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Richard
Miskolci**
ordenação
das
letras
de
sua
sigla
colocando
o
L
à
frente.
Em
suma,
a
história
do
movimento
tem
um
enquadramento
no
qual
se
desenrolou
e
explicitá-‐lo
pode
nos
ajudar
a
definir
seus
dilemas
presentes.
Carrara,
2010.
Segundo
o
pesquisador
do
CLAM-‐UERJ,
a
luta
política
na
linguagem
dos
direitos
tem
ao
menos
duas
consequências
perigosas:
1.
O
acesso
diferencial
à
justiça
e
à
sua
aplicação
em
um
país
desigual
como
o
Brasil
pode
fazer
com
que
conquistas
“legais”
resultem
em
resultados
concretos
desiguais
e
acessíveis
apenas
a
uma
elite;
2.
A
luta
por
direitos
também
marca
a
definição
de
quem
são
sujeitos
de
direitos,
o
que
pode
resultar
em
uma
hierarquização
dos
que
são
mais
detentores
de
direitos
do
que
outros
e/ou
em
uma
estratificação
da
respeitabilidade/cidadania
a
partir
da
“identidade”
sexual.
Não
somos,
queremos
4
Richard
Miskolci
social
agora
competem
com
nov@s
atores/as
de
dentro
do
movimento
e
também
da
academia.
Associada
à
mudança
na
relação
entre
o
Estado
e
as
demandas
sociais
na
esfera
da
sexualidade,
se
dá
uma
ampliação
dos
quadros
do
movimento
social
por
meio
da
entrada
de
pessoas
com
perfis
muito
variados
e
não
afeitos
à
somatória
alfabética
do
modelo
essencializante
das
letras.
Os
“queer”,
se
tomarmos
a
perigosa
e
elusiva
classificação
a
que
me
referi
no
início,
seria
o
conjunto
formado
por
nov@s
atores/as
sem
letras;
aqueles/as
que
até
podendo
se
reconhecer
nas
letras,
cada
vez
mais
se
veem
fora
delas
devido
à
sombra
de
abjeção
que
trazem
ao
movimento
(como
as
ativistas
travestis
e
trans
crític@s
com
relação
à
medicalização)
ou
ainda,
outros,
cujo
traço
de
união
está
no
interesse
de
ascender
ao
topo
do
movimento.
Percebe-‐se
quão
numerosa
e
diversa
é
a
multidão
a
que
o
grupo
“identitário”
no
movimento
atribui
o
rótulo
simplificador
e
errôneo
de
queer.
4
Respeitando
os
que
se
compreendem
como
LGBT,
não
posso
deixar
de
alertar
para
o
caráter
de
ficção
política
existente
em
frases
como
“pessoas
LGBT”,
particularmente
quando
empregadas
para
se
referir
ao
conjunto
da
população
que
vivencia
sua
sexualidade
em
desacordo
com
as
convenções
culturais
dominantes.
Ao
empregar,
neste
contexto,
frases
como
“a
população
LGBT”,
membros
do
movimento
ou
da
academia
ontologizam
um
grupo
político
histórico
e
socialmente
delimitado
como
se
fosse
algo
acabado
e
generalizado
na
experiência
social
cotidiana.
Também
tendem,
talvez
até
mesmo
contra
sua
própria
intenção,
a
reduzir
muitas
sexualidades
a
apenas
às
oficialmente
contempladas
na
sigla
atual
do
movimento,
deixando
de
reconhecer
a
existência
de
outras,
com
singularidades
e
demandas
ainda
por
serem
reconhecidas.
Não
somos,
queremos
5
Richard
Miskolci
aqueles
que
dividiram
o
movimento
mentalmente
em
dois
grupos
antagônicos
-‐
um
dualismo:
“nós”
os
LGBT
em
oposição
ao
“eles,
os
queer”.
Tal
divisão
entre
“identitários”
e
“queer”
pouca
diferença
faz
para
o
resto
da
sociedade
brasileira,
a
qual
só
conhece
um
único
movimento,
o
atual
LGBT
e
esta
divisão
interna,
onde
ela
opera,
esconde
uma
luta
declarada
entre
os
os
estabelecidos
que
temem
perder
sua
hegemonia
e
os
supostamente
recém-‐
chegados
que
a
ameaçariam.5
O
que
está
em
jogo,
portanto,
não
é
o
que
define
o
“nós”
do
movimento
LGBT,
este
nós
condenado
historicamente
a
ser
reinventado
a
todo
momento,
mas
quais
relações
o
movimento
vai
manter
com
o
Estado
e
a
sociedade.
Os
estabelecidos
são
os
que
defendem
uma
relação
de
“parceria”
com
o
Estado,
a
qual
gerou
vitórias,
mas
também
cooptação
e
clientelismo.
Dentre
a
multidão
que
denomina
erroneamente
de
queer,
os
que
mais
temem
são
os
que
podem
propor
uma
relação
mais
crítica
com
o
Estado
e/ou
colocar
em
xeque
a
“essencialização”
identitária
na
qual
seu
modelo
atual
se
baseia.
Infelizmente,
dentro
do
movimento
LGBT,
pouc@s
realmente
leem
ou
se
interessam
pelas
reflexões
queer.
Daí,
nas
raras
ocasiões
em
que
surge
alguma
referência
a
esta
vertente
teórica,
ficar
patente
sua
trágica
vulgarização,
fato
que
convida
a
um
paralelo
com
o
que
se
passou
anteriormente
com
o
marxismo
no
Não
somos,
queremos
7
Richard
Miskolci
6
Nesta
vulgarização,
é
elucidativa
a
forma
como
o
termo
heteronormatividade,
o
qual
se
refere
a
atitudes
normalizadoras
tanto
de
heteros
quanto
de
homos,
tem
sido
“transformado”
meramente
em
sinônimo
de
heterossexista.
Esta
deturpação
do
conceito
revela
a
resistência
de
muit@s
em
encarar
que
boa
parte
d@s
homossexuais
também
é
conservadora
e
preconceituosa.
Um
homem
gay,
por
exemplo,
pode
ser
extremamente
heteronormativo
se
buscar
viver
e
se
apresentar
como
se
fosse
heterossexual
relegando
à
abjeção
quem
não
faz
o
mesmo
que
ele.
Para
uma
introdução
à
Teoria
Queer
e
seus
conceitos
consulte
Miskolci,
2009
e
Louro,
2001.
Não
somos,
queremos
8
Richard
Miskolci
estrategicamente
seu
futuro
tem
sido
mais
simples
culpar
a
Teoria
Queer
pelo
fim
de
uma
Era
ou
xingar
de
“queer”
os
novos
adversários
internos.7
sexualidade,
já
que
a
Teoria
Queer
entrou
em
cena
na
academia
brasileira
a
partir
da
Educação
e
outras
áreas
do
saber.
Em
outras
palavras,
a
recepção
desta
vertente
de
análise
se
associa
a
mudanças
históricas
e
culturais
que
marcam
a
sociedade
brasileira,
e
os
desafios
atuais
do
movimento
LGBT,
assim
como
contribui
para
modificar
e
a
geopolítica
do
saber
em
nosso
país.
8
Para
uma
análise
da
relação
entre
academia,
intelectuais
e
a
emergência
dos
novos
movimentos
Nos
anos
1980,
falava-‐se
de
gênero
como
uma
“ameaça”
despolitizadora,
desagregadora,
em
suma,
como
uma
invenção
acadêmica
impossível
de
ser
incorporada
politicamente
e
que
relegaria
o
feminismo
à
autodestruição.
O
que
se
passou,
sabemos,
não
foi
nada
disso,
o
feminismo
avançou
e
sua
agenda
se
espraiou
socialmente
para
além
da
atuação
direta
do
movimento
realizando
transformações
culturais
e
econômicas
admiráveis.
De
certa
maneira,
é
a
consolidação
do
conceito
de
gênero
que
marca
tanto
o
sucesso
do
feminismo
quanto
a
emergência
da
Teoria
Queer.
9
Refiro-‐me
aqui,
à
sua
reflexão
sobre
as
relações
entre
a
Teoria
Queer,
o
Feminismo
e
os
No
Brasil,
o
fato
da
proposta
de
legalização
da
parceria
civil
ter
ficado
“em
suspenso”
devido,
entre
outras
razões,
da
atuação
da
bancada
religiosa,
fez
com
que
o
movimento
caminhasse
em
direção
à
luta
contra
a
homofobia,
um
objetivo
político
mais
unificador
e
menos
hierarquizante
do
que
o
anterior.11
Assim,
a
luta
contra
a
homofobia
nos
tornou
potencialmente
mais
“radicais”
do
que
o
movimento
português,
por
exemplo,
e,
portanto,
mais
sensíveis
e
dedicados
às
problemáticas
da
maioria
daqueles/as
cujas
demandas
de
reconhecimento
se
funda
na
experiência
da
vergonha,
da
humilhação
e
da
violência
cotidiana.
A
história
do
movimento
LGBT
brasileiro
é
marcada
pela
expansão
de
sua
base,
de
movimento
homossexual
tornou-‐se
LGBT
e,
com
a
entrada
dos
que
não
cabem
nas
letrinhas
e
o
acolhimento
dos
que
as
trocam,
tem
se
tornado
cada
vez
menos
unitário,
leia-‐se
plural
e
democrático.
Sua
luta
interna
atual
mais
visível
pode
apontar
para
diversos
caminhos,
mas
parece
apenas
um
sintoma
de
resistência
interna
à
ampliação
do
diálogo
com
o
feminismo,
à
criação
de
um
diálogo
mais
crítico
com
o
Estado
e
ao
fim
do
modelo
identiário
das
letrinhas
que
se
dá,
ao
mesmo
tempo,
que
emerge
um
novo
quadro
teórico
e
conceitual
na
esfera
dos
estudos
sobre
sexualidade.12
Por
fim,
como
intelectual
que
tem
se
dedicado
há
muitos
anos
a
estudar
e
pesquisar
em
uma
perspectiva
queer,
posso
afirmar
que
a
proposta
política
queer
não
aponta
para
nenhuma
divisão,
antes
é
um
apelo
unificador
à
10
Jan
Willen
Duyvendak,
já
em
1996,
publicou
um
artigo
em
que
explorava
como
o
movimento
gay
holandês
foi
cooptado
pelo
Estado
a
partir
de
uma
aliança
nas
políticas
de
combate
à
aids.
Posteriormente,
parte
do
movimento
aderiu
a
uma
agenda
de
Direita,
racista
e
xenofóbica.
11
Sobre
o
caráter
normalizador
e
hierarquizador
da
luta
pelo
casamento
(ou
parceria
civil)
na
academia.
A
ponte
entre
ação
política
e
reflexão
se
deu
pela
conciliação
do
“essencialismo
estratégico”,
termo
cunhado
por
Gaytri
Spivak
para
se
referir
à
adoção
de
uma
prática
fincada
na
ficção
naturalizante
das
identidades
como
meio
para
a
obtenção
de
direitos.
Atualmente,
o
foco
em
objetivos
como
a
luta
contra
a
homofobia
e
o
heterossexismo,
se
dá
em
outro
contexto
político.
Ocorre
um
declínio
quer
do
perfil
“identitário”
do
movimento
quer
do
construtivismo
social
na
academia,
de
forma
que
o
elo
pelo
“essencialismo
estratégico”
pode
ser
subtituído
por
discussões
mais
nuançadas
do
que
as
anteoriores
baseadas
em
binários
como
assimilação
ou
marginalidade.
No
presente,
segundo
Eve
Kosofsky
Sedgwick
(2003),
vivenciamos
batalhas
novas,
como
as
sobre
qual
tipo
de
visibilidade
e
que
tipo
de
incorporação
queremos.
Não
somos,
queremos
11
Richard
Miskolci
Referências Bibliográficas
Almeida,
Miguel
Vale
de.
Ser
mas
não
ser,
eis
a
questão.
O
problema
persistente
do
essencialismo
estratégico.
Conferência
de
encerramento
do
Seminário
Internacional
Fazendo
Gênero
9,
Florianópolis,
2010.
Butler,
Judith.
Undoing
Gender.
New
York:
Routledge,
2004.
Carrara,
Sérgio.
Políticas
e
Direitos
Sexuais
no
Brasil
Contemporâneo
In:
Bagoas.
Natal:
UFRN,
2010.
N.
P.131-‐147
13
Politizar
a
experiência
da
vergonha
contrasta
com
a
proposta
de
liberais
que
preferem
construir
um
movimento
convervador
em
termos
morais
e
comprometido
em
passar
uma
imagem
higienizada
para
a
sociedade
brasileira.
14
A
luta
anti-‐homofobia
pode
se
sofisticar
e
voltar-‐se
contra
o
heterossexismo
institucional
que
ainda
reina.
Infelizmente,
a
tentativa
de
“identitarizar”
a
luta
por
meio
das
chamadas
transfobia,
homofobia,
lesbofobia
tende
a
arrefecer
seu
potencial
aglutinador,
ainda
que
sem
eliminá-‐lo
por
completo.
Sobre
o
conceito
de
homofobia
consulte
Junqueira,
2007.
Não
somos,
queremos
12
Richard
Miskolci
Duyndak,
Jan
Willen.
The
depolitization
of
the
Dutch
gay
identity,
or
why
Dutch
gays
aren’t
queer
In:
Seidman,
Steven
(editor).
Queer
Theory/Sociology.
Cambridge:
Blackwell,
1996.
P.421-‐438
Elias,
Norbert
e
Scotson,
John
L.
Os
estabelecidos
e
os
outsiders
–
Sociologia
das
relações
de
poder
a
partir
de
uma
comunidade.
Rio
de
Janeiro:
Jorge
Zahar
Editor,
2000.
Junqueira,
Rogério
Diniz.
Homofobia: limites e possibilidades de um conceito em
meio a disputas In: Bagoas. Natal: UFRN, 2007. N. 1
Louro,
Guacira
Lopes.
Teoria
Queer:
uma
política
pós-‐identitária
para
a
educação
In:
Revista
Estudos
Feministas.
Florianópolis:
IEG-‐UFSC,
2001.
V.9
n.2
p.
541-‐553