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2 UMA PLATAFORMA VIRTUAL SOBRE O TRABALHO REAL VOLUME VII · Nº1 · 2011

FICHA TÉCNICA

Diretora
M. Lacomblez (Pt)

Direção Lusófona:
Brito, J. (Br), Cunha, L.  (Pt),  Gil-Mata, R.  (Pt),  Nascimento, A. (Br), Santos, M.  (Pt),  Valverde, C.  (Pt),  Vasconcelos, R. (Pt)
 

Direção Hispânica:
Boix, P. (ES), Díaz Canepa, C. (CL), De La Garza, C. (FR), Poy, M. (AR), Vogel, L. (BE)   
 
Comité Científico Internacional:
Acevedo, M. (CL), Alaluf, M. (BE), Alvarez, D. (BR), Apud, E. (CL), Araújo, C. (PT), Arezes, P. (PT), Athayde, M. (BR), Barcenilla, J. (FR), Barros
Duarte, C. (PT), Barroso, M. (PT), Berthelette, D. (CA), Bronckart, J. P. (CH), Cadilhe, A. (PT), Caramelo, J. (PT), Castillo, J. J. (ES), Chatigny, C.
(CA), Clot, Y. (FR), Cloutier, E. (CA), Correia, J. A. (PT), Cru, D. (FR), Daniellou, F. (FR), David, H. (CA), De Troyer, M. (BE), Duarte, F. M. (BR),
Estanque, E. (PT), Falzon, P. (FR), Fraga De Oliveira, J. (PT), Gadea, R. (ES), Garrigou, A. (FR), Gonzaga, L. (PT), González, R. (VE), Hansez, I. (BE),
Kerguelen, A. (FR), Leal Ferreira, L. (BR), Lopes, L. (PT), Maggi, B. (IT), Marquié, J. C. (FR), Martinez, E. (BE), Massena, M. (PT), Matos, M. (PT),
Mendes, J. M. (PT), Montreuil, S. (CA), Poirot-Delpech, S. (FR), Ramos, S. (PT), Re, A. (IT), Rebelo, F. (PT), Rebelo Dos Santos, N. (PT), Schwartz,
Y. (FR), Seifert, A. M. (CA), Silva, C. (PT), Simões, A. (PT), Snzelwar, L. (BR), Teiger, C. (FR), Thébaud Mony, A. (FR), Torres, I. (PT), Villena, J. (ES),
Volkoff, S. (FR), Weill-Fassina, A. (FR)

Secretariado de Redação
C. Monteiro (PT)

Design e Paginação
Parada, J. (PT)

Revista apoiada por


UMA PLATAFORMA VIRTUAL SOBRE O TRABALHO REAL VOLUME VII · Nº1 · 2011 3

Editorial
Marianne Lacomblez

Apresentação do Dossier
Clara Araújo & Duarte Rolo

Texto Introdutor
Christophe Dejours

Arqueologia do Conhecimento
Leda Leal Ferreira

Pesquisa Empírica
Seiji Uchida, Laerte Sznelwar, Juliana Barros & Selma Lancman

Pesquisa Empírica
Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

Estudo de Caso
Marisa Ridgway

Discurso Sobre o Vivido no Trabalho


Valérie Ganem

Importa-se de repetir?…
Christophe Dejours

Revisão Temática
Conceição Ramos

Textos Históricos
Armand Imbert &Antonin Mestre
(Indrodução de Marcel Turbiaux)

O dicionário
Utopia
Renato Di Ruzza

O dicionário
Visibilidade
Serge Volkoff
4 UMA PLATAFORMA VIRTUAL SOBRE O TRABALHO REAL VOLUME VII · Nº1 · 2011

PT

8 – 9 Editorial
Marianne Lacomblez

10 – 12 Dossier Temático: Psicodinâmica e psicopatologia do trabalho


Clara Araújo & Duarte Rolo

13 – 16 Texto Introdutor: Psicopatologia do trabalho - Psicodinâmica do trabalho


Christophe Dejours

17 – 2 7 Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução do


pessoal
Leda Leal Ferreira

2 8 – 41 O trabalho em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação


Seiji Uchida, Laerte Sznelwar, Juliana Barros & Selma Lancman

42 – 55 Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho


Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

5 6 – 67 Psicodinâmica do trabalho e análise do trabalho de «apresentação de si


próprio» do director de empresa
Marisa Ridgway

68 – 75 Relato de uma experiência de terreno de uma intervenção em psicodinâmica


do trabalho
Valérie Ganem

76 – 8 0 «Trabalhar» não é «derrogar»


Christophe Dejours

81 – 10 4 Economia solidária, plural e ética na promoção do emprego, da cidadania e da


coesão social
Conceição Ramos

10 5 – 10 7 Introdução ao texto “Estatísticas de acidentes de trabalho” de Armand Imbert


e Antonin Mestre
Marcel Turbiaux

1 0 8 – 11 4 Higiene Pública: Estatística de acidentes de trabalho


Armand Imbert &Antonin Mestre

11 5 – 11 8 Utopia
Renato Di Ruzza

11 9 – 1 2 1 Visibilidade
Serge Volkoff
UMA PLATAFORMA VIRTUAL SOBRE O TRABALHO REAL VOLUME VII · Nº1 · 2011 5

ES

8 – 9 Editorial
Marianne Lacomblez

10 – 12 Dossier Temático: La Psicodinámica y la Psicopatología del Trabajo


Clara Araújo & Duarte Rolo

13 – 16 Texto Introductorio: Psicopatología del trabajo - Psicodinámica del trabajo


Christophe Dejours

17 – 2 7 Una luta pelo reconhecimen to do trabalho contra a política de redução do


pessoal
Leda Leal Ferreira

2 8 – 41 El trabajo en los servicios de salud mental: entre el sufrimiento y la


cooperación
Seiji Uchida, Laerte Sznelwar, Juliana Barros & Selma Lancman

42 – 55 Sufrimiento psíquico del bailarín: una mirada de la psicodinámica del trabajo


Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

5 6 – 67 Psicodinámica del trabajo y análisis del trabajo de «presentación de sí mismo»


del director de empresa
Marisa Ridgway

68 – 75 Informe de un estudio de campo sobre una intervención basada en la


psicodinámica del trabajo
Valérie Ganem

76 – 8 0 «Trabajar» no es «derogar»
Christophe Dejours

81 – 10 4 Economía solidaria, plural y ética, en la promoción del empleo, de la


ciudadanía y de la cohesión social
Conceição Ramos

10 5 – 10 7 Introducción al texto “higiene pública: estadística de accidentes de trabajo” de


Armand Imbert & Antonin Mestre
Marcel Turbiaux

1 0 8 – 11 4 Higiene pública: estadística de accidentes de trabajo


Armand Imbert &Antonin Mestre

11 5 – 11 8 Utopía
Renato Di Ruzza

11 9 – 1 2 1 Visibilidad
Serge Volkoff
6 UMA PLATAFORMA VIRTUAL SOBRE O TRABALHO REAL VOLUME VI · Nº2 · 2010

FR

8 – 9 Editorial
Marianne Lacomblez

10 – 12 Dossier thématique : psychodynamique et psychopathologie du travail


Clara Araújo & Duarte Rolo

13 – 16 Texte d’Introduction : Psychopathologie du travail – psychodynamique du


travail
Christophe Dejours

17 – 2 7 Une lutte pour la reconnaissance au travail et contre la politique de réduction


du nombre des travailleurs
Leda Leal Ferreira

2 8 – 41 Travailler dans des services de santé mentale: entre la souffrance et la


coopération
Seiji Uchida, Laerte Sznelwar, Juliana Barros & Selma Lancman

42 – 55 La souffrance psychique du danseur: un regard de la psychodynamique du


travail
Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

5 6 – 67 Psychodynamique du travail et analyse du travail de «présentation de soi» du


dirigeant d’entreprise
Marisa Ridgway

68 – 75 Retour sur une expérience de terrain de l’intervention en psychodynamique du


travail (PDT)
Valérie Ganem

76 – 8 0 Travailler» n’est pas «déroger»


Christophe Dejours

81 – 10 4 Économie solidaire, plurielle et éthique dans la promotion de l’emploi, de la


citoyenneté et de la cohésion sociale
Conceição Ramos

10 5 – 10 7 Introduction au texte « Hygiène publique: statistique d’accidents de travail »


de Armand Imbert & Antonin Mestre
Marcel Turbiaux

1 0 8 – 11 4 Hygiène publique : statistique d’accidents de travail


Armand Imbert &Antonin Mestre

11 5 – 11 8 Utopie
Renato Di Ruzza

11 9 – 1 2 1 Visibilité
Serge Volkoff
UMA PLATAFORMA VIRTUAL SOBRE O TRABALHO REAL VOLUME VI · Nº2 · 2010 7

EN

8 – 9 Editorial
Marianne Lacomblez

10 – 12 Thematic Dossier: Psychodynamics and psychopathology of work


Clara Araújo & Duarte Rolo

13 – 16 Introductory Text: Psychopathology of work – psychodynamics of work


Christophe Dejours

17 – 2 7 A struggle for the recognition of work against workforce reduction policy


Leda Leal Ferreira

2 8 – 41 Working at mental health services: between suffering and cooperation


Seiji Uchida, Laerte Sznelwar, Juliana Barros & Selma Lancman

42 – 55 A dancer’s psychological suffering: from a psychodynamics of work


point of view
Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

5 6 – 67 Psychodynamics of work and the top manager’s analysis of self-presentation


Marisa Ridgway

68 – 75 A field experience in the domain of psychodynamics of work


Valérie Ganem

76 – 8 0 «Working» is not «derogating


Christophe Dejours

81 – 10 4 The role of solidarity, plural and ethical economy in the promotion of


employment, citizenship and social cohesion
Conceição Ramos

10 5 – 10 7 Introduction to the text “Public health: work accidents’ statistics” by Armand


Imbert & Antonin Mestre
Marcel Turbiaux

1 0 8 – 11 4 Public health: work accidents’ statistics


Armand Imbert &Antonin Mestre

11 5 – 11 8 Utopia
Renato Di Ruzza

11 9 – 1 2 1 Visibility
Serge Volkoff
8 VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 8-9

EDITORIAL

Marianne Lacomblez

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Se considerarmos os campos de investigação e de inter-


Universidade do Porto venção abrangidos até agora pelos sucessivos números de
Rua Dr. Manuel Pereira da Silva Laboreal, esta 11ª edição acaba por colmatar, pelo menos
4200-392 Porto, Portugal parcialmente, uma lacuna da revista. Era tempo, na verda-
lacomb@fpce.up.pt de, de tratar da especificidade da abordagem da Psicodi-
nâmica do trabalho. Agradecemos então, vivamente, a
Clara Araújo e Duarte Rolo por terem assumido a coorde-
nação deste dossier. E a introdução que conceberam -
completada pelo texto redigido nesta circunstância por
Christophe Dejours - irá permitir perceber a lógica da sua
estrutura interna.

Para além das contribuições que compõem este dossier,


apresentamos ainda um artigo, de revisão temática, de Ma-
ria da Conceição Pereira Ramos, que diz respeito às ques-
tões da Economia solidária. O que, de certo modo, irá apoiar
as opções assumidas para a edição do nosso Dicionário, já
que Renato Di Ruzza destinou a letra "U" para uma defini-
ção da palavra "Utopia”. O desafio não é nada obsoleto: o
texto dá para perceber quanto o vocábulo é, sim, carregado
de história e de polémicas já bem conhecidas; mas também
revela a constância e a grande actualidade da procura de
"um outro possível”.
Serge Volkoff aborda a mesma problemática por uma
outra via: escolheu tratar a letra "V”, desenvolvendo
uma reflexão sobre "Visibilidade”. E encontramos nes-
sas linhas a riqueza da reflexão de um colega que, é bom
dizê-lo porque até agora não o tornámos suficientemen-
te visível, teve um papel decisivo no arranque inicial do
projecto de Laboreal.
Editorial • Marianne Lacomblez 9

Enfim, a nossa rubrica dos textos históricos fica ampliada


por mais um contributo, sempre sob a coordenação de Ré-
gis Ouvrier-Bonnaz. Desta vez Marcel Turbiaux introduz um
texto de Armand Imbert e Antonin Mestre, marco histórico
na interpretação de dados estatísticos sobre os acidentes
de trabalho. E, realmente, convém não esquecer algumas
ilações enunciadas já há mais de um Século…

Uma excelente leitura para todas e todos – qualquer que


seja o lado do Atlântico onde consultam o Site de Laboreal.

Pelas direcções, hispânica e lusófona, da revista,


Marianne Lacomblez

Como referenciar este artigo?

Lacomblez, M. (2011). Editorial.


Laboreal, 7, (1), 8-9.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV6582235338944525472
10 VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 10-12

DOSSIER TEMÁTICO: PSICODINÂMICA E PSICOPATOLOGIA DO TRABALHO


Apresentação do dossier

Clara de Araújo1 & Duarte Rolo2

1. Instituto Politécnico de Viana do Castelo, A publicação em Portugal de um número da revista Labore-


Escola Superior de Saúde al cujo dossier é dedicado inteiramente à psicodinâmica e à
Rua D. Moisés Alves de Pinho, psicopatologia do trabalho constitui um acontecimento
4900-314 Viana do Castelo, Portugal científico de relevo. Este dossier temático surge no segui-
claraaraujo@ess.ipvc.pt mento do sexto Congresso Internacional de Psicopatologia
e Psicodinâmica do Trabalho, realizado em Abril de 2010 em
2. Equipa de Psicodinâmica do Trabalho e da Acção, São Paulo, Brasil, e este número da revista Laboreal permi-
Conservatoire National des Arts et Métiers te desta forma dar um seguimento às discussões iniciadas
41 rue Gay-Lussac, 75005 Paris, França nessa ocasião.
duarte.rolo@cnam.fr Herdeira dos trabalhos pioneiros da psicopatologia do tra-
balho e da ergonomia desenvolvidos em França na segunda
metade do século XX, a psicodinâmica do trabalho surge
definitivamente enquanto disciplina autónoma na década de
noventa e dedica-se ao estudo dos processos psicodinâmi-
cos mobilizados pelas situações de trabalho, interessando-
-se particularmente pela relação entre trabalho e saúde.
Esta relação está sempre enraizada num acto, numa activi-
dade, numa conduta individual sobre o «real do trabalho».
Daí que também a realização do EU, passe necessariamen-
te por uma mediatização, na relação ao REAL que constitui
o trabalho. Assim, a negação e/ou o não reconhecimento da
realidade do trabalho duma pessoa pode ser fonte de sofri-
mento mental. Mas em contrapartida, o reconhecimento no
trabalho é um elemento determinante da realização pesso-
al e contribui para a construção da identidade, sendo fonte
de prazer no trabalho: a relação com os pares donde emer-
ge o reconhecimento e a identidade de pertença a um colec-
tivo; a relação com a hierarquia que pode fazer reconhecer
a utilidade do operador, a relação com os subordinados
donde pode emergir o reconhecimento da autoridade e das
suas competências. Destas primeiras considerações pode-
remos deduzir a importância considerável da questão da
intersubjectividade e da organização do trabalho enquanto
causas de aparecimento de sofrimento ou ao contrário de
prazer no trabalho.
Tanto a psicodinâmica como a psicopatologia do trabalho
conhecem actualmente um desenvolvimento notável, no-
meadamente no plano internacional, como atestam os arti-
gos reunidos neste dossier. Com efeito, a divulgação das
questões do sofrimento no trabalho (podemos referir entre
Apresentação do dossier • Clara de Araújo & Duarte Rolo 11

outros acontecimentos a vasta mediatização dos suicídios traponto ao estipulado pela concepção do trabalho pela
ocorridos na empresa francesa France Telecom em 2009) chefia em geral simplificado e subestimada.
representa uma consequência dos trabalhos desenvolvidos As contribuições respectivas de Seiji Uchida, Laerte Sze-
em psicopatologia e psicodinâmica do trabalho, que trouxe- lwar, Juliana Barros & Selma Lancman e de Marina Segni-
ram estas questões para debate público, assim como o re- ni & Selma Lancman, propõem uma análise da construção
sultado de uma evolução do pedido social. Estes desenvol- de estratégias de defesa contra o sofrimento no trabalho e
vimentos, dos quais ainda não podemos certamente medir evidenciam aspectos menos visíveis das relações de traba-
os efeitos, terão sem dúvida repercussões importantes lho. Baseados em pesquisas empíricas que realçam as vi-
para o crescimento futuro da disciplina. vências dos trabalhadores de um Centro de Atenção Psicos-
A evolução actual do mundo do trabalho, marcada pelo de- social e dos trabalhadores de dança respectivamente, os
senvolvimento de métodos de organização do trabalho e de autores estudam a consequente relação entre sofrimento e
gestão dos recursos humanos que tendem a individualizar prazer e as estratégias desenvolvidas para obter resulta-
os trabalhadores e a favorecer uma lógica de concorrência dos, identificando os factores críticos e as formas de os ul-
em detrimento de uma lógica de cooperação, não augura trapassar. Ambos os artigos dão conta da maneira como os
nada de bom. No entanto, a situação actual não é irremedi- trabalhadores mobilizam as suas subjectividades para en-
ável e cabe à comunidade científica produzir conhecimentos frentar o sofrimento no trabalho construindo estratégias de
que contribuam para inverter esta tendência. defesa que movimentam a inteligência individual e colectiva
Foi com este intuito que procurámos reunir contribuições na experiência concreta de trabalho a partir da criação de
de variados autores acerca deste tema. Os artigos aqui espaços colectivos de discussão.
reunidos não pretendem oferecer uma visão exaustiva da A pesquisa com trabalhadores de um Centro de Atenção
disciplina, mas apenas uma perspectiva do estado actual Psicossocial evidencia um paradigma de gestão favore-
das pesquisas na área da psicodinâmica e psicopatologia cedor da construção da identidade e consequentemente
do trabalho. Desta forma, as contribuições dos diversos da saúde dos que lá trabalham. As carências e dificulda-
autores que participaram neste número têm em comum des que possam existir na equipe de trabalhadores deste
um interesse partilhado pelo estudo da relação entre saú- Centro são compensados e protegidos psiquicamente
de e trabalho, mas na sua maioria abordam temas diferen- pela cooperação e solidariedade da equipe onde aconte-
tes e utilizam material empírico proveniente de sectores cem os julgamento de utilidade e de beleza, isto é, teste-
profissionais distintos. munham a utilidade económica, social ou técnica do tra-
O texto introdutório de Christophe Dejours, para além de balho e dão conta do respeito do trabalho pelas regras do
descrever o itinerário histórico da psicodinâmica do traba- ofício considerando os constrangimentos da situação
lho enquanto disciplina, expõe igualmente de forma precisa respectivamente.
as questões teóricas e práticas que enfrentamos actual- No texto de Segnini & Lancman sobressai a relação en-
mente nesta área da clínica do trabalho. Para que haja uma tre o trabalhador bailarino e a organização do trabalho
redução do sofrimento no trabalho e das patologias labo- em dança e consequentemente é claro que também esta
rais, a produção de conhecimentos não basta. É necessário organização de trabalho gera constrangimentos e confli-
desenvolver por igual uma teoria da acção que permita uma tos e conduz os trabalhadores a construírem mecanis-
transformação racional da organização do trabalho. mos de defesa para conseguirem continuar a trabalhar
sem adoecer. Mas a pesquisa dá conta da não existência
O primeiro artigo deste dossier temático, da autoria de Leda de cooperação nos trabalhadores e pelo contrário apon-
Leal Ferreira, dá visibilidade a uma dimensão fulcral em ta a competição imposta como fragilizadora do colectivo
psicodinâmica do trabalho – o afastamento entre trabalho de trabalho e por conseguinte levando a um sofrimento
prescrito e trabalho real. É neste afastamento que pode es- individualizado e desprotegido.
tar a fonte de saúde ou de sofrimento dependendo do grau Por seu lado, o estudo de caso proposto por Marisa Ridgway
de flexibilização potencial da organização do trabalho. A aborda uma questão relativamente nova em psicodinâmica
psicodinâmica do trabalho insiste no facto de que este afas- do trabalho e que têm merecido particular interesse ulti-
tamento mobiliza a subjectividade de cada sujeito na cons- mamente: o trabalho dos dirigentes ou quadros superiores.
trução da organização do trabalho e sobretudo no facto de, Através do estudo de um aspecto do trabalho do dirigente, a
em contrapartida a esta contribuição na organização, o su- «apresentação de si», Ridgway pretende demonstrar de
jeito esperar uma retribuição de cariz simbólico que assen- que forma o modelo teórico da psicodinâmica do trabalho
ta no reconhecimento, não tanto da pessoa mas sobretudo permite uma melhor compreensão do trabalho concreto
do que a pessoa faz. Na verdade é conclusão deste estudo o dos dirigentes de empresa, oferecendo desta forma recur-
valor do conhecimento e compreensão do trabalho real face sos para a análise do aparecimento de manifestações de
à justa determinação do número de trabalhadores em con- sofrimento ou de prazer neste contexto.
12 Apresentação do dossier • Clara de Araújo & Duarte Rolo

O artigo de Valérie Ganem baseia-se num relato da sua ex- ES

periência de terreno enquanto interveniente em contextos Presentación del Dossier temático: La


profissionais variados. Para além de nos propor uma ilus- psicodinámica y la sicopatología del trabajo
tração das dificuldades e obstáculos que devem enfrentar
os psicólogos quando intervêm nas organizações, ou admi-
nistrações, permite igualmente discutir a pertinência do
modelo metodológico desenvolvido em psicodinâmica do FR

trabalho, tendo em conta a natureza e objectivo das inter- Présentation du Dossier Thématique :
venções de terreno nesta disciplina. psychodynamique et psychopathologie du
Por fim, escolhemos igualmente publicar neste número ou- travail
tro texto da autoria de Christophe Dejours, publicado pela
primeira vez aquando da inauguração da Revista Travailler,
revista que constitui desde 1998 o principal suporte de di-
vulgação dos trabalhos desenvolvidos na área da psicodinâ- EN

mica e psicopatologia do trabalho. Este texto foi escolhido Thematic Dossier’s Presentation:
não apenas pela sua importância histórica, mas igualmente Psychodynamics and psychopathology of
porque constitui um texto fundamental em psicodinâmica work
do trabalho, na medida em que apresenta as principais
ideias que constituem a base da disciplina e a démarche que
caracteriza a psicodinâmica do trabalho.
Pese embora o desenvolvimento desta disciplina seja ainda
incipiente em alguns países, e nomeadamente em Portugal,
esperamos com este número da revista Laboreal contribuir
para uma maior visibilidade destas questões e suscitar o
interesse pelo estudo da saúde no trabalho. Embora muito
fique ainda por fazer, esperamos que esta contribuição pos-
sa constituir um primeiro passo nesse sentido.

Como referenciar este artigo?

Araújo, C. & Rolo, D. (2011). Apresentação do Dossier


Temático: Psicodinâmica e Psicopatologia do trabalho.
Laboreal, 7, (1), 10-12.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV6582235338944745462
VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 13-16 13

TEXTO INTRODUTOR
Psicopatologia do trabalho - Psicodinâmica do trabalho

Christophe Dejours

Conservatoire National des Arts et Métiers Embora as primeiras questões a propósito da relação entre
41, Rue Gay-Lussac trabalho e saúde mental, em França, tenham surgido entre
75005 Paris, France as duas grandes guerras, foi apenas a partir do fim da Se-
christophe-dejours@cnam.fr gunda Guerra Mundial que a investigação clínica em psico-
patologia do trabalho começou verdadeiramente (Billiard,
2011). Numa primeira fase, estes estudos procuravam iden-
A tradução deste texto para português foi realizada por tificar patologias mentais específicas de certos tipos de tra-
Duarte Rolo balho (tais como a neurose das telefonistas descrita por J.
Bégoin em 1957), mas foi necessário admitir que não existe
nenhum síndroma psicopatológico exclusivamente produzi-
do pelos constrangimentos do trabalho, contrariamente ao
que pode acontecer com algumas doenças físicas devidas
exclusivamente à poluição do meio de trabalho (saturnismo
relacionado com os vapores de chumbo, silicose dos minei-
ros de carvão,…).
Tornou-se possível estender a investigação clínica após a
identificação de um conflito específico entre os constrangi-
mentos provenientes da organização do trabalho e o funcio-
namento psíquico dos trabalhadores. Algumas formas de
organização do trabalho revelaram-se desta forma mais
nocivas do que outras para o funcionamento psíquico.
Quando este conflito leva ao aparecimento de uma doença
mental, a resistência e as fragilidades da personalidade
conferem à descompensação a sua forma clínica definitiva.
Deste modo, a configuração sintomática (passagem ao acto,
depressão, baforada delirante, neurose traumática…) re-
flecte mais as características idiossincrásicas do paciente
do que a natureza dos constrangimentos organizacionais
em causa no desencadeamento da crise psicopatológica.
A montante da descompensação, a normalidade representa
o resultado de um compromisso, de uma luta entre o sofri-
mento provocado pelos constrangimentos organizacionais
e as estratégias de defesa inventadas pelos trabalhadores
para conter esse sofrimento e evitar a descompensação.
Mas tais estratégias de defesa, estritamente ajustadas aos
constrangimentos exercidos pela organização do trabalho
sobre o funcionamento psíquico, têm a marca específica e
reconhecível da organização do trabalho em causa.
Podemos assim descrever estratégias individuais e colecti-
vas cuja riqueza e diversidade constituem a matéria-prima
14 Psicopatologia do trabalho - Psicodinâmica do trabalho • Christophe Dejours

de uma clínica apelidada de «clínica do trabalho». conhecimentos científicos. Encontra-se igualmente impli-
Mas o trabalho não gera unicamente sofrimento psíquico ou cada na acção pois não há investigação possível sem que
doenças mentais. Pode, dentro de certas formas de organi- haja um pedido emitido por um paciente, um trabalhador,
zação do trabalho, tornar-se num mediador importante da um colectivo de trabalho, ou uma instituição como seja uma
génese do prazer no trabalho e da construção da saúde comissão de saúde, higiene e segurança no trabalho; um
mental. Ou, dizendo de outra forma, o trabalho nunca é neu- serviço de saúde no trabalho; um sindicato; uma empresa;
tro relativamente à saúde mental. Pode gerar aquilo que há uma administração… A acção, indissociável do processo de
de pior, como o suicídio ou a crise clástica, mas também produção do conhecimento, suscita em retorno investiga-
aquilo que existe de melhor: a realização pessoal através do ções teóricas e confrontos interdisciplinares sobre o tema
trabalho, a sublimação, a contribuição para as obras da cul- da teoria da acção.
tura e da civilização. Desta feita, desenvolveram-se novos confrontos interdisci-
A tarefa incumbente à clínica do trabalho consiste em for- plinares, com a teoria crítica e os filósofos da Escola de
necer uma análise das condições que fazem oscilar a rela- Frankfurt (A. Honneth, E. Renault, J.P. Deranty), com a fe-
ção subjectiva com o trabalho no sentido da patologia ou, ao nomenologia, e em particular com a fenomenologia da vida
invés, da conquista da identidade. Desde logo, a psicopato- (M. Henry).
logia do trabalho, ou seja a análise das descompensações Actualmente, o debate prossegue com investigadores pro-
psicopatológicas ocasionadas pelo trabalho, constitui ape- venientes de diversas disciplinas: não só com a ergonomia e
nas um capítulo específico da clínica do trabalho. Foi essen- a medicina do trabalho, mas também com a psiquiatria, a
cialmente esta razão que levou à alteração do nome da dis- psicanálise, a psicologia, a psicologia social, a antropologia,
ciplina. A denominação "psicodinâmica do trabalho" dada à a sociologia, a história, a linguística, a economia, a tecnolo-
disciplina no início dos anos 1990 contém três dimensões: gia, a engenharia (Dejours, 1987).
Desde os anos 70, quando a psicodinâmica do trabalho dava
• A primeira implica uma expansão do campo da clínica do os primeiros passos no laboratório de ergonomia de Alain
trabalho da qual acabámos de falar. Wisner, no CNAM em Paris, a organização do trabalho atra-
vessou diversos momentos de mutação (reestruturação
• A segunda refere-se a uma teoria e a uma prática espe- das tarefas industriais, modelo japonês, modelo gestioná-
cíficas. A teoria em questão tem vindo a ser progressi- rio, novas tecnologias e técnicas de informação e de comu-
vamente elaborada a partir de 1980, graças a um traba- nicação, crescimento da economia das actividades de servi-
lho de investigação interdisciplinar ininterrupto. Desde ço…). Nesse contexto, os trabalhadores tentaram elaborar
o príncipio deste trabalho três disciplinas foram chama- estratégias de defesa face ao sofrimento provocado pelas
das a dialogar: novas imposições organizacionais, com maior o menor su-
cesso. As patologias relacionadas com o trabalho aumenta-
> A psicologia: tendo por ponto fulcral a teoria psica- ram de forma constante, ao mesmo tempo que apareceram
nalítica do sujeito fundada sobre a metapsicologia novas patologias, o que leva a pensar que as defesas que
de S. Freud e a teoria da sedução de J. Laplanche. referimos não foram suficientemente eficazes. A partir da
> A sociologia: tendo por ponto fulcral a sociologia da segunda metade dos anos 90, as tentativas de suicídio e os
ética fundada sobre a abordagem compreensiva de suicídios multiplicaram-se nos locais de trabalho, não só
W. Dilthey, M. Weber e A. Schütz. em França, como também no Japão ou na China… Embora
> As ciências do trabalho: tendo por ponto fulcral a haja um aumento global da riqueza nestes países, observa-
ergonomia francófona de A. Ombredane, J.M. Fa- mos um aumento da violência no seio das nossas socieda-
verge e A. Wisner. des, acompanhado por uma cronicidade crescente do de-
semprego e por um agravamento da pobreza. De forma
• A terceira diz respeito ao método de investigação cujo paradoxal, ao aumento da riqueza corresponde ao mesmo
objectivo é a análise do trabalho psíquico imposto ao su- tempo um aumento do sofrimento e das patologias. Como
jeito pelo conflito entre os constrangimentos da organi- explicar que tanto homens como mulheres continuem a
zação do trabalho e os próprios constrangimentos do participar numa transformação do mundo e da organização
psiquismo, tendo por objectivo evitar o risco de destabi- do trabalho que tende a voltar-se contra eles próprios e
lização da identidade. O termo de "psicodinâmica" re- ameaça porventura o «ser genérico do homem»? No con-
flecte especificamente a prioridade dada, no processo texto actual, assistimos ao retorno da questão da alienação,
de análise, ao conflito psíquico e aos seus destinos. abordada múltiplas vezes desde o fim do século XVIII.
Poderão as pesquisas clínicas em psicodinâmica do traba-
Mas a psicodinâmica do trabalho não representa um tipo de lho contribuir para a análise desta mudança significativa do
investigação exclusivamente orientada para a produção de devir da «condição do homem moderno»? No final dos anos
Psicopatologia do trabalho - Psicodinâmica do trabalho • Christophe Dejours 15

90, a psicodinâmica do trabalho iniciou o debate sobre o pa- ameaça de despedimento, cada qual se encontra dora-
pel do trabalho na génese das novas formas de servidão vante sozinho.
voluntária e acerca da sua responsabilidade na deteriora- A glorificação do desempenho individual, ao desestruturar
ção da saúde mental no trabalho. Esta análise gerou con- as solidariedades, atinge um dos garantes fundamentais da
trovérsias cujas consequências se manifestam hoje no seio saúde mental no trabalho. Para recuperar aquilo que foi
das organizações sindicais e no espaço público. No entanto, destruído no decorrer desta evolução nefasta, é necessária
este debate não se restringe unicamente a França, onde os uma transformação da organização do trabalho que resta-
meios de comunicação, o cinema, os documentários, o tea- beleça as condições necessárias para a cooperação. De
tro…lhe conferiram nos últimos anos uma difusão particu- facto, a psicodinâmica do trabalho demonstra que a coope-
larmente importante. Decorrem actualmente estudos em ração não se pode dissociar de uma actividade de produção
vários países, na América do Norte, nomeadamente no Ca- de regras de trabalho e que tais regras de trabalho são
nadá; na América do Sul, nomeadamente no Brasil; na Eu- igual e invariavelmente regras de savoir-vivre, de convivên-
ropa, nomeadamente na Bélgica, na Suíça, na Alemanha; na cia e de vida em conjunto.
Ásia, nomeadamente no Japão e em Taiwan; na Austrália. O trabalho não produz aquilo que temos de melhor ou de
Mas, para além de iniciar debates com outras disciplinas, a pior unicamente a nível individual. Pode também gerar
psicodinâmica do trabalho também provoca controvérsias aquilo que há de melhor a nível colectivo ou seja, a concór-
na própria área da clínica. Com efeito, em grande parte dos dia e o "vivre-ensemble" [1], tal como pode provocar o pior, ou
países e organizações internacionais, o estudo da relação seja, a solidão – e até a desolação – a desconfiança, o medo
entre trabalho e saúde mental é essencialmente dominado e a instrumentalização dos seres humanos que pode chegar
pela temática do stress, pelos inquéritos quantitativos, es- ao extremo de levar alguns de entre nós a matarem-se na
tatísticos e epidemiológicos. presença dos próprios colegas.
Para lá das diferenças fundamentais que existem entre os O tratamento "etiológico" do sofrimento no trabalho pressu-
fundamentos científicos (no que diz respeito à teoria do su- põe que nos apoiemos numa teoria e numa prática da re-
jeito, à teoria social e à teoria do trabalho) que opõem os construção do trabalho colectivo e do «vivre-ensemble». Esta
modelos do stress e a psicodinâmica do trabalho, devemos teoria não pode ser elaborada a partir de estudos quantitati-
ainda considerar as implicações práticas de tais diferenças. vos sobre o stress e a epidemiologia.
As acções que adoptam por referência a teoria do stress Numa outra dimensão da clínica, que se refere ao trata-
traduzem-se essencialmente por recomendações relativas mento dos doentes que sofrem de patologias laborais, os
à gestão individual do stress. De uma forma geral, não princípios do cuidar serão diferentes consoante nos referir-
põem em causa a organização do trabalho e limitam-se mos às teorias do stress ou à psicodinâmica do trabalho. É
portanto a um "tratamento sintomático". Ao invés, qualquer portanto em ambas as dimensões da acção, individual e co-
acção que tenha por referência a psicodinâmica do traba- lectivamente, que a psicodinâmica e as teorias do stress
lho, procura elaborar os requisitos de uma intervenção que tomam caminhos diferentes. Os artigos apresentados neste
não vise apenas os indivíduos, mas que procure igualmente volume da revista Laboreal darão ao leitor uma ideia do
a transformação da organização do trabalho. O objectivo é campo que se abre para a investigação científica e para a
desde logo a concepção de um "tratamento etiológico" do acção na área da clínica e da psicodinâmica do trabalho.
sofrimento e das patologias mentais engendradas pelo tra-
balho.
Este tipo de orientação levou os investigadores em psico-
dinâmica do trabalho a chamarem a atenção para o tra-
balho colectivo e para a questão das possibilidades de
cooperação. Efectivamente, as investigações em psicodi-
nâmica do trabalho dos últimos dez anos demonstram
que a introdução e rápida generalização dos novos méto-
dos de avaliação individual do desempenho levada a cabo
pelas ciências da gestão tem um papel de primeiro plano
na destruição das possibilidades de trabalho colectivo,
de cooperação e de solidariedade. Sendo assim, estes
métodos de organização do trabalho estão implicados
nos processos de servidão voluntária e de deterioração
da saúde mental no trabalho. No lugar da entreajuda e da
solidariedade, a solidão e o medo invadem o mundo do
trabalho. Face à dominação, à injustiça, ao assédio, à
16 Psicopatologia do trabalho - Psicodinâmica do trabalho • Christophe Dejours

Notas ES

Texto Introductorio: Psicopatología del


[1] Nota do Tradutor: literalmente «viver em conjunto». trabajo – psicodinámica del trabajo

Referências bibliográficas
FR

Billiard, I. (2011). Santé mentale et travail: L’émergence de la Texte d´Introduction : Psychopathologie du


psychopathologie du travail. La Dispute. travail – psychodynamique du travail
Dejours, C. (1987). Plaisir et souffrance dans le travail: Séminaire
interdisciplinaire de psychopathologie du travail. Paris: Centre
National de la Recherche Scientifique.
EN

Introductory Text: Psychopathology of work


– psychodynamics of work

Como referenciar este artigo?

Dejours, C. (2011). Psicopatologia do Trabalho - Psicodinâmica


do Trabalho.
Laboreal, 7, (1), 13-16.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=37t45n
SU5471124227833834371
VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 17-27 17

ARQUEOLOGIA DO CONHECIMENTO
Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução
de pessoal

Leda Leal Ferreira

Fundacentro - Ministério do Trabalho e Emprego Introdução


Rua Capote Valente,710
São Paulo, SP Este texto pretende revisitar um estudo realizado no início
Brasil da década de 1990 numa refinaria de petróleo, no Brasil
leda@fundacentro.gov.br (Ferreira, Iguti & Jackson, 1991). Seu motivo foi a resistên-
cia de operadores de uma unidade de processo [1] da refina-
ria à política de redução de pessoal que a empresa começa-
va a aplicar e foi o primeiro de uma série de outros que se
desenvolveram por mais de uma década, sempre sobre o
mesmo assunto e na área do petróleo [2] e dos quais partici-
Resumen El texto busca analizar algunos pei, com diferentes status (Ferreira, Iguti, Donatelli, Duarte
resultados de un estudio desarrollado por la & Bussacos, 1997; Ferreira, Iguti & Bussacos, 1998, 1999,
autora hace veinte años, a la luz del concepto de 2000a e 2000b). Sem canais de negociação com a empresa,
"reconocimiento del trabajo”, tal cual lo presenta os operadores não hesitaram em explicitar a sua posição
la Psicodinámica del Trabajo. La investigación fue através da imprensa local, onde alertavam a população vi-
la primera de una serie de otros estudios zinha sobre os riscos que corria pela diminuição de pessoal.
realizados los quince años siguientes, siempre Com isto, sensibilizaram autoridades, entre elas o Ministé-
concernientes a la lucha de trabajadores rio Público [3], que nos solicitou um estudo para dimensiona-
petroleros brasileños contra la política de "recorte mento do número de operadores através do estudo de
"tempos e movimentos”.
de personal" (enxugamento de pessoal, según la
Não conhecíamos refinarias e nunca tínhamos realizado
traducción brasileña de downsizing), aplicada por
nenhum dimensionamento de pessoal. Além do mais, o mé-
la dirección de la empresa en los años 90, en el
todo de "tempos e movimentos" não fazia parte (e ainda não
marco de las políticas llamadas de
faz), de nossas ferramentas de trabalho. Mesmo assim o
reestructuración productiva, que invadieron las
assunto nos interessou e, inspirados na Análise Ergonômi-
empresas brasileñas y mundiales, de modo
ca do Trabalho [4], propusemos ao Ministério Público proce-
particular el sector petrolero. der a uma análise do trabalho destes operadores e a uma
avaliação de sua carga de trabalho. Assim, dizíamos nós,
Palabras clave trabajo, petróleo, recorte de poderíamos oferecer subsídios para a definição do número
personal, reconocimiento del trabajo, de pessoas necessárias para a operação. Nossos termos
psicodinámica del trabajo. foram aceites e o estudo se iniciou. Depois de sete meses,
nos quais fizemos várias observações sobre o trabalho rea-
lizado (em diferentes horários, realizando diferentes tare-
fas e em diferentes situações), além de analisar vários tipos
de materiais (documentos técnicos sobre o funcionamento
da unidade, documentos sobre a segurança da unidade, do-
cumentos administrativos sobre a alocação de pessoal e
sobre o perfil dos operadores) e de entrevistar várias pes-
soas, de vários níveis hierárquicos, concluímos que a única
justificativa da empresa para a redução do seu efetivo ope-
18 Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira

racional era a diminuição de custos: embora ela alegasse Em seguida, fomos conhecer a "unidade" que era motivo da
melhorias tecnológicas, não foi o que observamos. Tendo nossa presença. Para chegar até lá precisamos de um car-
em vista a natureza perigosa e complexa do trabalho reali- ro porque a distância era grande. No caminho, a impressão
zado, nos pareceu injustificável diminuir o número de ope- era a de um local deserto: só víamos tubulações e, de quan-
radores, uma vez que isto significava sobrecarga de traba- do em quando, aglomerados de equipamentos gigantescos:
lho e consequente aumento do risco. tanques, esferas, torres, chaminés. Aqui e ali, nuvens de
Nossa conclusão ensejou uma ação civil pública que culmi- fumaças brancas pareciam sair do solo e chamas tremula-
nou na condenação da empresa em aumentar o número de vam no alto de imensas estruturas metálicas.
seus operadores [5]. No entanto, a mesma recorreu da sen- Ao chegar à unidade, logo nos explicaram que ela tinha
tença e foi apenas depois de muitas lutas em várias unida- dois espaços: a "sala de controle" e o "campo" ou a "área”.
des operacionais da empresa por todo o país que, com a A primeira ficava numa construção de alvenaria com vá-
mudança do governo federal e da direção da empresa, em rios compartimentos (como vestiários, refeitório e banhei-
2003, a política de redução de efetivos começou a mudar, ros). Da sua grande janela vidrada, podíamos ver grande
com a realização de concursos públicos para a contratação parte dos equipamentos do campo, que ocupavam uma
de novos operadores [6]. extensa área de mais de 70 mil metros quadrados. A sala
Neste texto, meu propósito é tentar interpretar o conflito de controle assim se chamava porque era de lá que se
entre operadores e empresa como uma espécie de luta pelo controlava o processo, isto é, o conjunto das transforma-
reconhecimento do seu trabalho. Como se sabe, o reconhe- ções pelas quais as matérias primas passavam para a fa-
cimento do trabalho é um conceito fundamental da psicodi- bricação dos produtos derivados de petróleo que a unida-
nâmica do trabalho, tema deste número especial da Labore- de produzia e que ocorriam "no campo”, dentro de
al. Acredito que, o fazendo, não estou a diminuir a numerosos, volumosos e variados equipamentos: um con-
importância política do conflito nem seu caráter de luta junto de torres; vasos e bombas interligados entre si e a
contra a intensificação do trabalho (Ferreira, 2000); estou um sistema de tochas; trocadores de calor; um sistema de
apenas procurando iluminar uma de suas facetas. resfriamento; um sistema de tratamento de água; fornos e
Na primeira parte, vou descrever alguns aspectos do de- um parque de armazenamento de produtos. A sala era
senvolvimento do estudo para, posteriormente, tentar in- ocupada por um grande painel analógico [8]. Centenas de
terpretar alguns de seus resultados à luz do conceito de informações, referentes a registros de temperaturas,
reconhecimento do trabalho, conforme o mesmo está sen- pressões, volumes e fluxos de várias partes do que acon-
do desenvolvido por Dejours (1993, 2007 e 2009). tecia com os produtos dentro dos equipamentos lá fora,
estavam ali. Também estavam ali alguns dispositivos a
partir dos quais se podia interferir à distância no proces-
Primeiras impressões em uma refinaria so, fechando ou abrindo algumas válvulas ou acionando
alguns comandos; e uma grande quantidade de alarmes -
Era a primeira vez que eu estava entrando numa refinaria visuais e sonoros - para avisar a todos sobre o que não
de petróleo. Do primeiro contato com a direção me lembro estava dando certo. À primeira impressão, tudo parecia
apenas da tentativa do Superintendente de desqualificar o extremamente moderno e altamente automatizado.
assunto, minimizando sua importância e atribuindo-o ape- A sala nunca ficava vazia. Havia sempre pelo menos três
nas a "reivindicações sindicais de caráter político”. Foi nes- operadores ali [9] e os demais, quando iam ou voltavam do
ta ocasião que, também pela primeira vez, ouvi a expres- campo, sempre passavam por ela, assim como o faziam
são "enxugamento de pessoal”: a unidade (e a refinaria) operadores de outras unidades, da manutenção e a hierar-
estaria com um número de operadores muito superior ao quia do setor. Seu funcionamento era contínuo. Dia e noite,
das refinarias norte-americanas, tidas como exemplo de durante todos os dias do ano, operadores se revezavam no
eficiência e modernização, porque vinha trabalhando com serviço porque a unidade não podia parar de produzir [10].
mais operadores do que necessário. A redução, portanto,
era necessária para se "cortar gorduras”, uma vez que
"como já estava demonstrado internacionalmente, segu- Compreender o processo e o trabalho dos
rança era sinônimo de efetivos reduzidos”. Com estas de- operadores
clarações, o caráter político do conflito ficava imediata-
mente visível. Após apresentar minhas credenciais, Nosso primeiro contato com os operadores, quando chega-
informei que o estudo seria realizado por uma equipe de mos à sala de controle, foi lhes explicar quem éramos. Dis-
técnicos [7], sob minha coordenação e que passaríamos semos que estávamos ali por solicitação do Ministério Pú-
uma boa temporada ali, necessitando ter acesso a alguns blico para fazer um estudo e que deveríamos fazer uma
documentos e aos locais de trabalho. série de observações sobre o trabalho deles, acompanhan-
Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira 19

do-os em várias situações, em diversos dias e em diferen- uma tabela de rodízio que eles próprios tinham elaborado.
tes horários e turnos e conversando com eles, além de ter Quem ficava na sala era responsável pela vigilância dos pai-
acesso a documentos de trabalho. A reação deles foi um néis de controle. Pelo menos duas pessoas o faziam: uma
misto de curiosidade e descrença, de incômodo e alívio. Afi- era responsável por uma parte do processo e a outra, pela
nal, se por um lado o estudo lhes interessava, por outro outra. Quem ia para a área, deveria seguir uma "rotina”, que
nossa presença realimentava uma situação extremamente incluía várias operações como o exame dos equipamentos,
desconfortável: o conflito com a direção. Além do mais, éra- a execução ou o acompanhamento de uma manobra, a leitu-
mos totalmente desconhecidos: entenderíamos realmente ra de alguns indicadores, etc. O importante, porém, era que
o problema? O que faríamos ali? Os resultados de nosso estes dois tipos de atividades se complementassem de
trabalho iriam ajudá-los ou, ao contrário, prejudicá-los? [11]. modo que a unidade funcionasse e produzisse normalmen-
E nossa presença, como toda presença externa em uma si- te. Por isso, era importante que cada um conhecesse bem o
tuação de trabalho, poderia atrapalhar sua atividade. As- que deveria fazer e, principalmente, acompanhasse o que
sim, foi com uma natural desconfiança que os operadores estava acontecendo no processo. Toda vez que os operado-
nos receberam. Foi só na medida em que eles começaram a res de campo voltavam da área e entravam na sala de con-
nos conhecer melhor que foram escasseando os "testes" trole, davam uma olhada no painel de onde tiravam muitas
que nos fizeram passar, levando-nos para longas e cansati- informações importantes. Para conseguir fazê-lo, era im-
vas caminhadas no campo, forçando-nos a subir e descer portante que tivessem um bom conhecimento da unidade e
escadas que nos levavam a alturas elevadas, verificando de seu funcionamento. O rodízio entre "campo" e "painel"
nossas reações ao sermos obrigados a vestir alguns pesa- era um mecanismo para garantir esse conhecimento. Cada
dos e desconfortáveis equipamentos de proteção individual, instrumento no painel correspondia a uma parte do proces-
testando nossa compreensão durante as explicações que so real que acontecia lá fora e era preciso que o operador
nos davam em resposta às nossas questões sobre o funcio- fizesse essa correspondência, visualizando-a "na sua ima-
namento de um equipamento, o significado de uma ação, o ginação”, como nos explicaram." Apertar um botão para
sentido de uma palavra, em nossas tentativas de compre- abrir ou fechar uma válvula todo mundo sabe. O problema é
ender o processo. apertar o botão da válvula certa no momento certo "diziam"
Para nós, compreender o processo era fundamental para e "saber todas as implicações" deste ato aparentemente tão
compreender a função dos operadores no seu controle, simples. Esta era uma grande preocupação para eles, pois
isto é, o trabalho deles. Por isso, além de observá-los tra- quanto melhor fosse seu conhecimento geral do processo,
balhando e falar com eles, estudamos uma série de docu- melhor poderiam atuar e melhor poderiam controlar o ris-
mentos internos e externos da refinaria. Tudo indicava o co. Devido ao elevado grau de complexidade do processo,
seu risco e a sua complexidade. Risco pela natureza e a para bem conhecê-lo os operadores estimavam serem ne-
grande quantidade de produtos utilizados, explosivos, in- cessários vários anos de prática e de estudos teóricos (um
flamáveis e/ou tóxicos, submetidos a condições anormais operador nos mostrou todas as anotações que fizera, ao
de temperatura e pressão. Complexidade pela grande longo de seus vinte anos de trabalho, a respeito dos "alinha-
quantidade de variáveis que interagiam, adquirindo, a cada mentos" do sistema, isto é, do caminho que os produtos
momento, uma nova configuração e representando assim percorriam pelas tubulações, para estudá-los e não esque-
"acontecimentos" diferentes e muitas vezes, imprevisí- cê-los).
veis. Compreendemos que o trabalho dos operadores con- Além disso, o controle do processo exigia um grau de aten-
sistia em controlar o risco para produzir o produto final. ção constante. A qualquer momento, podia ocorrer uma va-
Ou seja, controlar o risco não era uma tarefa secundária; riação que exigisse uma providência rápida, quase instan-
era o pano de fundo de seu trabalho e estava, explícita ou tânea, para se evitar uma ocorrência anormal ou até uma
implicitamente, permeando todas as atividades. catástrofe. Bons operadores eram aqueles que, além de
Além disso, a análise nos ensinou que o controle do processo conhecer bem o processo, o sentiam. Eles viam uma fuma-
e do risco era um trabalho coletivo. Por diversas vezes, pen- ça diferente, sentiam um odor estranho, percebiam uma
sei em um jogo de futebol para explicar o trabalho dos opera- vibração nova, escutavam um barulho peculiar, visualiza-
dores. Em uma unidade de processo, como numa partida de vam a posição de uma válvula e já sabiam o que estava cer-
futebol, o resultado do trabalho é fruto não de uma pessoa, to ou errado. Estas informações "corporais" eram tão im-
mas de uma equipe na qual cada um tem uma função diferen- portantes como os registros formais e a eles eram
te, mas complementar, à dos outros e na qual ocorrem vários integradas para que cada um tivesse, continuamente, uma
tipos de interações, sequenciais ou simultâneas. boa representação do que estava acontecendo.
Na unidade em questão, os operadores (seis por turno, Seu trabalho era um constante resolver problemas. Todas
equivalentes ao "número mínimo" [12]) se alternavam entre as vezes que algo anormal acontecia (o que era freqüente),
os que ficavam dentro e fora da sala de controle, segundo era preciso entender suas causas e suas conseqüências
20 Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira

para poder atuar bem e no momento certo. Nessas situa- nharia com o operador parado? Porque isto significaria que
ções, as conversas entre vários operadores se adensavam, o processo estaria andando sem problemas que necessi-
sempre em linguagem operacional (levamos vários meses tassem de alguma intervenção deste operador. O operador
para compreender um pouco melhor esta linguagem). Era a poderia ficar sentado, parado, observando o seu funciona-
partir desta troca de informações que muitos problemas mento através das indicações do painel. No entanto, parado
eram resolvidos, evitando perdas de produtos ou situações não significa ausente: pelo contrário, significa que o opera-
perigosas. dor, atento ao que está acontecendo, sabe que não tem que
atuar naquele momento. E por que o engenheiro detestaria
ver operador parado? Porque acharia que ele estaria ocio-
Quando o número de operadores diminui so, o que é um dos maiores "pecados" que os trabalhadores
podem cometer no mundo do trabalho. Em várias situações,
Retomando a comparação esportiva, podemos dizer que a vimos chefias incomodadas com a aparente ociosidade dos
ausência de uma ou mais pessoas na equipe, além de so- operadores quando estavam diante dos painéis, como se a
brecarregar as demais, modifica a posição de todos e de única coisa que pudesse comprovar o seu trabalho fosse a
cada um. No futebol, um time desfalcado pode até vencer sua movimentação física.
uma partida, mas dificilmente consegue ganhar um campe- De um modo geral, as direções creditam à tecnologia um
onato jogando sistematicamente com menos de onze joga- poder que apenas os operadores possuem: a capacidade de
dores em cada jogo. Na refinaria, a diminuição do número pensar e resolver problemas, inclusive aqueles gerados por
de operadores estava obrigando a um remanejamento do falhas na tecnologia. Por isso, muitas vezes, nos disseram
serviço de cada um e de todos os operadores que restavam que o trabalho dos operadores era só (sic) vigiar o painel do
para dar conta do trabalho que não era feito por aqueles que controle, ignorando as limitações na automação da unida-
não estavam mais lá. Com vários efeitos negativos. Com de, o caráter complexo e imprevisível do funcionamento do
menos pessoas, as conversas entre os operadores rarea- processo e as próprias falhas da tecnologia: observamos
vam e eles não podiam mais "perder tempo" com a rotina. inúmeras ocasiões nas quais os operadores, frente a indi-
Ora uma rotina bem feita era uma condição necessária para cações no painel, se perguntavam se elas seriam reais ou
se atualizar o grau de conhecimento do estado do processo apenas fruto de defeitos nos instrumentos de medições,
e dos equipamentos. A sobrecarga de trabalho era visível sem contar as possibilidades de paradas de emergência,
porque o perigo e a complexidade do processo não permi- por exemplo, por falta de energia, que obrigavam os opera-
tiam que se deixasse de fazer determinadas operações. Ao dores a retomar o processo em "modo manual”.
mesmo tempo, a impossibilidade de fazer tudo o que se fa- Estas diferenças entre as concepções das chefias e a dos
zia antes, obrigava-os a priorizar o que fazer entre várias operadores sobre o trabalho dos mesmos eram visíveis em
coisas importantes, criando situações verdadeiramente vários aspectos, como já mostramos (Ferreira, 1996): en-
conflituosas, psicológica e moralmente. quanto a direção considerava os riscos sob controle desde
No entanto, estes problemas pareciam não ser considera- que as normas de segurança fossem respeitadas, os opera-
dos pela hierarquia. A concepção do trabalho dos operado- dores diziam que os riscos podiam fugir ao controle, mesmo
res como sendo perigoso, complexo e coletivo [13] não era que as normas de segurança fossem respeitadas. Enquanto
compartilhada por ela, que tinha a tendência de considerá- a direção considerava o funcionamento do dispositivo tec-
-lo bem mais simples. nológico normalizado e com poucas alterações, os opera-
Não é de se estranhar, portanto, que os trabalhadores se dores diziam o contrário. Enquanto para a direção os opera-
indignassem com algumas manifestações de menosprezo dores tinham poucas tarefas, todas relativamente simples,
pela sua atividade: um operador nos mostrou um bilhete de os operadores afirmavam que tinham muitas tarefas dife-
um chefe, guardado há anos, que dizia: ‘operador não deve rentes, algumas de alta complexidade. Enquanto para a di-
pensar’. reção a alocação das tarefas entre os operadores era bem
delimitada, para os próprios operadores esta delimitação
nunca era tão nítida. Enquanto, para a direção, os modos
Duas concepções diferentes sobre o trabalho dos operatórios eram fixos e repetitivos, para os operadores
operadores eles eram variáveis e heurísticos porque deveriam corres-
ponder às situações reais do sistema. Enquanto para a che-
“A refinaria ganha quando o operador está parado, mas en- fia havia um predomínio de tarefas de simples vigilância,
genheiro [14] detesta ver operador parado”. Esta frase reflete para os operadores o importante eram as tarefas de plane-
bem um dos problemas que logo identificamos: a diferença jamento e de pronta intervenção. A direção também não le-
entre a concepção que a chefia tinha do trabalho dos opera- vava em consideração as variações do estado dos operado-
dores e a que eles próprios tinham. Por que a refinaria ga- res em função das mudanças de horário devidas ao sistema
Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira 21

de turnos alternantes; já os operadores, sabiam como seu


estado era alterado física e mentalmente em função das Considerar trabalhadores como "gordura" a ser cortada é
trocas de horários. Para a direção a gestão da unidade de- extremamente pejorativo e dá bem a idéia do caráter de
veria ser baseada na hierarquia, com valorização do de- desvalorização do trabalhador e de seu trabalho. Presen-
sempenho individual; para os operadores, a gestão do tra- ciamos várias manifestações desta desvalorização, rela-
balho na unidade era um processo coletivo e, portanto, a cionadas a diferentes aspectos: ao tipo de conhecimento
experiência prática coletiva deveria ser valorizada. Enfim, dos operadores (“não sabem nem fazer uma média ponde-
se para a direção o trabalho da equipe era considerado o rada”); à natureza de seu trabalho (“só têm que vigiar os
"somatório" de trabalhos individuais, para os operadores o painéis”); ao emprego de seu tempo (“ficam ociosos”). Com
trabalho da equipe era o resultado de uma "integral" dos esta desvalorização, a hierarquia conseguia defender a di-
trabalhos individuais. Dizendo em outras palavras, para as minuição do tempo de treinamento para ser operador e pre-
chefias o trabalho dos operadores era um problema; para gava a polivalência entre vários setores (Cequinel, 2003).
os operadores, a solução dos problemas.
Como sintetizou mais tarde um operador experiente (Cequi-
nel, 2003), na sua concepção de trabalho, as chefias confun- Uma reunião de reconhecimento
diam o real com o ideal, o que era com o que gostariam que
fosse, e, com este comportamento, desvalorizavam e sim- Quando o estudo chegou ao fim, quisemos fazer uma reu-
plificavam o trabalho dos operadores, fornecendo argu- nião [17] para apresentá-lo aos operadores de modo que os
mentos técnicos ao processo político de redução de efetivos mesmos conhecessem o nosso trabalho e verificassem se
ou downsizing. não tínhamos nos enganado em algumas terminologias téc-
nicas e próprias do petróleo. A reunião deveria ser feita fora
do local de trabalho e, por isso, alguns operadores nos pro-
A política de redução de pessoal puseram a sede de um clube local. Lá chegando, no dia
marcado, encontramos todos os operadores da unidade,
Na linguagem empresarial, a redução do número de traba- com exceção dos que estavam naquele momento traba-
lhadores é expressa como "enxugamento de pessoal" ou lhando na refinaria, o que era, no mínimo, uma demonstra-
"corte de gorduras" [15]. Trata-se da versão brasileira do do- ção de interesse pelo nosso trabalho.
wnsizing norte-americano ou do dégraissage francês, uma Primeiro, lhes explicamos em linhas gerais nossas conclusões
forma eufêmica de falar sobre o corte de empregos, como e o propósito da reunião. Eles imediatamente se organizaram
dizia Wacquant: em três grupos (cada grupo acompanhando um de nós, os três
pesquisadores) e verificaram todas as nossas dúvidas técnicas,
Le verbe to downsize est un terme technique qui provient corrigindo alguns pequenos erros que havíamos cometido.
de l’industrie automobile où Il designe la réduction de la Compreenderam, de imediato, alguns esquemas gráficos que
taille des véhicules. C’est en 1982 que s’amorce son appli- tínhamos feito para ilustrar seu trabalho, como os que repre-
cation aux employés plutôt qu’aux produits d’une firme. sentavam os longos percursos que faziam durante as rotinas de
Depuis, les directeurs des ressources humaines ont in- trabalho, caminhando dentro da unidade, e imediatamente des-
nové un vaste lexique visant ‘à "adoucir" voire à masquer cobriram algumas incoerências dentro deles que nós, pronta-
sémiotiquement les suppressions d’emplois. Dans l’Amé- mente, corrigimos. Quando viram um esquema onde represen-
rique d’aujourd’hui, notamment au sein des grandes távamos, num gráfico, uma comparação entre o que a empresa
compagnies, un salarié n’est point licencié, limogé ou mis considerava ser o seu trabalho e o que eles efetivamente fa-
à la porte, et encore moins viré; il est "séparé”, "désélec- ziam, que mostrava uma grande diferença (isto é, que eles fa-
tionné" ou "désembauché”, ‘’transitionné" ou "réduit”, ziam muito mais coisas e coisas muito mais variadas do que as
"non realloué" ou "déprogrammé”, "délogé" ou bien en- chefias previam), sua satisfação foi visível: finalmente alguém
core "non-renouvelé" Quant à l’entreprise, elle se havia compreendido toda a complexidade e o perigo do trabalho
contente de procéder à un "recentrage du mix des qualifi- que realizavam. Alguns chegaram mesmo a expressar o alívio
cations”, à une "correction du déséquilibre de main- que sentiam por ver que o que estavam tentando demonstrar
d’oeuvre" ou encore à une "élimination des redondances”. quando denunciavam a diminuição de efetivos não era sinal de
Maints autres vocables diffcilement traduisibles, tels de- covardia ou de falta de vontade de trabalhar: pelo contrário, de-
cruited, excessed, ou surplussed, expriment bien cette idée monstrava um sentimento de responsabilidade profissional
que les employés sont devenus une charge excédentaire, com a produção e segurança e de indignação contra decisões
un poids mort, un fardeau inutile, bref une tare dont la empresariais baseadas apenas em motivos econômicos. Seu
firme a le droit mais aussi le devoir de se délester preste- trabalho tinha sido reconhecido por nós e, mais importante,
ment. (Wacquant,1996, p. 70) [16]. este reconhecimento iria se tornar público.
22 Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira

O reconhecimento do trabalho na psicodinâmica do Este reconhecimento do qual fala Dejours é um reconheci-


trabalho mento simbólico e, segundo ele, pode adquirir duas formas:
a da constatação e a da gratidão, pela "contribuição dos tra-
O conceito de reconhecimento do trabalho tem sido desenvol- balhadores à organização do trabalho”. Insiste Dejours que
vido por Christophe Dejours desde, pelo menos, 1993, quando o reconhecimento não é sobre o trabalhador, mas sobre o
foi publicado um addendum teórico chamado "Da psicopatolo- seu fazer e passa sempre por julgamentos proferidos por
gia do trabalho à psicodinâmica do trabalho" na segunda edição outrem: julgamentos de utilidade, como ele os chama, pro-
ampliada de seu primeiro livro, Travail usure mentale, essai de feridos principalmente pelos superiores hierárquicos e jul-
psychopathologie du travail, de 1980 (traduzido no Brasil, em gamentos de beleza, proferidos pelo pares.
1987, como A loucura do trabalho). Foi nesse momento que o
trabalho de Dejours deu uma importante guinada: ao invés da Estes julgamentos têm uma particularidade em co-
psicopatologia, o que passou a ser o foco das suas preocupa- mum: se referem ao trabalho feito, isto é, ao fazer e não
ções foi a normalidade psíquica: como era possível permane- à pessoa. Mas, em retorno, o reconhecimento da quali-
cer saudável apesar das graves dificuldades encontradas dade do trabalho realizado pode se inscrever ao nível
para se realizar o trabalho? [18] Se a psicopatologia do trabalho da personalidade em termos de ganhos no registro da
era definida como" o sofrimento psíquico resultante da con- identidade. Em outras palavras, a retribuição simbólica
frontação dos homens à organização do trabalho”, as preocu- conferida pelo reconhecimento pode adquirir um senti-
pações da nova disciplina eram ampliadas no sentido de fazer do em relação a expectativas subjetivas sobre a reali-
uma "análise psicodinâmica dos processos intersubjetivos zação pessoal. (Dejours, 1993, p.227, tradução livre).
mobilizados pelas situações de trabalho" (Dejours, 1993, p.
207, tradução livre). Se o trabalho podia ser fonte de sofri- É aí que se fecham os "elos intermediários da dinâmica do
mento e de distúrbios mentais, ele também podia ser fonte de reconhecimento”: o reconhecimento do trabalho é funda-
prazer e de realização pessoal. mental para a constituição da identidade, que, por sua vez,
Foi nesse contexto que o reconhecimento do trabalho apa- é fundamental para a saúde mental. "A identidade necessita
receu como conceito fundamental. Era a partir dele que o do olhar dos outros" diz ele. E a "identidade insuficiente-
sofrimento do trabalho poderia ser, de certo modo, não só mente fundada é uma porta aberta à doença mental" (De-
neutralizado como até transformado em prazer no traba- jours, 2009, p.118, tradução livre). O trabalho pode ser um
lho. A explicação dada era, mais ou menos e resumidamen- mediador na construção da identidade, fortalecendo psiqui-
te, a seguinte: no curso dos enfrentamentos das dificulda- camente o sujeito frente aos riscos de doenças mentais e
des inerentes à realidade do trabalho, os sujeitos se em dois importantes registros: o da identidade de cada um
esforçam, isto é, mobilizam suas capacidades físicas, suas e o da identidade coletiva. "Com o reconhecimento, são ob-
inteligências, habilidades e disposições, suas capacidades tidas gratificações preciosas no registro da identidade: de
de relacionamento, suas subjetividades, enfim, para conse- um lado, pertencimento a um coletivo ou a uma comunida-
guirem um bom resultado. "A mobilização subjetiva é muito de; de outro, identidade singular" (Dejours, 2009, p.117, tra-
forte na maioria dos sujeitos. Tudo se passa como se o su- dução livre).
jeito, confrontado à organização do trabalho, não pudesse Este breve resumo já mostra a importância conferida pela
evitar a mobilização dos recursos de sua inteligência e de psicodinâmica do trabalho ao reconhecimento do trabalho.
sua personalidade" (Dejours,1993, p.225, tradução livre). Não é demais lembrar que, além da psicodinâmica do tra-
Se estes esforços forem reconhecidos, todo o sofrimento balho, o tema do reconhecimento, tem sido recentemente
que causaram pode ser, de certa forma, neutralizado e os motivo de atenção de filósofos e sociólogos de diversas par-
sujeitos podem experimentar até prazer. Por outro lado, se tes do mundo, como Ricoeur (2005 e 2006) e Renault, (2007),
estes esforços não forem reconhecidos, o sofrimento que na França; Honneth (2007, 2008 e 2009), Voswinkel (2007) e
causaram é apenas sofrimento, sem sentido, e pode levar a Kocyba (2007), na Alemanha; Fraser (2005 e 2007) nos Esta-
descompensações psíquicas. Haveria, portanto, no traba- dos Unidos e Taylor (1994) no Canadá [19], para só citar os
lho, uma dinâmica entre contribuição e retribuição: nomes mais (talvez) conhecidos deste movimento. O suges-
tivo título de um livro editado na França, em 2007, A busca de
Na contrapartida da contribuição que dá à organização reconhecimento: novo fenômeno social total (Caillé, 2007), reu-
do trabalho, o sujeito espera uma retribuição e, às ve- nindo um conjunto de textos de vários autores sobre, princi-
zes até, ele só espera que suas iniciativas e seu desejo palmente, a problemática da falta de reconhecimento, mos-
de contribuir e de não ser apenas um estrito executan- tra como o assunto pode ser analisado sob os mais
te, condenado à obediência e à passividade, não sejam diferentes pontos de vista.
sistematicamente sufocados. (Dejours,1993, p.225, tra-
dução livre)
Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira 23

À guisa de conclusões prescindível. É aí que as diferentes concepções sobre o tra-


balho adquirem todo o seu valor. E é só na medida em que os
A questão de diminuição de efetivos abordada neste estu- trabalhadores ousam apresentar e defender o seu trabalho
do foi apenas o início de um processo de "reestruturação concreto, e confrontá-lo com aquele concebido pela chefia
produtiva" pela qual a empresa passou, no afã de dimi- (em geral simplificado e subestimado) que o processo pode
nuir custos e na esteira do que acontecia em todo o mun- progredir, como aconteceu no caso da negociação anterior-
do nos anos 80 e 90. Nas empresas petrolíferas, em par- mente citado.
ticular, o downsizing foi tão grande que, como disse o Mas ainda restam questões, entre elas saber por que os pe-
ICEM (1998), as empresas petrolíferas começaram a troleiros resistiram tão bravamente. Parece-me que a no-
apresentar sinais de "anorexia empresarial”, pois os cor- ção de perda também é importante: a redução de efetivos
tes de "gorduras" passaram a atingir seus órgãos vitais representou uma perda na qualidade do trabalho, que sem-
[20]
. pre foi prezada na empresa e reconhecida nacionalmente;
No caso brasileiro, alguns grandes acidentes, que culmina- uma perda na qualificação dos trabalhadores e um baque
ram em março de 2001 com o afundamento da plataforma na imagem de competência dos próprios operadores e na
P- 36 que resultou na morte de 11 operadores e na perda sua reconhecida capacidade de organização e luta.
total da plataforma, com a comoção nacional que ocasio- É por isso que podemos considerar a luta dos petroleiros
nou, parecem ter sido um sinal definitivo para que a política contra a redução de efetivos como uma luta pelo reconheci-
de redução de pessoal fosse interrompida e, com a mudan- mento de seu trabalho, pelo reconhecimento de sua compe-
ça de governo, começasse uma política de contratação de tência e pelo reconhecimento de sua responsabilidade. O
pessoal. que aconteceu foi a feliz coincidência entre a vontade de ob-
No entanto, se durante todo este período os trabalhadores ter este reconhecimento e as condições de obtê-lo. Estas
petroleiros não tivessem se manifestado contra esta políti- condições foram dadas pela tradição de participação políti-
ca, provavelmente seus efeitos teriam sido ainda mais dele- ca e de luta que historicamente marcaram esta categoria
térios. De fato, desde o início, os trabalhadores reagiram e, no Brasil.
como fizeram no estudo que estamos apresentando, sem
canais de negociação com a direção da empresa não hesita-
ram em levar suas apreensões ao Ministério Público e à Notas
Justiça. Só a nossa equipe participou de vários deles, de
modo que pudemos nos aprofundar no assunto, conhecer [1] Cada "unidade" ou "unidade de processo" da refinaria é uma
melhor os argumentos de ambos os lados, compreender espécie de fábrica que produz um produto específico derivado do
que a questão da determinação de efetivos era uma questão petróleo, como gasolina, diesel, etc.
de negociação e, assim sendo, que caberia a cada uma das [2] Na década de 1990, a política de pessoal da empresa foi
partes apresentar seus argumentos e seus números. A in- responsável por diminuir o número de seus trabalhadores
sistência da resistência dos sindicatos forçou a empresa a efetivos de cerca de 60 mil para 33 mil e de terceirizar grande
colocar no seu Acordo Coletivo de Trabalho uma cláusula parte de seus serviços.
que previa um fórum de discussão sobre a questão dos efe- [3] A Constituição Brasileira, desde 1988, deu evidências ao
tivos e tive a oportunidade de acompanhar um estudo piloto Ministério Público, que passou a ser uma espécie de Ouvidoria da
previsto nesta cláusula enquanto assessora do sindicato. sociedade brasileira, atuando na tutela dos interesses difusos e
Foi uma experiência de três anos que terminou, enfim, com coletivos. www.mpu.gov.br/navegacao/instituicional/historico.
uma vitória (Ferreira, 2003). Acesso em 27/10/2010.
Neste longo processo, uma questão sempre me intrigou: [4] A Análise Ergonômica do Trabalho ou AET é uma metodologia
por que as empresas, que não se negam a negociar salá- criada na década de 70, pelo Laboratório de Ergonomia do CNAM
rios, se negam a negociar o número de seus trabalhadores, em Paris, França, quando seu diretor era Alain Wisner. Represen-
uma vez que nos dois casos trata-se de uma questão econô- ta uma seqüência de etapas para se realizar um estudo ergonô-
mica (na medida em que ocorre dentro de limites vigentes e mico das quais as mais importantes são a análise da demanda, a
aceitos socialmente) e política (porque depende da correla- análise das condições da empresa e a análise da atividade dos
ção de forças entre as partes) e que o custo do trabalho de- trabalhadores (através de várias técnicas dentre as quais
pende não só do nível salarial como do número de empre- observações detalhadas da mesma são as mais importantes).
gados? Uma das explicações para esta discrepância me [5] Em 15 de dezembro de 1993, por sentença do juiz Roberto Maia
parece estar na diferença da natureza dos dois tipos de Filho, fundamentada na ação impetrada pela Promotoria de Meio
questão: pode-se arbitrar a questão salarial sem discutir o Ambiente de Cubatão, a empresa foi obrigada a aumentar o
trabalho concreto. Mas para se determinar o número de número de operadores da unidade em questão e manter um
trabalhadores, a discussão sobre o trabalho concreto é im- número mínimo de oito operadores por turno (eram seis)
24 Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira

acrescidos de um efetivo de mais 30%, totalizando 52 operadores. dos mais que aos produtos de uma firma. Desde então, os
(A Tribuna, 21/12/1993). gerentes de recursos humanos inovaram um vasto léxico visando
[6] Concursos públicos de ingresso para a admissão de pessoal, "adoçar"e mascarar semioticamente a supressão de empregos.
que estavam suspensos na década de 1990, foram abertos e o Nos Estados Unidos atuais, principalmente nas grandes compa-
efetivo operacional da empresa começou a ser reposto, de modo nhias, um trabalhador não é mais demitido, posto na rua: ele
que em 2010 o efetivo próprio era de cerca de 70 mil trabalhado- é"separado», «desselecionado»,"transicionado"ou"reduzido»,"n
res. Os sindicatos reconhecem a importância destas novas ão realocado»,"desprogramado"ou"não renovado». Quanto à
contratações, mas continuam a denunciar que os trabalhadores empresa, ela se contenta em proceder a uma"recentragem do
estão expostos a cargas de trabalho excessivas (FUP, 2007). mix de qualificações», a uma"correção do desequilíbrio de mão de
[7] A Dra. Aparecida Mari Iguti, médica e doutora em Ergonomia, o obra"ou ainda a uma"eliminação de redundâncias». Muitas outras
engenheiro José Marçal Jackson Filho que, na época, estava em palavras dificilmente traduzíveis, como decruited, excessed, ou
formação em ergonomia e eu mesma. surplussed exprimem bem esta idéia que os empregados se
[8] Poucos anos depois, os painéis analógicos foram substituídos tornaram uma carga excedente, um peso morto, um fardo inútil,
por sistemas de controle computadorizados e as salas de enfim, uma tara de cuja firma tem não só o direito mas o dever de
controle de cada unidade de processo foram agrupadas em uma se desfazer rapidamente"(Wacquant,1996, p70,tradução livre).
única sala, distante do "campo”. [17] Esta etapa está prevista no método que inspirou este estudo:
[9] Indústria capital intensivo, as refinarias de petróleo funcionam a Análise Ergonômica do Trabalho (AET).
com pouquíssimos trabalhadores. Por isso, qualquer alteração no [18] Ao longo de todos estes anos, a busca de respostas para
seu número representa uma grande alteração: quando, por estas questões e de teorias para respaldá-las constitui o
exemplo, uma unidade que funcionava com dois operadores passa principal esforço de Dejours. Como ele diz, a psicodinâmica do
a ter um operador, ela perde 50% de seu pessoal. Este estudo foi trabalho"é uma disciplina clínica […] mas também uma disciplina
decorrente de uma redução de onze para oito operadores por teórica, que se esforça para inscrever os resultados da investiga-
turno. ção clínica sobre a relação no trabalho em uma teoria do sujeito,
[10] As refinarias têm um funcionamento contínuo e, portanto, que leva em conta a psicanálise e a teoria social.”(Dejours, 2001,
têm equipes de trabalhadores se revezando dia e noite, segundo p.1,tradução livre).
diferentes esquemas de turnos, com duração de seis ou oito [19] O tema do reconhecimento mereceria um estudo mais
horas e, no mínimo cinco equipes (a cada dia, quatro trabalhando aprofundado que ultrapassa as possibilidades deste artigo. No
e uma de folga). entanto, gostaria de lembrar alguns resultados de uma breve
[11] Alguns anos depois, soubemos que alguns operadores tinham pesquisa que realizei ao escrever o presente texto. Em 2007, a
sido punidos por terem levado a questão a público, com transfe- revista Travailler publicou um dossier especial (sob os cuidados de
rências para regiões distantes e com mudanças de funções. C. Dejours), sobre o tema do reconhecimento, com um artigo do
[12] Como não há interrupção no processo, é necessário que o francês Emmanuel Renault, Reconnaissance et travail, e de três
número de operadores seja maior do que o número necessário pesquisadores todos eles do Instituto de Pesquisa Social da
para operar cada unidade, a fim de poder cobrir ausências Universidade de Frankfurt, inclusive de seu diretor atual Axel
eventuais e férias. Portanto, existem dois números a serem Honneth. O artigo de Honneth, Travail et agir instrumental. À propos
considerados no dimensionamento de pessoal: o chamado des problèmes catégoriels d’une théorie critique de la société é a
"número (ou quadro) mínimo" e o"número (ou efetivo) total”, o tradução francesa de um artigo publicado em alemão em 1980.
qual, por definição, é sempre maior que o mínimio. Quando não se Kocyba escreveu Reconnaissance, subjectivisation, singularité e
alcançava o "número mínimo”, operadores do turno anterior Voswinkel escreveu L’admiration sans appréciation. Les paradoxes
deveriam "dobrar" turno, ou seja, permanecer trabalhando por de la double reconnaissance du travail subjectivisé. Honneth é o
mais uma jornada de trabalho. Estes conceitos estavam no autor de Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos
coração das discussões sobre dimensionamento de pessoal. sociais, tradução brasileira de uma obra publicada em alemão em
[13] "O trabalho dos petroleiros: perigoso, complexo contínuo e 1992 e fruto de sua tese de livre docência, onde ele"tenta
coletivo" foi o título de um livro que escrevemos, posteriormente, desenvolver os fundamentos de uma teoria social de teor
com Aparecida Mari Iguti, sobre o assunto (Ferreira & Iguti, 1996). normativo partindo do modelo conceitual hegeliano de uma"luta
[14] Neste caso, os "engenheiros" eram os chefes operacionais por reconhecimento"(Honneth, 2009). O livro de Ricoeur,
das unidades de processo. traduzido no Brasil em 2006, se chama Percurso do reconhecimen-
[15] Nos dois casos, significa considerar a empresa como um to. Em um outro texto que tem o sugestivo título de"Tornar- se
corpo humano, a ser modelado pelos atuais padrões de beleza: capaz, ser reconhecido"(2005, tradução livre) onde brinca com os
juventude, magreza e flexibilidade. dois polos da identidade pessoal de cada um: as capacidades que
[16] "O verbo to downsize é um termo técnico que vem da indústria a pessoa sabe possuir e a necessidade que sente de que outros as
automobilística, onde designa a diminuição do tamanho dos reconheçam, diz ele:"eu me identifico pelas minhas capacidades,
veículos. Foi em 1982 que começou sua aplicação aos emprega- pelo que sei fazer”
Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira 25

[20] Nos Estados Unidos, um estudo revelou o número de Ferreira, L. L., Iguti, A.M & Bussacos, M. A. (1998). A diminuição de
empregos nas indústrias de petróleo e gás diminuiu drasticamen- efetivos em um terminal marítimo de petróleo e o trabalho de seus
te entre 1982 e 1999, passando de um nível máximo de 1.650.000 operadores. Estudo solicitado pelo Ministério Público à
empregados a aproximadamente 640.000. Entre 1988 e 2000, as Fundacentro. São Paulo: Fundacentro (datilografado)
empresas de petróleo dos Estados unidos despediam em média Ferreira, L. L., Iguti, A. M & Bussacos, M. A.(1999). Laudo
5,25% de seus empregados a cada ano. (Gas Daily, Arlington, complementar ao estudo"A diminuição de efetivos em um terminal
Virginia, 2 de junho de 2000). marítimo de petróleo e o trabalho de seus operadores”. Estudo
solicitado pelo Ministério Público à Fundacentro. São Paulo:
Fundacentro (datilografado)
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26 Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira

reproduction sociale. Actes de la Recherche en Sciences PT/ES

Sociales, 115, 65-79. Cahier"Les nouvelles formes de domina- Una lucha por el reconocimiento del trabajo
tion dans le travail (2)". contra la política de recorte de personal

Resumo O texto pretende discutir alguns


resultados de um estudo desenvolvido pela autora
há vinte anos, à luz do conceito de"reconhecimento
do trabalho"tal qual a psicodinâmica do trabalho o
apresenta. O estudo foi o primeiro de uma série de
outros que se seguiram nos quinze anos
posteriores, sempre relacionados à luta de
trabalhadores petroleiros brasileiros contra a
política de"enxugamento de pessoal”, versão
brasileira do downsizing, aplicada pela direção da
empresa nos anos 90, na esteira das políticas
chamadas de reestruturação produtiva que
invadiram as empresas brasileiras e mundiais,
particularmente, o setor de petróleo.

Palavras-chave trabalho, petróleo, redução de


efetivos, reconhecimento do trabalho,
psicodinâmica do trabalho.
Uma luta pelo reconhecimento do trabalho contra a política de redução de pessoal • Leda Leal Ferreira 27

FR EN

Une lutte pour la reconnaissance au travail et A Struggle for the recognition of work against
contre la politique de réduction du nombre workforce reduction policy
des travailleurs
Abstract The text presents the results of a study
Résumé Le texte cherche à discuter quelques developed 20 years ago by the author in light of the
résultats d’une étude développée par l’auteur il y a concept of"recognition of work"according to the
vingt ans, à la lumière du concept psychodynamics of work. This study was the first
de"reconnaissance au travail”, tel que la of a series of other works that followed in the next
psychodynamique du travail le conçoit. Cette étude 15 years related to the struggle of petroleum
a été la première d’une série qui s’est étendue au workers against the"enxugamento de
cours des quinze années suivantes, toujours en pessoal"policy, the Brazilian version of downsizing.
rapport avec la lutte des travailleurs pétroliers A policy applied in the 1990s by the company
brésiliens contre la politique de"enxugamento de management in the wake of a policy known as
pessoal”, expression brésilienne qui correspond productive restructuring which was widely adopted
au dégraissage d’effectifs (downsizing). Cette by Brazilian and international firms and
politique a été appliquée par la direction de particularly by the petroleum sector.
l’entreprise au cours des années 1990, dans le
contexte des politiques de restructuration Keywords work, petroleum, reduction of
productive qui ont envahi les entreprises permanent staff, recognition of work,
brésiliennes et mondiales et qui ont atteint, psychodynamics of work.
particulièrement, le secteur pétrolier.

Mots-clé travail, pétrole, dégraissage d’effectifs,


reconnaissance du travail, psychodynamique du
travail.

Como referenciar este artigo? Manuscrito recebido em: Dezembro/2010


Aceite após peritagem: Maio/2011
Ferreira, L. L. (2011). Uma luta pelo reconhecimento do
trabalho contra a política de redução de pessoal.
Laboreal, 7, (1), 17-27.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=37t45n
SU5471124227833:84381
28 VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 28-41

PESQUISA EMPÍRICA
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação

Uchida, S.1, Sznelwar, L. I.l.2 Barros, J.O.3, Lancman, S.4

1. Fundação Getulio Vargas Resumen El propósito de este trabajo es presentar


Av. 9 de Julho, 2029 – Bela Vista el resultado de una acción en psicodinámica del
CEP 01313-902 – São Paulo, SP trabajo (PDT), desarrollado con un equipo de
Brasil trabajadores de un Centro de Atención Psicosocial
Seiji.uchida@fgv.br (CAPS), que se encuentra en Sao Paulo, Brasil. Es
un servicio especializado en atención de salud
2. Escola Politécnica da USP mental dirigido principalmente a personas con
Departamento de Engenharia de Produção trastornos mentales severos y persistentes.
Av. Prof. Luciano Gualberto, travessa 3, nº 380
Buscamos, a través de una acción en PDT,
CEP 05508-010 – São Paulo, SP
comprender las experiencias de los trabajadores,
Brasil
la relación sufrimiento y el placer en su trabajo,
laertesz@usp.br
así como las estrategias desarrolladas para lograr
resultados mediante la identificación de factores
3. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
críticos y los medios para superarlos. La creación
Av. Dr. Arnaldo, 455 – Cerqueira César
de espacios colectivos de discusión que permita
CEP 01246903 – São Paulo, SP
Brasil
identificar y dar visibilidad a las estrategias de
Juliana.obarros@usp.br trabajo creado por la inteligencia individual y
colectiva de los sujetos en su experiencia real es
4. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo un punto clave de este enfoque. Se considera que
Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e la inclusión de las experiencias de los trabajadores
Terapia Ocupacional para mejorar la aplicación de las políticas públicas
R. Cincinato Braga, 184, apto 51, sobre salud mental en Brasil permite mejorías en
CEP 01333-010 – São Paulo, SP las instituciones.
Brasil
lancman@usp.br Palabras clave sistema de salud pública, salud
mental y trabajo, la cooperación y el trabajo en
equipo, acción en psicodinámica del trabajo.
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 29

Introdução lítica e dos serviços de saúde mental, propondo a adoção


das redes municipais como referência para um tratamento
No Brasil, até o final da década de 1970, a assistência ofere- integrado, a partir da interlocução entre os vários níveis de
cida no campo da saúde mental era centrada nas grandes atenção em saúde. Foi nesta época que os Centros de Aten-
instituições asilares, configurando uma determinada forma ção Psicossocial (CAPS) foram designados como principal
de compreensão da loucura e conseqüentemente de práti- referência para o tratamento das pessoas com transtornos
cas terapêuticas, hoje consideradas bastante restritas e mentais (Brasil, 1992; 2005; Barros, 2010).
ultrapassadas. O modelo assistencial adotado, que tinha Essa proposta do Ministério da Saúde ganhou, em 2001, o
como foco a doença e a sintomatologia psiquiátrica mani- estatuto de lei, que reafirmou a garantia e defesa dos direi-
festa, favorecia a utilização de práticas que terminavam por tos de cidadania das pessoas com transtornos mentais e
promover a permanência das pessoas com transtorno apoiou a construção das redes de serviços que asseguras-
mental nas instituições hospitalares por tempo indetermi- sem esses direitos como uma forma para a organização da
nado gerando um grande contingente de pacientes crôni- atenção em saúde mental (Brasil, 2001a,b; Barros, 2010).
cos, moradores dos hospitais. Em decorrência das interna- Segundo a legislação brasileira, os CAPS’s são serviços vin-
ções prolongadas nestas instituições, conhecidas como culados à rede pública de saúde, estão inseridos na comuni-
manicômios, na maior parte das vezes precárias, e pela dade e oferecem atendimento especializado em saúde men-
falta de opções terapêuticas que não as medicamentosas, tal. Têm como missão acolher prioritariamente pessoas
os usuários dos serviços encontravam-se em situação de com transtornos mentais severos e persistentes em uma
abandono e perdiam o contato com seus familiares e com área de abrangência delimitada. Oferece três regimes de
redes sociais de suporte que pudessem oferecer qualquer tratamento: intensivo, semi-intensivo e não-intensivo, va-
possibilidade de desospitalização. Os hospitais psiquiátri- riando segundo as necessidades das pessoas com transtor-
cos brasileiros chegaram a ser comparados com campos nos mentais, em diferentes momentos da vida (Brasil, 2002).
de concentração, ou seja, não asseguravam aos pacientes Estes serviços estão organizados em diferentes modalida-
condições de vida e tratamento, e feriam seus direitos de des: CAPS I, CAPS II e CAPS III, destinados a adultos, maio-
cidadania (Machado et al 1978; Lancman, 1999). res de 18 anos e definidos por ordem crescente de porte,
Assim, em diálogo com contextos internacionais e reformas complexidade, abrangência populacional, horário de fun-
da assistência no campo da saúde mental, como as que cionamento, número de funcionários e de pessoas atendi-
ocorreram na Itália, França, EUA e Inglaterra, o Brasil, vem das. Existem ainda aqueles especializados no atendimento
buscando produzir respostas mais adequadas diante das a crianças e adolescentes com transtornos mentais (CAPS
necessidades apresentadas pelas pessoas com transtor- i), além daqueles destinados ao atendimento de pessoas
nos mentais. Para tanto, no final da década de 1980, foram que fazem uso abusivo ou tem dependência de substâncias
criados serviços extra-hospitalares no intuito de tentar ga- psicoativas (CAPS ad) (Brasil, 2002).
rantir atendimento na própria comunidade, o mais próximo A proposta é que o atendimento oferecido no CAPS seja di-
possível dos locais de moradia dos sujeitos e de seus fami- ferente daquele oferecido no contexto hospitalar. O entendi-
liares, reforçando assim uma rede social mais próxima, mento é que o foco do trabalho deva ser a vida da pessoa
com vistas a evitar internações prolongadas e recorrentes. com transtorno mental e não apenas a sintomatologia psi-
Outra etapa desenvolvida paralelamente foi a reorganiza- quiátrica manifesta. Rede social, família, trabalho e habita-
ção e humanização dos hospitais psiquiátricos brasileiros ção, por exemplo, são alguns dos eixos também trabalha-
visando diminuir a situação de abandono e a falta de assis- dos nestes serviços para que o sujeito possa realmente
tência e, por fim, foi dado início ao processo de desmonta- reconstruir sua vida para além do circuito saúde-doença.
gem destes hospitais e de desospitalização dos usuários Procura-se ainda aprimorar e/ou desenvolver sua capaci-
que haviam se tornado moradores (Brasil, 2005). dade de gerar e gerir normas para a própria vida de forma a
Atualmente um dos principais desafios deste processo, no- viabilizar sua circulação e, conseqüentemente, a realização
meado como Reforma Psiquiátrica, está na implementação e de trocas sociais. Dessa forma, os atendimentos oferecidos
desenvolvimento de serviços de saúde mental na comunida- no CAPS vão para além daqueles oferecidos dentro do es-
de que consigam atender às necessidades cotidianas das paço físico dessas instituições estendendo-se para a comu-
pessoas com transtornos mentais. Compreende-se que es- nidade (Pereira, L.M.F et al, 2008).
sas necessidades não estão relacionadas apenas a cuidados Apesar de ter aproximadamente 30 anos, trata-se de um
de saúde, mas também a outras esferas da vida dessas pes- processo recente e que têm se desenvolvido com velocida-
soas, tais como: alimentação, moradia, atenção psicológica e des e constância distintas nos vários estados e cidades do
psicossocial (Nicácio, 2003; Brasil, 2005; 2007; Barros, 2010). país. Desta forma, em muitos destes lugares, a desmonta-
Assim, a partir da década de 1990, o Ministério da Saúde do gem do modelo hospitalocêntrico está acontecendo simul-
Brasil passou a definir e reorganizar a estruturação da po- taneamente à implantação do modelo territorial. Assim não
30 O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S.

é difícil supor que possa haver uma desorganização do sis- neira poderia contribuir para o desenvolvimento de ações
tema de atenção como um todo, acarretando algumas dis- que ajudassem a aprimorar esse tipo de dispositivo de saú-
sonâncias, relacionadas, sobretudo, ao possível estado de de pública (Lancman et al,. 2007).
desequilíbrio entre demanda e oferta; ao desenvolvimento O objetivo deste artigo é o de mostrar como a ação em psi-
parcial, incompleto e provisório das ações assistenciais; a codinâmica do trabalho (PDT), através da criação de um es-
sobrecarga de trabalho e seus reflexos no cotidiano laboral paço de expressão e de circulação de experiências entre os
dos agentes responsáveis pelo cuidado aos usuários. trabalhadores, pode contribuir tanto para a elucidação,
As mudanças nos espaços físicos, do modelo centrado na avanço e superação de alguns aspectos que dificultam a im-
internação para outro que prioriza o tratamento na comuni- plantação do novo modelo quanto para o conhecimento das
dade e as práticas terapêuticas voltadas para a inserção dificuldades e das estratégias criativas geradas no traba-
dos usuários na comunidade, geram a necessidade de defi- lho. Esperava-se encontrar indicações de sofrimento entre
nição de novos processos de trabalho e de capacitação dos os trabalhadores, relacionado a diferentes aspectos tais
trabalhadores. Assim, esta nova perspectiva de cuidado e como: a precariedade dos serviços onde trabalhavam, uma
tratamento somada à desmontagem e implantação simul- eventual descrença e o não-reconhecimento dos esforços
tânea de modelos distintos, coloca desafios para os traba- que realizavam para que o trabalho acontecesse.
lhadores e gestores. Um deles está na superação das difi- Por outro lado, para dar conta de um desafio de tal magni-
culdades operacionais e políticas para a implantação do tude, esperava-se também dar visibilidade para as estraté-
modelo, pois a criação de uma estrutura desse porte requer gias e soluções criativas que os trabalhadores estivessem
além da implantação de um conjunto de serviços, a concep- desenvolvendo, fruto da inteligência individual e coletiva,
ção e a criação simultânea de novas práticas e projetos or- além de discutir seu papel na promoção da saúde mental
ganizacionais de atenção (Lancman, 2008). destes. Procuramos ainda, contribuir para o avanço do novo
Acrescenta-se ainda a precariedade e a morosidade do pro- modelo, ou seja, para o aprimoramento e exeqüibilidade
cesso de constituição do sistema como um todo, gerando das propostas de atenção em saúde mental, considerando-
número insuficiente de serviços e de profissionais para a -se os diferentes cenários de produção destes serviços; e,
demanda desses serviços. Essa precariedade pode ocasio- sobretudo, favorecer o processo de transformação do sofri-
nar um deslocamento de equipes para alguns serviços e o mento em prazer no trabalho.
conseqüente esvaziamento de outros.
Além disso, esses novos equipamentos requerem a cons-
trução de processos de trabalho e de capacitação de profis- O Cuidar em Saúde Mental
sionais que também sejam inovadores, afinal trata-se de
um modelo novo, que pressupõe a construção de novas for- A atividade de cuidar de pessoas com transtornos mentais é
mas de saber-fazer e de novos paradigmas. Temos ainda o constituída, entre outros fatores, pelo encontro entre uma
pouco investimento em recursos materiais que não assegu- pessoa que sofre e outra encarregada de lhe propiciar a in-
ram que esses serviços, por vezes, funcionem em espaços tervenção técnica que visa diminuir o seu sofrimento. Sen-
adequados e que tenham a infra-estrutura necessária. do o próprio aparelho psíquico o instrumento terapêutico
Como já mencionado, trata-se de uma proposta inovadora principal do trabalhador, este tem que lidar tanto com o so-
e, desta forma, tanto o processo de produção quanto a ma- frimento do usuário quanto com o seu próprio. Um desafio
neira como os CAPS’s são organizados, fazem com que o importante é criar meios para que os trabalhadores pos-
conteúdo das tarefas e o desenvolvimento das atividades sam realizar seu trabalho, evitando que se constitua um
também estejam em construção. Há ainda o desafio de criar processo de sofrimento patogênico.
e instaurar formas de conexão com os outros níveis de A possibilidade de o trabalhador contribuir com seu conhe-
atenção que compõem a rede de assistência à saúde. cimento e inteligência no aprimoramento do processo de
Diante das possíveis dificuldades na implantação da nova trabalho é a forma de superação e transformação deste so-
Política de Saúde Mental, o Ministério da Saúde do Brasil, frimento em prazer. Afinal, o que mobiliza e motiva as pes-
em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia do soas para o trabalho é a retribuição simbólica pela contri-
Brasil, lançaram um edital para financiamento de projetos buição que elas trazem ao trabalho. Este reconhecimento
de pesquisa que pudessem contribuir neste processo. Foi favorece a possibilidade de contribuição do profissional
no contexto desse edital que a pesquisa que será apresen- para a construção de uma produção de melhor qualidade e,
tada neste artigo foi desenvolvida. Teve como objetivo con- ao mesmo tempo, possibilita o processo de realização de si.
tribuir, através de uma abordagem baseada nos preceitos Um dos conceitos fundamentais que adotamos é o de que o
da psicodinâmica do trabalho, para a compreensão das vi- trabalhar implica o fortalecimento do processo de identifi-
vências do trabalho dos sujeitos envolvidos de um determi- cação do trabalhador com o seu trabalho, através de um
nado CAPS do município de São Paulo, que de alguma ma- processo de reconhecimento do esforço, isto é, da contri-
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 31

buição individual e coletiva para se superar as dificuldades do trabalho e a ação dos trabalhadores é um excelente meio
encontradas no confronto com o real. de detectar os problemas na operacionalização das tarefas
Nessa perspectiva, para Dejours (2004), é central o concei- e suas implicações psíquicas, assim como as possíveis for-
to de identidade, entendido como uma armadura psíquica – mas de superá-los. A PDT, entendida como clinica do traba-
resultado de um processo de unificação psíquica que cons- lho, visa dar visibilidade e refletir sobre o trabalhar tendo
trói o sentimento de estabilidade, continuidade e integração como foco a racionalidade subjetiva (pathica) das ações. Isto
de si no interior de uma história que é simultaneamente significa pesquisar as relações entre os indivíduos e um co-
singular e social - que protege a saúde mental das pessoas letivo (grupo de pessoas que compartilham regras de ofício
no interior das instituições. Trata-se de uma construção in- ou experiências acerca das atividades realizadas).
tersubjetiva, pois depende do olhar do outro. Nesse sentido, A PDT ao estudar o trabalhar evidencia aspectos menos visí-
é essencial que a organização do trabalho e o conteúdo das veis e conhecidos das relações de trabalho, tais como: o
tarefas propiciem condições para a realização de si, fruto trabalho como construção identitária, as relações sofri-
de uma ressonância simbólica entre atividade de trabalho e mento e prazer que decorrem disso, a construção de defe-
história pessoal. sas individuais e coletivas, o desenvolvimento da inteligên-
Este processo de constituição identitária relacionada com o cia astuciosa, os riscos de alienação e a construção da
trabalho, que é constantemente colocada à prova, ocorre inter-subjetividade (Dejours, 2009; Dessors, 2009; Lanc-
mediante reconhecimento da ação dos sujeitos que se dá man & Uchida, 2003; Molinier, 2006).
pelo julgamento de outros,segundo dois prismas: o da utili- Trabalhar em um serviço como o CAPS, requer que o traba-
dade e o da estética (Dejours, 2003). O primeiro é feito prin- lhador construa cotidianamente um conjunto de práticas
cipalmente pelos superiores hierárquicos e, eventualmente, que deverá nortear seu trabalho. O trabalho prescrito é tê-
pelos clientes que avaliam a utilidade da ação, ou seja, sua nue e frágil tendo em vista que cada sujeito é singular e as
eficiência e relevância organizacional, social e econômica. O intervenções também devem se constituir desta forma, ou
indivíduo sente-se útil e pertencente ao grupo e à organiza- seja, os profissionais e, conseqüentemente as equipes, de-
ção do trabalho quando reconhecido por esse julgamento. Já vem construir seu processo de trabalho simultaneamente
o julgamento estético remete à beleza e originalidade da so- ao desenvolvimento da prática para realizá-lo. Este fato
lução, sendo formulado pelos pares, que reconhecem no traz uma peculiaridade a este serviço e aos profissionais
sujeito as qualidades do seu saber-fazer e sua contribuição inseridos nele. Experimentar, viver o trabalhar é um desafio
para o coletivo do trabalho. A originalidade no desempenho constante e exige o desenvolvimento de estratégias que se
da ação leva o sujeito a não ser igual a outro par, torna-o constituem numa inteligência astuciosa, própria a esses
único e singular. O julgamento é feito sobre o"fazer"e não trabalhadores.
sobre o"ser"e o sujeito para se re-assegurar como enge-
nhoso e criativo, precisa passar pelo olhar e crítica do outro,
que irá julgá-lo e reconhecer ou não as suas ações. Metodologia
Isto evidencia que o trabalho, enquanto espaço de confronto
entre o indivíduo - com suas crenças, valores e concepções A ação em PDT foi desenvolvida em um distrito na cidade de
- e o social, é permeado pelas condições concretas para sua São Paulo que aglutina alguns equipamentos de saúde
realização, sua organização e pelas diferentes formas de mental, entre eles o CAPS, onde foi realizado este estudo.
concebê-lo. Inicialmente apresentamos o projeto de pesquisa, os objeti-
Há, nesse sentido, a partir das pesquisas realizadas neste vos e os princípios da abordagem para a equipe de forma
campo, evidências claras de que o trabalho não é neutro que as pessoas que se dispuseram a participar dos grupos,
com relação à saúde das pessoas, mais especificamente resguardando o critério de voluntariado, pudessem cons-
com relação à saúde mental. Trabalhar pode promover o truir em conjunto com os pesquisadores as discussões de-
equilíbrio psíquico, a identificação com aquilo que se faz, a senvolvidas durante as sessões de trabalho, de acordo com
realização de si, porque ele é um meio essencial para a bus- as propostas de ação neste campo (Heloani & Lancman,
ca do sentido. Em suma, o trabalho é um elemento central 2004).
na construção da saúde. Em situações onde não há margem O grupo, num total de doze pessoas, foi constituído pela
de manobra, onde o trabalhador não pode contribuir com equipe de trabalhadores do CAPS e contou com a participa-
sua experiência e saber-fazer, ou não consegue realizar seu ção de profissionais diversos (psiquiatras, psicólogos, tera-
trabalho de acordo com seus princípios e crenças, ele está peutas ocupacionais, enfermeiras, assistentes sociais e
impedido de transformar o sofrimento em ações significati- farmacêutico). O caráter heterogêneo do grupo ocorreu em
vas que o levem ao prazer de realizar algo útil e belo (Szne- acordo com a própria equipe do CAPS que se organizava
lwar, 2003). dessa forma, não privilegiava as especificidades profissio-
Assim, conhecer os aspectos que envolvem a organização nais na realização do seu trabalho nem criava uma estrutu-
32 O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S.

ra muito hierarquizada entre os constituintes da equipe. rio da pesquisa entregue ao Ministério da Saúde (Lanc-
Destaca-se aqui, que apesar das pesquisas em PDT procu- man, 2008).
rarem trabalhar com grupos homogêneos, o método deve Cabe explicitar que a PDT compreende que os pesquisado-
ser adaptado a cada situação de estudo encontrada e ser res também fazem parte de um coletivo de pesquisa. Dessa
desenvolvido em acordo com as demandas dos trabalhado- forma, é usual que, durante o processo, a equipe se divida e
res e características dos grupos de trabalho. um dos membros não participe diretamente das sessões.
O grupo se reuniu por aproximadamente dezoito horas, dis- Esse pesquisador acompanha a equipe que conduz as ses-
tribuídas em uma primeira etapa com sete sessões de dis- sões durante todo o processo através de supervisões que
cussão e de uma segunda etapa com duas sessões de vali- visam ajudar na compreensão das dinâmicas estabeleci-
dação organizadas de acordo com as possibilidades dos das, nos processos de constituição do espaço de palavra e
trabalhadores e do serviço. Entre as duas etapas ocorreu das falas propriamente ditas, na formulação de hipóteses e
um intervalo de um mês para que os pesquisadores pudes- de interpretações, assim como na construção de um dis-
sem redigir um relatório. Essa dinâmica foi acordada com curso comum, baseado também na interpretação das vivên-
os trabalhadores antes do inicio do processo. cias relatadas pelos integrantes da equipe. Esse recurso
As sessões não seguiram nenhum roteiro pré-definido e metodológico é importante para assegurar um trabalho in-
desde o primeiro encontro a única instrução dada aos tra- terpretativo mais rico, fruto de um debate com a coopera-
balhadores era que eles falassem sobre a vivência do tra- ção dos diferentes olhares, inclusive daquele que não este-
balho deles. Os pesquisadores interferiram pouco no anda- ve presente e que atua junto aos pesquisadores que
mento das sessões limitando-se à condução dos grupos e a estiveram diretamente envolvidos nas sessões no sentido
mediar para assegurar a palavra a todos. Ao término das de questioná-los e ajudá-los a entender o seu envolvimento
sessões procurava-se fazer um breve resumo do que foi e como estão desenvolvendo a dinâmica com os sujeitos que
discutido assinalando alguns pontos considerados relevan- participam do grupo.
tes. Essa mesma prática foi, por vezes, utilizada no inicio da Os resultados serão apresentados aqui de duas maneiras.
sessão seguinte para retomada das discussões. Primeiramente contextualizando o trabalho no CAPS estu-
Os pesquisadores procuraram manter uma escuta atenta dado, de acordo com o cenário encontrado durante a pesqui-
ao conteúdo das falas, ao que era consensual, às discus- sa. Em seguida, será apresentada uma analise clínica ilus-
sões contraditórias, àquilo que emergia de forma espontâ- trada com trechos do relatório final validado com os
nea ou não, ao que era dito ou omitido. As sessões foram trabalhadores, principalmente aqueles que estão relaciona-
gravadas e transcritas e todos os participantes assinaram o dos com as vivências da equipe com relação ao seu trabalho.
termo de consentimento livre e esclarecido previsto pela Optou-se por apresentar diversos trechos do relatório na
comissão de ética da Faculdade de Medicina da Universida- integra com o intuito de demonstrar parte do processo de-
de de São Paulo - USP. senvolvido na ação em PDT. Este tipo de formulação é ca-
Após a primeira etapa, os pesquisadores apresentaram um racterística da maneira como são conduzidas e apresenta-
relatório provisório para os trabalhadores que participa- das as ações em PDT pela equipe responsável pela pesquisa,
ram do grupo, como o intuito de discuti-lo, validá-lo e modi- onde procura-se contextualizar o trabalho dos sujeitos e
ficá-lo, segundo as suas críticas e contribuições. No pro- trazer para o espaço público as vivências deles em um for-
cesso de validação, por ser o momento em que os mato que reflita o discurso comum construído nas sessões.
pesquisadores apresentam suas interpretações e assina- O relatório final para a PDT é muito mais do que uma síntese
lam pontos considerados importantes durante o processo das discussões realizadas nos grupos. Ele tem como objeti-
de discussão, é comum haver grande mobilização dos tra- vo principal, a partir da escuta e observação clínica, siste-
balhadores que se identificam ou refutam as interpretações matizar, elaborar interpretações e devolver aos integrantes
apresentadas. Nessas sessões de validação não é buscado do grupo um documento que seja por eles validados e que
um consenso, mas sim a garantia que todos se sintam re- reflita o melhor possível aquilo que o grupo construiu con-
presentados naquilo que está escrito e que será divulgado. juntamente. Para tal, é importante buscar recuperar aquilo
Inclusive, partes do relatório foram retiradas e outras que se vivenciou, refletir sobre o dito, mas também sobre o
acrescentadas para que a validação fosse assegurada.. O não dito, para permitir nos momentos de validação, um pro-
relatório validado apresenta então opiniões distintas, às ve- cesso final de enriquecimento do conteúdo do documento
zes contraditórias, e também consensuais; vivências pes- que se tornará público. Espera-se que essa construção
soais e compartilhadas, que se constituiu em um discurso conjunta, onde de um lado é sistematizado o conteúdo das
comum representativo do trabalho daquele grupo. sessões, e de outro, os profissionais que conduziram as
Após essas sessões de validação incorporou-se as suges- sessões apresentam suas impressões e interpretações,
tões dos trabalhadores e foi redigido um relatório final, seja facilitador de processos de apropriação do sentido e da
entregue a todos os participantes e incorporado ao relató- emancipação dos trabalhadores.
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 33

Resultados Ser do CAPS

O contexto do trabalho no CAPS Os trabalhadores ao longo das sessões de reflexão usam


comumente a expressão"ser do CAPS"como sinônimo de
Os processos de produção dos serviços do CAPS, assim trabalhar no CAPS. Essa forma de apresentar sua pertinên-
como a maneira como é organizado o trabalho, fazem com cia reflete uma relação de trabalho que transcende um vin-
que, entre outros aspectos, o conteúdo das tarefas e o de- culo formal e demonstra um forte engajamento e compro-
senvolvimento das atividades estejam continuamente em misso. Mas denota também, uma sensação de pertinência
construção. Uma das características organizacionais mar- que supera relações de trabalho usuais e remete para os
cantes destes serviços é a adoção de um modelo hierárqui- trabalhadores responsabilidades e questionamentos que
co mais horizontal onde a cooperação nas equipes é funda- se confundem entre o que seriam as atribuições técnicas,
mental para a consecução dos processos de atenção. Há as responsabilidades e limites do trabalho deles e a partici-
ainda o desafio de criar e instaurar formas de conexão com pação no projeto político de construção do CAPS. Essa sen-
os outros serviços dos vários níveis de atenção que com- sação de pertinência vivenciadas pelos trabalhadores tam-
põem a rede de assistência à saúde. Como essas conexões bém os leva a um envolvimento particular com os usuários
são muito frágeis, a organização do trabalho tem sido cons- que vai para alem da clinica e/ou da reabilitação psicosso-
tituída muito mais por acordos internos da equipe. Assim, cial. Essa forma de envolvimento, como veremos a seguir,
cada serviço vai construindo e definindo seu processo de traz conseqüências nos processos de trabalho, para as re-
trabalho a partir da realidade em que está instalada e dos lações de sofrimento e prazer no trabalho e para a realiza-
recursos de que dispõe. ção de si e construção identitária. Mas afinal o que significa
A necessidade de criar novas formas de trabalhar, a defini- para esse coletivo"ser do CAPS”?
ção de novos processos de trabalho, a dificuldade de pres- Ser do CAPS foi, inicialmente, para a equipe, uma experiên-
crição de atividades em serviços onde as rotinas são mal cia de constituição de um novo serviço, a partir da hetero-
definidas, a falta de recursos necessários, fazem com que geneidade das formações, experiências, histórias e trajetó-
nem sempre os projetos terapêuticos que conseguem reali- rias profissionais de cada um. Foi aprender a lidar com uma
zar estejam de acordo com aquilo que é previsto na reforma diversidade de percursos e estar aberto para a construção
psiquiátrica e que norteia suas ações. Isso gera conflitos conjunta de um novo projeto de atendimento em saúde
entre o sentido e as crenças que esses trabalhadores têm mental. Em alguns casos, dependendo da trajetória ante-
em relação àquilo que consideram um atendimento de qua- rior, trabalhar neste local foi também ter a coragem para
lidade em acordo com os preceitos que defendem e aquilo enfrentar o choque, o receio e a estranheza impostos pelo
que podem efetivamente realizar. A construção de um mo- convívio tão próximo com a loucura. Foi ter consciência de
delo de atenção exige uma consistência interna entre os que essa forma de convivência impunha outro tipo de ade-
elementos que compõem o processo de trabalho – objetivo, são aos profissionais que viessem a trabalhar e aceitar os
finalidade, instrumentos e a ação dos trabalhadores. desafios de se inserir em um modelo de atendimento em
A mudança nos espaços físicos e de um modelo centrado na construção sem, por vezes, ter clareza de que serviço era
internação para outro, onde os usuários passam o dia e re- esse e que riscos trariam para aqueles que dele quisessem
tornam para suas casas no final da jornada com foco na re- participar.
abilitação psicossocial – práticas terapêuticas voltadas Nesse novo contexto de trabalho, ser do CAPS, significava
para a inserção dos usuários na comunidade - tal como pro- não somente tratar o quadro clínico dos usuários, mas tam-
posta no CAPS, geram a necessidade de definição de novos bém abordar questões relacionadas à sua cidadania contri-
processos de trabalho a serem construídos. São os con- buindo, assim, com sua re-inserção social. Isto
frontos e as contradições entre o processo de produção e significava"uma nova esperança”, uma nova forma de ativi-
criação do cotidiano das práticas assistenciais que vão pos- dade dentro da rede pública de atenção em saúde mental,"de
sibilitar o desenvolvimento de um novo modelo de atenção e resgate da dignidade do paciente”. Significava, também, fun-
de uma redefinição do processo de trabalho. dar um novo espaço, novas relações institucionais, novos
tipos de contratos terapêuticos, de atendimento e compre-
ensão clínica. Participar de um projeto dessa natureza im-
plicaria também na construção deles próprios, na revisão
de paradigmas relacionados a antigas formas de atenção
em saúde mental e um novo tipo de envolvimento com os
pacientes, mais próximo e sem os aparatos de proteção e
enquadre dos serviços psiquiátricos tradicionais.
O objetivo de promover a re-inserção dos usuários numa
34 O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S.

rede, nas relações comunitárias, na teia de relações sociais tos e deveres, portadores de doença mental, doentes? Os
que, em grande parte, já estavam deterioradas é parte do antigos códigos foram pouco a pouco colocadas em xeque,
trabalho do CAPs. É essa teia de sustentação do sujeito que repensados, alguns mantidos e outros simplesmente deixa-
precisava ser reconstituída e isso implica que os trabalha- das de lado por não darem conta da realidade dos usuários
dores se mobilizem para ir em direção à comunidade e se e dos atendimentos dentro dessa nova lógica de cuidado.
preocupem com a vida dos pacientes para além da institui- Logo constataram que"ser do CAPS"era vivenciar um dia-
ção. Não se trata, aparentemente, de uma simples questão -a-dia sem rotina, sem uma delimitação definida, onde as
de re-inserção, mas de considerar diversos aspectos rela- atividades podiam ser somente provisoriamente estrutura-
cionados à vida material, financeira, familiar e social dos das. Havia um esforço, por parte de alguns profissionais, de
usuários. criar uma rotina ou, ao menos, exceto compromissos pré-
Isso significa reconhecer que o usuário não é só um sujeito -agendados, tentar formatar um cotidiano de trabalho, cer-
com problemas de saúde mental, é também uma pessoa in- tos tipos de atendimento, certos modos de atenção ao usu-
serida num contexto social que traz consigo questões mais ário que atendessem às peculiaridades de cada um e da
amplas, tais como: moradia, emprego, comida suficiente ou variabilidade das situações que se apresentavam a todo
roupas, acesso ao sistema de saúde ou à educação. Isso momento. No entanto, a forma como o trabalho é organiza-
significa também reconhecer que essas problemáticas es- do e as características da clientela deixam os trabalhado-
tão dentro do escopo a ser abordado pelos trabalhadores do res perplexos, dada a fragmentação das atividades, impre-
CAPs. Tudo isso se mistura, se é que poderia estar separa- vistos e a descontinuidade de muitos projetos: eram
dos, da questão do sofrimento psíquico: são assuntos para interrompidos o tempo todo, situações emergenciais inter-
quem? Para os profissional do CAPs ou se trata de uma rompem atividades programadas, a falta de recursos mate-
questão para toda a sociedade? riais os obrigava a improvisarem e reorganizarem ativida-
Soma-se a isso o fato de que esbarram na discriminação da des planejadas com antecedência. Aqueles que conseguiam
qual a população de usuários é alvo, a começar pelo poder estabelecer uma determinada rotina enfatizavam a sua im-
público que a exclui:"a pessoa é portadora de problema de portância afirmando que se tratava de uma verdadeira ân-
saúde mental, ponto”. Essa discriminação ocorre mesmo cora, que servia como referência e os protegia psiquica-
dentro do sistema de saúde e quando é preciso fazer um mente.
encaminhamento para outros serviços, por exemplo, para Ser do CAPS era construir uma organização de trabalho
realizar exames clínicos relacionados a outras problemáti- onde a equipe precisava estar aberta para lidar com o inu-
cas que não as de saúde mental, encontram-se sérias difi- sitado e o imensurável. Mas, afinal, o que era inusitado?
culdades para conseguir atendimento. Para eles, depois de certo tempo de trabalho"nada é inusita-
Essa busca de condições para lidar com o usuário de uma do, tudo deixa de ser inusitado”. Isso exigia que fossem flexí-
maneira mais global significa construir novas formas de re- veis, mas que não perdessem a capacidade de se recompor,
lações. Vai-se buscar, então, trabalhar de formas variadas e, o que exigia novos modos de operar, novas decisões e muita
em outros cenários, espera-se construir um novo saber so- discussão. Precisavam saber trabalhar com a errância,
bre o fenômeno através de intervenções alternativas ao mo- criando, assim, estratégias pessoais e coletivas para dar
delo médico hospitalar. No entanto, construir essas práticas conta, organizar o que se desorganizava, dar suporte, es-
no dia-a-dia é uma tarefa permeada por incertezas, necessi- truturar.
dade de inventar novas formas de atuação, testá-las, de se As pessoas chegavam para trabalhar e já eram imediata-
deparar com dificuldades que, por vezes, transcendem ao mente absorvidas pelas demandas do trabalho, viviam
trabalho técnico e no limite, ao próprio CAPs. constantemente situações em que não conseguiam se orga-
Em diversos momentos, os profissionais deparam-se com a nizar, nem sempre se davam conta do que estava aconte-
necessidade de realizar práticas destoantes das que defen- cendo e, por vezes, não tinham tempo para refletir ou apro-
dem como, por exemplo, os agendamentos de consultas fundar discussões com a equipe e planejar suas ações. Isso
médicas isoladas com ênfase na medicação. A questão não os levava a se envolverem com situações emergenciais, a
é somente o tipo de atendimento realizado, mas as dificul- perderem o foco e a se questionarem quanto a própria es-
dades que encontram para criar os cenários e as formas de sência do CAPS.
aproximação com o usuário da maneira como gostariam. Devido a esses questionamentos, acrescido do tempo ele-
Por se tratar de um serviço público onde o ingresso é feito vado que os usuários permaneciam no CAPS, os trabalha-
por concurso para serviços de saúde não específicos, mui- dores apontavam críticas tais como: se não estariam afinal
tos foram trabalhar ali quase por acaso. Isso foi para eles construindo um"belo terricômio"(em alusão aos antigos ma-
uma oportunidade, um desafio, mas também, um espaço de nicômios)? Os profissionais se questionavam se os pacien-
choque e contraste com outras referências de atendimento tes embora ficassem mais internados no hospital, perma-
e de significação do paciente: sujeitos e cidadãos com direi- neciam agora internados no CAPS. Reconheciam, que
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 35

apesar dos seus esforços, muitos usuários acabavam sendo Ser do CAPs implicava fadiga e, por vezes, a sensação de
internados em hospitais, o que para alguns significa um fra- estar extenuado, dada a exigência contínua de atenção, de
casso do próprio sistema e do próprio trabalho. prontidão. Cada grito, cada batida de porta, cada atendi-
O tempo de permanência dos usuários e os limites do CAPS mento, cada atividade ou projeto desenvolvido requeria
remetia a equipe a outros questionamentos relacionados ao uma atenção constante. Era necessário prestar atenção e
conceito de alta, de desligamento do serviço e de re-inser- tentar dar sentido a cada ato, afinal, todos os momentos na
ção do usuário em seu meio social, o que no limite significa- instituição podiam e eram considerados terapêuticos:"é no
va para eles avaliar o êxito das estratégias terapêuticas acaso que surgem as coisas mais criativas, que elas aconte-
desenvolvidas. Isso causava um sentimento de estranha- cem”. Da mesma forma, crises, agressões, conflitos que
mento e de angústia quando atendiam os mesmos usuários exigiam a intervenção dos trabalhadores também podiam
durante anos e constatavam: eles continuam no serviço. ocorrer a qualquer momento e era necessário manter uma
Era necessário refletir toda a teia de sustentação, não só do vigilância contínua para dar conta do inesperado. Era preci-
sujeito que era atendido, mas de sua rede social, o que tor- so que diferentes competências estivessem disponíveis
nava a cura e/ou re-inserção da pessoa com transtorno para manter os enquadres terapêuticos e ajudar a evitar
mental um processo ainda mais complexo. Afinal, o que é problemas maiores devido a condutas inesperadas e, em
alta para esses usuários, ainda mais quando não encon- alguns casos, até mesmo agressivas por parte dos usuá-
tram outros recursos de cuidados e sustentação? rios. Todo esse esforço, esse estado de alerta, cansava e
Para alguns profissionais, o retorno de um determinado deixava os profissionais exauridos. Às vezes, eles eram
usuário era vivenciado como uma frustração e quando se obrigados a desprender uma energia maior do que a que
conseguia dar alta para algum deles isso era um momen- desejavam, o que, por vezes, os deixava irritados.
to de recompensa pelo esforço feito. Para outros, a volta Esse novo setting (no sentido psicanalítico) de trabalho, re-
de algum usuário era entendida como positiva, pois, ao forçado pela crença que os profissionais tinham de que era
buscar atendimento, ele demonstrava vínculo com o servi- necessário, como parte da relação terapêutica, do vinculo,
ço e com os profissionais que nele trabalhavam, era uma estabelecer uma relação de proximidade com os pacientes.
maneira de reconhecer que o CAPS e seus profissionais Significava, em alguns casos, deixar-se invadir,"aproximar e
poderiam ajudá-lo. entrar na estória e não segregar, imergir”. Mas, essa forma de
O conceito de alta foi recheado de questões e controvérsias, envolvimento traz a questão dos limites: onde e como dar o
pois, quando se avaliava as condições materiais, familiares corte? A carga era pesada e no fim do dia tinha-se a impres-
e sociais do usuário, compreendia-se por que era tão difícil são de que"foram atropelados por um caminhão”.
sair da instituição. Nesse momento, os profissionais pensa- Essa situação de trabalho os levava a terem que estar aten-
vam se, de alguma maneira, o CAPS não seria um espaço tos uns aos outros, socorrer colegas que pediam ajuda, que
mais leve, mais arejado na vida dessas pessoas, mais ade- buscavam apoio, pois,"ninguém dá conta sozinho”. Ser do
quado, uma forma de proteção. Certos usuários eram em- CAPS significava, então, criar uma equipe altamente solidá-
blemáticos nesse sentido, como um caso citado: além da ria e cooperativa para que a ajuda e o apoio fossem efetivos.
severidade do quadro, ela apresentava um agravante, se Criar uma teia de relações entre os trabalhadores que des-
ficasse em casa, ia ficar trancada, pois ela só tinha um ir- sem suporte para aqueles que, por alguma razão, em cer-
mão, cuja relação é difícil e a equipe não conseguiu traba- tos momentos, não estavam em condições para atender os
lhar essa questão. Para essa usuária, o CAPS não era ape- usuários. Isso produzia um clima de amizade, de afetivida-
nas um serviço de saúde mental: tratava-se de um local de de, de equipe, de apoio mútuo, mesmo que não fosse explí-
cuidados, de poder contar com pessoas que se ocupavam, cito ou previsto. Era visível, para os pesquisadores, como os
que davam visibilidade e sentido para a sua vida. profissionais eram acolhedores, solidários e continentes
Participar de um projeto dessa natureza,"ser do CAPS"era em relação às angústias e dificuldades que um ou outro
também preocupar-se com a existência dos usuários fora membro da equipe apresentava. Não censuravam e nem
do âmbito da instituição. De um lado, procurar melhorar a criticavam posturas que, em outro contexto, poderiam ser
vida do usuário, aumentar as possibilidades de trocas, fa- consideradas pouco técnicas e carentes da distância neces-
zendo-o circular nos espaços reservados para os ditos nor- sária para um bom cuidado. Dada a heterogeneidade de for-
mais; de outro, preparar a sociedade para recebê-lo nos mações e a diversidade de propostas e projetos e de situa-
vários locais públicos. De que adianta falar em re-inserção do ções que vivenciavam, a construção desse trabalho, exigia
usuário se não se coloca a presença da"loucura"no interior do cooperação, co-presença, colaboração, compreensão e
espaço público? A verdade é que a sociedade, de uma maneira flexibilidade.
geral, acha que o lugar do louco é no hospício. Logo, se ele anda Ser do CAPS exigia, então, um exercício complexo de esta-
no museu ou desenvolve atividades em outros espaços, ele é belecimento de limites entre o pessoal e o profissional: viver
visto com temor e receio. uma situação onde quase não havia enquadramento prote-
36 O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S.

tor e as fronteiras entre a vida profissional e pessoal eram nais? O contato que, para um, pode ser tranqüilo, para ou-
constantemente invadidas. Vários limites previstos em re- tro, pode gerar mal-estar.
lações usuais entre terapeutas e pacientes nem sempre Os trabalhadores reconheciam a importância do enquadra-
eram possíveis ou fáceis de exercitar em um contexto onde mento do contrato terapêutico como um limite essencial,
o contato entre profissionais e usuários era tão próximo e uma condição que se colocava para o usuário: atende-se a
prolongado. Conforme exemplificavam, no atendimento, os tal hora, por tanto tempo, em tais atividades. Esse contrato
terapeutas perguntavam para os usuários sobre sua histó- impunha limites que visavam manter a"acuidade de compre-
ria pessoal, familiar, as condições materiais, casa e espaço ender”, fundamental na atividade terapêutica. Então, quan-
geográfico onde viviam. Mas, os pacientes, por vezes, sub- do se buscava construir contratos, estava-se estabelecen-
vertiam e também perguntavam ao profissional sobre sua do condições para o exercício do trabalho clinico, para que
vida particular, sobre o seu fim de semana, sobre sua famí- a relação terapêutica fosse eficaz. No entanto, o contrato
lia, o que fez ou deixou de fazer. O dilema se instaurava: terapêutico envolvia acordos para situações por vezes mui-
responder ou não responder, até que ponto revelar, até que to complexas que exigiam que ele fosse flexibilizado. Pre-
ponto compartilhar? Ante a insistência, cortava-se o assun- senciar e entender situações complexas e saber agir com
to ou deixava-se invadir para não romper o vínculo, para tranqüilidade nas horas em que elas ocorriam era parte do
que pudesse haver um trabalho terapêutico. Afinal, existia cotidiano desses trabalhadores, mas isso exigia uma pre-
uma fronteira: proximidade não significa amizade. Mas, os sença de espírito que não tinha como ser prescrita, padro-
profissionais percebiam e se questionavam acerca da desi- nizada.
gualdade da relação, sabiam tudo da vida dos usuários, par- Outro incomodo relatado por um dos profissionais era rela-
ticipavam da vida deles e, ao mesmo tempo, acreditavam cionado à impotência técnica em relação às dificuldades de
que não deveriam se abrir tanto. Outro aspecto é que a equi- superação da doença mental. Tratava-se do momento em
pe reconhecia que compartilhar da sua vida privada e pes- que o profissional sentia que esgotava o seu conhecimento,
soal, para alguns, era natural, mas para outros, não era quando já havia pensado todas as possibilidades para aque-
vivenciado com a mesma tranqüilidade: o que é e o que deve le usuário e chegava um momento em que não conseguiam
ser consenso? mais ajudar ou sentiam que tinham esgotado o arsenal.
Os usuários testavam cada um dos profissionais, testavam Como continuar a trabalhar nessas horas?
a equipe como um todo, questionavam as possibilidades, os As peculiaridades próprias do CAPs influenciavam signifi-
limites de cada um. Às vezes, tinha-se a impressão de que cativamente na vivência de todos. O desenvolvimento do
era necessário conviver com uma espécie de"espelho”, pois projeto a que se propunham exigia que utilizassem de es-
o comportamento dos usuários colocava em xeque as bar- tratégias de cuidado intensivo e prolongado, o que requeria
reiras psicológicas, fazia aflorar as angústias e, ao mesmo uma imersão profunda tanto dos usuários como de toda a
tempo, permitia estar mais próximo e menos defensivo. Ha- equipe na continuidade da relação terapeuta-usuário de
via risco, medo, mas era incontornável, fazia parte da ex- maneira intensiva e prolongada. Isso afetava de maneira
pansão dos limites. significativa os trabalhadores, pois estar no CAPS significa-
No entanto, alguns limites deviam ser discutidos e pactua- va desenvolver um trabalho praticamente sem fim, dada a
dos. Relataram como exemplo, a necessidade de determi- natureza dos usuários e da sua permanência no serviço. O
nados acordos que a equipe deveria fazer: não poderia ha- fim, nesse caso, não estava relacionado a etapas concluí-
ver discordâncias quanto a determinadas regras e das, mas ao alcance de determinadas finalidades, que uma
procedimentos, todos deveriam atuar da mesma maneira, vez alcançadas abriam espaço para novas possibilidades e
não devia haver exceção. Se uns diziam não e outros diziam processos.
sim, os usuários iriam atuar nas brechas existentes entre Os trabalhadores acreditavam que a maneira de organizar o
os membros da equipe para driblar o"não”, para contornar trabalho devia ser tal que a instituição permitisse a integra-
a vivência frustrante que um limite exige. Orquestrar os li- ção dos usuários e não o isolamento, a exemplo do que
mites da equipe e os limites pessoais era um trabalho que acontecia nos hospitais psiquiátricos. Dessa forma, organi-
estava em constante estruturação. zaram o serviço de forma tal, que à exceção da farmácia,
Outro exemplo relatado se referia ao contato físico com os todos os demais espaços eram acessíveis aos pacientes
pacientes. Como lidar com limites entre hábitos da cultura todo o tempo. Essa forma de trabalhar acarretava na falta
e desejos mascarados, mas evidentes em rituais de cum- de espaços privativos para a equipe corroborando a falta de
primento social, como por exemplo um beijo? Como lidar limites entre os trabalhadores e os usuários Quase tudo
com esse tipo de comportamento quando se trata ocorria às vistas de todos, sem privacidade e não havia pra-
de"pacientes que não têm limites”? Afinal, não deixam de ser ticamente espaço para se proteger, refletir, se recompor,"dar
humanos e com desejos humanos! Como lidar quando o um tempo”. A forma como organizavam o trabalho contri-
contato provoca reações diferentes nos vários profissio- buía para que os limites entre relações profissionais e pes-
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 37

soais fosse muito difuso. Estabelecer fronteiras, espaço trabalhar, mas ficava a questão: até que ponto pode-se an-
onde pudessem discriminar o ato técnico do envolvimento corar um sistema de atendimento no esforço isolado das
necessário para este tipo de atendimento e, ao mesmo tem- equipes e não na construção de serviços e de uma rede efe-
po, proteger-se desta invasão para que ela não fosse exces- tiva? Seria importante que se aliasse também uma pers-
siva e danosa, era um desafio cotidiano para essa equipe. pectiva de melhora da organização de serviços, da consoli-
A própria peculiaridade da clínica das psicoses e a porosi- dação de um sistema de atendimento integrado que
dade que se produzia entre terapeutas e usuários criava fortalecesse as experiências e propiciasse um aprimora-
impasses e requeria que a equipe se auxiliasse para pre- mento das ações e das idéias.
servar o seu bem estar e permitir que o trabalho aconteces- Trazer para público a vivência do trabalho desta equipe per-
se. Todos estavam imersos neste espaço onde a fronteira mitiu conhecer seu modo de agir, seu saber-fazer, suas dú-
entre a sanidade e a loucura era tênue, em que os usuários vidas e como era importante, além do engajamento, se dei-
colocavam constantemente a equipe em xeque, em que a xar afetar pelo outro, isto é, trabalhar com compaixão. Com
constituição de uma rede de cooperação, praticamente sem a experiência acumulada e o sentido que encontraram nos
hierarquia, ajudava a transformar o sofrimento tanto em paradigmas que as originaram e que norteiam suas práti-
ações efetivas quanto em momentos de profunda satisfa- cas, construíram sentido no trabalho e estabeleceram pon-
ção. Isto requeria uma"recriação"constante das suas ações, tos de ancoragem que lhes permitiam encontrar a sinergia
o que criava uma sinergia a partir das diferentes competên- necessária para continuar trabalhando apesar das carên-
cias e do envolvimento de cada um, da experiência individu- cias, das dificuldades que um serviço dessa natureza impõe
al e coletiva. e da falta de uma rede de saúde mais constituída e que, de
Lá se buscava construir ações em situações de grande pe- fato, servisse de apoio.
núria, onde era necessário recriar constantemente as prá- A engenhosidade dos trabalhadores e a cooperação permi-
ticas de saúde; mas, sobretudo porque lá se constituía um tiam que o trabalho fosse realizado a contento, afinal, não
local de cuidados que buscava auxiliar os sujeitos a recons- havia um modo prescrito de trabalhar que desse conta dos
truírem a vida."O CAPS é um lugar de vida”, um lugar onde as eventos presentes neste tipo de cuidado. O exercício dessa
pessoas continuavam a trabalhar, apesar de todo o sofri- engenhosidade, a busca de soluções, pequenos sucessos
mento engendrado pelo trabalho vivido. cotidianos, a crença de que estavam produzindo um traba-
Ser do CAPS"era se importar”. O risco que se corria era que, lho de qualidade e o reconhecimento que encontravam, so-
na fratura a respeito da vida humana, as coisas que importa- bretudo junto às pessoas que eram atendidas e seus fami-
vam eram jogadas na lata do lixo, era preciso trabalhar onde a liares, seriam fundamentais para a construção da sua
vida se constituía, no momento em que a vida se constituía, própria saúde mental, pois são fontes da construção de
nessa vida em paralelo. Vivia-se absolutamente dentro do sentido, fonte de prazer para trabalhar. A maneira como a
âmago da vida humana, essa questão que era"como é que a equipe era organizada e as relações de cooperação hori-
gente vive numa sociedade que o povo, os seres humanos que zontal e vertical que se constituíram neste CAPS, propicia-
estão vivendo, não importa para nada”? Senão não estaria fa- ram também condições para o processo de realização de si
zendo nada que interessava, porque não seria um assunto da e da construção de um coletivo profissional (Dejours, 2009).
vida, seria um assunto da burocracia, seria um assunto do A integração da equipe, a cooperação e a solidariedade
mercado, que não interessava. É por isso que ela continuava, é eram pontos fundamentais que ajudavam os trabalhadores
por isso que fazia parceria com a equipe, era se importar, agir a se protegerem dos sentimentos de impotência, das coisas
com compaixão. que não davam certo, da inoperância do sistema que dificul-
tava um trabalho já tão árduo. A cooperação decorria de um
processo de confiança e reconhecimento dos pares que os
Discussão auxiliava a não entrarem em colapso, no sentido psíquico,
diante da falta de reconhecimento vertical. No caso do jul-
A equipe que participou deste processo era composta por gamento de beleza, que é feito entre pares, isso ocorria
profissionais que acreditavam em certas idéias relativas ao pela constituição de uma equipe que era capaz de enxergar
cuidado em saúde mental e que participaram ativamente da e de dar retorno sobre o trabalho bem feito do outro. Já no
construção do projeto político que originou a reforma psi- caso do julgamento de utilidade, este ocorria pelo reconhe-
quiátrica e os CAPS’s. Essas idéias modulavam as suas cimento da chefia imediata, que também fazia parte da
ações e eram constantemente confrontadas por uma reali- equipe (Dejours, 2003; Hubault & du Tertre, 2008). Aliado a
dade recheada de carências, insucessos, avanços e retro- esses aspectos, um profundo sentimento de gratidão (Moli-
cessos decorrentes da implantação de um projeto político nier, 2006, pp. 146-147) por parte dos pacientes e familiares,
dessa natureza. O forte componente de posicionamento po- reforçava esta possibilidade de encontrar sentido e prazer
lítico era importante para que as pessoas continuassem a no trabalho. Com relação ao reconhecimento de pares mais
38 O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S.

distantes, de integrantes de outras equipes e de outros dos aspectos organizacionais e de conteúdo das tarefas de
CAPS, os contatos eram pouco freqüentes, resumindo-se a cada profissional além dos aspectos psíquicos decorren-
alguns encontros organizados anualmente, dos quais, so- tes do trabalhar com pessoas que têm transtornos men-
mente parte da equipe participava reafirmando a sensação tais de maior ou menor gravidade, é indissociável do im-
de isolamento. Como conceitua Dejours, o reconhecimento, pacto disso tudo nas relações de sofrimento/prazer no
em especial do reconhecimento de beleza e o de utilidade trabalho da equipe. Isto resulta do fato de que a vivência
são elementos chaves para a construção identitária e saúde desses trabalhadores seja determinada pelos cenários
mental no trabalho (Dejours, 2004). definidos por todas estas variáveis e pela história singular
No que diz respeito às possibilidades de avaliação por ou- de cada trabalhador.
tras instâncias do sistema de saúde, a distância era signifi- Na organização do trabalho do CAPS há uma racionalidade
cativa, fato que dificultava um processo de avaliação base- clínica implícita que dá sentido à atividade, fruto de idéias e
ado no real do trabalho. Isto tem semelhança com outras de concepções que constituem uma maneira de ver as prá-
situações de trabalho em saúde pública, onde é muito difícil ticas em saúde mental e que dão sentido para os trabalha-
definir quais são os limites do cuidado (Sznelwar, Uchida & dores. Não significa que sejam situações onde não haja con-
Mascia, 2008). flitos e contradições, mas que há algo que serve como
Além disso, em se tratando de uma relação de serviço que argamassa, como fator de ligação para as pessoas da equi-
se constrói ao longo do tempo, o processo de avaliação é pe, como substrato para fomentar o tipo de atendimento
ainda mais complexo, pois há uma série de aspectos intan- proposto e, pelo menos em parte, praticado. As práticas
gíveis e imateriais característicos deste tipo de trabalho clínicas que os trabalhadores desenvolvem de acordo com o
que são dificilmente reconhecidos, ficando na invisibilidade modelo conceitual com o qual estão identificados norteiam
(du Tertre, 1999, 2002; Hubault & Bourgeois, 2001). a organização do trabalho e o conteúdo das tarefas e dão
Não se pode perder de vista que o"cuidar"destes profissio- sentido às ações desenvolvidas.
nais é desestabilizador, portanto, é importante que tenham Mesmo com todas as falhas e a falta de infra-estrutura,
acesso à supervisão e a apoio terapêutico quando necessá- apesar do sofrimento devido à lentidão na implantação das
rio, como estratégia de fortalecimento das equipes e conse- melhorias e à sensação de que poderiam fazer mais pelos
qüentemente de cada trabalhador em particular. Molinier usuários, há uma visão de futuro possível. Há uma sensa-
(2000, 2009) discute a questão do cuidar (care) colocando ção de que são uma espécie de vanguarda de um novo tipo
em evidência a importância da compaixão e das questões de de atendimento, mesmo que isto engendre dificuldades e,
gênero e demonstrando o caráter desconhecido dessa ati- muitas vezes, exija um comprometimento quase militante
vidade. dos integrantes da equipe.
Pelo fato de não existirem formalmente dispositivos de
apoio, seria importante que houvesse uma estrutura de
sustentação, aliada à construção de outros"espaços públi- Conclusão
cos de troca e de deliberação”, como a realização de mais
simpósios e seminários para que houvesse mais comparti- Acredita-se que, com esta ação em PDT foi possível ajudar
lhamento de experiências com outras equipes que atuam na compreensão das implicações para a saúde dos profis-
em outros CAPS, e com outras equipes de serviços de refe- sionais de trabalhar no CAPS e do novo modelo de cuidado
rência da região com as quais, devem constituir a rede de em saúde mental de modo a facilitar ações que ajudem a
atendimento. contribuir na implantação desse tipo de serviço e no seu
Viver um processo de mudança de paradigma, de criação de aprimoramento. Espera-se, ainda, contribuir para ações de
novas práticas assistenciais e de um modelo de atenção melhoria e de consolidação deste tipo de prática terapêuti-
significa ser ator e testemunha de algo mais profundo de ca, para que seja possível, com o engajamento dos traba-
desestruturação e de reconstrução. Este processo é longo lhadores, evitar que as vivências no trabalho se transfor-
e, muitas vezes, requer mais de uma geração de trabalha- mem em sofrimento patogênico, reduzindo o risco do
dores. Há ainda o risco sempre presente de retrocessos e, aparecimento de problemas de saúde entre os trabalhado-
sobretudo, de uma não implantação plena do modelo pro- res e de impedimentos para a realização do trabalho a con-
posto. Foi o que ocorreu com a equipe estudada, sentiam-se tento. Acreditamos que a invisibilidade desses aspectos
únicos, isolados e aguardavam a constituição do resto da pode prejudicar a própria implantação de um sistema de
rede com a qual pudessem somar e dividir esforços. Como saúde baseado em práticas de atendimento mais globais e
não é possível aguardar, diante das necessidades de atendi- que considerem os pacientes como cidadãos e sujeitos.
mento da comunidade, desenvolveram um sistema de cui- Ao se propiciar condições para o melhor conhecimento do
dado provisório e parcial em relação ao previsto. real do trabalho dessas equipes, é possível evidenciar e sen-
A precariedade existente nos serviços de saúde mental, sibilizar as pessoas responsáveis pelos níveis de decisão
O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 39

sobre as políticas de saúde pública no Brasil, para que invis- resultados mensuráveis, definem metas que não corres-
tam na consolidação de uma rede de saúde mental que leve pondem à realidade. Um sistema de saúde contaminado por
em conta o trabalhar e a subjetividade dos trabalhadores. este tipo de ideologia de gestão é praticamente incompatí-
Acredita-se que a possibilidade de o trabalhador contribuir vel com a existência de espaços de trabalho como o CAPS
com seu conhecimento e com sua inteligência na constru- estudado que, apesar de todas as carências e dificuldades
ção de um trabalho melhor é a forma de superação e trans- poderia ser considerado como um exemplo a ser seguido.
formação do sofrimento engendrado pelo real do seu traba-
lho em prazer, garantindo condições para que aquilo que faz
continue a fazer sentido e que seja uma perspectiva de rea- Referências bibliográficas
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Resumo A proposta central deste artigo é a de
(coord.), Evaluation du travail, travail d’évaluation, Actes du séminaire
apresentar o resultado de uma ação em
Paris1 4-6 juin 2007 (pp.95-114). Toulouse: Editions Octarès,
psicodinâmica do trabalho (PDT), desenvolvida
Lancman S, Pereira LMF, Uchida S, Sznelwar LI, et all. (2007).
com uma equipe de trabalhadores de um Centro
Transformação do modelo de atenção pública em saúde mental e
seus efeitos no processo de trabalho e na saúde mental dos
de Atenção Psicossocial (CAPS), localizado na
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O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação • Uchida, S., Sznelwar, L. I.I. Barros, J.O., Lancman, S. 41

FR EN

Travailler dans des services de santé Working at mental health services: between
mentale: entre la souffrance et la suffering and cooperation
coopération
Abstract The main purpose of this paper is to
Résumé Le but de cet article est de présenter le present the result of an action in Psychodynamic
résultat d'une action en psychodynamique du of Work, developed within a team of workers of a
travail (PDT), développée avec une équipe de Psychosocial Center of Attention (CAPS - Centro
travailleurs d'un Centre d’Attention Psychosociale de Atenção Psicossocial), located in São Paulo,
(CAPS), situé à São Paulo, Brésil. Il s'agit d'un Brazil. It is a specialized facility in mental health
service spécialisé dans les soins de santé mentale attention which prioritizes people with severe and
visant principalement les personnes ayant des persistent mental disorders. We tried to
troubles mentaux graves et persistants. En comprehend the workers experience, their
développant une action en PDT, le but a été de relationship between psychic suffering and
comprendre les expériences des travailleurs, la pleasure at work, as well as the strategies to gain
relation entre souffrance et plaisir dans le travail, results, identifying critical factors at work and
ainsi que les stratégies élaborées pour atteindre ways to overcome these difficulties, through a
les résultats, en identifiant les facteurs critiques et Psychodynamic of Work approach. The creation of
les moyens de les surmonter. La création a collective space of discussion that enabled the
d'espaces de discussion collective pour identifier identification and gave visibility to work strategies
et donner de la visibilité au travail et aux stratégies created by the collective and individual intelligence
mises en place grâce à l'intelligence individuelle et of subjects in their concrete experience is
collective des sujets à partir de leur expérience fundamental to this approach. We consider that the
réelle est un point clé de cette approche. La inclusion of workers experience to the
valorisation de l'expérience des travailleurs dans improvement of Brazilian mental health public
la mise en œuvre des politiques publiques policy implantation allows an improvement of the
concernant la santé mentale au Brésil permettrait institutions.
une amélioration du rôle des institutions.
Keywords public system of health, mental health
Mots-clé système public de santé, santé mentale and work, cooperation and team work,
et travail, coopération et équipes de travail, action Psychodynamic of Work approach.
en psychodynamique du travail.

Como referenciar este artigo? Manuscrito recebido em: Janeiro/2010


Aceite após peritagem: Junho/2011
Uchida, S., Sznelwar, L.I.l., Barros, J.O., & Lancman, S. (2011).
O trabalhar em serviçosz de saúde mental: entre o sofrimento
e a cooperação. Laboreal, 7, (1), 28-41.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56o
TV65822353389453854:2
42 VOLUME VII · Nº1 · 2011 · PP. 42-55

PESQUISA EMPÍRICA
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho

Marina Petrilli Segnini1 & Selma Lancman2

1. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Resumen Este artículo se inserta en el ámbito de
Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia los estudios que articulan trabajo y salud mental.
e Terapia Ocupacional Su objetivo fue analizar la relación del bailarín y la
R. Cincinato Braga, 184, apto 51, organización de trabajo en danza a la luz del
CEP 01333-010 São Paulo, SP constructo teórico de la psicodinámica del trabajo
Brasil (PDT). Este análisis se enfoca en las maneras a
marsegnini@gmail.com través de las que los trabajadores de la danza
movilizan sus subjetividades al buscar realizar sus
2. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
actividades laborales cotidianas en el Ballet de la
Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia
Ciudad de São Paulo, compañía pública de danza
e Terapia Ocupacional
vinculada al Teatro Municipal de São Paulo
R. Cincinato Braga, 184, apto 51,
(Brasil). A partir de un estudio cualitativo,
CEP 01333-010 São Paulo, SP.
realizado a través de entrevistas y observación del
Brasil
proceso de trabajo, se buscó comprender las
lancman@usp.br
estrategias movilizadas subjetivamente por los
bailarines al enfrentar el sufrimiento vivido en el
trabajo. Se puede concluir que entre las
estrategias encontradas por este grupo de
trabajadores, está la búsqueda de una escisión
entre el cuerpo biológico ejercitado de forma
técnica y utilizado como instrumento de trabajo y
el cuerpo erógeno, escenario de las vivencias
subjetivas.

Palabras clave salud mental, trabajo, danza,


sufrimiento.
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman 43

I. Introdução temporâneo – articulando-as com as mudanças na esfe-


ra da produção.
O trabalho artístico remonta aos primeiros registros da Os artistas da dança (coreógrafos e bailarinos), objeto do es-
história da cultura; no entanto, até o presente momento tudo proposto neste artigo, representam o menor grupo de
histórico é pouco analisado na perspectiva das relações trabalhadores no interior do conjunto do grupo de Profissio-
que os artistas vivenciam no processo da construção do nais de Espetáculos e das Artes, no Brasil, equivalendo a
trabalho e das exigências que esse traz. Os artistas são 3,3% dos trabalhadores (Segnini, 2010). Conforme a Classifi-
freqüentemente representados de forma pré-conceituo- cação Brasileira de Ocupações (CBO), tal grupo de artistas se
sa e plena de estereótipos:"egocêntricos, caricaturais, subdivide em: assistente de coreografia, bailarino (exceto
nervosos, indisciplinados, instáveis, debochados, extra- dança popular), coreógrafo (bailarino coreógrafo, coreógrafo
vagantes, obcecados por suas obras e extremamente di- bailarino), dramaturgo de dança, ensaiador de dança e pro-
fíceis na convivência"(Wittkower, 1991). Outra dimensão fessor de dança (maître de ballet). As condições gerais do
equivocada refere-se ao trabalho de criação como sendo exercício deste grupo profissional são:"Trabalham nas áreas
um processo individual e solitário, indiferente à opinião de criação, pesquisa e ensino. Suas atividades são sempre
do público e ao sucesso (Menger, 2005). A criação da obra realizadas em equipe e podem se desenvolver tanto em com-
artística, nestas representações, é associada a um es- panhias estáveis de bailado, em que predominam os vínculos
pasmo de loucura, genialidade e melancolia individual formais de trabalho, estabilidade no emprego e possibilidade
(Prigent, 2005). de construir uma carreira, como em cooperativas ou como
No entanto, as expressões artísticas implicam em trabalho autônomos, realizando produções independentes. Esta últi-
e sendo assim, são atividades reconhecidas, transmitidas, ma é a situação da grande maioria dos profissionais, os
apreendidas e organizadas. E como toda a atividade, obede- quais, em geral, se auto-financiam, costumeiramente, exer-
ce a regras, insere-se numa divisão do trabalho, em organi- cendo atividades como professores, terapeutas etc. conco-
zações, profissões, relações de emprego e carreiras profis- mitantemente à dança"(CBO, 2002).
sionais (Becker, 2006 cit in Segnini, 2009). Nesse sentido, a A formação profissional exigida não precisa ser necessa-
arte é compreendida pertencendo ao mundo do trabalho e, riamente formal. O artista da dança está sempre em busca
assim sendo, pode ser objeto de estudo científico para os do aperfeiçoamento de suas técnicas e essas são múltiplas.
campos teóricos que analisam o trabalho. As razões que levam um artista escolher a uma determina-
No Brasil, o trabalho artístico tem sido discutido no âm- da técnica são inúmeras e variam conforme a necessidade
bito das ciências sociais. Destacam-se, dentre outros, de um determinado momento: procurar uma técnica cuja
alguns pesquisadores e grupos que, nos últimos anos, estética tenha a ver com o ideal de corpo do personagem,
estudam e refletem sobre esse campo. Segnini (2007, com o ideal definido pelo coreógrafo ou outra necessidade
2008, 2009, 2010), socióloga do trabalho, coordena uma artística. Este aprendizado contínuo não é apenas encon-
equipe que analisa o mercado e as condições de trabalho trado no interior das instituições formais de ensino, ocorre,
artístico. Tais pesquisas se configuram em estudos com- sobretudo, na esfera informal. É oriundo da experiência,
parativos, quantitativo e qualitativo entre o Brasil e a das múltiplas vivências no qual o tempo é fundamental
França no que tange as condições do trabalho artístico (Strazzacappa, 2006).
(música e dança) nestes dois países, por meio do referen- A organização do trabalho em dança exige constante reorga-
cial teórico da sociologia do trabalho. Os resultados des- nização dos processos de produção; impõe flexibilidade ele-
sas pesquisas informam que o trabalho artístico é predo- vada ao trabalhador artista. Há necessidade da existência de
minantemente precário e submete os artistas a uma um"exército artístico de reserva altamente qualificado”, pré-
instabilidade permanente frente às possibilidades de tra- -condição para a manutenção desta forma de organização do
balho e de remuneração. Já no campo mais específico da espetáculo ao vivo, uma vez que é necessário recrutar de
dança, destacamos duas pesquisadoras. A primeira é maneira rápida, por meio de redes de conhecimento, audi-
Strazzacappa (2001, 2006), bailarina e educadora que ar- ções (identificação dos melhores artistas para cada espetá-
ticula nos seus estudos dança e educação. As pesquisas culo) e de acordo com diferentes possibilidades de remune-
desenvolvidas por essa autora analisam e criticam as ração – cachês – (Menger, 2005 cit in Segnini, 2008).
maneiras pelas quais está embasada a formação em O processo de construção de um espetáculo exige dupla di-
dança. Em segundo lugar, Gadelha (2006) em sua disser- mensão dos bailarinos: trabalho individual e coletivo. No
tação de mestrado analisa o trabalho da dança sociologi- trabalho individual é observado o desenvolvimento da técni-
camente ao longo da história, por meio do referencial ca; o conhecimento do próprio corpo, pesquisa sobre movi-
teórico de Norbert Elias, Michel Foucault, Félix Guattari mento, obtenção de repertório de movimento por meio da
e Gilles Deleuze. Essa autora analisou as transforma- investigação individual e manutenção dos requisitos em
ções das expressões da dança – do balé clássico ao con- termos biológicos. Os bailarinos e bailarinas estão em
44 Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

constante movimento, uma vez que o instrumento de traba- Aproximar o bailarino do esportista profissional, particu-
lho é o corpo, é preciso mantê-lo sempre pronto para o tra- larmente em termos de performance física, é oportuno
balho (Segnini, 2006). É exigido desses profissionais ativi- porque, para ambos, esta em jogo a relação com o corpo
dades físicas diárias realizadas individualmente como: e a breviedade na carreira. Como para o esportista, o cor-
musculação, alongamento, e outras técnicas de desenvolvi- po do bailarino é adaptado muito jovem em função das
mento corporal. Assim como é de extrema necessidade o performances realizadas. O bailarino deve realizar um
trabalho realizado coletivamente sob as orientações do co- treinamento coletivo, organizado pelo coreografo com o
reógrafo, com o objetivo de se aprender o movimento de objetivo de adaptá-lo fisicamente a um determinado ges-
determinada coreografia (ensaios). A dança se aprende e to, como um treinador faz com seus atletas. Como entre
apreende-se pelo trabalho do corpo. os esportistas, o engajamento físico é sinônimo de risco
O bailarino, artista cênico, encontra em seu próprio corpo o físico (Rannou & Roharik, 2006, p.130, tradução livre).
objeto para fabricar a sua arte, o seu trabalho. Talvez possa
parecer redundante informar que a dança é uma atividade A carreira do bailarino pode ser resumida em quatro grandes
cujo seu instrumento principal é o corpo do artista, contudo etapas: a primeira, encantamento com a atividade; muito co-
é relevante informar que o artista da dança é desprovido de mumente, engajam-se precocemente na profissão por meio
outro meio para produzir o seu trabalho. E tal instrumento de um ciclo de formação informal especializada, escolas de
– seu corpo- que o acompanha onde quer que ele esteja; em dança, por exemplo. O segundo momento é decisivo na car-
cena ou fora dela. Observa-se, sobretudo nos bailarinos do reira do bailarino, no qual o profissional buscará se colocar
balé clássico, cuja técnica é muito comumente aprendida no mercado e se estabilizar enquanto artista da dança. Nesta
desde criança, o quanto seus gestos e movimentos, mesmo trajetória, o terceiro período é caracterizado pela maturida-
fora do palco ou dos ensaios, é marcado pelas técnicas da de e reconhecimento profissional. No entanto, o quarto mo-
dança clássica. mento tende a ser marcado por complicações profissionais
relacionadas, sobretudo com o corpo. Anunciando assim a
O artista cênico possui um único corpo com o qual está saída do palco (Rannou & Roharik, 2006).
tanto em cena como na vida cotidiana. Todas as técni- A relação entre o amadurecimento profissional e a necessi-
cas adquiridas para melhorar seu trabalho de perfor- dade de um corpo jovem expressa um potencial conflito
mer (…) permanecem com ele, pouco importa onde ele permanente na profissão. A angústia face a instabilidade do
se encontra. (…) O corpo, com sua cultura, com sua instrumento de trabalho está presente o tempo todo. O bai-
técnica, seus símbolos, constitui uma unidade. Uma larino é sempre sujeito a um acidente de trabalho que dani-
vez a técnica adquirida ela lhe pertence (Strazzaca- fica seu maior e mais precioso instrumento de trabalho. Da
ppa, 2006, p.44). mesma forma, o envelhecimento é fato inerente à vida. A
curta carreira do bailarino o coloca num estado de urgência
Os problemas de saúde física para os bailarinos expressam profissional e numa relação com o tempo presente frequen-
a relevância do corpo enquanto instrumento de trabalho. temente exacerbadas (Rannou & Roharik, 2006).
Assim, fraturas de ossos, fadiga muscular, problemas de O amadurecimento profissional é um prelúdio do fim da ati-
articulações e região lombar são queixas freqüentes (Ran- vidade. Desta forma, é observada uma relação ambígua:
nou & Roharik, 2006). É por esta razão, que evidencia-se a quanto mais o profissional amadurece e se torna mais
curta duração deste trabalho; o corpo submetido a um ex- cônscio de suas habilidades e fragilidades, também se de-
cesso de atividade física tem um limite. É necessário, tam- para com a proximidade de ter que se retirar da cena em
bém um cuidado alimentar para que este corpo seja magro, razão de um corpo que se fragiliza biologicamente e é me-
leve e adaptável a qualquer movimento solicitado. nos valorizado no mundo da dança. A preocupação com o
Alguns autores associam o trabalho do bailarino com o tra- futuro profissional é freqüente entre os bailarinos. Ativida-
balho dos esportistas profissionais, no que concerne a ele- des como docência, criação coreográfica, gestão e produ-
vada carga horária de exercícios corporais diários, somada ção artística são algumas possibilidades encontradas no
a uma pressão por desempenho, no sentido de qualidade e mercado de trabalho, para estes profissionais a posteriori,
precisão do movimento. Desta forma, tanto para os espor- mas que já se caracterizam como novas profissões, reque-
tistas profissionais como para os profissionais da dança, a rem outras habilidades e qualificações.
carreira é comumente curta, praticada por jovens, uma vez
que tal ritmo de trabalho é mais facilmente tolerado por um (…) a curta carreira dos bailarinos é constituída de uma
corpo jovem. Em 2004, 80% dos profissionais da dança se- dupla tensão permanente: consolidar sua posição den-
gundo o Ministério do Trabalho e Emprego, estavam na fai- tro de sua rede profissional e seu universo vocacional e,
xa etária até trinta e nove anos de idade (Segnini, 2008). a preparação de seu futuro após a dança (Rannou & Ro-
harik, 2006, p.17, tradução livre).
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman 45

Ao analisar as características acima mencionadas sobre o dores do ponto de vista psíquico para realizarem suas ativi-
trabalho do bailarino as autoras indagaram sobre os pro- dades laborais, apesar de todas as dificuldades que
cessos psíquicos engendrados por estes trabalhadores ao enfrentam no trabalho? A partir deste questionamento é
realizarem suas atividades. O diálogo entre a organização elaborada a complexa categoria normalidade sofrente que
do trabalho em dança e a subjetividade do trabalhador bai- informa as estratégias defensivas, construídas individual
larino é um campo que pode ser aprofundado. Com o intuito ou coletivamente, contra o sofrimento patogênico vivencia-
de expandir as reflexões nessa área, realizou-se um estudo do no trabalho. Tal categoria pode ser considerada um divi-
cujo objetivo foi analisar as maneiras pelas quais os traba- sor de águas entre a PDT e a psicopatologia do trabalho. A
lhadores da dança mobilizam suas subjetividades ao buscar psicopatologia do trabalho é uma disciplina elaborada nos
realizar suas atividades laborais cotidianas. Enfim, preten- anos 1950-1960, na França, por autores como L. Le Guillant,
de-se com este artigo analisar a relação entre o trabalha- C. Veil, P. Sivadon, A. Fernandez-Zoila, J. Bégoin (Billiard,
dor bailarino e a organização do trabalho em dança à luz do 2001). Tal teoria pressupunha que a doença mental no tra-
constructo teórico da psicodinâmica do trabalho (PDT). No balho é causada pelos constrangimentos impostos pela or-
Brasil, existe outra pesquisa realizada com este objetivo; ganização do trabalho ou por problemas psíquicos pré-
Santos (2008) articulou, em sua dissertação de mestrado, a -existentes das pessoas. A psicodinâmica do trabalho deixa
relação psicodinâmica entre o sujeito bailarino e a organi- de focalizar o sofrimento no trabalho como produto de uma
zação do trabalho em uma companhia de dança contempo- relação de causa e efeito das relações de poder vivenciadas
rânea, em Goiás. Tal autora concluiu que a forma aparente- na esfera da exploração do trabalho sobre a subjetividade
mente naturalizada, banalizada como os bailarinos do trabalhador, e passa a analisar o sofrimento e as defesas
vivenciam a dor é uma estratégia coletiva de defesa face à contra os aspectos nocivos á saúde mental da organização
necessidade destes trabalhadores enfrentarem e supera- do trabalho. A normalidade sofrente, por sua vez, expressa a
rem a dor física para poderem trabalhar, uma vez que o tra- racionalidade subjetiva das condutas e das ações dos traba-
balho da dança implica num constante e intenso trabalho do lhadores. A psicodinâmica do trabalho é germinada nesta
corpo. No entanto, no estudo proposto neste artigo anali- relação com o trabalhar, entendida como uma relação in-
sou-se outra dimensão da dor que será melhor explicada no dissociável entre o sujeito que trabalha e o ato de trabalhar
item que se refere aos resultados. com todas as relações inerentes a esse confronto e não so-
mente entre a patologia e a normalidade (Dejours, 2004a).
Partindo da concepção de sujeito, tal como compreendido
II. Referencial teórico pela psicanálise, a PDT compreende que o trabalhador não
é passivo frente aos constrangimentos organizacionais,
A psicodinâmica do trabalho (PDT) propõe que as relações sendo capaz de se proteger dos efeitos deletérios da orga-
no trabalho são fundamentais para a construção da subjeti- nização do trabalho sobre a saúde mental por meio de es-
vidade do sujeito adulto, não somente nos espaços de traba- tratégias defensivas. Segundo a psicanálise, a defesa e os
lho, mas do sujeito como um todo. Tal teoria ao articular mecanismos de defesa se constituem em processos in-
saúde mental e trabalho na contemporaneidade elaborou conscientes que tem por função evitar o desequilíbrio psí-
categorias analíticas que demonstraram ser uma das mais quico, auxiliando o ego na elaboração dos conflitos psíqui-
significativas para analisar as relações estabelecidas entre cos. Desta forma, o ego mantém certo controle face às
o sujeito trabalhador bailarino e a organização do trabalho representações e afetos insuportáveis e inaceitáveis para
em dança, objetivo deste artigo. ele (forças pulsionais). Neste sentido, a defesa e os meca-
A PDT nasce de uma prática de ação no campo e de um diá- nismos de defesa são fundamentais para a manutenção da
logo entre a psicopatologia do trabalho, a ergonomia, a psi- saúde psíquica do sujeito, no entanto o uso excessivo de tais
canálise, a sociologia, a fenomenologia, a antropologia e a processos pode comprometer o equilíbrio psíquico, uma vez
filosofia. Ela tem como pedra mestra o livro publicado em que originam sintomas. Mecanismos de defesa e defesa,
1980, na França, intitulado Travail, usure mentale, de autoria para a psicanálise, são conceitos complexos que ora parti-
do Christophe Dejours. Nesse livro, ainda que a psicodinâ- cipam de processos da construção do aparelho psíquico,
mica do trabalho não seja assim nomeada, o autor esboça ora são processos que auxiliam na manutenção da saúde
as premissas norteadoras da teoria. O autor propõe a clíni- psíquica, além do que estão na base da construção dos sin-
ca do trabalho, cujo objetivo é compreender o conflito entre tomas (Laplanche e Pontalis, 2001; Schmid-Kistkis, 2002).
a organização do trabalho e o funcionamento psíquico do Desta forma, Dejours ao analisar a maneira pela qual o tra-
trabalhador. A PDT questiona como as pessoas, apesar de balhador se defende psiquicamente das dificuldades im-
submetidas a diversos constrangimentos relacionados às postas pela realidade da organização do trabalho, define tal
condições e à organização do trabalho conseguem traba- processo como construção de estratégias de defesa e não
lhar sem adoecer psiquicamente. Como fazem os trabalha- como mecanismos de defesa, uma vez que este último tem
46 Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

outras implicações e sentidos na teoria psicanalítica, con- mais se equilibrar contra as forças desestruturantes oriun-
forme explicitado. das do sofrimento vivenciado no trabalho. Depressão, es-
É importante salientar que para a PDT as estratégias de de- tresse, drogadição, burn-out, karoshi (morte súbita no local
fesa, não são analisadas como aspectos positivos que man- de trabalho), suicídio no local de trabalho (Dejours & Bégue,
tém o trabalhador produtivo apesar de todas as dificuldades 2010) são patologias que tem sido relacionadas com o sofri-
encontradas no trabalho, mas como um processo que de- mento psíquico excessivo vivenciado no trabalho. Conforme,
sencadeia no estado de normalidade sofrente, que não é, resume pesquisadores da área da PDT, no Brasil:
em hipótese alguma, ausência de sofrimento. Ela expressa,
aparentemente, a idéia de equilíbrio saudável entre as pes- (…) A patologia surge quando se rompe o equilíbrio e o
soas. Afinal, ela permite que os trabalhadores pertencen- sofrimento não é mais contornável. Em outros termos,
tes a uma determinada organização, mesmo que submeti- quando um certo trabalhador utilizou todos os seus re-
dos a sofrimentos patogênicos, realizem suas atividades, cursos intelectuais e psico-afetivos para dar conta da
sem causar prejuízo ao processo de trabalho. No entanto, atividade e demandas impostas pela organização e per-
tal normalidade é mantida à custa de muito sofrimento. A cebe que nada pode fazer para se adaptar e/ou transfor-
normalidade sofrente não deve ser confundida com estado mar o trabalho (Lancman & Uchida, 2003).
saudável (Lancman & Uchida, 2003).
As estratégias de defesa e a normalidade sofrente possuem
ainda outra função que, todavia, pode ser explorada pelas or- III. Método
ganizações do trabalho; elas atenuam o sofrimento, sem
proporcionar a cura. Elas bloqueiam a reflexão do trabalha- Esta pesquisa se insere no âmbito da pesquisa qualitativa e
dor sobre o seu sofrimento."Assim, as estratégias defensivas se configura num estudo de caso – o do Balé da Cidade de
desempenham o papel de freio à reapropriação, à emancipa- São Paulo (BCSP). Tal companhia de dança foi criada em
ção e à mudança."(Dejours, 2004a, p.54). Desta forma,"o que 1968 como um dos corpos estáveis do Theatro Municipal de
é explorado pela organização do trabalho não é o sofrimento, São Paulo, vinculado à Prefeitura da Cidade de São Paulo.
em si mesmo, mas principalmente os mecanismos de defesa Em 1974, o BCSP se transformou em uma companhia de
utilizados contra este sofrimento"(Dejours,1987, p.119). dança contemporânea. Essa mudança, não apenas repre-
O sofrimento, contudo, para a PDT, não é somente fonte de sentou a realização de um trabalho artístico diferenciado
desorganização psíquica, ele é entendido, também, como em relação ao balé clássico, mas implicou, também, em no-
inerente ao trabalho, uma vez que frente aos desafios de vas formas de relações no trabalho. A partir de então, os
realizar algo novo, o sujeito entra em um conflito,um estado bailarinos não são mais diferenciados hierarquicamente,
de angústia, se ele conseguirá realizar ou não tal atividade. tal como se organizavam as companhias de balé clássico e
E ao se lançar na resolução deste conflito, o sujeito cria o todos eles passam a receber o mesmo salário. Apesar de
novo. A criação e a realização de si mesmo no trabalho es- uma aparente estabilidade, os contratos são temporários,
tão intimamente relacionadas e propiciam o prazer no tra- renovados periodicamente, na maioria dos casos de seis em
balho. Desta forma, para a PDT, o sofrimento no trabalho se seis meses. Esse grupo de trabalhadores, na medida em
desdobra em duas possibilidades: sofrimento criador, que não são contratados formalmente segundo a legislação
quando o indivíduo tem meios para se desenvolver e sofri- trabalhista brasileira (CLT - Consolidação das Leis do Tra-
mento patogênico quando o mesmo não oferece saídas e balho), não tem direitos sociais assegurados, tais como fé-
alternativas de superação. rias, licença maternidade/paternidade, afastamento remu-
A normalidade sofrente é formada pelas estratégias defen- nerado por doença, aposentadoria entre outros benefícios
sivas contra o sofrimento patogênico vivenciado no traba- assegurados pelas leis trabalhistas brasileiras.
lho, decorrente de um equilíbrio instável, precário entre No entanto, a situação acima descrita significa, no instável
esse sofrimento e as defesas contra ele. Nesse processo mundo do trabalho em dança, estabilidade financeira e pro-
psíquico a elaboração inconsciente das estratégias de defe- fissional para os bailarinos. Essa situação faz com que per-
sa é fundamental para que o sujeito possa viver sem ter que tencer ao grupo dos bailarinos profissionais do BCSP, seja,
se afrontar com o sofrimento desestruturante. Quando o no meio artístico, altamente almejado, tanto pelo seu reco-
sofrimento patogênico não gera uma ruptura do equilíbrio nhecimento social, quanto pela competência artística atri-
psíquico, trazendo à tona uma descompensação psicopato- buída a seus bailarinos. Além do que o BCSP representa um
lógica, é porque contra ele o sujeito empregou poderosas espaço de trabalho cujas condições de trabalho são consi-
defesas que o permitiram controlá-lo (Dejours, 1999). deradas diferenciadas positivamente pelos artistas, na me-
A patologia é trazida à tona quando as estruturas defensivas dida em que lhes é possibilitado acesso a um trabalho per-
que permitiam a manutenção da normalidade sofrente não manente. As autoras escolhem realizar esta pesquisa no
mais a sustentam. Ou seja, o aparelho psíquico não consegue BCSP, uma vez que, conforme descrito acima, esse se cons-
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman 47

ENTREVISTAS OCUPAÇÃO NO BCSP BALÉ CANELA FINA SEXO IDADE FORMAÇÃO INICIOU NA DANÇA TEMPO NO BCSP

Bailarina I Bailarina Elenco 1 Mulher 34 anos Balé Clássico 9 anos de idade 15 anos

Bailarina II Bailarina Elenco 2 Mulher 37 anos Balé Clássico 9 anos de idade 8 anos

Afastada
Bailarina III Bailarina Mulher 29 anos Balé Clássico 14 anos de idade 2 anos
(cirurgia no joelho)

Bailarina e membro
Bailarina IV Direção do BCSP Mulher 48 anos Balé Clássico 13 anos de idade 30 anos
da direção do BCSP

Bailarino I Bailarino Elenco 2 Homem 31 anos Balé Clássico 13 anos de idade 7 anos

Bailarino II Bailarino Elenco 2 Homem 32 anos Balé Clássico 15 anos de idade 8 anos

Coreógrafo
Coreógrafo Coreógrafo Homem 33 anos Dança 13 anos de idade 3 meses
convidado

Dramaturga
Dramaturga Dramaturga Mulher 32 anos Teatro 15 anos de idade 3 meses
convidada

Fisioterapeuta Fisioterapeuta Fisioterapeuta Mulher 45 anos Fisioterapia 8 anos

Quadro I – Dados gerais dos entrevistados.

titui em um espaço de trabalho no campo da dança que per- Categorizar implica isolar elementos para, em seguida,
mite que um coletivo de bailarinos sobreviva de dança, sen- agrupá-los. As categorias devem ser: (a) exaustivas,
do, portanto, caracterizado como um grupo de profissionais isto é, devem permitir a inclusão de praticamente todos
da dança. os elementos, embora nem sempre isso seja possível;
(b) mutuamente exclusivas, ou seja, cada elemento só
As técnicas escolhidas foram entrevistas individuais e ob- poderá ser incluído em uma única categoria; (c) objeti-
servação do processo de trabalho. As entrevistas realizadas vas, isto é, definidas de maneira precisa, a fim de evitar
foram abertas, duraram em média noventa minutos, foram dúvidas na distribuição dos elementos; (d) pertinentes,
registradas em gravador digital e transcritas pelas autoras. ou seja, adequadas ao objetivo da pesquisa (Vergara,
Quatro bailarinas, dois bailarinos, coreógrafo, a dramaturga 2006, p.18).
e uma fisioterapeuta da companhia analisada participaram
voluntariamente. O objetivo de realizar as entrevistas com o O método proposto por Bardin prevê que as categorias ana-
coreógrafo, a dramaturga e com a fisioterapeuta foi buscar líticas devem emergir do próprio discurso dos entrevista-
obter maior compreensão do campo pesquisado. As análises dos. O material coletado permitia diversos focos de análise.
contidas neste artigo são fundamentalmente oriundas das Nessa pesquisa, opta-se por privilegiar e destacar somente
falas dos bailarinos e bailarinas do BCSP e da observação do algumas das categorias relacionadas ao sofrimento psíqui-
processo de trabalho. co dos bailarinos correlacionando-as com a categoria es-
tratégia de defesa elaborada pela PDT e descrita na intro-
As entrevistas foram analisadas segundo o método de aná- dução deste artigo. O quadro abaixo explicita os temas que
lise de conteúdo proposto por Bardin (1977). Escolhemos a nortearam a categorização das entrevistas analisadas. A
análise de conteúdo por ser um método de pesquisa reco- partir da análise destes temas elegeram-se alguns que de-
nhecido pelo meio científico e uma maneira de analisar com monstraram ser mais relevantes. Realizou-se uma articu-
acuidade a fala dos trabalhadores que participaram desta lação entre tais temas e a psicodinâmica do trabalho.
pesquisa. O objetivo da análise de conteúdo é dividir as falas
dos entrevistados em categorias e temas, de tal forma que
no final dessa minuciosa categorização das falas possam
ser realizadas generalizações e reflexões teóricas sobre o
observado.
48 Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman

TEMAS DE ANÁLISE SUBTEMAS


IV. Resultados

A busca pela perfeição


Para que a discussão dos resultados da pesquisa descrita
neste artigo possa ser melhor compreendida é necessário
A constante submissão ao julgamento do outro ressaltar algumas características observadas da organiza-
ção do trabalho no BCSP. Desta forma, o item IV está dividi-
A constante pressão pelo alto desempenho
do em dois tópicos: IV.I – A organização do trabalho do
O sofrimento A frustração de não ser escolhido para o elenco BCSP, que por sua vez está dividido em três sub-tópicos: a.
no trabalho principal a cada novo espetáculo
o processo de trabalho, b. relações no trabalho e c. pressão
A competitividade
pela perfeição. Já o tópico IV.II – O bailarino e as estratégias
O erro no trabalho
de defesa mobilizadas ao trabalhar, refere-se a análise dos
dados à luz da PDT, esse tópico foi subdividido em três:
O convívio com a dor (física) a.“eu ligo o profissional”, b.“bailarino tem ego"e, por último
o c. valorização da dor.
Quadro II – Temas seleccionados para analisar as entrevistas.

A observação do processo de trabalho foi realizada durante IV.I A Organização do trabalho do Bcsp
três meses. Neste período foi possível acompanhar o pro-
cesso de elaboração de um espetáculo de dança na compa-
nhia estudada, do seu início até a estréia do espetáculo. As A. O Processo de trabalho
observações foram realizadas semanalmente e sempre ti-
veram a duração de um dia completo de jornada de traba- A agenda de espetáculos do BCSP é definida pela direção da
lho, ou seja, de oito horas. Essas observações foram regis- Companhia em conjunto com a direção do Theatro Munici-
tradas em cadernos de campo e em fotos digitais. Utilizou-se pal de São Paulo. A definição das coreografias é realizada
a observação do processo de trabalho com o intuito de pela direção do BCSP, podendo ser selecionada coreografia
aprofundar o conhecimento das relações sociais estabele- do repertório da Companhia ou mesmo uma nova coreogra-
cidas nos processos de elaboração do trabalho em dança fia, criada especialmente para o BCSP, por um coreógrafo
que ainda é pouco analisado, no Brasil. A observação do convidado. Este foi o caso do processo de trabalho observa-
processo de trabalho permitiu identificar valores do grupo e do nesta pesquisa.
aspectos do relacionamento entre os membros do coletivo Uma vez definida a coreografia, o processo de trabalho para
que passam despercebidos na fala dos trabalhadores (Ver- a construção de um espetáculo, no BCSP, pode ser resumi-
gara, 2006). do em três etapas. Primeiro, a escolha do elenco. Em se-
gundo lugar, os ensaios, momento em que a coreografia é
escolha e a combinação dos dois métodos (observação transmitida aos bailarinos e, ás vezes, reelaborada de acor-
do processo de trabalho e análise de conteúdo das en- do com as características físicas e/ou técnicas dos bailari-
trevistas) ocorreu com intuito de oferecer a maior nos. A montagem da obra coreográfica ocorre por meio
quantidade de informações sobre o grupo estudado, desses ensaios, os quais representam um longo período de
sendo um método complementar ao outro no que tange trabalho na preparação de um espetáculo. A terceira etapa
os dados encontrados. consiste na apresentação do espetáculo em si, na concreti-
zação da obra artística propriamente dita.
No BCSP, a cada nova montagem de espetáculo um coreó-
grafo ou coreógrafa é convidado, desta forma a cada nova
construção coreográfica, os bailarinos do BCSP são con-
frontados com uma nova forma de trabalhar. Outra caracte-
rística da organização do trabalho analisada é que a cada
novo espetáculo o elenco é dividido em dois; elenco 1 e elen-
co 2. O elenco 1 é constituído pelo grupo de bailarinos e
bailarinas considerados, pelo coreógrafo e pela direção do
BCSP, mais apto para realizar a coreografia. Já o elenco 2 é
representado pelos substitutos do elenco 1. Cada bailarino
do elenco 1 tem o seu representante no elenco 2. Esta divi-
são do grupo é, comumente, geradora de angústia, frustra-
ção e competitividade. Ser do elenco 2 é considerado pelos
Sofrimento psíquico do bailarino: um olhar da psicodinâmica do trabalho • Marina Petrilli Segnini & Selma Lancman 49

bailarinos um demérito. O bailarino do elenco 2 terá que de sujeitar - se à vontade do outro, em disciplina, no sentido
estar tão preparado quanto o bailarino do elenco 1, porém, de submissão a um regulamento e em busca pela perfeição
pode ser que não venha a participar da apresentação. do movimento que, por sua vez, está intrinsecamente rela-
O coreógrafo e o assistente de coreografia são os responsá- cionada à busca por um determinado corpo para o trabalho.
veis pelo padrão e o controle do movimento, pela qualidade
da obra coreográfica, estão atentos à técnica de cada baila-
rino, se preocupam com a coesão do grupo na execução da C. Pressão pela perfeição
dança, assim como adequam os tempos da dança com rela-
ção à música. O trabalho da dança é detalhista, minucioso e Esta constante procura pela perfeição e exatidão do movi-
exigente. É um trabalho realizado sob o constante olhar crí- mento é almejada pela organização do trabalho, e também
tico do coreógrafo, dos assistentes de coreografia e, tam- pelo próprio bailarino. É observada uma íntima relação en-
bém, da direção. tre a auto-exigência do bailarino e a exigência da organiza-
Durante os ensaios, os bailarinos frequentemente são in- ção, sendo difícil uma diferenciação entre elas.
terrompidos, para que tenham seus movimentos corrigi-
dos. O reconhecimento positivo do trabalho realizado é co- (…) Eu me cobro muito. (…) A gente tem um cotidiano
mumente expresso pelo coreógrafo e seus assistentes no muito duro, muito exigente. (…) Então, a saúde mental e
final dos ensaios, porém, esse reconhecimento é comu- física vai para o chinelo (bailarina I, BCSP, 30/05/08).
mente acompanhado por uma lista de críticas e aponta- O grau de exigência do bailarino é (…) gigante (bailarina
mentos que indicam correções e modificações. É observado IV, BCSP, 21/05/08).
que as correções são propostas para o grupo e para cada
bailarino individualmente, as quais, entretanto, deverão ser Observa-se uma organização na qual a disciplina é almeja-
sempre realizadas coletivamente. As críticas individuais da e valorizada; a pontualidade, a perfeição do movimento e
são informadas coletivamente, com o intuito de possibilitar a exigência por corpos esteticamente e fisicamente perfei-
a todos um processo de aprendizagem de como realizar a tos são cobrados diariamente destes profissionais. Existe
obra coreográfica. Os bailarinos do elenco 2 participam uma constante exigência por uma qualidade e precisão do
desse processo, porém ficam como uma espécie de sombra movimento, assim como a manutenção do corpo enquanto
do elenco 1, ou seja o coreógrafo e os assistentes de coreo- instrumento de trabalho. Nota-se uma permanente busca
grafia não o corrigem durante os ensaios do elenco 1. Have- pela perfeição.
rá, no entanto, um momento no qual somente o elenco 2 Os bailarinos são profissionais que estão constantemente
ensaiará e assim receberá a atenção do coreógrafo. trabalhando sob o olhar do outro. Inicialmente, ainda nos
ensaios, estão sob o olhar da direção artística, do coreógra-
fo e do colega. Durante o espetáculo somam-se os olhares
B. Relaç