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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC SP

Patricia Rodrigues de Souza

Religião e Comida
Como as práticas alimentares no contexto religioso
auxiliam na construção do Homem

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO PAULO
2014
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC SP

Patrícia Rodrigues de Souza

Religião e Comida:
Como as práticas alimentares no contexto religioso auxiliam na
construção do homem

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Ciências da Religião, sob a orientação
do Prof. Dr. Frank Usarski.

SÃO PAULO
2014
BANCA EXAMINADORA

________________________________
________________________________
________________________________
Minha religião é a comida, meu templo, a cozinha e meu livro sagrado, feito de receitas.

À minha família e à família CECURE/Templo da


Liberdade Tupinambá
AGRADECIMENTOS

Agradeço a todas as entidades e amigos do


CECURE e Templo da Liberdade Tupinambá,
em especial a Luiz Alexandre Junior, amigo e
professor de todas as horas, sem o qual eu não
teria chegado até aqui.

À minha família, por me incentivarem e


compreenderem minha ausência.

Ao meu orientador Frank Usarski que sempre


me deu asas na medida certa. Ao professor Silas
Guerriero que há muito tempo me despertou
para pensar sobre os efeitos simbólicos da
comida. Ao professor Jorge de Albuquerque
Vieira que me deu as lentes da semiótica para
enxergar o mundo. A todos os professores do
Programa de Ciências da Religião que me
mostraram os caminhos deste novo horizonte. À
Andreia Bisuli, com quem devemos aprender
gentileza e paciência.

À amiga Sula Santana, que tão cordialmente me


conduziu às ciências da religião.

À CAPES pelo apoio à elaboração deste projeto.

Aos meus alunos, com quem aprendo todos os


dias.
RESUMO

A presente dissertação visa explorar as práticas alimentares de diferentes naturezas nos diversos
contextos religiosos de forma comparativa. O principal objetivo é chamar a atenção para o fato
de que todas as religiões, se não possuem uma conduta alimentar pré-estabelecida por suas
doutrinas, têm algo a dizer sobre a alimentação e como esta afeta a disposição religiosa.

Esta pesquisa baseia-se em dados exclusivamente bibliográficos extraídos das próprias doutrinas
religiosas, bem como de materiais produzidos por seus praticantes, além de análises de
especialistas em alimentação, antropologia e sociologia da alimentação. Estudamos o homem,
sua alimentação e sua religião sob a perspectiva evolucionista. Buscamos resgatar a origem da
relação entre religião e práticas alimentares e seguimos observando sua construção detalhada a
fim de detectar as funções que as práticas alimentares vêm a exercer de forma geral nas religiões
aqui estudadas.

Concluímos que a comida tem funções comuns às religiões em diversos níveis, o que constitui
um ponto significativo de comparação entre religiões muito diferentes. Os efeitos das práticas
alimentares atingem o indivíduo em aspectos físicos e psicológicos, uma vez que estabelece a
quantidade e qualidade do que se come. Provoca também efeitos culturais, já que aos alimentos
são atribuídos valores culturais, onde mais tarde os mesmos são absorvidos ou rejeitados
segundo regras culturais semelhantes às da linguagem. Da mesma forma, há efeitos sociais, uma
vez que a alimentação, no caso religioso pode servir de fronteira e elemento de identidade aos
grupos; deve-se considerar que em termos de efeitos sociais o acordo sobre uma mesma
alimentação favorece a coesão do grupo e exclui os que aqueles de práticas diferentes. Por todos
estes aspectos a alimentação constitui um recurso que auxilia a religião a representar e reforçar
seus valores.

Palavras-chave: alimentação, religião comparada, oferendas, ritual.


ABSTRACT

The present study explores food practices of different natures in several religious contexts in a
comparative manner. The main goal is to drive attention to the fact that all religions, if they do
not have a pre established food conduct by their doctrines, they have a say about food and how it
affects religious disposition.

This research is based on exclusive bibliographical data taken from religious doctrines, as well as
texts produced by believers and also few analysis done by food specialists, anthropologists and
sociologists of food and food practices.

Man, its food and its religion are studied under the evolutionistic perspective. We have tried to
retrieve the origins of the relationship between food, food practices and religion. We have
observed the construction of this relation in detail in order to detect general functions among the
religions studied here.

We have concluded food has common functions at several levels in different religions, which
constitutes a significant point to compare. The effects of food practices touch individuals in
physical and psychological aspects, once it determines the amount and quality of what is to be
eaten. It also has cultural effects, since cultural values are attributed to foods and later, these
values are either absorbed or rejected according to cultural rules that are similar to rules of
language. In the same way, there are social effects, since food in religious case can be a frontier
and an identity element to the groups; in terms of social effects, the agreement about the same
food and food practices favors the cohesion of the group and excludes those of different
practices. For all these aspects food and food practices constitute a resource that helps religion to
represent and reinforce its values.

Key-words: food, compared religion, offerings, ritual.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 10

I O HOMEM E SUA ALIMENTAÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA..................................... 16


1.1 A Realidade apresenta-se de forma sistêmica ............................................................................... 17
1.1.2 Definição de Sistemas Alimentares e Sistemas Culinários...................................................... 25
1.2 A natureza animal do homem ....................................................................................................... 28
1.3 Alimentação e programas biológicos inatos .................................................................................. 31
1.4 Da escolha do homem sobre sua alimentação ............................................................................... 45
1.4.1 O mal uso da arbitrariedade sobre as escolhas alimentares ..................................................... 47

II FUNÇÕES SIMBÓLICAS DA ALIMENTAÇÃO E DA RELIGIÃO ................................................ 51


2.1 Meios simbólicos de aprendizagem .............................................................................................. 52
2.2 Semelhanças entre regras de linguagem e regras de alimentação ................................................... 59
2.3 Animais e plantas nos sistemas culinários .................................................................................... 63
2.4 Expressão de valores através da cozinha ....................................................................................... 66
2.5 A função domesticadora dos sistemas simbólicos religiosos ......................................................... 69
2.6 Ritual........................................................................................................................................... 74

III RELIGIÕES E SUAS PRÁTICAS ALIMENTARES ........................................................................ 81


3.1 Jejum ........................................................................................................................................... 85
Adventismo ................................................................................................................................... 85
Budismo ........................................................................................................................................ 86
Catolicismo ................................................................................................................................... 87
Hinduísmo ..................................................................................................................................... 87
Islamismo ...................................................................................................................................... 88
Judaísmo ....................................................................................................................................... 89
3.2 Dietas regulares ........................................................................................................................... 90
Adventismo ................................................................................................................................... 90
Budismo ........................................................................................................................................ 91
Hinduísmo ..................................................................................................................................... 92
Islamismo ...................................................................................................................................... 93
Judaísmo ....................................................................................................................................... 93
3.3 Interdições alimentares ................................................................................................................ 95
Adventismo ................................................................................................................................... 95
Budismo ........................................................................................................................................ 96
Candomblé .................................................................................................................................... 97
Catolicismo ................................................................................................................................... 98
Hinduísmo ................................................................................................................................... 100
Islamismo .................................................................................................................................... 100
Judaísmo ..................................................................................................................................... 100
3.4 Banquetes e alimentos como símbolo específico ........................................................................ 102
Budismo ...................................................................................................................................... 102
Candomblé .................................................................................................................................. 103
Catolicismo ................................................................................................................................. 109
Hinduísmo ................................................................................................................................... 112
Islamismo .................................................................................................................................... 115
Judaísmo ..................................................................................................................................... 117
3.5 Oferendas de alimentos .............................................................................................................. 123
Budismo ...................................................................................................................................... 124
Candomblé .................................................................................................................................. 130
Hinduísmo ................................................................................................................................... 131
3.6 Sacrifícios de animais ................................................................................................................ 131
Adventismo e Catolicismo ........................................................................................................... 132
Candomblé .................................................................................................................................. 133
Hinduísmo ................................................................................................................................... 137
Islamismo .................................................................................................................................... 138
Judaísmo ..................................................................................................................................... 138
3.7 Regras na obtenção ou preparo da comida .................................................................................. 139
Adventismo ................................................................................................................................. 140
Budismo ...................................................................................................................................... 140
Candomblé .................................................................................................................................. 141
Hinduísmo ................................................................................................................................... 143
Islamismo .................................................................................................................................... 144
Judaísmo ..................................................................................................................................... 144
3.8 Dietética associada à religião ..................................................................................................... 146
Adventismo ................................................................................................................................. 146
Hinduísmo ................................................................................................................................... 148

IV OS EFEITOS DA ASSOCIAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E COMIDA: FUNÇÕES DA


ALIMENTAÇÃO NO CONTEXTO RELIGIOSO .............................................................................. 153
4.1 Descondicionamento .................................................................................................................. 155
4.2 Partilha de alimentos .................................................................................................................. 159
4.3 Conectividade e comensalidade.................................................................................................. 162
4.4 Identidade e contaminação ......................................................................................................... 164
4.5 Sistemas culinários como marcadores de tempo ......................................................................... 168

CONCLUSÃO .................................................................................................................................... 173

PÓS-ESCRITO: Quando a alimentação secular se torna religião ......................................................... 175

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................................. 177
INTRODUÇÃO

Ao ver numa embalagem de frango congelado, um selo com a inscrição Halal1, isso nos faz
imaginar que quem vai preparar este produto, provavelmente use rigjab2. Se sentirmos cheiro de
dendê, podemos pensar que alguém acredita estar alimentando seres invisíveis3. Se houver na
casa de uma família, sobre a mesa, dois pães trançados4 cobertos com um pano, significa que é
sábado, dia de descanso. Também é comum entre aqueles que comem carne de porco e não
sejam orientais, que creiam em pecado, e também em céu e inferno 5 . Vegetarianos,
especialmente os orientais, acreditam na reencarnação 6 . Algumas igrejas oferecem cursos de
culinária aos fiéis. 7 Quando na descoberta da América, Astecas viram espanhóis dando milho aos
cavalos, perceberam que apesar de tecnologicamente muito avançados, não eram deuses 8. Para
os Tupinambás, comer seus inimigos em rituais antropofágicos significava absorver suas
qualidades.

Em muitas culturas ocidentais, as conotações religiosas e cerimoniais do banquete têm


sido esquecidas, mas as formas antigas permanecem, modelando as maneiras cujos
homens comem em qualquer nível acima da mera subsistência. 9

Quando estudamos alimentação, em especial questões relativas a escolhas alimentares logo


esbarramos nas fronteiras da religião. Muitas dietas de pessoas religiosas são determinadas pela
doutrina religiosa que seguem. Estas religiões, de muitas maneiras e graus diferentes determinam
quais são os alimentos próprios ou impróprios para consumo, assim como quando se deve
consumi-los, de que maneira e com quem. Mesmo em grupos mais seculares, alguns hábitos ou
comidas típicas remanescentes de tradições religiosas ainda permanecem bastante arraigados.

1
Palavra do Corão que se refere aos comportamentos, formas de vestir, falar e alimentos permitidos pela religião
islâmica. No caso do selo Halal, indica os alimentos produzidos segundo os mesmos princípios.
2
Pano utilizado pelas mulheres praticantes do Islamismo para cobrir a cabeça.
3
Preparo da comida de santo, culinária litúrgica presente na Umbanda e no Candomblé.
4
Challah: pão trançado que simboliza o Manah, alimento recebido no deserto pelo povo hebreu durante o Êxodo.
5
Católicos.
6
Budistas e Hinduístas.
7
A Igreja Adventista do Sétimo Dia oferece cursos de culinária regulares, pois acreditam na importância de um
corpo saudável.
8
Para os Astecas o milho era sagrado e jamais seria dado aos animais.
9
JACOBS, J. Gastronomy. Verona: Newsweek Books, 1975, p. 15. Tradução do autor.
De modo análogo, quando se estuda religiões, seja do ponto de vista teológico, antropológico,
sociológico, econômico e, especialmente estético, em algum momento esbarraremos na questão
alimentar. Diferentes práticas alimentares surgirão sob a forma de: alimentos que funcionam
como símbolos importantes, tabus alimentares, rituais que envolvem alimentos, elementos
promotores de coesão através de refeições coletivas ou até mesmo de elementos constituintes da
identidade sociocultural de um grupo ou um individuo; sem falarmos na disciplina física que
certas religiões podem impor através de uma alimentação específica e no quanto tais hábitos
podem movimentar o mercado de alimentos.

Quase todas as religiões têm algo a dizer sobre os alimentos e, ainda que possamos encontrar
tantos pontos de contato, há ainda um grande espaço a ser preenchido pelos estudos sobre a
relação entre religião e comida. Entre as publicações desse, que constitui um campo de estudos,
figuram as de informação aos seguidores, produzidas pelas próprias religiões. Mais recentemente
as ciências humanas que se ocupam da religião, ou menos comumente da alimentação, têm
pouco a pouco começado a identificar e até mesmo problematizar a relação entre as duas áreas.

Embora poucas, podemos nomear algumas iniciativas de estudo neste campo. O site Faith and
Food reúne representantes de várias religiões num mesmo espaço, esclarecendo seus princípios e
práticas alimentares. No âmbito acadêmico encontramos um grupo de estudos de religião e
comida na American Academy of Religion, que investiga práticas e crenças relacionadas a
comidas, bebidas, jejuns, produção de alimentos, ética em produção e consumo e quaisquer
outros aspectos influenciados por religiões em questões alimentares; e o Donner Institute, na
Finlândia que realiza este ano seu 24º. Simpósio em religião e comida. No Brasil, na Bienal do
livro de agosto de 2012, no espaço Cozinhando com palavras do Senac, houve uma mesa de
discussão sob o título Sabores da fé, que reuniu representantes de algumas religiões para
conversa informal sobre práticas alimentares em suas religiões.

O campo de estudo é novo, mas a relação entre comida e religião é antiga; porém a pesquisa
neste campo não ocorre sem dificuldades. Para se ter uma visão panorâmica do assunto ainda é
necessário estudar as práticas em cada uma das religiões. Não há estudos comparativos que
visem identificar uma estrutura comum ou a aplicação transcultural de categorias comuns em
religião e comida.

2
Perguntamo-nos por que, embora tão presente, a questão da comida nas religiões despertou tão
pouco interesse?

Entre as experiências sensoriais elencadas nos discursos religiosos fala-se das visões e dos sons,
mas quase nunca dos cheiros ou gostos. “O vocabulário é mais adequado para alguns sentidos do
que para outros: a falta de uma grande variedade de conceitos do cheiro torna difícil encontrar e
analisar evidências históricas relevantes.”10 Além da falta de vocabulário, os sentidos parecem
também ter valores diferentes no que diz respeito à espiritualidade.

A tradição espiritualista e idealista os hierarquiza [os sentidos], dando os primeiros


lugares à visão e à audição: esses dois sentidos têm a vantagem da mediação; tratam com
imagens e sons, duas espécies de objetos que se comprometem pouco com a matéria. O
gosto coloca em evidência o corpo: mastigação, deglutição, digestão, excreção, ele é
excessivo ao mostrar o quanto o homem é matéria. 11

Na estética das religiões fala-se a respeito da música, da arte sacra e dos rituais, mas raramente
sobre a comida:

Arte do tempo e das memórias, as mais primitivas, estética da boca e do nariz, da carne,
metafísica do corpo e dos órgãos, da matéria e da imanência, a cozinha nunca se
beneficiou do favor dos pedantes, que não lhe dão a honra e a vantagem de figurar entre
as belas-artes. Vulgar porque trata dos sentidos menos intelectuais, demasiado vil por
lembrar aos homens com muita insistência, que eles também são animais e que não se
alimentam apenas de ideias e reflexões. 12

Veremos ao longo deste trabalho que a questão estética, aqui abordada através da alimentação,
constitui um campo de evidências bastante considerável ao estudo da religião e que, embora
ignoremos, a questão da materialidade do homem é contemplada em muitas religiões através da
alimentação. Nas religiões que têm as práticas alimentares como parte de suas doutrinas teremos
uma visão incompleta se desconsiderarmos a questão alimentar.

Cientistas da religião que trabalham apenas com textos são como cegos que falam de
paisagens que lhes foram descritas, em palavras, por pessoas que podem ver.
Abandonando essa postura, esses cientistas parariam de se referir à religiões alheias “de
olhos fechados”. Deveríamos usar todo o nosso instrumental sensório nessa tarefa, uma

10
ENGLER, S. A Estética da Religião. In: USARSKI, F. (Org.) O espectro disciplinar da ciência da religião. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 217.
11
ONFRAY, M. A Razão gulosa. Filosofia do gosto. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 85.
12
Ibid., p. 123.

3
vez que os seguidores de religiões diferentes da nossa não omitem nenhum dos sentidos
quando as praticam [...] eles falam sobre o matzzo13 , mas na verdade, sem pretender
experimentar o sabor desse pão ázimo dos judeus. 14

Embora tenhamos analisado a questão alimentar em sete religiões (Adventismo, Budismo,


Candomblé, Catolicismo, Hinduísmo, Islamismo e Judaísmo), este trabalho não tem a pretensão
de esgotar o assunto, mas ao contrário, chamar a atenção para a amplitude da questão e iniciar
uma discussão. Dada a presença das práticas alimentares em quase todas as religiões levantamos
algumas questões e hipóteses sobre o assunto, as quais tentaremos responder e confirmar ou
refutar ao longo da dissertação. Primeiramente: Quais são estas práticas encontradas nas sete
religiões designadas? Por que as religiões utilizam-se de práticas alimentares? Depois, qual a
função das práticas alimentares nas religiões? Elas desempenham as mesmas funções nas
diversas religiões? Se não, quais são respectivamente?

Nossa hipótese é que as práticas alimentares sejam diferentes entre as diversas religiões, mas
com muitos pontos de contato, como por exemplo, a evidenciação do corpo, seja como fonte de
instintos que servem de obstáculo ao desenvolvimento da espiritualidade e precisam ser
educados ou reprimidos, ou, ao contrário, como um potencializador ritual de mensagens não
verbais. Outro ponto em comum no uso da comida pelas religiões encontrar-se-ia no campo da
linguagem, pois ainda que seja usada de maneiras diferentes, toda comida transmite informações,
pois, no contexto religioso ou fora dele, é sempre um veículo de representações e
materializações. E por funcionar como uma linguagem, auxilia na construção da visão de mundo
da religião em questão, favorecendo assim a construção do homem.

Para explorar nossas hipóteses e responder às questões propostas nos utilizamos de um amplo
quadro teórico apresentado nos dois primeiros capítulos. No primeiro capítulo, como pano de
fundo temos a teoria de sistemas. Sua lente nos fornece pontos em comum, embora muito gerais,
entre sistemas de naturezas muito diferentes. O homem será tratado como um sistema
biopsicossocial, a culinária como sistema cultural, a religião como sistema social e cultural. Estes
sistemas são interdependentes; fornecem energia, informação, bem como estabelecem limites um
ao outro. Trabalharemos simultaneamente as dimensões biológica, social e cultural, pois,

13
Matzzo, matzah ou ázimo, designam o pão sem fermentação consumido durante a Pessach, páscoa judaica.
14
GRESCHAT, H. J. O que é ciência da religião? São Paulo: Paulinas, 2005, p.77.

4
segundo nossa visão elas não apenas influenciam uma à outra, mas muitas vezes, estão também
contidas uma na outra. Após um panorama geral sobre os sistemas e suas propriedades
começamos a nos direcionar para o homem e sua relação com a alimentação, começando por
definir sistemas alimentares e culinários. Passamos em seguida a uma visão biológica e
evolucionista do homem, já que comer é uma das principais funções biológicas de qualquer ser
vivo. O homem possui outros programas biológicos inatos que condicionam e modelam suas
ações e escolhas em relação a alimentação, o que também será abordado neste mesmo capítulo.

Após apresentar os aspectos sistêmicos e biológicos do homem e sua alimentação, no segundo


capítulo, daremos ênfase aos aspectos simbólicos e, portanto, culturais da alimentação. Nossa
intenção aliando primeiro e segundo capítulos é mostrar a evolução do homem no que tange sua
alimentação; demonstrando como seus hábitos alimentares, inicialmente são materialmente
determinados e depois, com o surgimento da linguagem, como estes adquirem conotação
simbólica passando a serem escolhidos por tais razões, além de servir de veículo de
materialização e representação de valores sociais e culturais. Neste capítulo, colocaremos
também a religião como sistema cultural que modela o homem e, consequentemente suas
escolhas, tais como as alimentares. Finalmente mostraremos como as práticas alimentares são
acopladas à religião através dos rituais. Ainda que tenhamos reservado o capítulo III para
explorar os dados empíricos, há exemplos da associação de religião e comida também nos
capítulos I e II, de modo que o leitor possa, desde o início, perceber como as práticas alimentares
relacionam-se às crenças religiosas.

O capítulo III contém descrições das práticas alimentares em sete religiões citadas acima. A
pesquisa envolvida neste trabalho é exclusivamente bibliográfica. Não é nosso objetivo analisar
se tais práticas alimentares são de fato seguidas de forma estrita pelos fiéis. É provável inclusive,
que, em muitos lugares, as religiões possam ser mais flexíveis quanto às determinações
alimentares devido às circunstâncias. É possível também que fatores socioculturais façam os fieis
menos rigorosos no cumprimento dos preceitos alimentares. Nossa intenção é explorar os
preceitos religiosos do ponto de vista das doutrinas religiosas. As mudanças e nuances relativas à
observância de tais regras será objeto de nosso próximo trabalho, quando analisaremos a relação
entre comida e religião no século XXI.

5
As práticas foram organizadas em nove categorias. Embora o capítulo seja mais descritivo,
tentamos chamar a atenção para alguns aspectos comuns e por vezes, de observações de
especialistas no assunto.

Por fim, o capítulo IV reúne os conceitos teóricos dos capítulos I e II aos dados empíricos
apresentados no capítulo III. O objetivo é responder as perguntas colocadas nesta introdução,
bem como confirmar ou refutar nossas hipóteses.

6
I O HOMEM E SUA ALIMENTAÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO
TEÓRICA

Iniciamos nossa contextualização teórica abordando a teoria de sistemas de forma sintética,


baseamo-nos especialmente no trabalho do professor Jorge de Albuquerque Vieira, especialista
em ontologia sistêmica.

Os sistemas possuem inúmeras propriedades em comum, por isso podem ser todos considerados
sistemas, apesar das diferentes naturezas. Encontramos, entretanto, grandes diferenças entre
sistemas não vivos e vivos, por isso sentimos a necessidade de adotarmos também alguns
conceitos de sistemas biológicos, fundamentando-nos no trabalho dos biólogos Humberto
Maturana e Francisco Varela. A partir dos sistemas biológicos, as propriedades comuns podem
também ser comuns e partilhadas por sistemas culturais e também sociais; para tal, nos apoiamos
em Edgar Morin. Segundo ele, o homem é um ser biopsicossocial, portanto, em nosso trabalho
tal visão é útil, uma vez que falar do homem e de sua relação com alimentação, requer litar ao
mesmo tempo com aspectos biológicos, culturais e sociais. O conceito de sistemas também nos
favorece na definição e delimitação dos conceitos cozinha, determinada pela geografia e
culinária determinada por aspectos culturais e sociais.

Neste primeiro capítulo reforçamos os aspectos biológicos e materiais do homem e sua


alimentação; embora sigamos com o diálogo matéria/símbolo por todo o trabalho. Ressaltamos a
questão biológica da fome, como o homem é afetado por este instinto e como resolve os desafios
neste campo. É nossa intenção demonstrar quão importantes e centrais são as questões
alimentares para o homem, e como muito do que ele faz está subordinado a esta necessidade.
Demonstraremos, inclusive como a alimentação, ao longo dos tempos ajudou a modelar o
homem em muitos níveis. Tratamos a necessidade da alimentação como um dos programas
inatos que determinam as ações, não só do homem, mas de todos os seres vivos. Fornecemos
muitos exemplos comparativos que mencionam outros animais, células, etc. com intuito de
demonstrar a prevalência dos programas biológicos sobre o homem. Finalizamos o capítulo
distinguindo a dinâmica alimentar do homem da dos animais: graças ao pensamento simbólico, o
homem pode pensar e escolher sua alimentação, pode otimizá-la, potencializá-la ou transformá-
la em veneno.

7
1.1 A Realidade apresenta-se de forma sistêmica

A natureza, ao longo de sua evolução, tem demonstrado que os processos de adaptação mediante
as perturbações do ambiente, são muito mais eficientes no grupo do que no individuo. Talvez
isso se explique pelo fato de que independentemente dos símbolos que adotemos para construir o
mundo em que vivemos, a realidade, ainda conhecida por nós apenas parcialmente, parece
sempre apresentar-se de forma sistêmica. 15 Isto significa dizer que nada existe isoladamente,
tudo existe em conexão com muitas outras coisas que partilham as mesmas propriedades. Estas
propriedades são funções que só podem ocorrer como resultado de ações coordenadas. Podemos
pensar no sistema como uma mente, no sentido que Gregory Bateson propõe: “Uma mente é um
agregado de partes ou componentes que interagem.” 16 A ideia de mente é conveniente para
explicar sistemas pois, um sistema é um agregado que se auto regula e possui suas estratégias de
manutenção interna e de adaptação frente às perturbações do ambiente. São sistemas: desde seres
unicelulares, onde os componentes são as organelas contidas nesta única célula interagindo para
o funcionamento da mesma, até sistemas sociais tais como os religiosos, onde seus membros
interagem para o funcionamento de tais sistemas. A coesão de um grupo transforma-o num
organismo único, assim grupos sociais de qualquer natureza comportam-se como uma entidade
com identidade própria, e lutando para sobreviver num dado ambiente. Enquanto uma célula
divide espaço com outras células num tecido, religiões dividem espaços sociais com outras
religiões, por exemplo.

Não estamos colocando diferentes sistemas como metáfora um do outro, mas qualquer sistema é
também um subsistema contido em outro: células são subsistemas que compõem tecidos, que por
sua vez são subsistemas que constituem órgãos, que compõem o ser humano. Seres humanos são
subsistemas que compõem os sistemas judiciário, étnico, religioso, etc. É difícil saber qual o
limite dos sistemas, pois podemos falar em sistemas de moléculas ou átomos, bem como de
sistemas planetários ou ainda de uma infinidade de sistemas simbólicos que, embora abstratos,
em sua dinâmica seguem os mesmos parâmetros de um sistema concreto.

15
VIEIRA, J. A. Ontologia sistêmica e complexidade. Formas de conhecimento: Arte e ciência a partir da
complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008, p. 24.
16
BATESON, G. Mente e Natureza. A unidade necessária. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A.,
1979, p. 100.

8
Devemos esclarecer que um sistema não é apenas um agregado de coisas, para que seja um
sistema é fundamental que estas “coisas” partilhem uma ou mais propriedades. Um grupo de
pessoas num mesmo lugar não faz delas um sistema, mas um grupo de pessoas que partilham a
mesma crença política forma um sistema político.

A ideia de sistemas é a princípio generalista, uma vez que, não seria possível comparar sistemas
de naturezas tão diferentes em categorias que não fossem gerais. Mesmo assim, a ideia de
sistema tende a se especificar à medida que constatamos que todos estes sistemas possuem de
fato, parâmetros e características comuns. A primeira característica é a permanência, isto é,
refere-se à tendência que todo sistema, especialmente os vivos têm de permanecer no tempo. “O
equivalente em biologia seria o termo, vagamente empregado por vezes, ‘sobrevivência’” 17. É
esta característica que dará origem aos processos de adaptação. Uma segunda característica
refere-se ao ambiente, ou seja, o contexto no qual um sistema está inserido. Este ambiente é
muitas vezes, um sistema maior que o engloba. O sistema relaciona-se com o ambiente através
das trocas de informação, matéria e energia, assim influenciam-se mutuamente.

A conectividade também constitui uma importante característica do sistema; trata-se da relação


entre os componentes do sistema, elas podem ser diferentes em intensidade, no caso de um
sistema social, tal qual o religioso, por exemplo, trata-se da relação entre seus membros ou ainda
entre seus membros e a doutrina e seus seres sobrenaturais.

A autonomia é a característica que se refere às reservas que o sistema possui para manter-se.
Trata-se de componentes (no caso de sistemas sociais, membros), energia, informação e
quaisquer recursos necessários para que continue existindo, mantendo a mesma organização. A
evolução é outra característica comum aos diferentes sistemas. Todos os sistemas evoluem, não
no sentido de se tornarem melhores, mas de tornarem-se mais complexos. Com a evolução, o
sistema pode sofrer mudanças em sua composição (quantidade ou qualidade de componentes) e
consequentemente nos aspectos de conectividade. Chamamos estrutura o conjunto de relações
estabelecidas entre os componentes do sistema até um instante de tempo18, isto porque, como
veremos adiante, a estrutura sofre mudanças em prol da evolução. Apesar das mudanças que a
estrutura pode sofrer o sistema há de permanecer o mesmo, pois conservará sua organização.

17
VIEIRA, J. A. op. cit., p. 32.
18
Ibid, p. 38.

9
Esta refere-se à forma característica pela qual determinados componentes relacionam-se
produzindo um resultado específico. É a organização que determina a identidade do sistema, ou
seja, aquilo que ele é. Um coelho só é reconhecido por coelho porque tem aqueles componentes,
organizados daquela maneira, e embora existam coelhos de raças diferentes, há um padrão
conhecido por coelho. Analogamente, há um padrão determinado para o que reconhecemos como
Igreja Católica, componentes específicos organizados de modo especifico para que assim seja
identificada. Devemos também chamar a atenção para uma característica exclusiva dos sistemas
vivos: a capacidade de produzirem a si próprios de modo contínuo, esta propriedade é chamada
por Maturana e Varela de organização autopoéitica19 (auto = si mesmo + poiesis = criação). Um
animal produz as próprias células, “repondo-se” constantemente, da mesma forma que o grupo
social “repõe-se” através da formação cultural de novos indivíduos. Neste sentido podemos dizer
que o DNA e a cultura são processos similares, ambos podem ser considerados programas
responsáveis pela transmissão e execução de padrões:

Assim como a ordem das bases num fio de DNA forma um programa codificado, um
conjunto de instruções ou uma receita para a síntese de proteínas estruturalmente
complexas que modelam o funcionamento orgânico, da mesma maneira os padrões
culturais fornecem tais programas para a instituição dos processos social e psicológico
que modelam o comportamento publico. 20

Logo, percebemos que a capacidade de organização autopoiética funciona tanto no organismo


quanto para um sistema composto de organismos, tais como grupos sociais. Em qualquer
processo reprodutivo, os espécimes nunca serão exatamente iguais a seus progenitores. Eles
mantêm a organização, mas apresentam estruturas ligeiramente diferentes. E até nisso os
processos de reprodução celular e cultural assemelham-se: não há dois neurônios idênticos, como
não há dois templos budistas idênticos. Mas apesar das diferenças entre os dois neurônios e as
diferenças entre os dois templos budistas, reconhece-se os dois como neurônios e os dois templos
budistas.

Além das características apresentadas acima, sistemas também podem ser observados do ponto
de vista de seus comportamentos. Nenhum sistema vivo consegue permanecer estático, porém, é

19
MATURANA, F. e VARELA, F. A Árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São
Paulo: Palas Athena 2001, p.52.
20
GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC 2008, p. 68.

10
necessário manter-se dinamicamente estável, 21 o que implica atender em seu interior, a
numerosas condições simultaneamente.

Um animal que sente fome ou sede quando apresenta níveis baixos de certos nutrientes, ao comer
e beber reequilibra tais níveis, permanecendo com o suficiente para exercer suas atividades
durante certo tempo. Esta “faixa de constante variação é conhecida como homeostática, e o
processo de obtenção desse estado equilibrado chama-se homeostase”.22 A faixa homeostática é
uma faixa de variação permitida, que matem o sistema dentro de certos limites de segurança.
Menos do que o necessário resulta em falência do sistema, mais, além de ser difícil obter, pode
desconfigurar a organização do sistema, destruindo-o ou transformando-o em outro sistema
diferente. Para Gregory Bateson, manter-se na faixa homeostática é dizer que:

sistemas adaptativos são organizados de forma que tendem a preservar como verdadeiro o
valor de certas proposições sobre eles próprios em face a perturbações continuamente
tentando falsifica-las23.

Isto nos faz perceber que a mesma ideia de homeostase existe nos sistemas sociais, que devem
manter suas proposições mais importantes a fim de permanecerem dinamicamente estáveis.

Especialmente as proposições religiosas sofrem constantes perturbações do ambiente, seja


através do confronto com proposições de outras religiões ou mesmo com proposições seculares.
De mais de duzentos dias de jejum por ano (jejum neste caso significa não consumir carne
vermelha ou proteína animal alguma em certos dias) que igreja católica impunha, ficamos hoje
apenas com o jejum da quaresma ou simplesmente da semana santa. Isto quer dizer que, a igreja
abriu mão de algumas de suas proposições menores para manter sua homeostase. Certamente, a
questão alimentar pode ter levado à perda de alguns componentes (devotos) deste sistema.

Em organismos, estas “proposições” são descrições genética e fisiologicamente


codificadas sobre sua estrutura e funcionamento próprio. Em sistemas sociais humanos,
entretanto, proposições regentes podem ser proposições do tipo: “O Senhor nosso Deus é
o único Deus”, cuja invalidação significaria a ruína do Judaísmo. 24

21
RAPPAPORT, R. Ritual and Religion in the making of Humanity. Cambridge: Cambridge University Press, 1999,
p. 410. Tradução do autor.
22
DAMÁSIO, A. E o Cérebro criou o Homem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 61.
23
BATESON, G. apud: RAPPAPORT, R. op. cit., p. 6.
24
RAPPAPORT, R. op. cit., p. 6.

11
Assim, um grupo religioso necessita manter certo número de membros e certa frequência de
rituais a fim de preservar suas proposições mais importantes.

Naturalmente que, na adaptação em prol da homeostase, entra em jogo a flexibilidade. Isto


significa dizer que possivelmente valores menos importantes devam ser sacrificados em
detrimento de valores mais fundamentais.

“O que esta mudança mantém imutável?” [...] modificações e transformações na


descrição de subestruturas devem preservar imutáveis valores de proposições mais
fundamentais tidos como verdadeiros considerando o sistema como um todo, frente a
mudanças de condição que ameaçariam falsifica-los.25

Da mesma forma que colocamos as religiões como sistemas, colocamos as cozinhas. Seus
componentes são ingredientes, técnicas culinárias, valores simbólicos, praticantes e comensais.
Elas variam segundo tempos e espaço, e portanto, estão sujeitas a toda sorte de mudanças no
ambiente. Por sua flexibilidade, algumas cozinhas têm conseguido permanecer por longo tempo,
apesar das trocas que são obrigadas a fazer.

O traço mais importante das grandes civilizações alimentares é a capacidade imensa de


deglutir as influências externas sem se descaracterizar. É como uma língua que
assimilando palavras de outro idioma, não perde sua gramática. A Índia é um grande
exemplo disso, pois acomodou, ao longo da história, várias influencias sem se
descaracterizar. Além do período Arvan, dos grandes impérios hindus, sofreu a influencia
dos mongóis, dos persas, dos turcos, dos gregos, dos chineses, dos árabes e, no período
moderno, dos portugueses e ingleses. 26

Embora a culinária indiana tenha sofrido muitos ataques às suas proposições, conseguiu manter
sua integridade, sendo inclusive transportada para dentro de outras cozinhas, tais como nos
Estados Unidos, na Europa, etc.; onde conseguiu manter-se com identidade própria apesar das
adaptações a que teve de se submeter localmente.

Se somarmos religião + cozinha, formando um sistema, encontraremos exemplo da mesma


dinâmica no culto africano aos orixás. Já na África, tal culto tinha como base as oferendas de
alimentos locais. Com toda a movimentação do tráfico de escravos estas oferendas foram se
25
Ibid. p. 7.
26
DORIA, C. A. A Culinária Materialista. Construção racional do alimento e do prazer gastronômico. São Paulo:
Editora Senac São Paulo, 2009, p. 58.

12
modificando pelo novo fluxo de ingredientes. Os europeus levaram muitos produtos do Mundo
Novo ao continente que fornecia escravos, tais como a mandioca, o milho, as pimentas do gênero
capsicum, o amendoim, a castanha de caju, etc. Os escravos, por sua vez, traziam seus rituais
religiosos e junto com eles sua culinária litúrgica repleta dos ingredientes locais, tais como:
azeite de dendê, quiabo, a galinha d’angola, o inhame, a cana-de-açúcar e o arroz (os dois
últimos trazidos para a África na bagagem islâmica). Apesar de todas as adaptações que
necessitaram fazer em suas oferendas alimentares, mantiveram o culto dos orixás através das
oferendas de alimentos resultando na cozinha afro-baiana do candomblé.27

A natureza fortemente estruturada dos sistemas alimentares se reflete em sua tendência de


reproduzir modelos de referência [...] mesmo no afastamento forçado das práticas
costumeiras, deve-se permanecer o mais próximo possível da própria cultura, “da
linguagem” que se conhece [...] são atestadas invenções de todo tipo para adaptar
recursos disponíveis às técnicas e às práticas conhecidas.28

Formas muito rígidas têm maior dificuldade de sobrevivência, mesmo assim, com objetivo de
manterem sua homeostase e preservarem suas proposições, alguns sistemas reagem de forma
diferente e, têm como estratégia manterem-se mais fechados, buscam isolar-se do ambiente
preservando até mesmo as menores proposições:

Exemplos da natureza são fornecidos pelos moluscos de conchas pesadas cujas atividades
são mais ou menos limitadas ao intermitente abrir da concha para filtragem e
alimentação. Entre humanos, os mais evidentes casos podem ser regras advindas de
postulados religiosos. Talvez o mais notável exemplo seja as restrições judaicas em nome
de Deus.29

A cozinha Kasher tem sobrevivido com grande dificuldade, dada sua inflexibilidade e grau de
exigência. Os judeus estão espalhados pelo mundo e expostos a diferentes ambientes, com outras
cozinhas e práticas alimentares, logo, “apenas cerca de 10 por cento dos judeus seguem
estritamente a lei Kasher.”30

27
RADEL, G. R. A Cozinha africana da Bahia. Salvador, 2006, p. 29.
28
MONTANARI, M. 2008, op. cit., p. 171.
29
RAPPAPORT, R. op. cit., p. 411.
30
LATHAM, E. J. e GARDELLA, P. Food. In: JONES, L. (Editor in Chief) Encyclopedia of Religion. Farmington
Hills: Thomson Gale, 2005, p. 3167. Tradução do autor.

13
Além das mudanças no ambiente, outra questão também provoca variações na faixa
homeostática: a necessidade de combustível para manter suas atividades. O tipo de energia
necessária varia de acordo com o tipo de sistema, podendo ser matéria, idéias, informação
codificada ou energia física propriamente dita. Somente se alimentando um sistema vai
conseguir se desenvolver, se reproduzir e evoluir. Um ser humano precisa de ar, água e comida,
um sistema social precisa de idéias e pessoas.

A homeostase do sistema depende de certas quantidades de “alimento”. Estar muito abaixo ou


muito acima destas quantidades obriga o sistema a rearranjar seus subsistemas para retornar ao
equilíbrio, isto significa adaptação.

Um sistema sempre sobrevive à custa de outro. Para que um sobreviva, outros serão, pelo menos
parcialmente, consumidos, numa cadeia sem fim. Imaginemos uma cadeia alimentar, muito
simples, apenas para efeito didático: Plantas são comidas por animais, que por sua vez são
comidos por outros animais, quando os animais morrem são então decompostos por insetos e
fungos e voltam a ser nutrientes dos quais as plantas vão novamente se alimentar. Os elementos
químicos ora estão nas plantas, ora nos animais, ora na terra, na água ou no ar, reorganizando-se
incessantemente, segundo cada nova forma. Todos os elementos a partir dos quais coisas são
fabricadas na Terra, um dia estiveram nas estrelas. Cada sistema tem seu tempo de permanência
e enquanto existir necessitará do fluxo de energia, isto significa dizer que, para que um sistema
mantenha-se em relativo equilíbrio outro sistema se desequilibra. Isto é, para que a estrutura de
um sistema seja construída ou reconstituída, algum outro sistema há que perder pelo menos parte
de sua estrutura. A alimentação humana só existe à custa de vários ecossistemas. Um dia, a Índia
vegetariana que conhecemos praticou sacrifícios de bovinos que eram então consumidos.
Segundo o antropólogo Marvin Harris, esta prática teria sido abolida não por circunstâncias
religiosas, mas imperativas do ambiente:

A transformação geral do sacrifício animal redistributivo no tabu do consumo de


espécies anteriormente valiosas e abundantes seguiu -se à intensificação da
agricultura, ao esgotamento dos recursos e ao aumento da densidade
populacional [...] as quintas tornaram-se cada vez menores e só as espécies
domesticadas mais essenciais podiam partilhar a terra. Os bovinos eram a única
espécie que não podia ser eliminada. Eles eram os animais que puxavam os
arados de que dependia todo o ciclo da agricultura, que por seu turno dependia
das chuvas. Havia que manter pelo menos dois bois e uma vaca para reprodução.

14
O gado bovino tornou-se assim o foco central do tabu religioso da carne para
comer. 31

Portanto, as mudanças no ambiente e a relação com outros sistemas não permitem que um
sistema, seja da natureza que for, permaneça imutável. Mudanças em subsistemas preservam a
continuidade do sistema como um todo. Este é o principio da seleção natural. Dadas as
dinâmicas de sobrevivência com tantas similaridades entre organismos de naturezas tão
diferentes, concluímos que, ontologicamente, a realidade apresenta-se de forma sistêmica.

1.1.2 Definição de Sistemas Alimentares e Sistemas Culinários

O conceito de sistemas serve não apenas para compreendermos seres vivos em geral, mas
também agrupamentos de coisas, ideias, e, coisas e ideias com organismos vivos, desde que tudo
funcione coordenadamente para gerar uma função. Dissemos anteriormente que a cozinha pode
ser compreendida como um sistema, pois, para que exista, uma gama de fatores devem ser
combinados. A cozinha é o conjunto de processos que nos proporciona nutrição, num sentido
amplo a nutrição e tudo o que ela acarreta é determinante na existência:

[...]dando a nutrição como causa determinante à adaptação. Considero esta palavra no seu
sentido mais lato, e designo assim a totalidade das variações materiais que o organismo
sofre em todas as suas partes sob o influxo do mundo exterior. [...] a nutrição não é
somente a ingestão de substâncias realmente nutrientes, mas a influencia da água, da
atmosfera, da luz solar, da temperatura, de todos os fenômenos meteorológicos
designados pelo nome de clima. Compreendendo por nutrição ainda a influência imediata
da constituição do solo, da habitação, da ação variada e importante que os organismos
circunvizinhos exercem, sejam eles amigos, inimigos ou parasitas, etc., sobre cada planta
ou sobre cada animal [...]. A adaptação será o resultado de todas as modificações
suscitadas nas trocas materiais do organismo pelas condições externas da existência, pela
influência do meio ambiente.32

O sociólogo Carlos Alberto Dória organiza o conhecimento a respeito da nutrição via alimentos,
conceituando-o primeiramente em termos de sistemas alimentares:

31
HARRIS, M. Canibais e Reis. Rio de Janeiro: Edições 90 Brasil, 1977, p. 204 e 206.
32
HAECKEL, E. História da criação dos seres organizados segundo as leis naturais. Porto: Lelo & Irmãos, 1930,
p. 164.

15
Os sistemas alimentares correspondem ao conjunto de soluções de vida de uma
população para resolver os problemas de nutrição, sempre considerando as possibilidades
que o ambiente dispõe e as ideias dessa população sobre a incorporação, que podem se
formar em outros domínios da cultura, como a religião. Eles variam em grandes linhas,
de civilização para civilização, e essas diferenças contam muito quando observamos a
alimentação de cada uma.33

Em geral, os sistemas alimentares são fruto das imposições geográficas. Relevo e clima
determinam as grandes questões de nutrição, que são solucionadas através de técnicas de plantio,
irrigação, seleção e domesticação de animais, métodos de conservação de alimentos, constantes
mudanças de dieta por parte da população, exploração dos territórios alheios tal como nas
colonizações e, mais recentemente, importação de gêneros alimentícios. Cada cultura faz a
manutenção de seu sistema de forma diferente, combinando os componentes acima. “Os desafios
que a natureza põe para o homem são diferentes no tempo e no espaço, e, diante deles,
sociedades respondem de modo diverso, até mesmo representando essa natureza como favorável
ou hostil.”34

Dentro dos sistemas alimentares podemos ainda encontrar os sistemas culinários:

O que chamaremos de sistemas culinários é algo mais restrito: uma mesma civilização ou
um mesmo povo pode comportar vários sistemas culinários, como são as diferentes
cozinhas dos povos ocidentais ou as diferentes cozinhas chinesas ou indianas, imersas
nos respectivos sistemas alimentares.35

Os sistemas culinários são também formas de soluções de problemas de nutrição de um grupo,


entretanto, além de estar contido nos sistemas alimentares, diferenciam-se destes por terem uma
natureza mais cultural. Os problemas aos quais estão sujeitos parecem requerer soluções de
ordem simbólica para resolver problemas concretos. Para exemplificar, podemos pensar na
cozinha judaica, submetida aos diversos sistemas alimentares do mundo, ela subdivide-se em
alguns sistemas culinários tais como: kasher36 (pode ser judaico ou não, mas está relacionado ao

33
DORIA, C. A. op. cit., p. 46.
34
Ibid, p. 49.
35
Ibid, p. 46.
36
Kasher significa o que está em acordo com as leis da Kashrut (leis dietéticas judaicas). Há restrições quanto ao
que se come, mas a Kashrut está muito mais ligada ao modo de obtenção e preparo dos alimentos, que podem ou não
fazer parte da tradição judaica. A mandioca, por exemplo, que não faz parte da cozinha tradicional judaica, mas
pode vir a ser um alimento kasher, desde que submetida aos critérios de produção determinados pela Kashrut.

16
judaísmo); no Brasil, por exemplo, pode-se encontrar o “kit de pertences para feijoada Kasher”,
prato tipicamente brasileiro adaptado às normas kasher, há linguiça e bacon, entretanto, feitos
100 por cento de carne bovina Kasher.

Há no judaísmo outros sistemas culinários o Ashkenazita e o Sefaradita, podendo ser kasher ou


não. O sistema culinário Ashkenazita, considerado como tradicionalmente judaico apresenta
influências do sistema alimentar do leste europeu, com seus ingredientes e técnicas. Já o sistema
culinário Sefaradita, também considerado como tradicionalmente judaico, apresenta
características do sistema alimentar do Oriente Médio, com ingredientes e técnicas particulares.

De certa forma, “do ponto de vista alimentar, podemos tomar as civilizações pelo que são:
sistemas estáveis, apesar das transformações pelas quais passaram e que não abalaram a sua
lógica e organização interna.”37 Isto pode ser entendido no sentido de que a alimentação pode
auxiliar a manter uma unidade cultural. No caso dos judeus, como em muitos outros, a questão
alimentar constitui um valor importante que caracteriza um grupo disperso pelo mundo. Para o
estrangeiro: “Comer à judia” era um pouco como tornar-se judeu no prazer de um momento,
sentir de dentro o fascínio daquilo que era difícil (talvez impossível) apreender de fora. 38 A
alimentação, neste caso, é uma das proposições que reforçam a coesão do grupo.

Podemos afirmar que os sistemas culinários são subsistemas do sistema alimentar, uma vez que o
compõem. Numa conveniente analogia Dória afirma: “Podemos dizer que os sistemas
alimentares são como línguas muito faladas e os sistemas culinários são como dialetos.”39

1.2 A natureza animal do homem

Uma vez que contextualizamos o homem e sua alimentação na teoria de sistemas, ampliaremos
nossas lentes para melhor compreender a natureza do homem e, posteriormente, que papel tem a
questão alimentar dentro desta natureza.

37
DORIA, C. A. op. cit., p. 50.
38
TOAFF, A. Cozinha judaica, cozinhas judaicas. In: MONTANARI, M. (Org.) O mundo na cozinha. História,
identidade, trocas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009, p. 183.
39
DORIA, C. A. op. cit., p. 46.

17
O homo sapiens surge como uma continuidade evolutiva de uma sucessão de experimentos e
aprimoramentos naturais de espécies anteriores durante milhões de anos. Falamos em
continuidade, pois não conhecemos o final da linha evolutiva, não sabemos se o homo sapiens
evoluirá para dar origem a outras espécies, nem tão pouco sabemos se nossa espécie terá uma
longa permanência na terra. Comparada a outras espécies, tais como répteis, ou até mesmo
dinossauros, que embora extintos, duraram cerca 250 milhões de anos, o homo sapiens é jovem,
existe apenas há cerca 80 mil anos. Mesmo tendo grandes vantagens adaptativas relacionadas a
sua capacidade de raciocínio e comunicação, o homo sapiens sofre pequenas e lentíssimas
mudanças e, com tudo que temos causado ao ambiente, talvez sejamos causadores de nossa
própria extinção ou tenhamos que sofrer mudanças drásticas, que poderiam dar origem a uma
nova espécie.

Ainda que o homo sapiens tenha chegado a um nível de desenvolvimento cognitivo e adaptativo
excelente, e tenha na cultura um diferencial incomparável em relação aos outros animais, é
inegável que ainda esteja subordinado em grande parte à sua condição biológica. Apesar da
tentativa da antropologia de opor cultura e natureza, homem e animal, demonstraremos ao longo
da argumentação que o homem não é apenas uma coisa ou outra, mas um sistema composto
destes dois mecanismos. É esta combinação que denominamos humanidade.

O homem tornou-se tão complexo, tão capaz de aprender e adaptar-se que parece ter tido uma
origem completamente diferente da dos outros animais:

Se o Homo Sapiens surgiu bruscamente todo armado, isto é, dotado de todas as suas
potencialidades, como Atena nasceu do cérebro de Zeus, mas de um Zeus inexistente,
como Adão nasceu de Eloim, mas de um Eloim recusado, nesse caso donde veio o
homem? Se se concebe o ser biológico do homem, não como produtor, mas como
matéria-prima da qual se modela a cultura, neste caso, donde veio a cultura? Se o homem
vive na cultura, mas trazendo em si a natureza, como pode ser simultaneamente
antinatural e natural?40

As maiores evidências da origem evolucionista do homem e, do quanto ele ainda está


subordinado à sua porção biológica, encontram-se não no estudo do homem, mas exatamente no
estudo de outras espécies e nas similaridades que elas têm com o homem. Ao estudarmos outras
espécies percebemos que muitas das qualidades consideradas exclusivamente humanas já haviam
40
MORIN, E. O Paradigma perdido: a natureza humana. Lisboa: Publicações Europa-América ltda. 1999, p. 18.

18
sido testadas e aprimoradas em outras espécies. Entre tais aspectos, encontramos: a
comunicação e o comportamento social.

Já entre os insetos encontramos formas complexas de organização social. Entre formigas e


abelhas, por exemplo, existem papeis bem definidos em suas sociedades, além de uma
comunicação bastante eficaz que faz a manutenção da hierarquia nestas sociedades. Não é
necessário um líder, são sociedades que, por processos químicos se auto regulam:

Estabelece-se um fluxo contínuo de secreções entre os membros de uma colônia: eles


trocam conteúdos gástricos cada vez que se encontram, desse intercambio químico,
chamado trofolaxe, resulta a distribuição, por toda a população, de certa quantidade de
substâncias, entre elas os hormônios responsáveis pela diferenciação e especificação de
papeis. Assim, a rainha só é rainha na medida em que é alimentada de certo modo, e não
por hereditariedade. Basta retira-la de seu lugar, para que, de imediato, o desequilíbrio
hormonal produzido por sua ausência resulte na alimentação diferencial de larvas, que se
desenvolverão como rainhas.41

As sociedades de insetos não são exceções do mundo animal, aliás, observa-se que quanto mais
complexa a espécie, mais complexa a organização social, bem como a comunicação para
manutenção desta organização.

A riqueza das comunicações realizadas por meio de sinais, de símbolos, de ritos, é


precisamente função da complexidade e multiplicidade das relações sociais; nas aves, e,
sobretudo nos mamíferos, a grande diversidade de individuo para individuo determina e
aumenta essa complexidade. 42

Fala-se até mesmo em sociologia animal; estas sociedades arranjam e defendem suas bases
territoriais, estruturam-se hierarquicamente para resolverem competições e conflitos internos por
meio de submissão/dominação, além de implicarem em solidariedades em relação a inimigos e
perigos exteriores43 e assim garantem condições para alimentação e reprodução e naturalmente a
permanência da espécie.

Imaginemos um rebanho de antílopes, que vivem em terrenos montanhosos. Quem


alguma vez tentou aproximar-se deles notou que tão logo se chega a uns cem metros de
distancia todo o rebanho foge. Em geral, correm até chegar a uma elevação maior, de
onde voltam a observar o estranho. No entanto, para passar de um cume a outro precisam

41
MATURANA, H. e VARELA, F. op. cit., p. 207.
42
MORIN, E. op. cit., p. 30.
43
Ibid, p. 29.

19
percorrer um vale, o que lhes impede a visão do visitante. [...] O rebanho se move numa
formação que tem à frente o macho dominante, seguido das fêmeas e dos filhotes. Na
retaguarda vão outros machos, um dos quais fica para trás, no cume mais próximo, e
mantém o estranho sob suas vistas enquanto os demais descem. Assim que chegam a uma
nova elevação, ele volta a juntar-se ao rebanho.44

Pode-se afirmar que o homo sapiens é em grande parte a somatória e aperfeiçoamento destas
soluções incitadas pela necessidade de adaptação. Como veremos posteriormente todas as
soluções “criadas” pelo homem têm seu primeiro modelo na natureza, provavelmente
reminiscente de alguma memória incrustada em seu DNA. Como diz Cosnier: “a espécie humana
não inventou os comportamentos de namoro e de submissão, a estruturação hierárquica do grupo,
ou a noção de território”45 e segundo Morin: “também não deixa de ser menos evidente que a
sociedade não é uma invenção humana.”46

Esse homem, contudo, já não é um animal qualquer, que segue seus instintos. Ao
contrário, estes são instintos sociais, isto é, submetem-se as determinações da vida em
sociedade. [...] significa que a seleção natural é a força principal que governa o
aparecimento dos grupos humanos, por meio de um processo específico de aquisição e
fixação de conhecimentos (de educação), sem o qual o instinto social humano não se
materializaria como forma de civilização. É forçoso reconhecer, por isso, que a seleção
natural determina a própria cultura, conhecimentos e comportamentos que permitem à
espécie seguir existindo, fazendo com que a cultura seja a própria evolução da seleção
natural dos instintos sociais. 47

1.3 Alimentação e programas biológicos inatos

Embora o homem apresente o instinto social 48 , mais elaborado, certas circunstâncias ainda
podem fazer com que ele os suprima em detrimento de outros instintos mais básicos; podemos
falar, por exemplo, em comportamentos condicionados, agressividade animal; e não são poucos
os relatos que demonstram situações em que o ser humano pode revelar sua faceta instintiva mais
primitiva. Quando colocado em circunstâncias de muitas privações ou que ponham sua

44
MATURANA, H. e VARELA, F. op. cit., p. 209.
45
COSNIER, J. apud: MORIN, E. op. cit., p. 30.
46
MORIN, E. op. cit., p. 30.
47
DORIA. C. A. op.cit., p. 30.
48
Ibid.

20
existência em risco, há uma grande probabilidade de que estes comportamentos instintivos
tomem conta do sujeito. Um destes relatos pode ser encontrado na observação do psicólogo
Viktor Frankl sobre o comportamento de judeus prisioneiros em campos de concentração: “face
ao estado de extrema subnutrição em que se encontravam os prisioneiros, é compreensível que,
entre os instintos primitivos que representam a ‘regressão’ da vida psicológica no campo, o
instinto de alimentação ocupasse o lugar principal.” 49 A fome pode fazer o homem atropelar as
regras de civilidade. Na Divina Comédia, Dante fala da fome, ela deixa a marca permanente e
inconsciente de uma morte agonizante no ser humano:

a primeira das calamidades que assolam a humanidade. Sua consequência é a morte mais
miserável de todas. A fome provoca um suplicio lento, dores prolongadas, um mal que
habita e se esconde no interior da gente, uma morte sempre presente e sempre lenta a
chegar.50

Como um de nossos instintos mais imperativos, os tempos de penúria alimentar da história


evolutiva ficaram registrados de forma contundente em nosso DNA.

A fome, como expressão característica do instinto de autopreservação, é sem dúvida um


dos fatores primários e mais poderosos de influência do comportamento; na realidade, a
vida dos primitivos é atingida mais fortemente por ela do que pela sexualidade. Nesse
nível, a fome é o alfa e o ômega – a existência em si.51

Desta maneira, a prática voluntária do jejum, seja por qual motivo for, constitui um mecanismo
poderoso de descondicionamento e aprendizagem.

Quando muitos dos programas biológicos inatos do homem estavam se formando, este
encontrava-se em condições de existência bastante custosas52, pois a coleta e especialmente a
caça de animais que representava na carne, um alimento com mais sustância, eram incertos, o
que privilegiou certos comportamentos que visavam a conservação da espécie:

[O homem] estava quase sempre faminto, sem nunca ter certeza de poder satisfazer essa
fome. O homem, que vivia num clima tropical evoluindo aos poucos para as zonas

49
FRANKL, V. Em Busca de Sentido. São Paulo: Vozes, 1985, p.20.
50
Apud: CHONCHOL, J. O desafio alimentar. A fome no mundo. São Paulo: Marco Zero, 1989, p. 7.
51
Psychological Factors in Human Behavior, The Structure and Dynamics of the Psyche, OC 8, 237. Apud:
JACKSON, E. Alimento e Transformação: Imagens e simbolismo da alimentação. São Paulo: Paulus, 1999, p. 18.
52
LORENZ, K. Civilização e Pecado. Os oito erros capitais do homem moderno. Rio de Janeiro: Artenova S.A.
1974, p. 57.

21
temperadas, certamente sofreu muito com isso. Com suas armas primitivas, devia viver
num estado permanente de alarme e medo. Nesse contexto, muitas atitudes que hoje
consideramos desprezíveis ou culposas, eram perfeitamente justificáveis. Uma estratégia
inspirada pelo instinto de conservação transformava necessidade em virtude e mandava
que comessem o mais possível toda vez que capturavam um animal de bom porte. A
sabedoria consistia em se empanturrar. O mesmo se dava com o pecado mortal da
preguiça. Obter um pedaço de carne custava tal esforço que era preciso cuidar para não
despender mais energia do que o necessário.53

O processo de seleção natural tem favorecido mecanismos que otimizam energia. É o corpo que
ensinará ao homem as primeiras noções de economia, através de um elaborado sistema de
condicionamento:

No homem, o primeiro tipo de estímulo está ligado a um sentimento de prazer, o segundo


a um sentimento de desagrado. Podemos, sem muito antropomorfismo, designá-los
simplesmente, nos animais superiores por noções de recompensa e castigo. 54

Ou seja, sensação de saciedade e bem estar versus sensação de fome e/ou dor causada pela fome.
Através de um sistema de feedback 55 , ou retroação que consiste em reforçar aprendizados
positivos e enfraquecer ou inibir aprendizados negativos (descondicionamento), homens e
animais aprendem como investir bem sua energia, buscando na maior parte do tempo, acumula-
la.

Temos o instinto a favor da permanência, isto é, segundo Konrad Lorenz, uma série de
programas inatos presentes em todos os sistemas vivos, e com função ultima de conservar o
organismo e consequentemente dar continuidade à espécie. Entre tais programas encontram-se a
agressividade para defesa de território, defesa contra agentes destruidores (contaminação), o sexo
e a alimentação; “por sua importância estratégica para a vida essas duas [ultimas] atividades
constituem as fontes mais intensas do prazer carnal.” 56 Contrariamente, os mecanismos de
descondicionamento visam inibir comportamentos que possam colocar o individuo e a espécie
em risco.

53
Ibid.
54
Ibid, p. 53.
55
Ibid, p. 21.
56
CARNEIRO, H. Comida e Sociedade. Uma História da alimentação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003, p. 128.

22
Os princípios opostos da recompensa e do castigo existem para manter o equilíbrio entre
preço a pagar e o lucro em perspectiva. Isso é demonstrado pelo fato de sua intensidade
variar de acordo com a economia do organismo. Se a alimentação é abundante, sua força
de atração diminui a tal ponto que o animal dá apenas alguns passos para alcança-la, e
nesse caso qualquer estímulo negativo é suficiente para acabar com o apetite. No caso
inverso, a capacidade de adaptação do mecanismo prazer-desagrado permite ao
organismo, em período de necessidade, pagar um preço exorbitante para alcançar uma
meta vital.57

Um animal deve conseguir superar certos obstáculos para obter o que precisa, mas não ao ponto
de ter ferimentos graves ou mesmo de perder sua vida. Seria ilógico pagar seu almoço com uma
parte de seu corpo, como por exemplo, ter uma pata congelada ao sair para caçar em regiões
muito frias. Um risco tão alto só deve ser percorrido se for a ultima cartada na tentativa de salvar
a própria vida.

Podemos observar de forma mais detalhada o que sugerimos anteriormente: uma das primeiras
coisas que aprendemos com a natureza foram os princípios de economia. Nosso corpo precisa de
certos recursos para manter-se, para tanto, arca com certos custos. Os custos variam de acordo
com os recursos necessários e disponíveis. Qualquer ser vivo depende de administrar bem os
meios de aquisição de recursos e quanto gasta para obtê-los. No ser humano, entretanto, dada sua
capacidade simbólica, o instinto social transporta este jogo de negociações para outras esferas.

“Os seres humanos buscam o que percebem ser recompensas e evitam o que percebem ser
custos.” 58 Assim, seres humanos podem submeter-se a certos sacrifícios ou restrições para
conseguirem o que querem. Quase todas as religiões impõem regras sobre alimentação. Aquele
que deseja as recompensas ou aceita os compensadores59 oferecidos por uma dada religião, arca
com o custo de se submeter, pelo menos em parte a estas imposições. “O cumprimento das regras

57
Ibid, p. 55.
58
STARK, R. e BAINBRIDGE, W. S. Uma teoria da religião. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 37. Mesmo na escolha
das religiões os homens são movidos por este mecanismo, que apesar de parecer eminentemente humano, tem raízes
biológicas.
59
Ibid., Compensadores são outras vantagens que as pessoas podem encontrar numa religião quando não podem
obter as recompensas que desejam, tais como entretenimento, encontro social, status perante a comunidade, etc.

23
de alimentação tem sempre sido parte fundamental do contrato dos crentes dos diferentes
credos.”60

O mecanismo inato de valores biológicos, que determina a relação do organismo com seu meio,
porém, não é estático: “o valor biológico aumenta ou diminui ao longo de uma escala indicadora
da eficiência dos estados físicos para a vida.” 61 De acordo com os desafios a que é submetido,
um organismo muda suas faixas de valor biológico, tornando-se mais tolerante a um mesmo
conjunto e/ou intensidade de estímulos. “Toda combinação de estímulos de excitação, agindo de
forma repetida, perde gradativamente sua eficácia.” 62 Isto equivale a dizer que quando um
organismo recebe diversas vezes um mesmo estímulo de prazer este perde seu efeito, assim
como quando um organismo recebe diversas vezes um estímulo de dor, também desenvolve certa
tolerância quanto a este. Desta forma atinge-se, por exemplo, a excelência em jejuns prolongados
(falaremos disso com mais detalhes no item 4.1).

A ausência de uma dor previamente conhecida, bem como o momento de sua interrupção, são
interpretadas como recompensa:

Se, por exemplo, ele é fortemente levado por estímulos dolorosos criadores de inibição
além do seu equilíbrio, e se esses estímulos cessam de repente, o sistema não volta, em
curva amortecida, ao estado de indiferença. Ultrapassa o estado de repouso e vivencia a
suspensão da dor como um prazer considerável. 63

Se por razões de saúde ou religiosas o individuo é obrigado a abandonar a alimentação oral ou a


deixar de comer parcialmente, quando volta a comer normalmente, o alimento passa então a ter
uma conotação de recompensa, de celebração, ainda seja uma comida do dia a dia. Esta
evidência pode ser constatada no capítulo III, observando-se que quase todas as religiões, após
um período de jejum, encerram-no com banquetes; e estes têm por esta razão, um sabor muito
especial. Não se trata apenas quebrar o jejum, mas sim, comemoração.

Algumas práticas alimentares e até mesmo alimentos específicos evidenciam o caráter


recompensador da comida. Não podemos deixar de citar, neste caso, o alimento que parece ser a

60
EZQUIBELA, I. J. Prescripciones y tabúes alimentarios: el papel de lãs religiones. Distribuición y consumo:
Barcelona, Novembro-Dezembro, 2009, p. 9. Tradução do autor.
61
DAMASIO, A. op. cit., p. 69.
62
LORENZ, K. op. cit., p. 56.
63
Ibid.

24
recompensa por excelência, trata-se do açúcar. Em todas as línguas, faz-se referência às suas
propriedades: diz-se de uma pessoa, que ela é doce, quando é afável, meiga, agradável. Fala-se
em doces lembranças, doces momentos, doce vida, etc. Quando damos presentes comestíveis,
geralmente, são bombons, biscoitos, bebidas: produtos doces. E, não somente na esfera secular,
mas também as religiões que têm no açúcar o símbolo das boas coisas da vida. Como veremos no
capítulo IV, muitas são as ocasiões religiosas festivas onde os doces são símbolos importantes.

A Doutora Nicole Avena, pesquisadora em neurociência e psicologia da alimentação pela


Universidade de Princeton, explica que o açúcar, em suas várias formas (glicose, frutose, lactose,
dextrose, amido, mel...), quando consumido, ativa os receptores que enviam sinais para o tronco
cerebral e dali se subdivide em muitas partes do prosencéfalo, é a partir deste ponto que o sinal
ativa o sistema de recompensa do cérebro, causando uma sensação de bem estar. A principal
moeda do nosso sistema de recompensa é a dopamina, um importante neurotransmissor. Há
muitos receptores de dopamina localizados no prosencéfalo, onde também se encontra nosso
sistema de recompensa. Drogas como álcool, nicotina ou heroína enviam dopamina em excesso,
levando algumas pessoas a buscar constantemente essa sensação, causando dependência, o
açúcar também provoca a liberação da dopamina, embora não tão violentamente quanto as
drogas.64

Inferimos, portanto, que o simbolismo positivo do açúcar tem origem não numa convenção, mas
em seu efeito fisiológico no cérebro humano. A sensação de prazer ao comer um doce, ainda que
fosse uma fruta, deve ter se destacado entre as demais. Colocando o açúcar como sinônimo das
coisas boas, assim é comum fazer votos de “um ano doce” ou “uma vida doce”. Nas supostas
visões miraculosas entre mulheres da Idade Média encontram-se relatos de que na eucaristia “a
hóstia tornar-se-ia mel ou carne na boca das mulheres.”65

Outro produto que merece destaque no sentido de estar associado aos programas biológicos é a
carne. Seu consumo, inicialmente, haveria dado origem a certa “obstinação benéfica”, pelo
menos no início da humanidade:

64
AVENA, N. How sugar affects the brain. TED Ed Lessons worth sharing. Disponível em: www.ed.ted.com.
Acesso em 15/12/2013.
65
BYNUM, C. W. Fast, Feast and Flesh. In: COUNIHAN, C. e ESTERIK, P. Food and Culture: a reader. New
York: Routledge, 2008, p. 123. Tradução do autor.

25
É possível que tenha aparecido muito cedo o defeito genético da não metabolização do
ácido úrico, cujo excesso tóxico nas células cerebrais parece desempenhar um papel
numa característica espalhada pela humanidade: a tenacidade que vai até o fim
(achievement); é evidente que este defeito só podia constituir uma vantagem seletiva nas
condições e no grupo em que se fundiu.66

Um exemplo marcante encontra-se no contraste alimentar entre romanos e bárbaros. Enquanto os


romanos buscavam um ideal de frugalidade em sua alimentação, bárbaros eram os grandes
devastadores, comedores de carne. Talvez este fato os tenha levado a tão violenta invasão à
Europa no momento de sua formação:

Os “verdadeiros” romanos são descritos como homens orgulhosamente ligados aos


produtos da terra: cereais, legumes, leguminosas e frutas. Os bárbaros são os devoradores
de carne que não dão qualquer valor aos alimentos vegetais [...] A simbiose entre esses
dois mundos e essas duas culturas vai se realizar porque os vencedores do conflito, os
bárbaros, que vieram da nova classe dirigente da Europa medieval, rendem-se ao encanto
do modelo romano e aceitam seus valores. 67

Uma grande corrente religiosa ligada ao cristianismo demonstrava sua preferência pelo
vegetarianismo, a heresia cátara,

que a Inquisição destruiu após uma grande campanha no início do século XIII, contra os
adeptos desta seita cristã [...] O consumo de carne constituiu no Ocidente um modelo de
virilidade, associado não só à caça como atributo tipicamente masculino, mas também a
uma noção de que o homem necessita alimentos adequados a sua função guerreira e
belicosa.68

Ernest Haeckel sugere que etnias diferenciem-se em comportamento segundo suas dietas:

O nosso humor, os nossos desejos, os nossos sentimentos são muito diversos conforme
estamos saciados ou com fome. O caráter nacional dos ingleses e dos gaúchos da
América do Sul, que se alimentam quase que de carne [...], não é o mesmo do irlandês
que se alimenta de batatas, nem do chinês que vive de arroz.69

66
ESCOFFIER-LAMBRIOTTE, C. apud: MORIN, E. 1999. op. cit., p. 61.
67
FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. op. cit., p. 279. Grifo nosso.
68
CARNEIRO, H. op. cit., p. 71.
69
HAECKEL, E. op. cit., p. 165.

26
Aceitar ou rejeitar alimentos têm profundas raízes biológicas. Outro tipo de seleção nutricional
estaria associado aos alimentos nocivos, era necessário reconhecer os alimentos que haviam
causado dor, desconforto, indicando toxicidade:

Nojo tem fortes raízes evolucionistas: alimentos que provocavam vômito ou enjoo são
perigosos; portanto, lembrados com sensação de repulsa no caso de se deparem com tal
alimento em momentos posteriores.70

Seria como o oposto do açúcar, um exemplo de “castigo”. É possível que dietas baseadas no
vegetarianismo tenham algum traço biológico de prevenção contra contaminação, uma vez que a
proteína animal é um dos alimentos que se deteriora mais rapidamente especialmente em áreas
de clima quente.

As raízes indianas e pitagóricas do vegetarianismo são ligadas a noções de pureza e


contaminação, e não tem correspondência com a visão romântica de “amizade” com os
animais. O vegetarianismo recusa toda alimentação carnívora [...], tem origem na tradição
filosófica indiana, que chega ao Ocidente na doutrina pitagórica. Tal tradição [...]
recusará a ingestão de cadáveres.71

1.3.1 Defesa contra contaminação de todos os tipos, um programa biológico

A defesa contra contaminação é outro dos programas inatos essenciais num sistema vivo. A
contaminação caracteriza-se pelo contágio com alguma coisa fora dos padrões. Neste sentido,
entendemos a contaminação como o oposto de identidade (conjunto de caracteres próprios e
exclusivos de um organismo).

Onde há sujeira [contaminação] há sistema. Sujeira é um subproduto de uma ordenação e


classificação sistemática de coisas, na medida em que a ordem implique rejeitar
elementos inapropriados. 72

70
ALLEN, J. S. The Omnivorous Mind. Our Evolving relationship with food. Massachusetts: Havard University
Press, 2012, p. 215. Tradução do autor.
71
CARNEIRO, H. op. cit., p. 70.
72
DOUGLAS, M. op. cit., p. 50.

27
Desta maneira, um sistema, seja ele qual for, há que se defender dos elementos estranhos
provenientes do ambiente para preservar as próprias características (identidade). Uma vez que
trabalhamos com categorias bastante gerais nos sistemas, podemos observar o processo de
preservação da identidade versus contaminação, ocorrendo desde o nível celular, como é o caso
de um vírus, ou podendo caracterizar-se como xenofobia como no caso de sistemas
socioculturais.

O processo de renovação dos componentes do sistema, no caso do corpo células, no caso de um


sistema social, indivíduos socializados, pode ocorrer de forma anormal. É possível que haja
falhas na replicação das células, o que daria origem a um câncer (células fora do padrão), como é
possível que haja falhas no processo de socialização dando origem a indivíduos anormais (fora
do padrão).

Nos organismos longevos e especialmente naqueles em que o período de crescimento é


muito longo, existe o perigo constante do desenvolvimento de formas “antissociais” e
nocivas em decorrências das mutações que podem ocorrer no curso de numerosas
divisões celulares necessárias [...] É provável que todos nós morreríamos ainda jovens
devido aos tumores malignos caso nosso organismo não tivesse desenvolvido, através da
formação de reações imunitárias, uma espécie de “polícia celular”, que bloqueia em
tempo a proliferação dos elementos antissociais [...] A espécie Homo Sapiens dispõe de
um sistema de comportamento altamente diferenciado, visando a eliminar os parasitas
perigosos para a sociedade e análogo ao sistema de defesa das células através dos
anticorpos.73

A sociedade sempre tenta eliminar anomalias internas, pois elas podem comprometer a
identidade do organismo, no caso, a própria sociedade. Um organismo de acordo com as
estratégias de adaptação, privilegia certos padrões, mais convenientes para manutenção de sua
identidade e reprime outros que possam ameaça-lo:

A existência da anomalia pode ser fisicamente controlada. Assim, em algumas tribos da


África Ocidental, a regra de que gêmeos devem ser mortos quando nascem, elimina uma
anomalia social, se se acredita que dois seres humanos não podem nascer do mesmo
ventre ao mesmo tempo. Ou tomemos os galos que cantam à noite. Se seus pescoços
forem prontamente torcidos, eles não viverão para contradizer a definição de galo como
uma ave que canta ao alvorecer [...] eventos anômalos podem ser classificados como
perigosos.74

73
LORENZ, K. 1974. op.cit., p. 69 e 71.
74
DOUGLAS, M. op. cit., p. 55.

28
Uma vez que o programa de defesa contra contaminação toma uma forma simbólica, passa a agir
em prol da identidade do grupo assim como células com determinada informação genética
compõem e preservam a identidade biológica de um sujeito, é por isso que as células cancerosas
são combatidas, elas são células que perderam a informação original e iniciaram um novo
padrão75, portanto, este novo padrão pode ser compreendido como perda de identidade e ameaça
à organização original.

Em toda a extensão de Pureza e Perigo, Mary Douglas explora o tema da contaminação,


demonstrando pontos de contato entre ideias de pureza religiosa e contágio pelos mais diversos
tipos de poluição. O perecimento de um ser vivo por entrar em contato com o que lhe é nocivo é
um processo conhecido desde o nível celular. Temos gravado o mecanismo de não entrar em
contato com certas coisas a fim de não nos contaminarmos. Douglas apontará em muitas culturas
diversas ideias de contágio representadas não apenas através do materialismo médico 76 (caso
geral do ocidente), mas sob forma de princípios religiosos.

A alimentação constitui um veículo considerável de troca/contaminação tanto no nível


microbiológico quanto nos níveis culturais e sociais. Cada sistema culinário materializa e
representa uma identidade sociocultural. Ingredientes e pratos típicos permitem a reprodução e
transmissão de valores particulares à identidade de um grupo.

[identidades e trocas] Noções que à vezes são contrapostas, quase como se a troca – ou
seja, o confronto entre identidades diferentes – fosse um obstáculo à salvaguarda da
identidade, isto é, do patrimônio cultural que cada sociedade reconhece em seu próprio
passado [...] em geral a história é invocada como local de produção das origens, das
‘raízes’ mais ou menos míticas que servem de referência para conservação da própria
identidade.77

O contato com certos sistemas culinários diferentes, através da incorporação de certos alimentos
pode levar “à desconfiança pelo que é diferente, ao medo da contaminação, a formas mais ou
78
menos exasperadas de isolamento e de intolerância.” Neste caso: “somos nós que
estabelecemos os nossos limites em relação ao mundo exterior, assimilando só aquilo que não
75
LORENZ, K. 1974. op. cit., p. 35.
76
DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva 2010, p. 43.
77
MONTANARI, M. (Org.) O mundo na cozinha. História, identidade, trocas. São Paulo: Estação Liberdade, 2009,
p. 12.
78
Ibid.

29
abala nossas crenças, valores, gostos.”79 Isto é, todo o conjunto de crenças e valores que foi
socialmente aprendido.

Estes critérios são variáveis no espaço e no tempo: o que em determinada época é julgado
positivamente, em outra pode mudar de caráter; o que em lugar e considerado uma
guloseima, em outro pode ser rejeitado como repugnante. A definição de gosto faz parte
do patrimônio cultural das sociedades humanas.80

1.3.2 Como a forma de obter os alimentos favoreceu o desenvolvimento humano

Tanto a seleção dos alimentos, como a forma de obtê-los influenciaram no desenvolvimento da


espécie humana. A simples coleta de alimentos já começa por influenciar processos cognitivos,
tais como a memória. Vários tipos de memória estão associados aos alimentos. A primeira,
conforme citamos, está relacionada aos alimentos não apropriados ao nosso metabolismo, a
segunda é geográfica: um animal muitas vezes deveria lembrar-se onde havia alimentos e água.
Além disso, alguns alimentos poderiam requerer procedimentos específicos para sua obtenção:
De acordo com os estudos de Jane Goodall, outros primatas além dos humanos, assim como
chipanzés, já conseguem pensar em ferramentas e métodos para obtenção de alimentos, tais
como introduzir gravetos propriamente modificados para obter cupins e outros insetos, assim
como usar “pedras-martelo” para abrir frutos com cascas rígidas, desenvolvendo o que podemos
chamar de memória de trabalho.81

Depois da coleta de alimentos destacamos a caça. Segundo as observações de Edgar Morin, a


progressiva substituição da selva protetora e nutritiva pela savana agressiva e cruel estimula e
orienta processos de hominização 82. À medida que o ambiente tornou-se hostil e com recursos
escassos fez com que cada espécie desenvolvesse novas habilidades, mudando hábitos originais
de alimentação:

79
DORIA, C. A. op. cit., p. 60.
80
Ibid., p. 95.
81
GOODALL, J. apud: ALLEN, J. S. op. cit., p. 172.
82
MORIN, E. op. cit., p. 68.

30
É possível que, no inicio, tenham sido os pesados ‘australopitecos robustos’ vegetarianos
que, monopolizando alimentos vegetais pouco abundantes, obrigassem os mutantes
gráceis, onívoros a virar-se ainda mais para a alimentação animal. 83

Forçados buscar fontes alternativas de alimentos, aprenderam a explorar restos de carcaças e


eventualmente a caçar, assim, os gráceis desenvolvem outras habilidades em relação aos demais
grupos vegetarianos. Caçar implicava uma leitura minuciosa do ambiente, pois dependia da
interpretação de comportamentos de outras espécies, do clima, do movimento das plantas, etc.

A caça na savana torna o hominídeo hábil e habilitado: faz dele o intérprete de um grande
número de estímulos sensoriais ambíguos e fracos, que passam a constituir sinais,
indicações, mensagens, [...] a caça estimula as aptidões estratégicas: a atenção, a
tenacidade, a combatividade, a audácia, a manha, o logro, a armadilha, a emboscada .84

Além do incremento nos processos cognitivos, caça é também fundamental no desenvolvimento


das relações, pois transforma as relações com o ambiente, as relações entre predador e presa e
entre membros da mesma espécie quando promove estratégias de grupo, como por exemplo,
acuar um grande animal até que ele caia de um penhasco.

Por sua superior habilidade de caça o homem imprime cedo sua marca de espécie dominadora;
sua adaptação começa a modificar o ambiente:

[...] leões, hienas e outros predadores de grande porte que agora vagam pelo leste da
África representam apenas uma fração da diversidade que esse grupo já teve. O declínio
desses animais teve inicio mais ou menos à mesma época em que o Homo primitivo
começou a ingerir mais carne, competindo com os carnívoros. A cronologia dos eventos
sugere que os humanos primitivos foram responsáveis pela extinção dessas feras [...]
Tudo indica que o Homo foi uma “força da natureza”, um fenômeno natural desde o
principio [...] embora não tivessem dentes e as garras letais, nem a força física bruta dos
tigres-dentes-de-sabre e de outros grandes carnívoros, os hominídeos foram capazes de
nivelar o campo de competição pela rápida evolução da inteligência e cooperação social –
havia força numérica, mesmo que faltasse força muscular.85

Com as grandes caças, produto do trabalho conjunto entre homens surgem os primeiros traços de
comensalidade; a caça era repartida, originando certas regras de distribuição.

83
Ibid, p. 59.
84
MORIN, E. op. cit., p. 61.
85
WERDELIN, L. O Rei das Bestas. Scientific American Brasil. No. 139. Dezembro, 2013, p. 28.

31
No paleolítico superior estruturou-se uma organização socioeconômica, que reunia várias
famílias, para tocar rebanhos inteiros de grandes animais em direção a armadilhas. Isso
necessariamente implicava uma partilha da carne entre as famílias que tinham
contribuído para a caça, tarefa, sem duvida, coletiva; em alguns momentos ao menos,
depois da caça por exemplo, é provável que grandes festas reunissem essas famílias para
consumirem juntas uma parte da caça abatida.86

Tudo indica que foi aqui que triunfou a solidariedade dos homens [...] a caça apanhada,
bem de todos, é depois repartida por cada um de forma mais ou menos igualitária, sem
duvida com um premio para o chefe [macho dominante] ou aquele que abateu o animal.87

Também Maturana ressalta a importância da busca de alimentos no desenvolvimento das


habilidades sociais do homem:

Não conhecemos com precisão os detalhes da historia das transformações estruturais dos
hominídeos. Infelizmente, a vida social e linguística não deixa fósseis e não é possível
reconstruí-la. O que podemos dizer é que as mudanças nos primeiros hominídeos [...] têm
a ver com sua historia de animais sociais, de relações interpessoais afetivas e estreitas,
88
associadas à coleta e à partilha de alimentos.

Posteriormente, a transformação dos alimentos causará um grande impacto no desenvolvimento


humano; a descoberta do fogo trouxe através dos alimentos cozidos uma mudança biológica
essencial para o surgimento do ser humano. Cozinhar nos tornou humanos, segundo a tese de
Richard Wrangham.

Nosso corpo gasta certa quantidade de calorias para digerir os alimentos, quando o alimento é
cozido, seja amido ou proteína, possui em sua nova forma, cozida, muitas das substâncias já
reduzidas em partes mais facilmente absorvíveis. Isto faz com que se gaste menos energia com a
digestão, esta energia pode ficar então disponível para outras atividades, como por exemplo,
pensar! “Nossa preferência espontânea por comida cozida sugere um mecanismo inato para o
reconhecimento de alimentos com alto teor energético.” 89 Também os alimentos cozidos
promovem uma mastigação mais suave, uma vez que são mais macios. Com o hábito da
mastigação menos intensa, surgiram mudanças anatômicas nos dentes, no maxilar e na caixa

86
FLANDRIN, J-F. A humanização das condutas alimentares. In: FLANDRIN, J-F. e MONTANARI, M. Historia
da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 34.
87
Ibid., p. 65.
88
MATURANA, H. e VARELA, F. op. cit., p. 240.
89
WRANGHAM, R. Pegando fogo. Porque cozinhar nos tornou humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010,
p.75.

32
craniana, que aumentou, dando maior espaço ao cérebro, que também cresceu e pôde
desenvolver novas funções. Como argumenta Wrangham, não é a mudança estrutural que
determina o hábito, mas o hábito gera a mudança estrutural. Assim, quando o homem passou a
consumir comida cozida provocou mudanças físicas:

Pulgas não sugam sangue porque por acaso têm um probóscide bem projetado para fura a
pele dos mamíferos; elas têm o probóscide porque estão adaptadas para sugar sangue.
Cavalos não comem capim porque por acaso têm o tipo certo de dentes e intestinos para
isso; têm dentes altos e intestinos longos porque estão adaptados para comer capim. Nós,
seres humanos, não comemos comida cozida porque temos o tipo certo de dentes e
intestinos; ao contrario, temos dentes pequenos e intestinos curtos em consequência de
nossa adaptação a uma dieta cozida.90

Tanto quanto o processo de cozimento modificou favoravelmente a espécie humana, as


diferentes dietas a que foi obrigado a se submeter, ora às gramíneas, ora aos frutos e cereais, ora
às carnes também fez com que o homem desenvolvesse um onivorismo conveniente, ou ainda
nas palavras de Carneiro, já nosso antepassado Homo habilis, apresentou-se como um “onívoro
oportunista”91; o que nos possibilitou viver em diferentes condições geográficas:

Nossa espécie não se configurou para subsistir com uma dieta única e ótima. O que é
notável no ser humano é a extraordinária variedade do que ele come. Nós somos capazes
de viver em qualquer ecossistema do planeta, consumindo dietas elaboradas a partir da
maioria dos animais, como no Ártico, até as dietas derivadas de tubérculos simples e
grãos de cereais das altas montanhas dos Andes. Assim, a marca distintiva da evolução
humana tem sido a diversidade de estratégias desenvolvidas para criar dietas que
satisfaçam as necessidades do nosso metabolismo particular e incrementem a eficiência
com a qual extraímos energia e nutrientes do ambiente. 92

As dificuldades pelas quais passaram várias espécies de primatas e suas consequentes adaptações
deram origem ao homo sapiens, provavelmente a espécie mais adaptável, não mais por sua
capacidade de sofrer mutações corporais, mas porque sua ultima mutação, o desenvolvimento do
cérebro faz com que ele se adapte através de soluções muito mais elaboradas e sem necessitar
uma mudança estrutural em seu corpo. O aumento da complexidade cerebral possibilitou a

90
Ibid, p.74.
91
CARNEIRO, H. op. cit., p. 48.
92
LEONARD, W. R. “Food for thought: Dietary Change was a driving force in Human Evolution”, in: Scientific
American, Nova York, dezembro, 2002. Apud: DORIA, C. A. op. cit., p. 33.

33
coordenação de várias funções que o próprio cérebro já vinha exercendo separadamente em
outros primatas. Quando o cérebro passa a funcionar como um sistema dá origem ao que se
chama, segundo Antonio Damásio, mente consciente:

Quando o cérebro começou engendrar a mente consciente, o jogo sofreu uma mudança
radical. Passamos da simples regulação, voltada para a sobrevivência do organismo, a
uma regulação progressivamente mais deliberada, baseada em uma mente dotada de
identidade e pessoalidade e agora empenhada ativamente não apenas na mera
sobrevivência, mas também na busca de certas faixas de bem-estar [...] Se o cérebro
prevaleceu na evolução porque oferecia um maior âmbito para a regulação da vida, o
sistema cerebral que levou à mente consciente prevaleceu porque oferecia as mais amplas
possibilidades de adaptação e sobrevivência com o tipo de regulação capaz de manter e
expandir o bem-estar.93

Em consequência das mudanças cerebrais a nova organização do homem no paleolítico superior


gerou um verdadeiro compêndio de conhecimentos sobre o ambiente, o tempo, os animais, as
plantas, os peixes, os afrodisíacos, as ervas perigosas, curativas, comestíveis; o cozimento, armas
e utensílios e técnicas de caça; todo este conjunto, que é o início da cultura favoreceu um avanço
no processo organizacional: “Daí por diante, qualquer salto qualitativo da cultura para frente, do
cérebro para frente, se entrefavorecem e a evolução sociocultural desempenha um papel decisivo
na evolução biológica que conduz ao homo sapiens.”94

A partir deste momento, portanto, o homem não pode mais ser considerado somente por uma
perspectiva. Como sugere Edgar Morin, cada homem é uma totalidade biopsicossociológica:

A dualidade antitética homem/animal, cultura/natureza, esbarra contra toda evidência: é


evidente que o homem não é constituído por duas camadas sobrepostas, uma bionatural e
outra psicossocial, é evidente que não transpôs nenhuma muralha da China que separasse
95
a sua parte humana da sua parte animal.

93
DAMASIO, A. op. cit., p. 81.
94
MORIN, E. op. cit., p. 78.
95
Ibid., p. 18.

34
1.4 Da escolha do homem sobre sua alimentação

O homem apresenta tantos programas inatos quanto outras espécies, entretanto, sua grande
vantagem sobre os outros animais consiste na possibilidade de perceber, raciocinar sobre os
programas e escolher se serão executados ou não:

Quais dos censores e motivadores devem ser obedecidos? E quais devem ser reduzidos
ou sublimados? Esses guias são a própria essência de nossa humanidade. Eles, e não a
crença em distinção espiritual, distinguem-se dos computadores eletrônicos. Em alguma
época, no futuro, teremos que decidir o quão humanos desejaremos permanecer – nesse
sentido biológico extremo – porque precisamos conscientemente escolher entre os guias
emocionais alternativos que herdamos. Mapear o destino significa que devemos mudar do
controle automático baseado nas nossas propriedades biológicas para uma direção precisa
baseada nos conhecimentos biológicos.96

A autonomia do homem perante seus programas biológicos só foi obtida devido a um grande
desenvolvimento cerebral que permitiu a ele ter consciência sobre si e sobre seu funcionamento:

As contribuições da mente consciente para a evolução são dadas em um nível muito


superior; relacionam-se às tomadas de decisão off-line, deliberadas e às criações culturais
[...] a mente humana consciente levou a evolução por um novo curso precisamente
porque nos proporcionou escolhas.97

O fato trouxe ao homem oportunidade de desenvolvimento das habilidades ditas exclusivamente


humanas, tais como a cultura. É como se fosse permitido ao homem, por ter atingido certo
desenvolvimento, uma gestão da própria vida diferente dos outros animais, que embora possuam
organizações eficientes, não possuem o cotrole dos mesmos. Ao que parece, eles não podem ter
consciência ou impedir a ação de seus programas biológicos, muito menos desenvolver novos.
Um leão não pode deixar de comer carne.

Não controlamos voluntariamente nossa respiração, nossos batimentos cardíacos ou nosso


sistema endócrino, mas podemos através de certas atitudes deliberadas influenciar sobremaneira
estes e outros mecanismos. Fato que pode melhorar nossas condições de vida e aumentar nossa
permanência. Não é por acaso que o homem tem aumentado a própria expectativa de vida.

96
WILSON, E. O. op.cit., p. 6. Grifo nosso.
97
DAMASIO, A. op.cit. p. 54.

35
Em termos de alimentação, percebemos a vantagem da escolha humana em ação quando nos
deparamos com sistemas alimentares que tenham mais objetivos do que simplesmente saciar a
fome. Trata-se dos sistemas que otimizam a alimentação para proporcionar saúde, longevidade, e
até mesmo benefícios de ordem emocional ou espiritual. Encontram-se entre tais sistemas a
medicina ayurveda, chinesa (confuciana e taoísta), hipocrática, antroposófica, etc.

Em boa parte da historia da humanidade a escolha dos alimentos esteve ligada a noções de
alimentos próprios e impróprios, segundo aspectos religiosos e/ou médicos. A noção de
“nutrição” não é algo novo, só não era baseada nas propriedades organolépticas dos alimentos.

Na Idade Média:

O cozinheiro e o médico eram figuras que utilizavam o mesmo referencial da visão de


mundo marcada pela teoria hipocrática e galênica da correspondência dos quatro
elementos do universo com os quatro humores do corpo humano. 98

Estas antigas, mas ainda praticadas, formas de medicina possuem uma visão sistêmica,
relacionam o equilíbrio do corpo quando este encontra-se em equilíbrio com o ambiente: no Nei
Ching, clássico da Medicina Chinesa fala-se de similar correspondência entre o corpo do homem
e o funcionamento do universo e nos livros Hatha-Yoga Pradipika e Geranda Samhita do
Hinduísmo também propõe-se que homem deve integrar-se ao universo através de várias
técnicas, respiração, meditação, alimentação... Estes sistemas divergem em relação às
propriedades e funções de cada alimento, mas apresentam concepções bastante similares sobre o
papel da comida no corpo.

Uma gravura chinesa do século XVI mostra o equilíbrio que existe entre o microcosmo e
o macrocosmo e, portanto os órgãos humanos e os cinco elementos (madeira, terra, fogo,
metal e água), os cinco sabores (vinagre, vinho, mel, gengibre e sal), os cinco cereais
(trigo, arroz, milho, fécula e aveia) e as cinco direções (centro, norte, sul, leste e oeste),
de modo que nunca podemos ver o organismo como algo autônomo, desvinculado da
cultura e alimentando-se aleatoriamente. 99

Observando os efeitos de cada alimento em seu corpo e relacionando-os com seu ambiente o
homem passa a estabelecer regras e a construir seus critérios de alimentação. Tais critérios

98
CARNEIRO, H. In: MONTANARI, M. 2008, op. cit., p. 12.
99
DORIA, C. A., op. cit., p. 55.

36
variam segundo tempo e espaço. Ora visam a preservação do corpo, ora do espírito, ora dos dois,
sistemicamente.

Muitas religiões utilizaram a comida como elemento condicionante, disciplinador, uma vez que a
fome é um dos instintos mais difíceis de se domesticar. Pode-se viver sem o consumo de bebidas
alcoólicas, porque não são necessárias à manutenção do corpo, mas sem a comida não é possível.
Através do quanto e do que, a comida ensina a medida das coisas.

1.4.1 O mal uso da arbitrariedade sobre as escolhas alimentares

Poder influenciar no curso dos programas biológicos, por outro lado, trouxe ao homem prejuízos;
ele aprendeu não a se libertar, mas a ludibriar certos programas inatos que lhe protegiam como
indivíduo e espécie. É como se o homem ainda estivesse aprendendo a usar sua consciência e
poder de escolha sobre si. Ora ele vence os instintos, ora é vencido por eles. O mecanismo de
recompensa-custo ainda é muito imperativo.

Os homens das grandes culturas do passado conseguiram evitar até demais as situações
capazes de acarretar sofrimento e atingiram um estado de enfraquecimento perigoso. [...]
há séculos os homens descobriram que graças a uma engenhosa combinação de
estímulos, é possível aumentar o efeito do prazer e através de sua constante modificação,
evitar que esse prazer seja desgastado pelo hábito. [...] Dominando progressivamente seu
meio o homem por força das circunstâncias, deslocou o equilíbrio prazer-desagrado no
sentido de uma hipersensibilidade crescente a respeito de toda situação dolorosa,
enquanto que sua capacidade de prazer foi se embotando. 100

O mecanismo que servia como um “barômetro” para a aprendizagem foi desvirtuado; a dor,
eficiente sinal diagnóstico de “algo errado” passou a ser vista como anormal, devendo ser
eliminada tão rápido quanto possível; da mesma maneira o prazer deixa de ser também um sinal
positivo para tornar-se um fim em si mesmo.

Passamos da simples regulação, voltada para a sobrevivência do organismo, a uma


regulação progressivamente mais deliberada, baseada em uma mente dotada de

100
LORENZ, K. 1974. op. cit., p. 58 e 59.

37
identidade e pessoalidade e empenhada ativamente não apenas na mera sobrevivência,
101
mas também na busca de certas faixas de bem estar.

Se o homem já era obrigado a certas “negociações” com o ambiente tentando reduzir custos e
otimizar ganhos, a subversão do programa recompensa-castigo fez com que o homem acentuasse
ainda mais os extremos desta relação, antes equilibrada pela integridade dos programas e pelas
dificuldades naturais impostas por um ambiente ainda não corrompido. Isto equivale a dizer que
quanto mais o programa recompensa-castigo foi subvertido, mais o homem passou a visar
recompensas e evitar os custos.

O homem altera não apenas seus próprios programas, mas também os programas de tudo que o
cerca em prol de sua própria adaptação e das significações que ia dando ao mundo, quando passa
a domesticar plantas e animais, o homem interfere em muitos dos programas da natureza, por
vezes, desequilibrando-os.

Os animais que tomou para si como domésticos perderam seus programas genéticos
originais, esqueceram-se das etapas que precedem o acasalamento a fim de facilitar sua
criação.102

Entre os judeus, em relação aos animais criados para consumo, por exemplo, “o gado era
literalmente domesticado como escravo. Ele tinha que ser criado na ordem social a fim de
desfrutar da bênção.”103

Se antes o mundo tinha uma gramática própria, o homem passa a reorganiza-lo visando favorecer
a própria adaptação. Neste enorme conjunto de experimentos o homem tem sofrido as
consequências de seus erros e acertos.

O mal uso da gestão dos próprios programas, no homem, deu origem a uma alimentação voltada
à mera questão estética, sem levar em conta benefícios ou malefícios dos alimentos, ou mesmo
nenhuma observância religiosa. A questão estética do gosto tal como a concebemos hoje, de
maneira geral, é relativamente recente e reflete também uma mudança de comportamento e de
valores do homem.
101
DAMASIO, A. op. cit., p. 81.
102
LORENZ, K. 1974. op. cit., p. 60.
103
DOUGLAS, M. op. cit., p. 71.

38
A preocupação com o prazer maior do que com a saúde toma um grande impulso com o grande
intercâmbio de produtos ocorrido na Idade Moderna. A chegada de novos produtos aguçou
curiosidades e abalou antigos sistemas alimentares baseados apenas em produtos locais. Claro
que o mundo já havia começado trocas de alimentos em outros momentos, como durante o
império romano ou no período da expansão islâmica. Porém, na Idade Moderna estas trocas
ultrapassaram oceanos e tomaram um volume nunca visto antes. Nenhum sistema alimentar
permaneceu o mesmo após esta época. Com tantas concepções alimentares e sabores novos
circulando, inicia-se um amplo debate sobre a alimentação, liderado especialmente pelos
humanistas da Renascença:

A primeira coisa a se notar é que eles tentaram equilibrar dietética e ciência da


alimentação em favor da boa saúde com gastronomia e a arte da boa mesa, pelo prazer e
como sinal de refinamento cultural.104

Na transição entre Idade Média e Idade Moderna acentua-se a distância entre prazer e aspectos
médicos e religiosos da alimentação.

Um gosto por luxuria e exoticismo nasceu no inicio do século XV, foi suprimido por um
tempo e ressurgido depois [...] Isto não produziu o mesmo excesso indulgente dos antigos
padrões romanos, limitado pelas diretrizes clericais contra aqueles sibaritas que não
estavam contentes em comer simples massa fervida como Deus mandava, mas insistiam
em converte-la em Macarrão au gratin.105

A busca inveterada pelos novos produtos logo levou os europeus a um grande avanço no
comércio e nas navegações, mas também a uma transformação geral da geografia através do
colonialismo:

Em todas as latitudes, os equilíbrios e as estruturas produtivas do “novo continente”


foram transtornadas para uso dos dominadores europeus, que utilizaram os territórios
conquistados como espaços produtores de comida, exportando para além-mar todos os
produtos fundamentais da dieta europeia, plantas e animais: antigas plantas mediterrâneas
(a clássica tríade trigo-videira-oliveira), bem como animais de pastagem (bois, cavalos,
porcos), passaram naqueles anos para além do oceano. 106

104
WOOLGAR, C. M. Banqueteando e Jejuando: Comida e sabor na Europa da Idade Média. In: FREEDMAN, P.
(Org.) A História do sabor. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009, p. 199.
105
JACOBS, J. Gastronomy. Verona: Newsweek Books, 1975, p. 51. Tradução do autor.
106
MONTANARI, M. 2008. op.cit., p. 51.

39
Com o tempo, todos os novos sabores e as vantagens trazidas pelo comércio de gêneros
alimentícios fez que com que a alimentação tomasse um rumo diferente da saúde.

40
II FUNÇÕES SIMBÓLICAS DA ALIMENTAÇÃO E DA RELIGIÃO

Dando prosseguimento à ideia do pensamento simbólico do homem, proposta no capítulo I,


detalharemos este processo demonstrando como a alimentação e suas motivações para escolha
tornaram-se muito mais complexas à medida que o homem evoluiu em sua capacidade de
simbolizar e deslocar conceitos. Faremos um paralelo entre o desenvolvimento intelectual do
homem, sua linguagem e sua forma de se alimentar, observando que a linguagem, num sentido
amplo e a alimentação desenvolveram-se, do ponto de vista cultural, de forma similar.
Colocamos assim, a comida como uma forma de linguagem, no sentido de que é criada pelo
homem e, uma vez assimilada, passa de criação a criadora do homem. Os sistemas alimentares e
culinários ajudam construir visões de mundo, através dos valores que a comida porta em cada um
destes sistemas.

Da mesma maneira, trataremos as religiões como sistemas simbólicos que também constroem
realidades. Argumentaremos também sobre como, do ponto de vista biológico, a religião
favorece a cooperação e a coesão entre os membros do grupo. Na questão da religião definiremos
e demonstraremos a importância dos rituais, em especial, das práticas alimentares e como as
mesmas constituem mecanismos que auxiliam, de forma especial, a religião a encorajar
comportamentos que favorecem o grupo.

Uma vez que, no capítulo I reforçamos a ideia de que o homem ainda tem grande parte de seus
comportamentos sujeitos ao instinto, tanto quanto outros animais; defendemos que a religião
serve como uma espécie de mecanismo domesticador destes instintos, exatamente porque
privilegia e seleciona comportamentos em prol do grupo em detrimento dos individuais. Neste
sentido, uma alimentação com regras e restrições, normalmente ligadas à doutrina da religião
adotada ensina a educar os instintos, amplificando os próprios ensinamentos religiosos.

41
2.1 Meios simbólicos de aprendizagem

Muito do comportamento de um animal é determinado por seus programas inatos, mas há


também uma boa parcela que deve ser aprendida socialmente. Pássaros aprendem a voar com
suas mães, bem como babuínos aprendem a achar rotas de fuga de predadores com os membros
mais velhos de seu grupo.107 A aprendizagem social, não é exclusividade humana. Tais recursos
transmitidos socialmente são imprescindíveis tanto para a sobrevivência do ser quanto para que
ele torne-se humano. Isto se evidencia no caso relatado a seguir:

Em 1922, elas [duas meninas] foram resgatadas de uma família de lobos que as haviam
criado em completo isolamento do contato humano. Uma das meninas tinha oito anos e a
outra cinco. A menor morreu pouco depois de encontrada e a maior sobreviveu cerca de
dez anos, juntamente com outros órfãos com os quais foi criada. Ao serem achadas, as
meninas não sabiam caminhar sobre os pés e se movimentavam rapidamente de quatro.
Não falavam e tinham rostos inexpressivos. Só queriam comer carne crua e tinham
hábitos noturnos. Recusavam o contato humano e preferiam a companhia de cães ou
lobos. Ao serem resgatadas, estavam perfeitamente sadias e não apresentavam nenhum
sintoma de debilidade mental ou idiotia por desnutrição. Sua separação da família lupina
produziu nelas uma profunda depressão, que as levou à beira da morte, e uma realmente
faleceu. A menina que sobreviveu dez anos acabou mudando seus hábitos alimentares e
ciclos de vida, aprendeu a andar sobre dois pés, embora sempre recorresse à corrida de
quatro em situações urgentes. Nunca chegou propriamente a falar, embora usasse
algumas palavras. A família do missionário anglicano que a resgatou e cuidou dela, bem
como outras pessoas que a conheceram com alguma intimidade, jamais a sentiram como
108
verdadeiramente humana.

Os processos de seleção natural privilegiaram os espécimes com melhor desempenho das


funções cerebrais: “a cultura constitui uma estrutura que acolhe favoravelmente toda a mutação
biológica que vise a complexificação cerebral” 109. Isto é compreensível porque uma solução do
tipo abrir um fruto de casca dura usando uma pedra é muito mais rápido e menos biologicamente
custoso do que sofrer uma mutação anatômica do tipo desenvolver dentes mais resistentes e
afiados, mandíbulas mais fortes ou outra solução que envolva mudança na estrutura corporal.

Falar de uma melhora na solução dos problemas operacionais cotidianos do homem é ainda
considerá-lo somente como o homo sapiens, ou o animal humano, no sentido de ser mais uma

107
LORENZ, K. A Agressão. Uma historia natural do mal. Santos: Martins Fontes, 1973, p. 58.
108
MATURANA, H. e VARELA, F. op.cit., p. 145.
109
Ibid.

42
espécie dentre tantas outras. O que realmente distanciará o homem das outras espécies será a
linguagem; como enfatiza Roy Rappaport, a linguagem é responsável não pelo desenvolvimento
humano, mas pelo desenvolvimento da Humanidade; nossos ancestrais só tornaram-se
completamente humanos com a emergência da linguagem. 110

Em termos adaptativos a linguagem possibilita uma mudança muito mais rápida e mais
econômica, em vez de ter de sofrer uma mutação genética, o que poderia levar alguns milhares
de anos, basta mudar algumas proposições.

Quando organização social e regras de comportamento são estipuladas através de


convenções, expressas em palavras em vez de especificadas em genes inscritos em
cromossomos, elas podem ser substituídas no tempo de uma única geração e, às vezes até
mesmo, da noite para o dia.111

Sabemos que os sistemas são baseados na premissa de que o todo é maior que a soma de suas
partes, no sentido de que a organização entre elementos faz surgir resultados muito mais
eficientes do que as ações individuais. Para tal organização, porém, faz-se necessário um meio
eficaz de interação, uma linguagem que gere conectividade entre os subsistemas. Talvez o sexo
tenha sido a primeira forma de comunicação, que forçaria seres a trocarem informações entre si,
agindo de forma sistêmica. “A linguagem, a mais radical inovação no processo evolutivo desde o
aparecimento do sexo, possuindo similaridades em alguns aspectos. Os dois, acima de tudo, são
meios de recombinar e transmitir informações.”112

Maturana dirá que a comunicação não é apenas transmissão de informações, mas uma
coordenação entre organismos vivos. 113 O aprendizado social depende principalmente de uma
linguagem, seja ela qual for, a linguagem permite que se aprenda através da experiência alheia.

todos os animais comunicam-se e mesmo plantas recebem e transmitem informação, mas


apenas humanos, até onde sabemos, possuem linguagens compostas de primeiro, de um

110
RAPPAPORT, R. op.cit, p. 4.
111
Ibid., p. 7.
112
Ibid., p. 8.
113
MATURANA, H. e VARELA, F. op. cit., p. 256.

43
léxico feito de símbolos, no sentido de Peirce114 e segundo, de gramáticas, conjuntos de
regras para combinar símbolos em discursos semanticamente coesos. 115

É, entretanto, o uso do símbolo que realmente coloca o homem em outra posição. O uso do
símbolo significa que consegue gerar uma ideia sobre uma coisa concreta, que consegue
inclusive dissociar a própria ideia deste concreto.

Humanos são particularmente bem equipados com a capacidade de modelar seus sentidos
em impressões cognitivas. É quando estas transformações mentais de nossas experiências
corpóreas são codificadas em sinais e sinais em sistemas de sinais que se transformam
permanentemente em transportáveis em forma de unidades cognitivas
fenomenologicamente livres de suas unidades fisiológicas de ocorrência.116

Não é mais necessário ter presente a água para se falar da água, o homem aprende a fazer
deslocamento conceitual, percebe que um mesmo mecanismo ou ideia pode ser aplicado a várias
coisas, através de representações. Ele passa a extrair modelos de tudo o que vê.

Clifford Geertz falará em intertransponibilidade de modelos, classificando em modelos para,


forma pela qual animais e humanos podem aprender e desenvolver atividades; e modelos de,
meio pelo qual aparentemente apenas seres humanos aprendem e desenvolvem suas
atividades.117 Citando Konrad Lorenz, Geertz explica como funciona o modelo para, encontrados
em toda ordem de natureza:

Entre os animais, o aprendizado gravado é talvez o exemplo mais marcante, pois o que
esse aprendizado envolve é a apresentação automática de uma sequência comportamental
apropriada de um animal-modelo na presença de um animal-aprendiz e que serve, com o
mesmo automatismo, para provocar e estabilizar certo conjunto de respostas
geneticamente construídas no animal-aprendiz. 118

114
PEIRCE, C. S. Semiótica e Filosofia. São Paulo: Editora Cutrix 1993 p. 126. Segundo Peirce símbolo é um signo
que representa por hábito ou convenção.
115
RAPPAPORT, R. op. cit., p. 4.
116
SEBEOK, T. Signs. An introduction to semiotics. Toronto: University of Toronto Press Incorporated, 1994, p.
xiii. Tradução do autor.
117
GEERTZ, C. op. cit., p. 69 e 70.
118
LORENZ, K. apud: GEERTZ, C. op. cit., p. 69.

44
Neste sentido, até mesmo “um primeiro filete de água a encontrar seu caminho de uma fonte na
montanha para o mar, abrindo um pequeno canal para maior volume de água que irá segui-lo,
desempenha uma espécie de modelo para a função.”119

Entretanto, no caso humano, a experiência pode ser transferida de uma forma bem mais
complexa do que uma mimese, pode-se extrair o conceito, é isto que Geertz classificará como:

Modelos de processos – linguísticos, gráfico, mecânico, natural, etc., que funcionam não
para fornecer fontes de informações em termos das quais outros processos podem ser
padronizados, mas para representar esses processos padronizados como tal, para
expressar sua estrutura num meio alternativo – são muito mais raros, e talvez se
encontrem apenas no homem. A percepção da congruência estrutural entre um conjunto
de processos, atividades, relações, entidades e assim por diante, e outro conjunto para o
qual ele atua como um programa, de forma que possa ser tomado como uma
representação ou uma concepção – um símbolo – do programado, é a essência do
pensamento humano.120

Desta maneira, “a emergência do símbolo não apenas aumentou a capacidade conceitual, mas
também tornou novas formas de aprendizado possíveis.” 121 Com um conjunto crescente de
modelos que acoplava e a capacidade de estabelecer congruências estruturais entre tudo, o
homem passou a interpretar e consequentemente explicar a si mesmo, mistérios como a origem e
dinâmica das coisas, dos seres... Começando já por interpretar e classificar o que via, como
coisas ou seres, concepções animistas, por exemplo, classificam coisas como seres.

Cada sociedade desenvolve uma cultura única, e que se pode dizer também que constrói
um mundo único que inclui não apenas uma compreensão especial de árvores, rochas e
água... Mas também outras coisas, muitas delas invisíveis, tão reais quanto aquelas
arvores, animais e rochas.122

A partir do momento em que o homem classifica um objeto como uma coisa ou outra, dá-lhe
significado e passa a interagir com tal objeto segundo aquilo que acredita ser tal objeto.

Com a linguagem o mundo se torna mobiliado com qualidades como bom e mal,
abstrações como democracia e comunismo, valores como honra, generosidade e seres
imaginários como demônios, espíritos e deuses; e locais imaginados como céu e inferno.

119
CRAIK, apud: GEERTZ, C. op. cit. p., 70.
120
GEERTZ, C. op. cit., p. 70.
121
RAPPAPORT, R. op. cit., p. 4.
122
Ibid., p. 9.

45
Todos estes conceitos são reificados, feitos res, reais ‘coisas’ pelo contingente de ações
123
sociais sobre a linguagem.

No Candomblé, religião sacrificial por excelência, o sangue tem um grande valor. É visto como o
depositário da força vital que anima todas as coisas, o axé. O mais interessante é que “o termo
sangue parece motivado, sobretudo, pela metáfora do fluxo vital que anima o Universo.” 124
Assim, consideram sangue muitas substâncias, tais como o mel, sangue das flores, água, sangue
da terra, etc. Por atribuírem este poder de a tudo animar tais sangues, utilizam-nos para animar
objetos e seres imateriais.

Também na escolha de seus animais para sacrifício, as características dos mesmos são
relacionadas àquilo que se deseja obter. O ìgbín, caramujo, “é oferecido nos momentos em que a
paz é necessária. O movimento vagaroso, cuidadoso e firme dos caracóis os impede de choques e
confusões entre si.”125

Tudo tem um significado dentro de um significado maior. Mesmo questões que poderiam ser
consideradas puramente materiais como o sexo, o repouso, a alimentação, a eliminação, as
doenças, o nascimento e a morte, revestem-se de significados. Uma vez imbuídas de
significados, estas ações sancionam o sistema de crenças. Assim, a linguagem no sentido de
cultura, passou de criação do homem a criadora dele.

A partir deste momento não é mais o determinismo geográfico que impera na construção da
alimentação, mas um determinismo sociocultural.

Os hábitos e tradições alimentares constituem uma herança cultural que é recebida junto
com o leite materno e que permanecerá tanto no nível consciente das prerrogativas
religiosas ou dietéticas como no nível inconsciente das mentalidades e dos gostos
coletivos.126

123
Ibid., p. 8.
124
VOGEL, A. ET AL. Galinha D’Angola. Iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas,
2001, p. 100.
125
BENISTE, J. Òrun – àiyé. O encontro de dois mundos. O sistema de relacionamento Nagô-Yorubá entre o céu e
a terra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 310.
126
CANEIRO, H. op. cit., p. 122.

46
A alimentação passa a ser um veículo de transmissão sociocultural. Primeiro, definimos nosso
gosto no sentido físico, o indivíduo é influenciado pelos hábitos alimentares da mãe ainda no
período de gestação, depois, através do processo de socialização, aprenderá a “gostar” de certos
alimentos e a “desgostar” de outros. Aprenderá também a gramática alimentar de seu contexto
social: os alimentos são classificados e, portanto, têm hora e maneira correta de serem
consumidos.

Enganam-se os que pensam que o sistema gastrointestinal é aquele por meio do qual o
corpo se relaciona fundamentalmente com objetos. Na realidade, são as convenções
sociais que decidem o que é o que não é alimento, bem como quem pode comer o que e
127
quando.

As refeições transmitirão ao indivíduo uma noção de tempo, espaço e valores, especialmente se o


sistema culinário a que estiver submetido for determinado por uma religião: dia de jejum, hora de
comer doces, dia de comer carne, dia de festas, etc. A forma de se alimentar ajuda a internalizar
o sistema de crenças. (detalharemos mais este aspecto no item 4.5 Sistemas culinários como
marcadores de tempo)

Talvez não haja melhor exemplo de transmissão da crença religiosa através da alimentação do
que o Judaísmo. O sistema culinário judaico tem produzido por todo o mundo uma infinidade de
livros de receita. Em geral, todos estes livros mencionam, além das receitas obviamente, o
significado das comidas, em quais ocasiões (celebrações litúrgicas) devem ser servidas, e todas
as tradicionais histórias ligadas a seus pratos típicos. Muitos destes livros foram escritos por
mulheres judias, mães, o que reforça ainda mais o poder transmissivo destas obras. Gostaríamos
de dar destaque, no Brasil, ao livro de Viviane Lessa e Léo Steinbruch, Cozinha Judaica da
Maria. O livro relata 21 histórias de “Marias” de distintas procedências, isto é, mulheres que
trabalharam como cozinheiras em lares judeus do Brasil. A maioria delas, não judias, tiveram
que aprender a nova “linguagem culinária” que se apresentava. Em contato com a cozinha,
aprenderam também sobre a religião e a cultura. “Acho que sou mais judia do que católica. Para
mim, todas as religiões são boas, mas acho que eu já gosto mais da judaica.”128, diz Ana Maria
dos Santos, uma das “Marias” do livro.

127
RODRIGUES, J. C. op. cit., p. 64.
128
LESSA, V, e STEINBRUCH, L. Cozinha Judaica da Maria. São Paulo: Alaúde, 2011, p. 27.

47
Carlos Alberto Doria utilizando o conceito de meme, “unidade de transmissão cultural, ou
unidade de imitação”129, proposta por Richard Dawkins em o gene egoísta, coloca as receitas
culinárias como sendo memes dos diversos sistemas culinários130, na cultura judaica como em
outras, poderíamos dizer que as receitas culinárias são memes não apenas do sistema culinário,
mas de todo um sistema cultural. Os livros de receitas culinárias podem ser um modelo para,
quando se trata da técnica de preparo propriamente dita, pois padroniza um modo técnico de se
executar um prato com características particulares. As mesmas receitas são também um modelo
de, quando representa as características de um sistema culinário. Pode ser que receitas de Gefilte
Fish (bolinho de peixe da cozinha judaica) existentes no mundo não sejam idênticas, mas
possuem elementos comuns que caracterizam-nas como receitas tipicamente judaicas. 131

Os modelos de aprendizagem propostos por Geertz podem ser complementados por Damásio que
sugere que tudo aquilo que inventamos foi na verdade o acesso a um conhecimento oculto
possível apenas após o desenvolvimento da mente consciente. É como se no processo evolutivo
todas as soluções proporcionadas pelos processos adaptativos de milhões de espécies tivessem
sido registradas e a mente consciente pudesse finalmente acessá-las de alguma maneira.

É comum cairmos na armadilha de ver nosso grande cérebro e nossa complexa mente
consciente como responsáveis por atitudes, intenções e estratégias por trás de nossa
sofisticada gestão da vida [...] Mas a realidade é que a mente consciente apenas tornou o
know-how básico da gestão da vida conhecível [...] O conhecimento oculto da gestão da
vida precedeu a experiência consciente [...] Sem menosprezar a consciência, certamente
enalteço a gestão não consciente da vida e suponho que ela constitui o gabarito [oculto]
para as atitudes e intenções da mente consciente. 132

Logo, qualquer coisa que podemos pensar já foi criada pela natureza, porém, com este recurso o
homem pode não apenas interromper certos programas, mas construir novos, com base em suas
observações e naquilo que tem gravado em si.

Assim, nossa grande habilidade consiste em converter as soluções da natureza, sejam observada
ou contidas em nós em modelos para e modelos de, conforme dito em Geertz e posteriormente,

129
DORIA, C. A. op. cit., p. 146.
130
Ibid.
131
Assim como em outros sistemas, os sistemas culinários apresentam estrutura e organização. A organização
permanece sempre a mesma, de modo que reconheçamos uma determinada cozinha, mas as estruturas podem mudar,
como no exemplo dos templos budistas. Ver pág. 20.
132
DAMÁSIO, A. op. cit., p. 54.

48
atribuir a elas significado para que a realidade seja construída. Segundo Edward Wilson, nem
mesmo nossos valores morais e éticos escapam à origem biológica:

Como qualquer um, os filósofos avaliam suas reações emocionais pessoais a varias
alternativas como se consultassem um oráculo oculto. Esse oráculo reside nos centros
emocionais profundos do cérebro, muito provavelmente dentro do sistema límbico, um
complexo localizado logo abaixo da porção “pensante” do córtex cerebral. As respostas
emocionais humanas e as praticas éticas mais gerais nelas baseadas foram programadas,
em grande parte, pela seleção natural ao longo de milhares de gerações. 133

Este mecanismo demonstra que, mesmo com todo o avanço do homem, somos ainda limitados
em nosso repertório de soluções. “A ação humana é orientada por um sistema de processamento
complexo, porém finito.”134

Os valores que atribuímos aos alimentos remontam um processo biológico de acesso ao


“gabarito oculto”. As classificações que atribuímos aos alimentos nascem em estruturas que só
começamos a descobrir recentemente. Trata-se do uso de um compêndio de conhecimentos
construído ao longo de milênios, gravado em nossa memória genética.

2.2 Semelhanças entre regras de linguagem e regras de alimentação

As mudanças na alimentação humana foram tais e tão determinantes no curso da humanidade


que mereceu ter sua história contada individualmente: dos grãos, frutos e restos de carcaça crus,
passou-se às caças assadas, depois aos cozidos com água em recipientes de barro, à combinação
de alimentos, aos fermentados, defumados, condimentados, fritos, processados, congelados, etc.

A questão mais intrigante, entretanto, repousa sobre o fato de que, fisiologicamente, não haveria
necessidade de a alimentação tornar-se tão complexa. Os nutrientes que precisamos continuam
sendo basicamente os mesmos. Sendo onívoro, o homem poderia alimentar-se de praticamente
qualquer coisa, mas o fato é que, desde que o pensamento simbólico passou a originar

133
WILSON, E. O. Da natureza humana. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1981, p. 6.
134
STARK, R. e BAINBRIDGE, W. S. op. cit., p. 39.

49
interpretações, os alimentos passaram a fazer parte deste mundo construído e adquiriram valor
simbólico; foram nomeados e classificados segundo os critérios de cada cultura.

A nutrição é uma exigência orgânica. Porém, há uma enorme diferença entre comida e
alimento. Nosso corpo necessita de uma quantidade de fibras, calorias e proteínas. Um
alimento saudável do ponto de vista orgânico pode ser intragável. Alimento nos supre das
nossas necessidades orgânicas; comida não. Esta mata a fome de símbolos. Comida é
tudo aquilo que se come com prazer [...] Os alimentos se tornam bons quando carregados
de significados e valores. [...] O ser humano não se contenta com a materialidade, é
necessário o significado que há por trás dela. 135

Podemos dizer que à medida que a linguagem emerge, surge também uma “linguagem
alimentar”.

Em todas as sociedades, o modo de comer é regrado por convenções análogas àquelas


que dão sentido e estabilidade às linguagens verbais. Esse conjunto de convenções, que
chamamos “gramática”, configura o sistema alimentar não como uma simples soma de
produtos e comidas, reunidos de modo mais ou menos causal, mas como uma estrutura
na qual cada elemento define seu significado. 136

Para comunicar, símbolos (sejam eles sons, imagens, aromas ou palavras...) necessitam obedecer
a um ordenamento lógico ao qual denominamos gramática; a gramática estabelece um conjunto
de regras que determina o que pode ser usado, colocando de fora o que poderia significar
contaminação. Determina também de que maneira e quais as combinações possíveis a fim de se
produzir sentido. A gramática, assim como tantas outras “formas-de-fazer”, também não parece
ter sido uma criação humana quando observamos a questão dos códigos genéticos, percebemos
um ordenamento que sugere o linguístico: ordem e conteúdo entre os elementos, em termos de
genes ou palavras são imprescindíveis para produzir, uma celular, ou uma frase. A gramática,
portanto, deve ter sido aprendida a partir do acesso ao gabarito oculto de Damásio.

Para que os seres vivos sejam da maneira como são, e continuem a se reproduzir mantendo a
mesma organização os genomas de cada um deles obedecem a uma rigorosa gramática; com
sintaxe (ordem em que os genes são executados) e semântica (tipos de genes que compõem o
genoma). Qualquer alteração mínima na sintaxe ou na semântica produzirá algo diferente. Assim

135
GUERRIERO, S. A Construção da Realidade. In: GUERRIERO, S. (Org.). op. cit., p.103.
136
MONTANARI, M. 2008, op. cit., p.165.

50
podemos dizer que o que não obedece à gramática está sujeito à entropia, no sentido de Bateson,
segundo ele entropia é:

O grau em que as relações entre os componentes de qualquer agregado estão misturadas,


não classificadas, não diferenciadas, imprevisíveis e aleatórias. O oposto é negentropia, o
grau de ordenação, classificação ou previsibilidade em um agregado. 137

Por analogia podemos equiparar negentropia e gramática, uma vez que gramática implica em
ordenação, classificação e até previsibilidade.

Espera-se que numa dada língua, por exemplo, haja a ocorrência de certos dígrafos (sílabas), de
certas conjunções ou preposições, que são padrões em tal língua, da mesma maneira espera-se
que numa cozinha particular ocorram certos sabores. Na cozinha brasileira, cebola e alho, por
exemplo. Uma refeição não deixa de ser um texto dentro de um dialeto (sistema culinário),
dentro de uma língua (sistema alimentar). Os alimentos são como vocábulos, têm sentido próprio
e maneira convencionada de se utiliza-los. Este texto deve ser semanticamente e sintaticamente
bem estruturado, de acordo com cada cultura. Não se faz uma frase como: “O perfume da comida
nadava os comensais” e nem, “Os comensais perfume da comida o encantava”, mas para que
produza sentido, diríamos: “O perfume da comida encantava os comensais.”

Não se costuma fazer uma refeição com alimentos estranhos à ocasião, como por exemplo, servir
feijoada no café da manhã, o que significaria uma refeição semanticamente mal estruturada.

Também há uma ordem em que os alimentos devem ser servidos, o que demonstra submissão a
uma sintaxe. Não se inicia um jantar pelo cafezinho. Qualquer cultura possui sua gramática
alimentar, mas elas parecem especialmente formais e rígidas quando a alimentação tem caráter
religioso. A falta de sentido na prática alimentar religiosa significaria comprometer proposições
fundamentais.

Pode ser que as pessoas desenvolvam hábitos e gramáticas particulares em suas refeições
“profanas”, neste caso servir feijoada no café da manhã ou cafezinho no inicio do jantar
equivaleriam às “licenças poéticas”, uma subversão da norma culta com intenção de expressar
outro sentido. Esta linguagem alimentar nasce na cultura e dissemina-se socialmente por
137
BATESON, G. Mente e Natureza. A unidade necessária. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A.,
1979, p. 233.

51
convenção, acompanhando inclusive, as mudanças sociais. Assim como coloquialismos um dia
tornam-se linguagem oficial, práticas alimentares marginais podem futuramente tornar-se
padrão. “se a comida é tratada como código, as mensagens que codifica serão encontradas nos
padrões de relações sociais expressas.” 138

Há o caso em que culturas diferentes usam os mesmos elementos para produzir sentidos muito
diferentes. O exemplo a seguir compara genética e literatura, entretanto, adéqua-se perfeitamente
à questão alimentar como veremos a diante.

Matt Ridley faz uma comparação bastante elucidativa entre o processo de codificação e
transmissão genéticas e literatura. Ele fala dos escritores Charles Dickens e J. D. Salinger nos
romances David Copperfield e O apanhador no campo de centeio, respectivamente:

Dickens e Salinger usam os mesmos poucos milhares de palavras. Há palavras que


Salinger usa, mas não Dickens, como elevador ou besteira. Há palavras que Dickens usa,
mas não Salinger, como coifa e impertinente. Mas elas serão poucas se comparadas com
as palavras que compartilham. Provavelmente, há pelo menos 90% de concordância
léxica entre os dois livros. Todavia são livros muito diferentes. A diferença não está no
uso de um conjunto diferente de palavras, mas no mesmo conjunto de palavras usadas em
um padrão ou ordem diferente. Da mesma forma, a origem das diferenças entre um
chipanzé e um ser humano não está nos diferentes genes, mas no mesmo conjunto de
30.000 genes usados em uma ordem ou padrão diferentes. 139

Tomemos como exemplo a comparação entre as cozinhas islâmica e judaica do Oriente Médio:
Ambas encontram-se dentro do mesmo sistema alimentar, portanto, utilizam-se mais ou menos
dos mesmos ingredientes. Elas repudiam o porco, o que equivale a um vocábulo que nunca vai
ocorrer dentro de seus respectivos textos. Ambas consomem muito leite e muita carne de
cordeiro, entretanto a forma como elas os servem dá origem a textos completamente diferentes.
No Judaísmo, uma das maiores proibições é o consumo de carne e leite juntos:

“Não cozerás o cordeiro no leite de tua mãe.” O que se procura evitar é um incesto
culinário: não se deve colocar uma mãe e seu filhote num mesmo caldeirão, do mesmo
modo que uma mãe e seu filho não devem ocupar o mesmo leito. O fogo da cozinha e o

138
DOUGLAS, M. Deciphering a meal. In: COUNIHAN, C. e ESTERIK, P. . Food and Culture: A reader. New
York: Routledge, 2008, p. 36. Tradução do autor.
139
Ibid., p.47.

52
calor erótico são análogos: eles podem conduzir, pela fusão dos elementos, à confusão
entre diferenças.140

Já na gramática alimentar islâmica, apesar das regras alimentares também estritas, carne e leite
são consumidos juntos, a ponto de habitarem, não apenas a mesma refeição, mas um mesmo
prato, como é o caso do Kibe bi Labanie ou “quibe na coalhada”, prato típico da cozinha sírio-
libanesa, onde bolinhos de carne “nadam” na coalhada, que é puro leite.

Conforme os grupos de humanos foram se diversificando deram origem a diferentes gramáticas,


produzindo diferentes linguagens e sistemas culinários. Estas gramáticas particulares obedecem a
uma estrutura profunda diretamente ligada ao seu ambiente e, especialmente à forma como
interpretam este ambiente.

[Os sistemas culinários] de uma nação não decorrem somente do mero instinto de
sobrevivência e da necessidade do homem de se alimentar. São expressão de sua história,
geografia, clima, organização social e crenças religiosas. Por isso, as forças que
condicionam o gosto ou a repulsa por determinados alimentos diferem de uma sociedade
para outra.141

Formam-se assim:
verdadeiras ideologias nutricionais, quer dizer, um conjunto de noções, ideias e símbolos
sobre as qualidades dos alimentos, seus aspectos benéficos e nocivos, assim como as
formas (quantidades, tempos, espaços, etc.) em que devem ser consumidos. 142

2.3 Animais e plantas nos sistemas culinários

É um truísmo dizer que o sexo e a comida são dois polos do sentido da vida humana. E
que, como tais, eles extravasam suas funções meramente materiais de assegurar a
sobrevivência dos indivíduos e a da espécie para torna-los matrizes simbólicas essenciais

140
SOLER, J. in: FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. op. cit., p. 86.
141
FRANCO, A. De caçador a gourmet: uma história da gastronomia. São Paulo: Editora Senac, 2006, p. 25.
142
AGUIRRE, S. M. Fuegos, Hornos y Donaciones. Alimentación y Cultura em Rapa Nui. Um ensayo
antropológico. Santiago: Catalonia, 2009, p. 19.

53
de toda cultura. O poeta alemão Schiller já dizia que “o amor e a fome movem o
143
mundo.”

Cada um dos elementos que influencia na alimentação aparece com maior ou menor importância
na comunicação cotidiana, uma vez que representam soluções ou desafios à permanência (no
tempo) do grupo. Assim que a capacidade de linguagem possibilita um intenso processo de
relação com o ambiente, plantas e animais, por exemplo, ganham participação simbólica na
estrutura profunda dos grupos de humanos que passam “a desenvolver relações sociais com
plantas e animais estruturalmente semelhantes às estabelecidas entre pessoas” 144. Isto pode ser
observado através do antropomorfismo do paleolítico superior representado, por exemplo,

na imagem do feiticeiro’ de Trois-Frères – uma figura pintada de pé, com pernas e mãos
que parecem humanas, mas com costas e orelhas de um herbívoro, os chifres de uma
rena, a cauda de um cavalo e um pênis posicionado como o de um felino.145

Também o Totemismo representa esta relação, mas “em vez da atribuição de características
humanas a animais, envolve implantar indivíduos e grupos humanos dentro do mundo natural,
sumarizado pela descendência de uma espécie não-humana.” 146 Encontram-se muitas regras
alimentares fundamentadas no totemismo. Alguns grupos comiam o animal totêmico visando
incorporar suas qualidades, enquanto outros, nunca comiam o animal totêmico temendo algum
tipo de vingança por parte do espírito do mesmo. 147

Mary Douglas destaca correlações entre animais, pessoas e comida da seguinte forma:

Cada sociedade projeta no reino animal categorias e valores que correspondem às


categorias de pessoas com as quais se permite casar [...] Os padrões de regras que
categorizam animais correspondem, em forma, aos padrões de regras que governam
relações humanas. Consumações sexual e gastronômica são consideradas equivalentes
por terem restrições análogas aplicadas a ambas. 148

143
CARNEIRO, H. op. cit., p. 128.
144
MITHEN, S. J. op. cit., p. 360.
145
Ibid., p. 264.
146
Ibid., p. 266.
147
BANON, P. Para melhor conhecer os tabus e as proibições. São Paulo: Claro Enigma, 2011.
148
DOUGLAS, M. Deciphering a meal. In: COUNIHAN, C. And ESTERIK, op. cit., p. 44.

54
Também fala Doria sobre o homem e os animais eleitos para comer. Cada sociedade:

classifica os animais segundo sua “comestibilidade”. Os animais domésticos nos parecem


totalmente vedados. Já os animais de quintal [...] parece que foram criados por Deus para
nos servir de alimentos. As caças podem ser consideradas ou não como fontes
alimentares segundo a história e tradição de um povo. Os animais selvagens, por sua vez,
parecem encarnar perigos: são as feras que ameaçam o homem, seus animais domésticos
ou de quintal. Por fim, temos os animais mitológicos [...] servindo-nos para delimitar o
mundo palpável e aquele que se estende para além da imaginação. 149

Nas sociedades de caçadores e pastores, ou seja, onde a principal fonte de alimentos provém
diretamente da vida de outros animais, estes ocupam um importante lugar também no sistema de
crenças. O mito da regeneração dos animais, presente em diversas culturas demonstram este fato:

Nas lendas germânicas encontramos “o grande porco” [...] que na corte de Odin, basta
para nutrir todos os heróis mortos em batalha, uma vez que “todo dia é cozido e
distribuído para a refeição, e de noite está novamente inteiro” – assim narra “Edda”, o
mais antigo poema escandinavo, escrito na Idade Média, mas expressão de uma cultura
muito mais antiga, transmitida oralmente. 150

O processo de simbolização de plantas, especialmente as alimentícias ocorre mais tarde e está


intimamente relacionado à invenção da agricultura. “Nas sociedades agrícolas e sedentárias, os
principais mitos de fertilidade e os rituais que os acompanham têm como protagonistas os
cereais.” 151 Certas culturas têm em seu totem, não animais, mas vegetais dos quais são
descendentes. Se não há um grau de parentesco, pelo menos estes alimentos figuram símbolos
importantes nos mitos de fundação:

Recordemos a história de Perséfone, filha de Deméter, deusa da terra e da agricultura,


raptada pelo deus do mundo inferior, Hades, e devolvida à mãe com a condição de
retornar para baixo da terra eternamente durante um terço do ano: história de evidente
caráter propiciatório, na qual se representa a trajetória da semente de trigo, enterrada
durante a estação fria até que renasça com o sopro da primavera, assegurando, com o
crescimento da vegetação, alimento aos homens. Outras plantas, em outras civilizações,
têm o mesmo papel: o arroz é protagonista de muitas lendas e contos asiáticos, enquanto
a mitologia dos povos antigos da América dá espaço principalmente ao milho. 152

149
DORIA, C. A. op. cit,. p. 39.
150
Ibid., p. 31.
151
MONTANARI, M. Comida como Cultura. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2008, p. 30.
152
Ibid.

55
Quanto mais essencial um alimento se torna numa cultura, mais aumenta sua função de
representar. Isto explica os inúmeros banquetes, oferendas e sacrifícios, ainda hoje praticados em
nome de divindades associadas à agricultura. É necessário pactuar com deuses e ancestrais para
obter deles favores. Na concepção de muitos povos, são eles que controlam a terra, as chuvas e
toda a natureza por trás da produção dos alimentos.

São todas estas relações que fundamentam a estrutura da linguagem de cada grupo, da mesma
forma que estas mesmas relações determinam a relação com os alimentos. Dentro uma grande
variedade de alimentos, o homem escolhe-os segundo regras tão profundamente enraizadas
quanto as da linguagem. Estas regras revestem-se nas concepções de alimentos considerados
próprios ou impróprios, bons, sagrados, mágicos, curadores, etc. Estas concepções darão também
origem aos interditos alimentares numa forma muito similar à regra mais básica das relações
sexuais: a proibição do incesto. Todas as culturas proíbem o incesto, mas quais as relações que
são consideradas incestuosas poderá variar muito de cultura para cultura. Analogamente,
encontramos em todas as culturas regras sobre o que, quando, como, onde e com quem alimentos
podem ser consumidos, estas regras, porém, são tantas quantas as culturas existentes no planeta.

2.4 Expressão de valores através da cozinha

Já a partir da amamentação, primeira e mais básica alimentação do ser humano, pode-se


encontrar diferenças fundamentadas nos valores dos grupos, o desmame é feito em momentos
diferentes e de maneiras diferentes, conforme descreve José Carlos Rodrigues:

Na transição do seio para alimentos sólidos, as crianças Hopi recebem pequenos pedaços
de alimentos previamente mastigados por vários membros da família e que são postos em
sua boca, cedo aprendendo a sugar o milho, a carne e frutas, sendo o seio materno apenas
uma das muitas fontes de satisfação oral que a criança recebe. A boca é, portanto, um
importante instrumento de comunicação com o mundo e com a sociedade, mesmo se se
abstrair a comunicação verbal: a criança aprende algo sobre a vida cada vez que se lhe
nega, ou que recebe um alimento de tipo particular ou característico de situações
especiais.153

153
RODRIGUES, J. C. op. cit., p. 66.

56
Através da seleção dos alimentos, da forma de prepará-los e distribuí-los um grupo expressa tudo
aquilo que sabe e acredita. Logo, à medida que o ser humano, em seus aspectos sociais, torna-se
mais complexo, exigindo novas e mais complexas formas de comunicação projeta isso
automaticamente nas várias etapas da alimentação. O “como se prepara”, que é a cozinha,
também expressa valores e crenças. Utilizamos aqui a definição de cozinha de Fournier:

cozinha é uma estrutura, um estado de ânimo, um conjunto de regras, uma soma de


técnicas, um meio de afirmar a própria identidade cultural, uma forma de nutrir-se
partindo do que é oferecido pelo ambiente ao redor. 154

Vale ressaltar que especialmente no caso das cozinhas associadas ou derivadas de práticas
religiosas, o modo de preparo, bem como quem pode preparar e quando, revela hierarquias e
dinâmicas sociais. No hinduísmo, por exemplo, “diferenças entre castas acarretam tabus ao se
comer comidas preparadas por alguém de castas inferiores, por isso há uma demanda por
Brâmanes [casta superior] que queiram ser cozinheiros”. 155

Também quanto a métodos de cocção existem regras: assado, frito, cozido têm seus momentos
mais apropriados, segundo aquilo que significam, como relata Levi-Strauss entre os Caingang:

Os Caingang do Brasil proíbem carne cozida a viúvos e viúvas e a qualquer um que tenha
matado um inimigo recentemente. Em todos estes casos, a prescrição de carne cozida
acompanha um apego afetivo, a prescrição de assados, um relaxamento dos laços
156
familiares e sociais.

De acordo com Montanari, os métodos de cozimento, desde o início já demonstravam indícios de


uma divisão das atividades por gênero. Ele explica que o assado encontra-se muito mais “ao lado
da ‘natureza’ e do ‘selvagem’, uma vez que não exige outros meios além do fogo, sobre o qual a
carne cozinha violenta e diretamente” 157 , portanto muito mais masculino, especialmente por
fazer parte do “ritual” pós caça.

154
FOURNIER, D. A cozinha da América e o Intercâmbio colombiano. In: MONTANARI, M. (Org.), 2009, op. cit,.
p. 161.
155
LATHAM, J. E. e GARDELLA, P. In: JONES, L. (Org.) Encyclopedia of Religion. Farmington Hills: Thomson
Gale, 2005, p. 3168. Tradução do autor.
156
LEVI-STRAUSS, C. The Culinary Triangle. In: COUNIHAN, C. And ESTERIK, P. op. cit., p. 38.
157
MONTANARI, M. Comida e Cultura. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2008, p. 78.

57
“O cozido, em vez disso, que ‘medeia’ por meio de água a relação entre fogo e comida exige o
uso de um recipiente – artefato cultural – para conter e cozinhar as carnes tende a assumir
significados simbólicos mais ligados à noção de domesticidade”, 158 portanto, mais feminino.
Estes traços de comportamento, guardadas as devidas proporções, podem ser encontrados ainda
hoje em nossa sociedade quando observamos em diversas culturas o ritual predominantemente
masculino do churrasco enquanto a cozinha doméstica fica em grande parte sob responsabilidade
das mulheres.

Os chineses também faziam distinção entre si e os mongóis pela forma de consumir os alimentos
“valorizando o cozido em oposição aos modos selvagens dos mongóis de comerem alimentos
crus e prescrevendo que apenas pedaços pequenos de alimentos devem ser levados à mesa,
evitando o uso de facas.”159

[Outro] caso típico é o dos eremitas, que, com consciente coerência intelectual, assumem
e às vezes ostentam um modelo de comportamento alimentar que representa a distância
do mundo, e para tal finalidade exclui, antes de qualquer coisa, o uso do fogo e das
práticas de cozinha, considerada fundamento da identidade civil. Mas ao fazerem isso,
160
eles propõem um gênero diverso de cultura, uma utopia que olha para além do mundo.

“Esta função de transformação [dos alimentos] pode ser preenchida também por outros
elementos intermediários, que realizam um ‘cozimento’ simbólico: talheres, copos, pratos e,
palavras...” 161 A maneira se servir e de comer implica obrigatoriamente a representação de
valores. Alguns comem em mesas, outros sentados ao chão, uns com talheres, outros com as
mãos tais como muçulmanos e hinduístas, demonstrando não um primitivismo, mas a crença
numa natureza “sagrada” dos alimentos, que merecem, portanto, serem segurados com a mão. A
faca é símbolo de violência, na pode estar à mesa, local de comensalidade e comunhão.

Há culturas em que os mais velhos comem primeiro, outras nas quais as crianças são
alimentadas antes. As refeições, em algumas culturas, se fazem normalmente a sós; em
outras, com o grupo familiar ou com toda a comunidade [...] certos assuntos podem ser
mencionados à refeição, outros são tabu e muitas vezes se exige silêncio.162

158
Ibid., p. 79.
159
DORIA, C. A. op. cit., p. 55.
160
MONTANARI, M. 2008, op. cit., p. 71.
161
RODRIGUES, J. C. op. cit., p. 68.
162
Ibid., p. 65.

58
Desse modo,

exatamente como a linguagem, a cozinha [do preparo ao serviço dos alimentos], contém e
expressa a cultura de quem a pratica, é depositária das tradições e das identidades do
grupo. Constitui assim, um extraordinário veículo de autorrepresentação e de
comunicação.163

Em suma, não se pode converter um leão ao vegetarianismo, nem tampouco um coelho ao


carnivorismo, ambos possuem sua alimentação condicionadas por seus respectivos programas
inatos, contudo no caso do ser humano, onívoro, que não mais consegue viver sem simbolizar
tudo que o cerca, mas ainda encontrando-se subordinado, em boa parte à sua condição animal,
porém com possibilidade de alterar seus programas inatos; comer ou não comer, bem como a
forma de comer certas coisas, significa incorporar, transmitir e/ou reforçar valores.

Tanto é a alimentação uma atividade expressiva que a antropofagia parece ter sido muito
raramente praticada com fins pura ou fundamentalmente alimentícios. A rigor, talvez
nunca tenha sido assim praticada porque nenhuma alimentação humana é apenas
instrumental. 164

2.5 A função domesticadora dos sistemas simbólicos religiosos

Conforme vimos anteriormente, o homem passou a viver não apenas da realidade crua e
concreta, mas através do desenvolvimento da mente que adquiriu formas variadas de explica-la,
bem como de recria-la através dos conceitos que extraía de uma esfera e aplicava noutra.

A mente consciente capacitou os humanos a repetir o leitmotiv da regulação da vida por


meio de um conjunto de instrumentos culturais – troca econômica, crenças religiosas,
165
convenções sociais e regras éticas, leis, artes, ciência, tecnologia.

Desse modo o homem cria sistemas de símbolos de onde nasce sua visão de mundo, com o
tempo, esta visão, construída a partir da interpretação de algo real, torna-se tão real quanto,

163
MONTANARI, M. 2009, op. cit., p. 11.
164
RODRIGUES, J. C. op. cit., p. 66.
165
DAMASIO, A. op. cit., p.82.

59
passando a modelar pensamentos e ações. Portanto, entendemos a religião como um sistema
simbólico com função de interpretar, representar e, portanto, criar um mundo.

Muitos são os sistemas simbólicos que podem gerar comportamentos cooperativos: a filosofia,
através da moral e da ética, a psicologia através do trabalho dos conteúdos emocionais do
indivíduo, o direito através do sistema penal, também podem moldar o homem pelo processo de
recompensa-custo. Resta-nos pensar, então, o quão diferente é a religião de outros sistemas
simbólicos, já que todos os sistemas simbólicos podem construir uma realidade, e moldar o
homem. Tais sistemas têm a vantagem de serem comprováveis lógica e/ou empiricamente, e
também a desvantagem de serem desarticulados diante de boa argumentação lógica ou evidência
empírica, enquanto a religião não possui nem a vantagem da prova lógica ou da evidência
empírica, porém, nem a vulnerabilidade à desarticulação por nenhuma das duas maneiras,
podendo “até mesmo contradizer a razão comum e a experiência cotidiana, pois não necessita
destes suportes.”166 Os “Postulados religiosos e axiomas são tomados como verdade sem que
sejam provados.” 167 Por vezes, “afirma-se tacitamente que a compreensão mundana deve ser
deixada de lado para que os postulados religiosos sejam compreendidos.”168, colocando-os numa
ordem especial de compreensão que não segue a lógica convencional, mas que a transcende. “A
verdade religiosa não pertence á mesma classe das verdades lógicas ou empíricas” 169, não pode
ser comprovada objetivamente, mas deve ser acreditada para que exista e tenha efeito. “A falta
de lógica das religiões não é uma fraqueza nelas, mas sua força essencial.” 170 Acredita-se ou não
num postulado religioso, entretanto, não se pode afirmar que seja falso. E para quem acredita há
um peso de autoridade, de absoluto, “a inquestionabilidade é uma propriedade do discurso
religioso.”171

Analisando a relação entre homem e religião a partir do ponto de vista evolucionista, podemos
afirmar que a religião exerce sobre o homo sapiens um papel “domesticador”. A religião pode
tanto reforçar certos programas inatos que favorecem a sobrevivência como oferecer condições
para o descondicionamento em relação a programas que privilegiam apenas o indivíduo e que

166
RAPPAPORT, R. op. cit., p. 289.
167
Ibid., p. 287.
168
Ibid., p. 288.
169
Ibid., p. 304.
170
WILSON, E. O. A Conquista Social da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 313.
171
Ibid., p. 297.

60
possam atrapalhar a cooperação do grupo. Tanto isso é verdade que a seleção natural parece ter
privilegiado os seres capazes de crenças religiosas: “a seleção natural favoreceu o surgimento de
uma psicologia que acredita no sobrenatural e se dedica a dispendiosas manifestações dessa
crença.”172

“Ao se empenhar no ritual, o indivíduo está dizendo: “‘Identifico-me com o grupo e acredito
naquilo que lhe é caro.’”173 Rituais dispendiosos em termos físicos ou de recursos, materializam
a intenção do indivíduo ou do grupo.

Entre tais manifestações encontramos muito frequentemente práticas associadas à alimentação.


Estes dispêndios apresentam-se na forma de oferendas de alimentos a entidades sobrenaturais,
sacrifícios de animais aos mesmos, jejuns severos que custam, por vezes a vitalidade do corpo ou
banquetes oferecidos por aqueles que nem sempre são abastados.

A predisposição à crença religiosa é a forca mais complexa da mente humana e muito


provavelmente constitui uma parte inextirpável da natureza do homem [...] Ela é um dos
aspectos universais do comportamento social e assume forma reconhecível em todas as
sociedades, desde os bandos de caçador-coletores até as repúblicas socialistas. Seus
rudimentos datam de pelo menos os altares de osso e os ritos funerários do homem de
Neandertal. Em Shanidar, no Iraque, sessenta mil anos atrás o povo de Neandertal
decorou um túmulo com sete espécies de flores que tinham valor medicinal e econômico,
talvez em honra de um feiticeiro. Desde essa época, segundo o antropólogo Anthony F.
C. Wallace,a humanidade criou cerca de 100 mil religiões. 174

Falar sobre esta função domesticadora da religião não é, porém, tentar simplificar ou reduzir a
religião a apenas um processo condicionante, até porque “a religião é uma das principais
175
categorias de comportamento, inegavelmente específica da espécie humana,” mas é,
especialmente, destacar suas propriedades educativas.

Algumas frequências gênicas são alteradas pela seleção eclesiástica de maneira


sistemática. Os genes humanos programam o funcionamento dos sistemas nervoso,
sensorial e hormonal do corpo, e dessa forma quase certamente influenciam o processo de
aprendizagem. Eles restringem a maturação de alguns comportamentos e as regras de
aprendizagem de outros. Os tabus de incesto, os tabus em geral [incluindo os
alimentares], a xenofobia, a dicotomização dos objetos em sagrados e profanos, o
nosismo, os sistemas de dominação hierárquica, a atenção intensa para com lideres, o

172
SOSIS, R. O valor do ritual religioso. Revista Viver: Mente & Cérebro. São Paulo: Editora Abril, 2005, p. 41.
173
SOSIS, R. op. cit. p. 42.
174
WILSON, E. O. op. cit., p. 169.
175
Ibid., p. 175.

61
carisma, o trofismo e a indução de transe acham-se entre os elementos do comportamento
religioso que mais provavelmente estão sujeitos a modelagem pelos programas de
desenvolvimento e pelas regras de aprendizagem. Todos esses processos agem no sentido
de circunscrever um grupo social e agrupar seus membros numa aliança
inquestionável. 176

Se por um lado o homem apresenta, apesar de toda sua capacidade intelectual, comportamentos
animalescos, autômatos, subjugados aos seus instintos, por outro, as diversas religiões, cada uma
à sua maneira, parecem ter tido o propósito de ensiná-lo a controlar, educar e até mesmo
sublimar tais instintos de modo que o ser humano pudesse se tornar mais cooperativo e assim
aumentar as chances de sobrevivência.

Práticas religiosas podem ser vistas como conferindo vantagens biológicas [...] e os genes
que as favorecem foram evidentemente selecionados [...] sociedades praticantes de
religiões têm muito mais propensão à sobrevivência do que as que não praticam. 177

o principal benefício adaptativo da religião é sua capacidade de facilitar a colaboração no


interior do grupo em relação a atividades fundamentais em nossa história evolutiva, como
a caça, divisão do alimento, defesa contra ataques e organização para a guerra. Mas
embora todos ganhem com a cooperação, este ideal é difícil de ser coordenado e
alcançado. O problema é que o individuo ganhará ainda mais se todos colaborarem e ele
ficar em casa descansando. A cooperação exige mecanismos sociais que impeçam as
pessoas de tirarem proveito sem participar dos esforços dos outros. [...] a religião é um
desses mecanismos. 178

Entre os animais, a cooperação é uma função geneticamente programada, com objetivo de


assegurar a continuidade da espécie através dos genes que serão carregados à diante em oposição
à breve existência do individuo. Todavia, no ser humano, onde muitos dos programas inatos
podem ser voluntariamente interrompidos, são necessários meios simbólicos que promovam tais
ações, uma espécie de reprogramação. Neste sentido, a religião exerce papel fundamental, uma
vez que seus conteúdos refinam as relações, favorecem a cooperação e, portanto a ação
sistêmica, aumentando as chances de permanência, tanto do grupo como do indivíduo. Portanto,
não importa se o conteúdo religioso é verdadeiro ou não, o que importa é que seja acreditado o

176
Ibid., p. 177.
177
WILSON, E. O. apud: VERKAMP, B. J. The Evolution of Religion. A Re-examination. New York: University of
Scranton Press, 1995, p. 129. Tradução do autor.
178
IRONS, W. apud: SOSIS, R. op. cit., p. 42.

62
suficiente para construir socialmente a realidade. “As crenças são realmente mecanismos
propiciadores da sobrevivência.” 179

Já em sua natureza biológica “os seres humanos buscam o que percebem ser recompensas e
evitam o que percebem ser custos” 180 , e “para obter uma recompensa, as pessoas aceitam
custos”181; logo, a realidade construída através de sistemas simbólicos apresenta dinâmicas de
recompensas e custos.

A religião pode oferecer as mais diversas recompensas (vantagens), sendo as mesmas concretas
ou abstratas e talvez até inalcançáveis no momento ou inexistentes, tais como a vida após a
morte ou a reencarnação. Podemos colocar como exemplos de recompensa: felicidade,
prosperidade, saúde, cura, salvação, amparo emocional, adiamento da morte, integração social
(inclusive com entes já falecidos ou divindades), etc. Para cada recompensa o homem dispõe-se a
pagar certo valor, despender certo custo. Logo, se ele acredita que um Deus pode lhe trazer a
recompensa desejada estará disposto a sujeitar-se a certas condutas, certos sacrifícios, que de
outra forma não faria. “A religião é acima de tudo um processo pelo qual indivíduos são
persuadidos a subordinar seus próprios interesses imediatos aos interesses do grupo.”182

Podemos dizer que certos custos revestem-se simbolicamente de valores como solidariedade,
caridade, desapego, ação social, ecologia, resignação, autossacrifício, negação ao hedonismo e à
sensualidade, obediência, autocontrole físico e emocional, temperança, humildade, gratidão,
perdão e tolerância pelo menos entre os membros do próprio grupo e, todas as condutas que se
possa nomear de observação e aprimoramento de si mesmo.

Para que estes valores encontrem campo fértil, entretanto, o primeiro e mais fundamental valor a
existir é a fé. Há o sacerdote e os outros membros para vigiá-lo, ensiná-lo, educá-lo, mas há
também outros seres invisíveis a quem deve algum tipo de reverência, obediência ou que acredite
manter relações de troca. Uma pessoa que crê firmemente em algum tipo de punição ou destino
de sofrimento após a morte pensará duas vezes antes de cometer algo tido como ilegal ou imoral
segundo o sistema de crença que adotou; ou ainda, infringindo tais regras, poderá sentir-se

179
WILSON, E. O. op. cit., p.3.
180
STARK, R. e BAINBRIDGE, W. S. op. cit., p. 37.
181
Ibid., p.38.
182
WILSON, E. O. op. cit., p. 175.

63
culpado e poderá tentar redimir-se de forma pública ou íntima, gerando comportamentos afins,
expressos, muitas vezes, através da prática de oferendas e sacrifícios.

É claro que o ser humano, bem como outras espécies, pode falsear intenções, ou pode ainda estar
buscando outros compensadores, mas a participação em rituais (forma especial de comunicação)
diminui consideravelmente esta possibilidade, afinal, certos rituais são bastante custosos, para
que deles se participe sem que se tenha uma boa motivação. Muitas religiões implicam certos
“sacrifícios”, tais como vestir-se de determinada maneira, horas de dedicação, punições,
abdicações, restrições alimentares severas, entre outros. Ninguém sustenta tais ações se não tiver
um propósito ou acreditar em algo que compense tais dispêndios.

2.6 Ritual

Reconhecemos como ritual “a performance mais ou menos invariante de uma sequência de atos
específicos e expressões não completamente codificados pelos atores” 183 e que cumprem
algumas funções; talvez a primeira e mais básica tenha sido a comunicação social.

Mesmo que hoje nos baseemos muito mais na linguagem verbal continuamos a emitir sinais
através de nossos atos. “Não nos enganaremos se pensarmos que toda a humanidade começou
por exprimir-se religiosamente através de seus gestos; a palavra surgiu, primeiro como
acompanhamento.”184

A menos que haja uma intenção de ludibriar, nunca uma pessoa expressa uma coisa através da
fala e outra através do corpo. A exibição material de estados internos e intenções é certamente
parte de nossa herança inata:

Posturas corporais como comunicação em rituais podem ser arcaicos. No uso de posturas
e movimentos, os rituais humanos aproximam-se das bestas sem fala, e deve ser este
aspecto material do ritual humano que sobrevive de uma época em que nossos ancestrais
não possuíam linguagem. 185

183
RAPPAPORT, R. op. cit., p. 24.
184
HATZFELD, H. As Raízes da Religião. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p.111.
185
RAPPAPORT, R. op. cit., p. 139.

64
Entretanto, com todo o inegável avanço linguístico do homem seria possível uma comunicação
baseada apenas na linguagem verbal ou até mesmo escrita. Por que então utilizar uma forma de
comunicação tão dispendiosa para expressar o que poderia ser dito apenas com palavras?

A comunicação exclusivamente verbal, através de símbolos fonéticos, oferece informação de


maneira rápida e econômica, mas de forma menos contundente e ainda, incompleta quando
comparada àquilo que se expressa através de formas substanciais. Quando se fala em coisas
concretas, as mesmas podem ser simplesmente referidas com palavras, mas o que é abstrato, tal
como as ideias, parece carecer de um elemento “materializador” para que se torne real:

É mais comum para a questão das mensagens terem peso e dimensão, e para os sinais que
as representam serem não materiais: palavras, faladas ou escritas. Mas para o que é
incorpóreo, como merecimento ou influência, sua representação deve ser material se
quiser ser levada a sério [...] palavras têm de ser “pesadas” se quiserem ser convincentes.
Representações corpóreas dão peso ao incorpóreo e dão substância visível aos aspectos
da existência que são em si mesmos impalpáveis, mas que tem grande importância no
ordenamento da vida social.186

Na comunicação através do ritual são materializados e transmitidos significados que não


poderiam ser expressos de outra maneira, mesmo havendo palavras.

O Ritual não é apenas uma maneira de dizer ou fazer coisas que podem ser ditas ou feitas
de outro jeito ou de um jeito melhor. A forma de transmissão ritual certamente não possui
equivalentes e certamente não possui equivalentes funcionais ou metafuncionais. 187

Tudo o que fazemos obedecendo regras pessoais ou sociais e que não tenham necessariamente
uma relação com adequação técnica indica uma tendência ritual. 188 Trata-se de uma “forma-de-
fazer” que não otimiza processos (podendo até desperdiçá-los), mas que sem ela, não se
consegue construir um mundo convincente. Uma refeição serve para ingerirmos combustível e
assim mantermos nossos organismos funcionando, pode-se introjetar este combustível no corpo
com as mãos, com hashis, com uma colher, um garfo ou usando 20 talheres. Seja qual for a

186
Ibid., p. 141.
187
Ibid.
188
WHITEHOUSE, H. Modes of Religiosity. A Cognitive Theory of Religious Transmission. Walnut Creek:
Altamira Press 2004, p. 3. Tradução do autor.

65
maneira escolhida, ela não otimizará em nada as propriedades nutricionais dos alimentos,
entretanto, os modos à mesa sempre serão representações dos valores sociais e culturais:

A travessa de servir que, também a partir do século XVI, substitui o trincho medieval, é
adotada muito mais rapidamente pela boa sociedade. Adota-se também o hábito de
fornecer a cada conviva uma colher, uma faca e um copo e abandona-se o costume de
passar aos vizinhos de mesa este ou aquele utensílio depois de usa-lo. Só os utensílios de
serviço continuam sendo comuns, mas ninguém deve leva-los à boca, tampouco comer
diretamente da travessa: como hoje, a comida deve ser posta primeiro no prato e cortada
novamente antes de ser levada à boca com a colher ou garfo individuais. Era o fim da
promiscuidade convivial. A partir de então, cada conviva encontra-se isolado de seus
vizinhos por uma espécie de gaiola invisível, os novos utensílios funcionam como
tabiques de separação. Isso dois séculos antes de Pasteur demonstrar a existência dos
micróbios e seu papel de agentes transmissores de doenças!189

Em exemplos como o acima, seria realmente estranho e descabido expressar tais valores através
de comunicação verbal, ainda que implique o custo da criação de uma nova linguagem (o uso
dos talheres individuais), o dispêndio ritual parece ser a melhor forma de se amalgamar a
realidade e exibir certas disposições.

[Entre] os Muminai do Siaui, os Abutu da ilha Goodenough, e o Potlatch da costa


noroeste americana, qualidades incorpóreas tais como mérito, prestígio, influência
política ou direito a títulos honoríficos são representados por objetos – porcos, inhames e
placas de cobre – e ações executadas em relação a eles, como distribuí-los, destruí-los ou
comê-los.190

A questão da materialização através do dispêndio ritual é especialmente importante no caso de


rituais que formalizam pactos. “Não se pode estabelecer vínculos sem palavras, mas tão pouco se
pode estabelecê-los unicamente com palavras.” 191 Relações sexuais são concretas, pode-se falar
delas, mas um pedido de casamento só parece real quando acompanhado das alianças.

Desta maneira, práticas alimentares parecem ocupar um lugar especial em rituais religiosos. A
comida, mesmo fora do contexto religioso parece portar por si própria, elementos de
comunicação ritual. Salvo situações de penúria, nunca se come qualquer coisa, de qualquer
maneira e acompanhado de qualquer pessoa. “O alimento é percebido como um intermediário

189
FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 554.
190
RAPPAPORT, R. op. cit., p. 141.
191
Ibid., p. 142.

66
real – e não apenas metafórico ou simbólico – que permite incorporar as qualidades e os valores
de que seria materialmente capaz de transmitir.” 192

As religiões utilizam-se convenientemente destes elementos, representando ou materializando


através deles, suas proposições. Consumir ou evitar certos alimentos significa incorporar ou
negar deliberadamente certos valores atribuídos aos alimentos.

Os símbolos e as formas adotadas para a transmissão de mensagens ou conceitos nos rituais não
é estabelecida pelos atores, especialmente no caso religioso. Eles seguem um roteiro pré-
determinado. É a isto que se refere a definição de rituais por nós adotada quando se fala em: “a
performance mais ou menos invariante de uma sequência de atos específicos e expressões não
completamente codificados pelos atores”, “eles seguem mais ou menos rigorosamente, ordens
que foram estabelecidas ou recebidas por outros.”193, a origem desta ordem é frequentemente
194
atribuída a deuses, profetas, ancestrais e outros seres sobrenaturais. E mesmo sem
compreender completamente todos os elementos e atos do ritual ainda assim, ele pode produzir
nos atores uma “transformação idiossincrásica.” 195 As regras alimentares presentes nas diversas
religiões estão há muito, estabelecidas; fazem parte da doutrina religiosa adotada e, devem ser
aceitas e cumpridas como qualquer outro preceito.

Não estar completamente codificado pelos autores justifica ainda a primeira parte da definição
por nós adotada: “performance mais ou menos invariante”: mesmo que não se compreenda
racional e/ou conscientemente pelo menos parte dos elementos e das posturas rituais privilegia-se
repetição e defesa da tradição; “há espaço para rearranjos de elementos, e até mesmo para
descartar elementos e introduzir outros, mas invenções são limitadas e a sanção de performances
prévias é mantida.”196

Um ritual que desobedece a própria gramática pode perder a identidade ou dar origem a outro
ritual, a outra interpretação da realidade e, consequentemente, outra visão de mundo. Segundo
Harvey Whitehouse “[os rituais] ativam algum poderoso mecanismo dedicado à proteção contra

192
MONTANARI, M. Modelos alimentares e identidades culturais. in: FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. op.
cit., 313.
193
Ibid., p. 32.
194
Ibid..
195
GEERTZ, C. op. cit., p. 82.
196
Ibid.

67
contaminação.” 197 Pois, sua invariação impede uma descaracterização pela entrada de novos
elementos. A repetição do ritual compreende uma maneira testada, sancionada e conhecida de se
construir o mundo. As práticas alimentares representam fielmente esta ideia. Aprendemos
socialmente que um alimento é bom ou ruim, que tem certas propriedades e que deve ser
consumido de determinada forma. Comê-lo de forma diferente ou comer outra coisa pode mudar
o texto e, consequentemente o resultado, especialmente se a conduta alimentar estiver
representando proposições religiosas.

Os processos de ingestão retratam uma absorção política. Algumas vezes, os orifícios


corporais parecem representar pontos de entrada ou saída para unidades sociais, ou a
perfeição corporal pode simbolizar uma teocracia ideal.198

Servir feijoada no café da manhã ou adicionar frango à sua receita original traria outro sentido.
Se os rituais alimentares seculares já admitem pouca mudança, os religiosos não admitem
nenhuma, pois tais práticas, neste caso, são representações ou materializações de proposições
fundamentais. “uma vez que obrigação está pressuposta na aceitação, quebrar uma regra de
obrigação é por si imoral; existência, aceitação e moralidade de convenções apresentam-se
indissoluvelmente juntas em rituais.”199

A comunicação ritual, no caso religioso, pode ocorrer entre os membros do grupo, entre os
membros do grupo e não membros (observadores), mas especialmente entre os membros e as
entidades sobrenaturais.

O que distingue rituais religiosos de rituais não religiosos, não é crença, mas crenças
sobrenaturais, ou ‘proposições inverificáveis’. Um ritual religioso sempre inclui um
termo adicional tal como uma afirmação sobre ou para espíritos. 200

Nesta seara, onde as relações e comunicações envolvem seres imateriais, a questão da


materialização através de rituais é ainda mais essencial. Os princípios e as regras de

197
WHITEHOUSE, H. op. cit., p. 33.
198
DOUGLAS, M. . op. cit., p. 14.
199
RAPPAPORT, R. op. cit., p. 137.
200
RAPPAPORT, R. Ritual, Sanctity and Cybernetics. In: LESSA, W.A. & VOGT, E. Z. Reader in Comparative
Religion: An Anthropological approach. New York: Harper Collins 1979 p. 262. Tradução do autor.

68
funcionamento do mundo construído pela religião são transduzidos 201 para outras linguagens:
utensílios, objetos de arte e decoração, espaços de convivência, músicas, danças e posturas
corporais, vestuário, comida, etc. Logo, todas estas coisas assumem papel simbólico, tornando-se
elementos religiosos insubstituíveis no processo de comunicação. Há também casos em que
objetos são criados para que sirvam exclusivamente de veículo simbólico.

Pela propriedade da “inverificabilidade”, muitas religiões, na questão da materialização não


tratarão objetos e atos como símbolos, mas como a coisa em si, como, por exemplo, o é caso da
transubstanciação; presente no ritual da Eucaristia, a comunhão com Cristo só ocorre quando se
consome a hóstia e o vinho consagrados, o vinho, bebida corrente, transforma-se em sangue e a
hóstia transforma-se no próprio corpo de Cristo e não numa representação dele:

As igrejas protestantes de modo geral, sustentam que os elementos do sacramento só são


carne e sangue num sentido metafórico; alimentam nossas almas como a carne e o sangue
nutririam nossos corpos. Os católicos, entretanto, sustentam que eles são literalmente
carne e sangue, embora possuam todas as qualidades sensíveis de uma hóstia e de vinho
diluído.202

Mesmo os protestantes, aparentando ser uma religião “sem rituais”, contradizendo-se, também
fornecem bons exemplos sobre a importância e inevitabilidade das materializações rituais:

O movimento protestante deixou-nos uma tendência a supor que qualquer ritual tem
forma vazia, que qualquer código de conduta é estranho a movimentos naturais de
simpatia, e que qualquer religião externa trai a verdadeira religião interior [...] é um erro
supor que pode haver religião que seja completamente interior, sem regras, sem liturgia,
sem sinais exteriores de estados internos [...] Como herdeiros da tradição protestante,
crescemos na suspeita da formalidade e na procura de expressões espontâneas como a da
irmã do ministro, a qual Mary Webb fez dizer, “bolos e preces feitos em casa são sempre
os melhores” [...] Se o ritual é suprimido de uma forma, ele aparece inesperadamente em
outras.203

201
RAPPAPORT, R. op. cit., p. 98. TRANSDUÇÃO é o termo técnico para transmissão de informação ou energia de
uma forma para outra, mas não é apenas uma questão de mera transmissão. É necessário traduzir a informação de
maneira que seja inteligível ao sistema ou subsistema que recebe. Trata-se de uma questão de mudança de
modalidade, por exemplo, dos sulcos de um disco de vinil, interpretados pelo movimento da agulha, passando então
para impulsos elétricos que se transformarão nos sons emitidos pelo autofalante. As “linguagens” ou métricas dos
dois subsistemas devem corresponder uma a outra.
202
PEIRCE, C.S. op.cit., p. 58.
203
DOUGLAS, M. op. cit., p. 80.

69
O mais interessante é que tanto os rituais quanto a visão religiosa adotada tornam-se tão naturais
a quem os pratica que mesmo as ações cotidianas são realizadas de maneira ritual. Como sistema
simbólico que constrói uma realidade a religião impregna as atividades funcionais de significado,
de maneira que tais atividades só façam sentido quando executadas de certo modo; é este modo
específico, permeado de crenças, que as transforma também em rituais.

Os tabus, ainda que amiúde sejam usados e assumidos liturgicamente, fazem realidade
fora do ritual. As regras das quais surgem são aquelas que se expandem por si mesmas no
mundo secular onde não apenas chegam a ser materiais, mas também naturais.204

Há sempre uma correlação entre o modo de se fazer coisas e a crença adotada. Logo, o que é
aprendido e reforçado pelo ritual transcende, abarcando atividades do cotidiano que, em tese, não
teriam relação com a religião.

É, portanto, através do ritual que a religião exerce sua função domesticadora. Nele, o crente
coloca em prática o que absorve e aceita como verdadeiro no sistema simbólico religioso
adotado.

204
RAPPAPORT, R. op. cit. p. 144.

70
III RELIGIÕES E SUAS PRÁTICAS ALIMENTARES

Quando, no ano de 986, Vladimir I, príncipe de Kiev, decide abandonar o paganismo e


abraçar uma nova fé com seu povo, chama a seu palácio os representantes das quatro
principais confissões religiosas, os cristãos de Roma e de Bizâncio, os muçulmanos e os
judeus, para apreciar a justeza e a seriedade de cada uma delas. Travam-se então longas
discussões teológicas, durante as quais, segundo a crônica russa que registrou o fato, são
amplamente debatidas as opções alimentares de cada religião e os comportamentos
recomendados ou prescritos como regra de vida para os fiéis. A obrigação muçulmana e
judia de se abster da carne de porco decididamente não agrada a Vladimir; quanto ao
consumo de vinho, “nós, russos, gostamos de beber”, diz ele ao enviado dos Búlgaros
muçulmanos, e realmente não podemos passar sem ele’, Vladimir tampouco gosta da
insistência com que os cristãos de Roma defendem o jejum como forma de purificação:
“Nossos antepassados, teria ele dito, não o aprovariam”. Não foi por essas razões,
evidentemente, que o príncipe por fim convencido pelos gregos ortodoxos adotou suas
doutrinas e seus rituais; mas o texto deixa muito claro o valor do comportamento
alimentar como sinal de identidade religiosa, étnica e cultural.205

O desenvolvimento da comida, no sentido de nutrição material e cultural parece ter se imbricado


com o desenvolvimento da religião. Desde tempos remotos percebemos que há muito de comida
na religião e muito de religião na comida: “Comer a comida preparada sobre um altar, ao que
tudo indica, foi a primeira forma de um ato religioso.”206

Cada região do mundo elegeu seus alimentos, especialmente aqueles, capazes de sustentar muitas
pessoas; na região do mediterrâneo, o trigo, na Ásia o arroz, na América o milho, etc. E, de tão
fundamentais que eram, em torno deles, “organizou-se toda a vida daquelas sociedades: relações
econômicas, formas de poder político, imaginário cultural, rituais religiosos (destinados a
assegurar a fertilidade da terra e a abundância de alimento).”207 Não sabemos exatamente como
nem porque a religião começou, mas certamente estava relacionada aos maiores problemas da
época – alimentação e morte:

No Oriente Médio, há cerca de 120.000 anos, vemos o Homo Sapiens Sapiens não apenas
enterrando seus mortos dentro de covas, como na verdade, também andavam fazendo os

205
MONTANARI, M. in: FLANDRIN, J. e MONTANARI, M. História da Alimentação. São Paulo: Estação
Liberdade, 1998, p. 312.
206
COULANGES, F. apud: JACOBS, J. op. cit., p. 15.
207
MONTANARI, M. 2008 op. cit., p. 24.

71
Neandertais, mas depositando partes das carcaças de animais junto aos mortos,
aparentemente como se fossem oferendas.208

Até mesmo entre os mortos a comida estava presente. Dependendo das interpretações que se
atribuía à morte e das representações que as comidas transportavam, ancestrais, divindades,
demônios, etc., ainda que imateriais deveriam receber suas porções.

A cultura fez com que o simples ato de comer se convertesse em uma linguagem. “Para cada
individuo a alimentação representa uma base que liga o mundo das coisas ao mundo das ideias
por meio de nossos atos. Assim, também a base para nos relacionarmos com a realidade.” 209

Sua eficácia reside no fato de a comida ser uma atividade comum a qualquer pessoa e, de ser
uma atividade que atinge várias das dimensões humanas: biológica, cultural e social. A cultura
trouxe regras para uma ação que era puramente instintiva. E a religião, um dos sistemas
simbólicos mais eficazes por encontrar-se no campo da fé, reforçou este mecanismo de regulação
do instinto da fome. A religião ensinou que não se poderia comer qualquer coisa, em qualquer
quantidade de qualquer maneira. Muitas delas, com suas “doutrinas alimentares”, refrearam o
impulso da gula e do acúmulo, mostraram um caminho para a autodisciplina, incentivaram a
partilha dos alimentos entre os membros do grupo, e também com as divindades, através das
oferendas. Regulou também as relações do homem com outros víveres através do
vegetarianismo, ou até mesmo através das práticas sacrificiais determinando quais os animais,
quantos e quando serviriam de comida (possibilitando certa consciência ecológica).

Mostraremos neste capítulo um panorama comparativo entre algumas religiões, referente às suas
práticas alimentares. Nossa intenção não é esgotar o assunto, nem tampouco fazer um tratado,
mas demonstrar que apesar de diferentes, religiões adotam a comida como elemento de educação
e linguagem. Selecionamos para tal comparação sete religiões: Igreja Adventista do Sétimo Dia
(IASD), Budismo, Candomblé, Catolicismo, Hinduísmo, Islamismo e Judaísmo. Quase todas as
religiões utilizam-se de práticas alimentares como forma de “doutrinação” ou comunicação,
visamos, entretanto, escolher as religiões que mais possuem práticas alimentares. Neste sentido,

208
MITHEN, S. op. cit., p.36.
209
MINTZ, S. Comida e Antropologia. Uma breve revisão. Revista Brasileira de Ciências Sociais – vol. 16, no. 47
p. 32.

72
as linhas protestantes, juntamente com o Kardecismo parecerem ser as que menos têm relação
direta com os alimentos. Religiões ditas “primitivas” parecem ter relações mais estreitas, por
manterem certo elo com a agricultura. As religiões mais institucionalizadas, porém, fornecem um
sistema mais definido de regras, apresentando verdadeiras cartilhas de conduta alimentar.

Organizamos as práticas alimentares encontradas nestas religiões em nove categorias gerais:


Jejum, isto é, relatando quais possuem tais práticas e como o mesmo se dá e qual a intenção ao
praticá-lo. Dietas regulares, quais são as religiões que estipulam regras alimentares para o
cotidiano. Interdições alimentares, no sentido de tabus, proibições, podendo ser permanentes ou
temporários. Alimentos como símbolo específico, tais como alimentos sagrados, associados a
divindades ou a certas ocasiões míticas. Banquetes, celebrações que envolvem refeições
coletivas, por vezes até com as divindades e que marcam algum acontecimento mítico,
Oferendas de alimentos e Sacrifícios de animais, a comida vista como uma forma de
comunicação com entidades. Regras de obtenção e preparo dos alimentos trata da forma de
obter ingredientes e prepará-los que envolve aspectos litúrgicos. E, por fim, religiões que
possuem uma prática Dietética associada à religião, isto é, que possuem uma visão “nutricional”
dos alimentos e usam-nos ou evitam-nos com o propósito não exclusivamente de elevação
espiritual ou comunicação, mas como recurso para manter a saúde do corpo físico.

A tabela a seguir, permite uma rápida e panorâmica visualização das práticas alimentares por nós
elencadas, nas respectivas religiões. As diferentes intensidades de cinza representam uma escala
com maior ou menor presença de uma determinada categoria, sendo o cinza mais escuro, quando
mais praticado e o branco quando há ausência da prática:

73
CATOLICISMO
ADVENTISMO

CANDOMBLÉ

HINDUISMO

ISLAMISMO

JUDAÍSMO
BUDISMO
Jejum
Dietas regulares
Interdições alimentares
Alimentos como símbolo específico
Banquetes
Oferendas de alimentos
Sacrifício animal
Regras na obtenção ou preparo de alimentos
Dietética associada à religião

Dentro de cada categoria, as religiões estão organizadas em ordem alfabética. Em alguns casos, é
possível encontrar comentários de uma prática alimentar-religiosa, dentro de outra religião,
quando as comparamos ou quando se originam em outra religião.

A organização das categorias inicia-se pelo Jejum, que é a maior restrição alimentar, depois
passamos às dietas regulares, onde apesar de muitas restrições come-se mais do que no jejum. Na
terceira categoria, pode-se comer muitas coisas, com algumas interdições. Estas categorias, em
relação ao número de alimentos permitidos apresentam-se de forma gradativa. Também estas
categorias estão relacionadas com o processo de descondicionamento, que será melhor explorado
na análise dos dados empíricos, no item 4.1.

Passamos depois às categorias que trazem maior profundidade ao assunto, pois analisamos as
representações destas práticas através de alimentos que funcionam como símbolos específicos.
No item banquetes, analisado juntamente com o anterior, seguimos pela questão simbólica, mas
adicionamos o aspecto comensalidade, explorado também nos itens seguintes: oferendas de
alimentos e sacrifícios de animais, onde pressupõem-se ter como comensais entidades imateriais.
Estas categorias também expressam as propriedades de materialização, assim como o item regras

74
para obtenção ou preparo de alimentos, já que não se obedece a regras necessariamente
higiênicas, mas aquelas que dizem respeito a um “observador invisível”. O ultimo item são as
religiões que têm práticas que de certa forma assemelham-se à nutrição médica, no conceito
ocidental, em oposição ao caráter mais “mágico” dos itens anteriores.

3.1 Jejum

As regras alimentares servem como rituais instauradores de disciplinas, de técnicas de


autocontrole que vigiam a mais insidiosa, diuturna e permanente tentação. Domá-la é
domar a si mesmo, daí a importância da técnica religiosa dos jejuns, cujo resultado
também permite a obtenção de estados de consciência alterada propícios ao êxtase. As
regras disciplinares sobre alimentos podem ser anti-hedonistas, evitando o prazer
produzido pelo alimento, tornando-o o mais insípido possível ou podem ser pragmáticas,
ao evitar alimentos que sejam “demasiado quentes” ou “passionais”. 210

É uma das práticas relacionadas à alimentação das mais comuns encontradas nas religiões. O
Jejum pode ser total quando se trata da abstinência de quaisquer alimentos, por vezes até mesmo
de água; ou parcial, quando há permissão para se comer determinados alimentos enquanto outros
são temporariamente proibidos.

Os jejuns podem também ser praticados em ocasiões específicas de acordo com o calendário de
celebrações da religião em questão, como forma de marcar um evento muito importante,
geralmente ligado a divindades, mensageiros, profetas, líderes, fundadores e outras figuras de
grande expressão.

Adventismo

Jejuns nesta religião podem ser praticados em casos particulares e individuais, com propósito de
expiar a culpa, como técnica para auxiliar na meditação, como instrumento autodisciplinar, como

210
CARNEIRO, H. op. cit., p. 119.

75
forma de purificação em caso de morte de alguém próximo ou como sacrifício pessoal para se ter
um desejo concedido.

Na IASD o jejum não é coletivo, nem praticado numa data específica, mas quando necessário,
podendo ser total ou parcial. Trata-se de um recurso para a autodisciplina e a purificação física e
espiritual.

Devem por de parte dias de jejum e oração. Pode não ser requerida a completa
abstinência de alimento, mas devem comer moderadamente, do alimento mais simples
[...] um regime de frutas por alguns dias tem muitas vezes produzido grande benefício aos
que trabalham com o cérebro. Muitas vezes um breve período de inteira abstinência de
comida, seguido de alimento simples [...] Alguns há que seriam mais beneficiados pela
abstinência de alimento por um dia ou dois cada semana, do que por qualquer quantidade
de tratamento ou conselho médico.211

Para os Adventistas a temperança praticada através do controle alimentar, é uma forma de


redenção, pois, por várias vezes, mostrou-se uma grande tentação através da qual o homem
sucumbiu:

Para Cristo, como para o santo par no Éden, foi o apetite terreno a primeira grande
tentação. Exatamente onde começara a ruína, deveria começar a obra de nossa redenção.
Como, pela condescendência com o apetite, caíra Adão, assim, pela negação do mesmo,
deveria Cristo vencer. “E tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome;
e, chegando-se a Ele o tentador, disse: se Tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras
se tornem pães. Ele, porém, respondendo, disse: está escrito: Nem só de pão viverá o
homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.”212

Budismo

No Budismo, o jejum é uma prática comum, especialmente entre os monges, que comem apenas
duas vezes ao dia, uma pela manhã e outra por volta de meio dia, no resto do dia, jejua-se. Esta
regra, proveniente do Vinaya Pitaka (textos canônicos budistas), só pode ser quebrada em caso
de doença. O objetivo é a contenção dos próprios desejos. Tal prática sustenta proposições de

211
WHITE, E. G. Conselhos sobre o regime alimentar. Ellen. G. White Estate, Inc., 2013, p. 163.
212
Ibid, p. 167.

76
simplicidade, desapego e anti-hedonismo, o corpo deve ser apenas mantido funcionando como
instrumento do caminho espiritual e não como fonte de prazer e distração.

Catolicismo

O Cristianismo, de forma geral, permanece hoje apenas com o jejum da Semana Santa, mas “no
século VI, o ato de comer era visto como uma tentação que levava ao pecado da gula. Aos
poucos, sob a égide da Igreja Católica, o jejum sistematizou-se.”213 Na Idade Média, haviam
mais de duzentos dias de jejum, restringindo especialmente o consumo de carne vermelha. Além
do jejum da Quaresma e todas as quartas e sextas-feiras eram tidas como dias de jejum parcial.
“Segundas e quintas eram tradicionalmente dias de jejum dos judeus, e, presumivelmente,
usando-o como modelo, os primeiros Cristãos escolheram a quarta e sexta como dias de
jejum.”214

Hinduísmo

No Hinduísmo as regras para o jejum são bastante complexas, variando segundo o mês do ano, a
divindade de devoção do fiel,

a casta, a família, a idade, o gênero e o grau de ortodoxia. O jejum pode ser completado
através do consumo de comidas “puras” adotando-se uma dieta completamente
vegetariana ou abstendo-se de suas comidas favoritas. Jejuns comuns incluem os
domingos, dias de lua nova, de lua cheia e o 10º. e 11º. dias de cada mês, o festival de
Sivaratri, o 9º. dia do mês de Cheitra, o 8º. Dia de Sravana e os dias de eclipses,
equinócios, solstícios e conjunções de planetas.215

213
STRONG, R. Banquete. Uma historia culinária, dos costumes e da fartura à mesa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2004, p. 49.
214
ADAMSON, M. W. Food in Medieval Times. Westport: Greenwood Press Publishing, Inc., 2004, p. 213.
Tradução do autor.
215
SITA RAMA DAS. Faith and Food. The way to your heart.. www.faithandfood.com. Acesso em 04/04/2014.
Tradução do autor.

77
Cada dia da semana é dedicado a determinados deuses. Costuma-se jejuar ao menos uma vez por
semana de acordo com o deus ao qual se deseja comunicar. O jejum é parcial, evitando-se alguns
alimentos neste dia, em geral: arroz, trigo, lentilhas, sal (jejum upvaas), ou cebola e alho (jejum
vrat). O jejum dura do nascer ao pôr do sol intercalado com uma refeição que segue as restrições
citadas. Há inúmeros livros e sites com “receitas vrat”, isto é, sem cebola ou alho, próprias para
os dias de jejum, bem como “receitas upvaas”, sem cereais ou sal. Alguns deuses, em seus
respectivos dias, também não permitem o uso de outros ingredientes, além das dietas vrat e
upvaas, tais como o óleo no dia de Lord Surya, domingo. O objetivo do jejum é obter favores do
deuses para quem se sacrifica, mulheres solteiras que desejam um bom noivo, por exemplo,
praticam o jejum vrat às segundas-feiras em homenagem a Shiva Purana. 216 Outro objetivo do
jejum é melhorar o controle de si mesmo, através do controle do domínio sentidos (Indryias), o
que favorece o Sadhana (meditação).

Islamismo

No Islamismo o jejum é praticado durante o nono mês do calendário islâmico (lunar), o Ramadã,
mês do jejum. Trata-se do mês em que Maomé teria recebido do anjo Gabriel o Corão.

Em respeito a este acontecimento, neste mês não se come, bebe, fuma ou tem relações sexuais,
do nascer ao por do sol. Entretanto, o jejum é quebrado depois que o sol se põe com grandes
banquetes em família.

O jejum no Islamismo é praticado também com finalidade de expiação, variando de acordo com
a falta cometida. O jejum expiatório é previsto para algumas faltas, tais como, “homicídio de um
correligionário (4, 92), juramento em vão (5, 89), caça em estado de consagração (5, 95), e
repudiar a esposa (58, 4).”217

216
London Sri Murugan. www.londonsrimurugan.org, acesso em: 31/03/2014
217
EZQUIBELA, I. J. Prescripciones y tabúes alimentarios: el papel de las religiones. In: Distribuicion y
Consumo. Barcelona, Novembro-Dezembro, 2009, p. 19. Tradução do autor.

78
Judaísmo

O Judaísmo possui alguns jejuns em seu calendário litúrgico. Alguns são menores e menos
praticados, nas seguintes datas:

O dia 10 do mês de Tevet, que marcou o cerco de Jerusalém pelos babilônios;

O Jejum de Ester, observado um dia antes do Purim, no dia 13 do mês de Adar,


lembrando os dias de jejum solicitados por Ester.

O dia 17 do mês de Tamuz, que é a data em que as muralhas de Jerusalém foram


rompidas, durante o cerco romano.

O jejum de Guedalia, no dia 3 do mês de Tishrei, um dia depois do Rosh Hashaná.


Celebra o assassinato de Guedalia, governador dos judeus, nomeado por Nabucodonosor.
Foi o ultimo golpe na destruição do primeiro reino. 218

Há também o bastante praticado Jejum dos Primogênitos: é realizado um dia antes da Pessah
(Páscoa Judaica), “em sinal de gratidão por ter poupado os primogênitos dos Filhos de Israel,
quando Deus, na décima praga, matou os primogênitos egípcios.” 219

O principal jejum, entretanto, é o do Yom Kippur, dia do perdão. Ele acontece no décimo dia do
mês de Tshiri, ao final do ano judaico.

O foco do dia são as necessidades espirituais, portanto as físicas são temporariamente


postas de lado para que se concentre no pedido de perdão por todas as maneiras pelas
quais se tenha transgredido no ano que se passou [...] e assim se comece o ano de
consciência limpa.220

218
DONIN, H. H. O Ser Judeu. Guia prático para a observância judaica na vida contemporânea. Jerusalém:
Organização Sionista Mundial. Departamento de Educação e Cultura Religiosa para a Diáspora, 1985, p.284.
219
Ibid., p. 246.
220
SHOESTECK, P. A Lexicon of Jewish Cooking. A collection of folklore, foodlore, history, customs and recipes.
Chicago: Contemporary Books, Inc., 1979, p. 209. Tradução do autor.

79
3.2 Dietas regulares

“O cumprimento das regulações alimentares tem sido parte fundamental do contrato que os fieis
dos diferentes credos tem de cumprir para seguir sendo formalmente e não afastar-se de Deus
nem de seus sacerdotes.”221

Classificamos como dietas regulares as práticas alimentares determinadas pela doutrina religiosa
e que estabelecem os hábitos alimentares do cotidiano. Algumas religiões determinam o que
comer e o que não comer e enquanto outras não estabelecem o que comer, mas determinam
apenas o que não comer. Quando há, nestes casos, um grande número de proibições estas acabam
por delinear uma dieta cotidiana, em contrapartida às religiões que possuem alguns poucos tabus
que não chegam a estabelecer uma dieta propriamente dita.

Adventismo

A IASD propõe uma dieta regular. Esta dieta é o fruto da Reforma Alimentar proposta por Ellen
G. White. A Reforma propõe o vegetarianismo:

Deus deu aos nossos primeiros pais o alimento que pretendia que a raça humana comesse.
Era contrario ao Seu plano que se tirasse a vida de qualquer criatura. Não devia haver
morte no Éden. Os frutos das árvores do jardim eram o alimento que as necessidades do
homem requeriam [...] O estado da mente tem grandemente a ver com a saúde do corpo, e
em especial com a saúde dos órgãos digestivos. Em geral, o Senhor não proveu carne a
Seu povo no deserto, porque sabia que regime suscitaria doença e insubordinação. A fim
de modificar a disposição e levar as mais altas faculdades do espírito a exercício ativo,
deles tirou a carne de animais mortos. Deu-lhes o pão dos anjos, o maná do céu. 222

Há também recomendações de uma alimentação frugal. Vegetais cozidos de maneira


simples, sem extravagâncias:

221
EZQUIBELA, I. J. op. cit., p. 9.
222
WHITE, E. G. op. cit., p. 317-319.

80
Cereais, frutas, nozes e verduras constituem o regime dietético escolhido por
nosso Criador. Estes alimentos, preparados da maneira mais simples possível
são os mais saudáveis e nutritivos. Proporcionam uma força, uma resistência e
vigor intelectual, que não são promovidos por uma alimentação mais
complexa e estimulante. 223

Talvez pela recente época em que foi proposta, se comparada às outras religiões, por
volta de 1900, a Reforma Alimentar apresenta -se a partir de uma perspectiva
nutricional. Entretanto, apesar do discurso científico, promover a saúde através da
alimentação é valorizar o corpo dado por Deus e manter-se na melhor forma para
servir a Deus. A rigidez dietética adventista também se apresenta como uma técnica
instauradora de autodisciplina desembocando numa disciplina moral.

Budismo

No Budismo, com suas fortes raízes hinduístas o vegetarianismo prevalece, seguindo também o
princípio ahimsa. A carne não é proibida, entretanto,

Buda aconselhou aos monges comer carne apenas quando o animal não tenha sido
abatido para consumo. A carne tem sido consumida em pequenas quantidades em alguns
países budistas, onde pode ser obtida de açougueiros muçulmanos. 224

Evitar o consumo de carne parece ser comum aos budistas em geral, mas podemos falar em
“Budismos”, o que acarreta muitas vezes, diferenças dietéticas não apenas devido a um
determinismo sócio-geográfico, mas referente às diferentes visões que estes “Budismos”
adotarão. No Budismo Mahayana chinês e vietnamita, por exemplo, “evitarão alguns alimentos
de aroma intenso tais como cebolas, alho, cebolinha verde e alho-poró, acreditando que seus
sabores fortes excitem os sentidos e apresentem um obstáculo aos budistas em busca de controle
dos próprios desejos.”225 No entanto, comem carne, peixes e ovos.226 É pouco provável que os
monges budistas tenham grandes restrições alimentares, já que é parte de sua prática pedir
223
WHITE, E. op. cit., p. 74.
224
SCHIMDT, A. e FIELDHOUSE, P. op. cit., p. 2.
225
Ibid.
226
MEGUMI, H. Faith and Food. The way to your heart. op cit.

81
comida e, sendo assim, não podem escolher o que lhes dão. Aceitam de bom grado qualquer
alimento.

Entre os monges zen budistas que vivem em mosteiros,

a alimentação é vegetariana [...] na maneira mais tradicional, também não se usa nem
cebola, nem alho. E as cores e os sabores dos alimentos também devem ser levados em
conta para que exista um perfeito equilíbrio. Por isso, não podem faltar, em uma refeição,
amarelo, branco, verde, vermelho, preto ou roxo e marrom; e os sabores ácido, picante,
amargo, salgado e doce. 227

Hinduísmo

A dieta Hinduísta é predominantemente baseada no conceito ahimsa, isto é, a não violência. Por
este principio, a dieta é em grande parte lacto vegetariana, em especial a carne bovina é rejeitada,
uma vez que a vaca é considerado o animal sagrado por excelência. O consumo de carne não é
proibido, mas bastante desencorajado.228 Também o consumo de bebidas alcoólicas é quase nulo.

O que não se consome em proteína de carne, consome-se em proteína de leite e seus derivados,
sendo esta, a principal fonte de proteína. Se a vaca é sagrada, o leite é considerado um produto
de origem divina altamente recomendado. Entre as principais fontes de gordura encontra-se o
Ghee, manteiga clarificada, extraída do leite de vaca. Além de alimento o Ghee é usado em
cerimônias religiosas para untar estátuas de entidades.

Bastante influenciado pelo Vedismo, o Hinduísmo herda algumas práticas alimentares da


culinária Ayurveda. Um sistema bastante complexo classificará os alimentos segundo qualidades
da natureza (PraKruti): “Sattva é estabilidade, aspecto puro, percepção, essência e luz. Rajas é
movimento dinâmico. Tamas é estática.” 229 Os alimentos, submetidos a cada uma destas
qualidades provocarão respectivamente tais disposições, naqueles que os consomem. Assim, os
alimentos sattvicos seriam equilibrados, leves, fáceis de digerir, facilitando a percepção, a
pureza, etc. Já alimentos rajasticos causariam, euforia, irritação e encorajamento dos prazeres

227
HOLANDA, A. Meditar e cozinhar, uma boa dupla. Vida Simples, Julho, 2013, p. 54.
228
SCHIMDT, A. e FIELDHOUSE, P. The World Religions cookbook. Westport: Greenwood Publishing Group,
Inc., 2007, p. 98-99. Tradução do autor.
229
LAD, V. Ayurveda. A Ciência da autocura. Um guia prático. São Paulo: Ground, 2007, p. 18.

82
sensuais tais como alho e cebola. As carnes de mamíferos e uma lista de outros alimentos são
classificados como tamasicos e, portanto fornecem uma energia que causa estagnação (outra
forte razão pela qual não se come carne).

Islamismo

O Islamismo também possui regras alimentares que acabam por determinar uma dieta regular.
Observa-se uma dicotomia próprio/impróprio, identificada sob os termos Halal/Haram. A dieta
islâmica considera Halal (permitido) o leite de vacas, ovelhas, camelas e cabras, também, peixes
em geral, mel, plantas não intoxicantes, vegetais, hortaliças e frutas frescas ou congeladas,
legumes e grãos, bem como carnes de animais que tenham sido abatidos segundo os preceitos
islâmicos (Zabihah). São considerados alimentos Haram (proibidos): cachorros, burros, anfíbios,
repteis, animais carnívoros, aves de rapina e noturnas, insetos, porcos e seus derivados, também
animais Halal que não tenham sido abatidos segundo o procedimento Zabihah; sangue e
derivados de sangue de qualquer procedência animal; plantas, bebidas venenosas e intoxicantes
em geral; colágeno, hormônios sexuais, etileno, insulina, pepsina, extrato de baunilha. Há ainda
uma categoria, Mashbooh, para designar que não chega a ser proibida, mas que não é
recomendada, pois contém alimentos ditos duvidosos, são eles: gelatinas, vinagres, diuréticos,
ácido fólico, disódio, queratina, glicerol, monoglicerídeos, niacina, dextrina, nitrato, nitrito,
ácido oleico, fenilalanina, fosfolipídios, ácido fosfórico.230

Todos estes preceitos dão origem a uma complexa prática alimentar, são necessário órgãos
regulamentadores, bem como certificações de procedência e fornecedores especializados,
criando até mesmo fora do mundo árabe um grande mercado consumidor destes produtos.

Judaísmo

Algumas religiões estabelecem um verdadeiro sistema nutricional, onde até mesmo a mais
simples refeição é permeada por sua visão de mundo. Trata-se da alimentação Kasher. De
230
EZQUIBELA, I. J. op. cit., p. 18.

83
Kasher, que significa apto, apropriado ou de acordo com a lei religiosa, derivará Kashrut,
palavra hebraica que se refere às leis dietéticas judaicas. Não há meio termo, um alimento é
kasher (próprio) ou trêfá (impróprio) e, portanto inadequado para consumo. 231

As práticas alimentares estabelecidas pela Kashrut não preocupam-se apenas benefícios físicos,
nem tampouco tem pretensões higiênicas, mas “são destinadas mais ao bem-estar espiritual do
que ao físico.”232 “Os alimentos impuros prejudicam a alma, afetando suas virtudes morais e
espirituais.”233

A maioria das normas da Kashrut são extraídas do Levítico, na Torá. Com relação ao consumo
de carnes, são permitidos apenas os animais que possuem as duas características
simultaneamente: patas fendidas e que são ruminantes, sendo eles: ovelha, boi, cabra e veado.
Qualquer outra carne está proibida. Dos peixes, apenas os que tem nadadeiras e escamas,
qualquer outro animal marinho é proibido. São proibidas todas as aves de rapina ou as que tratam
sua comida como aves de rapina, sendo permitidos apenas: a galinha, o peru, ganso, pato e
pombo. Todos os anfíbios e insetos são proibidos, bem como todas as criaturas que se arrastam
sobre seu ventre.234 Os animais também devem ser abatidos de forma específica (Sehitá) para
que sejam considerados Kasher, detalharemos o procedimentos no item sacrifício animal.

Outra importante e destacada regra da Kashrut encontra-se na proibição do consumo de carne


(fleishig) e leite (milchig) na mesma refeição. Na Torá, por três vezes é mencionado: “não
cozerás o cabrito no leite de sua mãe” (Ex. 23, 19; 34, 26; Deut. 14, 21). 235 Nem mesmo
derivados dos produtos podem ser consumidos ou armazenados juntos. É necessário um intervalo
de três horas para que se consuma um ou outro. Há também a categoria Parve (neutro), estes sim
podem acompanhar carne ou leite. São cereais, vegetais, pães, etc... Desde que não contenham
nenhum traço de carne ou leite. Por convenção, carnes de aves também não podem ser
misturadas a alimentos michig.

Estas são as regras básicas da dieta kasher e devem ser obedecidas dentro e fora de casa.
Restaurantes Judaicos ortodoxos só podem fleishig ou milchig, e nunca os dois. Há também uma

231
DONIN, H. H. op. cit., p. 113.
232
Ibid., p. 114.
233
Ibid., p. 119.
234
Ibid., p. 121-122.
235
Ibid., p. 129.

84
serie de produtos com o selo kasher, indicando a procedência e garantindo os procedimentos
adequados. Nas comunidades judaicas espalhadas pelo mundo encontram-se, além de
restaurantes, estabelecimentos especializados, entretanto, é possível realizar procedimentos de
“kasherização” de alguns alimentos em casa.

3.3 Interdições alimentares

As interdições alimentares referem-se aos tabus e proibições de alimentos ou práticas alimentares


presentes nas religiões.

Pureza e penitência [...] Não há dúvida de que ambas noções reclamam-se mutuamente e
são complementares. Gozar de pureza significa reencontrar-se com Deus, recuperar a
unidade original e o estado prístino de que, supostamente desfrutamos alguma vez in illo
tempore. O único procedimento conhecido para se alcançar tal estado consiste em contar
com a graça e o favor divino, para os quais é necessário contribuir com a vontade e o
esforço humano.236

Não obstante já termos falado num grande número de interdições alimentares no item anterior
Dietas regulares, enumeramos um item específico para interdições alimentares para que
pudéssemos mencionar as interdições que não se relacionam com as dietas regulares e também,
nas religiões onde não existem dietas regulares.

Adventismo

A IASD possui possivelmente uma das dietas mais restritivas. Para os que seguem
rigorosamente os princípios propostos pela reforma alimentar de Ellen White, a
alimentação cotidiana é repleta de interdições, a começar pela carne, em especial a de
porco. Que não é apenas completamente desaconselhável, como também qualquer
produto de origem animal:

236
EZQUIBELA, I.J. op.cit., p. 16.

85
Seja progressiva a reforma alimentar. Sejam as pessoas ensinadas a preparar o
alimento sem uso de leite ou manteiga. Diga -se-lhes que em breve virá o
tempo em que não haverá segurança no uso de ovos, leite, creme ou manteiga,
por motivo de as doenças nos animais estarem aumentando na mesma
proporção do aumento da impiedade entre os homens. Aproxima -se o tempo
em que, por motivo da iniquidade da raça caíd a, toda criação animal gemerá
com as doenças que amaldiçoam nossa Terra. Deus concederá ao Seu povo
habilidade e tato para preparar alimento saudável sem o uso dessas coisas. 237

Há também restrições no uso dos condimentos:

Os condimentos são prejudiciais em sua natureza. A mostarda, a pimenta, as


especiarias, os picles e coisas semelhantes, irritam o estômago e tornam o
sangue febril e impuro [...] As especiarias irritam a princípio as tenras
mucosas do estomago, mas no final destroem a sensibilidade natural dessa
delicada membrana. O sangue torna -se febricitante, despertam-se as
propensões animais, ao passo que as faculdades morais e intelectuais são
enfraquecidas. E tornam-se servas das paixões inferiores. 238

O açúcar também faz parte da lista de alimentos prejudiciais, e, portanto, não


recomendados:

Sento-me com frequência à mesa de irmãos e irmãs, e vejo que eles usam
grande quantidade de leite e açúcar. Isto sobrecarrega o organismo, irrita os
órgãos digestivos e afeta o cérebro. [...] E, segundo a luz que me foi dada, o
açúcar, quando usado abundantemente, é mais prejudicial do que a carne. [...]
Deixai em paz aquelas sobremesas doces que são colocadas sobre a mesa. Não
necessitais delas. Precisais de uma mente clara para pensar segundo a vontade
de Deus. 239

Budismo

Entre os budistas tibetanos não se come peixe e os mesmos permanecem distantes de carnes de
aves. Para eles, cada tipo de carne traria um tipo obscurantismo: o peixe, a agressão, as aves, o
desejo e a carne vermelha, ignorância. Entretanto, é “menos mal” comer carne vermelha, pois

237
Ibid., p. 297.
238
Ibid., p. 289-291.
239
Ibid., p. 329.

86
apenas uma vida teria sido tirada, já que o animal, sendo grande, alimentaria várias pessoas. Com
o peixe, muitos espécimes teriam que ser abatidos para alimentar o mesmo número de peixes. 240

Candomblé

O Candomblé não possui restrições ao consumo de carne, entretanto, possui interdições


alimentares bastante particulares. Algumas são permanentes tais como não comer peixe de pele,
apenas de escamas, ou ainda, não comer carambola, fruta que pertence aos Eguns (mortos)241
outras estão ligadas à correspondência de um filho santo com uma certa divindade e outras ainda,
ligadas a datas específicas, tais como comer certos alimentos na sexta-feira, dia dedicado ao
orixá considerado estar acima de todos os outros, Oxalá.

Quase todos do Candomblé guardam o dia de Oxalá, sendo este o dia de “descanso”. Neste dia
veste-se branco e não se come pimentas, nem alimentos feitos com azeite de dendê, em especial,
os filhos de Oxalá. As regras alimentares no Candomblé são bastante complexas. Por vezes um
filho de santo é proibido de comer alguma das comidas usadas em oferendas aos orixás, alguns
filhos de Oxossi não podem comer abóbora. Em outros casos, ao contrário, não se come aquilo
que o orixá também não tolera, como é o caso de Oxalá com pimentas e dendê.

Ao preparar as comidas de santo, deve-se observar os tabus de cada um deles. Por


exemplo, o azeite de dendê nunca deve ser oferecido a Oxalá; o mel é proibido a Oxossi;
o carneiro não pode se quer entrar em uma casa consagrada a Iansã, etc. Os filhos de
santo devem observar todas as quizilas dos seus orixás e, sendo parte do orixá, também
não podem consumi-las.242

Seja qual for a circunstância, desobedecer, resulta em consequências ruins. Estas proibições são
denominadas quizilas. Cada orixá tem suas quizilas. “Quizila é tudo aquilo que o nosso orixá
243
rejeita, por qualquer motivo peculiar, que por vezes desconhecemos.” Praticantes do
candomblé relatam o aparecimento de processos alérgicos, quando quebradas as regras das
quizilas.
240
MEGUMI, H. op. cit.
241
Ilé Asé Efon Odé Ojú Okan. In: http://www.ileode.com.br. Acesso em 02/04/2014.
242
REIS, A. M. A panela do segredo. São Paulo: Mandarim, 2001, p.300.
243
Ibid.

87
Todos no Candomblé falam em Quizila, mas não há um padrão exato de conduta. Há algumas
variações entre as diversas nações e até mesmo entre os terreiros de uma mesma nação. Na
definição de Manuel Quirino quizila:

É a antipatia supersticiosa que os africanos nutrem por certos alimentos e determinadas


ações. De acordo com as prescrições do ritual, as mulheres ainda observam o seguinte:
umas podem comer abóbora, taioba, peixe de pele, e outras não; a ninguém é permitido
passar uma com uma vela acesa, lanterna, candeeiro ou coisa igual, por trás delas; não
ingerem restos de comida; não bebem álcool... Essas prescrições variam conforme o anjo
da guarda de cada pessoa, e assim umas as observam na íntegra e outras só em parte. 244

Em Iorubá usa-se a palavra èwò para designar aquilo que é proibido. Um odú (mito, enredo) fala
sobre como a morte foi refreada após servirem-lhe comidas que lhe eram proibidas.

A conclusão deste odú é que foram dados à morte todos os alimentos proibidos, o que a
fez acalmar e impedir sua tarefa que estava sendo feita sem qualquer critério, ou seja, a
Morte foi subjugada apenas depois que seus inimigos conseguiram que ela comesse o que
era proibido comer. Verificamos a importância do respeito às coisas proibidas, èwò, cujo
conhecimento só é possível através do sistema de Ifá.245

Diferentemente de outras religiões, mais institucionalizadas, tais como o Judaísmo e o


Islamismo, onde se podem encontrar verdadeiras cartilhas e estatutos sobre como proceder, o
Candomblé transmite oralmente seus preceitos, e ampara-se muitas vezes no jogo de búzios ou
no Ifá (jogo divinatório feito com as sementes do dendezeiro) para conhecer restrições
alimentares individuais.

Catolicismo

O Catolicismo restringe o consumo de carne apenas durante a Quaresma. “Algumas ordens


católicas não servem carne alguma neste período, enquanto muitos dos fiéis observam um ou
mais dias da semana sem carne.” 246 Esta consiste na única interdição alimentar do catolicismo,

244
QUIRINO, M. apud: JUNIOR, V. C. S. O Banquete Sagrado. Notas sobre os “de comer” em terreiros de
Candomblé. Salvador: Atalho, 2009, p. 47.
245
BENISTE, J. op.cit., p. 194.
246
SCHIMDT, A. e FIELDHOUSE, P. op. cit., p. 35.

88
provavelmente porque, desde o seu início, esta religião tenha se mostrado como uma crença para
todos, e tenha sido construída, em boa parte, sobre a base da cultura romana (que absorvia
muitos dos hábitos alimentares de outras culturas), assim, o Catolicismo formou-se com muito
menos interditos. A permissão para matar e comer quaisquer víveres, por exemplo, encontra-se
explicita no Novo Testamento, em Atos 10: 10-15:

10 E, tendo fome, quis comer; e, enquanto lho preparavam, sobreveio-lhe um


arrebatamento de sentidos.

11 E viu o céu aberto, e que descia um vaso, como se fosse um grande lençol atado pelas
quatro pontas, e vindo para a terra.

12 No qual havia de todos os animais quadrúpedes e répteis da terra, e aves do céu.

13 E foi-lhe dita uma voz: Levanta-te, Pedro, mata e come.

14 Mas Pedro disse: De modo nenhum Senhor, porque nunca comi coisa alguma comum
e imunda.

15 E segunda vez lhe disse a voz: Não faças tu comum ao que Deus purificou.

É interessante notar que vigora até hoje a discussão sobre o consumo da carne entre cristãos. A
Bíblia possui passagens que falam da permissão para o consumo da carne, tais como o sonho de
Pedro, também em Gênesis 9:3: “Tudo quanto se move, que é vivente, será para vosso
mantimento; tudo vos tenho dado, como a erva verde.” Da mesma forma que possui passagens
que afirmam o vegetarianismo como prática alimentar adequada; como por exemplo em: Isaías
65:25 “O lobo e o cordeiro se apascentarão juntos, e o leão comerá palha como o boi; e pó será a
comida da serpente. Não farão mal nem dano algum em todo o meu santo monte, diz o Senhor.”

Também o longo tempo de vida das figuras do velho testamento são frequentemente
mencionadas por cristãos vegetarianos do século XIX.

Notou-se que Matusalém viveu por 969 anos e que a expectativa de vida no Velho
Testamento estendia-se por muitas centenas de anos. A expectativa de vida humana
apenas diminuiu para 70 uma vez que a carne foi introduzida na dieta. 247

247
CALVERT, S. J. “Ours is the food that Eden knew”: Themes in the Theology and practice of modern Christian
vegetarians. In: MUERS, R. e GRUMETT, D. Eating and Believing. Londres: T & T Clark, 2008, p. 124. Tradução
do autor.

89
Assim, é possível encontrar católicos, bem como outros cristãos que impõem-se o
vegetarianismo. Devemos lembrar que o Cristianismo recebeu influência de escolas gregas,
algumas delas, vegetarianas, como a de Plutarco.

Hinduísmo

Podemos encontrar interdições não apenas em relação ao que se come, mas também com “com
quem se come”. As diferentes castas na Índia não dividirão a mesma mesa. “Diferentemente do
Judaísmo, onde os tabus criaram solidariedade entre os membros do grupo, no Hinduísmo estes
tabus têm enfatizado a diferença.”248

Islamismo

Os interditos no Islamismo estão relacionados aos alimentos considerados Haram, descritos no


item anterior. Em especial, a ingestão de sangue e produtos derivados, bem como do porco e seus
derivados, na prática, recebem maior destaque.

Judaísmo

Há uma interdição particular ao Judaísmo que, por ser temporária, não está ligada à sua dieta
regular, trata-se da proibição do consumo de quaisquer produtos fermentados durante a Pessah.

17 Guardai, pois a festa dos pães ázimos, porque naquele mesmo dia tirei vossos exércitos
da terra do Egito; pelo que guardareis este dia nas vossas gerações por estatuto perpétuo.

18 No primeiro mês, aos catorze dias do mês, à tarde, comereis pães ázimos até vinte um
do mês a tarde.

19 Por sete dias não se ache nenhum fermento nas vossas casas; porque qualquer um que
comer pão levedado, aquela alma será cortada da congregação de Israel, assim o
estrangeiro como o natural da terra.

248
Ibid., p. 3168.

90
20 Nenhuma coisa levedada comereis; em todas as vossas habitações comereis pães
ázimos.249

Trata-se da absoluta proibição e mesmo posse de qualquer alimento que contenha Hamets.
Hamets é qualquer um dos cinco cereais – trigo, centeio, cevada, aveia e espelta – que tenha
permanecido em contato com água durante, ao menos 18 minutos. Neste caso considera-se que o
cereal tenha iniciado o processo de fermentação.

Esta proibição provém do fato de que, quando os judeus fugiram do Egito, não tiveram tempo de
deixar levedar o pão, conforme mostra a passagem do Êxodo: “E cozeram bolos ázimos da massa
que levaram do Egito, porque não se tinha levedado, porquanto foram lançados do Egito; e não
se puderam deter, nem prepararam a comida.” 250

Outra interdição severa, porém permanente é o consumo de sangue de qualquer animal.


“Nenhum sangue comereis, quer de aves, quer de animais... toda pessoa que comer algum
sangue, será cortada de seu povo (Lev. 7, 26-27 e 17, 10-14).”251

Constitui também uma interdição o consumo de qualquer animal, mesmo que puro, mas que
tenha morrido de morte natural ou que não tenha sido abatido no método Shehitá (este método
será descrito no item 4.7. “Não comerás nenhum animal que morreu por si (Deut. 14, 21)252

Judaísmo e Islamismo são religiões que tem seus interditos alimentares bem definidos baseados
em suas doutrinas ou através dos conceitos Trêfá (oposto ao Kasher) e Haram (oposto ao Halal),
respectivamente. Há muito material informativo sobre tais interdições disponível em livros e
sites. Percebe-se uma grande preocupação em deixar claro o que é proibido.

Em outras religiões, o consumo de carne é também um dos mais comuns interditos alimentares,
conforme vimos no Hinduísmo, Budismo e Adventismo, há também outras religiões não citadas
aqui com restrições à carne: Jainismo, Sikhismo e filosofias espiritualistas, tais como a
Antroposofia.

249
Êxodo, 12:17-20.
250
Ibid., 12:39.
251
DONIN, H. H. op. cit., p. 124.
252
Ibid., p. 123.

91
Uma interdição comum entre Candomblé, Judaísmo e Islamismo, entretanto, é a do consumo de
sangue. As três religiões praticam o sacrifício animal e, no entanto, reservam o sangue aos seus
respectivos deuses e entidades. Esta realidade confronta-se com o Catolicismo, onde o sangue do
animal pode estar presente no prato, juntamente com a carne, mas o próprio sacrifício animal é
uma interdição.

3.4 Banquetes e alimentos como símbolo específico

“A partir da comida que se ingere pode, portanto, carregar consigo uma espécie de carga moral.
Nossos corpos podem ser considerados o resultado, o produto, de nosso caráter que, por sua vez,
é revelado pela maneira como comemos.”253

Trabalharemos no mesmo item os aspectos do banquete e alimentos como símbolo específico,


pois são interdependentes. O que se encontra neste item são mitos que dão origem a festas,
festivais, grandes refeições coletivas, refeições familiares ou entre a comunidade, onde se servem
alimentos que típicos e representativos de tais ocasiões. Dois aspectos reforçam e materializam
estas ocasiões: a comensalidade e a carga simbólica dos alimentos partilhados, respectivamente.

Todos os alimentos adquirem de uma maneira individual ou coletiva uma carga simbólica, mas,
dentro dos sistemas simbólicos religiosos alguns alimentos parecem ocupar posições de
destaque, constituindo verdadeiros pilares de exibições materiais em termos de comunicação
ritual, e mesmo quando não concretamente expostos ou consumidos, constituem semióforos.254

Budismo

No Budismo, herda do hinduísmo alguns de seus mais importantes símbolos alimentares,


encontrados nos Oito Símbolos da Felicidade, nos quais quatro são alimentos:

253
MINTZ, S. op. cit., p. 32.
254
Trata-se de um objeto, imagem, musica, pessoa, etc. que deixou de significar a si próprio, mas que passou a
simbolizar outras idéias. Ex: Ghandi não é apenas um hinduísta, é um símbolo de paz para todo o mundo.

92
Ghi-teang: significa a essência da vaca. É remédio calmante e fortificante retirado do
cálculo biliar do gado ou dos elefantes. Assim como um remédio, é utilizado para curar o
sofrimento físico da prática do Dharma.

A fruta da madeira: Também conhecida como Fruta Bael, Maçã-de-madeira ou Fruta


Bilva, representa o vazio e a dependência da natureza existencial. Possui poderes de cura
e ajuda no tratamento de doenças digestivas.

Sementes de Mostarda: As sementes de Mostarda branca representam a história da


mulher cujo filho morreu. Totalmente transtornada, ela veio à Buda que lhe disse para ir a
cada uma das casas da região e trazer sementes de mostarda de todas as que não tivessem
sofrido uma perda. Quando ela voltou de mãos vazias, ele mostrou que ela não estava
sozinha em sua dor e que a morte é uma parte inevitável da vida.

Iogurte: Algumas vezes chamado coalhada, esse alimento puro e branco é o resultado de
um longo processo que simboliza a pratica do budismo que supera o tempo, durante o
qual as impurezas da mente são removidas. Representa o meio de vida correto, já que
nenhum animal é ferido na produção do iogurte. 255

Candomblé

O Candomblé possui um calendário em homenagem a suas divindades. São banquetes que


combinam comemoração com preceitos religiosos. Nas festas de Candomblé são oferecidas as
comidas dos Orixás aos comensais, embora não seja exatamente a mesma, pois para os Orixás há
regras estritas, eles não toleram certos ingredientes, é comum que as comidas não levem sal ou
açúcar, hábito a que não estamos acostumados. “Em algumas festas, a comida torna-se o centro
em torno da qual cerimônias desenrolam-se e se realizam. Além de não haver festas sem
comidas.”256

Em tais cerimônias há danças, cantos, oferendas das comidas ao(s) Orixá(s) reverenciado(s),
assim como há uma fartura de comida aos filhos da casa e aos outros comensais. É um banquete
partilhado por mortais e divindades: “Dividir o alimento com os deuses é ter a insigne honra de
comer com eles, garantindo, dessa forma, a presença dos orixás em nossas vidas e da refeição em
nossa mesa.”257 A festa-cerimônia, também chamada de “xirê, é o ponto máximo do ato litúrgico
numa casa de candomblé. É a festa, é o culto à fartura, é o momento do nascimento do orixá

255
MALLON, B. Os símbolos místicos: um guia completo para símbolos e sinais mágicos e sagrados. São Paulo:
Larousse, 2009, p. 107-108.
256
JUNIOR, V. C. S. O Banquete Sagrado. Notas sobre os de comer em terreiros de candomblé. Salvador: Atalho,
2009, p. 140.
257
REIS, A. M. op. cit., p. 299.

93
quando este orixá está pronto a ser apresentado ao público.”258Assim, os xirês são abertos ao
público. Entretanto:

Muito mais que relacionada a um sistema nutricional, a comida se articula e se


compreende a partir de um universo maior onde a oralidade constitui um dos meios mais
expressivos de passar seus preceitos, a observação, um método indispensável para sua
manutenção e o comer um dos verbos, que embora conjuguem, reserva-se a poucos,
restringindo-se àqueles que conhecem o “tratamento” entendem o papel e o significado
desta comida como Axé, a força vital e sacrifício indispensável para a conservação da
vida.259

Por isso não há uma dieta regular aos fieis, as únicas interdições estão ligadas às quizilas, citadas
no item interdições alimentares.

A “liturgia alimentar” começa com a Feijoada de Ogum. Ele é o senhor das coisas cortantes. É
patrono dos ferreiros e lembrado como pai da metalúrgica [...] No terreiro é sob a forma de
desbravador e guerreiro que Ogum vai ser lembrado, empunhando sempre uma espada.” 260
Assim, ele é rogado para abertura dos caminhos e proteção para o ano que se inicia. No xirê de
Ogum a comida símbolo é a feijoada que, segundo a interpretação de Eurico Ramos, por Ogum
ser o orixá do ferro, “todas as comidas deste orixá são ricas no elemento ferro: o feijão, o
inhame, o azeite de dendê, etc.”261

Muito concorrida é também a festa do Amalá de Xangô. Xangô é o orixá rei, teria sido o terceiro
rei da dinastia de Oyó. “Conhecido com juiz e princípio da justiça, Xangô, que odeia mentira,
pune com rigor e violência seus inimigos, na sua dança, relembra sua majestade, mas também
sua criatividade diante do fogo.”262 Os elementos associados a Xangô são as pedras, o raio, que
teria dado origem ao fogo e seu machado duplo, que cortando para os dois lados, simboliza a
imparcialidade da justiça. No seu xirê serve-se o prato chamado amalá, que de acordo com o
terreiro sofre variações, mas todos levam caruru, como mais alguma coisa. “Pasta que se faz de
inhame, de milho, farinha de mandioca ou arroz, sobre a qual se deita os quiabos cortados e

258
RAMOS, E. Revendo o Candomblé. Respostas às perguntas mais frequentes sobre a religião. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2011, p. 38.
259
JUNIOR, V.C.S., op. cit., p. 90.
260
Ibid., p.125.
261
RAMOS, E. op. cit., p.37.
262
JUNIOR, V.C.S., op. cit., p.135.

94
temperados com camarão, cebola, azeite-de-dendê e às vezes pimenta, o chamado caruru.”263
“Xangô é o ícone da masculinidade e por isso recebe o quiabo, que tem uma representação
claramente fálica.”264

O Olubajé é um banquete que celebra o orixá Obaluayê (o moço) ou Omulu (o velho), senhor da
vida e da morte que conhece os dois mundos e é dono da terra, portanto uma ligação com os
ancestrais; conhecido também como o médico dos pobres, pois era a ele a quem os escravos
pediam quando estavam doentes. No banquete em sua homenagem, entretanto, há comida de
todos os orixás porque segundo o mito:

Como este orixá nasceu doente, todos os demais lhe deram um pouco de sua comida para
seu sustento, surgindo daí esse grande banquete. Outra explicação está relacionada com o
fato de Obaluayê ser o dono da terra e graças a isso, todos os grãos lhe pertencem. 265

No seu dia todas as comidas são servidas em panelas de barro e sobre uma esteira de palha, no
chão, já que ele é o dono da terra. Sua comida favorita e sempre distribuída às pessoas,
entretanto, é a pipoca, também chamada de doburu, deburu ou flor de Obaluayê.

Toda segunda feira é consagrada a ele, quando é feito o tabuleiro do velho,tabuleiros com
pipocas enfeitadas de coco, sobre a mais branca toalha, diante do qual se entoam rezas e
cantigas que lembram passagens da vida deste orixá. Em seguida o doburu, as pipocas,
também chamadas flores do velho, são distribuídas a todos os presentes que a recebem
com as duas mãos, comem ou levam para casa a fim de ministra-las como uma hóstia a
seus doentes ou passarem no corpo e lança-las num mato.266

O Ipeté de Oxum designa o nome da festa realizada em homenagem a Oxum, a grande mãe das
águas doces. Ela está ligada à fertilidade, à vida uterina e à prosperidade.

A festa realizada para Oxum visa exaltar o poder de gerar, presente em todas as mulheres.
É um momento onde este orixá, exibe a todos, através de sua comida, este princípio.
Dentro do balaio, o próprio ventre, representado por tudo que é redondo, a panela,
símbolo por excelência de Oxum.267

263
Ibid., p.155.
264
RAMOS, E. op. cit., p. 38.
265
JUNIOR, V.C.S., op. cit., p. 164.
266
Ibid., p. 163.
267
Ibid., p. 170.

95
O principal prato ligado a Oxum é o Omolucum. Este prato, assim como outras comidas de
Oxum “geralmente levam ovo, que é o símbolo do nascimento, da fertilidade, da vida.” O Ipeté
também é um prato de Oxum, mas não é visto pelo público ele, como tantos outros, é servido
apenas ao orixá, de forma secreta. Muitas pessoas não sabem que o nome da festa tem origem no
prato.

Como a prosperidade também está associada a este orixá, muitas das comidas, além das roupas e
da decoração são dourados, ou amarelo intenso (variação do dourado), como o próprio prato
Ipeté. O Ipeté prato consiste em inhame bem cozido, amassado como um purê, temperado com
camarão seco, cebola e dendê. Outra comida associada a Oxum é o famoso vatapá, prato popular
da cozinha tradicional baiana:

Diz-se desta que é uma “comida dedicada” e não oferecida diretamente como as demais,
por tratar-se de uma “guarnição” de Oxum, na cozinha dos orixás. É uma comida, que
classificada, aparece relacionada à Oxum, mas que dificilmente entra no peji [quarto de
santo] ao lado das outras.268

Talvez a festa mais conhecida do candomblé seja o Caruru de Ibeji. Trata-se da festa dos
gêmeos, das crianças. Esta festa surge do candomblé, mas é celebrada fora dele também,
especialmente na Bahia. Esta festa mistura-se com os símbolos e ritos de Cosme e Damião.

Reúnem os fieis do culto, para a festividade, um grande número de crianças, organizam


com elas um candomblé-miniatura, há farta distribuição de guloseimas e um repasto
especial de comidas africanas “da preferência do santo” 269

Sendo crianças, os Ibeji estão ligados a Oxum, “encarregada do útero, é a mãe de Ibeji, como é
mãe adotiva de todas as crianças até certa idade.” 270

Ibeji é o símbolo e o protetor de todas as crianças que ocupam lugar essencial na sociedade
Yorubá. “Elas são vistas como sinônimo de benção e continuidade, garantida graças à presença

268
Ibid., p. 169.
269
RIBEIRO, R. Antropologia da religião e outros estudos. Recife: Editora Massangana, 1982, p. 139.
270
JUNIOR, V. C. S., op. cit., p. 171.

96
dos ancestrais.”271 Cada criança nascida é a certeza de que os que morrem permanecem sempre
vivos.

Tanto a festa quanto o prato típico desta ocasião levam o mesmo nome. O caruru, prato à base de
quiabos é servido com uma gama de outros pratos associados a outros orixás, pois todos cuidam
das crianças.

Preparada a comida, a parte de Ibeji é retirada e dividida em três pequeninos pratos de


barro. Cada pratinho deve conter tudo que se preparou a fim de ser levado ao altar dos
meninos. Depois é hora de preparar a mesa das crianças que, neste dia, são as primeiras
que comem. É como se houvesse uma inversão na hierarquia onde comum é se comer por
ordem de senioridade. 272

Há também farta distribuição de comidas e doces a todos os filhos da casa, adultos ou crianças,
que os comem ou os levam para casa como um objeto mágico que os auxiliará em seus pedidos a
Ibeji.

De todos os orixás femininos, Iansã, também conhecida como Oiá (e suas outras qualidades) é a
única que não está associada à água, ao contrário, ela está associada ao fogo, aos raios e ao
vento. É a orixá guerreira, frequentemente sincretizada com Santa Bárbara, santa católica que
como Iansã, também traz consigo uma espada.

Sua comida mais emblemática é o acarajé, que também nomeando sua festa, “do yorubá akará é
bolinho de feijão. Jé é o verbo comer.” 273 Significando bolinho de feijão para comer, uma vez
que o nome real do bolinho que vai em oferendas é apenas akará, jé designa aquele para as
pessoas comerem. Também,

se prestarmos atenção em termos químicos, a mistura de feijão fradinho pilado, cebola e


água é um agente extremamente oxidante, ou seja, catalisador, que “chama para si” o
oxigênio, ou seja, o próprio orixá. Por essa razão, a massa do acarajé incha quando
batida, fica aerada, cheia de ar.274

No dia de sua festa, Iansã mesma divide suas comida preferida que chega ao barracão do
terreiro dentro de panelas de cobre ou cestos ricamente ornados com laços brancos [...] a

271
Ibid., p. 172.
272
Ibid., p. 173.
273
Ibid., p. 180.
274
RAMOS, E. op. cit., p. 37.

97
comida é, assim dividida durante a cantiga que diz ser Iansã o próprio akará que está
sendo dividido para as pessoas: Oiá dê, Oiá iô, akara ló bi ajaka ló!275

Outro simbolismo associado a Iansã são as próprias baianas do acarajé, tão presentes nas ruas de
Salvador.

Pela tradição que se afirmou ao longo de séculos quem faz o acarajé é a mulher, a filha de
santo quando para uma obrigação, ou a baiana de acarajé quando para vender na rua [...]
Ao estabelecerem elos entre os terreiros de candomblé e os espaços da cidade, as baianas
de acarajé tornam públicos cardápios sagrados. 276

Muitas delas recebem o oficio de baianas do acarajé como missão de vida determinada no jogo
de búzios. A prática do comércio ambulante por mulheres já era tradicional na África e no Brasil
passam a ser ao final do período escravocrata, quando negras recém libertas passam a vender
seus quitutes nas ruas para o próprio sustento, são as chamadas negras de ganho. 277
Normalmente as vendedoras ambulantes de acarajé são filhas de Iansã.

Um ciclo de celebrações de três domingos, conhecidos como “Águas de Oxalá”, encerram o ano
no Candomblé. Não é por acaso, afinal ele é o orixá da criação e também o semióforo da paz. É
ele quem dá a ultima palavra, por isso encerra o ano. São comidas emblemáticas de Oxalá o
“ebô, comida feita à base de milho branco bem cozido, observando o preceito de não fazer uso
nem de sal nem de açúcar.” 278 Ou ainda, “o inhame, seja cortado, servido como farofa, ou
simplesmente amassado é iguaria por excelência do orixá da criação.” O inhame está mais ligado
ao Oxalá moço (uma das várias qualidades de Oxalá), bem como à colheita do inhame novo,
representando as primeiras colheitas de inhame.

Estas são as principais festas do candomblé, mas existem ainda outros orixás com festas menores
e suas respectivas comidas, as quais abordaremos no item Oferendas de alimentos. Gostaríamos,
entretanto, de destacar como grande alimento-símbolo do candomblé o azeite de dendê, este que

275
JUNIOR, V. C. S., op. cit., p. 180.
276
LIMA, R. G. Projetos Celebrações e Saberes da Cultura Popular. Dossiê IPHAN do Ofício das Baianas do
Acarajé. Ministério da Cultura, 2004, p. 16-17.
277
Ibid., p. 15.
278
Ibid.. p. 141.

98
parece ser comprável ao leite no hinduísmo (como veremos a seguir) é usado em quase todas as
comidas sagradas e quando não, há uma boa razão:

O consumo ou não de dendê pelos orixás é marca identitária, caracteriza-se pelo uso de
cores, roupas, metais, objetos sagrados, assentamentos comidas e adornos corporais. Para
o povo de santo, o dendê atribui a esses elementos característica ideológica que se reflete
na ética, na hierarquia, no comportamento em diversas posturas. É um tabu alimentar
entre os filhos dos orixás brancos, também chamados orixás funfun, em especial,
Oxalá.279

Além de ser uma marca da cozinha do candomblé devido a cor e sabor que confere aos pratos e
de ser um dos mais fortes laços com a África, já que o produto veio de lá com os escravos, o
dendê é tido, no culto, como uma das mais fundamentais substâncias. Tal é sua importância, que
é considerado um tipo de sangue, substituindo, por vezes, o sangue animal; “o epo [azeite de
dendê], ‘sangue vermelho’, àse [axé] de realização, representa tanto o poder de gestação das Ìyá-
àgbà [grandes mães] como o poder dinâmico dos descendentes, particularmente o de Èsù
[exu].”280

Outro alimento, menos conhecido, mas de fundamental importância no rituais do candomblé é o


Obí, a noz de cola: “É um hábito geral oferecimento do obí às visitas; é um sinal de cortesia,
amizade e compreensão, e, uma vez repartido, constitui um pacto de lealdade e comunhão.”281
“Nos rituais todas as oferendas começam pela utilização do obí, inicialmente, estabelecendo uma
conversação através de uma modalidade de jogo que se utiliza dos quatro gomos do obí,
denominados aláwé mérin.”282

Catolicismo

No Catolicismo, se faltam dietas regulares e tabus alimentares, abundam símbolos. Basta ver
algumas passagens da Bíblia para perceber quantas das parábolas contém alimentos, ou cenas de
refeições representando diversos conteúdos espirituais.

279
LIMA, R. G. op. cit., p. 30.
280
SANTOS, J. E. Os Nagô e a morte: Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petropolis: Vozes, 1986, p. 189.
281
BENISTE, J. Òrun – Àyié: O encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento Nagô-Yorubá entre o céu e
a terra. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 310.
282
Ibid., p. 146.

99
Os milagres de Cristo entre outros, referem-se à multiplicação dos alimentos, seu próprio
corpo e sangue consubstanciados no pão e no vinho da eucaristia repete o rito do
sacrifício de uma forma sublimada. A santa ceia assume um papel central na
representação de uma aliança da humanidade com a divindade fundada na
comensalidade. As refeições de Cristo na casa de Simão, nas bodas de Caná e na mesa
dos peregrinos de Emaús são episódios em que a alimentação serve de parábola para a
mensagem cristã.283

Uma vez que comer é uma experiência conhecida de todas as pessoas, torna-se uma metáfora de
grande alcance. “Esta experiência [da comida] básica e laica (comum a todos) da vida humana, é
onde melhor nos comunicamos com Deus, onde melhor o conhecemos e onde melhor o
experimentamos.”284 A própria história humana com Deus, no Catolicismo, começa com a falta
do homem ao comer o único fruto proibido do Paraíso, e mais tarde, após muitas passagens
envolvendo alimentos, a redenção do homem será novamente feita através da boca, com a
incorporação de Cristo através do pão e do vinho; que juntamente com o azeite comporão a
tríade de alimentos-símbolo mais importante do Cristianismo.

O pão, o vinho é o óleo [azeite de oliva] – que, de certo modo, simbolizam o modelo
mediterrâneo – tornam-se sagrados pela liturgia cristã. São instrumentos indispensáveis
para o trabalho dos pregadores da nova fé. Os livros hagiográficos da alta Idade Média
apresentam bispos e abades semeando trigo e plantando a vinha em volta das igrejas e
dos mosteiros recém fundados. 285

Na antiguidade, temos também no peixe um importante símbolo cristão. Numa época em que o
consumo de carne era regulado pelos sacrifícios aos deuses pagãos, comer peixe significava uma
alternativa conveniente quando se desejava evitar este consumo. Além disso,

a palavra grega para peixe, ichthys, era um anacrônimo para as primeiras letras da
sentença: Jesus Cristo filho do Deus Salvador.[...] no peixe, as iniciais da declaração de
fé tornaram-se uma palavra, a palavra um signo, o signo uma imagem que remete a textos
inteiros, dando origem a uma gama de interpretações alegóricas. 286

283
CANEIRO, H. op. cit. p. 118.
284
CASTILLO, J. M. Jesus y la comida. Madri : Editorial Trota, S.A., 2009, p. 221. Tradução do autor.
285
MONTANARI, M. Romanos, bárbaros, cristãos: na aurora da cultura alimentar europeia. In: FLANDRIN, J-L.
e MONTANARI, M. op. cit., p. 280.
286
NORTHCOTT, M. S. Eucharistic eating, and Why many early Christians preferred fish. In: GRUMMET, D. e
MUERS, M. Eating and believing. Interdisciplinary perspectives on vegetarianism and theology. London: T&T
Clark, 2008, pp. 242-243. Tradução do autor.

100
Um produto que também caracterizou os católicos, ainda que de forma menos perceptível, aliar-
se-ia a esta tríade alimentar simbólica do catolicismo: o porco. No Oriente Médio e na Europa
medieval somente os católicos comeriam o porco.

O porco, cuja importância é fundamental para a alimentação, ocupa na Europa cristã um


papel simbólico totalizante e funciona como um verdadeiro traço distintivo, sobretudo em
relação ao mundo islâmico (para judeus, na verdade, a recusa da carne de porco não passa
de um interdito entre tantos outros). O outro motivo fundamental de oposição é o vinho,
uma bebida de capital importância nas mesas cristas, mas excluída ideologicamente –
embora nem sempre de fato – da mesa muçulmana. [...] até o pão – alimento básico tanto
no mundo islâmico como no mundo cristão – assume na Europa um caráter sagrado
inédito e torna-se de alguma forma um valor típico da alimentação cristã. Assim, a dupla
pão-vinho, que constituía o sinal distintivo da cultura mediterrânea, tende a definir, na
Idade Média – com a carne, em particular a de porco – o espaço alimentar [para não dizer
o sistema culinário] da Europa continental cristã.287

Outro símbolo remanescente das práticas alimentares da Idade Média encontra-se no Bacalhau:

A doutrina requeria que as pessoas se abstivessem de comer carne às sextas feiras, em


memória do dia em cujo Jesus morreu. Peixe era necessário para o aporte de proteína
nestes dias. Bacalhau do Atlântico Norte, curado e salgado na Escandinávia e no
Mediterrâneo tornaram-se a carne substitutiva até mesmo em países onde outros peixes
eram abundantes. Desde 1966, Católicos foram liberados da abstinência de carne às
sextas, embora muitos ainda continuem. 288

O Bacalhau tem estado especialmente associado à Páscoa, consumido na Sexta-feira da Paixão


como substituto da carne vermelha, proibida neste dia. O bacalhau era uma alternativa, mas hoje
pela tradição tornou-se um prato especial, típico. Outro símbolo de Páscoa é o cordeiro, já que
Cristo é o cordeiro sacrificado de Deus em nome da humanidade. No domingo, no Oriente
católico é comum celebrar-se com pratos à base de cordeiro, especialmente no oriente médio e
alguns locais da Europa. Também neste dia, os doces apresentam-se para, junto com a carne
vermelha, acabar de caracterizar o dia festivo.

O mais importante banquete do Catolicismo, entretanto, o Natal, apresenta-se como a maior festa
do Catolicismo. Na maioria das casas católicas do mundo a celebração inicia-se no dia 24 de

287
MONTANARI, M. Modelos alimentares e identidades culturais. In: FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. op.
cit., p. 314-315.
288
SCHIMDT, A. e FIELDHOUSE, P. op. cit., p. 36.

101
dezembro. Nesta noite, que comemora o nascimento de Cristo, trocam-se presentes e há grande
fartura. Aperitivos, entradas, carnes, diversos acompanhamentos, doces, frutas e bebidas
alcoólicas que variam de acordo com os sistemas alimentares e culinários nos quais estão
inseridos.

Como um símbolo negativo, de forma laica, a maçã, tem sido nominada como sendo o fruto
proibido do pecado original, embora não se tenha nenhum registro bíblico da maçã nesta ocasião,
é possível que “a escolha da tradução pode ter sido influenciada pela coincidência em latim das
duas formas da palavra malum, uma significa ‘mau, ruim’ e a outra, ‘maçã’.” 289 O símbolo
negativo, entretanto, não teve força suficiente para que, na prática, católicos deixassem de comê-
la.

Hinduísmo

O hinduísmo é composto de um grande número de festivais religiosos, aproximadamente 525,


variando em importância segundo as regiões. Nem todos os festivais são celebrados em todas as
regiões e, nem da mesma maneira. Elegemos, portanto, alguns dos mais populares.

O Pongal é um festival realizado em janeiro e dura três dias. É o mais expressivo festival de
colheita do sul da Índia. Um puja (ritual) é realizado no primeiro dia do Pongal. Fazendeiros
adoram ao sol e à terra ungindo suas pás e foices com pasta de sândalo. O arroz novo é cozido
logo no inicio do dia. Juntamente com ele, sementes de gergelim, palma, grão de bico, nozes
moídas e coco seco são cozidos em uma panela de barro cheia de leite. Tudo é fervido até que o
leite espirre, o prato é nomeado Pongal. Uma porção é oferecida a Ganesha, e o restante é
consumido pela família como uma comida sagrada. No segundo dia, Surya Pongal, o deus Surya
é reverenciado. Cozinha-se arroz no leite, quando o leite espirra-se gritam: pongal! pongal! No
terceiro dia, Mattu Pongal, dia em que Shiva amaldiçoou Basava, a homenagem é feita através

289
JACKSON, E. Alimento e Transformação: Imagens e simbolismo da alimentação. São Paulo: Paulus, 1999, p. 51

102
da adoração da vaca. Banham-se as vacas e pulem-se pintam e enfeitam seus chifres e dão-lhes
pongal para comer.290

O Mahashivaratri é um festival que ocorre em fevereiro ou março, de acordo com o calendário


hindu. Dedicado a Shiva, ele apresenta-se como menos festivo e mais devocional.

Os devotos de Shiva observam o festival Shivaratri através dos rituais prescritos, com
sinceridade e devoção. Durante o dia abstêm-se da comida e interrompem o jejum apenas
na manhã seguinte [...] Devotos acreditam que a adoração de Lord Shiva através do ritual
no auspicioso dia de Shivaratri absolve seus pecados passados e os abençoa com Moksha
[princípio que liberta do ciclo de reencarnações] 291

Os rituais são feitos de acordo com as prescrições do Shiva Purana (textos sagrados de Shiva) a
cada três horas neste dia. Banha-se o Shivalingam (peça de forma fálica que representa Shiva)
com leite, iogurte, mel, pasta de sândalo e água de rosas. Depois do banho pasta de vermelhão
(feita a partir do pó do mineral cinabre) é aplicada sobre o Shivalingam, colocam-se também
folhas da fruta bilva (também conhecida como maçã-de-madeira ou bael). 292 São ainda feitas
oferendas de comidas a Shiva, compostas de frutas da estação, vegetais de raiz e coco. Os
devotos que permaneceram em jejum alimentam-se do Prasada (oferenda de alimentos às
divindades hinduístas). O tipo de jejum de Shiva é o Vrat (veja item jejum), logo, há inúmeras
receitas vrat consumidas neste dia, tais como Shivaratri Raita, Kaju Burfi, Thandai, Aloo Tikki,
entre outras.293

Holi é conhecido como o festival das cores, segundo em importância, ocorre na época da
primavera indiana (março). Celebra a derrota da bruxa, devoradora de crianças, Holika, também
homenageia ao amor imortal de Krishna e Radha. Pessoas brincam nas ruas jogando pós
coloridos umas nas outras. São servidas muitas iguarias neste dia, entre elas: puranpolis (pães
recheados com ervilhas), malpuas (bolinhos doces fritos) e gunjiya (rolinhos fritos recheados de
amêndoas, coco seco e uvas passas).294

290
EPrathana. www.eprarthana.com. Acesso em: 06/04/2014. Tradução do autor.
291
Mahashivaratri. Society for Confluence of Festival in India SCFI. www.mahashivratri.com: Acesso em
07/04/2014. Tradução do autor.
292
Ibid.
293
Ibid.
294
SCHMIDT, A. e FIELDHOUSE, P. op. cit., p. 108.

103
O Janmashtami ocorre em agosto e celebra o nascimento de Krishna. É um dia que se inicia com
jejum e termina em alegres celebrações. Acredita-se que Krishna aprecia muito leite e doces.
Dois pratos desta ocasião são o Badam Phirni (creme de leite e amêndoas) e o Gajjar Halwa
(doce de cenoura).295

Outro festival com a presença de muitos doces é o Ganesha Chaturti, em homenagem a


Ganesha, celebrando-se seu nascimento. Fazem-se procissões carregando imagens do deus296e
trocam doces. Um doce muito apreciado neste dia é o Modak, bolinhos de farinha de arroz com
recheio de coco e frutas cristalizadas.

O Navaratri celebra as nove noites em homenagem às deusas mãe em suas várias formas. As
primeiras três noites dedicam-se à deusa Durga, a deusa guerreira; as próximas três noites são
dedicadas a Lakshmi, deusa da prosperidade e da fortuna e, os últimos três homenageiam
Sarawasti, deusa da sabedoria. Doces e presentes são trocados. Em muitas localidades, tais como
o Punjab inicia-se o período com jejuns.

Diwali é o maior e mais antigo de todos os festivais. É o inicio do ano novo, sendo conhecido
como o festival das luzes. O mais importante festival indiano é mencionado no Ramayana e
celebrado à noite, momento em que acende-se lanternas, veste-se roupas novas e troca-se muitos
doces. Compara-se Diwali ao Natal no Ocidente. As casas são limpas, pintadas e decoradas
esperando a entrada da deusa Laksmi, que trará prosperidade.297

Em Diwali a comida tem destaque devido ao caráter festivo, há enormes refeições coletivas. No
Diwali realizado em 02/11/2010 em Gujarat, foram preparados cerca de 5600 itens, dentro de 36
categorias, em 280 cozinhas por cerca de 1600 voluntários. 298 Neste período também prestam-se
homenagens a Annam Brahma (outra face de Brahma) que é considerado a própria comida. 299
Enquanto Vishnu é a deidade que controla a produção, digestão e utilização da comida.300

De forma geral, as comidas mais comuns servidas nos festivais acima são docinhos pequenos,
geralmente enroladinhos (como brigadeiros) ou cortados em quadradinhos ou losangos tais como

295
Ibid., p. 124.
296
Vahlehvah.Inspire to cook, inspire to taste! www.vahrehvah.com. Acesso em 06/04/2014. Tradução do autor.
297
EPrarthana. op. cit.
298
Art of Living. www.artofliving.org.Acesso em 06/04/2014. Tradução do autor.
299
Hindujagruti. www.hindujagruti.org. Acesso em 06/04/2014. Tradução do autor.
300
Ibid.

104
Kaju Barfi (Toffee de castanha de caju), Besan Ladoo (bolinhos doces de farinha de grão de bico
e nozes), Motichoor Ladoo (docinhos de arroz e cardamomo), Gulab Jamon (bolinhos de leite
em pó fritos e servidos em calda de rosas), entre outros. Há uma infinidade de incontáveis
docinhos para estas ocasiões, “os Ladoos, termo genérico para doces em forma de bolinhas.”301
Eles variam segundo sistemas culinários locais e não possuem um simbolismo atrelado a seus
ingredientes ou às suas formas.

Os docinhos têm papel nestas celebrações, bem como nas sextas-feiras, dia das deusas mãe:
Lakshmi, Durga, Sarawasti, Annapuraneshvari, Santhosi Ma, quando são distribuídos.302

Além dos doces, o leite tem papel importante; dada a importância da vaca, os produtos dela
extraídos são considerados sagrados. Fala-se nos cinco produtos da vaca: leite, ghee (manteiga
clarificada), coalhadas ou iogurtes, urina e estrume.

Islamismo

No Islamismo, as refeições coletivas conhecidas como Iftar (primeira refeição após o jejum) são
verdadeiros banquetes realizados no mês de Ramadã. Aquilo que não se comeu durante todo o
dia parece ser compensado nas refeições noturnas. Tais refeições certamente possuem um valor
maior do que o restante das refeições do ano, dado seu caráter de interrupção do “castigo” (no
sentido Konrad Lorenz)

Id al-Fitr, a “festa de ruptura do jejum”, no dia 1 de Shawwal, [mês seguinte ao Ramadã]


costumava ser a menos importante [...], mas é tão grande o júbilo que os muçulmanos
sentem ao finalizar a dureza do Ramadã, que agora se celebra com maior regozijo e
euforia do que qualquer outra festa. Id significa “festividade” ou “tempo de felicidade”
em árabe.303

301
SCHIMDT, A. e FIELDHOUSE, P. op. cit., p. 140.
302
London Sri Murugan. www.londonsrimurugan.org. Acesso em: 06/04/2014. Tradução do autor.
303
ROBINSON, F. O mundo islâmico: o esplendor de uma fé. Barcelona: Printer Indústria Gráfica, 2007, p. 191.

105
Entre os primeiros pratos tradicionais do Iftar, está a Ramadaniyya, uma mistura de pasta de
damascos com outras frutas, que apesar de sobremesa, é servida logo no inicio. 304

Outros pratos comuns para quebra do jejum e abertura do Iftar são as sopas; que variam
regionalmente, segundo os diferentes sistemas alimentares e culinários. Entretanto a sopa parece
ser um padrão neste momento. “Hoje, em quase todos os lugares, o radio e a TV tocam um
trompete anunciando ‘o sinal para a primeira colheirada.’” 305

Nos países norte africanos a harira é a sopa do Ramadã:

trata-se de uma combinação de caldo de cordeiro, cordeiro, lentilhas, grão de bico,


tomates, cebola, alho, ervas frescas e condimentos [...] A harira tem de ser servida bem
quente. Cada dona-de-casa tem sua combinação especial de ingredientes para esta
sopa.306

Na Turquia, pertencente a outro sistema alimentar, a sopa do Ramadã é a Ishkembe Corbasi; uma
sopa de tripa de cordeiro, bem condimentada ou guarnecida com uma mistura especial de vinagre
de vinho branco e dente de alho, sal grosso e ácidos picles. Esta sopa é servida com um pão
especial para o Ramadã, chamado Ramazan pide, cujos pedaços são mergulhados na sopa.307

Note-se que esta receita leva vinagre de vinho branco, produto considerado Mashbooh,
demonstrando no Islamismo turco uma maior abertura com referência à doutrina islâmica. Lá, as
mulheres também não são obrigadas a usarem burcas.

No Iran, o jejum é quebrado com uma sopa de leite com arroz, ou farinha de arroz ou arroz de
açafrão. Ou em vez da sopa, alguns iranianos também quebram o jejum com doces e tâmaras.

Outra grande ocasião no Islamismo marcada por banquetes e alimentos símbolos é o Id aL-Adha
(festa do sacrifício). Em memória do sacrifício de seu filho Ismael feito a deus, por Abraão. Deus
teria impedido Abraão no momento crucial, poupando a vida de Ismael. A festa toma lugar
durante o período de peregrinações a Meca, durante o 10º. e o 12º. dias do mês de Dhu l-Hijja,
do calendário Islâmico. Um animal é sacrificado segundo o poder econômico da família: vaca,

304
HEINE, P. Food culture in the Near East, Middle East and North Africa. Westport: Greenwood Press, 2004, p.
141.
305
Ibid., p. 142.
306
Ibid.
307
Ibid, p. 143.

106
camelo, cabra, ovelha, ou galinha. 308 O animal sacrificado é consumido em seguida ao sacrifício.
As partes com carne são grelhadas, outras são cozidas. Há receitas especiais para este dia. 309

Judaísmo

Pode-se dizer que em termos de alimentos-símbolo e banquetes religiosos, o Judaísmo é um


“prato cheio”; e, não são estes usados apenas de forma figurativa. Dos interditos às celebrações
litúrgicas, os alimentos têm um papel bastante evidente de materializar as proposições do
Judaísmo. Uma das proposições mais evidentes representadas na alimentação é a da separação:

A raiz hebraica de K-d-sh, que usualmente é traduzida como Santo, baseia-se na ideia de
separação. Ronald Knox, sabendo da dificuldade de traduzir literalmente K-d-sh para
Santo, utiliza em sua versão do velho testamento ‘posto à parte’ [...] “Eu sou o Senhor
vosso Deus, que vos salvou da terra do Egito; Eu sou posto à parte e vós precisais ser
310
postos à parte como Eu. (Levítico XI, 45)”

Esta ideia de separação, segundo Douglas é uma forma de manter-se puro tal qual seu Deus,
evitando a poluição existente no restante do mundo. Também Jean Soler fala da alimentação
como forma de isolamento:

É por isso que os israelitas não devem partilhar refeições com os goyim311. A alimentação
prescrita serve de isolamento. A proibição dos alimentos “impuros” exerce o mesmo
papel dos casamentos “mistos”, entre hebreus e estrangeiros (Deuteronômio 7, 3) [assim
como] um animal que oscila entre duas categorias, que, por exemplo, confunde as
fronteiras entre os animais do ar e os da água [tais como anfíbios], não podem ser
consumidos. Os animais foram criados cada um segundo sua espécie. Os que pertencem a
duas espécies diferentes têm a marca de uma intervenção do Mal na Criação.312

O próprio conjunto da alimentação judaica é por si só uma representação e um reforço desta


proposição, já que sua dieta oferece muitas barreiras ao convívio com outras culturas e destaca-
se sobremaneira das dietas de outros povos. Esta uma visão de quem está “de fora”, mas há ainda

308
EZQUIBELA, I. J. op. cit., p. 20.
309
Ibid., 145.
310
Ibid., p. 21.
311
Não judeu, ou judeu ignorante da religião. In: DONIN, H. H. op. cit, p. 89.
312
SOLER, J. As razões da Bíblia: regras alimentares hebraicas. In: FLANDRIN, J. L. e MONTANARI, M.
História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 85 e 91.

107
uma gama de alimentos eleitos como símbolos pelos próprios judeus; praticamente todas as
festividades judaicas são marcadas por alimentos que simbolizam passagens importantes da
história do povo hebreu. O Judaísmo apresenta um verdadeiro “calendário alimentar”.

O vinho, por exemplo, “é o símbolo tradicional de alegria de uma ocasião festiva.” 313 Ele está
presente nas ocasiões de comemoração, bem como em todos os Shabats, onde se faz a
“santificação” (kidush) sobre ele.

“O chefe da casa recita o Kidush segurando na mão um cálice cheio de vinho. [...] Quem não tem
vinho, faz o Kidush sobre dois pães inteiros de Shabat [Challah]. Neste caso, a benção sobre o
pão substitui a sobre o vinho.”314

Percebemos novamente a presença do dueto pão-vinho, neste caso porém, de forma concreta. O
pão, neste caso, é muito particular à cultura judaica e ao seu sistema culinário: trata-se da
Challah, o pão que representa o maná. “As duas Halot 315 precisam ser inteiras. Elas são
conhecidas como ‘Lehem Mishné’ (pão duplo), em lembrança da porção dupla de Maná.” 316

4 Então disse o Senhor a Moisés: Eis que vos farei chover pão dos céus, e o povo sairá e
colherá cada dia a porção para cada dia, para que eu veja se anda em minha lei ou não.

5 E acontecerá, ao sexto dia, que prepararão o que colherem; e será o dobro do que
colhem a cada dia.317

No Shabat “corta-se a Halá em pedaços, que são distribuídos entre os convivas.” 318 Este é um
dos alimentos-símbolo mais importantes do Judaísmo, embora “a Challah possa, pelo regime
antigo ser feito de trigo, cevada, milho, espelta ou aveia” 319, hoje é feita de trigo, considerado “a
farinha dos ricos”320 e sua receita é virtualmente a mesma em todo o mundo.

313
DONIN, H. H. op. cit., p. 93.
314
Ibid.
315
O som desta palavra escrita a partir do hebraico dá origem a grafias diversas: Halot, Chalot, Halá, Halah,
Challah.
316
Ibid., p. 96.
317
Êxodo 16: 4-5.
318
DONIN, H. H. op. cit., p. 96.
319
SHOESTECK, P. A Lexicon of Jewish cooking. A collection of folklore, foodlore, history, customs and recipes.
Chicago: Contemporary Books Inc., 1979, p. 38. Tradução do autor.
320
Ibid.

108
Outro pão de suma importância no sistema culinário judaico, pelo qual também se materializa
proposições é o pão Ázimo ou Matzah.321 Pela interdição de comidas fermentadas durante a
Pessah o pão Ázimo acaba por ser um de seus principais alimentos. “E guardai a (festa) dos pães
ázimos... guardai este dia nas vossas gerações, como estatuto perpétuo (Ex. 12,17)”322

E o que é Matsá? Matsá é uma bolacha que não fermentou, feita de água e farinha de um
dos cinco cereais – trigo, centeio, cevada, aveia e espelta. Esses cereais precisam ser
supervisionados cuidadosamente, para se evita contato prematuro com á água ou qualquer
agente de fermentação [...] A forma da Matsá não tem importância alguma, ela pode ser
tanto quadrada quanto redonda.323

O Matzah não é apenas consumido em sua forma original, como também torna-se um ingrediente
importante em várias receitas nesta época. Para prevenir a fermentação é mais seguro usar
Matzah do que farinhas. Além, é claro, de o Matzah ser um símbolo desta ocasião, previsto já
pela própria Torá.

Outras duas comidas com presença garantida nos Shabats são os cozidos chamados Cholent ou
Adafina. Na verdade são pratos que obedecem ao mesmo conceito, mas que se modificam
segundo os sistemas alimentares a que estão submetidos: europeu e oriente médio. Como no
Shabat é terminantemente proibido acender o fogo ou cozinhar a partir do fim da tarde da sexta-
feira , inicio do Shabat, fez-se necessário a criação de uma comida que pudesse ser preparada
com antecedência e ao mesmo pudesse passar um longo tempo sobre o fogo, para não precisar
ser reaquecida. Colocam-se carnes, leguminosas e condimentos numa panela que será fechada e
posta sobre calor brando ao final da sexta-feira. No sábado, por volta do almoço, abre-se a
panela, onde tudo está tenramente cozido, aquecido. Cholent e Adafina representam as etnias
Ashkenazita e Sefaradita, respectivamente. Embora trate-se do mesmo prato, a diferença entre os
dois grupos reflete-se na escolha dos ingredientes e nos nomes: A palavra Cholent, tem origem
europeia e deriva de Chaud (calor) + Lent (lento) refereindo-se ao lento cozimento durante a

321
Este nome também admite varias grafias quando escrito em outras línguas: Matzah, Matzo, Matsot, Matzzoh,
Matsá.
322
DONIN, H. H. op. cit., p. 237.
323
Ibid., p. 239.

109
noite. Seus principais ingredientes, por influência do sistema europeu, são: feijão branco,
cevada, carne bovina, batata e páprica.324

Na versão Sefaradita, Adafina, logo avistamos a influência da culinária árabe do Oriente Médio.
Os ingredientes são: grão de bico, arroz, carne de cordeiro, cenoura, canela e menta. A palavra
Adafina é uma corruptela do árabe Dafana (enterrado), uma vez que se cobria ou se enterrava a
panela com pedras quentes, colocando brasa por cima. 325

Modernamente os judeus que seguem os preceitos da Kashrut e guardam o Shabat, utilizam-se


de chapas ou panelas elétricas que ficam ligas continuamente até o final do Shabat.

Há exaltação ao paladar doce, como símbolo das boas coisas da vida, presente nos pratos do
Rosh Hashanah (ano novo):

O Rosh Hashanah, ano novo, é a primeira festa. Como os muçulmanos, é a festa do


sacrifício, que lembra o sacrifício de Abraão. Neste dia, judeus rezam para que o ano por
vir seja doce como mel e maçãs, portanto não é surpresa que pratos doces sejam
oferecidos à família. Há no Marrocos, por exemplo, vegetais com açúcar.326

É comum comer neste dia maçãs fatiadas e regadas com mel, bem como bolos de mel. O mel
recebe destaque, pois, foi o primeiro edulcorante do mundo, comparado a ele, o açúcar é recente
na Historia da humanidade.

O Sukkot, ou festa dos tabernáculos é uma festa de nove dias que celebra as colheitas, numa
espécie de ação de graças, ocorre nove dias após os rituais do Yom Kippur. É comum fazer
cabaninhas em miniaturas decoradas com alimentos tais como aboboras, maçãs, milho, uvas,
para lembrar as cabanas que os antigos israelitas ficavam, no deserto, quando fugiram do
Egito.327

O Hanukkah328 (que significa inauguração ou consagração) é uma ocasião em que o óleo tem um
papel simbólico de destaque. Este feriado é também conhecido como o Festival das Luzes,

324
GROSSINGER, J. The art of Jewish cooking. Nova Iorque: Random House Inc., 1958, p. 92. Tradução do autor.
325
SHOESTECK, P. op. cit., p. 2.
326
HEINE, P. op. cit., p. 149.
327
SCHIMIDT, A. e FILEDHOUSE, P. op. cit., p. 195.
328
Pode ser escrito Hanukkah, Chanukah, Hanucá.

110
simboliza a reconquista do Templo de Jerusalém em 165 a.C. bem como “ilumina” o dias
escuros de inverno.

Quando o Templo foi profanado e a luz eterna que ardia expirou, os Macabeus
conseguiram preservar da devastação um pequeno frasco de óleo que queimou por oito
dias e noites até que mais óleo pudesse ser preparado.

A partir desta história surge a pratica de se acender velas por oito dias, uma para cada dia,
assim como o costume de ser comer coisas cozidas em óleo. 329

Nesta época, portanto, são bastante comuns os pratos fritos, tais como latke (uma panqueca de
batata), fritters (bolinho, geralmente com frutas e frito), entre outros.

O Purim ocorre um mês antes da Pessah, é a ocasião que celebra:

a salvação das comunidades judaicas, que viviam sob o domínio persa, do plano cruel de
Haman de extermina-los [...] O nome Purim, vem de “pur”, significa sorteiro, pelo qual
Haman determinou a data em que pretendeu lançar as suas hordas para uma carnificina
geral dos judeus.330

Esta ocasião tem caráter bastante festivo, é uma espécie de carnaval, com direito a musica, muita
comida e bebida também. “Deve-se beber em Purim até não saber a diferença entre
‘amaldiçoado Haman’ e ‘abençoado Mordekai’”. 331 “Influenciados pelos carnavais cristãos,
judeus europeus da Idade Média transformaram o Purim num escandaloso festival feito o Mardi
Gras.”332

O prato mais típico desta ocasião são biscoitinhos denominados Hamantaschen, bolso de
Haman. Originário do termo Mohn (sementes de papoula) + taschen (bolso ou bolsa no plural),
estes biscoitos simbolizariam uma espécie de vingança: “comer a comida portando seu nome
[Haman] é o mais próximo que judeus chegaram de, simbolicamente devorar seus opressores.”333

Pessah, Pass over, em inglês ou páscoa judaica celebra a fuga dos hebreus à escravidão no Egito.

329
SHOESTECK, P. op. cit., p. 44.
330
DONIN, H. H. op. cit., p. 277.
331
Ibid., p. 279.
332
SHOESTECK, P. op. cit. p. 178.
333
Ibid., p. 95.

111
A ultima maldição que recaiu sobre os egípcios para que libertassem os hebreus foi a
morte dos primogênitos. Foi dito aos israelitas que sacrificassem um cordeiro e
marcassem a porta com seu sangue, assim a morte os esquivaria [death would pass over].
O cordeiro sacrificado seria então consumido com ervas amargas. Na pressa de sair, as
famílias não tiveram tempo de fermentar suas massas e levaram-nas não fermentadas.334

Por isso não se consome nada fermentado nesta época. Há nos dias de hoje uma refeição com
todos os símbolos deste mito e que a cada ano judaico, reconta o ocorrido. A refeição chama-se
chama-se Seder ou Seider e é composto de:

Baytza: Ovo cozido com a gema dura, simboliza, pela forma, o ciclo da vida.

Charoset: mistura de frutas picadas, tais como maçã, nozes, e vinho. simboliza o cimento
usado na construção das pirâmides.

Chrain: ervas amargas, representam o amargor da escravidão. Pode-se usar nabo.

Karpas: erva que simboliza a primavera, a frutificação e esperança sempre renovada. Na


América é substituída por salsão ou salsinha. Molha-se em água salgada para representar
as lágrimas do povo judeu.

Matzah: pão não fermentado, simboliza a saída às pressas.

Zeroa: um osso de cordeiro tostado, fazendo menção ao sacrifício do cordeiro. 335

Assim como os muçulmanos marcam o recebimento do Corão por Maomé, com práticas
alimentares (Ramadã/Iftar), também o fazem os judeus. Trata-se do Shavuot, que celebra tanto o
recebimento da Torá por Moisés, quanto a colheita das primícias da terra (primeiros frutos). “É
costume comer pelo menos uma refeição de leite, em Shavuot [...] símbolo da ‘terra que emana
leite e mel’” 336 fazendo alusão à sagrada terra prometida. E também à interdição: “não
cozinharás cabrito no leite de sua mãe.” 337 Nesta celebração não há um prato específico, mas há
grande número de pratos à base de leite e derivados. Cheesecake coberto com geleia de frutas é
um dos mais comuns.

334
Ibid., p. 205.
335
Ibid., p. 206.
336
DONIN, H. H. op. cit., p. 258.
337
Ibid., p. 259.

112
3.5 Oferendas de alimentos

Budismo

No Budismo ainda que algumas tradições de origem hinduísta tenham sido abandonadas, como
por exemplo, banhar estátuas com alimentos, permanece o costume de se deixar frutas perante as
imagens de Buda. “A comida oferecida a Buda não é consumida pelo devotos, mas jogada em
compaixão aos animais ou dada aos mendigos. A tradição de Buda ter vivido como mendigo
permanece importante na tradição Theravada.”338

Nas refeições realizadas nos mosteiros zen-budistas versos são recitados em homenagem a todos
os que trabalharam para que a comida chegasse até a mesa, “os monges costumam usar um
conjunto de tigelas – oryoki – para comer e as refeições são acompanhadas da recitação de
versos, relembrando o esforço de trabalhadores no plantio, colheita e transporte de alimentos.”339

Também usa-se oferecer uma tigela em tamanho reduzido, com a mesma comida dos monges, a
Buda, perante seu altar. A oferenda é preparada pelo cozinheiro, tenzo, e servida numa bandeja,
sambô. Também é oferecido um pouco de arroz aos gaki, espíritos famintos.340

Há um grande festival no Japão, para se alimentar os espíritos famintos e os ancestrais Sejiki-e;


trata-se de um feriado nacional, o O-bom. Neste festival, que vai de 13 a 15 de julho ou agosto,
pequenos fogos são acesos para guiar os espíritos, que vêm visitar a família nestes três dias. Os
templos são enfeitados e monta-se um grande altar, Obon-dana, repleto de alimentos: “verduras,
frutas e produtos alimentícios secos, além de três tigelas especiais: uma com arroz cozido, outra
com água limpa e a terceira com arroz cru, lavado e misturado com pequenos pedaços de
verduras picadas, mizunoko.”341

Há também os rituais de oferendas aos ancestrais feitos em família. Cada família da tradição zen-
budista possui em sua casa um altar, o Butsudan. Nele há uma imagem de Buda, tabletes
memoriais, ou ihai, contendo os nomes dos antepassados, vela, incensário, vaso para flores, vaso
338
LATHAN, J. E. e GARDELLA, P. Foods. In: JONES, L. op. cit., p. 3170.
339
HAVENS, I. O alimento na religiosidade zen-budista. Diálogo – Revista de ensino religioso no. 63 –
Agosto/Setembro 2011, p. 21.
340
Ibid., p. 22.
341
Ibid., p. 25.

113
para oferta de água, trocada todos os dias e também alimentos oferecidos aos mesmos, entre eles:
arroz, frutas ou algum doce. As frutas ofertadas têm significados, as bananas, por exemplo,
representam o masculino e as tangerinas, o feminino.342

Estas oferendas podem modificar-se segundo a escola budista ou o sistema alimentar local. Na
Tailândia, por exemplo, encontra-se:

na frente de todas as casas, prédios, centros da administração publica, universidades, uma


espécie de casa em miniatura no alto de uma coluna, cercada de flores e de alimento. É a
casa dos espíritos (phi): o espírito do lugar, espíritos dos defuntos da casa. Na maioria das
famílias dedica-se diariamente uma oferenda a esses espíritos ou gênios, pois imagina-se
que eles possam prejudicar se negligenciados, e trazer sorte quando venerados. 343

Candomblé

O candomblé é a religião das oferendas por excelência. As oferendas recebem o nome de Ebó:
“Um ebó pode ser definido como um ato de se fazer uma oferenda, do reino animal, vegetal ou
mineral, de comidas, bebidas e qualquer objeto, a uma divindade ou entidade espiritual.” 344
Muitas das oferendas, ou Ebós, são acompanhados de sacrifício de animais, mas trataremos desta
temática no item apropriado, por hora falaremos apenas das Ebo Onje Gbige345, isto é, oferenda
de comidas secas, sem sangue.

Quando se vai a um xirê, ou qualquer festa do candomblé vê-se comidas, mas as oferendas que
realmente fazem as coisas acontecerem já foram feitas antes deste momento, em geral, pela
manhã, enquanto a festa é, na maioria das vezes, à noite. Mencionamos uma série de comidas e
festas no item anterior que servidas e apresentadas às pessoas, agora trataremos da comida
servida em segredo, dos pratos que cada orixá come, também referidos como comida seca.

O primeiro a receber sua comida é sempre Exu. Mesmo quando a celebração é dirigida a outra
entidade, dá-se de comer a Exu, pois ele é o mensageiro dos Orixás. Ele controla o fluxo de todas
as coisas, pessoas e energias. Sem ele ninguém envia nada, nem recebe nada ou locomove-se. É

342
Ibid., p. 22.
343
LAMBERT, Y. O Nascimento das Religiões. São Paulo: Loyola, 2012. p. 483.
344
BENISTE, J. op. cit., p. 280.
345
Ibid., p. 285.

114
também energia criativa, de fecundidade e de movimento. Sem ele tudo ficaria estagnado. “É o
grande controlador das entradas e saídas. Daí serem seus domínios, encruzilhadas, portas,
janelas, ruas, etc. Dele depende a comunicação, o transito, o sucesso nos negócios, nos jogos.”346

Uma cerimônia em que se reverencia Exu é chamada de Ipàdé ou padê, entretanto não se trata de
uma festa, nem de algo que o público possa participar.

O padé tal qual é praticado é um rito solene privado a que só podem assistir as pessoas
pertencentes ao terreiro ou visitante de qualidade excepcional. Trata-se de uma cerimônia
carregada de perigo em virtude do poder sobrenatural das entidades que serão invocadas
e devido à sua finalidade que consiste em impulsionar e em manter as relações
harmoniosas com essas entidade e em obter ou restabelecer, por meio de oferendas
apropriadas, seu favor e proteção [...] Durante o Padé, Esú é invocado sob o duplo
significado de Iná, fogo e de Òdàrà, aquele que provê bem-estar, ou satisfação.347

A Exu oferece-se omi, água, que “fertiliza, apazigua e torna propício; nenhuma oferenda de
invocação poderá ser efetuada sem água. O iyefun, a farinha de mandioca ou qualquer outra
farinha proveniente de grãos ou de tubérculos, símbolo de fecundidade, ” 348 o epo, azeite de
dendê, o otín, bebida destilada, e o acaçá. Tudo é acompanhado de velas e cantigas de Exu.

O acaçá merece destaque entre os pratos de oferenda. Presente está nos mais diversos “trabalhos”
ele é consumido por todos, de Exu a Oxalá, como se diz. “É o acaçá comida muito frequente,
indispensável mesmo, na liturgia dos terreiros com um largo espectro nos usos rituais.” 349 É um
“bolo” de massa de milho branco, de molhado, moído, e cozido, embrulhado em folha de
bananeira, na hora de servir na oferenda é retirado da folha. Ele tem consistência cremosa na
hora de enrolar, mas depois endurece e fica no formato que foi embrulhado, geralmente,
triangular. O acaçá pode ser ainda feito com milho amarelo dependendo da finalidade.

A palavra padê pode ainda designar nome de um prato servido nesta ocasião, no caso, a farofa.
Fala-se em fazer um padê com água (farinha + água), padê com cachaça (farinha + cachaça),
padê com dendê ou com mel.

346
JUNIOR, V. C. S. op. cit., p. 121.
347
SANTOS, J. E. Os Nagô e a morte. Padè, Àsèsè e o Culto Ègun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 185.
348
Ibid, p. 188.
349
LIMA, V. C. in: REGIS, O. F. op. cit., p. 33.

115
O padê ritual normalmente é a abertura de outros rituais, portanto, quando se vai dar comida a
um orixá, inicia-se com o padê para Exu, para que tudo corra bem.

Para Ogum oferece-se inhame assado na brasa e descascado, regado com azeite de dendê, ou
inhame assado com espetos de mariwó (folha do dendezeiro), chamado boi de Ogum, ou
paliteiro, como também come o inhame simplesmente cortado ao meio com mel e dendê. Recebe
feijão preto, milho vermelho torrado e enfeitado com coco (prato de nome Axoxô).350 Um local
comum para se deixar oferendas a Ogum são as estradas de ferro, já que ele é o orixá do ferro e
dos caminhos.

Oxossi é o orixá da fartura, irmão de Ogum, enquanto este é o orixá guerreiro, Oxossi é o orixá
caçador, rei das matas conhece os frutos, os meios de conseguir a comida. Não há uma festa
específica para ele, mas as oferendas não lhe faltam. Oxossi representa a colheita, o recolher dos
grãos, a produtividade e a caça. A ele são oferecidas frutas de vários tipos, além do Axoxô, feijão
fradinho torrado. 351 “É comum oferecer-lhe comidas aos pés de uma árvore ou no topo dos
telhados das casas (onde servirá de alimento aos pássaros). Essa oferenda garante fartura e
prosperidade.”352

A Obaluayê ou Omulu serve-se principalmente o Deburu, como já dito ou ainda. O Deburu não
deve ser feito com óleo, nem se deve adicionar sal e deve ser feita com areia da praia, o que
ressalta sua ligação com Iemanjá (sua mãe adotiva) feijão preto refogado com camarão seco e
dendê. 353 Como orixá da terra, local de onde viemos e para onde voltamos, Omulu é dono do
cemitério, logo, após oferecidas, suas comidas são levadas ao cemitério.

A Xangô oferece-se o amalá sobre pirão de inhame ou farinha, numa gamela de madeira, oval,
decorado sempre com doze quiabos inteiros. Seis é o numero da justiça, assim são seis quiabos
para um lado e seis para o outro. Também este amalá, quando oferenda, é acompanhado de
rabada ou pedaços de carne gorda.354 O local de entrega das comidas de Xangô são as pedreiras.

350
JUNIOR, V. C. S., op. cit., p. 126.
351
Ibid.
352
REIS, A. M. op. cit., p. 297.
353
REGIS, O. F. A comida de santo numa casa de Queto. Salvador: Corrupio, 2010, p. 51.
354
REIS, A. M. op. cit., p. 299.

116
Para Oxalá oferece-se o ebô, o milho deve ser lavado em nove águas, antes de cozinhar, também
acaçá de milho branco. 355 “É bom observar que nas comidas consagradas a Oxalá não vai
nenhum tipo de tempero, tudo deve ser servido em louça branca, por pessoas vestidas de
branco.”356 Depois da oferenda, as comidas de Oxalá são despachadas nas águas.

A Iansã come preferencialmente o acarajé, ou como vimos antes, o akará, servido num prato
com nove unidades (número de Iansã nos búzios), mas come também Ecuru (feijão fradinho
refogado com camarão seco, cebola e dendê). 357 Ela também come amalá com xangô, pois divide
o fogo com ele. 358 Suas comidas são deixadas, após a oferenda, em bambuzais.

Iemanjá. Suas festas e oferendas, naturalmente, passam pela praia, já que ela é a grande mãe das
águas salgadas. Se Oxalá é o pai de todas as cabeças, Iemanjá é a mãe. É também ela o orixá da
inteligência e do equilíbrio e, por ser das águas, está ligada à fecundidade.

Sua comida principal é:

Ia ebô, ou seja, milho branco com cebola ralada, camarão moído e um pouco de camarão
inteiro. Em determinadas casas, faz-se com azeite de oliva em função de Iemanjá estar
muito próxima a Oxalá. Na minha casa, particular, eu batizo sempre com um pouco de
epô (dendê) pra dar força a ela porque se ela é mãe de um guerreiro [Ogum] então ela
também é guerreira e o dendê na religião é a força máxima. 359

Além do ebô, Iemanjá come manjar de leite de coco, acaçás, peixes de água salgada e mamão.

À Oxum, como vimos, serve-se o Ipeté (prato de inhame cozido, bem amassado, temperado com
dendê e camarão seco):

O Ipeté é algo que nas poucas vezes em que aparece, surge escondido, camuflado dentro
de um balaio, entre panos, presentes, joias, flores, folhas e emblemas como espelhos e
espadas que lembram a passagem míticas da vida de Oxum. É sempre acompanhado de
uma boneca. É uma das comidas feitas para não se ver. 360

355
REGIS, O. F. op. cit., p. 79.
356
REIS, A. M. op. cit., p. 299.
357
REGIS, O. F. op. cit., p. 93.
358
JUNIOR, V. C. S. op. cit., p. 134.
359
Pai Francisco de Oxum apud: JUNIOR, V. C. S. op. cit., p. 135.
360
Ibid., p. 168.

117
E também o Omolucum, decorado com seis, oito ou doze ovos, conforme a determinação de
Oxum ou conforme a obrigação.361 A comida de Oxum é sempre deixada em locais de águas
doces, tais como rios e cachoeiras.

Nanã é a mais velha dos orixás femininos, mãe de Omulu. A cor associada à Velha, como é
conhecida, é o violeta, “cor dos musgos encontrados nas águas paradas dos lagos. Nesses musgos
da beira dos lagos surgiram os primeiros protozoários, as primeiras formas de vida desse planeta
– por isso Nanã é tão antiga.”362 Ela é também considerada o celeiro do mundo, todos os grãos
lhe pertencem. Nanã come Latipá, feijão preto descascado um a um. Temperado com cebola,
363
camarão seco e dendê. Ela também gosta de mingaus. Suas comidas são entregues nos
pântanos.

A Ibeji se faz vários pratos. Ibeji come de tudo. Banana da terra cortada em tiras e frita no dendê.
Mundunbi, amendoim torrado e cozido, Ecuru, feijão fradinho cozido com banana da terra e
batata doce, acaçá, acarajé, pipoca, ebô com mel, abóbora cozida com mel por cima. 364 Sem
esquecer, claro do caruru, que para a oferenda segue preceitos específicos, depois de escolhidos
os quiabos:

O picar dos quiabos é mais um dos momentos de sacrifício que em silêncio se faz os
pedidos aos meninos. Quiabo para Ibeji, se corta em cruz, bem fininho, começando pela
parte comprida, isto é, a ponta, nada de cortar de cabeça para baixo [...] Bacias, tijelas,
gamelas, panelas, pratos se espalham neste dia pelo chão, nas mãos das crianças, de
jovens, adultos e velhos que vêm ajudar a cortar de três a cinco mil quiabos [...] pessoas
estranhas não ajudam a cortar quiabos. 365

O ritual de Borí é a primeira iniciação do candomblé, repetido de tempos em tempos conforme a


necessidade. Não se faz nada ao orixá de uma pessoa, sem que a mesma tenha passado pelo Borí.
Referimo-nos a ele no item oferendas por ser um ritual que tem como base as oferendas. Sem a
comida de santo não é possível fazer o Borí. Orí é a denominação da cabeça física, nela está todo
o Axé que a pessoa tem. A palavra borí designa o ato de comida à cabeça de alguém. Por

361
REGIS, O. F. op. cit., p. 101.
362
RAMOS, E. op. cit., p. 30.
363
JUNIOR, V. C. S. op. cit., p. 130.
364
REGIS, O. F. op. cit., p. 109.
365
JUNIOR, V. C. S. op. cit., p. 173.

118
extensão significa ainda o procedimento ritual que engloba e regula esse ato. 366 Há quatro tipos
de Borí:

Borí omi tutu - é um simples oferecimento de obí e água fresca, também exigido,
obrigatoriamente, para as pessoas participarem dos rituais das Águas de Oxalá;

Borí onje gbigbe – é uma forma de Borí acompanhado de comidas secas como o Acaçá,
Aberém, Akará;

Borí èjé – é uma complementação mais elaborada quando o Orí exige animais para o
sacrifício. 367

“Qualquer uma das modalidades acima começa com o borí omi tutu, onde o obí [noz de cola] é o
oferecimento por excelência e que melhor representa o próprio Orí [cabeça].” 368 É também
comum que as comidas apresentadas nesse ritual componham uma gama de pratos de todos os
orixás; é colocado um pouquinho de cada comida na cabeça do iniciado e a mesma coberta com
um pano branco, ojá, bem amarrado para que as mesmas permaneçam ali enquanto o iniciado
dorme. Os pratos de comida são colocados em volta da esteira onde o iniciado irá dormir. A
intenção é que todos os orixás estejam ali presentes. “No ritual de Borí, uma pessoa faz
oferendas não somente para seu próprio orí, mas também para o orí de seus pais, vivos ou
mortos.”369 Assim, as comidas estão, neste ritual, também destinadas aos ancestrais.

Oferendas de alimentos também são realizadas no ritos funerários. A cerimônia mortuária é


chamada de Axêxê, e é realizada somente para os iniciados na religião. “Sem Àsèsè, não há
começo, não há existência. O Àsèsè é a origem e, ao mesmo tempo, o morto, a passagem da
existência individual do àiyé [terra] à existência genérica do òrun [“céu”, o outro lado].”370

Os pêsames eram dados com um tabuleiro de àkàràje, panela com èkuru, abara, àkàsà etc.
Estas comidas ficavam em volta do corpo, na sala, e pertencia ao morto ou à morta.
Quando chegava um visitante, ele fazia a saudação e se servia usando uma folha de
mamona passada no fogo onde estavam sendo feitas as comidas, e comia. Depois jogava
a folha fora ia dançar em volta do corpo para pagar a comida que comera.371

366
VOGEL, A. A Galinha d’Angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 2001,
p. 46.
367
BENISTE, J. op. cit., p. 143.
368
Ibid.
369
Ibid., p. 146.
370
SANTOS, J. E. op. cit., p. 235.
371
OBA KA KANFO apud: BENISTE, J. op. cit., p. 198.

119
Hinduísmo

Todas as pessoas “santificáveis” conseguem anistia de todos os seus pecados partilhando


a comida que foi oferecida aos deuses em sacrifício. Mas aqueles que preparam a comida
apenas para seus fins egoístas, não comem nada além de pecado. (Baghavad Gita 3:14)372

No Hinduísmo tão importante quanto “o que se come”, é oferecer os alimentos aos deuses.
Segundo sua crença a não oferta de alimentos pode transformar suas propriedades benéficas em
destrutivas. Hinduístas ortodoxos sempre oferecem mentalmente sua comida aos deuses, pois,
“de acordo com Manu, a comida que é oferecida, consagrada, traz força e vigor, mas consumida
de maneira irreverente os destrói.” 373 Acredita-se que a comida oferecida aos deuses, antes de
consumida eliminará quaisquer substâncias rajásicas ou tamásicas do alimento.374

Além de a oferenda representar um “estado de espírito”, existem ainda rituais designados às


praticas da oferenda. O nome deste ritual de oferenda é prasada. É um nome genérico para
oferendas aos deuses. Na maioria das vezes estas oferendas são consumidas, pelos próprios
devotos ou deixadas aos sacerdotes, aos mendigos ou pode ainda ser destinada aos animais. Pode
ainda não haver consumo, sendo as mesmas, queimadas.

Entre os devotos de Vishnu e seus avatares, Krishna e Rama, a comida oferecida aos
deuses é frequentemente dividida entre os adoradores, que as levam do templo para
consumir em casa. Entre os devotos de Shiva e sua esposa Parvati consomem apenas os
alimentos que banharam o Shivalinga, deixando o restante das oferendas aos sacerdotes.
Em outros festivais, que implicam em jejum, hinduístas podem levar grandes quantidades
da prasada para casa e sobreviver dela por alguns dias. Em casa ou outras áreas externas
ao templo, sacerdotes Brâmanes são contratados para fazer oferendas. 375

Em casamentos ou em brachmacharya, ritual que marca o inicio do estudo das escrituras,


o sacerdote oferecerá manteiga clarificada [ghee], arroz e outras comidas ao fogo
enquanto diz preces. Nos templos, ofertas de comida proporcionam aos devotos a busca
por proteção e favores dos deuses, mas nos sacrifícios de fogo, a comida transforma-se na
mesma energia que criou os deuses e o universo; esta energia cósmica é liberada pelo
fogo e direcionada pelo sacerdote que tem este propósito no ritual. 376

372
Hindu Web site. op. cit.
373
Ibid.
374
Ibid.
375
LATHAM, J. E. e GARDELLA P. op. cit., p. 3170.
376
Ibid.

120
No Ganesha Chathurti, em homenagem a Ganesha, é comum servir-lhe como oferenda “coconut
ladoo”, um docinho à base de coco e cardamomo. Dispõe-se nove bolinhas dele num prato, com
uma pequena vela no meio. 377 Neste dia também, é comum que as pessoas vistam-se de verde,
cor associada a Ganesha, e ofereçam-lhe frutas e vegetais verdes em agradecimento.378

Em funerais hinduístas também são realizadas oferendas de comidas aos que se foram, de forma
que esta comida servirá para a continuidade do corpo astral da pessoa no mundo ancestral. 379

Mais precisamente, de acordo com o Bhagavad Gita, oferendas são classificadas em algumas
categorias, até mesmo a comida consumida pode ser considerada oferenda, já que, no hinduísmo,
considera-se o processo digestivo, como sendo um tipo especial de fogo. Seguem abaixo as
categorias:

Ahuta – “não oferecidas ao fogo”, refere-se a mantras védicos;

Huta – “oferecidas ao fogo” trata-se das oferendas que são queimadas.

Prahuta – oferendas de grãos jogados no solo.

Bali – oferenda aos bhutas ou elementos.

Brahmya-Huta – oferenda ao fogo digestivo dos Brâmanes e convidados da casa.

Prasita – “consumível”, oferenda aos ancestrais.380

3.6 Sacrifícios de animais

A substanciação do convencional pelo material é também um aspecto do sacrifício, seja o


ato sacrificial entendido como uma oferenda ou uma comunhão. Se é uma oferenda, a
devoção se converte em algo material, se é comunhão, o que de outra forma permaneceria
abstrata, é primeiramente substanciada e então informada ao participante conforme é
assimilada.381

377
Recipes of India, www.vegrecipesofindia. Acesso em 07/04/2014. Tradução do autor.
378
SCHIMDT, A. e FIELDHOUSE, P. op. cit., p. 127.
379
Hindu Web site. op. cit.
380
SAYERS, M. R. Feeding the ancestors: ancestor worship in ancient Hinduism an Buddhism. Miami: ProQuest,
2008, p. 51. Tradução do autor.
381
RAPPAPORT, R. op. cit. p. 142.

121
Adventismo e Catolicismo

O Adventismo e o Catolicismo, como religiões cristãs não praticam sacrifícios animais, embora
tenham em sua origens, certamente, um dos sacrifícios mais conhecidos da humanidade, o do
“Cordeiro de Deus”.

A questão do sacrifício animal tem sido discutida desde a antiguidade, embora a maioria dos
povos praticasse sacrifícios, sempre houve correntes de vegetarianos e outros grupos contra a
prática. Filósofos pagãos como Porfírio, Pitágoras, judeus como Fílon, cristãos como Teodoreto,
etc.

No princípio do Cristianismo Porfírio afirma que a fórmula proto-eucarísitca: “’Se não comerdes
de minha carne e não beberdes do meu sangue, não haverá vida em vós’ é, ao mesmo tempo
brutal e absurda.” 382 Mesmo que seja alegórica, é comparada ao sacrifício humano e ao
canibalismo. E até mesmo São Paulo “na epístola aos Coríntios, 10, chama a atenção para as
semelhanças entre a comunhão proto-eucarística do pão e do vinho – que são respectivamente o
corpo e o sangue de Cristo imolado – e as práticas sacrificiais judias e pagãs.”383

Por outro lado, “é a recusa em fazer sacrifícios aos deuses que define, aos olhos das autoridades
imperiais, o comportamento dos cristãos e faz deles ateus.”384 Entre os primeiros cristãos “os
sacrifícios pagãos não são condenados porque sejam cruentos ou sirvam para dissimular um
desejo puro e simples de comer carne, mas porque são dedicados a seres maus: os demônios.” 385

Seja como for, o símbolo sacrificial permaneceu, entretanto, parece ter-se distanciado de seu real
significado a ponto de não mais ser associado com as praticas sacrificiais de outras religiões,
quer da antiguidade, quer atuais. “numa religião tão abstrata quanto o Cristianismo, a figura do
cordeiro pascal, vítima habitual de um sacrifício agrário ou pastoril, persistiu e serve ainda hoje
para designar Cristo, isto é, Deus. O sacrifício forneceu a simbólica divina.” 386

382
GROTANELLI, C. A carne e seus ritos. In: FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. Historia da Alimentação.
São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 131.
383
Ibid., p. 131.
384
Ibid., p. 133.
385
Ibid., p. 131.
386
MAUSS, M. e HUBERT, H. op. cit., p. 87.

122
Candomblé

Esta é a religião sacrificial por excelência, sem dúvida, onde este tipo de prática ocupa o maior
espaço, oficialmente. O candomblé concentra-se na produção, manipulação e transferência do
axé, uma espécie de energia vital que anima todos os seres e coisas no Àyié (mundo dos vivos) e
também no Órun, mundo dos eguns (mortos), ancestrais, orixás, etc. A distribuição de axé,
ocorre especialmente através dos ebós, oferendas. “A vida-no-santo é um assíduo sacerdócio em
que todos se dedicam à tarefa de plantar, cultivar e multiplicar o axé princípio que funde e
anima.”387

Os iorubás, em suas várias etnias, quase todas elas representadas no imaginário e na


cultura baiana, entendem o sacrifício, o ebó, como a forma essencial da sua comunicação
com os Orixás [...] o sangue é fundamental. É o sangue que renova o vínculo entre o
homem, que sacrifica, e o santo, para quem se sacrifica. Ebó efé, se diz. Sacrifício de
sangue. Força da criação, de gestação simbólica, de reavivamento, oferecido e
transformado. 388

Tal é o poder atribuído ao sangue sacrificial, que até mesmo objetos ganham vida através do
sacrifício. Em muitos terreiros, é comum que os atabaques (tambores rituais), recebam sacrifícios
tornando-se dotados de força e poder. Daí diz-se que “o couro vai comer”, referindo-se ao couro
do atabaque. Também comem os jogos de búzios e o ifá389, para que sejam ativados. Há também
máscaras rituais que passam a ter vida após serem alimentadas, assim como outros objetos.

Em relação aos devotos praticantes da religião, há ebós envolvendo sacrifícios de animais para as
mais diversas finalidades. Nos boris e iniciações, além das comidas secas, estão presentes os
sacrifícios animais. É este sacrifício que traz força ao iniciado, bem como ao espírito do falecido,
agora habitante do Òrun, depois de receber seu sacrifício na cerimônia de Axexê.

387
VOGEL, A. ET AL. op. cit., p. 93.
388
LIMA, V. C. in: REGIS, O. F. op. cit., p. 24.
389
Oráculo onde se usa sementes do dendezeiro, apenas homens são iniciados.

123
O Ebo Ayèpínùn, sacrifício de substituição, caso em que um animal é oferecido em lugar da
pessoa, nos “candomblés do Brasil, é denominado ‘troca de cabeça’” 390, e serve também como
substituição da pessoa em outros tipos de provação. Segundo José Beniste existem ainda:

Ebo Ojúkòríbi, sacrifício de prevenção que, como sugere o nome, visa prevenir perigos
iminentes previstos no jogo de búzios ou ifá;

Ebo Ètùtù, sacrifício de apaziguamento, usualmente este sacrifício é prescrito pelo jogo
ou pelo Orixá, em resposta ao que pode ser feito para uma pessoa em razão de alguma
crise ou enfermidade;

Ebo Èjé, sacrifício votivo, quando se de um pedido, com a promessa de se fazer um


sacrifício se o desejo for realizado;

Ebo Opé, sacrifício de agradecimento, em caso de se ter obtido sucesso num


empreendimento;

Ebo Ìpilè, sacrifício de fundação, trata-se do sacrifício que se faz para abertura de um
terreiro, a construção de uma casa é necessário livrar o local das más influências, bem
como gerar um novo fluxo de energia vital.391

“Sem sangue não há axé. [...] Quando deixar de haver sacrifícios, o Candomblé deixará de
existir.” 392 O axé está sempre contido no sangue, entretanto, no candomblé, este possui um
conceito mais amplo. “O termo sangue parece motivado, sobretudo, pela metáfora do fluxo vital
que anima o Universo”393. Desta maneira, muitas substâncias são consideradas sangue.

Para o Candomblé, tudo que a natureza produz é sangue, pois o que define o sangue é a
força que detém, ou seja, o axé, e um sacrifício requer a utilização de vários tipos de
sangue, vindos das mais variadas fontes da natureza, atribuindo vida e sentido ao Orixá,
aos homens e à própria existência.”394

Como o sangue dos homens e dos animais, o mel é considerado o sangue das flores, a seiva, o
das árvores, a água, o da terra e assim por diante. Os sangues podem ser classificados segundo
suas cores e os reinos aos quais pertencem, de acordo com Juana Elbein dos Santos:

390
BENISTE, J. op. cit., p. 282.
391
BENISTE, J. op. cit., p. 282-284.
392
REIS, A. M. op. cit., p. 276.
393
VOGEL, A. op. cit., p. 100.
394
REIS, A. M. op. cit., p. 277.

124
SANGUE VERMELHO BRANCO PRETO
Sêmen, saliva, hálito,
Humano, menstrual e
ANIMAL secreções, plasma do Cinzas de animais
de animais
ìgbin395
Seiva, sumo, álcool,
bebidas brancas da
Azeite de dendê, Sumo escuro de
VEGETAL 396
palmeira e de outros
osùn , mel 397
vegetais, ilú399
vegetais, ìyèrosùn ,
òri398
Água, sais, giz, prata,
MINERAL Cobre, bronze Carvão mineral, ferro
chumbo

Percebemos pelo quadro apresentado, que não apenas a origem dos sangues, mas também a cor
representa uma função importante em cada um deles, isto ocorre porque as cores também são
entendidas como detentoras de propriedades próprias, isto é, de um axé em particular.

Um sacrifício, portanto, leva vários tipos de sangue, conforme mostra a descrição a seguir:

Separação da cabeça do animal de seu corpo com a faca ritual do Asògun [sacerdote
responsável pelo corte do animal]. O primeiro sangue derramado deve tocar a terra. O
resto é recolhido numa cabaça ritual na qual se colocou previamente um pouco de água.
Com um cabacinha, retira-se pouco a pouco essa mistura de “sangue vermelho” e de
“sangue branco” e derrama-se sobre o conteúdo dos “assentos” [...] imediatamente
depois, oferece-se epo, “sangue vermelho” vegetal, sal “sangue branco”, e mel, “sangue
das flores” [...] os animais são destrinchados e todos os seus órgãos separados. Tudo é
colocado num grande alguidar, apresentado ao òrìsà nomeando todas as partes e pedindo-
lhes que aceite.400

Tudo é levado para a cozinha e as partes que contém axé são então cozidas e temperadas, pela
Iabassê, sacerdotisa que prepara as comidas de santo; segundo “o gosto” do orixá e depois
colocadas próximo aos assentamentos.

395
Caramujo, também chamado de Èró, aquele que amolece e acalma, é relacionado com a docilidade, a
tranquilidade e a paz. BENISTE, J. op. cit., p. 310.
396
Pó vermelho extraído do Pterocarpus Erinasses. SANTOS, J. E. op. cit., 1986, p. 41.
397
Pó esbranquiçado extraído do ìròsùn, (Eucleptes Franciscana F) Ibid.
398
Tipo de manteiga vegetal. Ibid.
399
Pó azul escuro, índigo, extraído de diferentes tipos de árvore. Ibid.
400
Ibid., p. 228.

125
É importante ressaltar que tanto nos sacrifícios animais, quanto no caso da oferenda de comidas
secas, com exceções de trabalhos específicos, e de certas partes do animal, “partes do corpo
impregnadas de axé: coração, fígado, pulmões, genitais” 401 e o sangue, o restante é consumido
pelos participantes do ritual, em especial, pelos sacerdotes.

Cada orixá possui também seus animais de sacrifício e seria uma espécie de tabu, sacrificar a um
orixá um animal que não lhe é próprio. Fugir a esta gramática resultaria em desgraça. De acordo
com o estudo de Guilherme Radel sobre a comida de santo são animais de sacrifício de seus
respectivos orixás:

Exu Cabrito, galo e frango pretos


Ogum Cabrito, galo e cachorro
Oxossi Animais de caça, tatu, coelho
Xangô Carneiro, cágado
Obaluaê Porco, bode, galo
Iansã Cabra e galinha
Oxum Cabra e galinha
Iemanjá Cabra, pombo branco e peixe
Nanã Cabra e galinha d’angola
Ibeji Bode e cabra
Oxalá Ibi (caracol), pombo branco e cabra
402

De forma geral, estes são os animais oferecidos aos orixás, entretanto, pode haver variações
segundo os diferentes terreiros ou nações. No caso do Borí ejé (ritual de borí que pressupõe
sacrifício de animais) de feitura, é comum que se ofereça uma galinha d’Angola (conquém); ela
representa o iniciado. Diz um importante mito africano que:

Era uma cidade, há muito tempo, começou a morrer muita gente. Não se acabava mais a
mortandade. As pessoas ficaram apavoradas e pediram a Òòsàálá [Oxalá]. E ele mandou
fazer ebo. Mandou pintar uma galinha preta com efun [argila branca]. Depois que era
401
Ibid, p. 42.
402
RADEL, G. R. A Cozinha Africana da Bahia. Salvador, 2006, p. 259.

126
para soltar ela no mercado. A morte se assustou e foi embora. E, assim, surgiu a
conquém. 403

Por esse mito tem-se que à mãe de santo cabe, como a Oxalá, “o encargo de mostrar aos homens
como se afugenta a morte, assegurando a continuidade da vida. [...] A mãe de santo pinta as
galinhas d’angola que são seus iaôs [filhos].”404 Isto faz com que a galinha d’angola seja um dos
principais animais de sacrifício no candomblé.

Hinduísmo

Pelo princípio do ahimsa, já citado anteriormente, não se pratica sacrifícios animais no


hinduísmo, entretanto, gostaríamos de ressaltar, que o vedismo, uma das principais religiões de
base do hinduísmo praticava sacrifícios animais:

Os sutras indicam que não se devia matar animais a não ser como oferendas aos deuses e ao dar
“hospitalidade aos hospedes” e que “dar e receber presentes” eram deveres especiais dos
brâmanes. Estas prescrições duplicam precisamente as disposições regulamentares para o
consumo de carne características de sociedades em que os festins e o sacrifício animal são uma
mesma atividade. 405

Em Sobre o sacrifício, de Mauss e Hubert, há também inúmeras descrições de sacrifícios védicos


de animais: “... a vaca estéril, sacrifício a Rudra, deus mau, pelos brâmanes, seja sacrificada da
mesma maneira que o bode aos deuses celestes e bons, Agni e Soma.” 406

Hoje, no entanto a questão do consumo de carnes parece ser um dos grandes pontos de tensão
entre hinduístas e muçulmanos que vivem na Índia:

Durante séculos, hindus e muçulmanos têm travado lutas entre as comunidades


utilizando-se dos estereótipos do “muçulmano mata-vacas” e do “hindu tirânico”

403
VOGEL, A. op. cit., p. 63.
404
Ibid.
405
HARRIS, M. Canibais e Reis. Rio de Janeiro: Edições 90, Brasil ltda, 1990, p. 200.
406
MAUSS, M. e HUBERT, H. op. cit., p. 22.

127
decidido a conseguir pela força que todo o mundo aceite suas peculiaridades e costumes
dietéticos.407

Islamismo

Uma das maiores festividades do Islamismo é a Id al Adha ou Festa do Sacrifício, também


conhecida como “Páscoa Muçulmana”, esta ocasião celebra a salvação de Ismael, filho de
Abraão, que segundo o Corão seria sacrificado a Deus pelo próprio pai. A celebração inicia-se
no décimo dia do ultimo mês do calendário muçulmano, com a duração de três dias, coincide
com o fim do período de peregrinações a Meca (Haj). “Sua particularidade reside na exigência
de sacrificar um animal (vaca, camelo, cabra, ovelha ou galinha), para posteriormente proceder
sua distribuição equitativa entre famílias, vizinhos, amigos e mendigos.” 408 Cada família
sacrifica um ou mais animais de acordo com suas possibilidades econômicas.

No Islamismo, além da festa do sacrifício, devemos perceber que o próprio abate para o consumo
cotidiano de carne já é sacrificial. A vítima deve ser abatida com a face voltada para Meca,
conforme os preceitos da zabihah (abate Halal). Mais detalhes serão apresentados no item 3.7.

Judaísmo

O Yom Kippur, como já visto, é um dia de jejum, porem, antes de se iniciar o jejum, um prato
especial é consumido: normalmente uma sopa de frango, feita a partir de um frango sacrificado.

A sopa, feita de aves, normalmente galinha, que tenha sido sacrificada um dia antes do
Yom Kippur, com a crença de que os pecados da pessoa que sacrificou serão transferidos
à ave e então dissipados. O costume, denominado kapparah, palavra hebraica para
expiação.409

407
HARRIS, M. Bueno para Comer. Enigmas de La alimentación y cultura. Madrid: Alianza Editorial, 1997, p. 59.
Tradução do autor.
408
EZQUIBELA, I. J. op. cit., p. 20.
409
SHOESTECK, P. op. cit., p. 235. op. cit., p. 209.

128
Reza a tradição que para cada homem da família deve, neste ritual ser sacrificado um galo e, para
cada mulher, uma galinha. 410 Antes do momento do sacrifício, os animais são passados em torno
do(a) sacrificante, e em seguida são abatidos. Durante todo o ritual lê-se a Torá.

Além do sacrifício de Yom Kippur, o próprio abate de animais para consumo corrente pode ser
considerado um sacrifício, uma vez que, para se tornarem Kasher, devem ser abatidos segundo o
rito Shehitá, descrito no item 3.7.

Havia também, antigamente, outras modalidades de sacrifício no judaísmo, que hoje tomaram
outras formas ou são pouquíssimo praticadas. Não estão associadas a uma ocasião geral e
coletiva, mas a certas necessidades mais particulares:

O Levítico reduz todos os sacrifícios a quatro formas fundamentais: ôlâ, hattât, shelamin e
mînha. O hattât era o sacrifício que servia basicamente para expiar o pecado hattât, do qual o
Levitico nos oferece uma definição bastante vaga. O shelamin é um sacrifício comunial de ação
de graças, de aliança e de voto. Quanto aos termos ôlâ e mînha são puramente descritivos,
referindo-se o primeiro referindo-se ao envio da oferenda à divindade, e o segundo à natureza
vegetal da vítima, caso assim seja. 411 Na ôlâ a vítima é queimada por inteiro.412

O Yom Kippur enquadra-se na modalidade hattât. “No hattât hebraico do Dia do Kippur, [...] o
sacrificador molha o dedo no sangue que lhe é apresentado, faz sete aspersões diante de Javé,
isto é, sobre o véu”413

No Zebah Shelamin Sacrifica-se um carneiro, “onde algumas partes da vítima (o sangue, a


gordura, algumas vísceras) são sempre postas de lado, destruídas ou interditadas. Um membro é
sempre comido pelos sacerdotes.”414

410
HEINE, P. op. cit., p. 150.
411
MAUSS, M. e HUBERT, H. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, p. 22.
412
Ibid., p. 23.
413
Ibid., p. 42.
414
Ibid., p. 23.

129
3.7 Regras na obtenção ou preparo da comida

Adventismo

No mundo todo a IASD, preocupando-se com a questão alimentar detém algumas marcas
415
produtoras de alimentos. É possível encontrar no Adventist Online Yearbook um
completíssimo e atualizado catálogo das empresas produtoras associadas à IASD presentes em
cada região do mundo. Embora as empresas não estejam financeiramente vinculadas à igreja,
produzem alimentos de acordo com a filosofia alimentar da IASD.

No Brasil temos a companhia Superbom, fabricante de produtos vegetarianos, com 87 anos, hoje
tem distribuição nacional. Figuram entre seus produtos: méis, geleias, sucos (especialmente de
uva), patês de vegetais, cevada, proteínas de soja e trigo, entre outros.416

Há também, pelo mundo, restaurantes e hotéis preparados para receber grupos de adventistas,
onde a comida é uma das principais exigências a ser cumprida.

Budismo

Dentre as diversas escolas do budismo, é especialmente no zen budismo que a dinâmica da


cozinha apresenta suas regras. Denomina-se culinária Shôjin, o conjunto de práticas de cozinhas
de mosteiros da tradição zen budista. Nestes mosteiros, o tenzo (cozinheiro chefe), é sempre um
monge de alta elevação espiritual. Ele é responsável pelo cardápio e coordenação do trabalho na
cozinha.

A culinária Shôjin promove integração com o ambiente, levando em conta os processos


produtivos e suas consequências:

Por exemplo, o alimento deve ser aproveitado integralmente – nenhum talo, semente ou
casca é desperdiçada. E só se usa legumes, verduras e frutas da época e cultivados na
região. Muitos mosteiros tem têm , inclusive, seu pomar e horta.417

415
Adventist Online Yearbook. www.adventistyerabook.org. Acesso em: 20/04/2014.
416
Superbom. www.superbom.com.br. Acesso em 20/04/2014.

130
Também é necessário respeitar o alimento também do ponto de vista simbólico. Não julgando-o:

Cozinhar no estilo Shôjin requer uma atitude sincera e respeitosa com relação aos
alimentos, não julga-los pela aparência e ter os mesmos cuidados pela aparência e ter os
mesmos cuidados e consideração para com todos os alimentos. Preparar a comida
cuidadosamente, seja grande ou pequena a quantidade, raro, caro, comum ou acessível,
sem discriminação. 418

Entretanto a tônica da cozinha é o silêncio, o estado de espírito meditativo e contemplativo


enquanto se cozinha. “É o silencio que ajuda a transformar o cozinhar em meditação. E é pelo
silêncio que você entende mais as pessoas do que quando está falando. Sua percepção fica mais
aguçada”, diz a monja Gyoku En.419

Candomblé

No candomblé, obter ingredientes, é uma parte importante do trabalho espiritual, que começa a
partir daí. Exu é dono do mercado, é necessário pedir sua permissão e proteção para que tudo
saia nos conformes.

Dinheiro e mercadorias; narrativas, informações e cumprimentos têm em comum o fato


de serem coisas trocadas. São regidas pelo princípio que governa todas as formas de
troca. E porque a troca é movimento e o movimento implica em transitividade, todas elas
estão subordinadas a Èsù [...] Esquecê-lo quando se vai às compras é nefasto para os
negócios. [...] Isso é verdade, sobretudo, quando se trata de comprar as coisas necessárias
para os rituais.420

Depois, aquilo que é extraído da natureza, simplesmente apanhado, também pede-se licença,
cantam-se cantigas, pois tudo tem um dono.

Os processos de cozinha também exigem condutas específicas. Dada a importância da culinária


litúrgica no candomblé, há uma pessoa designada, um cargo especifico, para comandar a cozinha
de santo, trata-se da Iabassê. Podemos entendê-la como a cozinheira dos Orixás.

417
HOLANDA, A. Meditar e cozinhar, uma boa dupla. Vida Simples. Julho, 2013, p. 54.
418
Monja Gyoku En. apud : HOLANDA, A. op. cit., p. 56.
419
Ibid.
420
VOGEL, A. op. cit., p. 7.

131
Ela que se encarrega com suas imediatas, da elaboração e distribuição ritual das comidas
oferecidas aos santos e por isso deve ser pessoa de grande experiência e equilíbrio.
Geralmente são escolhidas para esse posto mulheres que já atingiram o estagio filosófico
da menopausa – e estão, por isso, isentas das interdições rituais associadas aos dias
considerados impuros, em que as mulheres não devem tocar as comidas sagradas dos
orixás.421

Quem participa da cozinha de santo deve usar suas roupas rituais, brancas, detalhes coloridos
apenas se estiverem relacionados ao orixá. Mulheres devem sempre estar de saia com calçolão
por baixo. Todos devem usar seus fios de conta e demais acessórios rituais. Depois,

a cozinha é cheia de interdições como: não conversar mais que o necessário, não falar
alto, gritar, cantar ou dançar músicas que não sejam do santo, não entrar pessoas que não
sejam iniciadas – dependendo do que se estiver fazendo, somente um numero muito
restrito – não admitir que mulheres menstruadas permaneçam nela, etc. Nesse espaço
sacralizado, tudo vai ganhando significado: a bacia que cai, o garfo, a faca, a colher, o
óleo que faz fumaçar no fogo, etc. Na cozinha se aprende além do “ponto” certo de
determinado prato, que não se dá as costas para o fogo, não se joga sal no chão, não se
mexe comida de orixá com colher que não seja de pau, que a comida mexida por duas
pessoas desanda, que não se joga água no fogo e que algumas pessoas por terem o
“sangue ruim” fazem a comida desandar,. Ou que a presença de pessoas de um
determinado orixá faz com que certa comida não dê certo, como por exemplo: em
cozinha onde se tem gente de Xangô o milho de pipoca queima sem estourar.422

O mais importante, contudo, é a diferença na atitude de quem prepara. Preparar comida para as
pessoas é uma coisa, mas as comidas para por no “pé do Orixá” implicam uma intenção a ser
comunicada:

A diferença está justamente nessas coisas que passam aos nossos olhos como pequenas,
mas que na verdade são grandes. Porque quando estou escolhendo feijão para colocar nos
pés da Oxum, no que estou escolhendo feijão, eu já estou passando com meu
pensamento, com a minha cabeça à Oxum o porque estou fazendo aquilo. 423

421
LIMA, V. apud: JUNIOR. V. C. S. op. cit., p. 111.
422
JUNIOR. V. C. S. op. cit., p. 83.
423
Pai Francisco de Oxum, apud: JUNIOR, V. C. S. op. cit., p. 140.

132
Hinduísmo

Com relação ao preparo da comida, o sistema de castas é um imperativo: “a diferença entre


castas acarreta tabus gerais em relação a comer comida preparada por castas inferiores, assim, há
demanda por Brâmanes (casta mais alta) que desejem ser cozinheiros.” 424 A comida preparada
pela casta mais alta pode ser consumida por todos, mas ninguém quer contaminar-se com a
comida preparada por alguém de uma casta inferior. Entretanto, alguns alimentos tenham
propriedades purificadoras. Algumas preparados pela casta inferior podem ser purificados em
outra etapa do preparo. Samosas (pastéis de vegetais), por exemplo, podem ser purificados
quando fritos em ghee, devido ao caráter sagrado atribuído a este produto.

No hinduísmo fala-se também sobre a vibração que as comidas emanam

Estejamos ou não consciente a cerca das vibrações, elas têm um efeito sobre nós. Desta
maneira, é necessário gerar boas vibrações onde a comida é cultivada, vendida, servida,
armazenada ou transportada. Cozinheiros devem sentir-se inspirados e felizes enquanto
cozinham. Aqueles que servem devem sentir-se felizes ao servir. Comida preparada por
alguém que realmente gosta de cozinhar tem sabor muito diferente do aquela preparada
por alguém ansioso [...] Um cozinheiro que é cuidadoso produzirá uma refeição que não
apenas tem melhor sabor, mas também favorece a digestão.425

Por tudo que um cozinheiro pode emanar à comida, segundo o hinduísmo, ele deve se preparar
para tal atividade, não no sentido da higiene microbiológica, mas no sentido energético:

Na Índia, é tradicional que o cozinheiro tome banho antes de entrar na cozinha. O ritual
serve a dois propósitos: primeiro, faz com que o cozinheiro torne-se especialmente
consciente do trabalho que iniciará, dirigindo sua atenção, e focalizando sua mente no
preparo da comida. Segundo, o banho limpa e purifica, acalma, relaxa, e remove fatiga e
depressão.426

424
LATHAM, J. E. e GARDELLA, P. in: JONES, L. op. cit., p. 3168.
425
JOHARI, H. Ayurvedic Healing Cuisine. 200 Vegetarian recipes for health, balance and longevity. Vermont:
Healing Arts Press, s/d, p. 10. Tradução do autor.
426
Ibid.

133
Islamismo

De forma similar ao judaísmo o Islamismo possui regras estritas em relação à obtenção da carne.
Assim como judeus, muçulmanos também não comem animais que morreram naturalmente ou
que não foram abatidos segundo seus preceitos, há também a interdição do sangue. Chama-se
Zabihah, o procedimento prescrito pela doutrina islâmica, portanto, para que a carne seja
considerada Halal, o abate deve seguir os passos abaixo:

1- O animal deve ser abatido por um muçulmano que tenha atingido a puberdade. Ele
deve pronunciar o nome de Alá ou recitar uma oração que contenha o nome de Alá
durante o abate, com a face do animal voltada para Meca.
2- O animal não deve estar com sede no momento do abate.

3- A faca deve estar bem afiada e ela não deve ser afiada na frente do animal. O corte
deve ser no pescoço em um movimento de meia-lua.
4- Deve-se cortar os três principais vasos (jugular, traqueia e esôfago) do pescoço.
5- A morte deve ser rápida para evitar sofrimentos para o animal.
6- O sangue deve ser totalmente retirado da carcaça.427

Judaísmo

Em relação à obtenção e ao preparo de alimentos no judaísmo as regras principais estão


associadas à interdição da mistura de carne e leite. A proibição da mistura é tão imperativa que
os mesmos não podem nem mesmo serem armazenados no mesmo refrigerador. Também não se
pode usar os mesmos pratos, talheres, panelas e utensílios para manusea-los, mesmo que sejam
lavados entre um uso e outro. Um alimento fleishig (relativo a carne), cozido numa panela
milchig (relativo a leite), torna-se trêfá (impróprio). Nem a mesma chama ou forno devem ser
usados para ambos.

Quando um utensílio de carne for usado, por engano, para leite ou vice-versa, ele pode
tornar-se não kasher, dependendo das circunstâncias. Torna-se não kasher sempre que
tenha sofrido ação do calor ou quando houve contato durante vinte e quatro horas

427
Islamic Food and Nutririon Council of America (IFANCA). www.ifanca.org. acesso em: 02/04/2014.

134
ininterruptas, mesmo em estado frio. O mesmo se aplica quando um utensílio kasher é
inadvertidamente usado para comida não kasher. 428

Há, entretanto maneiras de tornar o objeto trêfá, kasher novamente, realizando-se alguns
procedimentos, embora nem tudo seja recuperável.

Tudo depende do modo como de seu uso e da maneira que se tornou kasher. Panelas e
talheres usados com liquido quente são recuperados por meio de água fervente. Utensílios
usados diretamente sobre o fogo são recuperados incandescendo-os.429

Produtos de barro, cerâmica, porcelana ou com cavidades, falhas, espaços muito estreitos ou
partes coladas com frestas de difícil acesso não podem ser recuperados.430

Durante a Pessah, onde se exige produtos não fermentados, também se faz necessário realizar
procedimentos para utilização de fornos e utensílios que tenham tido contato com fermentos,
hamêts. Deve-se limpá-los bem e acender a chama máxima por meia hora.431

Para que a carne seja considerada Kasher o animal deve ser abatido “Degolarás do teu gado e do
teu rebanho... como te ordenei, e comerás... (Deut. 12, 21).”432 O abatimento dos animais devem
seguir o preceito Shehitá, previsto na Torá:

Este método de abate foi concebido de maneira a causar o mínimo de dor ao animal e a
extrair o máximo de sangue. Consiste de um rápido corte de ida e volta, na garganta do
animal, por meio de uma lâmina perfeitamente afiada, de comprimento adequado, sem a
menor lasca ou falho. O movimento rápido da faca corta a traqueia, o esôfago, os dois
nervos as duas carótidas e as veias jugulares [esse método] assegura a drenagem total e
rápida do sangue animal, ao invés de permitir sua coagulação dentro da carne. 433

O abater ritual é obrigatório apenas para mamíferos e aves, estando peixes isentos. “rebanho e
gado serão degolados para eles... o peixe do mar serão ajuntados para eles (Núm. 11, 22).”434

428
DONIN, H. H. op. cit., p. 135.
429
Ibid.
430
Ibid.
431
Ibid., p. 136.
432
Ibid., p. 123.
433
Ibid., p. 123-124.
434
Ibid., p. 123.

135
Além de um abate que favorece a extração do sangue, há também dois métodos aplicados após o
abate: “deixar de molho e salgar” 435, para que o sal, por osmose faça o mesmo sair, ou “o método
de assar em cima ou em baixo de uma chama ou num forno elétrico ou assadeira elétrica.” 436 De
modo que o sangue escorra.

3.8 Dietética associada à religião

Algumas religiões regulamentam a alimentação de seus devotos com base nos preceitos
religiosos e, sobretudo, calcada em um tipo de filosofia medicinal. As práticas alimentares são
estabelecidas não apenas em adequação aos princípios religiosos, mas também como promotoras
da saúde física.

Adventismo

Os médicos devem velar em oração, compreendendo que ocupam posição de grande


responsabilidade. Devem prescrever para seus pacientes o alimento mais apropriado para
eles. Essa comida deve ser preparada por alguém que compreenda que ocupa
importantíssima posição, visto ser exigido bom alimento para formar-se bom sangue. 437

Entre os Adventistas do Sétimo dia o caráter medicinal da alimentação figura entre um dos mais
fortes princípios da religião. A comida como um objeto de prazer só traz malefícios ao homem,
que deve, além de cultivar a temperança usar a comida para manter-se em sua melhor forma.
A líder espiritual Ellen G. White teria sido uma das grandes responsáveis por estas ideias, dentro
da igreja adventista:

Décadas antes que os fisiologistas estivessem de forma geral preocupados com a relação
existente entre regime alimentar e saúde, a Sr. Ellen G. White, em seus escritos das
visões que foram concedidas em 1863, apontou com clareza a conexão entre o alimento
que ingerimos e nosso bem-estar físico e espiritual.438

435
Ibid., p. 125.
436
Ibid.
437
WHITE, E. G. op. cit., p. 262.
438
Os Depositários das publicações de Ellen G. White. Apud: WHITE, E. G. op. cit., p. v.

136
A obra mais completa de White sobre alimentação, Conselhos sobre o regime alimentar, consiste
numa coletânea de manuscritos, artigos para jornais e livros. Compondo um verdadeiro tratado
sobre como e porquê cuidar da saúde através da alimentação a obra possui um viés bastante
nutricional, entretanto, alertando sobre a obrigação do homem em cuidar da propriedade de
Deus, o corpo. Observando a fala de White percebemos que o cuidado com a saúde, na doutrina
adventista possui conotações morais. Comer adequadamente é ser bom, entregar-se aos prazeres
da comida é desvirtuar-se:

Ninguém que professe piedade considere com indiferença a saúde do corpo, iludindo-se
com o pensamento de que a intemperança não é pecado e não afeta a espiritualidade.
Existe íntima correspondência entre a natureza física e a natureza moral. Quanto a nossos
primeiros pais, o desejo imoderado trouxe em resultado a perda do Éden. A temperança
em todas as coisas tem mais que ver com nossa restauração no Éden, do que os homens o
imaginam. A transgressão da lei física e transgressão da lei de Deus. Nosso Criador é
Jesus Cristo. Ele é o autor de nosso ser. Criou a estrutura humana. É o autor das leis
físicas, assim como da lei moral. E o ser humano que se descuida, que descura dos
hábitos e práticas atinentes à sua saúde e vida física, peca contra Deus. 439

No site oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia, há um ícone Missão e Serviço, contendo uma
seção referente à saúde com a seguinte informação: “A Igreja Adventista do Sétimo Dia atua por
meio de redes de hospitais, clínicas e centros de vida saudável. Desenvolve ainda atividades
como cursos de culinária vegetariana, feiras de saúde, entre outras ações de saúde preventiva.” 440

A Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) é conhecida por sua iniciativa em educação e saúde,
possuem escolas e hospitais. O oferecimento deste tipo de serviço está previsto desde a fundação
da IASD. Suas instituições dão muita atenção à questão da alimentação.

No ano de 1863, na cidade de Otsego, NY, Ellen White recebeu a mais importante visão
sobre saúde, onde Deus lhe revelou importantes princípios relacionados a essa área. Três
anos mais tarde em setembro de 1866, a IASD abriu sua primeira instituição de
atendimento ao público, que se tornou conhecida como o “Instituto Ocidental da Reforma
de Saúde”.

Das diversas ramificações protestantes, é a IASD que parece ter a maior preocupação com a
alimentação. As ideias de Ellen White entretanto, tiveram base no precursor desta relação

439
WHITE, E. G. op. cit., p. 42.
440
Institucional Igreja Adventista do Sétimo Dia. http://adventistas.org. Acesso em: 19/04/2014.

137
“prática protestante-saúde-alimentação”, o ministro William Sylvester Graham da igreja
presbiteriana. Graham pregava além dos ensinamentos bíblicos, uma doutrina vegetariana que,
por sua vez, seguia as teorias vitalistas que circulavam pela França por volta da década de 1830.

A ideia de que o sistema nervoso fosse a sede de uma força da qual dependia toda a vida
estava bem de acordo com a cruzada inicial contra o álcool. Segundo ele, a nova ciência
da fisiologia demonstrava que a bebida era responsável por uma excessiva estimulação do
sistema nervoso, a qual minava essa força vital e colocava o corpo à mercê da doença, da
astenia e da morte. Graham estendeu rapidamente essa acusação a outras formas de
excitação nervosa – principalmente, à atividade sexual, e ao consumo de carne e
especiarias – o que lhe permitiu afirmar que o vegetarianismo e a castidade se baseavam
em verdades fisiológicas científicas.441

O discurso de Graham seduziu muitas autoridades e famosos, que se tornaram vegetarianos,


entre eles: Joseph Smith fundador da igreja mórmon e Ellen White da igreja adventista, que
desenvolveu amplamente esta “doutrina alimentar.”

Hinduísmo

A dieta hinduísta tem fortes laços com a tradicional medicina ayurveda, já praticada na Índia
antes mesmo do nascimento do hinduísmo. As práticas da Ayurveda (Ayu “vida, modo diario de
vida” + Veda “conhecimento”) juntamente com o Ioga e o Tantra estão contidas nos escritos de
Vedas e Upanishads e devem ser praticadas em conjunto para promover a longevidade,
rejuvenescimento e auto-realização do indivíduo.442

“Até o momento, no ocidente, Ayurveda tem sido vista como uma ciência esotérica” 443 , mas
trata-se de um complexo conceito de saúde que “abrange não só a ciência como também a
religião e a filosofia.” 444 Pois segundo Ayurveda, “o homem é um microcosmo da natureza,
assim os cinco elementos básicos presentes em toda matéria existem também dentro de cada
indivíduo” 445 influenciando-o. Cada ser é uma combinação deste elementos em diferentes

441
LEVENSTEIN, H. A. Dietética contra gastronomia: tradições culinárias, santidade e saúde nos modelos de vida
americanos. In: FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. op. cit., p. 827.
442
LAD, V. op. cit., p. 20.
443
Ibid., p. 11.
444
Ibid., p. 15.
445
Ibid., p. 24.

138
proporções, estas combinações atribuem-lhe características físicas, psicológicas, espirituais e de
funcionamento específico.

Éter, ar, fogo, água e terra, os cinco elementos básicos, manifestam-se no corpo humano como
três princípios básicos, ou humores, conhecidos por tridosha [três doshas] [...] – vata, pitta,
kapha – [que] governam as funções biológicas, psicológicas e fisiopatológicas do corpo, da
mente e da consciência.”446 Os doshas estão relacionados aos:

três modos primordiais da natureza pura, consciência universal indiferente. Conhecidos


como gunas, estes três atributos fundamentais apresentam o processo evolutivo natural
que o sutil atravessa. Em oposição, objetos densos, pela ação e interação entre eles
podem tornar-se sutis novamente:

Sattva significa essência, corresponde a Pitta;

Rajas significa atividade e corresponde a Vata;

Tamas significa inércia e corresponde a Kapha.447

Algumas pessoas são claramente dominadas por um dos tridoshas, enquanto outras são
dominadas por várias combinações. 448

Doshas Elementos Predominância de Humor


Vata ar e éter Ar
Pitta fogo e água Bile
Kapha água e terra Muco
Vata-Pitta ar, éter, fogo e água ar/bile
Vata-Kapha ar, éter, água e terra ar/muco
Pitta-Kapha Fogo, água e terra bile/muco
Vata-Pitta-Kapha Ar, éter, fogo, água e terra ar/bile/muco em proporções iguais

446
Ibid.
447
JOHARI, H. op. cit., p. 12.
448
Ibid., p.7.

139
As combinações manifestam-se no sujeitos de várias maneiras, fazendo-os preferir frio ou calor,
serem mais irritáveis, afáveis, distraídos, tenazes, ambiciosos. Assim como, magros ou gordos,
com peles secas, viçosas ou oleosas, com unhas e cabelos fortes ou fracos; com preferência por
certas paisagens, montanhas e árvores, mares e rios ou vales e campos, etc. Têm também sonhos
relacionados aos elementos predominantes.

“Os tridosha são [também] responsáveis pelo surgimento de anseios naturais e preferências
individuais por alimentos: seus sabores, temperaturas.” 449 Segundo estes princípios, há seis
paladares (rasa), assim como os seres humanos e tudo o que há no mundo, derivados dos cinco
elementos450:

Paladar Elemento
Doce Terra e água
Ácido Terra e fogo
Salgado Água e fogo
Picante Fogo e ar
Amargo Ar e éter
Adstringente Ar e terra

A ideia geral deste sistema é manter o equilíbrio dos elementos através do consumo de alimentos
que estejam em contraste às características excessivas.

A predominância de certo dosha, indica inclinação a um dos gunas. Uma pessoa com tendência à
inércia, tamas, tem em sua constituição predominância de Kapha, e, deve evitar os alimentos que
contenham em sua composição os mesmos elementos de Kapha, terra e água. Ele deve consumir
mais alimentos com os outros elementos, de vata e pitta. Os sabores, neste sentido funcionam
como indício daquilo que se deve ingerir. Entretanto, há que se considerar, além do rasa, o virya
(poder), uma espécie de ação seguida da ingestão, podendo ser combustiva, digestiva, vomitiva
ou purgativa. Alguns alimentos têm ação (virya) diferente do que os seus sabores (rasa) indicam.

449
LAD, V. op. cit., p. 29.
450
Ibid., p. 107.

140
O mel, por exemplo, tem rasa doce, mas virya quente como o sabor picante. Há também um
terceiro aspecto que deve ser considerado, vipak, relacionado ao efeito pós-digestão.

O capítulo XIII – Medicamentos, do livro Ayurveda, a ciência da autocura, do Doutor em


medicina ayurveda, Varsant Lad, traz uma ampla variedade de alimentos para os mais diversos
males. São ingredientes que se deve ter sempre em casa, uma espécie de “primeiros socorros”
caseiros, que em vez de habitar o armarinho do banheiro fica na cozinha. Há também uma lista
de alimentos que devem ser usados cotidianamente para que tenham ação preventiva. Os
principais alimentos relacionados no capítulo com suas respectivas propriedades são: Ghee,
pimenta-do-reino, mostarda, cravo, canela, cardamomo, aniz estrelado, noz moscada, coentro,
cominho, alho, gengibre, mel, alcaçuz, cúrcuma, sal, entre outros.451 Os masalas (misturas de
especiarias) ou curries, como conhecemos no ocidente, constituem uma verdadeira panaceia
preventiva.

É necessário conhecer muito bem os alimentos e dominar precisamente as técnicas de


diagnóstico para se prescrever os alimentos. Os diagnósticos são realizados através da
observação do pulso radial, da língua, face, lábios, unhas e olhos. Além das características
físicas, considera-se também as tendências emocionais. “O medo está associado a vata; raiva a
pitta, e cobiça, inveja e possessividade a kapha. Se alguém reprimir o medo os rins ficarão
perturbados; se for a raiva, o fígado sentirá; cobiça e possessividade prejudicarão o coração e o
baço.”452

Em outro nível, o homem é formado pelo Dhatus, ou tecidos: Plasma, constituído pelos
alimentos, Sangue, composto pelo plasma, Carne, constituída pelo sangue, Gordura, constituída
pela carne, Ossos, originários da gordura; Medula, formada a partir dos ossos; e Sêmen, derivado
da medula. 453 O importante aqui é percebermos que na visão hinduísta, o ser humano começa a
partir da comida:

De acordo com o hinduísmo, comida é verdadeiramente um aspecto de Brahma (annam


parabrahma swaroopam). Por ser um presente de Deus, deve ser tratada com respeito. O

451
LAD, V. op. cit., p. 157-175.
452
Ibid., p. 84.
453
JOHARI, H. op. cit., p. 7.

141
corpo material denso é chamado annamayakosh, ou corpo-comida, porque é nutrido pela
comida e cresce absorvendo energias da comida. 454

Daí todas as oferendas, banquetes relacionados às colheitas e posturas religiosas em relação à


comida. De todas as religiões abordadas neste trabalho o hinduísmo tem certamente a visão que
mais integra medicina, alimentação e religião.

Vale ressaltar também a grande semelhança entre a medicina ayurveda, chinesa e grega, também
relacionadas a estereótipos constituídos pelos elementos e a manutenção de seu equilíbrio via
alimentação.

454
JAYARAM V. Hindu Web Site. op. cit.

142
IV OS EFEITOS DA ASSOCIAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E COMIDA:
FUNÇÕES DA ALIMENTAÇÃO NO CONTEXTO RELIGIOSO

Baseando-nos no material apresentado até o momento percebemos nos primeiros dois capítulos
que a alimentação, da nutrição a veículo de representação de valores coletivos, exerce diversas
funções, dentro e fora das religiões. Assim, buscamos abordar a questão da comida nas religiões
sob vários aspectos, demonstrando que ora sua função é mais materialista, conduzindo-nos à
nutrição e à biologia, ora sua função é simbólica, podendo atuar de forma individual ou coletiva
conduzindo-nos às esferas cultural e social.

Todas as religiões possuem práticas alimentares, por isso é possível compará-las, apesar de suas
diferenças. Adotamos sete religiões entre as mais praticadas e aquelas que mais têm na comida
um elemento ritualístico; percebemos que muitas apresentam práticas em comum, o que tornou
possível agrupar tais práticas em nove categorias que abrangem praticamente todas as formas de
utilização de práticas alimentares. Entretanto, dentro destas nove categorias, há apenas uma
categoria comum a todas as religiões, as interdições alimentares. Todas possuem alguma
interdição, entretanto, estas interdições variam muito entre elas. O que nos remete ao mesmo
princípio que rege as relações sexuais: todas as culturas consideram o incesto, mas não há acordo
quanto quais relações seriam incestuosas.

As categorias alimentares mais encontradas dentro das religiões escolhidas são o jejum, as
interdições alimentares, os alimentos como símbolo específico e as regras no preparo ou
obtenção dos alimentos, que na maioria dos casos estão relacionadas às interdições. Temos nas
duas primeiras categorias de maior ocorrência, a questão biológica do descondicionamento, isto
é, a superação ou supressão de certos instintos, tais como a fome. Naturalmente as religiões não
colocam suas práticas alimentares nestes termos, mas é nossa intenção enfatizar que estas
práticas têm uma ação psicofisiológica sobre os indivíduos, demonstrando os aspectos biológicos
e materiais explorados no primeiro capítulo.

Já as duas categorias subsequentes demonstram um viés cultural, uma vez que não se trata de
princípios que otimizem os aspectos nutricionais da comida, mas que são construídos
culturalmente, conforme exploramos no segundo capítulo. Devemos ressaltar, entretanto que, a

143
categoria interdições alimentares também pode se enquadrar na cultura, já que a decisão sobre o
que não comer é, na maioria das vezes, fundamentada em aspectos culturais.

As categorias de menor ocorrência são os sacrifícios animais e a filosofia medicinal ligada à


alimentação. O que elas têm em comum é que poderiam ser consideradas “categorias históricas”,
isto é, que mudaram ao longo do tempo. Os sacrifícios já foram praticados na maioria das
religiões do mundo antes do Cristianismo. Antes desta época, esta seria certamente uma das
categorias mais praticadas. No caso da relação medicina/alimentação/religião é possível também
que fosse estreita no passado e que tenha se afrouxado à medida que a medicina enveredou para
a ciência (secular) e a alimentação enveredou para gastronomia (hedonismo) ou para a nutrição
(secular).

Devemos também destacar que dentro das nove categorias mencionadas as práticas diferem em
relação a suas funções. Embora tenhamos conseguido agrupar todas as práticas descritas em
apenas nove categorias elas possuem funções gerais similares e funções específicas diferentes.

Com relação às funções gerais, gostaríamos de deixar claro que não é uma classificação adotada
pelas religiões e que, foi criada por nós como resultado da aplicação da teoria abordada nos
primeiros dois capítulos. Entre as funções gerais, destacamos o descondicionamento, que trata do
mecanismo biológico que permite aos seres humanos determinar sua alimentação através de
regras culturais aprendidas socialmente. Através das categorias alimentares jejum, dietas
regulares e interdições alimentares, por suas restrições, o homem aprende a submeter seus
instintos a razões simbólicas. Colocamos, para efeito didático, como se o descondicionamento
fosse a primeira lição ensinada pelas religiões em termos de alimentação. Num segundo
momento outra função geral da comida a ser transmitida seria a partilha de alimentos. Através
dela as religiões ensinariam o homem a partilha através das categorias alimentares oferendas de
alimentos e sacrifícios animais; em vez de acumular tudo para si, como ditam os instintos. A
seguir abordamos a função conectividade/comensalidade. Conectividade e comensalidade são
dois conceitos tratados aqui praticamente como sinônimos, a conectividade refere-se aos
sistemas e a comensalidade à pessoas que comem juntas. Como consideramos um grupo de
pessoas, um sistema, as palavras equivalem-se. Nossa intenção é ressaltar a função
amalgamadora das refeições coletivas, representadas na categoria banquetes; e da força
simbólica dos alimentos, representada na categoria alimentos como símbolo específico. Outra

144
função importante desempenhada pela comida nas religiões refere-se à construção da identidade
de um grupo religioso. O item Identidade e contaminação explora o conceitos de identidade
construídos a partir da alimentação em oposição àquilo que não é parte da identidade,
representando, potencialmente, elementos de contaminação. A identidade é expressa em
basicamente todas as categorias alimentares, pois elas determinam aquilo que define, em termos
de práticas alimentares, certa identidade religiosa, como, por exemplo os alimentos como
símbolo específico, os banquetes, as dietas regulares e as regras na obtenção e preparo de
alimentos. E por negação, aquilo que é contaminação opõe-se à identidade religiosa, segundo as
categorias dietas regulares e interdições alimentares. Quanto às categorias restantes: jejum,
oferendas de alimentos, sacrifícios de animais e dietética associada à religião; são parte da
identidade nas religiões que as têm e contaminação nas que não as têm. Por fim, outra função
desempenhada pela alimentação refere-se à marcação do tempo. O calendário teve sua primeira
utilidade para marcar o tempo de semear e de colher, depois com a religião associada, as datas
tornaram-se religiosas, mas com as comidas típicas. Sendo assim, as comidas passaram a ser
verdadeiros marcadores de tempo. A esta função estão associadas as categorias banquetes, com
suas datas especificas para ocorrer e alimentos como símbolo específico, uma vez que certos
alimentos marcam ocasiões especificas. Também a categoria jejum marca através do não comer,
as épocas de penitência, de expurgo, de pedir perdão, etc. Sacrifícios de animais e oferendas de
alimentos são categorias especialmente ligadas a esta função, já que devem obedecer
rigorosamente as determinações do tempo.

Não nos ateremos, neste trabalho, às funções específicas diferentes, uma vez que elas variam
entre as religiões, podendo inclusive, ser diferentes entre os membros de uma mesma religião, tal
estudo exigiria profunda pesquisa de campo. Sem isso, seria mera interpretação.

4.1 Descondicionamento

Os princípios alimentares de cunho religioso fazem com que o indivíduo, pela sua crença
aprenda a domesticar seus instintos alimentares. Vimos no capítulo I, a fome figura entre um dos
instintos mais difíceis de controlar, pois trata-se do mais importante programa biológico pró
sobrevivência. O homem programado para comer de tudo e em profusão, criou e aprendeu a ter

145
regras para se alimentar. Ele continua a ser provocado pelo programa do acúmulo, mas pode
escolher a quantidade, ou os alimentos que não necessariamente impliquem em prazer e
plenitude, mas que acredite trazer-lhe outros benefícios mais fundamentais ou mais desejados.
Os limites no consumo podem ser convertidos em autocontrole. Conforme sugere o Rabino H. H.
Donin:

Quem foi treinado para resistir desejos por alimentos proibidos, pode ter fortalecido a sua
capacidade para resistir desejos por envolvimentos sexuais proibidos. Pode tê-lo
fortalecido para resistir a tentação de agir não eticamente no intuito de conseguir
vantagens financeiras ou privilégios de status.455

A capacidade de alterar ou suprimir certos programas biológicos é chamada, segundo Lorenz, de


descondicionamento. “Ordens monásticas usavam jejuns para diminuir o desejo sexual,
promover o celibato, elevar a austeridade em oposição à indulgência e mortificar a própria
carne.”456 O descondicionamento refere-se à flexibilidade do mecanismo recompensa/castigo e
visa evitar danos ou prejuízos; ou obter melhores ganhos:

Os princípios opostos da recompensa e do castigo existem para manter o equilíbrio entre


preço a pagar e o lucro em perspectiva. Isso é demonstrado pelo fato de sua intensidade
variar de acordo com a economia do organismo. Se a alimentação é abundante, sua força
de atração diminui a tal ponto que o animal dá apenas alguns passos para alcança-la, e
nesse caso qualquer estímulo negativo é suficiente para acabar com o apetite. No caso
inverso, a capacidade de adaptação do mecanismo prazer-desagrado permite ao
organismo, em período de necessidade, pagar um preço exorbitante para alcançar uma
meta vital.457

“Os seres humanos buscam o que percebem ser recompensas e evitam o que percebem ser
custos.”458 Apesar do imperativo instinto da fome, um indivíduo pode enxergar nas práticas do
jejum e na renúncia a certos alimentos, encontradas nas interdições alimentares ou dietas
regulares, recompensas ou eliminação de custos que compensem tal restrição. Citamos também

455
DONIN, H. H. op. cit., pp. 116-117.
456
GOLDBERG, R. The Adaptiveness of Fasting and Feasting Rituals: Costly adaptive Signals? In: FEIRMAN, J.
R. (Org.) The Biology of religious behavior: the evolutionary origins of faith and religion. California: ABC-CLIO
LLC, 2009, p. 193. Tradução do autor.
457
Ibid, p. 55.
458
STARK, R. e BAINBRIDGE, W. S. op. cit., p. 37.

146
aqui a categoria dietética associada à religião, que faz com que o indivíduo faça uma escolha
racional sobre os alimentos.

Conforme vimos no item 2.5 A função domesticadora dos sistemas simbólicos religiosos, por
implicar a fé, a religião pode convencer o indivíduo a adotar muitas posturas, inclusive deixar de
comer temporariamente ou a deixar de comer certos alimentos por oferecer recompensas ou
compensadores concretos ou simbólicos que valham a restrição alimentar para o indivíduo.
“Apesar do rigor dos primeiros muçulmanos, ou talvez por causa disso, o Alcorão e o Hadith
estão repletos de referencias sobre as comidas e bebidas que aguardam os fiéis no Paraíso.” 459

Não entraremos no mérito de estabelecer quais as recompensas e custos implicados em cada


prática, pois eles variam segundo cada pessoa, podendo num mesmo grupo religioso serem muito
diferentes.

As recompensas variam de acordo com o tipo, o valor e a generalidade [...] Sabemos que
desejamos algumas coisas mais do que outras. Alguns desejos são biologicamente
condicionados, alguns pelo meio ambiente, outros pela cultura, e alguns, inclusive,
dependem da historia particular de uma pessoa. Esta variação não é pertinente aqui. Tudo
o que se afirma é que para todo individuo existem coisas que ele quer menos e outras que
ele quer mais. 460

Um hinduísta poderia submeter-se a jejuns regulares para obter autocontrole. Um judeu pode não
misturar carne e leite por acreditar que sofrerá algum tipo de punição por tornar-se, de acordo
com os princípios judaicos, impuro quando mistura as duas coisas. Um seguidor da Igreja
Adventista do Sétimo Dia pode submeter-se ao rigor da dieta adventista para obter em ultima
instância saúde física e longevidade, caso que se aplica à categoria dietética associada à religião,
por exemplo.

Houve na Europa cristã medieval uma verdadeira “epidemia” de mulheres que praticavam jejuns
auto-impostos em nome de sua fé. Muitas delas ficaram conhecidas como as Santas Jejuadoras
(Lidwina de Schiedam, Santa Catarina de Siena, Santa Vilgefortis, Santa Clara de Assis, entre
outras). A maioria delas morreu por volta dos 30 anos de idade devido a doenças associadas à
desnutrição. Havia boatos de que muitas se alimentavam apenas da hóstia e do vinho da
459
MILLER, H. D. Os Prazeres do consumo. O nascimento da culinária islâmica medieval. In: FREEDMAN, P. op.
cit., p. 137.
460
Ibid., p. 38.

147
Eucaristia. Jejuar até quase a morte (muitas vezes até a morte) era a única forma de contrariarem
o contexto social machista da época. O ascetismo feminino afirmado através da castidade e do
jejum outorgava-lhes algum poder.461 De acordo com Caroline Bynum, em seu artigo Fast, Feast
and Flash sobre a associação comida/religião na Idade Média, declara que o ascetismo feminino,
praticado especialmente através do jejum era uma das formas de elevação espiritual da mulher:

Assim como o comportamento de Lidwina de Schiedam ou os insights teológicos de


Catarina de Siena sugeriram, jejum, comer e alimentar significavam sofrimento e
sofrimento significava redenção. [...] A mulher está para o homem assim como a matéria
estás para o espírito. A mulher ou o feminino eram vistos como símbolo como a parte
física da natureza humana, enquanto o homem simbolizava o espiritual ou o racional. 462

Muitas destas mulheres conseguiram ocupar posições de certo destaque na sociedade devido ao
seu ascetismo. Embora o jejum lhes custasse a saúde, recompensava-lhes através da sensação de
redenção e de um tratamento diferente em relação às outras mulheres de sua época.

A função descondicionamento faz com que um indivíduo, pertinente a uma religião, suprima
alguns instintos mais básicos quando percebe vantagens em pertencer ao grupo. Neste caso,
podemos inferir que o descondicionamento, enquanto função das práticas alimentares,
desempenha também um importante papel social:

No jejum religioso, a autonegação de alimentos desejáveis permite a um indivíduo se


elevar no ranking social através da demonstração de disciplina no comer, de uma maneira
que é socialmente admirada. Quando as pessoas jejuam simultaneamente, a experiência
de comunhão pela privação pode melhorar a coesão do grupo, assim, populações
altamente motivadas e disciplinadas ganham vantagens competitivas em relação aos
menos coesos. 463

Tal é o poder de coesão de tais práticas que houve quem tentasse induzir à prática inversa para
enfraquecer o grupo: “a única época em os nazistas serviam comida descente nos campos de

461
WEINBERG, C. e CORDÁS T. A. Do altar às passarelas: da anorexia santa à anorexia nervosa. São Paulo:
Annablume, 2006.
462
BYNUM, C. W. Fast, Feast and Flesh. In: COUNIHAN, C. e ESTERIK, P. op.cit., p. 132.
463
GOLDBERG, R. In: FEIRMAN, J. R. (org.) op. cit., p. 191.

148
concentração era nos dias de jejuns dos judeus, com intenção de zombar do Judaísmo e quebrar a
solidariedade entre os judeus.”464

O Exemplo das Santas Jejuadoras evidencia especialmente esta propriedade. Seja num jejum
individual como no caso das santas ou coletivo como no mês de Ramadã, ou mesmo nas dietas
regulares, ou na comunhão das interdições alimentares descritos no capítulo III, conseguimos
detectar nestas práticas uma função social e domesticadora (no sentido descrito no item 2.5)

Na categoria dietética associada à religião não há uma função social, mas cultural, onde
“medicina” e religião fundem-se. Ressaltamos especialmente o aspecto das religiões que se
utilizam da alimentação como forma de cura, segundo esta visão “médico/religiosa”. Este caso
fica evidente na IASD e na medicina ayurveda.

4.2 Partilha de alimentos

Ao final do capítulo II falamos sobre o papel domesticador das religiões, no sentido de que as
religiões, sendo um sistema simbólico que constrói a realidade determina muitos dos
comportamentos do homem, entre eles, os que se referem à alimentação. Usando a própria
alimentação, depois, como uma ferramenta para construir o homem. A alimentação auxilia
através do reforço às proposições religiosas. Se a religião incentiva comportamentos que
facilitam a colaboração no interior do grupo, em relação à alimentação, é esperado que encoraje
práticas onde haja doação, especialmente de alimentos, recurso mais importante ao homem desde
a antiguidade. Num primeiro momento o homem aprende a trocar com os “deuses” ou outras
entidades sobrenaturais que acredita,

Eram antes de mais nada os espíritos dos mortos e dos deuses. Com efeito, são eles os
verdadeiros donos das coisa do mundo. Era com eles que era mais necessário trocar e
mais perigoso não trocar. Mas inversamente, era com eles que era mais fácil e mais
seguro trocar.465

464
Ibid., 194.
465
MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70 Brasil s/d p. 73.

149
Em tese, depois da troca, aprenderiam a doar. A festa do sacrifício no islamismo, Id al Adha,
citada no capítulo III, ilustra bem esta questão, um cordeiro é sacrificado a deus e parte dele deve
ser doada.

Além das categorias jejum, dietas regulares, interdições alimentares e, as práticas alimentares
circunscritas nas categorias oferendas de alimentos e sacrifícios de animais também exercem
sobre o homem as funções social e domesticadora, uma vez que reforça ao homem a partilha de
alimentos. O que já era feito quando o homem aprendeu a caçar animais de grande porte ou
grandes rebanhos de uma vez, adquire com o tempo aspectos culturais. Contra o mesmo
programa acúmulo, o homem abrirá mão de alguns dos alimentos que por vezes lhe são caros ou
desejados, ou abrirá mão de pelo menos de parte destes alimentos. “Os sistemas sacrificiais que
admitem o consumo de uma parte da vítima caracterizam-se, principalmente pela partilha dos
animais sacrificados entre os homens e os deuses e pelo banquete dentro do grupo social.” 466

Oferendas e sacrifícios de alimentos, sempre ligados à religião, instituíram regras para o uso da
terra e daquilo que ela produzia, bem como para abate e consumo de animais. Há uma gramática
sacrificial:

O sacrifício não pode se realizar em qualquer momento, lugar ou circunstancia. Assim


nem todos os momentos do dia ou do ano são igualmente propícios ao sacrifícios, e há
mesmo alguns que os excluem [...] A partir do momento em que começou, deve
prosseguir até o final sem interrupção e na ordem ritual. É preciso que todas as operações
de que se compõe se sucedam sem lacuna e estejam em seu lugar [...] o próprio local da
cena deve ser sagrado: fora de um local santo a imolação não é mais que um
assassinato.467

Na antiguidade observa-se claramente as regras para consumo de carne propiciadas pela prática
sacrificial: “o mundo mediterrâneo antigo está sujeito a uma mesma regra: os animais não
poderiam ser mortos a não ser no respeito à religião, ou seja, sacrificados.” 468

O sacrifício educa o homem porque ensina-o a controlar o instinto da fome, além das regras
sobre tempo, espaço e o modo de abate, ele não poderá consumir o animal (nos sacrifícios em

466
FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. op. cit., p. 127. Grifo nosso.
467
MAUSS, M. e HUBERT, H. op. cit., p. 31-35.
468
FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. op. cit., p. 124.

150
que é queimado), ou pelo menos não poderá consumi-lo inteiro, “para que a vítima possa ser
utilizada pelos homens, é preciso que os deuses tenham recebido sua parte primeiro.” 469

Ao contrário da imagem que muitos têm sobre o sacrifício animal hoje: barbárie, crueldade,
primitivismo; o sacrifício teve e em certas circunstâncias ainda tem um importante papel de
disciplinar a voracidade, porque regulamenta o consumo de carne.

Talvez possamos considerar muito mais “bárbaro” o consumo indiscriminado de carnes em


churrascos por exemplo. Se o consumo da carne sacrificial é gramática, o churrasco é a entropia.
Mesmo porque: “A técnica de assar carne no espeto já vem do homem de Neandertal.”470 A
carne é consumida sem limites, sem aspectos que fortaleçam a coesão do grupo e sem nenhum
objetivo que favoreça a espécie, nem mesmo nutricionalmente, uma vez que o consumo
excessivo de carne causa doenças como obesidade, hipertensão arterial, acidentes vasculares, etc.

É através dos sacrifícios e das oferendas que se aprende a “pagar” aquilo de que se usufrui, isto
é, o homem aprende não apenas a usar indiscriminadamente, mas a trocar. Para obter o favor dos
deuses, deve oferecer algo em troca, abrir mão de alguma coisa. “Em todo sacrifício há um ato
de abnegação, já que o sacrificante se priva e dá. E geralmente essa abnegação lhe é mesmo
imposta como um dever, pois o sacrifício nem sempre é facultativo; os deuses o exigem.” 471

A comida de Orixá aparece seguida da ideia de retribuição. Seja na cantiga: “Quem me


dá o que comer também come, quem me dá o de beber também bebe...” Ou na
explicação: “Se a gente não der, a gente não recebe, tem que oferecer a eles para que
recebamos.”472

Este processo nos remete ao mecanismo recompensa/custo, explorado anteriormente. O homem


aprende primeiro a noção de economia em seu processo biológico, especialmente por conta do
custos da alimentação, depois aprenderá a “negociar” em outras. Exploramos também este
aspecto no item 2.3 Animais e plantas nos sistemas culinários, quando estas categorias enfatizam
a partilha entre membros de um grupo assume um viés mais social e quando se trata da partilha

469
MAUSS, M. e HUBERT, H. op. cit., p. 50.
470
RADEL, G. op. cit., p. 23.
471
MAUSS, M. e HUBERT, H. op. cit., p. 106.
472
JUNIOR, V. C. S. op. cit., p. 34.

151
ou oferta a seres sobrenaturais observa-se mais a questão domesticadora, pois exige daquele que
oferece ou partilha uma grande convicção.

4.3 Conectividade e comensalidade

“Nós não nos sentamos à mesa para comer, mas para comer juntos.”473

Uma coisa é partilhar alimentos, conforme vimos no item anterior, outra é comê-los junto.
Sentar-se à mesma mesa pressupõe cumplicidade.

Se nas categorias sacrifícios de animais e oferendas de alimentos observamos que homem


aprende a dividir e mais propriamente, socializar alimentos, é na questão da comensalidade que
este processo chegará ao ápice. À mesa socializa-se comidas, crenças e valores. Detalharemos
aqui os aspectos da comida capazes de promover coesão; na teoria de sistemas falamos
sinonimamente em conectividade. Em gastronomia e história da alimentação falamos em
comensalidade para designar uma relação proporcionada pela “mesa”.

As festas, os banquetes ou cerimônias religiosas que envolvam refeições coletivas e que tenham
alimentos que sejam símbolos destas ocasiões retratam o aspecto mais social da comida. A
partilha de alimentos de maneira especifica e no momento determinado, associados aos símbolos
propícios favorecem unicidade e coesão. Não é apenas comer junto, mas à mesa compartilham-
se, além dos alimentos, crenças, valores, visões de mundo. A comensalidade pressupõe
intimidade e concordância.

Há uma diferença abismal entre dar comida a alguém, para que essa pessoa coma onde e
como possa, ou convidar alguém a sentar à própria mesa para compartilhar com conosco
a mesma energia de vida que nos sustenta. Sobretudo quando a pessoa a quem
convidamos não é um personagem, um parente, um amigo, mas alguém qualquer ou, o
que seria ainda mais estranho, alguém que nos parecesse desagradável ou mesmo
repugnante.474

473
PLUTARCO.
474
CASTILLO, J. M. Jesus y La comida. Colección Estrucutras y Procesos. Serie Religión. Madri: Editorial Trotta,
2009, p. 222. Tradução do autor.

152
Comer junto é um tipo de comportamento que implica necessariamente uma relação. Percebemos
este aspecto pelas palavras utilizadas para designar as relações à mesa; comensalidade significa
camaradagem à mesa e, compartilhar, etimologicamente, significa partilhar o pão, embora
partilhem-se também ideias, valores, etc.

Portanto, dentro do pensamento sistêmico, comer junto promove conectividade entre os


componentes do sistema, isto é, cooperação entre os membros do grupo, favorecendo a
permanência do mesmo. A conectividade é um dos parâmetros sistêmicos mais fundamentais,
tendo sido apresentado no capítulo I. Citamos como exemplo o judaísmo, que apesar de ter seus
membros dispersos pelo mundo, tem na sua culinária um elemento de unicidade.

Porém, não apenas no Judaísmo, mas em todas as religiões citadas no item 3.4 Banquetes e
alimentos como símbolos específicos, que possuam refeições coletivas tal qual banquetes,
especialmente quando são servidos alimentos com forte carga simbólica é que os elos são
formados. A força de coesão destes eventos consiste primeiro em comer junto e, segundo em
reviver um mito expresso numa linguagem particular, a comida. Compreender o significado das
iguarias servidas é falar a “língua” do grupo. E não apenas isso, mas saber como e em que
momento comer, como se comportar, reflete a existência de uma linguagem ritual expressa
através da comida e que conecta os membros, deixando de fora aqueles que não a dominam. “Os
‘léxicos especiais’ [alimentos com valor simbólico específico], reservados a um grupo restrito de
consumidores, assumem um sentido distintivo somente numa cultura compartilhada.” 475 É em
relação ao comer junto, que toda a nossa discussão a respeito da gramática (ver item 2.2
Semelhanças entre regras de linguagem e regras de alimentação) faz sentido. Cada grupo possui
uma “gramática alimentar” própria que consiste num elemento agregador entre seus membros e
que, exclui os que não a dominam. Isto funciona já em grupos seculares, mas tem um peso
consideravelmente maior se este grupo for religioso. Neste caso, a comensalidade inclui os seres
imateriais, ou pelo menos a sua supervisão. Especialmente nos banquetes sacrificiais a partilha
do animal sacrificado inclui a parte de um ser invisível, sendo um deus, um ancestral, etc. “Os
poemas homéricos nos mostram os deuses participando dos banquetes sacrificiais. A carne
cozida, reservada ao deus, lhe era apresentada e colocada à sua frente. Ele devia consumi-la.”476

475
MONTANARI, M. 2008, op. cit., p. 166.
476
MAUSS, M. e HUBERT, H. op. cit., p. 43.

153
Muitos dos aspectos de socialização do homem, como já vimos anteriormente, no item 1.3.2
Como a forma de obter os alimentos favoreceu o desenvolvimento, humano surgiram no processo
da busca de soluções em alimentação, tais como a partilha da carne após a caça. Tais aspectos,
tornando-se mais complexos à medida que o homem se desenvolvia no pensamento simbólico,
significaram um ponto de distinção entre a alimentação dos homens e a dos animais. Assim
como a linguagem dos homens frente a linguagem dos animais; “o comportamento alimentar do
homem distingue-se do dos animais não apenas pela cozinha – ligada, em maior ou menor grau,
a uma dietética e a prescrições religiosas – mas também pela comensalidade e pela função social
das refeições.”477

4.4 Identidade e contaminação

Se por um lado a alimentação funciona como um verdadeiro amálgama social entre os membros
de um mesmo grupo religioso, por outro ela tem a ação de uma barreira quando se pensa em
vários grupos. “O modo de se alimentar deriva de determinado pertencimento social e ao mesmo
tempo o revela.”478 Por isso, grupos rivais não podem nem dividir a mesma mesa, nem partilhar
as mesmas práticas alimentares.

Conforme vimos na teoria de sistemas apresentada no capítulo I, o que define um organismo são
sua organização e sua estrutura. São estes dois parâmetros que delimitam a identidade do
sistema, isto é, as características e a dinâmica pelas quais ele é reconhecido. Não é nossa
intenção explorar o conceito de identidade em profundidade, adotamos aqui um conceito muito
geral, de forma que o mesmo possa ser utilizado em diferentes sistemas: biológicos, culturais e
sociais.

Colocamos a identidade como uma espécie de fronteira ou membrana que define os limites do
sistema, sendo aquilo que está fora um contaminante em potencial, tanto de natureza biológica
quanto cultural ou social.

477
FLANDRIN, J-L. in: FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. op. cit., p. 32.
478
MONTANARI. M, 2008, op. cit., p. 125.

154
Onde há sujeira há sistema. Sujeira é um subproduto da ordenação e classificação
sistemática das coisas, na medida em que a ordem implique em rejeitar elementos
inapropriados. [...] Sapatos não são em si sujos, mas é sujeira colocá-los na mesa da sala
de jantar; comida não é sujeira em si, mas é sujeira deixar utensílios de cozinha no
quarto, ou deixar comida salpicada na roupa; do mesmo modo, equipamento do banheiro
na sala de visitas; roupa pendurada nas cadeiras; coisas que são para ser deixadas fora da
casa dentro da casa; coisas do primeiro andar no térreo; roupa de baixo aparecendo, e
assim por diante. Resumindo, nosso comportamento de poluição é a reação que condena
qualquer objeto ou ideia capaz de confundir ou contradizer classificações ideais. 479

Como vimos anteriormente toda alimentação possui uma gramática, uma ordem, o que está fora
dela, gera entropia. Especialmente na culinária litúrgica estes padrões são ainda mais rígidos,
qualquer variação significaria contaminação e poderia colocar o sistema em risco. Raramente se
altera ingredientes, modos de preparo e preceitos alimentares quando os mesmos estão
determinados pelas religiões, a menos que sejam circunstâncias adaptativas de grande
necessidade, como ocorreu com os cultos africanos, ou como ocorre entre os judeus, dispersos
pelo mundo, convivendo em diferentes sistemas alimentares. Ainda que os ingredientes mudem,
preservam sua sintaxe, isso se traduz em identidade.

Sugerimos que o leitor reveja a citação 73 de Konrad Lorenz. para compreender que o
mecanismo de contaminação/defesa contra contaminação tem origem na biologia, mas é
projetado também nas esferas cultural e social.

Nenhum sistema consegue permanecer estático frente as perturbações do ambiente; a troca e a


adaptação são inevitáveis, fazendo com que este sistema tenha sua identidade constantemente
ameaçada. Se o sistema se mantém fechado não obtém recursos para sua manutenção; se troca
demais, acaba perdendo os componentes que lhe definem.

Perder a identidade também é uma forma de morrer, visto que, se o organismo modificar-se a
ponto de alterar sua organização tornar-se-á outro sistema. Assim, todo sistema possui seus
mecanismos de prevenção contra contaminação. Cada sistema deve gerenciar a entrada de novos
elementos versus o risco de contaminação. Este nosso importante programa biológico, já
explorado no item 1.3.1 manifesta-se também nos níveis cultural e social, já que tudo o que
fazemos não deixa de ser uma variação simbólica das soluções que a natureza formulou.

479
DOUGLAS, M. op. cit., p. 50.

155
A questão alimentar reflete muito bem este jogo de adaptações, trocas e identidades. No caso
religioso este jogo não é apenas um legado que remete a um simples passado, mas um legado que
conecta os fiéis àquilo que consideram sua origem existencial, como por exemplo, a ligação aos
ancestrais, aos profetas, às divindades ou princípios criadores. Sendo assim, a questão alimentar
é uma parte importante na construção das identidades religiosas, “comida e cultura, da
perspectiva da memória, são formas de ligar a vida cotidiana dos indivíduos com suas tradições
históricas no que tange religião, ritual e status.”480

Percebemos entre as religiões comparadas no capítulo III uma série de similaridades e diferenças
entre suas práticas alimentares e que, de algum modo, quando falamos em identidade, a comida
passa a ser um código que revela pertencimento sócio-religioso. “A alimentação assume a função
de distinguir religiosamente os povos para os quais a dieta torna-se um assunto muito mais
transcendente do que a mera satisfação do estômago.”481

A alimentação e a mesa são, em geral, espaços privilegiados em que se manifestam as


particularidades culturais, as reivindicações nacionais e as querelas religiosas. Abençoar
os alimentos com o sinal de sua fé é conferir-lhes uma identidade precisa e impedir que
os outros os consumam.482

Os indivíduos se reconhecem em seus sistemas alimentares e, demonstram naturalmente


indiferença ou repulsa pela “comida dos outros”, mas no caso religioso há um receio muito maior
em se contaminar com a “comida do outro”.

Após o cisma do século XI a igreja grega ortodoxa reprovará, no catolicismo romano, sua
grande afinidade com o modelo cultural judeu,; e, também nesse caso, é um símbolo
alimentar a causa básica da discórdia, uma vez que o ritual ortodoxo rejeita o pão ázimo
da tradição judaica (evocado pela hóstia do ritual eucarístico romano) e continua fiel ao
“verdadeiro” pão fermentado do cristianismo primitivo, que ele conserva com orgulho
como símbolo de uma identidade religiosa diferente. Os cristãos de Roma, por sua vez,
acusam os gregos ortodoxos de terem conservado tradições judaicas, como o dia de
descanso no sábado.483

480
ALLEN, J. S. op. cit., p. 179.
481
CARNEIRO, H. op. cit., p. 111.
482
MONTANARI. M. Modelos alimentares e identidades culturais. In: FLANDRIN, J-L. e MONTANARI, M. op.
cit., p. 312.
483
Ibid, p. 314.

156
Além deste, citamos inúmeros exemplos, tais como o uso do leite e da carne de cordeiro entre
judeus e muçulmanos, assim como também a carne de porco como alimento identitário entre os
cristãos. Judaísmo, islamismo e cristianismo, três religiões com a mesma origem, buscaram
diferenciar-se também em muitos aspectos, inclusive na alimentação. O judaísmo, a mais antiga
das três teve suas regras alimentares características. Durante a Idade Média, uma das formas de
reconhecer os judeus era pela alimentação diferenciada. A “comida de judeu” era aquela que, no
mercado dos cristãos, era escolhida e apreciada de preferência, ou exclusivamente, pelos judeus,
que sabiam como prepará-la e cozinhá-la a partir de um numero extraordinário e particular de
receitas.484Depois, a mesma identidade alimentar passou a designar um sinal para encontrar e
perseguir judeus:

Os próprios judeus conservam a sua personalidade de nação, flutuante no espaço mas


sólida através do tempo, guardando os pratos, os doces e os pasteis que mais lhe
recordam as palmeiras e as oliveiras dos seus primeiros dias de povo e cujo preparo
apresenta tanta coisa de ritual ou de litúrgico. Por insistirem em comer alguns desses
quitutes proibidos, vários judeus, no Brasil colonial foram denunciados à inquisição e
presos. Mártires do paladar e ao mesmo tempo da fé. 485

A questão da identidade representada pela comida, no campo religioso é tão contundente que
houve até quem tentasse uma espécie de conversão pelo estômago:

Assim, faz sentido um curioso episódio narrado por um cronista inglês do século XIV,
Walter Map, segundo o qual os heréticos cátaros e valdenses teriam desenvolvido uma
estratégia alimentar para atrair para sua fé seus hóspedes recalcitrantes: “Oferecendo-lhes
pratos especiais, eles transformam em heréticos [como eles] aqueles que logram
convencer com palavras.”486

Comer a “comida do outro” tem uma conotação de incorporar seus valores. As categorias tais
como dietas regulares, interdições alimentares, por suas restrições promovem certa “imunidade
cultural”, já que a alimentação

484
TOAFF, A. Cozinha judaicas, cozinhas judaicas. In: MONTANARI, M. (Org.) 2009, op. cit., p. 183.
485
FREYRE, G. Açúcar. Uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo:
Global, 2007, p. 74.
486
Ibid, p. 313.

157
não é apenas um instrumento de identidade cultural, mas talvez seja o primeiro modo
para entrar em contato com culturas diversas, já que consumir o alimento alheio parece
mais fácil – mesmo que apenas na aparência – do que decodificar-lhe a língua.487

Ao mesmo tempo que as categorias dietas regulares e interdições alimentares, impedem a


entrada do que é estranho, contaminação ou “sujeira”, as categorias banquetes, alimentos como
símbolo específico, reforçam a identidade para os membros do como reafirmam-na perante o
ambiente.

Nos exemplos que acabam de ser apresentados observamos que esta tensão entre identidade e
contaminação através da alimentação determinada pela religião encontra-se nas categorias
alimentares: dietas regulares, interdições alimentares e regras de preparo e obtenção dos
alimentos exploradas no capítulo III. Estas categorias, através das regras que impõem, colocam
um “limite alimentar” às religiões. Assim pode-se reconhecer estas religiões por suas regras
simbólicas sobre aquilo que seus fieis podem ou não podem comer e de que forma. Da mesma
forma, o próprio fiel, pode se reconhecer como parte do grupo quando partilha, por exemplo, um
mesmo tipo de dieta ou interdição. Quando numa destas categorias, a alimentação do fiel torna-
se parte de sua identidade religiosa.

4.5 Sistemas culinários como marcadores de tempo

Desde os tempos mais remotos até os dias de hoje a comida parece exercer também a importante
função de marcar ocasiões, no sentido de formaliza-las e materializá-las.

O início das civilizações está intimamente relacionado com a procura dos alimentos, com os
rituais e costumes do seu cultivo e preparação. Sendo a alimentação a questão mais central da
antiguidade, antes do calendário como conhecemos hoje, o que determinava o ritmo da vida eram
os ciclos agrícolas. “O frio e o calor voltando em épocas certas, os peixes, as aves e os animais
reproduzindo-se em períodos regulares, as flores e os frutos abrindo-se e amadurecendo em
tempos exatos, ensinaram-lhe o ciclo das estações. Reconheceu-as como medida do tempo e

487
MONTANARI, M. (Org.) 2009, op. cit., p. 11.

158
divisões de sua vida anual.”488 “Observando o ciclo sazonal – a estação chuvosa ou seca, a época
de semear ou de colher – o homem aprendeu também a observar o movimento dos astros.”489
Pela observação deste movimento o homem podia “pré-ver” os ciclos da terra. No início, o uso
da astrologia estava relacionado com plantio e colheita de alimentos e ciclo reprodutor dos
animais.

O primeiro calendário egípcio representava um ciclo apenas três meses. “Os meses egípcios não
tinham nome. Chamavam-nos: o primeiro, o segundo, etc. de cada estação. E só havia três
estações: a da enchente, a da semeadura e a da colheita.” 490 O que marcava o início de cada
estação era a posição da estrela Sirius, essa estrela “brilhava ainda mesmo antes do pôr do sol,
mas fazia-se ainda mais brilhante exatamente nos dias em que o prodigioso Nilo principiava a
fecundar, com o seu lodo nas terras marginais.” 491 Os Egípcios começavam seu primeiro mês,
Tot em 19 de junho do nosso calendário atual, por ser este o início dos transbordamentos
fertilizadores regulares. “Aquele dia, portanto, era tão importante na vida egípcia como o dia da
colheita ou ainda mais. Soleníssimas as festas e entusiasmadas as ações de graça.”492 Diferentes
povos iniciavam seus anos em diferentes períodos, segundo o que lhes era mais importante.

Muitos calendários destes calendários antigos também faziam menção, nos nomes ou nos
símbolos dos meses àquilo que havia de mais importante, especialmente em termos de
alimentação.

A lembrança do período do pastoreio, quando a vida humana dependia dos animais que
pudessem ser caçados, domesticados ou criados, foi em boa parte a razão pelo qual
alguns povos mais primitivos representaram os meses pela efígie de um bicho. Nem
sempre se tratava de um animal amigo; mas sistematicamente, de um importante na vida
do homem. 493

488
DONATO, H. A História do calendário. São Paulo: Edições Melhoramentos, Editora da Universidade de São
Paulo, 1976, p. 50.
489
FRANCO, A. op. cit., p. 21.
490
DONATO, H. op. cit., p. 88.
491
Ibid., p. 121.
492
Ibid., p. 46.
493
Ibid., p. 40.

159
“Em quase todas as civilizações o alimento é um dos primeiros deuses ou tem um deus
tutelar.” 494 Os mitos relacionam clima, alimentação e a historia de seus deuses tutelares,
organizando o ritmo agrícola, as festas religiosas e o consumo dos alimentos produzidos.

Recordemos a historia de Perséfone, filha de Demeter, deusa da terra e da agricultura,


raptada pelo deus do mundo inferior Hades, e devolvida à mãe com a condição de
retornar para baixo da terra eternamente durante um terço do ano: historia de evidente
caráter propiciatório, na qual se representa a trajetória da semente do trigo, enterrada
durante a estação fria até que renasça com o sopro da primavera, assegurando, com o
crescimento da vegetação, alimento aos homens. Outras plantas, em outras civilizações,
têm o mesmo papel: o arroz é protagonista de muitas lendas e contos asiáticos, enquanto
a mitologia dos povos antigos da América dá espaço principalmente ao milho. 495

Assim, os procedimentos para se obter alimentos, tinham seus rituais em datas específicas. Havia
o tempo do s sacrifícios e oferendas para que se pudesse trabalhar a terra, e depois, na época das
colheitas, para restituir. Há naturalmente uma questão simbólica muito forte em relação às
comidas que marcam datas religiosas, mas não podemos negar que elas também têm sua
motivação material:

O cordeiro na Páscoa é uma remissão à narrativa da Bíblia (assim como as ervas amargas
e o pão ázimo para os hebreus), mas não se pode negar que aquele seja um momento
particularmente “adequado” para saboreá-lo. Comer carne de porco na festa de Santo
Antônio em janeiro496 também é “economicamente correto”, porque é nessa estação que
se mata o porco.497

Não é por acaso que encontramos tantas festas e banquetes religiosos com suas comidas típicas.
Sugerimos ao leitor que reveja o item 3.4 Banquetes e alimentos como símbolo específico, para
perceber a importância da alimentação nos calendários litúrgicos. Nos dias atuais, algumas
religiões perderam o vínculo de suas celebrações com a agricultura; até porque, os calendários
foram perdendo a motivação pastoril/agrícola e ganhando motivações políticas ou científicas por
exemplo.

494
CARNEIRO, H. op. cit., p. 111.
495
MONTANARI, M. 2008, op. cit., p.30.
496
Hábito das festas de Santo Antônio no catolicismo italiano.
497
Ibid., p. 133.

160
Algumas religiões, entretanto, conservam seus calendários prévios ao Juliano para celebrações
litúrgicas como é o caso do hinduísmo, islamismo e judaísmo, assim como algumas religiões
preservam datas associadas á agricultura como é o caso do candomblé no ritual de Oxalá “Orixá
comedor de inhame pilado ou Oxoguiã [uma qualidade de Oxalá]. Diz-se ainda que esta festa
está ligada à colheita aos primeiros frutos da terra representados pelos inhames novos.” 498
Também o hinduísmo possui tal relação. Regionalmente há muitas festas religiosas relacionadas
a períodos de colheita, a mais famosa é o Pongal, na região que leva o mesmo nome, também
celebrado com um prato de mesmo nome.

O Judaísmo, com calendário próprio, tem muitas ocasiões, para não dizer todas, marcadas por
comidas simbólicas. Duas delas estão associadas à agricultura: o Sukkot e Shavuot, o restante
está associados a outros mitos relatados na Torá.

Se cruzássemos os calendários das sete religiões escolhidas para este trabalho, separando,
segundo o calendário Juliano, as comidas de cada dia, é possível que tivéssemos um calendário
com 365 dias de comidas litúrgicas, e muitas delas, mesmo em religiões diferentes, talvez
coincidissem em termos de ingredientes, pois, como vimos no item 1.1.2, sistemas culinários
diferentes comportam-se como subsistemas de um sistema alimentar.

Há também ocasiões em que não comer também marca o calendário litúrgico. No caso do
Judaísmo, por exemplo, a interdição dos alimentos fermentados destaca o período da Pessah,
páscoa judaica, como a interdição da carne, marca a páscoa cristã.

O islamismo, que também segue calendário próprio, tem dois meses marcantes relacionados a
alimentação, mesclando festas com alimentos característicos e jejum: o Ramadã, caracterizado
pelo jejum diurno e banquetes noturnos e o Id AL Fitr, celebrado no primeiro dia do mês de
Shawwal, simbolizando a quebra do jejum.

Como vimos no item 3.1 Jejum, a prática do jejum coletivo, instituído em datas pré-determinadas
não é incomum.

O mais interessante nesta discussão é perceber como certas comidas nos remetem diretamente a
certas ocasiões. Para quem pratica uma religião, ter contato com os pratos típicos de ocasiões

498
JUNIOR, V. C. S. op. cit., p.142.

161
litúrgicas remete ao mito transmitido por aquela comida e reforça a experiência religiosa através
da questão estética. É a isto que se refere Greschat citado na introdução, quando menciona que o
cientista da religião deve levar em conta os aspectos sensoriais no estudo das religiões.

A questão do calendário litúrgico marcado por comidas típicas ou por jejum nos remete também
à questão da gramática alimentar. Embora os alimentos tenham razões econômicas para serem
consumidos, são muito mais representativos como símbolos religiosos constituintes de uma
linguagem que obedece a uma rígida gramática. Certas ocasiões simplesmente não podem ser
celebradas sem determinados alimentos. Isto fica muito evidente no candomblé, no hinduísmo e
no judaísmo. A maioria de seus rituais é dependente de certas comidas para que a mensagem seja
transmitida de forma efetiva.

Também nota-se que, uma vez que estes alimentos adquirem valor religioso associado a uma
data especifica, dificilmente serão consumidos em outra época. “O panetone nos lembra o Natal
não tanto porque ‘é feito de determinado modo’, mas porque ‘é feito naquele dia’. Por isso, ainda
hoje não é fácil vender panetone fora do período natalino.”499

499
MONTANARI, M. 2008, op. cit., p.134.

162
CONCLUSÃO

Acreditamos que as perguntas propostas na introdução tenham sido respondidas. A primeira


delas – Quais as práticas encontradas nas sete religiões designadas? – foi respondida no
capítulo III, com uma detalhada descrição em cada religião, segundo algumas categorias por nós
propostas. A segunda questão – Por que as religiões utilizam-se de práticas alimentares? – de
todas, talvez seja a mais difícil de responder, uma vez que os usos da comida variam segundo as
religiões, tempo e espaço. Percebemos uma evolução simultânea do homem, da religião e das
práticas alimentares, de forma que, não se planejou usar a comida na religião com um ou outro
objetivo, a religião e a alimentação simplesmente se imbricaram, como religião e a política ou
religião e a medicina tantas vez se imbricaram, como tão frequentemente várias dimensões se
influenciam quando se trata do ser humano. Se faltam explicações sobre porque religiões
utilizam-se de práticas alimentares, excedem as funções que as práticas alimentares podem
exercer no contexto religioso. São tantas que buscamos dividi-las em gerais (encontradas em
“todas” elas) e específicas (particulares a cada uma).

Dentro das gerais enumeramos a questão do descondicionamento: através de regras simbólicas


de alimentação as religiões encorajam indivíduos a suprimirem ou renunciarem a seus instintos
mais básicos em prol de uma causa coletiva. Mesmo que este indivíduo enxergue benefícios
próprios ao cumprir tais práticas, ainda assim estará aprendendo a fazer escolhas racionais em
vez de instintivas.

Num segundo momento, compreendemos como função geral das práticas alimentares a partilha.
Seja sob forma de oferendas, sacrifícios, banquetes ou caridade, o homem aprende, pelo menos
conceitualmente, a questão de dividir seus bens materiais com outrem. Ainda que seja uma troca
com entidades sobrenaturais, visando vantagens, ele aprende que deve dar para receber.

A comensalidade talvez seja a mais importante função das práticas alimentares em termos
sociais. O “comer junto” incentivado pela maioria das religiões reforça a coesão entre os
membros do grupo, tornando-o mais cooperativo e, consequentemente, mais forte em relação aos
grupos menos coesos.

163
Compartilhar a mesa significa compartilhar as mesmas crenças e visão de mundo. Quem não
come as mesmas coisas é certamente, considerado diferente e, neste sentido, as práticas
alimentares, exercem a função de construir e representar identidades. Isto ocorre naturalmente na
esfera secular, mas realmente um divisor quando se trata de alimentação no contexto religioso. A
alimentação determinada pela religião apresenta-se como bastante nucleadora, no sentido de que,
aproxima os que têm as mesmas práticas, mas afasta os que têm práticas diferentes, formando
núcleos.

As práticas alimentares tem a função não apenas de marcar identidades, mas também espaços de
tempo. Os alimentos associados simbolicamente a seus respectivos mitos, evocam e rememoram
tais acontecimentos em ciclos frequentes, um calendário litúrgico e, ao mesmo tempo, culinário.

Quanto às funções específicas, há inúmeras. E constituem a distinção entre as práticas


alimentares nas diferentes religiões. Elas ainda podem variar de membro para membro, dentro de
uma mesma religião, segundo o que é próprio de cada indivíduo.

Esperamos com este trabalho despertar a atenção sobre esta incontestável relação entre religião e
alimentação. Através deste panorama geral e comparativo onde levamos em conta sete religiões e
suas práticas alimentares desejamos suscitar questões para estudos futuros. Cada uma das nove
categorias alimentares, assim como as práticas em cada uma das religiões apresentada no
capitulo III, bem como cada função geral por nós identificada no capítulo IV podem significar
separadamente um caminho de pesquisa, sem falar em outras religiões ou filosofias
espiritualistas que também utilizam-se de práticas alimentares e que não foram aqui
contempladas devido a amplitude da pesquisa.

164
PÓS-ESCRITO: Quando a alimentação secular se torna religião

Algumas pessoas podem realmente tornar-se fundamentalistas em relação às suas dietas, mesmo
quando elas não têm motivação religiosa. Macrobiótica, vigilantes do peso, ortomolecular,
comida viva, alimentos integrais, orgânicos, veganos, freeganos, são algumas das dietas que
chegam a constituir verdadeiras cosmovisões, tendo o cuidado com o corpo como ponto de
partida. De tempos em tempos surgem também alguns alimentos ou substâncias que parecem
servir de “bode expiatório”, eles são sacrificados no lugar de outras questões. Podemos nomeá-
los: colesterol, ovo, carne vermelha, sal, açúcar, leite e derivados... No momento a grande
cruzada é contra o trigo refinado.

O alimento pode ser o depositário de nossos medos secretos e de nossas fantasias de uma
saúde perfeita [...] Para muitas pessoas, o medo de passar fome foi substituído pelo medo
de envenenamento por fertilizantes inorgânicos, pesticidas, aditivos, irradiação e
manipulação genética. Apesar de esses receios serem fundados, podem facilmente
mesclar-se com nossas neuroses. 1

Para muitos adeptos destas dietas, a ingestão de tais produtos pode ter o peso da quebra de um
tabu alimentar e as refeições podem tornar-se tão “sagradas” quanto as religiosas.

Há um aspecto parcialmente herdável na natureza humana, que pode ser chamado


religiosidade, e é distinto de outros atributos de personalidade [...] Isso pode ser detectado
usando-se questionários simples, e prevê bastante bem quem acabará se tornando um
crente fundamentalista em qualquer sociedade. 2

Esta predisposição ao fundamentalismo pode manifestar-se, muitas vezes, não somente no que
tange a religião, mas, em nossos dias, especialmente em questões seculares, tornando-as uma
espécie de religião, no sentido da crença fundamentalista.

Tanto a genética, quanto a sociologia destacam essa tendência a um comportamento religioso em


relação a algo secular. Raymond Aron fala em religião secular.

1
JACKSON, E. Alimento e transformação. Imagens e simbolismo da alimentação. São Paulo: Paulus, 1999, p. 11.
2
RIDLEY, M. O que nos faz humanos. Rio de Janeiro: Editora Record ltda., 2003, p. 107.
A dimensão do religioso no secular pode tomar as formas menos límpidas e gerar
modos seculares de religiosidade [...] Diversas áreas como o esporte, a música e a
ecologia [e por que não a alimentação] podem ser, assim religiosamente
investidas.3

A gramática de certas práticas alimentares seculares pode ser tão ou mais rígida que as religiosas.
O apetite desmedido e a ingestão de alimentos apenas por prazer recebeu recentemente o nome
de heterorexia4, que significa depravação ou perversão do apetite. No outro extremo temos a
ortorexia, “obsessão patológica por comida sadia”. 5 “a heterorexia salva e a ortorexia
condena.”6 As listas de alimentos transgênicos do Greenpeace, não são tão diferentes das listas
de produtos trêfá ou haram do judaísmo e islamismo respectivamente. Na “religião da
alimentação” poderíamos colocar o primeiro como herege ou secular e o segundo como um
fundamentalista dos mais radicais.

Concluímos que religião e comida têm muitos pontos de contato. Quando se coloca o corpo em
evidência, percebemos que as duas esferas se reforçam em termos simbólicos, e que de certa
forma, são até mesmo dependentes, seria estranho e dissonante se a comida não representasse os
valores da religião uma vez que é sempre veículo de valores. Da mesma forma, seria também
estranho que a religião não dissesse absolutamente nada sobre o comer, uma vez que constrói a
realidade até em seus aspectos mais cotidianos.

3
WILLAIME, J-P. Sociologia das religiões. São Paulo: Editora Unesp, 2012, pp.130 – 131.
4
EZQUIBELA, I. J. op. cit., p. 24.
5
Ibid.
6
Ibid.

2
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