que morre já é velho, a cerimônia é feita em consideração aos
“esposos do morto” (warabu hawyky ou warabu hãbu), aos “filhos do morto” (warabu
rikòrè) ou aos “sobrinhos uterinos do morto” (warabu sèriòrè wodudu), que assumem a
posição de donos do corpo. Os hitxèkò eram fabricados e colocados sobre o túmulo um
tempo depois do segundo enterro.
O luto é um período em que o morto é possuidor de um “corpo aberto”, em
degeneração, em oposição ao período que se segue ao enterro secundário, quando o seu
corpo é simbolicamente “fechado” ao ser colocado dentro de uma urna funerária tampada,
sem contato com o mundo exterior. O fechamento do corpo é também um retorno ao início
de tudo, uma vez que as peles velhas dos que morreram e que alcançam outros lugares para
viver poderão ser trazidas ao nível terrestre, outras vezes, por um xamã. A idéia de que o

860
fim é sempre uma volta ao início, cuja representação pelas pinturas corporais foi analisada
em meu trabalho anterior (Rodrigues, 1993), é demonstrada pela posição fetal do corpo
dentro da urna, um útero simbólico. A morte é um nascimento em um outro nível cósmico,
assim como o nascimento no nível terrestre é uma espécie de morte da condição anterior,
ambos seguidos de resguardos purificadores das relações que os produziram.
A oposição entre o luto e o período que se segue ao fim do luto, marcada pelo
contraste entre o enterro primário (corpo aberto) e o enterro secundário (corpo fechado),
também pode ser associada à oposição entre a carne que se degenera rapidamente na cova
e os ossos que têm uma maior durabilidade na urna funerária. Assim como no alto Rio
Negro (C. Hugh-Jones, 1979, S. Hugh-Jones, 1979, 1993), a oposição entre carne e ossos
remete ao contraste entre transformação e perenidade, estrutura e processo, incluindo a sua
dimensão de gênero, que associa o masculino aos ossos e o feminino ao sangue ou ao
corpo em putrefação. Como já foi dito em um outro contexto, os ossos da coluna vertebral,
a estrutura fixa e mais durável do corpo, são referidos pela palavra tityby, “ossos velhos”
ou “pai dos ossos”, havendo uma associação entre o que é mais durável ou antigo e o
conceito de pai ou o masculino. O sangue, por sua vez, caracteriza a Terra dos
Ensangüentados e seus fluxos constantes e incontroláveis, atributos do corpo feminino.
A iniciativa de matar alguém, cuja conseqüência é a subversão da ordem coletiva,
cabe a um Outro simbolicamente feminilizado, assim como nos tempos míticos foram as
mulheres que desestruturam a ordem estabelecida. No ritual de casamento tradicional, de
um ponto de vista masculino, também são as mulheres/afins que tomam a iniciativa para
que o casamento ocorra, pondo fim à condição anterior, assim como são as mulheres,
segundo a representação feita pelas músicas dos aruanãs (Rodrigues, 1993), que tomam a
iniciativa das relações sexuais e, portanto, da procriação. No luto, um período de desordem
momentânea e estranhamento, a iniciativa das ações cabe tanto às mulheres, com seus
lamentos e acusações, como aos afins do morto, que devem se responsabilizar por todos os
procedimentos funerários importantes. Na Dança dos Aruanãs, os afins dos pais de aruanã
também são responsáveis por uma série de tarefas, mas eles atuam em colaboração aos
genitores da criança, que comandam o ritual, e não como protagonistas da ação. Além
disso, o ritual tem um conteúdo (ordem e parentesco) oposto ao do luto (desordem e
afinidade).
Atribui-se sempre a um “Outro” feminilizado (matador, mulheres, afins) a iniciativa
da ação transformadora, aquela que inaugura um tempo de desestruturação e exceção

861
(ascensão mítica, nascimento, casamento/procriação, luto) e que é tão integrante da vida
social como o seu oposto, a reação que tenta restaurar a ordem perdida. Aos parentes
próximos do morto, simbolicamente masculinizados, cabe apenas esperar e reagir em prol
da restauração da estrutura anterior, controlando seus movimentos e submetendo-se a uma
série de interdições físicas, assim como os homens míticos reagiam às ações femininas
com uma postura de contenção e controle. Terminado o luto, os afins, as mulheres, os kuni
canibais e a própria morte deixam de protagonizar a cena ritual: os parentes do morto
retomam a vida cotidiana, o estado poluído de relações ou misturas entre matador e vítima
é substituído por um estado purificado de separação ou isolamento, o controle da vida
pública retorna ao pátio ritual masculino, os kuni deixam de perseguir os vivos, a tristeza
do luto dá lugar à alegria dos aruanãs.

11.2. O Outro torna-se Eu

Vimos até aqui que as relações substanciais ou intensas entre um Eu masculinizado


e um Outro feminilizado transformam a ordem antiga e que a poluição durante o resguardo
(ou o luto) nada mais é que um estado de fusão ou mistura com a alteridade. O ato de
matar, de modo direto ou indireto (por feitiço), parece ser pensado como um tipo de
interação substancial – ainda que à distância – com a vítima, uma espécie de procriação,
como já foi dito, que acarreta o mesmo tipo de mudança da condição prévia daqueles que
se fundem substancialmente para procriar. Quando uma pessoa mata alguém do próprio
grupo, a vítima, que era um semelhante, transforma-se em um estranho canibal e
ameaçador.
O inverso também ocorria: quando uma pessoa matava alguém de um outro grupo
étnico, a vítima, que era um “estrangeiro” (ixyju), tornava-se um semelhante, através do
processo de identificação do “corpo velho do estrangeiro” (ixyjukuni) com o matador,
assunto deste item. A morte no sangue de um estrangeiro propiciava uma relação explícita
de substância com o matador, com vários pontos em comum com os “ritos de homicídio”
amazônicos analisados por Viveiros de Castro (1986, 2002d), como já foi notado por
Pétesch (2000). O tema da incorporação da alteridade para a reprodução da sociedade está
presente, mas não através de uma lógica guerreira da predação canibal (Viveiros de Castro,

862
1993, 2002b), até porque os Javaé não consideram como honrosa a posição social de
“matador” (rubunakydu). Repete-se na morte, mais uma vez, a mesma lógica da
procriação, que transforma a condição anterior daqueles que se relacionam
substancialmente.
Tanto na procriação quanto na morte, há um par que se relaciona enquanto
masculino (o que sofre a ação) e feminino (o que toma a iniciativa da ação ou que
possibilita a transformação). Nos dois casos, a relação fusional produz um corpo de forma
e conteúdo diferente (o sêmen vira um filho, um vivo vira um morto) e aqueles que se
relacionam também transformam a sua condição anterior: parentes tornam-se afins ao
casar/procriar, corpos sem gênero tornam-se marido e mulher; matador e vítima
semelhantes tornam-se estranhos, matador e vítima estranhos tornam-se semelhantes.
Tendo-se a procriação como referência, de um ponto de vista masculino, o corpo feminino
e suas substâncias são o Outro que provoca a transformação do sêmen em um ser
totalmente novo e estranho, em um primeiro momento, em razão de sua condição de
mistura poluída. Sêmen e vítima estão na mesma situação de formas corporais que são
transformadas pela relação com um outro corpo. Aquele que toma a iniciativa da ação
subversiva, o matador, está no lugar simbólico do feminino 8 .
Assim, do ponto de vista de uma vítima – o que também é um ponto de vista
masculinizado, daquele que sofre a ação transformadora –, o matador é o Outro que
provoca a transformação do seu corpo em algo totalmente novo, em um corpo morto e
poluído que se decompõe irreversivelmente. Quando a vítima é um semelhante,
pertencendo ao próprio grupo, a transformação significa a passagem da semelhança à
alteridade, de modo que um parente próximo ou distante (pois todos os Javaé se vêem
como parentes entre si) metamorfoseia-se em um kuni agressivo; quando a vítima é de um
grupo estrangeiro, a transformação significa a passagem da alteridade à semelhança, de
modo que um inimigo estrangeiro passa a ter uma relação de identidade com o matador. As
relações internas provocam a transformação do “Eu” (vítima/sêmen) em “Outro”; as
relações com a exterioridade, inversamente complementares, provocam a transformação do
“Outro” (vítima) em “Eu”, a fusão do matador e o seu inimigo (Viveiros de Castro, 2002d).
Em ambas as situações, porém, são as relações, sejam internas ou externas, que causam a
mudança da estrutura corporal anterior.

8
Viveiros de Castro (2002d:287) fala de uma “feminização do matador” em alguns casos amazônicos, mas
aqui no sentido de que ele é fecundado ou possuído pela vítima.

863
Os Javaé não têm uma tradição de incentivo à guerra, mas ocorria, eventualmente,
de alguém se defrontar com um estrangeiro de um grupo com o qual já havia ou não um
histórico de relações hostis, incluindo os brancos, e matá-lo. Quando isso acontecia, em
geral dentro do que era considerado território Javaé, a morte era interpretada sempre como
uma “reação” à possível agressão do outro, e não como o produto de uma iniciativa
guerreira. O matador então se contaminava com a substância/subjetividade exteriorizada da
vítima e entrava no mesmo tipo de resguardo decorrente do nascimento de um filho,
constituído de interdições alimentares e técnicas de purificação 9 . Diz-se que o sangue
(halubu) da vítima estava “dentro do matador”, que durante um ou dois dias deveria se
alimentar apenas da bebida iweru quente, evitar qualquer tipo de carne de caça ou peixe,
para não agravar a mistura com sangue de origem externa, manter-se quieto e sem fazer
sexo. Lipkind (1948) ouviu de seus informantes Karajá que o matador retirava um osso do
pé do inimigo morto e o carregava consigo de volta à aldeia, assunto a ser retomado. Para
Aytai (1983b), os Karajá de Aruanã disseram que o corpo do morto era deixado intacto no
local da morte, até a sua decomposição total.
Em caso de não se praticar o resguardo, acredita-se que o matador está “comendo o
sangue” do que morreu, daquele que está dentro do matador, podendo enlouquecer ou
tornar-se èhèhè (belicoso). Quando a morte ocorria em local muito distante de uma aldeia
Javaé, o matador apenas permanecia em jejum completo. Esse tipo de resguardo ainda é
praticado no caso de um Javaé matar outro Javaé, independentemente do sexo de ambos. A
vítima que morre ensangüentada, tanto no caso de um Javaé como de um estrangeiro,
denomina-se hure, palavra que designa a Terra dos Ensangüentados (Hure Hãwa). A
porção imortal do morto é referida como tykytyby (pele velha), um termo alternativo, mas o
conceito mais usado é o de kuni, que indica a condição intrínseca de alteridade do
estrangeiro e também a sua morte no sangue, uma vez que os assassinados permanecem
como kuni na Terra dos Ensangüentados. Diversamente dos mortos Javaé, entretanto, os
kuni dos estrangeiros mortos vivem no Bèdè Rahy, que os Javaé traduzem como “mato”,
mas que segundo Pétesch (1987:79) tem o sentido mais preciso de “terra inabitada”.
Como já foi explicado antes (Rodrigues, 1993), o Bèdè Rahy é um lugar invisível e
inóspito, situado no plano terrestre, onde moram alguns dos aõni canibais que são
flechados pelos aruanãs nos jogos rituais. Alguns poucos aruanãs moram nesse lugar. Em

9
Krause (1941d, 1942b) menciona que a escarificação – usualmente aplicada somente aos braços e às pernas
em sentido vertical – era feita de cortes horizontais no peito e nas costas pelos Karajá quando se matava um
inimigo.

864
termos espaciais, o Bèdè Rahy está próximo do wabèdè (cemitério) e da Terra dos
Ensangüentados, uma vez que, durante o luto, os kuni dos Javaé mortos, que durante o dia
vivem no wabèdè, às vezes andam nesses dois outros lugares à noite, à procura dos
parentes que nunca encontram. Pétesch (2000) informa que os kuni dos Karajá que morrem
“no sangue” reúnem-se aos aõni do Bèdè Rahy, partilhando das mesmas condições de vida.
No caso Javaé, os estrangeiros mortos em batalha permanecem eternamente como kuni,
não ultrapassando esse estágio inferior e imperfeito da vida após a morte. A lista a seguir
apresenta os principais tipos de kuni estrangeiros que vivem no Bèdè Rahy e que
comparecem mascarados aos rituais. Note-se que os mortos Wèrè estão incluídos na lista,
reafirmando-se a noção de que eles são considerados um povo estrangeiro:

• Kyrysakuni (“corpo velho dos Avá-Canoeiro”)


• Kyrysatyhykuni (“corpo velho dos Xavante”)
• Kwabinolèkuni (“corpo velho dos Apinajé”)
• Karalahukuni (“corpo velho dos Kayapó”)
• Woukuni (“corpo velho dos Tapirapé”)
• Walairikuni (“corpo velho” dos Wailari, um grupo não mais existente)
• Wèrèkuni (“corpo velho dos Wèrè”)
• Torikuni (“corpo velho do branco”)
• Korerakuni (“corpo velho do jacaré-tinga”)

O Bèdè Rahy, enquanto terra dos aõni e estrangeiros mortos, é um espaço


feminilizado, partilhando de características da Terra dos Ensangüentados. Associa-se ao
movimento ou transformação (movimento impulsivo, agitado e desordenado dos aõni), à
sexualidade (os aõni canibais têm órgãos sexuais visíveis e fome de sexo), ao sangue dos
estrangeiros assassinados (os aõni comem carnes cruas), à carência alimentar (seus
moradores passam fome cronicamente, uma vez que só existem escassos animais de caça),
ao conflito (os aõni andam com bordunas), à alteridade (todos são estranhos entre si e os
aõni emitem grunhidos ininteligíveis). Além disso, quando comparecem mascarados nos
rituais, os ixyjukuni (“corpos velhos dos estrangeiros”) usam uma máscara que cobre
apenas até a cintura, deixando a genitália exposta, portam bordunas ou arcos e flechas
ameaçadores, não falam a língua dos Javaé e recebem de seus pais rituais apenas alimentos
crus, em forte contraste com os alimentos cozidos e saborosos dos aruanãs.
Tanto os aõni quanto os ixyjukuni opõem-se explicitamente aos aruanãs belos,
pacíficos, assexuados, de dança contida, corpos bastante cobertos, movimentos monótonos

865
e que cantam músicas bonitas e inteligíveis. Pétesch (2000:66) já havia identificado entre
os Karajá um contraste entre as “máscaras de fibra vegetal” dos mortos inimigos
“despojadas de todo ornamento” e as representações mais elaboradas dos outros
personagens rituais (worosy e aruanã). Mas a autora prefere considerá-los como uma
categoria de “natureza ambígua” (2000:80), situada entre os worosy e os aruanãs de um
lado, e os kuni e aõni, de outro, uma vez que são adotados e alimentados pelo corpo social,
ao mesmo tempo em que não são aceitos como parte da “grande família sobrenatural dos
Karajá”. Pétesch cita o fato de apenas os aruanãs serem instalados na Casa dos Homens, ao
contrário dos outros mascarados, o que não é o caso Javaé, cujos ixyjukuni são alojados na
casa masculina.
Depois de um mês ou dois da morte, aproximadamente, o matador do estrangeiro
comunicava à mãe ou avó de um sobrinho uterino próximo, de preferência um
primogênito, não importando o seu sexo, que estava dando a “pele/corpo velho do
estrangeiro” (ixyjukuni) morto como um presente honrado à criança. O sobrinho uterino do
matador tornava-se um ixyjukuni wèdu, “dono do corpo velho do estrangeiro”. Pétesch
(2000) fala apenas de sobrinhos do sexo masculino recebendo o presente. Segundo os
Javaé, os Karajá recebiam alguma retribuição em troca pelo presente, o que não era o caso
entre os primeiros. O corpo velho do estrangeiro era e ainda é visto como um “bem
precioso” (nohõ) a ser transmitido dentro das famílias, assim como os aruanãs. A partir de
então, o pai do “dono do corpo velho do estrangeiro”, que era o marido da irmã do
matador, comunicava à Casa dos Homens o recebimento do presente honrado e solicitava
que o ixyjukuni fosse trazido ritualmente pelo xamã em sua forma mascarada (ver Desenho
n° 22, ao lado, feito por um Javaé).
O pai e a mãe da criança ou jovem que se tornava o “dono” do mascarado
tornavam-se os pais rituais do estrangeiro morto (ixyjukunityby, “pai do corpo velho do
estrangeiro”, e ixyjukunisè, “mãe do corpo velho do estrangeiro”) e passavam a ter a
obrigação de alimentá-lo ritualmente toda vez que fosse trazido pela Casa dos Homens.
Após recebido o nohõ, o ixyjukuni começava a vir pela primeira vez assim que estivesse
pronta a roça de seu pai ritual, na próxima estação chuvosa. Os pais rituais também podem
ser chamados de “donos” do mascarado. A propriedade de um ixyjukuni é capaz de gerar
grande prestígio para uma família, desde que os pais rituais sejam capazes de alimentar o
mascarado adequadamente em suas aparições cerimoniais.

866
~
Desenho n° 22: Os ixyjukuni

867
O corpo velho do estrangeiro, porém, não era nunca dado aos próprios filhos do
matador. O ixyjukuni deveria ser entregue pela primeira vez ao filho/a primogênito de uma
irmã ou prima próxima do matador, para depois ser transmitido às gerações seguintes
conforme a mesma regra que regula a transmissão dos aruanãs. O sobrinho uterino
primogênito do matador era o primeiro “dono” do ixyjukuni e, assim que tivesse o primeiro
filho, ele passava automaticamente a pertencer ao seu primogênito, não importando o sexo
do que transmite ou do que recebe, e assim sucessivamente, até os dias de hoje. O
ixyjukuni é chamado de wanohõ (“meu bem precioso”) por seu dono. Como no caso dos
aruanãs, os outros irmãos do dono são considerados donos simbólicos do corpo velho do
estrangeiro morto (referido como nohõreny, “nosso bem precioso”), mas só o primogênito
tem o direito de transmiti-lo aos próprios filhos. Também no caso dos ixyjukuni, a condição
de genitor é incompatível com a propriedade do bem ritual.
Entre os Karajá, Pétesch (2000) diz que a transmissão do “espírito” do inimigo
morto continuava sendo por linha cruzada (de tio materno para sobrinho uterino de sexo
masculino) nas gerações seguintes 10 . Os aruanãs, por sua vez, seriam transmitidos
patrilinearmente por linha direta, resultando em uma oposição entre linha direta
(identidade) e linha cruzada (alteridade). Ou entre “cargos e possessões propriamente
Karajá” pela linha patrilinear, associados à identidade aquática, ao espaço masculino (ijoi)
e à esfera pública, e “bens exteriores ao corpo social” (os “espíritos dos inimigos”) pela
linha matrilinear, associados à identidade terrestre, ao espaço feminino e à esfera
doméstica (ixy) (2000:188). Tem-se ao final, uma filiação sexualmente paralela ou bilateral
aos dois espaços sociais opostos, diversamente dos Javaé, que enfatizam a filiação
matrilinear às metades rituais e às unidades residenciais, de um lado, e a primogenitura,
idealmente, como princípio regulador da transmissão de bens, identidades e cargos.
Em uma comparação com o modelo de incorporação da alteridade Tupinambá
(Viveiros de Castro, 1996), em que o guerreiro trocava um inimigo cativo vivo pela filha
de sua irmã, escapando da uxorilocalidade, a Pétesch sugere que, no caso Karajá, o
matador oferecia um inimigo espiritual ao seu sobrinho uterino, transferindo a “paternidade
espiritual” e as responsabilidades conseqüentes para ao marido de sua irmã. Desse modo,
“a aquisição de uma esposa na geração seguinte pelo filho do guerreiro poderia ser
10
Donahue (1982:283) menciona apenas que a transmissão continuava entre os “descendentes” do sobrinho
uterino de sexo masculino do matador. Segundo Toral (1994:194), o matador transmite o ixyjukuni para
“crianças de ambos os sexos (filhos de seus filhos, filhos de sua irmã ou irmão)”, de modo que a transmissão
é entre “grupos de irmãos, de um para outro, depois aos filhos e assim por diante”. Lima Filho (1994:111) diz
que não há regra rígida, pois eles podem ser transmitidos para “o neto, filho ou sobrinho”.

868
concebida com uma compensação matrimonial protelada, caso não resultasse da aplicação
do casamento preferencial (...) com a prima cruzada patrilateral” (Pétesch, 2000:169). Ou
seja, o filho do matador casava-se com a irmã do sobrinho uterino do matador, recebendo
uma esposa em troca do bem simbólico “espiritual” doado por seu pai na geração anterior.
Esse hipótese não se aplica aos Javaé por três razões: a transmissão dos ixyjukuni se dá por
linha direta (pais para filhos) a partir dos filhos do primeiro dono; o sobrinho uterino que
recebe o bem ritual pode ser de qualquer sexo, pois o que está em questão é a
primogenitura; o casamento entre primos de 1º ou 2º grau não é estimulado.
Não há muitos ixyjukuni em posse das famílias Javaé, o que parece ser uma
evidência a mais de uma ideologia não bélica. Alguns dos mais antigos, que começaram a
ser transmitidos antes do século 20, são famosos e de conhecimento de todos. Em alguns
casos, a família que possui o bem ritual sabe quem matou o estrangeiro, o local, como foi a
morte etc. Entre os mais famosos, que continuaram sendo trazidos de vez em quando pelos
xamãs nas aldeias novas, após o contato, há três ixyjukuni que começaram a ser
transmitidos em Marani Hãwa e que sempre vêm juntos: o Bebiau ixyjukuni, o Ximonia
ixyjukuni e o Karalahu ixyjukuni. Este último é o corpo velho de um Kayapó que foi morto
por um Xambioá e entregue a algum parente Javaé, há muitos anos atrás, enquanto Bebiau
e Ximonia são nomes de dois Karajá que se disfarçaram de Avá-Canoeiro para matar
alguém e cuja identidade foi descoberta tempos depois da morte deles.
Segundo a memória oral, os Javaé mataram um xamã Karajá chamado Hãbujuka,
que vivia entre eles e foi acusado de uma morte. Como retaliação, os Karajá de outra aldeia
atacaram os Javaé “disfarçados” de Avá-Canoeiro, porque havia um histórico de relações
pacíficas entre os Javaé e os Karajá desde quando o iòlò Tòlòra salvou os Karajá que
fugiam dos Wèrè, conforme o mito já apresentado. Há um outro mascarado dado em
Marani Hãwa, mas que também era um Karajá disfarçado, de nome Saure. Como ele
morreu na condição de Kyrysa (Avá-Canoeiro), ele ficou conhecido como Saure Kyrysa
ixyjukuni, “corpo velho do estrangeiro Avá-Canoeiro chamado Saure”. Em Canoanã, em
1998, não havia nenhum dono de corpos velhos de Xavante ou Kayapó, mas havia quatro
donos de Avá-Canoeiro (um dos mascarados tem o nome Wakomyta), alguns de Tapirapé,
um de Apinajé e um de Walairi. Havia dois Torikuni, corpos velhos de brancos, um deles
morto por alguém da antiga aldeia Wariwari, em propriedade de pessoas de outras aldeias
Javaé.

869
Esses ixyjukuni mencionados, relacionados a mortes reais de estrangeiros no
passado, não se confundem com os ixyjukuni aõni, uma outra categoria de seres, que são
apenas um tipo de aõni chamado “corpo velho de estrangeiro”. Estes últimos não são
estrangeiros mortos pelos Javaé, não têm nome próprio nem uma história específica,
embora sejam caracterizados com máscaras parecidas com as dos estrangeiros e também
tenham donos e pais rituais. Assim como os aõni que vivem dentro do cupinzeiro (kòdò)
ou no Bèdè Rahy, às vezes matam as pessoas a mando dos xamãs. Eles existem em maior
número que os estrangeiros reais e são apenas estrangeiros mascarados simbólicos, uma
categoria geral, mas que nos rituais desempenham função similar. O termo Wouni, nome
com o qual se designa os mortos Tapirapé (Wou), é o termo geral utilizado pelos Karajá
para se referir aos inimigos mascarados 11 , que também são alimentados por seus pais
rituais 12 .
Um outro ser que quase sempre acompanha os ixyjukuni (de qualquer tipo) em suas
aparições é o korera ou korerakuni, “corpo velho do jacaré-tinga” (ver fotos e desenho
feito pelos Javaé ao lado). Não se trata de um estrangeiro, mas é um mascarado de
comportamento extremamente agressivo, representante de uma condição de alteridade
explícita. Os Javaé dizem que o costume de trazer o “corpo velho do jacaré-tinga” em
forma mascarada surgiu no século passado, na aldeia Cachoeirinha, não existindo antes ou
entre os Karajá. O corpo velho do jacaré-tinga “vira iny”, gente, ao morrer, por isso ele
vem com pernas e braços humanos aqui. Diferentemente dos ixyjukuni, a sua máscara
cobre todo o corpo, mas é rudimentar se comparada às elaboradas máscaras dos aruanãs.
Não obtive nenhum registro mitológico sobre o jacaré-tinga, que é menor que o grande
jacaré-açú (kobòròrò), personagem que na mitologia foi o amante das mulheres que se
transformaram em Avá-Canoeiro. Assim como no caso dos estrangeiros, um homem que
mata um jacaré-tinga pode dar o seu corpo velho ao sobrinho uterino primogênito, de
preferência, como um presente honrado para ser transmitido dentro da família 13 .
O korera também tem os pais rituais que o alimentam e, quando anda pela aldeia,
as mulheres e crianças trancam-se assustadas dentro das casas, nas quais ele bate
ameaçadoramente, com uma grande vara, ao escutar alguma mulher ou criança falando.
11
Toral (1992), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).
12
Donahue (1982), Lima Filho (1994), Pétesch (2000).
13
Toral (1992:177-178) descreve a aparição dos ixyjukuni e de um Korera agressivo em uma aldeia Javaé,
considerando este último como “escolta” ou “guardião” dos primeiros. O autor inclui o Korera na mesma
lista dos aõni aõni Karajá e Javaé que comparecem ao ritual de iniciação masculina, sem distingui-lo do
Korera worosy. Este último é um dos convidados do ritual que imitam comportamento de animais,
acompanhado de seus “filhotes”, e que não se confunde com o Korera aqui descrito.

870
Cada ixyjukuni (de qualquer tipo) ou korera é caracterizado como um único ser mascarado,
em contraste com os aruanãs, que formam uma dupla. Os estrangeiros que foram
assassinados são caracterizados conforme a sua etnia ou história específica. Os Torikuni,
“corpo velho dos brancos”, são mascarados que também usam calça comprida, espingarda
e embornal à tira-colo. O Kwabinolè ixyjukuni, “corpo velho do Apinajé”, sempre que
aparece carrega um cachorro vivo no braço, porque os Apinajé domesticavam cachorros,
segundo os Javaé. Ele usa borduna, flechas, um estojo peniano à base de folha de
bananeira, ao contrário do antigo estojo de algodão preto dos Javaé, e emite um grito
peculiar. O Walairi ixyjukuni, “corpo velho do Walairi”, membro de um dos povos
estrangeiros que foram exterminados pelos Wèrè durante sua perseguição aos Karajá, vem
com os acessórios brancos de algodão que eram característicos desse povo. Um dos korera,
que são muitos, era representado sem um dos braços, porque o jacaré que foi morto pelo
matador e entregue como presente não tinha uma das patas dianteiras.

Foto n° 15: Um korera bate com sua vara em uma casa (aldeia Canoanã, 1997)

Os ixyjukuni em geral e os korera são trazidos à aldeia na época da colheita dos


produtos agrícolas, durante a estação chuvosa, como já notou Toral (1992), porque eles
vêm especialmente para comer os produtos crus da roça de seus pais rituais, os quais
também se originam do pagamento pela vagina da mãe ritual do mascarado. Antigamente,

871
os primogênitos cujos pais tinham fartura na roça recebiam os ixyjukuni e korera muitas
vezes a cada estação chuvosa, gerando prestígio pessoal e para a sua família.
Normalmente, eles são trazidos pelos xamãs antes e imediatamente depois do término do
ritual da Casa Grande, pois desempenham importante função para os jovens recém
iniciados, como veremos. Cada um desses mascarados descritos – os vários tipos de
estrangeiros mortos, os vários ixyjukuni aõni e os vários korera – tem um dono específico e
os pais cerimoniais correspondentes. A cada ano, entretanto, os xamãs trazem apenas
alguns deles, o que sempre depende da disponibilidade econômica dos pais em alimentá-
los. Lipkind (1948) registrou a vinda dos mascarados Karajá na época da seca e Lima Filho
(1994), em fevereiro, auge das chuvas, enquanto os Karajá disseram a Pétesch (2000:164)
que não há época certa de realização do ritual, o qual depende do “pedido de alimentação”
feito pelos “espíritos dos inimigos” aos xamãs.
Em 1997, em Canoanã, os xamãs trouxeram onze ixyjukuni aõni e um korera em
um mesmo dia, logo após o término do ritual de iniciação masculina realizado em maio,
com bastante atraso; e um Kwabinolè ixyjukuni, “corpo velho do Apinajé”, e quatro
ixyjukuni aõni, também no mesmo dia, um pouco antes do início do ritual de iniciação
incompleto que ocorreu em dezembro daquele mesmo ano. O ritual de iniciação termina
oficialmente no dia em que os jovens iniciados retornam à casa de suas mães. Alguns dias
depois, os tios maternos mágicos (latèni) que vieram apenas para a iniciação são mandados
embora para o nível subaquático. No dia seguinte, em 1997, os estrangeiros mascarados e o
korera chegaram à aldeia. Em dezembro de 2006, os ixyjukuni chegaram na semana que se
seguiu ao fim do Hetohoky Wèkèrè. Ao contrário dos aruanãs, que começam a dançar
saindo da Casa dos Homens, em dia e hora previsíveis e de conhecimento de todos, os
ixyjukuni e korera chegam do mato de modo inesperado e surpreendente para as mulheres
e crianças, que correm e se escondem a seguir.
Apenas as mães rituais devem saber de sua chegada com uma certa antecedência,
para preparar a comida que lhes será oferecida. Conforme já foi dito antes, eles chegam em
um dia e vão embora no outro, isso podendo ocorrer mais de uma vez durante um ano,
enquanto os aruanãs permanecem um ciclo anual inteiro. Em suas aparições rituais, os
estrangeiros representam o imprevisível, assim como os choros femininos em oposição às
músicas de aruanãs; e o extraordinário, assim como o luto em relação à rotina ritual dos
aruanãs. Além disso, todos os tipos de ixyjukuni e korera entram na aldeia vindos do mato.
Enquanto os convidados subaquáticos que vêm participar do ritual de iniciação chegam

872
pelo lado ibòkò (rio acima) da aldeia, em sua maioria, os estrangeiros mascarados e
acompanhantes chegam sempre a partir do lado iraru (rio abaixo), reforçando-se a conexão
simbólica entre alteridade e feminilidade.
O desenho ao lado (n° 23) mostra o caminho percorrido pelos mascarados toda vez
que chegam na aldeia. Normalmente, os ixyjukuni aparecem por volta do meio-dia,
enquanto os ixyjukuni aõni, em maior quantidade, aparecem na aldeia no fim da tarde do
mesmo dia. Quando são trazidos, os korera sempre vêm no mesmo dia dos estrangeiros,
podendo às vezes vir dois ou três juntos. Eles também costumam vir no fim da tarde ou
então no início da noite. Às vezes, os korera passam a noite inteira batendo nas casas,
impedindo as mulheres de dormir. Eles entram nos recintos domésticos em que a porta está
aberta, como aconteceu comigo, pega de surpresa, e perseguem as mulheres com sua vara,
podendo bater nelas, ou então enfiam as varas através das paredes de palha, atingindo-as.
Embora em menor grau, os estrangeiros também podem exibir comportamentos agressivos,
lançando paus ou flechas contra o público feminino.

Foto n° 16: Um grupo de ixyjukuni aõni chegando à aldeia, no fim do dia, pelo lado do rio
abaixo (aldeia Canoanã, 1997)

873
FIM

Casa dos
Homens

pátio
ritual
mato

INÍCIO
~
Desenho n° 23: Chegada dos ixyjukuni na aldeia

rio acima rio


rio abaixo

874
Os onze ixyjukuni aõni que entraram de repente em Canoanã, em 1997, no fim da
tarde, caminhavam enfileirados e, na frente de todos, o primeiro do grupo trazia um enfeite
diferente que o destacava, enfatizando o status especial de “primeiro”. Segundo Toral
(1992), o primeiro ixyjukuni da fila que entrou em Canoanã, em 1979, era caracterizado
pela cor branca, diversamente dos demais. Quando os homens estão fazendo algum
preparativo secreto no mato próximo à aldeia, como nesse caso, há sempre um recém
iniciado que anda na frente do grupo para evitar o seu encontro com alguma mulher. Pouco
antes dos mascarados entrarem na aldeia, já era possível ouvir o seu grito característico,
intercalado com momentos de silêncio. Eles caminhavam calmamente pela rota descrita e,
logo atrás, vinha um korera emitindo um ronco assustador e batendo nas casas onde ouvia
crianças chorando. Chegando ao terreiro masculino, os mascarados enfileirados
caminharam em círculo, realizando uma volta completa, e postaram-se alinhados (virados
para o nascente) em oposição simétrica a um grupo de worosy da Casa dos Homens
(virados para o poente), conforme o Desenho n° 24, ao lado.
Os homens, na qualidade de worosy, são encarregados de receber os visitantes
formalmente e levá-los a seguir para dentro da Casa dos Homens, ainda em fila. Assim que
todos os mascarados entram, o pai ritual de cada um leva a comida preparada pela mãe
ritual, a ser consumida pelos visitantes dentro do recinto masculino. Depois da refeição, os
ixyjukuni que estiverem presentes saem para mais uma caminhada pela aldeia, enfileirados,
indo em direção ao lado do rio abaixo e retornando ao pátio masculino pelo lado do rio
acima (Desenho n° 25, ao lado), repetindo o sentido da rota de chegada. Caso um dos
ixyjukuni históricos esteja presente, como o Apinajé trazido no fim de 1997, ele é que
lidera os outros do grupo. Na chegada ao terreiro ritual, eles ficam novamente alinhados
em frente a um grupo de worosy, o qual emite um grito especial e entra correndo para a
Casa dos Homens. A seguir, os estrangeiros caminham em círculo por três vezes – o que
tem relação com os três postes rituais (tòò) da Casa Grande – e são recebidos pelo chefe
cerimonial com um mesmo cumprimento formal (rybènyky) a cada vez.
O chefe cerimonial fala “Aõhe aõhe weixè? Wary, kiatxi budutamany”,
aproximadamente “Como estão vocês? Amigos, fiquem em pé na minha frente”. O chefe
ritual trata-os de wary, palavra traduzida como “amigo” ou “conhecido”. Antigamente, os
Javaé tratavam os Karajá de wary ou rynawy, termos de tratamento amigáveis aplicados
àqueles de quem não se sabe as conexões de parentesco com os ancestrais (lahi òraru).

875
Casa dos
~

Homens
Desenho n° 24: Os ixyjukuni

~
ixyjukuni

~
worosy
em oposição ritual aos worosy~

rio acima rio abaixo


(ibòkò) (iraru)

sol nascente (biura)

876
~
Desenho n° 25: Segundo percurso dos ixyjukuni na aldeia

rio abaixo
INÍCIO
Casa dos
Homens

rio
rio acima

877
Como os estrangeiros não sabem falar a língua nativa, eles apenas respondem com
a cabeça, três vezes, apontando para o lado do rio (acima ou abaixo) para onde os worosy
devem ir pescar, na manhã do dia seguinte, para alimentá-los. Ao fim desse encontro,
quase ao pôr do sol, os estrangeiros entram para a Casa dos Homens, enquanto o Korera
ainda pode sair algumas vezes andando pela aldeia e perturbar mulheres e crianças. Se a
pessoa que usa o corpo velho do jacaré-tinga agride alguém ou uma casa, aquele que se
sentir ofendido (alguém que mora na casa ou que é parente próximo de alguém que foi
agredido) pode vingar-se da agressão atuando como korera em uma outra ocasião e fazer o
mesmo na casa do agressor.
No dia seguinte, logo cedo, os pais rituais dos mascarados vão pescar no lado do rio
indicado. Eles vão como worosy, representando a metade cerimonial a que pertencem, e
são acompanhados dos parentes próximos e afins do sexo masculino, dos quais se espera
ajuda nessas pescarias rituais. Enquanto os worosy não voltam da pescaria, o Korera pode
andar pela aldeia durante a manhã, aterrorizando as mulheres e crianças mais uma vez.
Caso haja interesse por parte de rivais, na volta da pescaria, ainda antes do meio dia, é que
pode se dar a luta ritual entre os worosy que foram pescar, de determinada metade
cerimonial, e os worosy da outra metade, associados à Casa dos Homens, conforme foi
descrito no capítulo 7. Na chegada da pescaria, os pais de ixyjukuni e seus parentes estão
identificados com os estrangeiros e associados ao rio e o lado feminino, podendo ser
convocados para lutar com os worosy da outra metade, identificados com os Javaé e
associados à Casa dos Homens e ao lado masculino.
O peixe que é trazido da pescaria para alimentar os ixyjukuni e korera é preparado
pelos próprios homens que foram pescar dentro da Casa dos Homens e pelas mães rituais,
em suas casas respectivas, que também cozinham outros alimentos saborosos. Quando a
comida está pronta, os pais rituais de cada mascarado levam a comida para a Casa dos
Homens, onde é realizada a refeição coletiva, precedida da oferenda ritual (xiwè). Os
estrangeiros mascarados não comem a carne do peixe, mas apenas tomam o caldo que a
acompanha. Na verdade, o caldo é despejado pelo pai ritual do ixyjukuni sobre a sua
máscara/corpo, que com esse gesto alimenta o tykytyby (corpo velho) do estrangeiro morto.
Antes, essa comida dos ixyjukuni era considerada maléfica (bèrèbuna) aos jovens da Casa
dos Homens, que deveriam evitá-la. Enquanto isso, os produtos crus da roça que serão
entregues aos mascarados, em grande quantidade, são colocados na porta das casas dos
pais rituais, na extremidade feminina das pistas de dança que se ligam ao pátio masculino.

878
Assim que acaba a refeição ritual, os ixyjukuni emitem um grito especial na Casa
dos Homens e, a seguir, junto com o Korera, cada um dirige-se para a casa de seu dono
ritual, na extremidade feminina das pistas de dança. Nesse caminho, cada um é
acompanhado por seu próprio pai ritual e respectivos parentes próximos e afins do sexo
masculino. Em uma das casas que pude acompanhar a entrega de alimentos, havia dois
sacos grandes repletos de mandioca, um para um ixyjukuni e outro para o Korera, que
pertenciam ao mesmo dono, enquanto em outra havia dois cachos enormes de banana. O
mascarado pega o produto para si por alguns instantes, mas imediatamente o pai ritual ou
os outros homens que o acompanham assumem a tarefa. Na verdade, é responsabilidade
dos genros do pai ritual e, principalmente, dos seus cunhados (ZH), ajudá-lo a carregar os
pesados e grandes sacos de alimentos crus (mandioca, melancia, banana, tartarugas) que
são entregues aos vários mascarados ao fim do ritual.

Foto n° 17: Um pai ritual, ajudado por seu cunhado, ao fundo, entrega sacos de alimento a
um korera e a um ixyjukuni (aldeia Canoanã, 1997)

Repetindo o que ocorre quando os aruanãs vão embora, os ixyjukuni também levam,
nas mãos, um pequeno saco contendo a comida para “a viagem de volta” à sua morada de
origem, chamada tèbòna, como o beiju de mandioca, por exemplo. Os alimentos dos sacos
maiores chamam-se itxykyna, “o que é carregado”, e carregá-los é obrigação dos afins, dos
cunhados do pai ritual dos mascarados. Espera-se que os tios da criança que é dona dos

879
mascarados – os irmãos e primos próximos de sua mãe ou de seu pai – ajudem nessa tarefa.
A comida entregue aos estrangeiros mascarados, entretanto, não é cozida e partilhada por
todos. Ela é levada para a Casa dos Homens e aquele que realizou a performance ritual
abre o saco e distribui parte dos alimentos para os que confeccionaram a máscara, tendo o
direito de levar o restante para a sua casa. A tèbòna de todos os mascarados, por sua vez, é
partilhada com os homens presentes, que a consomem depois da oferenda ritual.
Antes da distribuição secreta dos alimentos, os mascarados retornam da
extremidade feminina para o pátio masculino, onde se alinham novamente de frente para o
nascente. Enfileirados, com o Korera por último, dão mais três voltas no terreiro, cantando,
e, ao fim, saem correndo para fora da aldeia, em diversas direções (rio acima, rio abaixo, o
lado do mato). Os que estão no meio da fila devem começar a correr primeiro. Os
mascarados são seguidos pelos jyrè (recém iniciados), que competem entre si pelo título de
corredor mais veloz nessa hora. Em 1997, enquanto circulava pelo terreiro masculino, o
Apinajé lançou duas flechas na direção das mulheres e crianças, sinalizando o seu
descontentamento em ser observado por elas de longe. Quando aparece, o Avá-Canoeiro
lança flechas para o alto. Logo depois, enquanto as mulheres e crianças escondiam-se em
casa, todos os mascarados saíram correndo pelas pistas de dança e pela aldeia, até
desaparecer no mato, finalizando a aparição ritual.
Embora isso não tenha ocorrido em 1997, quando os ixyjukuni vão embora, o
Harabòbò aparece na aldeia e grita para as mulheres não saírem de casa, o que tem relação
com as movimentações secretas dos homens fora da aldeia. Ele é o primeiro convidado do
ritual de iniciação masculina e importante personagem do mito de Inywèbohona, já
narrado, em que um menino contra o segredo masculino à sua mãe. No fim do dia, aqueles
que usaram as máscaras – sem que isso fosse admitido publicamente – saíram da Casa dos
Homens e deram mais três voltas no pátio, desta vez usando apenas um simples adorno,
um pequeno aro ao redor da cabeça com franjas de palha que cobriam parcialmente o rosto.
Depois dividiram-se em dois grupos e seguiram correndo pelas pistas de dança para o
mato, um na direção rio abaixo e o outro, rio acima. Sempre que os homens dançam ou
realizam alguma performance mascarados, em qualquer dos rituais, existe esse momento
final em que eles se livram secretamente, no mato, do corpo velho invisível que usaram e
que é representado pelas máscaras.
Assim como no caso dos aruanãs, preferencialmente são os tios maternos dos donos
dos mascarados que devem realizar a performance cerimonial, ou seja, assumir a

880
identidade mascarada de ixyjukuni ou korera. Aquele que usa o corpo velho do estrangeiro
ou do jacaré-tinga é o irmão real ou classificatório próximo da mãe da criança ou jovem
que é dono do “bem precioso” ritual. Na condição de “dona” (wèdu) do estrangeiro
mascarado, a criança em questão está identificada ritualmente com ele, como se fossem
uma só pessoa, o que já foi mostrado em relação aos aruanãs, uma vez que seus próprios
genitores também são referidos como “pais rituais” do ixyjukuni ou korera, a quem devem
alimentar. Quando o corpo velho de um estrangeiro é entregue pelo matador a um sobrinho
uterino primogênito pela primeira vez, como um presente honrado, aquele que matou o
estrangeiro é, idealmente, o mesmo que deverá usar o corpo velho mascarado. Mesmo
depois, quando tem continuidade a transmissão do bem precioso entre as gerações por
linha direta, o mascarado sempre deverá ser, idealmente, um tio materno do dono do
ixyjukuni. Aqui também aquele que realiza a performance cerimonial receberá alimentos
produzidos pelo pai da criança, ou seja, do próprio cunhado (ZH), em uma forma
ritualizada de prestação matrimonial.
Mas há algumas diferenças fundamentais quanto ao significado da relação dos
ixyjukuni e dos aruanãs com os seus donos e pais rituais respectivos, uma vez que os
aruanãs representam os ancestrais nativos e seus rituais tratam das interações substanciais
que levam à procriação, enquanto os ixyjukuni representam os estrangeiros e seus rituais
tratam das interações substanciais que levam à morte. Na procriação, o homem Javaé (ou
sua substância) é o que sofre a ação transformadora, ocupando um lugar masculinizado; no
homicídio de um estrangeiro, invertendo-se a perspectiva, o homem Javaé é quem tem a
iniciativa da ação, ocupando um lugar simbólico feminilizado. Na procriação, o corpo
feminino é o Outro que causa a transformação do sêmen; no homicídio do estrangeiro, é o
seu próprio corpo, ao contrário, que causa a transformação do estrangeiro, de modo que o
homem Javaé é o Outro/feminino do inimigo.
Procriação e morte, entretanto, enquanto relações que produzem transformações,
são equivalentes simbolicamente. De um ponto de vista masculino, a procriação é pensada
como uma relação substancial que transforma a condição anterior do que sofre a ação
(sêmen), que de semelhante passa a ser um corpo estranho, ocorrendo uma identificação do
sêmen com aquele que causa a ação (o corpo feminino): o sêmen torna-se um estranho, em
um primeiro momento, criando-se a diferença entre o doador de substância (homem) e o
transformador da substância (mulher), antes inexistente. O sêmen perde a sua identidade
com o doador de substância. Os genitores são pensados como corpos iguais ou fechados

881
antes da interação, a partir da qual perdem a identidade com os aruanãs. A mesma lógica
vale para a morte de um semelhante, que se transforma em um kuni: as relações
substanciais alteram o status quo vigente em sua essência. Se o antes era a semelhança,
cria-se a diferença; se o antes era a diferença, cria-se a semelhança.
Desse modo, quando se trata da relação mortal com um estrangeiro, tem-se a
mesma lógica, mas em sentido inverso: a morte no sangue é pensada como uma relação
substancial que transforma a condição anterior do que sofre a ação (a vítima), que de
estranho passa a ser um semelhante, ocorrendo uma identificação do estrangeiro com
aquele que causa a ação (o matador): a vítima torna-se um semelhante, anulando-se a
diferença original entre a vítima masculinizada e o matador feminilizado. O estrangeiro
morto é identificado, portanto, com o próprio matador, desaparecendo a diferença entre
ambos. O mesmo ocorre em relação ao corpo velho do jacaré-tinga, que também representa
um estranho que se torna familiar. Enquanto o filho é a própria substância de um homem
que se torna estranha (um outro), e por isso este último perde a identidade de corpo
fechado com o aruanã que possuía, o corpo velho do estrangeiro é a substância alheia que
se torna familiar (eu mesmo), e por isso o matador ganha uma identidade de ixyjukuni.
O estrangeiro morto identifica-se com o matador ou vice-versa porque a substância
da vítima entra no corpo do matador, em um movimento de fora para dentro, enquanto o
sêmen é a própria substância que vai para o corpo de outro, em um movimento de dentro
para fora. Nesse primeiro momento de contaminação com a substância alheia – equivalente
ao resguardo do matador –, é como se as substâncias de ambos estivessem misturadas
dentro do corpo do que praticou o homicídio, mesmo que não tenha havido contato direto.
O estrangeiro funde-se com o próprio matador, como se fossem uma única pessoa, criando-
se um estado de indistinção entre os dois. No resguardo pós-parto, ao contrário, em que o
sêmen funde-se ou contamina-se com a substância do outro, fora do corpo do doador de
substâncias, cria-se um estado de diferenciação entre os que se relacionam. A
substância/subjetividade da vítima de um homicídio é internalizada no corpo do matador,
que a partir de então começa a “usar” o corpo velho/máscara do estrangeiro
cerimonialmente 14 .

14
A grande questão amazônica da “predação ontológica do exterior” (Viveiros de Castro, 1986, 1993, 2002)
tem sido apresentada em termos de uma separação entre substância e subjetividade. Em seus trabalhos sobre
a relação fusional que ocorre entre o matador e o inimigo, proporcionada pelo sangue exteriorizado, Viveiros
de Castro (2002:287-291) propõe que o sangue é “indutor ou signo de uma mudança de estatuto metafísico”,
no sentido de que “o que está em jogo é, em última análise, a incorporação de algo eminentemente
incorporal: a posição mesma de inimigo”. Em outras palavras, “a assimilação predatória de propriedades da

882
O produto da relação entre um homem e uma mulher é um filho híbrido que contém
em seu corpo tanto a substância paterna que estabiliza a sua forma quanto a influência
transformadora da substância materna. O produto da relação entre o matador e a vítima
também é um híbrido que funde a substância do matador e da vítima em um só corpo. Nos
dois casos, a relação com a alteridade interna (esposa/cunhado) ou externa (estrangeiro) é
formulada em termos de afinidade, mas não como predação canibal, e sim como interação
procriadora. Mas enquanto um filho é um estranho (fora do corpo) com quem os genitores
querem se identificar, o estrangeiro é um semelhante (dentro do corpo) do qual o matador
quer se diferenciar. Assim, após o resguardo do parto, o aruanã/ancestral passa a ter uma
relação de identidade com o filho de um homem, que nasce como um Outro; após o
resguardo do homicídio, o estrangeiro mascarado passa a ter uma relação de identidade
com o sobrinho uterino do matador, que é o seu semelhante, dentro de uma perspectiva
matrilinear.
Os aruanãs são alimentados por um homem tendo como objetivo uma identificação
dos ancestrais com seus filhos substanciais, o que leva à anulação da relação de
diferença/afinidade com a sua esposa e afins. O corpo velho do estrangeiro é usado por um
matador tendo como objetivo uma identificação do inimigo morto com o seu sobrinho
uterino, o que leva à anulação da relação de igualdade do matador com a vítima. Ao se
identificar com o seu sobrinho uterino, o matador/estrangeiro torna-se o filho que é
alimentado por seus pais rituais, alterando a sua condição de Outro. Dito de outro modo,
um pai ritual alimenta o aruanã para identificar-se com os ancestrais, enquanto um matador
é alimentado por um pai ritual para (des)identificar-se com os estrangeiros. O idioma da
nutrição é utilizado aqui para expressar o processo de domesticação da alteridade. Um
estrangeiro mascarado ser alimentado como um filho ritual tem o sentido de purificação da
contaminação e de domesticação do selvagem cuja substância se fundiu ao matador.

vítima, no caso amazônico, deve ser compreendida não tanto nos termos de uma física das substâncias”, mas
muito mais como “movimento de preensão perspectiva” ou como um “processo de ocupação do ponto de
vista do inimigo” (grifos do autor). Cabe aqui lembrar que entre os Javaé seria uma imposição de nossas
categorias separar o ponto de vista do outro, enquanto uma qualidade abstrata, de suas substâncias, ou a
metafísica da física: uma vez que não se pressupõe essa separação entre qualidades simbólicas e corporais,
entre perspectivas abstratas e substâncias concretas, nada é incorporal. A qualidade de alteridade
“incorporada” é essencialmente corporal, não cabendo aqui dissociar pontos de vista ou perspectivas
abstratas de substâncias concretas. A “imanência da alteridade” é uma imanência substancial, antes de tudo, e
não apenas um outro “ponto de vista” abstrato adotado, o que pressupõe a nossa distinção entre abstrato e
concreto, consciência e corpo, imaterial e material, baseada em uma hierarquia implícita do mais abstrato
sobre o mais concreto.

883
Como o parente/familiar é aquele que nutre, em oposição ao afim/diferente, que é
aquele a quem se nutre, a familiarização do diferente implica neste último ser alimentado.
Na Dança dos Aruanãs, um homem transforma em um filho cerimonial o irmão da esposa
(aruanã) que ele alimenta e que está identificado com o seu próprio filho substancial. Ao
alimentar ritualmente o cunhado (WB), o pai ritual anula simbolicamente a relação de
diferença entre ambos e com o próprio filho. No ritual dos ixyjukuni, um
matador/estrangeiro é transformado em um filho cerimonial ao se identificar com o
sobrinho uterino e ser alimentado pelo marido de sua irmã. Ao ser alimentado ritualmente
pelo cunhado (ZH), o matador anula simbolicamente a relação de igualdade com o
estrangeiro. Na Dança dos Aruanãs, interessa ao pai ritual alimentar o irmão da esposa,
enquanto no ritual dos ixyjukuni interessa ao matador ser alimentado pelo marido da irmã,
o que leva a um outro tipo de reciprocidade ritual entre os cunhados 15 .
Na Dança dos Aruanãs, tenta-se eliminar a diferença em relação ao semelhante; no
ritual dos ixyjukuni, tenta-se eliminar a semelhança em relação ao diferente, o que em
última análise é a mesma coisa. Nos dois casos, as relações com a alteridade interna (entre
homem e mulher) ou externa (entre matador e vítima) são concebidas como interações
procriadoras cujo resultado são os filhos cerimoniais (aruanãs ou ixyjukuni) a quem se
alimenta para neutralizar a transformação realizada. Os ixyjukuni tornaram-se “bens
preciosos” (nohõ) transmitidos através das gerações, assim como o que foi trazido pelos
Wèrè e outros povos diferentes tornou-se a “tradição preciosa” que é transmitida. A
reprodução da sociedade se dá através da incorporação do exterior (Viveiros de Castro,
1986, 1993, 2002b, 2002d), assim como a reprodução de um filho sempre depende do
exterior (corpo feminino). Mas tanto nas relações internas quanto externas da sociedade,
por meio da linguagem da nutrição, há um esforço de transformação da afinidade em
parentesco, do exótico em familiar, do selvagem em doméstico.
Os estrangeiros mascarados sempre comparecem ao final de um ritual de iniciação
masculina completo, porque cabe aos jovens recém iniciados usar o corpo velho dos
estrangeiros pela primeira vez nesse momento especial. Idealmente, os jovens devem
aparecer mascarados na aldeia como nohõ dos filhos de suas próprias irmãs ou primas

15
Pétesch (1993b, 2000:66) já havia notado com propriedade a inversão entre o kuni, que se torna “um
agressor de sua própria sociedade”, e o inimigo morto, transformado em “protetor”. Segundo a autora
(2000:67), os “espíritos dos inimigos”, que não perdem totalmente sua condição de alteridade (ao contrário
do cativo Tupinambá), estabelecem “o contrato cósmico habitual” com a família Karajá que o adota:
proteção, ou pelo menos não-agressão, em troca de alimentação nos rituais. Para Donahue (1982), a
alimentação ritual tem a finalidade de apaziguar os inimigos mortos dos Karajá.

884
próximos, que são os donos rituais, a fim de serem alimentados cerimonialmente pelos
maridos das irmãs ou primas próximas. Podem ser nohõ também dos filhos dos irmãos ou
primos próximos ou mesmo dos netos próximos, o que não tem o mesmo prestígio, mas é
considerado bem melhor do que ter um parente distante como dono ritual. A primeira
performance ritual dos iniciados é usar o corpo velho do estrangeiro, o que parece ter
relação com o fato de que o ritual de iniciação é um momento de transformação radical do
status do jovem, que perde sua associação com o mundo feminino e entra para a
coletividade masculina, adquirindo uma condição de “outro” em relação ao seu status
anterior.
A iniciação de menos prestígio, como já foi mencionado, constitui-se do menino ser
“roubado” secretamente pelos homens e aparecer diretamente na aldeia como ixyjukuni.
Toral (1992:263) descreve brevemente esse tipo de iniciação entre os Javaé, que teria um
caráter mais “autônomo” quando comparada à iniciação dos Karajá, em que os ixyjukuni
“são apenas mais uma categoria de seres cosmológicos atuantes nas festas de ijasò ou da
Casa Grande”. É considerada uma iniciação desonrosa, passível de acarretar xingamentos
futuros para o jovem e sua família, por várias razões. Em primeiro lugar, ela é realizada
apenas para os pobres de parentes, o que inclui os que são órfãos, os que são criados com
desleixo pelos pais ou os que não têm um pai capaz de sustentar o ritual completo, o que
envolve grande distribuição de comida, sendo este considerado o motivo mais
constrangedor. Pode ocorrer também quando o menino entra acidentalmente em contato
com o segredo masculino; quando um Javaé passa a adolescência distante da comunidade e
volta à aldeia sem ter sido iniciado; ou quando o menino foi criado na aldeia, mas é
membro de uma outra etnia, como no caso dos Tuxá ou Avá-Canoeiro que foram iniciados
em Canoanã. Dietschy (1978) presenciou a iniciação Karajá realizada para um menino que
descobriu o segredo antes do tempo.
Nestes casos, um xamã decide o momento em que o menino será “roubado” por
algumas pessoas da Casa dos Homens, escondido, e levado para o mato, onde ele usará a
máscara/corpo de um ixyjukuni. Sina significa “lugar (na) dos ovos (si)”, referindo-se ao
ninho onde a tartaruga ou outro animal esconde seus ovos. Tudo que é escondido ou
roubado, de modo oculto, é wasi (“meus ovos”) de alguém, a mesma palavra para
“segredo”, enquanto os ladrões são wasirò. Os meninos que são roubados secretamente são
chamados de wasina dos homens como um todo. Segundo os Javaé, entre os Karajá é o
mascarado Asy (macaco-guariba) que rouba os meninos, chamados de Asy wasina. No dia

885
em que está programada a chegada dos ixyjukuni à aldeia, o menino é levado pelos homens
para o mato durante a manhã ou por volta do meio dia, onde ele é apresentado ao segredo
masculino e coloca a máscara/corpo velho do estrangeiro. Quando os vários ixyjukuni
entram na aldeia no fim do dia, ele vem no meio dos mascarados, mas de mãos dadas com
um deles. Então ele passa a sua primeira noite com os outros na Casa dos Homens, ocasião
em que os ixyjukuni aõni costumam caçar durante a madrugada e depois emitir um grito
peculiar.
No dia seguinte, quando os worosy (o pai ritual e seus acompanhantes) vão pescar
para alimentar os ixyjukuni, o menino vai junto, assumindo pela primeira vez a condição de
worosy. Na chegada da pescaria, os worosy emitem o seu grito típico desde o rio até o
ijoina (pátio masculino), entrando a seguir para a Casa dos Homens com os peixes. O
jovem vem no meio deles, mas não entra na Casa dos Homens. Segundo os Javaé, o
menino não pode entrar no recinto masculino diretamente porque “está todo mundo vendo”
que ele está junto com os worosy. Essa situação de desnudamento público junto às
mulheres e crianças é chamada de ixibèdètya, o que está à vista, no “meio” (tya) de todos,
de modo explícito. Para que o jovem entre na Casa dos Homens pela primeira vez
publicamente, sem máscara, são necessários alguns procedimentos rituais que marcam essa
transição. Assim que ele chega ao pátio masculino, um tio materno próximo, de
preferência, acompanha-o e coloca uma grande esteira no lugar.
Repetindo o que ocorre no ritual da Casa Grande, vários worosy sentam-se com o
menino para aconselhá-lo a respeito dos segredos masculinos. A eles juntam-se as
imitadoras do jovem, que também se sentam ao seu redor, ouvindo os conselhos. Depois os
worosy entram para a Casa dos Homens e saem novamente, dividindo-se em dois grupos, à
frente da esteira. Um vira-se para o nascente, a mesma posição do menino, outro para o
poente, para a seguir ter lugar um luta ritual, conforme já foi descrito antes. Quando
acabam as lutas e o aconselhamento, ainda pela manhã, o tio materno do menino leva-o
para dentro da Casa dos Homens, à vista de todos. Então o menino coloca a máscara/corpo
do ixyjukuni e, ao mesmo tempo que os outros, sai para buscar os alimentos na casa do seu
dono ritual. Os estrangeiros mascarados vão embora nesse mesmo dia e, a partir de então, o
menino entra para a categoria dos recém iniciados (jyrè), podendo freqüentar a Casa dos
Homens.
Um outro motivo importante que torna essa iniciação desonrosa é o fato de que o
jovem “vira ixyjukuni de qualquer um”, nas palavras de um Javaé. Quando um rapaz é

886
iniciado no Hetohoky, ele se torna um estrangeiro mascarado (bem ritual) do seu próprio
sobrinho uterino próximo. Nessa iniciação em que ele é “roubado”, isso não acontece. No
momento em que o jovem sai da Casa dos Homens como ixyjukuni para receber os
alimentos, logo após a iniciação, ele sai de mãos dadas com um outro mascarado, já
experiente, que normalmente é algum parente seu. Mas ele é levado para a casa de
qualquer um dos donos rituais da aldeia, o que é causa de grande vergonha para ele e para
a sua família, segundo os Javaé, pois os filhos de suas irmãs não poderão alegar
futuramente que possuem muitos bens preciosos, o que inclui os ixyjukuni, em suas defesas
orais. Isso significa também que o jovem iniciado não vai ser alimentado pelo próprio
cunhado (ZH) e, portanto, não vai estabelecer uma relação de (des)identificação de sua
condição de Outro com o próprio sobrinho uterino.
Os brancos mortos no passado podem ser um dos estrangeiros mascarados (Tori
kuni) que são alimentados por pais rituais, como já foi mencionado. Mas um dos brancos
que foram mortos em tempos mais antigos tem uma participação ritual diferente, cuja
origem foi brevemente mencionada na mitologia apresentada. Segundo o mito histórico, os
Karajá que moravam na beira do Rio Javaés, ao norte da Ilha do Bananal, conheceram o
milho através do povo Torohoni, que habitava a imensa e antiga aldeia Kanõanõ:

Tempos depois, o Karajá Wajurema e o seu genro branco vieram a Kanõanõ


pedir mais milho para atender os desejos da sua filha Koxibia, que estava grávida.
Wajurema e o branco atacaram e estupraram várias das belas mulheres de Kanõanõ,
aproveitando que os homens estavam pescando com axi (timbó) fora da aldeia. Atendendo
à sua mãe, um rapaz correu até o lago e avisou ao seu pai e aos outros homens sobre o
que estava ocorrendo. Os homens voltaram imediatamente e prenderam o Karajá, que foi
amarrado, enquanto o branco conseguiu escapar correndo pela aldeia, até entrar na casa
de Marihoko, uma mulher que já tinha vários netos. Indignada com a incompetência dos
homens, ela reclamou: ‘o que está acontecendo aqui? Esse Tori está custando a morrer.
Vocês é que são homens e não conseguem matá-lo ... Quem vai matar sou eu!’ (palavras
do tradutor). Então ela pegou o pilão que estava usando e acertou a cabeça dele com
força, matando-o. Os homens levaram o Karajá para um lago que existe próximo à atual
Canoanã e lá cortaram a cabeça dele com uma arma feita dos dentes do peixe ryri
(caranha). Depois, os Karajá vieram atrás de seus parentes e o povo de Kanõanõ

887
explicou a razão de sua morte. O lugar onde ele morreu até hoje é conhecido como
Koxibiatyby rakerèsyna, em referência ao pai de Koxibia.

Quanto ao branco assassinado, ele foi levado para o pátio masculino por Marihoko,
que entregou o seu corpo velho aos homens para que ele virasse hàri dèodu, “ajudante do
xamã”. Essa história ocorreu na época em que os vários povos da Ilha do Bananal
contribuíam com bens culturais variados para os rituais de Marani Hãwa, como uma forma
de homenagem ao iòlò Tòlòra. Os irmãos de Marihoko levaram o corpo velho do branco
ao grande iòlò, como um presente honrado do povo Torohoni, quando se realizava em
Marani Hãwa o Imonahaky (“muita bebida deles”), a parte final do ritual de iniciação
masculina trazido pelos Wèrè. Desde então, o corpo velho desse branco (Torikuni) passou
a ser um dos personagens principais do ritual da Casa Grande e um auxiliar do xamã em
suas curas. Ele mora na Casa Grande que existe na Marani Hãwa subaquática e gosta de
brincar também no ritual terrestre. Ele também mora na Casa dos Homens, na qualidade de
ser auxiliar, ou na Casa Grande do nível terrestre.
O corpo velho do estrangeiro fala Toriuhu rybè, a “língua dos brancos antigos”,
diferente do Português atual. Em algumas ocasiões do ritual de iniciação, os homens têm
que obter a Torikuni dò, a “comida de origem animal do corpo velho do branco”, que o
Torikuni come separadamente dos outros convidados subaquáticos. Nesses momentos, um
homem “usa” o corpo velho do Tori, alimentando-se da refeição, para depois ser seguido
pelos outros homens. Os worosy das metades Hiretu e Saura respeitam o Torikuni e caçam
e pescam para alimentá-lo no ritual de iniciação porque ele ajuda nas curas, ao contrário
dos kuni dos Javaé, que passam a persegui-los. Nas palavras de um Javaé, o Torikuni “foi
‘santificado’, mais ou menos assim. (...) Ele se transformou em um tipo de proteção para as
pessoas. Quando (alguém) vai para o mato ou quando faz alguma ação séria, então faz
xiwè, um tipo de oferenda para o Torikuni. Ele traz a paz onde a gente está e deixa ir
embora as forças negativas, mais ou menos assim”.
Um processo similar aconteceu com o corpo velho de um Wèrè (Wèrèkuni) que foi
morto há muito tempo atrás, tornando-se um companheiro do Torikuni tanto nas curas
xamânicas quanto no ritual de iniciação masculina. Segundo uma versão sem muitos
detalhes de um xamã, um velho Wèrè que tomava banho em uma praia na Barra do Rio
Verde, próximo do local de surgimento mítico dos Wèrè, foi assassinado antes da
“pacificação” dos Wèrè pelo iòlò Tòlòra. Esse velho tornou-se o Wèrèkuni que também

888
auxilia o xamã e que mora permanentemente na Casa dos Homens, junto com o Torikuni,
tendo importante atuação no ritual de iniciação masculina. Na verdade, são dois Wèrèkuni
que cantam durante o ritual, mas um deles seria apenas um aõni que acompanha o outro.
Assim como o Torikuni, eles também moram na Casa Grande da Marani Hãwa
subaquática.
Em uma outra versão, os dois Wèrèkuni que cantam no ritual chamam-se
Wèrèkoijama e Wèrèkubèriè e são os heróis que conseguiram matar um grande peixe
monstruoso (Herarajuà ou Buhãtityby) que atacava as pessoas no Rio Javaés, no local
conhecido como Makolokolo ryna. Os dois fizeram uma música sobre o feito para o ritual
da Casa Grande, trazido por eles do Fundo das Águas, que até hoje é cantada pelos dois
Wèrèkuni no começo do ritual, entre várias outras cantadas por eles ao longo da iniciação.
Durante a construção da Casa Grande, dois homens ornamentados com cocares especiais
“usam” o corpo velho dos Wèrè e cantam andando dentro da casa, sendo vistos à distância
pelas mulheres e crianças. Além disso, eles também se tornaram protetores dos Javaé, em
especial dos caçadores, que cantam a música deles em agradecimento após uma caçada
bem sucedida. Conforme o mito já narrado, foram os Wèrè que experimentaram as caças
no plano terrestre e descobriram quais eram comestíveis ou não.
Os Wèrèkuni – em sua forma invisível – sempre acompanham os homens em suas
refeições rituais, principalmente durante o Hetohoky e naquelas com carnes consideradas
nobres, como a do porco do mato, do veado, da tartaruga etc, comendo dos alimentos que
são oferecidos aos vários mortos presentes. Segundo a mitologia, os Wèrè guerreiros são os
“outros” com quem o pacífico povo de Tòlòra fundiu-se física e culturalmente em Marani
Hãwa, produzindo a cultura Javaé atual, embora os primeiros também tenham uma origem
estrangeira. Por isso os seus mortos vivem também no Bèdè Rahy, junto com os kuni dos
brancos e dos outros povos estrangeiros. Assim como o branco, os Wèrè não se tornaram
agressivos após a morte e não perseguem os Javaé. O mesmo ocorre com os “fantasmas”
dos inimigos entre os vizinhos Tapirapé, que se transformam em “espíritos familiares” dos
xamãs (Wagley, 1988:181).
Segundo Lipkind (1948:188), o costume dos Karajá antigos de retirar um osso do
pé da vítima assassinada e trazê-lo de volta para a aldeia era uma forma de controlar o
“fantasma” do morto inimigo e transformá-lo em um “protetor da aldeia”. Pétesch
(2000:65) interpreta esse ato como uma forma de controlar o movimento da “entidade
espiritual perigosa” e de se apropriar da sua rapidez. Em outro texto (1993b:88), a autora

889
inclui este costume nas estratégias amazônicas de “captação do Outro” e o considera como
parte do processo de “socialização, de transformação de uma alteridade às vezes perigosa
em uma identidade protetora”. Segundo Toral (1992:178), os “guerreiros de grupos
indígenas vizinhos tornam-se protetores do grupo de descendência do matador” Karajá,
trazendo saúde e desenvolvimento físico para as crianças que os possuem. Os Wèrè e os
brancos transformaram-se em auxiliares invisíveis dos xamãs em suas curas e protetores
dos Javaé, além de importantes personagens do ritual de iniciação masculina, que tem um
caráter eminentemente histórico por incorporar as contribuições variadas de outros povos
ao longo do tempo.
Em termos gerais, no xamanismo tem-se o mesmo processo descrito por Fausto
(1999), comum na Amazônia, de domesticação/controle do poder de entidades externas
pelos xamãs, assim como na relação de adoção de cativos ou entre o dono e seu xerimbabo
(animal selvagem domesticado). O autor (1999:936) propõe um modelo geral para as
cosmologias amazônicas (excetuando casos como o alto Xingu) que vá além da “ênfase na
afinidade como esquema de articulação entre exterior e interior ou como o idioma de
mediação entre a esfera do parentesco e níveis mais amplos de socialidade”. A apropriação
simbólica do exterior através da predação/destruição deve ser tomada em conjunto com a
produção de pessoas e a reprodução interna da sociedade. A noção de “predação
familiarizante” (1999:936) implica que predação (consumo externo) e familiarização
(produção interna) seriam as duas faces de um mesmo processo de apropriação da
alteridade (subjetividades externas) para a constituição interna de pessoas e da própria
sociedade. As relações de afinidade com o exterior são apenas um primeiro momento para
a produção de parentes internamente.
Entre os Javaé também existe uma dialética entre incorporação da exterioridade,
que é imanente à sociedade, e a fabricação do semelhante, seja nas relações mais próximas
ou mais amplas. Ao invés de uma “predação familiarizante”, entretanto, teríamos mais uma
“procriação familiarizante”. As relações com o exterior se dão no idioma da afinidade
efetiva ou simbólica, mas a alteridade é feminina, de modo que a interação com o Outro,
em um primeiro momento, é mais (pro)criadora do que predadora, para depois sofrer o
processo de familiarização. Se lembrarmos, entretanto, que a procriação ou fecundação são
simbolicamente equivalentes à morte, porque dão início às transformações do corpo dos
que procriam, constataremos que a cosmologia Javaé seria, afinal, uma versão não bélica
de um tema maior comum a várias outras sociedades.

890
O que é a procriação para os Javaé – de um ponto de vista masculino – senão uma
relação de afinidade com o exterior, em que se é “contaminado” pela alteridade em um
primeiro momento de destruição de uma velha ordem e criação do novo? E que é seguido,
depois, de um segundo momento de recomposição parcial da ordem antiga, de uma
tentativa de tornar familiar aquilo que é exótico e que, por definição, tem uma origem
externa. Uma diferença significativa é que aqui não se tem uma postura ativa de
incorporação do exterior, como no modelo de predação, mas de reação criativa à sua
existência determinante e inevitável. Há o reconhecimento de que o social é constituído
intrinsecamente tanto de relações transformadoras com o diferente/externo quanto do
empenho em reduzi-lo ao mesmo, ao que sempre existiu. A constante dialética entre
relações com o exterior (afinidade) e recriação interna (parentesco), vivida internamente na
relação entre exogamia (movimento para fora) e primogenitura (movimento para dentro),
casa dos afins e casa natal, expressa-se através dessa imagem espacial de uma sociedade
que está no “meio”, entre o rio abaixo da alteridade que transforma e o rio acima da
semelhança que perpetua.

11.3. A espiral da História

A sociedade/cultura é o filho híbrido 16 de um princípio feminino criativo, porém


desordenador (mudança, alteridade, exterior), e um princípio masculino estruturante
(continuidade, identidade, interior). A idéia de que a procriação é o modelo nativo de
interação com a alteridade é compreendida aqui mais em termos de uma teoria da ação
histórica do que como uma teoria da construção da pessoa, importante tema da etnologia
sul-americana 17 , embora as duas perspectivas estejam intimamente relacionadas. Afinal, a
própria “cultura” ou “tradição” (tyky disina, “brincadeiras do corpo”) é dotada de uma
corporalidade ou pensada como uma pessoa/corpo, como o produto corpóreo da interação
procriadora entre o que se herdou dos antepassados (associado ao masculino) e as
transformações introduzidas pelos estrangeiros (associadas ao feminino). Desse modo, o

16
Aqui no sentido de “originário do cruzamento de espécies diferentes” (Ferreira, 1986), mas sem a
conotação da “esterilidade” dos híbridos.
17
Carneiro da Cunha (1978), Seeger (1980), Seeger, Da Matta & Viveiros de Castro (1987).

891
estudo da teoria nativa a respeito do processo de construção da sociedade/cultura é
inseparável do estudo da construção da pessoa.
A proposição de que os ameríndios têm uma abertura ao Outro (Lévi-Strauss, 1993)
ou de que o exterior é imanente à sociedade (Viveiros de Castro, 1986, 1993, 2002b,
2002c, 2002d, 2002h) é aqui relacionada a uma concepção nativa do social essencialmente
histórica (ver a coletânea de Hill, 1988 e Turner, 1988a, 1988b, 1992, 1993), uma vez que
a incorporação da alteridade significa também a recriação constante da estrutura pelos
agentes humanos. As relações de troca não representem a base sólida para a continuidade
da estrutura, como na teoria estruturalista (Lévi-Strauss, 1982), mas o caminho para a sua
modificação. O mito descreve a criação da sociedade – o fluxo criativo original – de
acordo com os mesmos princípios da (pro)criação de um filho, o que não tem nenhum
caráter biologizante, como um encontro social transformador entre um princípio masculino
estático, relacionado à manutenção da ordem, e um princípio feminino caótico, relacionado
à criação de uma nova ordem. No homicídio de um estrangeiro, é o corpo de um Javaé que
causa a transformação da vítima, de modo que o homem Javaé é o outro/feminino do
inimigo. Nas interações entre culturas diferentes, são os outros povos que causam a
transformação da cultura Javaé, de modo que os estrangeiros ocupam o lugar simbólico do
feminino.
O corpo de um filho é uma mistura da substância paterna com a substância materna,
a qual se tenta purificar. Do mesmo modo, a cultura nativa é vista com uma mistura da
tradição com as mudanças introduzidas pelos estrangeiros, a qual se tenta purificar ou
congelar, em um processo contínuo de familiarização da diferença. O corpo do filho é
fabricado tanto pela substância paterna quanto pela influência da substância materna, de
modo que a alteridade, do ponto de vista paterno, lhe é intrínseca. O “corpo da cultura” é
fabricado tanto pelo substrato indígena quanto pelas influências alienígenas, de modo que a
alteridade, de um ponto de vista Javaé, lhe é intrínseca, desaparecendo as fronteiras entre o
interior e o exterior para quem está entre um e outro. Ao longo do tempo, essa tradição
prévia que interage com os estrangeiros, por sua vez, é sempre algo que já foi alterado ou
misturado anteriormente, assim com um novo sêmen é sempre o produto de misturas
substanciais das gerações anteriores. Desde que os humanos começaram a procriar e a
interagir socialmente, criando a diferença, não existe uma substância original pura, assim
como não existe uma “tradição” original pura e fechada que se repete desde a ascensão
mítica.

892
A continuidade substancial entre as gerações ao longo do tempo é concebida como
a sucessão de um grande padrão que se repete ao mesmo tempo em que se modifica a cada
repetição, como na idéia de uma espiral em andamento. Na espiral há um movimento
circular de repetição contínua, mas a cada repetição há também uma mudança progressiva.
Volta-se ao início sempre (movimento cíclico), mas ele nunca é mais o mesmo
(movimento linear), fundindo continuidade e transformação em um mesmo percurso. Em
se tratando da passagem de geração para geração, também se tem uma fusão entre
repetição e mudança: a ligação entre as gerações é sempre uma transformação irreversível
dos corpos que procriam (tempo linear), acompanhada de uma recriação social das
condições originais de produção dos corpos (tempo cíclico). Como já foi dito, a cada
interação substancial entre corpos masculinos e femininos há uma modificação da estrutura
corporal anterior dos doadores de substância, cuja manifestação explícita se dá no período
de resguardo (misturas), que por sua vez é seguido de uma tentativa de reconstrução do que
foi alterado (purificação).
No período poluído de mistura das substâncias – correspondente ao nascimento do
filho e ao resguardo – tem-se um tempo linear de mudança corporal irreversível, pois os
corpos se abrem e inicia-se o processo de degeneração dos genitores e de crescimento do
filho. No período subseqüente de purificação da mistura – correspondente às práticas
sociais de neutralização da alteridade – tem-se um tempo cíclico de repetição da estrutura
anterior, pois os corpos dos genitores e dos filhos são identificados com os corpos fechados
dos ancestrais mágicos. Como na espiral, há um grande padrão que se repete ciclicamente,
pois cada procriação é uma volta simbólica dos genitores ao início mágico, à passagem de
uma condição de corpos fechados para a de corpos abertos, de substâncias intactas a
substâncias misturadas; ao mesmo tempo em que ocorre uma mudança progressiva e
irreversível do próprio padrão, pois não se trata jamais de um retorno perfeito, uma vez que
as substâncias que interagem na fabricação de cada novo primogênito não são mais as
substâncias intactas dos primeiros ancestrais, mas o produto de misturas anteriores nas
gerações precedentes, não obstante o esforço de purificá-las social e ritualmente.
As interações ou misturas substanciais estão associadas às mudanças progressivas
do tempo linear, como no rio abaixo do tempo que passa acelerado, enquanto a purificação
está associada à repetição do tempo cíclico, como no rio acima do tempo estático. As
relações com os outros provocam mudanças e por isso representam o movimento linear
progressivo, para frente (em direção ao rio abaixo), enquanto a negação ritual das relações

893
representa o movimento cíclico, para trás (em direção ao rio acima). São as relações entre
diferentes que rompem o movimento puramente repetitivo do círculo e propiciam a
mudança de nível no percurso da espiral, de modo que cada nova geração é a um só tempo
mudança progressiva (produto de novas misturas) e retorno ao passado (identificada com
os ancestrais). A consciência das mudanças, ainda que não desejadas, é traduzida pelos
territórios (hãwa) “vazios” dos mapas cosmológicos feitos por um xamã, que estão à
espera de novos personagens para habitá-los.
É significativo que os mitos (lahi ijyky, “histórias das avós”) podem ser chamados
também de hykyna ijyky (“histórias de antigamente”) ou ihetxiu ijyky, “narrativas (ijyky)
sobre as nádegas ou ânus dele (ihetxiu)”, em uma tradução literal. Como já foi explicado
antes, o conceito de hetxi (“nádegas ou ânus”) pode ter o sentido não só do que está
“embaixo” do corpo, mas também do que está “atrás” ou do que ocorre “depois”, se
tomarmos a cabeça como o ponto de referência de partida, o início do corpo. Na concepção
cosmológica e corporal Javaé, a cabeça associa-se ao que é anterior, assim como o rio
acima, enquanto o ânus associa-se ao que é posterior, assim como o rio abaixo, de modo
que a comida purificada que entra pela boca é anterior às fezes poluídas e transformadas
que saem pelo ânus. O que vem depois é, como se sabe, o que foi mais misturado e
transformado, como o caçula em relação ao primogênito. Creio que a expressão refere-se
menos ao que está “atrás” (no tempo) dos humanos atuais e mais às transformações que
ocorreram “depois” que os humanos ascenderam do Fundo das Águas e se misturaram. Em
termos simbólicos, as narrativas sobre as transformações – sobre o que é produzido pelas
nádegas da História humana – são narrativas sobre o que está embaixo ou ocorreu depois,
como no rio abaixo.
O modelo espiralado de sucessão das gerações implica em uma alternância entre
transformação (linearidade da espiral), a cada interação substancial, e repetição
(circularidade da espiral), enquanto tentativa social de reconstrução dos corpos/pessoas
originais. Aquilo que se chama de “repetição”, porém, é apenas uma reconstrução social
imperfeita dos corpos primordiais, e não os corpos primordiais em si, uma vez que cada
novo corpo, embora simbolicamente seja um “novo início”, contém as transformações
vividas pelas gerações anteriores. Afinal, apesar do movimento cíclico, a espiral nunca
retorna ao verdadeiro ponto de origem, de modo que o retorno é sempre parcial e inserido
em um movimento maior para frente. Quando se dirige a atenção ao que a mitologia

894
histórica diz sobre o processo de produção da sociedade/cultura atual, percebe-se que se
trata do mesmo modelo, só que aplicado às relações entre os Javaé e os povos estrangeiros.
A cultura Javaé é tanto uma perene tentativa dos agentes sociais em repetir o que
foi herdado dos antepassados quanto a transformação relativamente controlada dessa
mesma herança em função das relações com o exterior. Aquilo que foi herdado em uma
forma aparentemente fixa ou monolítica, por sua vez, é o produto de transformações
anteriores ao longo do tempo. Não existe uma essência original e imutável que se repete
desde sempre, já que o próprio início da tradição Javaé, pós-ascensão do nível subaquático,
é concebido a partir de uma complexa fusão substancial e cultural entre povos diferentes.
Duas características básicas sobressaem-se no relato mítico sobre o “tempo” em que se deu
a criação da cultura atual: trata-se de um momento de intensas relações entre povos de
características diferentes, o que é sintetizado pelas relações entre os Wèrè e o povo de
Tòlòra, ou entre as mulheres imorais e os homens que atuam em favor da coletividade; e
de intensas transformações da estrutura estática, fechada e indiferenciada anterior a partir
dessas relações entre um princípio feminino desestabilizador e um masculino ordenador.
O povo de Tòlòra é associado simbolicamente ao masculino por representar o
estatismo (é um povo que valoriza o sedentarismo, que permaneceu no lugar de ascensão),
o desejo de pacificação ou conciliação dos conflitos entre os povos diferentes, por valorizar
a primogenitura (associada ao “primeiro”) e dedicar-se à “familiarização” da nova ordem
criada pelas interações pacíficas com os outros. Os Wèrè, por sua vez, são associados ao
feminino por representarem a causa da transformação mais radical do que existia antes
com sua atuação bélica e seus novos costumes, por serem um dos “últimos” povos que
ascenderam, por serem guerreiros/matadores e causadores de conflitos, por deslocarem-se
constantemente do espaço, o que tem o significado de “transformação”, por possuírem
rituais muito mais bonitos ou criativos. Apesar do temido poder de destruição dos Wèrè, é
Tòlòra quem assume o controle ao final, pacificando os guerreiros, que se submetem ao
chefe supremo, incorporando as novidades e transformando-as na “tradição”, e tornando-se
o guardião da nova ordem com seus valores superiores.
Na interação entre ambos, basicamente, (pro)cria-se a cultura atual, como um filho
que contém em si os princípios opostos que o geraram. Desde o seu mais remoto início, a
tradição nativa é uma dinâmica relação entre diferentes fontes, sem limites precisos e
situando-se entre o interior e o exterior, entre Tòlòra e os Wèrè, assim como um filho é o
produto da relação entre seus genitores. O que está dentro tem valor superior ao que está

895
fora, assim como a coletividade masculina, identificada com o povo de Tòlòra, considera-
se moralmente superior às mulheres, identificadas com os Wèrè. A cultura, porém, não é
nem um nem outro, assim como um filho não é nem puro esperma nem puro sangue
materno, mas a fusão entre os extremos, a relação materializada. De acordo com a lógica
nativa da procriação, ao primeiro momento de intensa mistura e transformação das
substâncias, equivalente ao resguardo, segue-se um momento de purificação e
estabilização, em que as substâncias são separadas e o corpo do filho adquire uma forma
relativamente fechada. O processo de criação da sociedade/cultura não é concebido de
modo diferente.
Ao fim das narrativas que relatam as intensas misturas entre os povos (entre um
princípio masculino e um feminino) e as transformações decorrentes, os Javaé sempre
concluem que, desde então, o que foi criado nesse tempo antigo (o que inclui os elementos
do meio ambiente) permaneceu como tal até os dias de hoje, constituindo-se a totalidade da
“tradição” que é transmitida através das gerações. O que foi produzido a partir de relações
inovadoras entre diferentes é reduzido pelo discurso a um monobloco ou unidade de forma
fixa e definida que se repete desde o fim dos tempos da criação. Estabelece-se um contraste
entre um período anterior criativo e um período posterior de pura repetição do que foi
criado, entre um período de relações e um de isolamento, exatamente como no contraste
entre o resguardo dos genitores (mistura, transformação, relação) e o pós-resguardo
(purificação, repetição, separação); ou entre o luto (matador e vítima interagem ou o morto
agressivo interage com a comunidade) e o pós-luto (os ossos do morto pacificado são
isolados dentro de uma urna fechada). O que era fluido e processual na ação, como o
sangue no luto, torna-se sólido e estável no discurso, como os ossos na urna funerária,
assim como o corpo sem formas definidas e poluído de uma criança, no nascimento, torna-
se um corpo fechado e purificado no ritual.
O mito descreve a criação da cultura como um corpo aberto que se tenta fechar e o
tempo da criação como uma espécie de resguardo da sociedade, um período criativo e
caótico de profundas transformações da estrutura anterior proporcionadas pelas interações
com a alteridade. A nova cultura gerada na “contaminação” com os estrangeiros, como no
paradigmático contato entre o povo de Tòlòra e os Wèrè, surge como um conjunto de
novidades estranhas em um primeiro momento, assim como o filho é um Outro de seus
pais ao nascer. Ao fim desse período, a alteridade é familiarizada ou domesticada, como no
nascimento ou no luto: os novos costumes são incorporados à tradição, mas o ethos

896
pacífico de Tòlòra sobrepõe-se ao ethos guerreiro dos Wèrè, assim como as mulheres são
mantidas sob relativo controle, o filho poluído torna-se um parente purificado e
identificado com os ancestrais, o morto descontrolado é encapsulado em uma urna. A
ordem masculina sobrepõe-se à desordem criativa feminina, o poder criativo/destrutivo das
relações com o diferente é domado. Como diz Fausto (1999) a respeito do xamanismo, a
aquisição do poder interno é construída na forma de controle ou domesticação das forças
exteriores, como na relação entre o dono e seu xerimbabo.
Pode-se dizer que a relação com a sociedade nacional é compreendida pelos Javaé
dentro dessa mesma perspectiva de afirmação dos poderes internos frente a um Outro
selvagem que ameaça ou desestrutura a ordem pré-existente em um primeiro momento,
como uma “pacificação do branco” (Albert & Ramos, 2000). O caos mortal é seguido de
uma recriação da ordem antiga através da incorporação do novo e do controle relativo
sobre os seus poderes ao mesmo tempo criativos e destrutivos, situação que está sendo
construída pelos Javaé agora depois dos primeiros momentos mais desestruturantes do
contato e que poderíamos chamar de resguardo da nova realidade. As relações com o
branco, apesar do seu poder imensamente superior aos dos Outros internos e externos do
passado, também parecem não escapar a essa dialética da procriação, de modo que a nova
e instável ordem contém tanto um princípio feminino que corrói quanto um princípio
masculino que reage com vigor. Como já foi apontado por Turner (1988b), os modos de
consciência social sobre o passado não são apenas representações simbólicas dos eventos,
mas oferecem programas para a orientação prática no contexto do contato, modelos de
agência frente à sociedade envolvente.
Aparentemente, tem-se um tempo dual constituído de uma diferença qualitativa
entre o tempo da criação e o tempo das repetições posteriores que se estende até hoje,
como na clássica formulação de Eliade (2002:321), para quem “aquilo que poderíamos
chamar a ‘história’ das sociedades primitivas reduz-se exclusivamente aos acontecimentos
míticos que tiveram lugar in illo tempore e que não deixaram de se repetir desde então até
os nossos dias”. Essa mesma perspectiva seria utilizada por Da Matta (1983) para
descrever a noção de tempo não histórica, segundo o autor, dos Apinayé. Entretanto, o
tempo do resguardo mítico, ou seja, o tempo da criação, não deve ser compreendido aqui
como um momento de transformações em um passado remoto e inacessível que se opõe ao
tempo das repetições, até os dias de hoje, do que foi criado no começo dos tempos. O
significado preciso do conceito de “tempos míticos” ou “tempo da criação” é simplesmente

897
o de “tempos de transformação em razão de relações com a alteridade”, o que não implica
em estar restrito a um suposto tempo primordial.
O tempo do resguardo mítico é nada mais que o tempo das relações entre
diferentes, capazes de transformar a ordem anterior, independentemente do tempo
cronológico real em que isso ocorra, podendo se referir tanto a um passado mais remoto
quanto a um mais recente. Desse modo, o conceito de “início” dos tempos não remete a um
único início cronológico original, mas a todas as vezes que teve início um novo padrão
cultural por meio das relações com a exterioridade, repetindo a primeira ascensão mítica,
assim como cada geração representa um novo início para os corpos. A narrativa aglutina
em um único tempo da criação todos os inícios radicais, todas as diversas misturas
criativas entre povos ocorridas ao longo da História que produziram novos formatos da
sociedade, novos começos, o que implica em uma indiferenciação dos diversos horizontes
cronológicos. A primeira ascensão mítica, a conquista do sol por Tanyxiwè, as
modificações da paisagem terrestre, a mistura de tradições em Marani Hãwa ou o
surgimento das armas de fogo são narrados lado a lado, em um mesmo “tempo”,
provocando a ilusão de que os Javaé confundem a seqüência verdadeira dos fatos ou que os
atribuem a poderes extra-humanos.
A questão central do mito não é organizar os eventos na ordem temporal em que
realmente ocorreram, mas apontar a qualidade criativa e transformadora das relações entre
os diferentes tipos de humanos, capazes de produzir novas realidades onde antes existia
apenas o mesmo. O mito não propõe simplesmente que os primeiros fatos são
determinantes e ficam sendo repetidos, mas que as relações entre diferentes (o povo de
Tòlòra e os Wèrè, os Javaé atuais e os brancos, os homens e as mulheres etc) criam novas
realidades, antes inexistentes. Nesse sentido elas são “primeiras”, estabelecendo estruturas
profundas que se repetem até que uma nova estrutura, fruto de novas relações, seja
estabelecida. Não se trata de eventos, como em Sahlins (1996), mas de relações
fundadoras. O conceito de “primeiros tempos”, desse modo, não se refere a um único
tempo primordial em que todas as formas atuais teriam se iniciado e cristalizado em
conjunto, em oposição aos tempos posteriores de pura repetição. Ele pressupõe uma série
de transformações descontínuas, caracterizando-se como uma síntese de todas as vezes –
em vários momentos diferentes – que surgiu um novo padrão social e este adquiriu um
formato relativamente fixo.

898
Todas as mudanças estruturais são descritas na linguagem da procriação e, por isso,
são aglutinadas artificialmente nesse tempo do resguardo mítico. Dito de outro modo, as
várias transformações significativas ocorridas ao longo da História são descritas como se
fossem uma única grande transformação, localizada nesse “tempo antigo”, porque são
todas pensadas como resultados de uma relação de procriação entre a estrutura herdada
(masculino) e a alteridade existente (feminino), produzindo em cada caso tanto o resguardo
criativo (tempo de mistura e mudança) quanto o pós-resguardo restaurador (tempo de
purificação e repetição). O tempo antigo a que pertencem não é um tempo puramente
cronológico, medido em uma escala realista, mas um tempo qualitativo, definido por uma
mesma característica em comum (ver Turner, 1988b). O tempo passado, portanto, não é
uma realidade “natural” e independente da sociedade, mas é intrinsecamente social,
constituído pelas relações criativas entre os humanos.
A mitologia fornece uma teoria nativa a respeito da articulação entre continuidade e
transformação na estrutura social, organizando os fatos significativos do passado a partir
de critérios diferentes dos relatos históricos ocidentais. O mito não focaliza a enormidade
de mudanças contínuas e superficiais da estrutura ao longo do tempo, como em uma
narrativa histórica linear, mas as poucas mudanças estruturais mais profundas, como se a
História se desse aos saltos, de modo descontínuo, porém sem perder de vista aquilo que se
perpetua apesar das mudanças 18 . Dado que a fabricação histórica da sociedade é
interpretada aos moldes da fabricação corporal de um descendente, a relação entre
continuidade e transformação na estrutura social ao longo do tempo é percebida do mesmo
modo que essa relação se dá na passagem entre as gerações.
Em termos sintéticos, a cada nascimento de primogênito, principalmente, na linha
imaginária de primogênito para primogênito, tem-se uma alternância entre uma
transformação abrupta (a procriação em si, produto de uma relação substancial entre
diferentes que altera o corpo dos envolvidos) e a construção de uma continuidade da
ordem anterior (o esforço social de reconstruir ou fechar parcialmente os corpos,
neutralizando as misturas). A sucessão de primogênitos, ao longo das gerações, alterna
sucessivamente entre transformação e continuidade, corpo aberto e corpo fechado,
resguardo e pós-resguardo, afinidade e parentesco, mistura e purificação. A reprodução da
estrutura social – do corpo social – ao longo do tempo é percebida de acordo com o

18
Em sua introdução a uma coletânea sobre mito e história, Hill (1988) lembra que a História, para muitas
sociedades indígenas sul-americanas, “é compreendida em relação a alguns ‘picos’, ou períodos críticos de
mudança rápida, ao invés de uma suave progressão”.

899
mesmo modelo corporal e social descontínuo, segundo o qual as transformações profundas
produzidas pelas relações com os estrangeiros, em momentos diversos da História, são
seguidas de um esforço de reconstrução da estrutura anterior, que tem continuidade até que
uma nova interação significativa com a alteridade tenha lugar.
As transformações da estrutura são atribuídas a relações intensas ou “substanciais”
com o exterior, em oposição ao movimento oposto que se segue, de neutralização ou
controle das forças ou novidades incorporadas. A dialética entre alteração e reconstrução,
poder externo e controle interno, conflito e pacificação, selvagem e doméstico,
estranhamento (afinidade) e familiarização (parentesco), caos e retomada da ordem,
abertura e fechamento, criação original e repetição do mesmo, é revivida a cada grande
encontro histórico significativo, como entre o povo de Tòlòra e os Wèrè, os Javaé e a
sociedade nacional, em uma sucessão perene, porém descontínua, entre mudança e
repetição, como na linha que liga os primogênitos através dos tempos. Na relação
paradigmática entre Tanyxiwè (do povo Ijèwèhè) e seus afins (do povo Kuratanikèhè), a
afinidade, enquanto dívida em relação à esposa e aos sogros, leva o herói a transformar
radicalmente o mundo, o que é seguido de sua subida ao Céu, quando tenta retomar a
condição anterior, de parentesco mágico ou inexistência de relações. Mas ele não recupera
plenamente a inocência perdida, pois carrega para sempre a lembrança dolorosa da
experiência vivida no nível terrestre.
O que se pode atingir após cada mudança significativa não é o mesmo que existia
antes, mas a sua imitação imperfeita. O corpo de cada novo primogênito é identificado com
os ancestrais, ao mesmo tempo em que é fabricado com uma nova substância estrangeira,
proveniente do corpo feminino, fundindo-se o mesmo e o diferente a cada procriação. O
tempo da criação do novo é linear e irreversível, associado a mudanças definitivas, como
uma ferida que se abre na pele, enquanto o tempo posterior é cíclico e repetitivo, associado
à recomposição do que foi destruído, como a cura que deixa uma cicatriz. O tecido social e
corporal é recomposto, mas ele carrega consigo as marcas da ruptura e nunca será igual ao
original. Reconstruir aqui não significa repetir exatamente o que havia antes, mas repetir
aquilo que foi relativamente transformado, a partir de então, como se fosse o que sempre
existiu, mediando criativamente entre a mudança inevitável e o desejo de continuidade. Os
ditos que encerram os episódios míticos anunciando que desde então “tudo ficou sendo
repetido até os dias de hoje” nada mais são que uma afirmação dos poderes internos, parte

900
de uma estratégia de reconstrução da ordem alterada, equivalente às técnicas de purificação
utilizadas durante e após o resguardo dos genitores e do homicida.
Isso que se chama de “tradição”, portanto, não é uma cópia idêntica da primeira
criação ancestral nem a sua modificação constante, assim como um filho primogênito não é
a cópia perfeita de seus pais nem um corpo completamente diferente, mas uma mediação
entre os dois extremos, entre o que foi herdado (estrutura) e o que foi transformado de
forma controlada (agência), entre interior e exterior, fechamento e abertura, o semelhante e
o diferente. Nesse modelo corporal a respeito das transformações estruturais da sociedade,
está implícito que as formas sociais atuais são na verdade o produto de um encadeamento
anterior de várias “procriações” culturais ao longo do tempo, e não o produto original de
uma única transformação primordial, assim como um primogênito contém em seu corpo as
transformações vividas pelas substâncias das gerações anteriores. Embora cada nova
interação cultural seja simbolicamente um “novo início”, e por isso todas as interações
históricas são aglutinadas pela narrativa em um único tempo antigo, cada nova forma
produzida contém em si as transformações vividas anteriormente. A cada transformação
tem-se um movimento linear e irreversível para frente, que é seguido de um movimento
cíclico de retorno ao passado.
Mas o retorno não é alcançado plenamente, é sempre parcial, de modo que o
movimento da História se faz em espiral, conjugando a nostalgia da imortalidade perdida
com a evolução inexorável, o que significa que o poder de agência humano não está
restrito a um passado remoto, mas pertence a todas as épocas. A cultura/sociedade é
concebida como um corpo social que se perpetua ao mesmo tempo em que se transforma
com o passar do tempo, assim como as novas gerações trazem em si as substâncias dos
antepassados ao mesmo tempo em que as transformam. A cultura atual é constituída tanto
das transformações estruturais produzidas a cada interação procriadora significativa, de
vários “novos inícios” ao longo do tempo, quanto das tentativas posteriores de congelar o
que foi alterado ou domesticar o que foi incorporado. A cada mudança ou incorporação do
exterior (tempo linear), segue-se uma tentativa de repetição da estrutura modificada (tempo
cíclico), assim como cada primogênito que nasce como um estranho, em uma longa cadeia
de gerações ao longo do tempo, é identificado com os mesmos ancestrais que sempre
existiram 19 .

19
Em meu trabalho anterior (Rodrigues, 1993), houve uma ênfase maior na noção cíclica do tempo, por meio
da idéia de “vai e volta” expressa nas pinturas corporais (que também podem ser interpretadas como um

901
A reprodução da sociedade depende tanto do elo de aliança entre grupos diferentes
quanto do elo de parentesco entre os semelhantes. O vínculo social de afinidade entre
marido e mulher propicia em um primeiro momento a transformação dos corpos dos que se
relacionam, enquanto o vínculo social de parentesco entre os genitores e o filho, construído
posteriormente, propicia a continuidade relativa das formas anteriores. A afinidade é
associada à abertura dos corpos, à mistura de substâncias e à mudança da estrutura corporal
antiga, enquanto o parentesco é associado ao fechamento dos corpos, à ausência de contato
substancial entre as partes e à continuidade da mesma estrutura. Os primogênitos são os
detentores preferenciais dos bens rituais que simbolizam os corpos fechados – estão
identificados com eles – e a continuidade dos ancestrais imortais. A linha de transmissão
de bens rituais de primogênito para primogênito representa a transmissão do vínculo de
parentesco não substancial ou mágico entre as gerações, que é pensado como uma
antidescendência, na verdade, como uma negação da ligação substancial que leva às
transformações e à morte. O parentesco social, porém, é tanto a ligação substancial poluída
produzida pelas relações de afinidade quanto a tentativa de anulá-la social e ritualmente.
Na reprodução dos corpos, as relações com o exterior (exogamia) são relacionadas
à transformação da ordem antiga, enquanto a negação ritual dessas mesmas relações
(primogenitura) é relacionada à continuidade da ordem que existia antes. Na reprodução da
sociedade, as relações com os povos estrangeiros são relacionadas à transformação da
estrutura, enquanto a neutralização parcial dessas mesmas relações, o que se dá também
pelo discurso mítico, é relacionada à manutenção da estrutura anterior. A primogenitura,
cujas prerrogativas são associadas à casa natal e ao vínculo de parentesco matrilinear, de
um ponto de vista masculino, representa a continuidade da estrutura, enquanto a exogamia,
associada à casa dos afins, à troca com o exterior, representa a sua modificação. O
contraste entre hierarquia (primogenitura) e reciprocidade (exogamia) é complementar não
apenas no sentido estrutural, como entre os Bororo (Crocker, 1976) e os Tukano (C. Hugh-
Jones, 1979), mas também, ou melhor, principalmente, no sentido histórico. A estrutura
social é histórica porque é constituída, tanto no nível mais imediato (relações entre afins)
quanto no nível mais abrangente (relações entre povos diferentes), das relações de troca e
incorporação da alteridade, as quais produzem transformações estruturais.

movimento em espiral), o que tem relação com uma perspectiva teórica que não levava em consideração o
movimento da História.

902
A mitologia formula uma teoria inerentemente histórica a respeito da criação da
sociedade, indissociável de uma teoria da fabricação da pessoa, na acepção básica de
atribuir a produção e a reprodução da sociedade, hoje e sempre, à agência humana (Turner,
1988b). O mito Javaé não é apenas uma linguagem meramente classificatória e simbólica,
de origem inconsciente, que revela a estrutura profunda da mente humana (Lévi-Strauss,
1976, 1991), mas um modelo de ação histórica dos atores sociais, uma teoria da práxis que
inclui a relação entre reprodução e produção da sociedade. As narrativas não são dotadas
“de realidade própria e independente de todo e qualquer sujeito” (Lévi-Strauss, 1976:20),
mas mediadas pela consciência histórica dos sujeitos ao longo do tempo, que incorporam
na memória sobre o passado as transformações significativas vividas pela sociedade. Trata-
se de um modo de consciência sobre como se desenvolve a ação social ao longo do tempo,
cujos pressupostos, embora diferentes em alguns pontos cruciais daqueles que definem a
memória histórica ocidental, não invalidam o seu caráter também histórico.
O sujeito da ação criadora não é um indivíduo, mas é inteiramente humano, sendo
possível identificar tanto um conceito de “estrutura” quanto um de “agência” no mito,
enquanto um poder criativo que está acessível a todos os humanos em qualquer época. A
História é construída pelos homens por meio da relação complexa entre estrutura e agência,
entre o que é herdado e o que é modificado pelos agentes humanos, de modo que toda
estrutura social, como já disseram pioneiramente Giddens (1994) e Bourdieu (1995),
inspirados em Marx (1978), é constituída pela ação humana, que por sua vez é
condicionada pela estrutura herdada, reciprocamente. Para os Javaé, inspirados em um
modelo corporal da realidade, segundo o qual a criação do novo só é possível a partir de
uma fusão entre substâncias masculinas e femininas, o sujeito da ação social e histórica
transformadora não se reduz a uma consciência racional individual, sendo concebido mais
como uma relação criativa entre corpos ou sociedades diferentes.
O agente que conduz a ação tampouco é independente do meio ambiente que o
circunda, uma vez que se atribui ao caráter fecundante das relações humanas a capacidade
de criar toda a realidade visível existente. Quando o mito confere aos heróis míticos a
habilidade de criar o mundo material como o conhecemos, ele não está atribuindo poderes
fantásticos ou sobrenaturais aos humanos, mas apenas enfatizando a capacidade criativa
extraordinária das relações entre opostos, revivida a cada dia no milagre da procriação,
uma vez que todas as criações míticas existem por causa ou por meio de uma relação com
um Outro. Toda transformação é concebida como o fruto de um poder admirável, da fusão

903
criativa de substâncias masculinas e femininas em um novo ser. O sujeito que move a
História são as relações transformadoras entre diferentes, simbolicamente femininas, mas
também faz parte da ação histórica, seja no nível micro ou macro das relações sociais, o
empenho simbolicamente masculino de neutralizá-las ou domá-las posteriormente.
De acordo com algumas teorias ocidentais da práxis a respeito do processo
diacrônico de constituição das sociedades, que vai além de um “perpétuo desequilíbrio”
(Lévi-Strauss, 1993:212) dos opostos, o agente humano é levado a agir historicamente,
ainda que dentro de limites prévios fortemente padronizados, por diversas razões. Entre
elas está o conflito de classes (Marx, 1978), o fato de subjetividade criadora e imaterial
estar em contradição permanente com a realidade biológica determinante (Giddens, 1993),
o fato de que os homens têm a capacidade de manipular e improvisar estrategicamente,
conforme seus interesses, dentro das opções estruturais que lhes são apresentadas
(Bourdieu, 1995), a necessidade de reinterpretar com novas categorias os eventos
inusitados (Sahlins, 1995, 1996) ou a dialética inevitável entre os atores sociais e os
aspectos contraditórios inerentes a cada cultura, levando os primeiros, em suas
“micropráticas” diárias, a optar diante das contradições (Comaroff & Comaroff, 1992:38).
Segundo a mitologia Javaé, que aqui é concebida como uma teoria nativa da práxis,
como um modelo a respeito da relação histórica entre estrutura e agência, os seres
humanos não se opõem ao mundo natural, uma vez que toda alteridade é humanizada, mas
são os criadores da realidade social e material em que vivem. E as transformações
históricas não são o resultado de feitos heróicos de indivíduos especiais, de eventos
inusitados ou de pequenas ações individuais cotidianas, mas o produto de relações
extraordinárias entre sujeitos ou sociedades diferentes, simbolicamente identificados com o
masculino e o feminino, de modo que as mudanças se dão aos saltos, como sucessão
descontínua de novos padrões profundos.
A “estrutura” herdada é definida com um estado prévio e inalterado de não-
relações, sem diferença de gênero, associado ao extremo cosmológico do rio acima,
enquanto a “agência” humana criadora é definida como um movimento duplo generizado:
é tanto um estado de relações criativas não-desejadas com um Outro, uma descida rio
abaixo, em que a célula da ação desloca-se do indivíduo para uma relação, quanto a
intervenção posterior para recuperar parcialmente a estrutura modificada, uma tentativa de
subida rio acima. O mito é também um relato que demonstra consciência sobre a

904
arbitrariedade das culturas, pois o esforço de recriar a tradição pressupõe que a cultura não
é dada nem natural.
Esse movimento duplo desloca os humanos para o meio do cosmos, entre a tradição
herdada e as mudanças introduzidas, mas não se origina na atuação de uma consciência
coletiva transcendente ou reificada, nem na intervenção de forças sobrenaturais, pois é
produzido pelos agentes sociais em sua plena humanidade. As relações entre marido e
mulher, entre um homem e o irmão de sua esposa ou entre os Javaé e os estrangeiros são o
átomo relacional do processo criador da pessoa e da sociedade. Não se manifestam,
contudo, como relações de oposição estáticas transmitidas estruturalmente, ocupando uma
posição fixa no centro do mundo, mas como parte da dialética permanente entre exterior e
interior ou entre abertura e fechamento dos corpos que produz a História, na forma de uma
postura de mediação constante. A construção do parentesco, enquanto mediação entre as
relações com o exterior e a negação delas, é indissociável da própria construção da
sociedade, o corpo social composto artificialmente tanto de substâncias endógenas quanto
exógenas, do perecível e do permanente 20 .
Não há, portanto, como produzir uma etnografia sobre os Javaé que não seja
intrinsecamente histórica. A descrição da cultura/sociedade é também a descrição dos
processos históricos que a constituem por meio da incorporação inevitável do exterior, seja
nas relações mais imediatas com as mulheres e os afins, através da relação complementar
entre primogenitura e exogamia, seja nas relações mais amplas com os estrangeiros. Não
existem fronteiras demarcadas entre a reprodução interna da sociedade e a sua reprodução
dentro do contexto maior do contato com a sociedade envolvente, partes de um mesmo
processo. Mas a História, do ponto de vista das narrativas mitológicas Javaé, uma forma
legítima e reveladora de consciência histórica, não começou com a chegada do europeu ao
Brasil Central. Ela existe desde sempre, desde que os humanos ascenderam do Fundo das
Águas e Tanyxiwè iniciou a sua caminhada pelo magnífico vale do Araguaia.

20
Aqui também se pode dizer que “o povo nativo identifica mudança histórica com a criação do parentesco”,
como diz Gow (1991:204) sobre os Piro (Arawak) do baixo Urubamba. Em termos gerais, tanto aqui como lá
existe a consciência de que a História ocorre paralelamente aos processos de “misturas” corporais. Mas a
consciência história Javaé não começa após a chegada dos brancos e nem a mistura entre diferentes é
valorizada, como sugere Gow para os Piro.

905
Bibliografia

Agostinho, Pedro. 1974. Kwarìp: mito e ritual no alto Xingu. São Paulo: EPU/EDUSP.

Aires de Casal, Manuel. 1945 [1817]. Corografia Brasílica. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional.

Albert, Bruce. 1992. “A fumaça do metal: história e representações do contato entre os


Yanomami”. Anuário Antropológico 89: 151-189. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
⎯. 2000a. “Cosmologias do contato no Norte-Amazônico”. In Pacificando o Branco:
cosmologias do contato no Norte-Amazônico. Org. Bruce Albert & Alcida Rita Ramos. 9-
21. São Paulo: UNESP.
⎯. 2000b. “O outro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política
da natureza (Yanomami)”. In Pacificando o Branco: cosmologias do contato no Norte-
Amazônico. Org. Bruce Albert & Alcida Rita Ramos. 239-274. São Paulo: UNESP.

Albert, Bruce & Ramos, Alcida Rita (org.). 2000. Pacificando o Branco: cosmologias do
contato no Norte-Amazônico. São Paulo: UNESP.

Albisetti, César & Palha, Luiz. 1948. “Contribuições Missionárias”. Publicações da


Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia 2-3. Rio de Janeiro: Casa do Estudante
do Brasil.

Alencastre, José Martins Pereira de. 1864. “Annaes da Província de Goyaz”. Revista
Trimensal do Instituto Histórico, Geographico e Ethnographico do Brasil. Tomo 27: 5-
186, 229-349.
⎯. 1998a [1861]. “Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de Goyaz na
sessão ordinária de 1861 pelo Exmo. Presidente da Província José Martins Pereira de
Alencastre”. In Memórias Goianas 9: relatórios dos governos da Província de Goiás,
1861-1863. Goiânia: UCG.
⎯. 1998b [1862]. “Relatório lido na abertura d’Assembléia Legislativa de Goyaz pelo
Exmo. Sr. José Martins Pereira de Alencastre no dia 1° de junho de 1862”. In Memórias
Goianas 9: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1861-1863. Goiânia: UCG.

Almeida, Rita Heloísa de. 2003. Aldeamento do Carretão segundo os seus herdeiros
Tapuios: conversas gravadas em 1980 e 1983. Brasília: CGDOC/FUNAI.
⎯. 2006a. Dossiê: levantamento demográfico e socioeconômico nas aldeias Buridina e
Hurehawa e nos perímetros urbanos de Aruanã e Cocalinho, estados de Goiás e Mato
Grosso. Volume I. Brasília: CGEP/FUNAI.
⎯. 2006b. Relatório de viagem em visita às aldeias Karajá e Tapirapé do lado ocidental
da Ilha do Bananal situada entre os estados de Tocantins e Mato Grosso. Brasília:
CGEP/FUNAI.

906
⎯. 2007. Relatório de viagem às terras indígenas Xambioá, Santana do Araguaia e
Maranduba, nos estados Tocantins e Pará: Estudos demográficos e socioeconômicos com
populações Karajá, Guarani, Javaé e não-índios. Brasília: CGEP/FUNAI.

Argüelles, José. 1988 [1984]. Earth ascending: an illustrated treatise on the law governing
whole systems. Boulder: Shambhala.

Artiaga, Zoroastro. 1959. Dos índios do Brasil Central: trabalho organizado por força de
imposição legal contida no Decreto-lei que criou o Departamento Estadual de Cultura do
Estado (de Goiás). Uberaba: Estabelecimento Gráfico Triângulo.

Ataídes, Jézus Marco de. 2001. Documenta indígena do Brasil Central. Goiânia: UCG.

Atlas do Tocantins, 2001. Atlas do Tocantins: subsídios ao planejamento da gestão


territorial. Palmas: Governo do Estado do Tocantins.

Audrin, José M. 1946. Entre sertanejos e índios do norte: o Bispo missionário Dom
Domingos Carrérot. Rio de Janeiro: Agir.

Aureli, Willy. 1962a [1939]. Roncador. São Paulo: Leia.


⎯. 1962b [1952]. Bandeirantes d’Oeste. São Paulo: Leia.
⎯. 1963. Biu Marrandu (os Donos das Chuvas): penetração do rio Uabé, na Ilha do
Bananal. São Paulo: Leia.

Aytai, Desidério. 1977. “Um mito Karajá: a origem da chuva / 1”. Publicações do Museu
Municipal de Paulínia 1: 2-5.
⎯. 1978. “Um mito Karajá: a história do arco-íris”. Publicações do Museu Municipal de
Paulínia 5:20-21.
⎯. 1979a. “O sistema tonal da música Karajá”. Revista do Museu Paulista 26: 257-265.
⎯. 1979b. “Weheriá Karajá conta a lenda do sol”. Publicações do Museu Municipal de
Paulínia 8: 7-12.
⎯. 1979c. “Obstetrícia Karajá”. Publicações do Museu Municipal de Paulínia 10: 1-11.
⎯. 1980. “O mundo cromático Karajá”. Publicações do Museu Municipal de Paulínia 13:
9-25.
⎯. 1981. “Como os juré viraram macacos contado por Weheria Karajá”. Publicações do
Museu Municipal de Paulínia 16: 16-18.
⎯. 1982a. “Moça Karajá faz boneca de barro”. Publicações do Museu Municipal de
Paulínia 21: 15-20.
⎯. 1982b. “Da caderneta de campo do antropólogo: o fuso Karajá”. Publicações do Museu
Municipal de Paulínia 22: 17-25.
⎯. 1983a. “Sonho e morte no mundo Karajá / 1”. Publicações do Museu Municipal de
Paulínia 23: 9-20.
⎯. 1983b. “Sonho e morte no mundo Karajá / 2”. Publicações do Museu Municipal de
Paulínia 24: 12-27.
⎯. 1985. “Hawakati Karajá conta a história do boto”. Publicações do Museu Histórico de
Paulínia 28: 6-15.
⎯. 1986. “O Karajá em seu universo”. Revista do Museu Paulista 31.
907
⎯. 1988a. “Pintura somática Karajá / 1: tentativa para sua sistematização”. Publicações do
Museu Histórico de Paulínia 36: 9-28.
⎯. 1988b. “Pintura somática Karajá / 2”. Publicações do Museu Histórico de Paulínia 37:
33-49.
⎯. 1993a. “Contribuição ao estudo dos mitos Karajá / 1”. Publicações do Museu Histórico
de Paulínia 58: 47-51.
⎯. 1993b. “Contribuição ao estudo dos mitos Karajá / 2”. Publicações do Museu Histórico
de Paulínia 59: 57-60.

Baena, Antonio L. Monteiro. 1848. “Resposta ao Ilm. e Exm. Sr. Herculano Ferreira
Penna, Presidente da Província do Pará, sobre a communicação mercantil entre a dita
província e a de Goyaz, dada pelo Sr. tenente-coronel Antonio Ladisláo Monteiro Baena,
membro correspondente do Instituto”. Revista Trimensal de História e Geographia do
Instituto Histórico e Geographico Brasileiro (IHGB) 10: 80-107.

Baines, Stephen. 2000. “O xamanismo como história: censuras e memórias da pacificação


Waimiri-Atroari”. In Pacificando o Branco: cosmologias do contato no Norte-Amazônico.
Org. Bruce Albert & Alcida Rita Ramos. 311-345. São Paulo: UNESP.

Baldus, Herbert. 1937. “Mitologia Karajá e Terena”. In Ensaios de Etnologia Brasileira.


Série Brasiliana 101: 181-271. São Paulo: Nacional.
⎯. 1948. “Tribos da bacia do Araguaia e o Serviço de Proteção aos Índios”. Revista do
Museu Paulista 2: 137-168.
⎯. 1970. Tapirapé: tribo Tupi no Brasil Central. Série Brasiliana 17. São Paulo: Nacional.
⎯. 1976. “O xamanismo na aculturação de uma tribo tupi do Brasil Central”. In Leituras
de etnologia brasileira. Org. Egon Schaden. 455-485. São Paulo: Nacional.

Bamberger, Joan. 1979a [1974]. “O mito do matriarcado: por que os homens dominam as
sociedades primitivas?”. In A mulher, a cultura, a sociedade. Org. Michelle Z. Rosaldo &
Louise Lamphere. 233-252. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
⎯. 1979b. “Exit and voice in Central Brazil: the politics of flight in Kayapó society”. In
Dialectical societies: the Gê and Bororo of Central Brazil. Org. David Maybury-Lewis.
130-146. Cambridge: Harvard University Press.

Barcelos Neto, Aristóteles. 2004. Apapaatai: rituais de máscaras no alto Xingu. Tese de
Doutorado, Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo.

Barth, Fredrik. 1969. “Introduction”. In Ethnic groups and boundaries: the social
organization of culture difference. Org. Fredrik Barth. 9-38. Boston: Little, Brown and
Company.

Basso, Ellen B. 2001. “O que podemos aprender do discurso kalapalo sobre a ‘história
kalapalo’?”. In Os povos do Alto Xingu: história e cultura. Org. Bruna Franchetto &
Michael Heckenberger. 293-307. Rio de Janeiro: UFRJ.

Bastos, Rafael José de Menezes. 2001. “Ritual, história e política no Alto Xingu:
observações a partir dos kamayurá e do estudo da festa da jaguatirica (Jawari)”. In Os

908
povos do Alto Xingu: história e cultura. Org. Bruna Franchetto & Michael Heckenberger.
335-357. Rio de Janeiro: UFRJ.

Bauer, Matthias. 1971. Geistervorstellungen der Karajá (Brasilien). Dissertação de


Mestrado, Ludwig Maximilians Universitat, München.
⎯. 1984/1985. “Ritos de máscaras dos Javaé em transição”. Relatórios de pesquisas na
aldeia Javaé Canoanã, Ilha do Bananal, Goiás. Manuscrito. Brasília: FUNAI.
⎯. 1985. Das Heto hokã der Karajá in S. Isabel in Jahr 1984. Manuscrito. Brasília:
FUNAI.

Benton, William (ed). 1970. “Araguaia, Rio”. Enciclopédia Barsa 2: 99. São Paulo:
Melhoramentos.

Bonilla, Lydie Oiara. 1997. Um village sans cimetière: regard ethnographique sur
l’établissement d’une communauté Javaé dans un village de colons, Porto Txuiri, Ilha do
Bananal (Brésil Central). Mémoire de Maîtrise d’Ethnologie, Université de Paris X,
Nanterre.
⎯. 2000. Reproduzindo-se no mundo dos brancos: estruturas KARAJÁ em Porto Txuiri
(Ilha do Bananal, Tocantins). Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em
Antropologia do Museu Nacional, UFRJ.
⎯. 2003. “Continuité et transformations culturelles à Porto Txuiri: appropriation de
l’espace et du corps des Blancs par les Indiens KARAJÁ (Ilha do Bananal, Brésil
Central)”. In Éclats d’empire: du Brésil à Macao. Org. E. Carreira & e I. Muzart-Fonseca
dos Santos. Paris: Maisonneuve et Larose.

Borges, Mônica Veloso. 1997. As falas masculina e feminina em Karajá. Dissertação de


Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás.

Bourdieu, Pierre. 1995 [1972]. Outline of a theory of practice. Cambridge: Cambridge


University Press.

Brasil, Americano do. 1961 [1932]. Súmula da história de Goiás. Goiânia: Departamento
Estadual de Cultura.

Brasileiro, Francisco. 1938. Na serra do Roncador (vanguarda da Bandeira Anhanguera).


São Paulo: Nacional.

Brígido, Suely. 1997. “A imagem do princípio: a música e o ritual da Dança do Aruanã,


índios Karajá, Brasil Central”. Die Musikkulturen der indianer Brasiliens I. 271-395. Org.
Johannes Overath. Roma: Consociationis Intenationalis Musicae Sacrae Publicaciones.
⎯. 2002. “A expressão lírica das índias Karajás”. Revista da Academia Nacional de
Música 13:129-143. Rio de Janeiro.

Buchillet, Dominique. 2000. “Contas de vidro, enfeites de branco e ‘potes de malária’:


epidemiologia e representações de doenças infecciosas entre os Desana do alto Rio
Negro”. In Pacificando o Branco: cosmologias do contato no Norte-Amazônico. Org.
Bruce Albert & Alcida Rita Ramos. 113-142. São Paulo: UNESP.

909
Bueno, Marielys Siqueira. 1975. Macaúba: uma aldeia Karajá em contato com a
civilização. Dissertação de Mestrado, Instituto de Ciências Humanas e Letras da
Universidade Federal de Goiás.
⎯. 1987. A mulher Karajá de Macaúba. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Cardoso de Oliveira, Roberto. 1976. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo:
Pioneira.

Carneiro da Cunha, Manuela. 1978. Os mortos e os outros: uma análise do sistema


funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahó. São Paulo: Hucitec.
⎯. 1987a [1973]. “Lógica do mito e da ação: o movimento messiânico canela de 1963”. In
Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. 13-52. São Paulo: Brasiliense.
⎯. 1987b [1981]. “Escatologia entre os Krahó: reflexão, fabulação”. In Antropologia do
Brasil: mito, história, etnicidade. 63-82. São Paulo: Brasiliense.
⎯. 1987c [1983]. “Parecer sobre os critérios de identidade étnica. In Antropologia do
Brasil: mito, história, etnicidade. 113-119. São Paulo: Brasiliense.
⎯. 1992a. História dos índios no Brasil (org.). São Paulo: Companhia das Letras.
⎯. 1992b. “Introdução a uma história indígena”. In História dos índios no Brasil. Org.
Manuela Carneiro da Cunha. 9-24. São Paulo: Companhia das Letras.
⎯. 1992c. “Política indigenista no século XIX”. In História dos índios no Brasil. Org.
Manuela Carneiro da Cunha. 133-154. São Paulo: Companhia das Letras.
⎯. 1993. “Les études gé”. In La remontée de l’Amazone: anthropologie et histoire des
sociétés amazoniennes. Org. Philippe Descola & Anne C. Taylor. L’Homme 126-128: 77-
93.

Carsten, Janet (org.). 2000a. Cultures of relatedness: new approaches to the study of
kinship. Cambridge: Cambridge University Press.
⎯. 2000b. “Introduction: cultures of relatedness”. In Cultures of relatedness: new
approaches to the study of kinship. Org. Janet Carsten. 1-36. Cambridge: Cambridge
University Press.

Castelnau, Francis. 1949 [1850]. Expedição às regiões centrais da América do Sul. Série
Brasiliana 266. São Paulo: Nacional.

Castro de Faria, Luis. 1959. “A figura humana na arte dos índios Karajá”. In Publicações
avulsas do Museu Nacional 26. Rio de Janeiro.

Cavalcante, Marita Porto. 1992. “Fonologia do Karajá”. Revista do Museu Antropológico 1


(1):63-76. Goiânia: UFG.

Cavalleiro, Henrique. 2005. Relatório individual de viagem n° 006: Terra Indígena


Inawébohona, 10 a 15 de outubro de 2005. Brasília: FUNAI/PPTAL.

Chaim, Marivone Matos. 1974. Os aldeamentos indígenas na Capitania de Goiás.


Goiânia: Oriente.

910
Chernela, Janet M. 1988. “Righting history in the Northwest Amazon: myth, structure, and
history in an Arapaço narrative”. In Rethinking History and Myth: indigenous South
American perspectives on the past. Org. Jonathan D. Hill. 35-49. Urbana and Chicago:
University of Illinois Press.

Chernela, Janet M. & Leed, Eric J. 2000. “As perdas da história: identidade e violência
num mito Arapaço do alto Rio Negro”. In Pacificando o Branco: cosmologias do contato
no Norte-Amazônico. Org. Bruce Albert & Alcida Rita Ramos. 469-486. São Paulo:
UNESP.

Chiara, Wilma. 1970. Les poupées des indiens Karajá. Tese de Doutorado, Université de
Paris X, Nanterre.

Chodorow, Nancy. 1979 [1974]. “Estrutura familiar e personalidade feminina”. In A


mulher, a cultura, a sociedade. Org. Michelle Z. Rosaldo & Louise Lamphere. 65-94. Rio
de Janeiro: Paz e Terra.

Cícero de Assis, Antero. 1999a [1871]. “Relatório apresentado à Assembléia Legislativa


Provincial de Goiáz pelo Exmo. Sr. Dr. Antero Cícero de Assis, Presidente da Província,
em 1° de junho de 1871”. In Memórias Goianas 11: relatórios dos governos da Província
de Goiás, 1870-1874. Goiânia: UCG.
⎯. 1999b [1872]. “Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de Goiáz
pelo Exmo. Sr. Dr. Antero Cícero de Assis, Presidente da Província, em 1° de junho de
1872”. In Memórias Goianas 11: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1870-
1874. Goiânia: Editora UCG.
⎯. 1999c [1873]. “Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de Goiáz
pelo Exmo. Sr. Dr. Antero Cícero de Assis, Presidente da Província, em 1° de junho de
1873”. In Memórias Goianas 11: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1870-
1874. Goiânia: Editora UCG.
⎯. 1999d [1874]. “Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de Goiáz
pelo Exmo. Sr. Dr. Antero Cícero de Assis, Presidente da Província, em 1° de junho de
1874”. In Memórias Goianas 11: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1870-
1874. Goiânia: Editora UCG.
⎯. 1999e [1875]. “Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de Goiáz
pelo Exmo. Sr. Dr. Antero Cícero de Assis, Presidente da Província, em 1° de junho de
1875”. In Memórias Goianas 12: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1875-
1879. Goiânia: Editora UCG.
⎯. 1999f [1876]. “Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de Goiáz
pelo Exmo. Sr. Dr. Antero Cícero de Assis, Presidente da Província, em 1° de junho de
1876”. In Memórias Goianas 12: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1875-
1879. Goiânia: Editora UCG.

Clastres, Hélène. 1995 [1975]. The Land-Without-Evil: Tupí-Guaraní prophetism. Urbana


and Chidago: University of Illinois Press.

Clastres, Pierre. 1982 [1974]. A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco
Alves.

911
Coelho de Souza, Marcela Stockler. 1995. “Da complexidade do elementar: para uma
reconsideração do parentesco xinguano”. In Antropologia do parentesco: estudos
ameríndios. Org. Eduardo Viveiros de Castro. 121-206. Rio de Janeiro: UFRJ.
⎯. 2004. “Parentes de sangue: incesto, substância e relação no pensamento Timbira”.
Mana 10 (1): 25-59.

Cohn, Bernard. S (org.). 1994a [1980]. “History and anthropology: the state of play”. In An
anthropologist among the historians and other essays. 18-49. Oxford: Oxford University
Press.
⎯. 1994b [1981]. “Anthropology and history in the 1980s: towards a rapprochement”
(org.). In An anthropologist among the historians and other essays. 50-77. Oxford: Oxford
University Press.

Comaroff, John & Comaroff, Jean. 1992. Ethnography and the historical imagination.
Boulder: Westview Press.

Correa, Marcos Sá. “O parque nacional do bom selvagem”. Jornal O Estado de São Paulo,
27.4.2006.

Costa Júnior, Plácido. 1999. Relatório ambiental à identificação e delimitação da Terra


Indígena Inãwébohona (anteriormente denominada “Boto Velho”). Brasília:
FUNAI/PPTAL.

Coser, Lewis A (org.). 1992a. Maurice Halbwachs: on collective memory. Chicago: The
University of Chicago Press.
⎯. 1992b. “Introduction: Maurice Halbwachs 1877-1945”. In Maurice Halbwachs: On
collective memory. Org. Lewis A. Coser. 1-34. Chicago: The University of Chicago Press.

Coudreau, Henri. 1897. Voyage au Tocantins-Araguaya: 31 décembre 1896 – 23 mai 1897.


Paris: A. Lahure Imprimeur-Éditeur.

Couto de Magalhães. José Vieira. 1957 [1863]. Viagem ao Araguaia. Série Brasiliana 28.
São Paulo: Nacional.
⎯. 1975 [1876]. O selvagem. São Paulo: Itatiaia.
⎯. 1998 [1863]. “Relatório apresentado à Assembléia Legislativa de Goyaz pelo
Presidente da Província, o Exmo. Sr. Dr. José Vieira Couto de Magalhães, no dia 1° de
junho de 1863”. In Memórias Goianas 9: relatórios dos governos da Província de Goiás,
1861-1863. Goiânia: UCG.

Crespo, Luiz Augusto. 1999 [1879]. “Relatório apresentado pelo Exm. Sr. Dr. Luiz
Augusto Crespo ao 1° Vice-Presidente, o Exmo. Sr. Dr. Theodoro Rodrigues de Moraes,
por ocasião de passar-lhe a administração da província, em 11 de janeiro de 1879”. In
Memórias Goianas 12: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1875-1879.
Goiânia: UCG.

Crocker, Jon Christopher. 1976 [1969]. “Reciprocidade e hierarquia entre os Bororo


orientais”. In Leituras de etnologia brasileira. Org. Egon Schaden. 164-185. São Paulo:
Nacional.
912
⎯. 1979. “Selves and alters among the eastern Bororo”. In Dialectical societies: the Gê
and Bororo of Central Brazil. Org. David Maybury-Lewis. 249-300. Cambridge: Harvard
University Press.
⎯. 1985. Vital souls: Bororo cosmology, natural symbolism, and shamanism. Tucson:
University of Arizona Press.

Cruvinel, Noraldino Vieira. 1976. Relatório: P.I. Canoanã, Ilha do Bananal, GO. Brasília:
FUNAI.

Cruz, Guilherme Francisco. 2001 [1886]. “Relatório apresentado à Assembléia Legislativa


Provincial de Goyaz a 8 de abril de 1886 pelo Exm. Presidente da Província Dr. Guilherme
Francisco Cruz”. In Memórias Goianas 14: relatórios dos governos da Província de
Goiás: 1882-1889. Goiânia: UCG.

Cruz, Rodrigo Ferreira. 2005. Deuses em guerra: como o contato missionário tem
modificado o universo cosmológico e social dos índios Karajá. Monografia de Graduação
do curso de História do UNICEUB, Brasília.

Cruz Machado, Antonio Cândido da. 1997a [1854]. “Relatório que à Assembléia
Legislativa Provincial de Goyaz apresentou na sessão ordinária de 1854 o Presidente da
Província Antonio Cândido da Cruz Machado”. In Memórias Goianas 6: relatórios dos
governos da Província de Goiás, 1854-1856. Goiânia: UCG.
⎯. 1997b [1855]. “Relatório que à Assembléia Legislativa Provincial de Goyaz apresentou
na sessão ordinária de 1855 o Exm. Presidente da Província Antonio Cândido da Cruz
Machado”. In Memórias Goianas 6: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1854-
1856. Goiânia: UCG.

Cunha, Boaventura Ribeiro da. 1953. “Índios do Brasil: das cabeceiras do Rio Xingu, rios
Araguáia e Oiapoque”. In Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI) 2. Org.
Cândido S. M. Rondon. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura.

Cunha Mattos, Raymundo José da Cunha. 1836. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e
Maranhão pelas províncias de Minas Gerais e Goyaz. Tomo II. Rio de Janeiro.
⎯. 1979 [1874]. Corografia histórica da Província de Goiás. Goiânia: SUDECO.

Da Matta, Roberto. 1970. “Mito e antimito entre os Timbira”. In Mito e linguagem social.
Org. Claude Lévi-Strauss & Roberto Cardoso de Oliveira. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro.
⎯. 1976. Um mundo dividido: a estrutura social dos índios Apinayé. Petrópolis: Vozes.
⎯. 1977 [1973]. Ensaios de antropologia estrutural. Petrópolis: Vozes.
⎯. 1979. “The Apinayé relationship system: terminology and ideology”. In Dialectical
societies: the Gê and Bororo of Central Brazil. Org. David Maybury-Lewis. 83-127.
Cambridge: Harvard University Press.
⎯. 1982. A divided world: Apinayé social structure. Cambridge: Harvard University Press.
⎯. 1983 [1981]. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes.

913
Davis, Irvine. 1968. “Some Macro-Jê relationships”. International Journal of American
Linguistics 1 (34): 42-47.

Descola, Philippe. 1992. “Societies of nature and the nature of society”. In Conceptualizing
society. Org. Adam Kuper. 107-126. London and New York: Routledge.
⎯. 1994 [1986]. In the society of nature: a native ecology in Amazonia. Cambridge:
Cambridge University Press.

Descola, Philippe & Taylor, Anne Christine (org.). 1993. La remontée de l’Amazone:
anthropologie et histoire des sociétés amazoniennes. L’Homme 126-128.

Dietschy, Hans. 1960. “Note a propos des danses des Caraja (1): ‘Pas de deux’, amitiè
formelle et prohibition de l’inceste”. Société suisse des Américanistes (SSA)19: 1-5.
Genève: Musée et Institut d’Ethnographie.
⎯. 1974. “L’homme honteux et la femme-crampon: en marge des ‘Mythologiques’ de
Claude Lévi-Strauss”. Société suisse des Américanistes 38: 35-40. Genève: Musée
d’Ethnographie.
⎯. 1976. “Cultura como sistema psico-higiênico”. In Leituras de Etnologia Brasileira.
Org. Egon Schaden. 315-322. São Paulo: Nacional.
⎯. 1977. “Espace social et ‘affiliation par sexe’ au Brésil Central (Karajá, Tapirapé,
Apinayé, Mundurucu). Actes du XLIIe Congrès International des Américanistes 2: 297-
307. Paris.
⎯. 1978. “Graus de idade entre os Karajá do Brasil Central”. Revista de Antropologia 21:
69-88. 1ª parte. Universidade de São Paulo.

Dillon, Mary & Abercrombie, Thomas. 1988. “The destroying Christ: an Aymara myth of
conquest”. In Rethinking History and Myth: indigenous South American perspectives on
the past. Org. Jonathan D. Hill. 50-77. Urbana and Chicago: University of Illinois Press.

Dole, Gertrude E. 2001. “Retrospectiva da história comparativa das culturas do Alto


Xingu: um esboço das origens culturais alto-xinguanas”. In Os povos do Alto Xingu:
história e cultura. Org. Bruna Franchetto & Michael Heckenberger. 63-76. Rio de Janeiro:
UFRJ.

Donahue, George. 1977. “Um mito Karajá: o veado e o fumo”. Publicações do Museu
Municipal de Paulínia 2: 1-4.
⎯. 1978. “O mito Karajá dos dois poderosos e dos dois periquitos”. Publicações do Museu
Municipal de Paulínia 6: 1-4.
⎯. 1982. A contribution to the ethnography of the Karajá indians of Central Brazil. Tese
de Doutorado, Department of Anthropology, University of Virginia.

Donahue, George & Donahue, Maria Helena. 1979. “Ijanatu e Alubederi: contos Karajá”.
Publicações do Museu de Paulínia 9: 1-7.
⎯. 1981. “O mito Karajá da estrela-amante”. Publicações do Museu Municipal de
Paulínia 15: 1-12.

Dumont, Louis. 1985 [1983]. O individualismo: uma perspectiva antropológica da


ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco.
914
⎯. 1990 [1983]. Affinity as a value: marriage alliance in South India, with comparative
essays on Australia. Chicago and London: The University of Chicago Press.

Duroure, J. 1936. Sur la fleuve de la mort. Paris: Emmanuel.Vitte Editeur.

Durkheim, Emile. 1965 [1915]. The elementary forms of the religious life. New York: The
Free Press.
⎯. 1982 [1894]. The rules of the sociological method. New York: The Free Press.

Ehrenreich, Paul. 1948. “Contribuições para a Etnologia do Brasil”. Revista do Museu


Paulista 2: 7-136.

Eliade, Mircea. 2002 [1949]. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes.

Espírito Santo, Felicíssimo. 2001 [1889]. “Relatório com que ao Exmo. Sr. Dr. Elyzio
Firmo Martins presidente desta província entregou a administração da mesma o Exmo. Sr.
1° Vice-Presidente Brigadeiro Felicíssimo Espírito Santo em 6 de março de 1889”. In
Memórias Goianas 14: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1882-1889.
Goiânia: Editora UCG.

Fausto, Carlos. 1992. “Fragmentos de história e cultura tupinambá: da etnologia como


instrumento crítico de conhecimento etno-histórico”. In História dos índios no Brasil. Org.
Manuela Carneiro da Cunha. 381-396. São Paulo: Companhia das Letras.
⎯. 1999. “Of enemies and pets: warfare and shamanism in Amazonia”. American
Ethnologist 26 (4): 933-56.
⎯. 2002. “Banquete de gente: comensalidade e canibalismo na Amazônia”. Mana 8 (2): 7-
43.

Fénelon Costa, Maria Heloísa. 1978. A arte e o artista na sociedade Karajá. Brasília:
FUNAI.

Fénelon Costa, Maria Heloísa & Malhano, Hamilton Botelho. 1987. “A habitação indígena
brasileira”. In Suma Etnológica Brasiliera 2: tecnologia indígena. Org. Darcy Ribeiro. 27-
92. Petrópolis: Vozes.

Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. 1986. Novo dicionário Aurélio. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.

Ferreira, João Carlos Vicente. 2001. Mato Grosso e seus municípios. Cuiabá: Buriti.

Ferreira, Manoel Rodrigues. 1977. As bandeiras do Paraupava. São Paulo: Prefeitura


Municipal.

Fialho, Maria Helena S. da Silva. 1998. Neologismos em Karajá. Dissertação de


especialização, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Fleury, Antonio de Pádua. 1996 [1848]. “Relatório que à Assembléia Legislativa de Goyaz
apresentou na sessão ordinária de 1848 o Exm. Vice-Presidente da mesma Provícia
915
Antonio de Pádua Fleury”. In Memórias Goianas 4: relatórios dos governos da Província
de Goiás, 1845-1849. Goiânia: UCG.

Fonseca, Márcia Helena da. 2006. Rebanho cadastrado na Ilha do Bananal no período da
Campanha de Vacinação contra febre aftosa/2006. Memorando 519, de 29.12.2006,
ADAPEC, Governo do Estado do Tocantins.

Fonseca, José Pinto da. 1867. “Carta que o Alferes José Pinto da Fonseca escreveu ao
Exm. General de Goyazes, dando-lhe conta do descobrimento de duas nações de índios,
dirigida do sítio onde portou”. Revista Trimensal de História e Geographia do Instituto
Histórico e Geographico Brasileiro (IHGB) 8: 376-390. Rio de Janeiro.

Fortune, David Lee. 1973. “Gramática Karajá: um estudo preliminar em forma


transformacional”. Série Lingüística 1:101-161. Brasília: Summer Institute of Linguistics.
⎯. 1988. The category of person and associated semantico-grammar of the Karajá pro-
nominal system. Amerindia 13: 75-85.

Fortune David L. & Fortune, Gretchen. 1975. “Karajá men’s – women’s speech differences
with social correlates”. Arquivos de Anatomia e Antropologia 1 (1):110-124. Rio de
Janeiro: Instituto de Antropologia Prof. Souza Marques.
⎯. 1986. Relatório geral sobre educação bicultural Karajá. Brasília: Summer Institute of
Linguistics.

Franchetto, Bruna. 1992. “‘O aparecimento dos caraíba’: para uma história kuikuro e alto-
xinguana”. In História dos índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha. 339-356.
São Paulo: Companhia das Letras.
⎯. 2001. “Línguas e história no Alto Xingu”. In Os povos do Alto Xingu: história e
cultura. Org. Bruna Franchetto & Michael Heckenberger. 111-156. Rio de Janeiro: UFRJ.

Franchetto, Bruna & Heckenberger, Michael J. (org.). 2001a. Os povos do Alto Xingu:
história e cultura. Rio de Janeiro: UFRJ.
⎯. 2001b. “Introdução: história e cultura xinguana”. In Os povos do Alto Xingu: história e
cultura. Org. Bruna Franchetto & Michael Heckenberger. 7-18. Rio de Janeiro: UFRJ.

FUNAI. 1994. Laudos de vistoria e avaliação de benfeitoria. Gurupi: Administração


Executiva Regional da FUNAI.
⎯. 1999. Plano de operação, fiscalização e vigilância do Parque Indígena do Araguaia,
Ilha do Bananal, 1999. Gurupi: Administração Executiva Regional da FUNAI.

FUNASA, 2007. Indicadores demográficos. Formoso do Araguaia: Pólo Base da Fundação


Nacional da Saúde.

Gallais, Estevão Maria. 1942. O apóstolo do Araguaia: Frei Gil Vilanova, missionário
dominicano. Prelazia de Conceição do Araguaia. São Paulo: Gráfica da “Revista dos
Tribunais”.
⎯. 1954. Entre os índios do Araguaia. Salvador: Progresso.

916
Galvão, Eduardo. 1979. Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil. Rio de
Janeiro: Paz e Terra.

Giddens, Anthony. 1993 [1976]. New rules of sociological method. Cambridge: Polity
Press.
⎯. 1994 [1979]. Central problems in social theory: action, structure and contradiction in
social analysis. Berkeley and Los Angeles: University of California Press.

Gillison, Gillian. 2002 [1980]. “Imagens of nature in Gimi thought”. In Nature, culture and
gender. Org. Carol MacCormack & Marylin Strathern. 143-173. Cambridge: Cambridge
University Press.

Gomes, Mércio Pereira. 1988. Os índios e o Brasil: ensaio sobre um holocausto e sobre
uma nova possibilidade de convivência. Petrópolis: Vozes.

Gomes de Siqueira, João Bonifácio. 1998 [1863]. “Relatório com que o Exmo. Sr. Dr. João
Bonifácio Gomes de Siqueira, Vice-Presidente da Província de Goyaz, passou a
administração da mesma ao Exmo. Sr. Dr. José Vieira Couto de Magalhães”. In Memórias
Goianas 9: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1861-1863. Goiânia: UCG.

Gow, Peter. 1989. “The peverse child: desire in a native amazonian subsistence economy”.
Man 24 (4): 567-582.
⎯. 1991. Of mixed blood: kinship and history in Peruvian Amazonia. Oxford: Clarendon
Press.

Gregor, Thomas. 1977. Mehinaku: the drama of daily life in a Brazilian Indian village.
Chicago: The University of Chicago Press.
⎯. 1985. Anxious Pleasures: the sexual lives of an Amazonian people. Chicago: The
University of Chicago Press.
⎯. 1992. “A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas”. In História dos
índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha. 87-102. São Paulo: Companhia das
Letras.
⎯. 2001. “Casamento, aliança e paz intertribal”. In Os povos do Alto Xingu: história e
cultura. Org. Bruna Franchetto & Michael Heckenberger. 175-192. Rio de Janeiro: UFRJ.

Gutemberg, Marinoni Almiro. 1975. Tainá Racan, a Estrela d’Alva Carajá: crônicas,
lendas, mitos e costumes dos índios Carajás, gramática histórica e vocabulário indígena.
Goiânia: Oriente.

Heckenberger, Michael J. 2001a. “Estrutura, história e transformação: a cultura xinguana


na longue durée, 1000-2000 d.C.”. In Os povos do Alto Xingu: história e cultura. Org.
Bruna Franchetto & Michael Heckenberger. 21-62. Rio de Janeiro: UFRJ.
⎯. 2001b. “Epidemias, índios bravos e brancos: contato cultural e etnogênese no Alto
Xingu”. In Os povos do Alto Xingu: história e cultura. Org. Bruna Franchetto & Michael
Heckenberger. 77-110. Rio de Janeiro: UFRJ.
⎯. 2002. “Rethinking the Arawakan diaspora: hierarchy, regionality, and the Amazonian
formative”. In Comparative Arawakan Histories: rethinking language family and culture

917
in Amazonia. Org. Jonathan D. Hill & Fernando Santos-Granero. 99-122. Urbana and
Chicago: University of Illinois Press.

Hill, Jonathan D. 1988a (org.). Rethinking History and Myth: indigenous South American
perspectives on the past. Urbana and Chicago: University of Illinois Press.
⎯. 1988b. “Introduction: myth and history”. In Rethinking History and Myth: indigenous
South American perspectives on the past. Org. Jonathan D. Hill. 1-18. Urbana and
Chicago: University of Illinois Press.
⎯. 2000. “‘Musicalizando’ o Outro: ironia ritual e resistência étnica Wakuénai
(Venezuela)”. In Pacificando o Branco: cosmologias do contato no Norte-Amazônico.
Org. Bruce Albert & Alcida Rita Ramos. 347-374. São Paulo: UNESP.
⎯. 2002. “Shamanism, colonialism, and the Wild Woman: fertility cultism and historical
dynamics in the Upper Rio Negro region”. In Comparative Arawakan Histories: rethinking
language family and culture in Amazonia. Org. Jonathan D. Hill & Fernando Santos-
Granero. 223-247. Urbana and Chicago: University of Illinois Press.
Hill, Jonathan D. & Santos-Granero, Fernando (org.) 2002a. Comparative Arawakan
Histories: rethinking language family and culture in Amazonia. Urbana and Chicago:
University of Illinois Press.
⎯. 2002b. “Introduction”. In Comparative Arawakan Histories: rethinking language
family and culture in Amazonia. Org. Jonathan D. Hill & Fernando Santos-Granero. 1-22.
Urbana and Chicago: University of Illinois Press.

Hill, Jonathan D. & Wright, Robin M. 1988. “Time, narrative, and ritual: historical
interpretations from an Amazonian society”. In Rethinking History and Myth: indigenous
South American perspectives on the past. Org. Jonathan D. Hill. 78-105. Urbana and
Chicago: University of Illinois Press.

Hugh-Jones, Christine. 1979. From the Milk River: spatial and temporal processes in
Northwest Amazonia. Cambridge: Cambridge University Press.

Hugh-Jones, Stephen. 1979. The palm and the pleiades: initiation and cosmology in
Northwest Amazonia. Cambridge: Cambridge University Press.
⎯. 1988. “The gun and the bow: myths of White Men and Indians”. L’Homme 106-107:
138-155.
⎯. 1993. “Clear descent or ambiguous houses? A re-examination of Tukanoan social
organization”. In La remontée de l’Amazone: anthropologie et histoire des sociétés
amazoniennes. Org. Philippe Descola & Anne C. Taylor. L’Homme 33 (126-128): 95-120.
⎯. 2002. “Nomes secretos e riqueza visível: nominação no noroeste amazônico”. Mana 8
(2): 45-67.

IBAMA. 2006. Memória da reunião realizada na aldeia Boto Velho na Ilha do Bananal
em 30/05/2006. Palmas: Superintendência do IBAMA.

Ireland, Emilienne. 1988. “Cerebral savage: the Whiteman as symbol of cleverness and
savagery in Waurá myth”. In Rethinking History and Myth: indigenous South American
perspectives on the past. Org. Jonathan D. Hill. 157-173. Urbana and Chicago: University
of Illinois Press.

918
⎯. 2001. “Noções waurá de humanidade e identidade cultural”. In Os povos do Alto
Xingu: história e cultura. Org. Bruna Franchetto & Michael Heckenberger. 249-286. Rio
de Janeiro: UFRJ.

Jackson, Jean E. 1983. The Fish People: linguistic exogamy and Tukanoan identity in
northwest Amazonia. Cambridge: Cambridge University Press.
⎯. 1988. “Gender relations in the Northwest Amazon”. Antropológica, 70: 17-38.

Kaplan, Joanna Overing. 1981. “Review article: amazonian anthropology”. Journal of


Latin American Studies 13 (1): 151-165. Cambridge: Cambridge University Press.
⎯. 1984. “Dualisms as an expression of difference and danger: marriage exchange and
reciprocity among the Piaroa of Venezuela”. In Marriage practices in Lowland South
America. Org. Kenneth M. Kensinger. 127-155. Urbana and Chicago: University of Illinois
Press.

Karasch, Mary. 1992. “Catequese e cativeiro: política indigenista em Goiás, 1780-1889”.


In História dos índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha. 397-412. São Paulo:
Companhia das Letras.

Kelli Luciani, José Antônio. 2001. “Fractalidade e troca de perspectivas”. Mana 7 (2): 95-
131.

Krause, Fritz. 1940a [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São
Paulo 69: 213-232.
⎯. 1940b [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo
70: 135-158.
⎯. 1940c [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo 71:
113-128.
⎯. 1941a [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo 74:
299-319.
⎯. 1941b [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo 76:
249-262.
⎯. 1941c [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo 78:
233-256.
⎯. 1941d [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo 79:
261-279.
⎯. 1941e [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo 80:
187-207.
⎯. 1942a [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo 81:
283-298.
⎯. 1942b [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo 89:
157-172.
⎯. 1942c [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo
84: 173-158.
⎯. 1942d [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo
85: 159-174.

919
⎯. 1943a [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo
88: 183-205.
⎯. 1943b [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo
90: 179-193.
⎯. 1943c [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo
91: 167-180.
⎯. 1944 [1911]. “Nos sertões do Brasil”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo 95:
70-80.

La Falaise, Rayliane de. 1939. Caraja ... kou! Trois ans chez les indiens du Brèsil. Paris:
Plon.

Lago, Antônio Florêncio Pereira do. 1931 [1875]. “Relatório dos estudos da Commissão
Exploradora dos rios Tocantins e Araguaya apresentado pelo Major do Corpo do Estado
Maior de 1ª classe Antônio Florêncio Pereira do Lago, chefe da commissão, agosto de
1875”. In Goyaz. Org. Visconde de Taunay. Anexo. São Paulo: Melhoramentos.

Lasmar, Cristiane. 1999. “Mulheres indígenas: representações”. In Dossiê Mulheres


Indígenas. Org. Bruna Franchetto. Estudos Feministas 7 (1, 2): 143-156. IFCS/UFRJ,
CFH/UFSC.

Latour, Bruno. 1994 [1991]. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34.

Lave, Jean. 1979. “Cycles and trends in Krikatí naming practices”. In Dialectical societies:
the Gê and Bororo of Central Brazil. Org. David Maybury-Lewis. 16-44. Cambridge:
Harvard University Press.

Lea, Vanessa Rosemary. 1993. “Casas e casas Mebengokre (Jê)”. In Amazônia: etnologia e
história indígena. Org. Eduardo Viveiros de Castro & Manuela Carneiro da Cunha. 265-
282. São Paulo: NHII-USP/FAPESP.
⎯. 1999. “Desnaturalizando gênero na sociedade Mabengôkre”. In Dossiê Mulheres
Indígenas. Org. Bruna Franchetto. Estudos Feministas 7 (1, 2): 176-194. IFCS/UFRJ,
CFH/UFSC.

Leite Moraes, Joaquim de Almeida. 2001 [1882]. “Relatório que ao 1° Vice-Presidente Dr.
Theodoro Rodrigues de Moraes apresentou na occasião de passar a administração da
Província de Goyaz o presidente Dr. Joaquim de Almeida Leite Moraes – 1882”. In
Memórias Goianas 14: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1882-1889.
Goiânia: UCG.

Lévi-Strauss, Claude. 1944. “Reciprociy and Hierarchy”. American Anthropologist 46:


266-268.
⎯. 1975 [1958]. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
⎯. 1976 [1962]. O pensamento selvagem. São Paulo: Nacional.
⎯. 1982 [1967]. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes.
⎯. 1991 [1971]. O cru e o cozido: mitológicas. São Paulo: Brasiliense.
⎯. 1993 [1991]. História de Lince. São Paulo: Schwarcz.

920
Lima Brito, Georthon Aurélio. 2007. Relatório anexo ao Programa anual de trabalho:
proteção às terras indígenas 2007. Administração Executiva Regional de Gurupi:
SEPIMA/FUNAI.

Lima Filho, Manuel Ferreira. 1991. Os filhos do Araguaia: reflexões etnográficas sobre o
Hetohoky Karajá, um rito de iniciação masculina. Dissertação de Mestrado, Departamento
de Antropologia da Universidade de Brasília.
⎯. 1994. Hetohoky: um rito Karajá. Goiânia: UCG.
⎯. 1999. “Karajá”. In Enciclopédia dos povos indígenas. www.socioambiental.org. São
Paulo: ISA.
⎯. 2001. O desencanto do oeste. Goiânia: UCG.
⎯. 2006. “Karajá de Aruanã”. In Índios de Goiás: uma perspectiva histórico-cultural.
Org. Marlene Castro O. de Moura. 135-152. Goiânia: UCG.

Lima Filho, Manuel Ferreira & Alvarenga Nunes, Maria Eugênia Brandão. 1992.
Cerâmica Karajá e outras notas etnográficas. Goiânia: UCG.

Lipkind, William. 1940. “Carajá cosmography”. The Journal of American Folklore 53


(210): 248-251.
⎯. 1948. “The Carajá”. Handbook of South American Indians 3: 179-191. Washington:
Smithsonian Institution.

Lopes da Silva, Aracy. 1992. “Dois séculos e meio de história xavante”. In História dos
índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha. 357-378. São Paulo: Companhia das
Letras.

MacCallum, Cecília. 1999. “Aquisição de gênero e habilidades produtivas: o caso


Kaxinawa”. In Dossiê Mulheres Indígenas. Org. Bruna Franchetto. Estudos Feministas 7
(1, 2): 157-175. IFCS/UFRJ, CFH/UFSC.
⎯. 2001. Gender and sociality in Amazonia: how real people are made. Oxford: Berg.

MacCormack, Carol P. 2002 [1980]. “Nature, culture and gender: a critique”. In Nature,
culture and gender. Org. Carol MacCormack & Marylin Strathern. 1-24. Cambridge:
Cambridge University Press.

Machado, Othon. 1947. Os Carajás (inan-son-uéra): contribuição ao estudo dos indígenas


brasileiros. Comissão Rondon 104. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.

Maia, Marcus A. R. 1986. Aspectos tipológicos da língua Javaé. Dissertação de Mestrado,


Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
⎯. 1997. “Poetica oral Karajá: los Ibruhuky”. Actas 3: 435-442. Jornada de Lingüística
Aborigen. Buenos Aires: UBA.
⎯. 2001. “Representações da educação Karajá”. Revista Educação e Sociedade 22 (75).
Campinas: CEDES.
⎯. 2002. “Werè Tyyritina: alfabetização na língua javaé”. In Educação Escolar Indígena
4. Org. Marilda Almeida Marfan. 122-128. Brasília: MEC/SEF.

921
⎯. 2004. “Evidential processes in Karaja”. In Sur le médiatif II. Org. Guentcheva, Z. &
Landaburu, J. Paris: CNRS.

Malcher, José M. Gama. 1964. “Índios: grau de integração na comunidade nacional, grupo
lingüístico, localização”. Conselho Nacional de Proteção aos Índios 1. Rio de Janeiro:
Ministério da Agricultura.

Marx, Karl. 1978 [1972]. “The eighteenth brumaire of Louis Bonaparte”. In The Marx-
Engels reader. Org. Robert C. Tucker. 594-617. New York: Norton.

Maybury-Lewis, David. 1979a. Dialectical societies: the Gê and Bororo of Central Brazil
(org.). Cambridge: Harvard University Press.
⎯. 1979b. “Cultural categories of the Central Gê”. In Dialectical societies: the Gê and
Bororo of Central Brazil. Org. David Maybury-Lewis. 218-246. Cambridge: Harvard
University Press.
⎯. 1979c. “Conclusion”. In Dialectical societies: the Gê and Bororo of Central Brazil.
Org. David Maybury-Lewis. 301-313. Cambridge: Harvard University Press.
⎯. 1984 [1967]. A sociedade Xavante. Rio de Janeiro: Francisco Alves. ⎯. 1989a.
“Introduction: the quest for harmony”. In The attraction of opposites. Org. David
Maybury-Lewis & Uri Almagor. 1-17. Ann Arbor: The University of Michigan Press.
⎯. 1989b. “Social theory and social practice: binary systems in Central Brazil”. In The
attraction of opposites. Org. David Maybury-Lewis & Uri Almagor. 97-116. Ann Arbor:
The University of Michigan Press.

Melatti, Julio Cezar. 1976. “Nominadores e genitores: um aspecto do dualismo Krahô”. In


Leituras de etnologia brasileira. Org. Egon Schaden. 139-148. São Paulo: Nacional.
⎯. 1979. “The relationship system of the Krahó”. In Dialectical societies: the Gê and
Bororo of Central Brazil. Org. David Maybury-Lewis. 46-79. Cambridge: Harvard
University Press.

Mello, Darcy S. Bandeira de. 1982. Entre índios e revoluções (pelos sertões de São Paulo,
Mato Grosso e Goiás de 1911 a 1941). São Paulo: Soma.

Menget, Patrick. 1993. “Les frontières de la chefferie: remarques sur le système politique
du haut Xingu (Brésil)”. In La remontée de l’Amazone: anthropologie et histoire des
sociétés amazoniennes. Org. Philippe Descola & Anne C. Taylor. L’Homme 33 (126-128):
59-76.

Monod-Becquelin, Aurore & Guirardello, Raquel. 2001. “Histórias trumai”. In Os povos


do Alto Xingu: história e cultura. Org. Bruna Franchetto & Michael Heckenberger. 401-
443. Rio de Janeiro: UFRJ.

Moraes Jardim, Joaquim Rodrigues de. 2001 [1880]. “Exposição que fez o Sr. Major de
Engenheiros Dr. Joaquim Rodrigues de Moraes Jardim sobre sua viagem ao Araguaya,
Goyaz”. In Memórias Goianas 13: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1880-
1881. Goiânia: UCG.

922
Moura, Marlene Castro O. de (org.). 2006. Índios de Goiás: uma perspectiva histórico-
cultural. Goiânia: UCG.

Mueller-Vollmer, Kurt. 1992. “Introduction: language, mind, and artifact: an outline of


hermeneutic theory since the Enlightenment”. In The hermeneutics reader. Org. Kurt
Mueller-Vollmer. 1-53. New York: Continuum.

Nadelson, Leslee. 1996 [1981]. “Pigs, women, and the men’s house in Amazonia: an
analysis of six Mundurucú myths”. In Sexual meanings: the cultural construction of
gender and sexuality. Org. Sherry B. Ortner & Harriet Whitehead. 240-272. Cambridge:
Cambridge University Press.

Nimuendaju, Curt. 2001. “A corrida de toras dos Timbira”. Mana 7 (2): 151-194.

Olímpio Machado, Eduardo. 1996a [1850]. “Falla que recitou o Presidente da Província de
Goyaz, o Doutor Eduardo Olímpio Machado, n’abertura da Assembléia Legislativa da
mesma província, em 1° de maio de 1850”. In Memórias Goianas 5: relatórios dos
governos da Província de Goiás, 1850-1853. Goiânia: UCG.
⎯. 1996b [1850]. “Relatório com que o Ex-Presidente da Província de Goyaz, o Sr.
Doutor Eduardo Olímpio Machado, entregou à presidência da mesma, ao seo successor, o
Exmo. Sr. Doutor Antônio Joaquim da Silva Gomes”. In Memórias Goianas 5: relatórios
dos governos da Província de Goiás, 1850-1853. Goiânia: UCG.

Oliveira, Haroldo Cândido de. 1950. Índios e sertanejos do Araguaia: diário de viagem.
São Paulo: Melhoramentos.
⎯. 1952. “O estado de saúde dos índios Karajá em 1950”. Revista do Museu Paulista 6:
489-508.

Oliveira, João Pacheco de. 1998. “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação
colonial, territorialização e fluxos culturais”. Mana 4 (1): 47-77.

Ortolan Matos, Maria Helena. 1997. O processo de criação e consolidação do movimento


pan-indígena no Brasil (1970-1980). Dissertação de Mestrado, Departamento de
Antropologia da Universidade de Brasília.
⎯. 2006. Rumos do movimento indígena no Brasil contemporâneo: experiências
exemplares no Vale do Javari. Tese de Doutorado, Departamento de Antropologia da
Universidade de Campinas.

Ortner, Sherry B. 1979 [1974]. “Está a mulher para o homem assim como a natureza para a
cultura?”. In A mulher, a cultura, a sociedade. Org. Michelle Z. Rosaldo & Louise
Lamphere. 95-120. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
⎯. 1984. “Theory in anthropology since the Sixties”. Comparative studies in society and
history 26(1): 126-166.

Ortner, Sherry B. & Whitehead, Harriet. 1996 [1981]. “Introduction: accounting for sexual
meanings”. In Sexual meanings: the cultural construction of gender and sexuality. Org.
Sherry B. Ortner & Harriet Whitehead. 1-27. Cambridge: Cambridge University Press.

923
Overing, Joanna. 1986. “Men control women? The ‘Catch 22’ in gender analysis”.
International Journal of Moral and Social Studies 1 (2): 135-156.
⎯. 1993. “Death and the loss of civilized predation among the Piaroa of the Orinoco
Basin”. In La remontée de l’Amazone: anthropologie et histoire des sociétés
amazoniennes. Org. Philippe Descola & Anne C. Taylor. L’Homme 126-128: 191-211.
⎯. 1995. “O mito como história: um problema de tempo, realidade e outras questões”.
Mana 1 (1): 107-140.

Padberg-Drenkpol, J.A. 1926. “Situação histórico-cultural dos Karaýas”. Boletim do


Museu Nacional 6 (2).

Paixão, Rodolpho Gustavo da. 2002 [1891]. “Mensagem dirigida à Câmara Legislativa de
Goyaz pelo Governador do Estado, Major. Dr. Rodolpho Gustavo da Paixão no dia 5 de
dezembro de 1891”. In Memórias Goianas 15: relatórios dos governos da Província de
Goiás, 1891-1900. Goiânia: UCG.

Palacin, Luís. 1994 [1976]. O século do outro em Goiás 1722-1822: estrutura e conjuntura
numa Capitania de Minas. Goiânia: UCG.

Palha, Luiz. 1942. Índios Curiosos: lendas, costumes, línguas. Cúria Metropolitana,
Imprimatur.

Passes, Alan. 2002. “Both omphalos and margin: on how the Pa’ikwené (Palikur) see
themselves to be at the center and on the edge at he same time”. In Comparative Arawakan
Histories: rethinking language family and culture in Amazonia. Org. Jonathan D. Hill &
Fernando Santos-Granero. 171-195. Urbana and Chicago: University of Illinois Press.

Pazinatto, Renata Parada. 1988. “Observações sobre a cozinha dos índios Karajá”.
Publicações do Museu Histórico de Paulínia 38: 60-65.

Pedroso, Dulce Madalena Rios. 1994. O povo invisível. Goiânia: UCG.


⎯. 2006. “Avá-Canoeiro”. In Índios de Goiás: uma perspectiva histórico-cultural. Org.
Marlene Castro O. de Moura. 91-133. Goiânia: UCG.

Pereira, Ernesto Augusto. 1999 [1870]. “Relatório apresentado à Assembléia Legislativa


Provincial de Goiáz, a 1° de agosto de 1870, pelo Exmo. Presidente da Província Dr.
Ernesto Augusto Pereira”. In Memórias Goianas 11: relatórios dos governos da Província
de Goiás, 1870-1874. Goiânia: UCG.

Peret, João Américo. 1979. Mitos e lendas Karajá: Inã Son Wèra. Rio de Janeiro: Edição
própria.

Perrone-Moisés, Beatriz. 1992. “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação


indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In História dos índios no Brasil.
Org. Manuela Carneiro da Cunha.115-132. São Paulo: Companhia das Letras.

924
Pétesch, Nathalie. 1987. “Divinités statiques, hommes em mouvement: structure et
dynamique cosmique et sociale chez les indiens Karajá du Brésil Central”. Journal de la
Société des Américanistes 73: 75-92.
⎯. 1992. La pirogue de sable: modes de représentation et d’organisation d’une société du
fleuve: les Karaja de l’Araguaia (Brésil central). Tese de Doutorado, Université de Paris
X, Nanterre.
⎯. 1993a. “A trilogia Karajá: sua posição intermediária no continuum Jê-Tupi”. In
Amazônia: etnologia e história indígena. Org. Eduardo Viveiros de Castro & Manuela
Carneiro da Cunha. 365-384. São Paulo: NHII-USP/FAPESP.
⎯. 1993b. “L’enfant-maître et lê bien-enfant: a propos de la possession-filiation chez les
Indiens karajá d’Amazonie brésilienne”. Annales de la Fondation Fyssen 8: 83-90.
⎯. 2000. La pirogue de sable: pérennité cosmique et mutation sociale chez les Karajá du
Brésil central. Paris: Peeters.

Pimentel da Silva, Maria do Socorro. 2001. A situação sociolingüística dos Karajá de


Santa Isabel do Morro e Fontoura. Brasília: DEDOC/FUNAI.

Pinheiro, Paulo. 1994. Missão Carajás. Tatuí, São Paulo: Casa Publicadora Brasileira.

Pinto, Alfredo Moreira. 1894. “Bananal”. Diccionário Geográphico do Brasil 1: 200. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional.

Pizarro e Araújo, José de Souza Azevedo. 1948 [1819]. Memórias históricas do Rio de
Janeiro (e das Províncias anexas). Vol. 9. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.

Pohl, João Emanuel. 1951 [1837]. Viagem ao interior do Brasil, Volume II. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional do Livro.

Porantim. 2007. “Ilha do Bananal, a realidade que ninguém quer ver: avanço do
agronegócio, uso irregular dos rios e invasores ameaçam as terras indígenas e a
biodiversidade da região”. Porantim 294. Brasília: CIMI.

Porro, Antônio. 1992. “História indígena do alto e médio Amazonas: séculos XVI a
XVIII”. In História dos índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha. 175-196. São
Paulo: Companhia das Letras.

Portela, Cristiane de Assis. 2006. Nem ressurgidos nem emergentes: a resistência histórica
dos Karajá em Buridina em Aruanã – GO (1980-2006). Dissertação de Mestrado,
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás.

PPTAL. 2005. Projeto de vigilância da Terra Indígena Inãwébohona. Brasília:


FUNAI/PPTAL.

Ramalho, Joaquim Ignácio. 1996a [1846]. “Relatório que à Assembléia Legislativa da


Goyaz apresentou na sessão ordinária de 1846 o Exmo. Presidente da mesma Província
Doutor Joaquim Ignácio Ramalho”. In Memórias Goianas 4: relatórios dos governos da
Província de Goiás, 1845-1849. Goiânia: UCG.

925
⎯. 1996b [1847]. “Relatório que à Assembléia Legislativa da Goyaz apresentou na sessão
ordinária de 1847 o Exmo. Presidente da mesma Província Doutor Joaquim Ignácio
Ramalho”. In Memórias Goianas 4: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1845-
1849. Goiânia: UCG.

Ramos, Alcida Rita. 1988. “Vozes indígenas: o contato vivido e contado”. Série
Antropologia 66. Brasília: UnB.
⎯. 1990a. “Ethnology Brazilian style”. Cultural Anthropology 5 (4): 452-472.
⎯. 1990b. Memórias Sanumá: espaço e tempo em uma sociedade Yanomami. São Paulo:
Marco Zero, Brasília: UnB.

Rasnake, Roger. 1988. “Images of resistance to colonial domination”. In Rethinking


History and Myth: indigenous South American perspectives on the past. Org. Jonathan D.
Hill. 136-156. Urbana and Chicago: University of Illinois Press.

Reeve, Mary-Elizabeth. 1988. “Cauchu Uras: lowland Quichua histories of the Amazon
rubber Boom”. In Rethinking History and Myth: indigenous South American perspectives
on the past. Org. Jonathan D. Hill. 19-34. Urbana and Chicago: University of Illinois Press.

Reiter, Rayna R. 1975. “Introduction”. Toward an anthropology of women. Org. Rayna R.


Reiter. 11-19. New York: Monthly Review Press.

Renard-Casevitz, France-Marie. 1992. “História kampa, memória ashaninca”. In História


dos índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha. 197-212. São Paulo: Companhia
das Letras.

Ribeiro, Eduardo Rivail. 1996. Morfologia do verbo Karajá. Dissertação de Mestrado,


Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás.
⎯. 2001/2002. “Empréstimos Tupí-Guaraní em Karajá”. Revista do Museu Antropológico
5-6: 75-100.
⎯. 2005. “Análise morfológica de um texto Karajá”. In Novos estudos sobre línguas
indígenas. Org. Aryon D. Rodrigues & Ana Suelly A. C. Cabral. 99-128. Brasília: UnB.

Ribeiro, Francisco de Paula. 1848. “Roteiro da viagem que fez o Capitão Francisco de
Paula Ribeiro às fronteiras da Capitania do Maranhão e da de Goyaz no anno de 1815 em
serviço de S. M. fidelíssima”. Revista Trimensal de História e Geographia do Instituto
Histórico e Geographico Brasileiro (IHGB) 10.

Ribeiro da Silva, Hermano. 1935. Nos sertões do Araguaia: narrativas da expedição às


glebas bárbaras do Brasil Central. São Paulo: Saraiva.

Ricardo, Fanny (org.). 2004. Terras indígenas & unidades de conservação da natureza: o
desafio das sobreposições. São Paulo: ISA.

Rivière, Peter. 1974. “The couvade: a problem reborn”. Man 9(3): 423-435.
⎯. 1977. “Some problems in the comparative study of Carib societies”. In Carib-speaking
Indians: culture, society and language. Org. Ellen B. Basso. Anthropological papers of the
University of Arizona 28. Tucson, Arizona: The University of Arizona Press.
926
⎯. 1993. “The Amerindianization of descent and affinity”. In La remontée de l’Amazone:
anthropologie et histoire des sociétés amazoniennes. Org. Philippe Descola & Anne C.
Taylor. L’Homme 126-128: 507-516.

Rodrigues, Patrícia de Mendonça. 1992. Relatório de identificação e delimitação da Terra


Indígena Marãiwatséde. Brasília: FUNAI.
⎯. 1993. O Povo do Meio: tempo, cosmo e gênero entre os Javaé da Ilha do Bananal.
Dissertação de Mestrado, Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.
⎯. 1995. “Alguns aspectos da construção do gênero entre os Javaé da Ilha do Bananal”.
Cadernos Pagu 5: 131-147. Campinas: PAGU/UNICAMP.
⎯. 1999. “O surgimento das armas de fogo: alteridade e feminilidade entre os Javaé”. In
Dossiê Mulheres Indígenas. Org. Bruna Franchetto. Estudos Feministas 7 (1, 2): 195-205.
IFCS / UFRJ, CFH / UFSC.
⎯. 2005. “De corpo aberto: o poder tecnológico dos não-índios no mito e na cosmologia
Javaé”. Habitus 3 (1): 125-143. Goiânia: UCG.
⎯. 2008. Relatório de identificação e delimitação: Terra Indígena Utaria Wyhyna
(Karajá) / Iròdu Iràna (Javaé). Brasília: FUNAI/PPTAL.

Rodrigues de Moraes, Theodoro. 2001 [1882]. “Relatório – com que – ao Ilmo. e Exm. Sr.
Dr. Cornélio Pereira de Magalhães presidente da Província de Goyaz passou a
administração da mesma o Exmo. Sr. 1° Vice-Presidente Dr. Theodoro Rodrigues de
Moraes, em 20 de junho de 1882”. In Memórias Goianas 14: relatórios dos governos da
Província de Goiás, 1882-1889. Goiânia: UCG.

Roe, Peter G. 1988. “The Josho Nahuanbo are all wet and undercooked: Shipibo views of
the Whiteman and the Incas in myth, legend and history”. In Rethinking History and Myth:
indigenous South American perspectives on the past. Org. Jonathan D. Hill. 106-135.
Urbana and Chicago: University of Illinois Press.

Roosevelt, Anna Curtenius. 1992. “Arqueologia amazônica”. In História dos índios no


Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha. 53-86. São Paulo: Companhia das Letras.

Rosaldo, Michelle Z. 1979 [1974]. “A mulher, a cultura e a sociedade: uma revisão


teórica”. In A mulher, a cultura, a sociedade. Org. Michelle Z. Rosaldo & Louise
Lamphere. 33-64. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Rosaldo, Michelle Z. & Lamphere, Louise (org.). 1979 [1974]. A mulher, a cultura, a
sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Rosaldo, Renato. 1994 [1980]. Ilongot headhunting 1883-1974: a study in society and
history. Stanford: Stanford University Press.

Sahlins, Marshall. 1992. “The economics of develop-man in the Pacific”. Res:


anthropology and aesthetics 21: 12-25.Org. Francesco Pellizzi.
⎯. 1993. “Goodbye to Tristes Tropes: ethnography in the context of modern world
history”. Journal of Modern History 65: 1-25.
⎯. 1995 [1981]. Historical metaphors and mythical realities: structure in the early history
of the Sandwich Islands Kingdom. Ann Arbor: The University of Michigan Press.
927
⎯. 1996 [1985]. Islands of history. Chicago and London: The University of Chicago
Press.

Saint-Hilaire, Auguste de. 1944 [1837]. Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela
Província de Goiás. Série Brasiliana 68. Tomo I. Rio de Janeiro: Nacional.

Santos-Granero, Fernando. 1998. “Writing history into the landscape: space, myth and
ritual in contemporary Amazonia”. American Ethnologist 25 (2): 128-148.
⎯. 2002. “The Arawakan matrix: ethos, language, and History in native South America”.
In Comparative Arawakan Histories: rethinking language family and culture in Amazonia.
Org. Jonathan D. Hill & Fernando Santos-Granero. 25-50. Urbana and Chicago: University
of Illinois Press.

Schaden, Egon. 1958. “A mitologia heróica de tribos indígenas no Brasil”. Coleção “Vida
Brasileira”. Ministério da Educação e Cultura.

Schiel, Helena Moreira. 2002. Etnicidade ou lógica cultural? Os Karajá de Buridina e a


cidade de Aruanã. Monografia de Graduação do Departamento de Antropologia da
Universidade de Brasília.
⎯. 2005. O vermelho, o negro e o branco: modos de classificação entre os Karajá do
Brasil Central. Dissertação de Mestrado, Departamento de Antropologia da Universidade
de São Paulo.

Schultz, Harald. 1953. “A pesca tradicional de pirarucu entre os índios Karajá”. Revista do
Museu Paulista 7: 249-255.

Schneider, David. M. 1984. A critique of the study of kinship. Ann Arbor: The University
of Michigan Press.

Seeger, Anthony. 1980. Os índios e nós: estudos sobre sociedades tribais brasileiras. Rio
de Janeiro: Campus.
⎯. 1981. Nature and society in Central Brazil: the Suya Indians of Mato Grosso.
Cambridge: Harvard University Press.
⎯. 1989. “Dualism: fuzzy thinking of fuzzy sets?”. In The attraction of opposites. Org.
David Maybury-Lewis & Uri Almagor. 191-208. Ann Arbor: The University of Michigan
Press.

Seeger, Anthony, Da Matta, Roberto & Viveiros de Castro, Eduardo B. 1987 [1979]. “A
construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”. In Sociedades indígenas &
indigenismo no Brasil. Org. João Pacheco de Oliveira Filho. 11-29. Rio de Janeiro: Marco
Zero.

Segato, Rita Laura. 1997. “Os percursos do gênero na antropologia e para além dela”.
Revista Sociedade e Estado 12 (2): 235-262.
⎯. 2003. Las estructuras elementares de la violencia: ensayos sobre género entre la
antropologia, el psicoanálisis y los derechos humanos. Buenos Aires: Universidade
Nacional de Quilmes.

928
Segurado, Rufino Theotonio. 1848. “Viagem de Goyaz ao Pará: roteiro escripto pelo Dr.
Rufino Theotonio Segurado”. Revista Trimensal de História e Geographia do Instituto
Histórico e Geographico Brasileiro (IHGB) 10: 178-212.

Sekelj, Tilbor. 1948. “Excursión a los indios del Araguaia (Brasil)”. RUNA 1: 97-114.
Archivo para las ciencias del hombre. Buenos Aires.

Serafim Leite, S.I. 1943. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo III. Rio de
Janeiro: Instituto Nacional do Livro.

Silva, Márcio Ferreira. 1998. “Tempo e espaço entre os Enawene Nawe”. Revista de
Antropologia 41 (2): 21-52.

Silva Gomes, Antônio Joaquim da. 1996 [1851]. “Relatório que à Assembléia Legislativa
de Goyaz apresentou na sessão ordinária de 1851 o Exmo. Presidente da mesma Província
Doutor Antônio Joaquim da Silva Gomes”. In Memórias Goianas 5: relatórios dos
governos da Província de Goiás, 1850-1853. Goiânia: UCG.

Silva e Sousa, Luiz Antônio da. 1849. “O descobrimento, governo, população e cousas
mais notáveis da Capitania de Goyaz”. Revista Trimensal de História e Geographia do
Instituto Histórico e Geographico Brasileiro (IHGB) 12: 429-519.

Silverwood-Cope, Peter L. 1990. Os Makú: povo caçador do noroeste da Amazônia.


Brasília: UnB.

Souza Filho, Odilon João de. 1987a. “A festa da Casa Grande / 1”. Publicações do Museu
Histórico de Paulínia 32: 21-30.
⎯. 1987b. “A festa da Casa Grande / 2”. Publicações do Museu Histórico de Paulínia 33:
48-57.
⎯. 1987c. “A festa da Casa Grande / 3”. Publicações do Museu Histórico de Paulínia 34:
76-83.
⎯. 1987d. “A festa da Casa Grande / 4”. Publicações do Museu Histórico de Paulínia 35:
100-107.

Spínola, Aristides de Souza. 1999 [1879]. “Relatório apresentado à Assembléia Legislativa


Provincial de Goyaz pelo Ilmo. Exmo. Sr. Dr. Aristides de Souza Spínola, Presidente da
Província de Goyaz, no dia 1° de junho de 1879”. In Memórias Goianas 12: relatórios dos
governos da Província de Goiás, 1875-1879. Goiânia: UCG.
⎯. 2001a [1880]. “Relatório apresentado pelo Ilmo. e Exmo. Sr. Dr. Aristides de Souza
Spínola, Presidente da Província, à Assembléia L. Provincial de Goyaz, no dia 4 de março
de 1880”. In Memórias Goianas 13: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1880-
1881. Goiânia: UCG.
⎯. 2001b [1881]. “Relatório apresentado pelo Ilmo. e Exmo. Sr. Dr. Aristides de Souza
Spínola, ex-Presidente da Província, no ato de passar a administração ao Exmo. Sr. Vice-
Presidente Dr. Theodoro Rodrigues de Moraes, em 27 de dezembro de 1881”. In Memórias
Goianas 13: relatórios dos governos da Província de Goiás, 1880-1881. Goiânia: UCG.

929
Strathern, Marilyn. 1987. “Introduction”. In Dealing with inequality: analysing gender
relations in Melanesia and beyond. Org. Marylin Strathern. 1-32. Cambridge: Cambridge
University Press.
⎯. 1990 [1988]. The gender of the gift. Berkeley and Los Angeles: University of
Califórnia Press.
⎯. 1997 [1992]. “Entre uma melanesianista e uma feminista”. Cadernos Pagu (8/9): 7-49.
Campinas: PAGU/UNICAMP.
⎯. 2002 [1980]. “No nature, no culture: the Hagen case”. In Nature, culture and gender.
Org. Carol MacCormack & Marylin Strathern. 174-222 Cambridge: Cambridge University
Press.

Taveira, Edna Luísa de Mello. 1982. “Etnografia da cesta Karajá”. Coleção Teses
Universitárias 22. Goiânia: UFG.

Tavener, Christopher J. 1966. Survey of the Caraja and Xambioa on the Araguaia, Brazil,
1966 (with a note on the Javaé). Manuscrito. Brasília: FUNAI.
⎯. 1973. “The Karajá and the brazilian frontier”. In Peoples and cultures of native South
America: an anthropological reader. Org. Daniel. R. Gross. 443-459. Garden City, New
York: The Natural History Press.

Taylor, Anne Christine. 1992. “História pós-colombiana da alta Amazônia”. In História


dos índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha. 213-238. São Paulo: Companhia
das Letras.
⎯. 2000. “Le sexe de la proie: représentations jivaro du lien de parenté”. In Question de
parenté. L’Homme 154-155: 309-334.

Teixeira, Dante Luiz Martins. 1983. “Um estudo da etnozoologia Karajá: o exemplo das
máscaras de Aruanã”. In O artesão tradicional e seu papel na sociedade contemporânea.
213-232. FUNARTE/Instituto Nacional do Folclore.

Toral, André Amaral de. 1981. “Os Javaé e a defesa de sua terra”. In Comissão Pró-Índio:
a questão da terra indígena. 69-80. São Paulo: Global.
⎯. 1992. Cosmologia e sociedade Karajá. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
⎯. 1999. Relatório antropológico à identificação e delimitação da Terra Indígena
Inãwébohona (anteriormente denominada “Boto Velho”). Brasília: FUNAI/PPTAL.

Toral, André Amaral de & Maia, Marcus Antonio R. 1983. Relatório sobre a situação dos
Javaé da Barreira da Cruz (Cristalândia-GO). Brasília: FUNAI.

Tournier, Reginaldo. 1942 [1928]. Lá longe, no Araguaia. Prelazia dominicana de


Conceição do Araguaia.

Turner, Terence. 1979a. “The Gê and Bororo societies as dialectical systems: a general
model”. In Dialectical societies: the Gê and Bororo of Central Brazil. Org. David
Maybury-Lewis. 147-178. Cambridge: Harvard University Press.

930
⎯. 1979b. “Kinship, household, and community structure among the Kayapó”. In
Dialectical societies: the Gê and Bororo of Central Brazil. Org. David Maybury-Lewis.
179-214. Cambridge: Harvard University Press.
⎯. 1980. “The social skin”. In Not work alone. Org. J. Cherfas & R. Lwein. 112-140.
Beverly Hills: Sage.
⎯. 1984. “Dual opposition, hierarchy and value: moiety structure and symbolic polarity in
Central Brazil and elsewhere”. In Différences, valeurs, hiérarchie (texts offerts à Louis
Dumont). Org. J.-C. Galey. 335-370. Paris: EHESS.
⎯. 1988a. “History, myth and social consciousness among the Kayapó of Central Brazil”.
In Rethinking History and Myth: indigenous South American perspectives on the past. Org.
Jonathan D. Hill. 195-213. Urbana and Chicago: University of Illinois Press.
⎯. 1988b. “Ethno-ethnohistory: myth and history in native South American
representations of contact”. In Rethinking History and Myth: indigenous South American
perspectives on the past. Org. Jonathan D. Hill. 235-281. Urbana and Chicago: University
of Illinois Press.
⎯. 1991. “Representing, resisting, rethinking: historical transformations of Kayapo culture
and anthropological consciousness”. In Colonial situations: essays on the contextualization
of ethnographic knowledge. History of Anthropology 7. Org. G. W. Stocking. 285-313.
Madison: University of Wisconsin Press.
⎯. 1992. “Os Mebengokre Kayapó: história e mudança social, de comunidades autônomas
a para a coexistência interétnica”. In História dos índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro
da Cunha. 311-338. São Paulo: Companhia das Letras.
⎯. 1993. “De cosmologia a história: resistência, adaptação e consciência social entre os
Kayapó”. In Amazônia: etnologia e história indígena. Org. Eduardo Viveiros de Castro &
Manuela Carneiro da Cunha. 43-66. São Paulo: NHII-USP/FAPESP.
⎯. 1994. “Bodies and anti-bodies: flesh and fetish in contemporary social theory”. In
Embodiment and experience: the existential ground of culture and self. Org. T. Csordas.
27-47. Cambridge: Cambridge University Press.
⎯. 1995. “Social body and embodied subject: bodiliness, subjectivity, and sociality among
the Kayapó”. Cultural Anthropology 10 (2):143-170.

Urban, Greg. 1992. “A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas”. In


História dos índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha. 87-102. São Paulo:
Companhia das Letras.

Viana, Adriana. 1995. A expressão do atributo na língua Karajá. Dissertação de Mestrado,


Universidade de Brasília.

Vidal, Silvia M. 2002. “Secret religious cults and political leadership: multiethnic
confederacies from Northwestern Amazonia”. In Comparative Arawakan Histories:
rethinking language family and culture in Amazonia. Org. Jonathan D. Hill & Fernando
Santos-Granero. 248-268. Urbana and Chicago: University of Illinois Press.

Villas Bôas, Orlando & Villas Bôas, Cláudio. 1994. A marcha para o oeste: a epopéia da
Expedição Roncador-Xingu. São Paulo: Globo.

931
Viveiros de Castro, Eduardo B. 1977. Indivíduo e sociedade no alto Xingu: os Yawalapiti.
Dissertação de Mestrado, Museu Nacional, Rio de Janeiro.
⎯. 1986a. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ANPOCS.
⎯. 1986b. “O teatro antológico Bororo”. Anuário antropológico 86: 227-245. Brasília:
UnB.
⎯. 1987a. “A fabricação do corpo na sociedade xinguana”. In Sociedades indígenas &
indigenismo no Brasil. Org. João Pacheco de Oliveira Filho. 31-41. Rio de Janeiro: Marco
Zero.
⎯. 1987b. “Alguns aspectos do pensamento Yawalapíti (alto Xingu): classificações e
transformações”. In Sociedades indígenas & indigenismo no Brasil. Org. João Pacheco de
Oliveira Filho. 43-83. Rio de Janeiro: Marco Zero.
⎯. 1993. “Alguns aspectos da afinidade no dravidianato amazônico”. In Amazônia:
etnologia e história indígena. Org. Eduardo Viveiros de Castro & Manuela Carneiro da
Cunha. 149-210. São Paulo: NHII-USP/FAPESP.
⎯1999. “Etnologia brasileira”. In O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). Org.
S. Miceli. Antropologia 1. 109-223. São Paulo: Org. Sumaré/ANPOCS.
⎯. 2002a. “Esboço da comologia yawalapíti”. In A inconstância da alma selvagem e
outros ensaios de antropologia. 25-85. São Paulo: Cosac & Naify.
⎯. 2002b. “O problema da afininidade na Amazônia”. In A inconstância da alma
selvagem e outros ensaios de antropologia. 87-180. São Paulo: Cosac & Naify.
⎯. 2002c. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”. In A
inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. 181-264. São Paulo:
Cosac & Naify.
⎯. 2002d. “Imanência do inimigo”. In A inconstância da alma selvagem e outros ensaios
de antropologia. 265-294. São Paulo: Cosac & Naify.
⎯. 2002e. “O conceito de sociedade em antropologia”. In A inconstância da alma
selvagem e outros ensaios de antropologia. 295-316. São Paulo: Cosac & Naify.
⎯. 2002f. “Imagens da natureza e da sociedade”. In A inconstância da alma selvagem e
outros ensaios de antropologia. 317-344. São Paulo: Cosac & Naify.
⎯. 2002g. “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In A inconstância
da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. 345-399. São Paulo: Cosac & Naify.
⎯. 2002h. “Atualização e contra-efetuação do virtual: o processo do parentesco”. In A
inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. 401-455. São Paulo:
Cosac & Naify.

Viveiros de Castro, E. & Carneiro da Cunha, Manuela. 1993. “Introdução”. In Amazônia:


etnologia e história indígena. Org. Eduardo Viveiros de Castro & Manuela Carneiro da
Cunha. 9-15. São Paulo: NHII-USP/FAPESP.

Wagley, Charles. 1976. “Xamanismo Tapirapé”. In Leituras de etnologia brasileira. Org.


Egon Schaden. 236-267. São Paulo: Nacional.
⎯. 1988 [1977]. Lágrimas de boas vindas: os índios Tapirapé do Brasil Central.
Reconquista do Brasil 2 (137). São Paulo: EDUSP.

Weber, Max. 1949. The methodology of the social sciences. New York: The Free Press.

932
Whan, Chang. 1998. Reru: figuras em cordéis dos índios Karajá. Dissertação de Mestrado,
Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Whitehead, Neil L. 2002. “Arawak linguistic and cultural identity through time: contact,
colonialism, and creolization”. In Comparative Arawakan Histories: rethinking language
family and culture in Amazonia. Org. Jonathan D. Hill & Fernando Santos-Granero. 51-73.
Urbana and Chicago: University of Illinois Press.

Wright, Robin M. 1992. “História indígena do noroeste da Amazônia: hipóteses, questões e


perspectivas”. In História dos índios no Brasil. Org. Manuela Carneiro da Cunha. 253-266.
São Paulo: Companhia das Letras.
⎯. 2000. “Ialanawinai: o branco na história e mito Baniwa”. In Pacificando o Branco:
cosmologias do contato no Norte-Amazônico. Org. Bruce Albert & Alcida Rita Ramos.
431-468. São Paulo: UNESP.
⎯. 2002. “Prophetic traditions among the Baniwa and other Arawakan peoples of the
Northwest Amazon”. In Comparative Arawakan Histories: rethinking language family and
culture in Amazonia. Org. Jonathan D. Hill & Fernando Santos-Granero. 269-293. Urbana
and Chicago: University of Illinois Press.

Zucchi, Alberta. 2002. “A new model of the northern Arawakan expansion”. In


Comparative Arawakan Histories: rethinking language family and culture in Amazonia.
Org. Jonathan D. Hill & Fernando Santos-Granero. 199-222. Urbana and Chicago:
University of Illinois Press.

933

Você também pode gostar