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A PROPÓSITO DA INTRODUÇÃO À CRÍTICA

DA RAZÃO PURA DE IMMANUEL KANT


Acadêmico Neilson da Silva (PBIC-CNPq)
Orientador: Prof. Adelmo José da Silva (FUNREI-DFIME)
Resumo: O objetivo desse trabalho é fazer um comentário acerca da introdução à Crítica da
Razão Pura de Immanuel Kant. A introdução e também os prefácios da primeira e da segunda
edição da Crítica da Razão Pura constituem a propedêutica para uma melhor compreensão do
criticismo kantiano. Immanuel Kant assegura que a primeira fase da sua filosofia segue o exem-
plo das transformações ocorridas na ciência do seu tempo. Parodiando o método dos consagra-
dos físicos modernos, Kant limita todo o nosso conhecimento à experiência sensível. Depois,
seguindo o exemplo da química no que diz respeito aos processos de separação das substân-
cias, Kant divide o mundo filosófico em fenômeno e nôumeno. Por conseguinte, Ao descobrir que
a Terra não era o centro do universo, descobriu-se, também, o verdadeiro lugar do homem no
mundo do conhecimento; todavia é influenciado pela mudança de paradigma ocorrida na astro-
nomia que Kant realiza a chamada revolução copernicana na filosofia. Kant fez com que o con-
ceito de razão passasse por diversas modificações. O incondicionado conduz a razão à preten-
são orgulhosa de obter uma unidade absoluta dos fenômenos, o que segundo Kant é impossível.
A metafísica tradicional, que partia do pressuposto de poder conhecer os seus enunciados trans-
cendentes, encontra, em Kant, a impossibilidade de demonstrar, através da razão, os seus pres-
supostos de natureza puramente intelectual.

Palavras-chave: Razão. Paralogismo. Antinomia.

1. Introdução

A
racionalismo dogmático e o empirismo
metafísica, que no passado fora céptico. Essas correntes discutiam a
considerada a rainha de todas as origem do conhecimento, porém o rigor
ciências, no mundo moderno era igualmente válido em ambas as ar-
precisou de um novo conceito para se gumentações.
sustentar. Daí resulta a importância de
Kant, pois foi ele quem dividiu o mundo O racionalismo dogmático visava a co-
filosófico em fenômeno e nôumeno. Na nhecer seus objetos absolutamente a
visão kantiana, o fenômeno é possível priori, defendia com rigor a origem do
de ser conhecido, quando se encontra conhecimento pela razão, fundamentado
sujeito às formas a priori da sensibilida- no princípio das idéias inatas e no méto-
de, do entendimento e da razão; o nôu- do dedutivo-matemático. Os dogmáticos
meno, Kant denomina coisa em si, não acreditavam no poder exclusivo da razão
podendo, em hipótese alguma, ser co- e apoiavam-se nos domínios dos juízos
nhecido, mas somente pensado. Não é analíticos de explicação. Assim, através
dada, ao homem, a capacidade de co- do princípio de identidade, que apre-
nhecer o nôumeno, portanto, fica impos- senta universalidade e necessidade rigo-
sibilitado o conhecimento acerca dos rosas, pretendiam os racionalistas de-
diversos enunciados metafísicos: a per- monstrar a validade e a verdade acerca
manência da alma, o mundo como tota- dos seus pressupostos científicos. Nos
lidade e a existência de um ser originá- juízos analíticos, pela simples análise do
rio. Kant não tem como finalidade negar conceito, podemos determinar, anterior-
a metafísica mas, sim, discutir a sua mente a qualquer experiência, o valor de
impossibilidade como ciência puramente verdade de uma proposição. Com isso,
teórica que visa a alcançar o incondicio- ao dizer que “o predicado B pertence ao
nado. Além disso, Kant tem o mérito de sujeito A como algo que está implicita-
ter realizado uma síntese entre o racio- mente contido nesse conceito A” [KANT,
nalismo dogmático e o empirismo cépti- 1994, p. 42], formulamos um juízo de
co, demonstrando que tanto a razão explicação que possui uma verdade
como a experiência possuem limites. De objetiva. Entretanto, os juízos de expli-
acordo com a sua filosofia crítica, aquilo cação dizem apenas o óbvio e nada
que se encontra para além do mundo acrescentam ao nosso conhecimento. Na
dos fenômenos, do universo da experi- proposição “a bola é redonda”, poder-se-
ência possível, não pode, de modo al- á considerar que o predicado ‘redonda’
gum, ser conhecido por meio das facul- está contido no conceito do sujeito ‘bola’.
dades cognitivas do homem. Portanto, tal proposição é um juízo ana-
lítico, pois podemos saber a priori a ver-
dade desse juízo sem recorrer à experi-
2. A Descoberta de Kant ência. Todo o problema, segundo Kant,
reside no fato dos juízos de explicação
No tempo de Kant, o mundo do conhe- serem estéreis, isto é nada acrescentam
cimento encontrava-se diante de duas ao nosso conhecimento, por afirmarem
correntes de considerável destaque: o algo que já é essencial ao sujeito, provo-

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cando assim um certo imobilismo no Kant pretende superar essa dicotomia,


universo das relações de conhecimento, pois tanto uma posição como outra aca-
ou uma identidade do tipo a=a. baram por deixar um abismo que divide
as relações de conhecimento. As duas
Ao contrário do racionalismo dogmático, posições, o racionalismo dogmático e o
o empirismo céptico fazia severas críti- empirismo céptico, separaram a razão
cas à concepção de idéias inatas e bus- da matéria, os conceitos do conteúdo. É
cava compreender a ciência sempre por o próprio Kant quem reconhece que
meio dos juízos sintéticos, a posteriori, “sem a sensibilidade, nenhum objeto nos
juízos de experiência. Tais juízos são seria dado; sem o entendimento, ne-
capazes de acrescentar algo ao sujeito, nhum seria pensado. Os pensamentos
porque são progressivos e fornecedores sem conteúdos são vazios; intuições
de conteúdo empírico. Kant chama a sem conceitos são cegas” [KANT, 1994,
esses juízos “sintéticos” devido ao fato p. 89]. O conhecimento é, para Kant,
de possuírem o conteúdo retirado da síntese a priori. Somente a síntese a
experiência sensível. Assim, os empi- priori pode reunir o fenômeno, que é
ristas cépticos defendiam o conheci- intuído na sensibilidade e o conceito, que
mento pela experiência e emitiam juízos é efetivado no entendimento. O fenôme-
de extensão, os quais possuem um pre- no fornece uma multiplicidade nas for-
dicado “B totalmente fora do conceito A, mas da sensibilidade e as formas do
embora em ligação com ele” [KANT, entendimento faz a síntese de maneira a
1994, p. 42]. Porém, nos juízos sintéti- fornecer a unidade. Logo, para que haja
cos, essa ligação não é pensada por conhecimento, precisamos tanto da ex-
identidade do tipo a=a, mas do tipo a=b. periência, fornecida pela nossa faculda-
Além disso, os juízos de extensão forne- de de sensibilidade, como também do
cem matéria, conteúdo indispensável conceito, fornecido pela nossa faculdade
para toda a relação de conhecimento de entendimento.
sintético. A questão a ser colocada é que
os juízos de extensão não são universais
nem necessários, uma vez que somente O conhecimento como síntese a priori é
posso pensá-lo por indução. Quando possível, uma vez que ele pode dar
digo que “a água entra em estado de tanto a universalidade e a necessidade
ebulição a 100º C” , por mais que eu rigorosa como a matéria ou conteúdo
analise esse juízo não consigo, por iden- proveniente do mundo exterior. Esta é a
tidade a=a, pensar o predicado contido descoberta genial de Kant: o juízo sinté-
na essência do sujeito. Tenho, necessa- tico a priori, que reúne o conteúdo e a
riamente, que verificar vários casos par- forma. A síntese concretizada por Kant
ticulares para somente a posteriori emitir supera, no entanto, através dos juízos
tal juízo. sintéticos a priori, a concepção raciona-
lista dogmática pautada em juízos de
Apesar de as duas posições conterem o explicação e a concepção empirista cép-
argumento de maneira rigorosa, Kant tica fundamentada nos juízos de exten-
encontra determinados juízos que são são. Porém, a filosofia kantiana tem
formados tanto pelo elemento sintético ainda o objetivo de verificar a possibili-
como pelo componente a priori. Nas dade de aplicação de tais juízos, ao
palavras de Kant, a proposição “toda mundo do conhecimento. Somente as-
mudança tem que ter necessariamente sim, o filósofo poderia avaliar a validade
uma causa” nos conduz pensá-la de de sua descoberta e formar as bases
modo analítico, devido ao fato de ser para todo os seus pressupostos gnosio-
rigorosamente universal e necessária; lógicos.
porém, essa proposição é sintética a
priori, porque, apesar de ser universal e 2. 1. Os Problemas do Conhecimento:
necessária, o conceito de ‘mudança’ A questão aqui colocada é, no entanto, a
somente 1pode ser obtido através da ex- possibilidade ou não da validade e da
periência . aplicabilidade dos juízos sintéticos a
priori, no mundo do conhecimento. Se-
Como pudemos observar, temos de um gundo Kant, “todo o nosso conhecimento
lado o juízo analítico, que possui univer- começa pelos sentidos, daí passa ao
salidade e necessidade, mas que é inca- entendimento e termina na razão, acima
paz de nos acrescentar qualquer conhe- da qual nada se encontra em nós mais
cimento; de outro lado temos o juízo elevado que elabore a matéria da intui-
sintético, tirado da experiência, que pos- ção e a traga a mais alta unidade de
sui a capacidade de acrescentar conhe- pensamento” [KANT, 1994, p. 298]. São
cimentos devido ao fato de possuir um as formas a priori existentes no homem
conteúdo de experiência, mas que não que permitem o conhecimento. Em ou-
posso, de modo algum, pensá-lo de tras palavras, a estrutura humana é
maneira universal e a necessária. constituída de tal modo que as faculda-
des de conhecimento possibilitam a ex-
plicação do condicionado que é forneci-
1
KANT, Introdução à C. R. Pura, 1994, p. do pelo mundo fenomênico.
37. É influenciado pela revolução copernica-

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na que Kant entende o sujeito como objeto; ela é, unicamente, uma primeira
elemento unificador de todo o conteúdo fase do processo cognitivo. É da noção
fornecido pelos sentidos. “Ao invés de de espaço e de tempo que verificamos a
fazer o espírito gravitar em torno das possibilidade de se aplicarem os juízos
coisas, Kant mostrou que as coisas gi- sintéticos a priori à matemática.
ram em torno do espírito. A natureza é,
em parte, obra do homem, de sua sensi- Quando pensamos a proposição
bilidade e do seu pensamento”2. É fun- “7+5=12”, à primeira vista iludidos pela
damentado nesse princípio que Kant faz garantia da sua universalidade e neces-
uso do termo “transcendental” e não do sidade poderíamos pensar que ela é
“transcendente”. O transcendental são as analítica a priori. Porém, por mais que
condições do sujeito e as suas faculda- analisemos o conceito da soma desses
des a priori que possibilitam toda a rela- fatores, jamais encontraremos o seu
ção de conhecimento. O elemento trans- produto. Portanto, “temos que superar
cendente, por sua vez, é incondicionado, estes conceitos, procurando a ajuda da
não pode ser objeto de conhecimento, intuição correspondente a um deles, por
pois ele transcende, de maneira a ultra- exemplo os cinco dedos da mão” [KANT,
passar, as faculdades de conhecimento 1994, p. 47]. Poder-se-á considerar que
do homem. A consciência do homem o espaço e o tempo que permitem a
permite a ele próprio estabelecer a uni- matemática são a priori, mas os mesmos
dade na multiplicidade fornecida pelo sem as coisas não fazem sentido. O
mundo sensível. espaço sem os objetos é vazio de conte-
údo, o tempo sem a seqüência sucessiva
Kant pergunta se os juízos sintéticos a dos dados não é capaz de fazer nenhu-
priori são possíveis na matemática e na ma síntese. Segundo Kant, as intuições
física. No primeiro caso, temos a estéti- puras da sensibilidade, o espaço e o
ca transcendental que verifica se pode- tempo, possuem uma realidade empírica
mos aplicar os mesmos juízos à Mate- quando se referem aos fenômenos e
mática pelas formas da sensibilidade. No uma idealidade transcendental por existi-
segundo momento, na analítica trans- rem no homem como formas da sua
cendental, Kant investiga se é possível sensibilidade independentemente das
aplicar os juízos sintéticos a priori à físi- coisas exteriores. Com isso, podemos
ca, por meio das formas do entendi- concluir que é possível a Matemática
mento. como ciência, pois ela admite que lhe
Na estética transcendental, Kant trata da sejam aplicados, com rigorosa validade,
sensibilidade enquanto faculdade que os juízos sintéticos a priori através das
possibilita as intuições dos objetos. As intuições puras da sensibilidade, o espa-
formas a priori da sensibilidade são o ço e o tempo.
espaço e o tempo existentes no sujeito.
O espaço existe objetivamente para Na analítica transcendental, Kant trata
ordenar as coisas existentes fora do do entendimento enquanto faculdade
sujeito. O espaço não existe nas coisas e que possibilita a formação dos conceitos.
sim no homem. O tempo, da mesma O entendimento representa uma segun-
maneira, existe no sujeito e tem como da fase na marcha do conhecimento.
função ordenar internamente as intui- Existe a sensibilidade que pode intuir
ções. O mundo exterior é caótico e as mas que não é capaz de conceituar. Há
formas a priori da sensibilidade, o espa- o entendimento que é capaz de concei-
ço e o tempo são, portanto, a condição tuar mas que não é capaz de intuir. No
para a realização de qualquer experiên- entanto, para que haja conhecimento,
cia. Assim, “as sensações podem ser conceitos e intuições não podem sepa-
intuídas uma ao lado de outra (espaço) rar-se de modo algum.
ou uma colocada antes ou depois de
uma outra (tempo). Fora destas duas O Mito da Caverna de Platão propõe a
formas a priori universais e necessárias existência de dois mundos, o sensível e
da sensibilidade não é possível conceber o inteligível, entretanto, na concepção de
nenhuma experiência”3. Portanto, para Georges Pascal, em Kant, não existe
Kant, a intuição empírica “é a apreensão “outro mundo que não seja o sensível; e
imediata das sensações ordenadas nas é isto, precisamente, o que toda a análi-
formas a priori do espaço e do tempo. se do entendimento irá demonstrar”5.
Na intuição do espaço podemos dese- Através do entendimento, Kant deseja
nhar as figuras da geometria, como na explicar como seriam possíveis os juízos
intuição do tempo podemos construir os sintéticos a priori na Física, ou seja,
números 4com a adição de sucessivas como é possível a Física como ciência,
unidades” . O que é importante notar é o como síntese a priori. Ao estabelecer as
fato de que a intuição não conceitua o relações acerca das doze categorias,
(totalidade, pluralidade, unidade, afirma-
ção, negação, limitação, substancialida-
2 de, causalidade, ação recíproca, realida-
CHALLAYE, 1966, p. 196.
3
SCIACCA, 1968, p.189-90.
4 5
Idem. PASCAL, 1996, p. 61.

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de, necessidade e possibilidade), Kant compreender a diferença existente entre


procura demonstrar que a Física é a fenômeno e nôumeno. O primeiro é,
aplicação dos conceitos do entendimento para Kant, a coisa tal como ela nos apa-
aos objetos fornecidos pela intuição. O rece, o indeterminado, que constitui os
primeiro passo do conhecimento, as vários elementos do mundo sensível ou
formas a priori de primeiro grau, deno- fenomênico, é aquilo que as faculdades
mina-se intuição e a segunda fase do cognitivas do homem podem perceber e
processo, ou seja, as formas a priori de trazer à unidade dando origem ao co-
segundo grau, chama-se categorias do nhecimento. Ao segundo, Kant denomina
entendimento. O que garante à Física, “coisa em si”, “coisa incognoscível” ou
universalidade e necessidade rigorosas “ser de pensamento”, que não pode, em
são, no entanto, as próprias categorias. hipótese alguma, ser conhecido. Para
Para Kant, o mundo exterior é desorde- que haja conhecimento, o objeto não
nado e é, portanto, o homem o detentor pode ser desprovido de conteúdo; o
das faculdades que possibilitam, de certo nôumeno é uma idéia da razão que não
modo, a organização dessa realidade. se sujeita às formas inseparáveis da
sensibilidade e do entendimento huma-
No tempo de Kant, os progressos das no. Ora, se o nôumeno não é objeto de
ciências experimentais eram visíveis e conhecimento, também não podemos
concretos. Com isso, o filósofo demons- aplicar a ele os juízos sintéticos a priori.
trava um certo otimismo, tendo em conta A crítica de Kant estabeleceu que tais
as revoluções científicas. Tal conclusão juízos somente podem ser aplicados ao
pode ser compreendida como uma ten- mundo sensível; são válidos unicamente
tativa de superação do ceticismo empi- para objetos de conteúdo concreto. Os
rista e do dogmatismo racionalista. Kant limites do conhecimento são, portanto, a
ao demonstrar a possibilidade de uma experiência sensível. A metafísica como
ciência dos fenômenos, fundamentada ciência é impossível; diz Kant:
nas formas da sensibilidade e do enten-
dimento, verifica a possibilidade do co- o fato da metafísica até hoje se ter mantido
nhecimento dos vários objetos limitados em estado tão vacilante entre incertezas e
pela experiência sensível. Assim, a contradições é simplesmente devido a não se
filosofia kantiana termina por resolver, ter pensado mais cedo neste problema, nem
segundo o seu sistema, a problemática talvez mesmo na distinção entre juízos analí-
essencial do conhecimento, ou seja, a ticos e juízos sintéticos. A salvação ou ruína
validade e a aplicabilidade dos juízos da metafísica assenta na solução deste pro-
sintéticos a priori na matemática e nas blema ou numa demonstração satisfatória de
ciências naturais. Ainda que Kant tenha que não há realmente possibilidade de resol-
operado uma verdadeira revolução na ver o que ela pretende ver esclarecido
gnosiologia, o seu objetivo principal não [KANT, 1994, p. 49].
consiste em fundar uma teoria do co-
nhecimento, mas completar seu sistema No tempo de Kant, a metafísica já esta-
filosófico investigando a natureza dos va renegada a segundo plano e foi jus-
enunciados da metafísica. Portando, fica tamente o seu fracasso que deixara
ainda uma indagação: é possível aplicar aberto o caminho ao ceticismo. As pre-
juízos sintéticos a priori à metafísica? tensões de se conhecer o incondicionado
Em outras palavras é possível uma me- conduz, necessariamente, a infinitas
tafísica como ciência? Kant agora pre- contradições.
tende saber quais são os limites da ra-
zão humana. Para demonstrar os paralogismos, ar-
gumentos contraditórios, acerca das
2.2. Os Problemas da Metafísica: Kant idéias de alma e de Deus, e as antino-
expõe, na Crítica da Razão Pura, a dia- mias, conflito entre duas afirmações
lética transcendental, que trata da im- demonstradas ou refutadas com igual
possibilidade da metafísica como conhe- rigor, referentes à idéia de mundo, Kant
cimento do nôumeno. Na ordem das estabelece que “se alguém dissesse que
condições, a tentativa arrogante de todo corpo cheira bem ou não cheira
completar de modo absoluto a unidade bem, então ocorre uma terceira alterna-
dos fenômenos leva a razão a buscar o tiva, ou seja que ele de modo algum
incondicionado e ultrapassar os seus cheira (emite odores), e desse modo
limites, chegando assim, a uma ilusão ambas as proposições conflitantes po-
natural, conhecimento aparente e inevi- dem ser falsas” [KANT, 1988, p. 80].
tável. Poder-se-á até mesmo considerar Com isso, Kant pretende apontar toda a
que as idéias de alma, tratadas na psi- contradição existente nas proposições
cologia racional, as idéias de mundo, que tentam afirmar certos conhecimen-
discutidas na cosmologia racional, e as tos metafísicos acerca das coisas em si
idéias de Deus, demonstradas pela teo- mesmas.
logia racional, não podem de modo al- Kant comporta-se como crítico severo
gum ser explicadas pela racionalidade. diante da Psicologia Racional, pois esta
Para se entender, com precisão, o pro- acredita ser possível conhecer a alma
blema geral da metafísica, precisamos destituída do corpo. Kant demonstra
quatro paralogismos cometidos pela

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psicologia racional. Segundo Adolfo Bo- absoluta e demonstrar, analiticamente e


naccini, O paralogismo principal é totalmente a priori, a existência de um
aquele que se refere à substancialidade ser originário; a cosmológica, que acre-
da alma, depois de demonstrada que a dita ser possível provar a existência de
alma é substancia o psicólogo racional um primeiro princípio de modo a poste-
deriva analiticamente a simplicidade, a riori partindo do ser contingente para
personalidade e a imortalidade da alma6. chegar ao ser absolutamente necessário;
A Psicologia Racional transforma “a a físico-teológica, que pretende afirmar a
unidade subjetiva da consciência, que posteriori, partindo da ordem e harmonia
serve de fundamento às categorias, em do universo, a existência do ser originá-
substância de existência objetiva”7. Ape- rio como uma espécie de inteligência
sar do espírito possuir uma função unifi- ordenadora.
cadora das representações, é um para-
logismo acreditar ser possível o conhe- É rejeitada, por Kant, a prova a priori
cimento dele separado do corpo. So- ontológica da existência de Deus. O
mente seria possível deduzir analitica- criticismo de Kant demonstra que quan-
mente e a de modo a priori as proposi- do pensamos “um ser (sem defeitos)
ções da psicologia racional se o homem mantém-se sempre o problema de saber
fosse possuidor de uma intuição inte- se existe ou não” [KANT, 1994, p. 505].
lectual, o que é impossível. Todo o nos- Considerando o conteúdo a posteriori
so conhecimento supõe uma síntese a como limite do conhecimento, compre-
priori e as idéias de alma não encontram ende-se que na filosofia de Kant a reali-
nenhuma experiência que lhes possa ser dade é uma categoria do intelecto que
adequada. Logo, não é possível provar a somente possui validade rigorosa quan-
realidade ou irrealidade da alma, se é do aplicada aos fenômenos. Num uso
mortal ou imortal; a alma não é objeto de puramente teórico desta categoria, na
conhecimento, mas um ser de pensa- busca da demonstração de um nôume-
mento, um nôumeno ou coisa em si. no, a razão extrapola seus limites e cai
em contradição. A prova ontológica é
Apontando as antinomias Kant rejeita a falaciosa por “confundir a existência da
Cosmologia Racional, a qual visa a ex- coisa com o simples conceito da coisa”
plicar o mundo exterior enquanto totali- [Idem]. O ser absoluto constitui uma
dade. É humanamente impossível tal idéia da razão que ultrapassa os limites
pretensão, pois não podemos saber ab- da experiência sensível e encontra-se
solutamente nada acerca da origem do muito além do entendimento humano.
universo, se ele foi ou não criado no
tempo e no espaço, se é finito ou infinito. Ao partir do mundo natural a prova cos-
Quando tentamos pensar tal explicação mológica, fundamentada no princípio de
somente conseguimos chegar a antino- causalidade e correspondência, nos faz
mias. Instaura-se o conflito da razão pensar que ela é a posteriori. Ela esta-
consigo mesma. Não sabemos “se a belece que se existe o contingente tem
matéria é, ou não, composta de ele- que existir o necessário e ainda o abso-
mentos simples e incomponíveis; se é lutamente necessário. Kant demonstra
possível ou impossível que haja causas que a prova cosmológica começa no
livres não causadas por outras causas; mundo sensível mas não permanece
se há ou não há um ser necessário do nele. Essa demonstração faz uso da
qual dependam as realidades contin- experiência a posteriori do mundo natu-
8 ral para dar unicamente um primeiro
gentes” . Não possuem nenhum funda-
mento os argumentos acerca das idéias passo “a saber para se elevar para se
de mundo; é falaciosa e contraditória elevar à existência de um ser necessário
toda proposição emitida para afirmar em geral. O fundamento da prova nada
qualquer conhecimento acerca do cos- nos ensina acerca dos atributos desse
mos como totalidade. ser; então a razão afasta-se” [KANT,
1994, p. 508] completamente do mundo
Depois de consideradas todas essas sensível para buscar a conclusão do
questões, Kant demonstra ainda o para- raciocínio a partir dos puros conceitos do
logismo, que diz respeito à idéia de entendimento. O paralogismo se com-
Deus. O ser originário na perspectiva pleta quando é demonstrado que “o con-
kantiana serve de fundamento primeiro, ceito puramente intelectual do contin-
ou mesmo de primeiro princípio, a toda gente não pode produzir nenhuma pro-
ordem existente no universo. O filósofo posição sintética como a da causalidade,
argumenta que são equivocadas todas e o princípio desta só no mundo sensível
as provas da Teologia Racional. Kant encontra significação e critério para sua
apresenta três provas: a ontológica, que aplicação” [KANT, 1994, p. 511]. Aban-
parte de puros conceitos do entendi- donando o mundo sensível, a demons-
mento para chegar à idéia de perfeição tração cosmológica comete o mesmo
devaneio da prova ontológica operando
6 a síntese do raciocínio de modo pura-
BONACCINI, 1996, p. 60. mente intelectual. A prova cosmológica
7
CHALLAYE, 1996, p. 194. que se gabava de operar a sua síntese
8
Idem. de modo a posteriori, é uma prova a

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priori ocultada. A filosofia kantiana, então, vem de-


monstrar que os objetos da metafísica
Partindo da ordem harmonia e hierarquia são seres noumênicos, que se encon-
dos seres do universo e ainda do princí- tram para além do mundo da experiência
pio de causalidade, a prova físico- possível. “A razão especulativa é um
teológica busca fundamentar seu racio- princípio de unidade. Leva o entendi-
cínio de modo a posteriori. Segundo mento a unificar, a sistematizar, o esfor-
Kant, esta demonstração entra facil- ço satisfatório quando se aplica ao mun-
mente em conflito consigo mesma quan- do dos fenômenos. Mas, num uso teóri-
do percebemos que “todas as leis da co, a razão procura ultrapassar o mundo
passagem dos efeitos para as causas e dos fenômenos; daí a ilusão metafísi-
até mesmo toda síntese e toda extensão ca”9. Segundo Kant, iludida de que as
do nosso conhecimento em geral repor- moléculas de ar impedem a sua livre
tam-se unicamente à experiência possí- trajetória no espaço, uma ave poderia
vel, por conseguinte a objetos do mundo “pensar” que no vácuo ela pudesse voar
dos sentidos e só com referência a estes melhor; entretanto, seria debalde tal
podem ter uma significação” [KANT, pensamento, pois no vácuo, sem a re-
1994, p. 519]. A observação permite-nos sistência proporcionada pelas partículas
estabelecer, acerca da regularidade do de ar, a ave jamais voaria. A razão tem
movimento natural das coisas, uma a crença de que pode pensar melhor
grandeza que seja causa primeira deste saindo do mundo sensível, mundo dos
processo da passagem dos efeitos para fenômenos, para chegar ao incondicio-
as causas, ou seja, uma grandeza abso- nado; porém, o que acontece é a ilusão
luta que serve de sustentáculo a toda a de se ter alcançado o conhecimento dos
cadeia ordenada e justaposta de ele- objetos noumênicos. Nesse sentido, o
mentos do mundo natural. O princípio da que acontece, quando o homem tem
causalidade fortalece a convicção da essa intenção, é o fato de sua razão cair
possibilidade de existência de um ser no vazio.
originário para fundamentar a totalidade
deste ordenamento. Após considerado
tudo isto, a razão cai novamente em 3. Considerações Acerca Da Filosofia
contradição quando infere apoditica- Crítica De Kant
mente poder conhecer esta grandeza,
bem como afirmar de modo incontestá- A crítica kantiana termina por concluir a
vel a existência real do ser originário. A possibilidade de dissolver, com o seu
demonstração da existência de uma método, até mesmo a mais sólida e sutil
primeira causa ou primeiro princípio Filosofia. Não resta dúvida de que o
constitui o passo decisivo para a razão propósito de Kant foi, em suma, elevar a
formular a síntese e fazer surgir o para- crítica ao seu mais alto grau. Somente a
logismo que faz esta prova cometer a crítica é capaz de “cortar pela raiz o
mesma contradição da demonstração materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a
cosmológica. incredulidade dos espíritos fortes, o fa-
natismo e a superstição, que podem
Kant diz que a segunda e terceira provas tornar nocivos a todos e, por último,
podem ser imediatamente descartadas, também o idealismo e o ceticismo, que
pois elas subentendem a primeira. Kant são sobretudo perigosos” [KANT, 1994,
demonstrou ser possível transitar da p. 30]. A atualidade da filosofia kantiana
prova físico-teológica à cosmológica e não se resume, unicamente, na tentativa
desta para a demonstração ontológica. de superar o racionalismo dogmático e o
Podemos anunciar dois pontos relevan- empirismo céptico, pois ela tem ainda a
tes a partir do que ficou demonstrado; pretensão de propor uma forma de razão
como pudemos observar a prova ontoló- que proceda criticamente sem passivi-
gica é uma ilusão da razão entre os pu- dade.
ros conceitos do entendimento e no que
concerne às outras duas provas Kant O que chamamos crítica, em Kant, tem
entende que o princípio da causalidade é fundamental importância para o universo
válido somente no âmbito dos fenôme- do conhecimento, pois ela acaba por
nos. As provas cosmológica e físico te- descobrir na razão um uso regulador que
ológica que se dizem a posteriori, são é, portanto, o reconhecimento da impos-
provas a priori disfarçadas de a posterio- sibilidade de se atingir os objetos cuja
ri. Portanto, nenhuma prova da existên- natureza é desprovida de conteúdo ma-
cia do ser originário possui força de- terial. Na busca de resposta para esse
monstrativa sem conduzir a razão a infi- problema, o próprio kantismo entende
nitas contradições. Sendo Deus um que a questão essencial levantada pela
nôumeno, não posso afirmar ser con- Crítica da Razão Pura é unicamente a
creta a sua existência, uma vez que não “de saber até onde posso esperar alcan-
tenho como aplicar meu conhecimento çar com a razão, se me for retirada toda
sintético a priori a objetos desprovidos a matéria e todo o concurso da experi-
de matéria ou de qualquer conteúdo
sensível. 9
CHALLAYE, 1996, p. 194.

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Metavnoia. São João del-Rei, n. 1, p. 84-91, 1998/1999
91 SILVA, Neilson José da. A Propósito da Introdução à Crítica da Razão Pura ...

ência” [KANT, 1994, p. 7]. Ora, a nature- a metafísica deve ter algum significado
za humana é constituída de tal modo para o universo da ética, mas seus seres
que não nos permite conhecer os objetos de pensamento não podem ser, de modo
noumênicos da razão especulativa. algum, objetos de conhecimento.

Quando a razão tenta elevar à unidade


Conclusão
os elementos ou seres de pensamentos, Em se tratando de Filosofia, nada se
ela de modo algum consegue seguir seu pode afirmar apoditicamente acerca do
caminho sem cair, inevitavelmente, nos mundo inteligível, é o que Kant nos en-
erros, em argumentos sofísticos e sem sina. Do ponto de vista metafísico, a
fundamentos. Talvez a razão, segundo Crítica da Razão Pura teve como finali-
Kant, se encontre diante do seu com- dade demonstrar os paralogismos e as
promisso mais difícil, o “conhecimento antinomias acerca das idéias da razão.
de si mesma” [KANT, 1994, p. 5]. Acerca Kant, em momento algum, demonstra a
da razão, poder-se-á considerar que a impossibilidade da metafísica em geral;
crítica conduz à “constituição de um afinal, no campo da ética, ela possui um
tribunal que lhe assegure as pretensões inestimável atributo. É no universo do
legítimas e, em contrapartida, possa conhecimento, que a metafísica teve
condenar-lhe todas as pretensões infun- absurdas pretensões, entre elas a tenta-
dadas; e tudo isso não por decisão arbi- tiva de, por meio da razão, elevar-se ao
trária, mas em nome das suas leis eter- incondicionado. A crítica surgiu como
nas e imutáveis” [Idem]. A metafísica uma espécie de instrumento para de-
não pode conhecer com legitimidade e monstrar a impossibilidade da metafísica
com validade as coisas em si. Portanto, enquanto ciência. Tal crítica deve, ne-
segundo Kant, a razão deve, necessari- cessariamente, acompanhar todo conhe-
amente, ser entendida como crítica de si cimento, bem como os seus pressupos-
mesma. tos gnosiológicos, para que o homem
nunca ultrapasse os limites exigidos pela
De modo algum é possível uma metafí- experiência. O problema da razão, se-
sica como ciência, e isso somente a gundo Kant, tem sido, de fato, tentar
crítica é capaz de concluir. Assim, o conhecer objetos transcendentes que
“dever da Filosofia era dissipar a ilusão somente podem ser pensados, objetos
proveniente de um mal-entendido, mes- que estão para além da realidade sensí-
mo com o risco de destruir uma quimera vel, muito além do universo condiciona-
tão amada e enaltecida” [KANT, 1994, p. do pela experiência. A razão deve preo-
6]. No entanto, somente a crítica é capaz cupar-se não com o mundo noumênico,
de evitar que a razão ultrapasse o uni- mas tão somente com o mundo dos fe-
verso da experiência, o mundo dos fe- nômenos. Diante da tentativa debalde de
nômenos. Para além do mundo sensível elucidar questões transcendentes, a
nada pode ser demonstrado ou conheci- razão se esquiva conseguindo somente
do, nem a existência, nem a não exis- cair em argumentos falaciosos e errô-
tência de seres noumênicos. Certamente neos.

Referências Bibliográficas
BONACCINI, Juan Adolfo. Acerca da Segunda Versão dos Paralogismos da Razão Pura. Anais de
Filosofia, São João del-Rei : FUNREI, n. 3, p. 59 - 66, Jun. 1996.

CHALLAYE, Félicien. Pequena História das Grandes Filosofias. Tradução e notas de Luiz Damasco
Penna e J. B. Damasco Penna. Rio de Janeiro : Nacional, 1966

DELEUZE, Gilles. Para Ler Kant. Tradução de Sônia Dantas Pinto Guimarães. Rio de Janeiro : Francisco
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KANT, Immanuel. Crítica da Razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão; Introdução e Notas de Alexandre Fradique Morujão. 3. ed. Lisboa : Fundação Calouste Gul-
benkian, 1994.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura: outros Textos Filosóficos. Tradução de Valério Rohden e
Udo Baldur Moosburger. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1987 - V. II (In: Coleção - Os Pensadores
n. 25).

PASCAL, Georges. O Pensamento de Kant. Introdução e tradução de Raimundo Vier. 5. ed. Petrópolis:
Vozes, 1996.

SCIACCA, Michele Frederico. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. Tradução de Luís Washin-
gton Vita. 3. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1968.

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