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alterum torum
Resumo: Neste estudo propõe-se rever a concepção de adultério como referência para mudança na
sociedade e problematizar os discursos que permeiam estas mudanças. O adultério, antes
categorizado como crime contra a segurança do estado civil, no século XX era classificado como
delito contra a honra e atualmente não é mais tipificado como delito. Assim aos poucos os discursos
da dominação masculina (BOURDIEU, 2002) e a ordem do discurso de dominação sobre o
feminino (FOUCAULT, 1996) vão tomando uma nova configuração. O machismo é uma forma
ideológica que se sobrepõe ao fazer jurídico e que pode direcionar as decisões tomadas em
julgamentos de primeira e segunda instâncias. As conclusões permite-nos perceber que o machismo
ainda polariza muitas decisões, realidade que vem se alterando aos poucos. Partindo da concepção
de que a dominação masculina influencia no fazer jurídico, passamos a examinar o discurso jurídico
como reflexo ideológico dos valores masculinos.
Introdução
O adultério não é mais categorizado como crime no Brasil desde 2005 com a publicação do
último Código Penal Brasileiro. A sociedade está mais tolerante e as relações pessoais estão mais
flexíveis, com um progressivo distanciamento do conceito de sacralização do matrimônio. O
matrimônio não é mais a única forma de relacionamento conjugal, novas formas de relacionamento
com base em respeito mútuo e liberdade individual surgiram, sem que seja exigido o convívio sob o
mesmo teto para o reconhecimento de uma entidade familiar. Assim, o conceito de família está mais
abrangente e inclui novas formas de convivência, passando a ter como principal componente o elo
afetivo, independente de gênero (LOUZADA, 2014), (STJ, 2011).
Mudanças de paradigmas como as observadas na constituição das famílias fazem com que
a realidade social contrarie insistentemente a determinação legal, e isto se aplica também às
relações paralelas que sempre ocorreram e continuam existindo como uma postura assumida por
homens e mulheres com tendências à infidelidade.
Propomos usar a prática de adultério como indicador de mudança da mentalidade da
sociedade, acredita-se que a prática do adultério vem sendo tratada com mais tolerância pela
sociedade; o ato não deixou de ser visto como um tipo de violação ao contrato matrimonial, mas à
medida que as relações interpessoais se tornam mais liberais certos comportamentos que antes eram
intoleráveis, passaram a serem vistos de modo diferente.
De um ponto de vista jurídico adultério é a violação do contrato matrimonial. O adultério
masculino não acarretava em consequências maiores para o marido, aliás, marido adúltero era uma
expressão que não existia no século 19, de acordo com Oliveira Filho (2011). Somente era
considerado crime caso o marido mantivesse ou sustentasse concubina.
1
Professor Doutor no curso de graduação em Letras na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) –
unidade de Jardim e-mail: alexandre_gonzaga@hotmail.com;
2
Professor Doutor nos Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)
e da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). e-mail: mlsgois2008@uol.com.br
O Código Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal vigorou no Brasil até o
início do século 19 e no título XXV, “Do que dorme com mulher casada” diz:
Mandamos que o homem, que dormir com mulher casada, e que em fama de casada
stiver, morra por ello.
Porém, se o adultero for de maior condição, que o marido della, asi como, se o tal
adultero fosse Fidalgo, e o marido Cavalleiro, ou Scudeiro, ou o adultero
Cavalleiro ou Scudeiro, e o marido peão, não farão as Justiças nelle execução, ate
nol-o fazerem saber, e verem sobre isso nosso mandado.
E toda mulher, que fizer adultério a seu marido morra por isso.
Samara (1995) diz que a prática das execuções da lei são desconhecidas pois os
documentos se perderam, todavia eram muitos os processos de divórcio e nulidade de casamentos
na Justiça Eclesiástica desde o século 18.
Cumpre esclarecer que no Brasil do século 19, o então crime de adultério foi debatido nas
esferas cível e criminal. No Código Penal de 1830 3, o adultério figurava no capítulo III “DOS
CRIMES CONTRA A SEGURANÇA DO ESTADO CIVIL, E DOMÉSTICO”. Textualmente o
Código Penal (C.P.) trazia:
SECÇÃO III
Adultério
Art. 250. A mulher casada, que commetter adulterio, será punida com a pena de
prisão com trabalho por um a tres annos.
A mesma pena se imporá neste caso ao adultero.
Art. 251. O homem casado, que tiver concubina, teúda, e manteúda, será punido
com as penas do artigo antecedente.
Art. 252. A accusação deste crime não será permittida á pessoa, que não seja
marido, ou mulher; e estes mesmos não terão direito de accusar, se em algum
tempo tiverem consentido no adulterio.
Art. 253. A accusação por adulterio deverá ser intentada conjunctamente contra a
mulher, e o homem, com quem ella tiver commettido o crime, se fôr vivo; e um
não poderá ser condemnado sem o outro.
Podemos perceber que o adultério é cometido essencialmente pela mulher casada, ficando
o homem mencionado no Código Penal da época nos casos de concubinato. Contudo, o artigo 250
do referido código é direto quanto a quem é imputado o crime de adultério sendo que ao homem, o
código se refere apenas como “adúltero”, podendo ser um homem casado ou solteiro. No artigo 251
a lei não categoriza o ato de ter concubina como adultério, menciona somente o ato de manter
concubina. Assim, o texto da lei deixa pressuposto que se a mulher cometer adultério a mesma pena
será imposta também ao adúltero, mas não especifica-o, deixa subentendido que é do parceiro de
quem se fala. Assim, o elo de subordinação, nesse caso “a mesma pena” não se refere mais à mulher
casada, mas à adúltera apenada.
O Código de 1830 foi substituído setenta anos depois, em 1940, e trouxe significativa
mudança na classificação do crime de adultério. Desde o título, passou a ser classificado como
crime “contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”. O
novo código textualmente no Capítulo IV traz:
3
Disponível em http://jus.com.br/artigos/18766/a-evolucao-legislativa-do-adulterio-desde-machado-de-assis-aos-
tempos-atuais#ixzz3FMv0OjVZ> acesso em 15.out.2014.
1º O marido que tiver concubina teuda e manteuda;
2º A concubina;
3º O co-réo adultero.
§ 2º A accusação deste crime é licita sómente aos conjuges, que ficarão privados do
exercicio desse direito, si por qualquer modo houverem consentido no adulterio.
Art. 280. Contra o co-réo adultero não serão admissiveis outras provas sinão o
flagrante delicto, e a resultante de documentos escriptos por elle.
Art. 281. Acção de adulterio prescreve no fim de tres mezes, contados da data do
crime.
Paragrapho unico . O perdão de qualquer dos conjuges, ou sua reconciliação,
extingue todos os effeitos da accusação e condemnação.
Observe-se que há mudanças conceituais que não se pode deixar de destacar, como o crime
antes ser contra o Estado Civil e no novo código o crime passa a caráter particular. Dito de outra
forma, a queixa não é mais responsabilidade do Estado, cabe apenas ao cônjuge, como parte
ofendida do fato, a prerrogativa do perdão, não podendo intervir o Estado nesta decisão, para cessar
os efeitos do referido crime. Nesse sentido, reprimir o adultério não seria mais interesse do Estado,
ou da ordem pública, mas passa a ser restrito ao âmbito privado. Ao Estado cabe regular as relações
no sentido de que se um dos cônjuges se sentir ofendido decorrente de alguma ação do outro,
poderá recorrer ao Estado para mediar a causa.
Fazer constar no Código Penal o disposto sobre o crime de adultério passou então a ser
inócuo, pois que o marido que recorresse ao poder do Estado para punir a infidelidade da mulher
correria o risco de ser menosprezado e ridicularizado pela sociedade. O silêncio do Estado, que
decorre da descriminalização do adultério, pode ser visto como um indicativo de anuência com a
dissolução do costume ou regra moral ou pelo menos a aceitação tácita que não implica
necessariamente em consentir com a questão.
No Código Penal de 1940, a mudança mais sensível referente ao tema foi a diminuição da
pena, passando a ser de quinze dias a seis meses, e o prazo de decadência do direito a prestar queixa
passa a ser de um mês. Na mesma linha, o Código de 1940 inclui novas situações puníveis pelo
Estado como a bigamia.
Quanto ao homem, o Código de 1940 passa a caracterizar mais claramente o adultério
masculino, sem a necessidade da presença de relação de concubinato. Nesse ponto pode-se perceber
uma tendência à igualitarização de direitos entre os gêneros.
O atual Código Penal (promulgado em 2005) descriminaliza o adultério, passando a ser
classificado como ilícito civil. Comparando com a sociedade do século 19, onde a conduta da
mulher era mais vigiada pelo temor e pela repercussão das atitudes de uma esposa perante a corte e
a sociedade, o que temos hoje, para Kosovski (1997) é um posicionamento mais agressivo
socialmente, com movimentos feministas e maior liberdade sexual.
Atualmente, o Estado pune essencialmente crimes que afetam a honra privada do cidadão,
igualmente homem ou mulher. Assim, o ilícito do adultério enseja processos de dano moral e como
forma de punição estes processos resultam em imposição de pena pecuniária, não ocorrendo mais
pena de reclusão.
Ao deixar a iniciativa da reclamação para um dos cônjuges, o Estado vai aos poucos
silenciando quanto ao delito. Isso permite transparecer a ideologia machista, pois o homem não tem
mais como invocar o poder do Estado para vingar-lhe a honra manchada, deve ele próprio fazê-lo
através das regras que o Estado, e para isso precisará expor sua motivação, onde acredita-se que a
ideologia machista ganhará materialidade discursiva.
O aparelho jurídico do Estado é constituído em sua maioria por homens e em diversos
julgamentos de ações que envolvem o adultério direta ou indiretamente a ideologia machista será
tomada por base na decisão.
A posição do Estado hoje pode ser percebida no introito de uma apelação cível de
indenização por dano moral motivada por traição matrimonial. O magistrado inicia a sentença
estabelecendo dois posicionamentos:
1. A dominação masculina
A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a
dominação sobre a qual se alicerça, e, ainda segundo Bourdieu (2002), o mundo social constrói o
corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes;
a diferença fisiológica entre os sexos pode assim ser vista como justificativa natural da diferença
socialmente construída entre os gêneros e também da divisão do trabalho. Sobre a diferença
fisiológica, Bourdieu relaciona-a com a virilidade:
A virilidade, em seu aspecto ético mesmo, isto é, enquanto qüididade do vir, virtus,
questão de honra (nif), princípio da conservação e do aumento da honra, mantém-se
indissociável, pelo menos tacitamente, da virilidade física, através, sobretudo, das
provas de potência sexual – defloração da noiva, progenitura masculina abundante
5
O Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) é uma pesquisa domiciliar e presencial que visa captar a
percepção das famílias acerca das políticas públicas implementadas pelo Estado, independentemente dos pesquisados
serem usuários ou não dos seus programas e ações. A pesquisa foi realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada – IPEA. Disponível em
http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres_antigo.pdf> Acesso em
02.out.2014.
etc. – que são esperadas de um homem que seja realmente um homem
(BOURDIEU, 2002, p. 29).
6
Jewish Encyclopedia - The unedited full-text of the 1906. Disponível em
<http://www.jewishencyclopedia.com/articles/865-adultery> acesso em 17.nov.2014.
destaca Ulmann. O adultério, antes de ter este designatum, o era no pensamento, como ato de
vontade.
No senso comum, o adultério tem significados diferentes para homens e mulheres e de um
ponto de vista judaico-cristão, se aplica tanto a casados quanto a solteiros. O Direito brasileiro, no
C.P. de 1940, não aplicava o adultério ao solteiro. Na prática do adultério, o homem ou mulher
solteiros que mantivessem relações com um parceiro casado, somente ao parceiro casado seria
imputado o delito. Na concepção judaico-cristã, segundo o livro bíblico de Mateus (5:27) Cristo diz:
“Ouvistes que foi dito: não adulterarás. Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher
com intenção impura, no coração já adulterou com ela”. Logo, ao dizer “qualquer” pode-se inferir
que se aplica também aos solteiros.
O senso comum diz ainda que a traição feminina tem caráter de vingança a uma ação
anterior do cônjuge. Esse conceito é confirmado por Almeida (2007) que ainda segmenta o ato em
infidelidade sexual ou emocional. Este autor diz que a manifestação emocional apresentada pela
mulher ao ser traída relaciona-se com o medo de ser abandonada, trocada por outra mulher,
expressa seu ciúme de forma mais clara que o homem; quando preterida, se sente isolada, insegura e
com sentimentos de baixa autoestima. Por outro lado, o homem, ao descobrir uma traição, sente-se
humilhado e fracassado em manter a posse, manifesta seu ciúme pelo medo de perder o poder e o
domínio sobre a mulher.
Ainda para Almeida (2007) as mulheres cometem mais infidelidades emocionais em relação
ao universo masculino, elas estariam mais propensas a se engajarem em comportamentos
relacionados à infidelidade, mas os homens têm propensão maior quando a infidelidade é sexual e
são também mais efetivos. Em outras palavras, a mulher se envolve emocionalmente, e só então se
envolveria sexualmente com outro parceiro, oposto ao homem, que se envolve sexualmente
primeiro, e então se envolveria emocionalmente com a outra parceira. Em função do fator
emocional, a traição feminina demora mais a ocorrer, razão pela qual acredita-se que ocorra em
menor número quando comparada ao adultério masculina.
Em obra específica para o curso de Direito, jurista Washington Barros Monteiro explica
porque o adultério feminino é visto como sendo mais condenável do que o masculino:
Considerações finais
As leis existem para ordenar a vida em sociedade e surgem quando os conflitos são muito
frequentes, assim, vimos brevemente que o adultério é fato presente na sociedade. O ordenamento
jurídico vai se adaptando à medida que novos comportamentos vão se naturalizando, ora incluindo,
ora excluindo determinado comportamento de acordo com os anseios da sociedade.
A evolução do discurso jurídico revela que o adultério era inaceitável para as mulheres,
passível de ser punido com a morte; para o homem era um deslize aceitável, cuja punição dependia
da classe social do adúltero na ordenação filipina, e nos códigos penais posteriores se manteve
rigoroso para as esposas mais do que aos maridos adúlteros.
Vimos que aos poucos o Estado extinguiu sua pretensão punitiva deixando ao cônjuge o
ônus da reclamação. Estas análises são iniciais em nosso estudo, acreditamos que no desdobrar das
análises novas possibilidades de interpretação surgirão para definir ou redefinir o sistema de
representações simbólicas que permeiam o adultério, que mistificam a relação de dominação do
homem sobre a mulher.
Diante de nossas exposições podemos concluir que a posição do homem permanece quase
inalterada historicamente, modernamente começa a se alterar com o distanciamento gradativo dos
valores ligados a virilidade e da posição de dominante. A mulher está historicamente numa posição
extremamente vigiada e acreditamos que esta vigilância se arrefece ao longo do tempo.
A ideologia positivista chamada de doutrina domina o meio jurídico, contudo não é única,
Brandão citando Pêcheux, nos fala das ideologias pessoais, e são essas ideologias que acredita-se
interferirem grandemente no fazer jurídico. Buscamos ressaltar especificamente a ideologia
machista porque acredita-se que seja esta ideologia pessoal que interfira em decisões que se
relacionam com a relação conjugal ou com a sexualidade de alguma forma.
As mudanças sociais atualmente trouxeram o que podemos chamar de crise estrutural de
paradigmas axiológicos com importantes reflexos no fazer jurídico, e mostramos que o adultério
como fato social pode ser um parâmetro nas considerações sobre essas mudanças.
Os modelos epistemológicos da área jurídica são conduzidos pelo positivismo normativo,
baseados na doutrina do direito e toda sua dogmática. Isso quer dizer que a interpretação do jurista é
momento em que se dá a aplicação da ciência jurídica e, nas palavras de Reale, “o jurista se eleva
ao plano teórico dos princípios e conceitos gerais indispensáveis à interpretação, construção e
sistematização dos preceitos e institutos de que se compõe” (2003, p. 322). É, assim, neste momento
que acreditamos estar o jurista mais suscetível à imposições de uma ideologia mais profunda, que
interfere no fazer jurídico, a ideologia baseada no capitalismo, no racismo e no machismo como
dissemos anteriormente.
Esperamos que as questões que aqui propomos não se dissolvam antes de interpelarem a
realidade social para podermos avaliar as transformações dos dogmas vigentes.
Referências