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Palavra: Veículo do Pensamento

I– “Dom mimoso de Deus”, na frase de um de nossos clássicos(1), é a


palavra o instrumento da ideia. Mas, consequência da imperfeição
mesma do homem, nem sempre a pode representar fielmente. Ao
invés, tanta é a dificuldade para traduzir a ideia na sua inteireza, que o
insigne Carlos Maximiliano, sem alguma injúria à verdade, antes com
grande respeito dela, afirmou que a palavra passava por mau veículo
do pensamento(2). Isto mesmo escreveu o talentoso Saint-Exupéry, em
sua obra-prima imortal: A linguagem é uma fonte de mal-entendidos(3).
Não maravilha, pois, que, expressão literal de uma ideia, a
palavra seja de igual passo causa e ocasião de incidentes, e estes muita
vez graves.

II – Temos entre mãos exemplo que faz ao caso. Certo advogado,


narra uma folha carioca(4), empregara em petição a palavra quadrilheiro
em referência a um oficial de justiça, o que este não levou em
paciência, comunicando-o logo a seu juiz (o Dr. Paulo César
Salomão), o qual, tomando o vocábulo à má parte, representou à
Ordem dos Advogados do Brasil contra o Dr. Salomão Velmovitsky
(assim havia nome o nobre causídico). Aquela entidade, órgão a um
tempo de disciplina e defesa dos que pertencem à ínclita profissão,
rejeitou o libelo proposto pelo juiz, preferindo acolher os argumentos
do advogado, reputados da primeira intuição: quadrilheiro não
significava só o indivíduo que fazia parte de quadrilha, era também
sinônimo de oficial de justiça. O que tudo bem visto e examinado, foi
força achar razão ao perspicaz bacharel (íamos dizendo nosso herói).
Em verdade, registraram a palavra quadrilheiro, na última acepção, os
mais autorizados lexicógrafos da língua. Depara-no-lo o bissecular
Rafael Bluteau, com a seguinte definição: “Quadrilheiro, oficial humilde
de justiça”(5). Pelo mesmo teor o velho Morais(6) e o Constâncio(7). As
próprias Ordenações Filipinas, “de autoridade clássica entre os clássicos”, na
opinião de Rui(8), reservaram aos quadrilheiros não menos de um
título(9). Portanto, da mesma sorte que meirinho, beleguim e aguazil, a
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palavra quadrilheiro tem carta de vernaculidade portuguesa entre os


sinônimos de oficial de justiça.

III – No intuito de justificar a exação de sua linguagem, o conspícuo


advogado (jamais rábula!) louvou-se no argumento de autoridade, “in
verbis”: “Descobri, num artigo do jurista Eliézer Rosa, que quadrilheiro era
sinônimo de oficial de justiça”. E, tendo-se abordoado à lição de autor de
tanto crédito, de nenhuma outra havia ele mister, em firmeza do
acerto do tratamento dispensado ao oficial de diligências.
Falara contudo verdade, quando disse ter reproduzido o
magistério de Eliézer Rosa, não só mestre na ciência do Direito senão
cultor exímio das boas letras? Estamos que sim.
Temos, com efeito, diante dos olhos cópia do artigo que,
debaixo do título Estudinhos de Processo, aquele eminente magistrado
tirou à luz em jornal do Rio de Janeiro. Dele transcrevemos este
relanço: “Em nosso vernáculo, são sinônimos dicionarizados de oficial de justiça
os seguintes: oficial de diligências, beleguim, esbirro, alcaide, aguazil, sargente,
ovençal, meirinho, quadrilheiro”(10). De seguida, ajuntou esta judiciosa
advertência: “Desses termos, muitos se tornaram obsoletos, caíram em desuso
muito justamente, porque não significam nada em nossos dias, sobre serem muito
pejorativos, injustamente pejorativos” (ibidem).
O ponto, logo se vê, está em usar com discrição aqueles
vocábulos, dos quais uns caíram em mortório, outros porém têm
curso livre e são vernáculos de lei. Quadrilheiro, posto que de fidalga
genitura, termo é que hoje se não deve empregar por sinônimo de
oficial de justiça, à conta de seu cunho notoriamente injurioso.
Matéria é esta, pois, digna de especial cautela, não se converta
em pedra de escândalo, de que mal puderam eximir-se dois altos
sujeitos, que traziam por timbre de sua muita ciência e raro aviso o
nome de Salomão, “o mais sábio de todos os que nasceram”(11).
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Notas

(1) Silvério Gomes Pimenta, in Discursos Acadêmicos, 1936, p. 65.


(2) Cf. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 1933, p. 131.
(3) “Le langage est source de malentendus” (Le Petit Prince, 1997, p. 69;
Gallimard).
(4) O Dia, 17.8.95.
(5) Vocabulário, 1720, t. VII, p. 7.
(6) Dicionário da Língua Portuguesa, 1813, t. II, p. 531.
(7) Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 1877, p. 816.
(8) Cf. Réplica, nº 2.
(9) O LXXIII do liv. I, que dispunha: “Em todas as cidades, vilas, lugares
e seus termos, haverá quadrilheiros, para que melhor se prendam os
malfeitores”.
(10) Cf. Jornal do Comércio, 5.6.78.
(11) Vieira, Sermões, 1959, t. IX, p. 256.

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