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OPÚSCULOS II
CARLOS NOUGUÉ
ESTUDOS TOMISTAS
OPÚSCULOS II
© 2020 Edições Santo Tomás
Rua das Flores, 120. Setor Nordeste.
CEP 73807-205 Formosa, GO
Internet: http://edicoes.santotomas.com.br
E-mail: edicoes@santotomas.com.br
DIREÇÃO EDITORIAL
Marcel Barboza
DIAGRAMAÇÃO
Lhaisa Andria
SUMÁRIO
• Breve apresentação
GRAMÁTICA E TRADUÇÃO
ARTE DO BELO
CRÍTICA FILOSÓFICA
• Da Realeza de Cristo
• Corte e costura humanista
APÊNDICE I: Se pode o homem ter mais de um fim último
(Exposição)
APÊNDICE II: A doutrina tomista sobre tirania e rebelião
• Notícia histórica da Doutrina Social da Igreja
• A pólis em ordem a Deus
APÊNDICE: Santo Tomás de Aquino e a fina “arte” de discernir
o mal menor
• O que é a ideologia
• Fátima e a Rússia de Putin, ou quando se faz imperioso um
“parece”
• Diferenças entre a revolução marxista e a revolução marcusiana
• Governo mundial, pandemia, governo Bolsonaro – os campos
opostos do catolicismo tradicional e do catolicismo liberal-
conservador
APÊNDICE I: Direitismo conservador “católico” versus
Teologia da Libertação – duas cabeças da mesma hidra
APÊNDICE II: Um jesuíta vestido de brâmane – ou de como
tornar-se uma democracia-cristã
APÊNDICE III: Carta que eu enviaria a Jair Bolsonaro se tivesse
como fazê-lo
APÊNDICE IV: A revolução olavo-bolsonarista
• Uma proposta lançada em solo estéril
TEOLOGIA SAGRADA
10
GRAMÁTICA E TRADUÇÃO
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE FONÉTICA
1
Extraído de Landeg White, The Lusiads – English Translation. Oxford, Oxford
University Press (Oxford World’s Classics), 1977.
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• Mas por que trago à baila o galego, que muitos sustentam ser
uma língua e não um dialeto do português? Porque importa sobre-
maneira no que quero demonstrar. Veja-se, no quadro acima, o mo-
do galego de dizer o /ç/ de “afeiçoada” (segundo verso): como /θ/
[afejθo’aða], ou seja, como o zeta usado em grande parte da Espanha
para dizer, por exemplo, zorro. É um som de articulação interdental,
fricativo e surdo, o mesmo que também é representado, ainda em es-
panhol, pela letra c quando seguida de e ou i – exatamente como no
galego (embora em certas regiões da Galiza também se diga, como
em português, como /s/). Pois bem, o que hoje é o fonema /θ/ no
galego era dito provavelmente /ts/ não só no galego-português (o que
se considera a primeira etapa do português), mas também ao menos
em parte da etapa seguinte, a do português “arcaico”, na qual o galego
e o português se separaram por razões geopolíticas. O som /ts/ era re-
presentado pela letra ç. Pois bem, como se julga sejam etapas da
mesma língua o galego-português, o português “arcaico” e o “mo-
derno”, pergunte-se: /θ/ é o fonema de que o antigo /ts/ era “rea-
lização” ou, inversamente, /θ/ é “realização” de um antigo fonema
/ts/? Com efeito, ambos têm potência ou possibilidade de converter-
se um no outro. Mas não parece conveniente que uma coisa seja “mo-
delo” de algo desaparecido antes de seu surgimento, ou, o que é o
mêsmo, que algo seja “realização” de uma coisa inexistente no mo-
mento em que se dá. Ademais, se alguém dissesse hoje entre nós
/tsorro/ para significar zorro (raposo), provavelmente não seria de
imediato entendido. Somos capazes de entender que /tchia/ e /tia/ são
a mesma palavra; mas não que o sejam /tsorro/ e /zorro/. Que com-
clusão tirar desse impasse?
• Conclusão outra que a da Linguística. Vejamo-la passo a passo,
a começar do mesmo exemplo acima, o de zorro.
◊ Suponhamos que a certa altura do século XV já coexistissem,
na Galiza, /tsorro/ e /θorro/, e, em Portugal, /tsorro/ e /zorro/, escri-
tos sempre “çorro”. Transcorreu o tempo, porém, e na Galiza desapa-
receram tanto /tsorro/ como o ç para representar na escrita o /θ/ de
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DA ARTE DA TRADUÇÃO*
I
A ARTE DA TRADUÇÃO
*
Palestra transcrita por Cássio Gabriel. – Mantém-se aqui o estilo oral.
1
Cf. nosso opúsculo “O que é a ideologia” (presente neste volume), onde fazemos
uma mais detida distinção entre arte e experiência.
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2
MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA, O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote da Mancha,
Rio de Janeiro, Record, 2005.
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3
É neste sentido que recomendamos a leitura de certa obra de um autor com que
não temos mais nada em comum: Quase a Mesma Coisa, de Umberto Eco. Neste li-
vro, Eco, ainda que de modo algo pernóstico, coincide grandemente com nossos
pontos de vista sobre a arte de traduzir; sobretudo por seu princípio de margem de
negociação.
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4
Traduzimos vários livros de S. Tomás. Mas só fomos mais feliz nas três últimas
traduções: o Compêndio de Teologia, a Questão Disputada sobre as Criaturas Espi-
rituais e Do Reino e outros escritos. O que não é de estranhar: a idade nos vai
melhorando em muitas coisas.
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5
Esta é a doutrina, por exemplo, de Benedetto Croce. Para ele a tradução, sobretudo
a literária, se afigurava impossível.
6
Isto de que as línguas vejam o mundo por ângulos diferentes, ainda quando se trate
da mesma coisa, explicamo-lo detidamente na Suma Gramatical da Língua Portu-
guesa (São Paulo, É Realizações, 2015).
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7
Aliás, pudemos exercer na tradução deste livro de Duns Scot algo que é muito bom
mas nem sempre possível: pudemos contestar em nota ao mesmo Duns Scot, sem-
pre que ele – sem citá-lo – critica a Santo Tomás de Aquino.
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II
TRADUÇÃO E GRAMÁTICA
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Trata-se do conto de Julio Cortázar intitulado “Después del almuerzo”, o único
dele que realmente apreciamos.
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ARTE DO BELO
O SEGREDO DE LÉON BLOY
HANS SEDLMAYR,
A Arte Descentrada
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de Deus não fazem obras que pudessem ser reunidas numa seção de
museu intitulada “Arte Cristã”, ao lado de e em pé de igualdade com
outras correntes artísticas. Não: como diz Henri Charlier, a arte cristã
não é uma forma de arte mais; é a arte, aquela a que todas as demais,
ainda que obscuramente ou a contragosto, aspiram.
E nunca havemos de afirmá-lo, e de praticá-lo, “com um coração
tão alegre como quando sobre as ruínas amontoadas pelo Anticristo
se levantarem os olhos para o oriente para saudar a vinda da última e
total redenção”.
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A SAGA DO PADRE BROWN,
DE GILBERT K. CHESTERTON
Por ter por fim fazer propender à verdade, a arte do belo su-
bordina-se de modo particular à Lógica e à Metafísica, e por ter por
fim fazer propender ao bem e à virtude se subordina à Ética e à Po-
lítica. – Mas não só todo bem flui de Deus, que é o sumo bem, senão
que o viver virtuosamente se segue do cumprimento da lei natural. O
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1
TOMÁS DE AQUINO, De regno, l. 1, cap. 15.
2
Mateus 5, 17-19.
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3
P. ÁLVARO CALDERÓN, El Reino de Dios – la Iglesia y el orden político, Buenos Aires,
Ediciones Corredentora, 2017, p. 225 e 227.
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4
Bilbao, “El Mensajero del Corazón de Jesús”, 1953.
5
CARLOS NOUGUÉ, Da Arte do Belo, Formosa, Edições Santo Tomás, 2018.
6
ÁLVARO CALDERÓN, op. cit., p. 177.
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de The Pickwick Papers, etc.) e eleva aos píncaros da arte cristã – que,
como dito, é a melhor arte – a literatura detetivesca.
Mas não estaríamos nós exagerando? Pôr a saga do Padre Brown
acima de D. Quixote? Falamos com certo conhecimento de causa, ou
seja, com intimidade: traduzimos tanto o magnum opus de Cervan-
tes 7 como o primeiro livro da saga do Padre Brown, The Innocence of
Father Brown.8 Cremos poder pôr, portanto, que a nossa saga sobre-
eleva D. Quixote em perfeição formal, em especial quanto à coesão, e
quanto ao fim. Para que se entenda o que acabo de dizer, permitimo-
nos reproduzir aqui, com certas adaptações, o prólogo que
escrevemos para A Inocência do Padre Brown – para com isso
encerrar este opúsculo.
7
O Engenhoso Fidalgo D. Quixote da Mancha, Rio de Janeiro, Record, 2005,
tradução (de Carlos Nougué e José Luis Sánchez) avalizada pelo Instituto Cervantes
e pela comissão criada pelo governo da Espanha para comemorar os quatrocentos
anos da publicação da edição princeps da obra.
8
Gilbert Keith Chesterton, A Inocência do Padre Brown, Sociedade Chesterton
Brasil/Instituto Hugo de São Vítor, 2018, 304 pp.
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está pronto para alcançar a mesma Lógica se não galga antes, em sua
formação global, alguns degraus.
• Antes de tudo, deve o homem (de preferência já a partir da in-
fância) embeber-se da arte do belo (Literatura, Música, Pintura,
Cinema, etc.), cujo fim é conduzir à Retórica (o próximo degrau)
fazendo propender ao verdadeiro e ao bom mediante o belo, e fa-
zendo afastar-se do falso e do mau mediante o horrendo.
• Depois, como dito, deve alcançar a Retórica, cujo fim é conduzir
à Dialética ou Tópica fazendo amar o verossímil e odiar o inveros-
símil mediante certa “suspeita” de verdade.
• Por fim, como dito também, há de alcançar a Dialética, cujo fim
é conduzir à Lógica pela consecução de uma opinião cada vez mais
provável ou verossímil. 9
São as partes potenciais (ou anexas) da mesma Lógica, 10 as quais
constituem em conjunto o discurso provável e inventivo com grada-
ção de menor para maior proximidade da certeza. A parte porém que
nos interessa aqui é a arte do belo.
O que se possa dizer essencialmente sobre a arte do belo está co-
mo em germe na Poética de Aristóteles e esparso por sua obra e pela
obra de Tomás de Aquino. Mas não raro de modo demasiado lacu-
nar, o que requer de nós uma amplificação sistematizada, que, feita
extensamente em Da Ate do Belo, se pode resumir ou esquematizar
assim:
• Nas obras da arte do belo, representam-se ações. Em umas des-
tas artes (Literatura, Teatro, Cinema, Música, Dança), no entanto, tal
9
Haveria que considerar ainda a Sofística, que se ordena a evitar as falácias.
10
Do mesmo modo que são partes potenciais da alma humana sua parte vegetativa
e sua parte sensitiva. Com efeito, assim como a parte vegetativa é alma humana e a
sensitiva também o é, mas em sentido reduzido (e gradativo), porque alma humana
se diz mais propriamente da parte intelectiva, assim também a Poética, a Retórica e
a Dialética são Lógica, mas de maneira reduzida (e gradativa), porque Lógica se diz
mais propriamente da arte que permite ao ato da razão alcançar a ciência.
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O caso da Arquitetura é mais complexo: é arte em parte servil, em parte liberal
(todas as demais artes do belo são puramente liberais, porque tão somente sig-
nificativas).
12
Pouco mais ou menos o que, em Feeling and Form: A Theory of Art, de 1953, a
filósofa neokantiana Susanne Langer chama ideia orgânica.
13
Ter decoro (< lat. decōrum, i), como usado entre os escolásticos para o poético,
significa precisamente ter o conjunto das notas do belo, e o belo, como já punha
Aristóteles, “consiste na medida e na ordem” (Poética, cap. VII). Cf. também sua
Metafísica (M 1078 a 36): “As espécies principais do belo são a ordem, a simetria e
o determinado”. Entre os Doutores cristãos, e muito especialmente em Santo Agos-
tinho e em Santo Tomás de Aquino, aprofundar-se-ia muito o estudo do belo. Cf.
ainda nosso Da Arte do Belo, em que sustentamos com probabilidade que o belo é
um dos transcendentais.
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• Por todo o dito, vê-se que as obras da arte do belo têm dois ob-
jetos: o primeiro é precisamente o que querem significar, enquanto o
segundo é o destinatário dessa significação. Mas uma obra não será
da arte do belo, de modo algum, se não conseguir significar como
devido – ou seja, de modo mimeticamente belo – para seu destina-
tário, o que se dará se sua ideia exemplar for falha ou frustrada. 14
• Mas, assim como a Gramática tem duplo objeto (o que as pala-
vras significam e seu destinatário) e um fim último (permitir que o
homem transmita suas concepções e argumentações com ordem,
com facilidade e sem erro a outros homens distantes no espaço ou no
tempo), assim também a arte do belo tem seu fim último: como
antecipado, fazer propender ao verdadeiro e ao bom mediante o belo,
e fazer afastar-se do falso e do mau mediante o horrendo. 15
• Sendo assim, se determinada obra da arte do belo é
tecnicamente conseguida – ou seja, com respeito a seu duplo objeto
– mas não alcança o fim último desta arte, então só poderá dizer-se
arte do belo secundum quid, só quanto àquele duplo objeto, mas não
simpliciter, não absoluta ou perfeitamente; e estará para a verdadeira
14
Como diz em seu referido livro a filósofa Susanne Langer (neokantiana não des-
tituída de acertos, ainda que no meio de uma doutrina falha), os católicos não
deixam de ter sua parcela de culpa quanto à feiura atual do mundo, porque, com
efeito, no século XX deixaram entrar o feio em seus templos. Pois bem, um filme
que apresente adequadamente a vida de um santo ou a de Cristo e que, todavia, não
cumpra os cânones da beleza artística, esse nem sequer, insista-se, pode dizer-se arte
do belo, e ainda acaba por fazer que a juventude sensível à beleza tenda a filmes
anticristãos mas artisticamente conseguidos (como tantos de Bergman ou de
Antonioni, ainda que aqui, insista-se e insista-se, a “beleza” esteja para o efetiva-
mente belo assim como o ouropel está para o ouro).
15
Assinale-se, contudo, que o fim último não só da arte do belo mas, de certo modo,
de todas as artes só o é secundum quid, porque, com efeito, sempre será de algum
modo meio com respeito ao fim último simpliciter do homem, Deus.
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arte do belo como o ouropel está para o ouro. Brilhará, mas falsa-
mente. 16
Pois bem – e não a outra coisa queríamos chegar aqui –, os cinco
livros da saga do Padre Brown são perfeitamente conseguidos tanto
quanto ao duplo objeto como quanto ao fim último da arte do belo. 17
• Com efeito, não é literatura para o grande público, mas para um
público culto. Que o seja, todavia, não a diminui em nada, porque ser
obra poética para o grande público ou para um público mais culto
não é nota de bondade: assim, as Bucólicas de Virgílio são para um
público mais amplo, enquanto sua Eneida é para um público mais
restrito, sem que nada disso diminua o valor de ambas as obras. –
Mas a saga do Padre Brown alcança seu público de maneira tão per-
feita como o faz a Eneida de Virgílio ou o Henrique V de Shakespeare
ou as Sinfonias de Anton Bruckner.
• Significa perfeitamente, na personagem do Padre Brown e suas
peripécias detetivescas, a sagacidade e a prudência (prudentia,
phrónesis) cristãs, com o que rompe certo esquema aristotélico. Com
efeito, para Aristóteles (cf. sua Poética) a tragédia, pelo heroico, re-
presentava ações de homens superiores a nós, enquanto a comédia,
pelo risível ou ridículo, representava ações de homens iguais ou
inferiores a nós. Mas tal distinção era própria do paganismo: após
Cristo, porque o nome cristão é loucura para o mundo e motivo de
16
A título de exemplificação: os quadros de Picasso não são arte de modo algum,
porque não são conseguidos sequer quanto a seu duplo objeto – são feios, enquanto
neles se opera, como diria o historiador da filosofia Giovanni Reale, uma diluição
das formas. Um quadro, no entanto, que mantenha o decoro artístico mas retrate
atraentemente algo obsceno, não busca o fim último da arte do belo, senão que é
moralmente condenável. Para detido aprofundamento disto, cf. ainda nosso Da
Arte do Belo e o belo opúsculo de A. D. Sertillanges L’Art e la moral (Paris, Librairie
Bloud & Cie, 1911, 64 pp.).
17
Para um estudo mais profundo da literatura de Chesterton e em particular da saga
do Padre Brown, cf. na edição de nossa tradução d’A Inocência do Padre Brown pela
Sociedade Chesterton Brasil e pelo Instituto Hugo de São Vítor, a apresentação de
Rosa Nougué, “G. K. Chesterton: Uma Vocação para o Mistério”.
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BREVÍSSIMA HISTÓRIA DA MÚSICA ERUDITA*
*
Transcrição – feita por Patricia Júlio, a quem a agradecemos – de breve palestra
on-line nossa. Mantém-se aqui o estilo oral.
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uma imitação de certa ação moral. Pois a música é isto mesmo: imita
ações morais.
Mas, como todas as artes do belo, exatamente porque são belas,
suas obras se assemelham à virtude. Por quê? A virtude é uma pro-
porção. Ora, as obras das artes do belo também são proporcionais,
são consonantes, são harmônicas, e muito especialmente o é a Mú-
sica, com suas proporções matemáticas. Proporções matemáticas
também as há em outras artes; também as há na Arquitetura, também
as há na Pintura, etc. Mas na Música é mais patente ainda.
Mais que isso, porém! A tais ações morais, a música nos faz com-
preendê-las mediante o sentimento, ou a pujança do sentimento;
assim como (já o veremos) os cantos gregorianos, que são a música
litúrgica por excelência, nos fazem sentir, por exemplo, o júbilo
correspondente àquilo que diz o texto do canto, e que é modulado na
peça. Recomendo, a quem queira aprofundá-lo, o livro Le Plus belles
mélodies gregoriénnes, commentées par Dom Gajard (As Mais Belas
Melodias Gregorianas, comentadas por Dom Gajard). É um monge
de Solesmes, o mosteiro dominicano encarregado por São Pio X de
fazer retornar o canto gregoriano; e a edição também é de Solesmes,
de 1985. Assim, junto com aquilo que uma peça gregoriana quer sig-
nificar, por exemplo, a Páscoa, ela nos traz anexo o sentimento de ale-
gria relativo à Páscoa. Mais que isso, todavia, e como veremos, a par-
tir do Barroco a música começa a ter uma espécie de retórica das pai-
xões, das emoções, dos sentimentos, de modo que pela mesma músi-
ca, pelo mesmo modo musical que se tem, se traduzirá uma como
história, perpassada por toda uma gama de sentimentos, emoções –
e, digamos, ritmos. Toda ação humana tem parada, tem continui-
dade, tem aceleração, tem diminuição da aceleração, e tudo sempre
acompanhado de certas emoções, como alegria, tristeza, etc. – Desse
modo, a partir do Barroco é como se a Música, ela mesma, indepen-
dentemente de texto – porque, com efeito, a partir do Barroco, im-
pera grandemente a música tão somente instrumental –, fosse como
uma narradora de história, ainda que, obviamente, não narre his-
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dos litúrgicos. São eles: o jônio, o eólio, o dórico, o frígio, o lídio, etc.
O que são esses vários modos? Antes de tudo, os nomes são gregos,
como se pode ver: jônio, eólio, dórico, frígio, etc. Então, ou seja, anti-
gamente, achava-se que esses modos fossem os mesmos modos da
música grega. Não o eram. Hoje se sabe que os modos da música gre-
ga correspondentes aos modos litúrgicos começavam por outras no-
tas. Tratava-se de escalas, naturalmente, mas cada uma dessas escalas
começava por outra nota que a correspondente escala da música
litúrgica. Ademais, tais escalas eram descendentes, enquanto as es-
calas litúrgicas são ascendentes. Há quem conteste que tivesse havido
tão confusão. Como quer que seja, porém, devendo-se ou não a um
erro, o fato é que os modos litúrgicos citados não são o mesmo que
os modos gregos. Bohumil Med explica-o muito bem.
Insista-se: em todos esses modos, a música gira firmemente em
torno de um centro. Esse centro modal-tonal nunca é abandonado. É
a música tonal absoluta, digamos assim. E isso não só no canto
gregoriano, nos cantos litúrgicos em geral, mas também na música
popular – a dos trovadores, por exemplo. Estas escalas modais firme-
mente tonais, girando firmemente em torno de um centro que nunca
é abandonado e sem harmonia no sentido moderno, ou seja, no
sentido de tríades e de funções harmônicas, dura – e provavelmente
também era assim na Grécia e em Roma –, dura até o Barroco. Mas
atenção: há um momento de transição, os séculos XV e XVI, quando
se dá o que se pode chamar música renascentista.
A música renascentista já se torna polifônica. O que quer dizer
polifonia ou música de contraponto? Quer dizer que se cantavam
juntas, na mesma peça musical, melodias diferentes. Vejam que na
música tonal-modal a música se dá horizontalmente. Nela uma nota
se sucede a outra, etc., em uma só melodia. Mas, repita-se, na música
polifônica renascentista várias melodias são cantadas horizontal-
mente, sucedendo todavia que às vezes elas coincidam verticalmente;
e, ao coincidirem verticalmente, tem-se já uma espécie de acorde, que
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arbitrário de dizer por este fato (por ter composto a Missa em Si me-
nor sem ser por encomenda) que Bach se converteu à Igreja. Não há
nenhuma prova disso. Temos, no máximo, indícios. Fiquemos, por-
tanto, com isto: Bach é o maior gênio musical, e talvez o maior gênio
artístico de todos os tempos. Negá-lo é bárbaro. Portanto, aos puris-
tas recomendo que não o façam. Não privem seus filhos desta que foi
a maior das artes musicais (conquanto haja que alertá-los para o já
dito, ou seja, o herético de alguns textos de sua obra).
Bach, no entanto, foi um barroco tardio. Assim que morre, sua
música é interditada nos mesmos templos protestantes. Deixa de
tocar-se ali. Estamos na época das “luzes”, do racionalismo, do ilu-
minismo. A arte deste período é o Classicismo. A transição entre o
Barroco e o Classicismo dá-se por músicos rococós como Pergolesi,
cujo estupendo Stabat Mater, aliás, certamente influiu muito sobre
Mozart, o principal classicista. E a música deste novo período é a que
pode ser mais propriamente chamada música clássica. Mas há tam-
bém os filhos de Bach, também uma ponte rococó entre o período
barroco e a música clássica. Se virmos o excêntrico Glenn Gould (o
maior pianista de todos os tempos) tocar no piano uma fuga de Bach,
veremos que as duas mãos do pianista tocam melodias diferentes que
se afastam até se reencontrarem no final. Na música classicista ou
clássica para piano, a mão esquerda já funciona antes como um mero
apoio harmônico ao que faz a direita. Claro, estou resumindo-o
muito. Mas há de fato uma simplificação da música. Não sejamos nós,
no entanto, simplistas. Os dois grandes nomes do classicismo, que
são Haydn e Mozart, conheciam perfeitamente a arte da fuga; Mozart
tem belas Fugas; conheciam perfeitamente a arte do contraponto,
como se vê, por exemplo, no magnífico contraponto do final da
Sinfonia Júpiter, de Mozart. E ambos os compositores são gigantes!
Temos de ter grandeza de espírito suficiente para entender que, ainda
que esses homens estivessem instruídos por má doutrina filosófica,
ainda assim tinham elevação espiritual e artística suficiente para, em
sua música, ser os gigantes que foram. Claro, às vezes apresentam
problemas ao católico como Bach já lhe apresentava. Por exemplo, o
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imensas, infindáveis óperas, ter a arte total, uma arte que fosse uma
mescla de todas as artes. Isso era um sonho inviável; e o que resta de
sua arte operística são antes as aberturas e outras passagens instru-
mentais que se intercalavam entre as partes cantadas. Mas sobretudo
nas partes cantadas, e em especial na ópera Tristão e Isolda, Wagner
radicaliza o uso do cromatismo. Ele leva o cromatismo a tal ponto,
que alcança as fronteiras do atonalismo, onde a música deixa de ter
aquele centro tonal que nunca se perdera até a música barroca e clas-
sicista, ou até Schubert e outros compositores românticos. E ele o faz,
nas certeiras palavras de Otto Maria Carpeaux, porque precisa (es-
pecialmente em Tristão e Isolda) expressar o sentimento niilista, de
amor ao nada e à morte, que lhe vinha de suas convicções gnósticas.
Estamos, pois, na fronteira do atonalismo. Mas na França tam-
bém se chega à fronteira do atonalismo com Debussy, que começa
quase classicista, antes impressionista, poder-se-ia dizer, mas vai
aproximando-se das raias do atonalismo – e chega a ultrapassá-las,
ao contrário de Wagner, que, depois de Tristão e Isolda, recua n’Os
Mestres Cantores. (E a diferença quanto a Wagner entre Carpeaux e
mim é a mesma que entre Scruton e mim: como Scruton, ele admira
a arte niilista-gnóstica de Wagner, enquanto eu a repudio.)
Mas o que importa agora é que no século XIX surge, no meio do
Romantismo, uma personagem, um compositor que não era român-
tico: Anton Bruckner. Anton Bruckner era católico, catolicíssimo,
mas, quando compunha Missas, nas palavras ainda certeiras de Otto
Maria Carpeaux, compunha Missas-sinfonia. Ora, isso obviamente
criava rejeições no âmbito da Igreja, e por isso ele passou a compor,
ainda segundo expressão de Otto Maria Carpeaux, Sinfonias-missa.
Trata-se de seu ciclo sinfônico, um ciclo de nove sinfonias, como o
de Beethoven, o de Schubert ou o de Dvořák. Mas seu ciclo sinfônico
é o ápice, como o mostro detida e longamente no livro Das Arte do
Belo, é o ápice da música instrumental, é o ápice daquela tendência
da música a como narrar uma história. Mais: trata-se aqui de uma
história que vai do mistério da existência do ser humano até sua
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APÊNDICE
*
Este é um documento de nosso curso on-line de “História da Música Erudita Oci-
dental litúrgica e profana”, e se funda em nosso livro Da Arte do Belo (Formosa, E-
dições Santo Tomás, 2018, 608 pp.).
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A MÚSICA NO BRASIL
DO DESCOBRIMENTO AO INÍCIO DA REPÚBLICA
I
A MÚSICA NO BRASIL
DO DESCOBRIMENTO À VINDA DA CORTE
Música e catequese
1
A par da luta contra a escravização dos índios e da tradução de textos católicos
para o tupi-guarani.
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As salas de concerto
1
Sobre a ópera, falamos extensamente em nosso curso on-line “História da Música
Ocidental litúrgica e profana”. Mas diga-se desde já: ela é em grande parte nefasta,
e fundou-se num falso entendimento do coro dramático da Grécia antiga.
2
Sobre Cimarosa e Caldara falemos, igualmente, no referido curso on-line. Mas
diga-se desde já que Caldara (c. 1670-1736) é autor também de belíssimas peças
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4
Foi o musicólogo Francisco Curt Lange (Eilenburg, 1903-Montevidéu, 1997) –
sem cujo trabalho, aliás, nem poderíamos ter escrito este opúsculo – quem primeiro
pesquisou, descobriu e divulgou a obra dos compositores mineiros do século XVIII.
Alguns críticos puseram em dúvida a autenticidade das obras encontradas por ele.
Mas, ainda que se trate de restauração, tais peças têm inequívoco valor histórico e
estético. Como afirma Vasco Mariz, Lange, na verdade, não encontrou partitura
alguma. Na época colonial, era costume escrever diretamente as partes para vozes e
instrumentos. Para complicar o quadro, raros são os originais contemporâneos dos
autores, e as cópias posteriores sempre contêm omissões ou supressões. Por isso
dizia o próprio Lange que seu trabalho não fora de revisão, mas uma autêntica re-
constituição. O fato é que sem o labor de Curt Lange hoje não se teria acesso, em
numerosos arquivos e gravações, ao rico mundo musical das Minas Gerais sete-
centistas. [Para mais informações: Acervo Curt Lange, na Internet.]
85
ΑΩ
5
Ao contrário do que comumente se pensa, o barroco musical inicial (princípio do
século XVII) representou a vitória da homofonia sobre a polifonia e as artes contra-
pontísticas. Seria preciso esperar muito especialmente a arte de Johann Sebastian
Bach (1685-1750) para que a polifonia, e em particular a fuga, viesse a tornar-se a
característica central do último barroco. E curiosamente – como a demonstrar a fra-
gilidade das periodizações na história da arte – o rococó e o pré-clássico musicais
(por exemplo, os filhos de Bach), que se seguem imediatamente ao barroco, repre-
sentam uma progressiva retomada da homofonia.
86
ΑΩ
6
José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita nasceu em 1746, na Vila do Príncipe do
Serro do Frio, perto da atual Diamantina. De origem humilde, filho de um por-
tuguês e de sua escrava Joaquina Emerenciana, teve como professor de música e la-
tim o Padre Dantas, um competente mestre de capela. Por duas décadas foi músico
no então Arraial do Tejuco, como membro da confraria da Capela das Mercês dos
Pretos. Foi, além disso, alferes do Terço de Cavalaria dos Pardos e professor de
música e contraponto, e acabou por transferir-se para Vila Rica na companhia de
Tereza Ferreira, sua inseparável escrava. Por fim, devido provavelmente à crise fi-
nanceira por que passava Minas Gerais, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde
faleceria em 1805. Na capital do Vice-Reinado, foi organista da Ordem do Carmo,
e é possível que tenha conhecido pessoalmente o grande compositor do século XIX,
o Padre José Maurício.
7
MÚSICA CONCERTANTE: composição, ou parte de composição, na qual os motivos
principais são entregues a dois ou mais instrumentistas e/ou vocalistas, os quais, a-
companhados pela orquestra, dialogam entre si. – DA CAPO (“desde o início”): ex-
87
ΑΩ
II
A MÚSICA DO SÉCULO XIX
pressão italiana usada para indicar, nas partituras, que o trecho executado deve ser
repetido desde o começo.
88
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8
O recurso a castrati, iniciado no mal chamado Renascimento, é um dos episódios
mais negros da história da música.
89
ΑΩ
9
José Maurício nasceu em 22 de setembro de 1767, na Rua da Vala (atual
Uruguaiana), no Rio de Janeiro. Filho de pai alfaiate e mãe mulata liberta, o futuro
compositor teve uma juventude economicamente bastante difícil, sobretudo pela
morte do pai quando ele tinha apenas 6 anos. Educado pela mãe e por uma tia, teve
a ajuda de um amigo da família, negociante, para prosseguir nos estudos. De
inteligência vivaz e vontade férrea, além de incansável capacidade de trabalho, o
Padre José Maurício é um dos muitos exemplos de superação, no Brasil escra-
vocrata, das barreiras sociais, o que faz cair algumas legendas negras liberais sobre
aquele período. O sacerdote mulato não foi apenas mais um músico; foi um homem
muito culto, orador de alto quilate, admirável intérprete e grande compositor.
10
O Padre José Maurício exerceu importante atividade de professor, tendo em casa,
como os antigos grandes maestros coloniais, um “conservatório”, que tinha por ob-
jetivo preparar cantores e músicos para as cerimônias e ofícios religiosos da Sé da
capital. O ensino era gratuito, os alunos distinguiam-se por usar um laço vermelho
e azul no chapéu, e sua participação nas atividades e conjuntos musicais os isentava
de prestar o serviço militar. Com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, D. João
VI passou a dar ao compositor uma pensão para ajudar a manter a escola. D. Pedro
I, no entanto, não teria condições de continuar a dá-la, e o curso seria fechado em
1822, após 28 anos de funcionamento. Um ano antes, José Maurício escrevera um
compêndio de música e método de pianoforte, mas a verdade é que o mestre não
possuía nenhum cravo ou piano, tendo de valer-se da viola de arame (dotada de
cinco ou seis pares de cordas de aço ou de arame, e também chamada viola brague-
sa) como instrumento de ensino básico.
90
ΑΩ
11
Em parte isso se terá dado pelo próprio prestígio de Marcos Portugal, que, nascido
em 1760 e menino prodígio na sua cidade natal, foi para Nápoles e ali fez amizade
com Cimarosa. Suas óperas dominaram o ambiente musical de seu país, além de ter
feito certo sucesso em outros países europeus. E, se na verdade sua música, de quali-
dade hoje reconhecidamente inferior, não sobreviveu a ele, ao contrário da de José
Maurício, o fato é que então o arrogante e invejoso compositor português conseguiu
completo, tirânico e exclusivo domínio do cenário musical carioca. Mas também
pode ter contribuído para tal vitória de Marcos Portugal e para o ostracismo de José
91
ΑΩ
Maurício a vida amorosa deste, em pública e escandalosa contradição com seu esta-
do sacerdotal. Teve ele seis filhos com uma mulher chamada Severiana, que depois
se casaria com um português rico. Ao que parece, o compositor lusitano usou de tal
fato como argumento para mais facilmente alijar da Corte o padre, e, embora o re-
gente nunca lhe tenha tirado o cargo, o certo é que de fato o padre-mestre se viu ca-
da vez mais segregado dela.
12
Sua morte passou quase despercebida na sede do primeiro Império, e apenas
o Diário Fluminense publicou um necrológio seu, escrito pelo cônego Januário da
Cunha Barbosa, amigo e companheiro de irmandade. Quanto a Marcos Portugal,
morreu três meses antes do rival, tendo sido enterrado no Convento de Santo
Antônio, no Rio de Janeiro.
92
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94
ΑΩ
Francisco Manuel
13
Não nos esqueçamos jamais, porém, de que a mesma música religiosa de Haydn
e Mozart quase nunca tem verdadeiro caráter litúrgico, e, mais que isso, de que al-
gumas das peças “sacras” destes dois grandes compositores beiram o leviano. Não
por nada, aliás, o próprio Mendelssohn, luterano, achou a música “sacra” de Haydn
“escandalosamente alegre”, e o Arcebispo Hohenwart, de Viena, decidiu proibir a
execução das missas do compositor. Melhor era, sem dúvida, a música religiosa de
seu irmão, Michael Haydn (como a Missa para o Domingo de Ramos e o Réquiem
Solene), e algumas peças de Mozart neste âmbito, como a inacabada Missa em Dó
Menor, o também inacabado Requiem, e sobretudo a belíssima Ave verum corpus.
Tampouco, porém – repita-se – , o melhor da música religiosa de Mozart é litúrgico,
e inclui-se no que se pode denominar “música religiosa para fora das igrejas”. Tra-
tamos detidamente este assunto no referido curso on-line.
95
ΑΩ
14
Também é de autoria de Francisco Manuel o Hino Nacional brasileiro. Mas
precisem-se duas coisas: primeira, que este compositor, convicto liberal e futuro
protegido de D. Pedro II, só quis com o Hino celebrar a abdicação de D. Pedro I; e,
segunda, que a letra com que ele é hoje cantado só foi escrita em 1909, por Osório
Duque Estrada, e oficializada em 1922.
15
No entanto, falecido em dezembro de 1865, aos 70 anos, Francisco Manuel não
chegaria a ver concretizado o seu sonho de construir um prédio especial para o
Conservatório, inaugurado somente em 1872: é o mesmo prédio da atual Escola de
Música, subordinada hoje à Universidade Federal do Rio de Janeiro.
96
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Carlos Gomes
100
A SINFONIA:
ORIGENS E INVENÇÃO
1
Mas ouverture também passou a denominar o movimento introdutório de qual-
quer suíte, ou a mesma suíte, como é o caso das Aberturas em Estilo Francês ou
Suítes Francesas, BWV 831, de Johann Sebastian Bach.
102
ΑΩ
vocal ou operística, o qual, por sua vez, se firmava como forma antes
assemelhada à abertura italiana, mas com caracteres próprios: motivo
condutor, reexposição antecedida de algum desenvolvimento
temático, clima de expectativa, ou seja, de irresolução. Mas, por ou-
tro, firmou-se a sinfonia italiana em três movimentos como compo-
sição orquestral independente, de que são exemplos as primeiras sin-
fonias de JOSEPH HAYDN (1732-1809) e de WOLFGANG AMADEUS
MOZART (1756-1791).2
IX. Sucede, porém, que o mesmo Haydn fez que a sinfonia ita-
liana independente (a de concerto) e a abertura ou suíte ao modo
francês se reencontrassem, para mesclá-las: aos três movimentos da
sinfonia agregou um quarto, como terceiro movimento. Era o MINUE-
TO, até então movimento próprio de suíte. Valeu-se, ademais, da for-
ma sonata 3 de então (o que implicava, por exemplo, a possibilidade
de começar em andamento lento o primeiro dos quatro movimentos
da nova forma sinfônica).
Nascia a sinfonia moderna, a potencialmente mais bela e mais
profunda das formas musicais não religiosas.
APÊNDICE
O HAYDN SINFONISTA
2
Mozart também compôs divertimentos nos moldes da sinfonia italiana.
3
Forma musical constituída de exposição, de desenvolvimento e de recapitulação,
empregada a partir de Haydn no primeiro movimento não só de sonatas e de con-
certos, mas também de sinfonias. Também se diz sonata forma.
4
O outro é Mozart.
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5
Sustentação indeterminada ou suspensão indeterminada de nota; e o sinal que as
indica. Também chamada coroa ou caldeirão.
104
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6
Ou seja, com dinâmica suave.
7
Seção conclusiva, que pode ser ou não ser recapitulativa.
8
Mas este modo não se mantém ao longo da obra.
105
ΑΩ
9
Isto é, ao modo de fuga.
10
Estranhamente, o apelido deve-se a episódio sucedido durante a estreia em
Londres não desta sinfonia, mas da No. 102. Nada que importe musicalmente.
11
Popular dança de origem austríaca, não muito movimentada e em compasso 3/4
ou 3/8. É precursora da valsa. Todos os grandes compositores austríacos, incluído
Bruckner (em scherzi), recorreram a ela.
12
Desta fonte beberia alguma vez Mahler.
106
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13
A No. 4 de Beethoven inspira-se nesta sinfonia.
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14
Uma inovação na escrita sinfônica com respeito a estes instrumentos.
15
O propósito de Haydn era tão somente produzir um efeito espetacular. Mas o
público presente à estreia da sinfonia (em 31 de março de 1794) tomou-o como um
clamor de guerra contra a França, com cujo governo revolucionário a Grã-Bretanha
se achava então em conflito. (Aliás, isso mesmo é o que suscitaria, não muito tempo
depois, a Heroica de Beethoven.) Haydn chegou a sofrer da parte dos que eram
contrários à guerra a censura de suscitar entre o público tais sentimentos belicosos.
108
ΑΩ
* * *
16
Disse-se que Beethoven compôs (dois anos depois) a Sonata Patética sob influên-
cia deste movimento. É provável; mas, digamos, “exagerou”...
17
Dudelsack é uma sorte de gaita de fole alemã, também chamada
Schaeferpfeife (flauta de pastor) ou Sackpfeife.
18
Alguns querem ver nesta sinfonia o ancestral da magnífica Sinfonia Nº. 2 em Ré
maior de Brahms – não sem razão, parece-nos.
110
ΑΩ
19
Aliás, é a mesma gravidade impressa por Klemperer à bachiana Missa em Si me-
nor. É interpretação ímpar.
111
A MORTE CATÓLICA DO COMPOSITOR FRÉDÉRIC CHOPIN
*
Feita a partir de sua tradução ao espanhol que se encontra no site Adelante la fe.
ΑΩ
114
TRÊS ESCRITOS BREVES SOBRE
A ARTE DO CINEMA
I
NOSTALGIA, DE ANDREI TARKOVSKI*
*
Texto já muito antigo, escrito em 2002.
1
Filme que porém tem uma sequência antológica: o baile dos astros ao som de
Danúbio Azul, valsa de Johann Strauss.
ΑΩ
1
Tal só sucederá em seu último filme, Sacrifício, em que todavia ainda se vê nítido
fundo cristão.
116
ΑΩ
2
Um estabelecimento de águas medicinais que fora frequentado por Santa Catarina
de Sena.
3
Entre as quais há uma, passada no quarto do hotel onde se hospeda o poeta, na
qual a loura lhe exibe fugazmente um seio (coisa desnecessária), sem que ele ceda à
sua insistência amorosa. [Quanto ao nu no cinema, ainda quando fugaz e envolto
em penumbra e em halo artístico como aqui, é sempre nefasto e, repita-se, desne-
cessário. Tratamo-lo detidamente no livro Da Arte do Belo.]
4
O término deste close é o ápice sublime da cena, e lembra a gravura Mãos em
Oração, de Albrecht Dürer.
117
ΑΩ
te: quando finalmente chega a seu termo, o poeta russo solta um grito
abafado, e cai morto de infarto.
E eis-nos diante da última cena, em que a câmera fixa o poeta (sua
alma, ou ele inteiro e ressurrecto — como sabê-lo?) semideitado
diante de um muro de antiga catedral italiana, tendo por companhia
seu cão pastor. Permanece tudo estático por algum tempo, quando,
de súbito, começa a nevar: amalgamam-se, assim, na vida perdurável,
as pedras cristãs da Itália e a neve da amada Rússia. Regenerou-se,
misteriosamente, toda a criação. E acabou-se o exílio. Está-se já, e
para todo o sempre, na Pátria.
II
UM BELO FILME RUSSO DA ERA DE NIKITA KHRUSHCHOV:
A BALADA DO SOLDADO
5
Mas o oratório de Alexandre Nevsky e o de Ivã, o Terrível, ambos compostos por
Serguei Prokofiev, são estupendos – e permanecem.
119
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III
CÉU E INFERNO, DE AKIRA KUROSAWA:
FILME DE FUNDO CRISTÃO E DOS MAIORES JÁ FEITOS
120
ΑΩ
121
TOMISMO E ORDEM DAS DISCIPLINAS
A ORDEM DAS DISCIPLINAS
1
Este assunto é aprofundado em alguns livros nossos, como a Suma Gramatical da
Língua Portuguesa (É Realizações), Da Arte do Belo (Edições Santo Tomás) e três
opúsculos de Do Papa Herético (Edições Santo Tomás): “Das Artes Liberais: A
Necessária Revisão”, “Gramática, Arte Subordinada à Lógica”, “Das Complexas
Relações entre Fé e Razão e entre Filosofia e Teologia Sagrada”. – Ademais, nossa
Escola Tomista, curso on-line, segue pouco mais ou menos esta mesma ordem ao
longo de seus cinco anos de duração (ou seja, ao longo de suas cerca de 250 aulas).
2
Estritamente falando, a Teologia Sagrada só subalterna as ciências práticas, quer
as do agere, quer as do facere (como se mostra no livro Da Arte do Belo). – Mas este
ponto, em que nosso parecer se choca com o parecer de muitos tomistas, requer a-
126
ΑΩ
profundamento, o que faremos, se Deus quiser, num livro futuro (Lições Meta-
físicas).
3
O que também se explicará no referido e futuro Lições Metafísicas.
127
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128
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4
Cf. nosso já citado “Das Complexas Relações entre Fé e Razão e entre Filosofia e
Teologia Sagrada”. – E relembre-se: se a Teologia Sagrada não pode subalternar
nenhuma das demais ciências especulativas, fá-lo, sim, às ciências práticas do agere
e à Ciência da Arte do Belo, como dito em nota supra.
129
O QUE É SER TOMISTA
APÊNDICE I
APÊNDICE II
APÊNDICE III
141
ΑΩ
APÊNDICE
I, Inocêncio III, Bonifácio VIII e Pio XI. Daí, ademais, que em minha
humilíssima escala hei de defender sempre esta obra sem par – e não
só a ela, mas a seu autor: um grande filósofo, um grande teólogo, e
sacerdote humilde, piedoso e caridoso como poucos. Para mim, co-
mo escrevi alhures, o maior dos tomistas que me foi dado conhecer. 1
1
Para uma resposta mais cabal de nossa parte ao artigo de Juan Fernando Segovia,
vejam-se neste volume os dois opúsculos “Da Realeza de Cristo” e “Corte e Costura
Humanista”.
143
CRÍTICA FILOSÓFICA
OS PRIMEIROS FILÓSOFOS JÔNIOS *
PRIMEIRA PARTE
*
Transcrição – feita por Guilherme Ferreira Araújo, a quem a agradeço – revista da
primeira aula (de 6 de novembro de 2009) do curso on-line “História da Filosofia:
do impulso grego ao abismo moderno”, inconcluso por razões de saúde. – Mantém-
se aqui o estilo oral.
ΑΩ
mes. Os outros Vedas são compilações de rituais que não têm muito
interesse para nós. No entanto, vejamos como a concepção de um
Deus único é entendida pelos seus principais comentadores, aqueles
que fazem comentários hermenêuticos e esotéricos (os Upanishads):
os brâmanes ou casta sacerdotal. Como interpretam em sua herme-
nêutica os brâmanes esse conceito de divindade? Vamos por partes.
Segundo eles de fato há um Deus único, eterno, infinito; este deus é
Brâman. Mas pode-se ver este Deus por outro lado, também como
uma sorte de alma do mundo ou Atma. É desta alma do mundo que
provêm as almas dos homens, como espécies de centelhas do fogo
divino. Esta expressão – centelhas do fogo divino – já nos remete, por
exemplo, ao Mestre Eckhart na Idade Média alemã e sua doutrina
condenada pela Igreja. As almas são centelhas desta como alma do
mundo – Atma –, que, por sua vez, é como a outra face deste Deus
único e eterno chamado Brâman. Pois bem, não é só que Brâman seja
o Deus único, infinito e eterno; ele é mais que isso. Ele é, falando
propriamente, a única realidade, não havendo outra senão ele mesmo
(Brâman ou Atma) e suas centelhas, que são as almas humanas. Tudo
o mais, o mundo dos fenômenos, é uma como pura ilusão. É o que
eles mesmos chamam maia, uma sorte de ilusão dos sentidos; estes
nos enganam, fazendo-nos ver, sentir e perceber um mundo em fluxo
permanente e contínuo, um mundo variado, diverso, com fenô-
menos que não passam de mera ilusão (maia); tal ilusão nos é im-
pingida pelos nossos “traiçoeiros” sentidos. Pois bem, se Brâman é
não só o Deus único, infinito e eterno, mas, mais que isso e falando
propriamente, é a única realidade (da qual se desprendem as almas
humanas, que por sua vez se dividem em três castas: casta sacerdotal
ou bramânica, que sai da cabeça de Brâman; casta militar, que sai do
peito de Brâman; e, por último, a casta servil, que sai dos pés de
Brâman), tudo quanto não é Brâman será o mal, a dor universal
causada pela ilusão dos sentidos, do ser e do mundo dos fenômenos.
Ora, esta concepção implica, pois, uma doutrina de finalidade para a
vida humana, qual seja: se só Brâman é a realidade, se tudo quanto
não é Brâman é ilusão, dor e sofrimento, resta aos homens, pela ciên-
148
ΑΩ
151
ΑΩ
1
Veja-se que ética e moral sempre foram sinônimos, ao contrário do que quererá
Kant.
152
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153
ΑΩ
alhures, aquela visão vai começar de algum modo já com Duns Scott,
logo depois da morte de Santo Tomás de Aquino, mas não podemos
aprofundar-nos nisto agora. Fiquemos por ora com a constatação de
que a doutrina segundo a qual a filosofia surge na Grécia em
decorrência da liberdade é uma falácia.
Ainda há outro dado que pode constituir outra precondição
favorável ao surgimento da filosofia da Grécia. A par da religião
pública, da religião dos deuses de que falamos, por volta do século VI
a.C. (vê-se isto pelos poemas de Píndaro) surge outra forma de
religião: o orfismo. Ela se baseia no mítico Orfeu. Ora, há grandes
diferenças entre o orfismo e a religião grega pública: 1 – quanto à no-
ção de alma humana. Até então, para a religião pública grega, para os
poemas homéricos, para os livros de Hesíodo, a alma é algo meio
indefinido, se é que se pensava em alma propriamente. Segundo os
poemas homéricos, um destino após a morte em verdade só se daria
em dois casos: os grandes heróis como que se tornavam deuses,
tornavam-se semideuses, e os muito maus iam sofrer por toda a
eternidade no tártaro; as demais almas viviam como que em estado
larvar pelo Hades, que era o reino dos mortos. Nada muito claro,
portanto. Por outro lado, a religião grega dos lares nem sequer acre-
ditava numa alma. Era como se aqueles corpos enterrados no espaço,
no termo dos deuses-lares, sobrevivessem enquanto corpos; não há-
via a noção clara desse duplo coprincípio que são o corpo e a alma. O
orfismo (que, repito, aparentemente surge por volta do século VI
a.C.) já tem um enfoque diferente da alma. Remontemos à origem
mítica da alma e do ser humano segundo os mitos órficos: de acordo
com esses mitos, Dioniso, filho de Zeus, é devorado e triturado pelos
Titãs (estamos em pleno campo mitológico!). Ora, Zeus, o pai de
Dioniso, indignado com isso, queima e incinera, transforma em cin-
zas os Titãs. Das cinzas dessa incineração surgem os homens. Mas
entenda-se bem: o corpo é que é resultado do lado titânico; a alma,
por sua vez, é dionisíaca. Formulo-o de outro modo: esses dois prin-
cípios, agora claramente distintos, são resultantes um do lado de Dio-
niso e o outro do lado titânico. Ora, por uma misteriosa culpa origi-
157
ΑΩ
nal este lado dionisíaco do homem, que é a alma, cai num corpo que
é de origem titânica para apagar tal culpa original. Então, a alma
torna-se o ser humano, e o corpo a sua prisão, o seu grilhão, o seu
túmulo. Vejam, não estamos no terreno de dois coprincípios essen-
ciais; antes se diria que o homem é resultado de dois princípios anta-
gônicos, um dionisíaco e outro titânico, um que é a alma e o outro
que é o corpo, que por sua vez é a prisão, o grilhão, o túmulo da alma.
E de onde vem a alma? Ela é como uma centelha da divindade. Isso
se parece, aqui, com o bramanismo: a alma do homem como centelha
da divindade. Diferentemente do bramanismo, todavia, o corpo é real
e não uma ilusão, mas é uma prisão; e caberá aos fiéis dos mistérios
órficos, pela gnose, pelo conhecimento da realidade superior, exata-
mente deixar de transmigrar em metempsicose de um corpo a outro
para expurgar, expiar essa culpa original e, enfim, voltar a unir-se à
divindade. Ou seja: afora o fato de que o corpo para os órficos é real
e para o bramanismo não o é, tudo o mais se parece.
Concordo plenamente com Fustel de Coulanges quando diz que
a origem política da constituição da religião familiar entre os
etruscos, romanos, gregos e indianos é semelhante porque é se-
melhante o berço deles. Trata-se da cultura (hipotética mas muito
provável) chamada indo-ariana. Ora, nada de espantar que também
no terreno religioso haja fundos comuns. Como veremos, dependen-
do da corrente filosófica dos primeiros filósofos, haverá reflexos quer
da religião pública, quer dos mistérios órficos. Por exemplo, Herá-
clito, Empédocles e Platão têm clara influência órfica. Dois dos pri-
meiros jônios, por seu lado, Tales de Mileto e Anaxímenes, têm in-
fluência da religião pública grega, com sua multidão de deuses na-
turalistas e antropomórficos; mas o outro deles, Anaximandro, como
veremos, é influído pelo orfismo. Há também Pitágoras e os pita-
góricos, sem dúvida alguma influídos pelo orfismo. Mas deixemos de
lado um pouco o orfismo, e constatemos o salto que há da religião
pública grega à filosofia de Tales de Mileto: na filosofia, já com Tales
de Mileto, o princípio, a origem, a fonte primeira de todas as coisas
não é só imortal, mas também eterna; sempre houve, há e haverá, foi
158
ΑΩ
SEGUNDA PARTE
não é capaz de dar; por fim, que este estudo, como veremos com
Aristóteles, seja desinteressado, de certa forma um fim em si mesmo.
Vimos ainda há pouco que os mitos gregos, que as teogonias e
cosmogonias gregas tinham dois desses prerrequisitos: uma re-
presentação do todo e uma gratuidade no estudo, mas não tinham o
metódico, que é o próprio das ciências filosóficas. Disse Aristóteles,
com efeito, duas coisas: (1) de certa forma o amante do mito é em
parte um filósofo. Por quê? Porque tem essas duas características,
uma representação do todo e uma gratuidade no conhecer para
livrar-se de uma ignorância, de uma dúvida, ante um maravilha-
mento com o ser. Mas, diz ainda Aristóteles: (2) a filosofia (e sobre-
tudo a metafísica) é a menos útil de todas as ciências e, no entanto, é
a superior. Isso já se dá com este que é o primeiro dos filósofos, Tales
de Mileto.
Não se tem precisão quanto às datas de sua vida (nascimento e
morte). Calcula-se que tenha vivido entre o século VII e o século VI
a.C. Mas vejamos de onde partiu, de que constatação da realidade
partiu Tales para chegar ao seu princípio primeiro de todas as coisas.
Repito o que disse Santo Tomás de Aquino: os primeiros filósofos,
como que constrangidos pela verdade, foram obrigados a afirmar
um princípio não só primeiro, infinito e eterno, mas também único.
É o que se dá já com Tales de Mileto. Além disso, já o dissemos, Tales
foi um dos sete sábios e, portanto, foi um criador de máximas, de
axiomas morais para a vida ética do homem, para a vida ética dos
cidadãos das cidades gregas. Importa-nos agora, porém, em que
sentido foi Tales de Mileto um filósofo. Já dissemos que foi um
moralista e, no entanto, não tratará enquanto filósofo desta parte. Ele,
como filósofo, se cingirá a uma cosmologia. E parte ele da observação.
Isso é essencial no ponto de partida do modo humano e própria-
mente científico de conhecer. É, então, da observação das coisas que
vemos que partiu Tales, e constatava ele que tudo se gera do úmido;
os alimentos que nos nutrem a nós e aos animais e às plantas são
úmidos; o próprio princípio gerador, quer dos vegetais, quer dos
animais, é úmido, ou seja, o sêmen dos animais e as sementes dos
160
ΑΩ
vegetais. O próprio quente, via ele, se gera do úmido. Ora, o que por
sua vez é princípio do úmido é a água.
Insistamos na argumentação: tudo quanto vemos de essencial, de
causa de manutenção no ser e de reprodução do ente é úmido. Úmido
é o alimento, úmida é a seiva das plantas, úmidos são os nutrientes
de que se valem os vegetais, úmidos são os alimentos de que se nu-
trem os animais, úmido é o sêmen dos animais, que lhes serve para
sua reprodução, úmidas são as sementes dos vegetais; o próprio
quente é úmido. Ora, o que é princípio de onde deriva o úmido é a
água, donde, se tudo deriva do úmido e se o úmido deriva da água,
isso quer dizer que ela, a água, é o princípio supremo e primeiro de
todas as coisas. Mas ela é mais que um princípio: é um princípio
eterno. Não teve começo e não tem fim. Veja-se a diferença: os mitos
gregos diziam que um dia – sabe-se lá como – adveio o Caos e depois
adveio a Terra. Não dizem os mitos que o Caos é eterno e que dele se
gerou, como de um princípio, a terra. Não! Eram sucessões temporais
sem um princípio eterno que fosse a fonte perene, perpétua, do ser
das coisas.
Mais que eterno, todavia, o princípio água, para Tales de Mileto,
é não só aquilo de que se origina tudo, mas também aquilo em que
tudo um dia se dissolve, ou seja, é princípio e fim, é alfa e ômega. Mais
ainda: não só é princípio e fim, alfa e ômega, mas é também aquilo de
que as coisas são e em que as coisas são. Tudo não só provém da água,
tudo não só se dissolverá na água, mas tudo é feito antes de tudo de
água. Estamos diante de um aporte perfeitamente filosófico, o que
não quer dizer correto. É correto por um ângulo, como diz Santo
Tomás, porque constrangido pela verdade Tales de Mileto afirma não
só um princípio, mas um princípio infinito e eterno (ou seja, que
nunca teve início e nunca terá fim) e único, mas veremos em que
becos sem saída intelectuais vai desembocar esta primeira doutrina
filosófica.
Como, em termos conceptuais, chamava Tales de Mileto a este
princípio eterno e único de onde se originam as coisas, ao qual vol-
161
ΑΩ
2
Água, terra, fogo e ar.
3
Tales de Mileto não deixou nada escrito. Sabemos de sua doutrina sobretudo por
Aristóteles, mas também por Platão, por Diógenes Laércio e por outros.
162
ΑΩ
mudanças em si mesmo (já que é deste princípio água que são feitas
todas as coisas) é óbvio que muda. Demos por ora (sem, é claro,
conceder) que ele não muda enquanto conjunto, ou seja, é um
conjunto inteiro dentro do qual há mudanças, há movimentos. Por
ora perguntemo-nos: como é possível que algo que tenha paixões,
que contenha movimentos, que contenha mudanças, que contenha
tudo quanto vimos, seja a fonte de tudo? Ter afecções, ter acidentes,
conter mudanças, encerrar mutações implica imperfeição. Logo, algo
falha neste princípio: ele não é perfeito. Ora, não pode ser princípio
de tudo e fim de tudo aquilo que não é perfeito. O princípio água
é uno numericamente, mas não é perfeitamente o uno; ele é uno com
acidentes, é uno com afecções. Poderia entender-se como aquilo a
que Aristóteles chama matéria prima? Sim, mas, se o princípio água é
a matéria prima de todas as coisas, isso quer dizer que as coisas feitas
dessa matéria prima têm forma; ora, as coisas resultantes deste
princípio têm forma, enquanto este mesmo princípio é informe. Lo-
go, o princípio é mais imperfeito que aquilo que dele resulta – outra
aporia. Se é só forma, as coisas que derivam dele teriam sua matéria
de onde (terceira aporia)? E se fosse uma substância, uma ousía, no
sentido que lhe dá Aristóteles? Incorrer-se-ia em absurdo, porque as
coisas que são e que são feitas do princípio água seriam substâncias
de substância. Ora, uma substância neste sentido não pode nunca ser
substância de outra substância. É, mutatis mutandis, equívoco aná-
logo àquele em que incorrerá Platão com suas ideias à parte no Hipe-
rurânio. Não é possível, insista-se, uma ousía de ousía no sentido a-
ristotélico; toda ousía é sempre separada. Essas são as principais apo-
rias em que incorre a doutrina filosófica primeira, a de Tales de Mile-
to: um princípio que é imperfeito não pode ser princípio geral, total;
um princípio absoluto – uma fonte absoluta, uma fonte de que de-
corre tudo – não pode ser imperfeito. Ora, tudo quanto tem mudan-
ça, tudo quanto muda, tudo quanto contém afecções, ainda que não
pereça nunca, não pode ser um princípio absolutamente perfei-
to, simpliciter perfeito.
164
ΑΩ
4
Tratava-se de início, como já se disse, de sinônimo bastante perfeito de phýsis. Mas
depois os dois termos tomarão leitos distintos.
165
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167
ΑΩ
menes não podia concordar com seu mestre. Mais que isso, viu que
na teoria de Anaximandro havia aquele salto abrupto para o
destacamento, para o desprendimento dos pares de opostos do
ápeiron sem maiores explicações. Mas o que via por seu lado Anaxí-
menes na realidade que se desenrolava diante dos seus olhos? Via que
o homem, sua alma, é o ar, porque, com efeito, ele enquanto está vivo
inspira e expira o ar. Vejam: a alma humana é ar. Por outro lado, pelo
seu duplo movimento (quais sejam: de rarefação e de condensação)
o ar se torna fogo (por rarefação) e vento, nuvem, água, terra e pedra
(por condensação). Por este duplo movimento de rarefação e de
condensação o ar é próprio para ser um primeiro princípio de tudo.
Mas mais que isso: visivelmente, o ar não tem limites espaciais; o ar
parece ser propriamente infinito; não se lhe vê finitude; não se lhe
veem limites; não se lhe veem limites externos. Pois bem, o ar é para
Anaxímenes o primeiro princípio. Volta-se, assim, um pouco ao leito
original de Tales de Mileto. Abandona-se o princípio da indetermi-
nação que é o ápeiron puro para um ar que é sem princípio nem fim,
alfa e ômega, e de que são e em que são as coisas. Em vez do prin-
cípio água de Tales de Mileto, temos agora o ar de Anaxímenes. Na
história da filosofia grega, é verdade, terá Anaxímenes importância
maior, sobretudo a partir de Empédocles, que seus dois antecessores,
Tales de Mileto e Anaximandro. Mas vejam: tudo quanto atribuímos
como aporias a ambos os antecessores, mas sobretudo a Tales de Mi-
leto, repita-se de algum modo com relação a Anaxímenes; temos be-
cos sem saída intelectuais semelhantes.
Recapitulemos os avanços e as aporias deste primeiro momento
da filosofia grega, que são os primeiros filósofos jônios. Primeiro
mérito: exatamente o salto do mito para o filosófico. Estão nestes três
filósofos a três precondições da ciência: (1) uma representação do
todo, do ser como todo, do ser como conjunto; (2) tal representação,
tal entendimento se faz de modo metódico, com comprovações, com
determinações, com justificações, com conceptualizações perfeita-
mente articuladas, metódicas e sistemáticas; (3) esse conhecimento é
sem interesse, é um fim em si mesmo, é buscado por alguém para li-
169
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170
HERÁCLITO DE ÉFESO: NADA É SENÃO ENQUANTO NÃO É *
*
Transcrição – feita por Guilherme Ferreira Araújo, a quem a agradeço – revista da
primeira aula (de 20 de novembro de 2009) do curso on-line “História da Filosofia:
do impulso grego ao abismo moderno”, inconcluso por razões de saúde. – Mantém-
se aqui o estilo oral.
1
Heráclito de Éfeso, na Jônia, viveu entre o século VI e o V a.C. Era chamado “o
Obscuro” por sua forma oracular de expressar suas ideias.
ΑΩ
tramos uma vez no rio, pisamos em seu leito, recebemos suas águas,
saímos, e quando voltamos já este rio não é o mesmo rio que era
quando entramos pela primeira vez nele. Mais que isso, nós mesmos
somos e não somos, entramos e não entramos no mesmo rio duas ve-
zes. Por quê? Ao entrarmos no rio que já não é o mesmo rio, tampou-
co somos nós mesmos os mesmos que entramos pela primeira vez
nela. O corolário é claro: se o mesmo rio é e não é, se não descemos
duas vezes ao mesmo rio, se nós mesmos, que descemos ao segundo
rio tampouco já somos quem éramos e para continuar a ser teremos
de já não ser o que somos agora, é óbvio que o ente só é ente no devir,
na mudança, na não estabilidade, na não fixidez, na permanente
transformação. Pánta rheî, tudo flui. Já veremos a que levou isso na
história da filosofia por um discípulo de Heráclito. Mas repitamos: se
o princípio de tudo é tão mutável como as próprias coisas que dele
provêm, que nele são, de que são e em que se dissolvem; se não só o
princípio das coisas mas as coisas mesmas desse princípio são mu-
táveis, e se constatamos pela nossa observação que não descemos ao
mesmo rio duas vezes; e, mais, que nem nós mesmos descemos como
nós mesmos duas vezes ao mesmo rio, senão que, ao contrário, éra-
mos, somos e seremos coisas distintas sem o que não seremos, é fácil
concluir que ser é devir, ser é não permanecer, ser é cambiar, ser é
estar permanentemente em fluxo: pánta rheî, tudo flui. É essa a cons-
tatação primeira de Heráclito de Éfeso, assim como a constatação
primeira de Tales de Mileto foi o fato de tudo se gerar do úmido, que
por sua vez se gera da água; ou de Anaxímenes, que tudo, incluída a
alma, é feito de ar. A primeira constatação de Heráclito é esta: tudo é
permanente devir, e acostumemo-nos com este termo e com o seu
verbo (as coisas devêm, as coisas se tornam). É o que Platão – já com
efetivo avanço filosófico – vai chamar de mundo do vir a ser.
Mas de que modo as coisas devêm? De que modo as coisas não se
fixam? De que modo as coisas não permanecem? De que modo as
coisas são enquanto devêm, enquanto mudam, enquanto se trans-
formam? Lembremo-nos de que as coisas, para Anaximandro, se
geram pelo desprendimento do ápeiron de pares de contrários. Algo
172
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ΑΩ
Porque, assim como Tales dizia que era a água o princípio de onde
tudo procede, de e em que tudo é e onde tudo se dissolve; e assim
como Anaxímenes dizia que o era o ar, que era do ar que tudo pro-
cedia, de que tudo era, em que tudo era e se dissolvia; assim também
vai Heráclito afirmar que a unidade suprema em que tudo se resolve,
essa unidade que é Deus, esta unidade solucionadora de tudo e, ao
fim e ao cabo, anuladora de tudo, é também um elemento: o fogo.
Tales, água; Anaxímenes, ar; Heráclito, fogo. Não sai, pois, do âmbito
desta filosofia física, naturalista, da filosofia da phýsis. É ainda, pois,
um jônio da primeira época.
Mas por que, ao contrário de Tales e de Anaxímenes, dá Heráclito
ao fogo o ser o princípio de tudo? Porque de fato é o fogo uma espécie
de paradigma do perpétuo devir, da não fixidez, da não estabilidade,
da não permanência das coisas; é o paradigma de que pánta rheî. Está
sempre o fogo em movimento, em mudança; nunca é estável, é
perpétuo devir; mas é vida que vive, que se alimenta da morte do
combustível. É princípio de eterno e perpétuo movimento, de vida
que se faz cinza e fumaça. O fogo é o devir, o fogo é a transformação;
tudo se transforma enquanto é fogo. O todo da realidade, ou melhor,
este uno em que tudo, em que a multiplicidade se resolve, é fogo. Ora,
se o uno em que se resolve tudo, em que os contrários não só se har-
monizam e se sintetizam mas se anulam identificando-se absolu-
tamente, assim como o aclive é o mesmo que o declive e assim como
o ponto inicial é o mesmo que o ponto final de um círculo, é óbvio
que o fogo não é só todas as coisas: o fogo também é Deus mesmo ou
a unidade suprema dos contrários, onde o ente é o não ente ao mês-
mo tempo e pelo mesmo aspecto. O fogo, pois, é Deus; Deus é fogo;
Deus é o mundo, e o mundo é fogo.
E ao contrário – pelo menos até onde se sabe – dos primeiros
jônios, de Tales e de Anaxímenes, efetivamente Heráclito dota o seu
primeiro princípio (o fogo) de inteligência divina. A inteligência do
fogo, a inteligência de Deus tudo governa através das mesmas coisas
que ele próprio é. Deus é a unidade, e a unidade é fogo; o fogo são
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a ele. Tem inteligência, tem lógos este fogo que é Deus, este fogo que
é o divino, este fogo que é a divindade. Ora, também a alma, para
Heráclito, participa, é parte desse princípio ígneo que é Deus, que é
tudo, que é o mundo. Também a alma – e aí semelhantemente aos
primeiros jônios 2 –, para Heráclito, participa do princípio primeiro e
único, eterno e permanentemente mutável, em perpétuo devir, que é
a divindade fogo, de onde devêm, de onde procedem, em que são, de
que são e onde se dissolvem todas as coisas. Também a alma, por-
tanto, participa do princípio de tudo: de Deus e do mundo, sempre –
repito – em perpétua mutação. Deus: guerra e paz. Fogo: paradigma
do eterno câmbio entre contrários, que acabam por se dissolver e
anular na indiferenciação da divindade una e única do fogo. A alma
também é, pois, fogo.
É aqui que intervêm dados que não se casam perfeitamente com
o que vimos até agora. Intervêm com relação ao homem e sua alma
noções que não nascem propriamente do sistema filosófico de Herá-
clito, mas provêm de fora, de algo de que já falamos: a religião de mis-
térios que é o orfismo. Com, efeito, escreve Heráclito uma frase
aparentemente muito obscura: por mais que percorramos os cami-
nhos do lógos até seu limite, nunca os encontraremos, porque é i-
mensa a profundidade do lógos. Vejam que interessante: se a alma é
matéria como o fogo, se é parte deste princípio material elementar
“fogo”, logo será ela material, será ela corpórea; não será espiritual.
No entanto, pensemos em outras partes corpóreas do homem: a
orelha, a mão, o pé. Teria algum sentido dizer que o pé humano é
profundo, que a orelha humana é profunda, que a mão humana é
profunda? Ou que a mão, a orelha e o pé humanos têm lógos? É
impossível. Portanto, está-se falando, ainda que obscuramente, ainda
que confusamente, de algo – a alma – que não pode ser material como
o pé, como a mão, como a orelha, como o conjunto do corpo.
2
Lembremo-nos do ímã e sua alma que atrai o ferro em Tales; lembremos que a al-
ma era feita de ar em Anaxímenes.
179
ΑΩ
3
Que se explicará em outra oportunidade.
180
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de nada, já nada dizia, porque, com efeito, o dizer algo, o falar de algo
é a expressão de um pensamento, de um entendimento de algo; mas
como algo não é algo nunca, mas sempre é outro algo, também o
pensamento nunca será algo de algo, mas será sempre outro algo de
outro algo. Conclusão: chegou esse discípulo à radicalidade de não
mais falar, de não mais dizer nada e de tão somente mexer um dedo
para dizer “sim” ou “não”. Conclusão perfeita extraída das premissas
de seu mestre... ou quase perfeita... Sim, porque também podemos
dizer com respeito a este “sábio” discípulo: tampouco o dedo é o
mesmo ao fazer já o primeiro movimento de “sim” ou de “não”, e este
mesmo movimento de “sim” ou de “não” já não quer nem pode
expressar a mesma coisa nem sequer uma só vez. Não é só o rio o que
não é o mesmo nem sequer uma vez, não somos só nós os que não
são os mesmos nem sequer uma vez: tampouco o é o nosso pensa-
mento – cada um de nossos pensamentos – nem sequer uma vez, e
por conseguinte tampouco será o dedo o mesmo nem sequer no pri-
meiro movimento de “sim” ou de “não”, nem sequer no que ele pre-
tensamente busca expressar. Nosso caro discípulo não soube, em ver-
dade, levar às derradeiras e perfeitíssimas consequências o pensa-
mento de seu mestre. No entanto, é ele quem mais se aproximou dis-
so, dessa consequência necessária das premissas falsas de Heráclito
(ainda que fundadas em algo verdadeiro: de fato, no mundo sensível
tudo está sujeito a mudança). Resume-se, cifra-se nesta conclusão
quase “perfeita” o conjunto das aporias do sistema heraclíteo que
vimos vendo ao longo desta aula.
Com isso ultrapassamos mais uma etapa de nossa trajetória na
história da filosofia. Estamos ainda no impulso grego. Devemos ado-
tar, com relação a este impulso, uma atitude equilibrada: nem deixar
de criticá-lo em razão de certos respeitos historicistas – porque, com
efeito, as doutrinas desses primeiros filósofos representam infrações
de princípios e conclusões da própria razão –, nem tratá-los como se
fossem filósofos de depois de Santo Tomás de Aquino. A diferença
entre um Heráclito e um Hegel reside, sobretudo, nisto: o primeiro
como que ansiava a solução das aporias e precariedades de sua
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O PITAGORISMO: O NÚMERO COMO PRINCÍPIO DE TUDO;
E XENÓFANES E O DEUS-COSMOS *
*
Transcrição – feita por Guilherme Ferreira Araújo, a quem a agradeço – revista da
primeira aula (de 28 de novembro de 2009) do curso on-line “História da Filosofia:
do impulso grego ao abismo moderno”, inconcluso por razões de saúde. – Mantém-
se aqui o estilo oral.
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tudo é feito dele e tudo nele termina, tudo marcha para ele como para
seu fim. Ora, esta confusão entre Deus e tudo, esta confusão entre
Deus e o mundo, como vimos, não será negada por Heráclito de Éfe-
so. Muito pelo contrário: sua filosofia será como um coroamento des-
te início do filosofar humano. E de que modo coroa a filosofia dos
três primeiros jônios ele, que também era jônio, que também era um
filósofo da natureza? Coroa-a dizendo que nada no mundo, no uni-
verso tem estabilidade, que tudo flui, tudo muda, pánta rheî. Ao mes-
mo tempo, tudo parte, se compõe e resulta – como em seu fim – de
um princípio único. Já não é a água, já não é o ápeiron, já não é o ar:
é agora o fogo. O fogo é o princípio e o fim de tudo; é o alfa e o ômega;
é Deus e, ao fim e ao cabo, é a alma humana. Mas retenhamos sobre-
tudo esta afirmação central da filosofia de Heráclito de Éfeso: pánta
rheî, tudo flui. Não entramos duas vezes no mesmo rio, não somos os
mesmos ao entrar a segunda vez no mesmo rio, a ponto de um dis-
cípulo de Heráclito – Crátilo – reduzir toda a sua atividade a um mero
balançar de dedo, porque – dizia – nem nosso pensamento é o mesmo
duas vezes e, portanto, nada do que se compreende com o pensamen-
to é o mesmo duas vezes. Esta é, aliás, a melhor refutação da própria
filosofia de Heráclito; é a própria redução ao absurdo dela por suas
consequências extremas.
Funda-se, com Heráclito de Éfeso, um dos polos que Aristóteles
superará; Aristóteles superará, por um lado, essa não estabilidade,
esse fluir e mudar perpétuo de Heráclito, e superará seu polo oposto,
que é o “nada muda” de Parmênides de Eleia. Já o veremos; será o
tema central da próxima aula. Heráclito diz: nada tem estabilidade.
Mais que isso: as coisas, os opostos de que a realidade se compõe em
sua luta perpétua, ao fim e ao cabo se igualam EM uma só coisa. Mas,
dirá Parmênides, tudo isso não passa de ilusão dos nossos sentidos,
mais ou menos como os brâmanes consideravam o mundo sensível:
como ilusão, como maia. A mudança – isso que nós vemos com os
olhos –, essas mudanças, essas gerações e corrupções, para Parmê-
nides, são meras ilusões dos sentidos e, por conseguinte, da dóxa, da
opinião, porque para ele o ente é único e imutável.
190
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faz; várias vezes reconhece esta dívida intelectual para com Platão,
como também o faz, por exemplo, num dos seus principais
opúsculos, o sobre as Substâncias Separadas, ou na Suma contra os
Gentios (onde se mostra como salvar a doutrina platônica das ideias
tirando-as do Hiperurano e remetendo-as à mente de Deus). Sim-
plesmente, não só a luta da fé não se reduz à luta contra a gnose (já
que a mesma gnose resulta da mãe dos vícios e pecados, a soberba),
mas não ver em Platão senão raízes do gnosticismo e, portanto, raízes
do que seria inimigo único, radical, perpétuo da fé é esquecer algo
muito importante para o desenvolvimento da própria filosofia e
teologia católicas: o que há de são em sua filosofia. Na de Santo A-
gostinho nem é preciso dizer, mas também na de Platão. Negamo-
nos aqui, portanto, quando falamos de gnose, quer em Pitágoras,
quer em Platão, a hipertrofiá-la, a aumentar seu verdadeiro alcance,
seu verdadeiro limite. Portanto, reconhecendo embora que Pitágoras
e os pitagóricos fundam uma gnose, resta-nos ver na fundação desta
gnose aquilo com que de fato puderam contribuir os pitagóricos para
o desenvolvimento da filosofia, especialmente na já anunciada tran-
sição entre Heráclito de Éfeso e Parmênides.
Já veremos, ao final desta exposição do pitagorismo, as aporias da
relação entre a sua gnose, a sua herança órfica, e o que ela tem de
saudável para a história da filosofia. Mas permaneçamos por ora com
a constatação de Aristóteles na Metafísica: assim como Tales de Mile-
to encontrou na água o primeiro princípio de tudo, a “substância” de
tudo, aquilo de onde vem e para onde vai dissolver-se tudo, aquilo de
que tudo é feito; assim como Anaximandro o encontrou no ápeiron;
assim como Anaxímenes no ar; e assim como Heráclito no fogo; en-
contrá-lo-ão os pitagóricos no número. (Mas como o sabemos, se os
pitagóricos, constituindo-se em seita, nem sequer escreviam livros
individuais? Era absolutamente proibida, sob pena de castigos seve-
ros, a divulgação da doutrina da seita religiosa secreta. Se sabemos
algo dos pitagóricos, é porque Platão conseguiu comprar três livros –
ou um livro dividido em três – de um grande pitagórico chamado
Filolau, que padecia de falta de dinheiro. Ele transgrediu a proibição
196
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1
Não discutamos aqui a possibilidade técnica efetiva de que, por seu peso, martelos
possam produzir relações harmônicas.
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2
O filme chamado 2001 — Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, traz
belíssimas sequências dessa dança dos astros. Todo o restante do filme, no entanto,
é malíssimo: uma mescla insossa mas pernóstica de darwinismo, nietzschianismo,
futurismo, etc.
202
ΑΩ
***
haveria de ter caracteres dos homens, que afinal fazem parte do todo
que é o cosmos?
A doutrina de Xenófanes contém ainda uma parte moral que é
inegavelmente interessante. Pergunta-se Xenófanes em seus versos,
contra aquela tradição tão grega de privilegiar e louvar as virtudes
físicas esportivas: Como um grande corredor, como um grande e
cruel pugilista, como um grande e perfeito cavaleiro superará o ho-
mem de sabedoria? Como a virtude física superará a virtude moral?
Como a virtude física pode superar a virtude intelectual? No entanto,
sobre tal suposta superioridade estava fundado, em grande parte, o
mundo grego. Ver-se-á um reflexo disso até no mesmo Platão, na
importância dada em sua República ideal ao esportivo. E, como é pa-
tente, vê-se o renascimento disso no mundo moderno. O destaque
dado aos esportes no mundo moderno não é senão uma revivescência
dessa tendência do mundo grego pagão contra a opinião de um
simples Xenófanes, de um simples andarilho, de um simples poeta
errabundo. Como é possível que as virtudes físico-esportivas sobre-
levem, sobrepujem, tenham mais importância na mente do povo, na
mente grega, do que a virtude moral, do que a virtude do intelecto,
do que a sabedoria? Isso não pode ser, diz Xenófanes. No entanto,
onde está o casamento, a harmonização entre esta brilhante e impor-
tante parte moral ou ética dos versos de Xenófanes e sua tese central
de que Deus é o cosmos, de que o cosmos é Deus, e de que os deuses
não podem ser homens? Não está. É óbvio que Xenófanes nem sequer
tem propriamente uma doutrina. Ele é como um franco-atirador.
Atira certeiramente contra a religião pública grega e seus deuses-ho-
mens, seus deuses antropomórficos. Atira corretamente contra a
visão de deuses que caminham, que vão daqui para lá, que têm
pecados, que têm defeitos piores que os homens, que são homens ou
de pele negra ou de cabelo ruivo, ou de olhos pretos ou de olhos azuis.
E com este ataque, digamos, poético-filosófico como que sepulta, pa-
ra a filosofia grega, a religião pública grega, a religião caudatária de
Homero e Hesíodo.
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A ESCOLA ELEÁTICA: PARMÊNIDES E ZENÃO*
*
Transcrição – feita por Guilherme Ferreira Araújo, a quem a agradeço – revista da
primeira aula (de 20 de dezembro de 2009) do curso on-line “História da Filosofia:
do impulso grego ao abismo moderno”, inconcluso por razões de saúde. – Mantém-
se aqui o estilo oral
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1
Do proêmio nos chegou tudo, da primeira parte quase tudo, e da segunda parte
quase nada.
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Comecemos pela via da verdade absoluta. Que diz esta via? A fa-
mosa formulação de Parmênides: “o ente é e não pode não ser, e o
não ente não é e não pode ser de modo algum”. Formula-se aí, pela
primeira vez, como o veremos um pouco adiante ainda nesta aula,
o princípio de contradição, que será definitivamente formulado por
Aristóteles. Tentemos entender isto. Se o ente é e não pode não ser, e
o não ente não é e não pode ser de modo algum (registrem esse “de
modo algum”), é porque a realidade se reduz ao ente. Só existe o ente;
o não ente não existe de modo algum. E em que sentido o não ente
não existe de modo algum? Em dois sentidos: o nada não pode ser,
mas também aquilo que é não pode deixar de ser aquilo que é, de
modo algum. Por isso vai Parmênides dizer quais são as caracteres-
ticas, os atributos deste ente que é e não pode não ser, em contrapo-
sição ao não ente, que não é nem pode ser de modo algum. Primeiro:
o ser é ingênito e incorruptível, ou seja, em outras palavras, não é ge-
rado nem se corrompe. Lembremo-nos de que Aristóteles terá exa-
tamente um livro sobre a geração e a corrupção, e, com efeito, tudo
quanto vemos à nossa volta se gera e se corrompe: os animais, os
vegetais, as pedras, um homem; mas, diz Parmênides, o ente, este ente
que é e não pode não ser – em contraposição ao não ente, que não é
nem pode ser de modo algum –, este ente é ingênito e incorruptível,
não se gera nem se corrompe. Por quê? Porque, argumenta Parmê-
nides, se se gerasse, ou se geraria do não ente, o que é impossível, já
que o não ente não é nem pode vir a ser de maneira alguma, nem, se
já fosse ente, poderia derivar do ente, porque se o fizesse derivaria de
si mesmo, e o que deriva de si mesmo já o é. Portanto, não se trata de
um vir a ser, ou seja, o ente não pode vir do não ente, porque o não
ente não é nem pode vir do ente, porque o ente já é. Repitamos: o ser
parmenidiano não pode provir do não ente, porque o não ente não é
e não pode ser de modo algum nem pode originar-se ou gerar-se do
ente, porque o ente já é. Portanto, de modo algum seria ele gerado: é
ingênito. Segunda característica do ente de Parmênides: é imutável e
imóvel. É claro que isto tem que ver com a já dita incorrupção, mas
vai um pouco além. Ser imóvel é sê-lo em duplo sentido: o ente não
217
ΑΩ
2
Lembremos que para os antigos, de maneira geral, infinitude era sinônimo de
imperfeição. Tal identificação só se deixará de fazer perfeitamente com o pensamen-
to cristão, com respeito ao Infinito em Ato que é Deus.
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DES. Não é que ele só tenha dito de passagem, como diz Giovanni
Reale, que seu ente é uno, e que isso seria desenvolvido por Zenão e,
particularmente, por Melisso. É verdade que Zenão e Melisso insisti-
rão profundamente nessa unicidade, nesse ser uno do ente de Parmê-
nides, mas não se trata só de ser uno. Se tal está ou não dito no poema
de Parmênides, não interessa; o que interessa é que a conclusão de
todos essas perfeições do ente o faz não só uno – porque uno também
eu sou, uno é também cada um de vocês, uno é esta máquina filma-
dora que me filma –, mas também único. Esta é a conclusão principal
das perfeições que Parmênides atribui ao ente, ou seja, aquilo que é e
não pode não ser, ao contrário do não ente, que não é e não pode ser
de maneira alguma.
Mas tentemos ver mais precisamente o que é o ente de Parmêni-
des. Pensemos. Quiseram ver alguns, um pouco apressadamente, que
já este ente uno e único de Parmênides seria não só espiritual, mas
seria o próprio Deus. Mas é possível pensar que Deus tenha limite?
Quanto às demais substâncias espirituais, são em si incorruptíveis,
sim, mas não ingênitas. Isto será perfeição apenas de Deus. Ser per-
feitamente imutável, perfeitamente imóvel, é uma perfeição de Deus,
como veremos já com Aristóteles, mas, se se trata de um contínuo
todo igual, de uma espécie de extensão; e, mais, se essa extensão é
esferiforme, e se tem limite, e se é finita – então já não pode ser Deus.
E, se o ente parmenidiano tem essas características e é esferiforme, é
porque tampouco pode ser espiritual. Uma substância espiritual não
pode ser quadradiforme, esferiforme nem nada semelhante, ou seja,
não pode ter figura, o que é próprio dos entes materiais. Portanto,
primeira coisa que constatar: o ente de Parmênides não é uma
substância espiritual nem, muito menos, é Deus. Então, o que é mais
precisamente o ente parmenidiano, que é único? Se é único no
sentido deste filósofo, é porque não há nada mais; e por que não há
nada mais? Porque, como dito já, o não ente não pode ser. Ou se é ou
não se é, e não se é absolutamente e é-se absolutamente. Portanto,
insista-se, este ser é único. E, se ele, por um lado, não é uma subs-
tância espiritual nem, muito menos, é Deus, será todavia, por outro
219
ΑΩ
lado, algo que os nossos sentidos atestam no dia a dia, na nossa inter-
relação com a realidade? É algo que vemos sensivelmente? Não. Ao
contrário, tudo quanto vemos de sensível vemos ser gerado e
corromper-se, ter movimento interno e local, ter mutação, não ser
perfeito. Neste ponto há que concordar perfeitamente com a
brilhante conclusão de Giovanni Reale: o ente de Parmênides é o cos-
mos sem o cosmos. Não é o princípio dos jônios; tampouco é o prin-
cípio dos pitagóricos. Contra seus antigos mestres, diz Parmênides
que o vazio não é, e, se o vazio não é, é porque não pode ser de modo
algum, ao contrário do que dizem os pitagóricos. Tampouco é, pois,
nenhum princípio no sentido dos jônios: água, ar, fogo, a terra ou
lama de Xenófanes. Tampouco é princípio em sentido algum, porque
para Parmênides não há principiado, ou seja, um princípio pressupõe
algo que seja um principiado por ele. De todo e qualquer princípio
resulta, pelo menos virtualmente, que haja algo principiado. Ora, se
não há algo principiado, porque não há mutação, porque não há
movimento de maneira alguma, porque não há geração nem corrup.-
ção, é porque tampouco o ente é para Parmênides um princípio. Não
é um princípio como o era a água de Tales; não é um princípio como
o era o ar de Anaxímenes; não é princípio como o eram os números
dos pitagóricos. É o cosmos sem o cosmos. Negando o evidente, ou
seja, o atestado pelos sentidos e reconhecido pela inteligência, ou seja,
que as coisas mudam, que as coisas se geram e se corrompem, funda
Parmênides um cosmos sem o cosmos, uma espécie de matéria com
algumas características do espiritual. É paradoxal absolutamente, e já
veremos que ele vai de paradoxo em paradoxo. Mas retenhamos,
então, o que é o ente de Parmênides. É cosmos material, sem, no en-
tanto, ser o cosmos. É o cosmos com algumas perfeições próprias das
substâncias espirituais e de Deus, mas com partes, com atributos que
não podem não ser senão de algo material, como o caráter esferifor-
me. Estamos diante de um paradoxo, de uma clara aporia.
Mas há dois passos importantes nesta primeira via de Parmêni-
des, e isto é inegável. Neste ponto não posso senão dar razão ao
historiador Giovanni Reale contra Fraile. De alguma maneira plas-
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Como seja, aí está algo que não se pode negar a Parmênides. Por
isso diz Aristóteles: algo mais longe viu Parmênides com relação aos
seus confrades da escola eleática. Isto é um mérito de Parmênides.
Mas eu avançaria algo que penso cada vez mais: não é só, parece-me,
que com seu ente Parmênides tenha já avançado uma primeira
formulação ainda rústica, como diria Aristóteles, mas já substancial
do princípio de não contradição. Pensem comigo: não lhes parece
que o ente de Parmênides, este grande paradoxo que é o ente de Par-
mênides, esta negação do patente e do visível, corresponde, no entan-
to, a uma necessidade, a necessidade de que haja algo perfeito? Pen-
semos um pouquinho mais: avancemos no tempo e pensemos já co-
mo cristãos. Ora, sabemos nós, pela Revelação, que o mundo foi feito
no tempo, que o universo foi feito no tempo, como diz o Gênesis, ou
seja, que ele não existiu desde sempre, embora não haja nada de
absurdo, como dirá S. Tomás, em que tivesse existido desde sempre:
porque o universo, surgido no tempo ou existindo desde sempre, te-
ria sempre de ter sido criado por esse mesmo Deus. Mas isto só se
entenderá perfeitamente quando estudemos Santo Tomás de A-
quino.
Para simplificar a coisa, todavia, fiquemos por ora com os dados
que sabemos como cristãos, e que, aliás, também sabem (ou deveriam
saber) os judeus. O mundo foi criado no tempo. Deus precisava deste
mundo? De modo algum. Ele poderia ter continuado perfeitamente
feliz, inteligindo-se a Si mesmo, como o dirá Aristóteles (intelecto de
intelecto, pensamento de pensamento, nóesis noéseos [νόησις
νοήσεως]), sem criar o mundo. De modo algum Deus tinha necessi-
dade, para “aperfeiçoar-se”, do universo. Se o criou, é por razões
outras, que veremos bem adiante. Ora, se este universo não era
necessário nem, muito menos, necessário ao mesmo Deus, é porque
é possível pensar num ente que seja não só uno, mas único; que seja
ingênito e incorruptível; imutável e imóvel; não só uno, mas único.
Deus é o uno e o único por excelência – porque é o próprio Ser por si
mesmo subsistente. Ora, o ente de Parmênides, de alguma maneira,
não só contribui, no campo ontológico, para melhor formular mais
222
ΑΩ
3
Que, como diz Étienne Gilson, tem muito de psicopatológico.
224
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esta? É a via da opinião, que decorre da aceitação dos dados dos senti-
dos. Ou seja, com a segunda via de Parmênides, a que ele nega como
a um erro absoluto que o ente possa coexistir com o não ente ou que
o nada ou o vazio possam ser, a via em que se volta contra Heráclito
e os pitagóricos e, afinal de contas, contra toda a escola jônia anterior,
negam-se os dados da experiência sensível, esse conhecimento pri-
meiro que nos é dado pelos sentidos e que depois é referendado, ao
cabo de dado processo abstrativo, pelo próprio intelecto, como vere-
mos com Aristóteles. Os dados dos sentidos não são, para Parmêni-
des, de dar fé; conduzem ao erro, e, mais que ao erro, ao erro absoluto
que é contrapor-se à verdade absoluta da primeira via, assim como o
não ente e o nada são contraposições absolutas ao ente esferiforme.
Vamos à terceira via indicada pela deusa a seu oráculo Parmê-
nides. É a via das aparências, mas este nome em si mesmo é genérico,
árduo, não explica muito nada; é a via que se encontra na parte do
poema que nos chegou mais desfalcada. Contrasta enormemente a
análise que faz desta parte Giovanni Reale com a análise que dela faz
Fraile O.P.
Comecemos por Reale: parece-me haver um equívoco em Reale
neste caso. Diz Reale que esta via seria já uma preocupação de Par-
mênides e sua deusa de dar razão dos “fenômenos” (veja-se, aliás, que
o termo é de fulcro kantiano...). A partir de quê? Das aparências. Ou
seja, que nem Parmênides nem Zenão, a quem já veremos, podem
negar as aparências das coisas, isso é inegavelmente verdade. Mas o
que temos de verificar é se, quanto a esta via das aparências, está certo
Reale ao dizer que com ela pretendem Parmênides e a deusa dar razão
das aparências dos “fenômenos”, ou se simplesmente se quer dizer,
como me parece, que esses “fenômenos”, essa multiplicidade, esse
movimento, essa geração e corrupção não passam de “fenômenos”
ilusórios que o engano dos sentidos leva a opinião ou dóxa a aceitar,
contrariamente à razão ou lógos e sua via do ente ou ser absoluto, da
verdade absoluta. Qual é a razão a que se agarra Reale para dizê-lo?
Exatamente uma que nega o que ele acaba de dizer. Com efeito, na
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que me vê, este livro, este armário, esta estante, esta camisa, para que
haja a multiplicidade das coisas, pressupõe-se o espaço. Se não
houvesse o espaço, não haveria multiplicidade, que é exatamente uma
diversidade de unidades. Ora, sem espaço, obviamente, a multipli-
cidade se reduziria à unidade e, portanto, se negaria a multiplicidade.
Que diz, então, Zenão engenhosamente? Para que haja várias uni-
dades e, portanto, multiplicidade, é preciso que cada uma dessas u-
nidades ocupe um lugar no espaço. Mas o espaço ou é algo ou não é
nada. Se é algo, como o é cada unidade da multiplicidade, é porque,
então, o espaço haverá de ocupar outro espaço, já que o espaço é pre-
condição para a multiplicidade e, portanto, para as diversas unidades.
Em outras palavras: sendo o espaço uma unidade, dentro do qual se
dá a multiplicidade de diversas unidades, o fato é que o espaço teria
de ocupar outro espaço, sem o que não se daria a diversidade de uni-
dade que é a multiplicidade. Logo, se o espaço tem de ocupar um
espaço para ser real, e não um não ente, não um nada, é óbvio que
esse espaço ocupado pelo espaço deverá obrigatoriamente, neces-
sariamente, ocupar outro espaço, e este outro espaço há de ocupar
outro espaço, e assim ao infinito, o que é impossível. Logo, não existe
o espaço. O espaço é o não ente, e o não ente não é nem pode ser de
forma alguma. Logo, se não há espaço, não há diversidade de
unidades. Se não há diversidade de unidades, não há multiplicidade,
e, se não há multiplicidade, estava certo Parmênides: o ente é não só
uno, mas único. Trata-se, obviamente, de uma falácia.
Recapitulemos o que é a filosofia da escola eleática, fundada não
por Xenófanes, mas por Parmênides, na virada do século VI para o
V. Contrariamente não só aos pitagóricos, mas a Heráclito e sua
filosofia do devir, do ente que não tem estabilidade, senão que só é
enquanto devém, dos pares de opostos ou contrários que se anulam
e se identificam absolutamente numa síntese; contrariamente ao
vazio que aspirado pelo uno constitui numericamente o cosmos dos
pitagóricos, e contrariamente aos próprios acidentes ou afecções dos
princípios dos primeiros jônios, da água de Tales, do ar de
Anaxímenes, ou ainda da mesma lama de Xenófanes; contrariamente
236
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5
Infelizmente, por razões, como dito, de saúde, tivemos de interromper este curso
e já nem sequer estudamos Melisso, nem Empédocles, nem Anaxágoras – todos os
quais, porém, também se estudarão no quarto ano de nossa Escola Tomista.
238
LIÇÕES DE SÓCRATES
1
Ou seja, entre os primeiros diálogos platônicos, não são “aporéticos” o Críton e, a
meu ver, o Protágoras. (Quanto à Apologia de Sócrates, só impropriamente se pode
classificar entre os diálogos.) Ademais, por aporéticos que sejam, não o são em um
sentido preciso: o mostrar que a sofística não é um verdadeiro saber nem conduz à
ΑΩ
3) O socrático “só sei que nada sei” pode traduzir-se, como o diz
reiteradamente o mesmo Sócrates, no aparente paradoxo de que só é
verdadeiramente sábio aquele que se sabe não sábio. Como, porém,
resolver de modo preciso este aparente paradoxo? Duplamente. Em
primeiro: o não saber socrático é verdadeiro saber diante do falso
saber sofístico, porque destrói o monólogo de efeito dos sofistas e
abre campo para a disputa propriamente científica. 4 Em segundo: só
é sábio aquele que se sabe não sábio diante do deus e que, por isso
mesmo, segue os desígnios dele sem vacilar, mesmo em face da
morte. Esta segunda resolução – em que se é tentado a ver uma sorte
4
O diálogo socrático (e pois o platônico) nada tem que ver com o diálogo relativista
ou ecumenista moderno, justamente porque aquele, como ciência, visava à verdade,
enquanto este já parte da negação mesma da verdade. Como já se disse, o diálogo
socrático é método de grande mestre.
241
ΑΩ
Prossegue Sócrates:
242
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Responde Críton:
“– Eia, pois, Críton, ajamos neste sentido, dado que por aí nos
guia o deus [ou seja, caminhe eu para a morte segundo o desígnio do
deus e responda, assim, com um ato de justiça a uma condenação in-
justa]”. 5
5
A distinção aristotélica entre ato de justiça e ato justo, e pois entre ato de injustiça
e ato injusto, é de fulcro socrático.
243
O CRÁTILO DE PLATÃO*
*
Transcrição – feita por Patricia Júlio, a quem a agradecemos – de breve palestra
on-line nossa. Mantém-se aqui o estilo oral.
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língua. E faz parte desta explicação o que nos é dado ou facilitado por
esta magnífica obra platônica.
256
O TIMEU DE PLATÃO*
*
Transcrição – feita por Patricia Júlio, a quem a agradecemos – de breve palestra
on-line nossa. Mantém-se aqui o estilo oral.
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FÍLON DE ALEXANDRIA: UM CRUZAMENTO DE CAMINHOS1*
I
A ÁRDUA BIOGRAFIA DE FÍLON DE ALEXANDRIA
*
O opúsculo que se segue é parte de nossa apresentação de dois livros de Fílon de
Alexandria lançados pela É Realizações (e que também revisamos tecnicamente). O
primeiro é Da Criação do Mundo e Outros Escritos, que inclui as seguintes obras
filonianas: Da Criação do Mundo segundo Moisés (De Opificio Mundi); Da Incor-
ruptibilidade do Mundo (De Aeternitate Mundi); Da Imutabilidade de Deus (Quod
Deus Sit Immutabilis); Da Providência (De Providentia). Foram todas traduzidas por
LUÍZA MONTEIRO DUTRA diretamente dos originais gregos como se encontram em
Thesaurus Linguae Graecae, biblioteca digital de textos gregos. – O segundo é
Questões sobre o Gênesis, traduzido por GUILHERME FERREIRA ARAÚJO do inglês,
mais precisamente da edição de Charles D. Yonge (trad.), The Works of Philo,
Complete and Unabriged, Hendrickson, Peabody, 1993. A tradução inglesa, por sua
vez, fez-se de antiga tradução armênia desta obra filoniana, cujos originais gregos
se perderam em grande parte.
2
Cf. XENOFONTE, Memoráveis, I, 1, 11-16. ― Com efeito, assim como, ante a teia de
doutrinas opostas acerca da natureza, o fundador da estrada real da filosofia dizia
que se devia deixar de lado a pesquisa do que seria um segredo da Divindade, assim
também, ante o enredo de afirmações antagônicas que envolvem a vida do Alexan-
drino, se poderia suspender a investigação de algo grandemente coberto pelo manto
dos tempos.
3
Cf. GIOVANNI REALE, ibidem, p. 217-218; e ROGER ARNALDEZ, “Introduction
Generale”, in Les Œuvres de Philon d’Alexandrie, Paris, Éditions du Cerf, 1961.
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268
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4
A mais recente edição crítica das obras de Fílon é a preparada por L. Cohn e P.
Wendland, Philonis Alexandrini Opera Quae Supersunt, 6 vols., Berlim, 1896-1915
(acrescida de Índices por H. Leisegang em 1926-1930). Das traduções das obras
completas do Alexandrino, registrem-se as seguintes: em inglês, as editadas sob a
direção de F. H. Colson e de G. H. Whitaker na coleção “Loeb Classical Library”,
269
ΑΩ
7
Tradução grega começada precisamente em Alexandria, sob o reinado de
Ptolomeu Filadelfo (285-246 a.C.), para atender a uma necessidade da comunidade
judia que ali se formara apropriando-se da língua grega. Para alguns, como se viu,
o próprio Fílon talvez não soubesse o hebraico, ao menos não perfeitamente ―
questão perfeitamente insolúvel e de que não nos ocuparemos.
8
Ibidem, p. 47.
271
ΑΩ
9
Aliás, para Billings, como mostra Arnaldez (na “Introduction Generale”, in op. cit.,
p. 77), “Fílon crê em Moisés e em Platão. As ideias de Platão são verdadeiras; elas,
portanto, têm de encontrar-se no livro de Moisés” – afirmação (a de Billings)
absolutamente correta com respeito ao pensamento de Fílon. Voltaremos a este
ponto.
10
Roger Arnaldez, ibidem, p. 83.
11
Ibidem, p. 86.
272
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12
O próprio Fílon refere-se não só aos terapeutas, comunidade hebraica que se tinha
estabelecido no Egito (cf. De Vita Contemplativa), mas também aos essênios (cf.
Prob., 75 ss.), a respeito das exegeses alegóricas da Bíblia em ambientes judaicos –
das quais, como veremos, o Alexandrino era herdeiro.
13
Ibidem, p. 87.
14
Idem.
273
ΑΩ
15
Cf. ROGER ARNALDEZ, op. cit., p. 97-112.
274
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II
O PAPEL DE FÍLON DE ALEXANDRIA NA HISTÓRIA
DA FILOSOFIA E DA TEOLOGIA
16
GIOVANNI REALE, ibidem, p. 215-267.
17
Ibidem, p. 217.
275
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18
GIOVANNI REALE, ibidem, p. 219.
19
Já o afirmava Clemente de Alexandria. Cf. Stromata, I, 15, 72, 4; II, 19, 100, 3.
276
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20
Ibidem, p. 221-222. ― Veremos ao longo desta Apresentação por que Reale tem
razão nisto.
21
Cf. ibidem, p. 222.
22
Cf. GIOVANNI REALE, História da Filosofia Antiga, vol. I, op. cit., p. 4. (E di-lo Reale
para negar que sua “posição fosse aristotélico-tomista”.) Podemos dizer po-rém
que, ao contrário daquilo em que não raro se quer crer, o liame que uniria Pla-tão,
Plotino e Santo Agostinho é teologicamente tão tênue, que impede se constitua
efetiva continuidade entre a doutrina dos três. Mas isto é assunto para outro lugar.
277
ΑΩ
23
GIOVANNI REALE, História da Filosofia Antiga, vol. IV, op. cit., p. 220. E acrescenta
em nota: “Toda a nossa exposição será a prova dessa tese”. Como mostra-remos, tal
exposição precisamente não prova de modo cabal essa tese, que é, sim, verdadeira,
mas apenas em certo sentido.
24
Idem.
278
ΑΩ
formou-se uma ideologia especial, que não era outra coisa senão
uma mescla de judaísmo e de helenismo que veio a ter grande
influência. O porta-voz desse sistema foi Fílon [...]. Das ideias de
Platão e das dos estoicos, ele formou o conceito de um Deus
incapaz de qualquer contato com a matéria. Daí a necessidade de
intermediários, o principal dos quais é o Logos ou Verbo. Na dou-
trina de Fílon já se achava a base do gnosticismo [melhor se diria:
“já se achava uma das bases do gnosticismo e a base do neo-
platonismo”]. O segundo efeito [da diáspora judia] foi a influência
benéfica que um núcleo muito conspícuo de judeus teve no mun-
do pagão que o rodeava. Com isso, foi-se criando em todas as par-
tes um círculo de admiradores e de neófitos da religião judaica,
[cuja] importância para o cristianismo foi extraordinária, pois
dentre eles os Apóstolos recrutaram a maior parte dos primeiros
cristãos.25
25
BERNARDINO LLORCA, S. I., Manual de Historia Eclesiástica, 5ª. ed., Barcelona,
Editorial Labor S.A., 1960, p. 24.
26
Afirmação que, porém, há de matizar-se: não só porque, como veremos, tais
sementes benéficas têm mescla de malefícios, mas porque, conquanto inegável, tam-
bém é verdade que tal influência filoniana só se deu na esteira da influência certa
das próprias Sagradas Escrituras.
279
ΑΩ
III
O ALEGORISMO FILONIANO
27
Ibidem, p. 225.
280
ΑΩ
28
Ibidem, p. 223. ― Como veremos, o próprio Fílon considerava-se um
“hierofante” ou “profeta”.
29
Ao longo de suas obras, ele cita trechos de ao menos dezoito livros das Escrituras
antigas.
30
Torá (Torah) em hebraico, e Nómos em grego.
281
ΑΩ
31
Cf. GIOVANNI REALE, ibidem, p. 225-227.
32
Ibidem, p. 226.
33
Em Spec., I, 8; e III, 178.
34
Cf. Prob., 75 ss.
35
Cf. Contempl., passim.
36
GIOVANNI REALE, ibidem, p. 227.
282
ΑΩ
37
Les Idées Philosophiques et Religieuses de Philon d’Alexandrie. Paris, 1908, p. 43,
apud GIOVANNI REALE, ibidem.
38
Cf. idem.
283
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39
Idem.
284
ΑΩ
IV
AS RELAÇÕES ENTRE FÉ E RAZÃO, E ENTRE TEOLOGIA E FILOSOFIA,
EM FÍLON DE ALEXANDRIA
40
Suma Teológica, I, q. 1, a. 10, c. (os grifos são nossos.) ― Cf. também I Sent., Prol.,
a. 5; IV, d. 21, q. 1, a. 2; De Pot., q. 4, a. 1; Quodlib. III, q. 14, 2.1; VII, q. 6 per tot.;
Ad Gal., c. 4, lect. 7.
285
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41
GIOVANNI REALE, ibidem, p. 229.
42
Cf. ibidem, p. 231. E tinha razão o Ateniense em julgar negativamente a
“inspiração divina” tal como lhe era dado vê-la: aquele tipo de “inspiração” que pu-
nha o indivíduo “fora de si”, “fora da razão”. Para ele, e corretamente dada todas as
suas circunstâncias, o saber propriamente filosófico (ou dialética) não podia não ser
o saber superior e, de fato, o único propriamente chamado tal.
286
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V
O NÚCLEO DA DOUTRINA DE FÍLON
43
I, 327-329, apud GIOVANNI REALE, ibidem, p. 83-93.
287
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44
Cf. XENOFONTE, Memoráveis, I, cap. 4, passim, e IV, 3, 1-14; e Platão, Filebo, 28d
ss.
288
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45
Do Platão das Leis, X, passim.
46
Spec., I, 32-35, apud GIOVANNI REALE, ibidem, p. 239.
289
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47
Abr., 74-76, apud GIOVANNI REALE, ibidem, p. 239-240.
48
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 12 toda, mas especialmente
artigos 1-5 e 11-12.
290
ΑΩ
“de baixo para cima”, 49 como requeria já São Paulo, e como fazem as
cinco vias de Santo Tomás, 50 contrariamente à tendência neste
assunto de um Santo Anselmo (a qual, digamos, é ultrarrealista à
partida, mas idealista ao termo). 51 Não obstante, o certo é que não
encerram maior perfeição: porque, efetivamente, o que estas duas
provas filonianas fazem é mostrar que o mundo não pode passar sem
um Demiurgo formador e governante; mas não preparam, como as
cinco vias de Santo Tomás, para a prova de que este mundo não pode
ter sido criado senão ex nihilo, de nada. Decorrerá isso da incerteza
de Fílon quanto à eternidade da matéria informe? Muito pro-
vavelmente.
2) O segundo problema é de fato espinhoso: se podemos conhecer
a essência ou natureza de Deus. O ponto de partida de Fílon é correto:
não, não podemos; a essência de Deus é incompreensível para o ho-
mem. 52 Também o dirão todos os grandes doutores católicos, e mais
claramente que nenhum Santo Tomás. A transcendência de Deus, diz
ainda o Alexandrino, é absoluta: transcende não só à natureza hu-
mana, mas também à do céu e à de todo o universo. “Não há nada
que seja semelhante a Deus”, insistia: Deus está acima da Ideia do
Uno e da do Bem, está acima da vida, está acima da ciência, está acima
da virtude. 53 É a fonte de toda a realidade, e não está em lugar algum,
mas ao mesmo tempo a tudo preenche e a tudo contém. 54
Mas só seu ponto de partida é correto. Sim, porque daí a doutrina
filoniana deriva para dois equívocos graves:
49
Cf. Praem., 23, apud GIOVANNI REALE, ibidem, p. 240.
50
Em Suma Teológica, I, q. 2, a. 3.
51
Cf. SANTO ANSELMO DE CANTERBURY, Proslogium, cap. II-III, e SANTO TOMÁS DE
AQUINO, Suma Teológica, I, q. 2, a. 1.
52
Cf. Spec., I, 331 ss., e também Decal., 52 ss., apud GIOVANNI REALE, ibidem, p. 238.
53
Cf. Opif., 8. Cf. também Praem., 40; Fug., 198; Contempl., 2, apud GIOVANNI
REALE, ibidem, p. 242.
54
Cf., por exemplo, Leg., I, 44; III, 4; III, 51; Confus., 136 ss.; Somn., I, 61 ss., apud
GIOVANNI REALE, idem.
291
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55
Fortuna sempre conducente, em especial quanto ao conhecimento de Deus, à pura
aequivocatio em lugar da analogia. São frutos disso, por exemplo, o nomina-lismo,
o idealismo, o empirismo.
56
Conhecimento que permite, ademais, que fundadamente possamos atribuir no-
mes a Deus.
57
Cf. PE. M. TEIXEIRA-LEITE, A Função da Analogia em Teologia Dogmática,
Petrópolis, Editora Vozes, 1946, p. 94-95; e SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma
Teológica, I, q. 3, a. 5, ad 2.
292
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Ficasse por aí, muito bem. Sucede todavia que, como é comum
em Fílon, a um acerto se segue também aqui um equívoco: termina
58
GIOVANNI REALE, ibidem, p. 243, n. 27.
59
Ibidem, p. 244 (grifo nosso).
293
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60
Idem.
61
Cf. Cher., 77, e Leg., I, 5, apud GIOVANNI REALE, ibidem, p. 245.
294
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62
Her., 156-157, apud GIOVANNI REALE, ibidem, p. 246.
63
Mos., II, 267, apud GIOVANNI REALE, ibidem, p. 247.
64
Leg., III, 10, apud idem.
65
Somn., I, 76, apud idem. — Segundo Giovanni Reale (ibidem, p. 247), ademais, de
algumas passagens do De Providentia (I, 6-22; II, 48-50) talvez se possa concluir o
mesmo.
66
Opif., 21 s.
295
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67
Her., 157-160, apud GIOVANNI REALE, ibidem, p. 246.
296
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Tudo é graça de Deus: terra, água, ar, fogo, sol, astros, céu,
todos os animais e todas as plantas. Deus não faz nenhuma graça
a si mesmo, porque não tem necessidade disso, mas dá o mundo
ao mundo, dá as partes às próprias partes, e, reciprocamente, u-
mas às outras, e, ademais, ao todo. 69
68
Leg., III, 78, apud GIOVANNI REALE, ibidem, p. 247-248.
69
Deus., 107, apud GIOVANNI REALE, ibidem, p. 248.
297
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Pois bem, nessas linhas parece que o Logos divino coincide com
o Intelecto ou atividade pensante de Deus, ou seja, com algo não
distinto dele, imanente a ele. Mas, como diz Giovanni Reale, logo
Fílon
298
ΑΩ
70
GIOVANNI REALE, ibidem, p. 249.
71
Além de que a ideia do Logos ou Verbo de Deus como Arcanjo provavelmente
influiu na doutrina – que tanto fortuna teria entre os árabes (mais radicalmente em
Averróis, mas também em Avicena) e até em âmbito cristão (os averroístas latinos)
– de um único intelecto para todos os homens como substância separada (doutrina
vitoriosamente combatida por Santo Tomás de Aquino em De unitate intellectus
contra Averroistas).
299
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72
GIOVANNI REALE, ibidem, p. 251.
73
Idem.
74
Cf. Cher., 27.
75
Cf. El Problema del Ser en Aristóteles, Madri, Taurus, 1984, p. 342-354 e 371, apud,
CARLOS AUGUSTO CASANOVA, ibidem, p. 126, n. 279.
76
Cf. Física, VIII, 5, 258a 18-22; e CARLOS AUGUSTO CASANOVA, ibidem, p. 125-133.
300
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77
Em Lib. Octoginta Trium Quaest., q. 46.
78
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, I, c. 54, n. 7-9.
301
ΑΩ
79
Cf. GIOVANNI REALE, ibidem, p. 254 (e n. 60).
80
Ibidem, p. 255.
81
Afinal, como visto, Fílon mesmo escreveu que, para criar, Deus “valeu-se das Po-
tências incorpóreas, cujo verdadeiro nome é Ideias”.
302
ΑΩ
VI
CONCLUSÃO BREVE
303
DUAS RESPOSTAS A DUNS SCOT
I
(p. 145-146)
TRECHO DE SCOT
NOSSA NOTA
306
ΑΩ
1
Diga-se aqui, a modo de estreito resumo, que se a alma sobrevive à morte do corpo
é porque é ela mesma substância. Mas é substância de natureza incompleta, porque
é de sua natureza unir-se a um corpo. É por isso que Santo Tomás põe na Suma
Teológica que a alma separada de seu corpo é uma “pessoa truncada”.
307
ΑΩ
II
(p. 149-150)
TRECHO DE SCOT
2
SANTO TOMÁS DE AQUINO, S. Th., I, q. 7, a. 1, c. e ad 2; S. c. Gent., I, c. 43.
3
Idem, Sent., II, d. 3, p. 1, a. 1, c.
4
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Quodl. II, q. 2, a. 1, c. e ad 2; S. Th., I, q. 50, a. 2, ad 3-4.
5
Idem, Sent. I, d. 43, q. 1, a. 1, c.; S. Th., I, q. 7, a. 1, c.
6
Vide nossa nota transcrita infra. (N. T.)
308
ΑΩ
NOSSA NOTA
o ser divino, que é, ele mesmo, seu ser subsistente, não pode ser
recebido em aliquo, razão por que Deus é infinito. Em princípio, pois,
afirmar, como de fato faz o Aquinate, que “o anjo é imaterial e, no
entanto, não é infinito” não implica a contradição que quer ver Duns
Scot na doutrina tomista com respeito ao que aqui nos ocupa. Mas
pode parecer implicar lacuna ou falta de consequência se não se en-
tende e não se explica por que, sendo o anjo imaterial, não é todavia
infinito. Respondamo-lo segundo Santo Tomás de Aquino (que, no
ponto em questão, e na perspectiva da revelação, vai muito além
de Aristóteles). Se os entes não são infinitos, sendo-o somente o ser
divino, é porque em todos há de haver alguma composição (e não a
há, é claro, tão somente no mesmo ser divino). Antes de tudo, todos
os entes criados são compostos de dois princípios primeiros ou pri-
mários: ato e potência (cf., como já se disse, Santo Tomás de Aqui-
no, In IX Metaph., lect. 1-10; In I Phys., lect. 9; In III Phys., lect. 2;
etc.), ao contrário de Deus, que é Ato Puro; e tal, insista-se, vale tanto
para os entes do mundo sensível como para os anjos ou puros espí-
ritos. Por seu lado, porém, como já vimos, os entes do mundo sensível
são compostos de matéria e de forma, estando aquela em potência ao
ato que é a forma; ao passo que nos anjos não há esta composição:
são pura forma. Mas, se estes puros espíritos são pura forma, é preciso
averiguar se não tem razão Duns Scot. Demos então a palavra ao mes-
mo Santo Tomás: “(...) se não há no anjo composição de matéria e de
forma, há porém composição de ato e de potência. O que pode paten-
tear-se pela consideração das coisas materiais, em que se encontram
estas duas composições. A primeira é a da forma e da matéria que
constituem uma natureza. Mas uma natureza [ou essência] assim
composta não é seu ser; seu ser é seu ato. Razão por que a mesma
natureza é para seu ser o que a potência é para o ato. Por conseguinte,
fazendo abstração da matéria, e admitindo que a forma subsiste sem
estar na matéria, ainda permanece a comparação da forma com
respeito ao ser com a potência com respeito ao ato. Tal é a compo-
sição que se há de entender nos anjos [...]” (Summa Theologiae, I,
q. 50, a. 2, ad 3). E mais: “[...] toda e qualquer criatura é fini-
310
ΑΩ
311
SOBRE A HIPÓTESE HETEROTRÓFICA PARA
O SURGIMENTO DA VIDA
314
ΑΩ
315
SEXO MASCULINO E SEXO FEMININO
319
A TERRA É ESFÉRICA E GIRA
EM TORNO DE SEU EIXO E DO SOL
II
322
ΑΩ
324
A POLÍTICA SOB A LUZ DA SACRA TEOLOGIA
DA REALEZA DE CRISTO*
*
Este opúsculo foi publicado, primeiramente, nas duas edições de nosso Do Papa
Herético e outros opúsculos, lançado pelas Edições Santo Tomás. Incluímo-lo neste
volume purgado de uma que outra imprecisão ou imperfeição, ou seja, na versão
que agora consideramos a definitiva.
ΑΩ
328
ΑΩ
329
ΑΩ
I. FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS
1
“A democracia é uma religião mais universal que a Igreja [...]. Resulta do grande
movimento de apostasia organizado em todos os países para o estabelecimento de
uma Igreja Universal que não terá dogmas, nem hierarquia, nem regra para o es-
pírito, nem freio para as paixões” (PIO X, Notre charge apostolique). – Outra coisa é
considerar se entre os regimes revolucionários um é menos mau que os outros.
2
“O reino visível de Deus sobre a terra é o reino de seu Filho encarnado, e o reino
visível de Deus encarnado é o reino permanente de sua Igreja” (CARDEAL PIE DE
POITIERS, Œuvres sacerdotales, III, 501). Sobre esta identidade dos três reinos: o
reino de Deus, o reino de Nosso Senhor Jesus Cristo e o reino da Igreja, cf. ainda
Cardeal Pie de Poitiers, Œuvres sacerdotales: I, 143-144, 317 a 320, 381, 499-500.
331
ΑΩ
3
Mas, se uma obra de arte – um romance, uma peça teatral ou musical, um filme –
leva o homem a afastar-se de Deus por qualquer razão, já não o terá de modo algum
por fim, mas servirá aos inimigos dele e da santidade; e diga-se analogamente o
mesmo da política, da vida econômica, etc.
332
ΑΩ
que saber de onde advém tal omniabrangente realeza, ante a qual to-
do joelho se há de dobrar para que toda língua a possa louvar dig-
namente. Vem, antes de tudo, do simples fato de que não pode haver
exceção ali onde Deus não deixou nenhum lugar para ela. E não o
deixou porque não pode haver exceção com respeito àquele que é Rei
a duplo título: a) por direito de natureza por sua união hipostática
com a divindade; e b) por direito de conquista, de redenção, de res-
gate do gênero humano por sua paixão e morte na cruz. Disse-o o
mesmo Jesus: “Omnia potestas data es mihi in cœlo et in terra” (Foi-
me dado todo o poder no céu e na terra) (Mat. 28, 18). E concluiu São
João: “Todo espírito que dissolve Jesus Cristo não é de Deus, mas é
justamente esse Anticristo de que ouvistes que está para chegar e que
no presente já se acha no mundo”... (1 Jo. 4, 3);
• E foi ainda Nosso Senhor quem, respondendo à pergunta de
Pilatos: “Ergo rex es tu?” (Então tu és rei?), o confirmou: “Tu o dis-
seste” (cf. Mat. 27, 11; Marc. 15, 2; Luc. 23, 3; Jo. 18, 33-34). Mas disse
Cristo também que seu reino não é deste mundo, e que se deve dar a
César o que é de César. Há que indagar, por conseguinte, se não in-
dicariam essas duas afirmações, respectivamente, uma autonomia
essencial deste mundo com respeito ao reino de Cristo e uma divisão
essencial entre as duas ordens terrestres, a civil ou temporal e a e-
clesiástica ou espiritual. E deve responder-se que não, porque: a) se
não é “deste mundo”, é por isso mesmo que a realeza de Cristo se
exerce, e plenamente, “sobre este mundo”; e b) se é verdade que
Cristo estabeleceu a distinção entre jurisdição civil e jurisdição e-
clesiástica, com o que resolvia graves dilemas pagãos como o de Pla-
tão em busca da república ideal, também é verdade, porém, que dis-
tinção não implica necessariamente ausência de subordinação de
fins, e de subordinação essencial. Com efeito, poder secular ou tem-
poral está para poder espiritual assim como o corpo está para a alma
no homem; assim como a natureza está para a graça no justo; e assim
333
ΑΩ
4
Para estas analogias, cf. muito especialmente PADRE ÁLVARO CALDERÓN, El Reino
de Dios en el Concilio Vaticano II (versão em PDF), p. 16-24. Quanto ao próprio
Santo Tomás de Aquino, cf. Summa Theol., II-II, q. 60, a. 6; De regno, liv. 1, cap. 15,
e In II Sententiarum, dist. 44, q. 1, a. 3, c. e ad 5; Contra Gent., l. 4, cap. 72, n. 10; et
alii loci. – Por seu lado, o Cardeal Pie de Poitiers dizia que o poder temporal está
para o espiritual assim como a natureza humana de Cristo está para sua natu-reza
divina. Parece válida também esta analogia, com a desvantagem, porém, com
respeito às outras, de que entre as duas naturezas de Cristo não há nem pode haver
nenhum conflito. Para esta analogia do Cardeal Pie de Poitiers, cf. especialmente
a Lettre à M. le ministre de l’instruction publique et des cultes (16 de junho de 1861)
e a Troisième instruction synodale sur les principales erreurs du temps présent. – Para
o dito de algum modo pelo magistério da Igreja acerca disto, cf., por exemplo:
Epístola Duo sunt (São Gelásio I); Documento de excomunhão e de deposição de
Henrique IV (S. Gregório VII); encíclica Sicut universitatis (Inocêncio III); bula
Unam Sanctam (Bonifácio VIII), documento de inequívoco caráter extraordinário
infalível; constituição Licet iuxta doctrinam (Erros de Marsílio de Pádua e de João
de Jandun sobre a constituição da Igreja; João XXII); encíclica Etsi multa luctuosa
(Pio IX); encíclica Quanta cura (Pio IX); o Syllabus (Pio IX); encíclica Quod
Apostolici muneris (Leão XIII); encíclica Diuturnum illud (Leão XIII); encíclica
Immortale Dei (Leão XIII); encíclica Libertas praestantissimum (Leão XIII); encí-
clica Sapientiae christianae (Leão XIII); encíclica Annum sacrum (Leão XIII); em-
cíclica Rerum novarum (Leão XIII); encíclica Vehementer Nos (S. Pio X); encíclica
Communium rerum (S. Pio X); encíclica Jucunda sane (S. Pio X); encíclica Pascendi
(S. Pio X); motu próprio Sacrorum antistitum (S. Pio X); encíclica Editae saepe Dei
(S. Pio X); encíclica E supremi apostolatus (S. Pio X); encíclica Il fermo proposito (S.
Pio X); Carta sobre a ação social, janeiro de 1907 (S. Pio X); encíclica Ad diem illum
(S. Pio X); alocução Gravissimum (S. Pio X); encíclica Notre charge apostolique (S.
Pio X); encíclica Ubi arcano (Pio XI); encíclica Quas Primas (Pio XI), a carta magna
da Cristandade; encíclica Divini illius magistri (Pio XI); encíclica Quadragesimo
anno (Pio XI); encíclica Firmissimam constantiam (Pio XI).
334
ΑΩ
335
ΑΩ
5
A saber: apostasia geral das nações → a abominação da desolação instalada no
lugar santo → advento e império breve do Anticristo → conversão dos judeus e re-
fervor geral da fé → dentro de tempo mais ou menos longo ou mais ou menos breve,
a Parusia ou segunda e definitiva vinda de Cristo, com a conformação de novos céus
e de nova terra.
336
ΑΩ
qualquer coisa que seja uma negação de sua crença. Enquanto todavia
implica um ato positivo, o preceito, conquanto permanente e contí-
nuo, não obriga o católico a professar sua fé a todo momento e em
todo lugar. Ou seja, fazê-lo a todo momento e em todo lugar não é
necessário para sua salvação. No entanto, o que, sim, é necessário pa-
ra sua salvação é professá-la na devida hora e lugar, o que não se dá
se por omissão da declaração de sua crença o católico deixa de prestar
a honra devida a Deus ou deixa de concorrer para a utilidade espi-
ritual do próximo; ou se, ao ser interrogado sobre sua fé, ele se cala,
podendo resultar desse silêncio, para o próximo, ou a conclusão de
que a fé não é verdadeira, ou a perda dela ou a desistência de abraçá-
la. Como seja, o fato é que não nos basta a adesão interior à verdade
divina, incluída a realeza total de Cristo; é-nos de preceito confessá-
la exteriormente pelo menos nas condições indicadas por Santo To-
más. E são de Nosso Senhor mesmo estas inequívocas palavras: “To-
do aquele que não me tiver confessado diante dos homens, o Filho do
homem tampouco o confessará diante dos anjos de Deus. E aquele
que me tiver negado diante dos homens, esse será negado diante dos
anjos de Deus” (Luc. 12, 8-9).
6. Além do mais, ainda que estejamos marchando para o fim dos
tempos e que não possamos tornar a instaurar, efetivamente, tudo em
Cristo, devemos imbuir-nos profundamente das seguintes palavras
do Cardeal Pie de Poitiers, 6 escritas há cerca de um século e meio, e
que citaremos extensamente: lutemos
7
Sobre a incerteza da hora do juízo, cf. Mateus 24, 36-44.
8
Deve entender-se isto não como uma previsão de que a Igreja perderá sua
hierarquia por herética ou cismática (se a perdesse, teria falhado a promessa de
Cristo e o definido pelo próprio magistério, e o Cardeal Pie não teria dito: “a Igreja,
sociedade sem dúvida sempre visível”); senão que deve entender-se como uma pre-
visão de que será encerrada nas referidas proporções, como o foi na época das cata-
cumbas e como o é, por exemplo, na China atual. Para este tema, vide, nosso opús-
culo “Do Papa Herético”, in Do Papa Herético e outros opúsculos, 2.ª ed., Formosa,
Edições Santo Tomás, 2019.
338
ΑΩ
339
CORTE E COSTURA HUMANISTA*
*
Este opúsculo foi publicado, primeiramente, nas duas edições de nosso Do Papa
Herético e outros opúsculos, lançado pelas Edições Santo Tomás. Incluímo-lo neste
volume purgado de uma que outra imprecisão ou imperfeição, ou seja, na versão
que agora consideramos a definitiva.
1
El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II (versão em PDF), p. 13.
2
Paris, Desclée, 1931.
ΑΩ
3
Op. cit., p. 26-27.
4
Ibidem, p. 28-29.
5
Ibidem, p. 70-72.
6
Ibidem, p. 40.
342
ΑΩ
7
“Et ideo distinctio fidelium et infidelium, secundum se considerata, non tollit
dominium et praelationem infidelium supra fideles. Potest tamen iuste per
sententiam vel ordinationem Ecclesiae, auctoritatem Dei habentis, tale ius dominii
vel praelationis tolli, quia infideles merito suae infidelitatis merentur potestatem
amittere super fideles, qui transferuntur in filios Dei […].”
8
“Ad secundum dicendum quod illa praelatio Caesaris praeexistebat distinctioni
fidelium ab infidelibus, unde non solvebatur per conversionem aliquorum ad fidem.
Et utile erat quod aliqui fideles locum in familia imperatoris haberent, ad
defendendum alios fideles, sicut beatus Sebastianus Christianorum animos, quos in
tormentis videbat deficere, confortabat, et adhuc latebat sub militari chlamyde in
domo Diocletiani.”
9
“Ad tertium dicendum quod servi subiiciuntur dominis suis ad totam vitam, et
subditi praefectis ad omnia negotia, sed ministri artificum subduntur eis ad aliqua
specialia opera. Unde periculosius est quod infideles accipiant dominium vel
praelationem super fideles quam quod accipiant ab eis ministerium in aliquo
artificio. Et ideo permittit Ecclesia quod Christiani possint colere terras Iudaeorum,
343
ΑΩ
“que os servos estão sujeitos a seus senhores para toda a vida, e os sú-
ditos a seus prefeitos para todos os negócios; mas os ajudantes dos
artífices lhe estão sujeitos [somente] para obras especiais. Por isso é
mais perigoso que os infiéis recebam domínio ou governo sobre os
fiéis do que uma ajuda destes em alguma indústria. [...] Salomão
também pediu ao rei de Tiro ajudantes de obras para que cortassem
madeira, como se lê em 3 Reis 5, 6. E, no entanto, se de tal co-
municação ou convívio se temer a ruína dos fiéis, deve ela ser total-
mente interditada”.
Mas detenhamo-nos na doutrina do Doutor Angélico a respeito
deste assunto, para saber por que pôde pôr o que acabamos de ler.
Ora, já dizia Aristóteles 10 que “devemos considerar de que modo a
realidade do universo possui o bom e o ótimo, se como algo separado
em si e por si, ou como a ordem, ou ainda de ambos os modos, como
acontece com um exército. De fato, o bem do exército está na ordem,
mas também está no general; antes, mais neste que naquela, porque
o general não existe em virtude da ordem, mas a ordem em virtude
do general. Todas as coisas estão de certo modo ordenadas em con-
junto, mas nem todas do mesmo modo: peixes, aves, plantas; e o
ordenamento não ocorre de modo que uma coisa não tenha relação
com outra, mas de modo que haja algo de comum [entre elas]. De fa-
to, todas as coisas são coordenadas a um único fim. Assim, numa ca-
sa, aos homens livres não cabe agir ao acaso; ao contrário, todas ou
quase todas as suas ações são ordenadas [...]. Quero dizer que todas
as coisas, necessariamente, tendem a distinguir-se; mas, por outros
aspectos, todas tendem para o todo”. Pois bem, com ainda muito
maior razão formal fala Santo Tomás da ordenação da pólis a Deus
como ordenação a Cristo e sua Igreja. Partindo da impossibilidade de
quia per hoc non habent necesse conversari cum eis. Salomon etiam expetiit a rege
Tyri magistros operum ad ligna caedenda, ut habetur III Reg. V. Et tamen si ex tali
communicatione vel convictu subversio fidelium timeretur, esset penitus
interdicendum.”
10
Metafísica, Λ 10, 1075 a 11-25.
344
ΑΩ
que qualquer ente e pois o homem tenha dois fins últimos, e do fato
de que, se só se tem um fim último, todos os demais fins hão de ser
fins intermediários ou meios em ordem essencial ao último fim, 11 o
Doutor Angélico e o Padre Álvaro Calderón mostram mediante ana-
logias como o poder secular se ordena ao poder espiritual: aquele se
ordena essencialmente a este assim como o corpo se ordena essen-
cialmente à alma no composto humano; assim como a natureza se
ordena essencialmente à graça no justo; e, por fim, assim como a ra-
zão se ordena essencialmente à fé na Sacra Teologia. 12
Se todavia aquele princípio humanista não é um “princípio
fundamental” da doutrina de Santo Tomás, há que indagar se não o
será ao menos das Escrituras.
II
11
Cf. Suma Teológica, I-II, q. 1 (“De ultimo fine hominis”, em oito artigos). – Vide
o apêndice.
12
Para estas analogias, cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, De regno, I, cap. 5; Summa
Theol., II-II, q. 60, a. 6, ad 3; e PADRE ÁLVARO CALDERÓN, El Reino de Dios en el
Concilio Vaticano II, versão em PDF, p. 16-24.
345
ΑΩ
346
ΑΩ
Com efeito, ser rei é ter ordenados a si todos os seus súditos, assim
como ser general é ter ordenados a si todos os seus subordinados. 13
Insurge-se, porém, o católico humanista, 14 brandindo agora duas
outras passagens dos Evangelhos que parecem, definitivamente, dar-
lhe toda a razão:
a) “Dai a César”, diz Nosso Senhor mesmo, “o que é de César, e a
Deus o que é de Deus” (Mat. 20, 21);
b) “Meu reino não é deste mundo”, diz o Redentor a Pilatos; “se
meu reino fosse deste mundo, certamente meus ministros se haviam
de esforçar para que eu não fosse entregue aos judeus; mas meu
reino”, insiste, “não é daqui” (Jo. 18, 36).
Ou seja, em seu afã, quer crer o nosso católico humanista que com
essas duas passagens se firmam duas verdades de fulcro liberal:
a) Há dois poderes, um sobrenatural (ou espiritual, representado
pela Igreja) e outro temporal (representado pelos poderes terrenos),
e não há ordenação essencial deste àquele, havendo-a no máximo
acidental ou indireta. Em outras palavras: Deus e César, cada qual em
seu âmbito e cada qual com seu fim. 15
13
Cf. a citação de Aristóteles mais acima.
14
Mas não pode haver “catolicismo” humanista ou liberal senão ao modo de um
câncer.
15
Como afirma Dante em seu De monarchia, e como afirmarão tantos humanistas
não católicos, tantos católicos mais ou menos contaminados de humanismo e libe-
ralismo, e até (sempre contraditoriamente com seus próprios princípios, e por ra-
zões que explica o Padre Calderón em El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II)
destacados católicos antiliberais: no primeiro grupo, por exemplo, Marsílio de Pá-
dua; no segundo, também por exemplo, Francisco de Vitoria, Francisco Suárez,
Charles Journet (como já vimos), Jacques Maritain (idem), Louis Lachance, Étienne
Gilson; no terceiro, ainda por exemplo, o grande Cardeal Billot, o mesmo que re-
nunciou ao cardinalato após a condenação de Maurras e da Action Française por
Roma.
347
ΑΩ
avançou para o Ancião, diante de quem foi conduzido. E este lhe deu
poder, glória e reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram.
Seu domínio é um domínio eterno que não passará, e seu reino jamais
será destruído” (Dan. 7, 13-14). Com efeito, como escreve São
Boaventura, “é enquanto homem que o Salvador foi magnificado aci-
ma de todos os reis da terra por causa da assunção de sua Humani-
dade na unidade de uma pessoa divina”. 17 Em outras palavras, a
união hipostática o coloca acima de toda e qualquer criatura.
Diga-se, ademais, que:
a) É impreciso pôr, pura e simplesmente, que o fim último do
homem seja a beatitude ou visão de Deus por essência. Com efeito, o
fim último em sentido próprio é Deus em si mesmo, e “a beatitude se
diz fim último pelo modo por que a obtenção do fim se diz fim”. 18
Ora, tal imprecisão aparentemente pequena tem grande implicação
na visão “católica” humanista que nos ocupa. É baseados nela que
mesmo os católicos humanistas mais próximos da verdadeira dou-
trina da Igreja esquecem que toda a nossa vida deve servir antes de
tudo à glória de Deus e que nossa mesma salvação é, de algum modo
mas propriamente, consequência desse render glória a Cristo Rei
com toda a alma e coração.
b) O reino de Cristo, assim na terra como no céu, assim nas almas
deste vale de lágrimas como nas almas já em glória ou reunidas fu-
turamente a seu corpo na Jerusalém Celeste, é o reino da Verdade,
como diz o mesmo Nosso Senhor a Pilatos. Ora, embora a falsidade
comporte graus, não assim a verdade; ou é integral, ou simplesmente
não é verdade. Logo, ou a realeza da Verdade será total, ou não o será.
c) Logo, o reino de Cristo de fato não é deste mundo, mas se exerce
sobre este mundo.
17
Serm. I in Dom. IX, 243 a.
18
TOMÁS DE AQUINO, Summa Theol., I-II, q. 3, a. 1, ad 3 (“Ad tertium dicendum
quod beatitudo dicitur ultimus finis, per modum quo adeptio finis dicitur finis”).
349
ΑΩ
19
IV part., cap. II, § 73.
20
Com isso, diga-se de passagem, Cristo resolvia um dilema de Platão, que ansiava
um governo dos filósofos: “Se os filósofos não reinarem nas cidades, ou não vierem
a coincidir a filosofia e o poder político, não haverá trégua para os males das cidades,
nem para os do gênero humano” (A República, 473; cf. PADRE ÁLVARO CALDERÓN,
“El gobierno de los filósofos. La solución cristiana al dilema de Platón”, in A la luz
de un ágape cordial, SS&CC ediciones, Mendoza 2007, p. 101-132). Era o modo
350
ΑΩ
possível de um pagão perceber os grilhões por que estava ligado seu mundo, e que
pelas Escrituras sabemos serem os grilhões do demônio: com efeito, a tal ponto es-
cravizava ele o mundo antigo, que, como diz o mesmo Padre, “pôde oferecer a
Cristo todos os reinos da terra: ‘Omnia tibi dabo’ (Mat. 4, 9)”.
351
ΑΩ
para ele. Então um dos anciãos me disse: Não chores: eis que
o Leão da tribo de Judá [Cristo, rei por descendência carnal], da
estirpe de Davi, venceu de modo que possa abrir o livro, e desatar
seus sete selos. E olhei, e eis que, no meio do trono e dos quatro
animais, e no meio dos anciãos, estava de pé um Cordeiro [Cris-
to, rei por direito de conquista, resgate e redenção mediante sua
própria paixão e morte na cruz], parecendo ter sido imolado, o
qual tinha sete chifres e sete olhos, que são os sete espíritos de
Deus, enviados por toda a terra. E veio, e recebeu o livro da mão
direita do que estava sentado no trono. // E, tendo ele aberto o li-
vro, os quatro animais e os vinte e quatro anciãos prostraram-se
diante do Cordeiro, tendo cada um uma cítara e taças de ouro
cheias de perfumes, que são as orações dos santos; e cantavam um
cântico novo, dizendo: Digno sois, Senhor, de receber o livro, e
de desatar seus selos; porque fostes morto, e nos resgatastes para
Deus com teu sangue, de toda tribo, e língua, e povo, e nação; e
nos fizestes para o nosso Deus reis e sacerdotes [o que com-
prova que o poder temporal e o espiritual, a cidade e a Igreja, são
como dois coprincípios, essencialmente ordenados um ao outro];
e reinaremos sobre a terra [precisamente, como poder temporal e
espiritual enquanto coprincípios]. // E olhei, e ouvi a voz de muitos
anjos em volta do trono, e dos animais, e dos anciãos, e era o
número deles de miríades de miríades, os quais diziam em alta
voz: Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber a virtude [ou
seja, a potestade ou poder], e a divindade, e a sabedoria, e a
fortaleza, e a glória, e a honra, e o louvor. // E a todas as criaturas
que há no céu, e sobre a terra, e debaixo da terra, e as que há no
mar, e a todas as coisas que nestes (lugares) se encontram, ouvi-
as dizer [assim como no Salmo 148 são convocadas a fazer]: Ao
que está sentado no trono e ao Cordeiro, louvor e honra, e glória,
e poder pelos séculos dos séculos. E os quatro animais diziam: A-
mém! E os vinte e quatro anciãos prostraram-se sobre o rosto, e
adoraram aquele que vive pelos séculos dos séculos.
352
ΑΩ
353
ΑΩ
21
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theol., I-II, q. 98-108, especialmente esta última.
354
ΑΩ
22
Quanto aos graus desta iniquidade e quanto a se os cristãos devem, por razões de
prudência, obedecer em foro externo às menos iníquas, cf. TOMÁS DE AQUINO,
Summa Theol., I-II, q. 96, especialmente a. 4.
355
ΑΩ
III
23
Nunca é ocioso lembrar que, como definido pelo Concílio Vaticano I, enquanto
as Escrituras e a Tradição são regula fidei quoad nos remota, o magistério da Igreja
é, enquanto assistido pelo Espírito Santo, regula fidei quoad nos proxima (cf. J.
SALAVERRI SI, Tractatus de Ecclesia, in “Sacrae Theologiae Summa”, BAC, t. I, 1962,
n. 806, p. 754).
356
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357
ΑΩ
1) “[A Igreja tem em seu poder dois gládios (ou espadas)], o glá-
dio espiritual e o gládio temporal. Mas este último deve ser usado pa-
ra a Igreja, enquanto o primeiro deve ser usado pela Igreja. O espi-
ritual deve ser manejado pela mão do sacerdote; o temporal, pela mão
dos reis e dos soldados, mas segundo o império e a tolerância do as-
cerdote. Um gládio deve estar sob o outro gládio, e a autoridade tem-
poral deve ser submissa ao poder espiritual” (BONIFÁCIO VIII, Unam
Sanctam).
2) “Não, a civilização não está por inventar [...]. Ela já existiu, ela
existe: é a civilização cristã, a cidade católica. O que falta é instaurá-
la e restaurá-la sem cessar sobre seus fundamentos naturais e divinos
contra os ataques sempre renascentes da utopia malsã, da revolta e da
impiedade: Omnia instaurare in Christo” (SÃO PIO X, Notre charge
apostolique).
3) “No juízo final, Jesus Cristo acusará os que o expulsaram da
vida pública e, em razão de tal ultraje, aplicará a mais terrível vin-
gança” (PIO XI, Quas Primas).
APÊNDICE I
361
ΑΩ
vitae” (se há um fim último da vida humana). E parece que não. Su-
cede porém que, assim como com relação à série de motores ou de
causas eficientes, “é impossível proceder ao infinito nos fins”. Com
efeito, se assim se procedesse com relação às causas motoras, deixaria
de haver um primeiro motor, e, na ausência deste, os demais motores
não poderiam mover, uma vez que recebem o movimento justamente
do primeiro motor. Similarmente quanto às coisas que se ordenam
umas às outras como a um fim: se se suprimisse a primeira, desapa-
receriam obrigatoriamente todas as demais. Ora, nos fins distin-
guem-se duas ordens: a da intenção e a da execução, e em ambas as
ordens deve haver algo que seja primeiro. “O primeiro na ordem da
intenção é como o princípio que move o apetite”, razão por que, se se
suprime o princípio, ou seja, se se suprime o motor, se imobiliza o
apetite. Por sua vez, é no que é princípio na ordem da execução que
tem começo a operação, razão por que, se se elimina este princípio,
tampouco se pode começar a agir. “O princípio da intenção é o úl-
timo fim; o princípio da execução é a primeira das coisas que se orde-
nam ao fim.” Como se vê, em ambos os casos é impossível proceder
ao infinito, porque, se não houvesse último fim, não se apeteceria
nada nem, por conseguinte, se levaria a efeito ação alguma; e, pelo
mesmo motivo, tampouco a intenção do agente encontraria termo ou
repouso. Insista-se: dessa maneira, não haveria ação alguma nem,
pois, se chegaria a nenhuma resolução – proceder-se-ia assim, preci-
samente, ao infinito. (Note-se, todavia, que se trata aqui das coisas
que se ordenam entre si essencialmente ou per se. As que se conjugam
entre si per accidens comportam, sim, infinitude potencial,
precisamente porque as causas que são per accidens supõem
indeterminação. Por isso, considerada tal indeterminação, pode há-
ver infinitude per accidens não só nas coisas que se ordenam aos fins,
mas nos próprios fins.)
5) Cabe agora, portanto, responder a “utrum unius hominis
possint esse plures ultimi fines” (se de um homem pode haver muitos
fins últimos). E parece que sim, porque, com efeito, é pos-sível a
vontade de um homem querer, simultaneamente, como a úl-timos
362
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363
ΑΩ
25
Para a subordinação dos fins e dos agentes em geral, com o consequente caráter
de meio dos fins intermediários, cf., ainda de TOMÁS DE AQUINO, especialmente In
librum De Causis, lect. 1, n. 41; e PADRE ÁLVARO CALDERÓN, El Reino de Dios en el
Concilio Vaticano II, versão em PDF, p. 18. Para a aplicação desta doutrina à subor-
dinação do poder temporal ao espiritual, cf. TOMÁS DE AQUINO, In II Sententiarum,
dist. 44, q 1, a 3, c. e ad 5; Contra Gent., l. 4, cap. 72, n. 10; De regno, l. 1, cap.
15; Summa Theol., I, q 1, a 4; II-II, q. 60, a 6; e PADRE ÁLVARO C ALDERÓN, El Reino
de Dios en el Concilio Vaticano II, versão em PDF, p. 16-24; & Prometeo – la religión
del hombre, Río Conquista, 2010, p. 164.
364
ΑΩ
considerar o fim último por dois ângulos. Pelo primeiro, quer dizer,
quanto à razão de último fim ou de perfeição, todos os homens neces-
sariamente o apetecem, porque, como vimos, todos apetecem sua
própria perfeição. Mas pelo segundo, quer dizer, quanto àquilo em
que se encontra tal razão de fim último ou de perfeição, divergem os
homens. Sim, porque uns apetecem, como a fim último ou bem per-
feito, a fama; outros, o poder político; outros, as riquezas; outros, ain-
da, os prazeres da carne ou da mesa; etc.; assim como a música é agra-
dável a todos, mas uns preferem a música de um compositor, outros
a de outro, etc. Deve dizer-se, porém, que a música melhor ou efe-
tivamente mais agradável é a que satisfaz o gosto da pessoa que mais
refinadamente saiba apreciar a música. Logo, o bem mais perfeito e
desejado enquanto fim último será aquele apetecido por quem tiver
o afeto mais bem ordenado ou disposto.
8) Visto todo o anterior, pergunte-se por fim “utrum in illo
ultimo fine aliae creaturae conveniant” (se as demais criaturas con-
vêm neste último fim). E parece que sim. Sucede, porém, que tam-
bém se pode falar do fim segundo se trate da própria coisa em que se
encontra a razão de bem (finis cuius, ou fim simpliciter) ou de seu uso
ou fruição (finis quo, ou fim secundum quid). Assim, o fim de quem
tem ambição política é, pelo ângulo da própria coisa apetecida, o
poder; mas, pelo outro ângulo, é sua posse ou usufruto. Ora, se se
trata do fim último do homem enquanto é a coisa mesma que é fim,
então todas as demais criaturas convêm nele: porque, com efeito, é
Deus mesmo o fim último não só do homem, mas de todos os entes,
visíveis como invisíveis. Se todavia se trata do último fim do homem
enquanto consecução ou fruição deste fim, então é patente que as
criaturas destituídas de razão não têm em comum com o homem o
fim último deste, porque o homem, como as outras criaturas intelec-
tuais, atinge seu último fim inteligindo e amando este mesmo fim úl-
timo, que é Deus, enquanto as criaturas destituídas de razão não o
podem inteligir nem amar. E isso é assim porque os entes destituídos
de razão não atingem o fim último do universo senão por partici-
pação de alguma semelhança de seu Criador: seja porque são, porque
365
ΑΩ
26
Note-se porém que para nós, nesta vida, a necessária identidade entre Deus e o
fim último do homem – ou seja, a felicidade ou beatitude – não é evidente, ou seja,
o homem não a reconhece necessariamente, ao contrário do que se dá, por exemplo,
com que o todo seja maior que a parte ou com qualquer conclusão demonstrada: o
reconhecimento destes pelo intelecto é de caráter necessitante. Com efeito, diz o
Aquinate: “Há bens particulares que não têm vinculação necessária com a beatitude,
porque se pode ser beato [bem-aventurado] sem eles. A tais bens a vontade não
adere necessariamente. Mas há outros bens que têm vinculação necessária com a
beatitude, ou seja, aqueles pelos quais o homem adere a Deus, o único em que se
encontra a verdadeira beatitude. Antes porém que a necessidade dessa vinculação
seja demonstrada pela certeza da visão da divindade [a visão beatífica], a vontade
não adere necessariamente a Deus nem às coisas que são de Deus. Mas a vontade de
quem vê a Deus em sua essência adere necessariamente a Deus, assim como agora
queremos necessariamente ser felizes. É patente, portanto, que a vontade não quer
necessariamente tudo o que ela quer” (Summa Theol., I, q. 82, a. 2). Para que nesta
vida se reconheça a identidade entre Deus e a felicidade do homem, é preciso, antes
de tudo, conhecer que Deus é, e, ademais, alcançar tal identidade (o que, afinal, de-
pende da própria revelação divina e da moção da graça); ora, nem que Deus seja
nem o revelado por Deus são evidentes; logo, nesta vida, nunca tal identidade se
dará necessariamente. Cf. ainda para o tema, TOMÁS DE AQUINO, De veritate, X, 12,
especialmente ad 5; XXII, 7; Contra Gent., I, I, 6 e 11; Summa Theol., I, q. 2, a. 1, ad
1; I, q. 82, a. 1-2; etc.
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APÊNDICE II
367
NOTÍCIA HISTÓRIA DA
DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
II
1
Pio XII, “Discurso ao Congresso da Ação Católica Italiana de 29 de abril de 1945”.
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2
Cf. PADRE ÁLVARO CALDERÓN, El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II (obra
não publicada), p. 68-71 do PDF.
375
A PÓLIS EM ORDEM A DEUS *
1
Cf. especialmente TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I-II, questão 1 (De ultimo
fine hominis, Do fim último do homem).
378
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2
Cf. para estas analogias PADRE ÁLVARO CALDERÓN, El Reino de Dios en el Concilio
Vaticano II (versão em PDF), p. 16-24; SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theol.,
II-II, q. 60, a. 6; In II Sententiarum, dist. 44, q. 1, a. 3, c. e ad 5; Contra Gent., l. 4,
cap. 72, n. 10; et alii loci; e “Da Realeza de Cristo” e “Corte e Costura Humanista”,
de nosso Do Papa Herético e outros opúsculos.
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II
III
IV
APÊNDICE
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383
O QUE É A IDEOLOGIA *
*
Opúsculo publicado pela primeira vez em nosso Estudos Tomistas – Opúsculos [I]
e incluído neste volume com aperfeiçoamentos.
1
Por isso mesmo é que o artista pode ensinar sua arte, enquanto o que opera ou
trabalha só por experiência ou costume não o pode fazer.
2
A espécie humana, por seu lado, é dotada de muito poucos instintos (como o da
sucção do seio materno no bebê ou o da proteção da cabeça antes que do restante
do corpo), e sua estimativa diz-se propriamente cogitativa ou razão particular, por-
que, ao contrário, obviamente, do que se dá com a estimativa dos brutos, se ordena
à razão superior e de algum modo se rege por ela. Com efeito, ainda quando faz algo
ΑΩ
II
– Ademais, o mesmo intelecto humano que alcança a ciência é falível. Mas Deus não
é falível; não se engana, nem pode enganar-nos. Por isso mesmo é que a fé, ao con-
trário da ciência humana, é certíssima, absolute certa.
6
Cf. sua História das Ideias Políticas. – A doutrina ou simbólica do neokantiano
Voegelin é incompatível com a fé e com a razão. Mas não trataremos aqui tal incom-
patibilidade, porque o que aqui nos importa é sua contribuição para a inteligência
das ideologias.
387
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III
388
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IV
7
Quanto à origem, cingir-nos-emos às conclusões de Voegelin; quanto ao mais,
muito será de nossa parte.
389
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8
Levou também à revolução liberal-conservadora e industrial inglesa. Trata-se, de
modo geral, da vitória do espírito burguês, que porém não podemos estudar no
âmbito estreito deste opúsculo. Fique, se Deus quiser, para nosso futuro Da História
e Sua Ordem a Deus.
9
No entanto, o resultado geral do liberalismo revolucionário é a hipertrofia iníqua
do estado, de modo que a democracia passa a ser outro nome da pior das tiranias: a
que esmaga os corpos intermediários da sociedade, e em especial a família, e trans-
forma os cidadãos em massa sua. – Diga-se, ademais, que o próprio absolutismo
monárquico, fundado na doutrina (de origem dantesca) dos dois fins últimos do
homem e na recusa dos reis à perfeita submissão espiritual à Igreja, já se encontra
na fronteira da ideologia, ainda que não a transponha. Não consideramos monár-
quico absolutista, no entanto, o império de Carlos V e de Felipe II, o que se aprofun-
dará no referido Da História e Sua Ordem a Deus.
10
Diga-se, ademais, que algo das religiões políticas já estava presente, por exemplo,
na divinização do imperador romano. Mas trata-se de fronteira algo turva entre
falsa religião e religião política, razão por que carece de precisão o conceito de
“ideologia imperial”, hoje em voga.
390
ΑΩ
11
Entre os quais a rebelião da carne contra as exigências da santidade, o espírito
burguês e sua avareza, o fim progressivo da ordenação do poder civil ao eclesiástico,
a substituição progressiva da cultura cristã por uma renascida cultura pagã, etc. –
Mas, como veremos ao final deste opúsculo, houve três Cristandades: a imperial-
romana, a medieval e a do império hispânico.
391
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12
Quando se trate de âmbito mais largo, tal resposta há de ser muito mais que
tríplice.
13
Obviamente, se agora dizemos “pretende-se” em vez de “é”, fazemo-lo tão só a
modo dialético.
14
E o mais “curioso” nas ideologias, conquanto de todo coerente com elas, é que
consideram seus fracassos práticos não como fracassos seus, mas sempre de uma
incompleta ou deficiente aplicação de seus princípios. Assim, o fracasso do
comunismo é fracasso do “socialismo real”; o do liberalismo econômico, o do sem-
pre incompleto cumprimento dos ditames liberais; etc. Daí se vê que as ideologias
são, ademais, idealistas. Mas, vertido no campo do prático, o idealismo é sempre
quimérico, no duplo sentido da palavra: o de impossível e o de monstruoso. – Como
em resposta à principal falácia do liberalismo econômico, ou seja, que o mercado
livre suprime por si os conflitos humanos, Lawrence H. Keeley mostra muito
convincentemente que “em vários graus [...] muitas sociedades tendem a [...] atacar
os povos com os quais comercializam, e a comercializar com seus inimigos. Ao
contrário das suposições habituais, a troca entre sociedades fornece um contexto fa-
vorável ao conflito e está intimamente associada a ele” (A Guerra Antes da Civi-
lização – O Mito do Bom Selvagem, trad. Fabio Faria, São Paulo, É Realizações, 2011,
392
ΑΩ
p. 262; desta obra sugestiva conquanto não raro falha, vide especialmente, com
respeito a este ponto, todo o capítulo “Um brado devastador”, p. 252-262).
15
E é o que quereria o Platão do Fédon (85 c-d): “Acerca destes temas é preciso
conseguir uma das seguintes coisas: ou aprender com outro como eles são, ou des-
cobri-los por contra própria, ou, se isto for impossível, tomando dentre as expli-
cações humanas a melhor e mais difícil de refutar, deixar-se levar nela como numa
balsa para sulcar a existência, já que não podemos fazer a travessia de maneira mais
estável e menos arriscada num veículo mais seguro, ou seja, uma revelação divina”.
16
Até porque, segundo o niilismo, o homem seria o único animal cujo apetite
principal (o de eternidade) seria vão. Com efeito, todos os outros animais só ape-
tecem o que sua natureza pode alcançar de algum modo e suposta a ausência de
qualquer impedimento acidental.
17
Disse-se acima “por falta de fé”, porque, com efeito, sem a fé não se pode ter
conhecimento do fim glorioso a que Deus destinou o homem. Mas haveria que dizer
ainda, preambularmente: “por falta de ciência”. Com efeito, Aristóteles demons-
trou, do ângulo da pura razão (ou seja, sem contar com a revelação), que o fim do
homem é a vida contemplativa (bíos theōrētikós), ou seja, a contemplação antes de
Deus, com o que imita de algum modo, em sua própria vida, a vida divina. – Mas o
393
ΑΩ
c. Por fim, por todo o dito até aqui, a ideologia não pode aplicar-
se senão mediante alguma revolução, ou seja, mediante uma radical
solução de continuidade. Pode ser uma revolução nos costumes, nas
artes, ou na ciência (como se antes nenhum filósofo tivesse dito ver-
dade central alguma), ou uma verdadeira carnificina sob sua bandeira
ou sob o estado que a encarne (como se fora uma reificação sangui-
nária mas necessária do espírito absoluto). Mas a religião – e falamos
agora exclusivamente da verdadeira, o catolicismo – não prega ne-
nhuma revolução, nem nunca aplicou nenhuma. 18 Batiza todo o ba-
tizável, mas conservando-o o mais possível; e isso é assim porque,
como diz Santo Tomás, a graça não destrói a natureza, senão que vem
perfazê-la ou aperfeiçoá-la. Batiza, repita-se, quando e enquanto
batizáveis, as artes e os costumes, razão por que pode assumir os o-
lhos amendoados no Oriente e a pele negra na África. E batiza, ainda
quando e enquanto batizáveis, os próprios regimes políticos. Para os
doutores católicos e para o magistério da Igreja, qualquer regime é
bom desde que não corrompido (ou seja, desde que não vise a atender
a apenas uma parte da sociedade): a monarquia, a aristocracia, a
politia ou democracia sem democratismo, 19 ou ainda o regime misto
propugnado por Santo Tomás de Aquino, isto é, uma mescla de
monarquia, de aristocracia e de democracia; mas não assim, insista-
se, sua corrupção, a saber: a tirania, a oligarquia e a democracia de-
mocratista. E estejamos certos de que, se se volta a cristianizar – o que
chamado “socialismo científico” nega-o. Também por isso, portanto, não é cien-
tífico.
18
Além de preferir padecer o mal, o que nos traz a palma da vitória, a fazer o mal –
como aliás já propugnavam de certa maneira Sócrates e Platão.
19
Ou seja, sem liberalismo. “A democracia [liberal]”, dizia São Pio X, “é uma religião
mais universal que a Igreja [...]. Resulta do grande movimento de apostasia
organizado em todos os países para o estabelecimento de uma Igreja Universal que
não terá dogmas, nem hierarquia, nem regra para o espírito, nem freio para as pai-
xões” (Notre charge apostolique). – Aliás, até um “liberal conservador” como Roger
Scruton, talvez um pouco por discípulo de Edmund Burke (1729-1797), admite a
democracia sem sufrágio universal.
394
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20
Cf. CARLOS NOUGUÉ, artigo 3 de “Se Se Deve Rezar pela Salvação do Mundo”, in
Do Papa Herético e outros opúsculos, 2.ª ed., Formosa, Edições Santo Tomás, 2019,
p. 360-367.
395
FÁTIMA E A RÚSSIA DE PUTIN, OU QUANDO
SE FAZ IMPERIOSO UM “PARECE”*
399
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1
Para nossa visão acerca deste tempo prévio à Parusia, cf. CARLOS NOUGUÉ, artigo
3 de “Se Se Deve Rezar pela Salvação do Mundo”, in Do Papa Herético e outros
escritos, 2.ª ed., Formosa, Edições Santo Tomás, p. 360-367.
400
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401
DIFERENÇAS ENTRE A REVOLUÇÃO MARXISTA
E A REVOLUÇÃO MARCUSIANA*
404
ΑΩ
pois da revolução) 2 já não tem nada que perder senão suas próprias
cadeias, suas próprias correntes, seus próprios grilhões, ele se torna o
agente de um misterioso, digo eu, impulso da história para sua
enteléquia, para seu fim ou forma final. O fim de Marx é o comu-
nismo. E o que é o comunismo marxista? É pouco mais ou menos o
paraíso terrestre de Adão e Eva posto imanentemente como fim da
história. Divide-se a história, para Marx, em comunismo ou socie-
dade sem classes primitiva; depois, em longa sociedade de classes cujo
ápice é a sociedade burguesa capitalista, que será destruída por uma
revolução violenta e internacional dirigida pelo proletariado indus-
trial avançado da Europa, revolução que aniquilará sangrentamente
não só as classes reacionárias, a burguesia industrial, os grandes terra-
tenentes, etc., mas também quanto haja de religião. A violência é a
parteira da história, ruge. Alcançado porém o poder pelo prole-
tariado, ter-se-á, então, uma fase de transição para o comunismo
final, para o final da história, comunismo onde cada um dará segun-
do sua possibilidade ou capacidade e receberá segundo sua ne-
cessidade.
Há pois uma fase intermediária, chamada socialismo, outro nome
da sanguinária ditadura do proletariado, que desenvolverá a tal ponto
as forças produtivas que, depois dessa mesma ditadura sanguinária,
ela, o estado, ruirá por si! Será então o Éden renascido! Pois bem,
quem levou isto a efeito foram Lenin, Trotsky e Stalin, os quais, ainda
que com diferenças entre si, eram igualmente sanguinários (mataram
milhões, dezenas de milhões de pessoas na antiga União Soviética) e
instauraram a coletivização dos meios de produção, como propunha
Marx. Só com a coletivização dos meios de produção sob a ditadura
do proletariado, classe revolucionária fadada a desaparecer com o
próprio desaparecimento do estado, é que se faria possível aquele
desenvolvimento econômico conducente ao comunismo final. O
lema de Marx, repita-se: “a cada um segundo sua necessidade; de cada
2
O lumpesinato, segundo o mesmo Marx, é o conjunto das camadas populares
marginais, não pertencentes ao proletariado industrial.
405
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ele, já não era a igualdade econômica como sonhada por Marx. Em-
bora ele insistisse na profunda desigualdade econômica que havia
entre o primeiro e o terceiro mundo, não o incomodava parti-
cularmente ou grandemente a desigualdade econômica entre o pro-
letariado norte-americano e a burguesia norte-americana. Ele dizia
que tanto um como o outro eram ou estavam alienados, razão por
que voltaria ao primeiro Marx e, sobretudo, a Freud para constituir
seu programa revolucionário (e daí seus livros mais importantes, O
Homem Unidimensional e Eros e Civilização). Para ele, era preciso
chegar a certo comunismo ou socialismo impreciso... É que Marcuse
não era preciso como Marx. Marx tinha o gênio da precisão (dentro
de sua vacuidade, é claro), mas não assim Marcuse.
Mas também propunha Marcuse uma revolução violenta? Sim.
Ele apoiou os Panteras Negras nos Estados Unidos, por exemplo, e as
manifestações mais radicais dos estudantes em todo o mundo. Mas,
ao contrário do proletariado de Marx, que tinha certa identidade, cer-
ta feição, o povo tão variegado de Marcuse não tem identidade preci-
sa, não tem face própria. São os marginalizados em geral, aqueles cuja
alienação não é possível superar no mundo burguês, no mundo
capitalista, nem no mesmo mundo comuno-marxista. Nesses mun-
dos não é possível alcançar as mais importantes igualdades: a de sexo,
a de raça... E para que prisões? Começa com ele tudo isso que estamos
vendo e vivendo desde especialmente a revolução de maio de 68 na
França, revolução que se estendeu por boa parte dos demais países
europeus, que se estendeu pelos EUA, que se estendeu pelo México.
E não há dúvida de que Marcuse pretendia instaurar uma ditadura
desses setores marginalizados, em lugar da ditadura do proletariado.
Era seu lema: “tolerância para tudo e todos, menos para os que são
contra nós”.
No entanto, Marcuse morreu em 1979, e desde então o que fez o
marcusianismo? O marcusianismo notou que a democracia liberal é
o mais perfeito terreno para a consolidação de sua revolução. Após
penetrar profundamente as universidades da maior parte do mundo,
407
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408
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3
Ao contrário do que quer fazer crer nossa direita liberal “conservadora”, não foi
grande a influência de Gramsci. Gramsci tinha, sim, algo parecido com a Escola de
Frankfurt e com Marcuse, mas, além de ter tido uma vida mais curta que Marcuse,
não teve o peso histórico que teve este. Ademais, o fim do gramscismo era essen-
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cialmente o mesmo de Marx, de Lenin, de Stalin, o qual, como visto, não era o da
Escola de Frankfurt – nem, muito menos, o de Marcuse.
410
GOVERNO MUNDIAL, PANDEMIA, GOVERNO BOLSONARO –
OS CAMPOS OPOSTOS DO CATOLICISMO TRADICIONAL
E DO CATOLICISMO LIBERAL-CONSERVADOR *
*
Este opúsculo e seus apêndices foram escritos em abril de 2020.
1
Escrevemos “estado” com minúscula porque, conquanto tenhamos plena ciência
de sua necessidade, não o idolatramos. Foi com Maquiavel e demais revolucionários
do outono da Idade Média que se passou a grafar “il Stato”, como que para rivalizá-
lo com a Igreja.
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gal, etc. Mas eram efetivamente seus últimos fulgores, além de que a
II Guerra Mundial mostrou todas as sanguinolentas fauces de um
mundo sem Deus. Nunca houvera tal morticínio de inocentes; nunca
uma guerra se dera tão grandemente fora de um campo de batalha:
agora os alvos eram diretamente as cidades e os civis, coisa que
chegaria até a bestialidade norte-americana do bombardeio destruí-
dor de Dresde (onde só havia velhos, crianças e doentes, incluindo
soldados americanos) e das bombas atômicas sobre Hiroshima e
Nagasaki (as duas cidades japonesas mais católicas...).
9) Diante da bestialidade geral dos beligerantes, e com o surgi-
mento das Nações Unidas, ganha força a ideia de um novo governo
mundial. Mas não brinquemos de história e de religião: um governo
mundial num mundo apóstata não só terá os mesmos problemas dos
anteriores impérios, mas será o palco próprio do Anticristo, o ho-
mem de iniquidade que, como diz Santo Tomás no referido Comen-
tário, estará para Cristo assim como Cristo esteve para Adão, mas
com sinal invertido. Com efeito, Cristo veio redimir Adão, enquanto
o Anticristo virá para matar a Cristo. Mas já sabemos o desfecho da
história: durará pouco tempo o império do Anticristo (o “pacifi-
cador”, diz-se no Apocalipse), converter-se-ão os judeus ao ver a
vitória da doutrina de Cristo, haverá um reflorescimento da fé, e
provavelmente pouco depois Cristo voltará a segunda vez para, em
majestade, ressuscitar os mortos, julgar os vivos e os mortos, criar
novos céus e novas terras e constituir a definitiva Jerusalém Celeste,
a pátria onde os eleitos de Deus terão a beatitude eterna de conhecê-
lo ou vê-lo (intelectualmente) por essência.
10) Hoje, com a pandemia de coronavírus, parece que se inten-
sifica a tendência a um governo global, que certamente contará com
as maiores potestades atuais do mundo: o estranho comunismo-ca-
pitalismo da China, o marcusianismo da Europa e o liberalismo nor-
te-americano. Mas atenção: não temos nem podemos ter a menor i-
deia de quando ele se formará, ou seja, quando advirá o Anticristo
como rei do mundo. Isto, ou seja, a data disto, é algo que Deus
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APÊNDICE I
APÊNDICE II
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APÊNDICE III
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Carlos Nougué
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APÊNDICE IV
A REVOLUÇÃO OLAVO-BOLSONARISTA
431
UMA PROPOSTA LANÇADA EM SOLO ESTÉRIL
***
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Carlos Nougué
INTRODUÇÃO
434
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I – A CONSTITUIÇÃO
1) Como preâmbulo de nossa Constituição, hão de estar os Dez
Mandamentos e a tripla virtude teologal da Fé, da Esperança e da
Caridade, além da afirmação peremptória de que nosso país se põe
sob Cristo Rei e sua Mãe, Nossa Senhora de Aparecida.
2) Nossa Constituição deve ser o mais simples possível, fundada
em seu preâmbulo e despida de emendas e subemendas que – como
se dá, com efeito, com a atual – não só muitas vezes se contradizem,
mas a tornam em conjunto impraticável.
OBSERVAÇÃO: vê-se já por aí a necessidade de que a maioria do
povo adira a este programa. Sem isso, faz-se impossível qualquer um-
dança constitucional mais profunda.
II – EDUCAÇÃO
1) A educação cristã deve ser global: filosófica ou científica, his-
tórica, artística, moral e religiosa.
a) Deve-se ensinar a grande tradição filosófica e teológica clássica
a alunos já desde os 14 anos, com complexificação gradativa.
b) Devem-se ensinar as chamadas ciências modernas pelo prisma
dos princípios dessa tradição.
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IV – NO ÂMBITO SOCIAL
1) A Santa Missa deve ser considerada o ato social culminante.
2) Um governo cristão deve, ademais, apoiar e favorecer todas as
festas e ritos católicos (como as procissões de Corpus Christi, etc.),
além de assegurar que todos os dias da Semana Santa sejam de festa,
etc.
3) Um governo cristão deve estimular o cuidado das crianças, dos
velhos e dos doentes, a cortesia social, o cavalheirismo masculino, a
delicadeza feminina, e até o bom trato dos animais (incluindo uma
morte o menos indolor possível para os de abate) – sem cair,
naturalmente, no exagero de uma legislação que privilegie antes aos
animais que aos homens ou que lhes dê direitos (o animal não pode
ser sujeito de direitos).
4) Deve-se proibir toda e qualquer forma de aborto, com penas
severas para os médicos que o praticarem.
OBSERVAÇÃO: deve-se proibir também a bárbara eutanásia. Não
se confunda porém a eutanásia com a ortotanásia (ou seja, o deixar
que a natureza aja). Como dizia Santo Afonso Maria de Ligório, o
cristão, se está devidamente sacramentado, não deve levar a vida ter-
restre além de certo limite, porque aspira principalmente à vida ce-
leste.
5) Deve-se estimular, mediante isenção progressiva de impostos,
que as famílias tenham filhos numerosos e que as mães possam cui-
dar deles e de sua educação. Diga-se, aliás, que a família numerosa
sempre foi um dos galardões da Cristandade.
6) Um governo cristão deve ajudar as famílias carentes de meios
para sustentar seus filhos.
7) Um governo cristão deve empenhar-se em suprimir a lei do
divórcio. Tanto o matrimônio sacramental como o natural (ou seja,
o não cristão, mas feito com a promessa a Deus ou a alguma divin-
dade de perpetuidade e de procriação) são indissolúveis, em ordem
principalmente à educação e cuidado da prole. O matrimônio civil,
441
ΑΩ
em si, não tem validade diante de Deus; tem validade apenas social.
Mas não há divórcio civil sem a correlata dissolubilidade do casamen-
to sacramental ou natural. A conclusão impõe-se.
8) Deve-se educar o povo, e especialmente a juventude, contra o
sexo livre, fora do matrimônio, e contra o uso de contraceptivos, que
impedem o fim último do ato sexual: a procriação.
9) Devem-se ressaltar e estimular os vínculos com nossa ascen-
dência lusitana, o que se consegue também com um ensino de histó-
ria nacional não revolucionário.
10) Deve-se coibir toda e qualquer forma de pornografia, mos-
trando paralelamente à população os males psicossomáticos que ad-
vêm dela.
11) Um governo cristão deve fazer valer a censura etária: com
efeito, por exemplo, um filme que pode ser bom para um adulto pode
não sê-lo para uma criança ou para um adolescente. Para tal, deve
instituir um órgão censor composto por autoridades jurídico-religio-
sas altamente virtuosas e ponderadas.
12) Deve-se proibir toda seita satânica.
13) Devem-se combater duramente, ainda que diferenciadamen-
te, o tráfico e o consumo de drogas.
14) Deve-se buscar extirpar o crime com uma legislação o mais
dura possível.
15) A saúde não deve ser vista como uma questão econômica, mas
como uma questão social. Deve-se estimular, portanto, que os planos
de saúde sejam acessíveis, em princípio, a toda a população, o que
não é possível senão com uma diminuição dos tributos que pesam
sobre eles – desde que, naturalmente, haja da parte dos planos a
contrapartida de preços acessíveis e de oferta de bom atendimento
médico-hospitalar. Isso a par, subsidiariamente, da melhoria e manu-
tenção do sistema público de saúde para os que, enfim, não puderem
ter plano de saúde.
442
ΑΩ
V – QUANTO À URBANIZAÇÃO
1) Deve-se estimular a progressiva descentralização das metró-
poles, esses monstrengos inabitáveis, violentos, opressivos, e privile-
giar a constituição de cidades de médio ou de pequeno porte. No
Brasil há espaço mais que suficiente para tal.
2) Essas médias e pequenas cidades devem obedecer a planos
urbanísticos mais precisos, com proibição de construção de arranha-
céus e com a máxima arborização possível.
3) A construção de novas cidades deve também evitar graves
desequilíbrios ecológicos, de modo que se impeça sejam seus ha-
bitantes as primeiras vítimas deles.
4) Deve-se evitar a arquitetura modernista – essa fabricadora de
disformidades de cimento e vidro – e desenvolver uma arquitetura
inspirada em nossa bela tradição colonial, ainda que adaptada às
necessidades e às condições atuais.
5) As médias e as pequenas indústrias são de relativamente fácil
adaptação às médias e às pequenas cidades. Mas as grandes indústrias
devem estar suficientemente distantes dessas cidades, a fim de que
seus habitantes não sofram seus possíveis efeitos poluentes, etc.
6) Estas médias e pequenas cidades devem constituir-se de modo
harmônico com o campo e sua produção, se for o caso.
443
ΑΩ
VI – NO ÂMBITO POLÍTICO-DIPLOMÁTICO-MILITAR
1) O Brasil cristão deve estreitar relações diplomáticas antes com
países que se declarem cristãos.
2) Quanto ao mais, porém, as relações diplomáticas não devem
fundar-se em nenhuma preferência ideológica, até porque o cristão
não tem (ou não deveria ter) ideologia, que é sempre algo de algum
modo revolucionário. Mas toda e qualquer relação diplomática deve
ter um suposto: que permaneçam intactos nossos interesses.
3) Havemos todavia de evitar compromissos com regimes tirâni-
cos ou que persigam a Igreja e a fé de qualquer modo.
4) O mesmo vale, analogamente, para os tratados comerciais e,
em geral, para a política de comércio exterior.
5) Um governo cristão deve prestigiar, apoiar e fortalecer as for-
ças militares e policiais nacionais, de modo que defendam o país se
necessário e combatam com a dureza precisa o crime e as drogas.
Deve também, todavia, fazê-las ver que, se têm a “espada”, a têm
como representantes de Deus, para a vindita do mal, mas sempre com
a caridade possível. Deve enfim incutir-lhes o lema do cavaleiro me-
dieval: estão aí, antes de tudo, para a defesa da viúva, do órfão e do
necessitado.
6) Deve-se coibir todo programa partidário ou toda ação que te-
nham caráter revolucionário, ou seja, que estimulem a luta de classes
ou proponham, sob qualquer ideologia iníqua, a derrubada violenta
do governo, ou que apresentem propostas que vão frontalmente
contra a lei natural (como, por exemplo, a ideologia de gênero, o
aborto, a liberação das drogas, etc.).
444
ΑΩ
446
ΑΩ
CONCLUSÃO
Não é difícil ver que, para que este programa e um governo cristão
sejam viáveis, é necessário um longo trabalho prévio de convenci-
mento dos próprios católicos e da população em geral. E quem me-
lhor hoje em dia para isso que os centros e institutos da Liga Cristo
Rei? Mãos à obra, portanto, que a messe é grande e os obreiros são
poucos.
Mas ainda há espaço para a pergunta de sempre: será tudo isso de
fato viável? Não o podemos saber com certeza. Parece difícil. Mas não
foi pela reza do rosário que Nossa Senhora intercedeu pela vitória da
minoritária armada papal contra a majoritária armada turca na
batalha de Lepanto? Ainda porém que a armada papal não tivesse
vencido, certamente São Pio V teria clamado: Seja feita a Vossa von-
tade assim na terra como no céu. Ademais, a nós, os cristãos que com-
batermos até o fim da carreira com esperança contra a esperança
mesma, nos está reservada a coroa da justiça.
Viva Cristo Rei!
Viva Nossa Senhora de Aparecida!
447
TEOLOGIA SAGRADA
A LUTA DE SÃO BERNARDO DE CLARAVAL
PELA INTEGRIDADE DA FÉ *
4
Eram fariseus os propugnadores do particularismo judeu (cf. At 15, 5).
5
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I-II, q. 107, a. 2, c. Como o mostra
Santo Tomás de Aquino, a Antiga Lei mosaica contém os preceitos da lei natural,
aos quais, todavia, agrega outros, particulares. Quanto aos primeiros, todos os
homens são obrigados a observá-los, porque a lei natural é uma participação da ra-
zão humana na lei eterna, apreensível pela sindérese (ou seja, o hábito inato dos pri-
meiros princípios do intelecto prático). Há, portanto, uma como conaturalidade
entre a inteligência humana e estes primeiros princípios universalíssimos, razão por
que sua não observância implica pecado, enquanto defrauda a natureza e infringe
as leis que regem a vida humana. A Nova Lei ou lei evangélica, por sua vez, infun-
dida sobrenaturalmente por Deus mesmo, se não revoga nenhum preceito da lei
natural constante da lei antiga, eleva-os porém a uma instância muito superior, ra-
zão por que se diz que é seu complemento – e cumprimento perfeito.
452
ΑΩ
453
ΑΩ
6
SANTO TOMÁS DE AQUINO, ibidem, II-II, q. 11, a. 1, c.
7
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, ibidem, I, q. 32, a. 4.
8
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, ibidem, II-II, q. 11, a. 2, c. Cf. também PAPA LEÃO
MAGNO, Epist. 129, ad Proterium; e GRACIANO, Decretum, P. II, causa 24, q. 3, can.
29.
9
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II-II, q. 11, a. 3, c.
454
ΑΩ
***
10
Na Epístola a Tito 3, 10. Cf. também SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica,
II-II, q. 11, a. 4; SÃO JERÔNIMO, In Gal., I, III, super 5, 9 (ML 26, 403 B); e GRACIANO,
Decretum, P. II, causa 24, q. 3, can. 16.
11
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II-II, q. 11, a. 4, c.
12
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, idem; Eclesiastes 8, 11; Liber Decretal. Gregor IX, l.
5, tit. 7, c. 9: Ad Abolendam; SÃO JERÔNIMO, Glossa Ordin. super Matth., 18, 15 (ML
114, 146 D).
455
ΑΩ
13
Em face das diferenças entre Platão e Aristóteles quanto ao entendimento do
universal, o neoplatônico Porfírio (232-304), em sua Isagoge, e Boécio (480-524),
seu tradutor, como que legaram à Escolástica medieval a chamada “querela dos
universais”. Mas legar não quer dizer dar nascimento, e, com efeito, tal querela
resulta do arduíssimo problema fundamental da ciência: o caráter mesmo dos
universais. Para Roscelin de Compiègne (1050-1125), mestre de Abelardo e, ao que
parece, o precursor do nominalismo, o universal é mero nome, flatus vocis. Guilher-
me de Champeaux (1070-1121), por seu lado, defende de início que o universal tem
realidade substancial e se encontra nos indivíduos, os quais se multiplicariam e
difeririam entre si pelos acidentes; mas, criticado quanto a vários pontos por Abe-
lardo, Champeaux muda sua primeira doutrina para o que ficou conhecido como
teoria da indiferença: o universal seria algo indiferentemente idêntico nos indiví-
duos, mas não em razão da essência, ou seja, as coisas seriam singulares naquilo em
que se distinguem, e universais naquilo em que não se distinguem. Joscelin de
Soissons (?-1152), aluno de Champeaux, cria em seu tratado De generibus et
speciebus a chamada doutrina da reunião, segundo a qual o universal é o conjunto
de coisas singulares, e a espécie um conjunto de indivíduos da mesma natureza. Mas
o mesmo Abelardo retorna de algum modo a Jean Roscelin e sustenta que o
universal não é algo na realidade, mas uma categoria lógico-gramatical de palavras
que podem predicar-se de vários sujeitos. Tal predicação, contudo, insista-se, seria
possível não em razão da realidade dos universais — pois que para ele só os sin-
gulares existem —, mas tão somente em razão do sermo, a palavra com significado
sobre o qual se funda a predicação: é a solução chamada verbalista, essencialmente
nominalista. Depois da morte de Santo Tomás, Duns Scot (1265-1308), que, diga-
se, carecia do recurso à analogia, concebe o universal como natureza comum inde-
terminada: algo é individual graças a uma série de formalidades (haecceitas) super-
postas, ao modo de estratos metafísicos (substância, corpo vivente, animal racional,
etc.) presentes em cada ente: trata-se da negação da unidade da forma substancial,
uma das mais importantes conquistas do aristotelismo. Guilherme de Ockham
(1285-1347), perguntando-se se entre Deus e as criaturas há alguma realidade
universalmente predicável, acaba por concluir que o universal é mera ficção, um
nome com certo significado, com o que retorna de algum modo não só a Roscelin
de Compiègne, mas ao mesmo Abelardo. Mas o problema já encontrara solução em
Aristóteles e em Santo Tomás de Aquino (1225-1274): trata-se do realismo,
alcançado pelo Estagirita – e aperfeiçoado pelo Doutor Comum graças antes de tudo
à sua distinção entre essência e esse. Mas o realismo tomista é conhecido, entre
456
ΑΩ
grande parte dos mesmos tomistas, como “realismo mitigado”, o que, como o mos-
tra o Padre Álvaro Calderón (em Umbrales de la Filosofía – Cuatro Introducciones
Tomistas, Mendoza, edição do autor, 2012, p. 109, nota 2), é equivocado: “Chegou
a ser ‘doutrina comum’ entre os melhores historiadores da filosofia o apresentar a
solução verdadeira (aristotélico-tomista) da recorrente controvérsia dos universais
como uma solução média entre os dois extremos ‘realista’ e ‘nominalista’. Como
todavia a posição tomista é também realista, distinguem-na como realismo miti-
gado do realismo exagerado [o de um, por exemplo, Santo Anselmo, o qual implica
de algum modo um retorno ao platonismo]. Thonnard, por exemplo (que nos
parece um excelente autor), distingue quatro soluções: realismo, nominalismo,
conceptualismo e, a verdadeira, ‘conceptualismo moderado ou realismo mitigado’
[...], sublinhando assim com mais força seu caráter de posição média. No entanto,
tal apresentação do problema cada vez mais nos parece equivocada. A posição to-
mista não é intermédia, mas realista. Mas com realismo devidamente justificado. É
necessário defender o evidente realismo das essências universais, objeto da inte-
ligência e sujeito das ciências. Não basta dizer que as essências são universais em
Deus, individuais nas coisas e novamente universais na inteligência por abstração.
Há algo uno e comum também nas coisas, pois a natureza específica das galinhas é,
por exemplo, causa eficiente e final da multidão que habita os galinheiros: o galo
não gera segundo sua natureza individual, mas segundo sua natureza específica.
Entre Santo Anselmo e Abelardo, o que estava no caminho da ciência e da verdade
era Santo Anselmo, assim como Aristóteles não era um termo médio entre os
sofistas e Platão: era Platão corrigido. Cada vez mais suspeitamos que apresentar o
tomismo como uma posição média não é senão um passo atrás diante do avanço do
nominalismo moderno”. Em outras palavras, Santo Tomás é Santo Anselmo
corrigido.
457
ΑΩ
14
Parecem ser a mesma a distinção entre fé e razão e a distinção entre Filosofia e
Teologia Sagrada, ou seja, parecem identificar-se, por um lado, razão e Filosofia e,
por outro, fé e Teologia Sagrada – e, de fato, em tal identificação incorrem não
poucos importantes tomistas. Se, porém, se dá tal identificação, a Filosofia e a Teo-
logia Sagrada deixam de ser hábitos científicos. Mas isto, por absurdo, não se segue,
razão por que é necessário estabelecer que a relação entre a Filosofia e a Teologia
não é a mesma que a que se dá entre a fé e a razão, ainda que as duas relações tam-
bém estejam estreitamente relacionadas entre si. E não são as mesmas, antecipe-se,
até porque, quando se dá, a ordenação da razão à fé é essencial, ao passo que, quando
se dá, a ordenação da Filosofia à Teologia é acidental. Fique para outro lugar o
aprofundamento deste assunto.
15
Para um quadro histórico mais amplo da questão, cf., com ressalvas, DR. P. G. M.
MANSER, O. P., La Esencia del Tomismo, trad. (da 2.ª ed. alemã) de Valentín García
Yebra, Madri, Consejo Superior de Investigaciones Científicas/Instituto “Luis
Vives” de Filosofía, p. 121-150.
458
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16
Não aderiram a esta corrente, por uma sorte de sadia precaução ou por efetivo
pressentimento do perigo que representava, Anselmo de Laon († 1117), o já referido
Guilherme de Champeaux (1070-1121), Pedro Lombardo († c. 1164) e Guilherme
de Auxerre († 1234), entre outros. Opuseram-se firmemente a ela São Pedro
Damião (1007-1072) São Bernardo de Claraval (1090-1153), não sem exageros o-
postos, mas de modo efetivamente benéfico e profícuo (no caso de São Bernardo,
justamente como em sua vitoriosa luta contra as doutrinas heréticas de Pedro
Abelardo). – Devem apontar-se ainda em São Bernardo, no campo filosófico, certas
459
ΑΩ
21
DR. P. G. M. MANSER, O.P., op. cit., p. 135-136.
22
Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 2, a. 9, c.
23
Em A Função da Analogia em Teologia Dogmática, Petrópolis, Editora Vozes,
1946, p. 205-207.
24
Evitada todavia tal confusão, permanece que “a ciência sagrada”, como diz Santo
Tomás, “pode tomar emprestada [sim] alguma coisa às ciências filosóficas. Não
[porém porque tal] lhe seja necessário, mas para melhor manifestar o que ela pró-
pria ensina. Seus princípios não lhe vêm de nenhuma outra ciência, mas imedia-
tamente de Deus, por revelação. Por conseguinte, ela não toma empréstimos das
outras ciências como se estas lhe fossem superiores, senão que se vale delas como
461
ΑΩ
***
de inferiores e servas, assim como as ciências arquitetônicas se valem das que lhe
são auxiliares; ou a política, da arte militar. Que a ciência sagrada se valha das outras
ciências não se dá por falha ou deficiência sua, mas por falha de nosso intelecto: a
partir do que se adquire pela razão natural (donde procedem as demais ciências),
nosso intelecto é mais facilmente conduzido ao que está acima da razão, e que é
tratado nesta ciência [a Sagrada Teologia]” (Suma Teológica, I, q. 1, a. 6, ad 2).
25
Para maior aprofundamento, vide DR. P. G. M. MANSER, O.P., op. cit., cap. 1 (“La
doctrina del acto y la potencia como base de la concepción tomista de la fe y el
saber”)
26
Carta 79, 1, in Obras Completas de San Bernardo – VII, Madri, Biblioteca de
Autores Cristianos (BAC), MCMXC, p. 305.
462
ΑΩ
27
Publicadas ambas em Patrologia Latina 178, p. 979-1114 e 178, p. 1123-1330,
respectivamente.
28
As duas primeiras publicaram-se em CARLOS EDUARDO DOS SANTOS DIAS, “Pedro
Abelardo – Confessio Fidei Universis”, in VERITAS, Porto Alegre, v. 51, n. 3, setem-
bro de 2006, p. 169-181. A terceira encontra-se na Internet.
463
ΑΩ
29
Carta 189, 4, in op. cit., MCMXC, p. 629.
30
Carta 187, in op. cit., p. 621-623.
31
Carta 188, in op. cit., p. 623-625.
32
Carta 187, in op. cit., p. 621-623.
33
Carta 189, 2, in op. cit., p. 627.
464
ΑΩ
34
“Conhecem tuas maravilhas na treva, e tua justiça na terra do esquecimento?” (Sl
87,13).
35
“Ele te produzirá espinhos e cardos” (Gn 3,18).
36
“Meus irmãos atraiçoaram-me como uma torrente, como canais de um rio que
transborda, tornando-se turvo pelo degelo e arrastando consigo a neve” (Jó 6,16).
37
“Atira seu gelo como pedaços de pão; ante seu frio, congelam as águas” (Sl 147,17).
38
“E pelo crescimento da iniquidade, o amor de muitos esfriará” (Mt 24,12).
39
“Ele ruge contra tua pastagem” (Jr 25,30).
465
ΑΩ
40
Carta 189, 4, in op. cit., p. 629.
41
Uma festa de lutas bárbaras e mortais desde sempre condenada pela Igreja, que só
suspenderia a condenação quando, pelo século XV, ela se tornasse inofensiva,
meramente esportiva.
42
Carta 189, 3, in op. cit., p. 629.
43
Citada em ORLANDO SILVA, O Drama Heloísa-Abelardo, São Paulo, Edições
Loyola, 1989, p. 150.
466
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44
Carta 189, 4, in op. cit., p. 631.
467
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45
Carta 189, 4, in op. cit., p. 631.
46
Carta 191, 2, in op. cit., p. 635.
47
Citado em ORLANDO SILVA, op. cit., p. 150.
468
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48
Citado em ORLANDO SILVA, op. cit., p. 151-152. O texto integral está disponível na
Internet. – Citamos largamente a descrição de Béranger de Poitiers a modo de
justiça; mas, como se verá, trata-se de uma indignada peça retórica que não entra
no mérito mesmo da questão, antes difama, por um lado, e idolatra, por outro.
469
ΑΩ
50
PEDRO ABELARDO, Ética o Conócete a Ti Mismo (estudio preliminar, traducción y
notas de Pedro R. SANTIDRIÁ), Madri, Editorial Tecnos, 2002.
51
Ibidem, p. 103.
52
SANTO AGOSTINHO, Sermo 355, 1.
53
CÍCERO, De Invenctione Rhetorica I, 54.
472
ΑΩ
54
In CARLOS EDUARDO DOS SANTOS DIAS, “Pedro Abelardo – Confessio fidei
universis”, in Veritas, op. cit., p. 176, e ainda in PEDRO ABELARDO, Ética o Conócete
a ti mismo, op. cit., p. 120.
55
Carta 192, in op. cit., p. 637.
56
Carta 193, in op. cit., p. 639.
57
Carta 190, Prólogo, 4, in op. cit., p. 529.
58
Carta 330, in op. cit., p. 978.
473
ΑΩ
59
Carta 331, in op. cit., p. 983.
60
Carta 332, in op. cit., p. 984-987.
61
Carta 333, in op. cit., p. 986-987.
62
Carta 334, in op. cit., p. 988-989.
63
Carta 335, in op. cit., p. 990-991.
64
Carta 336, in op. cit., p. 992-993.
65
Cf. JOSEF LUIS LLANES & JOSEP IGNASI SARANYANA, Historia de la Teología, Madri,
Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 2002, p. 31.
66
Carta 338, in op. cit., p. 995.
474
ΑΩ
69
Citado em JACQUES VERGER, “Abelardo. Escolas no Claustro”, in JACQUES BERLIOZ
(apres.), Monges e Religiosos na Idade Média, Lisboa, Terramar, 1994, p. 72.
477
ΑΩ
478
A TEOLOGIA TOMISTA:
ANTECÂMARA DA VISÃO BEATÍFICA*
*
Hoje, em 2020, cinco anos depois de termos escrito esta apresentação à nossa
mesma tradução do Compêndio de Teologia de S. Tomás de Aquino (saída então
pela editora Concreta) e para a incluirmos neste volume, necessitámos não só revi-
sá-la em geral mas complementá-la com certas observações que virão entre col-
chetes.
1
Massa de que todos somos em algum grau afetados e que só ao preço de muitos
anos de esforço é possível superar, ainda em algum grau.
ΑΩ
I
O QUE É A TEOLOGIA SAGRADA
2
Concílio Vaticano I, Constituição Dogmática sobre a Fé Católica, cap. 2 (“Da
Revelação”); Denzinger, 1785. ― E é de tal ordem esta verdade, que São Paulo pôde
afirmar não só o acima referido, mas o que o antecede e o que se lhe segue: “Com
efeito, a ira de Deus manifesta-se do céu contra toda a impiedade e injustiça daque-
les homens que retêm na injustiça a verdade de Deus, porque o que se pode conhe-
cer de Deus lhes é manifesto porque Deus lho manifestou. Pois o invisível dele, de-
pois da criação do mundo, compreendendo-se pelas coisas feitas, tornou-se visível;
e assim seu poder eterno e sua divindade; de modo que [tais homens] são inescu-
sáveis” (Rm 1, 18-20; destaque nosso).
480
ΑΩ
“com certeza” não é, porém, de algo que nos seja evidente, assim
como são evidentes, por exemplo, o princípio da contradição (“o ente
é e não pode não ser ao mesmo tempo e pelo mesmo aspecto”) ou o
de que o todo é maior que a parte. Não que Deus não seja maxi-
mamente cognoscível e, pois, evidente; é-o, mas em e por si mesmo
(quoad se), não para o intelecto humano (quoad nos), em razão das
limitações deste mesmo intelecto. Por isso é que, para conhecer que
Deus é, o intelecto humano tem de partir das coisas criadas, em
raciocínio quia, quer dizer, a posteriori ou pelos efeitos. Como
escreve Santo Tomás de Aquino, “a proposição Deus é, enquanto tal,
é evidente por si, porque nela o predicado é idêntico ao sujeito. Deus
é seu próprio ser. Mas, como não conhecemos a essência de Deus, tal
proposição não é evidente para nós; precisa ser demonstrada por
meio do que é mais conhecido por nós [...], isto é, pelos efeitos”. 3 E
completa o nosso Santo: “Todo objeto é cognoscível enquanto se
encontra em ato. Deus, que é ato puro sem mistura de potência al-
guma, é portanto maximamente cognoscível. O que porém é
maximamente cognoscível em si mesmo não é cognoscível [evi-
dentemente] para determinado intelecto por exceder em inteligi-
bilidade a esse intelecto, [do mesmo modo que] o sol, conquanto ma-
ximamente visível, não pode ser visto pelos morcegos em razão de
seu excesso de luz”. 4
Pois bem, se assim é com respeito a se Deus é, também o é,
mutatis mutandis, com respeito à criação. Com efeito, se São Paulo
pôde dizer que o invisível de Deus, “depois da criação do mundo,
compreendendo-se pelas coisas feitas, tornou-se visível”, e que “são
inescusáveis” os homens que, pelas coisas criadas, não reconhecem o
criador, é precisamente porque se pode conhecer, a partir do próprio
3
S. TH., Summ. Theol., I, q. 2, a. 1, c.
4
Ibidem, I, q. 12, a. 1, c. ― Já o dissera Aristóteles: “Assim como os olhos dos
morcegos reagem diante da luz do dia, assim também a inteligência que há em nossa
alma se comporta diante das coisas que, por sua natureza, são as mais evidentes”
(Metafísica, A 1, 993 b 9-10).
481
ΑΩ
mundo sensível, que ele foi criado por Deus – e ex nihilo, do nada,
ou, melhor ainda, de nada. 5 Não necessitamos estudar profunda-
mente aqui os procedimentos pelos quais conhecemos que o mundo
foi criado. Para os fins que aqui buscamos, basta-nos insistir em que,
co-mo o conhecimento de que Deus é, também o conhecimento de
sua atividade enquanto criador do universo, incluída a matéria pri-
ma, não pertence à fé em sentido estrito. Há, sim, verdades reveladas
por Deus que são absolutamente inacessíveis à razão humana e que
não podem conhecer-se senão por meio das Sagradas Escrituras,
como mostra Santo Tomás neste mesmo Compêndio de Teologia (l.
1, c. 246), na Suma contra os Gentios (l. 4, c. 1) e em outros lugares:
todo o relativo à Trindade, todo o relativo à Encarnação, todo o
relativo aos decorrentes sacramentos, etc., ou seja, as verdades a que
só assentimos em razão da autoridade do autor das Escrituras,6 e que,
no entanto, como demonstra cabalmente Santo Tomás, absolu-
tamente não são contrárias à razão natural. 7 Ora, não se contam en-
tre tais verdades a de que Deus é e a da criação do mundo por ele, 8 as
quais, como vimos, conquanto não evidentes para nós, não exce-dem
a capacidade de nossa razão.
2. Não obstante, se isso é assim, se estas verdades são efetivamente
proporcionadas à razão humana, o fato – inquestionável – é que his-
toricamente os homens, em sua imensa maioria, só as alcançaram
parcialmente ou não as alcançaram, e mesmo os pouquíssimos que
as alcançaram mais elevadamente não o fizeram de maneira perfeita
ou suficiente. Tal fato histórico é sem dúvida efeito do pecado origi-
nal: o intelecto humano já não submete cabalmente as potências in-
feriores da alma e o corpo (longe disso), e correntemente as paixões
5
Falando propriamente, criar é fazer algo ex nihilo, sem matéria alguma prece-
dente, o que só não excede à potência de Deus.
6
“Probanda enim sunt huiusmodi auctoritate sacrae Scripturae, non autem ratione
naturali”, diz o Aquinate no lugar citado.
7
Ibidem.
8
E outras.
482
ΑΩ
9
85 c-d.
10
Cf. PLATÃO, Carta VII, 344 d; ARISTÓTELES, Metafísica, A 6, 987 b 18-21. – De
modo que, se Platão cometeu o devido “parricídio” de Parmênides (no Sofista, 241
d-242 a), poderia dizer-se que Parmênides deveria ter cometido o “filicídio” de Pla-
tão, porque, com efeito, o Eleata tinha descoberto, de certo modo, a identidade i-
nextricável entre o Ente e o Uno e Único – o que volta a perder-se com o Ateniense.
11
Não podemos concordar plenamente, porém, com a afirmação de Giovanni Reale
(em História da Filosofia Antiga, vol. II, São Paulo, Edições Loyola, 1994, p. 371) de
que o monoteísmo aristotélico seja “mais de exigência que efetivo”, especialmente
porque o θεός de Aristóteles não se distinguiria suficientemente das outras 55
substâncias espirituais motoras. Em sentido contrário a isso, cf. CARLOS AUGUSTO
CASANOVA, El Ser, Dios y la ciencia, Santiago, IAP/C.I.P./Ediciones Universidad
483
ΑΩ
Católica de Chile, 2077, p. 71-94. Nestas páginas, que correspondem ao cap. “¿Está
superada la teología aristotélica por el colapso de la teoría de las esferas celestes?”,
Casanova, recorrendo aos próprios textos aristotélicos, a Santo Tomás e a outros, e
reconhecendo embora que “Aristóteles não é muito claro nestes pontos”, conclui,
com alto grau de probabilidade, que o Deus aristotélico é não só a causa final, mas
a causa eficiente, e que, portanto, as 55 substâncias separadas “dependem em seu
ser da primeira de algum modo” (ibidem, p. 86).
12
“A esta divina revelação deve-se certamente atribuir que as coisas divinas não
inacessíveis de si à razão humana possam ser conhecidas por todos, mesmo na atual
condição do gênero humano, de modo fácil, com firme certeza e sem mistura de
erro algum. [...] No entanto, nem por isso se deve dizer que a revelação seja ab-
solutamente necessária senão porque Deus mesmo, por sua infinita bondade, or-
denou o homem a um fim sobrenatural, ou seja, a participar de bens divinos que
sobrepujam totalmente a inteligência da mente humana; pois em verdade nem o
olho viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais passou pelo pensamento do homem o que
Deus preparou para aqueles que o amam [1 Cor 2, 9; Can. 2 e 3]” (Constituição
Dogmática sobre a Fé Católica, ibidem, 1786).
484
ΑΩ
13
Ibidem, 1785.
485
ΑΩ
486
ΑΩ
14
Suma contra os Gentios, I, c. 4 (grifo nosso). – Repete-o Santo Tomás, mas mais
sintética e lapidarmente, na Suma Teológica (I, q. 1, a. 1, c.): “A verdade sobre Deus
investigada pela razão humana seria alcançada apenas por um pequeno número,
após muito tempo, e cheia de erros. Mas do conhecimento desta verdade depende a
salvação do homem, a qual se encontra em Deus. Por isso, para que a salvação che-
gasse aos homens com mais facilidade e com mais garantia, era necessário fossem
eles instruídos a respeito de Deus por uma revelação divina”.
487
ΑΩ
19
Não aderiram a esta corrente, por uma espécie de sadia precaução ou por um
efetivo pressentimento do perigo que representava, Anselmo de Laon († 1117),
Guilherme de Champeaux († 1121), Pedro Lombardo († c. 1164) e Guilherme de
Auxerre († 1234), entre outros. Opuseram-se firmemente e proficuamente a ela São
Pedro Damião (1007-1072) e São Bernardo de Claraval (1090-1153), não, no
entanto, sem exageros opostos.
20
A confusão entre fé e razão pode dar-se com respeito à origem de ambas, e/ou
com respeito ao conceito de ambas, e/ou com respeito à esfera de ambas.
21
DR. P. G. M. MANSER, O.P., ibidem, p. 134.
22
S. TH., Cont. Gent., I, 7.
491
ΑΩ
23
DR. P. G. M. MANSER, O.P., ibidem, p. 135-136.
24
S. TH., Summ. Theol., II-II, q. 2, a. 9, c.
492
ΑΩ
25
PADRE ÁLVARO CALDERÓN, El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II, versão
provisória e em PDF, p. 39.
26
Em A Função da Analogia em Teologia Dogmática, Petrópolis, Editora Vozes,
1946, p. 205-207.
27
Summ. Theol., I, q. 1, a. 6, ad 2.
493
ΑΩ
lítica, da arte militar. Que a ciência sagrada se valha das outras ciên-
cias não se dá por uma falha ou deficiência sua, mas por falha de
nosso intelecto: a partir do que se adquire pela razão natural (donde
procedem as demais ciências), nosso intelecto é mais facilmente con-
duzido ao que está acima da razão, e que é tratado nesta ciência [a
Sagrada Teologia]”.
9. Mas de quanto se acaba de dizer resulta uma dupla nota. Por
um lado, todas as demais ciências [especulativas] se subalternam, de
certo modo, à Teologia Sagrada; por outro, porém, não o fazem do
mesmo modo que o fazem à Metafísica. Explique-se.
• Antes de tudo, deve considerar-se se a Teologia Sagrada é de
fato uma ciência. 28 E o é, com efeito. Mas há duas classes de ciências.
As da primeira procedem de princípios conhecidos segundo a luz
natural do intelecto, e entre estas estão a Aritmética ou a Geometria.
As da segunda, de princípios conhecidos segundo a luz de uma
ciência superior, como a Perspectiva com respeito à Geometria, ou a
Música com respeito à Matemática e à Acústica, ou ainda a Teologia
Sagrada com respeito à Ciência dos bem-aventurados e de Deus
mesmo. Em outras palavras, os princípios de que parte a Teologia
Sagrada são os dados da fé, porque, com efeito, o que os bem-
aventurados conhecem de Deus e que Deus conhece de si mesmo não
nos pode chegar por essência, mas só por revelação, e por trás dos
véus da fé. Mas os princípios de todas as outras ciências, próprios ou
de ciência superior, chegam-nos pela própria razão. Entre elas está a
Metafísica, a ciência do ente enquanto ente, e cujos princípios, que
são os primeiríssimos do ente, ela e só ela pode defender.
• Ademais, contudo, a Teologia Sagrada é a única ciência tanto
especulativa como prática. 29 A Metafísica ou a Física são só espe-
culativas, enquanto a Ética ou a Política são só práticas. Mas a Teo-
logia Sagrada, por simpliciter una, 30 estende-se às coisas tratadas pe-
28
Cf. ibidem, I, q. 1, a. 2, c.
29
Cf. ibidem, I, q. 1, a. 4, c.
30
Cf. ibidem, I, q. 1, a. 3, c.
494
ΑΩ
31
Assim porém como Deus conhece suas obras enquanto se conhece a si mesmo,
assim também a Teologia Sagrada é antes especulativa que prática, porque, com e-
feito, não considera os atos humanos senão enquanto por eles o homem se ordena
ao conhecimento perfeito e por essência de Deus – até porque é nisto último que
consiste o fim de nossa vida, ou seja, a beatitude ou bem-aventurança eterna (cf.
ibidem, I, q. 1, a. 4, c.).
32
Cf. ibidem, I, q. 1, a. 4, c.
495
ΑΩ
sem dúvida a mais excelente, pois tem por sujeito a Deus enquanto
Deus – a mesma sublimidade –, e trata tudo o mais enquanto efeito
dele e ordenado a ele.
• Se não houvesse nada mais que o ente móvel (e pois sensível ou
corpóreo), a Física seria a Sabedoria. Mas há algo além do físico, razão
por que, entre as ciências sob a luz da razão natural, a Metafísica é a
Sabedoria. Sabedoria simpliciter, porém, entre nós e nesta vida, não
pode ser senão a Teologia Sagrada, cujo sujeito, como dito, é Deus
mesmo enquanto Deus, do qual procedem todos os outros entes – a
criatura corpórea e a criatura intelectual – e ao qual se ordenam.
Logo, todas as demais ciências se subalternam à Teologia Sagrada,
mas, como dito, de modo distinto de como se subalternam à Meta-
física [se, como anotado mais acima, se trata de ciências especu-
lativas, mas de modo análogo se se trata de ciências práticas]. Com
efeito, a Metafísica não só pode defender os princípios das ciências
subalternas (o que elas mesmas não podem fazer), senão que pode
corrigi-las se se desviam deles. Ora, a Teologia Sagrada não pode
fazê-lo com respeito às outras ciências, como vimos o Padre Penido
dizer mais acima [ainda que sim, como assinalado mais acima, com
respeito às ciências práticas]. Mas pode delimitar-lhes a todas seu
campo, e, se não as ordena direta ou imediatamente a Deus [a não ser
no caso, insista-se, das ciências práticas], o fim último do homem, fá-
lo ao menos indireta ou mediatamente. Assim, pode a Física moderna
pôr a hipótese do big bang; não pode porém pô-la como o primeiro
princípio das coisas, que é Deus. Pôde ademais a Física Geral pôr a
eternidade do mundo; não pode a Teologia Sagrada negá-la
rationabiliter, mas pode antepor-lhe o dado da fé entregue no Gêne-
sis. Et reliqua, analogamente.
10. Resta-nos porém uma última dificuldade. Com efeito, a
Metafísica se chama também não só Filosofia Primeira, mas ainda
Teologia. Diz-se Metafísica enquanto, como dito, se ocupa do que
está além do físico e pois da Física; mas Filosofia Primeira enquanto
se ocupa dos princípios e das causas mais altas; e Teologia enquanto
496
ΑΩ
a causa das causas, a causa mais alta, é Deus, do qual pois a Metafísica
tam-bém se ocupa. Mas nesta vida não podemos conhecer a Deus por
es-sência, e por isso mesmo é que a Metafísica ou Teologia Filosófica
não pode ter por sujeito a Deus enquanto Deus, senão que só pode
tratá-lo enquanto é o Ente dos entes e a causa destes. Ora, vimos já
que a Teologia Sagrada tem por sujeito justamente a Deus enquanto
Deus, e considera a tudo o mais como efeito dele. Sabê-lo, porém, não
elimina a objeção: justo porque Deus enquanto Deus não é o sujeito
da Metafísica, é abusivo o título de Teologia, ainda que Filosófica.
Mas é possível solver a objeção. Com efeito, falando absolutamente,
Teologia é a ciência que Deus tem de si mesmo. Ora, como mostra
Santo Tomás no Compêndio de Teologia (l. 1, c. 9) e em tantos outros
lugares, Deus é simpliciter simples. Se o é, então nele o ser não pode
ser uma coisa e a essência outra, nem pode haver acidentes, e a ciência
entre as criaturas é acidental. Logo, Deus não só é seu mesmo ser e
sua mesma essência, senão que é sua mesma ciência. Sendo assim, a
Teologia é Deus mesmo. E, assim como as criaturas não têm ser senão
pela participação de Deus, que, como dito, é o mesmo Ser, assim
também a ciência que as criaturas intelectuais têm de Deus têm-na
por participação de Deus, ou seja, por participação da mesma
Teologia simpliciter. Logo, as demais teologias participam da Teolo-
gia como em analogia de atribuição: a Teologia dos bem-aventura-
dos participa dela muitíssimo mais e de modo especialíssimo, por
deiformação e aderência; a Teologia Sagrada vem depois, porque par-
ticipa dela, como dito, por trás dos véus da fé; enquanto a Teologia
Filosófica participa dela segundo a só luz da razão – mas a luz da
razão é já uma participação do Intelecto divino.
E quanto ao que é a Teologia Sagrada baste o dito.
497
ΑΩ
II
SE SANTO TOMÁS É TEÓLOGO, FILÓSOFO, OU AMBAS AS COISAS,
OU QUAL É A ESSÊNCIA DO TOMISMO
33
Ibidem, I, q. 1, a. 6, ad 2. – E baste isto para impugnar a afirmação tão moderna
de que é possível ser tomista apenas filosoficamente.
498
ΑΩ
34
Para o cerne mesmo desta questão, cf. S. TH., Sent., I, d. 2, q. 4; II, d. 17, q. 2, 1; III,
d. 1, q. 1., a. 3, ad 4; d. 2, q. 1, a. 1; d. 8, q. 2, a. 3, ad 4; d. 23, q. 2, a. 2; IV, d. 8, q. 2,
a. 3, ad 4; Quodlib. VIII, q. 14; XII, q. 2; Verit., 8, 12, ad 4; 12, 3, ad 18; 14, 1 e 4; Pot.
1, 3, ad 1; 6, 1, ad 18; Cont. Gent., I, 1; 3-9; III, 47; 100; 152; IV, 1; Summ. Theol., I,
q. 1, a. 1, ad 2; a. 2-8; q. 2, a. 2, ad 1; q. 12, a. 3 e 12; q. 32, a. 1, ad 1-2; a. 2; q. 79, 2;
q. 84, a. 3-6; II-II, q. 1, a. 1; a. 4-5; a. 7; a. 10; q. 2., a. 1, 4 e 9; q. 4, a. 1 e a. 2; q. 5, a.
4; q. 6, a. 1; III, q. 1., a 3; q. 11, a. 1.
499
ΑΩ
3. Com isso, todavia, justo porque Santo Tomás era antes teólogo
sacro, não descobrimos ainda a essência da doutrina tomista. Não é
difícil porém descobri-la, e em verdade já o fizemos acima: a essência
do tomismo é a doutrina de que o sujeito da Teologia Sagrada é Deus
enquanto Deus. E, se isto não parece hoje grande novidade, era-o,
sim, então.
• Antes de tudo, há que expor mais detidamente o que é o sujeito
de uma ciência. Pois bem o sujeito de uma ciência é sua matéria con-
siderada segundo determinada razão formal. Diz-se “sujeito” porque
a ciência tudo referirá a ele ou predicará dele, assim como numa ora-
ção gramatical o predicado se atribui a seu sujeito. E, para entender
o que é considerar-se segunda determinada razão formal, reponha-se
um exemplo: Deus é tratado tanto na Metafísica como na Teologia
Sagrada. Mas a primeira tem por sujeito o ente enquanto ente, e trata
a Deus enquanto causa dos demais entes, ao passo que a segunda tem
por sujeito a Deus enquanto Deus, e trata os demais entes enquanto
efeitos de Deus. Se assim é, é porque toda a matéria tratada na Meta-
física o é de algum modo em ordem a tal razão formal, ou seja, a de
ente enquanto ente, enquanto toda a matéria tratada na Teologia As-
grada o é em ordem a tal razão formal, ou seja, a de Deus enquanto
Deus – o que é o mesmo que dizer que na primeira tudo (partes,
propriedades, efeitos, causas, conquanto estas últimas tenham aí lu-
gar privilegiado) se compara ou se refere ao ente segundo a forma-
lidade de ente, enquanto na segunda tudo (propriedades e efeitos) se
compara ou se refere a Deus segundo a formalidade de Deus. Pode
dizer-se o mesmo da Física ou da Matemática: aquela tem por sujeito
o ente enquanto móvel, e nela tudo (partes, propriedades, efeitos,
causas, conquanto estas tenham aí lugar privilegiado) diz respeito ao
ente segundo a formalidade de móvel, ao passo que esta tem por
sujeito o ente quanto à quantidade, e nela tudo (partes, propriedades,
efeitos, causas, conquanto estas tenham aí lugar privilegiado) diz res-
peito ao ente segundo a formalidade de quantidade.
500
ΑΩ
35
Cf. a “Introducción general”, de SANTIAGO RAMÍREZ, à primeira edição da Suma
Teológica pela B.A.C. (Madri, MCMLXIV).
501
ΑΩ
III
QUAL O LUGAR DO COMPÊNDIO DE TEOLOGIA
NO CONJUNTO DA OBRA TOMISTA
36
“La Somma Teologica è il cielo veduto dalla terra” (Alocução para o Instituto
Internacional Angelicum, de 12 de dezembro de 1924: Xenia Thomistica, t. 3., p. 600
[Roma, 1925], apud “Introducción general” de SANTIAGO RAMÍREZ, ibidem, p. 181).
37
Cf. P. MANDONNET, O. P., “Des écrits authentiques de Saint Thomas d’Aquin”, in
Revue Thomiste, 1909, p. 158, 257, 274, apud “Prefácio à Tradução”, de DOM
ODILÃO MOURA, O.S.B., do Compêndio de Teologia, Rio de Janeiro, Presença, 1977,
p. 5.
502
ΑΩ
38
Frei Reginaldo de Piperno, O.P., era um amado filho espiritual de Santo Tomás e
seu socius frater, ou seja, seu secretário, seu copista, etc., e, como era costume, di-
vidia a cela monástica com seu pai. Era incansável e assiduíssimo na ajuda ao mestre,
e esteve com ele até o momento de sua morte. Confessavam-se mutuamente (am-
bos, é claro, eram sacerdotes). Tudo isso fez do aprendiz a testemunha fundamental
da santidade de Santo Tomás, o que aproveitou muitíssimo ao processo de cano-
nização.
39
Cf. GUILLERMO FRAILE, O.P., Historia de la Filosofía, 2ª. ed., Madri, 1956, B.A.C.,
vol. II, p. 533 ss.
503
ΑΩ
40
Cf. S. TH., Summ. Theol., Prologus. – Diga-se, aliás, que a Suma Teológica é dos
poucos livros de Santo Tomás escritos por iniciativa própria, ou seja, sem que nin-
guém lho tivesse solicitado.
41
Mas Santo Tomás, com sua brevidade em ambas as obras, legou-nos o ápice da
sistematização teológica. Quanto a isto, porém, há que observar duas coisas. Antes
de tudo, quem quer que atualmente se inicie em Santo Tomás, não importa a idade,
é muito menos preparado para a Filosofia e para a Teologia que qualquer calouro
universitário de então. Depois, se tais obras eram sumas, não resta senão que tudo
quanto escreveu o nosso Doutor seja apenas a ponta do iceberg de sua grandíssima
sabedoria.
504
ΑΩ
42
Tudo sempre segundo a ordem dos dois símbolos da fé, o dos Apóstolos e o de
Niceia ou dos Padres, e sempre entremesclado do pensamento metafísico tomista.
43
Aliás, os próprios títulos que encabeçam os capítulos muito provavelmente não
são de Santo Tomás.
44
Em um sorites, o predicado da primeira proposição passa a sujeito da segunda, o
predicado da segunda a sujeito da terceira, e assim sucessivamente, unindo a con-
clusão o sujeito da primeira proposição e o predicado da última. Ou seja: “se entre
t e T há M1, M2, M3… Mn, então: t é M1; M1 é M2; M2 é M3… Mi-1 é Mi… Mn-1 é Mn;
Mn é T; portanto, t é T” (Pe. Álvaro Calderón, Los Analíticos Posteriores, obra não
publicada). Em um sorites, o predicado da primeira proposição passa a sujeito da
segunda, o predicado da segunda a sujeito da terceira, e assim sucessivamente, unin-
do a conclusão o sujeito da primeira proposição e o predicado da última. Ou seja:
“se entre t e T há M1, M2, M3… Mn, então: t é M1; M1 é M2; M2 é M3… Mi-1 é Mi…
505
ΑΩ
47
DOM ODILÃO MOURA, O.S.B., ibidem, p. 11.
507
ΑΩ
48
Cf. Fontes vitae, ed. M.-H. LAURENT (Toulouse, 1937), 79, 376-377), apud
GREGORIO CELADA LUENGO, ibidem, p. 4-5.
49
Ibidem.
508
ΑΩ
IV
SE E EM QUE CADUCOU OU ERROU O COMPÊNDIO DE TEOLOGIA
APÊNDICE I
destes pontos, algo mais da física aristotélica caducou, o que faz que
quanto a isto também tenha caducado a física tomista, e também, nis-
to, o nosso Compêndio de Teologia. Para dizer porém com toda a
propriedade que algo dela caducou, não basta sequer dizer por que,
como e em que grau o fez: é preciso antes saber não só o que é a física
aristotélica, mas o que é a Física. 51
1. Por Física entenda-se a Física Geral, ciência verdadeiramente
una em razão de que seu mesmo sujeito, ou seja, o ente móvel, não é
noção análoga, mas unívoca. Não nos deixemos enganar por uma
ilusão de perspectiva. A noção de ente é, sim, análoga, porque se diz
segundo a diversidade de seus dez gêneros supremos. 52 Semelhan-
temente, também o é a de movimento, porque, sendo um dos pós-
predicamentos, pode dar-se nos mesmos dez gêneros. Sucede porém
que ente e movimento se dizem antes e propriamente das substâncias
sensíveis: não é senão delas que podemos dizer antes e propriamente
que são e que são com movimento. A quantidade, a qualidade e os
demais acidentes são aspectos da substância, razão por que, se se
chama alteração ao movimento segundo a qualidade, o que se altera
não é a qualidade: altera-se a substância em função de suas qua-
lidades. Ademais, o ente é análogo não por analogia de proporcio-
nalidade, mas por analogia de atribuição intrínseca, e nesta todos os
seus modos se dizem com respeito a um primeiro. Pois bem, este pri-
meiro entra na definição dos demais, e por isso mesmo pode cons-
tituir-se em sujeito de uma ciência una, que justamente considere a
todos os seus modos. Ponha-se um exemplo: a Medicina trata os re-
médios, os alimentos, os exercícios e o clima enquanto dizem respeito
à saúde do animal. Semelhantemente, portanto, se se diz que a Física
tem por sujeito o ente móvel, entenda-se por tal a substância corpo-
rea com tudo quanto lhe pertença necessariamente (partes, proprie-
dades, efeitos, causas, estas últimas todavia só de certo modo privi-
legiado). Sendo assim, então o sujeito da Física é um gênero supremo
51
Naturalmente, o que se seguirá não pode ser mais que um resumo.
52
Isto é, segundo as dez categorias ou predicamentos descobertos por Aristóteles.
510
ΑΩ
53
Cf. PE. ÁLVARO CALDERÓN, Umbrales de la Filosofía, Argentina, edição do autor,
2011, p. 315.
54
Para um estudo completo do assunto, e em particular enquanto o todo e a parte
se tratam no âmbito da divisão, cf. SANTIAGO RAMÍREZ, De analogia, tomo II, Madri,
CSIC, n. 525-539, p. 989-1039.
55
Cf. S. TH., Summ. Theol., II-II, q. 48, a. 1: “Triplex est pars, scilicet integralis, ut
paries, tectum et fundamentum sunt partes domus; subjective, sicut bos et leo sunt
partes animalis; et potentialis, sicut nutritivum et sensitivum sunt partes animae”.
511
ΑΩ
possível dizer que “o teto é a casa”, como quando dizemos que al-
guém “quer comprar um teto para morar”, assim como se pode dizer
que “a alma é o homem”: o que só é possível fazer – apenas ao modo
de sinédoque, insista-se – porque tanto o teto é a parte mais im-
portante da casa como a alma é a mais importante do homem. 56
• O segundo modo, ademais, é o do gênero e sua divisão em
espécies: por exemplo, o vegetal nesta, naquela e naqueloutra espécie,
e o animal nesta, naquela e naqueloutra espécie. E aqui o todo se cha-
ma universal e as partes subjetivas porque, diferentemente do todo
integral, este se dá universalmente em todas e cada uma das partes,
razão por que as partes são sujeito de que o todo se predica pro-
priamente E univocamente: assim, o cão é tão animal como o é o boi,
e a mangueira é tão vegetal como o é a relva – e assim se dizem: o cão
é animal, o cisne é animal, e o limoeiro é vegetal, a roseira é vegetal.
• No terceiro modo, por fim, o nutritivo e o sensitivo são partes
da alma humana, que porém tem por parte principal o intelectivo.
Pois bem, aqui tanto o todo como as partes se dizem potenciais por-
que aquele se divide segundo a maior ou menor virtude ativa de cada
parte. É um modo intermediário entre os dois outros, e nele o todo
se predica das partes propriamente MAS analogamente 57 (e não uni-
vocamente): assim, pode dizer-se que a alma humana é o nutritivo, e
que a alma humana é o sensitivo, mas tal não se faz senão de maneira
diminuída, porque, com efeito, mais propriamente se há de dizer que
a alma humana é o intelectivo.
4. Pois bem, pode aplicar-se tal distinção entre os modos de ser
todo e os de ser parte não só às ciências, mas às artes e ainda à prudên-
56
Por aí se vê, como se dirá no mesmo Compêndio (c. 151-152), que a ressurreição
prometida por Cristo é a restauração da integridade humana, o que impugna qual-
quer hiperespiritualismo de corte platônico, cartesiano ou malebranchiano. – A-
demais, como diz ainda Santo Tomás, “a alma, pela razão mesma de que é parte da
natureza humana, não é naturalmente perfeita senão quando está unida ao corpo”
(Summ. Theol., I, q. 91, a. 2; cf. também I, q. 90, a. 4).
57
Ou seja, por analogia própria.
512
ΑΩ
cia. Como porém o que nos interessa aqui são as ciências, façamo-lo
com respeito às três ciências principais: a Metafísica, a Física e a Ma-
temática.
• A ciência por antonomásia é a Metafísica, ou seja, a ciência do
ente enquanto ente, a qual se divide nas seguintes ciências: a do ente
primeiro, Deus; a das propriedades transcendentais; e a do ente
enquanto inteligido. Todas estas ciências são partes integrais da Me-
tafísica, razão por que só impropriamente se dizem ciências. Com e-
feito, para que se tenha íntegra a ciência do ente, é necessário conju-
gar todas estas ciências como capítulos ou tratados da Metafísica.
• Mas a ciência do ente enquanto ente também se divide na ciên-
cia do ente quantum ou Matemática, e na ciência do ente móvel ou
Física – e ambas estas ciências estão para a Metafísica assim como as
partes da alma estão para ela, ou seja, como potenciais. Propriamente
podem chamar-se ciência, mas apenas analogicamente, porque nelas
a virtude da ciência se dá de maneira diminuída com respeito à Meta-
física, assim como o nutritivo ou o sensitivo com respeito ao inte-
lectivo.
• E, por sua vez, tanto a Matemática como a Física se dividem em
multidão de ciências: a primeira, por exemplo, em Aritmética e Geo-
metria; a segundo, ainda por exemplo, em Cosmologia e Biologia. E
destas ciências há que dizer que são partes subjetivas daquelas, razão
por que a Matemática e a Física se predicam propriamente e univo-
camente das demais: “a Geometria é Matemática (ou ciência ma-
temática)”, ou “a Química é Física (ou ciência física)”. 58
58
Deixamos de lado, aqui, a Física moderna, que tende a participar tanto da Física
Geral como da Matemática: é a Física de Newton ou de Einstein. Mas já antecipara
Santo Tomás a possibilidade desta ciência média (cf. PADRE ÁLVARO CALDERÓN,
Umbrales..., p. 346). – Diz-se que apenas “tende” porque os físicos modernos facil-
mente ultrapassam a fronteira do médio e caem na matematização absoluta, com
tudo quanto de absurdidade decorre disto. Com efeito, “já no começo deste século
[XX] E. Le Roy definia o eclipse como ‘um sistema de equações’” (J. DE TONQUÉDEC,
Prolégomènes a une philosophie de la Nature, Paris, P. Lethielleux, 1956, p. 76). Co-
513
ΑΩ
5. Como se vê, todo e partes são noções relativas. Por isso, à ciên-
cia que se ocupa do todo também compete ocupar-se das partes en-
quanto tais. Quem melhor o explica é o Padre Álvaro Calderón, a
quem damos a palavra in extenso:59
63
Já dizia Aristóteles quanto à origem da alma humana: o intelecto humano é “se-
parado [da matéria], só ele, justamente, é o que é, e só ele é imortal e eterno” (De
anima, Г 5, 430 a 10-23); por isso é preciso considerar que “o intelecto vem de fora
e só ele é divino” (ibidem, Г 5, 430 a 13).
515
ΑΩ
64
Para sua doutrina a este respeito, cf. Naturalis Philosophiae, especialmente I pars,
q. 1., a. 2: “Utrum Philosophia sit unius speciei atomae in ratione scientiae”. Por
outro lado, este seu mesmo tratado, enquanto é de Física Geral, é fundamental, e
serviu grandemente ao Pe. Álvaro Calderón para a escrita dos dois tomos de La na-
turaleza y sus causas.
516
ΑΩ
primeira. 65 Mais que isso, porém: excetuada a Física atual, que tende,
como dito, a ser ciência média, todas as demais “ciências modernas”,
a depender do caso e do ângulo, ou são incoações de ciência ou são
abortivos de ciência – por defeito ou falta de método científico, a
começar pela ausência de precisão de seu sujeito –, ainda que não ra-
ro valham como base de dados para indução.
• Mas a tradição tomista iniciada a este respeito por João de Santo
Tomás, e culminada por Jacques Maritain, 66 começa como que por
desprezar os dados fornecidos por tais “ciências”, sob a afirmação de
que a filosofia e a ciência atuam em planos diversos e não comuni-
cantes, para ao cabo aderir de algum modo a suas absurdidades. Por-
que, com efeito, se o homem veio do macaco, então rui o aristotelis-
mo e o tomismo (e a mesma Revelação); se o tempo se há de contar
segundo as partículas subatômicas, então se derroga a física aristo-
télico-tomista; se a partícula de energia que explodindo teria dado o-
rigem ao universo estava ali por si e explodiu por si, e não pelo Pri-
meiro Agente e Causa Final, então já nem sequer resta ciência em to-
da a extensão do termo; et reliqua. Nem podemos condescender com
as absurdidades sensistas e relativistas de um Einstein, por exemplo.
Não é verdade que um homem sentado num barco se dirá imóvel se
não houver ninguém na costa que observe a passagem do barco, e se
dirá em movimento se houver tal observador: segundo a verdade, ele
está absolutamente parado de si mesmo e em relação ao barco, e está
em movimento como massa agregada do barco, assim como todos,
incluídos os cadáveres, estamos em movimento como massa agre-
65
Para um quadro mais abrangente do nascimento e da “consolidação” das ciências
antiaristotélicas, cf. PADRE ÁLVARO CALDERÓN, Umbrales..., p. 331-349. O Padre,
aliás, é engenheiro nuclear. Cf. também, ainda que nem sempre com nossa adesão,
M. ARTIGAS & J. J. SANGUINETI, Filosofía de la Naturaleza, EUNSA, Pamplona, 1993,
p. 29-34
66
Cf. seu La philosophie de la nature, essai critique sur ses frontières et son objet,
Paris, P. Téqui, 1935.
517
ΑΩ
67
Cf. S. TH., In VI Phys., lect. 12: “Ser movido com o movimento de outro sucede de
dois modos. De um, quando o que se move com o movimento de outro não é parte
alguma sua, assim como o que está na nave se move com o movimento da nave...”.
68
Summ. Theol., I, q. 105, a. 3, ad 3 (destaque nosso).
69
Cf. In VIII Phys., lect. 8.
518
ΑΩ
70
Que ganhou o Prêmio Nobel em 1927 justamente por esta descoberta. – Cf. D. J.,
GRIFFTHS, Introduction to Electrodynamics, 3ª ed., New Jersey, Prentice Hall, 1999,
cap. 12. Cf., ademais, SCHILLING & GOVERT, “Quasars Pairs: A Redshift Puzzle?”,
Science, vol. 274 (Nov. 22), 1996, p. 1.305: “Halton Arp, do Instituto de Astrologia
de Garching, Alemanha, afirmou durante mais de 25 anos que os quasares, objetos
que a maior parte dos astrônomos creem existir nas extremidades do universo, são
de fato companheiros de galáxias muito próximas. Se ele tiver razão, as implicações
disto serão tão revolucionárias como as teorias de Galileu [...]. A regra astronômica
que se chama ‘decalagem para o vermelho’ [redshift] e que coloca os quasares e as
galáxias a distâncias muito diferentes será posta em questão, bem como as crenças
de base dos cosmologistas no que diz respeito ao universo. A maioria dos astro-
nomos rejeitou as teorias de Arp, mas ele apresenta agora seu estudo mais sistemá-
tico no que concerne ao reagrupamento de quasares e de galáxias”. – Halton Arp fa-
leceu em 28 de dezembro de 2013, em Munique.
71
O que tampouco quer dizer que deixe o campo da probabilidade a teoria do big
bang e da “lei de Hubble” (a qual, ao contrário, a nós nos parece efetivamente a mais
provável). Adota-a ninguém menos que o Papa Pio XII, ainda que falando como
doutor privado (cf. Alocução Un ora: “Sobre as Provas da Existência de Deus à Luz
da Ciência Natural Moderna”, de 1952).
72
Cf. RAÚL LEGUIZAMÓN, Fóssiles polémicos, Madri, Nueva Hispanidad, 2002. – O
Dr. Leguizamón é patologista. – Em verdade, tais saltos abruptos e desapareci-
mentos inexplicáveis parecem indicar, antes, um grande cataclismo ou uma série de
cataclismos.
519
ΑΩ
73
Cf. MICHAEL BEHE, A Caixa-Preta de Darwin, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1977.
– Em verdade, como o mostraremos em outro lugar, o evolucionismo ou darwinis-
mo nem sequer se pode dizer incoação de ciência: é antes, como diz o Pe. Calderón,
“um conto de fadas gnóstico”.
74
Opusc. 10, apud LEÃO XIII, encíclica Providentissimus Deus, 43.
75
LEÃO XIII, ibidem.
520
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77
S. TH., Summ. Theol., I, q. 1, a. 6, ad 2.
522
ΑΩ
78
Além disso, como escreve o Padre Álvaro Calderón, “o conflito de Galileu com a
Igreja, mesmo sem minimizá-lo, foi muito exagerado e às vezes explorado ideo-
logicamente. A tese heliocêntrica já fora proposta pelo sacerdote polonês Copér-
nico, em sua obra De revolutionibus orbium coelestium (1543), dedicada ao Papa
Paulo III, que a recebeu bem (esta obra, em contrapartida, foi duramente criticada
por Lutero). A Galileu não se pediu senão que ensinasse essa tese como uma hi-
pótese. Sua suposta desobediência a essa prescrição motivou sua condenação em
1633”.
523
ΑΩ
524
ΑΩ
cílio de Elvira (313) para a mulher que abortasse; entre tais penas, estavam a peni-
tência perpétua e a recusa de comunhão até no leito de morte, as quais depois se fo-
ram mitigando à medida que se consideravam as circunstâncias atenuantes. (Cf.
JORGE MARTÍNEZ BARRERA, A Política em Aristóteles e Santo Tomás, Rio de Janeiro,
Sétimo Selo, 2007, p. 148-149.)
81
IV, d. 44, q. 1, a. 2, ad 5.
82
Cf. JORGE MARTÍNEZ BARRERA, op. cit., p. 152-153.
526
ΑΩ
APÊNDICE II
83
Até à conclusão, que será de todo nossa, seguiremos aqui algo livremente a
REGINALD GARRIGOU-LAGRANGE, La Madre del Salvador y nuestra vida interior, 3ª.
ed., trad. José López Navío, Buenos Aires, Ediciones Desclée, de Brower, 1954, p.
53-58.
527
ΑΩ
Escrituras (Rom 3, 23; 5, 12 e 19; Gal 3, 33; 2 Cor, 5, 14; 1 Tim, 2, 6).
Por isso ele apresentou o seguinte problema na Suma Teológica (III,
q. 27, a. 2): se a Virgem foi santificada antes da animação – e já vimos
que se trata de animação mediata –, ou seja, na concepção de seu cor-
po. Santo Tomás dá, no início deste artigo, quatro argumentos a favor
da concepção imaculada, ainda, pois, antes da mesma animação. E
depois responde: “Não se concebe a santificação da bem-aventurada
Virgem antes da animação: em primeiro lugar, porque esta san-
tificação deve purificá-la do pecado original, o qual não pode ser
apagado senão pela graça, que tem por sujeito a alma mesma; em
segundo lugar, se a Virgem Maria tivesse sido santificada antes da a-
nimação, não teria incorrido jamais na mancha do pecado original e
não teria tido necessidade de ser resgatada por Cristo [...]. E isto não
convém, porque Cristo é o salvador de todos os homens”. 84 Mas
acrescenta ao fim do corpus: “Por isso, resta que a santificação da
Bem-aventurada Virgem se tenha dado após sua animação”. E rea-
firma em ad 2: “Contraiu o pecado original”.
→ Quanto todavia ao momento preciso em que a Virgem Maria
foi santificada, Santo Tomás não se pronuncia: declara que se seguiu
à animação (“cito post”, diz no Quodlibet 6, a. 7), mas em momento
ignorado (“quo tempore sanctificata fuerit, ignoratur”, diz na Suma
Teológica, III, q. 27, a. 2, ad 3). Na mesma Suma não aprofunda a
questão, ainda considerando que São Boaventura tinha negado que a
santificação se tivesse dado no momento mesmo da animação. Talvez
sua reserva se devesse à atitude da Igreja Romana, que não celebrava
a mesma Festa da Conceição celebrada em outras igrejas.
→ Pois bem, os princípios aduzidos por Santo Tomás não
concluem de todo contra o privilégio, e permanecem se se admite a
redenção preservadora. Mas, como com acerto diz Garrigou-Lagran-
ge, em todo este momento se sente falta “da distinção explícita entre
84
Diz Garrigou-Lagrange (p. 54): “Mesmo depois da definição dogmática de 1854
[da Imaculada Conceição], é verdade afirmar que Maria não foi santificada antes da
animação”. Mas isto nos parece mero jogo retórico.
528
ΑΩ
85
Expositio super salutationem angelicam, in S. Thomae Aq. opuscula omina, t. I,
Paris, ed. Mandonnet, 1927, introd., p. XIX. – Contra, aliás, a impugnação desta
passagem por inautêntica, note-se que, como mostra Garrigou-Lagrange a partir de
J. F. Rossi, ela está em 16 dos 19 manuscritos consultados por este. Mas alguns a im-
pugnam porque se lê umas linhas abaixo: “Todavia, a bem-aventurada Virgem foi
concebida com o [pecado] original, mas não nasceu [com ele]”. A isto responde
Garrigou-Lagrange: “É inverossímil que a poucas linhas de distância se encontrem
o sim e o não. A dificuldade desaparece se se leva em consideração que para Santo
Tomás a concepção do corpo, no princípio da evolução do embrião, precede, pelo
menos em um mês, à animação, que é a [chamada] concepção passiva consumada,
antes da qual não existe a pessoa, pois ainda não existe a alma racional” (p. 57, n.
41).
529
ΑΩ
86
Estabelecidas pelo Vaticano I com respeito ao dogma da infalibilidade papal. Ei-
las: “O Romano Pontífice, quando fala ex cathedra – isto é, / (1ª.) quando cum-
prindo seu cargo de pastor e doutor de todos os cristãos, define por sua suprema
autoridade apostólica que / (2ª.) uma doutrina sobre a fé e sobre os costumes / (4ª.)
deve ser sustentada / (3ª.) pela Igreja universal –, pela assistência divina que lhe foi
prometida na pessoa do bem-aventurado Pedro, goza daquela infalibilidade de que
o Redentor divino quis que fosse provida sua Igreja na definição da doutrina sobre
a fé e sobre os costumes”.
530
ΑΩ
531
DOS JUÍZOS DOS ASTROS,
OPÚSCULO DE SANTO TOMÁS DE AQUINO 1
1
“SANCTI THOMAE DE AQUINO, De iudiciis astrorum – Quia petisti ut tibi scriberem
an liceret iudiciis astrorum uti, tuae petitioni satisfacere uolens, super ea quae a
sacris doctoribus traduntur, scribere curaui. In primis ergo oportet te scire quod
uirtus celestium corporum ad immutanda inferiora corpora se extendit. Dicit enim
Augustinus V De ciuitate Dei Non usquequaque absurde dici potest ad solas
corporum differentias afflatus quosdam sydereos peruenire. Et ideo, si aliquis iudiciis
astrorum utatur ad prenoscendum corporales effectus, puta tempestatem et
serenitatem aeris, sanitatem uel infirmitatem corporis, uel ubertatem et sterilitatem
fructuum, et cetera huiusmodi que ex corporalibus et naturalibus causis dependent,
nullum uidetur esse peccatum. Nam omnes homines circa huiusmodi effectus
aliqua obseruatione utuntur celestium corporum: sicut agricole seminant et metunt
certo tempore quod obseruatur secundum motum solis; naute nauigationes uitant
in plenilunio, uel in lune defectu; medici circa egritudines creticos dies obseruant,
qui determinantur secundum cursum solis et lune. Vnde non est inconueniens,
secundum aliquas alias occultiores obseruationes stellarum, circa corporales
effectus uti astrorum iudicio. Hoc autem omnino tenere oportet, quod uoluntas
hominis non est subiecta necessitati astrorum; alioquin periret liberum arbitrium,
quo sublato non deputarentur homini neque bona opera ad meritum, neque mala
ad culpam. Et ideo certissime tenendum est cuilibet christiano, quod ea que ex
uoluntate hominis dependent, qualia sunt omnia humana opera, non ex necessitate
astris subduntur; et ideo dicitur Ier. x A signis celi nolite metuere que gentes timent.
Sed dyabolus, ut omnes pertrahat in errorem, immiscet se operibus eorum qui
iudiciis astrorum intendunt ; et ideo Augustinus dicit in II Super Genesim ad
litteram Fatendum, quando ab astrologis uera dicuntur, instinctu quodam
occultissimo dici, quem nescientes humane mentes patiuntur; quod cum ad
decipiendos homines fit, spirituum immundorum et seductorum operatio est, quibus
quedam uera de temporalibus rebus nosse permittitur. Et ideo Augustinus dicit in II
De doctrina christiana quod huiusmodi obseruationes astrorum referende sunt ad
quedam pacta cum demonibus habita. Est autem omnino christiano uitandum
pactum uel societatem cum demonibus habere, secundum illud Apostoli I
Cor. x Nolo uos fieri socios demoniorum. Et ideo pro certo tenendum est graue
peccatum esse, circa ea que a uoluntate hominis dependent iudicio astrorum uti.”
ΑΩ
TRADUÇÃO
CARLOS NOUGUÉ
APÊNDICE I
536
ΑΩ
APÊNDICE II
APÊNDICE III
2
Cf. PIERRE MANDONNET, Siger de Brabante e o Averroísmo Latino no Século XIII,
trad. Carlos Nougué, São Paulo, Editora PRIMVS, Coleção Neotomismo, 2017, p.
238-239.
537
ΑΩ
3
TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, III, cap. 93.
538
O SIGNIFICADO DA FRASE
“RASGOU-SE O VÉU DO TEMPLO”
1
Todas as citações de II a IV infra são tomadas da Catena Aurea de Santo Tomás
de Aquino.
ΑΩ
541
ΑΩ
inerrante é mais que ser infalível; mas, por outro ângulo, como o magistério do papa
enquanto assistido pelo Espírito é a regra próxima da fé (ao passo que as Escrituras
são regra remota da fé), este magistério está de certa maneira acima da mesma fé e
é o intérprete infalível e último das mesmas Escrituras.
3
E, com efeito, nunca o magistério definiu a questão. Como, ademais, os Padres não
chegaram quanto a este ponto a consentimento unânime, então nos é lícito adotar
esta ou aquela posição a este respeito, ou suspender o juízo como Santo To-más de
Aquino (desde que não se neguem os referidos caracteres metafísicos, e mui-to
especialmente o relato de Adão e Eva, o qual, como sempre disse o magistério, há
de tomar-se de todo historicamente). É o que diz a Comissão Bíblica sob São Pio X:
“Dúvida 8: Se na denominação e distinção dos seis dias de que fala o capítulo 1 do
Gênesis se pode tomar o ‘dia’ quer em sentido próprio, como um dia natural, quer
em sentido impróprio, como um espaço indeterminado de tempo, e se é lícito
discutir livremente sobre esta questão entre os exegetas. Resposta: Sim” (PONTIFÍCIA
COMISSÃO BÍBLICA, 1909, in HEINRICH JOSEPH DOMINICUS DENZINGER, Enchiridion
symbolorum et definitionum).
543
ΑΩ
544
ΑΩ
545
SE O LIMBO É ETERNO
Certo sacerdote defende entre seus fiéis que o limbo não é eterno.
Segundo esse sacerdote, imediatamente antes do juízo final Deus
dará às almas do limbo uma prova, de modo que, segundo se com-
portem diante dela, ou serão salvas e, unidas a seu corpo ressurrecto,
ascenderão à beatitude eterna, ou, também reunidas a seu corpo, se
condenarão ao fogo eterno da geena.
Mas tal “doutrina”, saída não se sabe de que fábrica, vai contra a
doutrina tradicional sobre o limbo, e corrompe de algum modo a fé
dos fiéis. Para o confirmarmos, mostremos, ainda que brevemente, o
que dizem a este respeito o magistério da Igreja e a Tradição, para
depois entregar a palavra a Santo Tomás de Aquino.
II
[...]
Em sentido contrário, assim como ao pecado atual é devida uma
pena temporal no purgatório, e eterna no inferno, assim também ao
pecado original é devida uma pena temporal no limbo dos Pais [os
do Antigo Testamento], e eterna no limbo das crianças. [...]
RESPONDO: deve dizer-se que o limbo dos Pais e o dos párvulos
diferem, sem dúvida alguma, quanto à qualidade do prêmio ou da
548
ΑΩ
III
IV
549
A DOUTRINA HERÉTICA DO ANIQUILACIONISMO
7
“Ad primum ergo dicendum quod quaedam opera attribuuntur iustitiae et
quaedam misericordiae, quia in quibusdam vehementius apparet iustitia, in
quibusdam misericordia. Et tamen in damnatione reproborum apparet
misericordia, non quidem totaliter relaxans, sed aliqualiter allevians, dum punit
citra condignum. Et in iustificatione impii apparet iustitia, dum culpas relaxat
propter dilectionem, quam tamen ipse misericorditer infundit, sicut de Magdalena
legitur, Luc. VII, dimissa sunt ei peccata multa, quoniam dilexit multum”.
553
ΑΩ
8
O magistério da Igreja é a regra próxima da fé (enquanto as Escrituras e a tradição
são sua regra remota). Mas por isso mesmo é que, de certo modo, o magistério está
acima da própria fé, porque a regra é anterior ou superior ao regrado, assim como
a medida o é ao medido.
554
ΑΩ
555
CRÍTICA DE A FIGURA DESTE MUNDO,
OBRA DE PACHECO SALLES*
* * *
*
Opúsculo de 2009, mas incluído neste volume após passar por certa reformulação.
1
“Os que querem investigar com êxito devem começar por suscitar bem as
dificuldades, pois o êxito posterior consiste na solução das dúvidas anteriores, e não
é possível soltar se se desconhece a atadura” (Aristóteles, Metafísica, livro I, c. 1).
ΑΩ
559
ΑΩ
560
ΑΩ
da Sede de Pedro, esta não poderia senão acabar por ser ocupada pelo
inimigo. 2
***
2
Alguns deduzem desta doutrina que a sede está vacante desde João XXIII. Quanto
à opinião do mesmo Pacheco Salles a respeito de tal assunto, divergem os testemu-
nhos. [Para nossa refutação da doutrina sedevacantista, cf. “Do Papa Herético”, in
Do Papa Herético e outros opúsculos (2.ª ed., Formosa, Edições Santo Tomás, 2019).]
561
ΑΩ
REFUTAÇÃO DA DOUTRINA
562
ΑΩ
quod in nobis est [...] Deus non deficiet nobis ab eo quod nobis est
necessarium’, diz Santo Tomás). Mas, deixando de lado a luz infusa
que Deus acende na alma dos cristãos para guiá-los pela senda da
verdade que salva, a maioria dos católicos acabou por erigir, de modo
tácito, o falso dogma da obediência incondicional ao papa como sua
obrigação primeira. Já sem poder suportar o governo absoluto do
Deus invisível da pura fé, essa maioria quis um soberano evidente e
acessível aos sentidos, mudando-se o papa de vigário de Cristo em
substituto de Nosso Senhor”. Para saber, porém, se de algum modo a
doutrina do adversário procede, é preciso saber não só se a fé dada
por Deus a cada fiel é efetivamente infalível, e não só se efetivamente
a maioria dos católicos a rejeitou e por isso deixou de ser autenti-
camente católica, mas também se cada um dos fiéis pode efetiva-
mente ter certeza de que o que julga ser fé sobrenatural dada por Deus
a ele o é de fato. Afinal, recorde-se que cada protestante sincero crê
sinceramente que sua fé individual e interior é verdadeira fé
sobrenatural infusa.
Em verdade, como já antecipado, estamos diante de um dos
modos de deformação da correta doutrina do sensus fidei. Mas na
Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 3, pergunta-se Santo Tomás se é possí-
vel haver ato de fé de um objeto falso, como se daria se um menino
fizesse um ato de fé de uma proposição falsa induzido, por exemplo,
por um sacerdote mal formado. Parece que sim, porque em princípio
o menino está predisposto a crer em tudo quanto lhe diga o sacerdote
enquanto representante da Igreja, e porque não tem capacidade para
distinguir o verdadeiro do falso em tudo quanto lhe diga o sacerdote.
Mas não é assim, porque o objeto formal e próprio da virtude sobre-
natural da fé é a verdade divinamente revelada, e em nada divi-
namente revelado pode haver nem sombra de erro. “Assim como a
vista”, diz o Padre Álvaro Calderón em A Candeia Debaixo do Al-
queire, “não pode ver senão a cor por meio da luz; assim como a
inteligência não pode entender a verdade senão em razão de sua
evidência; assim tampouco a fé sobrenatural pode crer senão na
verdade formalmente revelada.” Ora, assim como aquele mesmo
563
ΑΩ
564
ΑΩ
3
Um dogma de fé só pode partir do magistério eclesiástico justamente pelo fato de
seu ministério não ter como critério próprio a fé nem a razão. Com efeito, embora
um papa deva considerar teologicamente – ou seja, humano modo – o que vai defi-
nir, o carisma da infalibilidade que o assiste “quando define um dogma não depende
de sua fé nem de sua ciência pessoal, pois ele poderia ser herege interiormente e
nem por isso deixaria de ser infalível. O critério de verdade do magister eclesiástico
é a assistência do Espírito Santo atualizada por sua intenção ministerial, pois para
falar em nome de Cristo ele não tem senão de fazê-lo intencionalmente; de maneira
que, [...] quanto mais impositiva for a intenção com que propõe sua sentença, mais
assistida será pelo Espírito Santo e menos margem de erro terá” (P. Calderón,
ibidem). Mas isso é negado pela doutrina de que tratamos aqui.
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4
Comentário à Física de Aristóteles, livro II, n. 268.
568
ΑΩ
5
Cf. FRANZELIN, Tractatus de divina Traditione, op. cit., p. 114, nota 1: “Como o
magistério, dotado deste carisma da infalibilidade, por sua ação ministerial, custo-
dia, propõe, explica, protege a doutrina revelada, e conserva todos os fiéis na unida-
de da fé, por isso a infalibilidade ‘in docendo’ costuma ser dita ativa, e tem como
finlidade a indefectibilidade ‘in credendo’, que pela ‘obediência da fé’ é a infalibili-
dade passiva de todo o corpo da Igreja”. Cf. também H. MAZZELLA, Praelectiones
scholastico-dogmaticae, ed. 6.ª, Turim, 1937, vol. I, p. 450: “A infalibilidade da
Igreja in credendo é efeito da infalibilidade in docendo, que portanto é seu princí-
pio: a infalibilidade ativa dos Pastores reclama necessariamente a infalibilidade pas-
siva dos fiéis” (apud P. Calderón, ibidem).
6
Deve-se, ademais, completar a afirmação de que o “crer em Deus é um ato de fé
propiciado por Ele mesmo” com o estabelecido por São Paulo e definido pelo
Concílio Vaticano I (ou seja, como algo de fé): o intelecto humano é capaz de por
569
ΑΩ
suas próprias luzes conhecer a Deus pelos efeitos de que Ele é causa, pelas coisas
criadas por Ele.
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574
ΑΩ
ofícios civis ante o povo romano”, os papas acabaram por “dobrar sua
coroa de Imperador espiritual do Orbe com a de Imperador temporal
da Urbe”. É este o primeiro momento da Cristandade.
Com a queda do Império pelas mãos dos bárbaros do Norte, e
após o reconhecimento por Carlos Magno, no século VIII, do poder
0do papa, inicia-se o segundo momento da Cristandade, o medieval,
que mais propriamente permanece desde o século VIII até a afronta
de Felipe, o Belo, a Bonifácio VIII [século XIII], mas alcança, na Pe-
nínsula Ibérica, em outras nações da Europa e na América, os séculos
XV e XVI — é a Christianitas minor dos reis católicos Isabel e Fer-
nando e dos imperadores Carlos V e Felipe II.
Pois é aos diversos momentos da Cristandade que se refere o Papa
Leão XIII ao dizer, na Encíclica Immortale Dei, que “tempo houve em
que a filosofia do Evangelho governava os estados. Naquela época, a
influência da sabedoria cristã e sua virtude divina penetravam as leis,
as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as
relações da sociedade civil”. É na Cristandade que se traduz plena-
mente na realidade a doutrina da subordinação essencial do poder
político ao poder eclesiástico, longamente desenvolvida por doutores
como Santo Hilário, São Gregório Nazianzeno, São João Crisóstomo,
Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Gregório e São Bernardo,
consolidada por Santo Tomás de Aquino, e imperada pelo próprio
magistério romano.
Muito mais que serem uma espécie de “apoio” ou “respaldo” para
a Igreja, os reinos cristãos eram instituídos por Ela. Explicita-o a
doutrina teológica dos “dois gládios”. “Há dois poderes”, escrevia já
o Papa Gelásio I (492-496) em carta ao imperador, “pelos quais é
regido o mundo: a sagrada autoridade pontifícia e o poder régio.
Deles, o primeiro é muito mais importante, pois os homens, incluin-
do os reis, prestarão contas perante o Tribunal Divino. Pois saiba,
Clemente filho nosso, que, embora ocupes o lugar da mais alta dig-
nidade entre os homens, em tudo deves submeter-te fielmente àque-
575
ΑΩ
les que têm a seu cargo as coisas divinas e defendê-los, tendo em vista
a tua salvação.” 7
“As palavras do Evangelho”, escreverá o Papa Bonifácio VIII na
bula Unam sanctam, de 18/11/1302, “ensinam-nos: esta potência
comporta dois gládios [ou espadas], ambos em poder da Igreja: o glá-
dio espiritual e o gládio temporal. Mas este último deve ser usado pa-
ra a Igreja, enquanto o primeiro deve ser usado pela Igreja. O espiri-
tual deve ser manuseado pela mão do sacerdote; o temporal, pela mão
dos reis e dos cavaleiros, com o consenso e segundo o império do
sacerdote. Um gládio deve estar subordinado ao outro gládio; a
autoridade temporal deve ser submissa [essencialmente, como se aca-
ba de ver] à autoridade espiritual.”
É neste segundo momento da trajetória da Igreja militante que,
sob a tutela de sua hierarquia, os antigos povos bárbaros, agora cris-
tãos, erguem as ordens políticas mais sãs e mais florescentes que já
houve na terra. A subordinação dos poderes civis ao poder eclesiás-
tico foi-se plasmando em costumes e rituais (como, por exemplo e
muito particularmente, a coroação de imperadores e de reis pelas au-
toridades eclesiásticas), o que permitiu, por exemplo, que um papa
como São Gregório VII (1073-1085) pudesse depor, além de exco-
mungar, o tão poderoso imperador Henrique IV: “Bem-aventurado
Pedro, príncipe dos apóstolos, creio que por ti me veio de Deus o
poder ligar e desligar no céu e na terra. Assim, confiando nesta fé, da
parte de Deus todo-poderoso e em virtude de teu poder e de tua
autoridade, tiro ao Rei Henrique o governo de todo o reino da Ale-
manha e da Itália; desligo todos os cristãos dos vínculos do juramento
que lhe fizeram ou que lhe farão, e proíbo que qualquer o reconheça
por rei”. 8 É neste segundo momento que aparecem ordenações como
as Siete Partidas (circa 1270) do Rei Afonso X, segundo as quais
7
MIGNE, Patrologia Latina, t. LIV, col. 42.
8
Citado por GLEZ, Pouvoir du Pape dans l’ordre temporel, en DTC, col. 2714,
apud PADRE CALDERÓN, El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II.
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9
Las Siete Partidas – BOE, 1999 (edição fac-similar da edição de 1555, com glosas
de Gregorio López).
10
Cód. 9614 dos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa (Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1988).
11
Carta Sicut universitatis, 30-10-1198, Denzinger-Hünermann 767; negrito nosso.
Carta Sicut universitatis, 30-10-1198, Denzinger-Hünermann 767; negrito nosso.
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12
De regno, lib. 1, cap. 7.
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sariamente a primeira medida dos reis será voltar a espada que ti-
nham recebido de Deus para a vindita do mal – ‘não em vão tem a
espada, porque é ministro de Deus, vingador para castigo daquele
que age mal’ (Rom. XIII, 4) – contra a espada espiritual que a sujeita
e domina”. A harmonia (tão perfeita quanto possível no estado de na-
tureza ferida) que se alcançou na Cristandade entre os dois poderes,
com a devida subordinação essencial do temporal ao espiritual,
muda-se então em guerra mortal, e a partir de então “os Papas de-
verão pagar a preço de sangue a audácia de recordar às potestades
temporais a doutrina da Unam sanctam” (Padre Calderón, ibidem).
Sangue, mas também omissão da íntegra doutrina da ordenação
do poder temporal ao espiritual. Com efeito, desde a bula de Boni-
fácio VIII até parte do magistério de Leão XIII – ou seja, durante
cerca de sete séculos –, o tom do papado quanto a esta matéria capital
é antes apologético. A Igreja é uma cidade sitiada. Será preciso espe-
rar São Pio X e especialmente Pio XI para que o tema volte aos docu-
mentos papais com todos os seus contornos e vigor, e caberá a este
último papa fazê-lo ganhar corpo doutrinal definitivo com a encí-
clica Quas primas, a constituição do Reinado de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Infelizmente, porém, a Cidade espiritual já não está apenas
sitiada; já está minada por um longo trabalho de sapa, que a carcome
do interior; o resultado será a desolação operada pelo Concílio Va-
ticano II e a consolidação, na maior parte da hierarquia e dos fiéis, da
religião do homem que se quer Deus.
Dessa desolação e dessa consequente consolidação da religião do
homem decorre, sim, uma obediência cega por parte dos fiéis ao Pa-
pa. Mas não se trata da devida obediência aos Papas em seu ofício de
impor e imperar doutrina sob a assistência do Espírito Santo, com o
que seu magistério se torna regra próxima da fé; trata-se de obediên-
cia cega a uma potestade que se quer carente de verdadeira autori-
dade doutrinal, e exercida, por isso mesmo, de modo maquiavélico.
Ao contrário, portanto, do que diz a doutrina de Pacheco Salles,
aquela obediência cega é resultado, sim, de uma perda da fé, mas an-
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DIFICULDADES QUANTO AOS CATECISMOS DE SÃO PIO X
II
III
1
Naturalmente, está-se falando aqui de religião, não de metafísica. Sócrates, Platão
e Aristóteles alcançaram, com mais ou menos sucesso, o Deus uno, o que é possível
pelas só luzes da razão. Se porém se trata de religião, como Deus mesmo se revelou,
além de uno, trino e com isso fundou a religião verdadeira, as demais religiões, ou
seja, as que negam a Trindade divina, não podem não ser senão falsas – e seu Deus
não é o mesmo que o Deus verdadeiro.
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IV
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§§
2
“411. Gli sposi cattolici possono anche compiere il Matrimonio civile? Gli sposi
cattolici non possono compiere il Matrimonio civile nè prima nè dopo il
Matrimonio religioso: che se lo osassero anche con l'intenzione di celebrare in
appresso il Matrimonio religioso sono dalla Chiesa considerati pubblici peccatori.”
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3
Ao contrário do que se dava na Itália de então, como se lê no mesmo Cate-cismo de
1912: “408. Come si contrae il Matrimonio? Il matrimonio si contrae esprimendo
il mutuo consenso davanti al parroco, o un sacerdote suo delegato, ed almeno a due
testimoni. // 409. Il Matrimonio celebrato in questa forma consegue in Italia
anche gli effetti civili? Il Matrimonio celebrato in questa forma consegue in Italia
anche gli effetti civili, perché lo Stato Italiano riconosce tali effetti al Sacramento del
Matrimonio. // 410. Il Matrimonio così celebrato come consegue in Italia anche
gli effetti civili? Il Matrimonio così celebrato consegue in Italia anche gli effetti
civili, mediante la sua regolare trascrizione nei registri dello stato civile, fatta a
richiesta del parroco”.
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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE
AS DIVERSAS CORRENTES NA IGREJA ATUAL
I
O MODERNISMO CONSERVADOR
E SUA HERMENÊUTICA DA CONTINUIDADE
II
O PROGRESSISMO
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III
OS TRADICIONALISMOS
diferentes motivos, não foi suficiente para que as duas partes che-
gassem a um acordo canônico.)
2) Para quem leu as duas primeiras partes deste opúsculo, seria
muito de esperar que nesta parte tratássemos antes das divergências
e antagonismos entre os grupos tradicionalistas que fundam suas
diversas cristalizações, divergências e antagonismos esses que giram
principalmente em torno da licitude ou ilicitude de um acordo
canônico com o Vaticano neomodernista. Algo diremos disso, sim;
não porém centralmente. E, embora até uns quatro anos atrás nos
também estivéssemos grandemente envolvido em tal disputa, hoje,
tradicional independente, já não o estamos – e pretendemos mostrar
aqui que o que essencialmente separa os tradicionalistas não é a ques-
tão canônica, mas algo que em princípio os divide independente-
mente dos grupos a que pertençam. Trata-se da divisão entre tra-
dicionalismo “dócil” e tradicionalismo crítico. Esta divisão foi pro-
posta primeiramente pelo Pe. Álvaro Calderón, em especial na segun-
da edição de seu La lámpara bajo el celemín (“A Candeia debaixo do
Alqueire”), sem todavia o aspeado “dócil”, de que lançamos mão nós
mesmo. Adotamos sua divisão, mas com desdobramentos por que
somos de todo responsável.
3) Mas algo ainda prévio: o sedevacantismo. À primeira vista
poderia parecer que os sedevacantistas constituem, eles também, um
grupo tradicionalista. Não são todavia tradicionalistas. Como já se
disse, sua doutrina é uma como vertigem e, como mostramos cremos
que cabalmente no livro Do Papa Herético, implica a enormidade de
que a Igreja teria acabado, contra as promessas de Cristo e contra o
definido pelo Vaticano I. Não serão, portanto, levados em conside-
ração aqui.
4) O que chamamos tradicionalista “dócil” é o que se funda de
algum modo, em seu mesmo tradicionalismo, numa ABSOLUTA
docilidade ao Magistério da Igreja, e que reconhece a assistência do
Espírito Santo não só para as definições infalíveis, mas, em algum
grau ou de algum modo, para todos os atos de magistério autêntico.
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Esta obra terminou de revisar-se em 5 de maio
– festa de S. Pio V, Papa e Confessor – do ano de 2020.