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REPENSANDO A HISTÓRIA
tem por objetivodesenvolvera visão
críticaatravés da discussão, análise e refonnulação
constante dos temas históricos.
Pretende, também,estimulara participação de todos
no processo de elaboração do saber histórico,
tanto através do tratamento desmistificadorde visões
consagradas, como pela abordagem de questões
que fazem parte do dla-a-dla das pessoas "comuns",
sistematicamente postas à margemda história.

Políticae religião.Estes dois conceitos, claramente


distintos para nós do século XX,constitufam-se numa só
realidadepara as civilizaçõesdo AntigoOriente.É este o
fenômeno sócio-mental que Ciro AamarionS. Cardoso, professor
da UniversidadeFederalFluminense,estuda nos egípcios,
mesopotâmios, hititas e hebreus.
ANTIGUIDADE ORIENTAL: POLíTICA E RELIGIÃO é obra
fundamentalpara estudantes e professores de história do
22grau e da universidadepor possibilitarcomparações ricas e
importantes com a nossa própria sociedade, tão diferente e ao
mesmo tempo tão próximadaquelas.
o AUTOR NO CONTEXTO

Ciro Flamarion Santana Cardoso nasceu em Goiânia, em 1942. Viveu


grande parte de sua vida no que é hoje o Estado do Rio de Janeiro, e também
no exterior - França, Costa Rica e México.:... entre 1967 e 1978. Professor de
História Antiga na Universidade Federal Fluminense, é autor de numerosos li-
vros e artigos publicados no Brasil e no exterior, nas áreas de metodologia da
história, história da américa e história antiga.

Cpnsidera-se muito mais um professor do que um pesquisador.


Eis suas respostas a um conjunto de perguntas que lhe fizemos:

1. Como começou o seu interesse pela História Antiga?


R. Começou quando, na adolescência, ganhei de meus pais três livros: História
Antiga do Oriente Próximo. <:te H. R. .Hall, numa tríidução brasileira publicada
pela Casa do Estudante do Brasil; Deuses. Túmulos e Sábios. de C. W. Ceram;
e o romance O Egípcio. de Mika Waltari. Desde então, nunca mais deixei de
ampliar a minha biblioteca de história antiga. Ao ingressar na Faculdade de Filo-
sofia da Universidade do Brasil; onde estudei história entre 1962 e 1965, meu
firme propósito era dedicar-me à egiptologia, mas as circunstâncias não o permi-
tiram naquela ocasião. Ao preparar, em Paris, um doutorado na área de história
da América, a partir de 1967, aproveitei para, ao mesmo tempo, estudar língua e
arqueologia egípcias na École ou Louvre, com os professores Barguet e Desro-
ches-Noblecourt. Mas só em 1982 publiquei o meu primeiro livro de história an-
tiga, sobre o Egito. Desde então, venho dedicando boa parte de meu tel'!1Poe de
meus esforços a este setor dos estudos históricos, inclusive como professor de
pós-graduação, já que o mestrado da UFF conta, desde 1988, com um setor de

.
história antiga e medieval. Em 1989 pude ensinar língua egípcia a uma primeira
turma de oito alunos.
1
2. Não serão excessivamente distantes da atualidade e da realidade brasileiras
os temas tratados no seu livro?
os DADOS DA QUESTÃO
R. Eu sei que vocês não pensam realmente isto, ou não me teriam encarrega-
do de escrevê-Ia! O tema do poder é atualíssimo em nosso país. Quanto a mim,
nunca aceitei a posição imediatista de que o historiador, para ter alguma utilida-
de ou relevância social, devesse se dedicar de preferência a temas próximos
de nós no tempo, embora saiba que esta é uma tendência que se pode ler na
concentração crescente das teses e dissertações dos cursos de pós-gradua-
ção em história do Brasil nos temas do século XX (depois de Cristo, claro...).
Acho que a finalidade última das ciências sociais é descobrir como funcionam e
mudam as sociedades humanas: por que, então, deixar de aproveitar o vastís-
simo laboratório de milênios de história, ou mesmo o de milhões de anos de pré-
história?! Acontece, também, que ao escrever história, nós o fazemos - e não é
uma escolha, simplesmente não pode ser de outro jeito - como pessoas de
nossa época, cujos problemas, preocupações e prioridades aparecem na forma
em que interrogamos o passado recente ou distante.
ANTIGÜiDADE ORIENTAL:
3. Por que, em seu livro, você escolheu referir-se somente a algumas das UMA DELIMITAÇÃO NO TEMPO E NO ESPAÇO
muitas sociedades do antigo Oriente Próximo para a análise da relação reli-
gião/política?
R. Porque o tema era incrivelmente vasto, e as sociedades, variadíssimas. O o título deste livro inclui a expressão "Antigüidade Oriental". Se,
perigo de um pequeno manual ou livro didático é, não sabendo ou ousando es- do ponto de vista cronológico, a entendermos como a fase que se ini-
colher, cair na excessiva superficialidade, em lugar de tentar esclarece~ o tema cia com o surgimento dos primeiros documentos escritos inteligíveis e
a partir de certo número de casos, depois das necessárias considerações ge- se estende até as campanhas militares de Alexandre, o Grande, rei da
rais. Neste livro, optei por concentrar-me nas monarquias (pois também houve
Macedônia e da Grécia e conquistador do Oriente, teremos um período
desde a falta de Estado até formas não-monárquicas de governo na história do
enorme a considerar: desde aproximadamente 3000 antes de Cristo
antigo Oriente: mas a monarquia foi, de longe, a forma predominante nas re-
giões que contavam com agricultura estável, cidades e escrita). Egito e Meso-
(a.C.)até 334 a.C., ou seja, uns 2700 anos.
potâmia não poderiam faltar: são os carros-chefes! Quanto à escolha de anali- Do ponto de vista geográfico, limitar-nos-emos ao chamado
sá-Ios no início de sua trajetória estatal, parece-me adequada, já que foram as Oriente Próximo. Trata-se de região muito vasta, a qual, no período
primeiras regiões do mundo a contar com cidades e Estados organizados, e por considerado, estendia-se do litoral meridional do mar Negro, das mon-
tal razão influíram muito sobre outras regiões (orientais ou não) - além de que tanhas do Cáucaso, da costa meridional do mar Cáspio e das monta-
são os casos mais bem estudados e que contam com mais documentação dis- nhas a leste deste (montes do Gulistã, Paropamisades e Hindu-Kush),
ponível. O império hitita foi tratado porque, entre os Estados federais, além de indo em direção ao sul, até a primeira catarata do rio Nilo, o mar Ver-
relativamente bem documentado, tinha governantes que manifestaram uma melho, os desertos da Arábia, o golfo Pérsico e o mar de Omã; e, de
preocupação obsessiva com os deuses, a religião - tão obsessiva que chega, 1 oeste para leste, do Mediterrâneo Oriental e do Egito até o rio In.OO,.
às vezes, a parecer neurótica! Por fim, Israel não só é um caso à parte quanto
Assim compreendida, tal região inclui no essencial nove países atdais
tem óbvias repercussões no mundo moderno (penso nas tradições judaica e
cristã). Teria sido ótimo incluir também um dos grandes impérios - o assírio ou
da África - o Egito - e sobretudo da Ásia: Turquia, Síria, Líbano, Israel, .
o persa, talvez - isto é, um dos impérios "universais" do 112milênio a.C., mas fi-
Jordânia, Iraque, Irã e Afeganistão.. .
ca para outra vez! Em todos os casos escolhidos, usei ao máximo os textos de A vastidão geográfica e a longa duração do tempo implicam, de
época, que permitem o único "mergulho" que nos é possível naquelas socieda- per si, consideráveis obstáculos a uma 'abordagem resumida como a
des tão diferentes das de hoje em dia, mas que conhecemos cada vez melhor. que queremos empreender. É possível, porém, que a dificuldade maior

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diante de outras realidades nem era concebida como se estivesse. Só
fique por conta das diferenças profundas que separam do nosso o com os gregos começou-se a percebê-Ia como realidade autônoma, e só
mundo próximo-oriental antigo no tocante às concepções. no mundo moderno e por obra da cultura ocidental se levará a cabo sua
radical secularização: em todas as culturas restantes a política, a religião
e, em geral, os empreendimentos econômicos aparecem como três di-
mensões de uma mesma realidade. (García Pelayo)
É LíCITA A SEPARAÇÃO ENTRE
POUTICA E REUGIÃO?
Note-se que esta verdade não impede que nós, pessoas de hoje,
possamos perceber no antigo Oriente realidades especificamente polí-
Estamos acostumados a considerar certas dimensões ou setores ticas, econômicas e religiosas onde os homens daquela época não as
das sociedades de hoje - por exemplo, o Estado e a atividade política percebiam, para finalidades analíticas ou de simplificação didática.
a ele vinculada, a economia e a religião - como coisas sem dúvida li- Mas devemos levar em conta, o-!empo todo, que se trata de um modo
gadas entre si de muitos modos, mas nem por isto passíveis de confu- de ver nosso, que não é lícito atribuir aos homens antigos. A falta de
são ou indiferenciadas. Por tal motivo, temos disciplinas que se ocu- tal precaução pode implicar erros tremendos de interpretação.
pam em separado dessas diferentes esferas, quais sejam a ciência Assim, por exemplo, a historiografia de há algumas décadas cos-
política, a economià e a teologia - ou, num nível diferente, a disciplina tumava explicar a reforma religiosa empreendida pelo soberano egíp-
chamada "Religiões Comparadas", existente em muitas universidades cio Akhenaten (1353-1335 a.C.) como algo análogo à luta entre impe-
européias e norte-americanas. radores e papas na Idade Média, com motivações mais políticas e
Ao recuarmos no tempo até a Baixa Idade Média européia (sé- econômicas do que religiosas. O culto de um novo deus solar - Aten-,
culos XI a XV depois de Cristo), de um lado continuaria impossível surgido na corte já antes de Akhenaten, e posteriormente sua imposi-
descobrir entre os homens uma noção da existência de fenômenos es- ção como deus único do Egito, seriam formas de reação dos faraós
pecificamente econômicos, e de outro veríamos a presença de confli- (faraó é título atribuído ao rei do antigo Egito) contra o incremento
tos que opunham o imperador do Sacro Império Romano-Germânicoe exagerado do poder político e da riqueza do clero das divindades tradi-
eventualmente os reis ao papa. Isto supõe, já então, a noção de uma cionais, em especial o do deus Amon-Ra - incremento que teria ocor-
separação percebida entre a idéia de "Estado" e a de "Igreja". Mais per- rido em detrimento do poder e da riqueza do próprio rei.
to de nós, no século passado, ao se tratar do período imperial brasilei- Uma tal visão se esquece de que os templos eram parte inte-
ro, 'apesar da união então existente institucionalmente entre o Estado grante e inseparável do aparelho de Estado. Ao entregar terras, reba-
e a Igreja Católica, é válido buscar a prova de que ambas as entidades nhos, barcos, homens e outros elementos produtivos à gestão dos
podiam ser percebidas como coisas distintas, por exemplo na chama- templos e suas burocracias, o rei tomava uma.medida administrativa,
da "questao religiosa" (1872-1875). uma decisão ou escolha acerca do que lhe parecia ser a melhor ma-
Ora, no antigo Oriente Próximo só artificialmente podemos sepa- neira, na ocasião, de gerir tais riquezas: não renunciava nem um pou-
rar "política", "economia" e "religião". Os templos eram parte integrante co, porém, a usufruir desses bens.
do aparelho de Estado, tanto quanto o palácio real; templos e palácios É verdade que deles sairiam oferendas aos deuses e pagamen-
eram elementos centrais na organização das atividades que hoje con- tos aos sacerdotes e aos trabalhadores ligados aos santuários. No en-
sideramos "econômicas" (as de produção, distribuição e circulação de tanto, num regime em que os templos integravam o Estado, a alterna-
bens e serviços).Eis aqui como um especialista se refere a este fato: tiva seria que tais desembolsos - com toda a atividade contábil qlJe
envolviam - fossem feitos em forma direta pelo palácio real. Outros-
...no antigo Oriente existiram, certamente, um ordenamento e uma ativi- t sim, os templos estavam obrigados a contribuir muito substancialmen-
dade políticos. Sem eles não teria sido possível o desenvolvimento da te para a manutenção da família real e da corte, e o produto de suas
cultura, já que esta deve ter como sujeito histórico uma sociedade politi- terras era usado pelo governo também para cobrir despesas estatais
camente organizada. Mas não é menos certo que a política não formava que nada tinham de religiosas. A administração dos bens dos templos
uma realidade clara e distinta, isto é, não estava rigorosamente delimitada com freqüência era confiada pelo rei a funcionários que não eram

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sacerdotes; aliás, no Estado egípcio inexistiam barreiras entre empre- no chefiado por um rei em cuja pessoa se encama e sintetiza o Estado
gos de diversos tipos: o general de hoje podia ser amanhã burocrata, - foi encarada, durante toda a longa fase cronológica que considera-
ou sacerdote. mos, como o regime político normal dos povos civilizados, isto é, dota-
O faraó Akhenaten, como senhor supremo dos bens do Estado, dos de escrita, cidades e templos. É igualmente indubitável que, dada
fechou os templos e confiscou os seus bens, em seu próprio proveito e a presença central da religião no pensamento oriental antigo, todas as
no dos santuários do seu deus Aten, sem encontrar qualquer resistên- monarquias do Oriente Próximo nela tiveram seu fundamento e justifi-
cia, já que a concepção e a tradição da monarquia egípcia lhe davam cação ideológica, embora em escala variável e segundo modalidades
pleno direito de o fazer. Mais tarde, morto Akhenaten, outro rei rever- também diferentes.
. .teu tais medidas e restaurou os deuses e suas propriedades:mas não No tocante à relação entre monarquia e religião, uma teoria for-
como efeito de uma luta ou resistência do "clero de Amon", ou de mou-se há meio século, propondo interpretação de grande influência.
qualquer outro corpo sacerdotal. A impopularidade da reforma tentada Retomando certas idéias já presentes desde fins do século passado
deve ter influído na decisão' de encerrar a experiência; mas foi só de- e inícios deste, em obras de autores como James G. Frazer e E. A.
pois de encerrada que se geraram, por determinação monárquica, tex- Wallis Budge, que se basearam na comparação das sociedades próxi-.
tos e outras reações desfavoráveis à mesma e ao rei já falecido que a mo-orientais com outras, incluindo, proeminentemente, povos tribais
a empreendera. africanos e de outras partes do mundo, Henri Frankfort e sua escola
quiseram ver nas principais monarquias orientais um elemento media-
dor entre a esfera humana e a divina, entre a sociedade, a natureza e
o sobrenatural. Propuseram, ainda, que se distinguissem, no antigo
MONARQUIA ORIENTAL E RELIGIÃO: Oriente, duas grandes modalidades de soberanos.A primeira seria ca-
A TEORIA DE HENRI FRANKFORT racterizada, precisamente, pelo papel mediador dos reis, e se localiza-
ria nas duas regiões nucleares da civilização próximo-oriental:Mesopo-
tâmia e Egito. Entre as monarquias destas duas regiões haveria, no
Já se pretendeu demonstrar que a história política do Oriente entanto, uma diferença essencial quanto às concepções: Os reis do
Próximo antigo esteve caracterizada, em suas linhas mais gerais, pelo Egito, ou faraós, eram considerados como deuses encarnados, en-
surgimento, primeiro, e depois pela consolidação do conceito de "impé- quanto os monarcas mesopotâmicos não passavam de servos ou repre-
rio universal". O domínio de um único monarca estendido à totalidade sentantes dos deuses, por estes escolhidos. A segunda modalidade
daquela região do mundo seria, então, um objetivo sempre perseguido, monárquica, típica das partes periféricas do Oriente Próximo - Ásia
embora só atingido, já no primeiro milênio a.C., pelo Império Assírio e Ménor, Síria-Palestina, Irã -, seria a do rei que é somente um líder he-
sobretudo pelo Império Persa. Este último teria realizado a ambição reditário, de origem tribal, forma política que Frankfort considera como
expressa,já no terceiro milênio a.C., pelo rei mesopotâmio Naram-Sin bastante primitiva: uma monarquia fundamentada na consangüinidade
de Akkad (2254-2218 a.C.) ao denominar-se "rei das quatro regiões do mais do que em determinada concepção do lugar ocupado pelo ho-
universo". mem no cosmo.
Temos aí, na verdade, uma visão em que o resultado final - o Uma tal dicotomia não se sustenta bem nos termos em que foi
enorme Império Persa - é arbitrariamente projetado sobre o 'passado, proposta, já que também na Ásia Menor, na Síria-Palestina e no Irã o
colorindo a' interpretação de realidades muito diferentes. Assim, por vínculo entre monarquia e religião era .patente, assim como a função
exemplo, não há dúvida de que, para Naram-Sin, as "quatro regiões do de mediador entre o humano e o divino também ali se atribuía aos
universo" se limitavam ao sul da Mesopotâmia (os países de Sumer e reis. Entre os hititas da Ásia Menor, por exemplo, tal como na Mesopo-
Akkad), bem como ao norte da mesma região e à S,iriasetentrional r tâmia de mais de um milênio antes, o rei era sumo sacerdote consa-
(paí~es de Subarru - a futura Assíria - e Amurru) - zonas sobre as grado ao culto dos deuses masculinos, e sua esposa, a sacerdotisa
quais ele exerceu um efetivo domínio. principal das deusas. Num hino da rainha Puduhepa,esposa de Hattu-
Se o "império universal" não é conceito realmente útil para todos shilish 11I(1289-1265a.C.),dirigidoà deusasolarde Arinna,estaúltima
os períodos, não há dúvida, no entanto, de que a monarquia - o gover- é chamada de "soberana do país dos hititas, rainha dos céus e da

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I
terra, rainha de todos os países", ao passo que a soberana qualifica a
si mesma de "novilha do estábulo" da deusa. Uma doença que afligia
o rei e as dificuldades do reino hitita são atribuídas à negligencia dos
monarcas precedentes no serviço aos deuses:

Como os reis de outrora o desatenderam, é coisa que tu conheces, ó


deusa solar de Arinna, minha senhora. Os reis de outrora deixaram,
mesmo, que se arruinassem as regiõe~ que tu, Ó deusa solar de Arinna,
minha senhora, Ihes deste.

Para que o rei e o país prosperem, eis o que promete a rainha,


em seu nome e no do marido:

V0SS0S festivais, ó deuses, que deixaram de celebrar-se, os anuais e os


mensais, celebrar-se-ão em honra vossa, ó deuses. Vossos festivais, Ó
deuses, meus senhores, nunca voltarão a deixar de celebrar-se. Em to-
dos os dias de nossa vida nós, teu servo e tua serva, vos honraremos.
(Alberto Bernabé, org.)

QIVERSIDADE NO ESPAÇO

Apesar do que afirmamos há pouco, parece-nos possível e útil


opor, quanto ao nosso tema, de um lado, Egito e Mesopotâmia, do ou-
tro, Irã, Síria-Palestina, Ásia Menor. Mas, para o fazer, é preciso com-
plicar um pouco o quadro, saindo do terreno restrito das concepções
político-religiosas para aquele, mais amplo, das realidades. Pareceób-
vio que as concepç~s são parte integrante de tais realidades; longe
estão, porém, de esgotá-Ias. O contraste mencionado só pode ser efe-
tuado em forma adequada se introduzirmos dois aspectos que ainda
não foram tratados: as diferenças econômico-sociais,que tinham tam-
bém bases ecológicas, entre as diversas regiões do Oriente Próximo
antigo; e a realização diferencial daquilo que se pode expressarcom o
conceito de etnia.

Figura 1 (ao lado): Este mapa do antigo Oriente Próximo permite verificar certas características
básicas da região; as maiores elevações se encontram ao norte e a leste, enquanto a metade
meridional contém a maior parte das te"as baixas (vales fluviais, desertos).
FONTE: McNeill, William H. e Sedlar, Jean W., compiladores. The ancient Near East. Nova
10rquelLondres, Oxtord University Press, 1968. pp. X-Xl.

14
o Sistema
o Egito antigo, em sua parte habitada densamente, correspondia
à planície aluvional formada pelo rio Nilo em se,ubaixo curso, ao longo
de quase mil quilômetros. Nela podemos distinguir ao sul o Vale, es-
treita faixa de terra fértil apertada entre desertos, e ao norte o Delta, O sistema, em si, não era, no essencial, diferente nas outras
mais vasto, abrindo-se em leque para o Mediterrâneo. A Baixa Meso- áreas urbanizadas do Oriente Próximo. Mas havia algumas diferenças
básicas. A menor densidade demográfica e agrícola não permitiu, ali, o
potâmia, imediatamente ao norte do golfo Pérsico, é também uma ex-
tensa planície aluvional, formada por dois rios: o Eufrates a oeste, o surgimento de complexos templários. Havia templos: diversamente do
Tigre a leste. Em ambos os casos, ocorre anualmente uma fertiiizaçâo que ocorria no Egito e no sul da Mesopotâmia, no entanto, raramente
natural dos terrenos ribeirinhos. A partir de um longo investimento co- chegaram a controlar vastas riquezas em homens, terras e rebanhos. A
letivo de trabalho, adaptando e modificando os dado~ naturais através tributação funcionava sobretudo em proveito do palácio real, compará-
da construção de diques, barragens,canais, reservatórios,formaralTl-se vel em sua natureza e organização aos complexos palaciais presentes
nos vales fluviais em questão, sociedades complexas e urbanizadas, nos vales do Nilo e do Tigre e Eufrates, se bem que muito menor. O
baseadas na irrigação. A agricultura irrigada é muito produtiva, e por is- palácio devia, entre muitas outras atribuições suas, garantir em forma
to o Egito e a Mesopotâmia tinham populações muito mais densas do direta a sobrevivência dos cultos e dos sacerdotes. Isto levava a for-
que as de regiões como a Ásia Menor, a Síria-Palestina e o Irã, onde a mular em termos diferentes a relação entre poder político e religião,-ao
irrigação, pelas condições naturais, só podia ter um papel muito limita- comparar a Ásia Menor oua Síria-Palestina,por exemplo, ao Egito e à
do, e onde a agricultura - quase sempre dependente da água de chu- Mesopotâmia. Outrossim, nas áreas próximo-orientais periféricas, me-
va, às vezes retida em cisternas - era no conjunto menos produtiva. nos povoadas e produtivas, o complexo palacial e os gastos que impli-
Este contraste ajuda a entender certas diferenças importantes na or- cava - para garantir a burocracia,o luxo da corte, o culto, as guerras,o
ganização política e econômica. artesanato de alta qualidade reservado aos grupos dominantes -,
mesmo funéionando em escala menor do que a egípcia ou mesopotâ-
O sistema predominante utilizado no ar:]tigoOriente Próximo para
mica, pesavam proporcionalmente muito mais, exaurindo por vezes os
garantir a sobrevivência das cidades - muitos habitantes não planta-
recursos sociais disponíveis. Por isto mesmo, os complexos palaciais
vam nem colhiam - e, nelas, dos grupos dominantes e seus depen-
foram, nas regiões não-nucleares do Oriente Próximo, mais instáveis,
dentes (família real, burocratas, chefes militares e depois um exército menos duráveis do que nos vales fluviais irrigados: a sua duração se
profissional, sacerdotes, artesãos altamente qualificados) foi baseado conta, em cada caso, em algumas centenas de anos, não em milênios.
na imposição de tributos em trabalho (a "corvéia real") e em produtos Note-se que, numa análise geral como a nossa, estamos apon-
às aldeias, onde viviam camponeses que constituíam a maioria absolu- tando somente os fatores maiores, em forma simplificada. Na rea-
ta da população. No Egito e na Mesopotâmia, a grande densidade lidade, outros dados podiam vir a modificar a questão: por exem-
demográfica e a fantástica produtividade agrícola permitiram que, atra- plo os relativos a migrações, invasões, rebeliões, guerras. No en-
vés de um tal sistema,' se formassem enormes e estáveis complexos tanto, o pano de fundo apresentado ajuda a entender porque dados
político-econômicos em torno, por um lado, do palácio real, e, por ou- como os mencionados, ao incidirem em certas regiões, destruíam os
tro, dos templos. O palácio e os templos devem ser entendidos como sistemas palacianos locais - embora eventualmente surgissem outros,
vastas organizações que cobriam o conjunto do território, cada uma diferentes, depois -, enquanto no Egito e na Mesopotâmia eles resisti-
delas controlando terras, rebanhos, barcos, oficinas artesanais, depósi- ram, reconhecivelmente os mesmos, à sua incidência, permanecendo
tos de bens diversos, trabalhadores dependentes (escravos,campone- por milhares de anos e transformando-se sobretudo por sua própria
ses cuja situação era 'variada, grupos temporariamente chamados a dinâmica interna.
prestar a "corvéia real"). Nas duas grandes planícies aluvionais, tais O outro fator que queremos abordar, no tocante à diferenciação
organizações se mantiveram por milênios, mesmo conhecendo perío- espacial das questões que nos interessam, é o das etnias. No início
dos de relativo declínio e mudanças no peso relativo do palácio e dos deste século, muitos especialistas achavam que podiam correlacionar
templos - todos dependentes do rei e compreendidos no Estado - em forma simples a "raça" - conjunto estável de traços físicos transmi-
quanto ao éontrole econpmico. tidos geneticamente - e a cultura. A cada raça corresponderiam,por-

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tanto, características específica~ '-Ie tipo IIngUlstlco, religioso, inte- diferente, teorizada em bases religiosas e amplamente difundida, às
lectual e mesmo quanto aos estilos artísticos. Afastada a noção de ra- monarquias locais, independentemente do território variável que con-
ça, termo impossível de definir séria e cientificamente, e ao qual não seguissem controlar. Em contraste, as regiões periféricas próximo-
corresponde qualquer realidade. palpável, prefere-se trabalhar agora orientais só conheceram Estados meramente territoriais - baseados
com a noção de "etnia". Uma etnia se identifica como um grupo de em federações frouxas e relativamente efêmeras de cidades, conse-
pessoas que apresenta as seguintes características: guidas pela guerra, por tratados e juramentos - ao longo do terceiro e
1. estar estabelecido em caráter durável num território deter- do segundo milênios a.C. O surgimento de Estados nos quais se mani-
minado; festasse uma autoconsciência étnica foi, nessas áreas periféricas, um
2. ter 'im comum especificidades relativamente estáveis de lín- fato tardio, que se manifestou somente na Idade do Ferro, iniciada na
gua e cultura; Ásia Ocidental por volta de 1200 a.C. Daí uma fragilidade maior das
3. reconhecer a diferença com relação a outras etnias ou grupos, monarquias em tais áreas nos dois milênios iniciais da história antiga
bem como sua própria unidade (autoconsciência); do Oriente Próximo, apesar de que também seus reis buscassem a.le-
4. expressar tal unidade reconhecida por meio de uma autode- gitimação religiosa.
signação ou "etnônimo".
Aplicando esta noção ao antigo Oriente Próximo, achamos que,
apesar de estar dividido em diversas cidades-Estadose de apresentar,
de início, duas línguas diferentes (o sumério e o acádio),os habitantes DIVERSIDADE NO TEMPO
sedentários da Baixa Mesopotâmia, região urbanizada desde fins do
quarto milênio a.C., perceberam-se no conjunto, desde muito cedo,
como uma única coletividade étnica delimitada, por contraste, com os Em meados do terceiro milênio a.C., quando começamos a con-
povos nômades pastores dos desertos e montanhas circunvizinhos. tar com fontes mais numerosasdo que as procedentesdos séculos an-
Sublinhavam para si mesmos o fato de terem escrita, templos, reis e teriores, tanto no Egito quanto na Mesopotâmia já aparecem com cla-
cidades, que os vizinhos imediatos não tinham. Analogamente, o Egito reza o complexo palacial e os complexos templários como base de um
também muito cedo se percebeu como coletividade à parte: em forma sistema econômico-social,político'e religioso.
ainda mais excludente que os mesopotâmicos (cujos reis se viam co- Localizados no interior do Estado, palácio e templos repartem en-
m.o "irmãos" ou iguais dos reis de outras regiões civilizadas), os egíp- tre si as atividades básicas. Veremos no capítulo seguinte que tal sis-
cios se consideravam como a única humanidade cabal, e os outros p0- tema foi alcançado por caminhos diferentes e mesmo inversos e teve,
vos subumanos, naturalmente inferiores e destinados à subjugação por muito tempo, evoluções divergentes nas duas regiões nucleares.
pelo faraó divino. Seja como for, o sistema em questão dominou todo o conjunto próxi-
mo-oriental durante um longo período, até pelo menos 1200 a.C.
aproximadamente, adotado que foi - pelo menos no seu aspecto pa-
A Formação das Etnias lacial - em outras regiões daquela parte do mundo. Em ambas as
zonas nucleares, segundo já foi mencionado, e em outras mais tar-
de, ele fundamentava o regime que pode ser chamado genericamente
Em contraste, verdadeiras etnias demoraram muito mais a for- de "monarquia teocrática" (isto é, de base divina ou religiosa), se
mar-se na Síria-Palestina, na Ásia Menor, no Irã, onde as condições bem que suas modalidades fossem bastante distintas no caso egípcio
ecológicas, a baixa densidade demográfica, as comunicações difíceis, e no mesopotâmico. Na parte final do terceiro milênio a.C. também na
impuseram sérios limites a uma centralização efetiva e durável do po- Mesopotâmia assistimos à divinização dos governantes supremos. In-
der - presente, pelo contrário, no Egito desde o início da vida civilizada dependentemente das diferenças, porém, naquelas zonas e em todas
e tentada com sucesso variável desde cedo na Mesopotâmia. Embora as outras o monarca era sempre responsável pela construção e manu-
os impérios mesopotâmicos tenham sido efêmeros por muito tempo, tenção dos santuários, e pelo bom andamento dos cultos divinos em
mantinha-se a noção de uma unidade étnica, dando uma natureza seu território.

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Se o embasamento religioso do poder foi uma tendência univer- rear, baseada em carros leves puxados por cavalos. Não somente sur-
sal desde o início no Oriente Próximo, também o foi o aspecto mi- giram grandes exércitos profissionais, como também se constituiu uma
litar do poder monárquico. Na prática, nem todos os reis foram guerrei- burocracia estatal bem mais numerosa e complexa do que no passado.
ros, mas sempre se manteve a noção do monarca ideal como chefe Em função das guerras e alianças, o Oriente Próximo viu-se dividido
militar vitorioso, não somente com a finalidade de defender o seu rei-
em grandes blocos político::;- sendo-os mais importantes os impérios
no, mas também de ampliar-lhe as riquezas por meio das armas atra- egípcio e hitita -, comandados por monarcas que, sem prejuízo de re-
vés do saque, do tributo imposto aos vencidos, dos prisioneiros de soiverem os seus conflitos no campo de batalha em certas ocasiões,
guerra escravizados. trocavam habitualmente entre si embaixadas,cartas e presentes.Cada
Por fim, a imagem real formada no primeiro milênio da longa his- um destes reis controlava em grau maior ou menor diversos pequenos
tória próximo-oriental, e mantida depois nos seus traços básicos, reinos ou principados dependentes. Tanto ideologicamente quanto de
incluía ainda, entre as atribuições centrais do rei, a administração fato, as atividades privadas, mesmo quando muito importantes - como
e a justiça em seu nível mais alto. Como administrador e juiz, era fun- na Mesopotâmia -, viam-sesubordinadasao Estado,ou seja,aossis-
ção do monarca fazer reinar no mundo dos homens uma ordem (que temas palaciais (em certos casos também aos complexos templários).
antes de ser humana, era divina e natural - já que os deuses coman- Por volta de 1200 a.C. - quando, na Ásia Ocidental mas não ain-
davam o cosmo), que se opunha às forças sempre ameaçadoras da da no Egito, teve início a Idade do Ferro.-, abriu-se um período de
desordem, do caos. transformações essenciais. Esse período foi marcado por muitos mo-
No terceiro milênio a.C., além do Egito e da Mesopotâmia, so- vimentos de povos, mudanças na tecnologia dos transportes (expan-
mente duas outras áreas aparecem iluminadas pelas fontes escritas são do uso do dromedário, permitindo atravessar habitualmente os de-
em suas estruturas sociais e políticas: o reino constituído em torno da sertos em lugar de contomá-Ios, e especialização de povos nômades
cidade de Ebla (cujos arquivos começaram a ser descobertos e deci- no comércio de caravanas; além da ampliação da navegação de longo
frados em 1975), na Síria setentrional, e o Elam, região de transição curso e de alto mar, em contraste com a tímida cabotagem anterior),
entre o sul da Mesopotâmia e o planalto iraniano. generalização das ferramentas de metal, novas técnicas de combate,
No milênio seguinte, porém, os documentos disponíveis nos per- mudanças na distribuição dos assentamentos humanos e às vezes em
mitem conhecer um panorama bem mais amplo e diversificado. A Asia sua forma. Na nova fase, muitos dos complexos palaciais desaparece-
Menor e a Síria-Palestina passam então a integrar o quadro, de início ram; mas, mesmo nos casos em que se mantiveram, já não podiam
divididas numa multidão de cidades-Estados independentes.Da união monopolizar, como no passado, uma parcela tão importante das ativi-
dinástica (isto é, sob uma mesma família reinante) ou da unificação dades sociais. O comércio privado se tomou mais presente e variado,
pela força das armas de diversas cidades-Estados, nasceu uma nova além de mais autônomo; suas rotas e seu raio de operações se fize-
estruturação política: a dos Estados monárquicos federais. Também ram mais extensos por terra e por mar. As relações entre palácio e
eles tinham à frente um soberano que, de algum modo, buscava legi- templos foram em certos casos (o Império Neobabilônico, por exemplo)
timação divina para o seu poder. No entanto, tratava-se de um "rei dos radicalmente redefinidas.
reis", já que sob sua suserania reinavam numerosos reis ou príncipes Num primeiro momento, o vazio de poder deixado pela retração
menos importantes, os quais, por sua vez, subordinavam cidades me- (é o caso do Egito) ou o desaparecimento (é o caso do reino hitita) de
nores. Tais Estados federais apresentavam um aspecto muito movedi- Estados que mantinham antes grandes impérios conduziu à multiplica-
ço, ao sabor das guerras e dos jogos dinásticos. Outrossim, eram Es- ção e a um breve florescim~nto de Estados independentesde pequeno
tados exclusivamente territoriais e não entidades de fundo étnico claro. ou médio porte. Exemplo disso foram as cidades-Estado fenicias e fi-
O apogeu do sistema palaciaJtradicional (e por vezes também do listéias, Israel, os reinos aramaicos da Siria (em especial o de Damas-
templário), nas mais antigas regiões urbanizadas como ainda no caso co), que já não eram meras expressões territoriais, e sim algo etnica-
dos dois mais importantes Estados federais - o reino hitita, centrado mente consistente. Passados alguns séculos, no entanto, a crescente
na Ásia Menor, e o reino do Mitanni, na Síria setentrional e no norte da
integração próximo-oriental foi sancionada pela formação de impérios
Mesopotâmia - foi alcançado a partir de meados do segundo milênio bem mais extensos mas, ao mesmo tempo, bem mais sofisticados,
a.C., quando se difundiu no Oriente Próximo uma nova forma de guer- sistemáticos e coerentes em sua organização do que os que haviam
20 21

I
.
-
marcado a Idade do Bronze mesmo se sua forma conti.nuavare-
cordando a dos velhos Estados federais, com um Grande Rei su- 2
bordinando soberanos e potentados menores. A legitimação do p0- BAIXA MESOPOTÂMIA E EGITO
der monárquico continuava a passar, como antes, pela religião,
mas em alguns casos - como no reino de Israel e nos dois Estados NO MilÊNIO INICIAL DA VIDA CIViliZADA
menores em que. depois veio a dividir-se- segundo formas inéditas.
O surgimento de imensos impérios levou, ainda, à necessidade de de-
finir a atitude dos Grandes Reis em relação aos deuses e cultos das
diversas partes de seus territórios. Por estas é outras razões, o pri-
meiro milênio a.C. apresenta forte originalidadequando o comparamos
às épocas precedentes.

o NOSSO TEMA

O lONGO CAMINHO EM DIREÇÃO À


URBANIZAÇÃO NA ÁSIA OCIDENTAL
Não é nosso objetivo descrever a história política do anti-
go Oriente Próximo, e ainda menos a sua história religiosa. Este livro
se destina a esclarecer as relações entre política e religião, no âmbito O Oriente Próximo asiático já conhecia, por volta de 7000, al-
da teoria, das concepções, mas também naquele, mais concreto, de deias neolíticas plenamente sedentárias, ou seja, comunidades que
como lidavam os reis com os santuários e seus sacerdotes. É óbvio, baseavam sua subsistência numa agropecuária estável e não mais na
entretanto, que não o poderemos fazer sem fornecer algum esboço caça, na pesca e na coleta de plantas selvagens. Quatro mil anos de-
das estruturas político-institucionais e religiosas vistas em seu contex- pois, por volta de.3100-2900, a Baixa Mesopotâmia estava já urbani-
to histórico. zada, apresentando quatorze cidades mais importantes que subordina-
vam outras menores.e numerosas aldeias. Trata-se, de fato, da mais
- Acabamos de focalizar a grande diversidade que marca a nossa
artiga região do planeta a urbanizar-se. Por isto mesmo, no Velho
temática no espaço e no tempo. Ela nos força, sob pena de excessiva Mundo, constituiu-se na única área que efetuou por si só tal processo,
superficialidade, a algum tipo de escolha, não sendo possível que sem dispor de modelos externos a que se pudesse referir. Foi preciso,
abordemos todos os casos de todos os períodos.Sendo assim, os pró- ao longo de quatro milênios, ir ,achando soluções para os problemas
ximos capítulos se ocuparão - no tocante às relações entre o poder po- novos que fossem surgindo, enquanto o modo de vida urbano ia se
lítico e a religião - do Egito e da Baixa Mesopotâmia no terceiro milê- consolidando. Por essa' razão o processo foi tão longo. No Egito, do
nio a.C., tomando portanto as regiões nucleares do antigo Oriente em Neolítico pleno às cidades, passaram-se dois milênios e meio, bem
menos tempo do que na Mesopotâmia. No entanto, supõe-se q~e os
sua primeira fase urbana e estatal; do reino hitita, que servirá de egípcios puderam aprender com o processo mesopotâmico de criação
exemplo dos Estados federais do segundo milênio a.C., de Israel, caso de cidades, iniciado antes.
muito especial no que se refere ao nosso tema, exemplificando ainda Note-se que as primeiras etapas do longo caminho que conduziu
os pequenos e médios Estados independentesda fase inicial da Idade ao modo urbano de vida estão apresentadas na Alta mas não na Baixa
do Ferro (passagem do segundo para o primeiro milênio a.C.). Mesopotâmia. Esta última região, planície aluvial do Tigre e do Eufra-
Posto que todas as datas de que falaremos são anteriores à era tes, só foi ocupada permanentemen.tea partir do quinto milênio. Entre
cristã, eliminaremos doravante a expressão "antes de Cristo" (a.C.). 5000 e 3500, conheceu uma fase, a de Ubaid, em que o modo de vida

22 23

.
era neolítico; a partir de 4500 já se fabricavam objetos de cobre. Os pleta na Baixa Mesopotãmia do terceiro milênio, embora devessem
inícios da urbanização e da escrita caracterizaram a etapa seguinte, a reaparecer as tribos no futuro, em função de imigrações como a dos
de Uruk, de 3500 a 3100, completando-se a transição à civilização ur- amoritas e a dos ca/deus; os templos, entendidos também como com-
bana no período de Jemdet-Nasr - 3100 a 2900 -, com o qual come- plexos econômicos e administrativos, além de terem funções religio-
çou a Época Inicial do Bronze. sas; e o palácio real, igualmente um complexo com múltiplas funções.
As cidades nascentes da Baixa Mesopotãmia tiveram de enfren- O fato de que, no quarto milênio, os edifícios maiores em cada
tar dificuldades consideráveis. A agricultura de chuva não é praticável aglomeração baixo-mesopotãmicafossem invariavelmente templos in-
na região, cujo povoamento depende dos rios. Tais rios se acham em duziu a que diversos especialistas pensassem ser aqueles, desde o
vazante na parte do ano em que é preciso semear. A cheia tem efeito começo do processo de urbanização, os órgãos institucionais encarre-
fertilizador; mas dá-se numa época em que os cereais cultivados estão gados de administrar as comunidades que se urbanizavam.São coisas
já crescidos e, em sua violência, ameaça levá-Iosde roldão juntamente distintas, porém, o templo considerado como edifício de culto e como
com rebanhos e casas. Devia-se, portanto, dispor de reservas de água complexo econômico e político-administrativo. A primeira coisa não
para irrigação nos meses mais secos, e de obras de proteção contra os implica necessariamente a outra. Achamos que, embora nas aglome-
piores efeitos das enchentes fluviais. Estas necessidades levaram a rações que se transformavam em cidades aos poucos houvesse san-
um sistema complexo de barragens, diques, canais de irrigação e ca- tuários, não existiam ainda os complexos templários; e que naquela
nais de drenagem, cuja manutenção e extensão exigiram enorme e fase as decisões mais importantes eram tomadas por dois órgãos que
constante esforço. são atestados em épocas posteriores, embora com funções diminuí-
A Mesopotãmia tinha à sua volta estepes habitadas por nômades das: o conselho de anciãos (notáveis locais mais do que necessaria-
criadores a oeste, e a leste montanhas, povoadas analogamente por mente pessoas idosas) e a assembléia dos homens livres (não sabe-
pastores nômades. A planície fértil do Eufrates e do Tigre tinha de mos se de todos eles, já que as cidades em formação certamente já
ser-Ihes disputada com armas na mão, já que em muitas ocasiões ten- não eram igualitárias). De início, é possível que também mulheres fos-
tavam nela estabelecer-se ou, simplesmente, pilhar os assentamentos sem admitidas a esses órgãos colegiados, embora tal não ocorresse
sedentários. Estes últimos, aliás, também competiam entre si pelos re- em períodos posteriores. O surgimento dos templos como complexos
cursos naturais: águas, campos, bosq'uesde tamareiras. A metalurgia político-econômicos com controle sobre a administração ocorreu ainda
nascente não seria possível sem a organização de trocas regulares no quarto milênio, como se depreende das primeiras fontes escritas
com o exterior, sendo a Baixa Mesopotãmia desprovida de minérios. decifráveis. Mas o palácio real como entidade diferente dos templos,
Outras matérias-primas ainda - pedra, madeira - só poderiam ser ob- deles separada no espaço, só apareceu, segundo dados arqueológicos,
tidas fora da região. As escavações arqueológicas comprovam que, em pleno terceiro milênio.
desde a Pré-História, tais trocas foram efetuadas, às vezes a distân- Parece-nos necessário postular a seqüência acima para explicar
cias muito consideráveis.
dois fatos que diferenciam a Baixa Mesopotãmia do início dos tempos
A pergunta pertinente para a história político-institucional da re- históricos - isto é, dos primeiros séculos suficientemente iluminados
gião é: quem tinha a responsabilidade de procurar soluções para os por fontes escritas - do Egito da mesma época. Primeiro, estar o sul
problemas que acabamos de resumir? Uma resposta com plena com- da Mesopotãmia dividido, então, em uma dúzia de cidades-Estados
provação documental é impossível, posto que a escrita só apareceu bem consolidadas e ciosas de sua independência,em contraste com a
quando a urbanização se estava completando, e a arqueologia não emergência do Egito histórico já como um reino centralizado. Em se-
ilumina facilmente os aspectos institucionais. Assim, o que vamos gundo lugar, existia, ao longo de milênios em cada cidade baixo-me-
apresentar agora não passa de uma hipótese. sopotãmica, privilégios fiscais, legais e de jurisdição reconhecidos aos
É nossa opinião que três instituições, sucessivamente mais re- homens livres proprietários, vistos como um corpo de cidadãos dota-
centes, encarregaram-sede enfrentar as dificuldades que apareceram dos de direitos bem estabelecidos - coisa desconhecida no Egito.
ao longo do processo de urbanização e, depois, no período inicial da Ambos os traços distintivos do sul mesopotãmico se tornam compre-
vida já totalmente urbana: órgãos colegiados derivados inicialmente da ensíveis se se admitir a origem tribal - e portanto local e dispersa _
organização tribal, mas que sobreviveram à destribalização - já com- dos primeiros órgãos colegiados de poder que existiram nas cidades
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~
t

nascentes, bem como o surgimento relativamente tardio de instituições viviam mercadores estrangeiros, proibidos de instalar-se na cida-
centralizadoras e subordinadoras como os complexos temporários e a de amuralhada. O setor urbano servia de núcleo a um território de
monarquia. extensão variável, mas nunca muito grande, que continha cidades me-
nores, povoados, aldeias numerosas, campos, pastagens, bosques de
tamareiras.
Antes de meados do terceiro milênio, as instituições políticas p0-
DAS CIDADES-ESTADOS AOS dem ser imperfeitamente vislumbradas através de poemas épicos, tex-
PRIMEIROS IMPÉRIOS MESOPOTÂMICOS tos religiosos e alguns outros tipos de escritos; as fontes literárias são
quase sempre tardias mas referidas àquele remoto passado. Em certos
casos também são utilizáveis dados arqueológicos. Estes últimas de-
Do ponto de vista lingüístico, a Baixa Mesopotâmia do terceiro monstram que no início da vida urbana não existiam palácios reais se-
milênio dividia-se em duas partes: a Suméria, ao sul, onde predomina- parados dos templos. Era no interior destes que, numa parte especial
va o sumério, língua sem vínculos conhecidos que deixaria de ser fala- do santuário, residia um funcionário chamado en ("senhor'), espécie de
da por volta de 1900; e o país de Ak~ad, ao norte, onde se concentra- sumo sacerdote e, nos casos em que fosse do sexo masculino (pois
vam na sua maioria os que falavam o acádio, língua pertencente ao em certas cidades tratava-se de uma mulher), ao mesmo tempo encar-
grupo semita e que viria a prevalecer em toda a região. No passado, regado da chefia militar e de tarefas administrativas, como acontecia
acreditava-se terem "sumério" e "acádio" conotações não apenas lin- especialmente em Uruk.
güísticas: tais categorias eram vistas como reunindo característicasra- Alguns autores acham que o en era eleito pela assembléia dos
ciais, lingüísticas e culturais ao mesmo tempo. Assim, opunha-se uma homens livres da cidade-Estado,que em certas ocasiões também p0-
propensão (supostamente semítica) à propriedadeprivada à propensão dia eleger - temporariamente, em situações de grave perigo externo
(que seria suméria) à economia dominada pelo palácio real ou pelos para a cidade - uni verdadeiro monarca. A monarquia teria sido, então,
templos; ou se pretendia que os sumérios adoravam personificações ocasional, e eletiva em seus primeiros tempos. Outrossim, o ~eidevia
locais de forças da natureza, enquanto os semitas tendiam a relacionar consultar o conselho e a assembléia antes de empreendercampanhas
os deuses com o direito, a moral e a ordem social. Tudo isto não pas- militares. Há, pouco antes da metade do terceiro milênio, sinais que
sa de rematada tolice. As eventuais variações culturais que venham a alguns interpretam como indicadores da existência de uma "realeza
ser percebidas no tempo e no espaço, no tocante à civilização meso- sagrada". Nas tumbas reais da cidade meridional de Ur, indivíduos,
potâmica, deverão explicar-se historicamente e não através do pseudo- em certos casos identificados positivamente como reis, foram naquela
conceito de "raça". E, na verdade, o que chama a atenção na época época enterrados com rica dotação funerária, acompanhados de con-
que abordamos é sobretudo a homogeneidade cultural mesopotâmica, cubinas e serviçais mortos ritualmente, costume que não se manteve
apesar dos dois domínios lingüísticos existentes - aliás, difíceis de cir- em fases posteriores. Estas diversas indicações esparsas sobre as
cunscrever. modalidades de governantes.supremosna Baixa Mesopotâmia são di-
Em toda a Baixa Mesopotâmia, quando, por volta de meados do fíceis de conciliar e parecem até certo ponto contraditórias. Não
terceiro milênio, as fontes mais abundantes permitem-nos enxergar está excluído que houvesse então considerável heterogeneidade de
com maior çlareza a situação, encontramos cidades-Estados indepen- uma cidade-Estado a outra, além de evoluções no tempo que mal p0-
dentes. Cada uma delas, em seu setor urbano, compreendia três par- demos adivinhar.
tes: a cidade stricto sensu, amuralhada; o que os sumérios chamavam Na segunda metade do terceiro milênio, o título en tomara-se
de "cidade externa", situada fora dos muros, que entremeava zonas re- somente sacerdotal. O rei, desde havia alguns séculos, passara a resi-
sidenciais, terras cultivadas e estábulos que, ao que parece, perten- dir em um palácio completamente separado do templo e já não era
ciam aos residentes das cidades (o que explicaria o aparecimento tar- sumo sacerdote, embora desempenhasse ainda funções religiosas im-
dio, nestas últimas, dos mercados de víveres); e o porto-fluvial quase portantes, como depois veremos. Os títulos que comumente aparecem
sempre, ainda que freqüentado por barcos que também navegavam no na documentação da época são: ensi, "governador', atribuído ao chefe
golpo Pérsico -, onde se concentrava o comércio exterior e onde de uma única cidade-Estado; e fugaf, "rei" (literalmente: "grande ho-

26 27
venientes do Elam, região que faz a transição geográfica entre a planí-
mem"), reservado ao líder que conseguisse estender sua autoridade a cie baixo-mesopotâmica e o montanhoso Irã), um bem organizado cor-
várias cidades-Estados,cujos ens; passavam a ser subordinadosseus. reio real, um sistema de remuneração dos burocratas através de ra-
A verdadeira monarquia (nam-Iugal) exigia o controle da cidade de ções e de terras dadas em usufruto, esforços em direção a certa unifi-
Nippur, cujo santuário era o centro religioso da Suméria, e era sacra- cação da legislação que incluíram a promulgação da primeira compila-
mentada pelo título de "rei de Kish" (cidade que, segundo parece, ção importante de precedentes judiciários ou "julgamentos típicos" fei-
exercera a hegemonia no período iniciado por volta de 2900 ou, como ta na Mesopotâmia: as leis de Urnammu, fundador do império. Tam-
diriam, os sumérios, "depois do dilúvio"). O comando militar, necessá- bém neste caso, o império sucumbiu às rebeliões internas e aos ata-
rio à defesa do território e das rotas comerciais bem como à conquista ques vindos do exterior. as campanhas e imigrações dos amoritas
e ao saque, foi fator essencial no surgimento.de uma monarquia per- (nômades semitas provenientes do oeste) e os ataques dos elamitas,
manente hereditária e separada dos templos. As funções político-ad- que destruíram e saquearam a cidade de Ur em 2004.
ministrativas destes últimos, como também. as do conselho e da as- Não obstante o caráter efêmero destes impérios, ao terminar o
sembléia, diminuíram à medida que se consolidava o poder monárqui- terceiro milênio o regime monárquico, centrado no palácio real, estava
co. O título de ens; ligava-se estreitamente às atividades administrati- bem consolidado e apresentavacontornos institucionais nítidos na Me-
vas e especialmente à supervisão das obras de irrigação. sopotâmia. No interior do Estado, o palácio se tornara econômica e
A partir de meados do terceiro milênio, o particularismo das cida- politicamente muito mais importante do que os templos. No entanto,
des-Estados dá a impressão de chocar-secom uma consciência étnica ainda durante os períodos de apogeu imperial, o poder monárquico
unitária na Baixa Mesopotâmia, servindo esta de base a hegemonias nunca se aproximou do modelo autocrático egípcio. Mesmo reis que
cada vez mais extensas, que acabaram desembocando em impérios ousaram intitular-se "deuses" reconheciam sua dependência para com
efêmeros, mas crescentemente coerentes em sua organização. O pri- as grandes divindades sumero-acadianas. E os homens livres mais
meiro de tais impérios foi criado por Sargão I, de Akkad (2334-2279), importantes constituíam, em cada cidade, um corpo de cidadãos com
que unificou a Mesopotâmia e seus arredores imediatos, fundando direitos reconhecidos. O papel legislador do rei mesopotâmico, inaugu-
uma capital, Akkad ou Agadé. Exerceu um domínio menos direto sobre rado em escala maior por Urnammu, supunha, aliás, como destinatá-
regiões mais distantes, sobretudo para manter e ampliar as rotas que rios dos códigos legais promulgados (ou, mais exatamente, das cole-
abasteciam a Baixa Mesopotâmia em minérios, pedra e madeira, além ções de jurisprudência), cidadãos que tivessem existência própria, não
de artigos de luxo. A nomeação - ainda que não em todas as cidades sendo exclusivamente súditos e dependentes do rei. O objeto da pro-
_
dominadas de govemadores acadianos, em muitos casos parentes mulgação era, de fato, tentar regular as relações dos cidadãos entre si
do rei, pretendia diminuir a autonomia das cidades-Estados.O exército e com o Estado, além de demonstrar que o monarca cumpria sua fun-
foi ampliado, assim como o palácio real como máquina burocrática: ção de promover a justiça nos territórios sob sua administração. Um
Sargão se gabava de que mais de cinco mil homens comessem à sua dos sinais de que a autonomia dos cidadãos era reconhecidafoi a ma-
mesa todos os dias. Mesmo assim, o império acádio não durou muito, nutenção da assembléia e do conselho nas diversas cidades, mesmo'
em função das revoltas internas e dos ataques externos,desaparecen- quando seus poderes foram drasticamente reduzidos.
do de vez, depois de um longo declínio, em 2154.
. Outro império efêmero sucedeu a um período de descentraliza-

ção e de domínio de estrangeiros - os gútios provenientes do leste,


dos montes Zagros - sobre parte da Baixa Mesopotâmia. O novo im- OS DEUSES E O CULTO
pério, tendo à frente a terceira dinastia da cidade de Ur, existiu entre
2112 e 2004. Foi notável por seu marcante controle econômico. De iní-
cio compreendeu a Mesopotâmia inteira e algumas regiões exteriores. Alguns elementos da evolução das crenças mesopotâmicas no
Cedo, porém, começou a desintegrar-se. Isto ocorreu apesar de pre- tempo podem ser detectados. Enquanto alguns deuses estão compro-
cauções como a separação entre o poder civil e o militar nas cidades vados desde 'muito cedo - Anu, Enlil, Enki... -, outros foram adotados
dominadas, um sistema de guamições possibilitado por um grande mais tardiamente na região, como Dagan ou Annunítum. Há exemplos,
exército (caracterizado, em especial, por numerosos mercenários pro-
29
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r- -
'ainda, de personagens hoje consideradas históricas divinizadas pos- popular, bastante mais acerca da religião dos templos, ainda mais da
tumamente, como o en Gilgamesh de Uruk. E podem ser percebidas religião monárquica, bem servida de fontes.
mudanças na forma de encarar e conceber as divindades. Inanna, de As maiores dentre as numerosas divindades sumero-acadianas
início muito próxima da Grande Mãe pré-históricaem sua qualidade de eram Anu {em acádio An), senhor da abóbada celeste, Enlil, senhor do
deusa do amor e da fertilidade, adquiriu posteriormente também um ar que separa o céu da terra, Enki (em acádio Ea), senhor das águas e
marcado caráter militar. O surgimento da monarquia estável e heredi- uma espécie de herói cultural encarregado de ordenar a natureza e o
tária, de hegemonias e impérios, foi projetado no mundo dos deuses, mundo dos homens, a deusa Ninhursag ou Nintu, mãe cósmica, além
imaginados a partir de meados do terceiro milênio como membros de de três deuses identificados com astros: o deus da Lua, Nanna ou Sin;
um Estado organizado e hierárquico em que Anu - ou, em certos ca- o Sol, Utu (em acádio Shamash), filho de Enlil; e a deusa do planeta
sos, Ehlil- presidia o conselho e a assembléia divinos. Em especial, as Vênus, Inanna (em acádio IShtar),senhora da fertilidade que se tomou
transformações polfticas humanas influenciaram o mito do deus Ninur- esposa de Anu mas também estava associada a Dumuzi ou Tammuz,
ta, guerreiro descrito como comandante de um exército permanente. que alguns crêem ser um mortal divinizado e que, como deus, repre-
Uma história suficientemente completa da religião mesopotâmica sentava a m'orte e ressurreição anuais da natureza. Estas sete divin-
no terceiro milênio, sobretudo em sua primeira metade, não poderia, dades (não incluído Dumuzi) constituíam o equivalente divino do con-
porém, ser escrita, dado o estado fragmentário das fontes, muitas das selho de anciãos e presidiam a assembléia dos cinqüenta deuses
quais, aliás, foram-nos transmitidas em versões bem tardias. Tratare- maiores, ou Anunnaki ("filhos de Anu").
mos de fazer uma curta descrição que se aplica especialmente à parte Cada grande deus ou deusa, embora fosse objeto de culto em
final do milênio, quando os cultos locais já haviam sido reunidos numa toda a Mesopotâmia, "residia" no seu santuário principal,situado em
visão de conjunto - não de todo coerente, porém, para nosso modo mo- uma só das cidades-Estados: assim, o Eanna era a casa de Inanna,
demo de ver, pois a religião sumero-acadiana,como todas as religiões em Uruk; o Ekur, a de Enlil, em Nippur; o Ekishnugal, a de Nanna em
não-reveladas,evoluía em forma mais livre e complexa do que as reli- Ur, etc. Habitualmente com seu cônjuge, filhos e outras divindades as-
giões reveladas posteriorescomo o cristianismo, o islamismo, etc.: sociadas, o deus ou deusa principal da cidade tinha no grande templo
local o seu palácio, e ali a sua imagem - sendo os deuses mesopotâ-
Desenvolvimentos locais sob pressão polftica. crescimentos inacabados micos sempre representados em forma humana - recebia duas refei-
e mutações de origem incerta fornecem, em qualquer momento dado do ções diárias, roupas, adereços e outras oferendas, juntamente com as
tempo, o que pode ser considerado um conglomerado elástico, para usar imagens dos membros divinos de sua família e de sua corte.
um termo geológico. Numa visão diacrõnica, tais transformações são de Os cidadãos comuns não tinham acesso às partes lTIaisíntimas
complexidade multiforme, nunca vista, desafiando a análise e mesmo a dos templos, consideradas,como os aposentos do deus da cidade. As
identificação de seus componentes. (A. Leó 'Oppenheim) estátuas divinas eram visíveis para a massa do.povo unicamente nas
festas em que saíam em procissão. O fiel pOdiaser autorizado, entre-
Uma das explicações de tamanha complexidade é que, mais do tanto, a.dedicar sua própria estátua na postura de alguém que reza, a
qual era então posta na presença divina.
que de "religião", deveríamos falar de "religiões". Por um lado, o cará-
ter localmente variável das crenças e cultos nunca se perdeu de todo. Os melhores animais sacrificados, as melhores comidas e bebi-
Por outro lado, há três níveis a considerar: a religião sacerdotal dos das encaminhadas ao templo, destinavam-se à mesa portátil pos-
templos, centrada no serviço à imagem divina em seu santuário, es- ta diante das imagens divinas duas vezes por dia; mas uma quantida-
tando este fechado, na sua maior parte, à imensa maioria das pes- de muito maior de vitualhas ganhava diariamente os santuários, para
soas; a religião monárquica, que se referia às funções religiosas reser- alimentação dos sacerdotes e outros dependentes dos deuses (arte-
vadas ao soberano e dependia também das preferências de cada rei sãos, músicos, trabalhadores e serviçais diversos, etc.). O culto diário,
em matéria de cultos; e a religião dos homens comuns, que só partici- com seu acompanhamento de orações, não esgotava as obrigações
sacerdotais maiores: havia numerosos festivais religiosos ao longo do
pavam de longe ou como espectadores da maioria das grandes ceri- ano; em alguns dos quais o rei devia participar pessoalmente. Os sa-
mônias religiosas oficiais e freqüentavam usualmente pequenas ca- cerdotes organizavam-se hierarquicamente e segundo uma estrita divi-
pelas situadas em zonas residenciais. Quase nada se sabe da religião são do trabalho. '

30 31
Ao lado dos aspectos centraisda religião - culto diário, festivais -,
outros existiam. O domínio dos mortos, visto pelos habitantes da Me-
sopotãmia como lugar atroz, era governado pelo deus Nergal e sua A MONARQUIA E OS DEUSES NA
esposa Ereshkigal, também associados, ao lado de numerosos dem~ BAIXA MESOPOTÂMIA DO TERCEIRO MILÊNIO
nios e de almas não apaziguadas por oferendas dos parentes sobrevi-
ventes, às pestes e doenças. Aplacá-Ios,afastando-os dos afligidos por
enfermidades ou possessões, propiciar o bom andamento da natureza
e da vida social ou individual apelando aos deuses, procurar auscultar Na concepção mesopotâmica do universo, não há qualquer des-
a vontade divina, eram tarefas que os sacerdotes executavam tanto continuidade entre mundo humano, mundo natural e mundo divino.
para reis quanto para plebeus através da magia, de exorcismos,de sa- Não há, ainda, oposiçãoentre entes animadose coisas inanimadas,
crifícios propiciatórios, de técnicas diversas de adivinhação e de inter- pois tudo é animado,dotado de vontade,portantosuscetívelde res-
pretação dos sonhos. ponder aos homens de pessoa a pessoa. Isto porque os deuses cria-
A virtude, a justiça e a ética, comumente associadas a Utu ou ram o homem e o universo com tudo que contém, incluindotodas as
Shamash, o deus solar, não podiam garantir uma vida feliz no além- regras de funcionamento do cosmo e da civilização,e continuam a di-
túmulo. A noção de um julgamento dos mortos desenvolveu-sepouco.
rigire dar coerência à sua criação. Inexistemcortes ou fraturas a sepa-
Era sobretudo nesta vida e neste mundo que a religião buscava fun-
rar o social, o natural e o divino,havendo pelo contráriototal homoge-
damentar os princípios de justiça, eqüidade e piedade. As doenças tra-
neidade de princípios e funcionamento entre tais níveis da realidade.
zidas por demõnios eram vistas como punição de alguma ofensa vo-
luntária ou involuntária contra os deuses, ou contra certas regras do Também a monarquia é uma criação divina.Trata-se do primeiro
convívio social. Mas a ofensa ao deus tanto podia ser moral quanto ri- e mais importante dos elementos ou leis universais (mes). "Arealeza
tual. Eis aqui algumas das perguntas que constam de um texto que desceu do céu", diz-nosa Lista Real Suméfla; nao uma, mas duas
deveria ser lido pelo exorcista: vezes. Com efeito, a primeira humanidadeirritara os deuses, cuja
Pecou ele contra um deus? assembléiadecidiu.eliminá-Iapor meio do dilúvio,uma inundaçãode
É a sua culpa contra uma deusa? que escapou, por ação do deus Enki, o rei Ziusudra (mais tarde, cha-
Trata-se de uma má ação para com seu senhor, mado Utinapishtim) de Shuruppak, juntamente com sua esposa _
ou de ódio para com seu irmão mais velho?
Desprezou ele o pai ou a mãe? (...)
constituindoambos a semente de umanovahumanidade. Após o dilú-
Usou ele pesos falsificados? vio, "a realeza desceu de novo do céu", instalando-se, primeiro,na ci-
dade de Kish.
Fixou ele um falso limite [nos campos] ? (...)
Apoderou-se ele da esposa de um vizinho?
Os homens foram criados para o serviço dos deuses.Já antes do
Derramou ele o sangue de um vizinho? (...)
(Jacquetta Hawkes) dilúvio, o deus supremo - o texto sumério que se refere ao dilúvio dei-
-
xa nasombrase se tratade Anuou de Enlil fundou pessoalmente as
Em épocas posteriores, dois mil anos depois do período que aqui cinco primeiras cidades-Estados, deu-Ihes os seus nomes, e atribuiu
examinamos, houve, sem dúvida, um desenvolvimento maior da ética cada uma a uma divindade como centro de seu culto:
mesopotâmica de base religiosa. Nos mitos sumero-acadianos, no en-
tanto, os próprios deuses cometiam atos de estupro, adultério, ciúme,
engano, roubo, assassinato, embriaguez, etc., sem que aparentemente A primeira destas cidades, Eridu, ele deu a Nudimmud [Le., EnkiJ, o Ifder;
isto escandalizasse os fiéis. Afinal,da lista de uma centena de mes - a segunda, Badtibira, ele deu a Latarak;
elementos ou leis criados pelos deuses e julgados necessários para a a terceira, Larak, ele deu a Endurbilhursag;
boa ordem e a continuidade do universo - constavam a prostituição,a a quarta, Sippar, ele deu ao herói Utu;
inimizade, a destruição de cidades, a falsidade, o terror, o combate, a quinta, Shuruppak, ele deu a Sud [Le. Ninlil, esposa de Enlil].
tanto quanto o sacerdócio, a bondade, a justiça, a paz ou a sabedoria... (James. B. Pritchard)

32 33

1
DivindadesLocais ser "rei de Akkad, capatazde Ishtar,rei de Kish,sacerdoteungidode
Anu, rei do país, grande ensi de Enlil", além de afirmar que Enlil lhe
Analogamente, no mundo pós-diluviano, cada cidade-Estado concedera todos os territórios entre o Mediterrâneo e o golfo Pérsico.
"pertencia" ao deus ou deusa que ali ocupava o templo principal. Os Por sua vez, o primeiro rei da terceira dinastia de Ur, Urnammu (2112-
seus habitantes - e em primeiro lugar o principal dentre eles por sua 2095), disse no prólogo de suas leis que era rei de Ur, de Sumer e Ak-
posição, fosse o seu título en, ensi ou fugal - existiam para servir à di- kad "pelo poder de Nanna", o deus lunar de Ur, e que "de acordo com
vindade local. Os governantes supremos são representados às vezes
a verdadeira palavra de Utu" (o deus solar) é que ele "estabeleceu a
carregando à cabeça materiais de construção para elevar ou reparar b
eqüidade na terra e baniu a maldição, a violência e a luta". O monarca
templo maior de sua cidade: um exemplo antigo é o do fugaf Urnanshe
de Lagash (2494-2465). e
é um agente da ordem, mas a ordem acima de tudo cósmica, ela
Em troca, a divindade concedia ao rei o ofício monárquico. Mes- vem dos deuses. .

mo os conquistadores.e fundadores de impérios reconheciama origem


divina do seu poder. Sargão de Akkad (2334-2279) declarou, em uma
inscrição de Nippur de que temos a cópia em uma tabuinha de barro, Vínculos Estreitos
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Os vínculos entre o'rei e a esfera do divino eram estreitos. O so-
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, . sua querida mãe que o levou no ventre". Outrossim, o rei tinha direito
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dLiasvezes por dia diante da principal divindade da cidade, depois que
esta as consumia misticamente. Sargão de Akkad inaugurou um outro

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traço de união com o mundo divino, a tradição (que durou meio milê-
nio) de que a filha do governante supremo se tornasse sacerdotisa
principal do deus Nanna ou Sin da cidade de Ur.
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impérios, tiveram influência na concepção do mundo divino como um
Estado cósmico. No entanto, esta maneira de ver, uma vez formada,
por sua vez se reflete na teoria ao mesmo tempo religiosa e política
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do como uma espécie de cidadão do Estado cósmico presidido por
Anu e Enlil; a "sua" cidade-Estado era, neste mundo terrestre, o domí-
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rf<Fw:'~:1 : ! \ \ ! ~:. nio de onde retirava comida, roupa e alojamento. Os cidadãos locais,
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M;';~/~'~~N~";';,""'~;~1.~~~~~~
..,' " ;: :'~\;;::V,i' ~ i!; 'I. J humana aparecia como um subprodutoda ab.undãnciaque o deus pro-
piciava à sua cidade para seus próprios fins pessoais. O Estado hu-
mano funcionava como prolongamento ou setor do Estado cósmico,
Figura 2: RELEVO DE ANUBANlNI: Este bai)(()-relevo vem dos limites orientais da Mesopotâ-
divino. Em nome do deus da sua cidade - ou, nos períodos imperiais,
mia (montes Zagros), mas está dentro da tradição mesopotâmica: o monarca vitorioso do povo do deus da cidade capital - o monarca governava,julgava, agia, com-
montanhês dos lullubi atribuiu à deusa da fertilidade Inanna (de cujo corpo brotam plantas) a
sua vitória sobre inimigos aprisionados. Note-se a diferença de escala na representação do rei batia. Em outras palavras, teoricamente o rei não passava de capataz,
e da deusa, por um lado, e dos vencidos. por outro. mordomo ou representante da divindade, e assim o reconhecia em
FONTE: Wiesner, Joseph. Oriente antigo. Lisboa, Verbo, 1968, p. 48.

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1
seus textos.· Isto implicava a necessidade de consulta permanente Possa ele tornar os campos produtivos como o cultivador,
dos designios supremos do deus. Antes de decidir-se e agir, o rei me- Possa ele multiplicaros rebanhos como um pastor de confiança.
sopotâmico consultava e interpretava, por meio dos sacerdotes, as Sob seu reinado,que haja plantas e grãos,
mensagens divinas que lhe chegavam nos seus próprios sonhos, na Que, no rio, haja água de sobra,
forma de acontecimentos portentosos, inscritas nas entranhas dos Que no campo possa haver uma segunda colheita [literalmente: grão
animais sacrificados. Com o tempo, verdadeiros catálogos de interpre- tardio),
tações desses signos da vontade divina foram compilados para servir Que no pântano haja peixes e os pássaros façam muito ruído,
de base às consultas. Que nos caniçais cresçam, altos, os juncos velhos e novos,
Que na estepe cresçam, altas, as árvores,
Note-se que pode ser perigoso estender em forma excessiva a Que nas florestas os cervos e cabras selvagens se multipliquem,
teoria, confundindo-a de todo com a realidade social. Pretendeu-sehá Que o jardim irrigadoproduza mel e vinho,
algumas décadas, por exemplo, que em meados do terceiro milênio os Que nos sulcos as alfaces e verduras cresçam altas,
-
templos e portantoos deuses- fossemos proprietáriosefetivosde Que no palácio haja longa vida,
todas as terras cultivadas de cada cidade-Estado:foi a teoria da "cida- Que ao Tigre e ao Eufrates a água da cheia seja trazida,
de-templo". Isto demonstrou ser falso, e aliás não é algo necessário Que em suas margens a erva cresça alta, e possam os prados ser
cobertos,
para que se cumpra a concepção ideológica de uma propriedade emi-
Que a sagrada rainha da vegetação acumule o grão em altos montes
nente suprema da divindade sobre a cidade. Do mesmo modo, o avan- e pilhas,
ço progressivo do palácio real sobre as terras e rendas tributárias dos Ó minha rainha, rainha do universo, a rainhaque abarca o universo,
templos, mesmo se em certas ocasiões foi visto como um abuso a ser Que ele desfrute de longos dias em teu regaço sagrado!
-
corrigido por exemplo e sobretudo nos textos acerca das reformas (Pritchard)
passageirasdo ensi Urukagina de Lagash (2351-2342)- acabou por se
cumprir irrevogavelmente sem, no entanto, afetar a teoria de serem os Num tal contexto, que significou a divinização do próprio rei,
deuses os "donos" do mundo dos homens. Esta não passava de uma qcorrida nos séculos finais do terceiro milênio? Com efeito, Naram-Sin
concepção teórica, cujo corolário prático era, simplesmente, que os go- (2254-2218), neto de Sargão de Akkad, assumiu em suas inscrições o
vemantes supremos tivessem sempre o cuidado (como de fato tinham) título de "deus de Akkad" e o de "espOso de Ishtar-Annunítum". Mais
de agir em nome dos deuses e de garantir adequada e generosamente tarde, o segundo rei da terceira dinastia de Ur, Shulgi (2094-2047),
os seus santuários e o seu culto. também se divinizou em vida, no que foi imitado por seus sucessores,
sendo que, neste caso, organizou-se um verdadeiro culto em que a
A continuidade que se pressentia entre os níveis humano, natural
imagem real recebia oferendas em templos e capelas como qualquer
e divino da realidade conduziu a que o rei - como intermediário desig-
outra divindade. É possível que a divinização do rei - aliás passageira
nado pelos deuses entre eles mesmos e os homens - participasse de
em termos do conjunto da história da Mesopotâmia - não manifestas-
um festival, estranho e curioso para nós modemos, destinado a liberar
se a intenção de apontar uma mudança de natureza do monarca, mas
os poderes cósmicos da fertilidade,' isto é, a garantir anualmente a
sim de função: com a construção imperial, o rei passava a desempe-
cheia dos rios, a germinação dos cereais, a multiplicação dos homens
nhar um papel no mundo muito mais amplo e exaltado do que no pas-
e dos rebanhos. Referimo-nos ao matrimônio sagrado, cerimônia em sado, e por tal razão comparável ao dos deuses. É também razoável
que o monarca, encarnando um deus, unia-se, uma vez por ano, a uma
pensar que se visse numa tal decisão a apropriação direta, pelo rei,
sacerdotisa que representava a deusa da fertilidade, Inanna ou Ishtar.
das funções judiciárias e legislativas divinas, encarregando-se o
O festival em questão só está solidamente atestado a partir do início
soberano, pessoalmente, do conjunto de compromissos e oprigações
do segundo milênio, mas a maioria dos especialistas o considera mui-
que dava forma à vida social (assim, por ocasião da celebração de
to antigo, ligando-se mesmo, talvez, ao culto pré-históricoda deusa da
contratos, as partes e testemunhas deviam jurar pelos deuses e pelo
Terra, a Grande Mãe. Os textos acerca de tal cerimônia não deixam rei divinizado).
dúvidas sobre as finalidades da mesma. Num deles, diz a oração diri-
Por fim, não se exclui a tentativa de criar um laço direto de leal-
gida à deusa, referindo-seao rei a quem ela se vai unir ritualmente:
dade entre o monarca e os súditos de impérios heterogêneos, nos
36 37

1
Sistemas Locais de Poder
quais eram fortes os elementos dispersivos. Seja como for, mesmo os
reis divinizados em vida proclamaram sua submissão e serviço aos
grandes deuses sumero-acadianos,aos quais não buscaram equiparar-
se e que certamente não queriam substituir. Existem provas indiretas da presença de sistemas locais de p0-
der já consideráveis algumas centenas de anos antes da unificação do
/
país: existência de artesãos de alta qualificação produzindo grandes
quantidades de objetos cerimoniais e de vasos de pedras duras ou de
o SURGIMENTO DO ESTADO FARAÔNICO NO EGITO alabastro; presença de celeiros de grande capacidade; passagem do
cobre martelado a frio à metalurgia, o que supunha a exploração de
minas, o transporte e armazenagem do minério; construções como as
Entre o Neolítico pleno e o surgimento do reino unificado se pas-
de Hieracômpolis, que exigiram para sua ereção algum sistema de dis-
saram no Egito dois milêniqs e meio ou mesmo, segundo certos auto- tribuição de rações aos trabalhadores e, portanto, algum sistema de
res, dois milênios somente, entre 5000 e 3000. A partir da fase de el- tributos que permitisse armazenarexcedentes de cereais.
Badari (4500-4000,mas tais datas são muito inseguras),que inaugura As obras de irrigação, então incipientes, eram da alçada local e
o chamado Período Pré-DiQástico,já surgem no registro arqueológico
regional, não podendo ser consideradas como causa direta da forma-
alguns objetos de cobre martelado, pelo qual fala-se às vezes de Pe-
ríodo Eneolítico: a verdade é, porém, que por muito tempo o modo d~ ção do Estado centralizado. Elas parecem muito ligadas, porém, à
vida das aldeias neolíticas permaneceu inalterado por tal inovação. E formação de cerca de quatro dezenas (um pouco menos no início) de
sobretudo nos últimos séculos do Pré-Dinástico - os quais correspon- entidades territoriais regionais, os spat Ounomos, que mais tarde fun-
dem ao final do quarto milênio - que mudanças sociais maiores pas- cionariam como províncias do reino unificado. É possível imaginar pri-
sam a ser perceptíveis a partir da arqueologia, caracterizando a fase meiro nos nomos o aparecimento das relações urbano-ruraisnascentes
gerzeense ou de Nagada 11. /
e o surgimento em caráter pioneiro de núcleos político-territoriais defi-
O sítio arqueológico de Hieracômpolis, bem ao sul do Vale do nidos, cujo,conflito deve ter desembocado em confederaçõescrescen-
Nilo egípcio, ti,nhano final do Pré-Dinástico uma população importante tes e, por fim, no reino do Egito, duplo mas unido sob um único mo-
que se estava concentrando em aglomerações fortificadas, numa re- narca. Segundo Jean Vercoutter, desde o Neolítico foi tomando forma
gião que contava tom um templo prestigioso e com boas condições a separação entre dois blocos culturais: um deles se situava em volta
para a irrigação baseada nos tanques ou bacias formadas e fertilizadas do Fayum (bacia do lago atualmente chamado Birket Karun, a oeste
naturalmente pelo rio. Isto atraía tal população, numa época de dete- do ponto em que o Vale e o Delta do Nilo se unem) e nos limites do
rioração climática que fez abandonar cada vez mais as antigas este- Delta a noroeste, mas sem chegar até o Mediterrâneo;o outro, no Vale
pes saarianas que atravessavam radical desertificação. A diversifica- do Nilo entre Assiut e Tebas. A diferenciação cultural cedeu lugar a
ção dos graus de riqueza das tumbas mostra, na segunda metade do uma fusão, formando-se uma civilização única pouco antes da unifica-
quarto milênio, uma população socialmente estratificada e já não igua- ção. Objetos que se estendem no tempo do final do período Pré-Dinás-
litária. Há sinais, também, de conflitos com a Núbia (que não passa da tico até a primeira dinastia histórica parecem indicar ligações do Egito
continuação do Vale do Nilo ao sul do Egito), que podem ter favoreci- com a Baixa Mesopotâmia na fase de aproximadamente 3100 até
do localmente a passagem de formas mais difusas de poder a grupos 2900. Alguns autores, como Walter Emery, não hesitaram em basear-
militares definidos com numerososdependentes.
Não é somente em Hieracômpolis que a arqueologia demonstra se em tal fato arqueológico para falar em uma "raça diná~tica" que,
vinda do país do Eufrates e do Tigre, invadira o Egito, trazendo a civili-
a existência de uma diferenciação social naquela época. De um modo
zação e mesmo a unidade política. Esta teoria está hoje desacredita-
geral, enquanto anteriormente as tumbas maiores e mais ricas se da: a civilização egípcia tem profundas raízes africanas, embora sem
apresentavamespalhadas nos cemitérios, nos últimos séculos do quar-
to milênio elas tenderam, pelo contrário, a serem agrupadas além de dúvida também recebesse influências asiáticas em geral e mesopotâ-
se tornarem ainda m~is ricas. micas em particular através das trocas de longa distância.

38 39

1
de pedra para construção e outros recursos, em territórios que domina-
ram desde muito cedo.
As coisas eram, então, mais fáceis no Egito: mas isto parece ter
O antropólogo Robert Cameiro desenvolveu uma teoria acerca da resultado em poderes locais débeis, muito distintos das cidades-Esta-
origem do Estado em que concede um papel primordial ao conflito, à
dos dotadas de cidadãos com direitos reconhecidosdo sul da Mesopo-
guerra. Acredita também que teria sido o crescimento demográfico sob
tãmia. O Estado egípcio parece ter precedido a plem~urbanização, o
condições em que a terra disponível era limitada (levando a uma pres- desenvolvimento em escala maior do comércio exterior, o florescimen-
são causadora de conflitos) o fator que favorecera a formação, por to completo da divisão do trabalho. Estas coisas se deram, com todas
conquista, do Estado. Não existem indicações de escassez de terras
as suas características,depois da formação de uma monarquia unifi-
no Egito de fins do quarto milênio. Mas a guerra não precisa decorrer cada. Como conseqüência, enquanto na Mesopotâmia os frutos da ci-
de invasão, nem de competição pelos recursos agrícolas. A arqueolo-
vilização foram aproveitados por maior número de pessoas, no Egito
gia comprova sua importãncia nas origens do Estado egípcio por volta eles tenderam a uma extrema concentração - acima de tudo na corte
de 3000, mas ao que parece por razões diferentes: real e, ainda mais visivelmente, na pessoa do rei-deus.

Sugiro que o conflito armado ocorreu, durante o fim dos tempos pré.histó-
ricos e o início dos históricos, devido, em boa parte, às ações de chefes e
reis locais, que estavam tentando monopolizar os bens armazenados, os o ESTADO EGíPCIO NO TERCEIRO MilÊNIO
serviços de clientelas crescentes e os símbolos de poder pelos quais
eram definidos o seu próprio status e o de seus seguidores. Se a agres-
são armada foi um dos instrumentos da extensão do Estado no fim do
Na teoria político-religiosa da monarquia egípcia, formada muito
Pré-Dinástico e no Proto-Dinástico, então foi simplesmente um aumento
das ambições e da busca do poder pelas elites - suas tentativas no sen-
cedo e mantida por quase três milênios com poucas alterações (e s0-
tido de dominar. sistemas de trocas locais e de longo curso, e de serem
mente algumas nuances),o rei se define literalmente como o centro de
enterradas em tumbas maiores e melhores - que causou, em última aná- todas as coisas, incluindo mesmo os países estrangeiros,destinados à
lise, o conflito. (Michael A. Hoffman) subordinação por ele. Vamos citar uma passagem longa, mas muito
esclarecedora, em que uma tal concepção de realeza absoluta aparece
definida na mais antiga literatura religiosa (funerária) da humanidade,
Embora também fosse uma civilização baseada na irrigação flu. os Textos das pirâmides. Note-se que, nesta passagem como em al-
vial, as características e circunstâncias do Egito primitivo diferem mui- gumas outras, o "olho de Hórus" - divindade de que o rei é a encarna-
to das que mencionamos para a Baixa Mesopotâmia. O Nilo, conve- ção - é símbolo da terra do Egito:
nientemente, sobe no auge do verão, e ao baixarem as águas é o
momento adequado para a semeadura; salvo exceções, suas cheias, Eu sou Hórus, que restaurou o seu olho com ambas as mãos:
altamente fertilizadoras como as do Eufrates e do Tigre, são, porém, Eu vos restauro, vós que devíeis ser restaurados;
muito menos destruidoras. Isto significa que o sistema artificial de irri- Eu vos ponho em ordem, ó estabelecimentos meus;
gação demorou a se desenvolver e nunca foi tão complexo quanto o Eu te construo, ó minha cidade!
mesopotâmico. No Egito, o homem só teve de modificar e regularizar Vós fareis para mim todas as boas coisas que eu desejar;
um sistema natural de bacias autodrenáveis.Cada grupo de bacias era Vós agireis em meu proveito onde quer que eu for.
independentedos outros, o que quer dizer que inexistiam conflitos pelo Vós não obedecereis aos ocidentais, vós não obedecereis aos orientais,
controle de água entre diferentes regiões. Os desertos protegiam o vós não obedecereis aos setentrionais, vós não ob~decereis aos meri-
país de ameaças extemas importantes - pelo menos até fins do tercei- dionais, vós não obedecereis àqueles que estão no meio da terra - mas
vós obedecereis a mim.
ro milênio. Por fim, os egípcios dependiam.menos do que os habitan- Eu é que vos restaurei,
tes da Baixa Mesopotâmia do comércio exterior para a obtenção de Eu é que vos construí,
matérias-primas:dispunham de minas de cobre, ouro e algum estanho, Eu é que vos pus em ordem,

40 41

J
-~

E vós fareis por mim tudo o que eu vos disser, onde quer que eu vá. dos funcionários surgem uma e outra vez, mas sem continuidade e
Alcançar-me-eis todas as águas que estão em vós; hierarquia explícita. O palácio real é já o centro da administração.O rei
Alcançar-me-eis todas as águas que estarão em vós; designa em muitos casos parentes seus para as funções mais altas,
Alcançar-me-eis todas as árvores que estão em vós; entre elas a chefia dos nomos ou províncias.A cobrança dos tributos
Alcançar-me-eis todas as árvores que estarão em vós;
se faz sob supervisão direta do soberano,que para isto navega no Nilo
Alcançar-me-eis todo o pão e cerveja que estão em vós;
em companhia de sua corte - os "seguidoresde Hórus".Aparece ates-
Alcançar-me-eis todo o pão e cerveja qu~ estarão em vós;
Alcançar-me-eis as oferendas que estão em vós; tada uma importante cerimônia de renovação dos poderes monárqui-
Alcançar-me-eis as oferendas que estarão em vós; cos e retomada de posse do Egito: a festa sed, em que o rei "morre" e
Alcançar-me-eis tudo o que está em vós, "renasce" simbolicamente, voltando a ser coroado, a qual em princípio
O qual vós me trareis a qualquer lugar que meu coração deseje. era realizada pela primeira vez ao se completarem três décadas de
(The ancient Egyptian pyramid texts) reinado. Expedições militares externas são enviadas ao nordeste (Si-
(Doravante citaremos somente a. abreviatura Pir., seguida da indi- nai), a oeste (Líbia), ao sul (Núbia), para garantir as rotas comerciais, o.
cação de parágrafos e páginas, embora em certos casos modificarer:nos fluxo de matérias-primas e a obtenção de mão-de-obra adicional na
a tradução de Faulkner a partir do exame do original egípcio publicado por forma de prisioneiros de guerra.
Kurt Sethe).
A meados do terceiro milênio abre-se, com a quarta dinastia - a
Este texto divide-se em três partes. Nas quatro primeiras li-' dos construtores das grandes pirâmides - um apog~u monárquico que
nhas, o rei declara as razões da legitimidade do seu poder.Como res- dura quatro séculos: o auge do Reino Antigo. O aparelho de Estado já
taurador do Egito (ou seja, unificador do Vale e do Delta), pacificador, está totalmente organizado, como é indicado pela sistematização hie-
construtor, o monarca - que é o deus Hórus encarnado - tem direitos rárquica das titulaturas de funcionários e cortesãos. Se ao iniciar este
indiscutíveis. Na seção seguinte do texto, o,rei diz ser o único que de- período a tendência ainda era de entregar os altos cargos aos parentes
ve ser obedecido (o "vós" deve entender-se como designando os "dois do rei, isto em seguida se modificou, e formou-se uma verdadeira bu-
Egitos" - o Vale e o Delta - mas também os súditos como pessoas). rocracia de Estado.
No final, estabelece o seu direito a todos os bens do país: sendo seu o Data dessa época o auge da monarquia, no milênio e talvez em
Egito, os súditos lhe devem entregar, em forma de tributos e oferen- toda a história egípcia. O rei, como deus, é a origem de todos os pode-
das, as riquezas do país, sempre que o rei assim o exigir, esteja ele res. Os funcionários não passam de delegados seus. O aperfeiçoa-
onde estiver. mento da máquina estatal enfeixa em suas mãos os meios de controle
Na prática, o terceiro milênio, a partir das dinastias em que tradi- necessários:
cionalmente é dividida a história monárquica do Egito, .podeser consi-
derado em três etapas: o período formativo da realeza faraônica (di-
O rei concede poderes e retira poderes, ele impõe um obstáculo e remo-
nastias I a 111,2920-2694); o apogeu do Reino Antigo, ápice do poder ve um obstáculo (...) (Pir., § 311, p. 68).
real (dinastias IV a VI, 2575-2150); a decadência do Reino Antigo e o
chamado Primeiro Período Intermediário (dinastias VIII a XI - já que a
...cuidado com o Hórus cujo olho é vermelho, violento em seu poder, CLljo
VII não parece ter existido de fato - 2150-2040). Em seguida, a partir
poderio ninguém pode resistir! Os seus mensageiros vão, os seus cor-
de 2040, teve início o Reino Médio, de que não trataremos.
reios se apressam, eles lhe trazem as noticias (...) (Pir., § 253, p. 59).

Rei-Deus Os Textos das pirâmides também resumem as funções reais:

O rei dá ordens, o rei concede dignidades, o rei distribui as funções,


~I Durante as três primeiras dinastias, aparece e consolida-se uma o rei dá oferendas, o rei dirige as oblaçóes - pois tal é, de fato, o rei:
tradição cultural centrada no rei-deus.As instituições de governo ainda o rei é o único do céu, um poderoso à frente dos céus! (Pir.,
estão sendo formadas, como é demonstrado pelo fato de que os títulos §§ 2040-2041, p. 292).

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,
- - - ~ ~

como um morto mumificado, foi considerado esposo da deusa Sekh-


Absolutoem teoria, o rei pode falar em nome dos deuses, mas
também no seu próprio, sendo igualmente divino. Mas ele representa met, de cabeça de leoa, enquanto o filho de ambos, Nefertum, é asso-
neste mundo a filha de Ra, o Sol (pai do faraó: o título "filho de Ra", ciado à flor de lótus. Ou que Osíris, deus dos mortos e da vegetação,
tornou-se esposo (e irmão) de ísis, deusa celeste, que deu à luz Ófilho
antes esporádico, regulariza-se a partir da quinta dinastia), a deusa
Maat. Trata-se de uma divindade tardia e artificial, encamação perso- póstumo de Osíris: H6rus, um deus falcão.
nalizada da verdade e da justiça num único conceito. Como no conjun- Mais sofisticadas foram as sínteses teológicas que tentaram dar
to das civilizações orientais, tal verdade-justiça é ao mesmo tempo di- uma explicação unificada - até certo ponto - da origem do mundo,
vina, natural e social. O rei a serve tanto quando age como juiz quanto dos deuses e dos homens. As mais importantes foram a de Heliópolis,
ao oferecer sacrifícios e templos aos deuses, ou ao vencer de armas onde o deus solar Ra aparecia como divindade criadora, a de Mênfis,
na mão os inimigos do Egito (vistos como agentes do caos). Aliás, a na qual era o deus local Ptah que exercia tal função, e a de Hermópo-
complexidade maior do Estado aumentou também a necessidade de lis, que trazia ao proscênio o deusDjehuti (Thot), de cabeça de íbis ou
matérias-primas e prisioneiros de guerra: intensificaram-se as expedi- também representado ,como um babuíno, ou a este associado. Tais
ções militares sob o Reino Antigo em seu apogeu, teve início a coloni- sínteses levaram ao surgimento de deuses de novo tipo, não prove-
zação egípcia no norte da Núbia e o contato marítimo com a Palestina nientes da primitiva religião dos nomos, como a já mencionadajustiça-
e a Somália-Eritréia ("país de Punt") teve lugar com alguma regulari- verdade, Maat, e as águas primordiais, Nun.
dade, sempre sob a égide real; a arqueologia comprova também o c0- No tocante aos deuses locais, alguns chegaram a ser cultuados
mércio com a ilha de Creta desde a sexta dinastia. em todo o Egito. Um dos mecanismos de promoção de um deus ,re-
Deixaremos para o final do capítulo a discussão das causas da gional a uma importância religiosa maior foi a sua adoção em posição
decadência do poder monárquico a partir de 2150 aproximadamente. de destaque no culto monárquico. No terceiro milênio, em função disto
e do próprió prestígio da teologia da cidade de Heliópolis, próxima à
capital, Mênfis, teve início um longo processode "solarização" de mui-
tos deuses e cultos (2700-1800aproximadamente).Sem perda de suas
A RELIGIÃO EGíPCIA
próprias características,diversas divindades foram identificadas ou as-
similadas sincreticamente ao deus solar Ra.
Os templos egípcios tinham similaridades e diferenças com os da
As crenças e cultos ,do antigo Egito apresentavam-seainda me-
nos unificados e sistematizados do que na Baixa Mesopotâmia. Até o Mesopotâmia. Num e noutro caso temos edifícios em grande medida
Pre-Dinástico, cada nomo tinha o seu próprio deus principal, cultuado fechados à maior parte da população, consideradoscomo a residência
num santuário construído com materiais perecíveis. Já então, porém, do deus, e onde a imagem divina era alimentada, vestida e objeto de
Hieracôrnpolis era um centro de peregrinações,e é possível que outros orações e reverência. No templo egípcio - construído de pedra desde
locais de culto atraíssem pessoas de regiões distantes. Ainda assim,
meados do terceiro milênio - o deus ficava ainda mais apartado, num
santuário escuro, secreto e que passava a maior parte do tempo fe-
no período histórico os cultos locais permanecem, e em seu santuário
o deus do nomo é supremo - por mais que na religião monárquica chado. Pela manhã, o sacerdote em serviço abraçava a estátua, retira-
da de seu tabernáculo, para insuflar-lhe parte de seu próprio sopro vi-
possam variar as divindades preferidas. Como na Baixa Mesopotâmia,
adivinhamos a existência de uma religião popular diferente em muitos tal, tomando-a apta a receber uma parcela - mas somente uma par-
cela - do enorme, incalculável poder que era a divindad~. Outra par-
pontos da dos templos e da dos reis, mas a deficiência da documenta-
cela podia animar, por exemplo, um animal sagrado,conservado no in-
ção impede que a conheçamos em detalhe.
terior do domínio divino mas fora do edifício principal. O povo tinha
Se a dispersão dos cultos locais nunca foi de todo eliminada, não
há dúvida de que, com a unificação política, a reflexão sacerdotal ten- acesso aos animais sagrados dos templos, objeto de sua veneração.
Como na Mesopotâmia, o deus saía do templo na ocasião de festivais,
tou pôr alguma ordem no mundo divino. O modo mais simples de fazer
isto foi a organização das divindades em tríades familiares, claramente carregado dentro de um pequeno barco pelos sacerdotes ou navegan-
artificiais. É assim que o deus tutelar de Mênfis, Ptah, representado do no rio numa embarcação imponente.

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.
Um aspecto em que os egfpcios parecem ter ido mais longe do com sua consorte Nut (o céu) quatro deuses, entre eles Osfris e sua
que os mesopotâmicosé o da concepção do templo como uma miniatu- . -
irmã-esposa ísis, dos quais Hórus de queo faraóé a encamação_ é
ra do universo, destinada a operações mágicas de proteção contra as o filho póstumo. Assim, na passagem da página anterior, o rei estabe-
forças da desordem e do caos. Outro setor muito mais elaborado da lece uma linha direta de sucessão legitima que vai do deus primordial
religião egfpcia era o culto funerário, que implicava a conservação do criador até a sua própria pessoa.
corpo - embora no terceiro milênio ainda não existisse a mumificação Em certos casos, o rei é identificado com o próprio Osíris, e
propriamente dita -, depositadonum túmulocom oferendasàs vezes mesmo com o Sol, que a deusa do céu, Nut, dá à luz todas as manhãs
muito ricas e recebendo regularmente comida e bebida trazida por sa- lembora, em outra versão, Nut seja ela mesma filha do deus solar!):
cerdotes funerários. No Reino Antigo, unicamente o rei tinha direito Este rei é Osfris, que Nut deu à luz, e ela fez com que ele surgisse como
à imortalidade prometida pela religião funerária; mas podia estender Rei do Alto e Baixo Egito em todas as suas dignidades (u.) Sua mãe, o
tal privilégio aos seus parentes e funcionários preferidos, dando-Ihes céu, faz com que nasça todos os dias como Ra, e ele aparece com ele
os meios de instalar o seu próprio culto funerário. [ou seja, o rei aparece junto com o Sol] no leste, vai descansar com ele
A existência de sacerdotes ligados aos templos é atestada desde no oeste, e sua mãe Nut não fica sem ele dia algum. O seu filho [neste
o infcio do período histórico, mas no Egito o estabelecimento de uma caso, Ra] dã vida a este rei, alegra-o, dã-Ihe prazer, põe em ordem para
hierarquia sacerdotal foi relativamente tardio: na sexta dinastia é que ele o Alto Egito, põe em ordem para ele o Baixo Egito, destrói para ele as
fortalezas da Ásia, abate para ele todas as pessoas hostis sob seus de-
os sacerdotes emergem como um grupo social diferenciado no interior
dos (Pir., §§ 1833-1837, p.268).
do aparelho de Estado, enquadrado por chefes.nomeados para cada
provfncia ou nomo; no final da dinastia em questão, caaa culto passa a
contar com um chefe dos sacerdotes que o serviam.

o REI DIVINO E OS DEUSES

Na cerimônia da entronização é que o rei se transforma no Hórus


vivo e, sistematicamente a partir da quinta dinastia, no filho do deus
solar Ra. Nos casos em que o rei não fosse filho do faraó anterior com
a esposa principal (muitas vezes irmã do monarca), e sim com uma
concubina ou esposa menor, era usual que se casasse com uma meio-
irmã que fosse herdeira legítima. A mesma precaução servia para legi-
timar os soberanos não nascidos na famflia real. Seja como for, embo-
ra a hereditariedade fosse de regra e a dinastia reinante carregasse
consigo o sangue divino, não era ao nascer, e sim ao ser coroado, que
o rei do Egito assumia o seu caráter divino.
Tomando-se deus, o novo rei assumia de imediato a herança le-
gítima dos deuses primordiais, que, acreditava-se, tinham reinado pes-
soalmente sobre o ~gito num passado mítico:
Figura 3: Hórus e 5eth unem o Egito sob o nome real: Em Pir., § 514, p. 101, lemos que o rei
Eu sucedi a Ge~, eu sucedi a Geb; eu sucedi a Atum, eu estou no trono "tJ o terceiro quando sobe ao trono". A egiptóloga Bemadette Menu interpreta isto no sentido
de Hórus, o primogênito(...) (Pir., § 301, p. 66). de que o rei elimina as contradiç6es entre o norte e o sul, entre os deuses inimigos Hórus (com
cabeça de falcáo) e 5eth, que nesta cena esculpida no segundo mi/énio une as plantas que
simbolizam o Vale e o Delta em tomo do hieróglifo sma (verbo "uniO, sob os signos do nome
Atum é uma das formas do deus criador Ra, de que Geb é o filho real.
mais velho (trata-se do deus da Terra); por sua vez, Geb engendrou FONTE: Jéquier, Gustave. Histoire de Ia civilisation tJgyptienne. Paris, Payol, 1930, p. 45.

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Um rei assim concebido simboliza a união do cósmico e do hu- sinado ritualmente ou induzido ao suicídio. Outrossim, a divindade do
mano. Os egípcios acreditavam que o Estado faraônico surgira conco- faraó era uma concepção abstrata, ideal e generalizante: os egípcios
mitantemente com o ato de criação do universo, e duraria tanto quanto certamente não viam os seus reis. no dia-a-dia, como fazedores de
o próprio cosmo. A monarquia dual que, na e pela figura do rei, une o milagres! E ao falhar o rio em sua inundação, existia um ritual oficial
Vale (Alto Egito) e o Delta (Baixo Egito) e reconcilia os deuses inimi- previsto, que não envolvia pessoalmente o soberano.
gos Hórus e Set, significa o esmagamento da oposição tanto intema O rei era o único sacerdote por direito próprio. Só ele podia fun-
quanto extema, garantido pelos deuses ao outro deus que é o rei: a dar santuários, em cujas paredes unicamente ele era representado
oposição a um monarca como este é identificada com as forças do realizando as cerimônias do culto divino. Os outros sacerdotes eram
caos. A criação do mundo e da monarquia foi o estabelecimento de emanações suas, seus delegados. O soberano devia também prover
uma ordem imutável, ao mesmo tempo cósmica e soci'al,coisa que se ao culto em suas necessidadesmateriais diárias.
reflete em numerosos ritos e festivais monárquicos.Como filho do Sol De início, as terras administradas diretamente pelo palácio real
e Hórus vivo, o faraó é o senhor absoluto do território e dos habitantes foram a maneira de garantir a subsistência dos grupos dominantes: os
do Egito. Como deus, ele comanda a própria natureza inanimada e vi- funcionários de todos os tipos e os sacerdotes eram diretamente ali-
va pór igual: ~ mentados, vestidos e alojados pelo governo faraônico, que também
assegurava o culto funerário real e de particulares em forma direta. Foi
...0 rei faz crescer o lápis-Iazúli,o rei faz germinar a figueirado Alto Egito
(Pir.. § 513, p. 101). a partir da quinta dinastia que, através de doações e isenções de im-
postos, os templos adquiriram terras, mão-de-obra e outros recursos
Numa monarquia deste tipo, como aliás já vimos, o rei é a fonte próprios - mas sempre dentro do aparelho de Estado. Como desde an-
única da autoridade - que fora de sua pessoasó existeporexpressa tes os soberanos haviam começado a doar terras e rendas aos cultos
delegação sua, nos âmbitos administrativo, judiciário, militar, sacerdo- funerários dos cortesãos, vemos que no terceiro milênio se passou de
tal. Diante do rei, com exceção da família real, todos são plebeus por um sistema palacial exclusivo a uma maior diversificação das formas
igual, o alto funcionário tanto quanto o camponês. O Estado egípcio de gestão.
representa o caso histórico mais claro de uma teofania. isto é, da ma-
nifestação tangível da divindade, cristalizada na pessoa do faraó, deus
encamado e não simplesmente representante'dos deuses. Em virtude
da mediação do rei é que as forças vitais funcionam na natureza. Co- A DECADÊNCIA DO PODER MONÁRQUICO
mo ente que participa do divino e do humano, ele é o elo que integra E O COLAPSO DO REINO ANTIGO
os dois planos. Sua presença no trono garante a cheia do Nilo, assegu-
ra as boas colheitas e a fertilidade das mulheres e dos rebanhos.
Pelo próprio fato de representar a concepção teórica da realeza Por volta de 2150, iniciou-se um processo de declínio monárquico
divina levada ao seu máximo, existe o perigo de estender demais tal que conduziria à divisão temporária do país e à ocorrênciade invasões
teoria, que é sem dúvida parte da realidad~ mas nãc;>a esgota. Um asiáticas do Delta, até uma reunificação completada em 2040, quando
bom exemplo é o de Barbara Bell. Ela afirma que, ao falharem repeti- se iniciou o Reino Médio.
damente as cheias do Nilo no final do terceiro milênio, os reis foram É tradicipnal na historiografia dar respostas à pergunta sobre as
I
responsabilizados e, ou ritualmente assassinados, ou obrigados ao causas desse decllnio através de fatores como: a excessiva importân-
suicídio, o que explicaria a sucessão rápida de reis efêmeros na oitava cia. e influência dos sacerdotes desde a quinta dinastia, recebendo
dinastia. Aqui nos achamos, simplesmente, no domínio do dellrio. Não doações e isenções fiscais que enfraqueceramo patrimônio estatal; a
somente a autora não apresenta prova alguma do que diz, mas tam- I fraqueza pessoal de certos reis; o avanço do poder e da hereditarieda-
bém no domínio das concepções monárquicassua tese não se susten- de de funções dos dirigentes dos nomos, preparando o desmembra-
ta. O festival ou jubileu sed provia um substitutivo ritual à execução mento temporário do Egito; uma grande revolta popular (de que efeti-
efetiva do rei - que, como vimos, nele "morria" e tomava a aparecerno vamente há algumas provas) e a invasão (também comprovada)de tri-
trono-, não havendo qualquer exemplo conhecido de um faraó assas- bos asiáticas no Baixo Egito.

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1
Hoje em dia, há tentativas diferentes de explicação. Os templos
eram parte integrante do Estado, e como já se viu, o rei.não deixava 3
II

de usufruir ou controlar os bens que Ihes entregava.Naguib Kanawati,


a partir de um estudo das tumbas de funcionários e de uma análise. o 1M PÉHIO H I T I T A
das reformas administrativas empreendidas com alguma freqüência
pelos reis, chegou à conclusão oposta à tradicional: houve um reforço
u M' E STADO F E O E R A L
progressivo, e não a deterioração do aparelho de Estado ao longo da
quinta e da sexta dinastias. Por que, então, o declínio posterior? Sabe-
se hoje ter ocorrido, no final do terceiro milênio, uma fase de diminui-
ção drásticá, durante muito tempo, do nível médio das inundações
anuais do Nilo, trazendo a multiplicação dos anos de fome, a diminui-
ção da população e por conseguinte da riqueza do país que o Estado
podia tributar para financiar-se. Ora, isto ocorreu exatamente no mo-
mento em que o reforço do aparelho de Estado multiplicava os buro-
cratas. Por conseguinte, os rendimentosper capita de cada funcionário
graduado, no governo central e nos nomos, declinaram muito, levando
a uma queda na qualidade da administração, à insatisfação latente, a
um regime trabalhado por desiquilíbrios intemos graves - e que, por tal
razão, não conseguiu fazer frente aos problemas internos e externos
que se avblumaram e agiram conjuntamente a partir de aproximada- A ÁSIA MENOR E OS HITITAS
mente 2150.

A Ásia Menor é uma grande península do extremo noroeste do


Oriente Próximo, banhada pelo Mediterrâneo oriental e pelo mar Ne-
gro. Apresenta um relevo acidentado, dividindo-a a montanha em
grande número de compartimentos, vales e bacias mais ou menos
isolados. A oeste e ao norte, as regiões costeiras são férteis e bem re-
gadas pelas chuvas e por pequenos rios. O interior é caracterizadopor
cordilheiras - montes Pônticos, Taurus e Anti-Taurus -, que enqua-
dram o planalto da Anatólia, no centro do qual ficam um deserto e um
lago salgado. O planalto é atravessado pelo rio Hális (hoje chamado
Kizilirmak). As condições de fertilidade e a qualidade das pastagens
variam extremamente de uma a outra parte da península, mas no
r conjunto a região apresentava na Antigüidade uma população rarefeita
e dispersa em núcleos apartados uns dos outros e uma agropecuária
menos produtiva em média do que os vales fluviais irrigados do Nilo e
do Tigre e Eufrates. A Ásia Menor ligava-se às correntes de trocas do
Oriente Próximo na qualidade de fornecedora de madeira, pedra para
construção, obsidiana e minérios, tendo sido, no segundo milênio, cen-
tro pioneiro da metalurgia do ferro.
Situada no ponto de encontro da Ásia e da Europa, o seu p0-
voamento e o seu quadro político e cultural sempre foram complexos e
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t --
muito mesclados. Uma nova teoria acerca da difusão das línguas indo- cional, que talvez primitivamente elegesse o rei e limitasse o seu p0-
européias, exposta por Colin Renfrew em 1987, vê na grande penín- der, composto por todo o povo segundo alguns (seria uma "assembléia
sula o foco inicial de onde elas teriam iniciado a sua dispersão por vol- geral dos homens livres"), ou somente pelos "guerreiros e servidores
ta de 6000: isto eliminaria a necessidadede qualquer hipótese sobre a do rei" - portanto, por uma aristocracia militar e de corte -, segundo
chegada de povos que falavam idiomas indo-europeusà região a partir outros. Há autores, porém, que crêem ser o pankush uma criação de
de fins do terceiro milênio, embora esta última opinião ainda predomi- Telepinush, e salientam o seu caráter passivo, com exceção talvez de
ne. Seja como for, no inicio do segundo milênio, quando, com a insta- suas funções de justiça: no mais, a assembléia era unicamente infor-
lação de colônias mesopotãmicas (assírias) na Anatólia por volta de mada daquilo que o rei já decidira.
1900, começamos a ter mais informaçôes, o quadro lingüístico era já Após Telepinush, um perlodo pouco iluminado pelas fontes, em
dos mais complicados. Ele ainda se tornaria mais complexo nos sécu- que os hititas combateram longamente os hurritas, em especial o
los seguintes. Falavam-se:uma língua sem vínculos conhecidos,o pro- emergente reino do Mitanni (Alta Mesopotâmia e norte da Slria), é
to-hitita; três línguas do grupo indo-europeu- o nesita ou hitita, o pa- chamado às vezes de Médio Império Hitita.
laico e o luvita; além destas, uma língua originária ao que parece do
Cáucaso, o hurrita, chegara pela rota da Alta Mesopotâmia e do norte
da Slria; por fim, além dos asslrios, outros grupos de Hpguasemltica se
instalaram também: os amoritas primeiro, mais tarde os arameus. A MONARQUIA HITITA NO
Grandes movimentos de povos agitariam todo o Oriente Próximo por PERíODO DA EXPANSÃO IMPERIAL
volta de 1200-1100, afetando igualmente a Ásia Menor, onde viriam
a instalar-se novos grupos que falavam línguas indo-européias: os lí-
dios, os frígios, na costa oeste os gregos. O Novo Império Hitita pode ter tido início por volta de meados do
Nesta região geográfica e culturalmente.complexae fragmentada século XV; mas a verdadeira expansão imperial se deu com o reinado
é que emergiu aos poucos, partindo da Anatólia central, o chamado de Shuppiluliumash I (aproximadamente 1380-1346). Foi a partir dai
Antigo Império Hitita. Este só começou de fato a aparecerà luz da his- que o reino hitita, até então um pequeno Estado cercado de inimigos,
tória por volta de 1650,quando o rei Hattushilish I destruiu a cidade sí- transformou-se em núcleo de um vasto império governado a partir de
ria de Alalakh. Outro soberano tomou e saqueou a famosa cidade de sua capital, Hattusha (atual Boghazkõy). Não nos interessa, aqui, se-
Babilônia, na Baixa Mesopotâmia, em 1595, sem que tivesse ocorrido guir o longo e complicado jogo de guerras e manobras diplomáticas
então uma instalação durável dos hititas naquela longínqua região. A através do qual, além de consolidar sua posição na Ásia Menor, Shup-
verdade é que o reino hitita enfrentava dificuldades internas considerá- piluliumash dominou o enfraquecido reino .do Mitanni e avançou na SI-
veis e devia defrontar-se com numerosos adversários na própria Ásia ria-Palestina, de fato quase abandonada pelos egípcios (que ali ha-
Menor, pelo qual foram fugazes as primeiras tentativas de expedições viam formado um império em meados do segundo milênio) durante a
a palses distantes. Depois de várias décadas obscuras, marcadas por tentativa de reforma religiosa do faraó Akhenaten (1353-1335).Que-
lutas dinásticas em que monarquia e aristocracia se enfrentaram e remos, isto sim, dar uma idéia da organização do Estado hitita em seu
dois reis foram assassinados, o rei Telepinush, que chegou ao trono apogeu, e das característicase funções do rei.
por volta de 1525, tratou de estabelecer regras precisas para a suces- Mesmo sob Shuppiluliumash e os outros grandes soberanos im-
são dinástica (coisa que conseguiu duravelmente) e de consolidar a periais, a Ásia Menor não se unificou politicamente. O reino hitita c0e-
monarquia e seu poder efetivo (no que teve menos sucesso). xistia, ali, com outros reinos, a ele subordinados mas gozando de con-
O texto da proclamação de Telepinush nos permite entrever uma siderável autonomia interna, o Kizzuwatna hurrita a sudoeste e o Ar-
nobreza turbulenta e poderosa. Uma assembléia chamada pankush é zawa luvita a oeste; e com povos não-estatais,como os kashka ao nor-
mencionada no documento, a qual desapareceriaposteriormente. Go- te e os asi e kayasa a leste. O império hitita, dentro e fora da Ásia
zava, ao que parece de poderes judiciários mesmo em relação ao pr(r Menor, era um Estado federal. Tratados e juramentos solenes, além de
prio monarca. À falta de dados adicionais, os historiadores não se pu- casamentos dinásticos, alternavam-se com guerras punitivas para
seram de acordo a respeito. Uns vêem no pankush um órgão tradi- manter o fluxo dos tributos e o envio de tropas auxiliares. Em certas

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cidades estrategicamente situadas - como Alepo e Karkemish, na Sí-
ria setentrional -, o monarca hitita instalava como reis parentes seus, UMA RELIGIÃO COMPLEXA
com eles estabelecendo tratados de aliança. No interior do reino hitita
propriamente dito, porém, e nas províncias externas menos importan-
tes, a centralização era de regra. Os govemadores eram nomeados e A complexidade da religião hitita provém, primeiramente, do cará-
retirados à vJntade pelo rei hitita, embora concentrassemmuitos pode- ter federal do império e do povoamento compósito da Ásia Menor, que
res: cobrar,ça de impostos, organização das corvéias para as obras pú- além do mais sofreu profunda influência religiosa da Mes~potâmia. Em
blicas, collando militar, funções de superintendênciados cultos, admi- Hattusha, a capital, numerosostemplos reuniam as imagens de muitos
nistração e justiça. O exército tinha como núcleo principal os comba- deuses de diversas partes da Ásia Menor e da Síria, trazidas pelos
tentesenI carrosde guerraspuxadospor cavalos,guerreirosquerece- monarcas vitoriosos de suas campanhas. Uma atitude conservadora
biam terras públicas em usufruto. em matéria de cultos fazia com que o serviço dos deuses fosse manti-
Para além das fronteiras do império, o rei hitita mantinha ativa do estritamente na fOn11atradicional, mesmo quando isto obrigasse ao
diplomacia, trocando cartas e presentes com seus "in11ãos"do Egito e uso de línguas mortas e outros arcaísmos. Não se favorecia o sincre-
da Mesopotâmia.Na épocados reis egípciosda XIX!! dinastia,sob o tismo, predominando a simples justaposição de deuses e cultos. Esta
faraó Ramsés 11(1290-1224) do Egito e sob os reis hititas que reina- era, no entanto, sobretudo a posição sacerdotal:'na religião da corte é
ram entre 1306 e 1250 aproximadamente - Muwatallish, Murshilish 11I possível que se tenha tentado dar uma coerência maior ao mundo di-
e Hattushi'Ish 111-, travou-se um grande duelo egípcio-hitita pelo vino. É assim que, na decoração do santuário rupestre de Yazilikaya,
controle dei Síria-Palestina. Em 1286 deu-se a batalha principal em perto da capital, ligado à religião da dinastia imperial (que parece
Kadesh, jl mto ao rir Orontes. Embora os hititas pretendessemter obti- ter sido de origem hurrita), os relevos cortados na pedra mostram
do naquela ocasiãc uma grande vitória - e sem dúvida recuperaram uma tentativa de hierarquização,reservandoos lugares centrais às di-
territórios perdidos ,nteriormente para os egípcios -, a pressão assíria vindades preferidas pelos monarcas, o deus da tempestade (que co-
forçou-os à conclusão de um tratado de limites, ajuda mútua e não- nhecia muitos nomes em outras tantas línguas e numerosas variantes
agressão com o Egito (1270), seguido mais tarde (1257) por uma locais) e a deusa solar Wurusemu da cidade sagrada de Arinna, com
aliança matrimonial, casando-se Ramsés 11com uma filha de Hattushi- .seus associados.
lish 111.Poucas décadas depois, o poderio hitita se desvaneceria sob os Em todo o Oriente Próximo antigo, o fOn11alismo, o ritualismo e o
golpes concomitantes dos migrantes chamados "povos do mar", a par- medo da impureza e da ofensa aos deuses eram tendências religiosas
tir do oeste, e dos assírios, do leste. A cultura hitita se manteria ainda, de peso. Entre os hititas, elas atingiram o seu auge. Tinha-se uma vi-
porém, por vários séculos, em cidades-Estados da Síria como, por são pessimista da natureza humana: os homens são pecadores.Note-
exemplo, Karkemish. se que a noção de pecado não era interior, ligada às intenções, e sim
A monarquia hitita do período imperial é muito diferente da que exterior, vinculada a ações (negligência na celebração de cerimônias,
entrevemos em documentos mais antigos, como o de Telepinush. Os quebrar proibições rituais e tornar-se impuro, desrespeitar regras do
soberanos vitoriosos adotaram o Sol alado como emblema - por in- convívio social - regrasque eram consideradasde origemdivina-,
fluência tanto egípcia quanto babilônica - e referiam-se a si mesmos etc.). Eis aqui, a respeito, uma passagem da oração de Murshilish 11
com a expressão"meu Sol". O rei era acima de tudo sumo sacerdote e (século XIV) para terminar com a peste que assolava o país:
supremo general; desempenhava ainda as funções de legislador e juiz
Deus da tempestade do pais dos hititas, meu senhor, e vós, deuses,
de última instância. Em contraste com o Egito e a Mesopotâmia, as
meus ~enhores. Assim acontece: peca-se. Meu pai pecou e transgrediu a
inscrições reais hititas não salientavam o papel do monarca como
palavra do deus da tempestade do pais dos hititas, meu senhor. Mas eu
construtor, ou as suas proezas como caçador e atleta. A rainha tinha não pequei de modo algum. Mas assim acontece: o pecado do pai cai so-
uma posição própria no Estado e na religião, e uma sucessão separa- bre o filho. Assim, o pecado de meu pai caiu sobre mim. Agora eu con-
da (ou seja, só ao morrer a rainha anterior a esposa do soberano atual fessei ante o deus da tempestade do pais dos hititas, meu senhor, e
se tornava rainha). Ela recebia cartas e intervinha na diplomacia para- diante dos deuses, meus senhores: É verdade, nós o fizemos. E posto
lelamente ao rei. que confessei o pecado de meu pai, que a alma do deus da tempestade

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do país dos hititas, meu senhor, e a dos deuses, meus senhores, se Voltai as costas ao país inimigo e às pessoas malvadas; voltai vossos
aquiete. Apiedai-vos de mim e apartai a peste do país dos hititas! Não olhos para o rei e a rainha! Eles vos darão oferendas sagradas. Portanto,
permitais que morram os poucos que ainda continuam fazendo oferendas vinde aqui favoravelmente e recebei vossas oferendas com ambas as
de pão grosso e libações! (Bernabé). mãos! (...) Saí do país inimigo e da perversa impureza!

Vinde à bendita, santa, boa e magnífica terra hitita! Trazei convosco vi-
o descontentamento divino era visto como causa de todos os da, boa saúde, longos anos, poder de procriação, filhos e filhas, netos
males. No mito de Telepinush, filho do deus supremo da tempestade e e bisnetos, o amor divino, a bondade divina, a coragem e a obediência!
divindade da vegetação, a sua ira e sua conseqüente partida do país Retirai do rei e da rainha as suas mil imperfeições! Olhai com favor o rei
hitita tiveram terríveis conseqüências: e a rainha!

Voltai a vossos excelentes e magníficos santuários! Sentai-vos outra vez


em vossos tronos e cadeiras! Sentai-vos de novo em, vossos santos, ex-
A vegetação secou, as árvores secaram e já não deram brotos. As pas-
celentes e magníficos tronos! (Pritchard).
tagens secaram, as correntezas secaram. A faltade alimentossurgiuna
terra, de modoque o homem e os deuses morriamde fome (...) Sabemos que os santuários hititas podiam possuir terras, reba-
nhos.e trabalhadoresdependentes.Nada indica,porém,que existis-
Ele se entureceu ainda mais. Ele fez cessar os riachos murmurantes, sem vigorosos sistemas econômico-administrativostemplários, compa-
desviou os rios que fluíame os fez transbordar sobre suas margens. Ele ráveis aos do Egito'e da Me'sopotâmia.
bloqueouos poços de argila [para fabricação de tijolos),estilhaçou as ja-
nelas e as casas.

Ele fez com que os homens perecessem, ele fez com que as ovelhas e o A REALEZA E OS DEUSES
gado perecessem (no)(Pritchard).

Para pacificar o deus, para que ele voltasse ao convívio das de- o rei hitita era, acima de tudo, um sumo sacerdote,divinizado ao
mais divindades e dos fiéis, uma vez descobertaa razão de sua ira, foi morrer. Mediador por excelência entre os homens e o mundo divino,
preciso orar, fazer-lhe oferendas e sacrifícios e efetuar um ritual de pu- era sempre representado nos monumentos em vestes sacerdotais. Via-
rificação. Só então as coisas retomaram à normalidade. se submetido a rigorosa etiqueta, a regras de comportamento estritas,
Assim sendo, tomava-se essencial tentar conhecer a vontade e
as intenções dos deuses caprichosos,averiguar se estavam ofendidos,
e por quê. Daí que os sacerdotes praticassem diversas formas de adi-
vinhação e o exame de signos e portentos: incubação (dormir em san-
tuários, esperando receber avisos divinos nos sonhos), profecia inspi-
rada,. exame do vôo dos pássaros, exame do fígado das vítimas sacrifi-
cadas aos deuses.
A negligência dos fiéis para com os deuses, os seus pecados, a
sua impureza, tais seriam as causas principais da ira divina e,por con-
seguinte, das desgraças humanas. Estas também podiam decorrer de
atos de feitiçaria. Para remédio dos males, o ritual e a magia eram os
recursosdisponíveis. '

Ao se dirigir aos deuses era preciso, antes de mais nada, atraí- Figura 4: COMBA TE CONTRA A SERPENTE ILUJANKA: Neste baixo-relevo da localidade de
Maldija, o deus da tempestade e seu filho - representando as forças da fertilidade e da chuva
los, trazendo-os de volta ao país caso estivessem vagando por outras ~ combatem uma serpente gigantesca que simboliza a esterilidade, a aridez. Na Festa do Ano
terras. Havia, para isto, um ritual especial de invocação,que incluía es- Novo, o rei hitita participava de uma encenação do mito, segundo se crfJ.
tas palavras: FONTE: Delaporte, Louis. Les hittites. Paris, La Renaissance du Livre, 1936, p. 250.

56 57
destinadas a evitar-lhe a impureza ritual - que contaminaria o país in-
teiro, com conseqüênciasterríveis -, e passava boa parte do tempo vi-
sitando os santuários de diversas cidades para presidir os numerosos
primento rigoroso dos ritos e dos festivais religiosos. Uma das petições
festivais sagrados. Há casos mencionados nas fontes em que a obri-
era, nestas ocasiões, que a divindade desviasse para os inimigos dos
gação de chefiar em pessoa alguma cerimônia religiosa importante
hititas a calamidade em questão! Eis aqui, por exemplo, uma passa-
forçou o monarca a ausentar-se do mando das tropas. Faziam-se ima-
gem de uma das orações de Murshilish " (século XIV) à deusa solar de
gens dos reis mortos, que recebiam culto e sacrifícios. Também a rai- Arinna:
nha tinha funções religiosas copiosas e bem definidas.
É curioso notar que, em um mito sobre a realeza celeste, os hiti- Quanto aos países inimigos que cobiçam e tentam continuamente arre-
tas transferiram para o mundo dos deuses a luta pela supremacia tão batar-te os jarros, as taças, os utensnios de prata e ouro, e que tentam
comum no passado da monarquia hitita: cada deus supremo teve de devastar os teus campos, jardins, árvores, e tentam arrebatar-te lavrado-
vencer em combate o seu antecessor antes de suplantá-Io. res, jardineiros e moendeiras, agora, 6 deusa solar de Arinna, minha se-
Desde os documentos mais antigos, o rei sempre declarava agir nhora, envia a febre maligna, a peste e a falta de alimento a estes países
em nome e sob a tutela das divindades. O nebuloso príncipe Anitta inimigos! (...)
(século XVIII), que precedeu mesmo a formação do Antigo Império, E a Murshilish e ao país dos hititas, devolve-Ihes a felicidade. E ao rei e
considerava-se "amado pelo deus da tempestade do céu", cujo templo ao país dos hititas, assegura-Ihes a vida, a saúde, a virilidade, a alegria
ergueu - bem como outros santuários, que enumera num texto, além futura e longos anos. (...) Assegura a f14ura abundância do grão, do vi-
de especificar o sacrifício de enorme quantidade de animais selvagens, nho, (...) das vacas, das cabras, das ovelhas, dos cavalos (...) (Bernabé).
num único dia, aos deuses de sua capital, Nesha. Shuppiluliumash I,
em suas inscrições, apresentava-se como "o favorito do deus da tem-
pestade"; algumas das cidades capturadas em suas batalhas foram
presenteadas aos deuses. No período imperial, os reis legislaram de-
talhadamente: para que o pessoal do palácio real não infringisse, com
suas ações, a pureza ritual da pessoa do monarca; para que o pessoal
dos templos fosse diligente, limpo e reverente;para que os comandan-
tes das guarnições fronteiriças garantissem, mesmo nas zonas distan-
tes, o bom andamento dos cultos. Eis aqui uma das recomendações
aos comandantes, incríveis no grau de detalhe a que descem:

Outrossim, dever-se-á mostrar a devida reverência aos deuses, mas ao


deus da tempestade mostrar-se-á especial reverência. Se algum templo
tiver um telhado com goteira, o comandante dos guardas de fronteira e o
comandante da cidade o consertarão. Se qualquer vaso ritual do deus da
tempestade ou qualquer implemento de qualquer deus estiver em mau
estado, os sacerdotes, os ungidos e as mães-do-deus [sacerdotisas] os
restaurarão (Pritchard).

Quando uma desgraça afetava o país hitita - como por exemplo


a peste que o assolou intermitentemente por várias décadas, desde as
campanhas militares de Shuppiluliumash I -, era responsabilidade so-
bretudo do rei e da rainha interceder junto aos deuses para que ces-
sasse a calamidade, prometendo-Ihes sacrifícios, expiações e o cum-

S8 I 59
I

j
.-

também, em que as cidades mencionadas no Gênesis - Siquém,


4 Dothan, Betel, Jerusalém - estão comprovadas arqueologicamente,
na Época Média do Bronze.
DAS TRIBOS DE IAHWEH Até que ponto é possível acreditar nesses relatos bíblicos?Deve
A O REINO DE ISRAEL ser recordado que nenhum dos textos da Bíblia se fixou por escrito an-
tes do século X ou mesmo IX: as narrativas, na forma em que as te-
mos, são em muitos séculos posteriores àquilo que pretendem relatar.
No entanto, vimos que a arqueologia traz algumas comprovações es-
pecíficas. Outrossim, fontes escritas do segundo milênio, provenientes
de diversos povos e regiões do Oriente Próximo, comprovam a histori-
cidade de numerosos costumes que constam no Gênesis e mostram
também a origem mesopotâmica de certos mitos incluídos no livro,
como por exemplo o do dilúvio "universal". Podemos acreditar, então,
no modo de vida descrito e no quadro institucional que transpareceno
texto: mas deve ficar claro que nenhum dos patriarcas - Abraão, Isaac,
Jacó, etc. - está mencionado em qualquer outro documento que não o
livro de Gênesis.
A FORMAÇÃO DO POVO D.EISRAEL Em época tão remota, ainda não existia na Palestina um "povo
de Israel", e sim, tribos diversas que posteriormente os israelitas reco-
nheceram entre seus antepassados.A tradição posterior aceitava o pa-
A tradição acerca dos antepassados do povo de Israel, reunidas rentesco dos israelitas com os semitas amoritas e arameus.
. na Bíblia,referem-se,noscapítulos12 a 50 do livrode Gênesis,a che- Uma firme tradição se referia ao fato de terem sido os filhos de Is-
fes de famílias extensas:os patriarcas. Os mais antigos dentre eles te- rael obrigados a trabalhos forçados no Egito, construindocidades;e que,
riam vindo para a Palestina do norte da Mesopotâmia (Harran), sendo chefiados pelo líder carismático MOisés,saíram daquele país, vagaram
pelo deserto por algumas décadas e por fim, já sob outros líderes,
provenientes, ainda antes, da velha cidade de Ur, na Baixa Mesopotâ-
Conquistarama Palestina, terra que Ihes fora prometida pela divindade
mia. Chegados à Palestina, vagaram, como seminômades vivendo em que os escolhera e se aliara a eles, lahweh, o 'inspiradorde Moisés.
tendas, entre as cadeias centrais de montanhas e o sul, até o Negeb As indicações da Bíblia a respeito da cronologia do "cativeiro
e mesmo até o Egito, movendo-se a leste do rio Jordão. Não fre- no Egito" e da saída de lá - o Êxodo - são contraditórias. Segundo
qüentavam o norte palestino, o vale do Jordão, a planície de Esdre- uma delas (Êxodo, 12:40), Israel teria permanecido no Egito durante
lon e (salvo bem ao sul) a planície costeira. Ou seja, evitavam as 430 anos; mas Êxodo, 6:14-25 só menciona quatro gerações para tal
concentrações demográficas maiores e as cidades, mas também os permanência. Segundo outra indicação (1 Reis, 6:1), o rei Salomão te-
desertos, freqüentando regiões relativamente pouco povoadas mas ria construídoo templo de Jerusalém 480 anos depois da saída do Egi-
providas de pastagens. Sua economia era sobretudo baseada na cria- to: o cálculo a partir da construção do santuário de lahweh colocaria o
ção de gado menor - ovelhas, cabras -, e viajavam com burros de Êxodo em plena XVIII~ dinastia egípcia, e há razões que se opõem a
carga: a referência ocasional a camelos não passa de um claro ana- isto. Por outro lado, numa esteIa de pedra do faraó Memeptah, em seu
cronismo. Raramente eram agricultores, mas compravam terras para quinto ano de reinado (aproximadamente 1219 a.C), Israel já é men-
enterrar os seus mortos. cionado como um povo instalado na Palestina e vencido pelo monarca
egípcio. Uma das cidades citadas na Bíblia como aquelas em cuja
Alguns dados levam certos autores a fixar o início da época a construção prestaram serviço forçado os israelitas pode ser identifica-
que se referem tais relatos por volta de 1800, fase em que o Negeb da com Per-Ramsés, capital construída pelo pai de Memeptah, Ram-
estava intensamente ocupado, sendo abandonado depois; período, sés 11(1290-1224).

60 61
.-
A tendência predominante hoje em dia é datar de Ramsés 11a em santuários como Gilgal ou Silo para consultar a divindade, lahweh,
opressão de Israel - de fato, somente de uma porção do que viria a por ocasião de certas festas anuais. Em épocas de grande perigo, sur-
constituir o povo israelita - no Egito. Ao contrário do que reza a tradi- giram líderes carismáticos chamados "juízes" (shofet), que em alguns
ção bíblica, a permanência em território egípcio, nos séculos XIV e XIII, casos alegavam uma inspiração divina. Em cada tribo, a justiça era
parece ter sido bastante curta. A arqueologia comprova a destruição de administrada pelos anciãos. Os juízes tinham uma autoridade maior, e
cidades da Palestina no final do século XIII (Betel, Láquis, Eglon, Ha-
às vezes chamavam a combater diversas tribos ao mesmo tempo.
zor, etc.), sendo nelas a cultura urbana anterior substituída por outra Eram, entretanto, heróis locais ou regionais cuja autoridade não foi
mais rude, como se nota na cerâmica: isto parece marcar o início da
global, permanente, absoluta ou transmissível. Estes juízes - Débora,
conquista da Palestina. Assim, o Êxodo se teria dado sob Ramsés 11 Jefté, Sansão, Gedeão e outros - não conduziram à unificação tribal.
ou sob o próprio Merneptah.
A partir daí é que podemos afirmar com alguma convicção ter A evolução - completada por volta de 1020 - em direção a um
surgido a religião de lahweh (em português às vezes chamado Jeová), verdadeiro Estado deve ter ocorrido devido à sedentarização e à
o javismo. Nas fases anteriores, não haviã na verdade uma entidade crescente complexidade social, por um lado; por outro, pela ameaça
que pudesse ser chamada de Israel, inexistindo qualquer prova do cul- crescente representada pelos filisteus. Estes, repelidos no Egito,
to javista na era dos patriarcas. instalaram-se na Palestina, formando uma federação de cidades-Esta-
A chegada à Palestina de grupos vindos do Egito e que, prova- dos, cada uma com seu rei ou tirano - Gaza, Askhelon, Asdod, Ecron
velmente em mistura com outros, resultariam nos israelitas históricos, e Gat -, nas quais constituíam ur:nabem organizada minoria guerreira
ocorreu num momento muito especial da História do Oriente Próximo, quedominavaa maioriacanaanita. .

o da transição à Época do Ferro. Foi uma fase de vazio de poder na O símbolo máximo da liga tribal israelita, a Arca da Aliança, caiu
Síria-Palestina, com a progressiva retração do império egípcio e a des- passageiramente nas mãos dos filisteus vitoriosos por volta de 1050.
truição do império hitita, numa época de grandes migrações dos "po- Estes submeteram Israel ao pagamento de tributos. Suas guamições
vos do mar'. Os assírios, num dado momento, sob Tiglatfalasar I militares ocuparam pontos estratégicos da Palestina. Os filisteus re-
(1115-1077), pareceram querer preencher tal vazio: suas tropas avan- servaram-se o monopólio da metalurgia, proibindo-a aos israelitas. O
çaram até o Mediterrâneo; mas a pressão sobre a própria Assíria dos santuário mais importante destes últimos, Silo (sede da Arca), foi des-
. arameuslogointerrompeuo expansionismoassírio,quetardariaalguns truído. Como poderiam os israelitas, seminômades ainda tribais em
$éculos a reaparecer. Esta situação, como explicáramos no primeiro processo de sedentarização, vencer rivais fortemente militarizados e
capítulo, permitiu, durante algumas centenas de anos, o florescimento apoiados em organizações estatais? A solução foi a formação do reino
de diversos Estados de pequeno e médio porte: as cidades-Estados de Israel. A monarquia já havia ocorrido antes entre os israelitas, mas
costeiras ou próximas à costa dos filisteus (um dos "povos do mar') e somente num. nível local. Com efeito, ao juiz Gedeão fora oferecida a
dos.fenícios,
. os reinos arameus
. da Síria (em especial o de Damasco), coroa pela tribo de Manassés, e ele a recusou; seu filho Abimelec acei-
diversos reinos dos cananeus ou canaanitas (povo semita da Palesti- tou-a em Siquém, tomando-se rei de uma cidade-Estado.
na) e, em fins do século XI, o reino de Israel.
No entanto, o povo israelita em formação, na fase de sua con-
quista - parcial - da Palestina, entre fins do século XIII e fins do sé-
culo XI, não constituía um Estado. Suas tribos, cujo número tradicional A MONARQUIA: SAUL, DAVI E SALOMÃO
é limitado um tanto arbitrariamente a doze, formavam, desde o século
XII, uma frouxa liga. Cada uma das tribos parece ter-se formado a par-
tir de elementos heterogêneos: seminômades e sedentários; grupos Samuel foi um vidente de prestígio e, segundo alguns, sucessor
vindos do Egito e outros já anteriormente assentados na Palestina. As dos juízes de Israel, numa época que já não contava com um santuário
guerras de conquista e outros conflitos devem ter ajudado a formar a israelita central após a destruição de Silo. Este foi um períodode exal~
mencionada liga ou confederação tribal, que não tinha capital, funcio- tação religiosa, de profecia extática (ou seja, de pessoas que entravam
ilários ou exército permanente. Representantes das tribos reuniam-se em transe ou êxtase e davam oráculos ou predições),forma talvez de

62 63

..l
compensar a ameaça ao javismo que representava a perda de um As vitórias militares de Davi levaram à extensão do seu reino,
centro do culto. A Bíblia, neste ponto, fala-nos de videntes que an-
que reuniu em forma direta a maior parte da Palestina, cuja conquista
dam em grupos: pelos israelitas só então se completou. As cidades dos filisteus não fo-
ram todas anexadas, mas tomaram-se tributárias e dependentes, o
...profetas que vêm descendo do lugar alto, precedidos de harpas, tambo-
rins, flautas, cftaras, e estarão em delírio. (1 Samuel, A Blblia de Jerusa-
mesmo acontecendo com o reino de Moab e, em forma mais frouxa,
com boa parte da Síria. O reino de Amon foi conquistado e Davi as-
lém).
sumiu a sua coroa. Já o reino de Edom transformou-se em simples
Samuel aparece no relato bíblico intimamente vinculado ao pro- província. Quanto à Fenícia, estabeleceu-se um tratado com o rei Hi-
cesso de criação da monarquia israelita, já que ungiu com azeite o ram de Tiro, e foi grande o seu ascendente tecnológico e comercial en-
tre os israelitas. Israel era agora um Estado de porte médio. O número
primeiro e o segundo dos reis, Saul e Davi, designando-osdeste modo
como os escolhidos de lahweh. de cananeus sob seu governo aumentou muito.
Na época de Saul (datas pouco seguras: 1020-1000?) não houve A Bíblia não informa detalhes sobre as instituições da época de
senão um esboço de instituições estatais e de exército permanente.O Davi. É evidente, porém, um grande avanço na constituição do apare-
primeiro monarca de Israel foi acima de tudo um chefe militar carismá- lho de Estado em comparação com o reinado de Saul. Davi construiu
tico, espécie de novo juiz, mas em escala muito ampliada. De início, em Jerusalém um palácio real, sede do poder central. Entre os princi-
colecionou vitórias contra povos inimigos: filisteus, moavitas,amonitas, pais funcionários estavam o supremo comandante militar, o coman-
amalecitas, edomitas. Mas acabou por desentender-se com Samuel e dante dos mercenários (muitos deles cretenses e filisteus), o arauto
com os sacerdotes, e morreu derrotado pelos filisteus. real, o secretário real, dois sacerdotes supremos, um diretor da corvéia
No caso de Saul, a ruptura com a situação institucional anterior à para o Estado (exigida dos povos vencidos). Um censo foi ordenado,
monarquia foi somente relativa. O mesmo não ocorreu com o segundo com o intuito aparente de submeter os próprios israelitas ao paga-
rei, Davi (aprox. 1000-961). Este se destacara entre os guerreiros de
Saul, chegando a tomar-se seu genro; mas depois suas relações se
deterioraram. Davi fugiu com seiscentos fiéis, pondo-se a serviço do rei
da cidade-Estado filistéia de Gat. Ainda nesta posição foi feito rei de
Judá em Hebron, e posteriormente, ao desaparecer Isbaal, um preten-
dente ao trono, que era filho de Saul, tomou-se rei de todo Israel:

Então todas as tribos de Israel vieram têr com Davi em Hebron e disse-
ram: Vê! N6s somos dos teus ossos e da tua carne. JA antes, quando
Saul reinava sobre n6s, eras tu que saías e entravas com Israel, e lah-
weh te disse: És tu que apascentarAs o meu povo Israel e és tu quem se-
rAs chefe de Israel. Todos os anciãos de Israel vieram, pois, até o rei, em
Hebron, e o rei Davi concluiu com eles um pacto em Hebron, na presença
de lahweh, e eles ungiram Davi como rei em Israel (2 Samuel, 5:1-3).

Tratava-se, na verdade,de uma uniãopessoaldo sul e do norte


do território dos israelitas, situação de certa fragilidade. A capital foi
transferida de Hebron para Jerusalém, que Davi tomou ~os jebuseus,
Figura 5: RECONSTlTUIÇÃO HIPOTÉTICA DO TEMPLO DE JERUSALÉM: Planejado por um
não com as tropas das tribos, mas com as suas próprias:ela era a "ci- arquiteto tenfcio de Tiro, o templo de lahweh era ao mesmo tempo santuário dinástico e étnico.
dade de Davi", possessão pessoal sua. Na aparência, Davi, como Saul, Ao chamar a si a sua construção, com o beneplácito divino a tal empreendimento garantido por
um oráculo, o rei Salomão legitimava religiosamente o seu poder.
foi um líder carismático ungido por Deus e aclamado pelo povo: mas o
FONTE: Gómez- Tabanera, José Manuel. Breviario de Historia Antigua. Madri, Ediciones Ist-
seu poder não se assentava na confederaçãotribal. mo, 1973, p. 374.

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mento de impostos e a uma regularização do recrutamento militar, entre os territórios das tribos. Na nova organização, os canaanitas
provocando a indignação dos profetas e outros tradicionalistas. É pos- integraram-se mais estreitamente ao Estado israelita, o que provocou
sível que o território de Judá haja sido já então dividido em distritos descontentamento.
administrativos. Em matéria de justiça, admitia-se o apelo ao rei das A ruptura completa com a confederaçãotribal, agora anulada,
sentenças dadas localmente pelos anciãos. deu-se em circunstâncias históricas adversas para boa parte da popu-
As resistências às mudanças desembocaram em uma grave re- lação. A aceleração da sedentarização dissolvia as solidariedades tri-
belião chefiada por um dos filhos do rei, Absalão, e em seguida numa bais numa sociedade mais urbana e mercantil, na qual o abismo entre
tentativa da parte norte do reino de separar-se.Ambas as revoltas fo- ricos e pobres aumentava. Outrossim, a união das partes norte e sul
ram esmagadas manu militari: do reino era precária, e já fora am~açada em vida de Davi. Morto Sa-
lomão, a separação consumou-se, formando-se dois Estados de me-
O sucessor de Davi foi seu filho Salomão (aprox. 961-922), es- díocre extensão e importância - Judá e Israel -, enquanto perdiam-se
colhido pelo pai, em vida do qual foi ungido e aclamado. A hereditarie- as provínciasperiféricas.
dade da função monárquica tomara, pois, a dianteira sobre as formas
tradicionais de designação religiosa e popular de um juiz e líder caris-
mático militar: a unção e a aclamação popular foram, desta vez, meras
formalidades. UMA RELIGIÃO PECULIAR
Sem ser um conquistador,Salomão reforçou no entanto as forças
armadas, especialment~ com carros e cavalos de guerra, e construiu
fortificações. Depois de uma campanha militar egípcia no sul da Pales- As religiões vistas até agora, apesar de apresentarem diferenças
tina, estabeleceu-se uma aliança entre o decadente Egito e o reino de entre si, também manifestavam um parentesco indubitável. Eram reli-
Israel, casando-se Salomão com uma filha do faraó Siamon. A aliança giões não-reveladas, constituídas a partir de cultos locais, firmemente
com Tiro fE)irenovada, e a presença fenícia se fazia sentir mais do que ancoradas na noção da continuidade e homogeneidade (unidade de
nunca em Israel. O comércio, sob estreito controle real, tomou-se flo- substância) entre as esferas do humano, do natural e do divino.
rescente, por mar, com Ofir (talvez a costa da Somália), através de ro- Ora, o javismo foge radicalmente de tal modelo de religião. Ba-
seia-se na crença em uma revelação direta, pessoal, de Deus aos ho-
tas de caravanas com a Arábia, o Egito, a Fenícia e Tadmor (Palmira,
na Síria). A metalurgia do cobre e do ferro desenvolveram-semuito na mens de uma nação - Israel. Mas a divindade que se revela, embora
Palestina. pessoal, não pode ser representada nem descrita. Ela se manifesta na
sua própria existência e em seus atos, mas não tem atributos conheci-
As grandes construções do rei - sendo a mais importante o tem- dos que possam ser reunidos numa efígie - coisa que, aliás, proíbe em
plo de lahweh em Jerusalém, erigido sob direção dos fenícios -, bem forma expressa. Quando Moisés tenta, indiretamente, perguntar o no-
como o reforço burocrático e das forças armadas, levaram ao endivi- me de Deus - sendo que, no modo de ver oriental, o nome íntimo,
damento do Estado. Para financiar-se, Salomão chegou a ceder territó- "verdadeiro",dá acesso mágico àquilo que designa -, a resposta é:
rios aos fenícios. Os impostos aumentaram, bem como as corvéias,
atingindo agora também os israelitas (discute-se se houve exceção no Disse Deus a Moisés: "Eu sou aquele que é". Disse mais: "Assim dirás
caso de Judá, berço da dinastia e objeto de grandes vantagens, por aos filhos de Israel: EU SOU me enviou até vós" (Êxodo, 3:14).
exemplo no tocante à escolha dos funcionários mais importantes). Al-
tas funções de Estado vieram juntar-se às já existentes; sendo uma Note-se que isto não impede que os textos da Bíblia caiam com
delas a de um "vizir" ou chefe geral da administração, é de se supor bastante freqüência na atribuição ingênua e até grosseira de caracte-
que Salomão se ocupava desta em forma menos direta que o pai. O rísticas humanas a lahweh. Mas deixam também claro que os teólogos
reino foi dividido em doze distritos administrativos que, apesar de man- israelitas o viam como entidade radicalmente heterogênea, descontí-
terem o número tradicional, na prática rompiam com a tradição tribal, nua, em relação aos homens e ao universo que criara. Deus garante a
n~o respeitando mesmo, em diversos casos, as fronteiras tradicionais fertilidade e a abundância, mas não é um deus da fertilidade; comanda

66 67
os astros e cavalga a tempestade, sem poder ser, em si, na sua . Se no terreno teológico o que chama a atenção na comparação
natureza, associado a qualquer destas coisas. Uma religião deste tipo do javismo com outras religiões antigas são as diferenças, no plano
necessariamente coíbe o pensamento mitico. O texto bíblico abunda do culto há muitas semelhanças. Embora não houvesse imagens de
em mitos. Ao contrário do que ocorria no Egito, na Mesopotâmia ou lahweh, existia um símbolo tangivel, concreto, de sua aliança com os
entre os hititas, porém, a natureza não é, no pensamento bíblico, israelitas: uma arca, primeiro guardada numa tenda, posteriormente
animada e personificada, e portanto também não pode ser explicada depositada no templo construido por Salomão. Mesmo antes do tem-
por relatos nos quais intervenham deuses que encamam forças cósmi- plo de Jerusalém, o javismo conheceu santuários: Silo, sede da Arca
cas, num longínquo passado mitico fundador (o que abriria o caminho da Aliança por muito tempo, Gilgal, Siquém, Betel. Desde a época da
para que se pudesse obrigar o universo a se comportar de certos mo- confederação tribal, havia sacerdotes hierarquizados e um sumo sa-
dos desejados, já que o mito informa um conjunto de gestos e pala- cerdote que os dirigia. Com o tempo, estabeleceram-se os membros
vras - o ritual -, bem como determinadas operações mágicas). O da tribo de Levi como candidatos naturais ao sacerdócio, mas isto não
Deus de Israel não se associa aos acontecimentos repetitivos e até era verdade de inicio. Aparentemente houve, no entanto, uma prefe-
certo ponto previsíveis da natureza, mas à história, que ele comanda rência pelos levitas - termo que, por outro lado, adquiriu uma designa-
numa forma em geral inescrutável. Ao contrário das outras civilizações ção funcional, referindo-se a pessoas que se obrigavam a obedecer vo-
orientais, a israelita era dotada de um firme sentido de finalidade his- tos que haviam assumido.
tórica, garantido pela crença na providência divina e na aliança com o O culto incluía sacritrcios semelhantes aos feitos pelos canaani-
Deusnacional. . tas. Concentrava-se em certo número de festas anuais:
Note-se que a natureza de nossa documentação só nos permite
Três vezes ao ano me celebrarás festa. Guardarás a festa dos Ázimos.
acesso detalhado à concepção religiosa sacerdotal.Visões desviantes Durante sete dias comerás ázimos, como te ordenei, no tempo marcado
em relação à mesma existem em grande quantidade no próprio texto do mês de Abib, porque foi nesse mês que saíste do Egito. Ninguém
biblico, mas só aparecem condenadas, passadas pelo crivo da religião compareça de mãos vazias perante mim. Guardarás a festa da Messe,
oficial. O exclusivismo monoteísta do javismo, como os demais aspec- das primícias dos teus trabalhos de semeadura nos campos, e a festa da
tos dessa religião, evoluiu: houve uma época em que outras divinda- Colheita, no fim do ano, quando recolheres dos campos o fruto dos teus
des da Palestina foram consideradas legítimas para seus respectivos trabalhos. Três vezes no ano, toda a população masculina comparecerá
povos. Uma das razões que, ao longo dos séculos, multiplicou entre os perante o Senhor lahweh (Êxodo, 23:14).
próprios israelitas as infrações ao monoteísmo deve ter sido o caráter
altamente abstrato e intelectual de uma tal concepção. A arqueologia
demonstra que as massas populares cultuaram Dagan, o deus do trigo, RELIGIÃO E PODER
a deusa Ishtar e outras divindades, em muitas ocasiões. A religião ca-
naanita influiu na corte de SalÇJmão.O egiptólogo Donald Redford,
analisando as razões do fracasso da reforma religiosa do faraó Akhe- No centro das concepções político-religiosas israelitas estavam
naten, no Egito, que tentou impor, mais do que um verdadeiro mono- as noções de escolha e aliança: o povo de Israel fora escolhido por
teismo solar, um dualismo baseado no deus celeste (simbolizado pelo lahweh, que com ele pactuara uma aliança:
disco solar) e no deus terrestre seu filho (o rei do Egito), opina que os
mitos são um elemento essencial para o sucesso de uma religião. Ao Pois tu és um povo consagrado a lahweh teu Deus; foi a ti que lahweh
afastá-Ios decididamente do lugar central que, nas outras civilizações teu Deus escolheu para que pertencesses a ele como seu povo pró-
orientais, eles tinham na visão de mundo e na integração do humano prio, dentre todos os povos que existem sobre a face da terra (Deutero-
nômio, 7:6).
com o natural e o divino, o javismo tornou-se, quiçá, uma religião de
elite, de ditrcil apreensão para a maioria dos israelitas, mesmo se ad- Moisés convocou todo Israel e disse: "Ouve, ó Israel, os estatutos e as
mitirmos que eles aceitavam a idéia de um Deus supremo e cósmico a normas que hoje proclamo aos vossos ouvidos~Vós os aprendereis e
que estavam ligados por uma aliança. cuidareis de pô-Ios em prática. lahweh nosso Deus concluiu conosco

68 69
uma Aliança no Horeb. lahweh não concluiu esta Aliança com nos- sacerdotais (1 Samuel, 13:7-15). A disputa se acirrou em função do
sos pais, mas conosco, nós que estamos hoje aqui, todos vivos. lahweh apoio dos líderes relig-iososa Davi contra Saul, chegando ao massacre
falou convosco face a face, do meio do fogo, sobre a montanha" (Deute- de oitenta e cinco homens das famílias sacerdotais de Silo que, após a
ronômio, 5:1-4).
queda daquele santuário em mãos dos filisteus, estavam refugiados
na cidade de Nob - cuja população e mesmo o gado foram passados
A aliança era, portanto, considerada histórica, conhecendo-se o pelo fio da espada por ordem do rei. O único sacerdote que escapou
lugar e a data de seu início: no Horeb (Sinai), durante os anos em que naquela ocasião - Abiatar -, fiel a Davi, foi mais tarde sumo sacerdote
Israel esteve no deserto após sair do Egito. Ela implicava a aceitação (1 Samuel, 22:9-23).
da legislação sagrada que consta dos livros bíblicos, não somente do Davi organizou melhor suas relações com a religião tradicional,
famoso decálogo ou "dez mandamentos" (Êxodo, 20:2,-17 Deuteronô- mas em seus próprios termos. Os dois sacerdotes supremos foram
mio, 5:6-21), mas de todas as leis sagradas (que, na realidade, não são membros de seu conselho privado, tratados como ministros de Estado.
todas da mesma época). A contrapartida é a promessa da posse de O monarca transladou a Arca-da Aliança à sua cidade de Jerusalém,
Canaã, a Palestina ou "terra prometida", e uma espécie de otimismo instalando-a numa luxuosa tenda, mais tarde substituída pelo templo
histórico garantiqo ao povo eleito - sempre que se conformar aos ter- de seu filho Salo"mão.Na festa da instalação da arca, agiu ele mesmo
mos da aliança divina. como sacerdote: dançou envergando vestimenta sacerdotal, ofereceu
Com base nessa aliança é que se formalizou, em Siquém, a con- holocaustos e sacrifícios de comunhão, abençoou o povo (2 Samuel,
federação das doze tribos, na fase de conquista da Palestina (Josué, 6:14, 17).
24, pp. 255-256). Em teoria pelo menos, o regime pOlíticoque decorre A designação do próprio Davi seguiu as formas tradicionais, em-
da aliança é a teocracia: o verdadeiro soberano aceito por Israel é o bora ocorresse em três etapas (ungido por Samuel privadamente, foi
seu Deus, cujo trono é a Arca da Aliança. Em seu nome é que os juí- eleito e aclamado primeiro por Judá, mais tarde pela parte norte do
zes exigiam a mobilização militar das tribos, e que as autoridades reli- reino). Já Salomão subiu ao trono sobretudo através de uma sucessão
giosas pediam o tributo (o fiel não devia, como vimos numa das pas- dinástica, hereditária, só a posteriori consagrada, na maneira tradicio-
sagens citadas, comparecer de mãos vazias ante seu Deus). Os líde- nal, em cerimônias puramente formais. Para que isto fosse possível,
res carismáticos do povo, juízes e generais ao mesmo tempo, deviam foi necessário desenvolver a teoria político-religiosa de uma nova
ter sanção divina e humana (eleição, aclamação). aliança: lahweh se ligava, agora, a Jerusalém e à casa de Davi. O tex-
Uma tal concepção opôs considerável dificuldade "à monarquia to que melhor expressa esta noção (que teve mais sucesso no sul do
nascente. A diversidade ou ambigüidade das reações à realeza foi pre- reino, fiel à dinastia nascente; do que no norte, que se manteve fiel à
servada, na Bíblia, em duas versões bastante diferentes de como Saul concepção anterior do poder) é a parte final de um oráculo em que
chegou a ser rei. Numa delas, os anciãos de Israel solicitaram a Sa- lahweh ordena que o vidente Natã diga o seguinte a Davi:
muel que constituísse um rei, como acontecia nas outras nações. lah-
weh ordenou que o profeta atendesse ao pedido do povo, declarando, E quando os teus dias estiverem completos e vieres a dormir com teus
entretanto, que tal pedido constituía uma rejeição do reinado de Deus pais, então farei permanecer a tua linhagem, gerada das tuas entranhas e
sobre Israel. Instado pela divindade, Samuel explicou então ao povo os firmarei a sua realeza. Será ele que construirá uma casa para o meu No-
males da realeza, sua opressão, seu peso fiscal. O povo manteve a me, e estabelecerei para sempre o seu trono. Eu serei para ele um pai e
ele será para mim um filho: se ele fizer o mal, castigá-Io-ei com vara de
sua exigência, e Deus mandou que Samuel entronizasse um rei (1
homem e com açoites de homens. Mas a minha proteção não se afastará
Samuel, 8:1-22). Na outra versão, mais favorável à instituição monár- dele, como a tirei de Saul, que afastei de diante de ti. A tua casa e a tua
quica, Saul foi primeiro ungido rei por Samuel em Rama, privadamen- realeza subsistirão para sempre diante de mim, e o teu trono se estabele-
te, e só depois eleito pelo povo num sorteio e posteriormenteaclama- cerá para sempre (2 Samuel, 7:12-16).
do em Gilgal, após uma vitória (1 Samuel, 9:1 até 11:15).
Como era talvez previsível, a legitimidade tradicional, representa- Quando Deus declara que o rei será seu filho, trata-se da noção
da por SamueJe pelos sacerdotes, fogo se chocou com a nova ordem de uma adoção do rei, em sua entronização,pelo Deus de Israel. Nota-
política. Saul foi censurado por Samuel por usurpar as funções se, também, que a aliança especial com a casa de Davi não exclui o
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eventual castigo do rei que cafsse em erro (sendo o monarca também,
e freqüentemente, censurado pelos profetas de lahweh). Adotado por
Deus, que lhe concede a vitória militar, o rei é, entretanto, o servidor
c o N c L u s à o
de lahweh, verdadeiro soberano de Israel:

Vou proclamar o decretó de lahweh:


f
Ele me disse: "Tu és meu filho, eu hoje te gerei.
Pede, e eu te darei as nações como herança, os confins da terra como
propriedade.
Tu as quebrarás com um cetro de ferro, como um vaso de oleiro as des-
pedaçarás.
E agora, 6 reis, sede prudentes, deixai-vos corrigir, jufzes da terra.
Servi a lahweh com temor, beijai seus pés com tremor para que não
se irrite e pereçais no caminho, pois sua ira se acende depressa"
(Salmos, 2:7-12).

Em sua longa inscrição da rocha de Behistun, Dario I (521-486),


soberano persa que foi um dos fundadores do maior império que o
Oriente Próximo conheceu antes de Alexandre, o Grande, apresenta a
sua linhagem familiar e as suas vitórias contra usurpadores e revolto-
sos. Deixa claro, a cada momento, ser rei por graça do deus supremo,
Ahuramazda. Na coluna 4 da inscrição Iê-se em uma das linhas:

Assim diz Dario, o rei: foi por isto que Ahuramazda me trouxe ajuda, e to-
dos os outros deuses que existem, .porque eu não era mau, nem um
mentiroso, nem um tirano: nem eu, nem qualquer outro de minha linha-
gem. Eu governei de acordo com o que é certo (...) (Extrafdo de The an-
cient Near East).

Quase dois milênios depois de Sargão de Akkad, o Grande Rei


iraniano afirmava, como aquele o fizera antes, reinar e agir por graça e
com apoio dos deuses. Note-se que também dos deuses que Sargão
venerara, já que os soberanos persas se faziam adotar pelas divinda-
des das regiões dominadas, e o velho panteão sumero-acadianoainda
1\ era cultuado na Mesopotâmia sob Dario.
I
Isto vem comprovar que, ao longo de toda a história do antigo
Oriente Próximo, polftica e religião andaram de mãos dadas. Foram
mesmo para as pessoas da época, como explicamos logo de início,
dois aspectos inseparáveis de uma só realidade. Soberania celeste e
monarquia terrestre se refletiam e se ligavam harmoniosamente,

72 73
ambas necessárias à boa marcha do cosmo - entenda-se: dos muno
dos divino, natural e humano, que afinal de contas formavam um to-
do homogêneo.
SUGESTÕES D E LEITURA
Ao ilustrarmos com exemplos esta concepção tão durável,esbar-
ramos numa única exceção, numa única rupturadrástica, representada \-
pela ideologia político-religiosa de Israel. Não que ela negasse ser ne-
cessária uma base religiosa à monarquia, mas por sua originalidade no
modo de encarar a questão, sua dificuldade em assimilar a própria ins-
tituição monárquica, e sua radical separação entre a divindade e os
demais planos da realidade - único exemplo disto na Antiguidade
oriental. Note-se que o contraste talvez parecessemenor se conhecês-
semos a visão da monarquia israelita por ela mesma, isto é, através da
ideologia de corte.
Há indícios de que, em Israel, o palácio e os sacerdotes não viam
as coisas exatamente do mesr:no modo, mas não temos fontes que
esclareçam o lado palacial da questão:

A natureza do culto real e da ideologia da realeza em Israel provocou in- Faltando, em português, bibliografia específica suficiente sobre
findáveis debates. Nada mais podemos fazer além de simplesmente ex- nosso tema, estas sugestões incluem alguns títulos em espanhol.
pressar uma opinião a respeito. Somos impedidos de fazê-Io pelo fato da Achamos importante mencionar também dois atlas históricos.
Bíblia não fornecer nenhuma informação direta sobre o assunto, deixan- Devido às características da coleção, as citações no texto fo-
do-nos fazer deduções por nós mesmos, baseados em passagens isola- ram referenciadas resumidamente. A referência completa encontra-se
das, particularmente dos S<:<1'1'"IOS,
a respeito de uma interpretação sobre a
nesta seção.
qual não há nenhuma unanimidade (~right).

BERNABÉ, Alberto, org. Textos literários hititas. Madri, Editora Nacio-


Não podemos descartar a possibilidade de que algum dia os his-
nal, 1979.
toriadores que apresentam o rei de Israel, como os demais reis do
BRIGHT, John. História de Israel. Trad. de Euclides C. da Silva. São
Oriente Próximo, na qualidade de agente sagrado da fertilidade natural
Paulo,EdiçõesPaulinas,1985(3!!ed.). .
venham a provar o seu ponto de vista. Até agora, no entanto, sua ver-
Boa obra de conjunto, que resume as principais controvérsias his-
são, diante da documentação disponível, é muito improvável,e parece
toriográficas sobre os aspectos políticos e religiosos de Israel, en-
mais sensato aceitar o caso israelita como sui generis. tre outros.
.~ CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. ''Tudo é História", nQ36.
SãoPaulo,Brasiliense,1989 (8!!ed.).
Breve introdução à história do Egito faraônico, incluindo as ques-
tões do poder e da religião.
DRANE, John W.et alii. Atlas da Bíblia. Trad. de Edwino A. Royer. São
Paulo, Edições Paulinas, 1987.
Atlas pequeno mas muito útil.
FAULKNER, R. O., tradutor. The Ancient Egyptian Pyramid Texts.
Warminster,Aris & Phillips, S. d. - fac-símile da edição de 1969.
FRANKFORT,Henri. Reyes y Dioses. Trad. de Belén Garrigues Car-
nicer. Madri, Revista de Occidente, 1976.

74 75
Frankfort é um dos mais prestigiosos teóricos do Estado próximo-
oriental antigo, e este livro sintetiza as suas idéias acerca dos
casos egípcio e mesopotâmico.
o LEITOR NO CONTEXTO
. et alii. EI Pensamiento Prefilosófico. 1. Egito y
Mesopotamia. "Breviarios", n<1"97.México, Fondo de Cultura Eco- \.-
nómica, 1974 (3!! reimpressão).
Neste volume, John A. Wilson se ocupa do caso egípcio e Thor-
kild Jacobsen da Mesopotâmia, com grande atenção às ligações
entre política e religião.
GARCíA PELAYO, Manuel. Las Formas Po/íticasen el Antiguo Orien-
te. Caracas, Monte Ávila Editores,'1978. .
Manual universitário de bom nível.
GARELLI, Paul e NIKIPROWETZKY, V. O Oriente Próximo Asiático.
São Paulo, Pioneira/EDUSP, 1982,2 vols.
Cobre toda a parte asiática do Oriente Próximo antes dos persas.
Os temas deste nosso livro recebem muita atenção, com inclu-
são de debates historiográficos.
HAWKES,Jacquetta. The first great civilizations. Nova lorque, Alfred A. Sugerimos algumas atividades que podem ser inspiradas pela lei-
Knopf, 1973. tura deste livro - e, espera-se,de parte da curta bibliografia sugerida.
1. Convidamos o leitor a completar o quadro traçado no livro, es-
HOFFMAN, Michael A. Egypt before the Pharaohs. Londres, Routledge
tendendo o tipo de análise aplicado no mesmo aos casos que esco-
& Kegan Paul, 1980.
lhemos - Egito e Mesopotâmia no 111<1 milênio a.C., império hitita, reino
KRAMER, Samuel Noah. Os Sumérios. Trad. de Salvato T. de Mena-
de Israel antes do cisma - a outros casos e períodos,com ajuda da bi-
zes. Lisboa, Livraria Bertrand, 1977.
bliografia. Egito e Mesopotâmia nos últimos dois milênios a.C., os rei-
Excelente sumário de todos os aspectos da civilização suméria.
nos de Judá e Israel depois do cisma, a Fenícia, os imperios assírio e
Ver os capítulos 2 a 4.
persa... .
McEVEDY, Colin. Atlas da História Antiga. Trad. de Antônio G. Matto- 2. Tema de reflexão: Na sua maior parte, as. monarquias, tanto
so. São Paulo, Verbo/EDUSP, 1979.
antigas quanto modernas, apresentam vínculos com a religião. Que di-
Atlas cômodo e provido de textos úteis que completam o enten- ferenças podemos constatar nas modalidades de tais vínculos entre os
dimento dos mapas. casos orientais tratados neste livro e as monarquias modernas, ou se-
McNEILL, William H. e SEDLAR, Jean W., compiladores.The Ancient ja, a partir do Renascimento europeu?
Near East. Nova lorque/Londres,Oxford University Press, 1968. 3. Tema de pesquisà: Como se apresentam hoje, no Brasil, as
MOKHTAR, G., organizador.A Africa Antiga. "História Geral da África", relações entre política e religião: na Constituição de 1988? na visão da
vol. 2. São Paulo, Ática, 1984. chamada Teologia da Libertação? na opinião dos setores mais conser-
Ver o capítulo 2, resumo bem elaborado da história política do vadores da Igreja Católica? segundo grupos de evangélicos que se
Egito faraônico, com ênfase na monarquia. orientam para a participação política direta e as eleições? Que tipo de
OPPENHEIM, A. Leo. Ancient Mesopotamia: portrait of a dead civiliza- subsídios.pode oferecer a história ao debate de questões como estas?
tion. Chicago, The University of Chicago Press, 1977.
PRITCHARD, James B., compilador.Ancient Near Eastem text relating
to the Old Testament. Princeton, Princeton University Press,
1969.
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Edições Paulinas, 1981.

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