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A Paixão Segundo G.H.


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adaptação do romance r

de Clarice Lispector por Fauzi Arap

. \
Cenários FALAR E DESISTE. POR ALGUNS MO-
MENTOS ELA ENCARA A PLATÉIA E FI-
um canto do palco, vemos a mesada cozi- NALMENTE SE DECIDE.
nha, onde a personagem toma seu café, na
primeira cena. Mas logo mesa e objetos G. H.
deverão desaparecer, quando a ação se ... estou procurando, estou procurando. Estou
transfere para o quarto da empregada, tentando entender, tentando dar a alguém o que
onde acontece a maior parte da história. vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com
O quarto poderá dispor de paredes mó- o que vivi, eu não sei o que fazer do que vivi, eu
veis, capazesde ilustrar a viagem alucinatória da tenho medo dessadesorganização profunda.
personagem. E o armário do quarto, com sua Não quero me confirmar no que vivi, na
barata invisível, também deverá ser mais que re- confirmação de mim eu perderia o mundo
alista, permitindo assim algum truque ou reve- como eu o tinha, e sei que não tenho capacida-
lação que acompanhe plasticamente o desenro- de para outro.
lar dos fatos, ou da "ausência de fatos". Eu não compreendo o que vi. E nem
Durante o processo vivido por G. H., a mesmo sei se vi, já que meus olhos acabaram
luz deverá pontuar toda a viagem. A certa altu- não se diferenciando da coisa vista. Só por um
ra, poderá revelar, ao longe, o deserto e os es- átimo experimentei a morte, a fina morte que
combros que formam o horizonte da visão que me fez manusear o proibido tecido da vida, e
a personagem tem da janela do quarto, e que durante as horas de perdição eu tive a coragem
emoldura parte de sua experiência. de não compor nem organizar. E tive a cora-
gem sobretudo, de não prever. Minhas previsões
sempre tiveram o tamanho de meus cuidados,
Cena 1 - A Procura elas sempre me fechavam o mundo. Até que por
horas,eu desisti.E por Deus, tive o que eu não
A LUZ REVELA UMA MULHER INQUIE- gostaria.
TA, CUJAS INICIAIS sAo G. H. ELA PA- Eu vi. Sei que vi porque não dei ao que vi
RECE BUSCAR O QUE DIZER, PENSA EM o meu sentido. Sei que vi - porque não enten-

Fauzi Arap é ator e dramaturgo.

I.
A Paixão Segundo G H

do. Seique vi - porque para nada serveo que vi que vi. O que vi arrebenta com a minha vida
e agoravou saberreconhecerna facecomum de diária. E eu vou ter que ter a coragem de usar
t algumaspessoasque elas esqueceram.E nem um coração desprotegido e ir falando assim...
sabemmais que esqueceramo que esqueceram para o nadae para ninguém... como uma crian-
Como é que se explica que o meu maior ça pensapara o nada. E correr o risco. Serápre-
medo sejaexatamenteo de ir vivendo o que for ciso coragempara dizer e me arriscar à enorme
sendo?Como é que seexplica que eu não tole- surpresaque vou sentir com a pobrezada coisa
re ver, só porque a vida não é o que eu pensava dita. E eu vou ter logo de acrescentar:Não! Não
e sim outra - como se anteseu tivessesabido o é isso, não é bem isso! Mas é preciso também
queera? E porque é que ver é uma tal desorga- não ter medo do ridículo, eu que sempreprefe-
i nização? E uma desilusão. Mas desilusão de ri o menos ao mais também por medo do ridí-
quê?...Talvezdesilusãosejao medo de não per- culo. Que eu tenha coragemde resistir à tenta-
tencermais a um sistema. ção de inventar uma forma, e a coragemde dei-
j Até agoraviver erajá ter uma idéia de pes- xar que essaforma se forme sozinhacpmo uma
soae nessapessoaorganizada eu me encarna- crostaque por si mesmaseendurece,a nebulo-
~; va...e nem ao menossentia o grandeesforçode sa de fogo que se esfriaem terra.
".'
?j construçãoque era viver. Ontem, no entanto, Vou criar o que me aconteceu.Só porque
~-. eu perdi, durante horas e horas essaminha vivernãoé relatável.Viver nãoévivível.Eu vou
j "montagemhumanà'... ter que criar sobrea vida. E sem mentir. Criar,
; O que eu era antes,não era bom. Mas sim,mentir não.Criar nãoé imaginação,
é cor-
enquantoeu vivia presa,seráque eu estavacon- rer o granderisco de seter a realidade.Entender
tente?Ou havia, e havia sim, aquelacoisason- é uma criação,meu único modo. Eu vou preci-
sae inquieta, aquela coisa latejando, a que eu sar com esforçotraduzir sinaisde telégrafo,tra-
estavatão habituada que eu pensavaque latejar duzir, e semsequerentender para que valem os
I eraseruma pessoa.E não é ? É! É também,é sinais.E falar nessalinguagemsonâmbulaque
) também... seeu estivesse acordadanãoserialinguagem.
Mas é que eu não sei que forma dar ao Os sinais de telégrafo. O mundo eriçado
queme aconteceu.E sem dar uma forma, nada de antenas,e eu captando o sinal. Essacoisaso-
I meexiste.E - sea realidadeé mesmo que nada brenatural que é viver. O viver que eu havia do-
existiu?! Quem sabe nada me aconteceu?Só mesticadopara torná-lo familiar.
I posso
compreender
o queacontece
massóacon-
~ tece o que eu compreendo - queseido resto?
i O restonão existiu. Quem sabenada existiu?! Cena Dois - O Quarto da Empregada
Talvez o que me tenha acontecido seja
uma compreensão- e que, para eu ser verda- Naquela manhã, antes de entrar no quarto da
deira, tenho que continuar a não entendê-Ia. empregada,o que é que eu era?Era o que os
I
, Todacompreensãosúbita se parecemuito com outros sempreme haviam visto ser, e assimeu
i umaagudaincompreensão.Não. Toda compre- me conhecia.Poucoa pouco eu havia me trans-
I ' ensão~úbita é fin~mente a revelaçãode uma fo~madona pessoaque tem o ~eu nome. E aca-
1 ~' :guda Incompreens~o.Tod? momento de achar bei send~o meu n.ome.~ s~~~ientever no cou-
.,; e um perder-sea Si próprio. Talvez me tenha ro das minhas valisesas iniCiaiSG. H., e pron-
j;~? acontecidouma compreensãotão total quanto to! Tambémdosoutroseu nãoexigiamaisque
1; umaignorância,e delaeuvenhaa sairintocada isso.Além do maisa psicologianuncame inte-
! e inocentecomoantes. ressou.Ter feito esculturaduranteum tempo,
:I Escuta,vou ter que falar porque não sei o também me dava um passadoe um presente,o
7 que fazerde ter vivido. Pior ainda: não quero o que fazia com que os outros sesituassem.
,c

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sala preta r
Foi ontem. Eram quasedez horas da ma- despenhadeiroo engolira em silêncio. Depois
nhã, e há muito tempo meu apartamento não me dirigi ao corredor escuroque finaliza o apar-
me pertencia tanto. No dia anterior, a empre- tamento, onde na sombra, duas portas se de-
gada se despedira.Da mesa onde me demorei frontam: a da saídade serviço e a do quarto de
porque tinha tempo, eu olhava em torno en- empregada.
quanto meus dedos arredondavamo miolo do Abri a porta. Há cercade seismeses- o
pão. O mundo era um lugar. Que me servia tempo que ela ficara comigo - eu não entrava
para viver: no mundo eu podia ficar ali colando ali. Esperavaencontrar escuridões,me prepara-
uma bolinha de miolo na outra, e assim com ra para ter que abrir a janela e limpar com ar
prazerir formando uma pirâmide. Não ter em- frescoo escuro mofado. O que eu não contara
pregada,ia me dar o tipo de atividade que eu é que ela, sem me dizer nada, tivessearrumado
queria: o de arrumar. Sempregosteide arrumar, o quarto à suamaneira, e numa ousadiade pro-
suponho que estaseja a minha única vocação. prietária o tivesseespoliado de sua função de
Ordenando ascoisas,eu crio e entendo ao mes- depósito. Em vez da penumbra confusa,esbar-
mo tempo. Na semanapassadaeu me diverti rei na visão de um quarto que era um quadrilá-
demais, freqüentei demais, tive por demais de tero de branca luz. (ELA FRANZE OS
- tudo o que quis, e desejavaagoraaqueledia exa- OLHOS, E TENTA PROTEG~-LOS COM
tamente como ontem ele seprometia: pesadoe UMA DAS MÃOS) Dois dos seus ângulos
bom e vazio. O prazerde arrumar a casame era eram ligeiramente mais abertos,e embora fosse
tão grande,que ainda sentada,eu já começaraa essaa ~uarealidadematerial, ela me vinha como
ter prazerno mero planejar.Começariapelo fim se fosseminha visão que o deformasse.Duran-
do apartamento: o quarto da empregadadevia te seismeseso sol permanentehavia empenado
estarimundo, cheio de trapos,malasvelhas,jor- o guardaroupa de pinho, e desnudavaem mais
nais antigos e papeisde embrulho. branco ainda asparedescaiadas.E foi numa de-
Levantei-meenfim da mesado café, essa Iasque vi o inesperadomural. Na paredecontí-
mulher... e atravesseia cozinha que dá para a gua à porta - e por issoeu ainda não tinha visto
áreade serviço.Ali, na área,me encosteià mu- - estavadesenhado,quaseem tamanho natu-
rada para acabarde fumar. Olhei pra baixo: tre- ral, o contorno a carvão de um homem nu, de
ze andarescaiam do edifício. Eu não sabiaque uma mulher nua, e de um cão, que era mais nu
tudo aquilo já fazia parte do que ia acontecer. do que um cão.Nos corposnão estavadesenha-
O bojo do edifício era como uma usina. A mi- do o que a nudez revela,a nudez vinha apenas
niatura da grandezade um panorama de gar- da ausênciade tudo o que cobre. Eram os con-
gantase canyons.Eu olhava a vista, como sees- tornos de uma nudez vazia. O traço era grosso,
tivesseno pico de uma montanha, com o mes- feito de ponta quebradade carvão.
mo olhar inexpressivode minhas fotografias.Eu E eu sorri... constrangida.Eu estavapro-
via o que aquilo dizia: aquilo não dizia nada. E curando sorrir. A lembrançada empregadaau-
eu recebiacom atençãoessenada.Aquilo tudo senteme coagia.Quis me lembrar de seu rosto
era de uma riqueza inanimada que lembrava a e não consegui- de tal modo ela acabarade me
da natureza:também ali, porque não?também excluir de minha própria casa- e olhando aque-
ali poder-se-iapesquisarurânio e dali poderia le desenho,de repente me ocorria que ela me
jorrar petróleo. odiara. O tempo todo, me odiara! De súbito,
Jogueio cigarro acesopara baixo, e recuei, deixei vir a mim uma sensaçãoque durante
esperandoque nenhum vizinho me associasse aquelesseismeses,por negligênciaou desinte-
ao gesto proibido pela portaria. Depois, com resse,eu não me deixarater: a do silenciosoódio
çuidado, avancei apenasa cabeçae olhei: não daquela mulher. O que me surpreendia é que
podia adivinhar sequeronde o cigarro caíra, o era uma espéciede ódio isento, o pior ódio: o

I" j
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indiferente. Não um ódio que me individuali- gar nos ombros - o quê?.. O que, Santo Deus?
zassemasapenasa falta de misericórdia. Não suportavacarregaro quê?
, Havia anos que eu só era julgada pelos Eu ainda não sabiaque já estavahavendo
.. meusparese pelo meu próprio ambiente, que os primeiros sinaisem mim do desabamentode

em suma,eram feitos de mim e para mim mes- cavernassubterrâneas,que ruíam sob o pesode
ma. A empregada,Janair, era a primeira pessoa camadasarqueológicasestratificadas- e o peso
I realmenteexterior de cujo olhar eu tomava do primeirodesabamento
abaixava
oscantosde
consciência.Eu me perguntei também sena ver- minha boca, e me deixavade braçoscaídos.Eu
dadenão fora eu... se não fora eu, que sem se- olhava com repulsa e desalento.É que apesar
quer a ter olhado, a odiara daquelaforma. de já ter entrado no quarto, eu parecia ter en-
: Eu hesitava à porta. A simplicidade do trado em nada. Mesmo dentro dele, eu conti-
aposentome desnorteava:na verdade eu não nuava de algum modo do lado de fora. Como
saberiasequerpor onde começar,ou mesmo se seelenão tivessebastanteprofundidade para me
haviao que arrumar. O quarto me incomodava caber e deixassepedaçosmeus no corredor, na
fisicamentecomo se no ar tivessepermanecido maior repulsãode que eu já fora vítima: eu não
o som do riscar do carvão na cal seca.O som cabia.E eu não sabiapor onde começara arru-
inaudível do quarto era como o de uma agulha mar. O quarto não tinha um ponto que se pu-
rodando no disco quando a faixa de música já dessechamar de começo,e nem um ponto que
acabou.Um chiado neutro de coisa era o que pudesseserconsideradoo fim. Era de um igual
fazia a matéria do seu silêncio. Carvão e unha que o tornava"indelimitado. Eu esquecio rotei-
sejuntando, carvão e unha, tranqüila e com- ro de arrumaçãoque eu traçara, e procurei me
pactaraiva daqu~lamulher que era a represen- apossarum pouco mais daquele...daqueleenor-
tante de um silêncio, como se ela representasse me vazio.
um paísestrangeiro,a rainha africana.E que ali
~' dentro de minha casasealojara, a estrangeira,a
f inimiga indiferente. Cena Três - A Barata
I Hoje mesmo aquilo tudo teria que ser
r~ modificado. (DE FORMA INCONCLUSA Abri um poucoa portado guarda-roupa
e o es-
VAI INDICANDO AS Aç6ES QUE PRE- curo de dentro escapou-secomo um bafo.Ten-
TENDE EXECUTAR) A primeira coisaque eu tei abrir um pouco mais, masa porta ficou pre-
faria seriaarrastarpara o corredor aspoucascoi- sa pelo pé da cama onde esbarrava.Dentro da
sasde dentro. E então jogaria no quarto vazio brecha eu pus o quanto cabia do meu rosto, e
baldese baldesde água.E depois, depoiseu co- como o escuro de dentro me espiasse,ficamos
briria aquelecolchãode palha com um de meus assim,um instante, nos espiandosem nos ver-
próprios lençóis que tem minhas iniciais bor- mos. Eu não conseguiaver nada, só sentir o
dadas, um lençol lavado, mole, limpo... Mas cheiro quente e seco como o de uma galinha
~ antesraspariada paredeo carvão,desincrustan- viva.Empurreia camamaisprapertodajanela,
do a facao cachorro, apagandoa palma exposta e conseguiabrir a porta uns centímetrosa mais.
das mãos do homem, destruindo a cabeçape- Então, antes de entender, meu coração
quenademaispara o corpo daquelamulherona embranqueceucomo cabelosembranquecem.
nua. E jogaria águae águaque escorreriaem rios De encontro ao rosto que eu puseradentro da
pelo raspadoda:parede.Eu queria matar algu- abertura, bem próximo de meusolhos, na meia
ma coisa ali. Como te explicar?Eis que de re- escuridão,movera-sea baratagrossa.Meu grito
I penteaquelemundo inteiro queeu era,crispa- foi tãoabafado,quesópelosilênciocontrastan-
va-sede cansaço,e eu não suportavamais carre- te percebi que não havia gritado. O grito ficara
me batendo dentro do peito.

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sala preta

Nada, não foi nada! procurei me apazi- relutante foi aparecendo.Até chegarquasetoda
guar. Eu não esperavaque numa casaminucio- à tona da abertura do armário. Era parda, era
samentedesinfetadacontra o meu nojo por ba- hesitantecomo se fosseenorme de peso.Estava
ratas,aquele quarto tivesseescapado.Não fora agora quasetoda visível. Abaixei os olhos, ten-
eu quem repelira o quarto, como havia sentido tando esconderda barata a astúcia que me to-
à porta. O quarto, com suabaratasecreta,é que mara - o coraçãome batia quasecomo numa
me repelira. E agoraeu entendia que a baratae alegria.O medo me aprofundavatoda. Voltada
Janair, a empregada,eram os verdadeiroshabi- para dentro de mim, como um cegoauscultaa
tantes daquele lugar. Não, eu não arrumaria própria atenção,eu estremecide extremo gozo,
nada- sehavia baratas,não. A nova empregada atentando à grandezade um instinto que era
que dedicasseseuprimeiro dia de serviçoa... a... ruim, total e infinitamente doce - como se en-
(ELA PENSA EM SAIR) Ao tentar a saída,tro- fim eu experimentasse,e em mim mesma,uma
pecei entre o pé da cama e o guarda-roupa- e grandezamaior que eu. Eu me embriagavapela
foi o que me revelou que eu estavacom medo. primeira vez de um ódio límpido, e me embria-
Aquelasfigurasdemãoespalmada eramvigiasà gavacomo desejo,justificadoou não,dematar.
entrada de um... sarcófago.Do sarcófago,sim! Toda uma vida de atenção - há quinze
E me ocorreu que eram "eles",eles,os do sarcó- séculoseu não lutava, há quinze séculoseu não
fago que me impediam de sair. Paraconseguir, matava,há quinze séculoseu não morria - toda
eu teria que fechar a porta! Minha mão rápida uma vida de atençãoacuadareunia-seagoraem
quis mover-separa fechá-Iae abrir caminho - mim e batia como um sino mudo cujas vibra-
mas recuou de novo. ções eu não precisavaouvir, eu as reconhecia.
É que lá dentro a barata se movera. Fi- Como se pela primeira vez enfim eu estivesse
quei quieta. Eu tinha agorauma sensaçãode ir- ao nível da Natureza. Sem nenhum pudor, co-
remediável.Eu sabiaque tinha de admitir o pe- movida com minha entrega, sem nenhum pu-
rigo em que eu estava,mesmoconscientede que dor, comovida, grata, pela primeira vez eu esta-
era loucura acreditar num perigo inexistente. va sendo a desconhecidaque eu era - só que
Mas eu tinha que acreditar em mim - a vida desconhecer-menão me impediria mais, a ver-
toda eu estiveracomo todo mundo em perigo dade já me ultrapassara:levantei a mão como
- masagora para poder sair, eu tinha a respon- para um juramento, e num só golpe fechei a
sabilidadealucinada de ter de saberdisso. porta sobreo corpo meio emergido da barata.
Eu recuara o dorso para trás como, se Com os olhos fechadoseu tremia de jú-
mesmo na sua extrema lentidão, a barata pu- bilo. Ter matado era tão maior que eu, era da
dessedar um bote - eu já havia visto baratas altura daquele quarto indelimitado. Ter mata-
que de súbito voam, a fauna alada.Fiquei imó- do abria a securadasareiasdo quarto até a umi-
vel, calculando, atenta, eu estavatoda atenta. dade, enfim, como se eu tivessecavadoe cava-
Em mim um sentimento de grande esperaha- do com dedosduros e ávidos até encontrar em
via crescido,e uma resignação:É que nestaes- mim um fio bebível de vida que era o de uma ~
peraatentaeu reconheciatodasasminhas espe- morte.
ras anteriores, eu reconheciaa atençãode que Abri devagaros olhos, em doçura agora,
também antesvivera, a atençãoque nunca me em gratidão e timidez, num pudor de glória. E
abandonae que em última análisetalvez sejaa vi a metadedo corpo da baratapara fora da por-
coisa mais colada à minha vida - quem sabe ta. Mas viva! .

aquelaatençãonão era a minha própria vida? Hesitei em compreender,foi só aospou-


Foi então que a barata começou a emer- cos que percebi que eu não havia empurrado a
gir do fundo. Antes o tremor anunciante das porta com bastanteforça. Havia prendido, sim,
antenas.Depois, atrás dos fios secos,o corpo a barata,masela continuavaviva. Faltavaainda,

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A PaixãoSegundoG. H.

então, um golpe final. Ergui a mão bem alto dade. Era isso?- era isso,então! É que na bara-
como se meu corpo todo, junto com o golpe ta viva eu descobriraa identidade de minha vida
do braço, também fosse cair em peso sobre a mais profunda.
porta do guarda-roupa.Mas foi então... foi en- Eu senti com susto e nojo que "eu ser"
tão que vi a carada barata. vem de uma fonte muito anterior à humana, e
Era uma cara sem contorno. As antenas com horror, muito maior que a humana.Abriu-
saiamem bigodes dos lados da boca. A boca seem mim, .com uma lentidão de portas de pe-
marrom era bem delineada. Os finos e longos dra, abriu-seem mim a larga vida do silêncio, a
bigodesmexiam-se lentos e secos.Seusolhos mesmaque estáno sol parado,a mesmaque está
pretosfacetadosolhavam. Era uma barata tão na barata. E que seráa mesmaem mim! Se eu
velhacomo um peixe fossilizado. Era uma ba- tiver coragemde abandonar...abandonarmeus
rata tão velha como salamandrase quimeras e sentimentos?Seeu tiver coragemde abandonar
grifos e leviatãs.Ela era antiga como uma len- a esperança.
da. Olhei a boca: lá est;1vaa boca real. Eu nun- - Perdoaeu te contar tudo isso, mas eu
catinha visto a boca de uma barata.Eu na ver- não quero isso pra mim, eu não quero ser uma
dade,eu nunca tinha mesmo visto uma barata. pessoaviva! Tenho nojo e maravilhamento por
Só tivera repugnânciapela sua antiga e sempre mim, lama grossalentamente brotando.
presenteexistência- Mas nunca a defrontara, Eu sei, os regulamentose asleis, é preciso
nem mesmoem pensamento.E eis que eu des- não esquecê-los,é precisonão esquecerque sem
cobria que, apesarde compacta, ela é formada regulamentose leis também não haverá a or-
decascase cascaspardas,finas como asde uma dem,é precisonão esquecere defendê-lossem-
cebola,como se cada uma pudesseser levanta- pre, para nos defendere para nos proteger.Mas
dapelaunha, e no entanto sempreaparecemais é que eu já não podia mais me amarrar.A pri-
uma casca,e mais uma. Talvez as cascasfossem meira ligação já se tinha partido, e eu me des-
asasas,masentão ela devia ser feita de camadas pregavada lei, e mesmo intuindo que eu iria
e camadasfInas de asascomprimidas até formar entrar no inferno da matériâViVâ- eu rinhâ que
aquelecorpo compacto.Olhei-a com aquelasua ir. Eu tinha que cair na danaçãode minha alma.
bocae seusolhos: pareciauma mulata à morte. A curiosidademe consumia...
Mas os olhos eram radiosose negros.Olhos de Então abri de uma só vez os olhos! E vi
noiva.Cada olho em si mesmopareciauma ba- em cheio a vastidão indelimitada do quarto,
rata. O olho franjado, escuro,vivo e desempo- aquelequarto que vibrava em silêncio, labora-
eirado.E o outro olho igual. Duas baratasin- tório do inferno.
crustadasna barata, e cada olho reproduzia a
" baratainteira.
Ali estava eu boquiaberta diante do ser Cena Quatro - O Quarto Desconhecido
empoeiradoque me olhava- e o que eu via com
um constrangimentotão penosoe tão espanta- O quarto, o quarto desconhecido.Minha
do e tão inocente, o que eu via era a VIDA me entradanele sefizera,enfim. A entradasó tinha
olhando. Como chamar de oUtro modo aquilo uma passageme estreita: pela barata.A barata
horrível e cru, matéria prima e plasmaseco,que que enchia de vibração enfim aberta, as vibra-
ali estava,enquanto eu recuavapara dentro de çõesde seusguizosde cascavelno deserto.Atra-
mim em náuseaseca,eu caindo séculose sécu- vésdela, eu chegaraà profunda incisãona pare-
los, dentro de uma lama - era lama, e nem se- de que era aquele quarto - e a fenda formava
quer lama já seca,mas lama ainda úmida e ain- um amplo salãonatural. Nu, como preparado
da viva, era uma lama onde se remexiam com para a entrada de uma só pessoa.E na minha
lentidão insuportável asraízesde minha identi- grande dilatação, eu estavano deserto. Como
,

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sala preta ~'

!
te explicar?Eu estavano deserto como nunca É que eu, numa experiênciaque não que-
estive. Era um deserto que me chamavacomo ro nunca mais,numa experiênciapelaqual peço I
um cântico monótono e remoto chama. Eu es- perdão a mim mesma, eu estava saindo do
tava sendoseduzida.E ia para essaloucura pro- MEU mundo e entrando NO MUNDO. Eu ,
missora. E eu sinto que estou indo. Estou de não estavamais me vendo, estavaeraVENDO.
novo indo para a mais primária vida divina, es- Toda uma civilizaçãoque sehavia erguido, ten-
tou indo paraum infernodevidacrua...Eu sin- do comogarantiaquesemistureimediatamen- ,
to quetudo issoé antigoe amplo,sinto no hie- te o que sevê com o que se sente,toda uma j
róglifo da barata lenta a grafia do Extremo civilizaçãoque tem como alicerceo salvar-se..., j
Oriente. E nessedeserto de grandesseduções, dessacivilização só pode sair quem tem como
ascriaturas:eu e a barataviva. função especiala de sair: a um cientista é dadaa
A vida, meu amor, é uma grandesedução licença,a um padreé dadaa permissão.Mas não
onde tudo o que existeseseduz.Aquele quarto a uma mulher que nem sequertem asgarantias
que estava deserto e por isso primariamente de um título.
vivo. Eu chegaraao nada,e o nadaeravivo...e E eu fugia,eu queriafugir, com mal estar .i

úmido. eu fugia.
Foi então - foi então que lentamente Sevocê soubesseda solidão dessesmeus
como de uma bisnagafoi saindo lenta a matéria primeiros passos.Não se pareciacom a solidão
da barata que fora esmagada.A matéria era o de uma pessoa.Era como seeu já tivessemorri-
seu de dentro, a matéria grossaesbranquiçada, do e dessesozinhaos primeiros passosem outra
lenta, cresciapara fora como de uma bisnagade vida. E era como se a essasolidão chamassem
pasta de dentes. Diante de meus olhos enoja- de glória, e também eu sabiaque era uma gló-
dos e seduzidos,a forma da barataia semodifi- ria, e tremia toda nessaglória divina primária
cando à medida que ela engrossavapara fora. que, não só eu não compreendia,como profun-
Grite! Grite! me ordenei quieta. Grite! re- damente não queria, porque eu sabiaque esta-
peti inutilmente... Mas seeu gritasseuma só vez va entrando na bruta e crua glória da natureza.
que fossetalvez nunca mais pudesseparar. Se Seduzida, eu no entanto lutava como podia
eu gritasseninguém poderia fazermais nadapor contra asareiasmovediçasque me sorviam: mas
mim... Enquanto se eu nunca revelar a minha cadamovimento que eu fazia para "não, não!", I
carêncianinguém seassustarácomigo e me aju- cadamovimento mais me empurravasemremé-
darão sem saber.Mas só enquanto eu não as- dio... Não ter forças para lutar era meu único
sustarninguém por ter saídodos regulamentos. perdão.
Mas sesouberem,seassustam,nós que guarda- Dentro de mim eu já recuaratanto que
moso grito em segredoinviolável.Seeu der o minhaalmaseencostara na parede- sempoder t
grito dealarmedee~tarviva,em mudeze dure- me impedir, se~ q~erermais fu~ir, fascinad~ I

za me arrastarão,pOISarrastamos que saempara pela certeza do Ima que me atraIa, eu recueI t


fora do mundo possível,o ser excepcionalé ar- dentro de mim até a paredeonde eu me desco-
rastado, o ser gritante. Tudo se resume feroz- bri incrustada no desenhodaquelamulher. Eu
mente em nunca dar um primeiro grito - um recuaraaté a medula de meus ossos,meu últi-
primeiro grito desencadeiatodos os outros, o mo reduto. Onde, na parede,eu estavatão nua
primeiro grito ao nascerdesencadeiauma vida, que não faziasombra.E asmedidas,asmedidas
seeu gritasseacordariamilhares de seresgritan- ainda eram as mesmas,eu senti que eram, eu
tes que iniciariam pelos telhados um coro de sabiaque nunca passaradaquelamulher na pa-
gritos e horror. Se eu gritassedesencadeariaa rede,eu era ela. O que me aliviavacomo a uma
existência- a existênciade quê?A existênciado sede,enfim o corpo, embebido de silêncio, se
mundo. apaziguava,e o alívio vinha de eu caber no

~ -
A Paixão Segundo G.H.

desenho mudo da caverna. Tão dentro dele brancame olhava. Não sei seela me via, não sei
comonum desenhohá trezentosmil anosnuma o que uma baratavê. Mas ela e eu nos olháva-
caverna. mos, e também não sei o que uma mulher vê.
E eis que eu cabiadentro de mim, eis que Mas seseusolhos não me viam, a existênciadela
eu estavaem mim mesmagravadana parede.A me existia - no mundo primário onde eu en-
passagem estreitafora pela barata difícil. E ter- trara, os seresexistemos outros como modo de
minara também eu, toda imunda, por desem- severem. E nessemundo que eu estavaconhe-
bocaratravésdela para o meu passadoque era o cendo, há vários modos que significam ver: um
meu contínuo presentee o meu futuro contí- olhar o outro sem vê-Io, um possuir o outro,
nuo - e que hoje e sempre está na parede, e um comer o outro, um apenasestarnum canto
meusquinze milhões de filhas, desdeentão até e o outro estar ali também: tudo isso também
eu, também lá estavam. significa ver. A barata não me via diretamente,
E eu compreendi que minha vida sempre ela estavacomigo. A barata não me via com os
fora tão continua quanto a morte. A vida é tão olhos mas com o corpo.
contínua que n6s a dividimos em etapas,e á - Nunca, até então a vida me havia
uma delaschamamosmorte. Eu sempreestive- acontecidode dia. s6 nasminhas noites é que o
ra em vida, pouco importa que não eu propria- mundo se revolvia lentamente. S6 que, aquilo
mente dita, não isso a que convencionei cha- que aconteciano escuroda noite, também me
mar de eu. Sempre estive em vida. Eu corpo aconteciaao mesmo tempo nas minhas pr6pri-
neutro de barata, eu com uma vida que final- as entranhas,e o meu escuronão se diferencia-
mentenão me escapapois enfim a vejo fora de va do escuro de fora, e de manhã, ao abrir os
mim - eu sou a barata, eu sou minha perna, e olhos, o mundo continuava sendouma superfí-
sou meus cabelos,e sou o trecho de luz mais cie: a vida secretada noite em brevese reduzia
brancano reboco da parede- sou cada pedaço na bocaao gostode um pesadeloque some.Mas
infernal de mim - a vida em mim é tão insis- agora a vida estavaacontecendode dia. Inegá-
tente que se me partirem, como a uma lagarti- vel e paraservista.A menosque eu desviasse os
xa, os pedaçoscontinuarão estremecendoe se olhos. E eu ainda poderia desviaros olhos.
mexendo.Sou o silêncio gravado a parede,e a - Mas é que o inferno já me tomara,
borboletamais antiga esvoaçae me defronta: a meu amor, o inferno da curiosidademalsã.Eu
mesmade sempre.De nasceraté morrer é o que já estavavendendoa minha alma humana, por-
eu me chamo de humana, e nunca propriamen- que ver já começaraa me consumir em prazer,
te morrerei. eu vendia o meu futuro, eu vendia a minha sal-
A parte coisa, matéria do Deus, é forte vação,eu nos vendia.
demaise tinha estado esperandopara me rei- Eu nunca havia experimentadoessecho-
vindicar. Ela pode solaparuma vida: se não lhe que com o momento chamado "já". Hoje me
for dada a força dela mesma,então ela rebenta exigehoje mesmo.Eu nunca souberaantesque
como um dique rebenta- e vem pura, semmis- a hora de viver também não tem palavra.A hora
tura nenhuma: puramente neutra. A vida esta- de viver que é um ininterrupto lento rangido
va se vingando de mim, e a vingança consistia de portas que se abrem continuamente de par
apenasem voltar, nada mais. em par e nunca param de seabrir...
Mas isso não é a eternidade,é a danação! E finalmente, meu amor, sucumbi. E tor-
(ELA QUE TINHA SE ENCOSTADO NA nou-se um agora. Era finalmente agora. Era
FIGURA DA MULHER, SE AFASTA) simplesmenteagora.Era assim:o paísestavaem
SantaMaria, Mãe de Deus, eu ofereçoa onze horas da manhã. Superficialmente como
minha vida em troca de não serverdadeaquele um quintal que é verde,da mais delicadasuper-
momento de ontem. A barata com a matéria ficialidade. Verde, verde - verde é um

.
~
sala preta

quintal. Entre mim e o verde, a água do ar. A de tudo o que deixara atrás dos portões. E tal-
verde águado ar. Vejo tudo atravésde um copo vez eu já soubesseque, a partir dali, não haveria I
cheio. Nada seouve. No restoda casa,a sombra mais diferença entre mim e a barata. Nem aos I
está toda inchada. A superficialidade madura. meus próprios olhos nem aos olhos do que é !
São onze horas da manhã no Brasil. É agora. Deus. Eu sabiaque entrar não é pecado,mas é r
I

Trata-seexatamentede agora.Agora é o tempo arriscado como morrer. Sentia que o meu de


inchado até os limites. Onze horasnão tem pro- dentro, apesarde matéria fofa e branca, tinha
fundidade.Onzehorasestácheiodasonzeho- no entantoa forçaderebentarmeurostodepra- I
rasaté asbordasdo copo verde. O tempo freme ta e beleza,adeusbelezado mundo. Pois o que !
como um balão parado. O ar fertilizado e ar- eu estavavendo era ainda anterior ao humano.
fante. Até que num hino nacional a badalada E dei meus primeiros passosno nada, abando-
dasonze e meia corte asamarrasdo balão.E de nando minha vida e indo em direção à... Vida.
repentenós todos chegaremosao meio dia. Que A vibração do calor era como a de um
seráverde como agora. oratório cantado,só minha parte auricular sen-
Acordei de repente e não compreendi tia... Cântico de boca fechada, som vibrando
onde tinha ido parar o oásisverdeonde por um surdo como o que estápresoe contido, amém, \
momentoeu me refugiaratodaplena.Agoraeu amém,amém.Aqueleoratórioquenãoerapre- \
estavano deserto, de vez. E não é só no ápice ce, ele não pedia nada. Era um cântico de ação
de um oásis que é agora: agora também é no de graçaspelo assassinatode um ser por outro
deserto, e pleno. Era já. Pela primeira vez na ser. Olhei pra cima, pro teto, e descobri que
minha vida tratava-seplenamente de agora. E com o jogo de feixesde luz, ele searredondarae
estaé a maior brutalidade, pois a atualidadenão se transformara numa abóbada. E a vastidão
tem esperançae a atualidade não tem futuro: o dentro do pequeno quarto foi aumentando, o
futuro seráexatamente
de novo uma atualida- mudo oratórioo alargava
emvibraçõesatéa ra- t
de. (ENQUANTO DIZ ESTE ULTIMO chadura do teto. E era com alegriainfernal que í
TRECHO, A LUZ DA PLATÉIA SE ACEN- eu como que ia... morrer.
DE AOS POUCOS, TERMINANDO POR Não posso fazer nada por você, barata.
REVELAR O PÚBLICO DIANTE DELA, Não quero fazer nada por você! Não vou fazer
QUANDO ELA DIZ:) Era assim. Era já. (A nada por ti, também eu ando de rojo. Não vou
LUZ CAI PARA QUE A NOVA CENA SE fazernada por ti porque não sei mais o sentido
INICIE.) de amor como antes eu pensavaque sabia...
também disso estou me despedindo, já quase
não sei mais o que é, já não me lembro! Não sei
Cena Cinco - No Seio da Natureza mais o sentido. Eu, que chamava de amor a mi-
nha esperançade amor. Talvezeu acheum ou-
Mas eu queria aquilo, mesmo sem compreen- tro nome, tão mais cruel a princípio, e tão mais
der... eu queria! E eu quero o tempo presente ele-mesmo.Ou talvez não ache.
que não tem promessa,que é, que estásendo. Por um instante, então senti uma espécie
Este é o núcleo do que eu quero e temo. Este é de abaladafelicidadepor todo o corpo, um hor-
o núcleo que eu jamais quis. rível mal estar feliz em que as pernasme pare-
Eu senti que meu passomal-assombrado ciam sumir, como sempreem que eram tocadas
era irremediávele que eu estavapouco a pouco asraízesde minha identidade desconhecida.Eu
abandonandoa minha salvaçãohumana. E eu já não queria fazernada pela baratae fui me li- i
sei, eu sabia,que se atravessasse
os portões que bertando de minha moralidade - embora isso ;
estãosempreabertos,entraria... no seio da na- me dessemedo, e curiosidadetambém, e fascí-
tureza.Eu senti que tinha que desistir de tudo, nio,... e medo, muito medo. Seela não estives-

If~~'*i
111
A Paixão Segundo G. H.

sepresae fossemaior que eu, com neutro pra- E atravésdessalembrança, a estranheza


ler ocupadoela me mataria. Assim como o vio- do quarto se tornou reconhecível,como maté-
lento neutro de sua vida admitia que eu, por ria já vivida. Eu reconheci a familiaridade de
nãoestarpresae por ser maior que ela, que eu a tudo. As figuras na parede,eu asreconhecicom
matasse.Essaera a espéciede tranqüila feroci- um novo modo de olhar, e também reconhecia
dadeneutra do desertoonde estávamos.Eu es- vigília da barata.A vigília dela eravida vivendo,
tavaali, quieta, e sabendoo que é precisar,um vida vivendo, a minha própria vida vigilante se
precisarnovo e semnenhuma piedadepelo meu vivendo. Eu não poderia mais me escusarale-
precisar
e sempiedadepeloprecisarda barata. gandoque não conheciaa lei - pois conhecer- I

A barata me tocava toda com seu olhar see conhecerao mundo é a lei, que mesmoinal-
negro,facetadoe brilhante. E agoraeu começa- cançável,não pode ser infringida, e ninguém i
va a deixá-Iame tocar. Na verdade, eu sempre pode escusar-sedizendo que não a conhece.
lutei, a vida toda, contra o profundo desejode Pior: a baratae eu não estávamosdiante de uma
medeixarsertocada- e lutava porque não con- lei a que devíamosobediência: nós duas, nós
seguiame permitir a morte daquilo que eu cha- éramosa própria lei ignorada a que obedecía-
mavade bondade.Mas agoraeu não queria mais mos. O pecadorenovadamenteoriginal é este:
lutar.Tinha que existir uma bondade tão outra tenho que cumprir a minha lei que ignoro, e se
quenão separeceriacom bondade.Eu não que- eu não cumprir a minha ignorância, estareipe-
ria mais lutar. Com nojo, com desespero,com cando originalmente contra a vida.
coragem,eu cedia. Ficara tarde demais,e agora De vez em quando, por um leve átimo, a
eu queria. barata mexia as antenas.E os seusolhos conti-
Penseique seo telefone tocasse,eu preci- nuavam monotonamente a me olhar, os dois
sariaatender e estariasalva.Mas me lembrei... ovários neutros e férteis.
como se fossea lembrança de um mundo ex- - Mãe, eu só fiz querer matar, masolha
tinto, me lembrei que havia desligadoo telefo- só o que eu quebrei: quebrei um invólucro!
ne.Tive o desejode me refugiar no argumento Matar também é proibido porque se quebra o
de que meusombros eram de mulher... Mas eu invólucro duro e fica-secom a vida pastosa.De
bem sabiaque não é só a mulher, qualquer um dentro do invólucro está saindo um coração
tem medo de ver o que é Deus. Eu tinha medo grossoe branco e vivo como pus, mãe, bendita
da facede Deus, eu tinha medo de minha nu- soisentre asbaratas,agorae na hora destatua...
dezfinal na parede. minha morte.
(A LUZ REALÇA A FIGURA DO HO- (ELA SE DIRIGE AO PÚBLICO) Eu
MEM NA PAREDE:)- Há muito, muito tem- sei,eu sei,é ruim, é ruim ficar semar nessamina
po, fui desenhadacontigo numa caverna,e con- desabadapara onde eu te trouxe sem piedade
tigo nadei de suasprofundezasescurasaté hoje por ti - masjuro que eu vou te tirar ainda vivo
- eu era o petróleo que só hoje jorrou, quando daqui - nem que eu minta, nem que eu minta
uma negraafricaname desenhouna minha casa, o que meus olhos viram. Não procura me en-
me fazendo brotar de uma parede,sonâmbula tender,faz-meapenascompanhia. Ontem eu só
como o petróleo que enfim jorra. E me lembrei rezavapara poder pelo menos escaparviva. E
quando beijara teu rosto de homem, devagar, não apenasviva - como estavaapenasviva aque-
devagarbeijara, e quando chegarao momento Ia barata primariamente monstruosa- mas or-
de beijar teus olhos - senti sal em minha boca, ganizadamenteviva como uma pessoa.
o sal de lágrimas. E no fundo do fundo do sal, Então uma nuvem cobriu o sol e vi o
tua substânciainsossae inocente e infantil. Ao mesmoquarto, não escuro,masapenassemluz.
meu beijo tua vida mais profundamente insípi- Então percebique ele existiapor si mesmo,que
da me foi dada. ele não era o calor do sol. O quarto era em si

_.8I_i._. --", 8.111:


--
saia preta

mesmo. E eleeraa altamonotoniadeumaeter- a respiraçãocontínuado mundo é aquilo que


nidade que respira.E issoamedronta,o mundo ouvimos e chamamosde silêncio.
só não amedronta quando a gente passaa ser o Não foi usando como instrumento ne-
mundo. Quem é o mundo, não tem mais nhum de meusatributos que eu fui atingindo o
medo... Se a genteé o mundo, acaba sendo misteriosofogo mansodaquiloque é um plas-
movida por um delicado radar que guia. ma - foi exatamentetirando de mim todos os
A nuvem passoue o sol no quarto ficou atributos e indo apenascom minhas entranhas
ainda mais branco e de súbito, a vibração in- vivas. E para entrar nessacoisamonstruosaque
tensado oratório parou! O meu medo era ago- é essaneutralidadeviva, eu tive que abandonar
ra diferente: não o medo de quem ainda vai en- a minha organizaçãohumana. Meu único con-
trar, maso medo tão mais largo de quem já en- solo era saberque mesmo que eu não pudesse
trou. Medo da minha falta de medo mais sair, mesmo assimo plasma de Deus con-
Paraescaparda vida, há muito que eu ha- tinuaria presentena minha vida.
via abandonado o ser pela persona, a máscara O neutro, entende?O neutro. Estou fa-
humana. Ao me ter humanizado, eu me havia lando do elementovital que liga ascoisas.Não,
livrado do deserto.Me havia livrado, sim, mas... eu não receio que não compreendas,mas que
também o perdera.E perderatambém asflores- eu me compreendamal. Seeu não me compre-
tas e perdera o ar, e perdera o embrião dentro ender,morrerei daquilo de q';1eno entanto vivo.
de mim. O neutro é inexplicável e vivo, procura me en-
- Me dá a tua mão, porque não sei mais tender, assimcomo o protoplasma e a proteína
do que estou falando. Acho que inventei tudo, são de um neutro vivo, e eu me sentia incapaz
nada disso existiu!... Mas se inventei o que on- de sertão real quanto a realidadeque estavame
tem me aconteceu - quem me garante que alcançando. f
também não inventei toda minha vida anterior Porqueeu estavasendolevadapelo demo-
a ontem? níaco. Pois o inexpressivoé diabólico. Sea pes-
soanão estivercomprometida com a esperança,
ela vive o demoníaco.Se a pessoativer a cora-
CenaS ei5 - O Neut ro gem de largar os sentimentos, descobre a ampla
vida de um silêncio extremamenteocupado, o .
Eu estou tentando te dizer como chegueiao mesmoque existena barata,o mesmonosas- :

neutro e ao inexpressivode mim. Não sei sees- tros, o mesmo em si próprio - o demoníacoé
tou entendendo o que falo, estou sentindo - e ANTES do humano. E sea pessoavê essaatua-
receio muito o sentir, pois sentir é apenasum lidade, ela sequeima como sevisseDeus.A vida
dos estilos de ser. Estou tentando te contar pré-humana divina é de uma atualidade que
como entrei no inexpressivoque semprefoi mi- queima.
nha buscacegae secreta.De como entrei na- Vou te dizer:é que eu estavacom medo ~

quilo que existeentre o número um e o núme- de uma certaalegriacegae já feroz que começa- !
ro dois,decomovi a linha demistérioe fogo,e va a me tomar.E a meperder.Eu estavaexperi- I.

que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de mentando naqueledesertoo fogo dascoisas.Eu t
músicaexisteuma nota, entredoisfatos,existe estavavivendoda tessiturade queascoisassão f.

um fato,entredoisgrãosdeareia,por maisjun- feitas.E eraum infernoaquele,porquenaquele f


tos que estejamexiste um intervalo de espaço, mundo onde eu estavanão existepiedade nem r
existe um sentir que é entre o sentir - nos in- esperança. .

terstícios da matéria primordial estáa linha de Eu entrara na orgia do sabá.Agora sei o


mistério e fogo que é a respiraçãodo mundo, e que se faz no escurodas montanhas em noites
de orgia. Eu sei!Eu sei com horror: gozam-seas
t
f

I-
i
A Paixão Segundo G. H.

coisas.Frui-se a coisade que sãofeitas as coisas sas.As vezesmeus olhos se cansavamdo lago
- esta é a alegria crua da magia negra. Eu ia azul que talvez não passasse
de um pedaço de
avançandoe sentia a alegria do inferno. E o in- céu e iam repousarno desertonu e ardente,que
ferno não é a tortura da dor! É a tortura de uma pelo menosnão tinha a durezade uma cor.
alegria.Eu estavatoda nova, como uma recém- Ah, eu quero voltar pra casa,eu pedi, eu
iniciada. Era como se antes eu estivesseestado quero voltar! Ali eu não teria nenhum momen-
com o paladarviciado por sal e açúcar,e com a to de escuridãoe lua, só o braseiro,o vento er-
alma viciada por alegriase dores - e nunca ti- rante, e nem um cantil de água e nenhuma va-
vessesentido o gosto primeiro. E agorasentiao silha de comida. Mas quem sabeno fim de tudo
gostodo nada. Velozmenteeu me desviciava,e eu não faria um achado?Quem sabe...um cáli-
o gosto era novo, novo como o de leite mater- ce de ouro? (QUASE EM SEGREDO, COMO
no que só tem gosto para boca de criança. E SE FOSSE LOUCA) Pois era isso!Era isso!Eu
agoraeu sei que sentir este gosto, este gosto, estavaprocurando... um tesouro!
dessequasenada,é a alegriasecretados deuses... (AINDA EM SEGREDO E UM POU-
e é a mais primeira alegria. CO LOUCA) O Rio, uma cidade de ouro e
pedra, cujos habitantes ao sol eram seiscentos
mil mendigos. E o tesouro poderia estar numa
Cena Sete- O Império do Presente das brechas do cascalho, mas qual, qual delas?
Para encontrá-lo eu teria que escavar,cavocar,
O sol estavaainda mais branco e mais fervida- escavarmuito. E precisariade instrumentos -
menteparado, devia ser mais de meio dia. Pro- picaretas,pás,cento e cinqüenta pás,e também
curei escancararmais a janela já toda escancara- molinetes, mesmo que eu não soubessepropri-
da, eu procurava respirar. Olhei pela janela. E amente o que era um, e também de vagõespe-
vi, com a falta de compromisso de quem não sadoscom eixosde açoe de uma forja, sim, por-
vai contar nem a si mesmo.Vi, como quem ja- tátil, além de...de pregos...ebarbantes.E para
mais precisará entender o que viu. Daquele minha fome, eu contaria com tâmaras,tâmaras
quarto escavadona rocha de um edifício, eu via de dez milhões de palmeiras, além de amen-
a perder-sede vista, a enorme extensãode te- doins e azeitonas.
lhados.Dali, eu contemplavao império do pre- Então me lembrei que os nômadescha-
sente.Além dasgargantasrochosas,a favelaso- mam o Saarade - o país do medo, o Nada! E
bre o morro e uma cabra lentamente subindo. pensei no Mar Negro, e nos persasdescendo
Mais além, os planaltos da Ásia Menor. Através pelos desfiladeiros,mas também nisso encon-
dasoutrasjanelase nos terraçosde cimento, um trei apenasas infinitas sucessões de séculosdo
vaivémde sombrase pessoas,os primeiros mer- mundo. Eu via a vastidãodo desertoda Líbia, e
cadoresassírios.Reis,esfinges,e leões- eis a ci- diante dela eu já era capazde ver ao longe Da-
dade onde vivo, e tudo extinto. Sobrei, presa masco,a mais velha cidade da terra.
por uma daspedrasque desabaram. (TOTALMENTE DELIRANTE E
Eu era talvez a primeira a pisar naquele QUASE INFANTIL) O Sol está tanto no de-
castelono ar. Há cinco milhões de anostalvezo serto da Líbia quanto ele estáquente nele mes-
último troglodita tivesseolhado deste mesmo mo. E a terra é o sol, como é que não vi antes
ponto. Outrora deve ter existido aqui uma que a terra é o sol?
montanha, que depois de erosada se tornou E no desertoda Líbia, baratase crocodi-
uma áreavazia onde depois de novo se tinham los... Eu só tenho nojo do rastejarde crocodilos
erguido outras cidades que por sua vez se ti- porque não sou um crocodilo. Tenho horror do
nhamerosado.E o chão é hoje povoadopor to- silêncio cheio de escamas,mas o nojo me é ne-
dasestasraças,as mais diversas.As mais diver- cessárioassimcomo a poluição das águasé ne-

.
sala preta

cessáriapara procriar-seo que estánaságuas.O de e da tua. Pensávamosque era uma solenida- .


i

nojo me guia e me fecunda. Através do nojo, de de forma. E sempredisfarçávamoso que sa-


vejo uma noite na Galileia. bíamos: que viver é sempre questão de vida e
E então vai acontecer- numa rocha nua morte, daí a solenidade... Mas quando se foi
e secado desertoda Líbia - vai acontecero amor torturada atésechegara serum núcleo... Quan-
de duas baratas.Eu agorasei como é. Uma ba- do a pessoachega a ser o próprio núcleo, ela
rata espera.Vejo o seusilêncio de coisaparda. E não tem mais divergências.Assim como parase
agora - agora estou vendo outra barata avan- ter o incensoo único meio é queimar o incen-
çando em direção à rocha. Sobre a rocha, cujo so, então ela é a solenidadede si própria e ela
dilúvio há milênios já secou,duasbaratassecas. não tem mais medo de servir... O ritual não é
Uma é o silêncio da outra. Os matadoresque se mais exterior, o ritual é inerente. Mesmo a ba-
encontram: o mundo é extremamenterecípro- rata tem o seu ritual na sua célula. O ritual -
co. A vibração de um estrídulo inteiramente acreditaem mim porque acho que estou saben-
mudo na rocha, e nós que chegamosa hoje, ain- do - o ritual é a marca de Deus. E cadafilho já
da vibramos com ele. - Eu me prometo para nascecom o seu.O único destino com que nas-
um dia estemesmo silêncio, eu nos prometo o cemosé o do ritual. Eu chamava"máscara"de
que aprendi agora.Só que para nós terá que ser mentira, e não era! Era a essencialmáscarada
de noite, pois somos seresúmidos e salgados, solenidade.Paranos amarmos,tínhamos de por
somosseresde águado mar e de lágrimas. as máscaras!Os escaravelhosjá nascemcom a
Eu juro, eu juro! Eu juro que é assim o máscaracom que secumprirão. Pelopecadoori-
amor. Eu sei só porque estivesentadaali e esta- ginal, nós... perdemosa nossa.
va sabendo.Foi preciso a barata me doer tanto Olhei: a barata era um escaravelho!Ela
como seme arrancasssem asunhas- e entãonão toda era apenasa sua própria máscara.Através
suportei mais a tortura e confessei,e estoudela- da sua profunda ausênciade riso eu percebiaa
tando. Sevocê puder saberatravésde mim, sem suaferocidadede guerreiro. Ela era mansa,mas
antesprecisarsertorturado, semantesserbipar- sua função era feroz. (HESITA) Eu sou mansa
tido pela porta de um guarda-roupa,sem antes mas minha função de viver é feroz. Ah, o amor
ter quebradosos seusinvólucros de medo que pré-humano me invade. Eu estou entendendo,
com o tempo vão secandoem invólucros de pe- eu estou entendendo. A forma de viver é um
dra - se você puder...então aprende de mim, segredotão secretoque é... o... rastejamentosi-
que tive que ficar toda expostae perder todasas lencioso de um segredo.
minhas malascom suasiniciais gravadas. Ah, seeu pudessete transmitir a lembran-
E agora olhando a barata eu já sabia.Eu ça, só agora viva, do que nós dois já vivemos
estiverao tempo todo semquererpensarno que sem saber.É que, quando amávamos,eu não
já realmente pensara: que a barata é comível sabia que o amor estava acontecendo muito
como uma lagosta,a barataé um crustáceo. mais exatamentequando não havia o que cha-
Me adivinha, me adivinha, porque faz mávamosde amor. O neutro do amor, era isso
frio, perder os invólucros de lagostafaz frio. Me o que nós vivíamos e desprezávamos. Estou fa-
esquentacom a sua adivinhação de mim, me lando é de quando não acontecianada, e a esse
compreendeporque eu não estou me compre- nada nós chamávamosde intervalo. Mas como
endendo, estou somente amando a barata. E é era esseintervalo?Era a enorme flor seabrindo,
um amor infernal. tudo inchado de si mesmo, minha visão toda
(DE NOVO, A LUZ ILUMINA A FI- grandee trêmula. O que eu olhava,logo secoa-
GURA DO HOMEM) Eu sei, eu sei que tens guIava ao meu olhar e se tornava meu - mas
medo, que sempretiveste medo do ritual. Nós não um coágulo permanente:se eu o apertasse
dois sempretivemos medo da minha solenida- nasmãos,ele sedesmanchariade novo em san-

1-
--"-:,0:'"
---

sala preta
-

uma vez o cavaloconduza o meu pensamento. ci meu inferno a Deus, e minha crueldade,meu
De madrugadaeu nos verei exaustosjunto ao amor, minha crueldadeparou de súbito.
regato, sem saber que crimes cometemos até Naquelasareiasdo deserto eu estavaco-
chegara madrugada.Na minha boca e nassuas meçando a ser de uma delicadezade primeira t
patasa marca do sangue.E o que foi que imo- tímida oferenda,como a de uma flor. Oh, Deus,
lamos? (RI UM POUCO LOUCA E SADI- eu comecei a entender com enorme surpresa
CA.) Ao roubar o cavalo tive que matar o Rei, que minha orgia infernal era o próprio martírio
(QUASE RI DE NOVO) e ao assassiná-Io rou- humano. Como poderia eu ter adivinhado?Se
bei suamorte! E a alegriado assassinato me con- não sabiaque no sofrimento se ria? É que não
someem prazer. sabiaque sesofria assim.Então eu havia chama-
Eu ficara enganchadapelo prazerque me do de alegriao meu mais profundo sofrimento!?
tornava apenasinfernal. Eu era agora pior do O Inferno pelo qual eu passara- como te
que eu mesma.A tentação do prazer.A tenta- dizer?- fora o inferno que vem do amor. Ah, as
ção é comer direto na fonte, é comer direto na pessoaspõem a idéia de pecado em sexo.Mas
lei. E o castigoé não querer mais parar e comer como é inocente e infantil essepecado,o infer-
a si próprio, comer-sea si próprio que sou ma- no mesmo é o do amor. Amor é a experiência
téria igualmente comível. Provação.Agora en- de um perigo maior - é a experiênciada lama e
tendo o que é. Provação:significa que a vida está da degradaçãoe da alegria pior. Sexoé o susto
me provando, massignifica que eu também es- de uma criança.Eu tivera que não dar valor hu-
tou provando. E provar pode se tornar numa mano à vida para poder entender a largueza,
sedecada vezmaisinsaciável.Eu queriacomer muito maisquehumana,de Deus.Eu tinha ar-
a mim mesma, que também sou matéria viva riscado minha alma, e exigido ver Deus, e ago-
do sabá. ra estavacomo que diante Dele e não enten-
dia... (ELA SE DESESPERA:)
- Me deram tudo, e olha só o que é
tudo! é uma barataque é viva e que estáa mor-
Cena Oito - O Segredodo Mundo te. Olha só o que é tudo: é um pedaçode coisa,
é um pedaçode ferro, de saibro, de vidro. Olha
Só a misericórdia do Deus poderia me livrar. pelo que lutei, para ter exatamenteo que eu já
Mas eu não compreendia o que Ele queria de tinha antes,rastejeiaté asportas seabrirem para
mim, não compreendia!Ou seráque Ele queria mim, as portas do tesouro que eu procurava:e
que eu fosseseuigual?E que a Ele me igualasse olha o que era o tesouro! Um pedaçode metal,
por um amor de que eu não era capaz?Um um pedaçode cal de parede,um pedaçode ma-
amor tão grandeque seria...como seeu não fos- téria feita em barata.
se mais uma pessoa? (SE ACALMA EM PARTE, SE CON-
Esperapor mim, eu vou te tirar do infer- TROLA.) Desde a pré-história eu havia come-
no a que desci. Ouve, ouve: pois do regozijo çado a minha marchapelo deserto,e semestre-
sem remissão,já estavanascendoem mim um Ia pra me guiar, só a perdição me guiando, só o
soluço que mais pareciade alegria.Não era um descaminhome guiando - até que, quasemor-
soluço de dor, eu nunca o ouvira antes:era o de ta pelo êxtasedo cansaço,iluminada de paixão,
minha vida separtindo pra me procriar. E o que eu enfim encontrarao escrínio.E no escrínio,a
é que eu podia oferecerde mim? - eu, que esta- faiscarde glória, o segredoescondido.O segre-
va sendo o deserto, eu, que o havia pedido e do mais remoto do mundo, opaco, mas me ce-
tido. Eu ofereciao soluço. Chorava enfim den- gando com a irradiação de sua existênciasim-
tro de meu inferno. E no soluço, o Deus veio a pIes, ali, faiscandoem glória que me doía nos
mim, o Deus me ocupavatoda agora.Eu ofere- olhos. Minha exaustãose prostrava aos pés do

I.
A f'aixão Segundo G. H:

pedaçode coisa, adorando infernalmente. O Escuta. Eu estavahabituada somente a


segredoda força era a força, o segredodo amor transcender.Esperançapara mim era adiamen-
era o amor - e a jóia do mundo é um pedaço to. Eu nunca havia deixado minha alma livre e
opacode coisa.O segredodos faraós.E por cau- me havia organizado depressaem pessoapor-
sa dessesegredoeu quase dera a minha vida. que é arriscadodemais perder-sea forma. Mas
Mais, muito mais: para ter essesegredo, que vejo agorao que na verdadeacontecia:eu tinha
mesmoagoraeu continuava a não entender,de tão pouca fé que havia inventado apenaso fu-
novo eu daria a minha vida. turo, eu acreditavatão pouco no que existeque
Eu arriscarao mundo em busca da per- adiava a atualidade para uma promessae para
gunta que é posterior à resposta.Uma resposta um futuro. Mas descubroque não é sequerne-
que continuava secreta,mesmo ao ser revelada cessárioter esperança.É muito mais grave.
a pergunta a que ela correspondia. Eu não ha- Ah, sei que estou de novo mexendo no
via encontrado uma respostahumana ao enig- perigosoe que deveriacalar-mepara mim mes-
ma. Mas muito mais, oh, muito mais! Encon- ma. Não se deve dizer que a esperançanão é
trara o próprio enigma. Viver a vida em vez de necessária,pois isto pode vir a se transformar,
viver a própria vida, é proibido! Entrar na ma- já que sou fraca,em arma destruidora. E para ti
téria divina, essepecadotem uma punição irre- mesmo, em arma utilitária de destruição. Eu
mediável...A tentaçãopode fazer com que não poderia não entender,e tu poderiasnão enten-
se passepara a outra margem... Ah, eu odeio, der que prescindir da esperança- na verdade,
eu odeio o que conseguiver. Eu não quero esse significa ação,e hoje.
mundo feito de coisa. O presenteé a facehoje do Deus. O hor-
E porque não ficar dentro, sem tentar ror é que sabemosque é em vida mesmo que
atravessar?Ficar dentro da coisa é a loucura. vemos Deus. É com os olhos abertos mesmo
Não, eu não quero ficar dentro, senãominha que vemos Deus. E se adio a face da realidade
humanizaçãoanterior que foi tão gradual, vai para depois de minha morte - é por astúcia,
passara não ter mais sentido! Esperapor mim, porque prefiro estar morta na hora de vê-Io e
eu sei que estou indo para alguma coisaque dói assim penso que não O verei realmente, assim
porqueestouperdendo outras - masesperaque como só tenho coragem de verdadeiramente
euainda continue um pouco. Disso tudo, quem sonhar quando estou dormindo.
sabepoderá nascerum nome! Um nome sem Eu sei que o que eu estou sentindo é gra-
palavra, mas que talvez enraíze a verdade na ve e pode me destruir. É como se eu estivesse
minha formação humana. me dando a notícia de que o reino dos céusjá é.
Ouve, por eu ter mergulhado no abismo E eu não quero o reino dos céus,eu não o que-
é que estoucomeçandoa amar o abismo de que ro, só agüento a sua promessa!Pois prescindir
sou feita. A identidade pode se tornar perigosa da esperançasignifica que eu tenho que passar
por causado intenso prazer que pode se tornar a viver, e não apenas a me prometer a vida,
apenasprazer.Mas agoraestou aceitandoamar como um adulto que não tem coragem de ver
a coisa!E não é perigoso, juro que não é peri- que já é adulto e continua a se prometer a ma-
goso.Poiso estadode graçaexistepermanente- turidade. Toda minha luta fraudulenta vinha de
mente: nós estamossempresalvos.Todo mun- eu não querer assumira promessaque se cum-
do estáem estadode graça.A pessoasó é fulmi- pre: eu não queria a realidade.Poisserreal é as-
nada pela doçura quando percebeque estáem sumir a própria promessae assumir a própria
graça,sentir que seestáem graçaé que é o dom, inocência.
e poucos arriscam a .conhecerisso em si. Mas Ah, meu amor, as coisassão muito deli-
não há o perigo de perdição, agoraeu sei: o es- cadas.A gente pisa nelascom uma pata huma-
tado de graçaé inerente. na demais,com sentimentosdemais. Só a deli-

.
I
,
- - f
sala preta

cadezada inocência ou s6 a delicadezados ini- mente se transforma no mesmo algo, apenas


ciados é que sente o seu gosto quasenulo. Só acrescentadode mais uma gota idêntica de tem-
que minha violência tem que ser comigo mes- po. E lembro que te disse:- Eu estou com um
ma.Tenhoquemeviolen~arparaprecisarmais. pouquinhode enjôod.eestômago.
O queé que 1.

Para que eu me torne tao desesperadamente nós vamos fazer,a noite? - Nada, respondeste i
maior que eu fique vazia e necessitadae assim tão mais sábio que eu. Nada, é feriado. Disseo i
terei tocado na raiz do precisar.Tenho que me homem que era delicado com ascoisase com o
violentar até não ter nada e precisarde tudo. tempo.
Agüenta eu te dizer que Deus não é bo- Ah, em mim toda está doendo largar o
nito. E isto porque Ele não é nem um resultado que me era o mundo. Largar é uma atitude tão
e nem uma conclusãoe tudo o que a gente acha ásperae agressivaque a pessoaque abrissea boca
bonito é asvezesapenasporque já estáconcluí- para falar em largar deveriaser presae mantida
do. Mas o que hoje é feio serádaqui a séculos incomunicável- eu mesmaprefiro me conside-
visto como belezaporque terá completado um rar temporariamentefora de mim, a ter a cora-
de seusmovimentos. Eu não quero mais o mo- gem de achar que tudo isso é uma verdade.De
vimento completado que na verdade nunca se uma coisa eu sei: daqui a pouco, eu vou, não
completa e nós é que por desejo o completa- amanhã, mas hoje mesmo, comer e dançar no t
t
mos:nãoq~erousufruir da facilidadede gostar Tob-Bambino,.estouprecisandome divertir. E !

de uma COisas6 porque estando ela aparente- vou usar o vestido azul novo que me emagrece t
mente completada, não me assustamais e en- um pouco e me dá cores,e telefono pro Car-
tão é falsamenteminha - eu, devoradora que los... Ou o Antônio? Não me lembro bem em
era das belezas.Não quero a beleza, quero a qual dos dois percebi que me queria... Ou am-
identidade. A belezaseriaum acréscimo,e ago- bos me queriam, e comereicrevettesao não im-
ra vou ter que dispensá-Ia.O mundo não tem porta o quê, e sei porque vou comer, vou co-
intenção de beleza,e isto antesme chocaria.A mer porque hoje vai ser a minha vida diária re-
coisa é muito mais que isto. O Deus é maior tomada, a da minha alegria comum. Eu vou
que a bondade com a sua beleza.Deus é o que precisarda minha leve vulgaridade doce e bem
existe e todos os contraditórios são dentro do humorada, o resto dos meusdias, eu precisoes-
Deus, e por isso não O contradizem. quecercomo todo mundo.
- E aí lembrei-me de ti, que és o mais
antigo na minha memória.Tu erasa pessoamais
antiga que eu jamais conheci. Eras a monoto- Cena Nove - Esquecer?
nia de meu amor eterno, e eu não sabia.Eu ti-
nha por ti o tédio que sinto nos feriados. Eu Esquecer...? Ah, meu Deus... Mas é que... eu...
não sabia que aprendi tanto contigo. Eu te re- eu... não contei tudo.
vejo consertandoa tomada, unindo os fios elé- Eu ainda não parara de olhar a massada
tricos, e tratando as coisascom delicadeza.Tua barata.E eu sabiaque enquanto eu tivessenojo,
energiafísica era a tua energiamais delicada..E o mundo me escapariae eu me escaparia.Eu
eu aprendi a te ver consertaruma cadeiraque- sabiaque o erro básicode viver é ter nojo. Pois
brada e a trançar os fios, com cuidado... Era fe- ter nojo me contradiz, contradiz em mim a mi-
riado. Ah, como então eu queria a dor, ela me nha matéria.Ter nojo de beijar o leprososou eu
distrairia daquele grande vácuo divino que eu errando a primeira vida em mim.
tinha contigo. Eu, a deusarepousando;tu, no Então... não pude mais me impedir e
Olimpo. Era feriado nacional, asbandeirashas- pensei o que na verdadejá tinha pensado.Eu
teadase a noite caindo... E eu não suportava estou tentando te poupar, mas não posso. De
aquela transformaçãolenta de algo que lenta- repente eu soube que chegarao momento de

III~! !
111 I
A Paixão Segundo G. H.

realmentenão transcendermais. É que a reden- vivo seprocessasse? Eu tinha que não saberque
çãodevia ser na própria coisa, e a redençãona estava,que estou viva? O segredode jamais se
própria coisa seria eu botar na boca a massa escaparda vida maior era o de viver como um
brancada barata. sonâmbulo?
Só à idéia fechei os olhos com a força de "... porque não és frio nem quente, por-
quemtrancaos dentes,e tanto apertei que mais que ésmorno, eu te vomitarei de minha boca..."
um pouco e elesse quebrariam. Minhas entra- - A frase do apocalipseme veio do fundo da
nhas diziam não! Minha massarejeitava a da memória..., a fraseque devia se referir a outras
barata.Eu não podia, eu não podia. coisasme veio, e eu... crispei minhas unhas na
Só haveria um modo: se eu dessea mim paredeE então comeceia cuspir, a cuspir furio-
mesmaum comando, um comando hipnótico, samenteaquelegosto de coisaalguma, gosto de
e entãoeu como que me adormeceria,e quan- um nadaque no entanto me pareciaquaseado-
do abrisseos olhos já "teria feito", sonambuli- cicado como o de certaspétalas de flor, gosto
camenteteria feito. de mim mesma- eu cuspiaa mim mesma,sem
I
i O suor recomeçara,os dedosmeladosdos chegarjamais ao ponto de-sentir que enfim ti-
pésescorregavamdentro do chinelo, e a raiz de vessecuspido minha alma toda.
meuscabelosamolecia àquela coisa que era o Até que meus olhos se encheram de lá-
meusuor novo, um suor que eu não conheciae grimas que só ardiam e não corriam, e eu parei
que tinha um cheiro igual ao que sai da terra espantada.Compreendi com surpresaque esta-
ressecada àsprimeiras chuvas. va desfazendotudo o que laboriosamentehavia
Avancei um passo.Mas em vez de ir adi- feito. Mas mesmo não escorrendo,as lágrimas
ante,de repentevomitei. (RI UM RISO NER- me serviam de companheiras, e como quem
vaso E DE CONSCIÊNCIA DO RIDfCU- volta de uma viagem voltei a me sentar quieta
LO.) Vomitei o leite e o pão que havia comido na cama.
no café da manhã. Desiludida comigo mesma, Entendi então que, de qualquer modo,
com minha falta de força de cumprir o gesto viver é uma grande bondade para com os ou-
quepareciasero único capazde reunir meu cor- tros. Bastaviver, e por si mesmo isto resu"ltana
po à minha alma, agora eu ia ter de agir sem a grandebondade.Quem vive totalmente estávi-
I ajuda da exaltaçãoanterior, eu havia vomitado vendo para os outros, quem vive a própria lar-
a exaltação. guezaestáfazendouma dádiva, mesmoque sua
Então avancei.Avancei, sem mais adiar, vida se passedentro da incomunicabilidade de
avancei. uma c~la. Viver é uma dádiva tão grande que
, E minha alegriae minha vergonha foi ao milharesde pessoas sebeneficiamcom cadavida
acordar do desmaio. Não, não fora desmaio, vivida.
fora mais uma vertigem, pois eu continuava de Não. Eu não precisavater tido a coragem
pé, apoiando a mão no guarda-roupa. de comer a massada barata.Entendi que eu não
Eu não queria pensar mas sabia. Tinha estavame despojandocomo os santossedespo-
medo de sentir na boca aquilo que estavasen- jam, masestavade novo querendoo acréscimo.
tindo, tinha medo de passara mão pelos lábios O acréscimoé mais fácil de amar.
e percebervestígios...e medo de olhar a barata E agora,precisoda suapresençanão para
- que agoradevia ter menosmassabrancasobre que eu não tenha medo, maspara que você não
o dorso opaco. Nunca mais eu ia saber como tenha medo. Seique acreditarem tudo issoserá,
I tinha feito - pois anteseu havia tirado de mim no começo, a sua grande solidão. Mas chegará
I a participação,eu não tinha querido saber. o instante em que você também me dará a mão
Então era assim?Alguma coisasemprete- não mais por solidão, mas como eu agora: por
ria que estar aparentementemorta para que o amor.

.
---
sala preta

Antes eu não sabiaque o que eu chamava nome. E eu também não tenho nome. E por-
de "eu" era um acréscimode mim. Mas agora, que me despersonalizoa ponto de não ter o meu
atravésde meu mais difícil espanto- estou en- nome, respondo cada vez que alguém disser:
fim fazendoo caminho inverso, e vou em dire- eu. E é exatamenteatravésdo malogro da voz
ção a destruição do que construí, e caminho que se vai pela primeira vez ouvir a própria
enfim para uma espéciede... despersonalização. mudez e a dos outros e a das coisas,e aceitá-Ia
A despersonalização como a grandeobje- como a possível linguagem. Só então minha
tivação de si mesmo, a maior exteriorizaçãoa naturezaé aceita, aceita com o seu suplício es-
que se chega.Quem se atinge pela despersona- pantado,onde a dor não é algumacoisaque nos
lização reconheceráo outro sob qualquer dis- acontece,mas o que somos. E é aceita a nossa
farce: o primeiro passoem relação ao outro é condição como a única possível,já que ela é o
achar em si mesmo o homem de todos os ho- que existe,e não outra. E já que vivê-Ia é a nos-
mens. Assim como houve o momento em que sa paixão. A condição humana é a paixão de
vi que a barata é a barata de todas as baratas, Cristo. .
assimquerodemim mesma,encontraremmim Ah, mas para se chegarà mudez, que ~

a mulher de todasasmulheres.Toda mulher é a grande esforço de voz. Minha voz é o modo I'
mulher de todas as mulheres, todo homem é o como vou buscara realidade:a realidade,antes
homemde todosos homens,e cada um deles de minha linguagemexistecomo um pensa-
poderia seapresentaronde quer que sejulgue o mento que não se pensa,mas por fatalidadefui
homem. Mas apenasem imanência, porque só
algunsatingem o ponto de, em nós, sereconhe-
e sou impelida a precisarsabero que o pensa-
mento pensa.A realidadeantecedea voz que a
t
cerem, e então, pela simples presençada exis- procura, mas como a terra antecedeà árvore,
tência deles,revelarema nossa. mas como o mundo antecedeo homem, mas
como o mar antecedea visão do mar, a vida an-
tecedeo amor, a matéria do corpo antecedeo
Cena Dez - A Paixão corpo, e por sua vez a linguagem um dia terá
antecedidoa possedo silêncio.
A despersonalizaçãocomo a destituição Eu tenho a medida que designo- e esteé
do individual inútil. Pouco a pouco tirar de si, o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu
com um esforço tão atento que não se sente a tenho muito mais a medida que não consigo
dor, tirar de si como quem se livra da própria designar.A realidadeé a matéria prima, a lin-
Aquilo de que sevive - e
pele, ascaracterísticas. guagem é o modo como vou buscá-Iae como I
por nãoter nomesóa mudezpronuncia- é dis- nãoacho.Masé do buscare nãoacharquenas- r
so que me aproximo atravésda grandelargueza ce o que eu não conhecia, e que instantanea-
de deixar de me ser. Não porque eu então en- mente reconheço.A linguagem é o meu esfor-
contre o nome e torne concreto o impalpável - ço humano. Por destino tenho que ir buscare
masporque designoo impalpável como impal- por destino volto com as mãos vazias.Mas -
pável, e então o sopro recrudescecomo na cha- volto com o indizível. O indizível só me poderá
ma de uma vela. ser dado atravésdo fracassode minha lingua- [
A gradual deseroizaçãode si mesmo é o gemoSó quando falha a construção,é que obte- f
verdadeirotrabalho que selabora sob o aparen- nho o que ela não conseguiu. t
te trabalho, a vida é uma missãosecreta.E tão E é inútil procurar encurtar caminho e
secretaé a verdadeira
vida quenema mim, que querercomeçarjá sabendoquea vozdiz pouco, j.
morro dela,mepodeserconfiadaa senha,mor- já começandopor serdespessoal.Poisexistea ~

ro sem saberde quê. Até que me sejaenfim re- trajetória, e a trajetória não é apenasum modo f
velado que a vida em mim não tem o meu de ir, a trajetória somosnós mesmos.Em maté- f

1m
-- A Paixão
Segundo
G.H.

ria de viver, nunca se pode chegar antes. A via longe. E na mais última extremidade de mim
crucis não é um descaminho, é a passagem úni- eu podia enfim sorrir sem nem ao menos sorrir.
ca, não se chega senão através dela e com ela. A O mundo independia de mim - esta era a con-
insistência é o nosso esforço, a desistência é o fiança a que eu tinha chegado: o mundo inde-
prêmio. A este só se chega quando se experi- pendia de mim, e não estou entendendo o que
mentou o poder de construir, e apesar do gosto estou dizendo, nunca! Nunca mais compreen-
f de poder, prefere-se a desistência. A desistência derei o que eu disser.Pois como poderei dizer
tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha sem que a palavra minta por mim?
mais sagrada de uma vida. Desistir é o verda-
deiro instante humano. E só esta é a glória pró- Fim.
pria de minha condição. A desistência é uma Primeira versão terminada
revelação. em 10 de dezembrode 95.
Eu estava agora tão maior que já não me Revisões em julho de 96
via mais. Tão grande como uma paisagem ao e em setembro de 200.
1

1
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