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LIÇÃO 3

O ALVO DA
INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

Já aprendemos que o intérprete deve ser piedoso, diligente e que deve crer que
as Escrituras são divinamente inspiradas. Mesmo assim, tudo isso ainda não é
suficiente se não procurarmos um único sentido na Bíblia – o sentido pretendido pelo
autor. Nesta lição, examinaremos a história da interpretação e veremos as
consequências negativas das interpretações que desconsideram esta regra básica.

O filósofo espanhol Jorge Augustian Nicolas de Santayana observou que


“aquele que não aprende da história vê-se condenado a repeti-la” (Virkler 1981, 48).
Esta declaração ecoa a queixa de Salomão no sentido de que os homens tendem a
repetir os seus erros: “O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará
a fazer: de modo que nada há novo debaixo do sol” (Ec 1.9).

Um grupo que tem sido consistentemente culpado de não levar em conta os


erros do passado é o dos intérpretes bíblicos. Conforme veremos neste panorama
histórico, os intérpretes no decurso das eras têm cometido o erro de desconsiderar a
intenção original do escritor. A tendência tem sido colocar no lugar dela uma
interpretação mais mística, oficial ou racional. Notaremos as muitas semelhanças entre
os métodos dos intérpretes judeus e cristãos que têm favorecido estas abordagens.
Os alvos errados na interpretação judaica Esboço da Lição
Os alvos errados na interpretação eclesiástica
Buscando um significado oficialmente aceitável
O alvo da interpretação bíblica

Quando você terminar esta lição, deverá ser capaz de: Objetivos da Lição

• Citar o erro de interpretação bíblica mais frequentemente repetido no decurso da


história Eclesiástica.
• Distinguir entre a interpretação única e os princípios e aplicações múltiplos que podem
ser achados no texto bíblico.
• Defender o princípio de que a intenção do autor é o primeiro e último alvo da
interpretação bíblica.

1. Leia atentamente esta lição. Atividades de


Aprendizagem
2. Faça todas as questões de estudo.
3. Separe, no mínimo, 3 horas diárias para estudar.
4. Faça o autoteste no final desta lição.
Desenvolvimento Certo provérbio declara:
da Lição

A fim de estar livre para navegar os sete mares, você deve tornar-se
escravo da bússola.

Durante muitos séculos, os marinheiros antigos só viajavam com terra à vista


para não se perderem. A navegação acabou sendo revolucionada com o advento da
bússola. Posto que o instrumento sempre apontava uma única direção, os marinheiros
podiam usá-la para atravessar os oceanos e voltar para casa com êxito.

Assim como a bússola, que somente indica o norte, a atenção do intérprete


bíblico deve nortear-se pela intenção original do autor original. De outra forma, a
interpretação ficará perdida em um mar de subjetividade. Por outro lado, uma vez
entendido que o alvo principal do intérprete é descobrir o propósito do autor original,
a interpretação poderá ir além do entendimento superficial e entrar na alegria das
descobertas na Palavra de Deus.

Embora muitos intérpretes cristãos tenham reconhecido essa verdade básica, há


exemplos relevantes de intérpretes que têm dirigido seus esforços em todas as direções
da bússola. Em todos os casos, procuravam um significado diferente daquele que o
autor original pretendia.

Alguns buscavam um significado adicional, mais espiritual do que o significado


pretendido pelo autor. Outros achavam embaraçoso o caráter sobrenatural da
mensagem da Bíblia e avançavam em direção oposta, a fim de harmonizar a Bíblia com
a filosofia e cultura contemporâneas. Desconsideravam a intenção original do autor e
buscavam uma interpretação mais racional. Um terceiro grupo procurava interpretar
a Bíblia de uma maneira que apoiasse suas tradições e suas crenças oficialmente
aprovadas. À medida que estudarmos, você verá como estes três alvos errados na
interpretação repetiram-se no decurso de muitos séculos de interpretação bíblica, entre
judeus e cristãos.

Figura 3.1

OS ALVOS ERRADOS NA INTERPRETAÇÃO JUDAICA

Os judeus, ao voltarem do cativeiro, demonstravam o forte desejo de


permanecerem perto da Palavra de Deus e longe dos ídolos. Durante anos, a

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interpretação bíblica era eficaz enquanto empregavam métodos legítimos, inclusive
remissões recíprocas a fim de descobrir o significado claro do texto. O interesse intenso
pela Palavra de Deus mantinha viva a fé judaica no meio das influências culturais dos
seus dominadores pagãos. Já antes dos tempos de Cristo, boa parte da interpretação
bíblica tinha degenerado e passou a ser tão torcida pela criatividade, raciocínio e
preconceito humanos, que finalmente os mestres da Lei chegaram mesmo a levar o povo
judaico a rejeitar e crucificar o seu Messias. Este erro colossal não se devia a nenhuma
falta de interesse pela Bíblia, mas fruto de interpretação errônea e preconceituosa.

Buscando um significado mais espiritual OBJETIVO 1


Distinguir entre atenção
apropriada aos pormenores na
Os judeus conservadores que zelosamente protegiam as Escrituras dos erros dos interpretação bíblica e o
copistas, muitas vezes não tinham cautela ao procurarem as normas de interpretação. Até erro dos antigos místicos
judaicos nesta área.
elaboravam interpretações tais que o autor original jamais teria reconhecido. Estudiosos
entre o grupo que deu origem aos fariseus sentiam orgulho por causa de sua rigorosa
atenção aos detalhes na interpretação. Embora o alvo deles parecesse nobre, estes
estudiosos chegaram a resolver que cada pormenor do texto continha um significado
secreto, além do seu sentido natural. Neste sistema de interpretação, os pormenores não
eram considerados importantes por apoiarem uma verdade mais ampla no texto. Pelo
contrário, o texto era conhecido como uma fileira de pérolas: cada pormenor da
gramática, da repetição ou até mesmo da forma de uma letra era estimado por ter um
significado oculto especificamente próprio. Acreditavam que em razão de o texto ser
divinamente inspirado, cada trecho podia ter significados múltiplos.

Esses estudiosos exageradamente zelosos especulavam sobre possíveis verdades


ocultas, baseadas nos pontos incidentais da gramática, tais como o valor numérico por
letra das palavras individuais. Na língua hebraica, as letras podem também funcionar
como números. Por exemplo: as letras do nome Eliézer (VIDE Gn 15.2), tomadas como
números, chegam à soma de 318, o número do pequeno exército de Abraão (Gn
14.14). Tendo por base este fato, determinaram a verdade de que esse servo valeria
por um exército (Terry 1890, 580).

Na realidade, não foi o interesse aos pormenores que levou esses intérpretes a
errar, mas sim a crença de que um texto pudesse ter múltiplas interpretações. Embora
qualquer texto narrativo ou de doutrina possa ensinar, de modo incidental, múltiplas
verdades, estas são secundárias no tema primário da história ou instrução. Nada há de
errado em reconhecer estas verdades secundárias, mas o intérprete nunca deve
exagerar uma verdade de menor importância em detrimento a verdade principal.
Assim o fazer, na melhor das hipóteses, diluiria o propósito da narrativa; obscureceria
a mensagem divinamente ordenada. Esta é exatamente a acusação que Cristo fez
contra os intérpretes de seu tempo que perderam de vista a mensagem principal
porque ressaltavam demasiadamente as minúcias:

23
Ai de vós, escribas e farizeus, hipócritas! Pois que dais o dízimo da
hortelã, do endro e do caminho e desprezais o mais importante da
lei, o juízo, a misericórdia e a fé; deveis, porém, fazer essas coisas e
não omitir aquelas. (Mt 23.23)

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Outros intérpretes que, nos dias de Cristo, procuravam significados ocultos nas
Escrituras eram os místicos da região de Qumran (perto do Mar Morto), que para eles
servia de refúgio das corrupções do mundo. A palavra que caracteriza a interpretação
deles é pesher, uma abreviação de uma frase hebraica mais longa que significa isto é
aquilo.

Conforme subentende essa frase, esses estudiosos colocavam os eventos da


atualidade acima das Escrituras, buscando um significado secreto. Enfatizavam os
trechos proféticos e procuravam neles referências históricas que correspondiam aos
eventos de seus dias. A qualquer coisa que o profeta tivesse escrito, atribuíam um
sentido mais amplo, relevante à comunidade de seus dias. Por exemplo: resolveram
que os assírios referidos em Habacuque representavam profeticamente os romanos e
que o mestre da justiça era o próprio líder deles (Vikler 1981, 51).

É estonteante que esse mesmo método falso de interpretação continua a ser


praticado contra o AT hoje em dia. O verdadeiro evento, pessoa ou objeto histórico no
AT é desconsiderado pelo intérprete e, ao contrário do sentido pretendido pelo autor,
fica sendo um símbolo de uma interpretação que desconsidera completamente o
significado original do texto. A história do AT deve ter suas lições aplicadas às
condições da atualidade, mas não ao preço da desconsideração ao seu significado no
contexto histórico.

1. Um erro básico dos místicos judaicos na interpretação de textos do AT era


a) prestar bastante atenção aos pormenores de um texto.
b) desconsiderar os pormenores de um texto e ressaltar o pensamento principal.
c) considerar que os pormenores continham verdades que não se relacionavam com
o pensamento inteiro.
d) limitar cada texto à intenção original do autor.

2. O erro básico do método pesher de interpretação era


a) deixar de aplicar as Escrituras à vida diária.
b) procurar um significado oculto que não era o pretendido pelo autor.
c) deixar de acreditar que as Escrituras eram relevantes aos dias deles.
d) procurar um significado intelectual ao invés de um significado espiritual.

OBJETIVO 2 Buscando um significado oficialmente aceito


Identificar as declarações
corretas a respeito dos
perigos e das vantagens de Posto que as interpretações das Escrituras ficam cada vez mais complicadas por
depender da sabedoria de causa da inventividade humana, o processo inteiro acabou sendo relegado aos peritos.
outras pessoas para ajudar
na interpretação bíblica. A fim de protegerem a fé, as interpretações desses peritos passaram a ser autoritativas.
O estudo das Escrituras foi reduzido a aceitar aquilo que líderes reverenciados tinham
dito a respeito de cada texto. Pouco a pouco, estas interpretações dos peritos eram
cristalizadas na forma da lei oral, e eram consideradas iguais em autoridade à lei
escrita. Milton Terry explica:

54 | PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


Guardavam-se escrupulosamente contra as interpelações e as
mudanças; mas ao mesmo tempo, foram colecionando tradições e
construíram uma lei oral que, no decurso do tempo, veio a ter com
eles a mesma autoridade que os livros sagrados (1890, 33).

Finalmente, essa tradição oral foi registrada por escrito e recebeu o título de
Midrashim ou Midrash. Era composta de duas partes: a primeira parte incluía os
comentários sobre a lei, chamados Hallacá, e a segunda parte continha as
ponderações mais práticas e homiléticas sobre as Escrituras em geral, com o nome de
Hagadá.

Primariamente na Hagadá, os textos narrativos históricos sofriam à medida que


lendas e interpretações místicas foram sendo acrescentadas e então aceitas oficialmente
como a interpretação correta (1Tm 1.4). Uma lenda que tipifica estas tradições diz
respeito à rocha que Moisés feriu em Ex 17, que os judeus determinaram que devia
ser a mesma rocha mencionada em Nm 20. Concluíram que a rocha forçosamente deve
ter sido carregada pelos israelitas nas peregrinações no deserto, para servir de
bebedouro portátil (Kuyper 1978, 4).

Os judeus conservadores nos dias de Cristo acreditavam que as tradições


ligadas à Lei eram iguais à Lei. Alguns até mesmo asseveravam que as tradições tinham
sido dadas no Monte Sinai juntamente com a Lei. Não admire que Cristo tenha
condenado essas tradições que substituíram as Escrituras:

8
Porque, deixando o mandamento de Deus, retendes a tradição
dos homens, como o lavar dos jarros e dos copos, e fazeis
muitas outras coisas semelhantes a estas. 9E dizia-lhes: Bem
invalidais o mandamento de Deus para guardades a vossa
tradição. (Mc 7.8 e 9)

Embora a sabedoria dos séculos possa agir como salvaguarda contra exageros
na interpretação (e só um tolo arrogante desconsideraria a sabedoria de eminentes
cristãos nas gerações passadas), todo cristão é responsável pelo seu próprio estudo das
Escrituras. Os comentários nunca poderão substituir o esforço do estudo pessoal, nem
a Bíblia deve ser lida debaixo do farol artificial do preconceito teológico. Nenhuma
autoridade poderá substituir a autoridade das Escrituras.

3. Assinale cada alternativa correta.


a) O crente nunca deve empregar um livro feito por homens para ajudá-lo a
entender verdades espirituais.
b) O cristão pode tirar benefício de ouvir outros crentes pregarem, mas não tirará
benefícios de livros cristãos.
c) Se a liderança da igreja interpretar corretamente a Bíblia, o estudo individual dela
não será necessário.
d) Uma doutrina ou tradição da igreja deve ser sujeita à prova pelas Escrituras a fim
de comprovar sua validez.

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OBJETIVO 3 Buscando um significado mais razoável
Identificar o erro primário
de Filo no seu método de
interpretar o AT. A tendência de torcer a Bíblia para fazê-la concordar com o raciocínio humano e
as filosofias atuais não é uma exclusividade da teologia liberal na igreja moderna. A
interpretação judaica antiga estava sobrecarregada com seu próprio tipo de modernistas.
O mais famoso deles era Filo, um judeu erudito que morava em Alexandria.

O supremo alvo de Filo era vindicar as Escrituras diante dos seus


contemporâneos gregos, por meio de comprovar que a filosofia grega tinha sido
ensinada pelos profetas judaicos muito tempo antes dos filósofos gregos a
promoverem. Além disso, ele via muitas coisas nas histórias do AT que considerava
indignas de Deus, e procurava explicá-las de uma maneira consistente com o restante
das Escrituras.

Com essa intenção em mente, ele aproveitou um método usado pelos filósofos
gregos. Quando estes viam que os mitos da história grega não se coadunavam com o
pensamento contemporâneo, atribuíam a eles um novo sentido alegórico. E assim, as
histórias passaram a ser apreciadas, não pelo seu conteúdo histórico, mas pelas
mensagens filosóficas escondidas por detrás do significado literal.

Filo tratava as narrativas do AT da mesma maneira. Por exemplo, a vida de


Abraão passou a ser uma grande metáfora, que demonstrava como o filósofo vai em
busca da verdadeira sabedoria. Sua partida de Ur dos caldeus representou sua rejeição
do entendimento sensorial. Foi viajar até Harã, que significa buracos (e que representa
o vazio do conhecimento sensorial). Finalmente, seu casamento com Sara (que
simboliza a sabedoria) refletiu sua iluminação na sabedoria abstrata (Ramm 1970, 28).

Que coisa estarrecedora! Achou a filosofia grega ensinada na Bíblia séculos


antes dos gregos a descobrirem! Se Filo pudesse ter visto a mesma filosofia através
dos olhos dos homens de séculos posteriores, ele teria ficado envergonhado. E alguns
estudiosos cristãos dos séculos XVIII e XIX ficariam igualmente envergonhados se
tivessem visto o resultado final da crítica das origens documentárias que procuravam
deixar as narrativas bíblicas mais aceitáveis à razão. A filosofia tem sido desacreditada,
mas a Bíblia permanece firme.

4. Assinale cada alternativa correta quanto ao método de interpretação de Filo.


a) Seu erro primário na interpretação das Escrituras era desconsiderar o significado
dado pelo autor e preferir um significado mais aceitável na sociedade dele.
b) Enfatizava demasiadamente os pormenores da história e deixava de buscar as
verdades espirituais mais profundas.
c) Dependia das interpretações oficiais das Escrituras ao invés de procurar novos
significados para a sua geração.
d) Sentia vergonha da interpretação literal das Escrituras; de modo que aplicava às
Escrituras o método alegórico grego de interpretação, para torná-las mais aceitáveis.
e) Alegava que a filosofia grega era ensinada na Bíblia antes mesmo dos gregos
terem desenvolvido essa filosofia.

56 | PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


OS ALVOS ERRADOS DA INTERPRETAÇÃO ECLESIÁSTICA OBJETIVO 4
Identificar um erro comum
cometido pelos intérpretes
É fato curioso que a interpretação cristã tenha continuado a seguir os mesmos da Igreja Primitiva e pelos
três erros que predominavam na interpretação judaica. Primeiro, místicos Pietistas da pós-Reforma.

demasiadamente zelosos da igreja Primitiva buscavam níveis mais profundos de


significado, ao invés de se satisfazerem com a intenção original do autor.

Segundo: havia a tendência de avaliar todas as interpretações através de um


“gabarito doutrinário” oficial. Terceiro: a igreja começou a refletir a cultura do seu
ambiente, ao invés de afetá-la. A filosofia pagã inundou a igreja medieval e o
racionalismo moderno infectou a doutrina cristã moderna.

Buscando um significado mais espiritual

O Método Alegórico

A igreja do século II ficava confusa quanto aos ensinos do AT; simplesmente


parecia não haver conexão com os do NT (especialmente as narrativas do AT que
pareciam tolerar atos imorais e contrariar a natureza santa de Deus). Os pais da igreja
resolveram zelosamente fazer do AT um documento cristão. Embora seus motivos
talvez tenham sido puros, o erro deles foi escandaloso.

Raras vezes um motivo sincero resultou em tamanha confusão e detrimento


para a Igreja. Seja como for, acrescentaram um sentido mais profundo, mais espiritual
ao significado literal ou histórico; é isso que chamamos de interpretação alegórica.

Clemente de Alexandria foi o primeiro pai da igreja que empregou a alegoria


como meio de cristianizar e preservar o AT. Ele achava que qualquer trecho pudesse
conter cinco níveis de significado: histórico, doutrinário, profético, filosófico e místico.
Ele declarou que o significado histórico ou literal era útil somente para a fé elementar
e que tudo que parecia escuro ou imoral na Bíblia simplesmente servia de incentivo
para transcender o sentido literal (Berkhof, 1950, 20).

Figura 3.2

Esse tipo de interpretação deixava a Bíblia exposta a dois perigos. Um era que a
engenhosidade substituiria a mensagem divina. Por exemplo: Clemente alegou que os três
dias de viagem de Abraão até Moriá (Gn 22.1-4) eram, respectivamente: o dia da fé pela
vista, o dia do desejo da sua alma e, finalmente, o dia do entendimento espiritual.

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Um sistema tão subjetivo de interpretação limitaria a exposição a uns poucos
privilegiados. Clemente até mesmo reconheceu este fato ao escrever:

As Escrituras escondem seu verdadeiro significado a fim de nos


deixar curiosos, porque não convém que todos entendam.
(Virkler 1981, 59).

Agostinho foi um dos alegoristas mais famosos. Infelizmente, achava que cada
texto da Bíblia podia ter quatro níveis de interpretação. Por exemplo: uma referência
ao mar podia ser, simultaneamente, uma aglomeração de água, as Escrituras, a era
presente, o coração humano ou mesmo o batismo. Uma referência a Jerusalém podia
ensinar algo sobre a cidade propriamente dita, a Igreja, a alma e a Jerusalém celestial;
tudo ao mesmo tempo.

Uma verdade básica que Agostinho e outros alegoristas desconsideravam, era


que Deus não inspirou uma mensagem codificada que somente os místicos espirituais
pudessem decifrar. Embora o significado de uma narrativa histórica nem sempre seja
óbvio, nunca é um segredo. O intérprete sempre deve procurar o único sentido de um
trecho dentro do texto propriamente dito, e não uma iluminação mística que
desconsidera o contexto.

5. Liste dois perigos que a igreja medieval enfrentava por causa da interpretação alegórica?

Enfatizando a experiência mais do que a Palavra

O método alegórico caiu em má reputação durante a Reforma, mas


espiritualizar permaneceu sendo um método aceitável da interpretação bíblica. Quando
o zelo da Reforma cedeu ao formalismo morto, alguns cristãos sinceros, chamados
pietistas, procuraram novo vigor na sua vida espiritual por meio de ressaltarem uma
experiência religiosa emocional. O fervor espiritual deles era louvável e eles
contribuíram para um rejuvenescimento da fé verdadeira. Ao mesmo tempo, porém,
tendiam a exaltar a autoridade da experiência pessoal acima da revelação bíblica. A
Bíblia não era desconsiderada, mas a experiência era elevada até uma posição igual à
das Escrituras (Wood 1967, 92).

Essa abordagem mística à interpretação é prima-irmã da interpretação alegórica,


posto que ambas as abordagens pressupõem e aceitam um segundo significado que é
estranho para o significado natural e original do texto. A autoridade da experiência
versus a das Escrituras, ainda está acossando a igreja. Muitos evangélicos deixam de
lado o significado simples de um texto bíblico, no afã de descobrirem uma bênção
pessoal. Infelizmente, o método alegórico ainda consegue lugar em muitos púlpitos,
especialmente nas explicações de textos históricos do AT.

58 | PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


6. Os antigos pais da igreja alegorizavam as Escrituras a fim de artificialmente forçar
o AT a ensinar mecanicamente as verdades do NT, ao passo que os pietistas
alegorizavam a Bíblia a fim de fazê-la ensinar as experiências deles. Que mesmo
erro é apresentado pelos dois grupos? Responda em seu caderno.

7. Falamos do efeito que a experiência acima da Bíblia tem tido sobre a geração
seguinte no decurso da história. Você vê algum paralelo na igreja moderna?
Registre dois deles em seu caderno.

BUSCANDO UM SIGNIFICADO OFICIALMENTE ACEITÁVEL OBJETIVO 5


Reconhecer as declarações
corretas a respeito da
Para entendermos o erro do significado oficial (o significado tradicionalmente natureza, valor e perigos de
mantido pela Igreja Católica Romana), teremos que voltar novamente para usar um dogma oficial como
gabarito para a interpreta-
Agostinho. Este é considerado o pai do método alegórico da interpretação da Bíblia, ção bíblica.
usado pela Igreja e o avô das interpretações oficialmente aprovadas empregadas na
Idade Média. Seu método alegórico de interpretação levou à espiritualização extrema
da Bíblia.

Essa norma, por sua vez, deixou a interpretação tão subjetiva que parecia
necessário controlar a interpretação pessoal. À medida que suprimiu-se a interpretação
pessoal, foi perdida a vitalidade que resulta do estudo da Palavra de Deus pelos crentes
individuais e, também, foi prejudicado o ensino bíblico dos púlpitos. Tomás de Aquino
sujeitou desavergonhadamente as Escrituras à autoridade da tradição. Alegava que a
igreja era a depositária das Escrituras. Por isso, a igreja possui a tradição verdadeira
(tanto a oral quanto a escrita) de modo que nenhum trecho possa ser interpretado de
modo conflitante com as doutrinas católicas romanas. Hugo de Saint Victor reflete essa
falsa hermenêutica quando escreve:

Aprenda primeiramente o que você deve crer, e então vá à Bíblia


para achá-lo ali. (Berkhof 1950, 23)

Ao longo dos séculos, os sacerdotes começavam a negligenciar o estudo bíblico


e, já no século XIII, muitos doutores de teologia nem sequer tinham lido a Bíblia. Até
mesmo na Europa pós-Reforma, o sistema de interpretação oficial passou a
popularizar-se e, ao invés de haver interpretação bíblica séria, surgiu o hábito de
saquear a Bíblia na busca de textos para comprovar doutrinas prediletas. Este problema
ainda existe hoje, porque muitos intérpretes vão até à Bíblia procurando aquilo em
que desejam acreditar, ao invés daquilo em que deveriam acreditar.

8. Assinale cada alternativa correta.


a) Enquanto a igreja ensinar corretamente a Bíblia, os crentes não precisam estudá-la
individualmente.
b) Até mesmo a doutrina eclesiástica correta precisa ser equilibrada com a vitalidade
que provém do estudo e interpretação da Bíblia pelo indivíduo.
c) Embora a verdade das Escrituras nunca mude, os crentes em cada geração
precisam redescobrir esta verdade por conta própria.

59 | LIÇÃO 3 - O ALVO DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


OBJETIVO 6 Buscando um significado mais razoável
Definir quatro conceitos dos
racionalizadores da igreja:
1. Teoria da acomodação; Adaptação à cultura
2. Crítica das origens
documentárias;
3. Existencialismo; Talvez o pior erro na história da interpretação cristã seja torcer ou rejeitar textos
4. Desmitologizando a a fim de forçar as Escrituras a harmonizar-se com a filosofia, pensamento erudito ou
Bíblia.
ética cultural em voga na época. Marcião de Pontas, um estudioso do século II, é nosso
primeiro exemplo. Rejeitou a totalidade do AT porque este conflitava com as idéias
gnósticas nas quais cria.

Outro estudioso cristão que torcia as interpretações a fim de conformá-las com


seu preconceito cultural foi Orígenes de Alexandria. Este homem empregava a alegoria
como ferramenta para tornar a Bíblia mais compatível com o pensamento de seus dias.
Vê-se a essência de sua abordagem na interpretação de Ex 1.22-2.10. Em sua opinião,
o Faraó representava o diabo, e os meninos e as meninas representavam
respectivamente as qualidades racionais e animais da raça humana. Faraó queria
destruir a racionalidade (o processo mediante o qual a alma busca as coisas celestiais),
e ao manter com vida as meninas, ele pretendia conservar as propensidades animais do
homem. A filha de Faraó representava a igreja, ao resistir ao seu pai – o Diabo (Kaiser
1983, 199). Em poucas palavras: Orígenes procurava tornar a Bíblia mais razoável.
Quando as Escrituras pareciam conflitar-se com o seu ideal (ao registrar alguma
imoralidade ou trivialidade), ele meramente alterava o significado mediante a alegoria.

Teoria da acomodação

O século XVIII era afamado pelo Iluminismo, um movimento caracterizado pelo


racionalismo. Os racionalistas acreditavam que a mente humana era a derradeira
autoridade para determinar a verdade. Achavam que tudo que não pudesse ser
confirmado pela razão ou pela ciência não era verdade. Sendo, pois, considerado que
somente aquilo que é razoável é verdadeiro, os milagres da Bíblia (especialmente
aqueles do AT), deviam ser reavaliados. Como resultado, os pormenores históricos de
um texto bíblico eram colocados em nível inferior de autoridade à verdade teológica
ensinada no texto. A Bíblia era considerada uma compilação de mitos que
representavam verdades espirituais. De alguma maneira, uma narrativa bíblica poderia,
historicamente, relatar uma mentira e, teologicamente, apresentar uma verdade.

Uma explicação oferecida para esse paradoxo era chamada a teoria da


acomodação, que sustentava que o escritor bíblico escrevia do seu ponto de vista
supersticioso, preconceituoso e ignorante. A verdade, diziam os proponentes dessa
teoria, somente poderia ser achada por meio de olhar para além dos mitos para seu
âmago da verdade.

A Teoria da crítica das origens documentárias

No século XIX tornou-se popular acreditar que todas as coisas estavam em uma
condição constante de evolução. Esta idéia não era apenas aplicada à

60 | PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


Natureza (na teoria de Darwin), mas também os Intérpretes Bíblicos que usavam
o método histórico-crítico de interpretação alegavam que a fé de Israel
desenvolveu-se no decurso dos anos, à medida que a consciência religiosa de
Israel era despertada. Acreditavam que muitos dos livros da Bíblia, cada um dos
quais atribuído a um determinado autor, tinham recebido acréscimos durante
sucessivas gerações, até chegarem às suas formas atuais. A tarefa do intérprete,
portanto, era descobrir a evolução do culto judaico desde a infância e o erro até à
maturidade. Como resposta, deve ser notado que, embora seja verdade que a
mensagem da Bíblia foi dada em etapas progressivas, não se subentende que a
progressão era do erro para a verdade, mas sim, do parcial para o completo. Não
subentende ainda, que os documentos originais foram sendo corrigidos no decurso
dos anos.

Um nome famoso associado a essa atitude é Julius Wellhausen. Wellhausen


empregava os nomes diferentes de Deus, os padrões gramaticais e as supostas
contradições no livro de Gênesis para propor uma teoria de múltiplas origens
documentárias. Este sistema era chamado crítica das fontes documentárias e se
estendia por boa parte do AT e dos Evangelhos. Em essência, o intérprete moderno
desta escola considerava cada autor bíblico um mero copista de outras obras.
Desprezava o produto final que aparece na Bíblia e buscava o conteúdo das origens
documentárias originais. Os críticos das fontes documentárias tomavam por certo que
o significado de um texto achava-se mais nas suas origens documentárias do que na
sua forma final.

Conforme pode-se imaginar, semelhante teoria redefinia o objeto da


interpretação bíblica. Ao invés de determinar o que o texto bíblico significava, o alvo
era determinar o conteúdo das origens documentárias em que o texto se baseava. Os
resultados eram fragmentar a mensagem dos livros da Bíblia e subverter a autoridade
das Escrituras.

9. A teoria da acomodação sustenta que a Bíblia


a) comunicava verdades espirituais aos leitores empregando mitos.
b) contém verdades expressadas em linguagem figurada para acomodar o conceito ao
leitor.
c) foi escrita em linguagem humana a fim de acomodar as limitações da humanidade.
d) emprega algumas expressões que não são cientificamente exatas a fim de
acomodar as limitações intelectuais dos seus leitores.

10
10. A idéia básica de crítica das fontes documentárias é que
a) o escritor bíblico era a origem primária do livro que escrevia e que Deus não o inspirou.
b) muitos livros da Bíblia evoluiram à medida que o escritor bíblico os copiava de
outras fontes documentárias múltiplas.
c) para compreendermos a origem da religião verdadeira, devemos olhar para nossa
própria experiência e não somente para a Bíblia.
d) a Bíblia, a origem de nossa fé, é tida como o produto da criatividade do autor original.

61 | LIÇÃO 3 - O ALVO DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


O existencialismo e a desmitologização da Bíblia

No começo do século XX, a filosofia dominante entre os intérpretes bíblicos


liberais passou do racionalismo para o existencialismo. Os existencialistas que
interpretavam a Bíblia, ressaltavam as experiências interiores da vontade, das emoções
e da consciência e nada aceitavam como certo – nem sequer a Bíblia. Era louvável sua
promoção de um relacionamento mais pessoal com Deus do que aquele oferecido pelos
racionalistas, mas erravam ao colocarem seus sentimentos (experiências subjetivas)
acima da autoridade da Palavra de Deus. Este fato fica claro no conceito existencialista
da ética. Viam o ensino de Cristo como uma chamada ética positiva à ação, mas não
como um padrão absoluto.

Do meio do movimento existencialista surgiu um teólogo chamado Rudolf


Bultmann. Procurou combinar a necessidade de uma interpretação razoável com a
necessidade de uma experiência subjetiva. Posto que ele não acreditava em milagres,
mas não queria rejeitar totalmente a Bíblia, alegava que os milagres eram simplesmente
um método literário antigo de usar mitos para transmitir a verdade. Alegava que o
intérprete precisava desmitologizar (remover os mitos) um texto para descobrir seu
verdadeiro significado. A Queda era considerada uma lenda que demonstrava a
fraqueza de toda a raça humana. Não era considerada um relato histórico real.

Um princípio atual da hermenêutica que tem raízes na abordagem


existencialista às Escrituras é chamado Nova Hermenêutica. É uma abordagem que se
centraliza mais no leitor do que no texto. Neste sistema, a pergunta para o intérprete
não é: “O que significa este texto?”, mas “o que ele significa para mim?” Realmente,
a segunda pergunta seria válida só na medida em que se baseia nas respostas à
primeira. Um tema comum em todas as formas de procurar um significado mais
razoável é que a razão e os pensamentos humanos têm mais autoridade do que as
Escrituras. O resultado final é uma interpretação que reflete a cultura, as necessidades
e os preconceitos do leitor mais do que a intenção do autor original.

11. O existencialismo é caracterizado por


11
a) sua crença na existência de uma força espiritual para ajudar na interpretação da Bíblia.
b) ênfase na experiência interior e rejeição dos absolutos.
c) ressaltar o que a Bíblia significa, mais do que aquilo que ela significa para mim.
d) remover qualquer mito contido no texto bíblico antes de descobrir a verdade ali
existente.

12
12. Quando Bultmann falava em desmitologizar a Bíblia, referia-se ao método de
interpretação em que o intérprete precisava
a) crer que a Bíblia não continha mitos, antes dele poder interpretá-la corretamente.
b) alegorizar a Bíblia para compreender como a verdade bíblica se encaixava em sua cultura.
c) reconhecer os mitos ensinados na sociedade a fim de não deixar que estes
afetassem a interpretação da Bíblia.
d) descobrir um significado pessoal por detrás dos mitos que existiam em derredor
da verdade ensinada na Bíblia.

62 | PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


O ALVO DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

Três erros principais da interpretação da Bíblia sempre voltaram a ocorrer no


decurso da história. Na realidade, porém, todos compartilhavam o mesmo equívoco:
ressaltavam um significado diferente daquele que os autores pretendiam. Vejamos
como a busca desse significado afeta a interpretação e notemos alguns exemplos desse
método.

A interpretação, os princípios e as aplicações OBJETIVO 7


Diferenciar entre a
interpretação única de um
Imagine que você está presente na leitura de um trecho e os princípios e
testamento que vale uma fortuna – para uma só pessoa. E aplicações múltiplas que dele
provêm.
agora, imagine um tribunal cheio de pessoas, sendo que cada
uma delas alega que o testamento o nomeia herdeiro.
Obviamente, o testamento não pode significar algo diferente
para cada pessoa. Para determinar o significado do
testamento, teremos que determinar qual era a intenção do
autor do testamento e não aquilo que os leitores querem
que o testamento signifique.

Assim acontece com qualquer livro da Bíblia; seu


significado é único (aquele que o autor pretendia); de outra
Figura 3.2
forma, não tem sentido. O erro central dos intérpretes no
decurso da história da igreja tem sido errar o alvo primário da interpretação da Bíblia,
que é descobrir a mensagem do autor ao seu auditório original.

Dizer que um texto bíblico tem uma única interpretação não dá a entender que
os princípios eternos e as aplicações atuais de um texto não possam ser numerosos.
Nem dá a entender que há apenas uma maneira de pregar determinado texto. Por
certo, cada cultura e geração irá pregá-lo com ênfases variadas e abordagens diferentes.
Mas certamente queremos dizer que o significado do texto precisa estar fundamentado
no significado pretendido pelo autor original. Assim como o tronco de uma árvore é a
origem dos muitos galhos e os galhos são a origem das folhas, assim também o
significado único e original de um texto pode produzir muitos princípios que, por sua
vez, podem ser aplicados de muitas maneiras à nossa vida individual.

Examinemos a diferença entre a interpretação, os princípios e as aplicações. A


interpretação é única. Trata-se de compreender o que o escritor original queria
comunicar ao seu destinatário original. Embora ninguém possa recuperá-la com
perfeição, a sua mensagem é o alvo em direção ao qual todos os esforços devem
dirigir-se. Uma vez descoberto o significado original, este serve de alicerce a tudo o
mais que é apreendido no texto e que então é aplicado. Examinemos um exemplo de
2Co 2.5-11. À medida que lê o texto, note que ele trata com o perdão a um homem
que havia sido disciplinado pela igreja em Corinto. Antes de se apressar às
aplicações pessoais, você precisaria reencenar a história original tão exatamente
quanto possível. Em poucas palavras, eu sugeriria que a interpretação fosse algo
semelhante à seguinte:

63 | LIÇÃO 3 - O ALVO DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


Paulo está escrevendo à igreja de Corinto a respeito da
conduta imoral de um membro. Ele relembra aos crentes que
lhes tinha escrito anteriormente (talvez em 1Co 5),
ordenando que esse homem fosse expulso da igreja. Embora
a igreja relutasse inicialmente em excomungar o malfeitor,
agora reluta igualmente em restaurá-lo à comunhão depois
dele se arrepender. Paulo está exortando a igreja a perdoar e
amar o irmão arrependido e acolhê-lo de volta na plena
comunhão. Sem esta aceitação, o Diabo poderia tirar
vantagem do fraco e desprotegido santo, e seduzi-lo de volta
ao pecado.

Embora pudesse ser mais detalhada, essa explicação serve como exemplo para
descobrir o significado pretendido pelo autor. A partir daí, poderemos descobrir vários
princípios que o texto ensina, mas só mencionaremos dois deles. Primeiro: o texto
ensina que o papel da igreja ao disciplinar não é castigar, mas restaurar. Segundo:
observamos que uma atitude inflexível para com a disciplina fornece ao Diabo uma
oportunidade de retomar para si os crentes fracos.

Note que esses princípios são verdadeiros em todas as culturas do mundo e


em todas as gerações da igreja. Por contraste, uma aplicação trataria de uma
pessoa específica na sua igreja, com todos os pormenores. Você conhece alguém
que foi disciplinado com vistas ao castigo, mais do que à restauração? Essa pessoa
quer ser trazida de volta à comunhão, mas ainda é rejeitada pela igreja? A sua
igreja declara um modo específico de verificar se uma pessoa realmente se
arrependeu? Perguntas como estas são exemplos de aplicações específicas dos dois
princípios mencionados acima. Outra pergunta seria indagar a si mesmo, se há em
você alguma atitude inflexível que recusa o perdão a outro cristão que tendo caído
em pecado, agora busca a comunhão com você. Conforme se percebe, a distinção
entre os princípios tirados de uma interpretação e as incontáveis aplicações destes
princípios, é que são as aplicações que traduzem os princípios em nossa vivência
pessoal.

13
13. As declarações a seguir são tiradas de um estudo de 1Co 5. Associe cada
declaração à escolha que a identifica apropriadamente.
____ a) Qualquer membro que cometer o 1. Interpretação (resumo da intenção
pecado da fornicação deve ser do autor)
excluido durante pelo menos seis 2. Princípio (verdade universal e externa)
meses, e somente restaurado após 3. Aplicação (princípio aplicado indivi-
comprovação de arrependimento. dualmente)
__4 b) O pastor tem o direito de tirar a 4. Irrelevante (verdade não achada no
salvação de qualquer membro da texto)
igreja que cai em pecado.
____ c) O fornicador impenitente da igreja de
Corinto (1Co 5.11) devia ser
removido da igreja para promover o
seu arrependimento e purificar a igreja.

64 | PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


____ d) Uma organização eclesiástica não
pode permitir que o fornicador
impenitente continue com os crentes.
____ e) Um propósito primário para a
disciplina eclesiástica é restaurar o
pecador à comunhão com Deus.

A interpretação do significado único OBJETIVO 8


Explicar e definir o método
gramático-histórico de
Para termos exemplos corretos de interpretação do AT, podemos confiar nos interpretação.
métodos de Jesus e dos apóstolos. Note que Jesus fazia aplicações baseadas no sentido
natural (literal) de um evento histórico mais do que em algum sentido alegórico
remoto (Mt 12.40). Além disso, ele encoraja o povo a renunciar as tradições distorcidas
que estavam amarrando as Escrituras (Mc 7.6-13). E ainda, ele tratava os personagens
nas histórias do AT como pessoas reais e não simplesmente como figuras fictícias. Por
exemplo: ele se referiu a Jonas como uma pessoa real – não como parte de um mito
ou parábola (Mt 12.39-41). Seguindo o exemplo de Cristo, os apóstolos tratavam as
histórias do AT como escritos históricos e a instrução delas como genuinamente
autorizadas.

Os pais da igreja primitiva geralmente desconsideravam os exemplos de Cristo


e dos apóstolos, excetuando-se uma escola de intérpretes centralizada em Antioquia da
Síria. Dirigida por um estudioso chamado Crisóstomo, esta escola apoiava o sentido
único das Escrituras ao invés do sentido múltiplo dos alegoristas. Com isso, queriam
dizer que a interpretação era limitada àquilo que o texto realmente dizia, em vez de
imaginar níveis múltiplos de significado. O método que esses homens empregavam era
chamado de exegese histórico-gramatical. Isso simplesmente significa interpretar um
texto bíblico obedecendo-se as regras da gramática e o contexto original temporal e
cultural do trecho.

Infelizmente, a escola ficou com má reputação porque alguns hereges foram


impropriamente associados com a escola de Antioquia. Como resultado, esse método
legítimo de interpretação foi desconsiderado por causa da culpa por associação.
Bernard Ramm observa que se a escola tivesse prevalecido, o decurso inteiro da
História Eclesiástica podia ter sido diferente (1970, 48).

Durante 25 gerações, o método histórico-gramatical da interpretação ficou


esquecido, estando abaixo das interpretações místicas e sendo restringido pelos
decretos eclesiásticos. Finalmente, um monge chamado Nicolas de Lira voltou a ensiná-
lo. Um dos seus alunos, Martinho Lutero, sacudiu o mundo cristão com sua
redescoberta de um método de interpretação de significado único. Lutero argumentou
assim:

Somente o significado literal [normal, único] das Escrituras é a


essência inteira da fé e da teologia, segundo o que cada texto das
Escrituras poderá ser interpretado de modo simples, direto e
indisputável. (Wood 1967, 97)

65 | LIÇÃO 3 - O ALVO DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


O âmago da hermenêutica de Lutero era que as Escrituras deviam ser lidas no
seu sentido natural, dentro do contexto apropriado. Na opinião dele:

Devemos verificar o que o escritor queria dizer, por meio de


interpretar as suas palavras conforme o sentido costumeiro e
socialmente aceitável daquelas palavras.

Calvino declarou o mesmo princípio em palavras diferentes:

O primeiro dever de um intérprete é deixar o autor falar o que ele


quer falar, ao invés de atribuir a ele o que achamos que ele deveria
dizer. (Radmacher 1984, 48)

De modo geral, os evangélicos denominacionais têm seguido os padrões dos


Reformadores até aos dias de hoje. Infelizmente, porém, nestas últimas décadas até
mesmo as igrejas evangélicas têm sido desafiadas pelos defensores de um novo sistema
de hermenêutica, que acreditam que a idéia é mais importante do que o pormenor
histórico. Insistem que o evento histórico é um mito que pode ser removido da
mesma maneira que uma laranja é descascada a fim de chegarmos à fruta comestível.

Tendo em mente essa tendência, a igreja precisa reasseverar que o único alvo
válido da interpretação bíblica é descobrir o sentido original do autor. Só esta pode ser
a base para declarar princípios que aplicam as Escrituras à nossa vida de modo
apropriado. Nunca deveremos nos esquecer do seguinte: quando deliberadamente
desconsideramos o significado pretendido pelo escritor original, fazemos do intérprete
a derradeira autoridade. O resultado é confusão em massa, e surgem tantas
interpretações quantos são os intérpretes.

14
14. Nesta lição, ressaltamos a necessidade de procurar um significado único de um
texto das Escrituras por meio do método histórico-gramatical. Explique
resumidamente qual é o significado de cada uma das sentenças abaixo:
a) o significado único das Escrituras:

b) o método histórico-gramatical:

66 | PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


MÚLTIPLA ESCOLHA: Assinale a única alternativa correta.
MÚLTIPLA autoteste

1. A erudição judaica antiga atentava aos pormenores dos textos bíblicos, mas não
interpretava corretamente. Seu erro era
a) dar exagerada atenção aos pormenores.
b) tratar os pormenores como se não tivessem relacionamento com o pensamento inteiro.
c) não aplicar à vida diária deles.
d) fazer estudos eruditos, mas não devocionais.

2. O erro central dos pais da igreja e dos pietistas da pós-Reforma era que ambos
a) enfatizavam demasiadamente o contexto histórico e desconsideravam os
pormenores.
b) desconsideravam o fato de que o alvo da interpretação é o significado original
pretendido pelo autor.
c) não creram que a Bíblia é verdadeiramente um livro divinamente inspirado.
d) confiavam nas tradições dos homens mais do que no ensino das Escrituras.

3. A procura por uma única interpretação para cada texto bíblico estudado significa que
a) a intenção original do autor é a fonte para todos os princípios e aplicações válidos.
b) há, na realidade, um só sermão que é válido para cada texto das Escrituras.
c) nunca é certo ensinar verdades secundárias que estão fora da lição principal de um texto.
d) isso limita o poder do Espírito Santo para inspirar na mente do intérprete novas
verdades.

4. Usar o dogma eclesiástico oficial como gabarito para a interpretação da Bíblia irá
a) manter as grandes verdades da igreja no decurso dos tempos.
b) resultar na falta de equilíbrio e de vitalidade que a interpretação particular dá a
cada nova geração.
c) proteger a igreja enquanto ela ensinar a sã doutrina.
d) a), b) e c) estão corretas.
e) apenas a) e b) estão corretas.

CERTO-ERRADO: Escreva C para as afirmações certas; e E para as erradas.


CERTO-ERRADO:

____ 5. Se a igreja interpretar corretamente um texto das Escrituras, não é necessário


as gerações futuras estudarem e descobrirem aquele mesmo texto.
____ 6. A frase interpretação histórico-gramatical significa usar regras da gramática
e do contexto histórico para interpretar a Bíblia.
____ 7. A teoria da acomodação declara que o autor bíblico empregava mitos e
erros na Bíblia para acomodar a verdade aos seus leitores.
____ 8. A teoria da desmitologização declara que a Bíblia está cheia de mitos que
precisam ser removidos para ser descoberta a verdade real que ensinam.
____ 9. A idéia básica do existencialismo é que a nossa fé deve basear-se na lógica
mais do que nos sentimentos.

67 | LIÇÃO 3 - O ALVO DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


____ 10
10. A crítica das fontes documentárias estuda o propósito pelo qual cada livro
da Bíblia foi escrito.
____ 11
11. Filo era um estudioso judaico que empregava o método alegórico grego de
interpretação para tornar o AT mais aceitável à sua cultura.
____ 12
12. Há somente um sermão que pode ser pregado de cada trecho da Bíblia.

ASSOCIAÇÃO: Siga as instruções para cada grupo de questões.

13-18
13-18. Associe o tipo de interpretação (direita) às filosofias e alvos (esquerda).
____ 13
13. Regras da gramática e do contexto a. Acrescentar um significado
para descobrir o sentido pretendido mais espiritual
pelo autor. b. Restringir a interpretação a
14
____ 14. Limita a interpretação a fim de um significado oficial
salvaguardar a igreja dos exageros. c. Achar um significado mais
15
____ 15. Faz do AT um documento cristão racional
por meio da alegorização. d. Identificar o significado
16
____ 16. Torna as Escrituras compatíveis com original do autor
a filosofia grega.
17
____ 17. Usa a lei oral para interpretar as
Escrituras do AT.
18
____ 18. Tornar a Bíblia mais razoável por
meio de remover os seus mitos.

RESPOSTA BREVE: Responda as seguintes questões com suas próprias palavras.


RESPOSTA

19
19. Resuma o fundamental erro de interpretação no decurso das eras.

20
20. Explique por que se pode dizer que há uma só interpretação de qualquer texto
bíblico, mas que o mesmo texto pode dar origem a milhares de sermões distintos
entre si.

21
21. Defenda a idéia de que o primeiro alvo de cada intérprete da Bíblia deve ser
descobrir a intenção do autor original.

68 | PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA


RESPOSTAS ÀS QUESTÕES DE ESTUDO

8) b) e c) estão corretas. 13
13. a) 3
b) 4
1. c) considerar que os pormenores continham c) 1
verdades que não se relacionavam com o d) 2
pensamento inteiro. e) 2

9) a) comunicava verdades espirituais aos leitores 6. Os dois desconsideravam o fato de que o alvo
empregando mitos.. primário da interpretação é descobrir o significado
original do autor. Esse significado é a base de todos
2. b) procurar um significado oculto que não era o os ensinos tirados de um texto das Escrituras.
pretendido pelo autor.
14
14. a) A Bíblia não tem níveis diferentes de
10
10. b) está correta. significados mais espirituais. Somente o significado
na mente do escritor inspirado é válido. Isso não
significa, porém, que o texto não possa ter muitos
3. d) está correta.
princípios eternos e aplicações destes princípios,
a) está errada porque os livros feitos por homens provenientes daquele significado único.
podem edificar, assim como sermões pregados por
b) A única maneira de descobrir o verdadeiro
homens; b) está errada porque o estudo da Bíblia é
significado de um texto bíblico é ver o que ele diz
uma fonte de transformação em si mesma; c) está
(grámatica), estudado no pano de fundo de quando
errada porque o estudo pessoal da Bíblia é
e por que a mensagem foi dada (histórica).
necessário para a transformação da vida pessoal.

7. Quando os cristãos de uma geração deixam os seus


11
11. b) está correta.
filhos sem um sólido entendimento da Palavra de
Deus, a geração seguinte não terá alicerces nos
4. a), d) e e) estão corretas. quais possa desenvolver sua própria experiência
com Deus. Vivendo com a experiência emprestada
12
12. d) está correta. dos pais, esses cristãos podem ver sua fé tornar-se
oca e suscetível às influências do mundo. São
numerosos os exemplos deste acontecimento.
5. Um perigo era que a engenhosidade do intérprete
poderia substituir a mensagem divina. O segundo
perigo era que limitava a exposição das Escrituras
a alguns místicos, por ser demais subjetiva para a
interpretação por modos normais.

69 | RESPOSTAS ÀS QUESTÕES DE ESTUDO

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