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INSTITUTO DO EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL, IP

Educação e Formação de Adultos B3


Linguagem e Comunicação

CRÓNICA
O inferno são os outros e a Covid também

Discriminar requer um esforço que eu sou demasiado preguiçoso para fazer

Tem sido comovente assistir à coesão nacional em torno da luta contra a Covid-19. No início,
quando havia mais casos no norte do País, o sul abanou a cabeça em sinal de reprovação.
Aquela gente do norte, realmente, não sabia comportar-se. Agora, que há mais casos a sul,
no norte já se lamenta a irresponsabilidade dos sulistas. Sou um grande apreciador de
xenofobia, cujo potencial cómico me encanta. A ideia segundo a qual, por nascermos de um
lado ou do outro de um risco, adquirimos certas características sempre me pareceu
engraçada. Mas esta xenofobia inter-regional consegue ser ainda mais hilariante. É gente do
mesmo país, ainda para mais de um país muito pequeno, que arranja maneira de se
considerar superior a quem nasceu noutra freguesia, uns metros mais para baixo. Deve dar
trabalho – e esse é capaz de ser o melhor argumento contra a discriminação. Discriminar
requer um esforço que eu sou demasiado preguiçoso para fazer. A segregação tendo em
conta a cor da pele já me parece demasiado cansativa: ir buscar o Pantone, comparar a pele
do outro com a minha, determinar quantos tons de bege acima do meu é que o potencial
discriminado tem a desfaçatez de ostentar, dar o desconto para o bronzeado, no verão, e
passar a discriminar de acordo com esse cálculo, é trabalhoso. Embirrar com a área
geográfica já envolve mapas, e com isto das uniões de freguesias uma pessoa ainda dá por si
a discriminar-se a si própria, o que é aborrecido (embora, no meu caso, justificado).

O mesmo fenómeno aconteceu quando, nos primeiros meses, se dizia que os idosos não
respeitavam o dever de recolhimento. Era uma inconsciência dos idosos, dura e justamente
punidos na internet com azedos memes. Agora, vão aumentando os casos entre os jovens, e
é a inconsciência juvenil que os memes castigam. Além da geografia e da faixa etária, houve
outros pretextos para divisão. Quando os sindicatos organizaram a manifestação do 1º de
Maio, vi vários católicos a insurgirem-se contra o desrespeito pelas regras de afastamento
social. Um mês depois, a propósito do foco de infecção no Santuário de Fátima, imagino que
haja sindicalistas indignados com a incúria dos crentes. Eu, que sou uma pessoa de meia-
idade, ateu e não-sindicalizado, tenho estado muito bem. Até porque, quando havia mais
casos no norte, refugiei-me na minha qualidade de lisboeta, e agora que há mais casos no
sul, recordei a todos que a minha família é do norte. Não sou culpado de nada, o que é
excelente – e raro.

Ricardo Araújo Pereira


30.06.2020
https://visao.sapo.pt/

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