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VIVER
É
MORRER
Como se preparar para
o morrer, a morte e além

Dzongsar Jamyang Khyentse




Viver é morrer
Como se preparar
para o morrer, a morte e além

Dzongsar Jamyang Khyentse

Siddhartha’s Intent Brasil, 2020


A edição original foi publicada pela primeira vez no verão de 2018 na página
da internet https://www.siddharthasintent.org, da Siddharta’s Intent, como
um livro eletrônico com o título Living is Dying - How to prepare for Dying,
Death and Beyond. Siddharta’s Intent Brasil recebeu autorização para esta
tradução ao português diretamente do autor.

© 2019 Dzongsar Jamyang Khyentse

ISBN 978-65-81724-00-9

Coordenação
Siddharta’s Intent Brasil
Tradução
Flávia Pellanda
Revisão Técnica
Ana Cristina Lopes
Revisão
Letícia Braga
Gabriela dos Reis Sampaio
Bruna Polachini
Diagramação
Carla Irusta

Ilustração da capa:
Painel Fantasmas Famintos, Kyoto National Museum, Japão

Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Não-
Comercial-SemDerivações 4.0 Internacional. (CC BY-NC-ND 4.0)
Para ver uma cópia desta licença, visite:
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/

Pode ser copiada, distribuída ou impressa para uso justo, apenas com
atribuição total e não para fins comerciais ou compensação pessoal.
Para detalhes completos, consulte a licença Creative Commons.
Sumário
Prefácio 7
Eu vou morrer? 11
Preparação para a morte e além 31
Práticas simples de preparação para a morte 51
Como os budistas se preparam para a morte 57
Prática de aspiração 65
O doloroso bardo da morte 79
Perguntas sobre a morte 103
Como acompanhar quem está morrendo 111
O que dizer para quem está morrendo 123
As instruções sobre o bardo 133
Cuidados com pessoas que estão morrendo ou mortas 153
O que fazer após a morte 169
Perguntas sobre as práticas para os mortos 181
Perguntas sobre outros aspectos da morte 185
Para os tântrikas 197
Preces e práticas 203
Como praticar o tonglen 202
Chutor: Oferenda de água 207
Prática para longa vida e prosperidade: Um método para salvar vidas 211
Tagdrol:“Liberação pelo vestir” 223
Como fazer tsa-tsas 229
Ilustrações 237
Notas 243
Prefácio

A morte não é o oposto da vida, mas parte dela.1


Haruki Murakami

As instruções que os budistas recebem durante o processo da morte,


ao morrer e depois da morte são as mesmas, quer a pessoa morra em
paz durante o sono e em idade avançada, quer morra inesperadamente,
pelo amadurecimento de causas e condições que levam à morte súbita.
As informações sobre a morte, o morrer e além contidas neste li-
vro são uma apresentação muito simples de um ensinamento budista
que pertence a uma tradição ancestral específica. Embora muitas ou-
tras tradições budistas autênticas ofereçam essencialmente os mesmos
conselhos, cada qual desenvolveu a sua própria terminologia e lin-
guagem e, por isso, alguns detalhes podem parecer discrepantes. Por
favor, não interprete essas variações como sendo contradições.
Estes ensinamentos sobre a morte e os bardos nos foram legados
por uma longa linhagem de brilhantes pensadores budistas; cada um
deles examinou o processo com grande cuidado, nos mínimos deta-
lhes e por todos os ângulos. Os seus conselhos podem ser especial-
mente úteis para os budistas e para todos que se sintam atraídos pelos
ensinamentos do Buda, mas são igualmente relevantes para qualquer
pessoa que um dia irá morrer. Desse modo, mesmo não sendo budista,
8 VIVER É MORRER

se você é receptivo, curioso, ou está contemplando a própria morte ou


a de uma pessoa amada, é bem provável que encontre nestas páginas
alguma coisa que possa ajudá-lo.
Tudo o que nos acontece na vida e na morte só depende das causas
e condições que acumulamos. Portanto, cada pessoa irá experienciar
a morte física e a dissolução dos elementos do corpo de um jeito bem
diferente. Cada jornada pelos bardos também será única. Assim, toda
e qualquer descrição da morte, do morrer e dos bardos sempre será
uma generalização. Contudo, quando o processo de morte se iniciar,
ter ao menos uma noção sobre o que está acontecendo aliviará grande
parte dos nossos piores medos e nos ajudará a enfrentar a morte com
calma e equanimidade.

Para quem se importa com detalhes desse tipo, devo dizer algumas
palavras sobre o uso inconsistente da ortografia e dos diacríticos sâns-
critos neste livro. Em geral, quando o sânscrito aparece em caracteres
romanos em lugar da escrita devanāgarī, são empregados diacríticos
para ajudar o leitor a pronunciar as palavras de modo correto. Hoje
em dia, porém, o estudo do sânscrito é relativamente raro, cada vez
menos pessoas conseguem ler os diacríticos e, para alguns, a mera
visão daqueles rabiscos e pontinhos só serve para acrescentar mais um
nível de confusão. Os diacríticos, portanto, não foram aplicados aos
termos sânscritos que aparecem no corpo do texto, tampouco aos no-
mes das deidades, bodisatvas etc., mas alguns foram mantidos nas ci-
tações de textos. Do mesmo modo, quando os textos citados incluíam
palavras do sânscrito escritas no estilo tibetano, como, por exemplo,
hung em vez de hum, elas foram mantidas como no original.
Embora nos últimos tempos eu esteja sempre muito ocupado, por
ironia, no íntimo sou excepcionalmente preguiçoso. Tentar equilibrar
esses dois extremos exige algum malabarismo, e foi por isso que aca-
bei escrevendo boa parte deste livro em um aplicativo de mídia social.
 PREFÁCIO 9

Se o meu inglês está pelo menos legível é graças a Janine Schulz, Sarah
K. C. Wilkinson, Chimé Metok, Pema Maya e Sarah A. Wilkinson.
O conteúdo deste livro foi criado para responder a uma lista de
cerca de cem excelentes perguntas sobre a morte que foram reuni-
das por vários amigos meus. Gostaria de agradecer em particular às
minhas amigas chinesas Jennifer Qi, Jane W. e Dolly V. T.; a Philip
Philippou e à equipe do Spiritual Care de Sukhavati, em Bad Saarow,
Alemanha; a Chris Whiteside e à equipe do Spiritual Care de Dzog-
chen Beara; à Miriam Pokora, do Bodhicharya Hospice de Berlim; e a
todos os que assistiram o ensinamento em Schloss Langenburg.
Também gostaria de agradecer a Orgyen Tobgyal Rinpoche, Pema
Chödrön, Khenpo Sonam Tashi, Khenpo Sonam Phuntsok, Thang-
tong Tulku e Yann Devorsine, que contribuíram com o seu conhe-
cimento; a Adam Pearcey, Erik Pema Kunsang, John Canti e Larry
Mermelstein, por disponibilizarem generosamente as suas traduções;
a Jane W., Chou Su-ching e Vera Ho, Florence Koh, Kris Yao, Paravi
Wongchirachai, Seiko Sakuragi e Rui Faro Saraiva, por sua ajuda e
sugestões; a Cecile Hohenlohe e sua família, a Veer Singh e todos os
demais da Vana, por sua hospitalidade gentil e generosa; a Andreas
Schulz pelo projeto gráfico e diagramação do Living is Dying; e aos
artistas Arjun Kaicker e Tara di Gesu, por terem contribuído com as
suas belas ilustrações.
Eu vou morrer?

Nas primeiras três décadas da sua vida, o Príncipe Siddhartha levou


uma existência idílica entre as paredes do vasto palácio do seu pai.
Amado e admirado por todos, o belo príncipe casou com uma linda
princesa, eles tiveram um filho, e todos viviam felizes. Mas, durante
todo esse tempo, o príncipe não saiu do palácio sequer uma vez.
Aos trinta anos, Siddhartha pediu a seu fiel cocheiro, Channa, que
o levasse para passear pelas ruas da grande cidade do seu pai e, pela
primeira vez na vida, o príncipe viu um morto. Foi um choque terrível.
“O que aconteceu com aquele homem vai acontecer comigo?” per-
guntou para Channa. “Eu também vou morrer?”
“Sim, majestade,” respondeu Channa, “todos morrem. Inclusive
os príncipes.”
“Volte a carruagem, Channa,” ordenou o príncipe. “Leve-me para
casa!”
De volta ao palácio, o príncipe Siddhartha pensou sobre o que
acabara de ver. Qual era a vantagem de ser rei, se não apenas a sua
família, mas todas as pessoas nesta Terra eram obrigadas a viver à
sombra do medo da morte? Naquela mesma hora e lugar o príncipe
12 VIVER É MORRER

Channa conduz Príncipe Siddhartha para fora do palácio do seu pai

decidiu que, para o bem de todos, devotaria o resto da vida a descobrir


como os seres humanos poderiam ir além do nascimento e da morte.
Essa famosa história contém grandes ensinamentos. O simples
fato de o príncipe Siddhartha ter feito a pergunta “Eu vou morrer?”,
além de ser algo comovente pela sua inocência, também é notavel-
mente corajoso. “Eu vou morrer? O poderoso Siddhartha, o futuro rei
dos Shakyas, cujo destino é o de vir a ser o ‘Senhor do Universo’ deve
morrer?” Quantas pessoas, desde a realeza até gente comum como eu
e você, sequer pensariam em fazer tal pergunta?
A pergunta foi corajosa, mas a reação do príncipe, “Leve-me para
casa!”, soa um pouco infantil. Os adultos não deveriam saber lidar
com as novidades perturbadoras com mais maturidade? Por outro
lado, quantos adultos se preocupariam em perguntar “Eu vou mor-
rer?” E quantos interromperiam um passeio interessante para exami-
nar e contemplar a resposta?
Nós, seres humanos, nos achamos muito inteligentes. Veja todos
os sistemas e redes que montamos. Quase todos nós temos um ende-
reço para onde cartas e pacotes podem ser enviados e contas bancárias
 EU VOU MORRER? 13

onde nosso dinheiro pode ser guardado em segurança. Um ser huma-


no inventou o relógio de pulso para que todos os demais pudessem
saber as horas, e outro ser humano inventou o iPhone para estarmos
sempre em contato com a rede de amigos, conhecidos, colegas de tra-
balho e parentes.
Os seres humanos também criaram sistemas para garantir que a
sociedade funcione bem: a polícia mantém a ordem pública, os semá-
foros controlam o fluxo do tráfego nas ruas e os governos administram
o bem-estar social e os sistemas de defesa.
Apesar disso, embora nós, seres humanos, tenhamos passado vi-
das inteiras organizando, planejando e estruturando cada aspecto do
nosso mundo, quantos de nós tiveram a coragem de indagar “Eu vou
morrer?” Não deveríamos tentar contemplar a inevitabilidade da nos-
sa própria morte ao menos uma vez na vida? Principalmente porque
todos e cada um de nós vai morrer – o que, por si só, é uma informação
de importância crucial -, não faria sentido aplicar algum esforço para
processar o fato inescapável de que vamos morrer?
Uma vez mortos, o que será de todos os nossos endereços, casas,
negócios e retiros nos feriados? O que será dos relógios de pulso, iPho-
nes e semáforos? Dos seguros de vida e das aposentadorias? Do fio
dental que você comprou hoje de manhã?
Os budistas acreditam que, entre todos os seres deste planeta, os
humanos são os mais propensos a perguntar “Eu vou morrer?” Dá para
imaginar um papagaio pensando, “Será que devo comer as minhas no-
zes e sementes agora mesmo, para o caso eu morra esta noite? Ou me
arrisco e guardo para amanhã?” Os animais, simplesmente, não pen-
sam assim. E, com certeza, não pensam sobre causas e condições.
De fato, segundo o Buddhadharma, nem mesmo os deuses e seres
celestiais jamais pensam em perguntar “Eu vou morrer?” Os deuses
estão bem mais interessados em açucareiros de porcelana e colheres
de prata meticulosamente limpos, em chás preparados com esmero
e música encantadora. Dizem que os deuses adoram ficar olhando
vastas formações de nuvens, criando magicamente piscinas ou fontes
14 VIVER É MORRER

nas maiores e mais fofas, para, então, passarem horas, às vezes dias,
contemplando aquela beleza. É esse tipo de atividade que domina a
vida dos deuses, e eles consideram que isso é muito mais interessante
do que perguntar “Eu vou morrer?”. Duvido que tal ideia passe pela
cabeça deles.
Os seres humanos, por outro lado, são capazes de fazer conjec-
turas, ainda que a inexorabilidade da morte raramente lhes ocorra.
Quando nos acontece de pensar na morte? Quando passamos por um
sofrimento terrível? Não. Em meio a uma felicidade extasiante? De
novo, não. Somos inteligentes e conscientes e, portanto, desfrutamos
das condições que podem nos levar a formular tal pergunta, mas, ain-
da assim, empregamos todo o nosso tempo e energia para consolidar a
autoilusão de que nunca vamos morrer. Nos entorpecemos para fugir
à dor da realidade inescapável, ocupando e entretendo a mente, ou
inventado planos detalhados para o futuro. De certo modo, é jus-
tamente isso que torna a nossa condição humana tão maravilhosa,
mas o problema é que isso cria um falso sentimento de segurança.
Esquecemos que tanto a nossa morte quanto a morte daqueles que
conhecemos e amamos são inescapáveis.
Pense nisto: quando cada um de nós tiver vivido um quarto de
século, terá perdido pelo menos um amigo próximo ou um membro
da família. Um dia você está almoçando com seus pais, no outro eles
estão mortos e você nunca mais poderá estar com eles. Esse tipo de
experiência nos força a enfrentar a verdade da morte; para alguns, é
uma verdade muito amarga e aterradora.

Medo da morte
Temer a morte, senhores, não é nada mais do que pensar que se é
sábio quando não se é; pensar que se sabe o que não se sabe. Nin-
guém sabe se a morte não é a maior das bênçãos para o homem;
ainda assim, os homens a temem como se soubessem que ela é o
maior dos males. E, com certeza, a mais censurável das ignorâncias é
acreditar saber o que não se sabe.2
Sócrates
 EU VOU MORRER? 15

Por que sentimos tanto medo da morte?


Por muitas razões, mas a principal é que a morte é um território
completamente desconhecido. Nenhuma pessoa que conhecemos
voltou dos mortos para nos contar como é a morte. Mesmo que al-
guém voltasse, acreditaríamos nela?
A morte é um mistério e fazemos todo tipo de conjecturas a res-
peito dela, apesar de não termos ideia do que acontece quando mor-
remos. Supomos que depois de mortos não poderemos voltar para
casa; que, a partir do momento que morrermos, nunca mais pode-
remos sentar em nosso sofá favorito. Pensamos: se eu estiver morto,
não poderei assistir às próximas Olimpíadas nem descobrir quem era
o agente duplo na nova série de espionagem. Mas estamos apenas
tentando adivinhar. No fundo, simplesmente não sabemos. É esse
não saber que nos apavora.
À medida que a morte se aproxima, começamos a relembrar a
vida e sentir vergonha e culpa por coisas que foram feitas ou deixadas
de fazer. Além do medo de perder nossas referências e tudo mais a
que nos apegamos nesta vida, tememos ser julgados por nossos atos
censuráveis. A ideia da morte torna-se ainda mais terrível perante
essas duas perspectivas.
Não há volta nem escapatória da morte. Talvez seja o único acon-
tecimento na vida que nos deixa sem escolha a não ser enfrentá-lo.
Não podemos simplesmente evitá-lo. Nem mesmo podemos tentar
apressar o processo nos suicidando; não funciona porque, por mais
rápido que se morra, o medo não tem um botão de “desliga”. Ainda
será necessário sentir o medo inimaginável que acompanha o morrer,
porque não podemos nos transformar em objetos inanimados como
as pedras para termos certeza de não sentir nada.
Como, então, nos livrarmos do medo que nos entorpece e paralisa
perante a morte?

Certa vez eu, Zhuang Zhou, sonhei que era uma borboleta, e era feliz
como borboleta. Tinha consciência de estar muito contente comigo
mesmo, mas não sabia que era Zhou. Acordei de repente e lá estava
16 VIVER É MORRER

eu, visivelmente Zhou. De fato, não sei se eu era Zhou sonhando que
era uma borboleta, ou uma borboleta sonhando que era Zhou. Com
certeza, existe alguma diferença entre Zhou e uma borboleta. Isso se
chama a transformação das coisas.3

Vale a pena contemplar a questão proposta pelo célebre filósofo


chinês. Quando você olha para uma borboleta, como pode saber se
você próprio não é apenas uma pequena parte do sonho da borbo-
leta? O que o leva a pensar que está “vivo” neste momento? Como
pode ter certeza de que está “vivendo”? Não pode. Tudo o que pode
fazer é supor.
Pense nisso! Como pode provar a si mesmo que está vivo e que
existe? O que você pode fazer? Um dos métodos mais conhecidos para
provar que não estamos sonhando é nos beliscarmos. Hoje em dia,
algumas pessoas tentam se sentir mais vivas cortando a pele ou até
os pulsos. Outras, menos dramáticas, vão às compras, casam ou pro-
vocam brigas com os esposos. Nada o impede de tentar todos esses
métodos. Você pode brigar, se cortar e se beliscar tanto quanto queira,
mas nada do que faça provará, categoricamente, que está vivo. Mesmo
assim, junto com a maior parte dos seres humanos, você continua
tendo medo da morte.
Isso é o que o Buda chamou de “fixação”. Você fica fixado nos mé-
todos que usa para provar a si mesmo que existe. Mas tudo o que você
imagina ser e tudo o que sente, enxerga, ouve, degusta, toca, valoriza,
julga e assim por diante é imputado, ou seja, é condicionado pelo
seu ambiente, cultura, família e valores humanos. Se você conquistar
essas imputações e o seu condicionamento, também conquistará o
medo da morte. É isso que os budistas descrevem como libertar-se das
distinções dualistas, algo que exige muito pouco esforço e absoluta-
mente nenhum gasto.
Tudo que você precisa fazer é se perguntar:
Como posso ter certeza, neste exato momento, de que real-
mente estou aqui?
Como posso ter certeza de que realmente estou vivo?
17

Zhuang Zou sonhando com a borboleta


18 VIVER É MORRER

O mero fato de formular essas duas perguntas começará a perfu-


rar todas as suas crenças imputadas. Quanto mais furos você conse-
guir fazer, mais cedo conseguirá se livrar do condicionamento; com
isso, terá chegado bem mais perto daquilo que os budistas descrevem
como “compreender a shunyata”. Por que é necessário compreender a
shunyata? Porque, ao compreender e consumar a shunyata, você não
só conquistará, finalmente, o seu medo entorpecedor da morte, mas
também a suposição entorpecedora de que está vivo.
Nenhuma das suposições sobre quem você é, quem finge ser, ou
sobre os rótulos que cola em si mesmo é o verdadeiro “você”. São
apenas conjecturas. E são justamente essas conjecturas, presunções,
fantasias, rótulos etc. que criam a ilusão do samsara. Muito embora
o mundo que o rodeia e os seres que fazem parte dele “apareçam”,
nenhum “existe”; é tudo uma ilusão, uma invenção sua. Depois de
aceitar totalmente essa verdade, não apenas intelectualmente, mas na
prática, você não sentirá mais medo. Verá que, assim como a vida, a
morte também é uma ilusão. Mesmo que não consiga entender total-
mente essa visão, a familiaridade com a morte reduzirá exponencial-
mente o seu medo da morte.
Vale a pena repetir esse ponto. O medo, principalmente o medo
da morte, é desprovido de razão e desnecessário, e grande parte desse
medo vai se dissolver no instante em que você realmente aceitar que
tudo que aparece e existe é uma mera ilusão, aprendida e inventada
por você mesmo. Então, como poderemos chegar a aceitar que o sam-
sara é uma ilusão?

A vida é uma ilusão


Inúmeros métodos estão disponíveis para aqueles que estão ansiosos por
entender plenamente a natureza ilusória da vida e da morte. De fato, o
único propósito de todos os ensinamentos do Buda é a compreensão de
que todos e cada um dos fenômenos do samsara são ilusões.
Comece por escutar tudo que puder sobre as ilusões que são a
“vida” e a “morte”. Nunca será demais ouvir sobre isso. E não se engane
 EU VOU MORRER? 19

pensando que escutar e ouvir não sejam práticas autênticas do Darma,


pois, na verdade, é justamente o contrário.
A seguir, contemple sobre o que ouviu e aprenda mais lendo livros.
Por fim, o mais importante: procure se acostumar com o que apren-
deu. Como? Há vários métodos para se acostumar com a ideia de que
a vida é como um sonho. A mais simples e efetiva é fazer algumas
perguntas. Apenas pergunte. Não é preciso encontrar uma resposta
para todas elas.

Faça como Zhuang Zhou


Assim como Zhuang Zhou, observe uma borboleta e se pergunte:
Essa borboleta está “me” sonhando? Eu sou o sonho da borboleta?

Belisque-se
Belisque-se, com força ou gentileza, como quiser, e se pergunte:
Quem está beliscando? Quem está sentindo o beliscão?

Apenas saiba o que está pensando e observe


Agora, neste momento, você deve estar pensando em algo. En-
quanto pensa, apenas saiba que está pensando naquilo. Se o pen-
samento for ruim, não permita que ele o leve a outro pensamen-
to, seja bom ou ruim. Seja qual for o pensamento ruim original,
apenas observe-o.

Se o pensamento for bom, apenas observe-o.

Se estiver pensando sobre as chaves do carro, apenas saiba que está


pensando sobre as chaves do carro.

Enquanto pensa sobre as chaves do carro, se, de repente, desejar


uma xícara de chá, apenas saiba que está pensando na xícara de chá.
Não tente terminar o pensamento sobre as chaves do carro.

Caso se sinta tomado pelo medo da morte, apenas olhe para aquilo.
Não pense sobre o que você pensa que deveria estar fazendo, nem
sobre como você pensa que deveria estar fazendo.
20 VIVER É MORRER

Esses poucos pensamentos, no mínimo, irão ajudá-lo a entender


que grande parte do seu mundo interno e externo não passa de con-
jecturas e projeções.

Diminua as suas expectativas


Se você não tem tempo nem inclinação para se acostumar com a visão
de que o samsara é uma ilusão, procure, ao menos enquanto ainda
está vivo e saudável, não se apegar demais aos seus planos, esperanças e
expectativas. No mínimo, prepare-se para a possibilidade de dar tudo
errado. Tudo que é bom na sua vida pode, em um piscar de olhos,
tornar-se exatamente o oposto; e tudo que você valoriza pode, de re-
pente, deixar de ter valor.
Imagine que o seu melhor amigo vá morar no outro extremo do
país. Vocês passam a se encontrar raramente e, com o tempo, tornam-
-se emocionalmente distantes um do outro. Um belo dia, ele escreve
algo na mídia social que o deixa profundamente ofendido e, então,
de uma hora para outra, ele passa a ser o seu pior inimigo. A vida está
cheia desses testes de realidade.
Estar consciente de como as coisas mudam é uma forma útil de
treinamento mental, e abrir mão de todo o seu apego a planos, horá-
rios e expectativas reduzirá consideravelmente o seu medo da morte.
Se não passar por frustrações e fracassos enquanto está vivo, ficará
apavorado quando estiver às portas da morte. Claro, então será muito
tarde para que possa fazer algo por si mesmo. Se tiver sorte, os seus
amigos e familiares talvez queiram assumir a responsabilidade de re-
unir as causas e as condições que poderão lhe trazer algum consolo e
coragem. A melhor coisa que podemos fazer por uma pessoa que está
morrendo é não mentir sobre o que está acontecendo com ela.

Reduza o seu egoísmo


O tipo mais intenso de medo é causado pelo egoísmo e pela ganância.
Nós todos estaremos sozinhos depois da morte, mas, se você tem o
hábito de estar sempre demonstrando a sua obsessão por si mesmo
 EU VOU MORRER? 21

diante de uma audiência que o admira, vai achar a solidão da morte


insuportável. Acostumado com a admiração de bajuladores que aten-
dem os seus mínimos desejos, quando se encontrar completamente só
você será dominado por um medo inimaginável. Assim, ao reduzir o
seu egoísmo, você poderá reduzir a intensidade do seu medo.

Reduza o apego à vida mundana


Algumas pessoas sentem medo da morte porque temem a dor física.
Nem todos, porém, vão morrer com dor. Se você vai ou não, depende
do seu próprio carma. Como cada pessoa tem um carma bem diferen-
te das demais, cada uma terá uma experiência de morte única. Algu-
mas não se dão conta de que estão morrendo. Outras nem percebem
que estão mortas ou que já morreram há dias ou semanas. A morte
pode atacar de repente, como um raio, ou ser uma longa agonia. E
a maior parte da dor infligida pela morte é causada pelo apego emo-
cional à vida, posses, amigos, familiares, propriedades e preocupação
com negócios inacabados.

Viver é morrer
Uma vez que nasci,
Devo morrer,
Portanto...4
Kisei

Nada nos ajudará no momento da morte?

Tudo o que nós, seres humanos, fazemos, pensamos e sentimos en-


quanto estamos vivos é movido por ignorância, emoção e carma. E
são a nossa ignorância, emoção e carma que conspiram para assegurar
que todos tenhamos de enfrentar a vida e a morte completamente so-
zinhos. Não há escolha. Uma vez tendo nascido, nada nem ninguém
pode evitar a nossa morte. A morte inevitável começa com o nasci-
mento e não temos o poder de resistir a ela.
22 VIVER É MORRER

Se você não deseja vivenciar o desamparo e a solidão da morte e do


renascimento, deve reunir, enquanto está vivo, as causas e condições
para nunca mais renascer.
Talvez você se encontre rodeado de amigos e familiares na hora da
morte, mas é extremamente improvável que eles possam fazer algo por
você. Podem até piorar as coisas. O que acontecerá se, enquanto exala
o último suspiro, você perceber que os seus parentes avarentos já estão
brigando como abutres para ver quem fica com o quê? Se, antes do
seu corpo esfriar, eles já começarem a pilhar a sua bela casa e os seus
tesouros, invadir as suas contas de e-mail e abrir o seu cofre-forte no
banco? Se, ainda ao redor do seu leito de morte, eles já estão batendo
boca para saber quem ficará com sua inestimável escrivaninha Luís
XV, enquanto o inútil do seu sobrinho folheia uma das suas preciosas
primeiras edições? Por outro lado, ter as pessoas que você ama e o
amam ao lado da cama na hora de partir pode fazer com que a dor da
separação seja insuportável.
A mente humana grosseira tende a pensar na morte como a sepa-
ração definitiva entre o corpo e a mente. Uma descrição mais precisa é
que a morte marca o fim de um período de tempo. Portanto, ao longo da
assim chamada “vida”, estamos experienciando uma série contínua de
“mortes”. A morte da morte é o nascimento; a morte do nascimento
é a permanência; a morte da permanência é o nascimento da mor-
te. Tudo que experienciamos é, simultaneamente, uma morte e um
nascimento e, se você está sujeito ao fenômeno chamado “tempo”,
também está sujeito à morte.
Aquilo que em geral chamamos de “vida” ou “viver” é cheio de
acontecimentos, mas a morte, que talvez seja o mais importante dos
acontecimentos, é bem o oposto. Se você morresse esta noite, perderia
a sua identidade e tudo o que possui, e nenhum dos seus planos viria
a se materializar. É por isso que a morte é um problema tão grande.
Para a maioria de nós, o nascimento é bem menos preocupante do
que a morte e nem de longe tão apavorante quanto a morte. De fato,
adoramos nascimentos. Quando um bebê nasce, parabenizamos os
 EU VOU MORRER? 23

pais, e depois comemoramos os aniversários do bebê, incansavelmen-


te, pelo resto da vida dele. Uma indústria inteira é hoje dedicada a ser-
vir esse segmento: bolos de aniversário, festas de aniversário, surpresas
de aniversário e, claro, cartões de aniversário. Está tudo a um clique
de distância. Além disso, sem que seja sequer necessário levantar um
dedo, a mídia social torna impossível para qualquer pessoa esquecer
um único aniversário – nem o do gato.
Ao contrário de nós, os grandes mestres mahayana pensavam que
o nascimento é um obstáculo muito mais difícil de ultrapassar do
que a morte. Nagarjuna, o grande mahasiddha e erudito da Índia,
disse ao seu amigo, o rei5, que, para uma pessoa espiritualizada, o
nascimento é muito mais perturbador e problemático do que a mor-
te jamais poderia ser.
Então, por que as pessoas espiritualizadas valorizam mais a morte
do que o nascimento? O nascimento é o único evento da vida sobre o
qual não temos absolutamente nenhum controle. Saímos do corpo da
nossa mãe sem que tenham nos perguntado nada. Não temos direito
de opinar sobre o lugar onde vamos nascer, quem serão nossos pais, o
dia e a hora do nascimento, nem, para começo de conversa, se devería-
mos ter nascido. Todas as circunstâncias estão fora do nosso controle.
Saber que nascemos não nos ajuda em nada em nenhum estágio
da vida, enquanto saber que a morte é inevitável nos incita a valorizar
constantemente o que temos agora. Saber que vamos morrer nos ajuda
a fazer o melhor possível de nossa vida. Saber que a morte é certa e
iminente é o que nos possibilita amar e nos mantermos sãos. Também
é o que evita que a vida mundana nos deixe insensíveis e entorpecidos.
Para quase todos nós, a vida é intoxicante; pensar sobre a morte pode
ser o único método disponível para nos deixar sóbrios.
Se você nasceu, vai ter de morrer e, se estiver morrendo, vai ter de
renascer. Como podemos interromper este jogo cíclico de nascimento
e morte? Reconhecendo o estado desperto. Uma vez que você tenha
“acordado”, ou se “iluminado”, deixará de reunir as causas e condições
que resultam em morte e renascimento. Até que isso aconteça, porém,
renascerá e morrerá, uma vez após a outra.
24 VIVER É MORRER

Como o nascimento e a morte são inseparáveis, deveríamos la-


mentar o nascimento tanto quanto lamentamos a morte. Ainda mais
hoje em dia. Pense, só por um segundo, em tudo que os seus filhos vão
passar quando forem adultos. Um dia, a sua filha vai entrar em um
shopping e ficar fascinada com todos aqueles fenômenos tentadores –
se os batons vermelhos e brilhantes já são absolutamente irresistíveis,
o que dizer, então, dos artigos de papelaria? A partir daí, não há como
evitar o mundo dos cafés gourmet e o Starbucks; ou a moda e os re-
sorts de bem-estar; ou as contas bancárias e o conceito de dinheiro.
Uau! A vida dela vai ser dureza!

A morte tem um lado positivo?


Encarar a morte nos ajuda a apreciar o que significa estar vivo, mas,
hoje em dia, muito poucos pensam assim. A maior parte das pessoas
do nosso tempo vive às cegas, ignorando por completo que a morte é
a inevitável e imprevisível.

Natureza búdica
De acordo com o Buddhadharma, a morte nos ensina uma verdade
extremamente positiva: que a natureza da mente de cada ser huma-
no é o Buda; que a natureza da minha mente e a natureza da sua
mente é o Buda.
A natureza búdica não é uma teoria new age exótica nem um fenô-
meno ocultista. Como você tem a natureza búdica, seja lá o que você
fizer, esteja onde estiver, a essência da sua mente é o Buda.
Sinta a textura do livro ou do dispositivo que está segurando, es-
cute o que está acontecendo ao seu redor, sinta a maciez da almofada
sob o seu traseiro ou o peso do corpo sobre a sola dos pés. Pense nas
palavras que está lendo: a essência da sua mente é o Buda.
A mente que faz tudo que acabei de mencionar, a sua mera mente
comum, é o Buda. Não apenas a sua mente é o Buda, mas a mente
comum de todo ser senciente que sabe, lê, vê, ouve, degusta e assim
por diante também é o Buda.
 EU VOU MORRER? 25

Pense em um copo com água turva. Embora a água em si seja


pura e transparente, quando é agitada mistura-se com a lama e o que
vemos é uma água turva. Do mesmo modo, a nossa carência básica de
atenção plena1 e consciência traz à tona todo tipo de pensamentos e
emoções que se mesclam com nossa mente pura e transparente, tor-
nando-a turva.

Observe a sua mente


Você pode experienciar como isso funciona imediatamente.
Pare de ler por três minutos e olhe para a sua mente.
Agora, indague-se:

Quanto tempo levou para que um pensamento surgisse na


sua mente?
Quanto tempo levou para que você começasse a pensar sobre
aquele pensamento?
E quanto tempo levou para que você se perdesse por comple-
to naquele pensamento?

O processo de um pensamento que leva a outro é bem nosso conhe-


cido. Imagine que está esperando um amigo que vai levá-lo a uma
festa. Você já fica entusiasmado no momento em que ouve a buzina
do carro. Quem será que vai estar na festa? Como vai ser a comida?
Vai ter jogos? Vai ser divertido? E, antes de botar o pé fora da porta,
sem falar no percurso até o local da festa, você já estará perdido em
pensamentos.

1  N. do Tradutor: “Mindfulness” no original. “Mindfulness” traduz o termo sâns-


crito smṛti (páli: sati), que na tradição budista quer dizer lembrar, rememorar, trazer
à mente, reter em mente e assim por diante, e diz respeito a técnicas contemplativas
tradicionais. Recentemente, o termo “mindfulness” se tornou popular com a propa-
gação global de métodos de contemplação budista, que passaram a ser integrados a
domínios tão diversos quanto medicina, educação, negócios etc. Embora o termo
em inglês “mindfulness” já seja adotado tal e qual no contexto brasileiro, optamos
aqui pelo termo “atenção plena” a fim de enfatizar a conotação tradicional com que o
conceito está sendo empregado neste texto.
26 VIVER É MORRER

A maioria de nós não cultiva nenhuma forma de atenção plena


e, portanto, nunca vê como a nossa mente se enreda nas emoções
e preocupações grosseiras do nosso corpo sobre os amigos, família,
valores, filosofias, sistemas políticos, dinheiro, posses e relações. Pela
vida inteira, a consciência, que é a nossa natureza búdica, está cega,
diluída, aturdida, embaçada e embotada por pensamentos desenfrea-
dos, até ficarmos de tal modo atolados em confusões, expectativas e
complicações que é como se a natureza da mente não existisse.
No momento da morte, seja você um praticante budista experien-
te, o CEO do Google, um corretor de Wall Street ou um materialista
de qualquer espécie, o processo natural de morrer forçará a sua mente
a se separar de tudo que você conhece. Obviamente, isso significa a
separação dos amigos, da família, da casa, do parque e da academia de
ginástica, mas também significa a separação da única coisa que esteve
com você por toda a vida, 24 horas por dia, sete dias por semana e até
enquanto você dormia: o seu corpo. Quando você morre, todo o seu
corpo, inclusive os elementos mais sutis (terra, água, fogo, ar e espaço)
bem como os sentidos, são necessariamente deixados para trás.
Enquanto você está vivo, tudo o que você pensa que vê, ouve, pro-
va, toca e assim por diante passa pelo filtro dos sentidos: passa pelos
seus olhos, ouvidos, língua, corpo e assim sucessivamente. Quando,
afinal, a sua mente tiver uma experiência de percepção, aquilo já terá
passado pelos seus órgãos dos sentidos e a sua consciência, além de
ter sido condicionado pela sua educação e cultura. Esse processo de
filtragem é o que torna muito da vida possível.
Imagine que um dia você acorde em um lugar estranho. Bem na
sua frente está uma parede cor de creme onde foram pintados dois
semicírculos e dois círculos pretos. Instantaneamente, baseada na
sua educação e exposição à propaganda, a sua mente interpreta o
que vê como “COCO”. (Ainda mais se você for um nouveau riche
que não sabe nada sobre perfumes. Como ainda não ouviu falar em
D.S. & Durga, talvez ainda pense que o Coco Chanel é o melhor
perfume do mundo.)
27

Estátua do Buda no Parque Nacional de Seoraksan, Coreia do Sul


28 VIVER É MORRER

Enquanto estamos vivos, tudo que percebemos é interpretado por


nosso condicionamento e educação – ou pela falta dela. É isso que nos
permite dar nome aos odores familiares, como o perfume do sândalo
e da lavanda, ou ao fedor de urina em um banheiro público. Também
é assim que identificamos as coisas. Se folhas secas de carvalho fossem
picadas para ficar parecidas com um chá e depois colocadas numa em-
balagem da Fortnum and Mason com um rótulo exótico, muita gente
correria para comprar, sem sequer considerar qual seria o sabor.
Na morte, as leis da natureza removem os seus órgãos dos sentidos
e a mente é deixada nua e completamente sozinha. Como você não
tem mais os olhos feitos de carne e sangue, tudo que percebe é cru e
sem filtro. Sem os olhos para filtrarem a sua percepção, “COCO” na
parede cor de creme vai parecer bem diferente.
O budismo nos diz que, para o praticante espiritual, esse momen-
to de nudez total, o momento da morte, é extremamente precioso.
Na morte, as forças da natureza, na verdade, nos ajudam a apreciar, a
reconhecer e a nos apropriarmos da natureza inata que sempre esteve
conosco, o Buda. Se o praticante já estiver familiarizado com a natu-
reza da mente, o momento da morte é de fato muito precioso. É por
isso que os budistas desenvolvem, enquanto estão vivos, a aptidão e a
habilidade que serão necessárias para aproveitar ao máximo as opor-
tunidades que a morte oferece naturalmente.
O momento da morte é particularmente crucial para os tântrikas
porque, mesmo que você não tenha conseguido alcançar a iluminação
enquanto estava vivo, você terá desenvolvido as habilidades necessá-
rias para ter sucesso no momento da morte.

A certeza e a incerteza da morte


Para o bem ou para o mal, uma vez que tenhamos cambaleado até
a vida por meio do processo que chamamos de “nascimento”, nossa
única certeza é a de que vamos morrer. Mas o que nenhum de nós
sabe ao certo é quando a morte virá, e é essa justaposição perturbadora
que faz da morte algo tão fascinante de se contemplar. A certeza de
 EU VOU MORRER? 29

que vamos morrer já é bastante ruim, mas a incerteza sobre quando


vamos morrer é bem pior. É como comprar um colar muito caro da
Tiffany sem saber se teremos a chance de usá-lo.
Paradoxalmente, a incerteza sobre a hora da morte é o que nos
força a fazer planos. Como nos sentimos inseguros e desconfortáveis,
abarrotamos nossos dias com compromissos. Contudo, nada nos ga-
rante que alguma coisa vá chegar a acontecer, por mais bem planejada
que seja. O fato de combinar um encontro com um amigo em Lon-
dres, na sexta feira, não significa que isso vá ocorrer, pois inúmeras
situações imponderáveis podem se interpor. É provável que nenhum
dos seus planos se realize como o esperado; o futuro dos seus filhos,
a aposentadoria dos seus avós, o seu novo apartamento, o negócio
perfeito, as suas férias dos sonhos, nada é garantido. Pode dar tudo
errado, ou dar muito mais certo do que você jamais ousaria sonhar.
Afinal, o inesperado não é, necessariamente, ruim. O interessante é
que nunca sabemos se qualquer coisa, por mais planejada e programa-
da que seja, vai acontecer. Por mais que você acredite cegamente que
tudo vai dar certo, é raro que isso aconteça. Desse modo, o sofrimento
que você sente quando os seus planos vão por água abaixo é inteira-
mente autoinfligido.
Fazer planos e marcar compromissos também é um jeito muito
eficiente de gastar o seu futuro. Pense nisso. Cada minuto reservado
para um encontro ou atividade já foi usado muito antes de acontecer.
Além disso, agora que você marcou o compromisso, passará pelo so-
frimento adicional de garantir que o plano saia do papel.
Uma das principais razões para se praticar o Darma é nos prepa-
rarmos para a morte certa. Para alguns, é a única razão para praticar e
isso, por si só, faz a prática valer a pena. Hoje em dia, vários aspectos
do Darma, como a atenção plena, estão se tornando cada vez mais
populares, mas quase nunca como preparação para a morte e, com
certeza, não como preparação para aquilo que está além da morte. As
pessoas atualmente meditam por qualquer razão na face da terra, ex-
ceto a mais importante. Quantos alunos do vipassana meditam para
30 VIVER É MORRER

se preparar para a morte? E quantos praticam porque desejam acabar


de uma vez por todas com o ciclo de morte e renascimento? Em geral,
uma pessoa medita para se tornar um executivo de sucesso, para encon-
trar um companheiro, ser feliz, ou porque deseja ter uma vida calma e
tranquilidade mental. Para tal pessoa, a meditação é uma preparação
para a vida, não para a morte; portanto, é uma meditação tão munda-
na quanto os seus outros afazeres, como ir às compras, jantar fora, se
exercitar e encontrar pessoas.
Se tudo o que você deseja é relaxar e desanuviar, é provável que a
meditação não seja a melhor opção. Em vez disso, fume um charuto
para relaxar, pois é muito mais fácil e faz efeito muito mais rápido que
a meditação. Sirva-se uma dose de bom uísque. Navegue pelas páginas
da mídia social. Para a maioria das pessoas, sentar de pernas cruzadas
e costas retas, enquanto observa a respiração entrar e sair é, além de
muitíssimo chato, fisicamente dolorido. A maioria dos “meditadores”
acaba por passar mais tempo se preocupando em saber se está realmen-
te atento do que de fato meditando. Tanta preocupação não pode ser
boa para a sua pressão sanguínea, não é mesmo?
A vida é cheia de surpresas. Se você está lendo este livro para se
preparar para a morte de uma pessoa amada que está com uma doença
terminal, nada garante que você não morra antes dela, por mais jovem
e saudável que seja. Então, a melhor aposta é estar pronto para tudo e
bem consciente das realidades do samsara. Do contrário, se você pre-
ferir se agarrar a suas expectativas e suposições sem fundamento, se
continuar alheio às coisas como elas realmente são, se for ganancioso,
estupidamente sossegado e continuar acreditando que todos os seus
planos mundanos vão se realizar com perfeição, quando o pior acon-
tecer, o seu sofrimento será excruciante e não haverá nada que você
possa fazer a respeito.
Preparação para a morte e além

O Buda disse que a atenção plena suprema é lembrar que a vida é


impermanente e a morte é inevitável.

Entre todas as pegadas,


A do elefante é a suprema;
Entre todas as meditações de atenção plena,
Aquela sobre a morte é a suprema.6

Algumas pessoas sabem, intuitivamente, que a vida está chegando ao


fim. Embora sejam jovens e saudáveis e não exista uma razão lógica
para que morram, elas sentem que a morte está próxima. Outras,
sabem que vão morrer porque receberam um diagnóstico de doen-
ça incurável, terminal. A não ser que sejam praticantes espirituais,
é nessa hora que quase todas as pessoas entram em pânico, ficam
deprimidas e perdem a esperança. Entretanto, em vez de entrar em
pânico, a maioria dos praticantes espirituais reconhece que a morte é
uma grande oportunidade para intensificar e aprimorar a prática do
Darma e desacelerar todas as atividades sem sentido que dominam a
vida mundana.
32 VIVER É MORRER

Quer você saiba que tem apenas alguns meses de vida ou pense
que tem a vida inteira pela frente, a morte é uma realidade que terá de
ser enfrentada mais cedo ou mais tarde. Do ponto de vista dos ensina-
mentos budistas, quanto mais cedo enfrentá-la, melhor.

Enfrente o fato de que vai morrer


A morte destrói o homem: a ideia da morte o salva.
E. M. Foster7

A primeira coisa que você precisa fazer é se convencer de que, mesmo


sem ter ideia de quando isso vai acontecer, você vai morrer.
Todos os dias morrem pessoas. Em algum momento da vida, todos
nós nos encontraremos à beira do leito de morte de uma pessoa queri-
da. Mesmo assim, quantos de nós realmente acreditamos que a morte
vai chegar?
Uma reação costumeira, quando recebemos a notícia de que esta-
mos perto da morte, é sentir que fomos enganados e não merecemos
uma coisa dessas. Subconscientemente, pensamos: “Por que isso está
acontecendo comigo? Por que agora? Afinal, sou jovem, não tenho 99
anos! Se eu fosse um velho entenderia, porque, obviamente, seria a
hora de morrer. Mas por que agora? A minha vida acabou de começar!”
Então, a sua primeira preparação para a morte é se convencer de
que, embora não tenha ideia de quando, é absolutamente certo que
você vai morrer.
Em segundo lugar, você não é a única pessoa do mundo que teve
de enfrentar a morte. Todos vamos morrer, portanto, não há nada de
injusto nisso.

… cada vez que pensar “Estou morrendo!”, visualize o Guru, o Senhor


dos Sábios, na coroa da sua cabeça e gere uma fé intensa. Depois
pense: “Não apenas eu: todos os seres sencientes estão sujeitos à lei
da morte, ninguém está a salvo. Apesar de havermos passado por in-
contáveis nascimentos e mortes aqui no samsara, tudo o que sempre
conhecemos foi o sofrimento da morte, e todos aqueles nascimentos
 PREPARAÇÃO PARA A MORTE E ALÉM 33

foram inteiramente sem sentido. Agora, porém, vou garantir que esta
morte seja significativa!”8
Dilgo Khyentse Rinpoche

O processo da morte começa no momento em que nascemos.


Ninguém espera que um bebê saia da barriga da mãe e faça um testa-
mento, mas, à medida que você envelhecer, talvez aos cinquenta anos,
ou, ainda melhor, aos quarenta, deve pensar com cuidado sobre o que
deseja fazer e conquistar antes de morrer.

Viva a vida plenamente


Tente viver a vida. Vá a Machu Pichu, Madagascar ou outro lugar que
sempre sonhou conhecer. Seja realista a respeito das coisas que precisa
comprar e possuir. Pergunte-se “Realmente preciso de outra Ferrari?
Realmente preciso de todo aquele dinheiro no banco?” Lembre-se de
que, em geral, cuidar de brinquedos caros e contas bancárias muitas
vezes cria mais preocupação do que felicidade. A não ser, é claro, que
aprecie muito a filantropia e planeje usar a sua fortuna para uma boa
causa.
Comece a ver e a se relacionar com as coisas e as pessoas ao seu
redor como se as estivesse vendo pela última vez.
Resolva todos os problemas e brigas pendentes na família e com
os amigos; essa é a hora de esclarecer mal-entendidos e se livrar de
antigas mágoas.
Acima de tudo, a melhor preparação para a morte é viver a vida
plenamente. Desfrute o chá mais delicioso do mundo, preparado com
esmero, em vez de um chá servido em copo de plástico. Vista as rou-
pas que sempre desejou usar. Leia os livros que sempre desejou ler.
Faça tudo que sempre quis fazer, por mais ultrajante ou chocante que
seja. E faça isso agora, pois talvez nunca mais tenha essa chance.

Faça compras conscientes e um testamento


Todos nós, seres humanos, adoramos o conforto e queremos ser fe-
lizes. É por isso que nos esforçamos tanto para acumular dinheiro e
34 VIVER É MORRER

bens materiais. Não é irônico que tudo o que fazemos para ter confor-
to e tranquilidade acabe sendo a fonte de ansiedade e dores de cabeça
intermináveis?
Se você tem dinheiro e propriedades, decida como devem ser
usados depois da sua morte; ponha em ordem as questões materiais
e faça um testamento. Talvez você queira deixar a sua casa e bens
materiais para os seus filhos, primos ou sobrinhas? Ou para uma
fundação de proteção aos leopardos? Ou para a pesquisa sobre a cura
do câncer?
Procure agir mais conscientemente. Pense antes de comprar as
coisas. Pare de comprar e acumular objetos inúteis: não seja um acu-
mulador. Se planeja fazer um investimento de longo prazo, faça-o
consciente de que pode morrer antes de usufruí-lo.

Laços familiares
Para muitos, as relações familiares são a principal causa de proble-
mas, especialmente quando a morte se aproxima. Em lugares como
a China, a família continua a ser uma célula social muito poderosa.
Até hoje, ideias tradicionais sobre o papel de cada membro da família
perpetuam expectativas culturais e sociais rígidas e, muitas vezes, re-
pressivas. Os pais sempre devem cumprir o papel de pais chineses que
sempre cumpriram, e as crianças sempre devem viver como as crianças
chinesas sempre viveram, para agradar os pais. Mas seria esse tipo de
envolvimento familiar realmente benéfico?
Espera-se que os pais sustentem os filhos, por mais difícil que seja.
Mas seria essa devoção obsessiva dos pais em relação aos filhos, de fato,
o que os filhos precisam? Isso faria bem às crianças? Após dedicarem
pelo menos duas décadas para criar os filhos, muitos pais chineses pre-
cisam lidar com outro nível de envolvimento familiar quando os netos
começam a chegar. Não deveria haver uma data de validade para essas
relações familiares exaustivas?
As crianças chinesas sofrem tanta pressão quanto os seus pais, no
sentido de corresponder às expectativas sociais, incluindo a responsa-
 PREPARAÇÃO PARA A MORTE E ALÉM 35

bilidade de cuidar deles na velhice. Na verdade, porém, qualquer ser


humano decente deveria ter a aspiração de cuidar dos pais, da família
e dos amigos da melhor forma possível.
É claro que não há motivo para não desfrutarmos a vida em famí-
lia, mas, à luz da preparação para a morte, tente participar conscien-
temente. Lembre-se sempre de que, mais cedo ou mais tarde, você vai
morrer e, tendo isso em vista, procure se observar enquanto lida com
a vida em família. Se esse “observador” sempre estiver consciente de
como você se comporta, pensa e age, as suas obrigações e compromis-
sos com a família serão menos limitantes.
Quando estiver fazendo qualquer coisa, sempre se lembre da mor-
te, imprevisível, mas certa, esperando-o na próxima esquina. E lem-
bre-se de que, quando você morre, morre sozinho. Então, tente usar o
“observador” para não se deixar atolar em muitas complicações fami-
liares espinhosas e emotivas.

Recite om mani padme hum


A preparação ideal para a morte é estudar em grande detalhe todos
os ensinamentos do Buda sobre o refúgio, a boditchita e a originação
dependente. Infelizmente, hoje em dia, quase ninguém tem tempo
para estudar. Então, o que você pode fazer? Pode recitar om mani
padme hum. Quem está mais familiarizado com a tradição chinesa do
budismo pode recitar namo guan shi yin pusa; ou, se você prefere
a tradição japonesa do budismo, on arorikya sowaka. Caso se sinta
mais atraído pela tradição teravada tailandesa, pode recitar buddho.9
Quer você seja budista ou não, o momento da morte em si é cru-
cial. É então que você vai precisar da mais simples e poderosa das práti-
cas, que é recitar om mani padme hum. Então, por que não começar a
recitar om mani padme hum desde já, como preparação para a morte?
Se quiser, pode sugerir este método para qualquer um que deseje estar
preparado para a morte. Isso realmente ajuda.
Por que om mani padme hum é um mantra tão poderoso? A causa
de toda a dor e sofrimento nesta existência humana é não sabermos
36 VIVER É MORRER

que a vida e a morte são ilusões ou, em outras palavras, que os bar-
dos da vida e da morte são meras projeções. Imaginamos que tudo
que vemos e sentimos é verdadeiramente existente; depois, interpre-
tamos erroneamente as nossas percepções e, como resultado, sofre-
mos. As seis sílabas do mantra om mani padme hum estão direta-
mente conectadas com as “seis portas da projeção”, e é através dessas
seis portas que criamos as projeções que criam as ilusões da vida, da
morte e dos bardos.

O que é o “bardo”?
“Bardo” é uma palavra tibetana que significa “entre” e, às vezes,
é traduzida como “estado intermediário”. Para simplificar, o bardo
é tudo que fica entre duas linhas imaginárias. Por exemplo, este mo-
mento está situado entre o passado e o futuro; ou, em outras palavras,
o dia de hoje está entre o ontem e o amanhã. Ao mesmo tempo, de-
vemos sempre lembrar que tudo é uma ilusão, inclusive os bardos, de
modo que não existem fronteiras verdadeiras separando o passado do
presente ou o presente do futuro. Isso é importante.
Um dos bardos mais significativos e profundos situa-se entre o
início do período em que desconhecemos completamente a nossa na-
tureza búdica inerente e o momento em que despertamos para ela, o
que os budistas descrevem como “iluminação”. Em outras palavras,
tudo o que acontece entre “não reconhecer” e “reconhecer” a natureza
búdica é chamado “bardo”. Dentro deste vasto bardo há miríades de
bardos menores, incluindo o “bardo desta vida”. Este bardo é de im-
portância crucial para pessoas comuns como nós, porque é nele que
temos a melhor oportunidade para escolher uma direção, ou mudá-la.
As seis portas de projeção criam a nossa experiência de cada um
dos seis reinos.10 As projeções e experiências causadas por desejo e ne-
cessidade levam ao reino humano; o orgulho leva ao reino dos deuses;
a inveja ou o ciúme levam ao reino dos assuras; a confusão e a falta de
consciência levam ao reino dos animais; a avareza e a ganância levam
ao reino dos pretas, ou reino dos “fantasmas famintos”; e a raiva leva
 PREPARAÇÃO PARA A MORTE E ALÉM 37

Estátua do Buda na estupa Mahabodhi em Bodhgaya, Índia

aos reinos dos infernos. Enquanto estamos vivos, nós, seres humanos,
experienciamos continuamente cada uma dessas projeções, portanto,
não precisamos imaginar como seria renascer nos outros reinos.

Tomar refúgio
Se você sente uma inclinação espiritual pelo budismo, um método ex-
tremamente efetivo e importante de preparação para a morte é tomar
refúgio no Buda, no Darma e na Sangha; o ideal é tomar refúgio de
agora até atingir a iluminação.
Às vezes, as pessoas perguntam se precisam ir a Índia ou ao Hima-
laia para encontrar um guru para tomar refúgio da forma apropriada.
Não, não é necessário.
38 VIVER É MORRER

O que é tomar refúgio? O cerne do ato de tomar refúgio é a con-


fiança. Você toma refúgio quando faz a opção consciente de confiar
no Darma como uma verdade irrefutável. Você decide acreditar na
verdade de que todas as coisas compostas são impermanentes, todas as
emoções são sofrimento e assim por diante11. Também decide render-
-se à verdade do Darma, ao Buda (que ensinou a verdade) e à Sangha
(seus companheiros de prática que também se renderam a essa verda-
de). Quando você tiver se rendido de todo coração e de forma incon-
dicional à verdade das Três Joias, terá tomado refúgio
Se não desejar, você não precisa passar por todo o ritual tradicional
de tomada de refúgio, mas muitas pessoas acham que a cerimônia as
ajuda a apreciar melhor o significado real do refúgio. O ritual também
lhe dá mais confiança para acreditar que, de fato, rendeu-se à verdade,
mas, a não ser que deseje isso em particular, você não precisa tomar
refúgio na presença de um mestre budista, de um monge ou de uma
monja. A sua testemunha pode ser qualquer pessoa que já tenha to-
mado refúgio, como o seu vizinho. Tudo o que a pessoa precisa fazer
é recitar os versos de refúgio, e você deve repeti-los em voz alta. O
aspecto indispensável desse ritual é você ser sincero em relação ao que
está dizendo.
É claro que a presença de uma testemunha ou do mestre pode
reforçar a sua decisão de estudar e praticar, mas a participação deles
não é estritamente necessária. Se preferir, pode tomar refúgio sozi-
nho. Tudo que precisa fazer é recitar o verso de refúgio na presença
de uma imagem do Buda, pintada ou esculpida, ou então basta você
imaginar que o Buda está à sua frente e, mentalmente, tomar refúgio
nas Três Joias.

Como tomar refúgio de forma simples


Comece colocando um texto budista, como um texto do Abhi-
dhamma ou um sutra prajnaparamita, sobre uma mesa limpa. Se você
tiver uma estátua do Buda, coloque-a ao lado do sutra.
Se desejar, ajoelhe-se na frente da estátua e do livro, com as mãos
unidas em oração, mas essa é só uma sugestão, inteiramente opcional.
 PREPARAÇÃO PARA A MORTE E ALÉM 39

Caso se ajoelhar dessa maneira seja uma afronta à cultura em que foi
criado ou se simplesmente não quiser fazê-lo, não se ajoelhe.
Se desejar fazer um ritual mais elaborado, ofereça uma flor ou quei-
me incenso. Mais uma vez, essas oferendas são inteiramente opcionais.

Pense ou diga em voz alta:

Eu me rendo à verdade de que:


Todas as coisas compostas são impermanentes – este meu
  corpo irá morrer.
Todas as emoções são sofrimento – todas as minhas emoções
  estão mescladas com esperança e medo e, portanto, não são
  confiáveis.
Todos os fenômenos são desprovidos de natureza inerentemente
  existente – tudo o que eu penso que estou vendo é projeção
  minha, e não como as coisas são na verdade.
Eu me rendo a essa verdade, o Darma;
Eu me rendo àquele que expôs essa verdade, o Buda;
E eu me rendo ao sistema que adota as leis dessa verdade, a
  Sangha.
Caso sinta-se mais seguro com uma fórmula de refúgio tradicional,
recite o verso que mais lhe agradar, ou todos eles, como queira.

Namo Buddhāya guruve


Namo Dharmāya tāyine
Namo Saṃghāya mahate tribhyopi
Satataṃ namaḥ12

Homenagem ao Buda, o professor;


Homenagem ao Darma, o protetor;
Homenagem à grande Sangha.
A todos os três, continuamente, ofereço homenagens.
40 VIVER É MORRER

Buddhaṃ sharaṇaṃ gacchāmi


Dharmaṃ sharaṇaṃ gacchāmi
Samghaṃ sharaṇaṃ gacchāmi13

Tomo refúgio no Buda.


Tomo refúgio no Darma.
Tomo refúgio na Sangha.

No Buda, no Darma e na Sangha Suprema


Tomo refúgio até alcançar a iluminação.
Por meio do mérito de praticar a generosidade e assim por diante,
Possa eu alcançar o estado do Buda para beneficiar todos os seres.14

Até que a essência da iluminação seja alcançada,


Busco refúgio nos Budas.
Também tomo refúgio no Darma
E em todas as hostes de Bodisatvas.15

Para quem preferir a tradição de Taiwan:

De agora até o fim da minha vida, eu [seu nome],


Tomo refúgio no Buda.
Tomo refúgio no Darma.
Tomo refúgio na Sangha. (3 vezes)

Eu tomei refúgio no Buda.


Eu tomei refúgio no Darma.
Eu tomei refúgio na Sangha. (3 vezes)

Para quem preferir a tradição da China continental:

Eu retorno ao Buda e nele confio, com o compromisso de que todos


os seres vivos compreendam profundamente o Grande Caminho
  e façam surgir a mente bodhi.
Eu retorno ao Darma e nele confio, com o compromisso de que to-
dos os seres vivos ingressem profundamente no Tesouro do Tesouro
  do Sutra e de que a sua sabedoria seja tão vasta quanto o oceano.
 PREPARAÇÃO PARA A MORTE E ALÉM 41

Eu retorno à Sangha e nela confio, com o compromisso de que


todosos seres vivos formem uma grande assembleia, em harmonia
  com um e todos.

Eu tomo refúgio no Buda, para não cair no reino dos seres dos
  infernos.
Eu tomo refúgio no Darma, para não cair no reino dos fantasmas
  famintos.
Eu tomo refúgio na Sangha, para não cair no reino dos animais.

Eu me comprometo a não buscar a bem-aventurança do reino


humano ou dos seres celestiais, nem a fruição do shravaka ou do
pratyekabuddha, nem a fruição do bodisatva de um nível mais
oportuno,
Mas, sim, buscar atingir a iluminação suprema junto com todos os
seres vivos.

Eu tomo refúgio no Buda, no Darma e na Sangha até alcançar a


iluminação. Pelo mérito que acumulei ao praticar a generosidade e
as demais perfeições, possa eu alcançar a iluminação para beneficiar
todos os seres migrantes.

Possa o país ter paz e as revoltas armadas ser debeladas.


Possam o vento e a chuva ser temperados, para que os seres
  usufruam de bem-estar e tranquilidade.
Possa esta assembleia bem disciplinada desejar conquistar um
  avanço vantajoso.
Possam todos atravessar os dez níveis do bodisatva sem dificuldade.

Os seres vivos são infinitos, faço o voto de salvá-los;


As aflições são infindáveis, faço o voto de extirpá-las;
As portas do Darma são ilimitadas, faço o voto de estudá-las;

O Caminho do Buda é insuperável, faço o voto de obtê-lo.


Possam este mérito e virtude
Retribuir as quatro bondades acima
42 VIVER É MORRER

E socorrer os seres dos três reinos de sofrimento abaixo.


Possam todos que vejam ou ouçam isso gerar a mente bodhi.

Para quem preferir a tradição japonesa:

ON SARABA TATAGYATA HANNA MANNANO NAU KYAROMI16


Presto homenagens aos pés de todos os Tathagatas.
ON BOCHI SHITTA BODA HADA YAMI17

OM
Faço surgir a boditchita da “decisão de alcançar a iluminação”.
NAMO
Até que eu e todos os seres tenhamos alcançado a iluminação,
Tomo refúgio nas Três Raízes.
Para alcançar o estado búdico para benefício dos outros,
Faço surgir as boditchitas da aspiração, da ação e a absoluta.

Para quem preferir a tradição páli:

Buddhaṃ sharaṇaṃ gacchāmi


Dharmaṃ sharaṇaṃ gacchāmi
Samghaṃ sharaṇaṃ gacchāmi

Dutiyampi Buddhaṃ sharaṇaṃ gacchāmi


Dutiyampi Dharmaṃ sharaṇaṃ gacchāmi
Dutiyampi Samghaṃ sharaṇaṃ gacchāmi

Tatiyampi Buddhaṃ sharaṇaṃ gacchāmi


Tatiyampi Dharmaṃ sharaṇaṃ gacchāmi
Tatiyampi Samghaṃ sharaṇaṃ gacchāmi
Vou até o Buda, que é o meu refúgio.
Vou até o Dhamma, os ensinamentos, que é o meu refúgio.
Vou até a Sangha, a comunidade, que é o meu refúgio.
 PREPARAÇÃO PARA A MORTE E ALÉM 43

Sutra da Grande Sabedoria, da Coleção de Sutras do Templo Chū sonji

Pela segunda vez, vou até o Buda, que é o meu refúgio.


Pela segunda vez, vou até o Dhamma, os ensinamentos, que é o meu
  refúgio.
Pela segunda vez, vou até a Sangha, a comunidade, que é o meu
  refúgio.

Pela terceira vez, vou até o Buda, que é o meu refúgio.


Pela terceira vez, vou até o Dhamma, os ensinamentos, que é o meu
  refúgio.
Pela terceira vez, vou até a Sangha, a comunidade, que é o meu
  refúgio.

O voto do bodisatva
Se você decidiu que deseja tomar refúgio, por que não aproveitar
melhor a oportunidade e fazer também o voto do bodisatva? Um
bodisatva é alguém que deseja, conscientemente, levar todos os seres
à iluminação e à felicidade últimas e dedica a vida a transformar em
realidade essa meta de longo prazo. Todos os grandes bodisatvas do
passado fizeram o voto do bodisatva, que é uma preparação ainda me-
lhor para a morte do que apenas tomar refúgio. Com o compromisso
de guiar todos os seres sencientes até a iluminação, você passa a ser
uma pessoa que participa ativamente da maior das visões espirituais.
44 VIVER É MORRER

Sem se importar com o tempo que será necessário ou com as dificul-


dades que vai encontrar, você, voluntariamente, faz o voto de morrer
e renascer bilhões de vezes para alcançar a sua meta.
Fazer o voto do bodisatva também pode lhe dar a certeza de haver
realmente ingressado no caminho do bodisatva. Em geral, tomamos o
voto em uma cerimônia, na presença de testemunhas, mas você tam-
bém pode fazê-lo inteiramente a sós, a decisão é sua.
Se decidir fazer o voto formalmente, sente-se com as pernas cru-
zadas e a coluna reta. Se achar melhor fazê-lo informalmente e não
quiser sentar com as pernas cruzadas, faça o voto enquanto caminha
ou quando estiver sentado no escritório. De novo, a decisão sobre o
método que vai usar é sua.
Comece por despertar na mente os dois aspectos cruciais da bo-
ditchita: a sua meta última, que é despertar todos os seres sencientes
do estado de ignorância e levá-los à iluminação; e a determinação de
nunca mais deixar de se esforçar para tornar a iluminação universal
uma realidade.
Prometa, do fundo do coração, nunca interromper o seu empenho
pela realização da boditchita e declare, inequivocamente, que nada
nem ninguém, sequer a morte e o renascimento, poderão interromper
o seu caminho. Por mais imensos que sejam os desafios, você está
absolutamente determinado a levar todos os seres à iluminação, acon-
teça o que acontecer. A sua determinação é tão grandiosa que a morte
no fim da vida será pouco mais do que um soluço nesse processo, e
não mudará nem uma vírgula do seu plano inicial.

O voto de bodisatva
Assim como os budas do passado
Manifestaram a mente desperta
E, passo a passo, cultivaram e treinaram
Nos preceitos dos bodisatvas,
Do mesmo modo, em benefício dos seres,
Eu gerarei a mente desperta,
 PREPARAÇÃO PARA A MORTE E ALÉM 45

E, passo a passo, cultivarei


E treinarei nesses preceitos. 18

De fato, uma vez que a vasta maioria dos seres sencientes está abso-
lutamente aterrorizada com a ideia de que vai morrer, por que não
transformar o seu próprio medo de morrer em um caminho?
Pense consigo mesmo:

Todos os seres sencientes vivem à sombra do medo da morte.


Possa eu carregar todo o medo que eles sentem.

Eu sei que esta vida está chegando ao fim,


Eu sei que em breve morrerei e sei que no futuro
Passarei pela experiência da morte milhões de vezes.
Mas, em qualquer situação futura,
Possam o meu desejo de iluminar todos os seres sencientes
E as minhas atividades como bodisatva nunca diminuir.

Eu sou um bodisatva.
Eu sou um filho do Buda.
Assim como todos os seres sencientes
Eu tenho a natureza búdica;
A diferença é que eu sei que tenho a natureza búdica,
Enquanto a maioria dos demais seres sencientes não sabe.

Totalmente dotado do precioso Darma do Buda,


Cumprirei com alegria o meu dever de bodisatva
E levarei todos os seres sencientes à iluminação.

Assim como existem muitas preces de refúgio tradicionais para você


escolher, também existem muitas outras práticas de boditchita, como
a seguinte prática de Taiwan.

Fazer surgir a boditchita


No Grande Tratado sobre a Perfeição da Sabedoria (Mahāprajnāpāra-
mitāśāstra), o amor e a compaixão estão incluídos entre as Quatro
46

Bodisatvas vêm em todos os tamanhos, feitios, espécies e em todas as classes sociais


 PREPARAÇÃO PARA A MORTE E ALÉM 47

Qualidades Incomensuráveis. Eles são chamados “amor incomensu-


rável” e “compaixão incomensurável”, respectivamente. A prática diá-
ria das Quatro Qualidades Incomensuráveis é muito importante no
budismo tibetano. Muitos seguidores do budismo tibetano a recitam
ao longo da sua vida.

As Quatro Qualidades Incomensuráveis


Possam todos os seres sencientes ter felicidade e as causas da
 felicidade.
Possam todos os seres sencientes estar livres do sofrimento e das
  causas do sofrimento.
Possam todos os seres sencientes nunca se separar da felicidade
  isenta de sofrimento.
Possam todos os seres sencientes viver em equanimidade, livres de
  apego e aversão.

O voto do bodisatva
A essência do voto do bodisatva é incitar a aspiração da boditchita suprema.
O princípio da boditchita é:

Os quatro votos vastos


Os seres sencientes são incontáveis; faço o voto de libertá-los.
As aflições são infindáveis; faço o voto de erradicá-las.
Os recursos do Darma são incomensuráveis; faço o voto de
  aprendê-los.
A compaixão do Buda é insuperável; faço o voto de obtê-la.

Sempre trilhar o caminho do bodisatva


Possam os três tipos de obstáculos e todas as aflições ser eliminados.
Possa eu alcançar a sabedoria e a verdadeira compreensão.
Possam todos os obstáculos causados por pensamentos e ações
  negativas ser removidos.
Possa eu sempre trilhar o caminho do bodisatva, vida após vida.
48 VIVER É MORRER

Dedicação

Possam o mérito e a virtude alcançados por esta ação


Retribuir as quatro bondades dos reinos acima
E aliviar o sofrimento dos três reinos inferiores.
Possam todos aqueles que vejam e ouçam isto
Ativar a boditchita e,
Quando este corpo de retribuição findar,
Renascer juntos na Terra do Êxtase Supremo.

Aspiração

Aspiro renascer na Terra Pura do Oeste,


Aspiro que meus progenitores sejam um lótus de nove níveis.
Quando a flor desabrochar, verei o Buda
E compreenderei que os darmas não nascem.
Os bodisatvas que nunca regressam serão meus companheiros.
Você pode fazer download de uma versão em inglês do Ritual do Voto do Bodi-
satva de acordo com a tradição de Patrul Rinpoche em: https://www.lotsawah-
ouse.org/tibetan-masters/chatral-rinpoche/bodhisattva-vow-patrul-tradition

Pense grande
Do ponto de vista budista, a melhor maneira de se preparar para a
morte é ingressar na imensa visão da boditchita e pensar grande. Des-
se modo, o poder da sua prática irá crescer exponencialmente.
Um dos maiores problemas do nosso modo de ver a vida e a morte
é que não pensamos grande. Muitas pessoas, inclusive budistas, têm
uma mentalidade estreita e mesquinha. Quando fazemos surgir e apli-
camos a boditchita, a nossa visão limitada do mundo e de tudo que ele
contém se torna muito mais ampla. As pessoas mesquinhas só pensam
nelas mesmas, nesta vida e no ambiente ao seu redor. Nas poucas
ocasiões em que pensam em algo além de si mesmas, raramente conse-
guem ir além da própria família. Apenas quando a morte se aproxima
elas começam a se dar conta do quanto as suas vidas foram limitadas e
 PREPARAÇÃO PARA A MORTE E ALÉM 49

egoístas e de que os projetos que lhes tomaram tanto tempo e energia


eram totalmente insignificantes ou fracassaram. Desse ponto de vista,
se houvesse apenas uma vida, a morte de fato seria um tipo de situação
“agora ou nunca”. Assim, não é de surpreender que as pessoas desse
tipo cheguem à hora da morte convencidas de que estão condenadas
ao fracasso eterno. O que lhes falta é uma visão e um propósito de
longo prazo que se estenda por muitas vidas. Se elas desenvolvessem a
determinação de levar todos os seres sencientes à iluminação, por mais
vidas que fossem necessárias, começariam a se sentir bem diferentes.
Então, tente pensar além do seu círculo de parentes e amigos pró-
ximos. Desenvolva um interesse genuíno pelo bem-estar de todos os
seres sencientes, incluindo estranhos e, especialmente, os seus inimi-
gos. E tenha em mente que, no contexto do objetivo último do bo-
disatva, cuidar do bem-estar dos outros significa muito mais do que
meramente dar casa e comida para todos. Cuidar dos outros significa
desejar ardentemente que cada ser senciente alcance a iluminação e,
do mesmo modo, rezar para que isso aconteça. Ao expressar esse de-
sejo inúmeras vezes, a sua visão aos poucos se ampliará. É desse modo
que aprendemos a “pensar grande”.
Práticas simples de preparação
para a morte

Muitas vezes Wood Allen é citado porque teria dito

Eu não tenho medo de morrer – só não quero estar lá quando isso


acontecer.

Para infelicidade do Woody Allen, é bem possível que ele esteja mais
“lá” na hora da morte do que nunca antes na vida. Então, o que eu
diria para alguém como Woody Allen sobre a maneira de se preparar
para a morte?
Se ele estivesse aberto a isto, eu mencionaria a grande visão da
boditchita sobre o amor, a compaixão e o desejo de iluminar todos os
seres sencientes. Eu também lhe diria que tudo que nós vemos, ouvi-
mos, tocamos e assim por diante, inclusive o nascimento e a morte, é
uma projeção criada pela nossa própria mente.
Depois, o levaria passo a passo por uma prática de atenção plena,
para que ele se acostumasse com a ideia de que tudo é uma ilusão
projetada pela mente.
52 VIVER É MORRER

Prática de atenção plena


Woddy, olhe para o seu café. Só olhe.
Se, enquanto olha para o café, você se der conta de que está pen-
sando sobre o seu carro, apenas traga a mente de volta para o café.
Tente isso algumas vezes.
Se quiser, dê um passo adiante.
Em vez de focar no café, olhe para o pensamento que está passan-
do pela sua mente bem agora.
Só olhe bem para o pensamento. Apenas o observe.
Não deixe o pensamento emendar no pensamento seguinte. Não
analise, não rejeite, não adote, nem leve o pensamento a sério.
Um pensamento não precisa ser interessante para que valha a pena
“olhar para ele”. Mesmo que seja o pensamento mais mundano, banal
e tedioso que jamais apareceu na sua mente, apenas “olhe para ele”,
sem tentar ajeitar ou melhorar nada.
Isso é o que eu diria para o Woody Allen. E repetiria tudo de novo
e de novo.
Woody, se você colocar em prática o meu conselho, vai se dar con-
ta de que a sua mente é de fato poderosa. Também verá por si mesmo
que é a mente quem cria projeções sem parar e, no mesmo instante,
esquece o que acabou de fazer. Verá como a mente começa a acreditar
que tudo que ela percebe fora de si mesma é real e está “lá”, para em
seguida esquecer que criou projeções de si própria.
Quando se convence que tudo está “lá fora” e “separado”, a mente
começa a aprender a se alienar das suas próprias projeções. Convenci-
da de que é completamente separada daquilo que vê, a mente projeta
todo tipo de ideias e conceitos, e depois sai à procura deles. Então, é a
mente que projeta o conceito de “deus” e é a mente que depois corre
em círculos tentando encontrar aquele deus. A mente é tão masoquis-
ta! É como se ela quisesse se sentir alienada de deus, só para ter alguém
para quem rezar.
Quando você entender que tudo o que vê é projetado pela sua
própria mente, estará a caminho de entender que esse “tudo” inclui,
 PRÁTICAS SIMPLES DE PREPARAÇÃO PARA A MORTE 53

necessariamente, o nascimento, a morte, a vida e o morrer. Essa infor-


mação e a prática o ajudarão a reduzir a intensidade do apego às suas
ideias sobre o que realmente seja “viver”. Você começará a entender
que a vida e o viver são, simplesmente, parte de mais outra ilusão.
Tendo dito isso tudo, Woody, recomendo sinceramente que agora
você vá para o seu clube de jazz favorito e escute a música que adora.
Não perca tempo! Gaste todo o dinheiro que tem fazendo tudo que
sempre desejou fazer. E tente fazer os outros felizes também, porque
fazer os outros felizes o fará feliz.
É isso que eu diria para o Woody Allen.

Use a sua consciência


Cada momento da vida envolve também uma pequena morte; por
isso, a própria vida nos oferece muitas oportunidades de vislumbrar a
morte. Hoje em dia, as pessoas andam tão distraídas que poucas con-
seguem aproveitar bem tais oportunidades. Contudo, há um modo
de se relacionar com as pequenas mortes da vida que o ajudará a se
preparar para a morte do seu corpo no fim desta vida.
Tudo que precisa fazer é notar que em cada coisa que você faz, a
cada momento, há uma morte – nas relações, no casamento, no estilo
de vida, numa xícara de café quase vazia.
De certo modo, esse método parece simples demais para ser efeti-
vo. Ainda assim, a simples consciência é a chave para a compreensão
de que a morte faz parte de cada momento da vida.
Aprenda a estar consciente das coisas sem sentir que precisa estar
sempre fazendo alguma coisa. Apenas note.
Por ironia, a experiência de mudanças e mortes na vida nos fazem
muito mais bem do que mal. Contudo, sempre fazemos um grande
drama a respeito de tudo, principalmente sobre as mudanças que ro-
tulamos como “más”. Então, aprenda a se alegrar e aproveitar a vida,
em vez de se lamuriar sobre coisas que estão absolutamente fora do
seu controle.
54 VIVER É MORRER

O Buda reclinado

Prática no sono
Seja qual for a sua crença ou prática espiritual, sempre aspire reconhe-
cer que os seus sonhos são apenas sonhos. Saiba, enquanto sonha, que
está sonhando. O nosso grande erro, em todas as nossas muitas vidas, é
imaginar que todas as experiências são reais. Pare de cometer esse erro!
Quando estiver adormecendo, simule o momento da morte for-
çando-se a acreditar que está quase morrendo. Se quiser, tente o se-
guinte método, que se baseia na prática da aspiração.

Para os não budistas


Quando se deitar para dormir, pense: posso morrer esta noite.
Pode ser o fim. Talvez eu nunca mais acorde de novo.
Perdoe aqueles que precisa perdoar.
Esqueça tudo que deve ser esquecido.
Pense em qualquer coisa que o deixe calmo e relaxado; pode ser
numa folha que cai ou o grasnar de um pato.
Principalmente, peça que tudo que você e todos os seres sencientes
possuem e vivenciam sejam coisas boas. De fato, se você puder se focar
em cuidar mais dos outros do que de si mesmo, isso lhe proporcionará
grande alegria, além de garantir que você próprio seja bem cuidado.
 PRÁTICAS SIMPLES DE PREPARAÇÃO PARA A MORTE 55

Quando você adormece, a consciência do seu próprio corpo – o


que os seus olhos enxergam, o seu nariz cheira, a sua língua prova e
assim por diante – será desconectada pelo sono.
Quando você acordar de novo, imagine que renasceu e que uma
nova vida está começando.
Observe como você se reconecta com os seus sentidos e os objetos
dos sentidos.
Escute o canto dos pássaros, sinta o seu mau hálito, o gosto da
noite anterior na sua boca.
Pense consigo mesmo:
O mundo para o qual despertei não vai durar para sempre.
Olhe a sua nova mesa e aquela bela caixa de papéis de carta japo-
neses que ainda nem foi aberta. Use-os e os aprecie agora: talvez seja a
sua última chance.

Para os budistas
Se desejar, siga uma antiga tradição budista e imagine que todos
os budas e bodisatvas estão reunidos no seu travesseiro. Então, antes
de deitar, ofereça uma prostração a eles. Se desejar emular a famosa
posição reclinada do Buda, deite-se sobre o seu lado esquerdo para
dormir.

Pense:

Desejo fazer bom uso desta noite de sono.


Rendo-me ao Buda, ao Darma e à Sangha.
Desejo que esta noite de sono
Seja benéfica e significativa para mim e para os outros.

Quando estiver adormecendo, pense:

Estou morrendo.
A minha consciência dos sentidos está se dissolvendo.
56 VIVER É MORRER

Ao acordar, pense:

Eu renasci.
Espero fazer bom uso desta vida efêmera
Para beneficiar a mim e aos outros.

Para os tântrikas
Aspire perceber e experienciar a luminosidade do simples saber.
Uma vez que o processo de adormecer oferece uma oportunidade ex-
celente de reconhecer essa luminosidade, faça a forte aspiração de sim-
plesmente “saber”. Na morte, todos os seus mecanismos sensórios se
dissolverão, o que significa que esse “simples saber” não será de modo
algum perturbado pelos seus sentidos e pela sua reação aos objetos dos
sentidos. Tudo o que restará será a sua mente.
Assim, trazendo à mente a prática do sono que foi descrita, visuali-
ze um lótus no chacra do coração, no qual o seu guru, a corporificação
de todos os budas, está sentado. Então, enquanto adormece, apenas
pense no guru.
Como os budistas se
preparam para a morte

De mãos vazias entrei no mundo,


De pés descalços o deixo.
Meu vir, meu ir,
Dois acontecimentos simples
Que se entrelaçaram. 19
Kozan Ichikyo

Os budistas consideram a morte uma tremenda oportunidade espiri-


tual. Mas por quê?
Sem precisarmos fazer nada, o processo pelo qual passamos natu-
ralmente ao morrer nos colocará face a face com a base da liberação. O
grande Chogyam Trungpa Rinpoche fez uma famosa descrição dessa
base: “a bondade básica do ser humano”. No momento da morte, a
mente se separa do corpo e, por uma fração de segundo, todos nós
experienciamos a nudez da nossa natureza búdica, tathagatagarbha.
Naquela fração de segundo, se a base da liberação é apontada e a reco-
nhecemos, somos liberados.
Em outras palavras, se você morrer em um ambiente propício, se
uma pessoa qualificada estiver presente no momento da morte para
apresentá-lo a sua natureza búdica e se você estiver receptivo a essa
58 VIVER É MORRER

apresentação, você será liberado. Então, sim, o momento da morte


oferece uma imensa oportunidade.
O fato de ter sido apresentado à base da liberação deixa uma forte
impressão no seu alaya. Desse modo, mesmo que não seja liberado
no momento da morte, na próxima vida, quando você ouvir palavras
como “natureza búdica” ou “tathagatagarbha”, elas soarão familiares
ou você terá uma sensação de déjà vu; essas são indicações de que você
pode ser um bom recipiente para a prática do mahasandhi.
Agora, a sua natureza búdica está envolvida pelo casulo do corpo
físico, pelos rótulos e nomes que você atribui a todos os fenômenos,
pelas distinções que faz, pelos seus hábitos, cultura, valores e emoções.
Todo o propósito e objetivo do Darma do Buda é nos soltar e liberar
desse casulo. Para entender bem essa liberação, porém, primeiro pre-
cisamos conhecer essa base da liberação.

O que é a “base da liberação”?


É mais ou menos assim: imagine que está sentado no sofá em uma sala
muito pequena. De repente, você sente uma vontade irresistível de
dançar, então leva o sofá para a sala de jantar. Você pode mover o sofá
porque, por mais pesado e volumoso que seja, o sofá pode ser movido
e o espaço necessário é inerentemente disponível.
Em outras palavras, a base da liberação, também chamada “base
do despertar” é algo como um estado de sonho desperto. Quando
temos um pesadelo, por mais terrível que seja, aquilo não acontece de
verdade, porque o pesadelo se dissolve sem deixar traço no momento
em que acordamos. O fato de que nada aconteceu é a “base da libera-
ção”, a “natureza búdica”. Então, se não havia aranhas na cama antes
de você deitar, enquanto adormecia e dormia, nem quando acordou,
por maiores e mais peludas que fossem as aranhas do sonho, não há,
nem nunca houve, aranhas na sua cama. Em outras palavras, você não
é o seu sonho. Ninguém sonha o tempo todo, só ocasionalmente, e
você pode acordar porque você não é o seu sonho: se você fosse o seu
sonho, nunca, jamais, poderia acordar.
 COMO OS BUDISTAS SE PREPARAM PARA A MORTE 59

A “base da liberação” é o que nos possibilita acordar da ilusão,


parecida com o sonho, que é esta vida. Para o budista que está mor-
rendo, saber que ao morrer todos temos a oportunidade de despertar
na base da liberação é algo extremamente encorajador. Isso nos faz
lembrar que o momento da morte é a nossa grande chance de acordar
e sermos liberados.
Está claro, porém, que todos esses exemplos e argumentos estão
baseados em conceitos budistas específicos. Muitas vezes me peguei
pensando se alguém que não seja budista e, portanto, não entenda
o jargão empregado para descrever esses métodos, teria condições de
aproveitar a oportunidade que a morte oferece. Talvez a morte seja
uma oportunidade apenas quando é encarada pela perspectiva budista.

Corte todos os apegos mundanos


Os grandes iogues budistas do passado, como Milarepa, ansiavam do
fundo do coração morrer em um local solitário e totalmente a sós.

Ninguém para perguntar se estou doente,


Ninguém para lamentar a minha morte;
Morrer aqui, sozinho, neste eremitério
É tudo que um iogue pode desejar.20

Que os homens desconheçam a minha morte,


E as aves não possam ver o meu cadáver putrefato.
Se eu puder morrer neste retiro na montanha,
O desejo deste humilde ser terá se cumprido.21

Como praticante budista, embora você saiba muito bem que a


morte é iminente e inescapável, é provável que a sua agenda esteja
sempre repleta de encontros de negócios e eventos sociais. Seja lá no
que acredite, você sempre estará planejando umas férias de verão, o
Natal em família, o jantar de Ação de Graças ou uma festa de aniversá-
rio. Mas, como já mencionei, não há a mínima garantia de que algum
dos seus planos chegue a se concretizar. Insistir na crença de que tudo
60 VIVER É MORRER

vai dar certo só serve para botar lenha na fogueira da decepção. Lem-
bre-se disso, é um ponto importante. A maior parte dos problemas
mais sérios da humanidade surgem da esperança cega e de suposições
irracionais.
À medida que a morte se aproximar, tente deixar de lado as preo-
cupações mundanas. Pare de se preocupar com a família. Pare de fazer
planos. Pare de pensar em tudo que não conseguiu fazer e em todos os
compromissos anotados na agenda.
Se tiver a bravura e a coragem, e se a sua situação permitir que faça
escolhas, em geral é melhor não contar a todo o seu círculo de ami-
gos e conhecidos que está perto da morte. É muito importante que
as pessoas espiritualizadas se distanciem das preocupações mundanas
desnecessárias que possam trazer ansiedade no momento da morte.
Os tântrikas podem, é claro, contar para o guru e para os amigos es-
pirituais mais próximos que tenham condições de oferecer ajuda espi-
ritual e apoio durante o processo de morte e além. Mas procure evitar
os amigos mundanos e a família. É improvável que filhos, irmãos e
irmãs, mães e pais que não sejam budistas saibam apreciar o aspecto
espiritual da sua morte, e a dor e o pesar que eles sentem podem, com
facilidade, deixá-lo distraído e preocupado.
Os ensinamentos budistas nos recomendam seguir o exemplo de
um veado ferido que se retira para um lugar solitário quando a morte
se aproxima. Mas, no mundo atual, é pouco provável que alguém
consiga morrer sozinho. Imagine a indignação pública incitada pela
mídia, as teorias conspiratórias e as ações judiciais que se seguiriam à
descoberta de um cadáver em decomposição, semanas após a morte! A
solidão completa ao morrer é impossível para quase todos nós; o que
podemos controlar é quem deve e quem não deve ficar sabendo da
nossa morte iminente.

Confesse
Rememore e confesse todas as suas ações e os seus pensamentos vergo-
nhosos, egoístas e negativos. Se você é um tântrika, também procure
 COMO OS BUDISTAS SE PREPARAM PARA A MORTE 61

lembrar e confessar todos os seus samayas, votos e compromissos que-


brados. Se possível, faça a confissão face a face com o seu guru ou um
irmão ou irmã no Darma. Se não for possível, confesse mentalmente.
Depois, tome refúgio e renove os votos do bodisatva. Idealmente, os
tântrikas devem pedir a presença de um irmão ou irmã-vajra que siga
o mesmo guru para testemunhar a sua reafirmação dos votos de bodi-
satva e do vajrayana.

Lembre-se do que acontecerá em breve


Comece relembrando o que acontece durante o “doloroso bardo da
morte”. Os estágios da dissolução estão descritos na página 134. Lem-
bre-se de que esses estágios podem acontecer todos ao mesmo tempo,
um após ou outro, ou numa ordem diferente da descrita, dependendo
da sua situação específica. Então, é vital que você se familiarize com
os detalhes antes de morrer. Se você sabe que vai morrer muito em
breve – por exemplo, se acaba de receber o diagnóstico de uma doença
terminal que avança rapidamente –, deve rever os ensinamentos ime-
diatamente para que, na hora da morte, saiba o que está acontecendo.

Tome refúgio e gere a boditchita


Para os budistas, a resposta mais simples para a pergunta “Como devo
me preparar para morte?” é tomar refúgio e gerar a boditchita.
O princípio fundamental da sua preparação para a morte é to-
mar refúgio, o que vai apresentá-lo a muito do que é preciso saber e
fazer. Ao fazer surgir a boditchita e “pensar grande”, você encontrará
coragem e determinação para continuar trabalhando em prol da sua
meta de iluminar todos os seres sencientes, incluindo você mesmo,
aconteça o que acontecer. A disposição de morrer e renascer bilhões
de vezes para continuar ajudando os seres que estão sofrendo colocará
em perspectiva a sua própria morte. Mais tarde, quando encarar a
morte, ela parecerá pouco mais do que um contratempo, em vez de
um imenso obstáculo.
62 VIVER É MORRER

À medida que sentir a morte cada vez mais próxima, pense na


boditchita e contemple-a tanto quanto possível. No início, ela pode
parecer falsa, mas isso acontece apenas porque você não acredita que
seja capaz de fazer surgir a boditchita genuína. Nesse estado mental, é
fácil se desapontar consigo mesmo e sentir-se como uma fraude. Pare
de pensar assim! Tudo que você precisa para gerar a boditchita é o de-
sejo de fazer os outros felizes – e você tem esse desejo. Você é generoso
e bondoso. Ao longo da vida, muitas vezes, você fez muitas pessoas
felizes, e fazer os outros felizes o deixou feliz. Lembre-se disso tudo,
pois é a prova de que você tem a habilidade e a capacidade de querer
fazer todos os seres sencientes felizes. Confie na sua habilidade. Faça
surgir e desenvolva esse desejo de ajudar a todos.
Claro, às vezes você terá vontade de dirigir o seu BMW pelas au-
toestradas da Alemanha pela última vez. Ou, ao ver uma mala muito
querida, talvez sinta vontade de ir à Índia antes de morrer. Ou deseje
viver o suficiente para ir ao casamento da sua sobrinha rechonchuda
ou do sobrinho magricela. Nessas horas, é importante contemplar a
boditchita absoluta.

Boditchita absoluta
Será difícil pensar sobre a boditchita absoluta enquanto estiver mor-
rendo e no momento da morte, então, pense sobre o assunto enquan-
to você ainda está vivo.
Pense:

A vida é uma projeção, a vida é uma miragem;


A morte é uma projeção, a morte é uma ilusão;
O nascimento é uma projeção, o nascimento é um sonho;
Esta própria existência é uma projeção, esta existência é um sonho;
Até o sabor do café é uma projeção, até o café é uma ilusão.

Lembre-se da natureza ilusória do samsara, por mais forçado ou


falso que isso pareça. As ideias muitas vezes parecem falsas até que
você se acostume com elas. “Falsificar” é a melhor preparação para o
 COMO OS BUDISTAS SE PREPARAM PARA A MORTE 63

momento da morte. E, na morte, você realmente vai precisar reunir


toda a sua coragem.
Lembrar que a vida é tão ilusória quanto o sonho nos ajuda a
perceber que a vida e a morte são pouco mais do que um pesadelo. A
vida e a morte são ilusões, mas isso não significa que não existam. O
café tem gosto de café, não de suco de laranja; o ouro é ouro, não é
latão. Aceitar que a vida e a morte são ilusões é reconhecer que tudo
que vemos e sentimos é uma projeção humana. O café não é café para
um besouro; o suco de laranja não é suco de laranja para um camelo; o
ouro não tem valor para um cão. Algumas projeções parecem valiosas,
outras não; você deve distingui-las com base nos valores aprendidos
por meio de projeções humanas. Quando, finalmente, você de fato
acordar para a iluminação, vai compreender que todas as suas expe-
riências ao longo de trilhões de vidas foram apenas um sonho; é como
derramar água fria na água fervente. Esse tipo de contemplação nos
ajuda muito.

Concentre-se na sua prática espiritual


Se você tiver a sorte de saber que é quase certo que vai morrer daqui
um ano, um mês ou uma semana, então é claro que deve se concen-
trar na sua prática. Quando estiver perto da morte, concentre-se nas
práticas mais fáceis, porque não terá tempo para aprender uma nova
filosofia, acostumar-se com uma nova técnica nem nada desse tipo.
No seu caso, a prática mais importante, que por sinal também é a mais
fácil e compatível com todos os seres, é render-se ao Buda, ao Darma
e à Sangha, tomando refúgio; se você for um praticante mahayana,
faça surgir a boditchita. Dedique-se a essas práticas de todo o coração
e recite preces de aspiração.
Caso você seja um tântrika, ofereça o corpo na prática de Kusali
enquanto ainda está vivo. Esta prática é especialmente boa, porque
Kusali é similar à prática de transferência da consciência no momento
da morte (phowa).
64 VIVER É MORRER

• Uma tradução para o inglês da prática de Kusali pode ser encontrada no texto
curto do Longchen Nyingtik Ngöndro, disponível para download em: https://
www.lotsawahouse.org/tibetan-masters/dodrupchen-I/longchen-nyingtik “6.
The Accumulation of the Kusulu: Chö”.

• A versão mais longa, The Loud Laugh of the Dakini, traduzida por Karen Liljen-
berg, está disponível para download em: www.zangthal.co.uk/files/Chod%20
2.1.pdf

Distribua os seus bens materiais


Em termos práticos, quando você souber que a morte é iminente e
certa, tente garantir que os seus bens e pertences sejam bem utiliza-
dos. Ofereça tudo que possui – até coisas tão insignificantes quanto
agulhas e linhas – para os seres sencientes e a propagação do Darma.
Quando você oferece tudo para o Darma, cria mais coragem. Tam-
bém é bom fazer doações para instituições de caridade, hospitais, es-
colas e assim por diante.

Acostume-se com a ideia da morte iminente


Mesmo que esteja em forma e tenha saúde para vencer Michael Phelps
nos 200 metros borboleta, nunca é cedo demais para começar a se
preparar para a morte.
Ao adormecer, tente fazer a prática do sono mencionada na pági-
na 54. Esteja convencido que vai morrer durante a noite e vai renas-
cer, instantaneamente, no reino de Amitabha. Ao acordar na manhã
seguinte, lembre-se de que a existência dos fenômenos como um todo
é temporária.
Se você sonhar, lembre-se de que o sonhar é um bardo.
Originalmente, este capítulo foi escrito especificamente para os
budistas, mas, na verdade, todos podem praticar esses métodos: os
que são budistas experientes, aqueles que descobriram os ensinamen-
tos do Buda há pouco tempo, os que são agnósticos, os ateus e os que
cuidam dos que estão morrendo. Todo mundo.
Prática de aspiração

Amigo, espere que o Convidado venha enquanto você está vivo.


Mergulhe na experiência enquanto está vivo!
Pense… e pense… enquanto você está vivo.
Aquilo que você chama de “salvação” pertence ao tempo antes da
  morte.
Se não cortar suas amarras enquanto está vivo, pensa que os
  fantasmas o farão depois?
A ideia de que a alma reencontrará o êxtase,
Só porque o corpo apodreceu, é pura fantasia.
O que é encontrado agora é encontrado então.
Se você não encontrar nada agora, simplesmente acabará em um
  apartamento na Cidade da Morte.
Se fizer amor com o divino agora, na próxima vida você terá a face do
  desejo satisfeito.
Assim, mergulhe na verdade, descubra quem é o Professor, acredite
  no Grande Som!
Kabir diz isto: Quando o Convidado é procurado, é a intensidade de
  seu anseio pelo Convidado que faz todo o trabalho.
Olhe para mim e você verá um escravo daquela intensidade.22
Kabir
66 VIVER É MORRER

Tradicionalmente, é dito que a prática de render-se ao Buda Ami-


tabha e recitar preces de aspiração para renascer com ele em Sukhavati
é uma das melhores preparações de longo prazo para a morte. É uma
prática recomendada, particularmente, para aqueles que estão quase
morrendo. Se preferir, você pode se render a Guru Rinpoche e aspirar
renascer com ele em Zangdokpalri, ou à Arya Tara, cujo reino búdico
é a Terra das Folhas de Turquesa, ou a qualquer buda e reino búdico
de que gostar mais.

O Buda Amitabha
Nesta última noite das noites
os arbustos sussurram
“Buda, Buda...”23
Ranseki

Por compaixão a muitos de nós, que precisamos de algo tangível


em que nos agarrar, algo para aspirar e desejar, o Buda concedeu vários
ensinamentos sobre o Buda Amitabha. Em geral, diz-se que Amitabha
tem a cor vermelha e está em Sukhavati, mas nem sempre é assim.
Na verdade, o Buda Amitabha não é outro se não a base da liberação
sobre a qual falamos antes. Por isso, até enquanto você lê este livro,
o Buda Amitabha está com você. Assim como seguir as pegadas de
uma vaca acaba por nos levar a ela, pensar em Amitabha e seu reino
nos leva ao nosso Amitabha inerente. É por isso que na nossa prática
alimentamos a aspiração de renascer em Sukhavati.
Existem muitas histórias que contam como, nas suas vidas ante-
riores como bodisatva, o Amitabha simbólico externo fez aspirações
poderosas para beneficiar os seres que sofrem. Ele rezou para que, por
meio do mero pensar na sua forma ou do recitar o seu nome, os seres
sencientes renasçam em Sukhavati imediatamente após a morte. É por
isso que, em vida, os budistas fazem grande esforço para se acostumar
a pensar no Buda Amitabha e recitar o seu mantra e é pela mesma
razão que o caminho da aspiração é tão reverenciado.
67

O Buda Daibutsu (o Buda Amitabha)


68 VIVER É MORRER

É dito que Sukhavati está situado na direção do sol poente, a oeste.


Embora as preces de aspiração para renascer em Sukhavati possam ser
feitas a qualquer hora, os budistas adoram pensar no Buda Amitabha e
o seu reino búdico enquanto apreciam um pôr do sol glorioso. Tenha
certeza absoluta, enquanto admira o céu a oeste, de que Sukhavati se
situa diretamente abaixo do sol poente, e almeje, do fundo do cora-
ção, reunir-se com o Buda Amitabha naquele reino no momento em
que morrer.
Descrições gloriosas de Sukhavati estão presentes em muitas pre-
ces de aspiração encontradas nos sutras que foram compilados por
grandes mestres budistas chineses, japoneses e tibetanos. Tente visua-
lizar Sukhavati com os olhos da imaginação: jardins exuberantes, com
aprazíveis gramados verdejantes rodeados pelas majestosas montanhas
nevadas; lagos turquesa repletos de flores de lótus e elegantes cisnes
brancos; palácios magníficos, parassóis delicados, dosséis ricamente
ornamentados, pavilhões incrustrados com pedras preciosas, aves de
cores vivas e animais de todos os tipos. Tudo em Sukhavati foi plane-
jado para atrair e cativar você.
No centro de todo esse esplendor está o requintado palácio do
Senhor Amitabha, feito de lápis-lazúli e do mais fino jade, de diaman-
tes e turquesas fulgurantes, entremeados por guirlandas de pérolas.
Imagine cada detalhe com os olhos da mente.
O Senhor Amitabha reside no centro do palácio: glorioso, vitorio-
so e magnífico. Incontáveis raios de luz emanam do seu corpo e ele
transpira amor e compaixão imensuráveis e incondicionais por todos
os seres. Ele está cercado por bodisatvas e deuses e deusas que fazem
oferendas; todos eles emanam amor e compaixão, enquanto esperam
que você se junte a eles.
À frente do Senhor Amitabha há um lago coberto de botões de flo-
res de lótus que se abrem a cada segundo, por meio dos quais os seres
ali renascem. Deseje fervorosamente renascer naquele reino e anseie
do fundo do coração ver as flores de lótus com os seus próprios olhos.
 PRÁTICA DE ASPIRAÇÃO 69

Para elaborar a prática um pouco mais, imagine Avalokiteshvara


sentado à direita do Buda Amitabha e Vajrapani à esquerda. Avalo-
kiteshvara está sempre pronto a guiá-lo e protegê-lo, e Vajrapani está
sempre pronto a dissipar os obstáculos.
Se desejar, você pode oferecer prostrações voltado para o oeste e
fazer oferendas espalhando flores, balançando varinhas de incenso e
recitando namo amitabha, amitabha hrih, ou...

Mantra do nome de Amitabha


om ami dheva hri

Mantra do coração de Amitabha


om padma dhari hūṃ

Dharani de Amitabha
tadyathā amite amitod bhave amita sambhave amita
vikrānta gāmini gagana kīrti kari sarva kleśa kṣayaṃ
kari svāhā

Uma das melhores preces de aspiração em língua tibetana é de Karma


Chagme Rinpoche, também conhecido como Raga Asey.

• Uma tradução em inglês dessa prece, por Saljay Rinpoche e Jens Hanse, inti-
tulada The Aspiration of Sukhavati, the Pure Realm of Great Bliss está disponível
para download em: www.nic.fi/~laan/sukha.htm
• Traduções para o inglês de muitas outras belas preces de aspiração estão dis-
poníveis para download no site da Lotsawa House: www.lotsawahouse.org/
topics/amitabha-sukhavati/

O velho carpinteiro
O poder da prática de aspiração é frequentemente ilustrada por uma
história tradicional sobre um velho carpinteiro.
70 VIVER É MORRER

Havia certa vez um velho carpinteiro muito apegado à vida mun-


dana e a ganhar dinheiro. Mesmo no seu leito de morte ele continuava
se preocupando em conseguir o próximo trabalho e calculando quanto
queria ganhar com aquilo. Para a sua filha amorosa, todavia, era ób-
vio que o velho estava morrendo, e igualmente óbvio que ele estava
totalmente despreparado para o que iria acontecer. Então, ela disse ao
pai que um rico senhor de uma terra distante queria encomendar uma
construção.
“Pai, o senhor foi chamado a Sukhavati para construir um palácio
para o Senhor Amitabha!”
A primeira reação do velho foi de contrariedade. Era uma lástima
que ele estivesse se sentindo tão doente! Isso dificultaria muito a via-
gem. Apesar de tudo, mesmo acamado, o velho carpinteiro começou
a planejar um palácio para o Buda Amitabha. Morreu bem quando
estava fazendo a lista das ferramentas de que iria precisar, e renasceu
imediatamente em Sukhavati.
Seres extremamente afortunados, que possuem muito mérito,
são abençoados com a inestimável capacidade de “crer”. Se você é
uma dessas pessoas, a única coisa que precisa é aspirar renascer com
o Buda Amitabha em Sukhavati. Se começar a cultivar esse desejo
agora, quando a morte vier encontrá-lo, o seu desejo terá se tornado
tão forte que tomará conta da sua mente, não deixando espaço para
medo, pânico, angústia ou qualquer outra coisa – é um pouco como
um pico de testosterona e adrenalina que o fanático por futebol sente
quando entra no estádio para assistir à final da Liga dos Campeões. Se
acreditar de verdade, você não precisa fazer mais nada. No momento
em que morrer, renascerá imediatamente em Sukhavati.
Como é a experiência dessa aspiração e desejo ardente? Imagine
que está loucamente apaixonado, mas a pessoa amada mora do outro
lado da cidade. Você sente tanto a sua falta, que sobe no telhado só
para olhar na direção da casa dela e, enquanto olha, sente aquele dese-
jo imenso de estar com ela. É esse tipo de aspiração e desejo que você
deve cultivar por Amitabha, e é um modo excelente de se preparar
para a morte.
71

A terra pura do Buda Amida

Por que eu hesitaria?


Tenho uma autorização de viagem
Concedida pelo Buda Amitabha.
Karai24
72 VIVER É MORRER

O Buda Amitabha no budismo terra pura


O budismo terra pura, às vezes chamado de amidismo, é uma das
escolas budistas mais populares no Leste Asiático hoje em dia. É uma
forma de budismo devocional focado no Buda Amitabha. Podem ser
encontrados elementos do budismo terra pura em várias escolas bu-
distas da China e do Japão. O budismo terra pura ensina que a única
maneira de renascer na terra pura, uma morada celestial perfeita, onde
a iluminação é certa, é a devoção ao Buda Amitabha. A prática de
recitação do mantra e do sutra de Amitabha é muito popular no Leste
Asiático.

Mantra do Buda Amitabha na tradição chinesa


NAMO AMITUOFO

No Japão, o Buda Amitabha é conhecido como Amida Butsu e Amida


Nyōrai (o Tatagatha Amitabha) e é a deidade principal da Escola Terra
Pura de budismo japonês (Jōdoshū) e da Verdadeira Escola Terra Pura
de budismo (Jōdoshinshū).
É dito que quando você está morrendo, Amida Butsu vem bus-
cá-lo em pessoa, para levá-lo à terra pura. O seu poder excepcional
deve-se ao grande voto que ele fez de continuar liberando todos os
seres sencientes até esvaziar completamente os infernos. Caso pense
em Amida Butsu no momento da morte, até mesmo a pessoa mais
negativa, egoísta, gananciosa e violenta pode renascer na terra pura.

Mantra de Amida Butsu


NAMU AMIDA BUTSU

Mantra de Amida Nyōrai


OM AMIRITA TEISEI KARA UM25
 PRÁTICA DE ASPIRAÇÃO 73

Palácio de Guru Rinpoche em Zangdokpalri, a Montanha Cor de Cobre

Guru Rinpoche
Se você se sentir mais conectado a Guru Rinpoche, Padmasambhava,
aspire renascer em Zangdokpalri, a Gloriosa Montanha Cor de Cobre.
A Montanha Cor de Cobre, que fica a sudoeste, é cercada por
oceanos de sangue, montes de caveiras, pilhas de ouro e demônios
chifrudos comedores de humanos, cujas presas pingam com sangue
fresco. Coroando o alto da montanha está um palácio de cristal, lá-
pis-lazúli, rubi e esmeralda. No centro do palácio, em um trono de
pedras preciosas e discos de sol e lua, encontra-se Guru Rinpoche,
Padmasambhava; belo, brilhante, majestoso, glorioso, vitorioso e
magnífico. Incontáveis raios de luz de arco-íris emanam do seu corpo
e ele transpira amor e compaixão imensuráveis e incondicionais por
todos os seres. Mandarava, que não é outra se não Guru Rinpoche em
forma feminina, senta-se ao lado direito dele; Yeshe Tsogyal senta-se
ao esquerdo, e os grandes mestres budistas do passado estão sentados
por toda a montanha, como uma coberta de neve.
74 VIVER É MORRER

Muitas preces para renascermos em Zangdokpalri podem ser en-


contradas em inglês em vários websites. Recite qualquer prece que
mais lhe agradar e ofereça prostrações voltado para o sudoeste.
• Secret Path to the Mountain of Glory–A Prayer of Aspiration for the Copper-Co-
loured Mountain of Glory por Jigme Lingpa está disponível para download em
Lotsawa House: www.lotsawahouse.org/tibetan-masters/jigme-lingpa/secret-
-path-mountain-glory
• A tradução para o inglês de Erik Pema Kunsang da prece de Jamyang Khyentse
Wangpo Aspiration to be Reborn in Zangdokpalri está disponível em: http://le-
vekunst.com/a-chariot-for-knowledge-holders/
• A Prayer of Aspiration for the Mountain of Glory, por Jamyang Khyentse Chökyi
Lodrö está disponível para download em Lotsawa House: www.lotsawahouse.
org/tibetan-masters/jamyang-khyentse-chokyi-lodro/aspiration-for-mountain-
-of-glory

Arya Tara
Aqueles que amam Arya Tara podem olhar na direção da Terra das
Folhas de Turquesa, situada ao norte.
No reino búdico de Arya Tara todos os seres vivos são femininos:
os bodisatvas, as aves, os tigres, todos os seres. Arya Tara está no cen-
tro de um palácio magnífico e transparente, feito de lápis-lazúli. Ela é
veloz, pacífica e resplandecente e está cercada por budas, bodisatvas e
centenas de milhares de dakinis, cujas mentes de sabedoria transbor-
dam com grande amor e compaixão.
• A tradução para o inglês da prece de aspiração de Sera Khandro Burgeoning
Benefit and Happiness: An Aspiration to be Reborn in the Land of Turquoise Leaves
está disponível para download em: www.lotsawahouse.org/tibetan-masters/se-
ra-khandro/tara-pureland-aspiration

Entregando-se totalmente a essas práticas, você lidará com a vida


e com a morte praticamente da mesma maneira. Basicamente, nem a
vida nem a morte serão tão importantes assim.
Seja você um velho que está a poucas horas da morte ou alguém
tão jovem e saudável que nem pensa nela, aprenda a pensar grande.
Por mais imensa e exigente que pareça a tarefa de levar todos os seres
sencientes à iluminação, aceite-a com alegria. Se fizer isso, quando,
75

Tara Verde
76 VIVER É MORRER

finalmente, confrontar-se com a morte, em vez de ficar deprimido por


ser a criatura mais inútil e fracassada do planeta, chafurdando em au-
topiedade, você estará ansioso por completar a sua tarefa sem a ajuda
de ninguém.

Se isso parece um tanto demais para você, pense:

Desejo de todo coração participar, ajudar e contribuir em prol de tudo


que outros grandes bodisatvas já fizeram e continuam a fazer para con-
sumar a grande visão de levar todos os seres sencientes à iluminação.

Deseje ardentemente fazer parte da comunidade dos bodisatvas;


procure ajudá-los a cumprir o seu tremendo compromisso e contri-
bua, de todo o coração, com aquilo que lhe for possível: como solda-
do, guerreiro, provedor, médico, seja como for. Se quiser, faça as suas
preces de aspiração usando as palavras de Shantideva:

Possa eu ser um protetor para os que vivem desamparados,


Um guia para os viajantes que seguem pelas estradas;
Para os que desejam cruzar para a outra margem,
Possa eu ser um barco, uma jangada, uma ponte.

Possa eu ser uma ilha para aqueles que anseiam por terra firme,
Uma lamparina para aqueles que desejam luz,
Para todos que precisam de um lugar de descanso, um leito;
Para aqueles que precisam de um servo, possa eu ser um escravo.

Possa eu ser a joia que realiza desejos, o vaso da fortuna,


Uma palavra de poder e a suprema cura.
Possa eu ser a árvore dos milagres,
E, para todos os seres, a vaca da abundância.

Tal como a terra e o espaço,


E todos os outros elementos poderosos,
Para incontáveis multidões de seres vivos,
Possa eu sempre ser a base da vida e a fonte de sustento variado.
 PRÁTICA DE ASPIRAÇÃO 77

Assim, para tudo que é dotado de vida,


Até os confins do firmamento,
Possa eu constantemente ser a fonte do seu sustento
Até que passem para além do sofrimento.26

Costumes funerários japoneses: o cortejo se dirige ao templo


O doloroso bardo da morte

O processo de morrer e a morte propriamente dita são um pouco


como o sonhar. Quer um sonho seja bom ou ruim, quando você sabe
que está sonhando, deixa de estar acorrentado à crença de que aquilo
que está acontecendo é real. Quando você se livra da ignorância e da
delusão, não precisa mais sofrer com as emoções, sejam elas de espe-
rança e medo, desejo e raiva, orgulho e insegurança.
Enquanto está vivo, você experiencia o mundo por meio dos cinco
sentidos; ouve uma música ao piano com os seus ouvidos e vê uma
bela paisagem com os seus olhos. Tais experiências podem criar há-
bitos e, tendo assistido a um pôr do sol glorioso, é bem possível que
continue a apreciar o sol poente pelo resto da vida.
Para que possam funcionar adequadamente, nossos cinco sentidos
contam com os elementos que formam o corpo humano. O choque
de uma morte repentina perturba gravemente esses elementos, e uma
morte lenta e pacífica simplesmente os desgasta. De qualquer modo,
uma vez que os elementos tenham se dissolvido e você esteja morto,
os seus cinco sentidos deixam de funcionar. Você ainda será capaz
de perceber coisas, mas todas as percepções serão nuas e sem filtro, e
80 VIVER É MORRER

isso vai transformar instantaneamente a sua maneira de interagir com


tudo que o cerca. Assim como precisamos nos adaptar à perda da visão
ou da audição enquanto estamos vivos, a morte também vai exigir que
façamos alguns ajustes.
Depois de morto, você se encontrará em um ambiente completa-
mente estranho. Nesse ponto, se nunca treinou ou trabalhou com a
mente durante a vida, é muito possível que sinta um grande medo,
mesclado com um mínimo de esperança. Mas, se você treinou a men-
te – se treinou qualquer coisa, desde uma prática simples de atenção
plena, até as técnicas sofisticadas de treinamento mental descritas nos
textos tântricos –, as percepções e projeções que irá experienciar en-
quanto está morrendo e o modo como vai monitorar a própria mente
serão bem diferentes.
É provável que um bom praticante budista consiga controlar to-
dos os momentos do processo de morrer e da morte. Mesmo um
praticante medíocre pode aplicar um pouco de atenção plena e isso,
por si só, pode trazer um alívio considerável. Quer você tenha treina-
do a mente ou não, a informação mais importante a ser lembrada é
que nos bardos tudo que você experiencia é uma projeção criada pela sua
própria mente. Cada pessoa, portanto, terá uma percepção diferente
dos bardos. E, assim como às vezes vemos em sonhos amigos que
morreram há muito tempo, nos bardos podemos topar com pessoas
conhecidas.

O carma afeta o processo de morte?


O carma é tão poderoso que influencia todos os momentos da vida e
da morte. Se você tiver um carma muito bom, por mais que se mude
de uma casa para outra, sempre vai acabar em algum lugar lindo; por
mais que precise colocar anúncios pedindo ajuda doméstica, sempre
encontrará alguém gentil e honesto e tudo que comer sempre será
delicioso. Se você tiver um carma muito negativo, não importa quem
você namore, pois sempre vai acabar brigando, e a comida que outras
pessoas apreciam sempre o deixará doente. Do mesmo modo, depen-
 O DOLOROSO BARDO DA MORTE 81

de do seu carma como você vai morrer. Se o carma for bom, você não
vai ficar resistindo ao processo de morrer nem criar qualquer drama;
você enfrentará a morte com calma e sensatez.
Então, o que é “bom” carma e “mau” carma? Depende do seu pon-
to de vista. Uma pessoa pode pensar que bom carma é morrer cercada
pela família e amigos, enquanto para outra pessoa bom carma signi-
fica morrer sozinha no meio da floresta, sem lágrimas nem confusão.
Outros, podem pensar que bom carma é ter alguém ao lado deles na
hora da morte, para lembrá-los o que devem fazer nos bardos ou para
recitar o nome dos budas e bodisatvas.
O carma irá influenciá-lo até o fim: durante todo o processo da
morte e até a dissolução final. O detalhe mais crucial é que o seu úl-
timo pensamento, no instante que precede a morte, será o fio que o
levará aos bardos, impregnando a sua experiência do bardo com sabor
e continuidade particulares.
Assim como a qualidade das sementes que um jardineiro semeia
afeta a qualidade e quantidade daquilo que ele vai colher, as boas e
más ações do passado também determinam aonde renasceremos. Se o
jardineiro plantar sementes mofadas ou quebradas, nada brotará e o
resultado será ruim. Se ele semear boas sementes, elas darão flores e o
resultado será bom.

O que sentimos no momento da morte?


O corpo e a mente estão inseparavelmente entrelaçados durante toda
a vida. No momento da morte, eles se separam; pela primeira vez, a
sua mente vai sentir como é estar separada do corpo. Depois, o corpo
será cremado, enterrado ou vai se desintegrar naturalmente, ao passo
que a mente terá continuidade. E a maneira como você experienciará
a mente depois da morte será diferente de tudo que conheceu antes.
Imagine que você nasceu usando óculos escuros. Você os usa o
tempo todo até chegar aos 50 anos e então, de repente, tira os ócu-
los. No mesmo instante, tudo muda ao seu redor. Talvez você fique
assustado, transtornado ou confuso, mas, seja como for que aquilo o
82 VIVER É MORRER

afete, esteja certo de uma coisa: tudo será absolutamente diferente. O


instante da morte é assim.
Os detalhes do que acontecerá quando você morrer dependem
da sua experiência em observar a própria mente. Como já foi dito,
se você não trabalhou com a sua mente enquanto estava vivo, é bem
possível que o momento da morte seja aterrorizante. É provável que
você desmaie de medo.
Se você vai ficar ou não inconsciente na hora da morte dependerá
do quanto você é bom em estar consciente enquanto está vivo – em
outras palavras, a sua capacidade de manter atenção plena agora. A
separação do corpo e da mente é um choque terrível. É como ser
golpeado na cabeça com um taco de baseball e, em geral, as pessoas
desmaiam. Estar insconsciente, porém, não significa estar inanima-
do, como um bloco de madeira. Os seus elementos e consciências
sensoriais começam a se dissolver, e os olhos, ouvidos, língua e assim
por diante deixam de funcionar; então, é provável que você perca a
memória consciente dos pensamentos e da sua identidade da vida an-
terior. Mas, embora você deixe de experienciar a consciência grosseira,
nunca perderá a consciência que é a autoconsciência. Essa autocons-
ciência, a “natureza da mente”, não pode ser perdida.
Mais cedo ou mais tarde, você recobrará a consciência. Embora
esteja morto, poderá ver, ouvir, sentir, cheirar e tocar, mas não com
os órgãos dos sentidos corporais. Na morte, você percebe tudo com a
mente de maneira direta: enxerga com os olhos da mente, ouve com
os ouvidos da mente, sente com o corpo da mente e assim por diante.
É difícil saber com precisão o que você vai perceber depois de morto.
Talvez veja os parentes e amigos, mas não se sabe se isso lhe trará fe-
licidade, tristeza ou medo, pois vai depender da sua situação. Assim
como nos prega peças durante a vida, a mente nos prega peças depois
da morte. Então, seja lá o que você imagine que verá durante a morte
será algo criado pela sua mente trapaceira.
O carma afetará muito a sua experiência no bardo, porque, vivo
ou morto, você sempre continuará sujeito ao carma que acumulou.
 O DOLOROSO BARDO DA MORTE 83

Das Zeichen des Bundes

As pessoas dedicadas aos seus animais de estimação me perguntam


se os animais passam por um processo similar. A constituição, ele-
mentos, sentidos, cultura e educação dos animais são muito diferentes
daqueles dos humanos e, portanto, as suas projeções também são dife-
rentes. Entre outras coisas, ao contrário dos humanos, os animais não
fazem planos, não criam empresas nem presidem impérios de negó-
cios. Portanto, a morte e as projeções dos animais, durante o processo
e após a morte, serão diferentes das nossas.
As projeções que um pequeno inseto experiencia na vida não são
muito diferentes daquilo que ele projetará depois de morto. Os in-
setos e outros animais estão mais habituados a viver em um estado
de pânico e incerteza do que os humanos, portanto, as incertezas do
estado de bardo não serão desconhecidas para eles.

O que você verá após a morte?


De forma geral, os budistas dizem que depende do nosso carma o que
vemos depois da morte.
É muito simplista estereotipar causas e efeitos dizendo que as más
ações sempre trazem más experiências, mas esse é um erro comum. É
dificílimo julgar se uma situação é “boa” ou “má”, porque a qualidade
84 VIVER É MORRER

do carma criado depende inteiramente da motivação do seu criador.


A consequência cármica de uma determinada ação, portanto, será di-
ferente para cada indivíduo.
Como, então, você pode estar seguro de que a sua motivação é a
“correta”? É muito difícil apontar precisamente a nossa verdadeira mo-
tivação. Por mais que estejamos convencidos de que nossas intenções
sejam boas, é muito fácil nos iludirmos a respeito daquilo que nos leva
a agir. Em geral, a assim chamada motivação “correta” está enraizada
no egoísmo. E como você pode ter certeza sobre o resultado cármico,
se não tem certeza sobre a sua motivação? Não há um resultado fixo
para cada causa individual. Por exemplo, em geral imaginamos que
beleza e dinheiro são coisas boas, mas basta observar o que a mídia
nos apresenta para saber que os belos e ricos não são necessariamente
felizes. Desse modo, as configurações de carma “bom” e “ruim” não
podem ser estereotipadas, tampouco os seus efeitos.

Os seis reinos
Se você foi uma pessoa raivosa e agressiva durante a vida, e se as suas
ações foram motivadas pela raiva, continuará sendo raivosa na pró-
xima vida. É difícil contentar uma pessoa que sente raiva, então é
provável que você não goste do lugar onde vive. Por mais brancas e
limpas que estejam as suas toalhas recém-lavadas, você sempre encon-
trará uma mancha. Para você, um jardim de rosas sempre será apenas
um canteiro de arbustos espinhentos. Por mais macio que seja o sofá,
você nunca se sentirá confortável. Por mais glorioso que seja o dia,
sempre será muito frio ou muito quente. De fato, seja onde estiver,
você nunca se sentirá bem e sempre estará reclamando de alguma coi-
sa. Há, ainda, grande probabilidade de você ser queimado, assaltado
ou esfaqueado na rua. Tudo isso é o que os budistas descrevem como
reino dos infernos.
Os avarentos gananciosos, motivados apenas por mesquinhez e
avareza, carregam os seus hábitos de pão-duros para a vida seguinte.
Como todo grande avarento, você não apenas é sovina em relação aos
85

Inferno
86 VIVER É MORRER

outros, mas também consigo mesmo. Por mais coisas que possua –
três carros, duas casas, armários cheios de utensílios de cozinha, joias
e assim por diante –, nunca faz uso delas, muito menos pensa em
dividi-las com quem não tem nada. Se algum dia resolver esbanjar
comprando uma jaqueta cara, é provável que morra antes de remover
a etiqueta de preço. Você é muito mão de vaca para comer em res-
taurantes bons, portanto, jamais lhe ocorreria pagar um almoço para
outra pessoa. Por mais que tenha, nunca é o bastante e, quando você
morrer, vai se torturar sabendo que os seus parentes imprestáveis e
malandros irão torrar sem a menor consideração a sua fortuna acumu-
lada a duras penas. É assim que os budistas descrevem os habitantes
do reino dos fantasmas famintos.
Algumas pessoas são basicamente ignorantes sobre tudo que acon-
tece ao seu redor. Chegam a decidir, deliberadamente, não ver o so-
frimento dos outros. Se você é esse tipo de indivíduo, faz de tudo
para evitar de ser simpático com qualquer pessoa, apoia ativamente
a estupidez, a ignorância e a falta de solidariedade, e sente orgulho
de ser absolutamente indiferente ao sofrimento da tartaruga ou da
lagosta que está sendo mergulhada viva em água fervente para lhe
servir de almoço. Você aprende a ser casca-grossa, para não sentir nada

O fim do avarento
 O DOLOROSO BARDO DA MORTE 87

por ninguém, e só convive com pessoas iguais a você. Louva a sua


própria falta de sensibilidade e ensina os filhos e amigos a serem tão
frios e durões quanto você. Mesmo sendo um milionário, é incapaz
de jogar uma moeda para um menino de rua que não tem esperança
de estudar, ou de ver um brinquedo, muito menos de brincar com ele.
Quando esse tipo de pessoa renasce, passa a ser o lanchinho suculento
de outro ser bem mais poderoso. Você deixará de ter um endereço,
não terá sequer uma caixa postal, muito menos conta em banco. Se foi
caçador na vida anterior, na seguinte será a presa. Sempre que tiver a
sorte de encontrar um pouco de comida, ficará paranoico protegendo-
-a, e viverá com medo que ela seja surrupiada por outro. Os budistas
descrevem esse reino como o reino dos animais.
Se você é invejoso e se deixa levar pela inveja nesta vida, também
será invejoso na próxima vida. Você renascerá em um mundo onde
os outros sempre têm aquilo que você deseja: a aparência, a bolsa, os
sapatos, a propriedade, o cônjuge. Mesmo que tenha “tudo”, estará
sempre preocupado pensando que eles têm mais coisas – e de melhor
qualidade. A inveja e o hábito de pensar demais aguçarão a sua pa-
ranoia a tal ponto que será impossível relaxar. A sua mente invejosa
e ciumenta sempre vai encontrar defeitos naqueles que são ilustres,

O reino dos animais


88 VIVER É MORRER

bem-sucedidos, famosos, respeitados e venerados. Você enganará a si


mesmo constantemente, convencendo-se de que a sua crítica ditada
pela inveja é uma análise objetiva e isenta de envolvimento emocional.
Na prática, esse tipo de “pensamento crítico” impossibilitará que você
se alegre com a felicidade dos outros ou participe da felicidade deles.
Em vez disso, a sua mente será consumida pelo pensamento de colo-
car as pessoas que lhe causam inveja no seu devido lugar. Os budistas
chamam isso de reino dos assuras.
Se você é muito orgulhoso e a sua vida foi motivada pelo orgu-
lho, também será orgulhoso na próxima vida. As pessoas orgulhosas
sempre estão convencidas de que personificam os píncaros da moral.

Espíritos guerreiros
 O DOLOROSO BARDO DA MORTE 89

Contemplando nuvens

Elas renascem em um mundo onde todos sofrem com a clássica mes-


cla de complexo de inferioridade e de superioridade. É um mundo
muito medíocre: todos são tolos, provincianos, pouco sofisticados,
fechados, bitolados, inflexíveis, limitados, medíocres, conservadores,
convencionais, sem perspectiva, mesquinhos, preconceituosos, mío-
pes, introvertidos, antiliberais e intolerantes. Se nascer nesse reino,
ninguém vai gostar de você e você não vai se ambientar, mas terá
orgulho de fazer parte de uma “sociedade livre”. Convencido de que
a sua visão é a mais objetiva e a mais democrática, não hesitará em
criticar alguém que tenha outro ponto de vista ou um sistema de
valores alternativo. Impossibilitado de tolerar qualquer forma de di-
vergência, imporá os seus valores e estilo de vida sobre aqueles que,
na sua opinião, são primitivos, inadequados ou “maus”, simplesmen-
te porque não concordam com você. E, na tentativa de forçá-los a
ser como você é, trará sofrimento para eles. Isso é o que os budistas
chamam de reino dos deuses.
90 VIVER É MORRER

O último dos seis reinos é o reino humano. No fim, também será


necessário nos liberarmos desse reino, mas, se você não está pron-
to para a iluminação, esse é o melhor reino para se renascer – por
enquanto. Se nesta vida você foi motivado pela paixão, na próxima
também será impulsivo, sempre ocupado e procurando algo para
fazer. Como ser humano, você sofre com a mentalidade de pobre-
za, incerteza constante e, claro, sofre com o nascimento, a velhice, a
doença e a morte. Está cercado por pessoas e coisas que deseja, mas
nunca consegue ter o que realmente quer. E sempre acaba se afastando
daqueles que ama, porque passa todo o seu tempo tentando ganhar
o dinheiro que você pensa que vai precisar em um futuro que não
chega jamais. Apesar dessas desvantagens, o reino humano ainda é o
preferido pelas pessoas espiritualizadas. Por mais que sofram, os seres
humanos desfrutam de raros momentos de sanidade, provocados por
tristeza extrema, depressão, adversidade e sofrimento. Também temos
a habilidade de nos livrar das amarras que criamos, o que é muito
mais difícil de se conseguir nos outros reinos. Falando nisso, embora
o budismo descreva seis reinos, na verdade o samsara é composto de
incontáveis reinos; a maioria deles muito além da nossa imaginação.

Dia do julgamento
Muitas religiões advertem os seus seguidores dizendo que, após a mor-
te, encontrarão um juiz que pesará as suas boas e más ações e depois
mandará para o céu os que fizeram mais boas ações do que más, e para
o inferno os que fizeram mais más ações do que boas. O budismo,
por outro lado, ensina que o único juiz que você vai enfrentar é a sua
própria mente.
Imagine que você roubou algo de um amigo, mas se safou dessa.
Embora tenha evitado a punição, você ainda tem de viver consigo
mesmo, e por muitos anos a sua consciência vai atormentá-lo. Do
mesmo modo, quando morrer, a sua consciência culpada vai obrigá-
-lo a se lembrar de todas as coisas nocivas e desagradáveis que disse
e fez durante a vida, e essas memórias o farão sofrer. Mas, afora você
 O DOLOROSO BARDO DA MORTE 91

O juízo final

mesmo, não haverá uma entidade na sua frente para julgá-lo; nenhum
ser poderoso e onipotente vai pesar na balança os seus feitos bons ou
maus nem anotar em um enorme livro de registros tudo que você fez.
Não haverá um julgamento externo das suas ações durante a vida.
Os budistas acreditam que as causas e condições que cada um de
nós reuniu e que não foram sujeitas a obstáculos nem amadureceram
em um resultado não se dissipam por si mesmas. Independentemen-
te da intenção subjacente a tudo que você já pensou, disse ou fez,
quer fosse uma intenção gentil e virtuosa ou má, grosseira e vingati-
va, se o carma correspondente não tiver sido purificado, você colherá
os resultados. É claro que isso pode ser interpretado como um tipo
92 VIVER É MORRER

de julgamento. Mas é você quem vai julgar a própria motivação e as


ações, não uma entidade externa.
Basicamente, a sua morte, a experiência pós-morte e o renasci-
mento futuro são determinados pelas causas, condições, intenções e
ações que você reuniu por muitas vidas.

O céu e o inferno existem?


O budismo nos diz que o céu e o inferno são estados mentais. Então,
dependendo do grau de controle que tenha sobre a sua mente – basi-
camente, se você se preparou ou não para a morte –, ao morrer você
poderá imaginar que está experienciando um ou o outro. O que você
verá vai depender daquilo que a sua mente projetar. Talvez não veja os
guardiões infernais com cabeça de touro que são descritos nos textos
sagrados budistas; as criaturas que a sua imaginação vai conjurar po-
dem ser até mais horripilantes. E, por falar nisso, os guardiões infer-
nais com cabeça de touro são todos simbólicos.
Com a preparação e motivação corretas você pode experienciar
uma projeção do reino de Amitabha, que é uma versão budista do
paraíso. Se os seus hábitos forem determinados por emoções nega-
tivas, porém, a sua mente pode, com a mesma facilidade, projetar
um ambiente medonho, aterrador e violentamente volátil: um reino
dos infernos. De qualquer modo, as duas experiências são criadas e
projetadas pela mente. Nenhuma delas existe fora da sua mente e,
portanto, nem o paraíso nem o inferno existem externamente.

O que continua após a morte?


Um “eu”, um “self ” ou uma “alma” continua a existir após a morte?
Sim. Assim como existia um “eu” durante a sua vida, há um “eu” que
continua existindo após a morte. O “eu” que eu era ontem continua
a ser o “eu” que sou hoje; o “eu” que eu era no ano passado continua a
ser o “eu” que sou este ano. E o “eu” que sou hoje continuará a ser “eu”
depois que eu morrer.
 O DOLOROSO BARDO DA MORTE 93

Esse “eu” não é como o conceito religioso de alma que as religiões


abraâmicas descrevem, é apenas uma ideia imputada. Em outras pala-
vras, “eu” é uma ilusão. Mas não despreze o “eu” por ser uma ilusão.
Todas as nossas ilusões são muito poderosas e a ilusão do “eu” é a mais
poderosa de todas.
O Dicionário de Inglês Oxford nos diz que as religiões abraâmicas
pensam na alma como sendo “a parte espiritual ou imaterial de um
ser humano ou animal, considerada imortal”. Essas religiões também
acreditam que os animais e outros seres viventes possuem uma alma
diferente da dos seres humanos. Os budistas, por outro lado, acredi-
tam na continuidade. Acreditamos que a nossa ideia de um “eu” ou
“self ” continuará depois da morte e em uma nova vida. Mas, é claro,
também precisamos lembrar que o conceito de “continuidade” é uma
verdade relativa e, assim como todas as verdades relativas, é um con-
ceito elaborado por uma mente que nos engana.
Se eu riscar um fósforo para acender uma vela branca, e depois
usar essa vela branca para acender uma vela azul, a mesma chama es-
tará queimando na vela branca e na azul? Sim e não. Esse “sim e não”
pode ser aplicado a todas as verdades relativas. Se você perguntasse se
o “você” de hoje é mesmo “você” de amanhã, a resposta seria sim e
não, porque há uma continuidade, mas apenas no nível relativo.
A única ocasião em que o “eu”, ou “self ”, não continua em uma
nova vida é quando nos tornamos iluminados. Uma vez iluminados,
a ideia de “self ”, assim como a ideia de “tempo”, deixam de se perpe-
tuar. Para o iluminado, portanto, não há algo como a continuidade ou
a reencarnação.
Basicamente, a mente continua após a morte do corpo e, no bu-
dismo, a mente é mais importante que o corpo. Sem a mente, o corpo
não significa nada e, como as roupas, pode ser mudado e substituído.

A geada na grama:
Uma forma fugaz
É e não é!27
Zaishiki
94 VIVER É MORRER

Todos nós nos tornamos fantasmas após a morte?


Não existe uma resposta simples para essa pergunta.
Os budistas acreditam que, embora a relação entre a mente e o
corpo seja muito forte, os dois são fundamentalmente separados; se
você cortar fora a sua mão, a sua mente não vai se tornar menor. Os
budistas acreditam que os fantasmas são seres que não possuem um
corpo sólido, portanto, não possuem um corpo físico intacto de carne
e ossos e sangue, apesar de alguns manifestarem partes do corpo.
Segundo os ensinamentos budistas, no momento em que mor-
remos nos tornamos fantasmas: não o tipo de fantasma descrito nas
culturas ocidentais, mas naquilo que os budistas chamam de “seres do
bardo”. Um ser do bardo é cognoscente e, como os fantasmas ociden-
tais, não tem um corpo sólido. Isso significa que nem os fantasmas
ocidentais nem os seres do bardo precisam de uma porta para ir de
uma sala para outra.
Na maior parte das culturas ocidentais que acreditam em alma,
um fantasma é geralmente concebido como a expressão visível, po-
rém incorpórea, da alma da pessoa que morreu. Por isso, os fantasmas
descritos por aqueles que acreditam em uma alma verdadeiramente
existente são, necessariamente, diferentes dos seres do bardo que os
budistas acreditam existir.
Assim como os seres humanos, alguns fantasmas são perversos e
desagradáveis, e muitos são inseguros. No entanto, a prioridade dos
fantasmas não é causar um mal intencional, mas, sim, sobreviver. En-
tão, é óbvio que se você ameaçar a sobrevivência do fantasma, ele não
ficará contente; mas, como os seres vivos têm um corpo físico e os fan-
tasmas não, os fantasmas não podem fazer muita coisa. A maioria dos
vivos não pode enxergar os fantasmas, mas a maioria dos fantasmas
pode enxergar os vivos, o que é uma grande desvantagem. As pessoas
sentam na cadeira dos fantasmas o tempo todo, porque não podem
ver o fantasma que já está ali. Você pode estar sentado no colo de um
fantasma bem agora!
 O DOLOROSO BARDO DA MORTE 95

A vigília do espírito da morte

Os budistas consideram que muitos dos espíritos cultuados pelos


xamãs são fantasmas, mas esses espíritos só podem conceder coisas
muito medíocres, como sucesso nos negócios, uma boa colheita e as-
sim por diante.

Todos nós assumimos uma nova identidade após a morte?


Sim. Lembre-se, porém, que a “identidade” é uma ilusão. Você tem
certeza de quem você é neste momento, enquanto está lendo este li-
vro? Qual é a probabilidade de você continuar a ser descrita como a
mãe da sua filha atual na próxima vida? Pense nisso! Segundo as leis do
carma, se você renascer como uma galinha, a sua filha desta vida pode
acabar servindo você grelhada numa refeição de família.
É quase certo que você encontrará a sua família e amigos na pró-
xima vida, provavelmente milhões e milhões de vezes. O que é bem
96 VIVER É MORRER

mais incerto é se você vai reconhecê-los ou não, ou mesmo se vocês


gostarão uns dos outros. Pode ser que você sinta uma antipatia ime-
diata pelo seu melhor amigo da vida anterior, ignorando-o completa-
mente. Ou, como acabo de dizer, você pode ser grelhada pela sua filha
desta vida e servida no almoço de domingo.
Se você renascer na mesma família, por mais que ame os seus pais
e parentes atuais, na próxima vida você pode acabar desprezando-os,
bem como tudo aquilo que eles valorizam. Se morar na mesma casa,
poderá odiar o seu quarto fora de moda. E o que aconteceria se renas-
cesse como uma mosca? O fato de estar na sua “velha casa” não signi-
ficaria nada para a mosca. O que aconteceria se tivesse de renascer no
útero da sua filha atual? Você viria a ser a sua própria neta e, ao chegar
à idade adulta, talvez fizesse uma carreira lutando contra tudo que os
seus avós defendiam.
Nós, seres humanos, sentimos uma insegurança crônica fun-
damental a respeito de quem somos de fato. No início, o senso de
identidade é definido pela nossa nacionalidade, religião e cidadania;
depois, é reforçado pelos grupos que apoiamos. Podemos decidir ser
apoiadores fanáticos do NRA [National Rifle Association of Ameri-
ca] ou de uma sociedade de conservação animal, para salvar as tarta-
rugas ou proteger os tigres; ou podemos nos associar aos clubes “cer-
tos”, rezar com a facção religiosa mais “virtuosa”, ou nos esforçar para
viver em um país que acreditamos ser “livre”. E nós fazemos tudo
isso, simplesmente, para reafirmar, vez após vez, o tipo de pessoa que
julgamos ser.
Desse modo, vale a pena lembrar que, depois da morte, quando
estivermos perambulando pelos bardos, não só as nossas inseguran-
ças serão mil vezes mais intensas, como a angústia causada pela falta
de uma verdadeira identidade será dez mil vezes mais forte. Essa
sensação continuada de instabilidade e incerteza pode crescer e se
agravar a tal ponto que acabaremos por sofrer uma angústia existen-
cial sem precedentes.
 O DOLOROSO BARDO DA MORTE 97

Os mortos podem falar com os vivos?


É provável que por alguns dias após a morte você consiga ver os vivos
e até procure fazer contato com eles. Na prática, os mortos raras vezes
conseguem interagir com sucesso com os vivos e, passado algum tem-
po, não conseguem mais vê-los.
Uma das experiências mais dolorosas sofridas pelos seres dos
bardos é a perda súbita de todo tipo de interação social com a qual
estavam acostumados. Sentem-se perdidos, abandonados e muito
solitários. É por isso que a motivação e as ações dos vivos são tão im-
portantes, principalmente quando se trata da distribuição do dinheiro
e dos recursos e pertences da pessoa morta. É provável que os mortos
só reajam intensamente aos vivos quando provocados. Contudo, as
emoções extremas são muito perigosas para as pessoas mortas. Se um
ser do bardo ficar muito bravo porque o sobrinho que ele detestava
se apossou da sua adorada pasta de couro, aquele lampejo de emoção
pode impedir o seu progresso e ele pode, até, ficar preso no bardo do
vir a ser como um espírito negativo. Se isso acontecer, a experiência de
bardo daquele ser não se limitará a 49 dias; poderá durar éons.

Quanto tempo levamos para renascer?


Via de regra, o tempo necessário para o morto passar pelos bardos e
chegar a uma nova vida é de 49 dias, mas esta é mais uma generali-
zação. O tempo que você passa nos bardos depende da força do seu
carma pessoal; pode durar 49 anos, 49 éons ou 49 segundos.
Se uma pessoa tem um carma excelente, pode alcançar a ilumi-
nação no bardo do dharmata um segundo após da morte, mas, se o
carma for particularmente ruim, em um segundo ela poderá se encon-
trar no mais profundo dos infernos. Se a pessoa que morreu não tem
carma para garantir um lugar no avião do renascimento, talvez espere
nos bardos por éons e éons. Basicamente, o que acontece na hora da
morte e quanto tempo vai durar cada estágio do processo de morte e
renascimento varia de pessoa para pessoa.
98 VIVER É MORRER

Por que perdemos a memória quando morremos?


As pessoas perdem a memória por diversas razões. Enquanto estamos
vivos, as memórias vêm e vão todo o tempo; o mesmo acontece depois
da morte.
Os seres humanos tendem a ter um único hábito muito forte, que
não apenas se sobrepõe a todos os demais hábitos, mas também os
anula. Essa tendência habitual tão comum é o que faz o caminho es-
piritual funcionar. No caminho espiritual, destruímos nossos velhos
maus hábitos aplicando outros, novos e melhores, até que, um dia,
transcendemos todo o caminho do hábito.
Em geral, o choque que sentimos com a separação da mente e
do corpo nos leva a perder a memória. Se você tinha uma forte pro-
pensão para a raiva e a agressão enquanto estava vivo, especialmente
se estava sentindo raiva e sendo agressivo ao morrer, não será fácil
apagar o impacto dessas emoções poderosas. A memória da raiva ha-
bitual pode muito bem continuar na próxima vida e, mais uma vez,
você será uma pessoa raivosa e agressiva. Se, enquanto estava vivo,
você treinou a mente em atenção plena, amor e compaixão, ou fez
fortes aspirações baseadas na boditchita, é possível que a lembrança
positiva do seu altruísmo espiritual compassivo permaneça intacta
e você venha a ser uma pessoa espiritualizada e compassiva na nova
vida. Basicamente, o que você retém está ligado ao nível de controle
que você tem da sua mente.
Um dos possíveis subprodutos de um certo tipo de caráter e cons-
tituição física é renascer com memória fotográfica. Outra causa que
leva a uma memória excelente é você ter aprendido a se concentrar e
não ser levado pelas distrações. Uma boa memória está muito associa-
da ao poder espiritual; é assim que algumas memórias sobrevivem ao
choque da morte e perduram no bardo até chegarem à próxima vida.
Às vezes, lembranças vívidas ou traumáticas sobrevivem à morte de
forma subconsciente; talvez seja por isso que algumas pessoas tremem
de medo só de pensar em aranhas.
 O DOLOROSO BARDO DA MORTE 99

Alaya
A memória não é a nossa única característica com o potencial de ser
levada para os bardos e a próxima vida.
Os budistas acreditam que os efeitos do carma ficam armazenados
naquilo que chamamos de “alaya” e, após a morte, esse alaya é levado
para a vida seguinte. O alaya não é como o conceito cristão de alma.
Disseram-me que os cristãos creem que a alma que você tem agora é
exatamente a mesma alma que irá para o céu – ou para o inferno. Se
entendi corretamente, os cristãos acreditam em uma alma que é per-
manente, verdadeiramente existente e única. Os budistas não pensam
assim; os budistas acreditam em um continuum. Talvez pudéssemos
aceitar a ideia de uma alma se ela fosse sinônimo de alaya, mas não é.
O alaya deste momento não é o mesmo alaya de amanhã, mas tam-
pouco são entidades totalmente separadas. Os budistas acreditam na
continuidade do alaya, assim como Tom, Dick e Harry acreditam ser
hoje os mesmos homens que eram ontem. Ao mesmo tempo, como o
budismo mahayana ensina que tudo que é levado adiante neste conti-
nuum é ilusório, o alaya nada mais é do que uma ilusão.
Você pode pensar que isso soa ilógico, mas, para os budistas, todos
os conceitos são ilógicos. Conceitos como “direção”, “tudo”, “geral” e,
em especial, conceitos como “continuidade” e “tempo” são completa-
mente arbitrários. No entanto, uma ideia não deixa de ser poderosa
apenas por ser arbitrária. E todos esses conceitos são extremamente
poderosos.
O que é “tempo”? Depende. Você está perguntando como um filó-
sofo, um cientista ou o recepcionista de um médico? O recepcionista
está mais interessado no tempo que é medido pelo relógio, porque ele
quer saber se o paciente vai chegar a “tempo”. Para o cientista, “tempo
é o que a variável de tempo t denota nas melhores teorias da ciência
fundamental”28, ao passo que os filósofos não se preocupam muito
com uma definição precisa da palavra “tempo”, mas estão muito inte-
ressados nas suas características.
100 VIVER É MORRER

A ilusão funciona pelo poder de arbitrariedade dos conceitos. Um


espantalho cria a ilusão de um ser humano; essa ilusão quase sempre
tem o poder de manter os corvos afastados. Um placebo pode criar
uma ilusão tão poderosa em alguns pacientes que acaba curando a
doença que os aflige. E a ilusão da democracia leva muitas pessoas
a acreditar que a liberdade e a justiça existem neste mundo. É desse
modo que os seres humanos, fundamentalmente ilógicos, funcionam.
Embora o alaya seja ilusório, quando a memória se dissipa – e ela
tende a se dissipar rápido, tanto na vida quanto na morte –, o alaya
não desaparece. A ilusão do alaya permanece até que as consequências
e os efeitos do carma acumulado em muitas vidas sejam purificados
e destruídos. Você pode não lembrar do que fez no passado, mas isso
não significa que os efeitos daquele carma tenham sido removidos.
Não foram. Os efeitos do seu carma continuarão a criar mais delusões,
mais esperança e medo, e também o induzirão a praticar outras ações.
É por isso que a roda da existência cíclica continua a girar. Até que a
semente do alaya seja queimada, destruída, removida ou esterilizada,
a projeção dos seis reinos não cessará e você continuará a sofrer, sentir
dor e assim por diante.

Renascimento
Hoje em dia, há um grande ceticismo quanto à reencarnação ou ao
renascimento, a ponto de os novos budistas se perguntarem se irão
renascer depois de morrer.
Todos os dias pensamos que, com certeza, haverá um amanhã,
mas, na verdade, estamos fazendo uma suposição grosseira, o tipo de
suposição que os filósofos chamam de “projeção imputada”. Ainda
assim, apenas porque o amanhã é uma suposição não significa que
o amanhã não exista. O mesmo é válido para tudo mais no mundo
relativo. Tudo existe porque fazemos suposições; mesmo assim, cada
elemento do mundo relativo é uma ilusão, um sonho. Embora seres
sencientes como eu e você acreditem que essas ilusões sejam reais,
estamos, de fato, completamente deludidos! Enquanto continuarmos
 O DOLOROSO BARDO DA MORTE 101

a levar a sério essas ilusões estaremos sujeitos não apenas à delusão do


renascimento, como também à delusão da morte e à delusão deste
exato momento.
Você acredita que bem agora está lendo um livro? Se acredita, você
está deludido.
Você acredita que o “você” que estava lendo este livro ontem é o
mesmo “você” que está lendo agora? Se acredita, você está deludido.
Como tudo é uma delusão, tanto a crença no renascimento quan-
to a crença de que o renascimento não existe são, necessariamente,
delusões. Como já foi dito, porém, apenas porque uma coisa é uma
delusão não quer dizer que não seja poderosa, e todas as delusões são
extremamente poderosas.

O renascimento pode ser provado?


O Dr. Ian Stevenson, da University of Virginia, dedicou a maior par-
te dos seus 40 anos de trabalho à documentação de milhares de casos
de crianças que afirmavam lembrar de vidas passadas. Essa pesquisa
prova que o renascimento de fato existe? De certo modo, sim, prova.
Do ponto de vista budista, porém, um conceito como renascimento
é uma verdade relativa, jamais a verdade absoluta. Os budistas só
aceitam o resultado do tipo de pesquisa realizada pelo Dr. Stevenson
no nível relativo, porque em nenhum momento o Buda disse que o
renascimento existe no nível absoluto.
Quanto a mim, a minha crença na continuidade não é reforçada
nem enfraquecida só porque os pesquisadores de uma universidade fi-
nalmente descobriram o seu poder. O renascimento é, simplesmente,
um fenômeno relativo imputado, embora seja poderoso. Então, para
mim, o renascimento apenas é.
Para falar francamente, lembrar ou não quem fomos nas vidas
passadas não é importante; de qualquer modo, quase nunca há algo
que valha a pena lembrar.
Uma das razões pelas quais os budistas se preparam para a morte
e os bardos enquanto estão vivos é assegurar uma vida melhor na
102 VIVER É MORRER

próxima vez. Nesse contexto, “melhor” não quer dizer mais rico, mais
saudável ou mais bonito. “Melhor” significa não ser ganancioso e ser
sensato, amável, gentil, honesto e suscetível à verdade. Em outras pa-
lavras, “melhor” significa ter a oportunidade de conhecer melhor o
Darma na próxima vida.
Perguntas sobre a morte

Quais são os sinais de que a morte está se aproximando?


Desconfio que hoje em dia as pessoas não têm tempo para analisar ou
notar os sinais que pressagiam a morte iminente. Alguns sinais são ób-
vios: as articulações endurecem, a pele se enruga e a saúde se deteriora.
É assim que o seu corpo lhe comunica que a morte está próxima.
Contudo, como agora as pessoas fazem muito esforço para encobrir
esses sinais, duvido que elas queiram procurá-los, muito menos falar
sobre a morte. Quantos hotéis cinco estrelas oferecem cursos de fim
de semana sobre o que acontece quando você morre?
Além dos sinais que preferimos ignorar, há muitos outros senti-
mentos e sensações que pressagiam a morte, inclusive sonhos premo-
nitórios. Suspeito que a maioria das pessoas acharia graça da ideia de
contemplar esse tipo de coisas. A maioria dos sinais que os tibetanos e
butaneses acham confiáveis estão mais profundamente enraizados no
folclore himalaio do que no Buddhadharma. Incluem os seguintes:
Descanse a testa na palma da mão direita e olhe para o seu pulso.
Há uma faixa de espaço vazio entre a mão e o braço? Se houver, você
morrerá em sete dias.
104 VIVER É MORRER

Se você sonhar que está montando de costas em um burro, morre-


rá em sete dias.
Se, quando você fica parado de costas para o sol em frente de uma
parede não sobe vapor da sombra da sua cabeça, a morte é iminente.
Nos textos tântricos, o grasnado característico do corvo também
é listado como um sinal. Embora esses sinais sejam verdades relativas,
não é fácil descartá-los como mera crença cultural, porque muitos
deles são únicos e místicos de maneiras que são difíceis de aceitar ple-
namente ou rejeitar definitivamente.

Existe algum método para determinar a hora exata da minha


morte?
Nos Himalaias ainda vivem grandes mestres que podem prever com
exatidão o momento da sua morte. Contudo, se você tem 50 anos ou
mais, sugiro que considere que os sinais da morte iminente já estão
presentes e comece a se preparar; não há nada a perder e muito a
ganhar com isso. Na verdade, deveríamos escrever um testamento no
momento em que nascemos, mas, hoje em dia, a maioria das pessoas
consideraria isso um pouco exagerado.

Pensar sobre a minha morte me parece mórbido e desanimador.


Sinto medo e fico deprimido.
A vida e a morte são a mesma coisa. Então, se contemplar a morte o
deprime, contemple a vida.

Devo comprar um túmulo para o meu parente que está morren-


do? Ou não seria auspicioso?
Esse tipo de preparação não é algo considerado não auspicioso no
budismo, mas algumas culturas podem não concordar com isso. O
próprio Buda não fez nenhuma recomendação a respeito da compra
de túmulos.

Alguém que não seja budista pode renascer em uma “terra pura”?
Se a família e os amigos de uma pessoa não budista fizerem boas ações
 PERGUNTAS SOBRE A MORTE 105

no seu nome, e se conseguirem a ajuda de um ser sublime que dedique,


sinceramente, práticas, meditação e preces para ela, até a menos vir-
tuosa das criaturas terá a oportunidade de renascer em uma terra pura,
mas apenas se for capaz de se alegrar com tudo que a família e os ami-
gos fizerem por ela. Após a morte, é provável que entremos em pânico
e nos sintamos tão emotivos e raivosos que são poucas as chances de
realmente nos alegrarmos com o que é feito em nosso benefício. Então,
de modo geral, não é sensato confiar totalmente na eficácia de boas
ações e práticas de última hora. Sem falar no resto, está cada vez mais
difícil encontrar seres sublimes que tenham a capacidade de ajudar.

Você pode explicar o fenômeno conhecido como a “última ra-


diância do sol poente”, em que a pessoa que está morrendo sente-
-se bem e sem dores pouco antes da morte?
Não tenho bem certeza a que você está se referindo, mas é dito que,
às vezes, aqueles que reuniram muitas causas e condições favoráveis
sentem-se melhor antes de falecer. Se as instruções contidas na página
134 forem lidas para essas pessoas, é provável que elas permaneçam
calmas enquanto morrem, compreendam o que está sendo dito e si-
gam os conselhos.

Um espírito ou alma pode voltar para o corpo após a separação


causada pela morte?
Em raros casos, sim. Embora o maior desejo de um ser do bardo seja
retornar à vida e recuperar o seu corpo, quase nenhum deles consegue
fazê-lo. Um dos problemas é que depois de uns dias ou, na melhor
hipótese, umas poucas semanas, eles não conseguem mais reconhecer
o seu velho corpo. Apesar disso, eles têm essa fixação e estão desespe-
rados para encontrar um corpo onde possam descansar, esconder-se e
funcionar como um ser humano. Portanto, a vontade que eles sentem
de viver e se comunicar é muito forte.
Contam-se histórias de ressurreições no mundo inteiro, então, isso
deve acontecer até hoje. Talvez a mais famosa de todas as histórias de
ressureição tibetanas seja a de uma mulher chamada Nangsa Obum.
106 VIVER É MORRER

Nangsa Obum era uma jovem muito bonita e gentil, cujo úni-
co desejo era praticar o Darma. Certo dia, um homem muito rico,
encantado com a sua beleza, logrou, por artimanhas, que ela casasse
com o filho dele. Pouco tempo depois do casamento, Nangsa Obum
recebeu as chaves da despensa da família e o encargo de administrar a
casa. A sua cunhada ficou furiosa! Por ciúme e raiva, ela foi levada a
bater selvagemente em Nangsa Obum e ainda acusou-a de ter um caso.
Furioso, o marido de Nangsa Obum bateu na esposa até a morte.
Depois de morta, Nangsa Obum viu os reinos bem-aventurados,
onde os virtuosos renascem, e os 18 infernos reservados para os não
virtuosos. De repente, ela se encontrou frente a frente com o Senhor
da Morte e ficou muito nervosa, mas estava claro para o Senhor da
Morte que Nangsa Obum era uma grande dakini, totalmente pura e
inocente. Sabendo que ela traria grande benefício para os vivos, man-
dou-a de volta para o corpo, que havia sido colocado um uma caverna
na montanha a conselho do astrólogo da região.
Dentro de pouco tempo, Nangsa Obum foi encontrada pelos ser-
vos da família do marido e levada de volta para casa. Todos ficaram
encantados e pediram sinceras desculpas pelo tratamento que lhe ha-
viam dispensado. Ela ficou com eles um tempo, mas, como ninguém
naquela família tinha um interesse genuíno pelo Darma, ela implorou
que a deixassem voltar para a casa dos pais. Relutantes, o marido e a
sua família deram consentimento.
Chegando em casa, Nangsa Obum contou aos pais o que acontece-
ra. Eles a receberam de volta e tudo parecia correr bem, até que a mãe
se deu conta de que Nangsa nunca escutaria os seus conselhos sobre a
vida familiar e filhos. Em um ataque de raiva, jogou a filha na rua.
Longe de se incomodar, Nangsa percebeu que aquela era a oportu-
nidade que estava esperando para devotar todo o seu tempo ao Darma.
Chegou até o monastério do local e insistiu em ser aceita. No início,
o lama recusou, mas, quando ela ameaçou se matar se fosse mandada
embora, o lama permitiu que ela ficasse e fosse iniciada no caminho do
tantra. Após três meses de retiro ela alcançou a iluminação.
 PERGUNTAS SOBRE A MORTE 107

A essas alturas, a família do marido de Nangsa Obum descobriu


que ela estava morando no Monastério Sera Yalung e para lá se dirigiu
com um exército, para matar todos os monges, destruir o monasté-
rio e recuperar Nangsa Obum. Deu-se uma terrível batalha. Muitos
monges foram abatidos e outros tantos ficaram feridos. Bem quando a
família estava prestes a matar o lama, ele saiu voando pelo espaço; com
a sua magia, reviveu os mortos, curou os feridos e começou a bater nos
grandes senhores e seus exércitos, tanto pelos maus-tratos a Nangsa,
quanto por não praticarem o Darma.
Então, o lama pediu a Nangsa que revelasse a sua realização a vista
de todos, e foi o que ela fez. A família inteira ficou extremamente enver-
gonhada, depôs as armas e na mesma hora prometeu seguir o Darma.
Essa conversão em massa tornou-se o assunto da região. Logo, os
pais de Nangsa Obum ficaram sabendo o que tinha acontecido e tam-
bém dedicaram o resto da vida à prática do Darma.

Eu fiz muitas coisas más e vergonhosas e nunca segui um cami-


nho espiritual. Como posso escapar de ir para o inferno ou de ter
um mau renascimento?
Os budistas dizem que devemos nos preparar para a morte enquanto
estamos vivos, então, acho que seria bom você começar a se preparar
imediatamente. Apesar das suas ações negativas, se você teve mérito
para encontrar alguém capaz de lhe dar as instruções essenciais sobre
o que fazer após a morte e, se criou uma boa conexão cármica com
essa pessoa, é possível que evite um mau renascimento e o inferno. Se
vai conseguir ou não, depende do quanto você confia no seu instrutor
e nas instruções.
O que é uma “instrução essencial”? Imagine que você convidou
a sua chefe para jantar na sua casa. Na última hora, ela telefona para
dizer que seu companheiro é vegano e, no momento, come só saladas.
Você entra em pânico, pois, embora tenha muitas verduras em casa,
nunca conseguiu fazer um bom molho para saladas. Então, liga para
o seu melhor amigo, que é um excelente cozinheiro, e implora por
108 VIVER É MORRER

socorro. “Apenas misture um bom azeite de oliva com uma colher de


suco de limão ou vinagre balsâmico e uma pitada de sal. Ficará deli-
cioso.” Essa instrução, baseada na experiência do amigo, é simples e
clara – assim como todas as instruções essenciais.
Na hora da morte, as instruções necessárias para que se supere o
pesadelo de estar morrendo devem ser extremamente simples, claras
e cristalinas. As instruções essenciais são criadas para explicar exata-
mente o que está acontecendo, enquanto as coisas estão acontecendo,
e para dizer à pessoa que está morrendo o que ela precisa fazer depois
de morrer.
De acordo com o tantrayana, mesmo que a pessoa tenha cometido
ações negativas e não tenha estabelecido conexões espirituais durante
a vida, se ela tiver mérito para encontrar um método como a “libera-
ção pelo vestir” (tagdrol), há uma boa chance de que ela se libere no
momento da morte (veja página 223).
Como todos os métodos tântricos, o sucesso do tagdrol apoia-se
totalmente na devoção e confiança incondicionais. Assim, se a pessoa
que morreu ou a pessoa que coloca o tagdrol no cadáver confiam de
fato no método, o tagdrol terá um grande impacto no ser do bardo,
mesmo que outras pessoas próximas da pessoa que morreu conside-
rem o tagdrol uma superstição sem sentido.

Quando a minha consciência vai entrar na sua próxima


vida? No momento da formação do feto? Quando o esper-
matozoide entra no óvulo? Momentos antes de o bebê nas-
cer? Ou quando?
Depende. A pergunta sugere que todos nós vamos renascer como se-
res humanos, mas isso não é necessariamente verdadeiro. Nem todos
que foram humanos em uma vida renascerão como humanos na vida
seguinte. Eles podem renascer como uma cigarra ou borboleta; ne-
nhuma delas se reproduz por meio de esperma e óvulos. Ou podem
renascer no reino dos deuses, como um ser celestial, onde, de novo,
esperma e óvulos não estão envolvidos na reprodução.
 PERGUNTAS SOBRE A MORTE 109

Quando, exatamente, a consciência entrará no próximo corpo


dependerá das forças cármicas que estarão puxando e empurrando
aquela consciência rumo ao renascimento.
Por exemplo, se você estiver prestes a renascer como um ser hu-
mano, terá uma vaga visão dos seus pais copulando. Se você sentir
desejo pela mãe e raiva do pai, renascerá como um menino, um filho;
se sentir desejo pelo pai e raiva da mãe, renascerá como uma menina,
uma filha. As emoções que provocam a entrada no reino humano,
portanto, em geral são dominadas por raiva e desejo.
O que provoca o renascimento no reino dos assuras é a atração e o
gosto por disputas, brigas de rua e qualquer tipo de discussão.
Se ouvir belas músicas, ou tiver a impressão de estar em uma man-
são luxuosa, você renascerá em um reino dos deuses.
Se ouvir pessoas amadas chorando e gritando e tentar ajudá-las,
arrisca-se a ir parar nos reinos dos infernos.
Lembre-se, porém, de que todos esses exemplos são generalizações.
Como acompanhar
quem está morrendo

O que podemos fazer pelas pessoas amadas que estão morrendo, espe-
cialmente se elas não são ou não eram espiritualizadas e muito menos
budistas? Encorajar a pessoa que está morrendo ou morta a tomar
refúgio e fazer surgir a boditchita realmente ajuda? Uma pessoa que
não é budista poderia compreender os ensinamentos sobre o bardo?
Essas são ótimas perguntas.

Confiança e motivação
Antes de tudo, o fato de você querer ajudar a pessoa que está morrendo
– ou simplesmente estar pensando nela – indica que há uma conexão
espiritual ou cármica entre vocês.
Quantas pessoas, animais ou insetos estão morrendo neste exato
momento? Estamos pensando em todos eles? Não. Como bons bo-
disatvas, espera-se que cuidemos de todos os seres sencientes, mas, na
prática, raras vezes isso acontece. Em geral, só pensamos nas pessoas
mais próximas.
112 VIVER É MORRER

Quer saibam disso ou não, todas as pessoas com quem você se


relaciona têm uma conexão com o Darma. Por quê? Porque elas têm
uma conexão com você e você tem uma conexão com o Darma. O
fato de você estar disposto a ajudá-las indica que elas têm algum mé-
rito. Então, embora não sejam budistas, os seus amigos possuem uma
conexão indireta com o Darma pelo seu intermédio; uma conexão
que realmente irá ajudá-los quando estiverem morrendo. É assim que
as conexões funcionam.
Do ponto de vista mundano, talvez você seja pobre e não tenha
poder, mas, na hora da morte, uma pessoa rica, famosa e poderosa
que não tenha a menor ideia sobre qualquer coisa espiritual não será
de forma alguma útil para os seus amigos. A sua preocupação com o
bem-estar dos amigos que estão morrendo, a sua disposição de ajudá-
-los e de cuidar deles, é a melhor notícia que eles poderiam receber.
Talvez você seja a única pessoa que eles conhecem que tem uma co-
nexão com o Darma e pode lhes dar as informações necessárias sobre
como atravessar o processo da morte e o que está além dela, bem
como realizar as práticas necessárias. Desse modo, as suas boas aspira-
ções, orientações e dedicação são a única ajuda verdadeira que os seus
amigos receberão. Eles são incrivelmente afortunados por conhecê-lo.
Com a motivação certa, você pode estar confiante de que tudo o
que fizer vai ajudar. Mesmo se perder a calma, porque está frustrado
ou cansado demais, isso não será grande coisa. No fim das contas,
quem sabe com certeza o que ajuda e o que atrapalha? É impossível
saber, pois as pessoas são diferentes umas das outras. Tudo que você
pode fazer é oferecer a ajuda que acha que vai funcionar melhor.

Crie uma atmosfera calma e pacífica


Se a pessoa que está morrendo estiver com dor e apavorada – e não
esteja em condições de tolerar discussões ou práticas espirituais –, não
tente impor nenhuma das suas ideias ou métodos budistas. Simples-
mente, crie um ambiente harmonioso e pacífico, e seja sempre hones-
to e direto.
 COMO ACOMPANHAR QUEM ESTÁ MORRENDO 113

Quanto mais calma a pessoa estiver ao morrer, melhor. Isso sig-


nifica que a atitude, o comportamento e a linguagem corporal dos
amigos, da família e dos cuidadores são importantes, pois cabe a eles
criar uma atmosfera tranquila e amorosa. O mais importante é a sua
motivação. Pense nisso quando for tomado pelas emoções; em vez de
se entregar a elas, tente se focar em demonstrar bondade e compaixão,
de forma calma e gentil.
Surpreendentemente, talvez, muitas vezes os não budistas acabam
enfrentando a morte com mais calma do que os budistas; só porque
a pessoa é budista não quer dizer que, automaticamente, seja calma.
Alguém que seja inquieto e agitado, nervoso e impaciente, obsessivo
e apegado durante a vida não vai, de repente, tornar-se calmo e tran-
quilo só porque está quase morrendo.
Lembre-se também que a pessoa que está morrendo pode apa-
rentar, fisicamente, que está nervosa e agitada. Mas isso não significa,
necessariamente, que ela não esteja focada ou não saiba o que deveria
estar fazendo. Então, não procure impor a sua própria interpretação
sobre o estado mental dela.
Se a pessoa que está morrendo for um praticante do shravakayana,
tentará permanecer no estado de ausência do ego, ou pensar sobre o
Buda, o Darma e a Sangha.
Se for um budista mahayana, tentará permanecer na visão da va-
cuidade.
Um tântrika pensará sobre o guru enquanto morre, ou no nome e
nas formas de Buda Amitabha, Buda Shakyamuni, Buda Akshobhya,
Avalokiteshvara, Guru Rinpoche Padmasambhava, Manjushri, Arya
Tara e assim por diante. E, no momento da morte, pensará na sua
deidade pessoal, no seu “yidam”.

Sempre diga a verdade


Até agora
Eu pensava que só
os outros morriam―
114 VIVER É MORRER

que tal alegria


pudesse me acontecer!
Ryoto29

Por mais difícil que seja ouvir a verdade, sempre é melhor ser ho-
nesto com quem está morrendo. A maioria de nós preferiria não ter de
dizer à pessoa amada que ela está morrendo, mesmo quando é óbvio
e evidente. Muitas vezes, mentimos, porque não queremos admitir
para nós mesmos que alguém que amamos está prestes a nos deixar. A
esperança nos leva a esconder os fatos tanto de nós mesmos como da
pessoa amada.
Às vezes, as pessoas que nunca tiveram uma vida espiritual imagi-
nam que são as únicas que já passaram pelo sofrimento da morte. É
óbvio que isso não é verdade; então, lembre-as de que ninguém nesta
Terra tem escolha: todos vamos morrer, inclusive elas próprias. Tam-
bém é bom lembrar que não há como saber qual de vocês vai morrer
primeiro. O seu amado pode estar no meio do processo de morrer,
mas os acidentes acontecem, e como ninguém sabe quando e como
vai morrer, nada garante que você não morra antes dele.

Eu realmente posso ajudar?


Se você não é uma pessoa iluminada, é impossível saber ao certo se
pode fazer algo para ajudar quem está morrendo ou, por falar nisso, se
pode ajudar os vivos. Com a melhor das intenções, você pode incen-
tivar um amigo doente a tomar um determinado remédio, mas nunca
saberá se ajudou ou piorou as coisas. Inicialmente, pode parecer que
saúde do seu amigo melhorou drasticamente, mas, a longo prazo, os
efeitos colaterais podem ser devastadores – ou vice-versa.
Como eu já disse, porém, a coisa mais importante em relação à aju-
da que você oferece é a motivação. Se você tem um coração gentil e um
sorriso agradável, se é caloroso, educado e humilde e, se de fato deseja
melhorar a vida ou a morte de outras pessoas, elas apreciarão tudo o
que fizer por elas, quer sejam agnósticas, ateístas ou alguém que você
 COMO ACOMPANHAR QUEM ESTÁ MORRENDO 115

“A sua vida está passando”

desconhece completamente. Na verdade, é provável que elas apreciem


mais a sua ajuda do que a de alguém mais próximo que ajude por
dever, não por amor.

Devemos falar sobre a morte?


O Buda disse que a atenção plena focada na morte é a mais importan-
te entre todos os tipos de atenção plena; desse modo, discussões sobre
a morte nunca são inauspiciosas. Na verdade, todos nós deveríamos
falar muito mais sobre a morte do que normalmente falamos. Todos
vamos morrer, então esse assunto não interessa apenas a quem é muito
velho ou está morrendo. Acho que deveríamos incentivar as pessoas
a pensar e conversar muito mais sobre a morte. Poderíamos, talvez,
patrocinar cartazes nas grandes cidades e nas estações de metrô com
dizeres do tipo “A sua vida está passando” ou “A cada segundo você
está mais perto da morte”. E não seria bom se as festas de aniversário
incluíssem um lembrete de que a morte está um ano mais próxima?
116 VIVER É MORRER

Se você convive com materialistas que descartam tudo que seja


espiritual como mera superstição, vai precisar de muito tato para en-
trar no assunto da morte. Neste reino humano, certos temas difíceis
de abordar em geral são negados ou evitados; então, se você começar
a falar diretamente sobre a morte, poderá afastar as pessoas que está
tentando ajudar.
Em vez disso, limite-se a oferecer, com gentileza, alguma informa-
ção geral sobre a impermanência. Observe que a impermanência e as
mudanças não são, necessariamente, algo negativo. Na verdade, é a
impermanência que possibilita o progresso e a mudança. Diga que só
podemos melhorar a nossa vida porque tudo é impermanente. Antes
de podermos avançar, no entanto, devemos primeiro compreender e
aceitar a natureza impermanente dos fenômenos. Depois disso você
pode, aos poucos, introduzir o fato de que a vida é impermanente.
É claro, a sua maneira de abordar o tema da morte vai depender do
tipo de pessoa que você está tentando ajudar. Os materialistas tendem
a se preocupar só com o próprio dinheiro, com posição e poder mun-
danos e com a melhor maneira de usar redes de contato e conexões
para obter mais dinheiro e mais poder. São pessoas que não visitam
museus, porque, para elas, isso é perda de tempo – e tempo é dinheiro.
Elas jamais pensam em acordar mais cedo para ver o nascer do sol,
nem mudam os seus planos para apreciar o pôr do sol, a não ser que
desejem impressionar uma outra pessoa rica, usando aquela paisagem
como fundo para uma selfie. Assim, não é nada fácil iniciar uma con-
versa sobre a morte, ou a respeito de qualquer coisa espiritual, com
uma dessas pessoas. Se você não pode conversar com alguém sobre
poesia ou filosofia, porque isso não dá dinheiro, como vai falar sobre
a morte? Tudo que você pode fazer pelos materialistas é rezar.
Dito isso, muitos dos que parecem ser materialistas ferrenhos po-
dem ser surpreendentemente espiritualizados, mas eles não se dão
conta disso. Depois de tanto buscar satisfação material pelo mundo
inteiro – eles já foram a todos os lugares, fizeram de tudo, comeram
nos melhores restaurantes do mundo e tudo mais –, quando um des-
 COMO ACOMPANHAR QUEM ESTÁ MORRENDO 117

ses supostos materialistas cansa da vida social, ele tem muito mais
chances de se tornar uma pessoa de fato espiritualizada do que muitos
autoproclamados budistas, cristãos ou hindus. Muitas vezes, pessoas
que se gabam da sua “espiritualidade” são pouco mais do que mate-
rialistas espirituais, que passam a vida enganando a si mesmos e aos
outros. E eles são as pessoas mais difíceis de se lidar quando se trata de
discutir a morte ou qualquer forma de prática espiritual genuína.
Embora os seus amigos e familiares digam que não acreditam em
nada, se eles gostam de se distrair com passatempos mágicos e mís-
ticos, como a poesia e a filosofia, e são suficientemente sentimentais
e românticos para assistir ao pôr do sol imaginando que aquele pode
ser o último desta vida, é bem provável que sejam capazes de ouvir a
verdade. Assim, tente lhes oferecer alguma informação sobre o Dar-
ma, mas não vá afogá-los! O presente mais precioso que você pode
dar para a sua família, filhos e amigos é o Darma. Procure instilar o
Darma aos poucos no ouvido deles, mas não exagere. E jamais use
um argumento do Darma para corrigir um comportamento. É muito
melhor esperar que alguém faça algo admirável, motivado pelo al-
truísmo, para, então, apresentar um aspecto do Darma compatível
com aquilo, como forma de concordar com a pessoa e incentivá-la.
Jamais imponha as suas crenças – não vai ajudar.

Como confortar quem está morrendo

Encoraje a pessoa que está morrendo a abandonar todo apego e preo-


cupação com negócios inacabados, tarefas, planos e assim por diante.
Peça-lhe que não fique pensando nas pessoas amadas, casas, empregos
ou qualquer coisa que a prenda a esta vida. Já mencionei isso antes, e
é algo muito importante.
Aconselhe a pessoa que está morrendo a acalmar a mente e se pre-
parar para a próxima fase, fazendo boas aspirações. Que tipo de boas
aspirações uma pessoa que não é budista pode fazer? Ela poderia, por
exemplo, desejar que:
118 VIVER É MORRER

• uma pessoa realmente bondosa se candidate à presidência dos


Estados Unidos;
• sejam resolvidos os problemas ambientais associados ao aqueci-
mento global;
• sejam plantadas e cultivadas mais árvores;
• sejam encontradas soluções baratas, sem efeito colateral, para
doenças debilitantes e crônicas;
• seja inventado um carro movido a energia limpa e gratuita, que
não deixe pegadas de carbono e emita energia positiva para o meio
ambiente.
Se você conhece pessoalmente a pessoa que está morrendo, já deve
ter alguma noção sobre as suas crenças. Até a pior das pessoas deve
acreditar em algo que não seja ruim, então aproveite isso. Quem sabe
elas possam aspirar por uma semana de trabalho de dois dias?
Você também pode tentar sugerir que a pessoa faça algo que lhe
trará fama depois de morta. Quem sabe ela possa doar todo o seu
dinheiro para instalar cartazes como aqueles que mencionei antes, do
tipo que serve para nos lembrar a realidade da morte, aquela realidade
que todos vamos enfrentar. Ou algo assim.
Pergunte à pessoa que está morrendo se há alguma coisa que você
possa fazer por ela. Pergunte o que deve ser feito com o seu dinheiro,
investimentos, propriedades e pertences, e prometa que fará o possível
para que os desejos dela sejam fielmente cumpridos. Algumas pessoas
passam a vida toda preocupadas com os bens materiais, e isso não vai
mudar de repente só porque estão morrendo. Mas saber que você fará
tudo que estiver ao seu alcance para cumprir os seus desejos poderá
diminuir essa ansiedade. Essa é outra razão pela qual é uma boa ideia
dizer às pessoas que estão a seu cuidado que elas estão morrendo.
Se a pessoa que está morrendo for um budista shravakayana ou
mahayana, não deixe de lembrá-la sobre a importância da aspiração.
Peça que ela aspire alcançar a iluminação e renascer com a habilidade
de beneficiar os outros e de encontrar o caminho certo, o caminho
do Buda Shakyamuni da compaixão e da não dualidade. Continue
 COMO ACOMPANHAR QUEM ESTÁ MORRENDO 119

repetindo a mesma mensagem, verbal ou mentalmente, mesmo de-


pois que ela tenha morrido.
Se a pessoa que está morrendo for um tântrika, leia as instruções
simplificadas da página 199. Se preferir, pode ler A Grande Liberação
por meio do Ouvir no Bardo30, ou escolher qualquer uma das outras
instruções autênticas sobre o bardo, simples ou elaboradas, com as
quais esteja familiarizado, ou ainda um dos muitos textos disponíveis
para download, como, por exemplo:
• The Excellent Path to Perfect Liberation: A Guidance Practice (Nedren) para o Du-
kngal Rangdrol (Natural Liberation of Suffering) Practice of the Great Compassio-
nate One from the Longchen Nyingtik de Dodrupchen Jigme Trinle Ozer: www.
lotsawahouse.org/tibetan-masters/dodrupchen-I/excellent-path-to-perfect-li-
beration
• Root Verses of the Six Bardos, de Karma Lingpa: www.lotsawahouse.org/tibe-
tan-masters/karma-lingpa/root-verses-six-bardos
• Crucial Advice: A Complete Set of Instructions for the Bardos, de Longchen Ra-
bjam www.lotsawahouse.org/tibetan-masters/longchen-rabjam/complete-set-
-instructions

Leia as instruções em voz alta para o tântrika, como um lembrete


sobre o que está acontecendo e o que ele deve fazer.
Se os parentes da pessoa que está morrendo forem budistas, eles
podem ler em voz alta um sutra de Amitabha ou recitar o mantra, ou
a dharani da sua preferência.
• O sutra curto de Amitabha está disponível em inglês para download no website
84000: read.84000.co/translation/UT22084-051-003.html

Diga aos parentes e amigos de quem está morrendo que, de acor-


do com os ensinamentos sobre o bardo, a consciência e a percepção
da pessoa querida continuarão a funcionar por um período que pode
variar entre algumas horas até vários dias após a morte. Isso significa
que a mente dela poderá ver e ouvir o que está acontecendo entre a
família, mesmo depois que a morte do corpo tenha sido atestada. É
por isso que, tradicionalmente, os tibetanos sempre aconselham a
família a não falar sobre o testamento nem brigar pelos pertences de
quem está morrendo. Também aconselham que a família não doe os
120 VIVER É MORRER

pertences da pessoa que morreu, nem separe as peças das suas cole-
ções, pelo maior tempo possível.

Sentimento de culpa
Às vezes, as pessoas que estão morrendo sentem uma culpa devasta-
dora pelas coisas terríveis que fizeram durante a vida. Se você estiver
acompanhando um budista que sinta a consciência pesada pelo seu
comportamento no passado, sugira que ele se liberte dessa culpa to-
mando para si a culpa de todos os seres sencientes por meio da prática
de tonglen, ver página 203: “Possa a culpa de todos os seres sencien-
tes vir para mim.” Com isso, ele pode não apenas se desvencilhar da
consciência de culpa, mas também sentir-se bem por ter praticado um
tremendo ato heroico e acumulado um enorme mérito. Esse mérito
pode, então, ser dedicado à iluminação de todos os seres sencientes,
o que trará ainda mais mérito, que pode ser dedicado a um melhor
renascimento de todos, incluindo o da própria pessoa.
Se achar que isso pode ajudar, diga para quem está morrendo que,
de acordo com o Buda, a culpa que ele sente foi criada pela sua pró-
pria mente, portanto, a culpa é apenas mais uma das suas autoproje-
ções. Ele não deve, de modo algum, permitir-se ficar obcecado pela
sua própria criação.
Você também pode sugerir que essa pessoa visualize todos os bu-
das e bodisatvas no céu à sua frente e confesse, do fundo do coração,
todas as suas culpas.
Para o tântrika que está morrendo, sugira que ele recite o mantra
de Akshobhya ou o Mantra de Cem Sílabas de Vajrasattva.
121

Buda Akshobya

Dharani de Akshobya
namo ratna trayaya om kamkani kamkani rocani rocani trotani
trotani trasani trasani pratihana pratihana sarva karma
paramparani me sarva sattvananca svaha
122 VIVER É MORRER

Vajrasattva

Mantra de Cem Sílabas de Vajrasattva


om vajrasattva samaya manupalaya
vajrasattva tenopa tishtha dridho me bhawa
sutokhayo me bhawa supokhayo me bhawa anurakto
me bhawa
sarwa siddhi me prayaccha sarwa karma su tsa me
tsittam shreyang kuru hung ha ha ha ha ho bhagawan sarwa
tathagata vajra ma me munca vajri bhawa maha samaya sattva ah

Mantra de Seis Sílabas de Vajrasattva


om vajra sattva hum
O que dizer para quem
está morrendo

Os ensinamentos shravakayana e mahayana falam muito pouco nos


bardos, mas os ensinamentos vajrayana falam muito. Embora todos
os budistas afirmem que as pessoas devem se preparar para a morte
enquanto estão vivas, é o vajrayana que indica o momento da morte
como um ponto crítico na vida do ser humano. É um momento de
oportunidades espirituais extraordinárias, que não deve ser desper-
diçado. A mensagem aqui é: nunca é tarde demais. Momentos antes
da morte, a mente fica mais clara do que nunca e torna-se ainda mais
clara quando o corpo morre. Então, se você conseguir atrair a aten-
ção das pessoas logo antes que elas morram, fazendo com que olhem
para você e escutem o que você está dizendo, há uma boa chance de
que elas entendam o que está acontecendo e o que vai acontecer logo
em seguida.
Como já mencionei, durante a vida compreendemos as coisas, nos
comunicamos e interagimos através do nosso próprio conjunto de fil-
tros exclusivos. Os filtros de cada pessoa determinam o que ela vê, por
isso, enquanto estamos vivos, nenhum de nós vê nada diretamente,
124 VIVER É MORRER

sem filtros. Nossos olhos não são câmeras que meramente capturam
imagens de qualquer coisa que esteja na nossa frente, porque são guia-
dos por nossa mente. A mente escolhe quais imagens vai registrar e
como vai interpretá-las, baseada no nosso condicionamento cultural,
nossas neuroses, nos livros que lemos, no café que bebemos, nas pes-
soas com quem convivemos e assim por diante. Então, é na mente que
o espectador, o ato de assistir e tudo que nos influencia é filtrado, e é
na mente que nossas interpretações se reúnem para criar os fenômenos
de esperança, medo, incompreensão e assim por diante.
A mente de todas as pessoas se separa do corpo exatamente da
mesma maneira, sejam elas budistas ou não. Os sentidos e os objetos
dos sentidos também se desintegram exatamente da mesma maneira.
Sem os filtros, os olhos não podem ver, os ouvidos não podem ouvir, a
língua não pode degustar e assim por diante. Imagine que uma manhã
de primavera comece fria, mas, como está previsto que a temperatura
vai subir mais tarde, você veste seis camadas de roupas. A desintegra-
ção dos sentidos é como se livrar dessas seis camadas, à medida que a
temperatura sobe. Aos poucos, os seus sentidos são deixados para trás,
até que, pela primeira vez na vida, a sua mente fica completamente
nua. Para a maioria de nós, o efeito é avassalador.
Durante a vida, quando você olha uma parede, você vê aquela
parede como parte de uma casa, devido à influência da sua cultura e
hábitos. À medida que os seus hábitos perdem a intensidade, a parede
começa a parecer menos com uma parede e mais como uma pilha de
tijolos. E, quando os hábitos se dissiparem por completo, por mais
que olhe para a parede, você, simplesmente, não saberá mais o que
está vendo. Após a morte do corpo tudo que a sua mente nua expe-
rienciar não será algo filtrado, e todos os fenômenos sutis, como os
sons, gostos, cheiros e assim por diante, serão estranhos e aterrori-
zantes. No entanto, se você receber as informações corretas na hora
certa, a nudez da mente permitirá que você veja e entenda o que está
acontecendo muito mais rápido do que durante a vida. Os budistas
descrevem essa mente nua como “mente búdica”.
 O QUE DIZER PARA QUEM ESTÁ MORRENDO 125

O poder do “Buda”
Não se preocupe em saber se a pessoa morta sabe algo sobre o Buda
ou o budismo. Os seres do bardo são cem vezes mais lúcidos do que
eram quando estavam vivos, porque a percepção deles deixou de ser
filtrada. E é justamente porque os mortos são mais conscientes que é
tão importante que os vivos os encorajem a tomar refúgio e lhes apre-
sentem os ensinamentos sobre o bardo.
A noção de “buda” é extremamente profunda. Quando você fala
sobre “buda” para um ser do bardo, está lhe apresentando a noção de
que o Buda é a natureza da própria mente dele. Por vários motivos,
esse é o momento perfeito para tanto, porque é possível que os seres
do bardo estejam mais perto da natureza da mente do que qualquer
outro ser senciente.

O que dizer para quem está morrendo


Se a pessoa que está morrendo for agnóstica, ateia, ou mesmo uma
pessoa completamente desconhecida, e se ela estiver disposta a ouvi-lo,
diga:

Agora você está morrendo.


A morte chega para todos.
Todos nós morremos!
Você não é a única pessoa que um dia precisou
  enfrentar a morte.
Ninguém sabe a hora exata da morte.
Hoje, é você quem está morrendo,
Mas qualquer coisa pode acontecer,
E eu ainda posso morrer antes de você.
Não se preocupe com a sua vida,
Não se preocupe com os seus amigos e familiares,
Não se preocupe com o seu trabalho.
126 VIVER É MORRER

Em vez disso, aproveite a oportunidade para ficar sereno


  e presente.
No mesmo estado de espírito, diga tudo que você sentir que preci-
sa ser dito, mas fale com calma e gentileza. Depois entoe:
namo buddhāya
namo dharmāya
namo saṃghāya
Homenagem ao Buda,
Homenagem ao Darma,
Homenagem à Sangha.
om ye dharma hetu prabhawa
hetun teshan tathagato hyavadat teshan tsa yo nirodha
ewam vade mahashramanah soha
Todos os fenômenos surgem de causas
Essas causas foram ensinadas pelo Tathagata,
E a sua cessação também foi proclamada
Pelo Grande Shramana.
Se a pessoa que está morrendo estiver disposta a escutar, fale sobre
os bardos, da maneira mais simples possível. Diga que os budistas
acreditam que, depois da morte, a nossa essência passa por aquilo que
chamamos de “bardo” e que isso é parecido com uma viagem. Essa é
a única viagem que todos nós teremos de fazer um dia e só terminará
quando renascermos na próxima vida. Diga que os budistas preferem
se preparar para a experiência do bardo enquanto estão vivos, mas que
nunca é tarde demais.
Hoje em dia, quase todos pensam que enquanto uma pessoa ainda
está viva não deve ser forçada a fazer nada contra a sua própria vonta-
de. Mas, quando a pessoa está morta e é apenas uma consciência – um
ser do bardo –, tudo muda. Acima de tudo, é provável que o ser do
bardo esteja apavorado, porque não tem a mínima ideia do que está
acontecendo, e talvez esteja desesperado pela sua ajuda.
 O QUE DIZER PARA QUEM ESTÁ MORRENDO 127

O melhor seria se a mente da pessoa estivesse calma e tranquila na


hora da morte. No entanto, o maior problema que quase todos nós
encontramos nessa hora é o mesmo grande problema encontrado du-
rante toda a vida: o egoísmo e uma fixação constante em nós mesmos.
Para combater esse tipo de egoísmo, os budistas pensam nos outros.
Quando você estiver acompanhando uma pessoa que está à beira da
morte, encoraje-a a ir além de si mesma e que ela aspire, do fundo do
coração, que todos os seres sencientes estejam bem e felizes. Com isso,
ela enfrentará a morte com mais destemor e coragem. Você também
pode ler em voz alta o verso seguinte, como um lembrete, ou pedir
para um membro da família ou amigo próximo que faça a leitura.

Possam todos os seres desfrutar de felicidade e das causas


 da felicidade.
Possam eles estar livres de sofrimento e das causas
  do sofrimento,
Possam eles nunca se separar da felicidade suprema livre
 do sofrimento
E permanecer em equanimidade incomensurável, livres
  de apego e aversão.
Conforme a situação, procure apresentar à pessoa que está morrendo
o poder da aspiração e da prática de tonglen. Explique como, na hora
da morte, ela pode ajudar a si própria e aos outros, aspirando tomar
para si todo o medo, a dor, a culpa e a paranoia dos seres sencientes:
“Possam todo o medo, a dor, a culpa e a paranoia dos seres sencientes
vir para mim.” Pema Chödrön, uma das grandes alunas de Trungpa
Rinpoche e também uma das mais conhecidas, explica como esta prá-
tica funciona na página 203.

O momento da morte
Procure expor para a pessoa está morrendo, com amor e compaixão, o
que está acontecendo com ela.
128 VIVER É MORRER

Agora que os seus sentidos deixaram de funcionar,


A sua mente está liberta, nua, clara e presente;
Nunca antes você teve a experiência
Do que está vivendo agora.
Isto é o Buda.
Seja claro, gentil e amigável, mas não meça as palavras. A sua in-
tenção é boa, portanto, ser insistente demais não é problema. De fato,
nessa hora, seja insistente de todas as maneiras possíveis! Em menos
de uma fração de segundo, a consciência da pessoa que morreu terá a
experiência da mente nua e, embora tal experiência possa durar ape-
nas outra fração de segundo, é muito importante que ela entenda isso.
É por isso que a melhor coisa a fazer é repetir as instruções muitas e
muitas vezes.
Um morto não pode acenar nem agradecer, muito menos recom-
pensá-lo. Então, você nunca saberá se ele ouviu o que foi dito ou se
aquilo o ajudou. Assim, o ato de orientar alguém durante o processo
da morte torna-se uma doação totalmente despida de egoísmo. Como
você não vai ganhar nada pela ajuda, talvez esse seja o único momento
nesta vida em que as suas ações sejam completamente altruístas.
Se não for possível orientar uma pessoa porque, por exemplo, os
membros da família presentes junto ao leito ficariam muito inco-
modados com qualquer demonstração espiritual, sempre se lembre
de que poderá dar toda essa informação depois que a pessoa morrer.
Quem sabe? Logo após a morte talvez seja a hora perfeita para ela
tomar refúgio. De qualquer modo, nada do que você disser poderá
fazer mal, mesmo que não seja o melhor momento. Por mais precon-
ceituosa ou anti-religiosa que a pessoa que está morrendo possa ser, ou
mesmo que já tenha morrido, o que realmente importa é a sua própria
prática de compaixão e boditchita; não subestime o efeito da prática!
Se você disser para uma pessoa que está clinicamente morta e já está
nos bardos que deve tomar refúgio, tenho certeza de que ela concorda-
rá, pois, de tão assustada, deve estar disposta a tentar qualquer coisa.

 O QUE DIZER PARA QUEM ESTÁ MORRENDO 129

Descansar na natureza da mente é a prática suprema no momento da


morte. Se você recebeu as instruções relevantes e é um praticante da
natureza da mente, isso é tudo que precisa fazer.

O momento logo após a morte


Leia os versos de tomada de refúgio mais uma vez, com confiança e
gentileza.

namo buddhāya guruve


namo dharmāya tāyine
namo saṃghāya mahate tribhyopi
satataṃ namaḥ31

Homenagem ao Buda, o professor;


Homenagem ao Darma, o protetor;
Homenagem à grande Sangha.
Aos três continuamente ofereço homenagens.
buddhaṃ sharaṇaṃ gacchāmi
dharmaṃ sharaṇaṃ gacchāmi
samghaṃ sharaṇaṃ gacchāmi32

Tomo refúgio no Buda.


Tomo refúgio no Darma.
Tomo refúgio na Sangha.
No Buda, no Darma e na assembleia suprema da Sangha
Tomo refúgio até que atinja a iluminação.
Pelo mérito de praticar a generosidade e assim por diante,
Possa eu alcançar o estado búdico para beneficiar todos os
  seres.33
Até alcançar a essência da iluminação,
Tomo refúgio nos Budas.
Também tomo refúgio no Darma
E em todos os incontáveis Bodisatvas.34
130 VIVER É MORRER

Sempre dirija-se à pessoa que está morrendo pelo nome.

Ó Filho ou Filha de Nobre Família,


[nome da pessoa morta],
Agora você está morto.
Mesmo não sendo religioso,
O melhor que tem a fazer é tomar refúgio.
Escute o que vou dizer e repita depois de mim:
Eu tomo refúgio no Buda, no Darma e na Sangha.
Ó Filho ou Filha de Nobre Família,
[nome da pessoa morta],
Agora que você está morto, a sua mente está extremamente
  poderosa,
Muito mais poderosa do que a mente dos vivos.
Faça bom uso desse poder.
Use-o para ajudar os outros.
Pense:
Eu quero continuar a ajudar todos os seres vivos deste planeta,
Todos os seres humanos, todas as criaturas viventes e todo o
  ambiente natural.
Eu quero erradicar a pobreza, a doença, a desigualdade e a
  injustiça.
Eu quero que todos vejam e reconheçam a verdade.
Eu quero despertar todas as pessoas da delusão de que
  a vida vai durar para sempre.
Eu quero que todos vejam além da ilusão de que
Dinheiro, poder e relacionamentos são reais, permanentes
  e eternos.
Possam todos os seres desfrutar de felicidade e das causas da
  felicidade.
Possam eles estar livres de sofrimento e das causas do
 sofrimento,
 O QUE DIZER PARA QUEM ESTÁ MORRENDO 131

Possam eles nunca se separar da felicidade suprema livre do


  sofrimento
E permanecer em equanimidade incomensurável, livres de
  apego e aversão.
Se houver mais alguma coisa que você queira dizer para a pessoa
morta, o ser do bardo, diga agora, com bondade e gentileza.
namo buddhāya
namo dharmāya
namo saṃghāya

Homenagem ao Buda,
Homenagem ao Darma,
Homenagem à Sangha.
om ye dharma hetu prabhawa
hetun teshan tathagato hyavadat teshan tsa yo nirodha
ewam vade mahashramanah soha

Todos os fenômenos surgem de causas;


Essas causas foram ensinadas pelo Tathagata,
E a sua cessação também foi proclamada
Pelo Grande Shramana.
Diga à pessoa que morreu que ela não tem nada a perder escutan-
do o que você tem a dizer. Apresente a ela o conceito de “bardo” e fale
a respeito do bardo da morte e assim por diante.
Agora você pode oferecer à pessoa que morreu as mesmas instru-
ções que daria para um budista. Os seres do bardo podem acompa-
nhar a recitação mental, então, se por alguma razão você não puder
falar alto, leia as páginas seguintes em silêncio. Se o seu amigo que
morreu pertencia a uma religião mais dogmática, que não permite que
as pessoas que não são da família se aproximem do corpo, talvez você
não receba permissão para vê-lo após a morte. Nesse caso, apresente os
ensinamentos para o seu amigo na sua própria casa. Não se preocupe,
no momento que você o chamar pelo nome, ele reconhecerá a sua voz.
132 VIVER É MORRER

Seja quem for que você esteja ajudando, sempre repita os ensina-
mentos e instruções tantas vezes quanto puder. Na verdade, há um
bom argumento para continuar repetindo tudo por várias semanas:
se você não é onisciente, não tem como saber se a pessoa que morreu
ouviu e compreendeu o que você falou ou não.
É claro que se o morto descobrir que não existe nada como uma
“próxima vida”, nada do que for dito fará a mínima diferença para ele.
Se, entretanto, ele acordar e descobrir que tudo que está descrito nos
ensinamentos sobre o bardo é verdade, as informações que você vai
lhe dar serão o melhor conselho que ele jamais terá ouvido.
As instruções sobre o bardo

Tradicionalmente, os tibetanos confiam nas instruções sobre o bardo


que aparecem no ensinamento A Grande Liberação por meio do Ouvir
no Bardo, o Bardo Tödrol Chenmo, de Karma Lingpa. As instruções
que você encontrará nas próximas páginas são uma versão simplifica-
da daquele texto. A Grande Liberação por meio do Ouvir no Bardo foi
escrita originalmente para os budistas, mas isso não significa que uma
pessoa que não seja budista ou religiosa não esteja qualificada a ouvir
as instruções sobre o bardo. Dar refúgio e boditchita para um ateu ou
agnóstico que está no bardo do vir a ser plantará nele a semente para
que ele se torne um praticante do Darma em vidas futuras.
Quando você estiver morrendo, peça a alguém que leia as instru-
ções após a sua morte, como um lembrete.

1. O doloroso bardo da morte


Dharmakaya
Seja corajoso, direto e honesto com a pessoa que está morrendo e sem-
pre diga a verdade sobre o que está acontecendo com ela.
134 VIVER É MORRER

Fale claramente, mas com bondade, com um tom de voz apazi-


guador e melódico. Não tussa, não soe entediado nem leia monotona-
mente. E recite om mani padme hum depois de cada verso, para que
essa recitação seja proveitosa. Você também pode recitar em chinês,
namo guan shi yin pusa, japonês, on arorikya sowaka ou tailan-
dês, buddho.
Nos textos clássicos budistas, a expressão “Filho de Nobre Família”
ou “Filha de Nobre Família” é empregada para indicar que cada um
de nós pertence à família do Buda e tem a natureza búdica. Portanto,
a pessoa que está morrendo é um filho ou filha do Buda, quer seja ou
não praticante budista.
Assegure-se de sempre dizer em voz alta o nome da pessoa que está
morrendo, por exemplo, “José Silva”, antes de recitar as instruções,
porque a identidade é algo muito importante para os seres humanos.

Ó Filho ou Filha de Nobre Família,


[nome da pessoa que está morrendo],
Você está morrendo.
A projeção chamada “esta vida” está quase terminando,
E a projeção chamada “próxima vida” está prestes a começar.
Logo, você deixará para trás a casca do seu velho corpo
E obterá um novo corpo.
om mani padme hum

Ó Filho ou Filha da Nobre Família,


[nome da pessoa que está morrendo],
Tudo que você está pensando agora vai passar;
Talvez o pensamento já esteja se apagando.
Logo, você pensará em outra coisa.
om mani padme hum

O seu elemento ar, a sua energia vital, agora está se


 dissolvendo.
 AS INSTRUÇÕES SOBRE O BARDO 135

A sua digestão está se deteriorando,


A sua mente está ficando vaga e confusa.
Você está perdendo o controle dos intestinos
E a saliva escorre dos seus lábios.
Você tem dificuldade para engolir.
Seus membros parecem fracos e sem forças.
om mani padme hum

A dissolução do elemento ar
Causa a desintegração do elemento terra.
A sua cabeça está muito pesada
Para que possa ser sustentada pelo pescoço.
Cada movimento requer grande esforço e
Você está fraco demais até para segurar uma colher.
Você se sente engasgado, como se algo o sufocasse;
Você se debate contra algo
Que parece querer esmagá-lo.
Talvez veja uma luz bruxuleante, como uma miragem.
om mani padme hum

A degeneração do elemento terra leva à


Dissolução do elemento água no elemento fogo.
Você se sente ressequido;
A sua língua se enrola para trás.
om mani padme hum

As próximas linhas são uma maneira gentil de dizer para a pessoa que
ela está morrendo.

O seu corpo parece pesado?


O elemento terra no seu corpo
Está se dissolvendo no elemento água.
om mani padme hum
136 VIVER É MORRER

Você está se sentindo ressequido e desidratado?


O elemento água está se dissolvendo
No elemento fogo.
om mani padme hum

Você está tremendo? Sente frio?


O elemento fogo está se dissolvendo
No elemento ar.
om mani padme hum

Logo, você terá dificuldade para respirar,


Como se o peso uma montanha estivesse sobre o seu peito.
Será difícil inspirar,
Mas você ainda poderá expirar.
Não entre em pânico,
Não há nada pressionando o seu peito.
O peso que está sentindo
É a desintegração dos elementos do seu corpo.
om mani padme hum

A seguir, é como se você estivesse envolvido pela escuridão.


Tudo está preto como carvão.
Não entre em pânico.
As consciências dos seus sentidos externos
– Dos seus olhos, ouvidos, nariz e assim por diante –
Estão se dissolvendo.
om mani padme hum

Você sente que está caindo de grande altura.


Não entre em pânico,
Você não está caindo pelo espaço afora.
O seu corpo e a sua mente
Estão se separando gradualmente.
 AS INSTRUÇÕES SOBRE O BARDO 137

Agora, pela primeira vez desde sempre,


A sua mente vai passar pela experiência
De não depender do corpo.
É assim que a mente é
Quando não está mais confinada ao corpo.
om mani padme hum

Ó Filho ou Filha de Nobre Família,


[nome da pessoa que está morrendo],
Não se detenha naquilo que não conseguiu nesta vida,
Ou nas coisas que desejaria ter feito;
Os empreendimentos mundanos são infindáveis.
om mani padme hum

Não se preocupe com os parentes e amigos, eles ficarão bem.


De qualquer modo, não há mais nada que possa fazer por eles.
Não pense nos seus bens;
Não pense no quanto sentirá falta da sua vida,
Das suas casas, carros, carregadores de celular, pendrives etc.
om mani padme hum

Logo você verá luzes das cores do arco-íris.


Essas luzes aparecem de repente, então lembre-se:
Elas são apenas as cores,
A manifestação,
A expressão da sua mente.
om mani padme hum

O que você dirá neste ponto vai depender dos ensinamentos que
a pessoa que está morrendo recebeu. Se ela foi apresentada aos três
kayas da tradição mahasandhi, em vez de dizer “a expressão da sua
mente”, diga “a expressão dos três kayas”. Se ela não foi apresentada
138 VIVER É MORRER

aos três kayas, porém, não vá confundi-la com palavras que ela não
conhece. Em vez disso, diga apenas “a sua mente”.
As infinitas cores como as do arco-íris
E as formas que o cercam agora
Não se parecem com nada que tenha visto antes.
O tom de azul,
O tom de verde,
O tom de vermelho
São incrivelmente intensos e vivos.
Como você não está mais limitado
Pelo filtro dos seus olhos,
Você percebe todas as cores que nem nome têm
E eram invisíveis enquanto você estava vivo.
om mani padme hum
Você pode ver algumas formas familiares,
Como quadrados, triângulos e semicírculos,
Mas a maioria é completamente desconhecida;
Você nunca imaginou
Que pudessem existir formas como essas.
om mani padme hum
Tudo parece intenso e brutal,
Porque a percepção não se dá mais por meio
Dos filtros dos órgãos dos sentidos
Ou da sua imaginação.
Não há nada entre você e o objeto que está experienciando.
om mani padme hum
Não tenha medo das cores e das formas,
Ou da intensidade com que são percebidas.
Elas são apenas a expressão da sua mente (dos três kayas).
Nada do que você vê ou experiencia está “lá fora”,
Tudo isto é a manifestação radiante da sua mente.
 AS INSTRUÇÕES SOBRE O BARDO 139

om mani padme hum


Não sinta medo.
Não há motivo para entrar em pânico.
Agora, você vai desmaiar.
Ó Filho ou Filha de Nobre Família,
  [nome da pessoa que está morrendo],
Isto é o Buda!
Ó Filho ou Filha de Nobre Família,
  [nome da pessoa que está morrendo],
Isto é o Buda!
Ó Filho ou Filha de Nobre Família,
  [nome da pessoa que está morrendo],
Isto é o Buda!
om mani padme hum
Não tenha medo!
Não fabrique coisas!
Isto é o Buda;
Isto é o que você realmente é!
Você não é [nome da pessoa].
Você é o Buda!
Aceite isso!
Permaneça na sua verdadeira natureza!
Você é o Buda,
Não fuja da sua natureza búdica!
É isso!
Não tente fugir desse estado!
Relaxe e permaneça bem aqui!
om mani padme hum
140 VIVER É MORRER

Para nós que ainda estamos vivos, os assim chamados “seres vivos”,
esse estado é rotulado como “o momento da morte”. No reino huma-
no, a pessoa que estava morrendo agora é considerada como morta.
Enquanto lê essas instruções para o seu amigo ou amado que está
morrendo, talvez ele não aparente o que você esperava ver. Mas, como
é improvável que possa identificar o estágio da morte pelo qual a pes-
soa esta passando – talvez os lábios não estejam secos, não esteja páli-
do e assim por diante –, não tente analisar nem prever em que ponto
do processo ele se encontra: você não vai conseguir, a não ser que seja
onisciente.
A melhor coisa que você pode fazer é seguir as instruções, que, defini-
tivamente, ajudarão. Repita o texto por uma, duas, três horas, a noite
inteira, ou por 24 horas. Se estiver em grupo, faça um revezamento,
para que sempre tenha alguém ao lado da pessoa que está morrendo
ou que morreu ao longo das 24 horas. Alterne entre entoar om mani
padme hum cem ou mil vezes e a leitura das instruções.
Sempre procure lembrar de falar com carinho, com a voz partindo
de um coração compassivo e transbordante de boditchita.
Se você conhece a prática de se considerar como uma deidade, te-
nha confiança de que você é Vajrasattva, Samantabhadra, Guru Rinpo-
che, Padmasambhava ou Amitabha enquanto lê as instruções.

2. O bardo luminoso do dharmata


Sambhogakaya
Após repetir as instruções do dharmakaya um dia inteiro, agora é a hora
de dar algumas informações novas para a pessoa que morreu. Essas ins-
truções também devem ser repetidas tantas vezes quanto possível.
Talvez a lei do seu país determine que o corpo deva ser cremado
imediatamente após a morte; isso é comum em muitos lugares do
mundo atual. Não fique preocupado se não for possível sentar ao lado
do corpo: uma boa alternativa é sentar onde a pessoa que morreu
gostava de ficar; no quarto, na sala, no escritório, no jardim, ou em
 AS INSTRUÇÕES SOBRE O BARDO 141

qualquer outro lugar. Se isso também não for possível, sente-se perto
de algum objeto que ela gostava. E, se nada disso for possível, apenas
chame a pessoa pelo nome.
Para os budistas, o corpo é apenas um receptáculo para a mente
– como uma xícara – então, se puder, continue a recitar as instruções
mesmo depois que o corpo tenha sido cremado.

Ontem, Filho ou Filha de Nobre Família,


  [nome da pessoa morta],
Você não conseguiu permanecer
No estado puro, não criado, do Buda
E perdeu a chance de se liberar.
O estado não criado do Buda era tão pouco familiar
E tão insuportável que você desmaiou.
om mani padme hum

Agora você se recuperou do desmaio.


Tudo que está experienciando é apavorante.
Uma fúria violenta se alastra,
Enquanto formas e símbolos nítidos e pontiagudos o cercam
E figuras iradas e sons tumultuosos tomam conta da sua
 percepção.
Nunca antes você viu ou ouviu coisas assim.
om mani padme hum

Figuras grotescas, com muitas cabeças e faces em chamas,


Preenchem o espaço.
Uma cacofonia de sons estranhos e trovejantes o ensurdecem;
Como uma chuva de granizo poderosíssima,
Agulhas de luz passam zunindo ao seu redor.
om mani padme hum
142 VIVER É MORRER

Ó Filho ou Filha de Nobre Família,


[nome da pessoa morta],
Não tenha medo!
Este é o esplendor, a manifestação, a dança,
O fluir e o refluir do mesmo Buda
Que a sua mente experienciou na hora da morte.
Você está com medo porque é uma experiência estranha,
Que nunca antes aconteceu.
Por isso, é claro que você sente medo.
Procure lembrar: esta é a natureza da sua mente.
Isto é o Buda.
om mani padme hum

Nesse estágio, é muito provável que o ser do bardo desmaie.

Ó Filho ou Filha de Nobre Família,


[nome da pessoa morta],
Mais uma vez, você perdeu a chance de se libertar.
Você não reconheceu as formas iradas
Como a manifestação da sua própria natureza búdica.
Por isso, você desmaiou.
om mani padme hum

Agora você se recuperou do desmaio


E as infinitas cores de arco-íris, os sons e formas
Que está experienciando são pacíficas e tranquilizadoras,
Como a calmaria depois da tempestade.
A luz é encantadoramente clara,
E você pensa que possui uma forma, um “corpo”.
om mani padme hum

Esferas de luz com as cores do arco-íris preenchem o espaço.


Um buda está sentado em cada esfera de luz,
 AS INSTRUÇÕES SOBRE O BARDO 143

Rodeado por bodisatvas.


Do coração desses seres sublimes,
São lançados fios de luz para o seu coração.
om mani padme hum

Todas as essas novas formas parecem familiares.


Lembre-se,
Tudo que você está experienciando
É a manifestação da sua própria mente.
om mani padme hum

Não se intimide ante essas figuras;


Elas são apenas a sua mente.
Não sinta medo dessas figuras;
Esteja convicto de que a sua mente
Está criando o que você está vendo.
om mani padme hum

Algumas figuras não são brilhantes nem espetaculares.


Suas cores de tons suaves o atraem,
E você é seduzido pela sua doce calma.
Elas são mais acolhedoras do que
O brilho irado cortante.
om mani padme hum

Não se deixe enganar por essas imagens gentis!


Não se aconchegue a elas!
Se o fizer, bem rápido elas se transformarão
Nas suas emoções negativas tão familiares,
Como a raiva, a inveja e a ganância.
Você se sente atraído por essas imagens serenas
Simplesmente porque conhece tão bem essas emoções.
144 VIVER É MORRER

om mani padme hum

A maioria de nós prefere se apegar àquilo que conhecemos. Embo-


ra as nossas emoções habituais possam ser dolorosas e angustiantes,
também podem ser confortantes pela sua familiaridade. Na maioria
das vezes, preferimos ter a experiência de uma dor que conhecemos do
que nenhuma experiência – a mente é muito masoquista. É por isso
que a ausência de referências que sentimos após a morte do corpo é
tão insuportável.
As nossas emoções nos permitem sentir; nos sentimos vivos, sen-
timos que existimos e que os outros “nos sentem”. O remédio que
aplicamos para domar nossas emoções e sentimentos é a meditação,
a prática da ausência de referência e de não nos deixarmos ser captu-
rados ou enredados por nossos pensamentos e emoções. Empregamos
palavras como “enredados” ou “absortos” porque elas têm o efeito de
matar a dor da ausência de referências. Isso soa estranho, não é? Mas a
realidade é que, enquanto estamos enredados por nossos pensamentos,
estamos sofrendo. Ainda assim, gostamos dessa dor, porque ela nos faz
sentir que estamos vivos, e achamos que é melhor sofrer com uma dor
conhecida do que nos expor a uma experiência nova e indolor.
Basicamente, somos todos masoquistas, de um jeito ou outro. É
por isso que nos sentimos muito mais confortáveis com as figuras e
formas que vemos agora, com cores menos intimidantes, menos bri-
lhantes, menos extraordinárias, e é por isso que desejamos nos acon-
chegar nelas.

Ó Filho ou Filha de Nobre Família,


[nome da pessoa morta],
Não se deixe atrair pelas imagens sutis!
Concentre-se nas cores deslumbrantes e nas figuras vibrantes.
Uma luz vai se projetar de uma das figuras resplandecentes,
Perfurando seus olhos.
Alegre-se!
Entregue-se à luz!
 AS INSTRUÇÕES SOBRE O BARDO 145

Faça preces para a luz!


Lembre-se sempre:
Tudo que você vê é apenas a sua mente.
om mani padme hum

Continue a se entregar à luz brilhante.


Entregue-se a ela vezes sem fim.
Aos poucos, todas as figuras brilhantes e reluzentes,
E todas as luzes deslumbrantes
Irão se dissolver naquelas que são fracas e convidativas,
E você será liberado.
om mani padme hum

Repita as instruções de hora em hora ou a cada duas ou três horas; a


frequência fica a seu critério. Se possível, repita um dia após a morte e
no dia seguinte, três, cinco ou sete vezes por dia.
Sempre comece dizendo:

Ó Filho ou Filha de Nobre Família,


[nome da pessoa morta],
Mais uma vez, você perdeu a chance de se libertar...

Se você puder, invoque os milhões de seres que devem estar mor-


rendo neste exato instante. Seja onde se encontrem, os seres do bardo
podem ouvi-lo, porque a consciência deles não está mais bloqueada
pelo corpo. Se você estiver fisicamente em Londres, um ser do bardo
desprovido de corpo que esteja em Nova York poderá ouvi-lo tão cla-
ramente quanto se estivesse ao seu lado.
Procure sempre lembrar, tudo é a mente. Portanto, os seres do
bardo não precisam ter medo das formas, cores e figuras que veem;
por outro lado, também não devem se apegar a elas.
Em alguns casos, todos os estágios do bardo acontecem ao mesmo
tempo; em outros, desenrolam-se gradualmente. Como você não é
146 VIVER É MORRER

onisciente, não tem como saber em qual dos estágios o ser do bardo
está. O melhor a fazer é oferecer todas as informações que você pos-
sui, tão rápido e tantas vezes quanto possível, na esperança de que ao
menos um pouco do que está falando seja útil. A repetição contínua
é um tipo de apólice de seguro: quanto mais você repetir as instruções,
maior a chance de que o ser do bardo as ouça, nem que seja uma vez.

3. O bardo cármico do vir a ser


Depois de três dias, diga:

Ó Filho ou Filha de Nobre Família,


  [nome da pessoa morta],
Não se distraia.
Você está perdido no bardo.
Você não reconheceu
As manifestações iradas e pacíficas de sons, formas e luzes,
Que são a manifestação interna, direta, da natureza da mente.
Como você recuou diante daquele estado nu,
A sua consciência não é mais imaculadamente pura,
E as suas projeções e percepções são cruas e grosseiras.
om mani padme hum

Agora você sabe que está morto.


Embora anseie por viver novamente,
As causas e condições para a sua nova vida
Ainda não amadureceram.
Em vez disso, você está mergulhado na sua percepção
  da morte.
Inúmeros sons ribombantes e luzes transfixantes
Continuam a apavorá-lo.
Talvez você se sinta como se estivesse caindo em
  um abismo.
Tudo que percebe é errático e estranho,
 AS INSTRUÇÕES SOBRE O BARDO 147

Tudo muda e se altera tão rápido


Que você nunca tem tempo de se acostumar com nada.
Tudo que você experiencia causa terror na sua mente,
Você não tem um ponto de referência,
Não tem um lugar de descanso,
Não tem paz,
Não encontra um local silencioso,
Não tem oportunidade de contemplar.
om mani padme hum

Ó Filho ou Filha de Nobre Família,


  [nome da pessoa morta],
Enquanto passa por tudo isso,
Procure lembrar:
Tudo é a manifestação da sua mente.
om mani padme hum

A mente é como o céu,


Não tem cor, forma nem limite.
Ainda assim, a “cognição” e a “consciência” estão sempre
 presentes.
Tenha confiança na natureza da sua mente.
om mani padme hum

Os dois bardos anteriores são desprovidos de referências, portanto,


conceitos como alimento e fome são inexistentes. Agora que o morto
ressurgiu como um ser do bardo, o prana e a mente dele se fortale-
ceram e se tornaram mais concretos, então, o hábito e o conceito de
sustento – comida e bebida – logo se restabeleceram. Sem o corpo
físico, o ser do bardo só pode se alimentar de odores. É por isso que
fazemos a queima de “sur” e dedicamos a fumaça à pessoa que morreu.
148 VIVER É MORRER

Oferenda de sur
O “sur” é um ritual tradicional para os mortos. Cerca de três dias após
a morte, os amigos e familiares da pessoa que morreu queimam comi-
da vegetariana como oferenda de sur. Os tibetanos queimam cevada
tostada, mas você pode queimar qualquer tipo de comida vegetariana
que preferir, pode ser simplesmente um biscoito.
Visualize a fumaça da oferenda de sur como abundantes nuvens
de riqueza, comida, bebida, moradia, transporte e assim por dian-
te. Multiplique e abençoe as oferendas e depois dedique o mérito ao
bem-estar da pessoa que morreu e de todos os seres sencientes.
Idealmente, visualize-se como Avalokiteshvara ou qualquer deida-
de pacífica da sua preferência. O ser do bardo está abalado, nervoso
e com medo, então, visualize-se como uma deidade pacífica e muito
compassiva, para criar uma atmosfera tranquilizadora. Recite om ah
hum algumas vezes e abençoe as oferendas borrifando água sobre elas.
Quando fizer a prática, se por algum motivo não puder ler o texto
em voz alta, faça a leitura em silêncio.

Ó Filho ou Filha de Nobre Família,


  [nome da pessoa morta],
Coma este alimento até estar saciado!
Aceite tudo que é oferecido para contentá-lo.
Não anseie pela vida.
Não suspire pelos que ficaram para trás.
Em vez disso, pense no seu guru.
Pense na deidade.
Pense nos reinos puros dos budas.
Pense no reino búdico onde
O Senhor da Luz Ilimitada, o Buda Amitabha, reside
E repita o nome do Buda Amitabha, de novo e de novo.

• Se você preferir uma prática levemente mais elaborada, a prática de sur do


Chokling Tersar é muito fácil de fazer. Uma versão em inglês está disponível para
download em: https://lhaseylotsawa.org/texts/karsur-and-marsur
 AS INSTRUÇÕES SOBRE O BARDO 149

O Buda Amitabha
O Buda Amitabha fez algumas aspirações extremamente poderosas nas
suas vidas anteriores como bodisatva. Ele desejou e aspirou que, apenas
por pensar nele ou recitar o seu nome, possamos todos renascer no
seu reino no instante em que morrermos; tudo que precisamos fazer
é pensar nele ou recitar o seu nome. Por isso, continue lembrando ao
ser do bardo o nome do Buda Amitabha.
Ó Filho ou Filha de Nobre Família,
  [nome da pessoa morta],
Para invocar o Buda Amitabha, recite:
namo amitabha
 ou
om ami dheva hri
Reze com entusiasmo para o Buda Amitabha,
Reze para Avalokiteshvara e Guru Rinpoche, Pema Jungne.
Cultive uma devoção intensa por eles,
Sem nenhuma dúvida.
Deseje, de novo e de novo,
O mesmo estado búdico que eles alcançaram;
Almeje renascer no estado búdico perfeito.
Pelas suas preces sinceras e ardentes,
Você renascerá no reino do Buda Amitabha.
Alegre-se,
Não entre em pânico,
Relaxe,
Tenha confiança
E intensifique uma devoção inabalável.
Depois:

Ó Filho ou Filha de Nobre Família,


  [nome da pessoa morta],
150 VIVER É MORRER

Você perdeu o foco,


Você não se conduziu ao reino do Buda Amitabha,
Então, será arrastado em direção a um útero.
om mani padme hum

Ó Filho ou Filha de Nobre Família,


  [nome da pessoa morta],
Escute com entusiasmo e atenção!
om mani padme hum

Se você enxergar pilhas de madeira,


Ou cavernas, ou lugares úmidos, sombrios, ou escuros,
Tenha cuidado!
Se imaginar que está numa floresta agradável, ou numa mansão,
Tenha cuidado!
om mani padme hum

Não cobice lugares como esses;


Não corra em direção a eles.
Não tome decisões apressadas.
om mani padme hum

Em vez disso, deseje renascer na Terra, como um ser humano.


Aspire se conectar com as palavras do Buda, o Darma.
E almeje renascer em uma região
Onde os ensinamentos do Buda sejam oferecidos abertamente.
Estabeleça essa motivação e aspiração
De novo, de novo e de novo.
om mani padme hum

Tente ficar calmo;


Se estiver muito agitado, procure se recompor.
om mani padme hum
 AS INSTRUÇÕES SOBRE O BARDO 151

Como já mencionei, você renascerá como uma menina, se sentir


ciúme da mãe e desejo pelo pai, e como um menino se sentir ciúme
do pai e desejo pela mãe.
Tântrikas, visualizem o seu pai como Guru Rinpoche, ou como a
deidade que você pratica e com quem está mais familiarizado, e a sua
mãe como Yeshe Tsogyal, ou como a consorte da sua deidade pessoal.
Evitem o desejo e o ressentimento invejoso em relação a um dos seus
pais ou a ambos; em vez disso, com alegria e devoção a Guru Rinpo-
che e Yeshe Tsogyal, entre no útero.
Perguntas sobre cuidados
com pessoas que estão
morrendo ou mortas

“Espere!”―
  e na pausa,
“Buda, tenha compaixão!”35
Shayo

Qual seria a maneira mais hábil de lidar com uma pessoa idosa
que não é praticante do Darma e que todos os dias expressa o
desejo de morrer?
É provável que seja melhor não contrariar esse tipo de pessoa nem
discutir com ela. Tente recitar ou cantar om mani padme hum sem-
pre que puder, mas casualmente, como se estivesse cantarolando ou
assobiando uma música. Não se dirija à pessoa idosa enquanto canta.
Deixe parecer que ela ouviu por acaso. No fim das contas, não vai
fazer diferença se ela se aborrecer com isso ou não. O fato de que ela
tenha ouvido o som do mantra significa que foi feita uma conexão
com o Darma, e essa conexão será útil. Se ela gostar da sua música,
também é bom. De qualquer modo, ambas as reações, “gostar” e “não
gostar”, são um sinal de que houve uma conexão. Diga para a pessoa
154 VIVER É MORRER

que, na condição dela, desejar a morte é perfeitamente compreensível.


Mas também sugira que, além de esperar ansiosa pela morte, ela as-
pire seriamente renascer com a capacidade de ajudar os outros, sejam
pessoas, animais, o meio ambiente etc.

O que posso dizer para um cristão que acredita que é uma má


pessoa e que vai acabar no inferno?
Você pode sugerir que ele reze para o deus dele e peça perdão. Tam-
bém pode cantar om mani padme hum casualmente, como acima.

O que devo fazer se a pessoa que está morrendo começar a ter


visões apavorantes de demônios e outras coisas?
Diga que a mente dela está pregando peças, depois cante om mani
padme hum e outras dharanis.

O que devo fazer se a pessoa que está morrendo se recusa a en-


tender o que está acontecendo e prefere conversar sobre coisas
triviais?
Fale sobre coisas triviais. Com isso, você pode conseguir ganhar a con-
fiança da pessoa e ter a oportunidade de inserir na conversa alguma
informação útil sobre a boditchita. Talvez consiga, também, lhe apre-
sentar o mantra om mani padme hum.

O que devo fazer se a pessoa que está morrendo tem uma grande
vontade de viver e não quer se entregar no momento da morte?
Por mais que a pessoa queira viver, nada pode evitar a morte. O desejo
de continuar viva, ou uma “grande vontade de viver”, é um sinal de
que ela não aceitou a morte, o que pode intensificar o seu sofrimen-
to. Por outro lado, se as causas e condições conspiraram para deixar
alguém à beira da morte, mas a força vital daquela pessoa está intacta
e sem danos, o desejo intenso de viver pode trazer a pessoa de volta à
vida. Em outras palavras, é possível que a força vital da pessoa esteja
intacta. É por isso que é sempre bom fazer rituais de fortalecimento e
práticas de longa vida que, nas circunstâncias favoráveis, têm o poder
de trazer a pessoa de novo à vida.
 PERGUNTAS SOBRE CUIDADOS COM PESSOAS QUE ESTÃOMORRENDO OU MORTAS 155

Se você não é um praticante vajrayana, pode ler um sutra em voz


alta, como o Sutra da Vida e Sabedoria Ilimitadas.
• The Sutra of Boundless Life and Wisdom, em inglês, está disponível para do-
wnload em: www.lotsawahouse.org/words-of-the-buddha/sutra-boundless-life

Tântrikas que receberam as respectivas iniciações podem recitar o


mantra das três deidades de longa vida ou realizar o ritual de Amitayus
ou de Arya Tara, como o Chimé Phagmé Nyingtik. Se você recebeu a
iniciação do Chimé Phagmé Nyingtik, siga o texto de prática que o
seu guru vajrayana lhe ensinou.

Fazer boas ações em nome da pessoa que está morrendo também


ajuda.
Você pode praticar o salvamento de vidas utilizando, por exemplo,
o texto de Jamyang Khyentse Wangpo, Prática para longa vida e pros-
peridade: Um método para salvar vidas, que aparece na página 211.

Você pode fazer o voto de ser vegetariano, idealmente, pelo resto


da vida, ou, pelo menos, por um período de tempo determinado,
como um dia, uma semana, um mês, um ano.
Você pode encomendar, comprar ou fazer estátuas ou pinturas do
Buda Amitayus ou de Arya Tara.
Você pode até construir um templo.

Como posso dar apoio a uma pessoa que está em choque porque
a morte chegou de repente e tudo está acontecendo muito rapi-
damente?
Se a pessoa for budista, lembre-a do Buda, Darma e Sangha e leia
todas as instruções sobre o bardo em voz alta, especialmente se ela for
praticante do tantra.
Se ela não for budista, apenas ofereça carinho, cuidados e atenção
total. Você terá bastante tempo para ler as instruções sobre o bardo
depois da morte, quando, então, também poderá acumular méritos
por realizar boas ações em nome da pessoa falecida.
156 VIVER É MORRER

O senhor acha que ter uma crença religiosa a respeito do que


acontece depois da morte traz conforto ou medo para a pessoa
que está morrendo?
Depende da natureza da crença religiosa. Para o budista que está mor-
rendo, ouvir sobre a base da liberação (página 58) é extremamente
encorajador, porque o faz lembrar que o momento da morte é a sua
grande chance de despertar e se liberar.

Devemos incentivar um católico que esteja morrendo a rezar


para a Virgem Maria?
Normalmente, um ser sublime e divino é o reflexo da nossa própria
bondade, e o desejo de rezar para um ser divino é uma forma de de-
monstrar submissão e humildade. Quando rezamos, depositamos a
nossa confiança em alguém ou algo que é mais divino e sublime do
que nós. Este tipo de confiança é uma ótima qualidade humana, mas
nem todos os seres humanos a possuem. Quando rezamos, a nossa
humildade, devoção e fé genuínas no que é sublime são refletidas e
voltam para nós, na forma de budas, bodisatvas e seres sagrados, como
a Virgem Maria.
Para os católicos, Maria é a expressão da serenidade e compaixão
gentil, duas boas qualidades para termos em mente na hora da morte.
Desse modo, eu jamais diria que rezar para a Virgem Maria não seja
uma ótima ideia.

É difícil saber quando um praticante budista que está morrendo


precisa ser lembrado da sua prática e quando é melhor ficarmos
em silêncio. Às vezes, fico receoso de fazer alguma coisa, porque
não quero distrair ou perturbar quem está morrendo. O senhor
teria algum conselho?
Sim, é difícil. Mas, em geral, o que você diz não é nem de longe
tão importante quanto a sua motivação. Desse modo, procure desper-
tar uma motivação boa e pura, e faça todo o possível para encorajar
a pessoa e oferecer instruções. E tente ser sensível, pois é melhor não
irritar as pessoas enquanto elas estão morrendo.
157

A Virgem Maria
158 VIVER É MORRER

Os cuidadores com boa capacidade de empatia e intuição conse-


guem identificar as reações da pessoa que está morrendo e se ajustam a
cada situação. No entanto, mesmo que a pessoa fique aborrecida e não
queira ouvir ou aceitar que está morrendo, você não deve evitar o as-
sunto; não se preocupe com o politicamente correto numa hora dessas.
Se você estiver absolutamente certo de que a morte se aproxima, deve
dizê-lo para a pessoa. Por mais irritada que ela fique, os seus conselhos
sobre o que devemos fazer enquanto estamos morrendo e durante o
bardo serão mais úteis do que tudo que essa pessoa já ouviu. É preciso
coragem, porém, para dar esse tipo de informação, e é por isso que a
sua motivação pura, linguagem corporal, comportamento, até o tom
da sua voz são tão importantes. Tudo que você fizer vai ajudar.

Como posso lidar com os meus sentimentos ambíguos (angústia,


animosidade, tristeza, desejo de ganho material pela morte da
pessoa amada) e estresse emocional (trauma intenso), enquanto
tento, através da minha prática, ajudar uma pessoa que está
morrendo?
É por isso que é tão importante ajustar a sua motivação. Talvez você
não tenha certeza de mais nada, mas, se está motivada por amor, com-
paixão e, principalmente, pela boditchita – por mais superficial que
seja –, tudo que você fizer será útil.
Se você é budista, sugiro que contemple as Quatro Qualidades
Incomensuráveis: amor, compaixão, alegria e equanimidade. Pode até
recitá-los para si mesmo como um lembrete.

Eu vi três pessoas morrerem e sempre foi muito angustiante. Em


nenhum dos casos eu percebi entrega, via apenas um corpo agi-
tado, medo e resistência. O médico me disse que, embora o pro-
cesso de falência do corpo pareça doloroso, a mente da pessoa que
morre não registra isso. Mas não acreditei nele.
É assim que a dissolução dos elementos é vista por nós. Se você notar
que isso está acontecendo enquanto alguém está morrendo, aproveite
a oportunidade para ler em voz alta as instruções da página 134.
 PERGUNTAS SOBRE CUIDADOS COM PESSOAS QUE ESTÃOMORRENDO OU MORTAS 159

O processo da morte nem sempre é tranquilo, romântico e pací-


fico. Como cuidadora, às vezes fico amedrontada e, para minha
vergonha, repugnada, porque os corpos enfraquecidos excretam,
têm mau cheiro etc. O senhor tem algum conselho de como posso
lidar com isso?
Sempre se incentive. Você está prestando, talvez, o maior serviço que
um ser humano pode prestar a outro. Muitos são abandonados na
hora da morte, porque são poucos os que aceitam a responsabilidade
de cuidar deles. E, para um ser humano, não há nada mais doloroso
ou apavorante do que o processo da morte.
Se você é budista, reze aos budas e bodisatvas pedindo que lhe
deem força, sabedoria e compaixão, para que tudo que você faça seja
exatamente o que a pessoa que está morrendo precisa e deseja. Tam-
bém reze para que, como resultado da sua ajuda, a semente da bodit-
chita seja semeada na mente dela.
No entanto, não tente fazer muitas coisas, muito rapidamente. A
disposição de se oferecer para cuidar dos que estão morrendo é um ato
de coragem incrível, mas vai levar algum tempo até você se acostumar
com todas as implicações dessa tarefa. Vá passo a passo, começando
com passos curtos. Aos poucos, você vai ganhar mais experiência e, se
a sua motivação for pura, enraizada no amor, compaixão e boditchita,
tudo o que fizer, certamente, vai ajudar a pessoa.

Como posso ajudar uma pessoa que está morrendo se ela estiver
muito medicada, usando morfina, por exemplo?
Leia as instruções sobre o bardo contidas neste livro, principalmente
depois que a pessoa morrer. A morfina realmente só afeta o corpo,
portanto, uma vez que o corpo tenha morrido, afetará muito menos
a mente.

O meu trabalho é cuidar dos que estão morrendo. Muitas vezes,


os parentes e amigos insistem em permanecer ao lado do leito de
morte. Embora eles não tenham a intenção de perturbar, podem
160 VIVER É MORRER

impedir que o budista que está morrendo recite mantras ou re-


ceba ensinamentos. Como devo lidar com esse tipo de pessoas?
Seja sempre habilidoso e nunca tente impor nada a ninguém. O mo-
mento da morte é um ponto crucial na vida de todos. Se apenas um
dos amigos ou parentes quiser ouvi-lo, procure conversar com ele so-
bre os bardos. Se ninguém estiver disposto a escutá-lo, porém, sente-
-se em um lugar mais ou menos isolado, leia as instruções deste livro
e recite algumas preces. Ou leia A Grande Liberação por meio do Ouvir
no Bardo ou a instrução sobre o bardo de sua preferência. Nada nem
ninguém pode impedi-lo de fazer isso.
Do ponto de vista prático, a tradição tibetana recomenda que,
durante o processo de morte, devemos evitar mover ou tocar o corpo
da pessoa, principalmente da cintura para baixo. Se for possível, tente
pedir aos parentes e amigos que fiquem perto da cabeça da pessoa, não
perto dos pés.

Quais são os sinais físicos percebidos ao final da dissolução in-


terna? São similares aos sinais que os médicos verificam depois
da morte, como o início do "rigor mortis"? Como posso saber se
a consciência da pessoa deixou o seu corpo?
Os sinais que os médicos verificam podem muito bem ser os mesmos
que indicam o final da dissolução interna, mas o processo da morte
não é sempre igual. Mesmo que existam sinais perceptíveis, eles va-
riam de uma pessoa para outra. Um grande praticante é sensível ao
processo da morte e assim por diante e pode saber quando a consciên-
cia deixa o corpo. Mas, para nós, é quase impossível ter certeza. Na
maior parte dos casos, precisamos confiar nas instruções gerais.
Você saberá que a pessoa está perto da morte quando ela parar de
respirar, o corpo esfriar e ela não responder de modo algum.

Após a morte, se houver um calor na área do coração do cadáver


por mais de um dia, isso é sempre um sinal de que a pessoa en-
trou no estado de "tukdam"? Mesmo que não seja o cadáver de
um praticante? Ou existe outra explicação para esse calor?
 PERGUNTAS SOBRE CUIDADOS COM PESSOAS QUE ESTÃOMORRENDO OU MORTAS 161

“Tukdam” significa que um praticante espiritual está no estado de sa-


madhi, ou de “atenção unidirecional”. Então, é improvável que algum
calor perto do coração de alguém que não era praticante seja sinal de
samadhi. Ele pode estar só distraído.

Devemos colocar uma imagem do Buda ou do guru perto do cor-


po? A recitação deve continuar após a morte? Por quanto tempo?
Sim, claro. Mas a imagem não precisa, necessariamente, ser deixada
no quarto onde a pessoa morreu. Hoje em dia, se a morte ocorrer no
hospital, isso pode ser difícil. Em vez disso, você pode colocar a ima-
gem em casa, no quarto dela, e deixá-la ficar lá tanto tempo quanto
possível.

Eu ouvi dizer que o nosso estado mental no momento da morte é


crucial e que deveríamos tentar ficar calmos. O meu pai morreu
com dor e parecia estar muito perturbado. Agora fico preocupa-
da com o que possa ter acontecido com ele.
Há muitas práticas que você pode fazer para ajudar a pessoa amada
que, aparentemente, tenha morrido perturbada. Por exemplo, um ri-
tual chang chok para purificação dos mortos.
A família pode, se desejar, celebrar a vida do ente amado de muitas
maneiras. Alguns fazem trabalho voluntário ou contribuem para ins-
tituições de caridade, dão roupas e alimentos para os pobres, oferecem
abrigo para os sem-teto, ou mesmo doam dinheiro para campanhas
para salvar a Terra ou limpar o meio ambiente, dedicando tudo isso
em memória da pessoa amada. Esses são os tipos de “boas ações” ou
“ações virtuosas” que realmente ajudam. É importante lembrar que,
no budismo, quanto mais perto da compreensão da verdade um ato
o levar, mais “virtuoso” será.
Além disso, ou como alternativa, encomende para um artista uma
estátua do Buda, se esse tipo de homenagem o agradar. Se isso for
muito oneroso, simplesmente baixe a foto de uma bela estátua do
Buda, imprima-a e pendure na parede da sua casa. Ou imprima mui-
tas cópias para dar de presente. Ou leia alguns sutras, os ensinamentos
162

O Buda Shakyamuni
 PERGUNTAS SOBRE CUIDADOS COM PESSOAS QUE ESTÃOMORRENDO OU MORTAS 163

do Buda. Ou você pode publicar e distribuir cópias dos seus sutras


preferidos. Ou fazer oferendas para as sanghas leigas e monásticas,
contribuindo para a manutenção de um monastério, por exemplo.
Se preferir, você pode seguir um ou mais dos inúmeros métodos
tradicionais de acumular méritos para os mortos. Pode fazer oferen-
das de luz, incenso e flores em Bodhgaya, no Monte Wu Tai Shan ou
em outro local sagrado. Também pode oferecer duas horas, dois dias
ou duas semanas do seu tempo para arrumar todo o lixo espalhado
dentro e fora de altares e templos. Ou pode patrocinar o estudo e
a prática dos alunos do Darma, para que eles possam se dedicar ao
caminho espiritual em tempo integral. Esses são apenas alguns exem-
plos de boas ações às quais você pode se dedicar, mas existem muitas
outras opções.
Além de tudo isso, se você é um tântrika, há inúmeros rituais que
podem ajudar a pessoa amada. Você pode, por exemplo, realizar o ri-
tual de purificação chang chok, mencionado anteriormente, por meio
do qual a consciência da pessoa que morreu é guiada a um melhor
renascimento - o Khorwa Dongtruk, de Chokgyur Lingpa, é muito
fácil de ser feito. A prática de chang chok pode ser realizada mesmo
que a pessoa tenha morrido há milhares de anos.

O que é chang chok?


Os ensinamentos do Buda oferecem instruções completas de como
colocar em prática a consciência da causa, condição e efeito. Funda-
mentalmente, causa, condição e efeito nunca se afastam da essência
da shunyata. Como o Buda disse, tudo é causa e condição, e a mais
poderosa das causas e condições é a sua intenção, a sua mente.
Hoje em dia, é provável que uma mente cética moderna, ambiva-
lente quanto às vastas e infinitas manifestações de causa e condição,
abrigue muitas dúvidas a respeito dos rituais de chang chok.
Entre vocês, aqueles com uma mente tão inocente e ingênua quan-
to a de uma criança serão capazes de admirar e se alegrar com um
castelo de areia, como se fosse algo “real”, mas a mente sofisticada,
164 VIVER É MORRER

madura e calculadora e adulta, provavelmente, repudiaria o castelo de


areia de saída, porque a mente adulta quer “a realidade”.
Se a sua mente é suficientemente flexível para se satisfazer com um
castelo de areia, a assim chamada “morte” poderia ser algo tão simples
quanto ir de uma sala para outra. Então, seria simples para alguém
como você chamar a pessoa morta e lhe pedir para voltar e ouvir o que
ela precisa saber. É assim que os praticantes tântricos pensam. Como
eles confiam em shunyata e compreendem as leis de causa, condição e
efeito, também podem fazer uso de um método muito simples – um
dos infinitos métodos vajrayana – para invocar a consciência mental
da pessoa morta para o local onde está sendo realizado o ritual de
chang chok.
O que fazemos no ritual de chang chok é convocar a consciência
mental da pessoa morta para uma efígie desenhada em um pedaço de
papel, com a sílaba raiz nri escrita no centro. O nome da pessoa morta
é escrito no mesmo papel, junto com muitos outros nomes de pessoas
mortas, tantos quantos você desejar. A partir do espaço da boditchita, o
tântrika que está realizando o ritual surge na forma da deidade da prá-
tica específica que está sendo feita, por exemplo, como Avalokiteshvara
ou Amitabha. O tântrika convoca o espírito da pessoa ou pessoas mor-
tas e realiza o ritual de tomada de refúgio e voto de bodisatva; depois,
dá os ensinamentos apropriados e a abhisheka, que é o mais importante
de tudo. Após a oferenda final dos objetos que aprazem aos sentidos,
a consciência da pessoa morta é transferida para o coração da deidade
principal da mandala, Avalokiteshvara ou Amitabha.
Essa é a estrutura do Khorwa Dongtruk, o ritual de chang chok
de Chokgyur Lingpa. Existem muitos outros bons rituais curtos de
purificação de chang chok, e você pode escolher entre eles, mas é
indispensável receber a iniciação apropriada antes de praticá-los. Per-
gunte à pessoa que lhe der a iniciação como deve fazer prática e peça
uma cópia do texto de prática.
Se você ainda não recebeu a iniciação ou não é um tântrika, pode
pedir a um lama, monge, monja ou amigo qualificados que façam a
prática para o seu amigo ou pessoa amada. Como mencionei, o fato
 PERGUNTAS SOBRE CUIDADOS COM PESSOAS QUE ESTÃOMORRENDO OU MORTAS 165

de você querer ajudar alguém, solicitando esses rituais, já indica que,


pelo seu intermédio, a pessoa que morreu tem uma conexão indireta
com o Darma. Utilize essa conexão como a fundação do seu pedido
para que os rituais sejam feitos em benefício dela, bem como para se
engajar em todas as formas de ações virtuosas.

A minha avó estava sorrindo quando morreu e parecia muito


pacífica. A minha família sempre acreditou que isso significa
que ela teve uma “boa morte”. Mas a morte do meu avô foi bem
diferente e muito perturbadora para toda a família – não foi
nada parecida com uma “boa morte”. Rinpoche, como o senhor
descreveria uma “boa morte”?
A pessoa ter os lábios contorcidos na forma de um grande sorriso não
é, de modo algum, uma característica necessária indicativa de uma
“boa morte”. Uma boa morte é morrer escutando a recitação do nome
dos budas e bodisatvas.
Uma boa morte é ter a companhia de alguém que o lembre de
pensar no bem-estar de todos os seres sencientes, e você aspirar que
todos os seres sencientes sejam felizes e não sofram.
Uma boa morte é ter a companhia de alguém para lembrá-lo de
não ser avarento, de não se apegar a nada desta vida, de não sentir
raiva e assim por diante.
Uma boa morte, segundo o budismo, é morrer na atmosfera do
Buda, do Darma e da Sangha.
E uma morte extremamente boa é ser apresentado à natureza da
mente – o Buda – por um praticante qualificado, na hora da morte.
Contudo, não se apresse a julgar se uma morte foi “boa” e outra
“ruim”. Afinal, o que você pensa sobre a morte de alguém se baseia na
sua própria percepção e é, portanto, influenciado pelas suas experiên-
cias, educação e preconceitos.

Um tratamento de emergência, como a RCP ou reanimação car-


diopulmonar, que restabelece o batimento do coração, causa um
sofrimento desnecessário à pessoa que está morrendo?
166 VIVER É MORRER

Não há como saber isso. No caso de emergências médicas críticas, é


provável que seja melhor confiar no conselho médico. Somos extre-
mamente apegados à vida. Em geral, a nossa vontade de viver é tão
forte que, se houver a mínima chance de prolongar nossas vidas, a
maioria de nós não hesitaria em se submeter a tratamentos emergen-
ciais invasivos, como a RCP. No entanto, é muito difícil julgar o que
seria de fato bom e benéfico para uma outra pessoa.
Dito isso, como os praticantes do Darma valorizam a prática aci-
ma de tudo, é provável que um praticante experiente sinta que vale a
pena suportar o desconforto e o sofrimento de procedimentos inva-
sivos, se isso lhe proporcionar mais algum tempo para praticar. Um
praticante assim se submeteria com alegria a tal procedimento, se isso
lhe garantisse mais um momento para olhar uma imagem do Buda ou
do guru, ou para ouvir o som do Darma.

O meu marido está morrendo e ele diz que, numa situação


crítica, não deseja receber nenhuma forma de tratamento de
emergência que prolongue a sua vida. Devo respeitar o desejo
dele?
Se a pessoa que está morrendo está consciente e com o juízo perfeito,
isto é, se tem sanidade mental, bom raciocínio, pensamento claro e
não sofre de nenhum tipo de doença mental, sim, você deve respeitar
os seus desejos.

Os médicos dizem que as medidas invasivas poderiam fazer o


meu marido se sentir mais confortável, mas ele está inflexível
e não quer passar por esse tipo de provação. Devo intervir se os
médicos tentarem insistir?
Se a pessoa que está morrendo é mentalmente sadia e não pretende
terminar com a própria vida, os seus desejos devem ser respeitados.
Mas considere que há uma diferença sutil entre querer uma “morte
assistida”, que não é uma opção para os budistas, e não querer ser
mantido vivo por meios artificiais, algo que deve ser respeitado. Em
alguns casos, um praticante pode recusar o tratamento porque isso
 PERGUNTAS SOBRE CUIDADOS COM PESSOAS QUE ESTÃOMORRENDO OU MORTAS 167

interferiria na sua prática espiritual. Desse modo, devemos ter mui-


to respeito pelos desejos dos praticantes.

Qual é a importância de encontrar o equilíbrio apropriado en-


tre dar para a pessoa que está morrendo drogas como a morfina,
a fim de garantir que ela não sinta muita dor, e manter a clari-
dade da mente, para que ela esteja o mais consciente possível na
hora da morte?
Depende. Do ponto de vista espiritual, se a pessoa que está morrendo
não é praticante e tem hábitos negativos muito fortes, a chance de ela
se libertar no momento da morte, com ou sem morfina, é a mesma
que a de um animal.
Se possível, é melhor não dar para as pessoas que estão muito per-
to da morte drogas que as deixem muito grogues ou nocauteadas.
Idealmente, os praticantes preferem não estar atordoados pelas dro-
gas, para poderem saber o que está acontecendo enquanto morrem.
Se estiverem conscientes e alertas, terão condições de ouvir os seus
amigos cantando os nomes do Buda ou recitando as instruções para o
momento da morte; talvez até consigam olhar para uma imagem do
Buda ou do guru.

Qual é a importância das preces?


Em regra, nos hospitais, se a pessoa que está próxima da morte sentir
tanto medo que entre em pânico, será sedada pelos médicos; eles não
têm muita escolha. Se você é religioso e está cuidando de uma pessoa
sedada que está morrendo, simplesmente fique ao seu lado e recite
preces por ela. A prece sempre ajuda muitíssimo, seja qual for a tradi-
ção que você segue. Em geral, não há mais nada que você possa fazer.
Muitas vezes, os ingleses dizem que “o que conta é o pensamento”.
Isso é tão verdadeiro! E a prece é muito mais poderosa e efetiva do
que um breve pensamento. Então, preces de todas as tradições serão
benéficas.
Se a pessoa que está morrendo for judia, cristã, hindu, ateia etc., e
você for budista, não há motivo para não fazer preces budistas para ela.
168 VIVER É MORRER

Se ela estiver aberta a conversar sobre as próprias crenças, pergunte


diretamente se ela gostaria que você fizesse alguma prece da tradição a
que pertence.
O que fazer após a morte

Manuseio do cadáver

Talvez o mais aconselhável seja seguir os costumes da sua cultura


quanto ao manuseio do cadáver. Como já mencionei, a tradição ti-
betana recomenda que após a morte o cadáver não seja tocado pelo
maior tempo possível. Se você puder, tente deixar o cadáver onde está
por três dias, ou pelo menos por algumas horas. Mas, como isso pode
ser bem difícil de se organizar no mundo atual, é provável que você só
consiga deixá-lo em paz por uma ou duas horas. Se isso acontecer, não
entre em pânico. Apenas faça tudo que for viável para deixar o cadáver
intocado pelo maior tempo possível.
Muitas vezes, as pessoas perguntam por que o corpo não deve ser
tocado. Enquanto você está vivo, a sua mente está mais apegada ao
seu corpo do que a qualquer outra coisa neste mundo. Quando al-
guém esbarra em você na rua, você pode reagir dizendo alguma coisa,
porque está vivo. Depois da morte, porém, os vivos não têm como
saber como a mente da pessoa que morreu está reagindo quando o seu
corpo é tocado. E, para o morto, o manuseio do antigo corpo pode ser
extremamente perturbador.
170 VIVER É MORRER

De acordo com o tantra, as nossas projeções na hora da morte e


depois da morte serão mais positivas se a consciência sair pela parte
superior do corpo, de preferência, pelo topo da cabeça, pelo chacra da
coroa. É por isso que a tradição tibetana recomenda que a parte infe-
rior do cadáver não seja tocada e que as pessoas não fiquem sentadas
ou em pé perto dela. Os parentes e amigos devem ficar perto da cabeça
do cadáver, mas ao lado, e não diretamente em frente a ela. É também
por isso que os professores tibetanos aconselham que você toque o
topo da cabeça da pessoa morta antes que qualquer outra pessoa mexa
no corpo.
Se a família estiver aberta à ideia, você pode sugerir que seja co-
locado um tagdrol no cadáver, mas esta é apenas uma sugestão, não é
indispensável.

Tagdrol
“Tagdrol” é o método de “liberação pelo toque”36. Muitas vezes é
praticado pelos vivos e muitas pessoas sempre usam um tagdrol como
proteção, mas ele também pode ser colocado no corpo dos mortos.
Você não precisa estar morto para usar um tagdrol.
Se você estiver interessado em aplicar esse método, encontrará
toda a informação necessária na página 223. A imagem de um chacra
de tagdrol, que você pode fotocopiar e consagrar, está na página 222.
A colocação de um tagdrol no cadáver funciona bem se você tiver
devoção e fé genuína no método. No entanto, mesmo que o morto
não acreditasse nisso, ou fosse agressivamente antiespiritual, o efeito
será benéfico, desde que a pessoa que colocar o tagdrol no cadáver o
faça motivada por amor, compaixão e boditchita.

Leia as instruções sobre o bardo em voz alta


Tradicionalmente, os tibetanos guiam os mortos lendo as instruções
A Grande Liberação por meio do Ouvir no Bardo e outros textos simi-
lares. O que acontece, porém, se a pessoa morta não acreditava em
 O QUE FAZER APÓS A MORTE 171

vida após a morte, céu e inferno ou estados do bardo? Ler em voz alta
as instruções tradicionais sobre o bardo ainda faria alguma diferença?
Durante a vida, nenhum de nós pode provar de maneira científica
ou definitiva que teremos a experiência dos bardos quando morrer-
mos. Mas também não podemos provar que não. Imagine o que acon-
teceria se uma pessoa que estava convencida de que não há vida após
a morte acordasse depois de morta rodeada pelas visões aterradoras
descritas neste livro. Será que não seria bem-vinda uma dica, por me-
nor que seja, sobre onde ela se encontra e o que deveria estar fazendo?
Independentemente do que acreditava ou deixava de acreditar, a pes-
soa que morreu não tem nada a perder e tudo a ganhar ao ouvir essas
instruções.
Seja lá como você morra (pacífica ou violentamente), onde mor-
ra (no hospital, em casa ou na rua) e quando morra (com 19 ou 90
anos), algo dessas instruções para a morte, o morrer e além será útil;
se uma parte não ajudar, outra ajudará. É por isso que lemos as ins-
truções muitas e muitas vezes. Talvez a pessoa que está morrendo não
entenda da primeira ou segunda vez, mas, por fim, entenderá. E, a
não ser que você seja um ser iluminado que sabe exatamente o que
fazer e quando fazê-lo, seres comuns, como nós, só podem contar com
esses conselhos gerais para nos guiar.

Rituais e práticas para os mortos


A tradição tibetana sugere que a melhor ocasião para oferecer ajuda
aos mortos e fazer práticas em sua intenção é durante os primeiros 49
dias que se seguem à morte.
Se a pessoa falecida era sua parente, uma boa amiga ou, principal-
mente, se era uma amiga do Darma, é importante que você:

- Faça oferendas aos budas e bodisatvas,


- Patrocine rituais em sua intenção,
- Recite mantras e
- Faça, pessoalmente, rituais para ela.
172 VIVER É MORRER

Se você é um tântrika e recebeu as iniciações apropriadas, é muito


importante que faça quaisquer rituais tântricos com os quais tenha
familiaridade e que tenham sido criados tendo vista as pessoas mortas
ou que estão morrendo, como, por exemplo, Avalokiteshvara Verme-
lho e Akshobhya.
Você também pode fazer oferendas de luz em nome da pessoa
morta em locais sagrados, como Bodhgaya. Se preferir, ofereça incen-
so, flores e assim por diante.
Você também pode:

- Praticar a liberação de vidas (veja página 211),


- Fazer oferendas de luz com lamparinas de manteiga ou velas,
- Fazer o voto de ser vegetariano, idealmente por toda a vida, ou,
no mínimo, por um certo tempo,
- Encomendar, comprar ou fazer estátuas ou pinturas do Buda
Amitayus ou Arya Tara,
- Ou construir um templo.

Se desejar, inclua o nome de outras pessoas mortas que também


possam se beneficiar com essas informações enquanto lê as instruções.

Phowa
Normalmente, os tibetanos pedem a um lama ou monge para que faça
phowa para a pessoa recém-falecida. No entanto, o ritual de phowa
ajudaria alguém que não tivesse inclinação espiritual?
Os ensinamentos vajrayana afirmam que o método tântrico de
phowa é útil, independentemente de a pessoa que morreu ter sido
espiritualizada ou não, mas terá mais poder quando a pessoa que or-
ganiza o ritual tem uma convicção forte e confia na prática. Se você
é budista, o fato de estar preocupado com o bem-estar espiritual da
pessoa que morreu e desejar organizar rituais e práticas para ela de-
monstra que a pessoa tinha uma conexão com esse caminho. Então,
use essa conexão.
 O QUE FAZER APÓS A MORTE 173

Nada impede que tais rituais sejam realizados anonimamente.


A ajuda anônima muitas vezes é a melhor. Hoje em dia, são feitas
doações para fundos e instituições de caridade que as repassam para os
necessitados, os quais raramente sabem o nome dos seus benfeitores,
muito menos os conhecem em pessoa.

Oferenda de sur
Tradicionalmente, a prática de sur é realizada todos os dias durante
três dias após a morte, ou durante uma semana ou, no melhor dos
casos, 49 dias (veja página 147).

A prática de salvamento de vidas


Os budistas praticam dois tipos de acumulação: a acumulação de mé-
rito e a acumulação de sabedoria. O mérito é acumulado por práticas
como generosidade, diligência, disciplina e assim por diante; a sabe-
doria é acumulada pela prática de meditação e atividades como ouvir
e contemplar. Isso significa que, das seis paramitas, três acumulam
mérito, duas acumulam sabedoria e todas exigem a paramita da pa-
ciência.
As acumulações de mérito e sabedoria são interdependentes e in-
dispensáveis no caminho budista. Por exemplo, no nível mais mun-
dano, sem o mérito nos faltam os meios para ouvir, estudar e contem-
plar o Darma e, sem a sabedoria, só é possível acumular um mérito
insignificante. Sem a sabedoria, você nunca poderá transformar uma
oferenda comum - tal como uma única pétala de lótus -, no tipo de
oferenda que acumula mérito inexaurível. Portanto, mérito e sabedo-
ria andam de mãos dadas.
O mérito muitas vezes é classificado como “puro” ou “impuro”. O
mérito impuro é aquele acumulado dentro dos limites da sua mente e
emoções dualistas. O mérito puro é acumulado quando as suas ativi-
dades meritórias são acompanhadas pela compreensão de shunyata.
O salvamento de vidas é uma das muitas atividades que acumu-
lam mérito impuro, ou “comum”. É praticado quando salvamos seres
174 VIVER É MORRER

vivos da morte certa. Você pode, por exemplo, comprar um peixe vivo,
que foi recém-pescado, e jogá-lo de volta ao mar ou rio; ou comprar
todos os perus que serão abatidos para o Dia de Ação de Graças. É dito
que salvar a vida desses seres acumula o tipo mais supremo de mérito
impuro.
O salvamento de vidas é praticado em toda a Ásia e foram de-
senvolvidos vários rituais para acompanhar o processo, por exemplo,
Prática para longa vida e prosperidade: Um método para salvar vidas, de
Jamyang Khyentse Wangpo (veja página 211).
No entanto, você não precisa necessariamente realizar o ritual em
si nem ler o texto. Basta, simplesmente, salvar a vida de seres que estão
na iminência de serem mortos e dedicar o mérito para todos os seres
sencientes.

Faça tsa-tsas
Tsa-tsas são pequenas imagens de budas e estupas feitas de argila, ge-
ralmente reproduzidas por meio de moldes; muitas vezes, podem ser
encontradas espalhadas ao redor de antigas estupas. De fato, as estupas
são a versão ampliada das tsa-tsas e também são preenchidas, entre
outras coisas, com muitas tsa-tsas menores. Antigamente, a prática de
moldar tsa-tsas com as cinzas dos corpos cremados era muito encora-
jada na Índia e no Tibete. Assim como o tagdrol, essa prática funciona
melhor se a pessoa que faz os moldes sente devoção pelo método. E,
mais uma vez, esse método é uma sugestão, mas não é indispensável.
A tsa-tsa é uma representação da mente do Buda, ou ushnisha, e a
prática de fazer tsa-tsas, o processo de amassar a argila, encher os mol-
des, queimar as peças no forno, pintá-las e assim por diante, acumula
méritos. Basicamente, embora fazer tsa-tsas não esteja no topo da lista
da maior parte dos praticantes modernos, o esforço despendido em
moldar tsa-tsas é uma prática espiritual genuína. Hoje em dia, quando
os praticantes fazem tsa-tsas, tendem a usar tecnologias que poupam
mão-de-obra, em vez de preencher os moldes manualmente, o que, eu
suponho, é melhor do que não fazer tsa-tsa nenhuma.
 O QUE FAZER APÓS A MORTE 175

Uma das muitas razões pelas quais fazer tsa-tsas é uma prática tão
boa é que não é fácil se gabar disso. Outra, é que as tsa-tsas não podem
ser usadas para aumentar o seu próprio conforto, satisfação ou lucro.
É muito menos provável que você caia na armadilha do materialismo
espiritual fazendo tsa-tsas do que construindo templos. Infelizmente,
os templos têm muitos usos práticos. Os templos oferecem abrigo da
chuva e do sol forte e são, frequentemente, usados como hotéis ou
locais turísticos - essa pode, muito bem, ser a mais elevada forma
de materialismo espiritual. Mas, uma vez que as tsa-tsas tenham sido
criadas, não há muito que possa ser feito com elas. Você não pode
lucrar com elas, morar nelas, comê-las ou exibi-las; as tsa-tsas não têm
uso prático e não despertam nosso orgulho, nem deixam os outros
com inveja ou vontade de competir. O mesmo acontece com as ofe-
rendas de água. Ninguém fica com inveja quando você oferece uma
tigela de água, mas oferecer uma bolsa cheia de ouro ou prata pode
causar inveja em alguém. Instruções para moldar tsa-tsas são encon-
tradas na página 229.
Hoje em dia é raro alguém se alegrar com a oferenda dos outros.
É mais frequente que as oferendas generosas sejam alvo de todo tipo
de críticas. As pessoas que fazem tais oferendas são muitas vezes criti-
cadas e até mesmo satirizadas, porque é muito fácil para os ricos, que
possuem tanto, doarem muito. E as pessoas competitivas sempre que-
rem que as suas oferendas superem todas as demais. Os seres humanos
podem ser muito mesquinhos e limitados.

Homenagens póstumas
A maior parte das culturas ocidentais desenvolveu tradições para ho-
menagear e relembrar os mortos. Em quase toda a Europa, por exem-
plo, eles são sepultados em belos cemitérios, sob lápides ornamentadas,
que a família e os amigos podem visitar, quando querem pensar sobre
as pessoas amadas, e levar flores. Eu soube que alguns guardam as cin-
zas dos entes queridos em casa, numa urna. O Taj Mahal, na Índia, é
um dos mais famosos mausoléus, construído por um imperador mogol
como homenagem póstuma para sua amada primeira esposa.
176 VIVER É MORRER

Taj Mahal

Se você quer ou não homenagear uma pessoa amada de acordo


com a sua própria tradição cultural, fica a seu critério. Mas, se desejar
seguir uma tradição budista, pode encomendar estátuas de budas e
bodisatvas em nome da pessoa morta, ou imprimir e emoldurar uma
imagem do Buda, ou encomendar uma imagem pintada – escolha a
opção que estiver ao seu alcance. Os budistas gostam de mandar pin-
tar imagens do Reino de Sukhavati do Buda Amitabha, da Gloriosa
Montanha Cor de Cobre de Guru Rinpoche, ou do Buda Akshobhya.
Encomendar obras de arte sagrada serve a dois propósitos: é uma bela
homenagem aos mortos e também acumula méritos.

Doe os bens pessoais da pessoa que morreu


Após a morte de um budista, procure deixar os seus pertences intoca-
dos durante três dias. Depois desse prazo, se os parentes concordarem,
ofereça tudo ao Buda, Darma e Sangha, a projetos filantrópicos, insti-
 O QUE FAZER APÓS A MORTE 177

tuições de caridade que trabalham em prol da preservação ambiental,


organizações que tentam erradicar a prostituição e o trabalho infantis
ou outra causa valorizada pela pessoa que morreu. Tradicionalmente,
os budistas fazem oferendas para dois campos de mérito: para os bu-
das, bodisatvas e seres sublimes e para os seres sencientes, ou seja, para
os humanos, animais e assim por diante. O ideal é fazer oferendas para
os dois campos de mérito.
Embora esta prática esteja em declínio, em algumas regiões do
leste do Butão um membro da família ou um amigo informa o ca-
dáver antes de doar qualquer um dos seus bens: “Hoje, vou dar a sua
xícara para o monastério”. Ou “Vou dar a sua caneta para a escola da
vizinhança”. É uma boa ideia. Vale a pena considerar essa prática.
Se, por algum motivo, não houver um cadáver, escreva uma carta
para a pessoa que morreu dizendo o que pretende fazer e a coloque
por um ou dois dias na escrivaninha, poltrona ou em outro lugar onde
a pessoa gostava de sentar.

Pague os débitos cármicos


Seres deludidos e ignorantes, como você e eu, estão sujeitos ao carma
e, portanto, são vítimas do débito cármico. Tudo que nos acontece na
vida e na morte, nossos sucessos e fracassos, até a maneira como mor-
remos, acontece como resultado de débitos cármicos. Basicamente,
as causas e as condições ditam tudo que é feito por nós. Desse modo,
uma das atividades que podemos fazer para beneficiar uma pessoa
amada que morreu é um ritual de limpeza dos débitos cármicos.
O que é “débito cármico”? Digamos que, no papel, você tenha um
apartamento, um carro, armários cheios de roupas e acessórios caros.
Mas, se tudo que você tem foi comprado com dinheiro emprestado,
tecnicamente todos esses bens materiais pertencem ao banco. O dé-
bito cármico funciona de modo muito parecido. Tudo que somos,
nossa situação na vida, saúde, riqueza e até a nossa aparência se baseia
em incontáveis vidas de interações com os outros. Os ensinamentos
budistas nos dizem que, portanto, nós temos débitos cármicos com
178 VIVER É MORRER

absolutamente todo mundo. Todo e qualquer ser senciente foi, um


dia, nosso pai, mãe, filho, empregada, motorista, cavalo ou o burro
que montamos; foi nosso melhor amigo e pior inimigo.
Enquanto está lendo este livro, você pode estar sentado no lugar
que pertence a um fantasma. Você pediu a permissão do fantasma
para sentar aí? Construímos nossas casas sem pensar duas vezes nos
muitos animais que serão expulsos dos seus lares que estão sendo revi-
rados. Temos débitos impagáveis com nossos professores, enfermeiros,
médicos, líderes e países, bem como com as forças policiais que nos
mantêm seguros e levam à justiça aqueles que nos roubam e ferem.
Algumas pessoas não pagam impostos por princípio; mesmo assim, se
beneficiam com a segurança que os seus países oferecem, vivendo com
conforto e segurança. Se você é uma dessas pessoas, deve ao sistema
social do seu país muito mais do que os pagadores de impostos. Todos
esses débitos cármicos são a razão pela qual passamos por doenças,
brigas familiares e fracassos. E, como estamos sobrecarregados com
uma dívida cármica colossal, quase não temos controle sobre o que
pensamos, fazemos ou como vivemos. Hoje você está saudável, cheio
de vida e energia, mas, numa fração de segundo, um acidente estúpi-
do pode apagar para sempre toda a sua saúde e energia.
Existe algum antídoto para o débito cármico? Sim. O antídoto
genérico, que é muito efetivo, é criar bom carma. Existem inúmeros
meios de criar e acumular bom carma, desde doar um centavo para
um programa mundial de ecologia, até trabalhar como voluntário en-
sinando matemática para crianças que se prostituem no Camboja. De
acordo com os ensinamentos budistas, porém, o melhor remédio para
o débito cármico é praticar o Darma. Tome refúgio, faça o voto de
bodisatva e pratique a boditchita. Você também pode fazer a prática
de tonglen: enquanto expira, ofereça tudo que é bom para os outros,
enquanto inspira, sugue tudo que é ruim (veja página 203). E sempre
dedique todo o mérito acumulado para os outros.
Se puder, também ofereça alguma ajuda prática aos seres sen-
cientes. Construa estupas e estátuas do Buda, sustente aqueles que
 O QUE FAZER APÓS A MORTE 179

praticam o Darma e disponibilize o Darma para o maior número pos-


sível de pessoas. Todos esses métodos são muito efetivos para acabar
com o seu débito cármico.
Se você é um tântrika e recebeu as iniciações e ensinamentos ne-
cessários, pode experimentar algumas das técnicas vajrayana de lim-
peza de débito cármico, como praticar pujas de sur (veja página 147),
pujas de sang e pujas de oferenda de água (veja página 207).
• A prática Mountain Smoke Offering (Riwö Sangchö), de Lhatsün Namkha Jikmé,
organizada por Dudjom Rinpoche, está disponível em inglês para download em:
www.lotsawahouse.org/tibetan-masters/lhatsun-namkha-jigme/riwo-sangcho

Todas essas atividades virtuosas são muito importantes.


Perguntas sobre as práticas
para os mortos

Se a família não possuir recursos para fazer oferendas para os


mestres ou grandes lamas, o que pode fazer para ajudar um pa-
rente que está morrendo e não tem crenças espirituais? A família
pode fazer por conta própria as preces e aspirar poder ajudá-los?
Seria o bastante?
Absolutamente, sim! Tudo que a família precisa fazer é se assegurar
que o nome da pessoa morta chegue aos ouvidos de um bom pratican-
te. Não é necessário fazer grandes oferendas, passar cheques vultosos
nem acender velas ou incenso. Não é necessário pagar nenhuma taxa.
É fundamentalmente errado cobrar por qualquer tipo de atividade –
isso seria anular todo o seu propósito.
Ao mesmo tempo, fazer oferendas aos budas, bodisatvas, monges
e monjas gera méritos. Fazer oferendas também pode contribuir para
que você se sinta confiante de estar acumulando mérito e boas ações
em nome da pessoa amada. Então, se puder, definitivamente, faça
oferendas. E, lembre-se de que a sua oferenda não precisa ser vasta.
A oferenda de uma única pétala de flor, de um centavo ou de uma
182 VIVER É MORRER

simples pedrinha em nome do morto é o bastante. Ou você pode


pagar uma refeição para um mendigo.

Tradicionalmente, os chineses oferecem papéis joss2, roupa, co-


mida etc. Esse tipo de oferenda é útil?
Sim, é útil. Mas, obviamente, seja qual for a sua tradição, faça a ofe-
renda do modo apropriado. As oferendas são muito mais efetivas
quando acompanhadas do ritual apropriado. O que faz com que o
ritual seja “apropriado”? A sua motivação; a motivação é a chave de
tudo. A motivação apropriada para realizar rituais para os mortos é o
desejo genuíno e sincero de liberá-los do sofrimento. Sem essa moti-
vação, queimar um milhão de dólares em papéis joss não vai ajudar.
Os chineses queimam esses papéis há centenas de anos; é um dos
costumes que estruturam grande parte das suas vidas. Hoje, podemos
adaptar essa tradição como um elemento da prática de oferenda de sur
(veja página 147).
Tradicionalmente, os tibetanos queimam farinha de cevada, a
tsampa, em vez de papel, mas o que você queima não é de fato o
mais importante, desde que a sua motivação seja pura e você creia
que a oferenda foi recebida. Se uma oferenda queimada é feita com
a motivação correta, o ser do bardo vai se sentir bem alimentado e
totalmente satisfeito.
Nós, seres humanos, somos criaturas de hábitos. Você e eu ficamos
contentes quando alguém nos dá dinheiro ou nos convida para jantar.
Do mesmo modo, o ser do bardo fica deliciado quando lhe oferece-
mos sur. Vivos ou mortos, os hábitos continuam sendo os mesmos.
Em geral, os nossos hábitos são tão fortes que, por exemplo, se lhe dão
dinheiro em um sonho, embora quem dá, quem recebe e o dinheiro
sejam todos uma ilusão, você, ainda assim, fica feliz. Então, seja o que

2  N. do Tradutor: Papéis impressos com desenhos de todo tipo, desde algo que
agradaria às deidades, como mantras, até coisas que seriam úteis para os mortos,
como notas de dinheiro falso, roupa, comida e assim por diante. Esses papéis são
queimados em cerimônias tradicionais chinesas de culto a deidades ou a antepassa-
dos, bem como em funerais tradicionais chineses.
 PERGUNTAS SOBRE AS PRÁTICAS PARA OS MORTOS 183

for que você ofereça aos mortos, jamais se preocupe, ou mesmo espe-
cule, se foi recebido ou não. Apenas acredite que a oferenda alcançou
a pessoa para quem foi oferecida.
Você pode aumentar o benefício de queimar papéis joss fazendo a
sua oferenda no contexto de um ritual de sur, que inclui uma visuali-
zação específica, motivada pelo desejo de liberar os mortos de todo o
sofrimento.
O que nunca pode acontecer é você fazer oferendas porque não
quer o fantasma de uma pessoa morta por perto, perturbando a fa-
mília. O propósito do sur não é meramente o de espantar um ser do
bardo.

Qual é a importância do treinamento na prática de phowa?


A prática de phowa é importante, mas nunca esqueça que o pilar ou
a coluna vertebral da prática de phowa é a devoção. Idealmente, para
que a phowa funcione, a pessoa que está morrendo ou morreu deve
ter fé e confiança inabaláveis no método ou, no mínimo, ter familia-
ridade com a prática.
Para aqueles que não têm esse tipo de confiança, se a motivação
da pessoa convidada para realizar o ritual de phowa se basear na bo-
ditchita, ela obviamente tem devoção pelo caminho de phowa, e a sua
prática irá ajudar. Aqueles que têm um mérito imenso conhecerão um
grande mestre que possa fazer phowa por eles, quando estiverem mor-
rendo. O melhor de tudo é você praticar phowa enquanto está vivo e
fazer por si mesmo quando morrer.
A prática de phowa não é a única que pode ajudar depois da mor-
te. Qualquer dos métodos recomendados neste livro trazem tremendo
benefício. Simplesmente mostrar uma foto do Buda para a pessoa que
está morrendo ou recitar os nomes do Buda ajuda enormemente, mes-
mo que a pessoa já esteja morta.
Você também pode mostrar para a pessoa que está morrendo uma
imagem da cultura dele, que inspire um sentimento de amor, compai-
xão e serenidade, como a da Virgem Maria.
184 VIVER É MORRER

Eu quero ajudar o meu companheiro que morreu, mas acho di-


fícil decidir quais das práticas recomendadas são essenciais e de
fato benéficas e quais são expressões culturais e baseadas em su-
perstições.
Essa pergunta é difícil de responder, porque quase todos os rituais
sofrem influência de culturas nacionais e incorporam elementos de
superstição. Por exemplo, na Europa e Américas as pessoas raramen-
te se cumprimentam unindo as palmas das mãos no mudra anjali,
enquanto na Índia é um gesto costumeiro. Por mais abundantes que
sejam os ensinamentos sobre a origem e o propósito desse mudra, por
mais elaboradas que sejam as suas interpretações filosóficas, o gesto
não pode deixar de ser classificado, sempre, como um fenômeno cul-
tural indiano.
Mais uma vez, a sua motivação é da maior importância. Os budis-
tas nunca se contentam em ofereçer um mero consolo temporário ou
ajuda prática. Segundo a perspectiva budista, “ajudar” significa ajudar
os seres sencientes a alcançarem a iluminação. Desde que esteja moti-
vado pela boditchita e pelo desejo de ajudar a pessoa que está morren-
do a alcançar a iluminação, não importa muito o que você faz.
Para um budista, a melhor de todas as atividades filantrópicas con-
siste no estudo e na prática do Buddhadharma. Se, por qualquer moti-
vo, isso não for possível, você pode fazer oferendas ao Buda, ao Darma
e à Sangha, ou oferecer trabalho voluntário para alguma organização
ou instituição de caridade cuja meta seja difundir o Buddhadharma.
Ou você pode possibilitar que uma pessoa trabalhe nessas instituições.
Ou pode dar apoio financeiro a um praticante, para que ele possa
estudar e praticar. Ou pode imprimir bandeiras de oração ou imagens
dos budas. Enfim, você pode escolher entre inúmeras opções.
Perguntas sobre outros
aspectos da morte

Luto e perda
A pessoa que eu mais amava na vida acaba de morrer. Qual é a
melhor coisa que posso fazer por ele?
Nós sempre queremos fazer o melhor pelas pessoas que amamos.
Queremos lhes dar tudo que sempre desejaram e muitas vezes nos
dispomos a sacrificar tudo que valorizamos no seu benefício. No en-
tanto, o que é o “melhor”? Comprar uma cama de ouro para o seu
pai teria evitado que ele morresse? Ou um vaso sanitário de turquesa
esculpido? Uma passagem de Paris para Hong Kong pela rota transi-
beriana? Uma noite na Casa Branca? Por um ou dois momentos vocês
poderiam ficar emocionados com qualquer desses presentes extraordi-
nários, mas nenhum deles teria valor duradouro. Então, por que não
fazer, em nome da pessoa amada, algo que realmente a ajude, como
patrocinar atividades filantrópicas que beneficiem os seres sencientes
e o meio ambiente?
Em última análise, a melhor coisa que você pode fazer para as
pessoas que ama é lhes oferecer o Darma e ajudá-las a compreendê-lo.
186 VIVER É MORRER

A segunda melhor coisa é praticar o Darma e dedicar a prática à felici-


dade e bem-estar daqueles que você ama e a todos os seres que sofrem.
Lembre-se, você amou cada ser senciente um bilhão de vezes, ao
longo de um trilhão de vidas. O seu amor atual é apenas aquele que
você conhece agora, mas, acredite ou não, não demorará muito para
que você comece a esquecer dele ou dela, assim como todos os outros
que você ama – se não enquanto está vivo, certamente quando chegar
aos bardos. Quando renascer na sua próxima vida, já terá esquecido
de todos eles.

Como posso ajudar e apoiar alguém cujo luto é tão intenso que
não consegue seguir em frente?
Depende da gravidade da situação. Se essa dor está deixando a pes-
soa doente, pode ser necessário pedir ajuda profissional. Quando ela
melhorar, fale sobre a verdade da impermanência, sobre o inabalável
refúgio do Darma, Buda, Sangha; diga que agora, mais do que nunca,
ela deveria trabalhar em benefício de todos os seres sencientes. Sugira
que ela prometa assumir essa grande tarefa.

O que devo dizer para os meus filhos sobre a morte? Como pre-
pará-los para a morte da mãe?
O conselho que os budistas dão para as crianças é praticamente o
mesmo que é dado para os adultos. É importante ser sincero e dizer
para os seus filhos o que acontece na morte, a não ser que esse tipo
de sinceridade se oponha ao que é culturalmente aceitável pela sua
sociedade. A mente dos jovens é capaz de aceitar verdades difíceis,
verdades sobre as quais muitos adultos não conseguem sequer pensar.
Contudo, sempre leve em consideração o caráter de cada criança e
explique o que vai acontecer com bondade e simplicidade.
Pense a longo prazo, principalmente quando se trata de crianças.
Se você não disser a verdade aos seus filhos, eles podem pensar que a
mãe queria abandoná-los quando morreu. Claro, depois de adultos,
eles entenderão que a mãe não teve escolha. Mas emoções fortes plan-
tadas em mentes jovens são difíceis de ser eliminadas na idade adulta;
 PERGUNTAS SOBRE OUTROS ASPECTOS DA MORTE 187

portanto, deixe claro para os seus filhos que a mãe deles não teve ab-
solutamente escolha sobre a morte.

O meu filho morreu jovem, por overdose de drogas. Em geral,


isso é considerado um carma negativo para nós dois. Mas, se o
choque e a tristeza servirem para aprofundar a minha fé, prática
e compreensão, esse assim chamado “carma negativo” poderia se
tornar positivo? E esse carma negativo poderia um dia se exau-
rir, se eu dedicar o meu caminho espiritual para ele? Ou, pelo
menos, esse seria um modo de purificar o carma do meu filho?
O carma ser positivo ou negativo é algo totalmente subjetivo. Há uma
história tibetana sobre um bandido cuja vida mudou completamente
quando ele rasgou a barriga de uma égua prenha, matando a mãe e o
potro. Quando o potro escorregou do ventre da égua, a reação imedia-
ta da mãe foi lamber o seu potro e confortá-lo, apesar de estar sentido
dores terríveis e perto da morte. Inesperadamente, o bandido ficou
tão comovido com a visão do amor e preocupação da mãe que estava
morrendo pelo filho que se arrependeu profundamente de tê-la ma-
tado. O arrependimento foi tal que ele imediatamente quebrou a sua
espada, deixou para sempre o seu modo de vida violento e começou a
praticar o Darma, alcançando rapidamente a iluminação.
Sim, é claro que a sua prática do Darma vai exaurir o carma ne-
gativo do seu filho – na verdade, apenas isso poderá fazê-lo. E eu me
regozijo com a sua decisão de ver a morte dele desse modo e usá-la
como caminho.

Que tipo de apoio devo oferecer para uma criança que perdeu
os pais?
Depende da situação. Muitas e muitas crianças perdem os pais. Do
ponto de vista budista, as crianças e os seus pais compartilham um
carma muito forte. Obviamente, você deve oferecer amor incondi-
cional, cuidado e orientações à criança. O mais importante, porém,
é que tudo o que você oferecer para ela e fizer por ela nasça da boa
motivação da boditchita.
188 VIVER É MORRER

Quando estiver cuidando de crianças que perderam os pais, peça


constantemente aos budas e bodisatvas que ajudem a você mesma
para que possa ajudá-las, e reze para que tudo que você ofereça tenha
um impacto positivo na vida daquelas crianças. Dito isso, esta não é
uma tarefa fácil.
Se tiver tempo e recursos, procure ser uma boa amiga para crianças
órfãs. Aceitar o papel formal de mentora, conselheira ou cuidadora de
uma criança é bom, mas é ainda mais importante ser uma boa amiga
e companheira, alguém com quem ela possa contar. Tente dedicar o
maior tempo possível a ela.

O que posso fazer para ter certeza de que o meu bebê seja budis-
ta? Existe alguma coisa que eu possa fazer para garantir que o
meu bebê seja a reencarnação de uma pessoa que pode beneficiar
os seres sencientes?
É dito que Assanga e seu meio-irmão, Vassubhandu, duas das mais
famosas e celebradas autoridades budistas do século IV na Índia, nas-
ceram como resultado das aspirações extremamente puras da sua mãe,
Prassannashila.
Embora Prassannashila tenha nascido na casta dos brâmanes, ela
estava tão preocupada com o rápido declínio do budismo e com a falta
de professores qualificados, que decidiu remediar a situação dando à
luz a dois filhos. Depois de fazer muitas aspirações puras e poderosas,
ela concebeu duas vezes: uma, de um brâmane, que foi o pai de Vassu-
bandhu; outra, de um príncipe real, que foi o pai de Assanga. Quando
os meninos cresceram e perguntaram sobre a casta dos seus pais, Pras-
sanashila respondeu: “Vocês não nasceram para seguir os passos dos
seus pais! Nasceram para treinar as suas mentes como o Buda ensinou
e, depois, divulgar o Darma por toda parte.” E assim eles fizeram,
como resultado das poderosas aspirações da sua mãe.
Por que não seguir o exemplo de Prassannashila? Faça preces de
aspiração para que os seus filhos tenham a habilidade de ajudar os
outros. Você pode até aspirar atrair homens que também tenham a
 PERGUNTAS SOBRE OUTROS ASPECTOS DA MORTE 189

habilidade e a vontade de ajudar os outros e sair com eles. Enquanto


estiver fazendo sexo, lembre-se de que a sua motivação é dar a luz a
uma pessoa que possa realmente beneficiar as demais.
Uma pessoa não precisa ser um rinpoche, guru budista, monge
ou monja para trazer benefícios. Talvez a sua criança possa beneficiar
os seres sencientes com mais eficiência tornando-se um cientista que
descubra a cura do ebola ou da dengue, ou um presidente compassivo
com o dom de resolver os problemas do seu país, ou um bilionário
que faça doações para muitas cadeiras universitárias que ensinem mé-
todos para enfrentar a ganância insaciável, o egoísmo e a crueldade.

Aborto

Qual é a visão budista sobre o aborto? Como posso ajudar as


mulheres que fizeram aborto e os seres que foram abortados?
Abortar um ser vivo é assassinato. Imagine o que significa para um
bebê ser abortado. Os seres do bardo estão desesperados para encon-
trar um novo corpo e viver no mundo material. Como você se sentiria
se, depois de se esforçar sabe-se lá por quanto tempo para entrar em
um corpo, a sua própria mãe, conscientemente, o expulsasse e desse
a descarga no seu precioso corpo novo? É uma experiência excepcio-
nalmente dolorosa.
Dito isso, as mulheres que fizeram abortos ou aconselharam outras
a fazê-lo e agora se sentem culpadas e arrependidas precisam sempre se
lembrar de que nós, seres ignorantes, somos responsáveis por perpe-
tuar milhões de ações hediondas por incontáveis vidas. Não permita
que essa única ação negativa a desencoraje ou sobrecarregue a ponto
de se sentir deprimida e incapaz. Precisamos lembrar de todas as nos-
sas más ações e confessá-las.
Além disso, agora você tem a oportunidade de fazer algum bem.
Aproveite esta oportunidade! Dedique todas as suas boas ações à ilu-
minação do bebê que abortou e a todos os seres que você tratou mal,
matou, roubou e estuprou no passado.
190 VIVER É MORRER

Você pode ajudar as mulheres que fizeram abortos e os seres abor-


tados por meio da prática budista. Comece por tomar refúgio e gerar
boditchita.
No Japão e na China, Kshitigarbha é um bodisatva muito popular.
No Japão, Kshitigarbha é conhecido como Jizo Bosatsu e, na China,
como Dizang ou Ti-tsang. Esse grande bodisatva é famoso por ter
feito o voto de não se tornar um buda enquanto todos os reinos dos
infernos não estivessem completamente vazios. Uma das formas que
ele adota é a de protetor de todos os bebês e fetos mortos. Se desejar,
ofereça luzes, incensos e prostrações para Jizo Bosatsu, recite o seu
mantra e dedique o mérito para todos os bebês abortados em todo o
mundo, bem como para os seus pais.
Se você recebeu as iniciações apropriadas, também pode recitar as
sadhanas de Avalokiteshvara, Akshobhya e Kshitigarbha. Se não tiver as
iniciações, pode recitar o Sutra de Kshitigarbha, na língua que preferir.
Traduções para o chinês e o inglês do Kshitigarbhasutra podem ser encontradas
em: ksitigarbhasutra.com/

Uma das pequenas estátuas de Jizo no Ohara nenbutsu-ji, Kyoto


 PERGUNTAS SOBRE OUTROS ASPECTOS DA MORTE 191

Jizo Bosatsu

Mantra de Jizo em sânscrito


OM HA HA HA VISMAYE SVAHA

Mantra de Jizo em japonês


ON KAKAKA BISANMAEI SOWAKA

Mantra de Jizo em chinês (pinyin)


NÁMÓ DIZANG WÁNG PÚSÀ
192 VIVER É MORRER

Suicídio
A morte assistida por médicos foi legalizada em vários países
ocidentais. Apesar de receberem os melhores cuidados médicos,
alguns poucos budistas com doenças crônicas indicaram que gos-
tariam de ter essa opção. Como um centro budista de cuidados
paliativos deveria lidar com alguém que procura uma morte as-
sistida? E qual seria a melhor forma de participarmos na discus-
são pública sobre esse tema delicado?
As oportunidades espirituais disponíveis no bardo natural desta vida
fazem com que o fato de se estar vivo seja muito precioso. Enquanto
você vive, pode praticar sendo consciente, cuidadoso, amoroso, com-
passivo e virtuoso. Mas, se optar por uma morte assistida para morrer
sem dor, estará correndo um enorme risco.
Se o seu cabelo pegasse fogo, você correria para tentar apagá-lo. Do
mesmo modo, no momento em que um budista se dá conta de estar
adquirindo um mau hábito novo, a sua resposta imediata deve ser in-
terromper esse hábito. Os budistas desencorajam energicamente todos
os hábitos, bons ou maus, porque os hábitos são perigosos, ainda mais
os hábitos que causam dor e sofrimento para nós e para os outros.
O suicídio é um hábito muito fácil de ser adquirido e extrema-
mente difícil de ser abandonado. É como ser viciado em álcool e inca-
paz de dizer não à bebida. Os hábitos têm um papel muito importante
na definição de nossos renascimentos futuros. Uma vez que tenha for-
mado o hábito de acabar com a vida quando as coisas ficam difíceis,
nas vidas futuras você recorrerá ao suicídio cada vez mais rápido. Os
budistas que estudaram os ensinamentos sobre carma e reencarnação
deveriam saber disso.
É claro que esse argumento não funciona se você não é budista e
não acredita em reencarnação. Também não funciona se você pensa
que a morte é o fim de tudo.
Para os tântrikas, acabar com a própria vida é simplesmente im-
pensável. O tantra considera os cinco agregados como as mandalas
 PERGUNTAS SOBRE OUTROS ASPECTOS DA MORTE 193

dos cinco budas, e destruir essas mandalas de propósito é diretamente


contrário lei do tantra.
Como budista, mesmo que sinta dor constante e implacável, mes-
mo sem esperança de cura ou alívio, é importante que você faça todo
o possível para aproveitar a situação. Você pode, por exemplo, praticar
para todos os seres sencientes, fazendo tonglen. Pense:

Por eu estar sofrendo com esta dor terrível,


Possa o carma que causa dor em todos os seres sencientes
  ser exaurido.

Os praticantes avançados muitas vezes descobrem que uma dor


aguda reaviva a consciência. Muitos mestres disseram que a dor é
como uma vassoura que varre todo o seu carma.

O sofrimento também tem o seu valor.


Por meio da tristeza, o orgulho é mandado embora
E comisseração é sentida em relação àqueles que vagam no samsara;
O mal é evitado; a bondade parece agradável.37

Qual é a diferença entre eutanásia, suicídio assistido e morte


assistida?
Do ponto de vista budista, todos esses métodos caem na mesma cate-
goria. Entendo perfeitamente a motivação para se acabar com a dor e
sofrimento de uma pessoa, mas terminar uma vida intencionalmente
não é uma opção.
Talvez o que os centros de cuidados paliativos e centros médicos
budistas possam ensinar aos que estão morrendo é que ofereçam o que
lhes resta de força vital para todos os seres sencientes, por meio da dedi-
cação de mérito. Essa é uma solução de longo prazo bem melhor do que
permitir que as pessoas acabem a vida com uma overdose de pílulas.
194 VIVER É MORRER

Conselhos para aqueles que sofrem dores insuportáveis


O que pode ser feito se você sofre com dor crônica incessante e
incurável, mas os médicos afirmam que você ainda pode viver
por meses e até anos?
Tente acumular tanto mérito quanto possível. Reze para que a dor
que está sentindo bem como a dor da morte não sejam prolongadas.
Você pode até rezar para morrer o quanto antes, e oferecer os meses
e anos que lhe restam nesta vida para os grandes bodisatvas, para que
eles tenham mais tempo para ajudar os seres sencientes. Faça fortes
aspirações para renascer logo em um renascimento melhor, no qual
você também possa continuar a ajudar e a iluminar incontáveis seres
sencientes.

Budas e bodisatvas, permitam que eu morra já!


Que os meses e anos que me restam nesta vida
Sejam somados à vida dos grandes bodisatvas
Que podem, de fato, ajudar os seres sencientes.

Faça essa prece com alegria, sinceridade e a motivação correta. Re-


zando dessa maneira, você continuará acumulando mérito durante os
seus dias e horas finais.
Motivado pelo desejo de começar de novo, com renovada energia,
gere a determinação inabalável de renascer como alguém que possa
realmente ajudar os outros. Reze para que a força vital que ainda lhe
resta possa acompanhá-lo no próximo renascimento.

Budas e bodisatvas, permitam que eu morra já!


Que os meses e anos que me restam nesta vida
Sejam somados à minha próxima vida
E eu possa renascer instantaneamente
Com a energia, determinação e capacidade
De ajudar os seres sencientes
Com altruísmo e amor.
Possa eu, então, continuar a trabalhar
 PERGUNTAS SOBRE OUTROS ASPECTOS DA MORTE 195

Para levar todos os seres sencientes


À alegria perfeita da iluminação.

Se você tiver recebido a iniciação apropriada, também pode fazer


um puja de longa vida de Amitayus ou patrocinar alguém que possa
fazê-lo no seu nome.

Qual é a visão budista das tentativas modernas de se viver para


sempre, como a criopreservação, por exemplo?
Se esse método preservar a continuidade da mente individual e não
exigir o sofrimento de outras pessoas, pode ser aceitável.
O desejo de ser imortal não é uma novidade. Contudo, nenhuma
das tentativas dos seres humanos de viver para sempre conseguirão
jamais tirar o valor das instruções do Buda sobre a mente. Por quê?
Porque o Buda descreve consistentemente os reinos habitados pelos
seres sencientes como “infinitos” e “sem limites”. É mais ou menos
assim: do ponto de vista budista, se você desmaiar ou entrar em coma,
não há diferença entre ficar desmaiado por um segundo ou por mil
anos.

Ninguém sabe ainda se a remoção e congelamento da cabeça irá


de fato preservar a mente. Apesar disso, um número surpreen-
dente de pessoas está apostando nisso como algo que nos permiti-
rá ter um novo corpo no futuro. Mas, para fazer essa aposta, elas
têm de tirar a própria vida na vida presente. Isso é um suicídio?
A vida acaba durante esse procedimento? Se acaba, você terá come-
tido suicídio. Se a cabeça continua viva depois de separada do corpo
e enquanto está congelada, não é suicídio. Mas, se você não tem
certeza se a cabeça continua viva ou não, eu não posso responder a
essa pergunta.
De acordo com o budismo, a morte é a separação entre o corpo e
a mente. No entanto, estou disposto a aceitar que é possível estar vivo
sem um corpo completo. Não há nada em nenhum sutra ou shastra
budista que sugira que você só está vivo se o corpo estiver inteiro. Se a
196 VIVER É MORRER

ciência conseguisse provar que um mero cacho de cabelos pode reter a


força vital e a consciência, eu seria obrigado a concordar que aquilo é
um ser vivo.
Do ponto de vista budista, porém, a sua tentativa de alcançar a
imortalidade poderia terminar criando um reino dos infernos. Você
quer mesmo viver para sempre? Não ficaria entediado? Vale mesmo
a pena tentar prolongar a vida? Para os budistas, a vida só tem valor
porque ela nos proporciona um recipiente no qual é possível trabalhar
em busca de entender a verdade. Viver bilhões de anos nos afastando
cada vez mais da verdade é o que os budistas descreveriam como um
reino dos deuses.

Posso ajudar alguém que já morreu, mas cujo fantasma ou espí-


rito ainda anda por perto?
Sim, com certeza! Faça você mesmo um ritual de sur ou patrocine
outra pessoa para fazê-lo. O sur deixa os fantasmas muito felizes (veja
página 147)

Quando a consciência se separa do corpo, deixamos de filtrar


as experiências por meio dos nossos sentidos. Mesmo assim, os
textos sobre o bardo dizem que temos a experiência de luzes des-
lumbrantes (fenômenos visuais) e sons trovejantes (fenômenos
auditivos). O ser do bardo acredita que tem essas experiências
visuais e auditivas porque ele ainda tem o hábito de experien-
ciar a energia desse modo e, portanto, projeta um corpo mental?
Ou essas experiências são descritas em uma linguagem com a
qual podemos nos conectar, para fins de comunicação, embora
seja impossível para nós imaginarmos a verdadeira experiência
enquanto temos o corpo?
As duas coisas são verdadeiras.
Para os tântrikas
Preparação para a morte

Para os praticantes de faculdades superiores


Lembre-se do guru, da visão e da deidade.
Se você segue o caminho vajrayana, deve pensar em três coisas cruciais
e lembrar delas enquanto se prepara para a morte:

• O guru, a pessoa que o apresentou à natureza da mente;


• A visão da vacuidade, shunyata, na qual a sua mente deve
permanecer; e
• A deidade com a qual você se familiarizou na vida por meio
da prática, que serve como um ponto de referência e o faz
lembrar da união de vacuidade e claridade.

Desses três, provavelmente o guru seja o mais fácil de lembrar,


porque você encontrou o seu guru durante a vida e, portanto, conhece
a aparência e a voz dele.
Como um tântrika, você também treinou a mente nas práticas
vajrayana de visualização e consumação. Essas práticas o ajudam a
se acostumar com a aparência do guru e da deidade, bem como a se
198 VIVER É MORRER

familiarizar com os seus nomes, atividades e manifestações. Esse tipo


de prática é denominado “sadhana”.
A prática de sadhana não consiste apenas em ler um texto em voz
alta, você também pensa sobre as características físicas da deidade e do
guru e recita os mantras. Enquanto passa pelo processo de morrer, a
melhor coisa que pode fazer é ter em mente as imagens da deidade e
do guru, tentando lembrar, tanto quanto possível, os seus atributos,
cores e atividades, como, por exemplo, a emanação e reconvergência
dos raios de luz das cores do arco-íris.
Enquanto invoca a deidade, é extremamente importante que você
tenha absoluta certeza de que é a deidade; isto é o que o vajrayana
chama de “orgulho da deidade”. O mais importante de tudo é receber
as abhishekas (autoiniciação) do guru e mesclar a sua mente com a
mente do guru, muitas e muitas vezes.
Isso é o que um bom tântrika fará, se ele for o tipo de praticante
que os textos sagrados descrevem como possuidor de “faculdades su-
periores”.
Se, durante a vida, você se preparou para a morte praticando
phowa, então, definitivamente, faça a prática de phowa para si mes-
mo quando o processo da morte se iniciar. Se você conhece um bom
lama, iogue, ioguini, monge ou monja, pode pedir que um deles
faça phowa para você. Não fique preocupado se o praticante não
estiver ao seu lado enquanto pratica, porque essa prática pode ser
feita à distância.
Devo enfatizar, porém, que o caminho de phowa é para os prati-
cantes com faculdades superiores. Isso não tem nada a ver com ser in-
teligente ou ter uma excelente formação. Não é dito que os praticantes
têm faculdades superiores porque terminaram o ngondro ou passaram
décadas estudando o budismo. A única faculdade que é absolutamente
indispensável é a devoção. Sem a devoção e a crença sincera no cami-
nho de phowa, essa prática simplesmente não funciona. E, hoje em
dia, é muito difícil encontrar alguém com esse tipo de devoção.
 PARA OS TÂNTRIKAS PREPARAÇÃO PARA A MORTE 199

Praticantes com faculdades medianas


Lembrar o guru
Um praticante medíocre e sem experiência tem poucas chances de
conseguir se lembrar da visão na hora da morte, ou se lembrar dos de-
talhes da aparência e dos atributos da deidade, ou mesmo do nome da
deidade. Em vez disso, confie no mais confiável dos caminhos, que é
rezar para o seu guru. O “guru”, neste caso, é o guru ou professor que
você encontrou nesta vida, com quem você falou e interagiu. Quando
estiver morrendo, reze para o seu guru, receba as quatro abhishekas,
mescle a sua mente com a do guru e assim por diante.

Como dar assistência a um tântrika durante o processo


da morte
Os irmãos e irmãs vajra que tenham uma relação próxima com um
tântrika que está morrendo podem ajudá-lo a lembrar de todos os
pontos importantes da prática.

Lembre-se de que a vida é uma ilusão, um sonho.


Entregue-se ao Buda, ao Darma e à Sangha.
Gere a boditchita.
Lembre-se da aparência e das atividades da deidade, bem
  como do som do mantra.
Permaneça na visão mais familiar, seja a madhyamika,
  mahamudra ou mahasandhi.
Lembre-se da visão da união de vacuidade e luminosidade.
Lembre-se do guru e intensifique o sentimento de devoção.

Para o tântrika que está morrendo, o guru é o objeto de prática


mais importante a ser lembrado e contemplado. Desse modo, recite
o nome do guru da pessoa que está morrendo em voz alta e clara. De
tempos em tempos, você pode cantar o nome do guru, ou mesmo
gritar chamando por ele.
200 VIVER É MORRER

Lembre o tântrika do processo da dissolução. A descrição detalha-


da está na página 134. Se o tempo for curto, porém, o seguinte pode
ser mais apropriado:

Enquanto o elemento terra se dissolve


E você tem a experiência do sinal secreto de miragens cintilantes,
Visualize o guru no seu coração e gere devoção.
Enquanto o elemento água se dissolve
E você tem a experiência do sinal secreto de nevoeiros esvoaçantes,
Visualize o seu guru no seu umbigo e reze para ele.
Enquanto o elemento fogo se dissolve
E você tem a experiência do sinal secreto de fagulhas de luz como
vaga-lumes,
Visualize o guru na sua testa.
Enquanto o elemento ar se dissolve
E você vê uma luz clara e ofuscante se aproximar,
Tente transferir a sua mente para a mente do guru,
Muitas e muitas vezes.
Lembre aos tântrikas que estão morrendo de que tudo aquilo que
eles estão vendo, em especial os sinais secretos, é uma manifestação da
mente – o que também é conhecido como a manifestação da mente de
sabedoria deles, da rigpa deles, da luminosidade, dharmadhatu, dhar-
mata, dharmakaya, tathagatagarbha e assim por diante. O termo que
você vai usar dependerá da linhagem e da tradição que a pessoa segue.
Durante o processo do morrer e da morte todos nós sentiremos
medo. Também é provável que sintamos dor física e passemos por
outros sofrimentos que acompanham a morte. No entanto, como
praticantes do Darma, precisamos aproveitar tudo que nos acontece.
Então, tente apenas olhar e observar qualquer dor que esteja sentindo,
sem se prender nas suas esperanças e medos. De fato, procure observar
tudo o que está acontecendo, sem se prender a nada.
Isso é o que os praticantes tântricos podem fazer uns pelos outros.
201

Quando eu morrer,
Enterrem-me numa taverna,
Sob um barril de vinho.
Com sorte,
O barril vazará.
Moriya Sen’an38
Preces e práticas

Como praticar o tonglen

Pema Chödrön

A prática de tonglen, também conhecida como “tomar e enviar”, in-


verte a nossa lógica costumeira de evitar o sofrimento e buscar o pra-
zer. Na prática de tonglen, visualizamos que estamos tomando para
nós a dor dos outros, com cada inspiração, e enviando tudo que possa
beneficiá-los, com a expiração. No processo, nos liberamos do velho
padrão do egoísmo. Começamos a amar a nós mesmos e aos outros;
começamos a cuidar de nós e dos outros.
A prática de tonglen desperta a nossa compaixão e nos mostra
uma visão muito mais ampla da realidade. Ela nos apresenta à vasti-
dão ilimitada de shunyata (vacuidade). Ao praticar, começamos a nos
conectar com a vasta dimensão do nosso ser.
A prática de tonglen pode ser feita para todos que estão doen-
tes, que estão morrendo ou morreram, ou para quem está sentindo
qualquer tipo de dor. Pode ser feita como uma prática de meditação
formal ou a qualquer hora e lugar. Se estivermos caminhando na rua
e nos depararmos com alguém que está sofrendo, podemos inspirar a
dor da pessoa e lhe enviar alívio enquanto expiramos.
204 VIVER É MORRER

Normalmente, desviamos o olhar quando vemos alguém que está


sofrendo. A dor das pessoas nos desperta medo ou raiva; nos traz re-
sistência e confusão. Então, também podemos praticar tonglen para
todos que são iguais a nós, que desejam ser compassivos, mas, ao con-
trário, sentem medo; que desejam ser corajosos, mas são covardes.
Em vez de ficarmos nos remoendo, podemos usar nossas resistências
como um trampolim para compreender o que as pessoas enfrentam
pelo mundo afora. Inspire por todos nós e expire por todos nós. Use
como remédio o que parece veneno. Podemos usar o sofrimento pes-
soal como um caminho de compaixão por todos os seres.
A prática de tonglen como meditação formal tem quatro estágios:

1. Fique um instante na boditchita


Descanse a mente por um ou dois segundos em um estado de abertura
ou quietude. Tradicionalmente, este estágio é chamado de ficar um
instante na boditchita absoluta, no coração-mente desperto, ou na
abertura para o espaço básico e luminosidade.

2. Comece a visualização
Trabalhe com a textura. Inspire sensações de calor, escuridão e peso-
um sentimento de claustrofobia- e expire sensações de frescura, cla-
ridade e luz- um sentimento de frescor. Inspire completamente, fa-
zendo entrar a energia negativa por todos os poros do corpo. Quando
expirar, irradie a energia positiva completamente, por todos os poros
do corpo. Faça isso até que a visualização fique sincronizada com o
inspirar e o expirar.

3. Foque em uma situação pessoal


Foque em qualquer situação dolorosa que seja real para você. Tradi-
cionalmente, começamos a praticar tonglen para alguém que gosta-
mos e queremos ajudar. No entanto, se você empacar, pode praticar
pela dor que você próprio está sentindo e, ao mesmo tempo, por todos
 PRECES E PRÁTICAS 205

que passam pelo mesmo tipo de sofrimento. Por exemplo, se você está
se sentindo incompetente, inspire esse sentimento para si mesmo e
para todos que estão no mesmo barco, e envie confiança, competência
e alívio, da forma que desejar.

4. Expanda a sua compaixão


Por fim, amplie o tomar e enviar. Se está praticando tonglen para uma
pessoa que você ama, estenda a prática a todos os outros que estejam
na mesma situação. Se está praticando tonglen para alguém que vê na
televisão ou na rua, pratique para todos que estão no mesmo barco. Vá
além daquela única pessoa. Você pode praticar tonglen para pessoas
que considera suas inimigas – aquelas que o ferem ou ferem os outros.
Pratique tonglen para elas, pensando que elas estão tão confusas e
confinadas quanto você ou seus amigos. Inspire a dor que elas sentem
e lhes envie conforto.
A prática de tonglen pode ser ampliada infinitamente. À medida
que você pratica, a sua compaixão naturalmente cresce, assim como a
compreensão de que as coisas não são tão sólidas quanto você pensava,
o que é um vislumbre da vacuidade. Para a sua surpresa, à medida que
praticar, aos poucos e no seu próprio ritmo, perceberá que está se tor-
nando cada vez mais capaz de ajudar os outros, mesmo em situações
em que antes isso parecia impossível de acontecer.
Este ensinamento foi postado no website da Lion’s Roar em 9 de novembro de
2017. (www.lionsroar.com/how-to-practice-tonglen/). Aqui reproduzido com a
gentil permissão de Pema Chödrön e Lion’s Roar.
 PRECES E PRÁTICAS 207

Chutor:
Oferenda de água

Chokgyur Lingpa

Em um fino e perfeito recipiente de cerâmica ou material precioso,


Perfeitamente limpo e não contaminado por veneno,
Coloque água e visualize-se como Avalokiteshvara.
Toque os sinos tingshag e imagine que os pretas se reúnem.

Eu e todos os seres iguais ao espaço


Tomamos refúgio em você, Avalokiteshvara,
O protetor que personifica todos os objetos de refúgio.
Assim como você tomou a resolução de alcançar a iluminação
Para libertar os seres que preenchem todo o espaço,
Rapidamente alcançarei a budeidade.
Possam todos os seres, sem exceção, ser felizes.
Possam estar livres do sofrimento
E, desse modo, jamais se afastar da alegria suprema.
Possam eles permanecer imparciais e não preconceituosos.
OM AH HRIH HUNG

O néctar leitoso que flui da mão


De Avalokiteshvara Khassarpani
Satisfaz todos os fantasmas famintos, sem exceção.
208 VIVER É MORRER

Imaginando isso, recite om ah hrih hung e imagine que eles alcan-


çam uma existência feliz (nos reinos superiores).

om jvalamidan sarva pretebhya svaha


Imagine que os pretas com dificuldade de ingerir partem.
Descarte a água usada e coloque água fresca.
Imagine que todos os pretas com impurezas externas e internas se reú-
nem. Contemple a vacuidade compassiva e recite este mantra:

nama sarva tathagata avalokite om sambhara


sambhara hung
Imagine que eles obtém prazeres sensoriais ilimitados.
Estale os dedos e imagine que eles partem para outros locais.
Como alternativa, em um vasto recipiente feito de material precioso,
Faça um arranjo de água limpa e alimentos.

No céu à minha frente está Avalokiteshvara,


O nobre Vajragarbha,
Rodeado por uma hoste de budas, bodisatvas,
Yidams, dakinis e protetores do Darma.
Abaixo dele estão forças malignas, obstrutores, as seis classes de seres
E, em especial, todos os convidados de dívidas cármicas.

om ah hung
Na vacuidade, da sílaba dhrung,
Aparece um vasto recipiente
No qual o meu corpo se dissolve em forma de luz.
E se torna um oceano de tormas e néctar

Consagre com

om ah hung
A minha mente na forma de Khassarpani
Serve a todos os convidados com oferendas e dádivas.
 PRECES E PRÁTICAS 209

Imaginando isso, ofereça com o mantra sambhara.

namah sarva tathagata avalokite


om sambhara sambhara hung
om
Nobre Vajragarbha
Que conquista as más ações e as impurezas,
E a hoste de veneráveis objetos de refúgio, vasta como o oceano,
Aceitem esta torma do néctar do meu corpo.
Concedam bênçãos, purifiquem más ações e impurezas,
Confiram realizações e dissipem todos os obstáculos.

Forças malignas, obstrutores, espíritos, seis classes de seres,


Especialmente todos os convidados de dívidas cármicas,
Desfrutem deste néctar imaculado
E saldem todas as dívidas cármicas e obrigações.
Possam toda a sua hostilidade, má vontade e maldade serem
  pacificadas,
E possam vocês ser dotados da mente desperta.

Ao final, deixe de contemplar os hóspedes que recebem oferendas


  e dádivas,
Descanse na continuidade da vacuidade.
Por meio disso, você aperfeiçoará as acumulações, evitará a morte
E, de modo geral, purificará más ações e obscurecimentos.
E, em particular, saldará kordrib insalubre e dívidas cármicas.
Por essas razões, aplique-se a isso diariamente.

Esta foi a oferenda e doação liberadoras do nobre Vajragarbha.

Seguindo os ensinamentos orais de Tulku Urgyen Rinpoche, foi extraída de Pema


Garwang Chöchö, Chokling Tersar, Volume 27, traduzida para o inglês por Erik
Pema Kunsang e editada por Michael Tweed, Nagi Gompa, 1995
© Rangjung Yeshe Translations & Publications, 1995
Reproduzido com a gentil permissão de Erik Pema Kunsang.
210

Sinos Tingshag
 PRECES E PRÁTICAS 211

Prática para longa vida e prosperidade:


Um método para salvar vidas

Jamyang Khyentse Wangpo

Homenagem ao Guru e ao Conquistador Liberado


Transcendente, o Senhor Vida Ilimitada (Buda Amitayus).

O mestre realizado Ngagi Wangchuk Drakpa disse:

Ao salvar vidas de pássaros, peixes, veados,


Ou de ladrões, cobras e outros seres que seriam mortos,
Sua vida atual será prolongada,
Mesmo que estiver fadada a ser curta.

Como indicado na afirmação acima, todos os sutras e tantras en-


sinam que salvar a vida de seres sencientes condenados à morte é a
mais suprema entre as práticas de longevidade. Por essa razão e porque
salvar vidas traz benefícios incomensuráveis, todas as pessoas sensatas
devem multiplicar os seus esforços para salvar vidas.
De modo geral, isso significa que, com uma nobre disposição
mental, você deve, antes de tudo, salvar a vida dos animais que estão
em seu poder. Além disso, evite matá-los pessoalmente, ou vendê-los
para outras pessoas. Em vez disso, cuide dos animais pacificamente.
212 VIVER É MORRER

Apenas por fazer isso, quando dedicar as raízes de virtude e fizer aspi-
rações para o benefício deles, você terá cumprido o presente propósi-
to, sendo admissível, portanto, que não faça nenhuma outra cerimô-
nia específica.
Se preferir realizar uma versão ligeiramente mais elaborada, de
acordo com o lugar, a ocasião e o grau de detalhe, então pode fazê-lo
como encontrado em muitas instruções da escola da Tradução Anti-
ga, como as que fazem [do animal] um suporte para um protetor do
Darma, e assim por diante. Ou, se você desejar realizar versões mais
detalhadas das palavras de auspiciosidade, da dedicação e da aspira-
ção, será excelente se puder combiná-las com um momento especial,
como o Mês Milagroso (o primeiro mês), o oitavo dia ou as luas nova
ou cheia.
Se o motivo principal for prolongar a vida de alguém, então faça a
prática ao nascer do sol, na hora propícia do “planeta da vida ascendente”.
De qualquer modo, coloque aqueles cujas vidas deseja salvar na
sua frente e diga três vezes:

No Buda, no Darma e na Assembleia Suprema,


Tomo refúgio até a iluminação.
Pelo mérito da generosidade e assim por diante,
Possa eu atingir o estado búdico para benefício de todos os seres.

Possam todos os seres ter felicidade e as causas da felicidade.


Possam eles estar livres do sofrimento e das causas do sofrimento.
Possam eles nunca se afastar da sublime felicidade que é isenta de
  sofrimento.
Possam eles permanecer em grande equanimidade, livres de apego e
  parcialidade.

Assim, contemple as Quatro Incomensuráveis. Se quiser, você


pode recitar o nome dos budas e os seus respectivos mantras dharani.
Repeti-los muitas vezes trará imenso benefício, tal como o de plantar
a semente da liberação no fluxo mental dos animais. Se não puder
fazê-lo, então diga:
 PRECES E PRÁTICAS 213

Transcendente Conquistador Liberado, Assim Ido, Destruidor do


Inimigo, Desperto Verdadeiramente e Perfeitamente, Buda Luz
Ilimitada, eu o saúdo.
Conquistador Liberado Transcendente, Assim Ido, Destruidor
do Inimigo, Desperto Verdadeiramente e Perfeitamente, Buda
Inabalável, eu o saúdo.

Conquistador Liberado Transcendente, Assim Ido, Destruidor do


Inimigo, Desperto Verdadeiramente e Perfeitamente, Buda Joia da
Coroa, eu o saúdo.

Conquistador Liberado Transcendente, Assim Ido, Destruidor


do Inimigo, Desperto Verdadeiramente e Perfeitamente, Buda
Renomado Rei do Esplendor, eu o saúdo.

Conquistador Liberado Transcendente, Assim Ido, Destruidor do


Inimigo, Desperto Verdadeiramente e Perfeitamente, Buda Rei do
Conhecimento, Brilhantismo e Eloquência Adornado por Joia Sol e
Lua, eu o saúdo.

Conquistador Liberado Transcendente, Assim Ido, Destruidor do


Inimigo, Desperto Verdadeiramente e Perfeitamente, Buda da Luz
Preciosa de Ouro Puro Imaculado, Senhor de Conduta Destemida,
eu o saúdo.

Conquistador Liberado Transcendente, Assim Ido, Destruidor do


Inimigo, Desperto Verdadeiramente e Perfeitamente, Buda Ilustre
Esplendor sem Pesar, eu o saúdo.

Conquistador Liberado Transcendente, Assim Ido, Destruidor


do Inimigo, Desperto Verdadeiramente e Perfeitamente, Buda
Melodioso Oceano da Elucidação do Darma, eu o saúdo

Conquistador Liberado Transcendente, Assim Ido, Destruidor do


Inimigo, Desperto Verdadeiramente e Perfeitamente, Buda Elevada
Sabedoria do Darma Oceânico Manifesta por meio do Excelente
Insight, eu o saúdo.
214 VIVER É MORRER

Conquistador Liberado Transcendente, Assim Ido, Destruidor do


Inimigo, Desperto Verdadeiramente e Perfeitamente, Buda Supremo
Médico, Rei da Luz de Lápis-Lazúli, eu o saúdo.

Conquistador Liberado Transcendente, Assim Ido, Destruidor


do Inimigo, Desperto Verdadeiramente e Perfeitamente, Buda
Shakyamuni, eu o saúdo.
om mani peme hung hrih, namo ratna trayaya,
namo bhagavate akshoyobhyaya, tathāgataya,
arhate samyak sambuddhāya,
tadyatha, om kamkani kamkani, rotsani rotsani,
trotani trotani, trasani trasani, pratihana pratihana,
sarve karma parampara, nime sarva satva nañtsa soha,
nama ratna trayaya, namah arya jnana sagara
bairotsana bhyuha rajaya
tathāgataya, arhate samyak sambhuddhya,
namah sarva tathagatebhya arhatabhya
samyak sambuddhebhya,
namah arya avalokiteshvaraya bodhisatvaya
mahasatvaya mahakarunikaya,
namah arya avalokiteshvaraya bodhisatvaya
mahasataya mahakarunikaya,
tadyata om dhara dhara dhiri dhiri dhuru dhuru itte
bitte tsale tsale pratsale pratsale kusuke kusuka bare
ilimili tsiti jvala mapanaya soha.

Repita isso em voz alta e clara.


Então, segure flores nas mãos e diga:

No céu à minha frente está o Guru, inseparável do Conquistador


Liberado Transcendente Buda Luz Ilimitada, cercado por uma
assembleia oceânica de objetos de refúgio preciosos, que inclui os
budas e os bodisatvas das dez direções e os devas e rishis realizados
na fala verdadeira.
 PRECES E PRÁTICAS 215

Eles estão vivamente presentes e suas vozes melodiosas proferem de-


sejos auspiciosos. Eles despejam uma imensa chuva de flores que pro-
longa a vida mais e mais e aumenta o mérito, o esplendor e a prosperi-
dade, a sabedoria e as virtudes, minhas e de todos os seres sencientes,
encabeçados pelo benfeitor.

Agora, todos aqueles que renasceram como animais estão liberados


do medo da morte extemporânea e vivem em paz sob a proteção das
Três Joias. Por fim, quando a semente da liberação amadurecer no
fluxo da sua existência, eles serão investidos da fortuna de alcançar a
iluminação rapidamente.

Então, imaginando isso, diga:

Como o pináculo real da bandeira da vitória,


Poderosa deidade sublime que adorna a cabeça destes praticantes
Concedendo-lhes a realização suprema,
Glorioso e excelso guru, possa a sua auspiciosidade estar presente!

Insuperável professor, o precioso Buda,


Insuperável protetor, o precioso Darma sagrado,
Insuperável guia, a preciosa Sangha,
Possa a auspiciosidade dos objetos de refúgio, as Três Joias, estar
presente.

Vida Ilimitada, guia principal deste mundo,


Que vence todos os tipos de morte extemporânea,
Protetor de todos os seres desprotegidos e sofredores.
Possa a auspiciosidade do Buda Amitayus estar presente!

Após recitar quaisquer versos auspiciosos que conheça, diga:

O poder da generosidade exalta verdadeiramente o Buda.


O Leão dos Homens compreendeu o poder da generosidade.
Quando eu entrar na cidadela da compaixão,
Possa a longevidade da generosidade perfeita também aumentar!
216 VIVER É MORRER

O poder da ética exalta verdadeiramente o Buda.


O Leão dos Homens compreendeu o poder da ética.
Quando eu entrar na cidadela da compaixão,
Possa a longevidade da ética perfeita também aumentar!

O poder da paciência exalta verdadeiramente o Buda.


O Leão dos Homens compreendeu o poder da paciência.
Quando eu entrar na cidadela da compaixão,
Possa a longevidade da paciência perfeita também aumentar!

O poder da perseverança exalta verdadeiramente o Buda.


O Leão dos Homens compreendeu o poder da perseverança.
Quando eu entrar na cidadela da compaixão,
Possa a longevidade da perseverança perfeita também aumentar!

O poder da concentração exalta verdadeiramente o Buda.


O Leão dos Homens compreendeu o poder da concentração.
Quando eu entrar na cidadela da compaixão,
Possa a longevidade da concentração perfeita também aumentar!

O poder do insight exalta verdadeiramente o Buda.


O Leão dos Homens compreendeu o poder do insight.
Quando eu entrar na cidadela da compaixão,
Possa a longevidade do insight perfeito também aumentar!

om namo bhagavate
aparimita ayurjnana subinishchai tatejo rajaya
tathāgataya
arhate samyak sambuddhaya
tadyata
om punye punye mahapunye aparirmita punye
aprimita punye jñana sambharo pachite
om sarva samskara pari shuddha dharma tegagana
samudgate svabhava vishuddhe mahanaya parivare svaha.

Recite isso quantas vezes puder enquanto espalha flores.


 PRECES E PRÁTICAS 217

Então, diga:

Conforme implícito nas raízes virtuosas deste ato, possam as raízes


virtuosas reunidas ao longo dos três tempos fazer com que os ensina-
mentos do Buda prosperem, trazendo ao mundo imensa e virtuosa
bondade.

Possam todas as pessoas sublimes, detentoras do Darma, ter vida


longa e estável e possam as suas atividades florescer.

Possam eu e todos os seres sencientes, encabeçados por este benfei-


tor, ter a vida prolongada e os méritos, o esplendor, a prosperidade e
a sabedoria aumentados.

Possam também estes animais ser libertados dos medos do samsara


e dos reinos inferiores e rapidamente alcançar o precioso estado da
iluminação.

Tendo formado esses pensamentos, diga então com determinação:

Por meio dessa virtude, possam todos os seres


Consumar as acumulações de mérito e virtude,
E possam eles atingir os dois kayas sagrados,
Que resultam deste mérito e sabedoria.

Por este mérito, possam todos atingir a onisciência,


Derrotando o inimigo, as más ações.
Das tempestuosas ondas do nascimento, velhice, doença e morte,
Do oceano do samsara, possa eu libertar todos os seres.

Em todas as nossas vidas, onde quer que venhamos a renascer,


Possamos nós nunca nos separar das Três Joias,
Possamos nós sempre venerá-las,
E receber as suas bênçãos.

Possa a preciosa mente da iluminação


Surgir naqueles em que ainda não surgiu
218 VIVER É MORRER

E naqueles em que já surgiu, possa ela não diminuir,


Mas, sim, aumentar mais e mais.

Como a única fonte de benefício e bem-estar,


Possam os ensinamentos permanecer por muito tempo,
E possa a vida daqueles que detém esses ensinamentos
Ser tão firme como a bandeira da vitória.

Possa o mundo ter paz e anos de felicidade,


Possam as colheitas ser abundantes e o gado aumentar,
Possa a fonte de toda a paz e bondade estar presente,
E possam todos os desejos ser realizados.

Também nesta vida,


Possam todas as condições desfavoráveis desaparecer,
Possamos nós ter longa vida, boa saúde e prosperidade
E atingir a felicidade duradoura.

Pela força desse poderoso mérito,


Possam, nesta vida, os benfeitores,
Junto aos seus seguidores, alcançar os seus objetivos,
Estar livres de obstáculos, ter boa sorte
E realizar os seus desejos espirituais.

Desse modo, faça dedicações e aspirações. Então diga:

Pelas bênçãos do Buda supremo, eminente e insuperável,


O vitorioso sol da verdade,
Possam os inimigos perniciosos, os maras e os obstrutores,
 desaparecer,
Para que a auspiciosidade do constante esplendor esteja presente
  dia e noite.

Pelas bênçãos do Darma da natureza incondicionada, eminente e


 insuperável,
O néctar da verdade do Darma sagrado,
 PRECES E PRÁTICAS 219

Possam as dolorosas inimigas, as cinco emoções venenosas, recuar,


Para que a auspiciosidade do constante esplendor esteja presente dia
  e noite.

Pelas bênçãos das qualidades da Sangha, que brilham em precioso


  esplendor,
Os feitos verdadeiramente benéficos dos filhos do conquistador,
Possam as falhas da má conduta ser removidas e possa a bondade
  aumentar,
Para que a auspiciosidade do constante esplendor esteja presente dia
  e noite.

Após recitar esses e outros versos auspiciosos, diga:

Gozo do esplendor da vida imortal,


Inteligência e insight que discerne,
Todo esplendor e riqueza do samsara e nirvana,
Possa a sua auspiciosidade estar espontaneamente presente.

Possa o mérito crescer e florescer como o supremo rei das


  montanhas.
Possa a grandiosa fama se espalhar pelo céu.
Possa haver longa vida, boa saúde e benefício espontâneo para os
  outros
E possa a auspiciosidade de um oceano de qualidades excelentes
estar presente.

Possa este lugar ter paz e alegria de manhã e à noite,


Possa o meio-dia também ser pacífico e feliz,
Possa haver paz e felicidade todos os dias e todas as noites
E possa a auspiciosidade das Três Joias estar presente.

om ye dharma hetu prabhava hetun teken tathagato


haya wadet tekeñchayo nirodha ewam vadi maha
shramana svaha
220 VIVER É MORRER

Dizendo isso, promova a paz e a bondade espalhando flores. Se pre-


ferir, outros textos de prática de longevidade mencionam que se pode
"fazer as marcas do sol e da lua na testa daqueles cujas vidas você liber-
tou; assim eles não serão mortos no futuro". Desse modo, é ensinado
que desenhar com manteiga o símbolo do sol e da lua na testa dos
animais cria a auspiciosa coincidência para se ter sorte e boa fortuna.
Além disso, se você evitar usar armadilhas, redes de pesca ou simi-
lares para salvar a vida de pássaros, peixes e veados, faça-o incluindo a
resolução boditchita já mencionada, assim como as dedicações e aspi-
rações. Combinando isso com oferendas de fumaça (lhasang) e assim
por diante, os benefícios serão incomensuráveis, como exemplificado
pela libertação de vidas.
Em particular, muitos sinais auspiciosos aparecerão na região onde
você costuma fazer a prática, tais como chuvas sazonais e prósperas
colheitas e criações de gado. Na sua Guirlanda Preciosa, o nobre Na-
garjuna disse:

As pessoas sensatas sempre devem colocar comida, água e óleo


  vegetal
Ou punhados de grãos na entrada dos formigueiros.

Do mesmo modo, quando oferecer comida para as formigas, ali-


mento fresco para os peixes ou remédio para os doentes; quando ofe-
recer um banquete para as crianças ou der comida e bebida para os
pássaros e destituídos, isso tudo deve estar cercado pelos meios hábeis
da resolução boditchita e das dedicações e aspirações sinceras. Se você
agir desse modo, a oferenda se tornará uma causa para evitar a morte,
aumentar a prosperidade e, por fim, para a grande iluminação. Uma
vez que isso é fácil de ser feito, envolve pouco esforço e traz imenso
benefício, todas as pessoas inteligentes devem, de várias maneiras, per-
severar nesses meios hábeis para reunir as acumulações.

Para o meu próprio benefício e o de outros, isso foi escrito por Jamyang
Khyentse Wangpo, alguém que se devota à Bodisatva Pitaka, motivado
por puras intenções. Possa isso ser uma causa para que a vida dos sublimes
 PRECES E PRÁTICAS 221

detentores dos ensinamentos dure uma centena de éons e para que todos os
seres sencientes sejam liberados do medo da morte extemporânea e atinjam
rapidamente o estado do Buda da Vida Ilimitada.
Sarva mangalam.

Por ordem de Chadral Rinpoche, um grande bodisatva que de fato corporifica


as virtudes mencionadas aqui, isto foi traduzido [para o inglês] por Erik Pema
Kunsang e editado por Marcia Binder Schmidt e Michael Tweed. Revisado e
re-impresso por Idan, em 2003.
©Rangjung Yeshe Translations & Publications, 2000
Publicado por Editions Padmakara com a gentil permissão de Rangjung Yeshe
Translations & Publications.
Reproduzido com a gentil permissão de Erik Pema Kunsang.
222 VIVER É MORRER
 PRECES E PRÁTICAS 223

Tagdrol:
“Liberação pelo vestir”
Chacra de Padma Shitro

As deidades pacíficas e
iradas da família Padma

Khenpo Sonam Tashi


Tradução para o inglês de Khenpo Sonam Phuntsok

O chacra da “liberação pelo vestir”, que aparece na página 222, é de-


nominado “tagdrol de Padma Shitro”. É um tesouro que foi revelado
originalmente pelo tertön Nyima Senge e mais tarde redescoberto por
Pema Ösel Dongak Lingpa (Jamyang Khyentse Wangpo).
Quer a pessoa que morreu tenha sido budista ou não, se a família
desejar ajudá-la colocando um tagdrol no corpo, necessitará de um
chacra de Padma Shitro. Normalmente, você pode conseguir um tag-
drol consagrado com um praticante ou em um centro budista. Outra
alternativa é fazer uma cópia do chacra e você mesmo consagrá-lo
seguindo as instruções abaixo, que Khyentse Rinpoche ofereceu em
resposta a uma pergunta.
O chacra deve ser dobrado formando um quadrado, enrolado em
um pedaço de tecido limpo e consagrado apropriadamente. Depois,
deve ser colocado sobre o chacra do coração do cadáver e lá fixado. O
tagdrol deve continuar preso ao corpo durante a cremação.
Esse tipo de tagdrol não se destina apenas aos mortos; durante a
vida, você pode usá-lo na coroa da cabeça ou pendurado no pescoço.
224 VIVER É MORRER

Os benefícios de se usar um tagdrol são os seguintes: nesta vida,


as doenças, energias negativas e impurezas das más ações são pacifica-
das, enquanto a longevidade, o mérito, a prosperidade e a sabedoria
são incrementados. Além disso, na próxima vida você renascerá em
Sukhavati, o reino búdico do Buda Amitabha. Qualquer um que use
este tagdrol também será beneficiado pela “liberação pelo tocar”, que
planta a semente da iluminação. Há ainda muitos outros benefícios.

O que fazer com o chacra que a pessoa usava quando ela morrer?
Se a pessoa que morreu era um iogue ou uma ioguine, coloque o cha-
cra no chacra do coração e queime junto com o corpo.
A dissolução dos elementos não estará completa antes de 84 ho-
ras após a morte; durante esse tempo, a consciência da pessoa morta
ainda permanece no coração. É por isso que é melhor não mover ou
cremar o corpo por, pelo menos, 84 horas após a morte. Pelo mesmo
motivo, é importante: fazer as práticas que purificam as ações negati-
vas; apresentar as manifestações pacíficas e iradas e os sons e luzes do
bardo, como sendo nada além de projeções da própria mente; e fazer
a prática de phowa (transferência da consciência).

Como fazer um tagdrol


Se um centro de Darma, lama ou praticante do Darma desejar ajudar
os outros fazendo o tagdrol de Padma Shitro, deve imprimir ou co-
piar milhares de chacras (página 222) e ungir a imagem com pílulas
de amrita abençoadas e mergulhadas em água com açafrão. Depois,
dobre os chacras corretamente, sem vincar o centro.
1. Dobre o lado direito do papel verticalmente, da direita para
  a esquerda.
2. Dobre o lado esquerdo do papel verticalmente, da esquerda
  para a direita.
3. Dobre a parte inferior do papel horizontalmente, para
  cima.
4. Dobre a parte superior do papel horizontalmente, para
  baixo.
 PRECES E PRÁTICAS 225

Todas essas dobraduras devem resultar em um quadrado, que depois é


enrolado em tecido ou com fios das cinco cores.
Consagre os chacras e guarde-os em uma caixa para substâncias,
para serem usados quando necessário.

Durante a elaboração deste livro, perguntaram a Dzongsar Kh-


yentse Rinpoche: “É possível consagrar um chacra sem a ajuda
de um lama?”
Rinpoche respondeu: “Se você tiver condições de conseguir um tag-
drol abençoado e consagrado por um lama realizado e qualificado, por
favor, faça isso. Se não conseguir, peça para um tântrika, um pratican-
te do vajrayana, que abençoe as fotocópias do chacra, fazendo a prá-
tica completa de uma sadhana. Pode ser qualquer sadhana. Em geral,
as sadhanas incluem uma prece para pedir às deidades invocadas que
permaneçam nos suportes de prática, por exemplo, nas esculturas e
pinturas de budas. Nesse caso, o tântrika deve solicitar que as deidades
permaneçam nos chacras fotocopiados, que então poderão ser usadas
para fazer o tagdrol.

Como dobrar um tagdrol


226 VIVER É MORRER
 PRECES E PRÁTICAS 227
228

Tsa-tsas
 PRECES E PRÁTICAS 229

Como fazer tsa-tsas

Thangtong Tulku

Muitas tradições e métodos de fazer tsa-tsas foram desenvolvidas ao


longo dos séculos, mas a seguinte maneira é uma das mais simples e
fáceis.

1. Compre ou faça um molde de tsa-tsa.


Muitas opções de moldes de silicone para tsa-tsas são vendidas online,
como, por exemplo, no website http://nalanda-monastery.eu/index.php/en/
art-workshop/order
Se você desejar uma tsa-tsa específica, pode encomendar uma for-
ma de silicone feita por um profissional; ele precisará de uma tsa-tsa
de exemplo para criar o molde; tradicionalmente, a forma é enco-
mendada para um escultor experiente, que saiba trabalhar em metal,
madeira ou argila.
Outra alternativa, se você desejar copiar uma tsa-tsa ou estátua,
ou fazer uma versão maior ou menor, é mandar fazer uma imagem
em 3D em um estabelecimento especializado. A sua tsa-tsa ou estátua
pode ser então escaneada e “impressa” do tamanho exato desejado.
Apenas peça para que o encarregado use uma boa definição de im-
pressão, entre 25 e 50 microns resin SLA, que é suficientemente alta.
Quando você tiver em mãos a cópia em 3D, você pode pedir para
um profissional fazer os moldes. Peça a ele que use uma borracha de
silicone de boa qualidade.
230 VIVER É MORRER

2. Faça o zung, ou rolo de mantras


As tsa-tsas contém um “zung”, ou rolo de mantras. Para fazer o zung,
imprima ou escreva à mão, em uma ou várias folhas de papel, os man-
tras associados à forma da tsa-tsa. O método mais rápido é imprimir
muitos mantras em papel A4. Use um pincel largo para “pintar” o
papel com açafrão mergulhado em água morna, deixe secar e depois
corte em tiras. Certifique-se de que cada tira de mantra seja pequena
o suficiente para caber dentro da tsa-tsa.
Enrole bem apertado o papel com os mantras e marque a ponta
que contém o início do mantra, para não inserir os mantras de cabeça
para baixo. Tradicionalmente, usa-se tinta vermelha, mas você pode
marcar com caneta esfereográfica, hidrocor ou lápis vermelhos.
Se a tsa-tsa representa uma deidade, o rolo de mantra deve ser
colocado na altura do coração; se tem a forma de uma estupa, deve ser
colocado no centro.

3. Reúna o material e as ferramentas


Gesso sintético, ou gesso odontológico
O melhor é empregar gesso de alta qualidade. O tipo de gesso calci-
nado usado em construções é mais barato, mas não é recomendado
porque racha e quebra com facilidade.

Balança
A balança ajuda a calcular as quantidades corretas de gesso e água,
que variam dependendo da qualidade do gesso. As instruções estão
impressas na embalagem ou em uma folha de instruções.

Misturador de gesso
Um misturador de gesso é uma máquina especial para misturar o ges-
so seco e a água. Se preferir, você pode adaptar uma furadeira, se con-
seguir a extensão correta.
 PRECES E PRÁTICAS 231

Bioetanol ou acetona
O bioetanol ou a acetona muitas vezes são borrifados no molde antes
de enchê-lo de gesso para diminuir a tensão entre o gesso e o silicone,
evitando o surgimento de bolhas.

Borrifador
Você precisará de um borrifador para borrifar no molde o bioetanol
ou a acetona.

Pincéis
Um pincel redondo macio é necessário para retirar as bolhas que sur-
gem no gesso recém-colocado no molde.

Mendrup (pílulas de amrita)


Deixe de molho em água morna algumas mendrup, ou pílulas de
amrita, e acrescente um pouco dessa água ao gesso, antes de misturar
o resto da água. Tenha cuidado para não adicionar muito, só um pou-
co já é suficiente.

Tinta
Recomendamos a tinta acrílica para pintar as tsa-tsas, por ser solúvel
em água e de fácil aplicação.

Desumidificador
Se você tem um jardim ou terraço, pode colocar as tsa-tsas ao ar livre
para secar. Se não for possível, coloque-as em um local com um desu-
midificador a fim de se assegurar de que ficarão bem secas.

Compressor de ar, pistola de ar ou pistola de pintura


A pistola de ar é usada nos moldes de silicone para deixá-los comple-
tamente limpos antes de usar novamente. A pistola de pintura é útil
para pintar as tsa-tsas depois de secas.
232 VIVER É MORRER

Cola de madeira (Fevicol na Índia)


As tsa-tsas danificadas podem ser restauradas com uma mistura de
uma ou duas gotas de cola de madeira, água e gesso.

4. Processo de fabricação das tsa-tsas


Depois de reunido todo o material, o processo de fabricação pode
começar. Se desejar, você pode recitar mantras enquanto trabalha. Por
exemplo: recite o mantra das cem sílabas de Vajrasattva, om mani
padme hum e/ou o mantra da originação dependente.

Mantra de Cem Sílabas de Vajrasattva

om vajrasattva samaya manupalaya


vajrasattva tenopa tishtha dridho me bhawa
sutokhayo me bhawa supokhayo me bhawa
anurakto me bhawa
sarwa siddhi me prayaccha sarwa karma su tsa me
tsittam shreyang kuru hung ha ha ha ha ho bhagawan
sarwa tathagata vajra ma me munca vajri bhawa maha
samaya sattva ah

Mantra da Originação Dependente

om ye dharma hetu prabhava hetun tesam


tathagato hyavadat tesam ca yo nirodha
evam vadi mahasramanah soha

Borrife o molde com bioetanol ou acetona


Certifique-se de que todo o interior do molde ficou coberto com bioe-
tanol ou acetona, passando gentilmente um pincel macio; a superfície
deve ficar brilhante, mas não encharcada.
Meça corretamente as quantidades de água e gesso e, se quiser,
misture as cinzas da pessoa amada.
 PRECES E PRÁTICAS 233

Siga as instruções da embalagem do gesso e meça as quantidades


corretas de água e gesso. Lembre-se de colocar um pouco da água com
mendrup. Se desejar, enquanto mistura as cinzas da pessoa amada
com o gesso e a água, recite o mantra das cem sílabas de Vajrasattva,
om mani padme hum ou o mantra da originação dependente.

Misture bem os ingredientes


Misture completamente a água, o gesso e as cinzas, por cerca de 30
segundos.
Dica: trabalhe bem rápido, pois o gesso começa a endurecer em pou-
cos minutos. Encha o molde com a mistura e remova as bolhas do
gesso com um pincel pequeno.

Insira o zung, ou rolo de mantras


Dica: Insira o rolo de mantras antes que o gesso comece a endurecer.

Lembre-se:
Se a tsa-tsa representa uma deidade, o mantra deve ser colocado na
altura do coração; se a tsa-tsa tem o feitio de estupa, o mantra deve ser
colocado no centro.
Dica: depois de posicionar o rolo de mantras, cuide para que ele não
volte à superfície.

Remova a tsa-tsa do molde


Pode ser necessário deixar a tsa-tsa no molde por 40 minutos, mas
fique de olho, porque pode ficar pronta em menos de 10 minutos. O
tempo de secagem depende da qualidade do gesso.
Não esqueça de remover a tsa-tsa do molde bem gentilmente.

Deixe secar
Deixe a tsa-tsa secando por cerca de 30 minutos antes de fazer qual-
quer retoque.
234 VIVER É MORRER

Retoque as marcas de bolhas


Se alguma bolha danificar a superfície da tsa-tsa, misture uma gota de
cola com um pouquinho de água e gesso, e faça os retoques com um
pincel pequeno, fino e macio. Trabalhe rápido, porque a mistura en-
durecerá muito rápido. Esta é a razão pela qual é melhor não preparar
uma grande quantidade de gesso de uma vez.

Continue fazendo tsa-tsas enquanto as primeiras secam


Antes de usar novamente o molde de silicone, limpe-o com a pistola
de ar e borrife com bioetanol ou acetona. Depois, repita os passos
acima.

Espere as tsa-tsas secarem completamente


As tsa-tsas devem estar absolutamente secas antes de serem pintadas
ou colocadas em uma estupa; uma tsa-tsa úmida pode mofar com
facilidade.
O método mais fácil de secar as tsa-tsas é deixá-las ao sol por al-
guns dias. Se isso não for possível, coloque-as em um quarto com
janelas e portas fechadas e com um desumidificador ligado até que
sequem. Esse método também leva alguns dias.
Pinte as tsa-tsas (opcional)
Se desejar, pinte as tsa-tsas depois que estiverem completamente
secas. Se fizer apenas algumas, pinte à mão, mas se forem muitas, con-
sidere pintá-las com uma pistola, o que é muito mais rápido.
É difícil prever quanto tempo a tinta acrílica precisará para secar,
pois depende da temperatura ambiente e das condições climáticas.
Levará mais tempo se você vive em um lugar frio e úmido.

Por fim, algumas dicas


O número de moldes necessários depende de quanto tempo você dis-
põe para fazer suas tsa-tsas, de quantas deseja fazer, de quantas pessoas
participarão do projeto e do espaço disponível para armazenagem,
 PRECES E PRÁTICAS 235

entre outras coisas. O silicone não gruda em nada, nem em si próprio,


então não há necessidade de lavar o molde depois de remover a tsa-tsa.
O molde de borracha de silicone ficará danificado se entrar em
contato com hidrocarbono, (petróleo, óleo, gasolina, etc) ou ácidos e
produtos químicos fortes.
Se o gesso se prender ao molde, use a pistola de ar para retirá-lo.
E agora, na hora da minha morte,
as minhas entranhas se movem-
Uma oferenda para o Senhor dos Mundos.39

Ikkyu (1394-1491), um monge


que frequentava bares e prostíbulos
237

Ilustrações

Página

12 Channa conduz Príncipe Siddhartha para fora do palácio de


seu pai.
Reproduzida de: “Four Sights in Buddha’s life which forced him to
abandon royal life” Disponível em: http://tathagat.org/blog/four-
sights-buddha/ Acesso em: 28 abril. 2020.

17 Zhuang Zou sonha com uma borboleta.


Lu Zhi (1496-1576), Zhuang Zou dreaming with a butterfly, Wiki-
media Commons. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/
wiki/File:Korea-Seoraksan-Buddha-Statue-02.jpg . Acesso em: 28 abril.
2020.

27 Estátua do Buda no Parque Nacional de Seoraksan, Coreia


do Sul
Nagy, C., Statue of Buddha in Seoraksan National Park, South Korea,
Wikimedia Commons. Disponível em: https://commons.wikimedia.
org/wiki/File:Korea-Seoraksan-Buddha-Statue-02.jpg . Acesso em: 28
abril. 2020.

37 Estátua do Buda na Estupa Mahabodhi em Bodhgaya, Índia

43 Sutra da Grande Sabedoria, da Coleção de Sutras do Templo


Chū sonji
238 VIVER É MORRER

Great Wisdom Sutra from the Chū sonji Temple Sutra Collection
(Chūsonjikyō), ca 1175, The Metropolitan Museum of Art, New
York. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collec-
tion/%20search/36104?sortBy=Relevance&ft=great+wisdom+-
sutra&offset=0&rpp=20&pos=2 . Acesso em: 28 abril.
2020.

46 Bodisatva Avalokiteshvara
Gude, A., The Bodhisattva Avalokiteshvara, Asian Art Museum of
San Francisco. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/
File:The_Bodhisattva_Avalokiteshvara.jpg . Acesso em: 28 abril. 2020.

46 Frentista em posto de gasolina em Lagos


Lordside0007, Petrol Pump Attendant in Lagos, 2016. Wikimedia
Commons. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:-
Petrol_attendant_in_Lagos.jpg . Acesso em: 28 abril. 2020.

46 Esquilo
Toivanen, T.; Toppila, T., A little European squirrel (Sciurus vulgaris)
sitting on bench, 2006. Wikimedia Commons. Disponível em: https://
commons.wikimedia.org/wiki/File:Kurre10.jpg . Acesso em: 28 abril.
2020.

54 O Buda reclinado
Arps, P., Reclining Buddha on Phnom Pros Hill. Kompong Cham,
Cambodia, 2011. Flickr. Disponível em: https://www.flickr.com/pho-
tos/slapers/6720107463 . Acesso em: 28 abril. 2020.

67 O Buda Daibutsu (o Buda Amitabha)


Beyer, D., Buddha Daibutsu (Amitabha Buddha). Kamakura, Japan,
Wikimedia Commons. Disponível em: https://commons.wikimedia.
org/wiki/File:Kamakura_Budda_Daibutsu_front_1885.jpg. Acesso em
28 abril 2020.
 ILUSTRAÇÕES 239

71 A Terra Pura do Buda Amida


Taima Mandala, 1750, The Metropolitan Museum of Art, Nova
York. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/
search/45594?sortBy=Relevance&ft=Taima+Mandala&off-
set=0&rpp=20&pos=1. Acesso em: 28 abril 2020.

73 Palácio de Guru Rinpoche em Zangdokpalri, a Montanha


Cor de Cobre
Palácio de Guru Rinpoche em Zangdokpalri, a Montanha Cor de
Cobre, cortesia de Orgyen Tobgyal Rinpoche, Bir, Himachal Pradesh.
Disponível em: http://levekunst.com/a-chariot-for-knowledge-holders/
Acesso em: 28 abril. 2020.

75 Tara Verde
Anônimo, Old Green Tara, século XIII. Wikimedia Commons. Dis-
ponível em: https://nl.wikipedia.org/wiki/Bestand:Old_Green_Tara.
JPG Acesso em: 28 abril. 2020.

77 Costumes funerários japoneses: o cortejo se dirige ao templo


Aquarela, 1880 (?). Wellcome Collection. CC BY. Disponível em:
https://wellcomecollection.org/works/uv8v8udx Acesso em: 28 abril.
2020.

83 Das Zeichen des Bundes


Reproduzida de: Augsburger Wunderzeichenbuch, 1552 (?). Wiki-
media Commons. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/
wiki/File:Augsburger_ Wunderzeichenbuch_—_Folio_2_(Gene-
sis_9,_12-15)_hi_res.jpg Acesso em: 28 abril. 2020.

85 Inferno
Herrad von Hohenburg, Hortus Deliciarum – Hell, 1180. Wikimedia
Commons. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Hell#/media/
File:Hortus_Deliciarum_-_Hell.jpg Acesso em: 28 abril. 2020.
240 VIVER É MORRER

86 O fim do avarento
Rowlandson, T. The Miser’s End, 1815. Wikimedia Commons.
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/biomedical_
scraps/6860258310/in/album-72157629643695941/ Acesso em:
28 abril. 2020.

87 O reino dos animais


Gelada Baboon, 2004, Colchester Zoo. Disponível em: https://.wikipedia.
org/wiki/File:Gelada_Baboon_male.jpg Acesso em:20 abril 2020.

88 Espíritos guerreiros
Kazunobu, K., The Six Realms, Warring Spirits, em Five Hundred
Arhats, painéis 31 & 32, Arthur M. Sackler Gallery, the Smithsonian
Institution, Washington. Wikimedia Commons. Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:The_Six_Realms,_War-
ring_Spirits,_Five_Hundred_Arhats,_Scrolls_31_%26_32.jpg Acesso
em: 28 abril. 2020.

89 Contemplando nuvens
Kaicker, A., Cloud Gazing, 2016, reproduzido com a gentil permissão
do artista. Disponível em: https://www.saatchiart.com/art/Paint-
ing-Cloud-Gazing/805996/2910167/view Acesso em: 28 abril. 2020.

91 O juízo final

Vasnetsov, V., O juízo fina, 1904. Wikimedia Commons. Disponível


em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vasnetsov_Last_Judg-
ment.jpg Acesso em: 22 mar. 2020.

95 A vigília do espírito da morte (Manao tupapau)


Gauguin, P., Manao tupapau (The Spirit of the Dead Keeps Watch),
1892, Albright–Knox Art Gallery, Buffalo, NY. Wikimedia Commons.
Disponível em: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?cu-
rid=1170993 Acesso em: 28 abril. 20.
 ILUSTRAÇÕES 241

115 “A sua vida está passando”

Schulz, A., Your life is ticking away, 2018.

121 O Buda Akshobya


XVII Karmapa Ogyen Trinley Dorje, Buddha Akshobya, Kamalashila
Institute for Buddhist Studies and Meditation. Disponível em: http://
kamalashila.de/en/institute/karma-kagyu/ Acesso em: 28 abril. 2020.

122 Vajrasattva
Vajrasattva (Buddhist Deity), c. 1700 - 1799, Himalayan Art Resourc-
es. Disponível em: https://www.himalayanart.org/items/838 Acesso
em: 28 abril. 2020.

157 A Virgem Maria


Atreyu, Marpingen Maria Himmelfahrt Innen Schutzmantelmadonna,
Madona na igreja católica da Assunção, em Marpingen, distrito de
St. Wendel, Saarland. Wikimedia Commons. Disponível em: https://
de.wikipedia.org/wiki/Datei:Marpingen_Maria_Himmelfahrt_Innen_
Schutzmantelmadonna.JPG Acesso em: 28 abril 2020.

162 O Buda Shakyamuni


Di Gesu, T., Shakyamuni Buddha, reproduzido com a gentil permissão
da artista.

176 Taj Mahal


Suraj Rajiv, Taj Mahal Exterior. Agra, 2017, Wikimedia Commons.
Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Taj_Ma-
hal_Exterior.jpg Acesso em: 28 abril. 2020.

190 Uma das pequenas estátuas de Jizo no Ohara nenbutsu-ji,


Kyoto.
Gladis, C., Nenbutsu-ji jizo, Flickr. Disponível em: https://www.flickr.
com/photos/23054755@N00/304946612 Acesso em: 28 abril. 2020.
242 VIVER É MORRER

191 Jizo Bosatsu


Unkei, Seated Jizo Bosatsu, Tokyo National Museum, Wikimedia
Commons. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/w/index.
php?curid=62673122 Acesso em: 28 abril. 2020.

222 Padma Shitro Tagdrol


Reproduzida de: Patrul Rinpoche, The Words of My Perfect Teacher.
Boston, Shambala, 1998.

228 Tsa-tsas
Fotografia cedida por cortesia de Sonam Peljore, YANA Travel.
243

Notas

1   Haruki Murakami, Blind Willow, Sleeping Woman: 24 Stories. Londres,


Harvill Secker, 2006.
2   Plato. Five Dialogues: Euthyphro, Apology, Crito, Meno, Phaedo. India
napolis, Hackett Pub. Co., 2002.
3   Zhuang Zhou, também conhecido como Zhuang Zi, nasceu 369 a.C,
em Meng, atualmente Shangqiu, província de Henan, na China, e morreu em 286
a.C. “Zhuang Zhou foi um dos primeiros e mais importantes intérpretes chineses
do Daoismo. Seu trabalho intitulado Zhuangzi – também conhecido como Nanhua
zhenjing (O Clássico Puro de Nanhua) – é considerado um dos textos definitivos
do Daoismo [...].” https://www.britannica.com/biography/Zhuangzi, Acesso em: 23
mar. 2020.
4   Yoel Hoffmann. Japanese Death Poems: Written by Zen Monks and Haiku
Poets on the Verge of Death. Rutland, Vermon, Tuttle Publishing, 2018, p. 227.
Todas as citações do Japanese Death Poems de Yoel Hoffman foram reproduzidas
em acordo com a Tuttle Publishing.
5   Nāgārjuna, Nāgārjuna’s Letter to a Friend. Boston e Londres, Snow Lion, 2013.
6   Sutra Mahaparinirvana, apud: Sogyal Rinpoche. The Tibetan Book of Living
and Dying. Nova York, Harper San Francisco, 1992.
7   E.M. Forster, Howard’s End. Urbana, Illinois, Project Gutenberg. https://
www.gutenberg.org/files/2891/2891-h/2891-h.htm. Acesso em: 23 mar. 2020.
8   Dilgo Khyentse Rinpoche, The Sage who Dispels Mind’s Anguish: Advice
from the Guru, the Gentle Protector Manjushri. Primeira tradução para o inglês
de Lhasey Lotsawa Translations & Publications, 2008, para The Shravakayana – A
Collection of Teachings, compilados por Kyabgön Phakchok Rinpoche para seus
ensinamentos sobre os Nove Veículos. Revisado e editado por Lotsawa House,
2016. https://www.lotsawahouse.org/tibetan-masters/dilgo-khyentse/sage-who-
244 VIVER É MORRER

dispels-minds-anguish. Acesso em: 23 mar. 2020


9   Uma das práticas de meditação mais difundidas da linhagem teravada
tailandesa é a atenção plena da respiração (ānāpānasati), combinada com o mantra
buddho, para invocar o estado iluminado do Buda. Muitos mestres de meditação
da tradição da floresta incentivam os alunos a adotá-la como uma prática por toda a
vida e como principal apoio na hora da morte. Paravi Wongchirachai.
10   Para mais informações em inglês sobre os seis reinos, ver http://www.
rigpawiki.org/index.php?title=Six_classes_of_beings. Acesso em 23 mar. 2020.
11   Os Quatro Selos, ou Quatro Mudras – ver Dzongsar Jamyang Khyentse,
What Makes You Not a Buddhist. Boston, Shambhala Publications, 1998 [N.T.
Em português: Dzongsar Jamyang Khyentse, O que faz você ser budista? São Paulo,
Editora Pensamento, 2008].
12   Em sânscrito esta prece é conhecida como Triratna Vadana e em inglês como
In Praise of the Three Jewels [N.T. Em português, é conhecida como a Prece às Três
Joias].
13   Em sânscrito esta prece é conhecida como Sharanagaana e em inglês como
Taking Refuge [N.T. Em português, é conhecida como Refúgio].
14   Traduzido para o inglês por Rigpa Translations.
15   Shāntideva, O caminho do bodisatva, Bodhicharyāvatāra. Tradução para o
português de Manoel Vidal e Cândida Bastos. Três Coroas, Editora Makara, 2013.
16   Sânscrito: om sarva tathagata pada vandanam karomi.
17   Sânscrito: om bodhicittam utpadayami.
18   Shāntideva, O caminho do bodisatva, ..., capítulo 3, versos 23-24.
19   Yoel Hoffmann, Japanese Death Poems... p. 108. Este foi o último poema que
o mestre zen japonês, Kozan Ichikyo, 77, escreveu antes de morrer, em postura de
meditação, em 1360.
20   Tradução para o inglês do Padmakara Translation Group
21   Tradução para o inglês de Chogyam Trungpa Rinpoche, The Rain of Wisdom,
pp. 190-191, edição de Rumtek do tibetano, fol. 88A: 4 ff.
22   Tradução para o inglês de Robert Bly, The Kabir Book: Forty-Four of the
Ecstatic Poems of Kabir, Boston, Beacon Press, 1993.
23   Yoel Hoffmann, Japanese Death Poems..., p. 259.
24   Yoel Hoffmann, Japanese Death Poems..., p. 215.
 NOTAS 245

25   Sânscrito: om amrita teje hara hum. 


26  Shāntideva, O caminho do bodisatva, ..., capítulo 3, versos 18-22.
27  Yoel Hoffmann, Japanese Death Poems..., p. 341.
28  http://www.iep.utm.edu/time/#H3
29  Yoel Hoffmann, Japanese Death Poems..., p. 270.
30  A obra de Karma Lingpa The Peaceful and Wrathful Deities, The Profound
Dharma of Self-liberated Wisdom Mind (Wyl. zab chos zhi khro dgongs pa rang
grol) contém o texto intitulado Great Liberation through Hearing in the Bardo
(Wyl. bar do thos grol chen mo).
31  Em sânscrito esta prece é conhecida como Triratna Vadana e em inglês como
In Praise of the Three Jewels [N.T. Em português, é conhecida como a Prece às Três
Joias].
32  Em sânscrito esta prece é conhecida como Sharanagaana e em inglês como
Taking Refuge [N.T. Em português, é conhecida como Refúgio].
33  Tradução para o inglês de Rigpa Translations.
34  Shāntideva, O caminho do bodisatva..., capítulo 2, verso 26.
35  Yoel Hoffmann, Japanese Death Poems..., p. 287.
36  As “cinco práticas para a iluminação sem meditação” são: liberação por meio
da visão, liberação por meio da audição, liberação por meio do paladar, liberação
por meio do toque e liberação por meio da lembrança ou pensamento. Disponível
em: https://www.rigpawiki.org/index.php?title=Five_practices_of_enlightenment_
without_meditation.
37  Shāntideva, O caminho do bodisatva..., capítulo 6, verso 21.
38  Yoel Hoffmann, Japanese Death Poems..., p. 81 
39  Yoel Hoffmann, Japanese Death Poems..., p. 103.

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