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Projeto Morada Nova
Clovis Ramiro Jucá Neto, Margarida Julia Farias de Salles Andrade, Romeu Duarte Junior e Solange Maria de Oliveira Schramm
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O arquiteto já antevia a questão fundamental do co- de determinada área dos sertões do Nordeste. Todo
nhecimento das possibilidades materiais do meio e o trabalho esteve associado ao aproveitamento dos
da participação das populações de colonos nas de- recursos de água e solo para a agricultura. A irregu-
cisões relacionadas à construção dos seus locais de laridade das chuvas e a composição dos solos, que
moradia, trabalho e lazer nos perímetros irrigados. dificultam a fixação da água pluvial, condicionaram,
Conforme Cahu e Cantalice (2018, p. 9): no âmbito do projeto, a implantação do “Plano de
Irrigação do Nordeste” e do “Planejamento de Co-
Svensson realizou um levantamento tipológico das habi- munidades Rurais”. O Plano de Irrigação, como
tações rurais, chegando à essência do abrigo humano ao
entender mais sobre a “capa de cangalha”8, a estrutura
política de desenvolvimento regional, é resultan-
mista de pau-a-pique – que se adequava muito bem ao te do “estudo do aproveitamento dos recursos do
tórrido sol do local – e as necessidades do camponês solo mais os recursos humanos aliados ao potencial
nordestino, que conduziam para uma espacialidade dife- hídrico”. Uma das primeiras ações do DNOCS no
rente daquela do camponês mineiro (onde a cozinha é o
centro da morada).
combate à seca consistiu no aproveitamento de açu-
des (NEVES, 1976).
Essa postura se materializou na proposta elaborada
por Svensson para o Projeto Irrigado do Bebedouro No Perímetro Irrigado, denominação da área ser-
– PIB, implantado em Petrolina entre 1967 e 1970 vida pelo plano de irrigação, o contingente popu-
e que servirá de norte, por seu caráter pioneiro e lacional trabalhador assentado é agrupado em nú-
inovador, para as demais iniciativas do gênero le- cleos habitacionais. De acordo com os arquitetos,
vadas a efeito no sertão nordestino. O PIB foi dividi- dever-se-iam considerar, no planejamento habita-
do em duas subáreas dimensionadas em função de cional, aspectos pedológicos (mapeamento com-
distâncias máximas a percorrer por uma população pleto dos tipos de solo); levantamento topográfico
que não dispunha de veículos, do uso das manchas localizando obras e acidentes naturais; e, o adensa-
agricultáveis e da população mínima a ser atendi- mento populacional (NEVES, 1976, p. 52). A política
da pelos serviços básicos de infraestrutura (CAHU; de adensamento é justificada em seus aspectos so-
CANTALICE, 2018, p. 10). ciais. O agrupamento condicionaria a implantação
de equipamentos que possibilitassem o aumento do
Vale destacar a estação de bombeamento d’água índice de escolaridade. Os profissionais consideram
que o arquiteto elaborou para o Bebedouro, tratada que “um maior número de famílias reduziria teorica-
de forma especialmente expressiva, por se constituir mente o número de conflitos percentuais e possibi-
em símbolo do Projeto de Irrigação. Aos princípios litaria um maior desenvolvimento individual através
da arquitetura residencial do sertão, a exemplo de da participação na resolução de problemas coleti-
adequação ao clima e sobriedade construtiva, den- vos” (NEVES, 1976, p. 52-53).
tre outros atributos, Svensson aliou a linguagem da
arquitetura moderna que então se fazia no país, O planejamento dos núcleos habitacionais é formu-
propondo a austera estrutura em concreto aparente. lado considerando-se o processo produtivo associa-
Dessa forma, utilizou o sistema construtivo em fran- do à agricultura e às demandas da comunidade, ou
co diálogo com a tradição autóctone, “resultando seja, é pensado em função das necessidades pró-
em um artefato que guarda fortes referências locais, prias de cada núcleo e de sua vinculação ao projeto
com grandes beirais e fácil leitura tipológica” e na geral de determinada região. Esses núcleos seriam
utilização “do concreto aparente como expressão de dotados de infraestrutura básica de serviços públi-
verdade e honestidade da edificação (CAHU; CAN- cos, equipamentos urbanos e obras complementa-
TALICE, 2018, p. 11). res (NEVES, 1976, p. 49).
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ção, bem como da varanda como área de grande pelo Açude Banabuiú, situado nas proximidades. O
utilização e múltiplas funções, que abrangem do la- projeto foi desenvolvido ao longo dos leitos dos rios
zer ao trabalho”. São, ainda, previstas tipologias ha- Banabuiú e Seco, entre o trecho da rodovia BR - 116
bitacionais diferenciadas para colonos, pessoal de a leste e a rotatória que leva à sede do município de
apoio, técnicos de nível médio e superior e pessoal Morada Nova a oeste.
administrativo (NEVES, 1976, p. 54).
No dizer dos seus autores, no projeto Morada Nova,
As obras dos órgãos públicos, relativas a saúde,
educação, armazenamento e abastecimento, levam conceituou-se a exploração agrícola como do tipo fami-
liar, recebendo cada colono um lote agrícola irrigado de
em consideração tanto as especificidades de cada dimensões compatíveis com a força de trabalho familiar
núcleo como as exigências do projeto global, com e que [proporcionasse] um rendimento previamente esta-
dimensionamentos condizentes com as normas dos belecido a fim de que [pudesse], além de amortizar a dí-
respectivos órgãos e com os requisitos do projeto vida do investimento inicial, dispor de um excedente que
lhe [possibilitasse] novas inversões. Além do lote agríco-
(NEVES, 1976, p.54-55). la, cada colono receberia um lote residencial com área
suficiente para abrigar a casa, estábulo, paiol e quintal
A planificação física seria tarefa de equipe mul- (NEVES; ALMEIDA, 1982, p. 158).
tidisciplinar, levando em consideração as carac-
terísticas físico-sociais da região, seus recursos e O planejamento do complexo agrícola contem-
metas. Ao arquiteto caberia a “análise das me- plava a participação direta da população-alvo
tas e objetivo do plano, interpretação de concei- das ações de desenvolvimento socioeconômico
tos abstratos e a consequente tradução espacial”. rural no processo decisório relacionado às de-
O modelo físico adotado leva em consideração finições das funções e atividades que deveriam
quatro dimensões, a saber: “Lugar – localização das compor o programa de necessidades do projeto; e, tam-
áreas a cada nível dos planos”; “Intensidade – es- bém, à escolha das áreas onde ele seria implantado.
tudo do uso do solo, densidade populacional etc.”; Segundo Neves e Almeida, seriam estas as respon-
“Movimento – circulação, transporte, fluxo de mer- sabilidades dos arquitetos envolvidos com a elabo-
cadorias etc.”; e, “Tempo – etapas de desenvolvi- ração da proposta de arquitetura e urbanismo:
mento, projeções etc.” (NEVES, 1976, p. 55).
[Projetar] um sistema habitacional nucleado interligado
por um suporte viário; qualificar e quantificar as instala-
A partir desse ideário foi pensado o Projeto de Mo- ções indispensáveis à administração, operação, benefi-
rada Nova, visando ao assentamento populacional ciamento e comercialização da produção, infra-estrutura
em perímetros irrigados dos sertões do Ceará. O básica de serviços públicos, equipamentos sociais, uni-
dades habitacionais para todos os níveis e a distribuição
complexo foi implantado em áreas dos municípios
desses serviços de maneira hierárquica de acordo com as
de Morada Nova, Quixadá e Limoeiro do Norte, necessidades de cada núcleo, e as consequentes áreas de
no vale do Rio Banabuiú, distando por rodovia 161 polarização (1982, p. 162). (Figura 1).
km de Fortaleza e 153 km de Mossoró, seus princi-
pais mercados consumidores. O território apresenta De acordo com os autores do projeto, a concepção
uma altitude média de 80 m acima do nível do mar, geral do plano arrimou-se nos seguintes critérios,
uma temperatura média de 25º C e uma pluviome- coerentes com seu propósito de evitar a dispersão e
tria média de 700 mm, o que caracteriza seu clima facilitar a coesão dos grupos sociais no desenvolvi-
como semiárido. A oferta hídrica seria garantida mento de atividades cooperadas:
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Deslocamento colono/lote irrigado não superior a 3 km; buscando a adequação do conceito agronômico aos as-
Concentração do maior número possível de famílias em pectos socioculturais dentro de uma visão de realidade
um só núcleo, respeitado o critério de deslocamento; nordestina e da dissecação das propostas importadas,
Localização em solos adequados às condições de sa- pôde-se desenvolver [...], no DNOCS, um know-how pró-
neamento e drenagem que permitam um bom índice de prio que, fazendo frente às propostas importadas, extra-
salubridade; polou os limites do próprio Departamento (1982, p. 159).
Condições de relevo compatíveis;
Proximidade de fonte de suprimento hídrico e elétrico Em linhas gerais, a política de assentamento huma-
(NEVES; ALMEIDA, 1982, p. 162).
no levada a efeito pelos jovens arquitetos do DNO-
CS fundamentou-se nos seguintes pontos:
Em termos de hierarquia urbana, a cidade de Mora-
da Nova, em razão de sua localização e dos serviços O meio rural é naturalmente disperso; dispersão leva ao
que dispunha à época, foi apontada para operar isolamento individual; o homem como ser social neces-
como centro sub-regional do projeto. O zoneamen- sita se relacionar; dispersão acarreta custos altos a partir
do instante em que se pretende levar à população ser-
to dos núcleos residenciais foi estabelecido mediante viços de qualquer natureza (NEVES; ALMEIDA, 1982, p.
a adoção de um plano diretor de uso e ocupação do 159).
solo, compreendendo cinco zonas, a saber, a Zona
Residencial de Colonos, a Zona Residencial de Pes- Merece registro o modelo de planejamento urbano
soal de Apoio, a Zona Comercial, a Zona Educa- e urbanismo desenvolvido para a conceituação e a
cional e de Atividades Sócio-Recreativas e a Zona implantação do complexo agroindustrial, completa-
de Serviços, esta ligada à produção definida pelo mente distinto das experimentações havidas à época
sistema viário básico. no campo específico. Enquanto tais experimentações
se produziam num âmbito autoritário, burocrático e
Essas premissas foram estabelecidas com vistas ao tecnocrático, guiadas por números, porcentagens e
incremento da produtividade da agricultura planeja- taxas e demais critérios abstratos, a proposta elabo-
da e irrigada, à dinamização da economia agrícola, rada para o Projeto Morada Nova, por centrar-se no
ao aumento da renda familiar, à ampliação dos ní- conhecimento da vida do homem do campo, respei-
veis de serviços ofertados à comunidade e, em médio tado como agente e parceiro do processo, na con-
prazo, ao caráter urbano dos núcleos habitacionais. sideração da relevância da criação de âncoras eco-
nômicas e sociais para o êxito do empreendimento
Em recente depoimento, o arquiteto José Alberto de e no aproveitamento respeitoso das características
Almeida detalhou a operação técnica e política que naturais e culturais do meio ambiente do semiárido
embasou, no universo dos projetos de Desenvolvi- cearense, diferia amplamente do que então se pro-
mento Hidroagrícola, a formulação do projeto de duzia, apresentando-se como um trabalho pioneiro
Morada Nova e norteou a elaboração da proposta e ousado e, por isso mesmo, de complexa e polêmi-
arquitetônica e urbanística: ca implantação.
Em 1974, eu vou para o DNOCS e começo a trabalhar
com o arquiteto Nelson Serra no projeto de irrigação Mo-
O desenho do Núcleo Habitacional do Projeto Mo-
rada Nova. [O projeto] apresenta duas questões [...]. Era, rada Nova manifesta, na relação com o entorno, no
na verdade, uma disputa de natureza ideológica entre o programa, na forma e em seus aspectos construti-
que as missões estrangeiras traziam e o que nós pensáva- vos, respeito ao modo de vida local, não impondo
mos [...]. A proposta de ocupação que traziam era o que
eles chamavam de sistema disperso. Um lote irrigado de
soluções espaciais díspares do mundo sertanejo ou
quatro ou cinco hectares com uma unidade habitacional realizando mera transposição de técnicas impor-
por lote. Então a gente começou [...] a propor um sistema tadas, alheias à região. O projeto do Núcleo traz
concentrado, porque, se você tem pessoas morando a consigo, tanto em escala territorial como urbana, do
quase um quilômetro da outra, isso não estabelece uma
relação de vizinhança, não cria uma comunidade (DUAR-
desenho urbano à arquitetura, princípios de zonea-
TE JR., 2018, p. 63).
mento, funcionalidade, o uso de tipologias residen-
ciais e respeito às tecnologias locais, aproximando
À época, o DNOCS mantinha convênios de coope- seu risco de soluções arquitetônicas e urbanísticas
ração técnica com órgãos de mesma natureza de do modernismo brasileiro.
países que desenvolviam experiências semelhantes Arquitetos dão nova dimensão aos projetos
em suas áreas rurais. Entretanto, para Neves e Al- de agrovilas9
meida, a mera replicação desses modelos estran-
geiros na realidade rural cearense não se aplicava: No Ceará, a difusão dos princípios do modernismo
arquitetônico deu-se pela atuação da primeira gera-
A importação de uma tecnologia de projeto no campo do
planejamento físico e arquitetura rural, através dos siste- ção de arquitetos que atuou no Estado, no início da
mas de consórcios internacionais, se por um lado trouxe década de 1960, tardiamente, portanto, conside-
o conhecimento da experiência de outros países, por ou- rando-se a dianteira de outros Estados do Nordeste
tro lado a sua inadequação, tanto aos aspectos sócio-cul-
do país. Com a diplomação das primeiras turmas do
turais como aos de ordem climática, levou à emissão de
conceitos errôneos, por vezes simplesmente transplantan- Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
do hábitos e utilizando materiais e técnicas construtivas Federal do Ceará – CAU/UFC, a partir de 1969,
incompatíveis. A partir da interferência do arquiteto local teve início a lenta, mas progressiva disseminação da
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arquitetura moderna pelo interior do Estado. Trata- com tecnologias mais tradicionais, merece destaque
va-se, principalmente, de obras públicas, a exemplo a busca de uma interpretação mais próxima de solu-
de agências bancárias, mercados, terminais rodoviá- ções autóctones, matizadas com consolidados prin-
rios, dentre outras realizações de distintos programas. cípios do modernismo arquitetônico. Nesse sentido,
Na publicação “Panorama da Arquitetura Cearen- podem-se citar, dentre outros, dois projetos apresen-
se” (1982), foi apresentado um quadro diversificado tados na referida publicação da Editora Projeto. A
daquelas obras, além de projetos, no campo da ar- Residência de Fazenda José Nogueira Paes (1973),
quitetura e do urbanismo, em grande parte de au- de Nicia Bormann (BORMANN, 1982, p. 28-29), re-
toria dos jovens arquitetos graduados na Escola de solvida em planta segundo a topografia e coberta
Arquitetura da UFC. Nesse texto, seja pela leitura com a ancestral solução em telhas de barro sobre
dos projetos ou do memorial que os acompanha- caibros corridos e linhas de carnaúba; e, o partido
va, há aspectos muito recorrentes na explicação do da Casa de fim de semana (1978), do arquiteto Re-
partido adotado, em obras de maior porte ou nas gis Freire (FREIRE, 1982, p. 24-25), justificado pelo
inúmeras residências apresentadas: a adequação às uso de sistemas e materiais regionais, inovando em
condições locais (a exemplo de tecnologias e mate- volumetria mais complexa, com clara setorização
riais adotados), a preocupação com custos, a recor- dos ambientes, em um diálogo entre soluções tradi-
rente atenção às condições climáticas: proteger do cionais com o traço erudito.
sol e da forte luminosidade, deixar o vento circular
livremente, fazer sombra generosa. Essa “consciência do lugar” é, também, o principal
argumento de edificações do Projeto Morada Nova,
Esses princípios, em sua essência, demonstram uma situadas bem distantes do clima mais ameno da ca-
intenção de estreita vinculação ao meio, coadu- pital cearense, na lonjura do sertão jaguaribano,
nando-se com o argumento do debate acerca da cuja riqueza construtiva e formal do partido mereceu
ideia de uma “arquitetura regional”, que terá curso destaque em subtítulo da referida matéria da Revista
na literatura especializada, na década seguinte, no Projeto, “Arquitetos dão nova dimensão aos projetos
quadro da retomada de questões que haviam sido de agrovilas”. Antes, porém, vale sublinhar o debate
descuradas no desenvolvimento e disseminação do sobre o regionalismo na arquitetura, que teve curso
movimento moderno. Entretanto, não cabe referir- na década de 1980.
-se a nenhum “movimento” ou “escola cearense”,
mas, certamente uma ação projetual abalizada pelo A ideia de uma arquitetura regional
conhecimento da arquitetura antiga do Ceará, tão
adequada aos rigores do lugar, estudada por segui- Em 1978, um ano após a publicação da Revista Pro-
das turmas de estudantes do CAU-UFC, conforme o jeto, o arquiteto Joaquim Guedes realçou qualidades
professor Liberal de Castro, enfatizando esse conhe- da produção arquitetônica cearense, considerando-
cimento da arquitetura popular: -a distinta do que denominou “arquitetura moderna
brasileira oficial”: seria uma “obra marginal”, “obra
A equilibrada visão das precárias possibilidades do meio maldita”, na contramão de uma produção arquite-
nascia do amparo crítico fornecido pelo cotidiano do cur-
so, consubstanciado (...) no estudo sistemático da notável
tônica, que, à época, instrumentalizava os princípios
arquitetura popular cearense, das velhas casas de fazen- modernistas em nome de uma arquitetura interna-
da, dos raros sobrados, dos engenhos de rapadura, das cional. Dada a escassez de publicações especializa-
casas de farinha, dos mercados sertanejos, criteriosamen- das e a afirmação de que é necessário “andar muito
te documentados em minuciosos levantamentos gráficos,
hoje contados em mais de 500 desenhos (1982, p. 15).
para reconhecer as obras respeitáveis”, é lícito su-
por que o arquiteto tomara conhecimento do Projeto
Vale mencionar que a atenção às especificidades Morada Nova:
do lugar não se limitava a arquiteturas que, por Acho que o panorama geral da arquitetura erudita, no
sua escala, natureza ou tipologia, poderiam estar Brasil, hoje, é baixo. A gente precisa andar muito para
mais próximas de exemplares da arquitetura popu- reconhecer as obras respeitáveis (...). Por outro lado, exis-
lar, mas, também, em obras de maior envergadu- te uma obra importante que vem crescendo no Brasil,
mas que tem toda a característica de obra marginal. E
ra, a exemplo do partido adotado em edifício de obra marginal, quase obra maldita, dada a excessiva
inquestionável significação para o Ceará, pela ideia importância do peso histórico-oficial que tem a chama-
de criação de uma arquitetura generosa no justo da grande-arquitetura-oficial-brasileira-moderna. Como
atendimento ao programa e integração ao meio: o este é o caminho, o resto é marginal. A gente encontra
experiências no Ceará, que são legítimas, feitas de den-
Terminal Rodoviário João Thomé, inaugurado em tro para fora, para o lugar, por gente de lá (...). E, cada
1974, projeto do arquiteto Marrocos Aragão, con- vez a gente encontra mais amigos nesta “maldição”,
cebido com a ideia de pensar no homem “dentro do mais colegas e companheiros (GUEDES, 1978, p. 213).
espaço, deixando-o inteiramente protegido, sem lhe
privar a visão do céu e da vegetação que envolve o O discurso, muitas vezes laudatório, acerca do que
prédio”. (ARAGÃO, 1982). Guedes denominou “grande-arquitetura-oficial-bra-
sileira-moderna” seria tensionado, na década de
Quanto às arquiteturas de programas residenciais 1980, com debates e revisões que o modernismo
ou de menor porte, construtivamente solucionáveis atravessava em diferentes continentes, tendo ampla
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ressonância em muitos países da América Latina10. nova e econômica, considerando ainda o emprego
A ideia de uma arquitetura regional teve guarida do saber autóctone, favorecendo a inclusão da po-
nas formulações de autores diversos11, a exemplo pulação local no processo de construção de arquite-
de Ramon Gutiérrez, asseverando a necessidade da turas surpreendentes, tanto em planta e volumetria
afirmação de especificidades locais, “respondendo quanto por serem feitas com os materiais simples da
aos problemas de nosso tempo que, necessariamen- região. A proposta, por esse viés, é bem representa-
te, não é o tempo universal, mas o tempo concreto no tiva do momento pós-Brasília então experimentado
qual vivemos, dentro de nossas circunstâncias e ca- pela arquitetura brasileira, expresso, no surgimento
racterísticas particulares” (REVISTA ARQUITETURA E das diversas escolas regionais, conforme referido,
URBANISMO, 1991, p. 34). Nessa mesma direção, as quais buscavam construir manifestações arqui-
afirmou Antonio Toca: tetônicas fundamentadas na herança modernista e
nas tradições construtivas de caráter popular.
(...) A importância do regionalismo como proposta é
aquela que tenta devolver à arquitetura moderna a con-
tinuidade, em lugar determinado, entre as formas de A escola, desenvolvida em um único pavimento tér-
construir do passado e do presente (...) implica um pro- reo, mostra-se em planta como um correr de espaços
cesso criativo que, ao mesmo tempo, está consciente dos de uso coletivo, dimensionados e destinados a fun-
avanços da tecnologia, podendo também aproveitar-se
ções diversas, concebidos com a ideia de poderem
da sabedoria popular (1990, p. 223).
abrigar usos múltiplos: “propusemos um edifício que
não tivesse setorização rígida das salas de aula, ate-
É sempre oportuno lembrar, como faz Curtis (2008), liers, oficinas, bibliotecas etc. (...) Essa pluralidade
que a arquitetura moderna, desde o seu início, sem- de funções racionaliza os espaços e permite o uso
pre interagiu com diversas culturas. Na década de total da edificação” (NEVES; ALMEIDA, p. 166). Os
1980, contudo, a velocidade e a amplitude de inter- ambientes são interligados por um alpendre recorta-
nacionalização de ideias teve, como contrapartida, do e são ancorados em um volume de serviços, for-
a preocupação com “o desarraigamento, uma sen- mado pela cantina e os sanitários. As salas de aula
sação de que o mundo estava, cada vez mais, per- são dotadas de varandas privativas. Soluções de
dendo suas raízes locais” (CURTIS, 2008, p. 655). conforto ambiental, tais como a ventilação cruzada,
Naquela década, Kenneth Frampton (1997) elabo- os altos pés-direitos, o efeito-chaminé e a presen-
rava suas reflexões acerca do “regionalismo crítico”, ça de sombras naturais e construídas no entorno da
propondo uma mútua fertilização entre os princípios edificação, retiradas diretamente das experiências
mais universais do modernismo arquitetônico com arquitetônicas populares, são aqui retomadas em
elementos autóctones das diversas culturas. chave reinterpretativa. À sua volta, espaços foram
criados para dar condições ao desenvolvimento de
No Brasil, crescia a exposição e a discussão das pro- uma modalidade de ensino voltada a uma comuni-
duções arquitetônicas regionais, a partir da disper- dade rural, compreendendo aulas ao ar livre, solá-
são pelo território brasileiro de arquitetos formados rio, horta, criação de animais (Figuras 02, 03 e 04).
nas instituições de arquitetura então consideradas Segundo Neves e Almeida, “o equipamento escolar
centrais, bem como a abertura de novos cursos de instalado foi definido como um misto rural/urbano”:
arquitetura e urbanismo em outras regiões do país.
Entretanto, cabe assinalar que a atenção às técni- Rural pelas suas características tipológicas e de progra-
cas, materiais e demais condicionantes regionais ma de ensinamento, que exige áreas para o desenvolvi-
foram preocupações constantemente presentes no mento das atividades agrícolas. Urbano pelas caracterís-
ticas dos núcleos, de razoável densidade demográfica e
desenvolvimento da arquitetura moderna brasileira,
serviços oferecidos. A necessidade de execução imediata
a exemplo da vertente inaugurada com as formu- do programa educacional e de recursos humanos, aliada
lações de Lúcio Costa, em seu esforço de legitimar às restrições de ordem econômica, levou-nos a evitar a
a arquitetura colonial, nomeadamente a de matriz concepção de edifícios para atividades específicas, pro-
gramando-se uma escola em que as relações de vizi-
popular, como substrato para o modernismo arqui-
nhança fossem uma extensão das atividades didáticas. A
tetônico no Brasil12. arquitetura deixou de se caracterizar como simples “gru-
po escolar” para se transformar num conjunto onde se
O Clube e a Escola estuda e trabalha, se conversa e passeia (1982, p.166).
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Em nossos dias, em que ascende e é amplamente recente depoimento concedido especialmente para
divulgada, em todos os quadrantes, uma arquitetura elaboração deste texto, o arquiteto José Alberto de
esvaziada da escala humana, muitas vezes caracte- Almeida, um dos autores do Projeto Morada Nova,
rizada por um formalismo estreito, pouco enraizada faz importante avaliação, assinalando, sobretudo,
no contexto do qual emerge, impõe-se a defesa de aspectos técnicos, que também revelam as limita-
uma prática que nasça do profundo conhecimento ções de nossa estrutura socioeconômica:
do lugar. Numa palavra: uma arquitetura mais ex-
Hoje, decorrido quase meio século, aspectos positivos e
pressiva em sua tectônica, em consonância com as
negativos podem ser referenciados. Algumas alterações
especificidades mesológicas e com a cultura, em seu foram inseridas por novos projetos ou modificações in-
sentido mais amplo. As edificações do Projeto Mora- troduzidas nos antigos projetos em relação ao uso de
da Nova, conforme análise apresentada, são exem- determinadas edificações. A mais importante, em rela-
ção à proposta original, em termos de conteúdo, foi a
plos da compreensão precisa dessas questões, evi-
inserção de lotes agrícolas com maior área, destinados a
denciando o entendimento que tiveram muitas das pequenos e médios empresários, relativizando a questão
realizações do modernismo arquitetônico mundial, do interesse social presente na proposta inicial.
que se plasmaram às possibilidades regionais. Nes- A aglutinação de pequenos irrigantes em núcleos habi-
tacionais com dotação de serviços básicos, âncora con-
se sentido, as suas edificações compõem, ao lado de
ceitual da proposta original, tem sido mantida, embora
outras tantas obras Brasil afora, independentemente a proposta da organização da produção em estruturas
de sua escala, muitas certamente ainda pouco estu- coletivas apresente dificuldades em se consolidar devido
dadas, um interessante acervo, formas diversas de à nossa cultura individualista.
No plano econômico, os antigos projetos implantados,
expressar a modernidade arquitetônica no país, que
cuja exploração básica é composta de arroz, feijão, mi-
não “cristalizaram” o passado, mas atualizaram o lho e subsidiariamente frutas e hortaliças, que não são
legado que recebemos da cultura popular, fertiliza- exatamente “commodities”, sofrem na mão dos chama-
do com os princípios da modernidade arquitetônica. dos “atravessadores” que ficam com a maior parte dos
ganhos da cadeia produtiva.
Uma última questão, mas não menos importante, é a
No campo do planejamento territorial rural, a pro- questão da renda familiar e suas consequências. Tínha-
posta de Morada Nova constitui-se em um projeto mos uma exploração agrícola com capacidade projetada
de desenvolvimento agrícola de caráter regional que para suportar bem uma família. Há uma questão, que é
própria da natureza humana, que é o processo reprodu-
tem como base a fixação sustentável do homem no
tivo. Com o tempo decorrido, naturalmente, uma família
campo. Àquela altura, era o mais complexo proje- se transforma em duas, três ou mais famílias, que pas-
to de planejamento urbano em desenvolvimento no sam a viver com a renda originalmente projetada para
Ceará, pela escala e ambição da proposição so- uma, levando à crescente pauperização e, no limite, à
favelização dos núcleos habitacionais.
cioeconômica e de ocupação territorial.
Levar ao campo algumas das benesses urbanas Nesse ponto, é, também, o arquiteto José Alberto
compunha o ideário dos autores do projeto Morada de Almeida que fornece o mote que intitula estas
Nova, em consonância com o ideário progressista breves considerações finais: “Louvando o que bem
alimentado pelo movimento moderno, ao reforça- merece, deixo o que é ruim de lado...”15: Apesar das
rem a ideia de uma comunidade, por meio da pro- alterações e problemas assinalados pelo arquiteto,
posição de equipamentos e implementação de me- o Projeto Morada Nova inscreve-se como uma im-
didas que favorecessem o convívio e a elevação da portante experiência de planejamento físico de um
qualidade de vida do homem vivendo no meio rural: complexo de desenvolvimento agrícola, em que os
arquitetos, integrantes de ampla equipe multidisci-
plinar, tiveram a possibilidade de exercitar o projeto
O sistema de exploração familiar; o agrupamento de nas mais diversas escalas.
famílias de origem social diversa (pequenos agricultores
assalariados rurais, meeiros etc.) em núcleos residenciais Nos dias correntes, ao contrário do que, certamen-
concentrados e de bom nível de prestação de serviços; o
aglutinamento dos irrigantes em cooperativa; a melhoria
te, supôs Vicente Wissenbach, ainda é rarefeita a
da renda através do emprego de uma tecnologia agríco- presença dos arquitetos e urbanistas nas entranhas
la moderna; as facilidades de comunicação, a influência do país, os quais tanto teriam a contribuir para o
da televisão; a absorção gradual de novos hábitos de ordenamento territorial deste quase continente. Tal
higiene; a educação levada a efeito pelas escolas; tudo
isso leva a crer na formação de uma mentalidade agríco-
panorama reforça a necessidade de lançar novas
la e de uma consciência social. Entretanto, é muito cedo luzes sobre valorosas realizações, concebidas à luz
para predizer qual será a reação dessa nova geração ao de princípios caros ao ideário modernista, seja na
fascínio urbano. Isso só o futuro dirá (NEVES; ALMEIDA, escala da cidade ou do planejamento de núcleos
1982, p. 168). populacionais rurais, ampliando a historiografia so-
bre o tema, no Brasil.
Não foi objetivo deste texto, transcorridas décadas
do momento em que os autores do projeto imagi-
naram a “formação de uma mentalidade agrícola e
de uma consciência social”, avaliar, mesmo que su-
mariamente, a consecução daqueles objetivos. Em
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ARTIGO
Projeto Morada Nova
Clovis Ramiro Jucá Neto, Margarida Julia Farias de Salles Andrade, Romeu Duarte Junior e Solange Maria de Oliveira Schramm
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Notas A carnaúba (Copernicia prunifera), também co-
nhecida como carnaubeira e carnaíba, é uma pal-
1 A Revista Projeto se tornaria o principal veículo de meira da família Aracaceae, endêmica do semiárido
divulgação da arquitetura brasileira nas duas déca- nordestino brasileiro e muito encontrada em áreas
das seguintes. alagadas. A carnaúba é a árvore-símbolo do Estado
do Ceará.
2
Arquiteto da Divisão de Urbanismo e Habitação
do DNOCS. 14 Trecho da música “Louvação”, que dá nome ao
álbum de estreia de Gilberto Gil, em 1967.
3
Arquiteto da Divisão de Estudos e Projetos da se-
15
gunda Diretoria Regional do DNOCS. Em criteriosa análise que fez do papel do IOCS
(datilografado e sem data) antiga denominação do
4 Arquiteto da Divisão de Urbanismo e Habitação DNOCS, o arquiteto valeu-se da letra da canção
do DNOCS. “Louvação”, com a ideia de ressaltar a importância
daquela inspetoria, apesar das limitações e dificul-
5
ALMEIDA (sem data, p. 9-10) destaca o artigo 44 dades diversas enfrentadas.
do Decreto no 13.687, de 19 de julho de 1919, que
instituiu o IOCS, enfatizando seu conteúdo inovador.
O autor reproduz a redação original, em que se lê: Referências Bibliográficas
“Em derredor dos grandes açudes, construir-se-hão
núcleos de populações agrícolas; habitações de ALMEIDA, J. A. A criação da Inspetoria de Obras
modo que não sejam construídas a esmo; (...) cons- Contra as Secas – IOCS. In: Revista Semiárido, v. 2,
truir-se-hão prédios que se destinem a escolas de p. 111-126, Brasília: Câmara de Deputados: ago.
ensino primário, respeitando-se os preceitos acon- 2010.
selhados pelos hygienistas” .
ARAGÃO, M. Terminal Rodoviário João Thomé. In:
6
Celso Monteiro Furtado (Pombal/PB, 1920 – Rio de Cadernos Brasileiros de Arquitetura – Panorama da
Janeiro/RJ, 2004) foi economista e professor, bem Arquitetura Cearense, v. II. p.174 e 175, São Paulo:
como membro da Academia Brasileira de Letras, Projeto Editores Associados, 1982.
além de defensor do papel do Estado na superação
do subdesenvolvimento econômico e social. BORMANN, N. Residência da Fazenda José Noguei-
ra Paes – Iracema/CE. In: Cadernos Brasileiros de
7 Frank Algot Eugen Svensson (Belo Horizonte/MG, Arquitetura – Panorama da Arquitetura Cearense, v.
1934 – Brasília/DF, 2018) graduou-se arquiteto pela II, p. 28 e 29, São Paulo: Projeto Editores Associa-
Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal dos, 1982.
de Minas Gerais, em 1962. Atuou como professor
da Faculdade de Arquitetura da Universidade de CASTRO, J. L. Ceará, sua arquitetura e seus arquite-
Brasília. Trabalhou como técnico da SUDENE entre tos. In: Cadernos Brasileiros de Arquitetura – Panora-
1963 e 1970. ma da Arquitetura Cearense, v. II, p.1-15, São Paulo:
Projeto Editores Associados, 1982.
8 Tipo de telha de cerâmica, de grandes dimensões,
feita de modo artesanal. CAHU, T. R. D.; CANTALICE, A. S. C. Por um Bruta-
lismo Social: A Obra de Frank Svensson em Pernam-
9
Subtítulo da matéria sobre o Projeto Morada Nova buco. Anais 7o Docomomo-NE, Manaus, 2018.
da Revista Projeto, ano 1, n. 2. abril/maio 1977.
CURTIS, W. Arquitetura moderna desde 1900. Porto
10 Os Seminários de Arquitetura Latino-Americana Alegre: Bookman, 2008.
(SAL) foram iniciados em 1985, com o objetivo de
fomentar o debate e valorização da produção arqui- DUARTE JR., R. Breve História da Arquitetura Cea-
tetônica Latino-Americana. rense. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2018.
11 Marina Waisman, Cristián Fernandes Cox, Alber- FREIRE, R. Casa de fim de semana. Paracurú/Ceará.
to Petrina, dentre outros autores. In: Cadernos Brasileiros de Arquitetura – Panorama
da Arquitetura Cearense, v. II, p. 24 e 25, São Paulo:
12
Francisco Bolonha, Acácio Gil Borsoi, Severia- Projeto Editores Associados, 1982.
no Porto, dentre outros arquitetos, têm sua obra
marcada por esses princípios. Nesse sentido, vale FRAMPTON, K. História Crítica da Arquitetura Mo-
mencionar o projeto para a Estação Aeroviária de derna. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Belém, de autoria de Álvaro Vital Brasil, elaborado
em 1945, com a proposta de interessante estrutura
em madeira.
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ARTIGO
Projeto Morada Nova
Clovis Ramiro Jucá Neto, Margarida Julia Farias de Salles Andrade, Romeu Duarte Junior e Solange Maria de Oliveira Schramm
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