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Achille Mbembe

PODER BRUTAL,
RESISTÊNCIA
VISCERAL
O livro como imagem do mundo é de toda maneira
uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer
Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir.
Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo
sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso
fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma
dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira
mais simples, com força de sobriedade, no nível
das dimensões de que se dispõe, sempre n-1
(é somente assim que o uno faz parte do múltiplo,
estando sempre subtraído dele). Subtrair o único
da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.

Gilles Deleuze e Félix Guattari


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Achille Mbembe

QUANDO O PODER
BRUTALIZA O CORPO,
A RESISTÊNCIA
ASSUME UMA
FORMA VISCERAL *

* Entrevista pensada e realizada por Amarela Varela,


Pablo Lapuente Tiana e Amador Fernández-Savater,
com ajuda da Ned Ediciones. Pablo Lapuente
transcreveu e traduziu do francês para o espanhol.
Tradução para o português: Damian Kraus. 
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O filósofo camaronês Achille Mbembe, importante voz
pública no ainda extremamente eurocêntrico debate
intelectual, fala, a partir da África, das formas do ra-
cismo contemporâneo e da resistência 

O livro Crítica da razão negra, de Achille Mbembe,


publicado no Brasilpela n-1 edições, é um tratado
da envergadura de Orientalismo, de Edward Said.
Em primeiro lugar, trata-se de uma arqueologia
do texto eurocêntrico que construiu uma ideia da
África como um continente canibal e bárbaro − o
território que só podia fornecer (e ainda fornece)
homens-coisa-mercadoria para o capitalismo, a sua
face sombria.
Em segundo lugar, o livro é um exercício (ético, es-
tético, poético) que propõe, na mesma tradição de
Said e dos estudos culturais, pensar-se, conhecer-se
e des-conhecer-se “à margem” do olhar imperial eu-
ropeu. Ou seja, re-construir uma memória “de baixo”
saneadora e desvitimizadora – o que é a mesma coisa
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−, capaz de projetar um futuro comum. Mbembe res-
gata a literatura da outra razão negra: poetas e nove-
listas, Fanon e Césaire, num trabalho sério e delicio-
so, potente e extremo, doloroso e esperançador.
Finalmente, o livro analisa a vigência das práticas
coloniais/imperiais que “selvageiam” hoje o planeta −
o que o autor chama e anima a pensar como um “de-
vir-negro do mundo”. Esse momento histórico no qual,
como diz nesta mesma entrevista, “a distinção entre o
humano, a coisa e a mercadoria, tende a desaparecer e
apagar-se, sem que ninguém – nem negros ou brancos,
mulheres ou homens − possa escapar disso”.
Achille Mbembe nasceu em Camarões, em 1957.
É professor de História e Política da Universidade de
Witwatersrand, em Johannesburgo (África do Sul). O
primeiro livro dele publicado no Brasil foi Necropolí-
tica, no qual analisa as políticas de ajuste e expul-
são que inicialmente foram ensaiadas no continente
africano, nos anos 1990, e que hoje se alastram por
toda parte.
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1. O senhor fala em “mudança epocal”. Como justi-
fica isso? Quais os fatores que mostram isso?
De fato, eu acho que estamos vivendo uma mudança
de época. Por um lado, o mundo ficou menor, con-
traiu-se espacialmente − de algum modo, tocamos
seus limites físicos ao ponto de, provavelmente, can-
to nenhum da terra ser desconhecido ou ficar desa-
bitado ou sem explorar. Ao mesmo tempo, a história
humana atravessa uma fase caracterizada pelo que
chamo de repovoamento do planeta, que demogra-
ficamente se traduz num envelhecimento das socie-
dades do Norte e um rejuvenescimento do continente
africano e do continente asiático, em particular.
Em relação à estrutura das populações, estamos
assistindo ao crescimento de uma grande segrega-
ção social, uma espécie de apartheid gigante, junto
a enormes ondas migratórias em escala planetária,
que lembram os primeiros tempos da colonização. E,
a respeito das transformações tecnológicas, uma das
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suas principais consequências é a transformação das
antigas noções de tempo e velocidade.
Politicamente, estamos entrando num mundo
novo, caracterizado, infelizmente, pela proliferação
das fronteiras e zonas militarmente exclusivas. Este
mundo se estabelece graças ao “fantasma do inimi-
go”, de que falo em meu último livro, e pela emergên-
cia de um Estado global securitário que busca norma-
lizar um estado de exceção em escala mundial, onde
ficam suspensas as noções de direito e liberdade, que
eram inseparáveis do projeto da modernidade.
Portanto, são muitos os fatores que indicam que
estamos entrando num mundo diferente, altamen-
te digitalizado e financeirizado, onde a violência
econômica já não se expressa pela exploração do
trabalhador, mas tornando supérflua uma parcela
importante da população mundial. Um mundo que
questiona radicalmente o projeto democrático herda-
do do Iluminismo.
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NECROPOLÍTICA − POLÍTICAS DA MORTE

2. Como descreveria a violência do capital nesta


mudança de época? Em seu último livro, o senhor
define o neoliberalismo como um “devir-negro do
mundo”. Poderia falar a respeito?
Digamos que, em meus livros, tento fazer convergir
duas tradições do pensamento crítico que pareciam
divergir fazia tempo. Por um lado, a tradição do pen-
samento crítico ligada à formação e à luta de clas-
ses; por outro lado, a tradição do pensamento crítico
que tenta compreender a formação das raças. Essas
duas tradições permaneceram frequentemente con-
trapostas, o que, inclusive em termos históricos, é
insustentável.
Quando estudamos com atenção a história do
capitalismo, logo percebemos que, para funcionar,
desde seu início, ele precisou produzir o que eu cha-
mo de “subsídios raciais”. O capitalismo tem como
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função genética a produção de raças, as quais são,
ao mesmo tempo, classes. A raça não é apenas um
suplemento do capitalismo, mas algo inscrito em seu
desenvolvimento genético. No período primitivo do
capitalismo, que vai do século XV até a Revolução In-
dustrial, a escravização de negros constituiu o maior
exemplo da imbricação entre classe e raça. Meus tra-
balhos focam particularmente nesse momento histó-
rico e em suas figuras.
O argumento que desenvolvo em meu novo livro é
que, nas condições contemporâneas, a forma com
que os negros foram tratados naquele primeiro pe-
ríodo estendeu-se para além dos próprios negros. O
“devir-negro do mundo” é esse momento em que a
distinção entre o humano, a coisa e a mercadoria ten-
de a se esvair e se apagar, sem que ninguém – sejam
negros ou brancos, mulheres ou homens − possa fugir
disso.
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3. Isso nos leva a seu conceito de “necropolítica”
(ou política da morte). Poderia explicá-lo?
São duas questões. A “necropolítica” está ligada
ao conceito de “necroeconomia”. Falamos em ne-
croeconomia no sentido em que uma das funções
do capitalismo atual é produzir em grande escala
uma população supérflua. Uma população que o ca-
pitalismo não mais precisa explorar, mas que tem de
gerir de algum modo. Uma maneira de gerir esses ex-
cedentes de população é sua exposição a todo tipo de
perigos e riscos, frequentemente mortais. Outra técni-
ca consistiria em isolá-los e enclausurá-los em zonas
de controle. É a prática do “zoneamento”.
É significativo constatar que a população das pri-
sões não deixou de crescer ao longo dos últimos 25
anos nos Estados Unidos, na China, na França, etc.
Em alguns países do Norte, a combinação de técni-
cas de confinamento e a busca pelo lucro atingiu um
desenvolvimento enorme. Existe toda uma economia
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da clausura, uma economia em escala mundial que
se nutre da securitização, essa ordem que exige que
uma parte do mundo fique confinada. A necropolítica
seria então o arremedo político dessa forma de vio-
lência do capitalismo contemporâneo.

4. A respeito disso, queríamos conhecer a sua opi-


nião sobre a atual “crise dos refugiados”. Qual o
papel dos governos? E o que acha da resposta dos
cidadãos da Europa?
É justamente a partir da necropolítica e da necroeco-
nomia que podemos compreender a “crise dos refu-
giados”. Essa crise é resultado direto de duas formas
de catástrofes: as guerras e as devastações ecológi-
cas, que se afirmam reciprocamente. As guerras são
fatores de crises ecológicas, e uma das consequên-
cias das crises ecológicas é fomentar guerras.
A crise dos refugiados também tem a ver com o
que antes chamei de “repovoamento do mundo”: à
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medida que as sociedades do Norte vão envelhecen-
do, aumenta a necessidade de elas se repovoarem, e
a migração ilegal faz parte essencial desse processo,
que certamente se acentuará no decurso dos próxi-
mos anos. Em relação a isso, a reação da Europa é es-
quizofrênica: levanta muros em torno do continente,
mas precisa da imigração para não envelhecer.

5. Outro dos conceitos importantes que apa-


rece em seus trabalhos, associado ao de “ne-
cropolítica”, é o do “governo privado indireto”.
O que pode dizer a respeito disso?
Esse conceito foi criado nos anos 1990, numa épo-
ca em que o continente africano estava inteiramente
sob poder do FMI e do Banco Mundial. Era um período
de grandes ajustes estruturais que golpearam dura-
mente a economia africana, de maneira semelhante
ao caso grego atual: endividamento fora de qualquer
norma, suspensão da soberania nacional, delegação
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de todo o poder soberano a instâncias não democráti-
cas, privatização de tudo, especialmente no setor pú-
blico, etc. A ideia de governo privado indireto aponta
para essa forma de governo da dívida que, à margem
de todo e qualquer marco institucional, desenvolve
uma tecnologia de expropriação em países econo-
micamente dependentes, privatizando o comum e
fazendo os indivíduos carregarem a responsabilidade
de todo mal (“a culpa é de vocês”).

6. Esse conceito, elaborado no contexto do conti-


nente africano nos anos 1990, pode explicar as ten-
dências globais hoje, aplicando-se a outras regiões
do planeta? No México, por exemplo, muita gente
acompanha com atenção seus trabalhos devido às
poderosas ressonâncias das suas análises com o
que está acontecendo lá.
Acredito que seja possível continuar a pensar nesse
conceito em escala global hoje. O governo privado
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indireto em escala mundial é um movimento histó-
rico das elites que, em última instância, tenciona
abolir o político. Destruir todo e qualquer espaço
e todo e qualquer recurso − simbólico e material
− onde seja possível pensar e imaginar o que fazer
com o vínculo que nos une aos outros e às gerações
seguintes. Para tanto, atua-se por meio da lógica
do isolamento − separação entre países, classes,
indivíduos entre si − e de concentrações de capital
ali onde se possa fugir de qualquer controle demo-
crático – expatriação de riquezas e capitais para
paraísos fiscais desregulados, etc. Esse movimento
não pode prescindir do poder militar para garantir o
seu sucesso: a proteção da propriedade privada e
a militarização são atualmente correlativos – é pre-
ciso compreendê-los como dois âmbitos do mesmo
fenômeno.
A transformação do capitalismo, desde os anos
1970, tem favorecido cada vez mais o surgimento
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de um Estado privado, onde o poder público no sen-
tido clássico, que não pertence a ninguém, já que é
de todos, tem sido progressivamente sequestrado
para benefício de poderes privados. Hoje é possível
comprar um Estado sem grandes escândalos, e os
Estados Unidos são um bom exemplo: leis são com-
pradas injetando capitais no mecanismo legislati-
vo, posições no Congresso são vendidas, etc. Essa
legitimação da corrupção no interior dos Estados
ocidentais esvazia o sentido do Estado de Direito e
legitima o crime no próprio interior das instituições.
Já não falamos da corrupção como doença do Esta-
do: a corrupção é o próprio Estado e, nesse sentido,
não há mais fora-da-lei. A deterioração do Estado
de Direito produz políticas exclusivamente predado-
ras, que invalidam toda distinção entre o crime e as
instituições.
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RESISTÊNCIA VISCERAL

7. Levando em consideração a ideia foucaultiana


do poder como “relação”, em seu ensaio sobre a
necropolítica, sentimos falta de mais referências
às resistências, às práticas de vida das pessoas de
baixo. Podemos descrever o poder sem descrever as
resistências?
Claro que não. Não dá para fazer esse tipo de descri-
ção sem pensar nas formas de resistência, que são
correlativas a qualquer poder. Meus primeiros traba-
lhos, que infelizmente não foram traduzidos ainda,
estavam centrados precisamente nas resistências ao
poder também em seus limites.
E o que dizer das formas contemporâneas de resis-
tência à necropolítica e a necroeconomia? Em primei-
ro lugar, que são muito diversificadas, pois dependem
das situações locais e dos contextos. Vou tomar o caso
sul-africano como exemplo. Eu estou extremamente
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interessado no modo como naquele país as resistên-
cias se organizam a partir da ocupação dos espaços,
numa busca da visibilidade justo onde o poder quer nos
relegar e nos afastar. As formas de resistência que se
estão produzindo lá têm a ver com a luta dos corpos por
se tornarem presentes (corporal, física, visivelmente)
diante da produção de ausência e silêncio pelo poder.
São formas exemplares de resistência, pois o poder hoje
funciona produzindo ausência: invisibilidade, silêncio,
esquecimento.
Nos últimos anos tem surgido na África do Sul um
grande movimento chamado descolonização, uma
descolonização simbólica que opera convocando a
destruir as estátuas do colonialismo, por exemplo,
mas também lutando para transformar o conteúdo do
saber e das formas de produção do saber, reativando
a memória e resistindo contra o esquecimento, etc.
As resistências na África do Sul passam pela reabi-
litação da voz, pela expressão artística e simbólica,
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desafiando a tentativa do poder de relegar ao silêncio
as vozes que não quer ouvir. Naquela região do mun-
do está se vivendo um ciclo de lutas do que eu chamo
de políticas da visceralidade.

8. O que são essas “lutas da visceralidade”?


Há um surgimento de pequenas insurreições. Essas
microinsurreições ganham forma visceral como res-
posta à brutalização do sistema nervoso típica do capi-
talismo contemporâneo. Uma das formas de violência
do capitalismo contemporâneo consiste em brutalizar
o sistema nervoso. Como resposta, emergem novas
formas de resistência ligadas à reabilitação dos afe-
tos, emoções, paixões, que convergem nisso tudo que
eu chamo de “políticas da visceralidade”.
É interessante ver como em muitos luga-
res, tanto nas lutas da população negra na Áfri-
ca do Sul quanto nos Estados Unidos, os novos
imaginários de luta procuram principalmente a
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reabilitação do corpo. Nos Estados Unidos, o corpo
negro se situa no centro dos ataques do poder: do
simbólico – a sua desonra, a sua animalidade − até
a normalização do assassinato. O corpo negro é um
corpo de besta, não um corpo humano. A polícia mata
negros quase todas as semanas, sem que existam
sequer estatísticas que deem conta disso. A genera-
lização do assassinato está inscrita nas práticas po-
liciais. A administração da pena de morte se desvin-
culou da esfera do Direito para tornar-se uma prática
puramente policial. Esses corpos negros são corpos
sem jurisprudência, algo mais próximo de objetos que
o poder precisa gerir.

9. O senhor analisa como, para muitos povos, o


trabalho da memória foi um exercício de cura e de
autocuidado para se nomearem autonomamente.
Mas até que ponto essas memórias são produzidas
ou escritas a partir dos “vencidos”?
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A memória popular nunca conta histórias limpas, não
há memórias puras, límpidas. Não há memória pró-
pria. A memória é sempre suja, sempre impura − é
sempre uma colagem. Na memória dos povos colo-
nizados achamos inúmeros fragmentos de algo que,
num determinado tempo, se quebrou e não mais pode
ser reconstituído em sua unidade originária. Assim, a
chave de toda memória a serviço da emancipação é
saber como viver o perdido, com que grau de perda
podemos viver.
Há perdas radicais, nas quais nada pode ser recu-
perado, porém a vida continua e precisamos achar
mecanismos para, de algum modo, enfrentar tais
perdas. Podemos recuperar alguns objetos de uma
casa incendiada, inclusive reconstruir a casa, mas
há coisas que jamais poderemos substituir, pois são
únicas, já que com elas tínhamos uma relação única.
É preciso viver com essas perdas, com essas dívidas
que não mais podemos pagar. A memória coletiva dos
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povos colonizados procura maneiras de mostrar e vi-
ver aquilo que não sobreviveu ao incêndio.

10. Como reconstruir a história dilacerante de sa-


ques e violência numa chave potente e evitar a re-
presentação de si como vítima perpétua?
Eis uma questão central. A consciência vitimista
é uma consciência perigosa, pois se trata de uma
consciência emudecida pelo ressentimento e de-
sejo de vingança, que sempre está procurando infli-
gir ao outro – um outro geralmente mais fraco, não
necessariamente o real culpado − a quantidade
de violência que ela sofreu. Acredito que há perigo
nessa forma vitimista da consciência. A questão é
como as pessoas que sofreram um trauma histórico
e real, como uma guerra ou um genocídio, podem
se lembrar do acontecido e usar a reserva simbólica
da catástrofe histórica para projetar um futuro que
rompa com a repetição das violências sofridas. É um
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caminho, diríamos, quase que de ascese. Uma busca
pela “purificação”, pela identificação dos elementos
da tragédia, com o fim de não repeti-la.

11. Tem gente que fala de um “uso estratégico do


essencialismo”, de um uso táctico da identidade
como alavanca para a construção de um sujeito po-
lítico. Em que lugar o senhor se situa nesses deba-
tes sobre a identidade?
Digamos que, ao revisitar a história das lutas contra a
discriminação racial, costuma aparecer um momento
em que a resistência se constrói por meio de uma cer-
ta essencialização da raça. Por exemplo, percebemos
isso nos Estados Unidos, com Marcus Garvey, ou no
“movimento da negritude”, na França, onde a ques-
tão era justamente revalorizar a condição negra. São
movimentos que procuram se emancipar da condição
de objeto, retraduzindo positivamente esses atribu-
tos que nos condenavam a ser objetos − a negritude
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− para um signo humano. Essa é a parte estratégica
da função essencialista.
O problema surge quando o essencialismo nos
impede de continuar pelo caminho que pessoas
como Fanon consideravam o horizonte das nossas
lutas. Qual é esse horizonte? O que abre o caminho
para uma nova condição, onde já não importe a
raça, onde já não conte a diferença, porque todos,
simplesmente, nos tornamos humanos: a passa-
gem da indiferença à diferença. Nesse sentido, eu
me acho “fanonista”, embora compreenda que, em
certas circunstâncias, há movimentos que usam es-
trategicamente o essencialismo como modo de for-
talecer uma identidade coletiva.

12. Por fim, o capitalismo se renovou, atualizan-


do e sofisticando as violências necropolíticas do
colonialismo. As resistências também se renova-
ram? Renovamos nossa imaginação política para
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responder com formas de ação concreta à necropo-
lítica do capitalismo contemporâneo?
Refletindo sobre o exemplo africano, o século XX po-
deria ser dividido em dois ciclos de lutas. A partir do
começo do século XX e até os anos 1930, vivemos
uma forma de luta à qual chamarei de acéfala, li-
gada ao local, às condições de reprodução da vida
cotidiana. Após a Segunda Guerra Mundial, entra-
mos num ciclo de luta vertical, representada pelos
sindicatos e os partidos políticos. Agora parece que
voltamos às formas acéfalas de luta − lutas locais,
lutas mais ou menos horizontais, que insistem na
recuperação da capacidade de interrupção da nor-
malidade, da narrativa que ordena a normalidade,
que nos faz pensar que o que acontece é normal,
quando não é.
No caso do sul da África, a pergunta hoje é
como transformar essa ruptura da normalida-
de, essa des-normalização, numa nova forma de
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institucionalização. Tenho a impressão de que as
novas lutas acéfalas não terminam de gerar respos-
tas plausíveis e eficazes para a seguinte pergun-
ta: como dar forma a uma nova institucionalidade
aberta e democrática, que tenha aprendido com os
problemas que acarreta o verticalismo? Não acho
que possa existir democracia sem institucionaliza-
ção nem representação. Sabemos que há uma crise
da representação por toda parte, mas não acho que
a resposta seja dissolvê-la enquanto tal, dissolver
toda e qualquer ideia de representação.
Em suma, nossas velhas receitas (os partidos
políticos, por exemplo) estão tendo dificuldades
estruturais para preservar e defender o comum
dentro das atuais instituições, e assim continuará
sendo enquanto não houver comunidades fortes
que possam democratizar a política por baixo. Os
movimentos dos últimos anos vão nesse sentido,
embora ainda estejam ligados fragilmente entre si.
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Acho que a partir dessas resistências acéfalas di-
ferentes devem surgir novas propostas de institui-
ções, talvez não para derrubar o Estado, mas para
forçá-lo a uma nova mutação − um órgão de defesa
do bem comum.
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Achille Mbembe é considerado um dos mais agu-
dos pensadores da negritude hoje. Na esteira de
Frantz Fanon, vira do avesso os consensos sobre a
descolonização e a identidade negra. Nascido nos
Camarões, é professor de História e Ciências Políticas
na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo,
bem como na Duke University, nos Estados Unidos. É
autor, entre outros, de Crítica da razão negra.

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julho_2019

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