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Convicção Espírita
sábado, 27 de junho de 2015 Quem sou eu

Compatibilidades entre os sistemas de Kant e Kardec

Algumas pessoas em redes sociais me disseram que a minha associação de Kant


com o Espiritismo é "forçada", que Kant era praticamente um ateu (pelo fato de
Rafael Gasparini
haver demonstrado a impossibilidade de uma prova física da existência de Deus, Moreira
da alma e da imortalidade), que o Espiritismo é um sistema que trata do
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transcendente, e que por isso os sistemas são incompatíveis. completo

Isso se trata de uma má compreensão de ambos os sistemas, porque se Kant disse Ensaios publicados
que eram impossíveis as provas para os fins de ciência (ou conhecimento), ele 2018:
mostrou também a necessidade da postulação desses mesmos objetos para os - O Espiritismo é uma
objetivos da filosofia prática. Em outras palavras, Kant disse ser impossível uma religião?
prova da existência de Deus, mas advogou a necessidade de uma pura fé racional
2017:
em Deus (e na alma e sua imortalidade), donde que sob este ponto de vista ele se - O Espiritismo como
compatibiliza com o Espiritismo (muito embora Kardec tenha por vezes deixado o ciência, como filosofia e
campo da filosofia prática e avançado para o campo da especulação, como já como religião
mencionado na apresentação deste Blog, o que não deixa de ser uma discordância - O Espiritismo é uma
filosofia respeitada
formal entre Kardec e Kant).
pelo mainstream
filosófico?
A filosofia de Kant é mais técnica e precisa porque foi elaborada de modo
sistemático, enquanto que as obras de Kardec concentram também as revelações 2015:
dos espíritos que não necessariamente estariam disponíveis para responder a - Compatibilidades
entre os sistemas de
todas as dificuldades, que não necessariamente obedecem a uma ordem
Kant e Kardec
sistemática e muitas carecem de demonstrações rigorosas. Por esta razão defendo
uma submissão do Espiritismo ao crivo da filosofia kantiana e não o contrário. 2014:
- Evidências (?)
O mais importante, contudo, a despeito de certas diferenças acessórias que incontestáveis (?)
comprovam (?) a
possuem as obras de Kardec e a filosofia de Kant, é que ambos centralizam na
reencarnação?
razão e na moralidade os princípios supremos da ética, da fé (em ambos racional)
e da Religião. 2013:
- Objetivo Final do
A fim de responder a algumas críticas referentes à compatibilidade entre ambos Homem na Terra
(Revista Espírita
os sistemas, cito abaixo alguns pontos de contato que considero relevantes entre
mar/1864)
as doutrinas de Kant e de Kardec. A lista deve ser complementada com o tempo, à - Uma Telha (Revista
medida que for identificando mais pontos relevantes. Espírita jul/1862)
- A propósito da
1. O caráter contingencial de Deus Imitação do Evangelho
(Revista Espírita
dez/1864)
Uma existência necessária é aquela cuja inexistência é impossível. Uma existência - O Falso São Luís
contingencial é aquela cuja inexistência é possível. A necessidade demonstra-se a (Revista Espírita
priori, ou seja, racionalmente. Já a contingência só pode ser provada jun/1860)
empiricamente, pois se o objeto não necessariamente existe, apenas - Os Tempos são
Chegados (Revista
empiricamente posso constatar sua existência.
Espírita out/1866)
- Acontecimentos
Pois bem, segundo Kant, na Crítica da Razão Pura, a existência de Deus é - Apresentação deste
contingente e não necessária. Reparem que isso não quer dizer que não deva Blog
haver um fundamento necessário (não contingente) para a existência de todas as
Sobre este Blog
coisas. Esse fundamento necessário deve sim existir. O que não é necessário é que
esse fundamento seja Deus, com todos os atributos morais que precisamos Este Blog foi criado
para a divulgação do
atribuir a ele por necessidade da nossa razão prática.
Espiritismo e para o
debate de ideias.
Isso significa que a existência de Deus, assim como os Seus atributos, só poderiam Aqueles que saibam e
ser conhecidos empiricamente e nunca racionalmente, como queriam queiram defender as
racionalistas tais como Tomás de Aquino, Descartes e outros. O problema é que suas ideias, com as
não temos os sentidos apropriados e nem a faculdade de entendimento armas da
argumentação que
apropriada (no cérebro) para um conhecimento empírico de Deus e, por isso, para
quiserem dispor, são
o homem na Terra, um conhecimento de Deus (até mesmo de sua simples convidados a se
existência) é impossível, não por uma limitação da nossa razão, mas por uma manifestarem neste
limitação material da nossa constituição empírica (animal). E se um Blog. Não há tabus para
conhecimento de Deus não é possível, ele também não deve ser sequer tentado. as críticas e ninguém
será moderado por
Isso é o que dizia Kant (o que levou alguns até a confundi-lo com um ateu).
criticar o autor deste
Blog, ou suas ideias.
Vejamos então o que a esse respeito disseram os espíritos a Kardec. Apenas duas regras
Primeiramente em O Livro dos Espíritos: devem ser observadas:

"10. Pode o homem compreender a natureza íntima de Deus? 1. comentários com


'Não; falta-lhe para isso o sentido.' palavras de baixo calão
ou personalismos
(xingamentos) serão
11. Será dado um dia ao homem compreender o mistério da deletados, para o bem
Divindade? do nível do Blog. Toda
'Quando não mais tiver o espírito obscurecido pela matéria. Quando, crítica, mesmo severa,
pela sua perfeição, se houver aproximado de Deus, ele o verá e pode e deve ser feita
com boa educação; e
compreenderá.'"
2. postagens não
É clara aqui a apologia ao ponto de vista kantiano. Quando ele diz na resposta que relacionadas ao
"falta-lhe o sentido" e que "ele o verá e compreenderá", ele faz apologia a um assunto ou ao seu
futuro conhecimento empírico de Deus, que certamente não poderá ser nesta vida desdobramento
(por causa da nossa limitação material), mas em uma próxima, com outros também serão
deletadas.
sentidos e outra faculdade de entendimento (em suma, com outro corpo), que nos
permitam então "perceber" e conhecer empiricamente o que hoje não podemos Considerando isso, os
conhecer. visitantes são
convidados a ler e
Em uma outra dissertação, assinada pelo Espírito de Verdade, ao tratar de uma escrever (nos
comentários) o que
pessoa chamada Sr. Jobard, de Bruxelas, também adverte-se quanto ao perigo que
pensam, e na medida
temos ao querer ultrapassar os nossos limites de conhecimento, em especial para do possível serão
conhecer Deus. Reparem no uso da palavra "saber", como sinônimo de "ciência" e respondidos.
de "conhecimento", e de "olhar", como referência ao conhecimento empírico:

Jobard era um Espírito pesquisador, querendo subir, sempre subir. As Este Blog não possui
ideias espíritas pareciam-lhe um panorama por demais acanhado. fins comerciais,
expressa as opiniões e
Jobard representava o espírito de curiosidade; queria SABER, sempre
convicções pessoais
SABER. Essa necessidade, essa sede o impeliram a PESQUISAS QUE de seu autor e não
EXCEDIAM OS LIMITES DAQUILO QUE DEUS QUER QUE SAIBAIS. Não representa a opinião
tenteis, pois, arrancar o véu que cobre os mistérios de seu poder! Jobard de nenhuma
empunhou o arco e foi fulminado. Isto é um ensinamento: buscai o Sol, instituição pública ou
privada. Seu conteúdo
mas não sejais audaciosos a ponto de o fixar, pois ficareis cegos. Deus
pode ser livremente
não vos dá bastante, enviando-vos os Espíritos? Deixai, pois, à morte o reproduzido, desde
poder que Deus lhe concedeu: o de ERGUER O VÉU a quem o MERECE. que citado o Blog e o
Então podereis OLHAR a Deus, Sol dos céus, sem serdes enceguecidos autor do conteúdo.
nem fulminados pelo poder que vos diz: 'Não vades mais longe.' Eis o
Pesquisar neste Blog
que vos devo dizer.
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A Verdade
Traduzir (Translate)
(Revista Espírita de março de 1862, adendo à comunicação do dia 20 de Selecione o idioma   Powered by
dezembro de 1861)
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mês passado
2. Ciência e fé
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Deus, alma e imortalidade são objetos de fé (ou de crença) e não de Ciência. E para
que essa fé se desenvolva, é preciso uma renúncia completa a qualquer desejo de
conhecimento transcendente de Deus, da alma ou da imortalidade. Kant deixou
isso bem claro no prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura:

"Nunca posso, portanto, nem sequer para o uso prático necessário da


minha razão, admitir Deus, liberdade e imortalidade, sem ao mesmo
tempo recusar à razão especulativa a sua pretensão injusta a intuições
transcendentes, porquanto, para as alcançar, teria necessariamente de
se servir de princípios que, reportando-se de fato apenas aos objetos de
experiência possível, se fossem aplicados a algo que não pode ser objeto
de experiência, o converteriam realmente em fenômeno, desta sorte
impossibilitando toda a extensão prática da razão pura. TIVE POIS DE
SUPRIMIR O SABER PARA ENCONTRAR LUGAR PARA A CRENÇA, e o
dogmatismo da metafísica, ou seja, o preconceito de nela se progredir,
sem crítica da razão pura, é a verdadeira fonte de toda a
INCREDULIDADE, que está em conflito com a moralidade e é sempre
muito dogmática. — Se, pois, não é difícil deixar à posteridade o legado
de uma metafísica sistemática, concebida segundo o plano da crítica da
razão pura, não será para menosprezar esta dádiva; quer se considere,
simplesmente, a cultura que deve adquirir a razão ao seguir a via segura
da ciência, em vez dos tenteios sem fundamento ou de leviana
vagabundagem a que a mesma se entrega quando procede sem crítica;
quer se atenda também ao melhor emprego de tempo de uma juventude
ávida de saber, que no dogmatismo corrente recebe um encorajamento
tão precoce e tão forte para discorrer comodamente sobre coisas de que
NADA ENTENDE NEM ENTENDERÁ, COMO NINGUÉM PODERÁ
ENTENDER, ou até para se deixar levar à invenção de novos
pensamentos e opiniões, descurando a aprendizagem de ciências
sólidas; quer sobretudo, se considerarmos a vantagem inestimável de,
PARA TODO O SEMPRE, PÔR FIM ÀS OBJEÇÕES À MORALIDADE E À
RELIGIÃO, de maneira socrática, isto é, mediante a clara demonstração
da ignorância dos adversários. (BXXX e BXXXI)

Kant, portanto, quis fazer uma clara diferenciação entre fé e ciência, tanto para
salvar a ciência como para salvar a fé, expulsando, portanto, Deus, alma e
imortalidade da ciência para que se pudesse desenvolver uma verdadeira fé (uma
fé racional) nesses objetos. O Espiritismo também tinha como fim o fomento da fé,
muito embora algumas palavras de Kardec nem sempre tenham deixado isso
claro. Mas as palavras dos espíritos sempre deixaram isso bem claro, como nesta
advertência de São Luís quanto ao pretenso caráter científico do Espiritismo, que
o desvia de sua finalidade moral:

Meus amigos, deixai que vos dê um conselho, visto que palmilhais um


terreno novo e que, se seguirdes a rota que vos indicamos, não vos
transviareis. Tem-se-vos dito uma coisa muito verdadeira, que
desejamos relembrar-vos: que o Espiritismo é simplesmente UMA
MORAL e que não deverá sair, nem muito, nem pouco, dos limites da
filosofia, se não quiser cair no domínio da curiosidade. DEIXAI DE LADO
AS QUESTÕES DE CIÊNCIA: a missão dos Espíritos não é resolvê-las,
poupando-vos ao trabalho das pesquisas; mas, procurai tornar-vos
melhores, porquanto é assim que realmente progredireis.

São Luís.

O Livro dos Médiuns, cap. XXXI, item XVII.

Evidente que São Luís não recomenda aqui que deixemos de lado absolutamente
as questões de ciência, mas que deixemos de lado as questões de ciência apenas
no âmbito do Espiritismo, pois isso seria desviá-lo da sua finalidade moral.

Sabe-se que Kardec nem sempre seguiu isso à risca, pois ele também tinha um
pendor pela ciência. Mas os espíritos que respondiam as questões por ele
propostas pareciam ter muito bem isso em mente.

Também em O Livro dos Espíritos, na pergunta 1010, sobre as pessoas


sinceramente religiosas e crentes:

"Os Espíritos, portanto, NÃO VÊM SUBVERTER A RELIGIÃO, como alguns


o pretendem. Vêm, ao contrário, confirmá-la, sancioná-la por provas
irrecusáveis. Como, porém, são chegados os tempos de não mais
empregarem linguagem figurada, eles se exprimem sem alegorias e dão
às coisas sentido claro e preciso, que não possa estar sujeito a qualquer
interpretação falsa. Eis por que, daqui a algum tempo, muito maior será
do que é hoje o número de pessoas sinceramente RELIGIOSAS E
CRENTES."

Mas isso só se dará com a precisa delimitação entre fé e ciência, que hoje
praticamente inexiste, inclusive no próprio movimento espírita, que chegam ao
cúmulo de renegar o aspecto religioso do Espiritismo (o mais importante) em
favor do seu pretenso caráter científico (que na verdade é pseudocientífico).

3. Com relação às orações que dirigimos a Deus

Kant tinha uma posição idêntica ao do Espiritismo com relação às orações que
dirigimos a Deus, ou seja, que estas orações deveriam ter um objeto
exclusivamente moral e nunca material, que não deveriam ser dirigidas orações a
Deus para a resolução de problemas do mundo (curas de doenças, prosperidade
material, felicidade, etc.), mas apenas com objetos morais. Vejamos
primeiramente a dissertação espírita:

"O dever primordial de toda criatura humana, o primeiro ato que deve
assinalar a sua volta à vida ativa de cada dia, é a prece. Quase todos vós
orais, mas quão poucos são os que sabem orar! (...)
A vossa prece deve conter o pedido das graças de que necessitais, mas de
que necessitais em realidade. INÚTIL, portanto, pedir ao Senhor que vos
abrevie as provas, que vos dê alegrias e riquezas. Rogai-lhe que vos
conceda os bens mais preciosos da paciência, da resignação e da fé. Não
digais, como o fazem muitos: "Não vale a pena orar, porquanto Deus não
me atende." Que é o que, na maioria dos casos, pedis a Deus? JÁ VOS
TENDES LEMBRADO DE PEDIR-LHE A VOSSA MELHORIA MORAL? Oh!
não; bem poucas vezes o tendes feito. O que preferentemente vos
lembrais de pedir é o BOM ÊXITO PARA OS VOSSOS
EMPREENDIMENTOS TERRENOS e haveis com frequência exclamado:
"Deus não se ocupa conosco; se se ocupasse, não se verificariam tantas
injustiças." Insensatos! Ingratos! Se descêsseis ao fundo da vossa
consciência, quase sempre depararíeis, em vós mesmos, com o ponto de
partida dos males de que vos queixais. Pedi, pois, antes de tudo, que vos
possais melhorar e vereis que torrente de graças e de consolações se
derramará sobre vós." (O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XXVII -
Pedi e obtereis, item 22).

Compare-se com o que diz Kant:

"Ora bem, desta índole nada mais pode haver exceto a MORALIDADE em
nós. De fato, embora a petição se refira só ao pão para o dia de hoje,
ninguém pode estar certo da atendibilidade desta oração, i.e., de que
esteja necessariamente conexa com a sabedoria de Deus a concessão do
que é pedido; pode talvez harmonizar-se melhor com tal sabedoria
deixá-lo morrer hoje desta carência. É também uma ilusão absurda e, ao
mesmo tempo, impudente tentar, mediante a insistente impertinência
da petição, se Deus não poderá desviar-se do plano da sua sabedoria
(para nossa vantagem presente). PORTANTO, NÃO PODEMOS
CONSIDERAR COMO ATENDÍVEL ORAÇÃO ALGUMA QUE TENHA UM
OBJETO NÃO MORAL, i.e., não podemos pedir algo assim na fé." (Kant
em Religião nos limites da simples razão, Quarta Parte, Segunda Seção,
§4o - Do fio condutor da consciência moral em matérias de fé,
Observação Geral, nota do item 1)

Portanto, tanto o Espiritismo como Kant dizem que não apenas são inúteis as
orações que não tenham um objeto moral, mas elas são mesmo impertinentes e
que não deveriam ser de modo algum proferidas.

4. Com relação à "estranha moral"

Há certos trechos de O Livro dos Espíritos que só podem ser bem compreendidos à
luz da filosofia de Kant. Entre elas estão as questões relacionadas às guerras. Em O
Livro dos Espíritos lemos:
744. Que objetivou a Providência, tornando necessária a guerra?
“A liberdade e o progresso.”

a) - Desde que a guerra deve ter por efeito produzir o advento da


liberdade, como pode frequentemente ter por objetivo e resultado a
escravização?
“Escravização temporária, para esmagar os povos, a fim de fazê-los
progredir mais depressa.”

Ora, que liberdade é essa que o espírito que ditou a resposta devia estar
pensando? Certamente a liberdade racional, a liberdade como exercício pleno da
autonomia, e não a liberdade da anarquia (que é uma liberdade empírica ou
material). Essa liberdade só é possível sob um Estado bem constituído que proteja
o Direito, ou seja, sob um Estado de Direito. O que objetiva então a Providência
com as guerras? O progresso do Estado que garanta o exercício da liberdade, ou
seja, o fomento do Estado de Direito. Compare-se com o que escreveu Kant a
respeito:

"A natureza [entenda-se aqui "natureza" como eufemismo de


"Providência"] se serviu novamente da incompatibilidade entre os
homens, mesmo entre as grandes sociedades e corpos políticos desta
espécie de criatura, como um meio para encontrar, no seu inevitável
antagonismo, um estado de TRANQUILIDADE E SEGURANÇA; ou seja,
POR MEIO DE GUERRAS, por meio de seus excessivos e incessantes
preparativos, por meio da miséria, advinda deles, que todo Estado
finalmente deve padecer em seu interior, mesmo em tempo de paz, a
natureza impele a tentativas inicialmente imperfeitas, mas finalmente,
após tanta devastação e transtornos, e mesmo depois do esgotamento
total de suas forças internas, CONDUZ OS ESTADOS àquilo que a razão
poderia ter-lhes dito sem tão tristes experiências, a saber: sair do Estado
sem leis dos selvagens para entrar numa federação de nações em que
todo Estado, mesmo o menor deles, pudesse esperar sua segurança e
direito não da própria força ou juízo legal, mas somente desta grande
confederação de nações de um poder unificado e da decisão segundo leis
de uma vontade unificada. Tão fantástica quanto esta ideia possa
parecer, e embora, enquanto tal, se preste ao riso no Abbé de Saint-
Pierre ou em Rosseau (talvez porque eles acreditassem na realização
demasiado próxima dela), é a saída inevitável da miséria em que os
homens se colocam mutuamente e que deve obrigar os Estados à mesma
decisão (ainda que só a admitam com dificuldade) que coagiu tão a
contra-gosto o homem selvagem, a saber: abdicar de sua liberdade
brutal e buscar tranquilidade e segurança numa constituição conforme
leis. TODAS AS GUERRAS SÃO, assim, tentativas (NÃO SEGUNDO OS
PROPÓSITOS DOS HOMENS, MAS SEGUNDO OS DA NATUREZA) de
estabelecer novas relações entre os Estados e, por meio da destruição ou
ao menos pelo desmembramento dos velhos, formar novos corpos que,
porém, novamente, ou em si mesmos ou na relação com os outros, não
podem manter-se, e por isso precisam enfrentar novas revoluções
semelhantes; até que finalmente, em parte por meio da melhor
ordenação possível da constituição civil, internamente, em parte por
meio de um acordo e uma legislação comuns, exteriormente, seja
alcançado um Estado que, semelhante a uma República civil, possa
manter-se a si mesmo como um autômato." (Kant em Ideia de uma
História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, sétima proposição)

Com essa explicação de Kant é possível bem entender a resposta dada em O Livro
dos Espíritos. Aliás, é possível inclusive compreender certas palavras de Jesus no
Evangelho, quando ele diz:

"Não penseis que vim trazer paz à terra; NÃO VI TRAZER PAZ, MAS
ESPADA. Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, a
filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; e assim os inimigos do
homem serão os da sua própria casa." (Mt 10:34-36)

"Vim lançar fogo à terra; e que mais quero, se já está aceso? Há um


batismo em que hei de ser batizado; e como me angustio até que venha a
cumprir-se! CUIDAIS VÓS QUE VIM TRAZER PAZ À TERRA? Não, eu vos
digo, mas antes dissensão: pois daqui em diante estarão cinco pessoas
numa casa divididas, três contra duas, e duas contra três; estarão
divididos: pai contra filho, e filho contra pai; mãe contra filha, e filha
contra mãe; sogra contra nora, e nora contra sogra." (Lc 12:49-53)

Esses trechos são muito bem compreendidos à luz da explicação de Kant dada
acima.

5. A chegada do "Reino de Deus"

Essa é uma das partes mais interessantes de interconexão entre o Cristianismo, o


Espiritismo e a filosofia kantiana. O Espiritismo alegava que havia chegado os
tempos preditos para o cumprimento das profecias dos Evangelhos a respeito do
"final dos tempos". Em O Evangelho segundo o Espiritismo lemos:

"7. Assim como o Cristo disse: "Não vim destruir a lei, porém cumpri-la",
também o Espiritismo diz: "NÃO VENHO DESTRUIR A LEI CRISTÃ, MAS
DAR-LHE EXECUÇÃO." Nada ensina em contrário ao que ensinou o
Cristo; mas, desenvolve, completa e explica, em termos claros e para
toda gente, o que foi dito apenas sob forma alegórica. Vem cumprir, nos
tempos preditos, o que o Cristo anunciou e preparar a realização das
coisas futuras. Ele é, pois, obra do Cristo, que preside, conforme
igualmente o anunciou, à regeneração que se opera e prepara o REINO
DE DEUS NA TERRA." (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. I, item 7)

Também na Revista Espírita de outubro de 1866, no artigo intitulado "Os Tempos


são chegados":

"Precipitam-se com rapidez os acontecimentos, pelo que já não vos


dizemos, como outrora: “Aproximam-se os tempos.” Agora, dizemos: “Os
tempos são chegados.” Não suponhais que as nossas palavras se referem
a um novo dilúvio, nem a um cataclismo, nem a um revolvimento geral.
Revoluções parciais do globo se hão produzido em todas as épocas e
ainda se produzem, porque decorrem da sua constituição, mas não
representam os sinais dos tempos.
Entretanto, TUDO O QUE ESTÁ PREDITO NO EVANGELHO TEM DE
CUMPRIR-SE E NESTE MOMENTO SE CUMPRE, conforme o reconhecereis
mais tarde. (....)
Tudo segue a ordem natural das coisas e as leis imutáveis de Deus não
serão subvertidas. Não vereis milagres, nem prodígios, nem fatos
sobrenaturais, no sentido vulgarmente dado a essas palavras.
Não olheis para o céu em busca dos sinais precursores, porquanto
nenhum vereis, e os que vo-los anunciarem estarão a enganar-vos. Olhai
em torno de vós, entre os homens: aí é que os descobrireis.
Não sentis que um como vento sopra sobre a Terra e agita todos os
Espíritos? O mundo se acha na expectativa e como que presa de um
vago pressentimento de que a tempestade se aproxima.
NÃO ACREDITEIS, PORÉM, NO FIM DO MUNDO MATERIAL. A Terra tem
progredido, desde a sua transformação; tem ainda que progredir e não
que ser destruída. A Humanidade, entretanto, chegou a um dos períodos
de sua transformação e o mundo terreno vai elevar-se na hierarquia dos
mundos.
O que se prepara NÃO É, POIS, O FIM DO MUNDO MATERIAL, MAS O
FIM DO MUNDO MORAL. É o velho mundo, o mundo dos preconceitos,
do orgulho, do egoísmo e do fanatismo que se esboroa. Cada dia leva
consigo alguns destroços. TUDO DELE ACABARÁ com a geração que se
vai e a geração nova erguerá o novo edifício, que as gerações seguintes
consolidarão e completarão.
De mundo de expiação, a Terra se mudará um dia em mundo ditoso e
habitá-lo será uma recompensa, em vez de ser uma punição. O REINADO
do bem sucederá ao REINADO do mal."

O Espiritismo, portanto, fala da chegada e da preparação do reino de Deus na


Terra, conforme prometido pelos Evangelhos, porém não explica o que seria isso
ou como aconteceria. Mas a explicação disso podemos encontrar com bastante
sucesso na filosofia de Kant, que é anterior ao próprio Espiritismo. Gérard
Lebrun, comentando Kant no artigo Uma escatologia para a Moral escreveu o
seguinte:

"É o caso de resumirmos a situação. Em primeiro lugar, tenho o dever de


trabalhar em prol do avanço do Soberano Bem, portanto, obrigado a
postular as condições sem as quais tal objeto não poderia passar de
miragem: DEUS, A MINHA EXISTÊNCIA INTELIGÍVEL, A IMORTALIDADE
DA ALMA. Em segundo lugar, esta própria postulação não pode
permanecer como uma mera declaração de princípio ('quero que exista
um Deus...'): deve passar à minha vida, determinar minha conduta. Da
mesma forma, o REINO DOS FINS, condição para a representação e o
funcionamento da autonomia, não pode conservar-se apenas como um
piedoso ideal para o sujeito autônomo. Tenho, portanto, o dever de
tornar militante a minha postulação. Tenho o dever de trabalhar
concretamente, em concerto com os demais, pelo 'ESTABELECIMENTO
DO REINO DE DEUS NA TERRA'.

"Reino dos fins" é, para Kant, sinônimo de "reino de Deus". Então, é parte da
filosofia moral kantiana que deveríamos trabalhar pelo "estabelecimento do reino
de Deus na Terra" (ou reino dos fins), o que concorda com a predição espírita da
iminente chegada do reino de Deus. Isso também concorda com os Evangelhos
quando ele dizem, por exemplo:

“Por isso vos digo: não estejais ansiosos quanto à vossa vida, pelo que
haveis de comer, ou pelo que haveis de beber; nem, quanto ao vosso
corpo, pelo que haveis de vestir. (...) (Pois a todas estas coisas os gentios
procuram.) Porque vosso Pai celestial sabe que precisais de tudo isso.
Mas BUSCAI PRIMEIRO O SEU REINO E A SUA JUSTIÇA, e todas estas
coisas vos serão acrescentadas. Não vos inquieteis, pois, pelo dia de
amanhã; porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia
o seu mal." (Mt 6:25-34)

E onde estaria a chave para encontrarmos o Reino de Deus, para que possamos
buscá-lo? Kant diria que em nenhum outro lugar que não na própria razão
humana, o que também concorda com o Evangelho e com o Espiritismo. No
Evangelho:

“Sendo Jesus interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de


Deus, respondeu-lhes: O reino de Deus NÃO VEM COM APARÊNCIA
EXTERIOR; nem dirão: Ei-lo aqui! ou: Ei-lo ali! pois O REINO DE DEUS
ESTÁ DENTRO DE VÓS." (Lc 17:20-21)

Como então isso deveria ser entendido, segundo Kant?

Vamos primeiramente para o que Kant entendia por "reino", que encontramos na
Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

"O conceito, em virtude do qual todo ser racional deve considerar-se


como fundador de uma legislação universal por meio de todas as
máximas de sua vontade, de sorte que possa julgar-se a si mesmo e a
suas ações sob este ponto de vista, conduz-nos a uma ideia muito
fecunda que com ele se prende, a saber, à ideia de um REINO DOS FINS.
PELA PALAVRA REINO ENTENDO A UNIÃO SISTEMÁTICA DE DIVERSOS
SERES RACIONAIS POR MEIO DE LEIS COMUNS. (Kant em
Fundamentação da metafísica dos costumes, segunda seção)

Portanto "reino", em sentido ordinário, é a "união sistemática de diversos seres


racionais por meio de leis comuns", o que só pode se dar na forma de um Estado
(sem entrar no mérito se as leis desse Estado são justas ou injustas). Dessa forma,
"reino" é sinônimo de "Estado". O que seria então "reino de Deus"? Podemos, por
analogia, afirmar que "reino de Deus" é a "união sistemática de diversos seres
racionais por meio de leis de Deus e que também precisam ser ao mesmo tempo
leis comuns". E quais seriam então as leis de Deus?
Se Deus aqui for concebido como um ser supremo, porém dotado de razão, assim
como os homens (à imagem e semelhança), então as leis de Deus serão as mesmas
leis da razão que regem os homens. E quais são as leis da razão? Elas não têm
outro nome que não Leis Morais. Então, as Leis Morais são, no entender de Kant (e
no entender do Espiritismo) as próprias leis de Deus (e por isso podemos entender
que o "reino de Deus" se encontra realmente dentro de nós, ou seja, na nossa
própria razão).

Considerando o anteriormente exposto, como seria então a definição de "Reino de


Deus"? Reino de Deus seria a "união sistemática de diversos seres racionais por
meio das Leis Morais", que são ao mesmo tempo leis comuns a todos os seres
racionais e também, por consequência, as próprias Leis de Deus (na qualidade de
ser racional). Ora, o Reino de Deus então é nada mais nada menos do que um reino
(um Estado) regido exclusivamente por princípios morais. Ora, mas como se
chama um Estado regido pela moralidade? Chama-se "Estado de Direito", que é
fundado no princípio supremo da moralidade que é a dignidade do ser racional
ou, como está expresso na nossa Constituição (art 1o, inciso III), na dignidade da
pessoa humana (único ser racional sobre a Terra). A dignidade também se
desdobra na autonomia e na isonomia, que são apenas outros pontos de vista
donde se pode compreender a dignidade.

O que significa então a chegada do Reino de Deus na Terra? Significa na verdade a


implantação e difusão pela Terra dos regimes "de Direito" (ou democráticos de
Direito), que foi bem delineado por Kant na sua obra intitulada "Para a paz
perpétua", de 1795, que é na verdade a forma aproximada dos Estados de Direito
ocidentais (e hoje em dia vários orientais também), onde o regime é republicano
(com divisão de poderes), há uma ou mais federação de nações (ONU, etc...) e está
instituído o respeito ao direito cosmopolita (o direito dos estrangeiros). O
espalhamento desses tipos de regimes pela Terra cumprem ao mesmo tempo as
profecias cristãs e as profecias espíritas sobre o "fim do mundo" e a "chegada do
Reino de Deus na Terra", sem milagres ou efeitos ditos sobrenaturais.

Em meu entender, só com a filosofia de Kant é possível entender como isso estaria
se dando no mundo atual, assim como o que devemos fazer para fomentar os
regimes de Direito, e podemos crer (e não saber) que a tendência de futuro é um
espalhamento cada vez maior desses regimes estatais e um encolhimento
progressivo dos regimes totalitários ou anárquicos.

Rafael Gasparini Moreira [rafael.gasparini@gmail.com]


Brasília/DF
Postado por Rafael Gasparini Moreira às 20:37:00
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