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Eduardo Seincman 

ESTÉTICA DA
COMUNICAÇÃO
MUSICAL

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COMUNICAÇÃO
MUSICAL

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 Estética da Comunicação Musical

© Via Lettera Editora e Livraria Ltda.


1a edição:.. de 2008

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Sumário

PRELÚDIO
Estética da Comunicação Visual 7

JUÍZO DE VALOR
Entre a Escuta e a R eflexão 17

FILOSOFIA DA COMPOSIÇÃO
Entre a Memória e o Esquecimento 31

INTERLÚDIO
Entre a Música e o Sonho 87

Chekhov e Brahms
Entre o Drama e a Música 99

ILUMINISMO
Entre a Síntese e a Duração 113

Schoenberg
Entre A polo e Dionísio 143

FINALE 159

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Prelúdio
Estética da Comunicação Musical

Este não é um livro de estética musical nem tampouco um


tratado teórico sobre a questão da comunicação. Entendo comu-
nicação musical como duas palavras inseparáveis por natureza,
já que a música é escrita e interpretada em função de sua comu-
nicabilidade, de sua interação com todos os agentes que a reali-
zam enquanto fenômeno material – autores, obras, intérpretes,
ouvintes – e imaterial – história, cultura, repertório, visão de
mundo etc. Se a comunicação é, como afirmava John Dewey, o fe-
nômeno primordial da experiência humana, então a tomaremos
como um fato consumado. Não perguntaremos “o que é a comu-
nicação musical”, mas quais são as suas implicações.
Embora não descartemos certas análises mais técnicas, tam-
bém não iremos abordar aqui a linguagem ou a sintaxe musicais,
mas as formas de comunicação que a música assume em variados
contextos históricos e culturais, suas formas de discurso.
A outra face da comunicação é a cultura. Como observou
Claude Lévi-Strauss, comunicação-cultura formam um binômio
inseparável: não há cultura sem comunicação; não há comunica-
ção sem cultura, e ambas provêem de uma matriz de possibilida-
des que impõe limites sem os quais não haveria troca ou criação.
Para Lévi-Strauss, a primeira matriz, o primeiro não, o não fun-
dante é o tabu do incesto, que obrigou as várias famílias nucleares,
clãs ou tribos a permutar mulheres, estabelecendo-se, com isso, a
comunicação e a cultura. A proibição implica o que é permitido

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e, neste pulsar do “não, logo sim” e do “sim, logo não”, abre-se um


espaço, um hiato para a comunicação e para a cultura.
Se a música pressupõe a comunicação, por que então falar
em comunicação musical? Na realidade, aqui entram em jogo fa-
tores históricos, pois, a partir do século XIX, mas principalmente
no século XX, houve um processo de distanciamento entre arte e
público. As tendências da “arte pela arte” e da “vanguarda” apro-
fundaram esse abismo, mas também propiciaram outras formas
de comunicação. A comunicação musical é, sim, passível de refle-
xão teórica, desde que se descartem as posições poéticas e se refli-
ta sobre as questões estéticas. Se é um binômio, cultura-comuni-
cação deve ser pensado, então, como um dispositivo aglutinador,
doador de sentidos, organizador de mensagens, mediador de tro-
cas simbólicas. Para efetuar esse movimento, será necessário, no
entanto, fazer um esforço para reformular conceitos gastos – e
cultura e comunicação são dois deles –, para reencontrar o fres-
cor, a exuberância e o estranhamento que o fenômeno musical é
capaz de causar. Se isto acontecer, então as próprias questões e
discussões de ordem técnica irão adquirir um novo sabor.
Conhecimento não é erudição ou assimilação passiva de da-
dos, mas criação; é tanto a assimilação de antigas conquistas (tra-
dição) quanto a promoção de novas relações (inovação). Uma e
outra andam juntas e as novas conquistas em um determinado
campo do conhecimento dependem da tomada de consciência
das conquistas em outros campos. Assim, a comunicação musical
não pode ser alijada das técnicas e formas de comunicação galga-
das por outras áreas do conhecimento.
Esteticamente, quando falamos de sentidos, estamos falando
de todos os sentidos conjuntamente: não há impressões sonoras
que não sejam acompanhadas de impressões imagéticas, táteis, vi-
suais etc. Toda e qualquer experiência estética traz à tona um ar-
senal cultural, simbólico, histórico sem o qual ela não seria possí-
vel. Ela é, portanto, um aglutinador de sentidos que se encontram
dispersos ou em repouso à espera de um gatilho. Como afirmou
Dewey, qualquer experiência digna deste nome é sempre estética,
pois se trata de um acontecimento com sentido – com início, meio
e fim – em meio à infinitude de elementos e fatos dispersos no

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mundo. Toda experiência é, pois, uma narrativa, um parêntese


no interior do qual objetivamos uma ação com sentido, que, por
isso mesmo, confere significado à nossa existência.
Quando falamos em “estética da comunicação musical”, referi-
mo-nos à análise de relações e não a pólos relacionados; não apenas a
pares de opostos como sujeito-objeto, obra-ouvinte, autor-obra, intér-
prete-público, mas à análise da própria comunicação, que pressupõe
estes pares. Para efetuá-la, é necessário situar-se não em um pólo
ou outro, mas em um terceiro lugar que englobe ambos. Esse lugar
inclui o observador como objeto de observação. Em termos de co-
municação musical, é preciso escutar a própria escuta, pois, se uma
determinada obra musical ou um trecho seu nos impressionou é por-
que foi significativo em nossa experiência estética. Não há uma aná-
lise “objetiva” da obra separada de sua “recepção”. O que apontamos
como significativo é fruto de uma interação, de uma comunicação
participativa, de uma plenitude comunicacional.
Não existe neutralidade. Qualquer que seja nosso papel – ob-
servador, analista, crítico, ouvinte, intérprete ou criador –, somos
parte integrante do fenômeno da comunicação musical. Debru-
çarmo-nos, pois, a posteriori, sobre os acontecimentos é uma ten-
tativa de trazer à luz um processo comunicacional que já se deu,
de fato, na experiência estética, é efetuar, no campo da estética,
o que Karl Popper, no campo da filosofia, chamou de reflexão
elevada à segunda potência: refletir a reflexão, interpretar a in-
terpretação, através do que poderemos atuar analiticamente com
maior consciência ampliando nossa capacidade de criar, de efetu-
ar sinapses e de aprofundar nossos horizontes.
Não se deve, evidentemente, fazer tabula rasa das atitudes
poéticas, pois são elas que engendram as escolas, os movimentos
artísticos, e põem em marcha o motor da história da arte. Mas, do
ponto de vista estético, podem-se avaliar as conseqüências desta ou
daquela atitude poética em relação à comunicabilidade. De fato,
esta última vinha tendo seus alicerces abalados desde a adoção, já
no Romantismo, da “arte pela arte”, a qual, ao mesmo tempo em
que propunha formas de comunicação e sensibilidade afinadas
com as conquistas e modos de ser da época, tocava os delicados
pontos da incomunicabilidade, assemanticidade e incompreensi-

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bilidade. Se, por um lado, este radicalismo atingiu os formalistas


da “arte pela arte”, por outro, atingiu igualmente os conteudistas1
da “arte engajada”. Quando a “arte pela arte” radicaliza o pólo
formal e trata o objeto como autônomo, ela “achata” o sujeito e
coloca em segundo plano seus mecanismos de recepção. Por sua
vez, quando a “arte engajada” requer a univocidade de sentido e
prioriza a receptividade, ela “achata” a obra e enrijece seus dispo-
sitivos de expressão e inventividade. Desta maneira, tanto os for-
malistas quanto os conteudistas anulam de certa forma o “tercei-
ro lugar”, aquele em que a ambigüidade e o paroxismo, tão caros
à arte, podem se apresentar e se constituir como parte integrante
do processo comunicacional.
Não se pode menosprezar os fatos históricos, como por exem-
plo a passagem, no Romantismo, das teorias “miméticas” para as
“expressivas”, da ênfase no dramático para o lírico, na mudança
da visão de um Lessing para um Herder ou Hegel, o acento na
voz da razão para aquela da intuição, a substituição do ut pictura
poesis pelo ut musica poesis, e assim por diante. Mas, de forma algu-
ma, no campo artístico, um determinado período ou poética irá
anular ou superar os períodos anteriores ou as demais poéticas:
as “humanidades” não comportam e não resistem a um prisma
evolucionista ou positivista. Assim, no campo da música, ocorre
que cada obra ou conjunto de obras, de acordo com certo esti-
lo, sistema, estrutura, enfim, conforme sua visão de mundo, vai
propor, ao mesmo tempo, uma realidade sonora e uma maneira
de ela ser apreciada. Em outras palavras, cada poética, dentro
do contexto sócio-cultural que lhe é pertinente, apresenta uma
relação entre os elementos escolhidos e o seu modo de apreen-
são. Não é possível ouvir Bach como ouvimos Beethoven, pois eles
propõem formas distintas de se comunicar. Assim, se as análises
das teorias estéticas são importantes, é preciso ter em mente, no
entanto, que não podem dar conta de todas as questões, por um
motivo muito simples: as obras como mediadoras entre indivíduo
e coletividade, entre época e era, entre poética e estética, terão
seus sentidos ressignificados de acordo com seus momentos his-

1. Utilizo estes conceitos de acordo com a denominação empregada por Luigi Pareison.

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tóricos de atuação. É preciso ter em conta que, quando ouvimos


Beethoven atualmente, o fazemos com ouvidos que já passaram
por um vasto repertório posterior a ele e que com ele já dialogou
visceralmente. Essa dialética entre teoria e práxis não pode ser de
maneira alguma desprezada, pois se corre o risco de fixar regras
ou conceitos onde eles não se fazem mais necessários ou não pos-
suem mais pertinência.
É necessário, entretanto, ter em mente não apenas o plano
vertical da História, mas igualmente o plano horizontal dos diá-
logos e embates que a música estabelece com a atualidade e suas
várias formas de expressão e manifestação. Se é certo, como afir-
mava Croce, que todas as artes tendem à música devido à natureza
não-imitativa e “abstrata” desta, não é menos certo que a música
tende às outras artes devido à sua capacidade imitativa, simbólica
e “figurativa”. Não se pode conceber um Schubert ou um Schu-
mann sem a co-presença dos universos literários e poéticos de um
Schiller ou de um Goethe, universos estes que lhes sugeriram de-
terminadas sonoridades, tonalidades, bem como certos recursos
harmônicos, melódicos, métricos e rítmicos.
A “falta”, a incompletude que faz com que uma forma de ex-
pressão tenha de apelar a outras na busca por novos caminhos,
não se dá somente no âmbito da criação musical: ouvir e interpre-
tar é também preencher as lacunas do texto aparente com inúme-
ras informações latentes, tenham estas sido ou não sugeridas pelos
próprios textos. Não existe arte no singular, pois o diálogo e a ho-
mologia entre as diversas formas de expressão é condição mesma
da experiência estética. Mesmo que aparentemente não tenhamos
consciência deste fato, só há experiência estética porque sentimos
com todos os sentidos e porque nos impressionamos pelo fato de
razão e emoção andarem sempre de mãos dadas.
Poder-se-ia, entretanto, argumentar que as linguagens artís-
ticas diferem entre si a tal ponto, que seria impossível pensar em
homologias. Mas, nesse caso, é preciso reconhecer que qualquer
meio expressivo necessita ao menos de dois dispositivos intrinse-
camente associados: o tático e o estratégico. Haverá sempre uma
técnica a serviço da expressão e não haverá expressão que não se
utilize de determinados procedimentos e padrões técnicos. Mas,

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e isso é fundamental, as técnicas de comunicação empregadas


pelas linguagens estarão sempre implícitas e não dependerão de
um “conhecimento” técnico: se tivermos de pensar nas regras gra-
maticais para falar com alguém, não nos comunicaremos. Assim,
simplesmente “falamos”, mesmo que desconheçamos as regras
que norteiam tal fala. Não é diferente com a música: ouvimos,
tocamos, interpretamos e criamos. O músico tem de conhecer o
aparato técnico para “falar” como se não possuísse tal conheci-
mento. “O poeta é um fingidor”, dizia Fernando Pessoa e, de fato,
a comunicação se dá quando a linguagem está a serviço de um
discurso, quando a técnica, em si, “desaparece”. Como salienta-
ra Bakhtin, a mera análise técnica de uma linguagem não traz
obrigatoriamente proveito às demais. Mas, quando nos situamos
no âmbito do discurso, as homologias tornam-se pertinentes e
permitem que as conquistas de um campo do conhecimento se-
jam reaproveitadas e empregadas por outros. As diversas formas
de discurso são formas de comunicação, dizem respeito às estra-
tégias empregadas para que as interlocuções se realizem desta
e não de outra maneira empregando procedimentos retóricos e
narrativos. Vista dessa perspectiva, a linguagem musical deixa de
ser um campo estritamente técnico, e reduto de “entendidos” ou
“iniciados”, para fazer parte de um universo cujas formas de ex-
pressão, estando em constante diálogo, trocam permanentemen-
te informações.
Sob esse ângulo, o conhecimento não provém do mero acú-
mulo de fatos, mas da qualidade de relações que estabelecemos
entre os fatos. Conhecer é realizar sinapses, vínculos significati-
vos, estabelecer conexões e nexos a fim de dotar o mundo de ex-
periências significativas. Os fatos estão aí, à espera de conexões
que os despertem. Não há fatos puramente “objetivos”, pois seu
ser depende de nossas interpretações. Resgatamos certos fatos
do passado, que são vivenciados no presente, e arquitetamos seu
futuro a fim de que, neste movimento errático e tentativo, dote-
mos o mundo de sentido. Se o conhecimento deixa de ser uma
única via progressiva para se tornar um campo de relações, então
a cronologia e a causalidade, que de forma alguma podem ser
desconsideradas, não mais constituirão o único crivo de aborda-

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gem ou de apreensão da realidade. Mesmo entre dois fatos muito


distanciados no tempo e no espaço pode haver um alto grau de
relações significativas, pois a própria história também se faz por
saltos e movimentos pendulares. Se o conhecimento é visto como
um campo de relações, então já não há mais um único início ló-
gico ou cronológico para as investigações. Será preciso partir de
“algum ponto”, mesmo que casual, para, aos poucos, costurá-lo
a outros pontos, formando aquilo que Lévi-Strauss chamou de
método de “levantamento em rosácea”:

Seja qual for o mito tomado por centro, suas variantes irra-
diam-se em torno dele formando uma rosácea que se expande pro-
gressivamente e se complica. E, seja qual for a variante colocada na
periferia que escolhermos como novo centro, o mesmo fenômeno
se reproduz, dando origem a uma segunda rosácea, que em parte
mistura-se à primeira e a transpõe. E assim por diante. Não inde-
finidamente, mas até que essas construções encurvadas nos levem
de novo ao ponto de onde partimos. Disso resulta que um campo
primitivamente confuso e indistinto deixa perceber uma rede de
linhas de força e revela-se poderosamente organizado.2

Essa maneira de proceder, tão atual, toma como base o fato


de que as significações surgem a partir das relações em que ope-
ram “linhas de força” que nós, observadores, analistas e intér-
pretes, costuramos dentro de um determinado campo. É uma
concepção polifônica da realidade – e sabemos o quanto Lévi-
Strauss foi influenciado pela música – e, diga-se de passagem, se-
melhante à maneira pela qual estabelecemos conexões a partir
dos materiais de uma obra musical. Essa mudança de perspectiva
é importante, pois já não se trata de um universo cujos elementos
isolados são suas unidades mínimas: estas últimas são justamen-
te as inter-relações binárias entre centros que alguém realiza, e
portanto este universo é uma criação e não mera exterioridade
observável. O significado de um centro escolhido estará em sua
relação com outro centro da rosácea. Tais relações binárias são

2. Claude Lévi-Strauss/Didier Eribon. De perto e de longe. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 181.

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facilmente compreensíveis, pois se dá o mesmo quando, não com-


preendendo o sentido de uma palavra desconhecida, recorremos
ao dicionário: o significado não está nem na palavra desconhe-
cida nem em seu sinônimo, mas em um terceiro lugar, que é o
da relação entre ambas. Portanto, o sentido não está na troca de
informações entre as palavras, mas em sua relação.
Sendo assim, se o conhecimento provém de um campo de
relações, isso implica uma estética que não parte do princípio de
que as obras de arte comunicam ou querem dizer “algo” a aprecia-
dores que teriam de possuir ou adquirir a capacidade de captar
“mensagens”. Um campo de relações é um campo de vivências, de
experiências estéticas, do qual partem e para o qual convergem
inúmeros atores, materiais ou não. Neste contexto, o papel de um
trabalho teórico não é “explicar”, mas levantar questões e provo-
car centelhas que poderão iluminar, ao menos, uma parcela desse
infinito campo de relações.
É necessário ter consciência de que ao efetuarmos conexões
significativas entre elementos distintos já não mais estamos man-
tendo sua “integridade”, pois esse processo é uma “lapidação” que
recria e projeta novas luzes sobre tais elementos transformando-os.
É por esse motivo que Victor Hugo, referindo-se ao drama, assim
comenta:

Outros, parece-nos, já o disseram: o drama é um espelho em


que se reflete a natureza. Mas, se este espelho é um espelho ordi-
nário, uma superfície plana e unida, devolverá dos objetos apenas
uma imagem apagada e sem relevo fiel, mas descolorida; sabe-se
que a cor e a luz perdem à simples reflexão. É, pois, preciso que o
drama seja um espelho de concentração que, longe de enfraquecê-
los, reúna e condense os raios corantes, que faça de um vislumbre
uma luz, de uma luz uma chama. Só então o drama é arte.3

Falar em um campo de relações implica dizer que não há ex-


periência ou individual ou coletiva: um campo, embora formado

3. Victor Hugo. Do grotesco e do sublime (“Prefácio de Cromwell”). São Paulo: Perspectiva,


2002, p. 61.

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de individualidades, é maior do que a somas destas, pois o indivi-


dual e o coletivo se retroalimentam continuamente. O campo de
relações está além da mera separação ou dualidade objeto/sujeito,
obra/ouvinte etc. É um “terceiro lugar”, um hiato, um espaço de
criação, de imaginação, de comunicação e cultura. Assim, concei-
tos hodiernos como “homologia estrutural”, “tradução interse-
miótica” etc., embora elegantes, delatam as tentativas de se reunir
novamente o que, de princípio, já se separou e fragmentou. É um
método equivocado de dividir o sentido do todo em partes encara-
das como organismos autônomos para, então, reuni-las de manei-
ra forçada procurando restabelecer o todo que já se perdeu. Ocor-
re que, nessa separação – exatamente pelo fato de as partes serem
porosas e lacunares a fim de que suas “faltas” sejam preenchidas
pelos diálogos que seus apreciadores promovem – já se perdeu o
que as partes possuíam potencialmente do todo e do todo não
resta senão um esqueleto sem vida.
Tendo estas perspectivas em mente, oferecemos ao leitor uma
“rosácea de ensaios”, na expectativa de que seu relacionamento
contribua para o esclarecimento do assunto que nos propusemos
tratar. Daqui infere-se, pois, que estando em forma de rosácea, os
ensaios irão contornar seus objetos mirando-os de esguelha, evi-
tando, com isso, a rigidez e o provável fracasso de ir “diretamente
ao assunto”. Embora o tempo e a história tenham lugar de desta-
que em cada ensaio, a seqüência destes não está organizada por
critérios cronológicos. Tal como os mitos em Lévi-Strauss cada
ensaio possui autonomia e lógica interna próprias, cujos sentidos
serão, no entanto, reconsiderados à medida que se avançar na
leitura dos demais, fazendo com que, no fim das contas, eles se
iluminem reciprocamente e formem um todo que seja maior que
o somatório das partes.

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Juízo de Valor
entre a escuta e a reflexão

Vivemos em uma época em que os julgamentos de valor se tor-


naram uma questão complexa, de difícil abordagem: julgar a partir
de que princípios, de que ponto de vista? Todas as eras de transição
possuem características semelhantes: alguns tentam apegar-se a va-
lores já estabelecidos, mas em vias de se tornarem arcaicos, e outros
procuram antecipar novos procedimentos e valores que, embora
prenunciados, ainda não estão suficientemente amadurecidos.
No caso estético, como falar a respeito de juízo ou juízos de valor
quando os próprios conceitos e processos de abordagem da reali-
dade, que até meados do século XX ainda faziam parte de nosso
repertório, já perderam muito de sua potência analítica? Uma das
características mais marcantes daquele século foi o fato de ter sido,
por um lado, um prolongamento da ideologia romântica já agoni-
zante e, por outro, um terreno fértil para várias correntes estéticas
que expressaram as crises sócio-políticas de um mundo permeado
de grandes guerras e as quebras de paradigma perpetradas pelas
ciências, tanto exatas quanto humanas.
Em meados do século XIX, Victor Hugo propugnava a ple-
nos pulmões: “Destruamos as teorias, as poéticas e os sistemas.
Derrubemos este velho gesso que mascara a fachada da arte! Não
há regras nem modelos”.1 Decorrido meio século, Marinetti afir-
1. Victor Hugo. Do grotesco e do sublime (“Prefácio de Cromwell”). São Paulo: Perspectiva,
2002, p. 57.

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18 Estética da Comunicação Musical

maria: “Nós queremos demolir os museus, as bibliotecas, comba-


ter o moralismo, o feminismo e todas as covardias oportunistas e
utilitárias”.2
A unidade e unanimidade estética do Classicismo, patente,
por exemplo, na Primeira Escola de Viena, não teria mais condi-
ções de ser repetida no já então conturbado século XIX, a ponto
de ser mais apropriado falar não em um único, mas em muitos
romantismos. No século XX, o desejo de pulverizar os grilhões da
História e o peso da tradição, quer na teoria ou na práxis artísti-
ca, iria levar ao total rompimento com os princípios que haviam
até então norteado a estética do mundo ocidental desde Platão e
Aristóteles. Isso levou a arte a uma situação paradoxal de oscila-
ção entre dois pólos principais, igualmente radicais e aparente-
mente antagônicos: a poética dos formalistas e a dos conteudistas.
Os formalistas, atuando como os últimos bastiões de uma postura
gestada no Romantismo, aderiram à poética da “arte pela arte”
levada às últimas conseqüências, o que causaria a incompreensão
e a revolta do público aliada a uma grande dose de incomunica-
bilidade. Mas os formalistas acreditavam que, se a arte já não se
comunicava com as pessoas no presente, é porque elas ainda não
estavam preparadas e o futuro iria garantir aos artistas sua verda-
deira estatura de “gênios incompreendidos”. Os conteudistas, por
sua vez, ainda sob o impacto das várias revoluções do novecentos
e dos movimentos socialistas e comunistas, aderiam ao anonima-
to da “arte engajada” que auxiliaria a transformar as massas e
a derrubar sistemas, principalmente o capitalista. Na realidade,
as poéticas da “arte engajada” ou da “arte pela arte” possuem em
comum a mesma tendência profética e visionária: desejam instau-
rar, desde já, um futuro melhor. Quanto à relação obra-ouvinte,
enquanto a primeira busca a comunicação “absoluta” e direta com
seus ouvintes colocando a primazia no sujeito, a segunda, enfati-
zando o objeto, prescindirá até mesmo da comunicação em nome
de um diálogo que se dará no futuro. Ambas as atitudes são com-
preensíveis, pois em todas as épocas há, pelo menos, duas posturas
frente à realidade: a romântica e a clássica. No fundo, formalistas

2. Item 10 do “Manifesto Futurista” publicado em 1909 no jornal Le Figaro.

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e conteudistas adotaram atitudes essencialmente românticas, dir-


se-ia dionisíacas e extremadas: eram, em essência, idealistas.
Mas o mundo moderno também se pautou pela atitude clás-
sica de artistas que adotaram, no interior das próprias obras, um
equilíbrio entre a tradição e a vanguarda, entre a utilização de
meios técnicos e expressivos do passado e novos procedimentos
de elaboração formais. Eles operam a sua revolução “de dentro”,
ou seja, tomam o passado como matéria-prima e transformam
seus materiais, por vezes, radicalmente. Não se trata mais da poé-
tica dos formalistas ou dos conteudistas, mas de uma terceira via,
a dos “relativistas”: em suas obras convivem, lado a lado, o velho
e o novo, o sublime e o grotesco, a seriedade e a ironia, o “alto”
e o “baixo”, o equilíbrio apolíneo e os rompantes dionisíacos, o
espaço-tempo absoluto e relativo. Tais artistas, em geral, encarna-
ram em suas próprias obras as crises materiais e existenciais da
passagem do século XIX ao XX. Pode-se dizer que esta poética
“classicizante”, optando pelo “caminho do meio”, foi, muitas ve-
zes, ainda mais contundente que a dos formalistas e conteudis-
tas, pois devido à manutenção, nessas obras, da capacidade de
comunicação com o público, este, ao mesmo tempo em que reco-
nhecia nelas elementos já repertoriados, era levado ao paroxismo
das metamorfoses e transformações inesperadas e acachapantes,
que tais elementos sofriam, espelhando, com isso, as próprias
convulsões dos mundos exterior e interior. Apenas para citar um
exemplo, observemos a análise que Schorske efetuou a partir de
La valse de Ravel, à qual se referiu como sendo uma introdução
simbólica ao problema histórico da relação entre política e psique
na Viena fin-de-siècle:

Embora Ravel celebre a destruição do mundo da valsa, não o


apresenta de saída como uma visão unificada. Pelo contrário, a
obra se abre como um prenúncio das partes individuais que com-
porão o conjunto: fragmentos de temas de valsa, disseminados
por uma imobilidade meditativa. Gradualmente, as partes se en-
contram: a fanfarra marcial, o vigoroso trote, o obbligato suave, a
impetuosa melodia principal. Cada elemento é arrastado, sua velo-
cidade magnetizada para o todo maior. Cada um desdobra sua in-

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20 Estética da Comunicação Musical

dividualidade, ao se unir aos parceiros na dança. O andamento se


acelera; quase imperceptivelmente, o ritmo impetuoso passa para
o compulsivo, a seguir para o frenético. Os elementos concêntricos
se tornam excêntricos, separados do todo, assim transformando
a harmonia em cacofonia. O andamento condutor continua em
crescendo quando, de súbito, surgem cesuras no ritmo; o ouvinte
praticamente pára, a fixar horrorizado o vazio que se cria quando
um elemento principal silencia, deixa de agir por um momento. A
paralisia parcial de cada elemento enfraquece o movimento e, no
entanto o todo se move, em condução incessante possível apenas
numa medida compulsiva em três tempos. Até as últimas notas,
quando a valsa se desmorona num cataclismo de sons, cada tema
continua a exalar sua individualidade, agora excêntrica e distorci-
da, no caos da totalidade.3

Se analisado do ponto de vista da vanguarda, Ravel seria


apenas mais um compositor neoclássico. Mas, se abandonarmos a
atitude poética e o encaramos sob o prisma estético, seu retorno
ao “antigo” não é uma “nostalgia” do passado, mas um choque
do passado no presente que coloca o público na vertigem de um
futuro incerto, de um mundo em plena transformação e ebulição.
A “revolução” que Ravel efetua na valsa é uma ação poética de or-
dem ao mesmo tempo simbólica, política, cultural e, porque não,
estética, pois sua bricolagem inova tanto os conteúdos quanto as
formas artísticas e a própria maneira de as obras se comunicarem.
Se a intenção da vanguarda era chocar suas platéias negando as
conquistas do passado (mas penetrando, assim, no movediço ter-
reno da incomunicabilidade), foi ela própria, no entanto, que se
chocou com as obras “passadistas” de seus colegas “neoclássicos”,
os quais, paradoxalmente, cumpriam assim a função que a van-
guarda não teria mais condições históricas de efetuar em um fu-
turo muito próximo.
Tais posturas radicais dos vanguardistas tiveram, no entan-
to, aspectos positivos, pois colocaram em questão, mesmo que de

3. Carl E. Schorske. Viena fin-de-siècle – política e cultura. São Paulo: Edunicamp/Cia das
Letras, 1988, pp. 25-26.

Estética da Comunicação Musical 20 20 17/3/2008 18:07:49


Eduardo Seincman 21

maneira enviesada, o papel da arte e de sua comunicabilidade.


Não tardou para que a arte virasse palco de verdadeiros labora-
tórios de experimentação dos mais variados tipos, cada escola ou
poética tentando fazer valer seus princípios. Em meio a este caos
extremamente criativo, logo apareceram tentativas de unificar,
reorganizar e explicar a multiplicidade de manifestações que, afi-
nal de contas, era reflexo do próprio esfacelamento material e
espiritual do homem do pós-guerra. Surgiram novas tentativas de
sistematização dos meios (como o dodecafonismo e o serialismo
na música) e novas teorias sociais (como o estruturalismo), que
procuraram transpor as conquistas “objetivas” da lingüística e da
semiologia para seus próprios campos. Malgrado tais tentativas,
o fato é que já não nos encontrávamos sob o signo da unidade
iluminista ou dos idealismos românticos, mas sob a égide de um
mundo fragmentado, polissêmico e plural. A própria física já o
demonstrava: abandonara-se o absoluto para adentrar a relativi-
dade. Não seria mais possível encontrar a unidade “perdida” ou a
propalada autonomia das obras de arte. Novo período de incerte-
zas e angústias, as quais mais tarde levariam ao próprio abandono
dos elementos materiais da arte e à poética, um tanto niilista, da
“arte conceitual” (e suas derivadas, como “arte postal” etc.). Mas
o tempo escoou, houve nova mudança de século e os grandes “re-
volucionários” da arte isolaram-se em feudos ou foram, mesmo,
engolidos e obscurecidos pelas diversas mídias.
É interessante constatar que em nosso século XXI, à medi-
da que se abandonam as visões proféticas, maniqueístas e dua-
listas de épocas anteriores, as experiências estéticas, outrora tão
voltadas para as questões individuais de recepção, passam a ter
um novo sentido. As várias poéticas, há pouco tão desvinculadas
das amarras com o social, começam a passar novamente pelo
crivo da ética: se a arte é um espelho das relações humanas, ou
seja, um mergulho do individual no coletivo e do coletivo no
individual, então, a figura do artista como “gênio” deixa de ter
ressonância para dar vazão a uma rede mais ampla de relações
que sustentam as obras. Metaforicamente falando, a visão “pro-
fética” ou “messiânica” da arte estaria, em nossa época, cedendo
espaço a outra que se poderia mais propriamente chamar de
“mística” ou “holística:

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22 Estética da Comunicação Musical

... os místicos são homens que por sua própria experiência interior e
sua especulação acerca dessa experiência descobrem novas camadas
de significação na sua religião tradicional.4

Do mesmo modo, os artistas estão se voltando e revalorizan-


do as conquistas do passado. Não pretendendo realizar a “gran-
de obra do futuro”, estabelecem um diálogo com o presente em
uma interlocução ao mesmo tempo harmônica e tensa. Quando
os artistas não têm mais a pretensão de alterar o mundo, é que
eles se tornam, então, mais um possível agente transformador da
realidade, pois não há mudança sem comunicação e sem recipro-
cidade. Já estamos muito distanciados da concepção romântica da
arte como auto-expressão: se a obra é uma parte do todo e ao mes-
mo tempo o espelha, então não tem mais sentido o “expressar a si
mesmo”. O fenômeno artístico muda de natureza, pois, em vez de
traçar rumos, adquire um papel mais modesto e essencial: assume
a crise de estar no mundo e de lhe servir de eco. A própria palavra
“crise” parece mudar de sentido, pois em um mundo em constan-
te mudança, a estabilidade é que se torna crítica. A crise já não
é mais um momento agudo e transitório dentro da estabilidade,
mas um estado permanente. Se, do ponto de vista social este fato é
uma tendência atual, sempre o foi do ponto de vista estético, pois
não há arte sem uma permanente crise: as obras ampliam um re-
pertório anterior e com ele dialogam e, à medida que contribuem
para manter uma tradição, trazem em si o germe da constante
inovação. Sem esta mediação dialógica das obras não haveria co-
municação, não haveria uma tensão constante entre as conquistas
do passado e os impulsos do futuro, dotando o presente de signifi-
cação, de profundidade.
Assim, a tensão entre a tradição e a inovação é um fator cru-
cial da experiência estética. A constante ruptura e união de ambos
– pois aquilo que acaba de inovar torna-se imediatamente mais um
elo da tradição – é condição imanente da comunicação artística:
só se inova sobre um fundo de conquistas e só se conquista ten-
do pela frente um horizonte de inovações. Esse relé de aproximar

4. Gershom G. Scholem. A cabala e o seu simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1988, pp. 44-45.

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Eduardo Seincman 23

para reconhecer (repetir) e romper para desconhecer (inovar) é o


mecanismo que nos coloca simultaneamente dentro da obra como
atores e fora dela como interlocutores. Não importa de que lado es-
tejamos, quer no palco quer na platéia, a constante troca de papéis
é permanente e fundamental: não há comunicação e experiência
estética sem desdobramento, pois só sendo um duplo para poder
alternar as posições. Só me faço entender por um ouvinte quando,
ao mesmo tempo em que falo (ou toco, interpreto, crio), coloco-me
como ouvinte de meu próprio discurso; o mesmo vale para quais-
quer das posições assumidas. Isso implica dizer que uma comuni-
cação entre duas pessoas será no mínimo sempre entre “quatro”
(dois duplos).
Os paradoxos das eras de transição são muitos. Dos séculos
XVIII ao XX acreditou-se que a arte seria, como tudo mais, uma
evolução permanente do simples ao complexo e que, nesse senti-
do, as escolas, com suas poéticas, iriam suplantar umas às outras
até atingir patamares cada vez mais desenvolvidos e sutis. Mas a
própria História encarregou-se de derrubar esta visão de mundo e
nossa era atual, quer a denominemos ou não pós-modernista, acata
em seu seio muito mais posições divergentes do que sequer pode-
riam supor nossos antepassados. As visões de mundo evolucionista
e positivista, que no século XX e ainda hoje impregnam muitas
de nossas abordagens, inclusive no campo educacional, requeriam
“profetas”: assim se deu, por exemplo, com Arnold Schoenberg,
cujo dodecafonismo procurava reinstaurar a “unidade perdida”,
ou seja, uma ordem sistêmica sobre os escombros da tonalidade.
Logicamente, tais visões possuíam um forte componente “hege-
liano”, na crença de que os sistemas engendram o germe de suas
próprias contradições e superação. Esse pensamento, ancorado no
novecentos, contribuiu para a visão otimista de que os artistas ou
criadores seriam os “visionários” de novos paradigmas, mas, como
os “gênios” eram poucos, também propiciou a visão pessimista da
“perda da individualidade” no coletivo, e da impossibilidade de
escapar da pasteurização seja da “ditadura do proletariado”, seja
da “ditadura do mercado”.
Porém, logicamente, não há aqui propriamente uma crise de
ordem estética, mas institucional, que diz respeito ao uso político

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24 Estética da Comunicação Musical

e ideológico que a sociedade faz da arte que produz. A crise pode


ser paralisante ou, então, a mola propulsora do mundo, o motor da
mudança. Se é próprio da arte estar em crise, a do artista é neces-
sária: é a tensão primordial entre a subjetividade ou singularidade
do criador, intérprete ou ouvinte e a carga social das tradições his-
tóricas e culturais que estes recebem. A crise do artista é a de ser
humano: como atuar individualmente e ao mesmo tempo aceitar
os contratos sociais? Como inovar o presente e construir o futuro
sem destruir o passado? A visão de que o mercado nos oferece-
ria somente o materialismo e de que a arte seria seu “antídoto” de
ordem espiritual é falsa e maniqueísta: quaisquer experiências
ou manifestações são, ao mesmo tempo, materiais e espirituais.
Imanência e transcendência andam de mãos dadas. Matéria e
espírito não se contradizem, só se separam quando se instala a
visão dualista e idólatra.
Não há lugar na arte para o egocentrismo e o altruísmo, pois
a função da arte é comunicar, religar o indivíduo no mundo e o
mundo no indivíduo, efetuando a passagem do “estar” para o “ser”
e dotando, com isso, o mundo de sentido. A arte é, pois, uma cons-
tante busca do individual no coletivo e vice-versa. Nesse sentido é
bastante ilustrativa uma pequena parábola citada pelo pensador
Martin Buber:

Por que dizemos: “Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de


Jacó? E não Deus de Abraão, Isaac e Jacó?”. Resposta de Buber: por-
que eles não tomaram meramente a tradição de Abraão, eles pró-
prios procuraram por Deus.5

O valor artístico de uma obra não pode ser avaliado pelo sis-
tema, estilo, material ou meios empregados, nem tampouco por
sua classificação em tal ou qual categoria. Como constata Dewey,
toda matéria-prima, todo e qualquer material utilizado, não im-
porta se passou por elaborações anteriores, sofrerá um processo
de lapidação para que se transforme de matéria bruta em meio
de comunicação, ou seja, em um corpo com “alma”. Assim, não

5. Martin Buber. Collected hasidic sayings. Nova York: Citadel Press Book, 1995, pp. 13-14.

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Eduardo Seincman 25

há poéticas ou estilos que sejam em si bons ou ruins, melhores


ou piores, atualizados ou anacrônicos: há simplesmente obras que
cumprem seus objetivos e outras que não os alcançam. Os “siste-
mas” musicais nada mais são que molduras: contextos sonoros que
limitam o leque de escolhas e sem os quais a comunicação musical
seria impossível. Esses contextos sonoros ou códigos não são fixos,
não se anulam mutuamente nem tampouco se tornam obsoletos:
propõem apenas diferentes entradas em seus universos, abrem di-
ferentes canais para a comunicação sonora. Se os “profetas” defen-
dem seus próprios sistemas de composição, isso diz respeito a suas
atitudes poéticas, que serão sempre parciais, e não a uma visão
estética de horizontes mais amplos.
A obra musical só se efetiva, de fato, na performance, em sua
relação com os ouvintes. Quando um compositor finaliza uma
obra, ela já não mais lhe “pertence” passando a fazer parte de
um “campo estético”: é nesse palco que irá se consubstanciar seu
“ jogo”. A despeito de o senso comum acreditar que o composi-
tor teria mais condições de “explicar” a obra, ele passou à condi-
ção de mais um de seus ouvintes e, devido à transcendência da
experiência estética, jamais poderá dar conta da infinitude de
questões que ela suscita. George Steiner, analisando a filosofia
de Heidegger, comenta a diferença entre o que este definiu como
“questionável” (“ fraglich”) e aquilo que é “digno de questiona-
mento” (“ fragwürdig”):

O que é digno de questionamento, por seu lado, é literalmente


inesgotável. Não há respostas terminais, resolubilidades últimas, e
formais para a questão do sentido da existência humana ou do sig-
nificado de uma sonata de Mozart ou do conflito entre consciência
individual e condicionamentos sociais.6

Uma obra de arte só é um objeto finito qundo isolada do


fenômeno comunicacional, pois, em sua relação com os sujeitos
cria-se um terceiro lugar, o lugar da transcendência e da polis-
semia. Assim, a comunicação artística transcende a mera relação

6. George Steiner. Heidegger, Lisboa: Dom Quixote, p. 55.

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26 Estética da Comunicação Musical

sujeito-objeto e, depois de lapidada, a matéria bruta das obras,


com sua quantidade finita de elementos, passa a ser um meio de
conteúdo inesgotável.
Mas, para que nos entreguemos à novidade do conhecido e
ao estranhamento do inusitado das obras, é necessária uma ati-
tude de esquecimento de si. A condição da permanência da obra
está na possibilidade de nos renovarmos a fim de que ela também
nos renove a todo momento. O compositor impressiona a matéria-
bruta que, por sua vez, o impressiona de volta, e nesse processo a
obra vai sendo lapidada. O compositor é, pois, ao mesmo tempo
intérprete e espectador. O mesmo ocorre com o intérprete que,
embora tenha recebido uma partitura já elaborada, irá tratá-la
como matéria bruta de uma nova lapidação que resultará, por sua
vez, na matéria-prima dos ouvintes. Estas sucessivas lapidações,
envolvendo fatores de ordem cultural, histórica, biográfica, esté-
tica e técnica, deixam marcas explícitas e implícitas em todos os
agentes envolvidos. E, como não anulam as lapidações anteriores,
elas carregam consigo os fatores de manutenção e inovação. Por-
tanto, a comunicação musical não é apenas um eixo horizontal ou
diacrônico, mas tem um sentido vertical ou sincrônico em que as
camadas sonoras aparentes escondem os conteúdos latentes pro-
venientes das múltiplas lapidações de seus vários atores. Sem esta
polifonia “oculta” não haveria comunicação: a música tornar-se-ia
“objeto em si”, mera seqüência de notas atrás de notas.
Descrevendo o pensamento de Lévi-Strauss a respeito da re-
lação entre o aparente e o oculto, Octavio Paz comenta:

Lévi-Strauss aludiu em diversas ocasiões às influências que de-


terminaram a direção de seu pensamento: a geologia, o marxismo
e Freud. Uma paisagem se apresenta como um quebra-cabeças:
colinas, rochedos, vales, arvores, barrancos. Essa desordem possui
um sentido oculto; não é uma justaposição de formas diferentes,
mas a reunião, em um lugar, de distintos tempos-espaços: as capas
geológicas. Como a linguagem, a paisagem é diacrônica e sincrô-
nica ao mesmo tempo: é a historia condensada de idades terrestres
e é também um entrelaçado de relações. Um corte vertical revela
que o oculto, as capas invisíveis, é uma “estrutura” que determina

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e dá sentido às mais superficiais. À descoberta intuitiva da geolo-


gia se uniram, mais tarde, as lições do marxismo (uma geologia
da sociedade) e da psicanálise (uma geologia psíquica). [...] Marx,
Freud e a geologia lhe ensinaram a explicar o visível pelo oculto.
Isto é, a buscar a relação entre o sensível e o racional.7

Tal como a paisagem de Lévi-Strauss, o texto da partitura


musical nada mais é que um meio de contato entre seus diversos
intérpretes. É limítrofe: situa-se entre o imanente e o transcen-
dente, o aparente e o latente, o sensível e o inteligível, o sincrô-
nico e o diacrônico. O intérprete também é uma figura liminar,
pois se coloca entre o texto escrito e o texto soando para alguém.
O texto, que deve ser resignificado, está à espera de preenchimen-
tos, subentendidos, intenções, expectações, pontuações, insinu-
ações. O mesmo ocorre com o som soado: fica à espera daquele
que o escuta para ressignificá-lo. O texto e a interpretação são ao
mesmo tempo porosos e sólidos: possuem lacunas, hiatos que dão
espaço à ação de outrem, mas também impõem limites sem os
quais tais ações poderiam descaracterizá-los. Portanto, para haver
experiência estética, os objetos e sujeitos têm de ser ao mesmo
tempo permeáveis e impermeáveis, conceder e se impor, dizer sim
e não, oferecer-se e resistir. Só há comunicação na tensão entre
um texto que se abre à interpretação colocando limites e um su-
jeito que impõe interpretações aceitando limitações. Estas impo-
sições e resistências de ambas as partes se dão em um palco que é
um terceiro lugar: o lugar da invenção possível, onde as energias
acumuladas se imiscuem de tal forma que ambos, sujeito e objeto,
alternando continuamente seus papéis, saem dessa experiência
transformados.
Se a comunicação não for objeto do conhecimento, nem mes-
mo a técnica musical – de execução ou de composição – poderá
ser discutida adequadamente. A técnica tem de estar a serviço de
um determinado efeito sobre a platéia, considerando que compo-

7. Octavio Paz. Claude Lévi-Strauss ou o novo festim de Esopo. São Paulo: Perspectiva, 1977,
pp. 9-10.

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28 Estética da Comunicação Musical

sitor e intérprete se comportam perante seus objetos como se fos-


sem a própria platéia. A técnica não pode ser um fim em si, mas
um meio de se alcançar um determinado resultado. Se a questão
da comunicação for adequadamente colocada em pauta, então as
próprias disciplinas musicais de teoria, harmonia e contraponto,
com suas regras por vezes demasiado rígidas, serão repensadas
de acordo com o contexto e o efeito almejado. À guisa de exem-
plo, sigamos o raciocínio de Michael Chekhov, a quem voltaremos
adiante, em relação à técnica do “ritmo rápido” da fala:

Assim, vemos que o ritmo rápido é ainda outra condição requeri-


da pela comédia , e também este ponto precisa ser elucidado. O rit-
mo rápido, se for uniforme, torna-se inevitavelmente monótono. O
espectador tem a atenção entorpecida e, alguns momentos depois,
começa a ter a impressão de que o ritmo da performance está fican-
do cada vez mais lento; como resultado disso, o espectador perde
involuntariamente seu interesse nos atores e fica escutando apenas
os diálogos. Para evitar esse desagradável efeito, essa diminuição
do significado do ator no palco, o intérprete deve, de tempos em
tempos, abrandar subitamente seu ritmo, nem que seja apenas por
uma frase ou movimento, ou introduzir ocasionalmente uma curta
mas expressiva pausa. Esses meios de quebrar a monotonia de uma
performance em ritmo rápido agirão instantaneamente sobre a
atenção do espectador, como pequenos mas agradáveis choques.
O espectador, assim reanimado, estará de novo apto a deleitar-se
com o ritmo vivo da performance e, por conseqüência, a apreciar
melhor o talento e a habilidade do ator.8

Infere-se desse comentário que o artista deve estar, no mí-


nimo, em dois lugares simultaneamente: no palco, para falar seu
texto, e na platéia para saber como expressá-lo, alcançando assim
o efeito pretendido. Essa atuação comunicativa, que demonstra ser-
mos seres duplos, afeta todo e qualquer papel assumido. Logica-
mente, toda matéria-prima oferecerá oportunidades e resistências

8. Michael Chekhov. Para o ator. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 155.

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Eduardo Seincman 29

quanto ao efeito desejado: se, por exemplo, a opção do compositor


é empregar harmonias mais cromáticas em vez de diatônicas, me-
nor será a possibilidade de obter conflitos dramáticos baseados em
modulações. Mas esses fatos só se tornam explícitos quando se con-
sidera a comunicação obra-ouvinte, a relação entre matéria e espí-
rito, já que qualquer ato comunicativo é ao mesmo tempo sensível
e reflexivo. Não se pode falar na existência de uma “escuta ativa”,
como muito se fez desde Rousseau até Hanslick, porque onde há
escuta há atividade simultaneamente sensível e inteligível. Toda e
qualquer experiência só pode se dar em plena atividade, em plena
atenção, comunhão, participação e troca. Mas há, aqui, um ponto
fundamental que será abordado posteriormente com maior pro-
fundidade: só se pode ter aquilo que se perdeu, só é possível reter o
que se esqueceu. A atitude não pode se restringir, portanto, à mera
ação expansiva ou impositiva, mas também abarca o deixar-se per-
der ou levar para então recuperar, para compreender novamente.
Ter atitude é também retrair-se, fingir que se desconhece a fim de
surpreender-se com a novidade do que já se conhecia. É necessá-
rio o recolhimento, o encolhimento, a fim de que, criando-se um
espaço vazio, a obra possa preenchê-lo e nos surpreender com a
novidade daquilo que já conhecíamos. Se, por acaso, realizamos
uma minuciosa análise de todos os elementos da obra, se a tocamos
de cor, se a ouvimos inúmeras vezes, mesmo assim é preciso agir
como se essa fosse a primeira vez ou do contrário estaremos nos
repetindo, o que é sempre uma fatalidade. Temos, inclusive que
nos esquecer de todas estas “análises” a fim de colocar em questão
nossas certezas e hipóteses anteriores. É preciso, pois, que a novida-
de manifeste-se a partir do nada, do silêncio de um terceiro lugar.
É preciso abrir uma lacuna no espaço-tempo, deixar o nada atuar a
fim de que a novidade surja aí por contraste. É preciso espantar-se
com a obra para que sejamos a sua alteridade. Na obra não existem
“mensagens”, pois comunicação é experiência, é cultura. Não é a
obra de arte que “transforma” o mundo, e sim o mundo de rela-
ções significativas que ela propicia. As obras musicais apresentam,
portanto, propostas de relações, e a sua qualidade independerá dos
materiais e sistemas empregados.

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30 Estética da Comunicação Musical

Juízo de valor em música? Seria necessário julgar a capacidade


de a obra, em sua comunicação musical, transcender sua própria
materialidade. Seria necessário julgar a capacidade de o ouvinte,
na comunicação musical, transcender-se. Não há expressão sem
intermediação, não há alma sem corpo, espírito sem matéria, ex-
pressão sem técnica. São, justamente, os limites materiais que pe-
dem o auxílio ilimitado da imaginação criadora. O limite é, pois,
condição da criação: só há criação onde há limites, imperfeições,
faltas. Na reação instintiva não há espaço entre o estímulo e a res-
posta, não há, portanto, espaço para hipótese, reflexão, criação,
raciocínio e experiência. A comunicação não é, pois, reação, mas
ação: agir é colocar um adiamento entre o estímulo e a resposta. A
ausência de rapidez entre o estímulo e sua resposta é uma desvan-
tagem e ao mesmo tempo o trunfo do ser humano: ele deixa de ser
um animal da natureza e passa a ser um agente cultural, criador
da natureza. Passa a agir no tempo e a sentir o tempo a partir dos
estímulos.
A comunicação não é, pois, mera troca ou relação – é criação;
não apresenta soluções – antes, coloca questões. Não há fórmulas
para o questionamento do mundo. La valse, de Ravel, coloca ques-
tões que suplantam o campo apenas musical, dialogando com as
crises políticas, sociais e culturais de sua época. As Trois Gymno-
pédies, de Satie, simples em sua aparência material, colocam em
cheque a complexidade épica da música do Romantismo tardio;
recolocam a questão da polissemia gerada a partir da economia
de elementos; propõem uma escuta moderna “cubista” apresen-
tando três movimentos em um só; questionam o modo ocidental
de recepção das obras e introduzem novas questões sobre a dialé-
tica entre memória e esquecimento. Mas este já é um assunto para
o próximo capítulo.

Estética da Comunicação Musical 30 30 17/3/2008 18:07:49


Eduardo Seincman 31

Filosofia da Composição
entre a memória e o esquecimento

Nossa mente é porosa para o esquecimento;


eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a
trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.
Borges, O Aleph

Essa frase de Jorge Luis Borges é bastante oportuna, pois, se


queremos pensar a estética da comunicação musical, não podemos
negar o fato de que só se adquire o que se perdeu, só se lembra do
que já se esqueceu e, assim, estamos fadados a recuperar constan-
temente nossas próprias experiências. Só os perfeitos, como diria
Platão em Fedro, possuem uma visão eterna da verdade, mas “para
aqueles que esqueceram, a rememoração é uma virtude”.1 Assim,
nós, meros mortais, possuímos esse grave defeito e essa grande vir-
tude de esquecer para lembrar, de perder para recuperar, de perder
para reter, de deixar de ser para poder ser. Somos dependentes, em
suma, das experiências compartilhadas no tempo e no espaço. Mas
essa limitação é ao mesmo tempo nosso trunfo, uma dependência
que nos obriga a ser expressivos, a fazer uso da comunicação e a
viver em universos culturais que definem o modo e a qualidade de
nossas inter-relações materiais e espirituais. Não é por mero acaso,
portanto, que John Dewey coloca grande ênfase na experiência hu-
mana da comunicação:

1. Mircea Eliade. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 107.

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32 Estética da Comunicação Musical

Dentre todas as realizações, a comunicação é a mais notável.


Trata-se de um prodígio [...] que as coisas passem a ser capazes
de transferir-se do plano das impulsões externas para o do desve-
lamento para o homem, e assim para si próprias; que o resultado
da comunicação possa ser a participação e o ato de compartilhar.
Quando ocorre o comunicar-se, todos os eventos da natureza tor-
nam-se sujeitos à reconsideração e à revisão; são readaptados para
que enfrentem as exigências da conversação, quer seja esta o dis-
curso público, quer seja o discurso prévio chamado pensamento.
Os eventos tornam-se objetos, coisas que possuem significado.2

Em seu livro Arte como experiência, Dewey afirma que toda ex-
periência digna desse nome é uma experiência estética, entenden-
do por experiência toda e qualquer criação de ordem a partir das
matérias, tangíveis ou intangíveis, dispersas em nosso mundo. Se
tais matérias são naturais ou se foram criadas, não importa, pois
qualquer realização serve de matéria-prima a uma nova experiên-
cia, e será sempre passível de uma nova “lapidação”. Dewey amplia
assim, por um lado, os horizontes da estética e da comunicação
para todos os campos da vida e, por outro, põe abaixo as comparti-
mentações entre a “alta” e a “baixa” cultura, entre o “sublime” e o
“corriqueiro”. Qualquer matéria-prima, uma vez lapidada, servirá
a novas elaborações e experiências. O sentido de uma experiência
dependerá de nossa capacidade de estabelecer relações de causa-
lidade, continuidade e finalidade a partir dos elementos que nos
cercam. Havendo troca, comunicação, compartilhamento, nós e o
mundo nos tornamos dotados de sentido: todos os atores saem de
uma experiência transformados. Nessa concepção, arte e comu-
nicação não podem constituir campos isolados: sem comunicação
não há arte e sem arte não há comunicação.
Tendo em mente essa abordagem, como pensar, então, sobre
a “Filosofia da Composição”? Logicamente, o título desse capítu-
lo é irônico e provocativo, pois nos remete imediatamente ao im-
portante texto teórico “Filosofia da Composição”, de Edgar Allan
Poe, no qual ele comenta os aspectos comunicativos e estéticos de

2. John Dewey. Experiência e natureza (Cap. V: “Natureza, Comunicação e Significado”).


Col. Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 187.

Estética da Comunicação Musical 32 32 17/3/2008 18:07:49


Eduardo Seincman 33

sua poesia e como procedeu a fim de escrever o poema “O Cor-


vo” (“The Raven”), de 1845. Estamos acostumados a relacionar a
palavra “composição” à arte musical. Mas, nesse sentido, o texto
de Poe é exemplar não apenas por analisar as idéias estéticas e o
modo de construção que dão origem à sua poesia, mas por pen-
sar a relação obra-ouvinte no próprio ato de leitura, ou seja, por
pensar a poesia como música, como som soado e interpretado.
No ensaio, Poe nos apresenta a estratégia comunicativa de seu
poema: inicia a composição justamente a partir daquela que será
de um total de 18, apenas a 16a estrofe a aparecer:

Prophet”, said I, “thing of evil! – prophet still, if bird of devil!


By that Heaven that bends above us, by that God we both adore,
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore:
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore.
Quoth the Raven, “Nevermore”.3

Embora esta seja a estrofe “geradora”, Poe adia sua leitura


para um futuro, de forma que o poema obedecerá, no tempo, a
um discurso calculado de aumentos gradativos de tensão até que
o leitor atinja, finalmente, a estrofe que dera o impulso inicial
para a composição, mas que nesse momento terá se transformado
em ápice, em clímax do poema. Construindo, desse modo, seu
poema de “trás para frente”, Poe faz com que, através de estrofes
intermediárias, o leitor-intérprete experimente em sua própria
pele o crescendo das tensões. A 16a estrofe, a estrofe de “chegada”,
consubstancia as estrofes anteriores e se torna, por assim dizer, a
sua própria razão de ser.
A maneira pela qual esta experiência de adiamento da estrofe
“geradora” se desdobra pode ser uma lição muito útil quanto aos
procedimentos de estruturação do discurso musical. No início do

3. Na tradução de Fernando Pessoa: “Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave


preta! – / Pelo Deus ante quem somos fracos e mortais, / Dize a esta alma entristecida, se
no Éden de outra vida, / Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, / Essa cujo nome
sabem as hostes celestiais!” / Disse o Corvo, “Nunca mais.”

Estética da Comunicação Musical 33 33 17/3/2008 18:07:50


34 Estética da Comunicação Musical

poema, o orador já deve ter em mente a estrofe culminante a ser


alcançada no futuro, tratando-se, pois, de uma imagem, de um
instante pensado, que ainda não se transformou em tempo vivido.
Para que esse processo se dê, Poe cria uma malha intermediária
de estrofes que o ouvinte experimentará como simultaneamente
repletas de passado e prenhes de futuro. À medida que a tensão
e a ânsia de futuro aumentam, a noção de passado do ouvinte se
estreita. Em todo esse percurso em constante transformação há,
porém, elementos que se mantêm: na camada mais superficial, a
repetição de palavras (nevermore), a ressonância de palavras com
a mesma sonoridade (raven, never, Lenore etc.) e as palavras que
rimam entre si; em uma camada um pouco mais “profunda”, a
manutenção de estruturas rítmicas e métricas; em um nível ainda
mais profundo, constata-se que a 16a estrofe, ou estrofe “gerado-
ra”, permeia o poema inteiro como uma grande unidade “oculta”,
pois, sendo adiada, está presente como “imagem” que, no futuro,
irá se consubstanciar. A estrofe “geradora” é, pois, a origem e a
meta, o alfa e o ômega do poema, ou seja, sua grande “Idéia”.
Seria este tipo de estratégia comunicativa semelhante à da
Quinta sinfonia de Beethoven? De certa forma, sim, pois a célula
geradora com que se inicia a Quinta também se mantém como a
“Idéia” perene, sendo também a conseqüência e o ápice de toda
a elaboração musical que ela mesma propiciou. Porém, diferente-
mente da estrofe de Poe, a célula de Beethoven tem outras carac-
terísticas: não é frase completa e, portanto, é uma estrutura aber-
ta que não tem início, meio e fim; trata-se apenas de um “motivo”.
Portanto, a célula geradora não é exatamente tempo, mas instante
pensado. O tema principal da Sinfonia, este sim, constitui tempo,
pois traz aos ouvintes a lembrança do passado e a expectativa do
futuro. Só no término da sinfonia, quando a célula “geradora”
reaparecer pela última vez, ela terá mudado de função: será a cé-
lula “final”, e de instante pensado terá se tornado novamente tempo
vivido.
Na verdade, a célula “geradora” de Beethoven assemelha-se
mais à eterna repetição do nevermore do poema de Poe. De fato, a
repetição do “nunca mais” caracteriza o instante pensado ao passo
que as estrofes intermediárias, com seus crescendos e acellerandos,

Estética da Comunicação Musical 34 34 17/3/2008 18:07:50


Eduardo Seincman 35

provocam nos ouvintes a experiência do tempo vivido. Tal como


em Beethoven, cujos primeiros temas são geralmente vagos e am-
bíguos tanto harmônica quanto melodicamente, Poe opera aqui
uma inversão crucial: se a resposta do corvo é sempre a mesma,
então o que era pergunta tornou-se resposta e a resposta será uma
única e eterna questão. O nevermore não está no tempo, ele é um
“motivo” para as perguntas, estas sim prenhes de passado e futuro.
O poema vai sendo urdido, assim, sob a forma de continuidades e
descontinuidades, esquecimentos e lembranças, instantes e dura-
ções, reflexões e experiências, distanciamentos e aproximações.
Tudo isso unificado, porém, por uma visão de longa distância,
pois, como Poe afirmou em seu ensaio,

só tendo o epílogo constantemente em vista poderemos dar a um


enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou causali-
dade, fazendo com que os incidentes, e especialmente o tom da
obra, tendam para o desenvolvimento de sua intenção.4

A atitude de Poe já não é mais a do “gênio” com seus arroubos


dionisíacos, mas a de um artista que pensa a obra como interpre-
tação, como processo comunicativo. Assim, a cadeia comunicativa
envolve vários passos, todos implicados entre si: a estrofe geradora
de “O Corvo” constituiu a matéria-prima a partir da qual Poe lapi-
dou seu poema; o texto acabado do poema não é senão uma nova
matéria-prima a partir da qual o intérprete dará voz ao texto; por
sua vez, as palavras recitadas não são senão ondas sonoras brutas a
serem dotadas de sentido pelos ouvintes. Portanto, a experiência es-
tética, qualquer que seja, envolve uma seqüência de lapidações cada
vez mais potencializadas. Perguntar-se a respeito de uma “nature-
za” primeira das coisas seria, nesse caso, absolutamente inútil, tal
como procurar pela “verdadeira” interpretação ou pelo que o autor
“quis realmente dizer”. A cada nova elaboração, aumentam expo-
nencialmente o leque de sentidos, as possibilidades interpretativas
e as conexões significativas. Todo e qualquer texto carrega atrás de
si uma cadeia de lapidações e suas análises, escutas, interpretações

4. Edgar Allan Poe.“O Corvo” e suas traduções. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000, p. 37.

Estética da Comunicação Musical 35 35 17/3/2008 18:07:50


36 Estética da Comunicação Musical

não se prestam a quaisquer mecanicismos: o autor ou compositor


tem de desdobrar-se em ouvinte e intérprete da obra para que, im-
pressionado pelo próprio texto, crie um texto expressivo; o intér-
prete necessita sair de si para que, ouvindo-se, impressione-se com
seu próprio texto, o qual, tornado expressivo, impressionará a pla-
téia; esta, por sua vez, atenta à performance, expressará de volta ao
intérprete suas próprias impressões. A cadeia comunicativa requer
técnicas que consubstanciem, por um lado, os meios de expressar-se
(sair de si, atuar de dentro para fora, do interior ao exterior), os
quais, por sua vez, irão garantir as possibilidades de impressionar-se
(voltar a si, sofrer a ação de fora para dentro, do exterior ao inte-
rior). Expressar-se e impressionar-se retroalimentam-se continua-
mente: se o primeiro associa-se à memória de si, o segundo relacio-
na-se ao esquecimento de si. Não há, pois, comunicação sem esse relé
de esquecer para lembrar, de perder para ganhar, de expandir-se
para contrair-se, de não ser para ser. Só a partir dessa consciência
é que teremos condições de rever os conceitos tradicionais (forma,
técnica interpretativa, composição, linguagem, discurso, estrutura,
sistema etc.) para não mais tomá-los como elementos isolados, mas
como partes de um processo comunicacional inseparável da expe-
riência estética.
A dialética entre memória e esquecimento é, para Platão,
fundamental, pois se antes de nascer tínhamos o conhecimento
de tudo, após o nascimento mergulhamos no esquecimento, tor-
namo-nos como que uma tabula rasa:

Nos trechos de sua doutrina da anamnese, onde fala do mer-


gulho do saber pré-nascimento em um esquecimento também não
definitivo, Platão comenta, consolador, que cada alma humana
também é recoberta, no nascimento, por uma camada de cera que
ainda não contém “impressões”. Assim pode ser comparada a um
bloco de cera, e os homens deviam esse presente à deusa da memó-
ria (Mnemosyne), mãe das musas.5

5. Harald Weinrich. Lete – arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 2001, p. 44.

Estética da Comunicação Musical 36 36 17/3/2008 18:07:50


Eduardo Seincman 37

Uma vez que somos “impressionados”, os fatos não se per-


dem, mas ficam, no máximo, adormecidos em algum lugar de
nosso “teatro da memória”: poderão ser, portanto, resgatados a
qualquer momento dependendo do contexto e das necessidades do
presente. Sobre esta concepção de memória Weinrich comenta:

O artista da memória, que segue o exemplo de Simônides, per-


cebe em primeiro lugar para seus fins – no caso da retórica isso é
sempre a fala pública – uma constelação fixa de “lugares” (em grego,
topoi, em latim, loci) bem familiares, sua residência ou o fórum. Nesses
locais, ele testemunha em seqüência ordenada os conteúdos isolados
da memória, depois de primeiro os ter transformado em “imagens”
(grego, phantasmata, latim, imagenes), se já não o forem por natureza.
Essa é a realização de sua “força de imaginação” (grego, phantasia,
latim, imaginatio). No seu discurso, o artista da memória precisa ape-
nas repassar em pensamento a seqüência de lugares (latim, permeare,
pervagari, percurrere), e com isso pode invocar em série as imagens
da memória. Portanto é sempre uma paisagem da memória na qual
age essa arte, e, nessa paisagem, tudo o que deve ser confiavelmente
lembrado tem seu lugar determinado.6

Podemos pensar nestas “imagens” como algo mais que o estri-


tamente visual. Por exemplo, são também imagens as sínteses que
realizamos a partir de determinados trechos musicais ouvidos,
quando toda seqüência sonora de um trecho é retida e pode ser
resgatada de maneira instantânea: a imagem é, pois, um “instan-
tâneo” daquilo que, antes, precisou de tempo para se desdobrar
e ser apreciado. Não fosse assim, careceríamos de expectativas, já
que estas surgem justamente do fato de nos lembrarmos instanta-
neamente de um trecho sonoro e ansiarmos por sua resolução ou
repetição. Mas voltaremos a esta questão adiante. É preciso apro-
fundar um pouco mais o assunto relativo à constelação de lugares
e à seqüência de imagens.
Em seu “mito da caverna”, Platão nos deu um exemplo do es-
forço efetuado por um indivíduo para deixar o interior da caver-

6. Harald Weinrich. Op. cit., p. 31.

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38 Estética da Comunicação Musical

na em direção a seu exterior a fim de que sua experiência e a


consciência por ele obtida fossem compartilhadas por seus pares.
É justamente o esquema que acabamos de deslindar com relação à
filosofia da composição e à comunicação, pois, como vimos, para
Dewey só existe experiência compartilhada. Constatamos que a
estrofe geradora de Poe era a meta de chegada, e o mesmo vale
para o exterior da caverna, ponto de chegada de nosso solitário
andarilho. Em ambos os casos, tendo-se alcançado os pontos de
chegada, há uma síntese imediata de todo o percurso até aquele
ponto. Mais ainda, haverá uma relação imediata e íntima entre o
ponto de partida e o de chegada, e eles irão se tornar polares entre
si. O que foi percorrido, digamos, em sentido horizontal, diacrôni-
co e temporal, será agora retido como um “lugar fixo”, como um
único eixo vertical, sincrônico e instantâneo, enfim, como um axis
mundi significativo: ambos os pontos, de partida e de chegada, tor-
nam-se intercambiáveis e estarão “fora” do tempo humano, fora
da duração e do drama do esforço empreendido por nossos heróis
para alcançá-los. Do ponto de vista da síntese que se operou, não
importa o tempo, pois ele nada mais é que um desdobramento
da ordenação dos pontos de partida e chegada. Mas, do ponto de
vista da duração e da ação sofrida para se chegar de um ponto
a outro, importa sim o percurso efetuado. Porém, vistos de um
terceiro lugar, ambos os pontos de vista têm suas razões de ser,
pois, ao mesmo tempo polares e complementares, consubstanciam
o que chamamos de experiência estética.
Poder-se-ia dizer que a dialética da memória e do esquecimen-
to, do distanciamento e da aproximação, tem duas faces principais:

• Em relação aos pontos de partida e chegada: na medida em


que nos distanciamos de um ponto nós o esquecemos até
que a aproximação da meta pretendida nos faça, aos poucos,
relembrar de onde saímos. Alcançando o ponto de chegada,
recuperamos imediatamente a consciência do ponto de par-
tida: portanto, eles formam entre si um axis mundi, um eixo
de verticalidade instantânea da própria durée que os separa-
va, a qual demandava tempo e esforço;

Estética da Comunicação Musical 38 38 17/3/2008 18:07:50


Eduardo Seincman 39

• Em relação ao percurso: só se atinge um ponto almejado


através de um esforço ininterrupto que demanda tempo, mas
tal intenção só será alcançada se a cada instante desta durée a
imagem do futuro estiver constantemente presente em nossa
consciência.

Desse último tópico, conclui-se que o futuro não está somente


“lá”, à distância do presente, mas também presentemente situado;
de onde se infere que duração e instante, vivência temporal e sín-
tese imagética, são partes de um mesmo fenômeno da consciência
humana: não há emoção sem a ação da razão e vice-versa, pois até
o que denominamos de “futuro” é a lembrança presente de onde
queremos chegar. Na experiência estética, não há duração à parte
da imaginação ou imagem que não se dê na duração. O presen-
te é o contato e o limite entre ambos, e esta é a “sina” de nossa
condição humana. Mas o hiato que nós humanos interpomos en-
tre o estímulo e a resposta nos dá a capacidade e a condição de
escaparmos do eterno presente da natureza e criarmos cultura.
Nós humanos, tal como Cronos, somos “marotos”: se lemos um
poema ou ouvimos uma música, situamo-nos no presente, porém,
com um olho no passado (para saber de onde viemos) e outro no
futuro (para saber aonde vamos). Assim, a própria imagem do
presente já não é mais, para nós humanos, o “verdadeiro” presen-
te: é um presente distorcido pelas lentes que lhe impusemos quer
do passado quer do futuro. Isso tem conseqüências bastante pro-
fundas: o intérprete, por exemplo, que já conhece o futuro de seu
texto, finge desconhecê-lo para que, vivenciando o “presente”, se
coloque na posição dos ouvintes a fim de ser impressionado por
suas reações frente ao próprio texto que interpreta. O ouvinte,
por sua vez, não menos criativo, opera no mesmo registro: finge
desconhecer o passado do texto para que, vivenciando o “presen-
te”, se coloque na posição do intérprete a fim de ser impressiona-
do pelas reações dos ouvintes frente ao texto que interpreta.
Este processo é, de fato, similar ao da paisagem da memória
medieval: uma constelação fixa de “lugares” ou imagens nos dá
a condição de resgate do passado e a ordenação destas imagens
nos confere a possibilidade de vivenciarmos a transição ou mes-

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40 Estética da Comunicação Musical

mo a metamorfose de uma a outra. Portanto, os conceitos, as sín-


teses, as imagens, os instantâneos, são condição da memória, ao
passo que o percurso, a transição, a metamorfose, engendram o
esquecimento. As experiências são ao mesmo tempo formadas de
imagens intemporais e fatos seqüenciados temporalmente. Devi-
do ao nosso desejo de fruir as experiências, de participar ativa-
mente do mundo e suas obras, necessitamos de uma aproximação
sensível e de um distanciamento crítico: esse binômio, essa dupla
articulação, ativa o processo de ligar/desligar, aciona o relé do
compartilhar a comunicação e apreendê-la enquanto fenômeno
estético. A criação de expectativas e, portanto, o aspecto de dra-
maticidade das experiências estéticas, se dá neste palco em que,
se por um lado, as imagens constroem as “sofridas” lembranças do
passado e do futuro, por outro, as durações se encarregam de nos
fazer esquecê-las e tentam nos colocar em um “prazeroso” presen-
te eternizado.
Tome-se uma partitura como um todo. Ela só poderá ser lida
e tocada se for desdobrada em tempo, se durar. Para tocá-la, sere-
mos obrigados a traduzi-la em duração. Mas isso não descarta, no
entanto, o conhecimento prévio que temos dela enquanto axis ou
mapa mundi, enquanto “Idéia” em que as “imagens” pairam eter-
namente fora da duração. É impossível separar um processo de
outro e, portanto, separar a interpretação da criação e da escuta.
Uma questão se coloca: ouço uma música. Como a apreen-
do? Captando tudo, recordando tudo, entrando em comunhão
total com sua matéria e dizendo, assim, que se trata de uma “arte
temporal”? Considerando o binômio esquecimento e memória,
a resposta seria não. Pensemos novamente em Platão: os homens
se encontram acorrentados no fundo da caverna. As únicas coisas
que vêem na “tela” à sua frente são sombras e ecos. Se o nosso
herói desvencilhar-se dos grilhões, sair da caverna em direção à
luz do Sol e mais tarde retornar, tanto o percurso de ida quanto o
de volta irão provocar um ofuscamento, no primeiro caso devido
à intensidade da luz que vem de fora e, no segundo, à intensida-
de da escuridão de dentro. Portanto, só pode haver ofuscamento
quando se está em trânsito. Mas, a condição necessária da “ilumi-
nação” que ele terá ao sair da caverna é ver-se ofuscado sem o que

Estética da Comunicação Musical 40 40 17/3/2008 18:07:50


Eduardo Seincman 41

não se daria o esquecimento e o reconhecimento da profunda


“escuridão” anterior. Só algo que foi “apagado” da memória pode
ser posteriormente relembrado e o drama embute em si essa ex-
periência de sofrer a ação do tempo. Bergson afirmava que onde
não há memória não pode haver tempo. Constatamos, no entanto, que
o esquecimento e não a memória é que constitui a condição da
temporalidade: onde não há esquecimento não pode haver tempo. O
trânsito, o deslocamento de um estado a outro implica, ao mesmo
tempo, esquecimento e reconhecimento. Se generalizarmos a con-
cepção de Platão de que conhecer é lembrar do estado anterior
ao nascimento, poderemos afirmar que toda mudança implica a
morte e o “esquecimento” de um estado anterior e o nascimento
e a “lembrança” de outro. A impressão de continuidade advém
justamente desta pulsação de descontinuidades que a realidade
ou os textos nos apresentam. Francis Bacon comentou de maneira
sintética esse mecanismo:

Solomon saith, “There is no new thing upon the earth”. So


that Plato had an imagination, “That all knowledge was but re-
membrance”; so Solomon giveth his sentence, “That all novelty is
but oblivion”. Whereby you may see that the river of Lethe runneth
as well above ground as below.7

Podemos esclarecer alguns pontos de vista até aqui adotados,


bem como entrever, mais especificamente, como se efetua essa
dialética entre memória e esquecimento a partir de um exemplo
musical: o Rondó em lá menor, KV 511, de Mozart.

7. Francis Bacon. Essays, Civil and Moral, LVIII. “Of vicissitude of things”: Salomão disse,
Não há nada de novo sobre a Terra. De modo que Platão pensou que Todo o conhecimento
não é senão lembrança; então Salomão afirmou que Toda novidade não é senão esque-
cimento. De modo que você pode constatar que o rio Lete corre tanto acima quanto abaixo da
superfície.

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42 Estética da Comunicação Musical

se auditivamen

Mozart, Rondó em lá menor, comps. 1-32.

Percebe-se auditivamente que, a partir do compasso 31, se


inicia uma nova seção da obra, que denominaremos de seção B.
Desde sua entrada em cena, já sabemos tratar-se de um novo esta-
do que, embora apenas iniciando-se, desejaríamos que perduras-

Estética da Comunicação Musical 42 42 17/3/2008 18:07:50


Eduardo Seincman 43

se, quer para compensar a proporção da seção A anterior, quer


por sua relativa estranheza. De qualquer forma, já colocamos, em
pauta, certa expectativa de futuro. Ao mesmo tempo, esta mudan-
ça de estado, o choque da entrada da seção B, seu conflito com o
passado, são a moldura indispensável para que formemos imedia-
tamente uma imagem dos acontecimentos anteriores como sendo
a seção A. Mas enquanto a seção B perdura, a imagem da seção A,
mesmo que aparentemente “esquecida” poderá ser reenfatizada,
sendo de nosso “teatro da memória” a qualquer momento. Isso
mostra que as experiências que foram vividas no tempo são trans-
formadas em imagens de experiências, imagens estas que, continua-
mente acessadas, influenciam as próprias experiências atuais. A
seção B só é, portanto, uma mudança de estado porque enquanto
este dura dizemos continuamente: “isto não é mais A, e sim B”. O
impacto da saída de um estado em equilíbrio para a entrada em
outro ocasiona uma desordem temporária, e esse “trauma” possui
uma dupla função: na camada aparente, desliga-nos do texto da
seção A colocando em seu lugar o texto de B, mas faz com que A
se torne latentemente presente enquanto B se desdobra. Portanto,
atua aqui o relé do ligar/desligar de que falamos: o desapareci-
mento de A é condição do aparecimento de B que, por sua vez, faz
aparecer a latência de A.8 A memória não é propriamente da or-
dem da duração, do deslocamento, da diacronia, mas da imagem
instantânea, do espacial, do sincrônico: para resgatar a seção A
enquanto duração teríamos que tocá-la novamente. É importante
salientar, entretanto, que essa possibilidade de síntese do passado
não é algo fortuito nem um capricho dos ouvintes, mas algo que
o próprio texto da seção A propicia ao apresentar uma estrutura
interna coesa e simétrica de forma-canção ternária (a-b-a). Do
mesmo modo, o artifício para que a mudança de estado da seção
A para a seção B seja ao mesmo tempo surpreendente e lógica está
no fato de a melodia da seção B (comp. 31) iniciar-se, justamente,
na mesma anacruse melódica da parte b da seção A (comps. 8-9).

8. Portanto, memória e esquecimento fazem parte de um único processo e trocam sinais


de forma ininterrupta: a memória total ou o esquecimento total ou fazem parte dos
“casos literários” (como o do conto “Funes, o Memorioso, de Borges) ou são realmente
“casos clínicos” (tais como os relatados por Oliver Sacks).

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44 Estética da Comunicação Musical

A melodia da mão direita nos induz, portanto, a crer que a parte


b será repetida, mas, pelo viés harmônico, somos assaltados por
uma abrupta e impressionante mudança para a tonalidade de fá
maior. Convém ressaltar, no entanto, que este efeito de estranha-
mento – de esperar algo que não aconteceu, e de acontecer aquilo
que não se esperava9 – só foi possível porque a parte b, após seu
término, também fora retida como imagem instantânea e bastou
reaparecer a mesma anacruse (comp. 31) que lhe deu origem para
que imediatamente acreditássemos que ela seria reexposta.

Rondó em lá menor – comps. 80-81.

Após a seção B terminar (comp. 80), basta reaparecer o iní-


cio da seção A (comp. 78) para que já resgatemos a sua imagem
e a “intuamos” imediata e integralmente, antes mesmo de seu de-
curso. Mas, então, qual é o sentido de ouvir novamente o que já
se conhece? São duas as razões: primeiramente, a de nos espan-
tarmos com o fato de se repetir justamente o que já se havia aban-
donado em função do surgimento da seção B; em segundo lugar,
retornamos à realidade da seção A enquanto duração, obliteran-
do sua ação enquanto imagem. Espantamo-nos novamente não só
pelo fato de termos de reconstruir uma nova imagem de A, mas
também porque A, que fora inicialmente experimentado como
tempo vivido, transformou-se em imagem (tempo pensado) e agora,
durando, desdobra-se novamente em “tempo revivido”. O retorno

9. Este importante assunto da comunicabilidade entre obra e ouvinte que esta obra de
Mozart desperta será analisado com mais acuidade no capítulo “Iluminismo: entre a
síntese e a duração”.

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Eduardo Seincman 45

da seção A nos desperta para um mundo que é simultaneamente


exterioridade e interioridade, mundo este em que a síntese (ima-
gem) e a duração tomam parte do mesmo fenômeno comunicati-
vo. Mas, deve-se acrescentar, os papéis agora se inverteram, pois
a seção A volta a ser duração e é B que se torna síntese imagética.
Embora ocorram algumas mudanças sutis no texto dessa reexpo-
sição – alguns ornamentos melódicos e pequenas pausas – elas
não são desprezíveis: ao realçarem os pequenos detalhes, tirando-
nos da ação em proveito da descrição, deslocam nossa atenção para
as filigranas do texto auxiliando-nos, desta forma, a esquecer da
contrastante e potente seção B. Essa função descritiva, ornamen-
tal, detalhista, tem importância dramática, pois gera uma “pausa
narrativa”, uma espécie de fixação do tempo no “presente das coi-
sas presentes” que nos são apresentadas e percebidas, agora, sob
um novo um ângulo:

A descrição entra em conflito permanente com a narração


da qual ela pára o curso. Enquanto que esta última é dinâmica,
tempo, movimento, desenvolvimento de uma intriga no seio da
qual evoluem personagens, a descrição demora, pára na imagem,
concentra sua atenção sobre um dado momento, sobre um lugar
preciso, sobre um episódio decisivo. A descrição é, como diz Gé-
rard Genette, uma “pausa na narração”. Ela fixa o tempo num pre-
sente definitivo e imobiliza a visão no espaço. Ela é uma espécie de
narração parada, uma recapitulação no instante, constituindo um
desafio ao fluxo da temporalidade [...]10

No caso dessa reexposição da parte a, da seção A, Mozart or-


namenta apenas a frase do antecedente deixando o conseqüente
intacto:

10. François Laplantine. A descrição etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004, p. 34.

Estética da Comunicação Musical 45 45 17/3/2008 18:07:51


46 Estética da Comunicação Musical

Mozart, Rondó em lá menor, antecedente:


comps. 81-84; conseqüente: comps. 85-88.

Este floreio de Mozart não é, contudo, meramente ornamen-


tal, pois se trata de incluir uma rítmica de “suspiros”, tal como em
Monteverdi, que, aliados à dinâmica crescendo fazem pairar uma
nova dúvida no ar: o que virá agora? Supomos que será, possivel-
mente, a parte b da seção A, tal como havia ocorrido no início da
obra. Mas, para nossa surpresa, Mozart ataca diretamente a seção
C, desta vez em lá maior, e ainda mais contrastante e desenvolvida
que a seção B. Ocorre, de novo, a tensão dialógica de um texto
que frustra mais uma vez nossas expectativas e somos obrigados a
rever rapidamente premissas a fim de poder assimilar todo o im-
pacto dramático dessa nova seção. Assim, percebe-se que a parte
b desempenha um papel crucial quanto à dramaticidade da ação,
pois na segunda vez em que ela deveria aparecer, a seção B toma
seu lugar e, na terceira vez, é a seção C que assume o comando.
Há, pois, uma tensão entre o que deveria ter ocorrido e o que de fato
ocorre. É devido à sua ausência que a parte b se faz sempre presente
em nossa consciência, o que corrobora para que a força dramáti-
ca da seção C não se deva unicamente ao fato de ela ser uma seção
de desenvolvimento.
Como se pode constatar, a comunicação musical não se dá
apenas no nível das superfícies, mas na relação entre o aparente
e o latente, entre o sensível e o inteligível. Diferentemente, por
exemplo, da Renascença, na qual se empregava uma polifonia “ex-
plícita” de vozes sobrepostas, o Classicismo emprega a polifonia

Estética da Comunicação Musical 46 46 17/3/2008 18:07:51


Eduardo Seincman 47

“implícita”, muito mais dramática, pois o discurso se dá na tensão


contrapontística entre as vozes do texto e aconsciência humana.
Se na Renascença a polifonia era da ordem do presente, no Classi-
cismo há um contraponto da duração presente com as imagens do
passado/futuro. Essa talvez seja a grande dissonância que o Clas-
sicismo soube colocar em ação: sua aparente simplicidade textual
oculta, implica e revela uma alta dose de complexidade dramática
e existencial. O Classicismo soube jogar excepcionalmente com os
eixos paradigmáticos e sintagmáticos, com o instante e a duração,
com o deslocamento e a condensação. Porque iluminista, descobre
o mundo relacional, o mundo de significações geradas pelo com-
partilhar de muitos atores em processo comunicativo.
Caberia indagar por que as teorias estéticas tendem a sepa-
rar objeto e sujeito, a adotar, como diria Lukács, as posições ou
do “idealismo abstrato” ou do “romantismo da desilusão”? Talvez
a resposta esteja no fato de o ser humano se acomodar melhor às
condições “estáveis” do que às instáveis. Preferimos, em geral, a
“objetividade” à indeterminação. Constatamos, por exemplo, que
a impressão da passagem do tempo não pode ser desvinculada
das imagens desta passagem. Mas, como o fator tempo é, no senso
comum, uma “substância” e, portanto, mais “palpável” e concreta,
separa-se inclusive as artes temporais das artes espaciais, como se
isso fosse não apenas possível, mas “metodologicamente” útil. As-
sim, dizemos sem pestanejar que a música é uma “arte temporal”,
como se consistisse em uma espécie de realização da durée bergso-
niana. Já observamos, no entanto, que sem distanciamento, sem
esquecimento, não pode haver a impressão de duração ou mesmo
a possibilidade de consciência de experiências. É este o grande
paradoxo que cerca a personagem do conto “Funes, o Memorio-
so”, de Jorge Luis Borges. Após levar um tombo, Funes recorda-se
de absolutamente tudo. No entanto, comentando a respeito de
Funes, o narrador observa:

Este, não o esqueçamos, era quase incapaz de idéias gerais,


platônicas. Não lhe custava compreender que o símbolo genérico
cão abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e
diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e quatorze (visto de

Estética da Comunicação Musical 47 47 17/3/2008 18:07:51


48 Estética da Comunicação Musical

perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de
frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos, surpre-
endiam-no todas as vezes. [...]
Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português,
o latim. Suspeito, entretanto, que não era capaz de pensar. Pensar
é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mun-
do de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos.11

Assim, a memória total, o conhecimento de cada detalhe, le-


vam à ignorância, por não haver afastamento, abstração.
Se houvesse um caso musical semelhante, seria o de alguém
que absolutamente não sente a passagem do tempo e vive apenas
em um eterno presente, onde cada nota musical é independente
da anterior e da posterior, ou seja, em um eterno recomeço. Quer
pensemos em uma memória total, quer no esquecimento absolu-
to, tocaremos neste mesmo ponto em que o presente se faz eter-
nidade e a eternidade se faz presente. Para se ter a impressão da
duração é preciso vivenciar e abstrair, é preciso estar ininterrupta
e alternadamente “dentro” e “fora” da situação. O neurocientista
Iván Izquierdo relata a forma básica de aprendizado nas aves, o
“imprinting” que vem acompanhado de uma “poda”:

Nesse aprendizado, a certa hora de certo dia após o nasci-


mento, as aves aprendem a seguir, caminhando, qualquer figura
que passe perto delas. Como geralmente a figura que passa é sua
mãe, esta memória possui um forte valor adaptativo. [...] O im-
printing se acompanha de, e se deve a, uma “poda” importante das
arborizações sinápticas no núcleo nervoso responsável pela forma-
ção dessa memória [...]. Os resultados da “poda” consistem numa
especialização acentuada, num ganho de especificidade, das si-
napses envolvidas na formação dessa memória. [...]
Vemos, assim, que o próprio cérebro exerce, para aprendiza-
dos e memórias importantes, a forma mais pura da arte de esquecer.
Cancela conexões nervosas (neurônios, axônios, dendritos, sinap-

11. Jorge Luis Borges. “Funes, o Memorioso”, in: Ficções. São Paulo: Globo, 3ª ed., 2007,
pp. 127-28.

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Eduardo Seincman 49

ses) que deixam de ser úteis e poderiam causar graves confusões


comportamentais.12

Vemos, pois, que o desligar está intrinsecamente relacionado


ao esquecer. Contudo, com relação às obras de arte, à sua forma
de comunicação, estamos sempre propensos a analisar seus meca-
nismos de criação do novo e a desconsiderar, justamente, sua “arte
do desligamento” ou do “esquecimento”. As sintaxes não estão ape-
nas à serviço da conexão de idéias, mas, igualmente, dos desliga-
mentos de certas sinapses a fim de que os conteúdos “esquecidos”
possam ser posteriormente resgatados, remanejados e reavaliados,
adquirindo, com isso, novas significações em novos contextos. A
análise estética da criação deve considerar que comunicação sig-
nifica tensão, pois a duração atua “contra” a memória e a imagina-
ção “contra” o esquecimento. É difícil superar nossas concepções
dualistas, mesmo em um filósofo como Bergson:

Os filósofos concordam, apesar de suas divergências aparentes,


em distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer
uma coisa. A primeira implica que rodeemos a coisa; a segunda, que
entremos nela. A primeira depende do ponto de vista em que nos colo-
camos e dos símbolos pelos quais nos exprimimos. Acerca da primeira
maneira de conhecer, diremos que ela se detém no relativo; quanto à
segunda, onde ela é possível, diremos que ela atinge o absoluto.13

Bergson, sabidamente um anti-racionalista, irá tomar parti-


do do que ele chamou de “absoluto”, pois rodear o objeto seria
estar fora dele, seria analisá-lo, espacializar o tempo, racionalizar,
afastar-se da “essência”. Ele queria, ao invés, entrar no objeto para
aprendê-lo de dentro, imiscuindo-se, assim, na própria durée. Para
exemplificar sua visão, cita o exemplo da descrição de uma perso-
nagem por um escritor:

12. Iván Izquierdo. A arte de esquecer – cérebro, memória e esquecimento. Rio de Janeiro: Vieira
& Lent, 2004, pp. 84-5.
13. Henri Bergson. “Introdução à metafísica”, in: Bergson. Col. Os Pensadores XXXVIII,
São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 19.

Estética da Comunicação Musical 49 49 17/3/2008 18:07:51


50 Estética da Comunicação Musical

O romancista poderá multiplicar os traços de caráter, fazer fa-


lar e agir seu herói tanto quanto queira: tudo isso não valerá o senti-
mento simples e indivisível que eu experimentaria se coincidisse um
instante com a própria personagem. Então, as palavras, os gestos e
as ações me pareceriam correr naturalmente, como da fonte.14

Em seguida, teoriza a esse respeito:

Tudo o que me é contado acerca da pessoa me fornece pontos


de vista sobre ela. Todos os traços pelos quais ma descreveu [...] são
signos pelos quais a exprimimos mais ou menos simbolicamente.
Símbolos e pontos de vista me colocam, pois, fora dela [...]. Mas o
que é propriamente ela, o que constitui sua essência, não poderia
ser percebido de fora, pois é, por definição, interior, nem ser expres-
so por símbolos, pois é incomensurável com qualquer outra coisa.
Descrição, história e análise me deixam, pois, no realtivo. Somente
a coincidência com a própria pessoa me daria o absoluto.15

Pelo que foi até aqui foi exposto, pode-se facilmente objetar
que esta “entrega total”, quase religiosa, este situar-se “dentro” da
obra não está muito distante de estar “fora” dela, pois não se pode
ter consciência de onde se está se este lugar é o “absoluto”. Os rei-
nos do absoluto e da relatividade total são reinos da inconsciência.
A visão bergsoniana é, portanto, de fundo místico e trata a arte
como algo de “outra ordem”, já que o homem teria abandonado
a intuição da durée e deixado de participar do mundo real envere-
dando, assim, pelo racionalismo que tudo disseca, analisa e separa.
Sua postura é, pois, mais poética que estética, mais política que
filosófica, na medida em que coloca seu anti-racionalismo e anti-
cientificismo como programas. De certa forma, ele buscava resti-
tuir ao mundo a “aura” que este perdera, algo que em pleno século
dezenove já havia sido abordado seja pela afirmação de um Marx
de que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”16, seja pelas obras
de um Baudelaire e de um Poe e seu “homem da multidão”.

14. Henri Bergson. Op. cit.


15. Idem, p. 20.
16. Karl Marx e Friedrich Engels. O manifesto comunista. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 14.

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Eduardo Seincman 51

O que Bergson não percebe é que a comunicação é uma via de


mão dupla entre sensibilidade e razão, interior e exterior, memória
e esquecimento, que não são meros pares de oposição ou comple-
mentação, mas binômios que dizem respeito a um terceiro lugar: o
espaço do compartilhamento e da interlocução, sem os quais não
haveria experiência estética. Quando Bergson afirma: “Há uma re-
alidade, ao menos, que todos apreendemos de dentro, por intuição e não
por simples análise. É nossa própria pessoa em seu fluir através do tempo.
É nosso eu que dura”17, ele não leva em conta que sem a “análise”
não poderíamos constatar que nosso eu “dura”, pois não pode ha-
ver duração sem as imagens da duração, não há tempo vivido sem
tempo pensado, não há memória sem esquecimento. Assim, aquilo
que chamamos de continuidade não se deve a um fluxo “ natural”
e ininterrupto da duração, mas à capacidade que temos de efetuar
sínteses e ordená-las para podermos dizer: “deste ponto até aquele
houve duração”.
Muitos adotaram e ainda adotam o discurso bergsoniano
de que quando fruímos uma obra “verdadeiramente” é porque
estamos em plena comunhão com ela. Mas, só pode haver toma-
da de consciência dos efeitos das obras sobre nós porque na co-
municação se dá um duplo movimento de presença e ausência.
Onde há ou comunhão total ou distanciamento total, não pode
haver experiência estética, pois experiência implica vivência e
crítica. Só pode haver “informação” quando se está ao mesmo
tempo “dentro” e “fora” da obra. Se estivéssemos na própria durée,
como quer Bergson, não poderíamos espacializar o tempo, criar
imagens, efetuar sínteses. As obras não teriam profundidade nem
dimensão, não poderíamos perceber trechos, não haveria forma
nem memória, mas somente inconsciência.
O “distanciamento”, aliado que é da auto-análise irônica e
crítica, passou a ser o lema de várias poéticas do século XX, que
se opuseram a esse “estar dentro”, a essa “comunhão infinita”
idealizada por muitas obras artísticas, especialmente do último
Romantismo. As próprias técnicas de composição como a cola-
gem, a citação, a bricolagem, a fragmentação, denunciavam que

17. Henri Bergson. Op. cit., p. 21.

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52 Estética da Comunicação Musical

na comunicação estética espaço e tempo não eram absolutos, mas


relativos. O especificamente humano devia-se a um distanciamen-
to do homem em relação à natureza imediata, não à entrada no
absoluto, mas ao situar-se no relativo.
Anatol Rosenfeld, no capítulo “O Homem e a Técnica”, escla-
rece este ponto afirmando que é o animal e não o homem que se
encontra na “natureza”. O homem possui uma deficiência que é
seu grande trunfo: enquanto o animal reage aos estímulos, o ho-
mem age. Isso se deve a um hiato, a uma demora entre estímulo
e resposta que desloca o homem do mundo natural de estímulos
e reações:

Entre o estímulo e a reação surge um pequeno território de


dúvidas, um hiato de hesitação, comparação e escolha: hiato certa-
mente mortal em muitos casos em que o mesmo reflexo teria sido
mais exato e mais seguro do que a reflexão. Mas é através desse
hiato que o homem conquista o seu pequeno território de liberda-
de, isto é, de uma atuação não determinada por uma causalidade
exterior a ele, mas oriunda dele mesmo. É nesse território especi-
ficamente humano que se origina a ação que não é mera reação e
com isso a dom da técnica e da língua.18

Se havia, pois, em Bergson um desejo de simbiose entre sujei-


to e objeto, entre ouvinte e obra, isso seria para Rosenfeld a volta
à “inconsciência” reativa do animal, pois este

é incapaz de interpor entre si e o campo vital aquele hiato, aque-


la distância que transforma o conjunto de estímulos em situação
objetiva. Somente esta objetivação do ambiente dá àquele que ob-
jetiva a noção de ser um sujeito que enfrenta uma situação que lhe
propõe tarefas. Assim, o animal eternamente só tem ambiente e
nunca um mundo objetivo, vivendo colado dentro de um cir-
cuito de estímulos e reações.19

18. Anatol Rosenfeld. “O Homem e a Técnica”, in Texto e contexto II. São Paulo: Perspec-
tiva. 1993. p. 134.

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Eduardo Seincman 53

Chegamos no ponto oposto ao de Bergson: este acreditava no


absoluto, no estar colado à personagem para coincidir com ela “de
dentro”, já que sua “essência” não poderia ser percebida de fora
nem ser expressa por símbolos. Essa mudança de enfoque é funda-
mental para se pensar a comunicação:

Entre o nome e o objeto, entre o som da palavra e a situação,


interpõe-se a idéia ou representação deste objeto ou desta situação.
A idéia interposta abre aquele hiato entre o homem e a natureza
que permite ao homem emancipar-se do circuito imediato de estí-
mulos e reações e de objetivá-los. A simbolização, portanto, leva à
conquista de um território essencialmente humano. É por isso que
o homem pode falar, ligando sons ou palavras não a objetos, mas
a idéias de objetos. Em vez de reagir apenas à presença de objetos,
pode pensar sobre eles na sua ausência.20

A mesma defasagem entre estímulo e resposta ocorrerá na


música. Assim, no exemplo do Rondó em lá menor constatamos que
Mozart não apenas apresentou o estímulo de seqüências sonoras,
mas fez com que elas estabelecessem um contraponto com as ima-
gens das seqüências que nós, ouvintes, retivemos em nosso teatro
de memória. Esse deslocamento entre o “som soado” e suas “ima-
gens” deve-se a um hiato que abre espaço à reflexão, à imagina-
ção e à criação de expectativas.
Interpretada à luz dessas novas considerações, a descrição
inicial do mito da caverna, de Platão, pode ser útil. Sócrates diz
a Glauco:

Os homens estão no interior [da caverna] desde a infância,


acorrentados pelo pescoço, de modo que não podem mudar de
lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja diante de-
les. A luz lhes vem de um fogo que queima por detrás deles, ao
longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que
sobe. Imagine que esse caminho é cortado por um pequeno muro,

19. Anatol Rosenfeld. Op. cit., p. 136.


20. Idem, p. 137.

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54 Estética da Comunicação Musical

semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem


entre eles e o público, acima do qual manobram as marionetes e
apresentam o espetáculo.21

É de se perguntar por que teria Platão colocado seus homens


aguilhoados olhando fixamente para a “tela de projeção” do fun-
do da caverna. Primeiramente, era necessário que os homens
apreciassem o “espetáculo”, que será tanto de sombras quanto
de ecos, tomando-o por realidade. Mas, pode-se supor (ousando
talvez contradizer, aqui, o próprio Platão e seus intérpretes) que
o fato de os homens estarem acorrentados dos pés à cabeça é a
condição sine qua non de eles participarem do espetáculo, à certa
distância, sem se perderem no espetáculo. Isso implica que para
haver consciência, conhecimento e experiência estética tem de
haver algum impedimento, limitação ou, do contrário, corremos
o risco de nos perder no próprio evento, de adentrar o “absoluto”.
A empatia ou a “coincidência” com os atores à minha frente, que
Bergson tanto desejava, tem de ser um fingimento, uma artima-
nha: finjo estar na pele do outro e quando lá estiver colocar-me-
ei, de volta, na pele desse outro que sou eu. Só assim é que não me
perderei na performance. Só assim o responsável pela performan-
ce não se perderá em mim. Esse espaço que nos separa é o espaço
vazio da criação. Portanto, somos de fato, fingidores ou atores,
pois estamos constantemente atuando e ao mesmo tempo sofrendo
a ação do espetáculo.
Se para apreciar o espetáculo “de perto” o homem estava agui-
lhoado, mantendo assim “certa distância”, é porque aí mesmo já
houve compartilhamento entre o sensível e o inteligível. Sensibili-
dade e inteligibilidade não são nem um a priori nem um a posterio-
ri, pois juntos, conformam a experiência estética.
Quando Sócrates, em seguida, pede a Glauco que este supo-
nha que um dos homens, soltando-se, chega no lado de fora da
caverna, podemos imaginar então, que este homem, justamente
pelo fato de poder vislumbrar a situação anterior “do lado de

21. Platão. “Mito da Caverna”, livro VII de A república. Apud Danilo Marcondes. Textos
básicos de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 39.

Estética da Comunicação Musical 54 54 17/3/2008 18:07:51


Eduardo Seincman 55

fora” terá condições de refletir sobre o próprio espetáculo vivido


“no lado de dentro”. Ele terá ultrapassado, assim, o âmbito da po-
ética para adentrar o da estética. Estará vivenciando a “experiên-
cia da experiência”, ou seja, resgatando suas impressões ou ima-
gens do espetáculo anterior e as sobrepondo às reflexões atuais.
Goethe, colocando na voz de Fausto um comentário indireto da
alegoria da caverna de Platão, discute essa questão do sensível e
do inteligível, bem como a encruzilhada de ambos na tensão da
curva do arco-íris:

Fique então o sol às minhas costas! Olho para a cascata zunin-


do nos rochedos e sinto em mim um fascínio crescente. De queda
em queda, ela rola em mil torrentes barulhentas, espalhando bem
alto turbilhões de espuma. Mas com que esplendor nasce da tempes-
tade e se arma a curva do arco-íris, ao mesmo tempo fixa e cambian-
te, ora bem desenhada, ora esvaindo-se no ar, derramando ao redor
um perfume fresco de arrepio! Ela é a imagem do esforço humano.
Medita nisso e compreenderás: é a vida esse reflexo colorido.22

Em vez de se acostumar aos poucos com a luz do sol para en-


cará-lo de frente, aqui Fausto lhe dá as costas para poder apreciar
a luz que, refletindo-se na cascata, produz o arco-íris: um arco
que, simbolizando o espírito humano, reúne e faz a mediação en-
tre o sensível e o inteligível. Nossa “reflexão” provém portanto
desse “reflexo” indireto, pois, conforme Goethe,

O verdadeiro, que se identifica com o divino, não é direta-


mente apreensível; só podemos contemplá-lo em forma de reflexo,
exemplo, símbolo, em manifestações isoladas ou afins.23

Isolado, o mergulho no sensível não pode dar conta da expe-


riência estética. O mito de Narciso é exemplar nesse sentido, pois,
mirando-se no espelho cristalino da água, Narciso encontra-se no
absoluto, não pode se afastar de si, coincide consigo mesmo de

22. J. W. Goethe. Fausto. São Paulo: Círculo do Livro, s.d., p. 235.


23. J. W. Goethe. “Versuch einer Witterungs lehre” (1825), apud op. cit., p. 459.

Estética da Comunicação Musical 55 55 17/3/2008 18:07:51


56 Estética da Comunicação Musical

forma total. Daí o porquê de quando consultado por Liriope se seu


filho Narciso viveria muito, se teria uma velhice prolongada, Tiré-
sias ter respondido de forma enigmática: “Se não se conhecer”.24
Esse esquecimento de si na obra e o reflexo de si através
da obra são condição da experiência estética. Harald Weinrich,
analisando alguns dos episódios da Odisséia, de Homero, comen-
ta que “os piores e mais perigosos óbices ao retorno para casa, a ilha de
Ítaca, foram para Ulisses as múltiplas tentações de esquecimento a que
era exposto nas paradas em sua longa errância”.25
Isso ocorreu principalmente em três episódios: com os lotó-
fagos (comedores de lótus), a deusa Circe e a ninfa Calipso, todos
empenhados, igualmente, em provocar o esquecimento da vontade
de voltar. A intensidade da volta e o desejo de retornar a Pené-
lope estarão, portanto, diretamente ligados aos desvios de rota,
ao descentramento, ao deslocamento do objetivo principal. Mas
para que o objetivo de Ulisses se concretize, para que sua meta
seja atingida e adquira significação, esses esquecimentos locali-
zados são fundamentais. Ao contrário do poema “O Corvo”, de
Poe, em que o clímax era alcançado sem desvios através de uma
série de gradações, aqui encontramos outra possibilidade de dis-
curso: os esquecimentos localizados, a inclusão de parêntesis no
fluxo da narrativa, aumentam o desejo de alcançar a meta e, con-
seqüentemente, quanto mais expectativa, mais memória de futu-
ro. Constata-se um processo semelhante nas formas rondó, em
que a primeira seção contrastante (seção B) comporta-se como as
“tentações do esquecimento” a que Ulisses foi submetido. No caso
do Rondó em lá menor, de Mozart, para anular, ao menos momen-
taneamente, os efeitos da seção A e impor seus conteúdos, a seção
B torna-se uma longa digressão. Porém, como B desenvolve-se a
partir de alguns elementos extraídos da própria seção A, ela ao
mesmo tempo intensifica o desejo e a expectativa de um regresso
desta última. Assim, enquanto B está durando, A, como imagem,

24. Ovídio. “Narciso, Eco”, in: As metamorfoses. Rio de Janeiro: Ediouro, 1983, p. 58.
25. Harald Weinrich. Lete – arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 2001, p. 35.

Estética da Comunicação Musical 56 56 17/3/2008 18:07:51


Eduardo Seincman 57

se prenuncia. Quando, no entanto, isso ocorrer, quando A retor-


nar, seremos surpeendidos com o fato de nossas suposições terem
sido satisfeitas e com o fato de A ter retornado não mais como
imagem, mas enquanto duração, como som soado.
Outro episódio bastante ilustrativo, uma verdadeira alegoria
da experiência estética, é a do conhecido episódio das Sereias,
da “Rapsódia XII” da Odisséia. Observe-se a seqüência de cinco
trechos da narrativa:
Circe afirma a Ulisses:

Chegarás, primeiro, à região das Sereias, cuja voz encanta to-


dos os homens que delas se aproximam. Se alguém, sem dar por
isso, delas se avizinha e as escuta, nunca mais sua mulher nem seus
filhos pequeninos se reunirão em torno dele, pois que ficará cativo
do canto harmonioso das Sereias. Residem elas num prado, em
redor do qual se amontoam as ossadas de corpos em putrefação,
cujas peles se vão ressequindo. Prossegue adiante, sem parar; com
cera doce como mel amolecida tapa as orelhas de teus companhei-
ros, para que nenhum deles possa ouvi-las. Tu, se quiseres, ouve-as;
mas, que em tua nau ligeira te atem pés e mãos, estando tu direito,
ao mastro, por meio de cordas para que te seja dado experimentar
o prazer de ouvir a voz das Sereias.26

Ulisses fala a seus marinheiros:

Ordena ela [referindo-se a Circe] que, antes de mais nada,


evitemos as enfeitiçadoras Sereias, sua voz divinal e seu prado
florido; aconselha que só eu as ouça. Mas atai-me com laços bem
apertados, de sorte que permaneça imóvel, de pé, junto ao mastro,
ao qual deverei estar preso por cordas. Se vos pedir e ordenar que
me desligueis, apertai-me com maior número de laços.27

Ulisses comenta o ocorrido:

26. Homero. “Rapsódia XII” in: Odisséia. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 113.

Estética da Comunicação Musical 57 57 17/3/2008 18:07:51


58 Estética da Comunicação Musical

Com ela [cera amolecida] tapei as orelhas de todos os meus


companheiros, a cada um por sua vez. Eles me ligaram as mãos
e os pés, permanecendo eu direito junto ao mastro, ao qual me
ataram com cordas. Depois, sentados, continuaram ferindo com
os remos o alvacento mar. Quando já estávamos à distância de al-
guém, gritando, se fazer ouvir, redobraram de velocidade, mas a
nau que veloz singrava sobre as ondas e perto das Sereias não lhes
passou despercebida. Súbito, entoaram este harmonioso canto.28

As Sereias cantam:

Vem aqui, decantado Ulisses, ilustre glória dos Aqueus; detém


tua nau, para escutares nossa voz. Jamais alguém por aqui passou
em nau escura, que não ouvisse a voz de agradáveis sons que sai de
nossos lábios; depois afasta-se maravilhado e conhecedor de muitas
coisas, porque nós sabemos tudo quanto na extensa Tróade, Argivos
e Troianos sofreram por vontade dos deuses, bem como o que acon-
tece na nutrícia terra.29

Ulisses continua o relato do ocorrido:

Assim elas cantavam, e suas magníficas vozes inundavam-me


o coração com o desejo de as ouvir, de sorte que, com um movimen-
to das sobrancelhas, ordenei aos companheiros que me soltassem;
eles, porém, curvados sobre os remos, continuavam remando; mas
imediatamente Perímedes e Eurícolo, tendo-se levantado, prende-
ram-me com laços mais numerosos e os apertaram com mais força.
Depois que passamos as Sereias e não mais lhes ouvimos a voz nem
o canto, meus fiéis companheiros retiraram a cera, com que lhes
tapara os ouvidos, e libertaram-me das cordas.30

Olgária Mattos comenta esse episódio:

27. Homero. Op. cit, p. 114.


28. Idem, p. 115.
29. Idem, ibidem.

Estética da Comunicação Musical 58 58 17/3/2008 18:07:51


Eduardo Seincman 59

Ulisses pode desfrutar do canto porque transformou seu de-


sejo em espetáculo, devendo renunciar a seu sonho. Sob esse pon-
to de vista, a constituição de uma razão astuciosa, calculadora, é
contemporânea da renúncia de si. A viagem metafórica realizada
por Ulisses seria também aquela que a humanidade precisou reali-
zar partindo do mito até o desenvolvimento vitorioso da razão.31

Essa “razão astuciosa” é condição da experiência estética. Tal


como para os homens no fundo da caverna, a renúncia ao contato
direto com as Sereias é o que dá a Ulisses a possibilidade de comu-
nicação e transformação. Ulisses pode desfrutar do espetáculo sem
se perder no espetáculo: o distanciamento o aproxima, o mar que os
separa os une, o acorrentamento ao mastro o prende e o liberta. As
Sereias cantaram para Ulisses que após a experiência ele afastar-se-ia
maravilhado e conhecedor de muitas coisas. A renúncia ao contato
“definitivo”, o hiato assim formado, possibilitou a Ulisses aproximar-
se e distanciar-se, sofrer e deleitar-se, vivenciar a duração e desfrutar
a situação, esquecer e lembrar, enfim, compartilhar, comunicar-se.
O espetáculo, ao mesmo tempo que intensifica o esquecimento de
Penélope e da volta à Itaca, revigora o desejo de retorno. Memória
e esquecimento não são portanto conceitos abstratos ou meramente
intelectuais, mas físicos, pois Ulisses sofre na carne a dor da separa-
ção e o êxtase da comunhão.
Comentando essa questão, mas exemplificada pelo cinema,
Frederic Jameson observa:

Tudo isso para dizer que filmes são uma experiência física e
como tal são lembrados. Armazenados em sinapses corpóreas que
escapam à mente racional, Baudelaire e Proust mostram-nos como
as memórias são, na verdade, parte do corpo, mais próximas da dor
ou do paladar que da combinação das categorias de Kant; ou talvez
fosse melhor dizer que memórias são, acima de tudo, recordações
dos sentidos, pois são os sentidos que lembram, e não a “pessoa” ou

30. Homero. Op. cit., p. 115.


31 Olgária C. F. Matos. A escola de Frankfurt – luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo:
Moderna, 2001, p.47.

Estética da Comunicação Musical 59 59 17/3/2008 18:07:52


60 Estética da Comunicação Musical

a identidade pessoal. Isso pode acontecer com livros, se as palavras


forem suficientemente sensórias; mas sempre se dá com filmes,
quando já vimos muitos e, inesperadamente, revemos um.32

Ele apresenta, então, suas impressões de um filme soviético


que reviu após um intervalo de vinte anos:

Quando o vi novamente na semana passada, afloraram gestos


nítidos, que me haviam acompanhado todo esse tempo sem que eu
soubesse; meu primeiro pensamento – como pude esquecê-los? – é
seguido pela conclusão proustiana de que eles tiveram de ficar ig-
norados ou esquecidos para que assim pudessem ser lembrados.33

Apesar de concordar com o fato de a experiência ser inscrita


no corpo, ser uma marca que “esquecemos” a fim de resgatá-la de
acordo com o contexto atual, não creio que se possa afirmar que
a lembrança seja fruto apenas de uma “experiência física”, de uma
“sinapse corpórea” que escape à razão, pois a razão e a intelecção
estão igualmente inscritas no corpo. Vimos, no caso de Ulisses,
que não se pode separar a experiência sensível das “artimanhas”
da razão. Proximidade e distanciamento, memória e esquecimen-
to, sensibilidade e razão, síntese e duração, corpo e mente – to-
dos andam de mãos dadas, como bem salientou Anatol Rosenfeld
com relação ao teatro:

Tanto os atores como o público, no mais intenso êxtase de auto-


esquecimento, mantêm aberto um pequeno olho vigilante, reservan-
do-se uma margem de lucidez e de distância. Se Dionísio é o deus da
fusão e do abraço direto, Apolo é o deus da distância e da lucidez.34

Este pequeno olho vigilante, essa astúcia humana, já estavam


presentes em um mito fundante de nossa cultura. Assim, conta a
mitologia grega que Urano cobria Gaia continuamente:

32. Frederic Jameson. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995, pp. 1-2.
33. Idem, p. 2.

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Eduardo Seincman 61

Urano [Céu] está o tempo todo deitando-se sobre Gaia [Ter-


ra]. Urano primordial não tem outra atividade além da sexual.
Cobrir Gaia incessantemente, o mais possível: ele só pensa nisso,
e só faz isso. Então, essa pobre Terra acaba grávida de uma série
de filhos que não conseguem sair de seu ventre e aí continuam
alojados, aí mesmo onde Urano os concebeu. Como Céu nunca se
distancia da Terra, não há espaço entre eles que permita aos seus
filhos Titãs virem à luz e terem uma existência autônoma.35

Terra – inchada, comprimida, sufocada – está furiosa por re-


ter os Titãs em seu ventre. Ela concebe então um ardil engenho-
so: fabrica dentro de si uma foice (hárpe) e a dá ao caçula Crono.
Este, ficando à espreita, agarra as partes sexuais do pai e as corta,
separa finalmente Urano de Gaia, e cria o espaço-tempo:

Crono cumpre uma etapa fundamental no nascimento do


cosmo. Separa céu e terra. Cria entre o céu e a terra um espaço
livre: tudo o que a terra produzir, tudo o que os seres vivos en-
gendrarem, terá espaço para respirar, para viver. Assim o espaço
se desbloqueia, mas o tempo também se transforma. Enquanto
Urano pesava sobre Gaia, não havia gerações sucessivas, pois elas
ficavam ocultas dentro da criatura que as produzira. Quando Ura-
no se retira, os Titãs podem sair do colo materno e, por sua vez,
darem à luz. Inicia-se então uma sucessão de gerações.36

Do mesmo modo que Circe ensinou a Ulisses a artimanha


que lhe propiciou distanciamento vital e tempo para apreciação
do espetáculo das Sereias, o ardil de Gaia, dando a arma a Cro-
nos, possibilita a separação, o hiato vital para a presença da vida
e da sucessão, do espaço e do tempo.
Com o tempo, surge o princípio fundamental da alternân-
cia. Tal como o dia e a noite, a partir da ação de Cronos irão se

34. Anatol Rosenfeld, Prismas do teatro. São Paulo: Perspectiva, 1993, pp. 23-24.
35. Jean-Pierre Vernant. O universo, os deuses, os homens. São Paulo: Cia das Letras,
2005, p. 21.
36. Idem, p. 23.

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62 Estética da Comunicação Musical

alternar continuamente episódios de esquecimento e lembrança.


A cada mudança de estado projetaremos então imagens, quer do
que passou, quer do que virá, sobre os acontecimentos do presen-
te. Cria-se um estranhamento, pois, no próprio fluxo dos aconte-
cimentos, forma-se um hiato entre o que “deveria ser” ou “deveria
ter sido” e o que está sendo. É muito ilustrativa a visão de Dewey a
este respeito:

Há sempre uma lacuna entre o aqui e agora da interação di-


reta e as interações passadas cujo resultado adquirido constitui os
significados com os quais nós captamos e compreendemos o que
está ocorrendo agora. Devido a essa lacuna, toda percepção cons-
ciente envolve um risco, é uma aventura no desconhecido, pois en-
quanto assimila o presente ao passado, também traz à tona alguma
reconstrução do passado. Quando passado e presente se ajustam
entre si com toda exatidão, quando há apenas recorrência, com-
pleta uniformidade, a experiência resultante é rotineira e mecâni-
ca, ela não vem à consciência como percepção.37

Essa ótica teria deixado Santo Agostinho e seus seguidores es-


pantados, pois o que este filósofo denomina de “presente das coisas
presentes” não é para Dewey uma percepção, senão repetição, roti-
na, inconsciência. O que Dewey mostra é que para haver consciên-
cia não pode haver coincidência do presente com ele mesmo. Essa
lacuna do “aqui e não mais agora” ou do “agora e não mais aqui”,
esse desajuste ou deslocamento primordial, significa que entre o es-
tímulo e a resposta há um hiato a ser preenchido criativamente por
imagens, quer do passado, quer do futuro. Sem lacuna ou hiato, sem
a separação de Urano e Gaia, não há espaço nem tempo para a cria-
ção, invenção, imaginação e comunicação.
Mas será que esse hiato estará presente no mesmo grau e na
mesma forma em qualquer espécie de experiência estética? No caso
musical, haverá obras que propõem uma realidade mais “achatada”
como a de Urano sobre Gaia e outras que os separando ampliem a

37. John Dewey. Art as experience. New York: Penguin, 2005, p. 284.

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Eduardo Seincman 63

“profundidade de campo”? É bem provável. Para respondê-lo será


útil efetuar uma comparação entre dois universos sonoros distintos:
o Barroco e o Classicismo.
A música do Barroco trouxe à tona uma consciência de tem-
po. No entanto, que tempo? O tempo regular, pulsado, crono-
lógico: um tempo “exterior”, que vem de fora para dentro, um
tempo absoluto. O Classicismo, por sua vez, descobre o tempo
da consciência, o tempo da subjetividade atrelado aos processos
psíquicos envolvendo memória e esquecimento, condensação e
deslocamento. O Barroco, adotando um tempo mecânico, acaba
por valorizar os dados espaciais e priorizar a superfície textual
repleta de detalhes e ornamentações. Enfatiza, assim, a descrição,
a ponto de o espaço, totalmente preenchido, não ter praticamen-
te lacunas. As conseqüências disso em termos da comunicação?
Estaremos situados em uma espécie de eterno presente de des-
lumbramento com o detalhe, de encantamento com a descrição
minuciosa, com a observação e a constatação. Haverá um distan-
ciamento entre sujeito e objeto, pois com o mundo preenchido
nosso espaço de “intromissão” na obra fica mais restrito.
O Classicismo, por sua vez, descobre o mundo lacunar, perce-
be que a “falta”, a imprecisão, a distensão, abrem espaço e tempo
para a reflexão e crítica. A música do Classicismo, mais “simples”
e distendida que a do Barroco, alargará o tempo entre estímulo e
resposta, abrindo um hiato de “intromissão” em que os ouvintes
terão condições de refletir sobre os eventos no próprio curso da
obra. Os ouvintes terão a possibilidade de sobrepor as imagens do
passado e do futuro no fluxo musical e a música só terá sentido
pleno nessa co-autoria. Esse universo comunicacacional dá à luz a
uma “polifonia” de outra ordem, não mais a de um Bach em que
as vozes se encontravam sobrepostas de fato, textualmente. A polifo-
nia é agora “subtextual”: o texto musical que nesse exato momen-
to se desdobra remete a outros textos ou, ocupando seu lugar, diz
respeito a conteúdos implícitos. O que na música barroca era um
contraponto aparente entre as vozes melódicas torna-se, agora,
um diálogo latente entre a voz do texto e as imagens ou vozes do
ouvinte. O Classicismo apropria-se do passado e futuro, pois o
presente apenas sugere, é parcial. No Barroco, futuro e passado

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64 Estética da Comunicação Musical

eram mais previsíveis devido à maior semelhança entre o antes, o


agora e o depois.
O tempo adquire no Classicismo um sentido histórico, não
exatamente épico, mas sobretudo dramático. Ao contrário da for-
ma barroca que operava a partir da justaposição e conflito das
partes, a forma clássica adquire um caráter orgânico, um sentido
de evolução, de desenvolvimento, de elaboração, em que as partes
contêm em si o germe de seus futuros desdobramentos e se me-
tamorfoseiam umas nas outras. Assim, o passado não conta mais
porque é somente lembrança, mas porque de fato impregna e
toma parte das ocorrências do presente. As sínteses ou imagens do
passado tornam-se, assim, eixos sincrônicos que se superpõem aos
eixos diacrônicos da performance consubstanciando, com isso, as
expectativas ou imagens do futuro no presente. O presente, assim
deslocado das coisas presentes, torna-se tenso e denso, e na relação
da obra com o ouvinte este é transportado ora mais ao passado,
ora mais ao futuro, ou mesmo, em determinadas circunstâncias,
colocado em um estado de pura suspensão.
No Classicismo, forma e conteúdo são inseparáveis. Se Bach
podia permutar ou enxertar partes de sua música com outras ex-
traídas de contextos diversos, em Mozart ou em Haydn isso já não
é mais cabível: a forma manifesta um conteúdo que, por sua vez,
manifesta uma forma. Essa organicidade faz com que as formas
apresentadas “academicamente” pelos tratados teóricos sejam em
geral ocas, mera aparência exterior.
Essa imbricação entre forma e conteúdo é patente no poe-
ma “O Corvo” com o qual iniciamos este percurso: Poe adiou ao
máximo o aparecimento de sua estrofe “geradora” a fim de que
ela recebesse a maior carga possível de sentidos, transformando-
se ao mesmo tempo em clímax e síntese de todo o percurso. Do
mesmo modo, Homero, adiando o retorno de seu herói Ulisses,
faz com que o leitor experimente em sua própria pele a agonia da
separação e o prazer da proximidade de Ítaca e Penélope. Assim,
em ambos os casos, as estrofes e os episódios intermediários “des-
viantes” não foram mero devaneio ou preciosismo, mas, meios de
se colocar em ação o importante dispositivo da “conduta adiada”,
que promove não somente uma crescente tensão dialógica, mas
confere um sentido de direção ao conjunto da obra.

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Eduardo Seincman 65

É interessante pensar como estes dispositivos discursivos irão


se comportar no caso musical. Para tal, tomaremos como exem-
plo uma outra obra de Mozart: o início do “Allegro maestoso” da
Sonata em lá menor K. 310:

Mozart, Sonata K. V. 310, comps. 1-23.

Após a exposição do tema principal (compassos 1-8), inicia-


se uma longa transição composta de um “grupo frásico”: uma se-
qüência de três frases (comps. 9-11, 12-15, 16-19) acrescidas de
uma extensão cadencial (comps. 20-22). A primeira delas é muito
ambígua, pois aparentemente seria a repetição do antecedente

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66 Estética da Comunicação Musical

do tema principal, mas o comp. 12, com sua abrupta harmonia


de C7, arranca o ouvinte do solo firme para, no comp. 17, sugerir
então o campo harmônico de dó menor (através do simples mo-
5-6
vimento G 3-4 ) que se prolonga até o compasso 22. Toda essa mo-
vimentação para dó menor tem em vista atingir, de maneira pou-
co “comedida”, o dó maior do tema secundário (comps. 23 e ss.).
Portanto, essa longa transição adia a chegada do tema secundário
por quatorze compassos, ou seja, seis a mais que o próprio tema
principal. Todo este trecho poderia ser visto, então, como uma
anacruse do tema secundário (comp. 23) que partindo de C7 do
comp. 12 chega a uma extensão cadencial que, permanecendo
sobre as notas de dó menor conflita com o dó maior. Este, ao mes-
mo tempo em que confirma a resolução da dominante, também
surpreende porque se esperava o dó menor em seu lugar.
Contudo, além de ser um elemento de ligação rumo ao tema
secundário, essa transição tem também a característica de chamar
a atenção sobre si devido a sua riqueza interna: por um lado, três
frases apresentando texturas e regiões harmônicas distintas e, por
outro, uma relativa “unidade” melódica interna, já que a primeira
e terceira frases desenvolvem a célula básica do tema principal.
Muito mais instrutivo, no entanto, é o papel dos compassos
9-11 que possuem uma dupla identidade: enquanto os ouvimos,
pensamos tratar-se da repetição da frase inicial do tema principal
(comps. 1-3), pois ela é quase literal. Porém, o choque do compas-
so 12, com seu C7, faz com que revisemos esta hipótese e só então,
a posteriori, é que nos damos conta de que aquele trecho foi, na
verdade, o início da própria transição. Há, pois um deslocamento
entre aquilo que passa e o que já passou, mas quem o efetiva e
sente seus efeitos somos nós, seus ouvintes.
Assim, o Classicismo joga com esta ambigüidade de forma
magnífica, pois tem consciência e tira proveito do fato de haver
um hiato entre o estímulo sonoro e a sua resposta. É nesse hiato
que a consciência cria uma hipótese – “esta é a repetição da frase
inicial” – para, em seguida, derrubá-la – “pensei que fosse a repe-
tição da frase inicial, mas estava enganado”. Este trecho, enquanto
soava, era uma certeza absoluta, mas no momento em que parou
de soar tornou-se uma incerteza imediata e surgiu um paradoxo

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Eduardo Seincman 67

entre o ser e o não ser. Nesse exato momento em que ele já não
mais existia como som que dura tornou-se imagem instantânea do
passado. Enquanto durou era lembrança e quando cessou tornou-
se memória. Foi preciso cessar, ou melhor, ter sido interrompido,
para que sua realidade enquanto duração (tempo) se transformas-
se em imagem da duração (instante) e, como tal, localizável em nos-
so teatro da memória. A lembrança, podemos afirmar, se dá na
duração e a memória se dá no instante e tende a se comportar
como se fosse uma “intuição”.
O Romantismo irá levar esses procedimentos paradoxais, es-
sas duplas identidades, ao limite extremo. Porém, como ao mes-
mo tempo auxiliou a derrubar os antigos procedimentos técnicos
e prosódicos, pagará seu preço: o que uma vez foi ambigüidade
irá se tornar, cada vez mais, uma certeza. É o caso, por exem-
plo, de procedimentos como o cromatismo, a melodia infinita,
a modulação contínua etc. que, abusivamente utilizados pelos
compositores do final do século XIX, perderam grande parte de
seu efeito. Neste sentido, qualquer espécie de “classicismo” – e me
refiro, aqui, não a uma escola ou estilo, mas a uma atitude – é,
de certa maneira, “insuperável”, pois seus textos aceitam, em seu
próprio seio, o conflito e a convivência de elementos díspares,
que as poéticas mais “românticas” geralmente não aceitam. Com
relação às transições, veremos elas se tornarem, no Romantismo,
organismos independentes, autônomos, mas então o seu sentido
e sua função terão igualmente se transformado: teremos saído do
gênero “drama”, típico de todo Classicismo, para adentrar mais
propriamente na “lírica”. Retornaremos a esse assunto posterior-
mente, mas por ora retomemos o exemplo de Mozart. Há uma
diferença fundamental, por exemplo, entre a transição desta sona-
ta de Mozart e o episódio das Sereias vivido por Ulisses: se nesse
último houve um evento completo, com início, meio e fim, em Mo-
zart a transição é incompleta e de forma alguma auto-explicativa.
Mozart atua dramaticamente, pois ao distanciar o tema principal
do secundário, através de uma transição, leva a tensão harmônica
a um ápice: não porque tenha saído de lá menor e chegado em dó
maior (pois esta é uma das relações mais óbvias da música tonal
e especialmente das sonatas na tonalidade menor), mas porque,

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68 Estética da Comunicação Musical

distendendo ao máximo a transição, torna “doloroso” o percurso


que vai de um tema a outro. É uma trajetória comparável à do ho-
mem da caverna de Platão: a carga de significações por ter saído
da escuridão do fundo da caverna (“lá menor”) para a luz do Sol
(“dó maior”) será diretamente proporcional às dificuldades que
enfrentou em seu íngreme e sofrido percurso (“transição”). Tal
como na saída e na chegada do herói da caverna, a própria “insta-
bilidade” da transição no induz a apreender ambos os temas como
mais “estáveis”.
Se do Barroco ao Romantismo, passando pelo Classicismo,
houve a mudança de ênfase na Épica para a Lírica, passando pela
Dramática, será necessário, então, analisar mais profundamente as
implicações destes três gêneros para a comunicação musical, pois
como salientou Anatol Rosenfeld,

a maneira pela qual é comunicado o mundo imaginário pressupõe


certa atitude em face deste mundo ou, contrariamente, a atitude
exprime-se em certa maneira de comunicar. Nos gêneros manifes-
tam-se, sem dúvida, tipos diversos de imaginação e de atitudes em
face do mundo.38

Segundo Rosenfeld, os três gêneros – a Lírica, a Épica e a Dra-


mática – podem ser considerados quer em um sentido substantivo
quer adjetivo. Vejamos, primeiramente, o viés substantivo:

Pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na me-


dida em que nele não se cristalizarem personagens nítidos e em
que, ao contrário, uma voz central – quase sempre um “Eu” – nele
exprimir seu próprio estado de alma.39

No caso da música, esse gênero pode ser associado, por


exemplo, às peças curtas românticas da geração de 1840, tal como
encontradas em prelúdios, estudos, noturnos, mazurkas etc. “Fará
parte da Épica toda obra – poema ou não – de extensão maior, em

38. Anatol Rosenfeld. O teatro épico. São Paulo: São Paulo Editora, 1965, p. 5.
39. Idem, ibidem.

Estética da Comunicação Musical 68 68 17/3/2008 18:07:52


Eduardo Seincman 69

que o narrador apresentar personagens envolvidos em situações


e eventos.”40
No caso da música, podem-se incluir todas as chamadas “mú-
sicas de programa” do romantismo e pós-romantismo, que tive-
ram como principal precursora a Sinfonia fantástica, de Berlioz, li-
nha seguida por compositores que vão de Liszt a Richard Strauss.
“Pertencerá à Dramática toda obra dialogada em que atuarem
os próprios personagens sem serem, em geral, apresentados por
um narrador”.41 No caso da música, não se trata apenas da ópera,
mas, como vimos no caso de Mozart, de todas as obras cujo modo
de construção e abordagem se aproximam do Drama, ou seja,
em que os elementos melódicos, harmônicos, formais etc. atuam
como se fossem “personagens” em ação e em constante tensão
dialógica.
É importante, como salienta Rosenfeld, o fato de estes mes-
mos gêneros terem também acepções adjetivas:

A segunda acepção dos termos lírico, épico dramático, de


cunho adjetivo, refere-se a traços estilísticos de que uma obra pode
ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu gê-
nero (no sentido substantivo).42

Assim, podemos imaginar, por exemplo, um “noturno dra-


mático” de Chopin ou uma “ópera lírica”. Tais adjetivos assinalam
atitudes marcantes diante do mundo:

Há uma maneira dramática de ver o mundo, de concebê-lo


como dividido por antagonismos irreconciliáveis; há um modo
épico de contemplá-lo serenamente na sua vastidão imensa e múl-
tipla; pode-se vivê-lo liricamente, integrado no ritmo universal e
na atmosfera impalpável das estações.43

40. Anatol Rosenfeld. Op. cit., p. 5.


41. Idem, ibidem.
42. Idem p. 6.
43. Idem, p. 7.

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70 Estética da Comunicação Musical

Se os gêneros demonstram atitudes diferenciadas em face do


mundo, então, a música, dependendo do gênero, irá estabelecer e
proporcionar diferentes diretrizes para a comunicação. De modo
geral, serão estas as características para cada gênero:

Lírica – no poema, não há narrador nem personagem central


ou secundária. O Eu lírico (alma) está fundido (ou metamorfose-
ado) com o mundo. Não há, pois, distanciamento ou oposição su-
jeito/objeto, obra/ouvinte. As obras musicais incluídas nesses gê-
neros são propensas a ter, portanto, um assunto único (um tema,
um motivo, um caráter). Em geral, tais obras não possuirão seções
internas demasiadamente demarcadas e, em grande parte, serão
ambíguas quanto a seus fundamentos harmônicos. As rítmicas,
tais como nos prelúdios e estudos não terão grandes contrastes
internos e as melodias e/ou harmonias imbricar-se-ão de modo
a não se ter condições de delinear esquemas formais nítidos. Da
mesma forma que o poema, devido à dificuldade de se operar sín-
teses, as obras musicais estarão centradas em uma presentidade,
uma permanência à “margem” do fluir temporal. A sua tônica será
a brevidade a fim de que os efeitos não se diluam e os ouvintes não
se dispersem. Portanto, brevidade e intensidade, poesia e música,
andam, aqui, de mãos atadas. Se o poema assume um tempo rít-
mico e musical, a música, por sua vez, assume um caráter poético
e literário, e não raro, os compositores procuram suas inspirações
nos próprios poemas. Não ocorre aqui a “descrição”, pois as refe-
rências são em geral metafóricas e o espaço é o da auto-expressão,
do transbordamento de subjetividade.

Épica – ao contrário da Lírica, aqui existe um narrador, uma


espécie de “deus onisciente” que apresenta personagens em situa-
ções e acontecimentos. À exceção da cantata, do oratório ou mes-
mo da ópera, que adotam textos cantados ou falados, na música
instrumental não é muito musicalmente factível haver narração
propriamente dita; mas, como neste gênero os materiais apresen-
tados tendem a se comportar como entidades autônomas, haverá
de qualquer modo certo distanciamento entre o texto musical e
o ouvinte. Há, portanto, uma maior objetividade na Épica do que

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Eduardo Seincman 71

na Lírica: nesta, o universo narrado se emancipa do narrador. Na


música, os eventos (ou “cenas”) são dispostos em uma seqüência
narrativa sem haver, propriamente, a criação de uma estrutura
dramática subjacente, pois o Drama necessita de uma tensão dia-
lógica aqui inexistente. Pode, é claro, ocorrer o desenvolvimento
de idéias, mas ele estará subjugado pela seqüência e unidade nar-
rativas, como se dá, por exemplo, na Sinfonia fantástica, de Ber-
lioz. Não é raro haver algum elemento conectivo entre as cenas,
tal como nos Quadros em exposição, de Mussorgski. Tais narrativas
épicas, por vezes denominadas “música de programa”, criam situ-
ações que distanciam objeto e sujeito, mundo narrado e narrador.
Com isso, o horizonte do ouvinte se amplia e diversamente da Lí-
rica, situada em um eterno presente, ele poderá conceber a idéia
de passagem do tempo que, vindo do passado, percorre o presen-
te na direção do futuro. Será capaz, também, de formar imagens
do tempo transcorrido, as quais poderão se sobrepor ao presente.
Épica é, portanto, substancialidade (cada cena possui seus direitos)
e distensão no espaço-tempo. A música épica, com sua necessidade
de descrições, inclusive extra-musicais, tende a se utilizar de con-
teúdos simbólicos e metalingüísticos. Isso levou, principalmente
no Romantismo, ao emprego de novos dispositivos musicais como
a “idée fixe” de Berlioz e o “leitmotif” de Wagner, sempre com
a intenção de dotar um conjunto de notas de significações que
as “coisifiquem”, adquirindo conteúdos próprios “independentes”
do contexto. Se a Lírica possui uma função notadamente expressi-
va, na Épica a função é predominantemente comunicativa (no sen-
tido mais simples de comunicar “algo” a alguém). Nela, o tempo
deixa de ser subjetivo para ser objetivado. O ouvinte não mais se
confunde com a obra, como na Lírica, mas toma consciência de
sua condição de ouvinte; seu distanciamento confere-lhe a satis-
fação de sentir-se um observador da história, como se ele próprio
estivesse narrando as cenas que se lhe apresentam.

Dramática – tal como na Lírica, aqui também não há narra-


dor. A obra é fruto do diálogo de pessoas disfarçadas em persona-
gens. No caso da música, os temas, as modulações para diferen-
tes campos harmônicos e as várias partes de uma obra (como as
seções de um allegro-de-sonata) podem dialogar entre si como se

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72 Estética da Comunicação Musical

fossem personagens. Logicamente, o aspecto dramático não será


obrigatoriamente acompanhado de um diálogo “real” (por exem-
plo, polifônico), mas daquele que o ouvinte constrói no decorrer
da obra. Assim, tal como ocorre em muitas obras de Beethoven,
o drama se forma a partir das tensões do texto musical mediadas
por seus ouvintes que, sintetizando eventos do passado, os con-
trapõem às novas ocorrências do presente, gerando expectativas.
Como na Épica, há objetividade do mundo apresentado, mas cujo
grau de complexidade vai muito além da seqüência de “tableaux”
como na Épica. Aqui, as várias partes dialogam entre si criando
uma malha orgânica de relações, uma coerência interna da ação.
Impera, assim, o princípio da causalidade que é uma das grandes
contribuições do Classicismo musical para o desenvolvimento de
novos procedimentos comunicacionais.
A causalidade e a organicidade nasceram, grosso modo, com
os Quartetos op. 33, ou “Russos”, de Haydn e sua nova técnica de
“elaboração temática”: células motívicas são desenvolvidas a pon-
to de formarem novos materiais melódicos e temáticos. Um pri-
meiro tema da sonata poderá dar origem, portanto, ao segundo,
havendo assim unidade e conflito entre ambos. Um dos melhores
exemplos do emprego deste procedimento está na Quinta sinfonia,
de Beethoven, em que a célula inicial, como embrião ao mesmo
tempo melódico e harmônico, irá se desdobrar em todos os ma-
teriais subseqüentes até que estes, por sua vez, desemboquem na
própria célula inicial. Assim, também o drama musical obedece
às regras aristotélicas de causalidade.
Isso nos coloca diante de outra característica: o drama se
estabelece e se comporta como se fosse um mundo independente,
mas, na verdade, os ouvintes vestem a máscara das personagens
e o vivenciam de dentro, como se estivessem no próprio palco
dos acontecimentos. Se a Épica possui uma função comunicativa
e a Lírica uma função expressiva, a Dramática terá uma função
apelativa e dialógica: ela é primordialmente tensão, contraposição,
entrechoque. O drama tem de conquistar e dissuadir a fim de
haver participação. Ele não mais se situa em um presente intem-
poral, como na Lírica, mas em um presente que, efetuando ações
ancoradas no passado, mira constantemente o futuro. Portanto,

Estética da Comunicação Musical 72 72 17/3/2008 18:07:53


Eduardo Seincman 73

se na Épica o sentido do tempo era mais cronológico, seqüencial e


exteriorizado, agora ele é mais existencial e interiorizado, e nem
sempre suas expectações, suspenses e incertezas serão convenien-
temente resolvidos. Rosenfeld cita os comentários de Schiller a
esse respeito:

O dramaturgo “vive sob a categoria da causalidade” (cada


cena um elo no todo), o autor épico sob a da substancialidade:
cada momento tem seus direitos próprios. “A ação dramática
move-se diante de mim, mas sou eu que me movimento em tor-
no da ação épica que parece estar em repouso”. A razão disso é
evidente: naquela, tudo move-se em plena atualidade; nesta tudo
já aconteceu, é o narrador (e com ele o ouvinte ou leitor) que se
move, escolhendo os momentos a serem narrados.44

Isto se torna patente se compararmos, por exemplo, O Da-


núbio azul, de Johann Strauss II, com a sonata L’appassionata, de
Beethoven: no primeiro caso, trata-se de uma seqüência de val-
sas que poderiam estar, inclusive, em outra ordem sem alterar
seu conteúdo; no segundo, no entanto, cada parte é determinada
pela idéia do todo e este se efetiva pela interação dinâmica e or-
gânica das partes.
Logicamente, os três gêneros são apenas “idealtipos”. A dife-
renciação que Rosenfeld faz entre suas funções substantiva e adje-
tiva é importante para captar as nuanças de procedimentos. Pode
ocorrer, por exemplo, um trecho lírico no interior de um drama
ou um episódio épico no seio de uma seção de desenvolvimento
de uma sonata. Assim, quando se afirma que tal obra é de tal gê-
nero, isso revela somente uma tendência, mas, de qualquer forma,
auxilia a compreender a postura da obra diante do mundo e, ao
mesmo tempo, abre portas para a nossa entrada em seu próprio
mundo.
Alguns exemplos concretos poderão contribuir para a avalia-
ção desse tipo de abordagem:

44. Anatol Rosenfeld, op. cit., p. 21.

Estética da Comunicação Musical 73 73 17/3/2008 18:07:53


74 Estética da Comunicação Musical

Ives, Unanswered question, comps. 1-13.

Unanswered question (1908) de Charles Ives apresenta uma


grande independência de suas partes: nas cordas, em pianíssimo,
uma obra tonal (sol maior) e estática; no trompete, um motivo
melódico de cinco notas repetido “indefinidamente” e interca-
lado de silêncios “abismais”; nas quatro flautas, uma tentativa
cada vez mais desesperada, anárquica e “atonal” de diálogo com
o trompete.
A textura dos acordes ininterruptos da orquestra de cordas
impede que os ouvintes estabeleçam alguma “forma”, pois não
serão capazes de efetuar sínteses do passado e desvencilhar-se de
seu “eterno presente”, deste “fundo de eternidade”. Neste “abso-

Estética da Comunicação Musical 74 74 17/3/2008 18:07:53


Eduardo Seincman 75

luto” não há distanciamento, estamos colados a esta “durée” in-


forme. Suas características guardam muito da Lírica: não há dis-
tanciamento para haver “objetividade”; o texto não possui nem
começo nem fim, não há propriamente passagem do tempo; sua
realidade é metafísica, uma metáfora da eternidade que sempre
foi, é e será.
Mas as cordas não estão sozinhas: e, de quando em quando,
irrompe a sempiterna questão do trompete que, com seu motivo
melódico fora da tonalidade, interrompe e pontua. Se as cordas re-
presentam a durée, o trompete é o instante. Com a repetição pon-
tual, mas irregular, de sua “idée fixe”, o motivo do trompete se
torna uma espécie de personagem épica que tentará nos arrancar
e nos fazer esquecer do mundo transcendental das cordas. Mas,
assim que o trompete cai novamente no silêncio, vemo-nos nova-
mente diante da eternidade das cordas. É o trompete, portanto,
que dá forma ao que de início era informe, pois é ele quem intro-
duz a dialética do espaço e do tempo, da memória e do esqueci-
mento. Embora saibamos que o trompete retornará sempre com
a mesma célula, não sabemos quando, e isso imprime à obra uma
expectativa, uma ânsia de futuro.
Porém, trompete e cordas não estão sozinhos: se o primeiro
imprime um cunho épico ao contexto lírico, o quarteto de flau-
tas, por sua vez, tentando desesperadamente responder à eterna
questão do trompete, irá colocar um traço dramático ao seu per-
fil. Porém, como o trompete jamais se altera, veremos as flautas
passarem de uma atitude reflexiva de resposta a uma atitude cada
vez mais reativa e cada vez mais “atonal”. Tal como se deu em “O
Corvo” de Poe, em que as perguntas do Eu lírico eram sempre
respondidas, em vão, pelo eterno nevermore, as flautas tentam res-
ponder, em vão, à eterna questão do trompete. Portanto, não há
dialogismo propriamente dito, pois ambas as obras comunicam
a incomunicabilidade: em Anaswered question assistimos – e isso é
um traço épico – a um evento de camadas praticamente autôno-
mas, de um mundo sem saídas, de transcendentalidade acacha-
pante. Se isso lhe confere certo distanciamento mítico e épico, ao
mesmo tempo introduz uma ironia modernista em que o drama
está no fato de não poder haver um drama de fato.

Estética da Comunicação Musical 75 75 17/3/2008 18:07:53


76 Estética da Comunicação Musical

Se na forma sonata há exposição e desenvolvimento de per-


sonagens e situações em permanente tensão dialógica e dramáti-
ca, na qual situamo-nos no próprio palco dos acontecimentos, em
Ives, só há exposição sem quaisquer desenvolvimentos: tornamo-
nos espectadores distanciados movendo-se ao redor dos fatos que
parecem estar em um eterno presente.

Villa-Lobos, A lenda do caboclo, comps. 1-26.

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Eduardo Seincman 77

A lenda do caboclo, para piano, de Heitor Villa-Lobos apresen-


ta um caráter nostálgico e, conforme indicado na partitura, in-
dolente. O seu presente atrela-se a uma ânsia de passado ao qual
se deseja repetidamente retornar. A palavra lenda de seu título
é bastante significativa, pois traduz o sentimento de um mundo
que já não é mais o nosso: um mundo sertanejo, rural, “perdido”
no tempo, que expressaria a essência ou a alma pura e ingênua da
figura de um caboclo idealizado, essa mistura “idílica” do branco
com o índio.
Denominaremos de seção A o trecho que vai do início da
obra até o compasso 26.
Após uma longa e lânguida Introdução (comps. 1-15) dividi-
da em duas partes (parte a, 1-8; parte b, 9-15), e que já apresenta
a tonalidade menor de sol# eólio, surge o tema principal (comps.
16-23) com uma extensão cadencial (comps. 24-26) que repete os
comps. 13-15 da própria Introdução. Esta extensão cadencial, apa-
rentemente desimportante, é crucial: um indício de que a repeti-
ção e o movimento cíclico serão a tônica da obra. Mas, para isso, é
necessário um trecho contrastante para sair dessa indolência, pois
do contrário, o movimento cíclico não vingará. Surge, assim, uma
transição contundente:

Villa-Lobos, A lenda do caboclo, comps. 27-33.

Estética da Comunicação Musical 77 77 17/3/2008 18:07:53


78 Estética da Comunicação Musical

A transição torna-se “pentatônica” e sua progressão harmô-


nica atravessa os acordes de A b , Fm, E b até atingir uma mudança
abrupta nos compassos 31-32 que instauram o campo harmôni-
co de dó maior/lá menor através da progressão E b-D n no baixo.
Essa transição – devido ao motivo melódico/rítmico, à inclusão
dos acordes de 4as na mão direita e ao crescendo que vai progressiva-
mente de um mf a ff – é tão contundente que nos faz esquecer mo-
mentaneamente da primeira parte da peça (parte A) e nos coloca
na expectativa de algum novo estado, de um futuro que ainda não
se pode precisar. No entanto, para nossa surpresa, a transição nos
leva de volta ao próprio tema principal na mão esquerda, com a
importante ressalva de que agora ele foi modulado meio tom acima
(lá menor eólio). Sabemos que qualquer modulação implica alte-
ração formal e, de fato, aqui se inicia a seção B (comp.33) da obra.
Esse procedimento de voltar ao mesmo tema modulado é bastante
sagaz, pois o retorno “do mesmo que é um outro” colabora para o
sentido cíclico da obra.

Estética da Comunicação Musical 78 78 17/3/2008 18:07:54


Eduardo Seincman 79

Villa-Lobos, A lenda do caboclo, comps. 32-49.

Com bastante sutileza, Villa-Lobos, ao colocar o tema na


mão esquerda aproveita para fazê-lo com acordes em 1a inversão,
de modo que o acompanhamento da mão direita utiliza os mes-
mos intervalos de 4a da transição. Outro ponto importante é que
o tema principal, na seção A, era uma frase repetida, mas na seção
B ele se transforma em um período repetido perfazendo, então, um
total de 16 compassos (comps. 44-48). Não há dúvida: efetuando
uma total repetição interna e ocasionando, assim, um autocentra-
mento do tema principal, a seção B oblitera nossa memória da
seção A e de sua transição para B. Se no início da obra (comps.
14-26) a languidez e o clima nostálgico do tema eram enfatizados
pela nota pedal do fá # (sétimo grau de sol#), na seção B, o pedal
reaparece na tônica (lá), conferindo-lhe um caráter mais estático
e “fundamental”.
Eis que surge, então, a partir do comp. 49, uma nova transi-
ção (ou retransição):

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80 Estética da Comunicação Musical

Villa-Lobos, A lenda do caboclo, comps. 49-57.

Dentro do mesmo espírito cíclico, a progressão da linha do bai-


xo dessa transição é semelhante à da primeira transição, mas com o
campo harmônico em lá eólio. Porém desta vez seu desenho mistu-
ra os padrões rítmico-melódicos da Introdução com os da transição
anterior. Mais uma vez, a transição, chamando nossa atenção para
si mesma, alcança finalmente o acorde de si maior (comps. 54-56).
Trata-se de um acorde ambíguo: na Introdução, ele fora o elo para o
tema principal que começava na mesma nota si. Agora, no entanto,
verifica-se que o acorde de si maior tornou-se a Dominante através
da qual se reintroduz não o tema principal, mas a própria Introdu-
ção! Surge um paradoxo: afinal, a Introdução seria uma espécie de
acontecimento primordial e o tema principal uma espécie de coad-
juvante? A resposta a essa indagação só pode ser dada pela própria
música:

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Eduardo Seincman 81

Villa-Lobos, A lenda do caboclo, comps. 57 até o final.

Villa-Lobos encurta a reexposição da Introdução para seis


compassos (comps. 57-62), reexpõe literalmente todo o tema
principal (comps. 63-76) acrescido da mesma extensão que ele
recebera nos compassos 24-26, só que agora ampliada, para de-
sembocar... na própria Introdução! Agora sim, a Introdução fi-
nalmente cadencia no acorde de mi maior com a 5a no soprano, o
que ainda confere um último alento de indeterminação e infini-
tude a esta obra cíclica.
O eterno retorno dessa obra de Villa-Lobos é distinto daque-
le que ocorrera em Ives, pois apresenta a nostalgia de um tempo

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82 Estética da Comunicação Musical

distante, difícil de agarrar, um tempo mítico situado in illo tem-


pore. Este eterno debruçar-se sobre seus próprios materiais e as
ambigüidades e paradoxos apontados nos falam de uma “alma
do caboclo” que foi, é e sempre será. Tudo aquilo que deveria nos
conduzir à presença de um “outro” nos traz sempre de volta ao
“mesmo”. É impossível que nos separemos desse encantamento,
dessa visão de um Narciso que se mira no espelho do lago. Esse
fato, ao mesmo tempo que nos aproxima da obra por não poder-
mos sair de seu labirinto, nos distancia, porque sabemos tratar-se
de um ser autônomo. Daí a nostalgia: sentimento que não está em
lugar algum, mas entre estados. A forma “informe” da obra obede-
ce a esse emaranhado da visão cíclica e, em vez de nos esclarecer
fatos e “cenas”, nos leva a fundi-las, criando mais ambigüidades,
paradoxos e dúvidas do que soluções.
A opção do compositor por utilizar temas “folclóricos” – mes-
mo que ele próprio os tenha criado, como era seu costume – sem
violar a sua “pureza” e sua integridade contribui muito para o tô-
nus mítico da obra. É que, na realidade, o Modernismo tem duas
opções diante de si com relação ao material folclórico: manter ou
justapor temas “autóctones” conservando sua “inocência” ou sub-
metê-los à “crítica” distorcendo-os, fragmentando-os ou mesmo
parodiando-os. O Modernismo brasileiro, com seu viés naciona-
lista, certamente deu preferência à primeira opção enquanto, por
exemplo, um Stravinski optou pela segunda que, afinal, é mais
sarcástica e mais propensa ao grotesco. Qualquer que fosse, no
entanto, a opção, até em razão de negar o Romantismo, estaria
descartado submeter tais temas a qualquer espécie de elaboração
temática ou desenvolvimento, o que implicaria em construções
dramáticas de que o Modernismo tanto se esquivou. Suas opções
lhes abrem espaço para a Lírica ou a Épica, mas não para a Dra-
mática. É de se perguntar então se A lenda do caboclo seria uma
obra lírica com traços épicos ou um épico com traços líricos? É
uma discussão em aberto que não poderá ser respondida abstrata-
mente, pois dependerá da ótica e performance de seus intérpretes.

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Eduardo Seincman 83

Chopin, Prelúdio op. 28 no 4.

O Prelúdio op. 28 no 4, de Chopin, que é tão breve e tão econô-


mico em seus meios – sua melodia nada mais é que basicamente
uma frase repetida –, tem todas as características de uma obra lírica.
De fato, o Romantismo, através de suas “peças curtas” ou “caracte-
rísticas”, principalmente da geração de 1840, aspira à poesia e, de

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84 Estética da Comunicação Musical

fato, produz efeitos análogos àquela. Impera a poética do “máxi-


mo de efeitos com o mínimo de materiais”. Estas obras, quer sejam
de Beethoven, Schubert, Schumann ou Brahms, empregam mo-
dos de escrita do próprio Classicismo que são então “deformados”
por meio de deslocamentos e condensações espaço-temporais. A
comunicação musical se altera, pois estas obras colocam em sus-
pensão antigos parâmetros de escuta através devido à sua maneira
de lidar com as resoluções harmônicas, com as métricas e com as
próprias formas musicais. Muitas vezes, tais alterações são súbitas,
impetuosas, “dionisíacas” e, em outras, sutis, calculistas, “apolíne-
as”, como é o caso deste prelúdio de Chopin.
Sabemos que a frase é a unidade mínima de significado no
sistema tonal do Classicismo. Sua estrutura possui idealmente
quatro compassos e atrai para si todos os parâmetros musicais:
cadência harmônica e rítmica, estrutura melódica e motívica etc.
Em seu prelúdio, Chopin opta pelo emprego de um tema com-
posto de uma única frase repetida. Essa exigüidade, associada
à grande distensão melódica e harmônica, gera uma nova reali-
dade comunicacional: não havendo frases contrastantes, não há
criação de forma, não se efetuam de sínteses, não existe, enfim,
a possibilidade de um distanciamento “crítico”. O ouvinte “cola”
na matéria-prima sonora e experimenta os efeitos das mínimas al-
terações internas do texto. O ouvinte torna-se “um” com o texto,
sujeito e objeto fundem-se em uma espécie de “presente eterno”,
intemporal. Não há mais contornos definidos, o cromatismo inva-
de a melodia e a harmonia, não há objetividade, mas a proximida-
de de um mundo interior. Impera a intensidade expressiva.
Este prelúdio dura apenas o tempo necessário para apresen-
tar uma frase musical e, no momento em que esta fizer soar sua
última nota, a obra terá terminado. Porém, se uma frase repetida
teria classicamente oito compassos, aqui sua duração é triplicada,
prolongando-se por vinte e cinco compassos. É como se um teci-
do fosse esgarçado a ponto de perdermos a noção de seu conjunto
e adentrássemos suas fibras: assim, penetramos nas “entranhas”
melódicas e harmônicas do prelúdio com suas sutis transforma-
ções, havendo uma impressão geral de vaguidade e inconstância.
Com isso, as próprias forças do sistema tonal se diluem: embora

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Eduardo Seincman 85

ainda se utilize de acordes tonais, o prelúdio já não tem tanto


uma lógica harmônica calcada no ciclo de 5as, mas uma lógica me-
lódica e contrapontística que faz uso da contigüidade e vizinhan-
ça dos acordes e notas. É como se todo o texto fosse constituído
apenas de notas e acordes de passagem, onde tudo é trânsito, mu-
dança, e nada se estabelece em solo firme. É sintomática de todo
este processo a maneira pela qual Chopin finaliza o deslizamento
cromático sem, no entanto, perder o vigor da indeterminação e
da infinitude: a partir do compasso 21, o movimento cessa paula-
tinamente por meio da indicação de smorzando aliada à harmonia
que se dirige cromaticamente ao instável e ambíguo acorde de C7
(com o si b no baixo) do compasso 23. A grande interrogação des-
se acorde será, então, potencializada pelo silêncio “abissal” (pau-
sa com fermata) que se segue, um silêncio prenhe de dúvidas. Só,
então, na cadência final (comps. 24-25), quando o acorde de C7
permanece apenas como imagem na memória, é que iremos rein-
terpretá-lo como VI grau do mi menor final.
A finalidade contrapontística desta obra não é a de sobrepor
melodias polifônicas no sentido tradicional, mas de fazer desliza-
rem entre si duas camadas principais: a rarefeita melodia da mão
direita e a densa “melodia de acordes” da mão esquerda. Processo
semelhante ocorreu, como vimos, em Ananswered question, de Ives,
cujas camadas se tornaram praticamente eventos autônomos,
o que sem dúvida foi iniciado por Beethoven, mas explorado a
fundo por Chopin. Essas novas maneiras de conformar as obras
engendraram surpreendentes efeitos e formas de comunicabili-
dade e trouxeram à tona as incertezas de um novo mundo que já
se descortinava: o mundo da relatividade e da simultaneidade,
cujas conseqüências e desdobramentos se fariam sentir nas dife-
rentes e radicais poéticas do século XX. Contudo, os efeitos não
se restringiram apenas ao plano social ou estético, pois atuaram
também no da subjetividade, já que qualquer ruptura no plano
exterior das obras é geralmente acompanhado de outra no pla-
no interior. É por esse motivo que um diretor teatral como Sta-
nislavski fazia com seus atores adquirissem a capacidade de atuar
polifonicamente, isto é, falar o texto em um andamento, andar em
outro, gesticular em um terceiro e assim por diante. Só então, dizia

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86 Estética da Comunicação Musical

ele, o ator estaria apto, por exemplo, a interpretar um papel como


o de Hamlet e fazer com que a platéia sentisse as mesmas dúvidas
e contradições devidas aos deslocamentos e dilacerações internas
da personagem.
A música de Chopin se aproxima do limiar situado entre a
semanticidade e a assemanticidade, pois, na medida mesma em
que os cânones formais apolíneos vão sendo minados, prefigura-
se o “perigoso” terreno do informe, do atonal, do dionisíaco, que
irão apontar para Viena fim-de-século e para o conturbado século
XX. Grosso modo, o “figurativo” dará espaço ao “abstrato” e os
mecanismos psíquicos do inconsciente prevalecerão sobre o impé-
rio da razão. E, aqui, a obra de Chopin, como veremos adiante em
sua “Marcha Fúnebre” e no “Presto” da Sonata em si bemol menor,
revelará os limites entre a memória e o esquecimento, a vigília e o
sonho, o apolíneo e o dionisíaco, o imanente e o transcendente, o
material e o espiritual, o físico e o metafísico, o épico e o lírico, a
proximidade e o distanciamento, a música e o sonho. Mas, aqui, já
entramos em um assunto pertinente ao próximo capítulo.

Estética da Comunicação Musical 86 86 17/3/2008 18:07:55


Eduardo Seincman 87

Interlúdio
Entre a Música e o Sonho

Apesar de estar ainda amanhecendo, a


miragem nevoenta já estava presente. Aque-
la neblina que ressaltava algumas coisas e
borrava outras, pairava sobre o Golfo inteiro,
de modo que todas as imagens eram irreais
e não se podia crer na visão; de modo que
mar e terra possuíam as transparências e as
obscuridades de um sonho. Assim, pode ser
que o povo do Golfo acredite nas coisas do
espírito e da imaginação, mas não acreditam
em seus olhos para mostrar-lhes a distância, o
contorno nítido, ou qualquer exatidão ótica.
John Steinbeck, The Pearl

Seria válida a tentativa de relacionar música e sonho?


Outro dia, em meio a velhas pilhas de papéis, procurava a
partitura de uma obra musical quando, subitamente, me deparei
com um texto que escrevera em 1985 a respeito da relação entre
imagem e música no filme Vivre sa vie (1962) de Jean-Luc Godard.
Surpreendi-me com o fato de o primeiro parágrafo comentar, jus-
tamente, o estranhamento que certas configurações de imagem
e música nos causam e que poderiam estar associadas ao impacto
dos processos oníricos:

Estética da Comunicação Musical 87 87 17/3/2008 18:07:55


88 Estética da Comunicação Musical

Já nas primeiras imagens de Vivre sa vie, de Godard, algo


de estranho ocorre. É como se ouvíssemos, pela primeira vez, o
início da Primeira sinfonia de Beethoven que abre com a incerteza
questionadora de um acorde dissonante! A dissonância de Vivre sa
vie deve-se a uma combinação sui generis: na flauta, uma melodia
repetitiva entremeada de silêncios; na tela, em close-up, como em
um sonho, somente o rosto de Nana em vários ângulos.1

Recordei-me, então, de um texto de Yuri Tinianov2 a res-


peito da linguagem cinematográfica. Ele afirmava que pelo fato
de em um close-up o espectador não ter condições de estabelecer
correlações com qualquer outra imagem, não há propriamente a
noção de espaço e tempo. Mas não foi apenas isto o que me es-
pantou: dei-me conta de que aquele close-up era uma imagem es-
tranha, como de um sonho, não porque se distanciasse do “real”,
mas porque o distorcia, mostrava o rosto como um excesso de
realidade.
Li e reli meu texto como se fosse uma camada arqueoló-
gica arquivada em meio a uma pilha de papéis ou imagens no
teatro de minha memória. Percebi, então, que a razão de meu
espanto se deu pelo fato de me deparar com um texto que, em-
bora lapidado anteriormente, tornara-se, agora, estranhamente
“inédito”. Relia, com os olhos de hoje, um texto dos tempos idos,
consubstanciando, assim, a presença de um passado no presen-
te. Presente e passado, quando sobrepostos, são estranhamente
semelhantes e diversos, pois sua defasagem ao mesmo tempo os
aproxima e os distancia.
Mas, seria apenas esse o motivo de meu espanto? Não. Espan-
tei-me com o fato de um texto antigo tornar-se novo e dialogar,
portanto, consigo mesmo.
Não será isso, exatamente, o que ocorre na comunicação
musical? Ao ouvirmos e esquecermos, ao encontrarmos e perder-

1. A música do filme é de Michel Legrand; a personagem Nana é interpretada por Anna


Karina.
2. “Fundamentos del Cine” in: Miguel Balbatua (org.). Cine sovietico de vanguardia – teoria
y lenguaje, Madrid: Albertocorazon, 1971.

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Eduardo Seincman 89

mos, não estaremos mantendo a novidade daquilo que já não é


mais novo? Portanto, eu relia meu texto e reencontrava a imagem
instantânea daquele close-up que estivera “fora do tempo”. Havia,
ali, algo de indizivelmente semelhante e diferente, aquele mesmo
prazer de olhar e ficar extasiado.
A questão transcendia o filme e eu me perguntava: não ocor-
re o mesmo com a música? O mesmo não vale para os sonhos? O
que faz da comunicação algo tão singular e espantoso? Recordei-
me, então, de um pequeno trecho de Narciso e Goldmund, de Her-
mann Hesse, que me impressionara:

Dentro deste pensamento, alguma coisa definia-se para ele,


isto é: o motivo porque muitas obras de arte, embora perfeitas e
muito bem executadas, apesar de possuidoras de uma beleza, não
lhe agradarem em absoluto ou parecerem-lhe monótonas e quase
odiosas. Oficinas, igrejas e palácios estavam repletos dessas obras
de arte fatais; ele próprio contribuíra para a execução de algumas
delas. Eram tão fortemente decepcionantes, porque provocavam o
desejo do mais sublime e não o realizavam; porque faltava-lhes o
principal: o mistério. Aí está o que o sonho e a obra artística mais
perfeita possuem em comum: o mistério.3

O mistério é, simultaneamente, presença e ausência: só é


quando se oculta. Se o desvendamos, deixa de ser. Desvelar o mis-
tério de uma obra é dessacralizá-la, tirar o que ela possui de mais
valioso e que a ela nos ligou incontinenti. Se agora resgato um so-
nho ou uma música em meu teatro da memória é porque naquele
presente do passado eles me marcaram deixando impressões, e
suas imagens (não eles mesmos) é que me aparecem instantanea-
mente como lembrança. Sem esse espanto primordial, não have-
ria imagem. Mas, por ser a imagem do que me espantara, então,
deve ser esquecida ou do contrário viverei apenas no mundo da
imaginação. Mas porque foi esquecida, a imagem pode ser resga-
tada e logicamente, com ela, o efeito de seu espanto primordial.

3. Hermann Hesse. Narciso e Goldmund. Rio de Janeiro: Record, s.d., 9a ed., p. 179.

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90 Estética da Comunicação Musical

Se algo é misterioso, se é digno desta qualificação, então é


infinito, polissêmico, multidimensional: quanto mais nos embre-
nharmos em seu universo infindável de sentidos, mais sentidos,
dissimuladamente, irão se descortinar. Estaria o mistério imbrica-
do no ser da música e do sonho? Freud comenta que os sonhos

são produtos de nossa própria atividade mental. Não obstante, o


sonho acabado nos deixa a impressão de algo estranho a nós. Esta-
mos tão pouco obrigados a reconhecer nossa responsabilidade por
ele, que somos tão aptos a dizer mit hat geträumt (“tive um sonho”,
literalmente “um sonho veio a mim”), quanto ich habe geträumt (“so-
nhei”). Qual a origem desse sentimento de que os sonhos são estranhos a
nossa mente? [...] a estranheza não pode ser causada pelo material
que penetra no conteúdo deles, uma vez que esse material, em sua
maior parte, é comum aos sonhos e à vida de vigília. Surge a ques-
tão de determinar se, nos sonhos, não haverá modificações nos
processos da mente que produzam a impressão ora examinada.4

Eu sonho, um sonho vem a mim; enquanto toco uma música,


sou por ela tocado. Estamos na presença de um binômio funda-
mental: o que toco me é tocado. Comunico-me, portanto sou um
duplo: sou sujeito de um objeto e estou sujeito a um objeto; sou
presença dele e ausência de mim; sou ausência dele e presença de
mim; não sou sem ele, e ele não é sem mim. Temos a ilusão de que
o sonho e a música seriam realidades autônomas, independentes
e objetivas. Mas se sujeitamos o objeto e a ele nos sujeitamos, é
porque somos sujeito e objeto, atuamos e sofremos as ações. Não
existe comunicação sem essa tensão primordial, sem essa substi-
tuição contínua de posições, sem essa mútua criação: eu crio e
doto de sentidos um objeto que me recria e me dá sentido.
A mesma pergunta de Freud em relação aos sonhos valeria
para a música: “qual a origem desse sentimento de que a música
é estranha à nossa mente?” Ela é fruto de nossa própria atividade
mental e, mesmo assim, ela nos surpreende, mesmo que já a co-

4. Sigmund Freud. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1988, p. 78 (grifos
meus).

Estética da Comunicação Musical 90 90 17/3/2008 18:07:55


Eduardo Seincman 91

nheçamos. A matéria-prima de qualquer obra – harmônica, meló-


dica, rítmica – não é, em última análise, diversa das que formam o
repertório musical. Porque, então, a novidade e o espanto?
Gradual e ardilosamente, vão surgindo várias questões. Qual
é o objeto da música? Qual é a sua essência, o seu percurso? Onde
está esse algo “além”, esse mistério? Haveria algo de onírico na
música e de musical no sonho? Seriam ambos um meio de acesso
a “outra” realidade? E, nesse caso, colocariam em questão, em
suspensão, a realidade cotidiana?
A esse respeito George Steiner comenta:

Para a maioria dos seres humanos a música traz momentos


de experiência tão perfeitos, tão penetrantes quanto qualquer um
que possam sentir. Em tais momentos, a proximidade, a recorda-
ção, a antecipação, estão amiúde inextricavelmente fundidos. A
música penetra no corpo e no espírito em vários e simultâneos
níveis, aos quais classificações como “nervoso”, “cerebral”, “somáti-
co”, se aplicam de um modo muito apressado. A música pode soar
em sonhos. Pode furtar-se a uma evocação exata mas deixar atrás
de si uma intricada espectralidade, uma tensão e traços sensíveis
de movimento que se assemelham, mais ou menos precisamente,
ao acorde ou harmonia, ou às relações tonais, passadas. A música
pode, não menos violentamente que a droga, afetar o nosso estado
mental e físico, os fios minuciosamente entretecidos da disposição
e da postura corporal que, a todo momento, definem a identidade.
A música pode tonificar ou entorpecer; pode incitar ou acalmar.
Pode levar às lágrimas ou, misteriosamente, desencadear o riso ou,
ainda mais misteriosamente, levar-nos a sorrir no que se asseme-
lharia a uma leveza singular, um júbilo mercurial do espírito tão
centralmente enraizado em nós como o próprio pensamento. Sou-
bemos desde Pitágoras que a música pode curar, e desde Platão
que há na música poderes que podem literalmente enlouquecer. A
melodia, escreve Lévi-Strauss, é o mystère suprème da humanidade
do homem. Mas o que é?
É a melodia o ser da música, ou o tom, ou o timbre, ou as re-
lações dinâmicas entre o som e a pausa? Podemos dizer que o ser
da música consiste nas vibrações transmitidas da corda vibrante ou

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92 Estética da Comunicação Musical

flauta ao tímpano do ouvido? Deve a sua existência encontrar-se


nas notas, mesmo se nunca são tocadas? (que estatuto ontológico
concebível têm as “unheard melodies” de Keats?) A ciência acústi-
ca moderna e os seus sintetizadores eletrônicos são capazes de de-
cifrar e depois reproduzir qualquer som, ou combinação de sons,
com uma precisão total. Pode tal análise e reprodução equacionar-
se, ou até exaurir, o ser da música? Onde é que, no fenômeno “mú-
sica”, localizamos as energias que podem transmutar a estrutura
da consciência humana em ouvinte e executante?
A resposta escapa-nos. Normalmente, recorremos à descrição
metafórica. Sempre que é possível, consignamos a resposta tanto às
complexidades técnicas como ao limbo do que é óbvio. Contudo,
sabemos que a música é. Sabemo-lo no labirinto ecoante de nosso
espírito e na medula dos nossos ossos. Estamos a par de sua histó-
ria. Atribuímos-lhe uma imensidade de significado. Isto é absolu-
tamente capital. A música significa, mesmo quando, especialmente
quando, não há nenhum modo de parafrasear este significado, de
o reexpressar de um modo alternativo qualquer, de o passar a pa-
pel, lexical ou formalmente. “O que é então a música?”, pergunta
o questionador fictício de outro planeta. Nessa altura cantaríamos
uma melodia ou trautearíamos um trecho de uma composição e
diríamos, sem hesitar: “Isto é música”. Se ele perguntasse a seguir,
“O que é que significa?”, a resposta estaria aí, de modo avassala-
dor, no nosso interior, mas demasiadamente difícil de articular
externamente. Tendo-lhe sido feita exatamente esta pergunta em
relação a uma das suas composições, Schumann tocou-a de novo.
Na música, o ser e o significado são inextricáveis. Proíbem a pará-
frase. Mas são, e a nossa experiência desta “essencialidade” é tão
certa como qualquer outra do conhecimento humano. 5

A música e o sonho não permitem a paráfrase e a tradução.


Eles são o que são. Mas não são sozinhos. Suas significações se es-
tabelecem na comunicação que estabelecemos com eles. A essên-
cia da comunicação é, portanto, relação, compartilhamento. O

5. George Steiner. Heidegger. Lisboa: Dom Quixote, 1990. pp. 45-46.

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Eduardo Seincman 93

objeto necessita de mim para que eu preencha sua incompletude,


e ele fará o mesmo por mim.
É um processo que se dá em qualquer posição ou função,
seja do criador, do intérprete, do ouvinte, já que cada um destes
cumprirá todas as funções. Todos lapidam suas matérias-primas
objetivando-as e, conforme o fazem, saem transformados, pois a
matéria lapidada sugere procedimentos que eles sequer imagina-
vam. Bergson nos apresenta um exemplo deste processo:

O retrato acabado explica-se pela fisionomia do modelo, pelo


temperamento do artista, pelas cores combinadas na paleta; mas,
mesmo com o conhecimento daquilo que o explica, ninguém,
nem mesmo o artista, teria podido prever exatamente o que seria
o retrato, porque prever teria sido produzi-lo antes que ele fos-
se produzido, hipótese absurda que se destrói por si mesma. O
mesmo acontece quanto aos momentos de nossa vida, dos quais
somos artesãos. Cada um deles é uma espécie de criação. E do
mesmo modo como o talento do pintor se forma ou se deforma,
modificando-se, em ambos os casos, sob a própria influência das
obras que ele produz, cada um de nossos estados, ao mesmo tem-
po que sai de nós, modifica nossa pessoa, constituindo a forma
que acabamos de adquirir por nós mesmos. Estamos pois certos ao
dizer que aquilo que fazemos depende do que somos; mas impõe-
se acrescentar que somos, até certo ponto, o que fazemos, e que
criamo-nos a nós mesmos continuamente.6

Isso posto, verifica-se que quaisquer tentativas de efetuar


uma análise dos processos de comunicação artística que separem
objeto e sujeito, forma e conteúdo, como realidades autônomas
ou como entidades relacionadas univocamente, levarão a alguma
forma de reducionismo ou mecanicismo. Assim, a teoria objetivis-
ta e formalista, de um lado, e as subjetivista e conteudista, de ou-
tro, mostraram seus dilemas. O idealismo romântico, partidário
da segunda, apelava para o indizível e para figura do gênio:

6. Henri Bergson. A evolução criadora. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, pp. 17-18.

Estética da Comunicação Musical 93 93 17/3/2008 18:07:55


94 Estética da Comunicação Musical

O compositor revela a essência mais íntima do mundo e a


mais profunda sabedoria em uma linguagem incompreensível à
sua razão; assim como um sonâmbulo magnético fornece informa-
ções sobre coisas, de que em vigília não possui noção alguma.7

Já no século XX, alguns teóricos tentaram superar o dilema


entre formalismo e conteudismo apelando para o consciente e o
inconsciente freudianos:

Uma análise profunda deverá se desviar das estruturas cons-


cientemente “compostas” da pintura para se deter nos traços apa-
rentemente casuais, escondidos nas formas inarticuladas da “cali-
grafia” artística. Ela prestará menos atenção à passagem de tons
articulados de uma melodia que possui um movimento rítmico
cadenciado do que às inflexões aparentemente casuais do glissan-
do ou do vibrato, ou às leves distorções de ritmo e intensidade que
desafinam a nota musical e são deixadas à execução aparentemen-
te “arbitrária” do artista.8

Na realidade, o próprio Freud já criticara ambas as posturas,


pois ponderou que a tentativa de abordar a questão dos sonhos
seria absurda se eles fossem ou tão “profundos”, a ponto de seus
conteúdos se tornarem inatingíveis, ou “destituídos de sentido”,
constituindo-se em meras improvisações ou devaneios formais.
Não sem uma ponta de ironia, afirmou:

O sonhar tem sido muitas vezes comparado com os dez dedos


de um homem que nada sabe de música deslocando-se ao acaso
sobre as teclas de um piano; e esse símile mostra, melhor do que
qualquer outra coisa, o tipo de opinião que, geralmente, fazem do
sonhar os representantes das ciências exatas. Sob esse prisma, o
sonho é algo total e completamente impossível de interpretar, pois

7. Arthur Schopenhauer. “O mundo como vontade e representação (III PARTE)”, in


Schopenhauer. Sel. e trad. Wolfgang Leo Mar, Nova Cultural, São Paulo, 1988. p.76.
8. Anton Ehrenzweig. Psicanálise da percepção artística – uma introdução à teoria da percepção
inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 43.

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Eduardo Seincman 95

como poderiam os dez dedos de alguém que não soubesse música


produzir uma peça musical? 9

* * *

Se no princípio perguntamos se seria válida a tentativa de re-


lacionar música e sonho, pode-se agora questionar a possibilida-
de de traçar paralelos entre ambos. Haverá mecanismos comuns?
Haverá processos similares de construção e elaboração?
O fato de aceitarmos a veracidade do sonho enquanto sonha-
mos, é indubitável. Só podemos dizer que estivemos sonhando
depois que o sonho ocorreu. Enquanto perdura, o sonho é. Do
mesmo modo, enquanto ouço uma música, ela é. Sua veracidade
é incontestável. Mas, eis que, no interior do próprio sonho ou da
música, as “verdades” em que me fizeram crer são subitamente
contraditas ou renegadas a um plano secundário. Reajo com es-
panto, sou obrigado a me refazer e a rever minhas convicções até
aquele momento. Isso denota algo essencial: a capacidade, tanto
do sonho quanto da música, de apresentarem uma idéia, dramati-
zá-la, nos convencerem e, então, sem a mínima consideração, afir-
marem exatamente o oposto do que esperávamos. Também são
hábeis em mostrar uma realidade para, em seguida, apresentá-la
transmutada, distorcida, deslocada, condensada e até transfigu-
rada, trazendo, com isso, não apenas a idéia de crítica e ironia,
mas do próprio grotesco.
A música e o sonho não valorizam, pois, nossa lógica habi-
tual de pensamento: temos de jogar seus jogos e conviver com
suas ambigüidades, contradições, expectativas, inquietações que
apontam para um universo de outra ordem e dimensão. Suas ver-
dades não são “universais”, porém cada obra ou sonho é um uni-
verso apresentando a veracidade de sua própria lógica de conca-
tenação e articulação dos fatos. A experiência estética não corre,
pois, em águas tranqüilas porque, além da tensão dialógica entre
sujeito e objeto, ocorre aquela que se dá entre uma obra especí-
fica e as demais obras para as quais, explicita ou implicitamente,

9. Sigmund Freud, op. cit., pp. 103-104.

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96 Estética da Comunicação Musical

suas antenas apontam, o que depende, é claro, dos contextos his-


tóricos e culturais em que se inserem.
A comunicação é, portanto, tensão entre eixos diacrônicos
e sincrônicos, entre textos e contextos. A obra musical joga com
nossa resistência em aceitar novos dados, novas realidades, e nós
transferimo-lhes nossa carga de experiências e significações. Esta
relação de feedback é incessante, pois há um contraponto per-
manente entre as ocorrências de nossa imaginação ocasionadas
pelos fatos e as ocorrências de fato: somos surpreendidos porque
nossas previsões falharam ou porque foram estranhamente cer-
teiras. Damo-nos conta de que “a recusa em admitir o erro vem
do temor de reconhecer que, por muito tempo, acreditamos no
que era falso”.10

* * *

Uma última questão: poderia a música, como nos sonhos,


alucinar? Poderia ela nos arrancar do estado de vigília para aden-
trar um estado onírico, ou mesmo de transcendência do mundo
material? Haveria algum exemplo musical que se aproximasse mi-
nimamente desses estados?
Uma resposta possível é dada pela audição do terceiro e
quarto movimentos da Sonata em si bemol menor, op. 35 (1837-1839)
de Chopin:

3. Marche Funèbre. Lento – attaca:


4. Finale. Presto.

Em relação aos dois movimentos, podemos questionar:

• Marcha fúnebre: existirá algo mais material, terreno, obsessi-


vo, pesado, sombrio, lúgubre, imanente, humano, formal e
melancólico?

10. Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. “Schopenhauer e o Inconsciente” in: Felícia
Knobloch. O inconsciente - várias leituras, São Paulo: Escuta, 1991, p. 23.

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Eduardo Seincman 97

• Finale: existirá algo mais indelével, onírico, leve, imaterial,


transcendente, abstrato, inumano e destituído de dor?

Milan Kundera comentou a relação entre ambos:

Admiro [...] a sonata de Chopin, aquela cujo terceiro movi-


mento é a marcha fúnebre. Que mais se poderia dizer depois desse
grande adeus? Terminar a sonata, como de hábito, com um rondó
vibrante? Mesmo Beethoven em sua sonata op. 26 não escapa a
esse estereótipo quando faz seguir a marcha fúnebre (que também
é o terceiro movimento) de um final alegre. O quarto movimento
na sonata de Chopin é totalmente estranho: pianíssimo, rápido,
breve, sem nenhuma melodia, absolutamente não-sentimental:
uma borrasca longínqua, um ruído surdo anunciando o esqueci-
mento definitivo. A proximidade desses dois movimentos (senti-
mental – não-sentimental) nos causa um aperto na garganta. É
absolutamente original.11

O segredo da relação entre os dois movimentos se concen-


tra na própria indicação “attaca” presente na “Marcha Fúnebre”.
Não se pode nem ao menos dizer a que gênero corresponderia o
último movimento, esta “borrasca longínqua”. Mesmo que suas ca-
racterísticas aproximem-na do gênero lírico, trata-se, como disse
Kundera, de um “esquecimento definitivo” e, portanto, inclassifi-
cável. Mas a palavra “attaca” que o precede mostra que ele não está
sozinho e não possuiria o efeito que tem não fosse a pesadez ob-
sessiva e as repetições da “idée fixe” da marcha fúnebre. Também
careceria de sentido se não tivesse conseguido ultrapassar a pró-
pria transcendência a que o Trio daquele movimento levou. Certa-
mente, o próprio Chopin sofreu demais com a Marcha: como sair
daquele “moto perpétuo” de um tema fúnebre que recai sobre si
mesmo indefinidamente? E depois, como escapar das delícias do
caráter edênico do Trio? Não é à toa que Chopin, a fim de retor-
nar ao tema da marcha, o faz de maneira abrupta, pois, dada sua

11. Milan Kundera. A arte do romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, pp. 81-82.

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98 Estética da Comunicação Musical

potência, não existe outra forma de abandonar o Trio. Como se


não bastasse, eis que Chopin “attaca” o Presto. Poder-se-ia até su-
por que se trata não de um novo movimento, mas de um segundo
Trio da marcha fúnebre! Contudo, não poderá sê-lo, pois como
salientou Kundera, nada lhe pode sobrevir, quem dirá voltar ao
tema da marcha fúnebre! Só mesmo a potência de um gesto tão
abstrato, informe, não-repetitivo e dissonante desse Presto pode-
ria nos fazer esquecer de um movimento tão figurativo, formal e
obsessivo de uma marcha que fez de tudo para ser lembrada. Por
isso, a obra não pode terminar: o Presto, enquanto esquecimen-
to definitivo, já não é mais propriamente música, mas um sonho
que não se faz lembrar, que recai na ausência, no inacabado, no
silêncio absoluto.
O “nó na garganta” a que se refere Kundera é fruto deste
mistério que só a música pode sonhar e só o sonho pode tocar.

* * *

Em tempo:

• Mendelssohn considerava essa sonata detestável. Schumann


perguntava-se como poderia legitimamente se chamar aqui-
lo de “sonata” se o compositor amarrou juntas quatro de suas
mais bizarras criações? Embora não o aceitasse, referiu-se
ao enigmático caráter do último movimento como sendo de
“uma esfinge sorrindo ironicamente”.
• O movimento da “Marcha Fúnebre” é não apenas o centro
poético da obra, mas seu verdadeiro ponto de partida (é de
1837 e os demais movimentos de 1839). E, da mesma forma
que a estrofe “geradora” de Poe, Chopin adia a sua entrada
para o terceiro movimento que irá tornar-se o grande eixo
dramático da obra.
• Como podem dois movimentos ser um e um movimento ser
dois? Há uma polaridade que os associa e ao mesmo tempo
os confronta: oposição e integração.

Mas esse é o assunto que nos levará ao próximo capítulo.

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Eduardo Seincman 99

CHEKHOV E BRAHMS
Entre o Drama e a Música

A música e o teatro possuem mais afinidades do que a mera


exploração de temáticas em comum. Descartando-se o fato de os
textos dramáticos terem servido de inspiração aos compositores
ou de a música ter um papel essencial no palco dos teatros, há
uma outra espécie de sintonia, já que ambos devem comunicar-se
levando em conta que suas ações vinculam-se a um fluxo espaço-
temporal e que obedecem, portanto, a processos discursivos seme-
lhantes. Além do exemplo óbvio da ópera (que une texto, música
e mise-en-scène), a música pura, devido a suas qualidades discursivas
desvinculadas do uso obrigatório da palavra, acabou servindo de
exemplo de composição narrativa e dramática aos próprios dire-
tores teatrais. É o caso de Michael Chekhov, que inicia o capítulo
“Composição do Desempenho”, de seu livro Para o ator 1, com a
seguinte epigrafe: “Cada arte esforça-se constantemente para asse-
melhar-se à música” (W. Paret). Antes, porém, de efetuarmos uma
análise mais detalhada de seu capítulo, são necessárias algumas
considerações de ordem geral.
É preciso ter em mente que texto teatral e partitura musical
nada mais são que esboços incompletos: a recriação, pelos intér-
pretes, é condição sine qua non de seu processo comunicativo. O
caso musical é ainda mais enganoso, pois, aparentemente, todos
os seus elementos já estariam dados de antemão na partitura e

1. Michael Chekhov. Para o ator. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

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100 Estética da Comunicação Musical

caberia ao intérprete, com sua capacidade técnica, executar de


maneira satisfatória a seqüência obrigatória de notas. Sabemos,
entretanto, que a técnica não é por si só suficiente: é preciso arti-
cular todo um universo que não se constitui apenas de notas musi-
cais, mas de nexos, amálgamas, concatenações e inter-relações de
elementos que conferem sentido à experiência estética.
Verificamos em Chekhov esta inseparabilidade entre o “ser
do objeto” e o “objeto do ser”. Ele consegue ultrapassar o habi-
tual dualismo das abordagens que enfatizam ora o objeto, ora o
sujeito. Envereda por uma terceira via que, reconhecendo o com-
partilhamento entre ambos, não concebe o primeiro como mera
exterioridade nem o segundo como pura interioridade. Sujeitos e
objetos sofrem ações e resistências mútuas: a presença e ser de um
dependem da presença e ser do outro. Não existe, portanto, na
comunicação musical, ou artística em geral, uma correspondência
direta e cartesiana entre o modo de estruturação do objeto e o
modo de apreensão pelo sujeito. Para que a ação de um intérprete
atinja um determinado efeito sobre a platéia será necessário que
ele se desdobre, saia de si, para dar conta de como tal ou qual
procedimento adotado a impressionou. Já foi citado, anteriormen-
te o comentário do próprio Chekhov a respeito de como o ritmo
rápido da fala pelo ator, no palco, pode acarretar uma monotonia
na platéia dando a impressão de que esse ritmo estaria se desacele-
rando. Tomemos um paralelo musical: o compositor Henri Pous-
seur, referindo-se à obra Structures (1952-61), para dois pianos, de
Pierre Boulez, constatou uma radical dissociação entre a intenção
da planificação estrutural da obra (serialização integral, simetri-
zação do espaço, periodicidades etc.) e a forma de recepção pelo
ouvinte, pois Structures não propicia a memorização, o reconheci-
mento de simetrias e de periodicidades. Tomando esse exemplo
para pensar a comunicação musical em termos mais gerais, Pous-
seur observa:

Simetria e assimetria, determinação e indeterminação, igual-


dade e desigualdade não são meros princípios contraditórios que

Estética da Comunicação Musical 100 100 17/3/2008 18:07:56


Eduardo Seincman 101

se excluam, entre si, de maneira absoluta, mais constituem proprie-


dades complementares que se condicionam e se necessitam mutua-
mente. O excesso em um ou outro sentido conduz a uma desordem
patológica idêntica. Só uma proporção correta, uma tensão equi-
librada (que, além disso, pode realizar-se de infinitas e variadas
maneiras) cria uma ordem livre, viva, e que signifique simultane-
amente multiplicidade e comunicação, individuação e reconheci-
mento.2

O citado capítulo de Chekhov tem a mesma preocupação


de não dissociar a obra de sua escuta, o objeto do sujeito. Desse
modo, suas três “leis da composição” que, malgrado o nome, não
possuem como veremos um caráter rígido e cientificista, estão for-
muladas no sentido de dar conta da tensão equilibrada entre du-
ração e síntese, entre processo e forma.
Segundo a lei da triplicidade, “o enredo nasce, desenvolve-se
e termina. Toda a peça, por muito complicada e intricada que
seja, obedece a este processo e é, portanto, divisível nessas três
seções”.3
A lei da polaridade afirma que “em qualquer verdadeira peça
de arte [no caso, uma performance inspirada], o começo e o fim
são, ou devem ser, polares em princípio. Todas as principais qua-
lidades da primeira seção devem transformar-se em seus opostos
na última seção”.4
Quanto à terceira lei, Chekhov afirma que “o processo que
transforma o começo em sua polaridade no final tem lugar na
seção intermediária, e é essa transformação que representa a nossa
terceira lei de composição”.5
Como vemos, essa leis são totalmente interdependentes e
falam tanto dos conteúdos explícitos quanto dos conteúdos im-

2. Henri Pousseur. “El Tema de Orden en la Nueva Música” in Música, Semántica, Sociedad.
Madrid: Alianza, 1984, p. 77.
3. Michael Chekhov. Op. cit, p. 114.
4. Idem, ibidem. E acrescenta: “É obvio, evidentemente, que o princípio e o final de uma
peça não podem ser definidos meramente como a primeira e a última cenas; princípio e
final englobam usualmente em si mesmos uma série de cenas cada um” (p. 114).
5. Idem, ibidem (grifo meu).

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102 Estética da Comunicação Musical

plícitos do processo comunicacional, já que o texto deverá mani-


festar-se não somente enquanto mera sucessão, mas como forma
dramatizada: seus autores e intérpretes devem levar em considera-
ção a capacidade dos ouvintes de sintetizar a duração sob a forma
de imagens, de contrapor estas imagens umas às outras e de criar
o sentido de duração a partir da ordenação e causalidade dos ele-
mentos que conformam a obra. Assim, por exemplo, a fim de que
a lei da polaridade se consubstancie na prática fazendo com que
início e fim da obra se tornem polares entre si, será preciso haver
uma intenção do intérprete (e/ou diretor) e a transformação des-
sa intenção em técnica de interpretação. Se isso ocorrer, então a
platéia poderá, além da experiência da duração, vivenciar igual-
mente o conflito e a simultaneidade, enfim, o poder de síntese que
a polaridade implica. Chekhov refere-se a esse poder de síntese
como “uma visão no espírito do espectador”:

Tal é a composição entre o começo e o final. Um projeta luz


sobre o outro, explicando-se e complementando-se através do po-
der de seus contrastes. O começo da performance ressurge como
uma visão no espírito do espectador enquanto assiste ao final e é a
lei da polaridade que gera essa visão.6

Embora Chekhov mencione essa lei em relação aos elementos


macroscópicos e formais da obra, podemos igualmente aplicá-la
a seus menores elementos, pois a síntese, e as comparações que
dela resultam, é algo que o ser humano realiza sempre que perce-
be mudanças de estado. Sem essas descontinuidades no contínuo,
sem a variedade na unidade, a obra não possuiria a organicidade
que, de modo algum, lhe é tácita ou natural, pois que depende dos
subtextos de seus interlocutores.
A terceira lei, da transformação, afigura-se como a tempora-
lização, como a experiência de continuidade, diferentemente da
descontinuidade das leis da triplicidade e polaridade. Na triplicidade
impera a lógica seqüencial e “cartesiana” (começo, meio e fim);
na polaridade reina o conflito dialético de pares ou pólos opostos e

6. Michael Chekhov. Op. cit., p. 117.l

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Eduardo Seincman 103

complementares (começo/fim); na transformação governa o tem-


po enquanto duração. Mas transformação não significa somente a
mudança de um estado ou o fluxo contínuo do passado ao futuro.
É que sobre a série de instantes do presente a consciência humana
projeta expectativas (memória do futuro) e lembranças (memória
do passado) e conclui que “este presente não é mais o que passou,
mas ainda não é o que virá”. Assim, mesmo no horizonte de uma
continuidade que aparenta ser “real”, o que ocorre, é um contínuo
desdobrar-se de descontinuidades, de instantes que ligamos, desliga-
mos e religamos, nos conscientizando de que há algo em transfor-
mação. Essa pulsação do presente, situada entre o “ainda não” e o
“ já não mais” é comentada por Chekhov com relação ao Rei Lear,
de Shakespeare:

Voltemos agora às três unidades principais da tragédia e exa-


minaremos a segunda, a qual serve de transição entre os dois pólos
contrastantes.
Imaginemo-la como um processo contínuo de transformação;
poderemos perceber cada momento dela simultaneamente à luz do
começo e do final. Perguntemo-nos simplesmente: em que medi-
da e em que sentido este ou aquele momento particular da parte
intermédia se afasta do começo e se aproxima do final? Por outras
palavras, em que sentido o começo já se transformou no final?7

Em seguida, comenta:

O começo da tragédia transforma-se gradualmente em sua


parte central. Lear já perdeu seu reino, mas ainda não se aperce-
beu disso; Coneril, Regan e Edmund já levantaram uma ponta de
suas máscaras, mas ainda não as arrancaram de todo; Lear já rece-
beu sua primeira ferida, mais ainda não se avizinhou o momento
em que seu coração começa a sangrar; sua mente despótica já está
abalada, mas ainda não existem sinais dos novos pensamentos que
substituirão os antigos.

7. Michael Chekhov. Op. cit., p. 120.

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104 Estética da Comunicação Musical

Passo a passo, até o final, o diretor e o ator acompanham a


transformação do Rei num mendigo, de um tirano num pai amo-
roso. Esses “ já” e “ainda não” tecem fios vivos, entrelaçando todos
e cada um dos pontos do passado (início) no presente e, simul-
taneamente, profetizando o padrão do futuro (final). Cada cena
e personagem revelam seu verdadeiro significado e intenção em
cada momento da transformação, a qual tem lugar na onipresente
parte central.8

Esses “ já” e “ainda não” podem ser vistos como instantes que
conectando-se e desconectando-se dão a impressão de durée, do es-
coar do tempo com sentido. Essa alternância de instantes prenhes
de passado e futuro é que consubstancia a transformação não como
mera passagem de um estado inicial a outro final, mas como a
coexistência pulsante desses estados, em nossa consciência, permi-
tindo, assim, uma experiência vertical e profunda da obra. Porém,
nem todos os instantes são significativos: alguns terão o poder de
aglutinar as tensões e conflitos do transcorrer da obra. São ver-
dadeiros nódulos que irão marcar a obra enquanto condensações,
imagens instantâneas de eventos passados e futuros, molduras es-
paço-temporais propiciando sínteses e, especialmente, enquanto
pontos culminantes do eixo narrativo:

Numa peça bem escrita e bem desempenhada existe um clí-


max principal para cada uma das três unidades. Cada clímax rela-
ciona-se com os outros, à semelhança das três unidades entre si: o
clímax da primeira unidade é uma espécie de resumo do enredo
até esse ponto; o segundo clímax também mostra em forma con-
densada como se desenvolve o enredo da segunda unidade, ou uni-
dade intermédia; e o terceiro clímax cristaliza o final do enredo
dentro da estrutura da última unidade. Portanto, os três clímax
também são regidos pelas leis de triplicidade, transformação e po-
laridade, tal como as três unidades.9

8. Michael Chekhov, p. 121.


9. Idem, p. 122.

Estética da Comunicação Musical 104 104 17/3/2008 18:07:56


Eduardo Seincman 105

Essa capacidade de o ser humano condensar unidades em


imagens instantâneas para, em seguida, religá-las a outras ima-
gens, nos diz que a experiência estética é um acontecimento po-
lifônico, de muitas camadas. Não há, pois, um único sentido de
leitura, mas várias leituras possíveis, histórias dentro da história,
constituindo-se, assim, uma polissemia, tal como nos mostra o dia-
grama que Chekhov utilizou para a sua interpretação do Rei Lear:

A, B, C — Três Grandes (Principais) Unidades


I, II, III — Clímax Principais
1, 2, 3, 4, 5, 6 — Clímax Auxiliares
a, b, c, d, e, f, g — Subdivisões

Analisando, então, sua “partitura”, Chekhov se questiona:

Há alguma cena que expresse a transformação do começo da


tragédia em seu final, uma cena em que se perceba o passado ago-
nizante e o futuro despontando a um só tempo? Sim, existe, deve
existir tal cena. É aquela que Shakespeare nos mostra dois Lear
simultaneamente: um está expirando (o passado), outro está come-
çando a avultar (o futuro). É interessante notar que a transforma-
ção, neste caso, encontra sua expressão não tanto no conteúdo das
falas ou no significado de palavras específicas, mas sobretudo na
própria situação, no fato da loucura de Lear. Esse clímax principia
com a entrada de Lear louco no campo vizinho de Dover e termina
com sua saída (Ato IV, Cena 6).10

Situando, pois, o clímax principal em II (letras B, d) do Dia-


grama, Chekhov, comenta:

10. Michael Chekhov. Op. Cit., p. 125.

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106 Estética da Comunicação Musical

Mas sabemos e pressentimos que a tragédia de Lear ainda não


está resolvida, e aguardamos o que se oculta atrás do disfarce de
louco. Esperamos um novo Lear, cujo futuro podemos apenas con-
jeturar por ora, mas para quem deve existir uma resolução mais
nobilitante. Esperamos por ele e em nosso espírito já enxergamos
o Lear do futuro. Sabemos que por detrás de sua frágil fachada ele
está a caminho da regeneração num novo Lear que não tardará a
surgir. Vemo-lo em sua nova aparência quando, de joelhos na tenda
de Cordélia, lhe implora seu perdão. Mas nesse momento há dois
Lear diante de nós: um como um corpo vazio e sem espírito, o
outro como um espírito sem corpo. O que ocorre diante de nossos
olhos é o processo de transformação do passado em futuro. A polaridade
está prestes a ganhar forma. Sentimos o clímax da unidade central
e transitória.11

Um interessante paralelo musical desse processo pode ser ob-


servado na Balada em Ré Menor Op. 10 no 1 (1854), de Johannes
Brahms.

11. Michael Chekhov, op. cit., p. 126.

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Eduardo Seincman 107

Brahms, Balada em Ré Menor Op. 10 no 1 (1854), comps 1-26.

Claude Rostand comenta que essa obra impressionou


Schumann:

Pouco tempo depois da composição do op. 10, Brahms [...] a


submeteu a Schumann em uma de suas visitas ao hospício. E este es-
creveu em seguida à Clara, falando a respeito desta primeira Bala-
da: “Eu a considero maravilhosa; ela soa com uma estranha novida-
de”. Nada desta estranheza [afirma Rostand] nem desta novidade
parece ter sido atenuada hoje em dia, um século mais tarde.12

Essa obra para piano foi inspirada em um poema, uma antiga


balada escocesa que Brahms conheceu através de uma tradução
de Herder, em seu Stimmer der Völker. Trata-se de um diálogo entre
uma mãe e seu filho Edward:

12. Claude Rostand, Johannes Brahms. Paris: Fayard, 1978, p. 158.

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108 Estética da Comunicação Musical

— Porque tua espada está tão vermelha de sangue? Edward,


Edward!
— Oh, eu matei meu falcão, Mãe, Mãe!
— O sangue de teu falcão não é assim tão vermelho, Edward,
Edward!
— Oh, eu matei meu cavalo ruivo, Mãe, Mãe!
— Teu cavalo estava velho, e não havia necessidade disto, Edward,
Edward! Uma outra dor te pesa, Edward!
— Oh, eu matei meu pai; oh, meu coração sofre!
Meu pé não repousará mais sobre a terra, Mãe!
Eu vos deixo minha maldição, e o fogo do inferno, Mãe!
E o fogo do inferno, pois é você, foi você quem me empurrou!

Rostand comenta que a partir de uma grande economia de


meios Brahms conseguiu ilustrar este poema de maneira forte e
profunda: “somente setenta e um compassos e dois temas tão apa-
rentados a ponto de não serem senão apenas um”.13 Esse tema é,
portanto, um duplo: mãe que pergunta ao filho, mãe que não aceita
suas evasivas, mãe que já sabe a resposta antes mesmo de ele res-
ponder. A pergunta da mãe é sobre o passado e nas respostas do
filho já está latente a verdade futura, que está a ponto de emergir.
As perguntas da mãe e as respostas evasivas do filho se opõem e
se complementam: essa demora da resposta verdadeira e definitiva,
essa conduta adiada por parte de Edward, só faz acrescentar mais
angústia e tensão, prenunciando, assim, a loucura e a sina do filho.
Como Brahms capta e traduz esse clima em uma obra sem
palavras? O início da obra, em ré menor, faz uso de acordes sem
a presença das 3as, causando, desse modo, a mesma impressão de
uma “estranheza inquietante” do diálogo entre mãe e filho. Além
disso, a própria melodia inicial encaixa-se perfeitamente no texto
da pergunta da mãe, quer seja cantado em inglês ou alemão: Dein
Schwert, wie ist’s von Blut so roth?Edward, Edward! A este “andante”
da melodia da mãe, Brahms faz acompanhar a primeira evasiva de
Edward em “Poço più moto”, já denunciando seu nervosismo. O
esquema se repete, porém, Brahms aumenta a tensão da segunda
evasiva de Edward invertendo as melodias do grave e agudo.
13. Id. ibid.

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Eduardo Seincman 109

Brahms, Balada em Ré Menor Op. 10 no 1 (1854), comps 27-43.

O Trio da obra, ou sua seção intermédia como denominaria


Chekhov, modula bruscamente para ré maior. Aqui, a loucura de
Edward é traduzida pelo deslocamento rítmico que se cria devido à
sobreposição das figuras em tercinas do “acompanhamento” e das
células obsessivas retiradas das evasivas de Edward. Este desenho

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110 Estética da Comunicação Musical

harmônico-melódico “enlouquece” gradativamente expandindo,


sem cessar, sua tessitura e sua dinâmica até um ff (comp. 43) que
desemboca, surpreendentemente, na própria evasiva de Edward
(comp. 44). Portanto esta evasiva que aqui reaparece já não é mais
uma tentativa de resposta à mãe, como na seção inicial, mas uma
lembrança, a própria “culpa” de uma resposta evasiva. A evasiva tor-
nou-se, pois, uma “idée fixe” e, como tal, servirá de motivo à longa
retransição (comps. 44-59) para a seção final (comps. 60-71).

Balada em Ré Menor Op. 10 no 1 (1854), comps 47-71.

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Eduardo Seincman 111

Damo-nos conta, portanto, de que Brahms inverteu a or-


dem dos motivos: a retransição apresenta as respostas evasivas de
Edward enquanto a seção final reexpõe a pergunta da mãe. Mas,
nesse contexto, o motivo da mãe também já não é mais propria-
mente uma pergunta, mas mero eco, uma lembrança longínqua
do que restou da seção inicial. Para isso, colabora, sem dúvida, a
volta do acompanhamento em tercinas, mas com uma diferença
fundamental: são tocadas sem o tempo forte e como que suspen-
sas no contratempo tornam-se verdadeiros “suspiros” dignos de
um Monteverdi.
Essa sucinta análise é importante para que se tome consciên-
cia de que uma obra não é formada somente de conteúdos apa-
rentes, mas, igualmente, de conteúdos latentes. Estarão presentes
aqui as “leis” de Chekhov: o enredo nasce, desenvolve-se e termina
(seção inicial, Trio, seção final); há uma polaridade entre pergun-
ta da mãe/evasivas do filho (seção inicial); há uma polaridade en-
tre seção inicial e seção final; a seção intermédia (Trio) e a retran-
sição transformam as qualidades da seção inicial (interrogação da
mãe/evasivas do filho) nas da seção final (evasivas transformadas
em loucura/interrogação da mãe transformada em suspiros).
A concentração dramática dessa obra de Brahms é exemplar.
Mas como se chegou a esse nível de concentração? Embora isso
possa ser explicado, em parte, pelos novos procedimentos adotados
pelo Romantismo como a condensação e o deslocamento, Brahms
não descarta em sua obra o legado do Classicismo. O “classicismo”
de Brahms não significa, portanto, como muitos pensam, um ana-
cronismo, mas a adoção de novos procedimentos que revêem a
linguagem do passado sem, no entanto, abandoná-lo. Como todos
os compositores “clássicos”, isto é, que estabelecem um equilíbrio
ótimo entre as forças apolíneas e dionisíacas, Brahms adota a es-
tratégia comunicacional de conquistar o ouvinte utilizando a tra-
dição para, então, romper com suas normas no interior mesmo de
seus textos, jogando o ouvinte em uma espécie de umheimlich.
Mas isto já nos leva aos próximos capítulos: de um lado, ao
Classicismo e suas novas conquistas no aspecto da comunicação
musical e, de outro, à problemática interação entre o apolíneo e o
dionisíaco que, como veremos, inundou o próprio século XX.

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112 Estética da Comunicação Musical

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Eduardo Seincman 113

ILUMINISMO
Entre a Síntese e a Duração

O acabamento formal de proporcionalidade e equilíbrio da


música do Classicismo é muitas vezes, e erroneamente, associado
a um gosto áulico relacionado a uma prática cortesã de requinte
e nobreza. De fato, ao se ouvir uma sinfonia de Haydn ou de Mo-
zart tem-se uma impressão geral de bom acabamento, de simetria
clássica. Mas o Classicismo do século XVIII não pode ser reduzido
a essa faceta.
Não será possível compreender a profundidade do estilo clás-
sico se não levarmos em conta a atitude iluminista, sua visão de
mundo: é um movimento de fé, de confiança na evolução do ho-
mem, no progresso e na razão, mas, também, um momento de
profunda descrença nos antigos valores religiosos, políticos e so-
ciais. É necessário ter em mente esta polarização entre otimismo
e ceticismo, entre a crença no progresso e a dúvida essencial, para
que possamos compreender, de maneira sensível, sua expressão
estética e a forma de comunicá-la. Assim, no Classicismo, o equi-
líbrio entre forma e conteúdo é alcançado em razão de uma cons-
tante luta entre impulsos interiores que querem desabrochar e a
contenção desses impulsos por uma forma que quer valer sua for-
ça. Essa crise não é apenas um fator externo, pois se encontra nas
obras sob a forma de conflitos internos, paradoxos e ambigüida-
des semelhantes às do ser humano no mundo. Se no plano social
o Iluminismo coloca em cheque o status quo, no plano estético ele
questiona o próprio discurso. Portanto, à objetividade racionalista

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114 Estética da Comunicação Musical

do Barroco opõe-se, agora, a objetividade de um racionalismo que


duvida de tudo, inclusive de si mesmo, dando margem ao inusitado
e colocando em ação novas formas de comunicar a subjetividade,
no mais das vezes irônica e até mordaz. Seria impossível, nesse sen-
tido, deixar de associar, por exemplo, a obra de um Voltaire à de
um Mozart: em ambos está presente não só a dúvida existencial,
mas, também, a argúcia de detalhes e o humor que, aflorando à
superfície, manifestam as contradições e hipocrisias do mundo.
Rushton afirma que este humor veio da Itália pelas mãos do escri-
tor e libretista Carlo Goldoni (1707-1793):

A Goldoni devemos creditar, mais que a qualquer outro, a


invenção da ópera cômica de subtexto sério, a forma das obras-
primas de Mozart [...] como seriam mais tarde Don Giovanni e
Così fan tutte.1

Nas novas atitudes em que as palavras adquirem um sabor


de revolta contra as amarras do Antigo-regime, surgem hinos de
libertação e óperas de cunho político. Do mesmo Beaumarchais
que escrevera O Barbeiro de Sevilha, Mozart musicou As Bodas de
Fígaro “quando a peça estava proibida nos teatros de Viena, e in-
cluiu no primeiro final de Don Giovanni um Viva a Liberdade mais
explícito que o da Nona sinfonia”.2
O racionalismo possui, na realidade, uma dupla face: o uso
da razão como antídoto ao obscurantismo e a crença de que o en-
tendimento humano é uma realidade individual e intransferível.
Desse modo, a revelação interior é, ao mesmo tempo, resultado
e condição do progresso exterior, havendo uma relação orgânica
entre o individual e o coletivo, o particular e o geral, o sensível e
o inteligível. Além disso, o Iluminismo tem nuances que variam
de acordo com os próprios contextos sócio-culturais: na França,
“lumière” é uma palavra de ordem, um estado de espírito prota-
gonizado por uma intelectualidade que aposta em uma transfor-

1. Julian Rushton. A música clássica: uma história concisa de Gluck a Beethoven, Rio de Janei-
ro: Zahar, 1988, p. 37.
2. Idem, p. 18.

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Eduardo Seincman 115

mação rumo a um mundo superior; na Inglaterra, “to enlighten”


relaciona-se mais às questões de natureza moral e econômica; na
Alemanha, “Aufklärung” significa esclarecimento, descobrimen-
to, reconhecimento.
Contudo, além de iluminar o homem e seu mundo desde
fora, a “luz da razão” humana também vem de dentro: uma “luz”
que, como símbolo racional-místico de revelação ou de ilumina-
ção interior, auxiliará o homem em sua jornada da menoridade à
maioridade, de “esclarecimento”, conforme Kant. Que este último
sentido esteve sempre presente está no fato de o próprio Descartes
ter recebido a revelação de sua filosofia racionalista das mãos de
um gênio, um daimon que apareceu em seus sonhos. Dentro do
Classicismo iluminista, um dos exemplos mais contundentes e ine-
quívocos dessa visão é, certamente, A flauta mágica, de Mozart.
Na Enciclopédia (1740-1770), em que a música tem lugar de
destaque, o homem debruça-se, pela primeira vez de maneira
metódica e sistemática, sobre o próprio conhecimento, tanto do
presente quanto do passado. Do ponto de vista musical, se por um
lado houve uma fratura em relação à linguagem anterior devido
à adoção de novos recursos estilísticos e técnicos, por outro, ocor-
reu um retorno aos ideais do classicismo grego, tendo-se em vista
seus procedimentos racionais relativos ao número, à proporção e
à harmonia.
O procedimento de retorno ao passado ou de incorporação
da tradição popular e oral já haviam sido uma constante desde o
Barroco, como se observa, por exemplo, na influência da música
espanhola sobre Domenico Scarlatti ou no uso de procedimentos
da escrita renascentista nos corais e motetos de J. S. Bach. Já em
pleno Classicismo, Haydn utiliza uma melodia croata em sua Sinfo-
nia no 103 e Mozart, além de efetuar em sua obra uma síntese dos
diversos estilos nacionais e locais da época, será, posteriormente,
fortemente influenciado pela escrita bachiana. Assim, tanto o exo-
tismo quanto o internacionalismo terão espaço no Século das Lu-
zes: os enredos de óperas e melodramas poderão situar-se tanto na
China quanto no Peru, e a música “turca” estará presente em obras
como O rapto do serralho, de Mozart, La rencontre imprévue e Iphigénie
en Tauride, de Glück ou até na Sinfonia militar no 100, de Haydn.

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116 Estética da Comunicação Musical

A historicidade e a diversidade do real, bem como a aceitação


de outras culturas, conduzirão o Classicismo a um universalismo
fundamental e, paralelamente, à nomeação da diferença, ou “cor
local”, promovendo, inclusive no campo artístico, um tenso equi-
líbrio entre o geral e o particular, o transcendente e o imanente.
Mas, para que a música do Classicismo tenha condições de comu-
nicar-se visando um equilíbrio entre o sensível e o inteligível, terá
de efetuar uma inversão em relação ao Barroco, ou seja, despojar-
se das aparências a fim de atingir essências. É que uma obra muito
complexa, repleta de elementos, além da dispersão, não dá espaço
para a retenção e reflexão por parte de seus ouvintes situando-
os, portanto, em uma espécie de “eterno presente”. Já uma obra
simples torna mais factível a síntese de seus elementos e, portanto,
sua fixação como elos de um encadeamento causal e temporal.
Nessa última, surge a possibilidade de enredo e maior organicida-
de, enfim, de haver a comunicação de conteúdos dramáticos. Os
conflitos, as polaridades, não estarão mais situados apenas “nas”
obras, mas na relação destas com seus interlocutores. As obras,
mais simples e distendidas no tempo, permitirão que seus ouvin-
tes, dada sua capacidade de efetuar sínteses a partir do que trans-
correu, densifiquem as ocorrências do presente nele projetando
suas lembranças e expectativas. O que o Classicismo perde em
efeitos “epidérmicos” adquire em densidade expressiva e profun-
didade psicológica.
Os músicos, compositores e intérpretes aperfeiçoam, aos pou-
cos, o controle dos aspectos técnicos que envolvem essa nova co-
municabilidade. A “pesadez” tonitruante das massas orquestrais e
polifonia do Barroco dá lugar à simplificação melódica e à verti-
calização do eixo harmônico conferindo à música um sentido de
leveza. A melodia torna-se mais sinuosa, menos angulosa. A har-
monia se distende no tempo permitindo maiores vôos melódicos.
A orquestra se organiza em naipes adquirindo a unidade de um
corpo. Não se pode mais separar melodia, harmonia, ritmo e for-
ma como parâmetros isolados, pois a parte e o todo da obra se
integram, agora, em uma relação orgânica e indissolúvel. Surge
o “tema” que é qualitativa e funcionalmente distinto das células e
motivos do Barroco e do Rococó. O tema se torna, no Classicismo,

Estética da Comunicação Musical 116 116 17/3/2008 18:07:57


Eduardo Seincman 117

a unidade mínima com significado, e para ele irão convergir os


elementos melódicos rítmicos, harmônicos, de dinâmica, de tes-
situra, fraseológicos e cadenciais. Não sendo mera seqüência de
notas, o tema torna-se uma “entidade” ou até mesmo uma “per-
sonagem” com a qual os ouvintes poderão identificar-se. Por fim,
o tema torna-se, um evento “datado”, uma imagem passível de ser
resgatada pela consciência e de atuar como força do passado/fu-
turo no presente.
Estamos diante de um novo universo sonoro, uma nova ma-
neira de promover a comunicação musical. O Classicismo percebe
que o enxugamento dos conteúdos aparentes da obra implica na
ênfase dos conteúdos latentes, o que propicia a estética do máxi-
mo de informações com o mínimo de material. O Barroco ope-
rava em um plano mais bidimensional: as repetições e os confli-
tos situavam-se, por assim dizer, no plano da superfície das obras,
com seus jogos de claro/escuro, com seus leques de permutações e
com suas infinidades de “dobras”. Era um mundo de “aparências”
que, por vezes, devido ao alto grau de abstração, racionalidade e
impessoalidade, atingia planos de transcendência e infinitude. O
mundo musical do Barroco operava de acordo com as mônadas de
um Leibniz ou como as roldanas de um grande relógio movido e
sustentado por mãos divinas.
Se no Classicismo o tema se torna uma espécie de persona-
gem é porque não apenas os intérpretes, mas os próprios ouvintes
o vivenciam como tal. Assim, o dialogismo e a polifonia da obra já
não estão mais propriamente situados na superfície aparente do
texto, mas já passaram ao “subtexto”, ou seja, àquilo que o ouvinte
sabe que está na obra, mas que ela não diz. O ouvinte torna-se
um real co-autor e co-intérprete: seu lugar é também o do palco.
Não se trata, aqui, daquilo que Edward Hanslick, em seu livro Do
belo musical, denominaria de “escuta ativa” e, sim, de um compar-
tilhamento entre obra e ouvinte, de uma “participação ativa”. A
possibilidade que o drama oferece de dar e receber, reter e perder,
esquecer e lembrar, de abrir espaço para participar “de dentro” e
assistir “de fora”, faz com que os ouvintes se espelhem na obra e
sejam dela coniventes, com que sofram os dramas da obra e nela
projetem suas angústias e incertezas que ela mesma provocou. Não

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118 Estética da Comunicação Musical

há mais espaço, como no Barroco, para qualquer predetermina-


ção ou imposição de “leis” exteriores.
A forma de comunicação muda radicalmente: ouvir, por
exemplo, as Variações Goldberg (1741), de Bach é de certa maneira
situar-se em uma espécie de “eterno presente” em torno do qual
circundam o passado e o futuro próximos; ouvir as Sinfonias lon-
drinas (1791-95), de Haydn é situar-se em um tempo que se mostra
como uma constante reconstrução, como um “reconhecimento”,
uma Aufklärung, em que passado e futuro, próximos e remotos,
estarão presentes enquanto subtextos no presente de um enredo
que obra e ouvinte compartilham.
No Barroco, mesmo em uma aparente monodia, haverá um
diálogo permanente entre as vozes do texto que, não sendo inter-
rompido por pausas dramáticas, jamais perderá a pulsação, o fluxo e
a continuidade de um mundo em constante movimento mecânico:

Haydn, Sonata em dó # menor H. XVI: 36, comps. 1-4.

O Classicismo, ao contrário, interrompe o texto, torna-o des-


contínuo, transforma o som aparente em conteúdo latente: insi-
nua, por meio de pausas, articulações, pontuações, o que não se
encontra no texto, mas no contexto. O texto não é mais um “dado
imediato da consciência”, é um estímulo que oferece lacunas para
a reflexão, imaginação, criação e crítica. O Classicismo não afir-
ma, questiona:

Bach, “Allemande” BWV814, comps. 1-2.

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Eduardo Seincman 119

Diminuindo a ênfase no transcendente paraenfatizar o ima-


nente, a obra se dessacraliza: abandona, aos poucos, o espaço ritu-
alístico da Igreja e dos palácios, intensifica seu caráter de música
instrumental pura, e os libretos de ópera passam a utilizar temas
do cotidiano incluindo, inclusive, a dança em seus números. A mú-
sica irá se expandir a novas camadas sociais e adquir um novo sta-
tus no rol das artes. Conforme salienta Rushton:

Pela primeira vez na era cristã, a música secular sobrepuja


em importância a música sacra. As missas e oratórios de Haydn e
Beethoven não são contribuições à liturgia, mas culminâncias da
forma musical.3

Com isso modifica-se, também, a própria relação texto-mú-


sica: na ópera haverá uma valorização da figura do libretista, de
agora em diante responsável pela criação de um texto “musical”.
Não é mais fadado à música o papel de acompanhar o texto, e é
bastante sintomático, nesse sentido, que Arteaga, teórico italiano
defensor dos ideais racionalistas mais tradicionais, “lamente” o
fato de o grande libretista Metastasio

ser indiretamente culpado de haver feito entrever aos homens a


possibilidade de a música ser uma espécie de nova língua inventa-
da, pela arte, com a finalidade de suprir a insuficiência que nos foi
legada pela natureza.4

Essa nova língua deve-se, em grande parte, às reformas de


Glück que, em 1769, publica um prefácio à tragédia Alceste afir-
mando ser seu propósito:

restringir a música a seu verdadeiro papel dramático, contribuir


para a expressão poética e aumentar o interesse do enredo, sem in-
terromper a ação ou arrefecê-la com adornos inúteis e supérfluos.5

3. Julian Rushton. Op. cit., p. 9.


4. Idem, p. 56.
5. Idem, p. 48.

Estética da Comunicação Musical 119 119 17/3/2008 18:07:58


120 Estética da Comunicação Musical

Glück negou-se a satisfazer as vaidades dos cantores e a realizar


qualquer ato que descaracterizasse a ação dramática. Além disso,
trouxe à ópera um aspecto de unidade que logo iria ser assimilado
por Mozart e, banindo todos os excessos, deu direção às obras pela
inclusão de um clímax, tendo que simplificar para obter fluência,
abandonando, assim, a grandeza e a monumentalidade barrocas.
Mozart é, neste sentido, exemplar: em sua ópera Idomeneo, ré di Cre-
ta, texto e música passam a ter tal reciprocidade que superam mui-
tas de suas possibilidades enquanto linguagens individuais. Isso
permite também que a ópera deixe de lado os temas mitológicos
de caráter épico do Barroco e se impregne com temáticas históri-
cas e de crítica social mais afeitas à ação dramática. Essa última irá
pontuar e sugerir subtextos às palavras, diálogos, acontecimentos
e enredo. É nesse sentido que Rousseau comenta:

estas passagens, em que se alternam o recitativo e a melodia envolta


em roupagem orquestral, são as mais deliciosas, as mais fortes e
comoventes de toda a música moderna. O ator, agitado, transpor-
tado por uma paixão que o impede de dizer tudo o que desejaria,
hesita, detém-se, deixa as coisas por dizer, enquanto a orquestra
fala por ele; e estes silêncios, assim preenchidos, tocam o ouvinte
muito mais profundamente que se o próprio ator dissesse tudo que
a música nos permite compreender.6

A observação de Rousseau é bastante sintomática em relação


à nova importância que a linguagem musical adquiria. Ela seria
capaz, inclusive, de suplantar a representação “explícita” dos ato-
res para desvendar realidades implícitas no espaço de seu silêncio.
Não apenas esse fato, mas a própria intuição como paralelo da
razão já há muito iniciara seu percurso como possibilidade estética
do racionalismo. Referindo-se a Baumgarten, o grande introdutor
da ciência estética, Ernst Cassirer observa:

Baumgarten ainda se inclina inteiramente perante a autori-


dade rigorosa do racional, não concedendo a menor exceção nem

6. Dictionnaire, 1767, in Julian Rushton. Op. cit., p. 34.

Estética da Comunicação Musical 120 120 17/3/2008 18:07:58


Eduardo Seincman 121

procurando subtrair a mínima coisa às normas puras da lógica.


Mas sustenta a causa da intuição estética pura perante o próprio
tribunal da razão. Quer salvar a intuição provando que uma lei in-
terior governa-a igualmente. Se essa lei não coincide com a razão,
constitui, não obstante, um analogon dela.7

Se no Barroco o compositor estava a serviço da obra e da glória


de Deus, no Classicismo a obra estará a serviço do compositor e da
consagração do Homem: o aspecto da subjetividade humana tor-
na-se parte integrante da comunicação musical. Karl Popper apon-
ta, nesse sentido, para uma diferença entre Bach e Beethoven:

Bach se esquece de si em sua obra, é servo dela. Claro está


que não deixa de imprimir-lhe sua personalidade; isso é inevitável.
Contudo, ele não se mostra, como por vezes o faz Beethoven, cons-
ciente de estar-se expressando a si mesmo e aos seus modos de ser.
Por essa razão é que eu os via como a encarnação de duas atitudes
opostas frente à música. [...]
A Missa em ré, de Beethoven evidencia esse ponto. Ali se lê:
“Partindo do coração, esta música pode chegar de novo ao cora-
ção”. [...] Devo também dizer que a ênfase por mim colocada nessa
diferença nada tem a ver com a negação do conteúdo emocional ou
do impacto emocional da música. Um oratório dramático, tal como
A paixão segundo São Mateus, de Bach, retrata emoções fortes e assim,
por afinidade, desperta emoções fortes – talvez mais fortes que as
provocadas pela Missa em ré, de Beethoven. Não há razão para duvi-
dar que o compositor também tenha sentido essas emoções; julgo,
porém, que as sentiu porque a música por ele inventada causou
um impacto sobre ele [...] e não porque o compositor estivesse de
início numa disposição emocional que veio a expressar na música.
A diferença entre Bach e Beethoven reveste aspectos técnicos ca-
racterísticos. Exemplificando: o papel estrutural do elemento di-
nâmico (forte versus piano) é diferente. Existem, é claro, elementos
dinâmicos em Bach. Nos concertos, há as mudanças de tutti para
solo. Há o brado Barrabam! na Paixão segundo São Mateus. Bach é,

7. Ernst Cassirer. A filosofia do iluminismo. Campinas: EDUNICAMP, 1992, p. 450.

Estética da Comunicação Musical 121 121 17/3/2008 18:07:58


122 Estética da Comunicação Musical

freqüentes vezes, altamente dramático. Sem embargo, embora


ocorram surpresas e contrastes dinâmicos, raramente constituem
determinantes significativos da estrutura da composição. Via de re-
gra, surgem longos períodos sem maiores contrastes dinâmicos. E
algo semelhante pode ser dito de Mozart. Mas não pode ser dito,
por exemplo, da Appassionata de Beethoven, onde os contrastes di-
nâmicos são quase tão importantes quanto os harmônicos.8

Assim, à homogeneidade barroca, ao seu “caráter único”, o


Classicismo opõe a diversidade, e para tal, transforma em estru-
turais elementos que antes foram acessórios ou “naturais”, como
a dinâmica. A unidade não se baseia mais na similitude ou conti-
güidade dos elementos, mas na dialética dos conflitos de ordem
rítmica, melódica, harmônica, formal e dos movimentos entre si,
refletindo as mudanças de estado, humor e temperamento huma-
nos. Essa inter-relação entre texto e subtexto, entre dito e não-dito,
é a garantia de indissolubilidade e inseparabilidade das partes e
do todo, o que permite, inclusive, a exploração de um novo estilo:
a “mistura de gêneros”. Esta última está presente, por exemplo, na
Sonata em dó maior H. 48, de Haydn, ou ainda na Sonata em si bemol
K. 333, de Mozart, cujo final é um movimento completo de concer-
to com cadência. Em seu Concerto em sol maior K. 453 “o espírito da
intriga cômica irrompe na coda do finale em forma de variações,
e o da tragédia, ou do Sturm und Drung, perpassa o Concerto K. 466,
em ré menor”.9 O Concerto em fá maior K. 459, de Mozart, funde, no
seio de um mesmo movimento, a fuga e a sonata. A mistura de gê-
neros, unindo e contrastando igualmente a ópera séria com a ope-
ra “buffa”, traduz a inquietude existencial do homem iluminista
de aversão aos dogmas. A incorporação da técnica de “elaboração
temática” e do “allegro-de-sonata” nas aberturas ou no interior das
óperas revaloriza e redimensiona o papel da “música pura” em um
contexto que lhe seria aparentemente adverso.
Se na ópera do Barroco atuava uma espécie de “combinatória”
de partes ou mesmo de fragmentos musicais, já não é mais pratica-

8. Karl Popper. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1977, pp. 69-70.
9. Julian Rushton. Op. cit., p. 64.

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Eduardo Seincman 123

mente possível, no Classicismo, permutar um determinado trecho


musical por outro qualquer sem haver uma mudança de conteúdo.
O aspecto orgânico das obras faz com que cada uma de suas partes
seja um elo de uma cadeia. Forma e conteúdo não podem ser mais
apreendidos como configurações distintas. Nos corais e motetos
de Bach, os perfis melódicos ascendem ou descendem conforme
o texto se reporta ao “céu” ou ao “inferno”. Em Mozart, a música
já não mais não “ilustra” ou reveste o texto: compõe com o texto,
dramatiza-o. Se anteriormente a ênfase situava-se na Épica e na
Lírica, tal como nos recitativos e árias das óperas, agora ela recai
no Drama. Nesse sentido, a ópera do Classicismo é exemplar, pois
seu desejo de organicidade a afasta cada vez mais da estrutura ba-
seada na justaposição de quadros, como no Barroco.
Os novos procedimentos de linguagem tiveram um papel
fundamental para essa transformação do discurso, entre os quais
a modulação é exemplar. Trata-se de uma nova configuração do
processo comunicativo tendo em vista que a modulação implica ao
mesmo tempo em uma alteração do estado formal da obra e do es-
tado psicológico de seus ouvintes. Quanto a estes, terá relevância o
fato de a modulação ser gradativa ou abrupta. Porém, é importan-
te salientar que a remodulação também terá como conseqüência
a “volta” a um estado anterior, propiciando uma unidade formal
e um relaxamento das tensões. Isso não quer dizer que haja um
retorno ao tempo passado, e sim que o presente se reveste de ima-
gens do passado, o que confere à obra um sentido histórico e sin-
crônico. A modulação, no allegro-de-sonata, auxiliará a compor
os temas conflitantes como “personagens” de um drama. Devido à
modulação, o processo de comunicação musical irá adquirir uma
nova espécie de dissonância: não mais a dissonância dos acordes
ou dos contrapontos no sentido vertical (ou espacial), mas a disso-
nância horizontal (ou temporal) propiciada pelos conflitos entre
tonalidades. Tais conflitos não são “explícitos”, pois dependem dos
processos psíquicos de seus ouvintes e intérpretes que projetam na
obra suas lembranças e expectativas.
Como se observa, o fator tempo enquanto criação torna-se
fundamental: tudo o que anteriormente houvera de virtuosismo,
de improviso, a fim de dar conta do efeito instantâneo e momen-

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124 Estética da Comunicação Musical

tâneo, será preterido em nome da construção, isto é, da mudan-


ça e desenvolvimento dos elementos no tempo, e neste processo já
não mais se pode “dispensar” a ação do ouvinte, responsável que
é pelo equilíbrio tenso entre a parte e o todo, entre o instante e a
duração. Portanto, a propalada proporcionalidade e equilíbrio da
música do Classicismo não se apresentam em “águas tranqüilas”,
mas sob a égide de conflitos interiorizados por ouvintes que, ope-
rando permanentemente sínteses a posteriori, reorganizam e rein-
terpretam, a cada momento, o percurso dramático e problemático
da obra. Até mesmo os menores detalhes passam pelo crivo desta
“estética de conflitos”, tal como se observa comparando-se esses
quatro pequenos trechos da Sonata em sol maior de Haydn.

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Eduardo Seincman 125

51

Haydn, Sonata em sol maior, HXVI:27, comps.1-2, 15-16. 43-44, 51-52.

Os trechos de maior envergadura também são pensados a


partir do conflito dramático. Assim, após o “Allegro” de sua Sona-
ta em mi b , H.XVI:52, Haydn apresenta o inquietante “Adágio” em
mi maior:

Haydn, Sonata em mi b maior H. XVI:52.

Mas não é só de conflitos abruptos que o Classicismo se ali-


menta. Como veremos adiante, para que a organicidade dramá-
tica da obra se mostrasse em sua plenitude, foi imprescindível a
criação e adoção dos novos processos de elaboração e desenvol-

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126 Estética da Comunicação Musical

vimento temático. Mas, para tal, foi necessária a evolução técnica


através de alguns procedimentos, entre os quais se destacam: divi-
são da orquestra em naipes; diálogo mais orgânico do solista com a
orquestra no concerto clássico; uso do crescendo e decrescendo; uso de
transições rítmicas de um tipo de textura a outra; uso de acellerando
e rittardando; alterações de andamento de acordo com o tônus psi-
cológico; estabilização do sistema tonal em regiões bem estabeleci-
das; linhas melódicas sinuosas deslizando e comportando-se como
sons harmônicos das notas fundamentais do acompanhamento; ho-
mogeneização da textura orquestral devido à distribuição equili-
brada dos acordes triádicos por todo o campo de tessitura.
Toda essa evolução técnica tem sua contrapartida estilística;
assim é que iremos encontrar em Johann Stamitz um dos maiores
responsáveis pelo desenvolvimento da sinfonia tal como seria le-
gada aos vienenses. Ao mesmo tempo, devido ao seu incentivo de
realizar audições “domésticas” e públicas em Paris, a música sin-
fônica irá se desligar, aos poucos, dos laços operísticos e teatrais,
transferindo-se da Itália para a Europa Central, notadamente os
países de língua germânica, influenciando toda a geração desde
Mozart a Schubert.
Mas, como não há ganhos sem perdas, obviamente, o estilo
clássico cerceou muito da liberdade e do aspecto lúdico que o Bar-
roco possuía no que concerne à possibilidade de permutação de
partes, improvisações de toda a espécie, rearranjos instrumentais
etc. O livre jogo, a trama caleidoscópica, já não são mais possíveis
no Classicismo, pois a permutação e a improvisação livres pode-
riam comprometer a organicidade A própria improvisação estrá
restrita às cadenzas. Mas o que se perde em liberdade de movimen-
to se ganha no que Wölfflin denominou de “intensidade potencia-
da” do efeito da obra: a manutenção de um equilíbrio geral em
função dos conflitos e tensões locais. A comparação entre a Sara-
bande em ré menor, de Haendel e a introdução do “Adagio cantabile”
da Sinfonia no 94, de Haydn pode esclarecer esse ponto:

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Haendel, “Sarabande” em ré menor (Suíte 11), comps. 1-8.

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Haydn, Sinfonia no 94, HI-94, comps. 1-21.

A maneira de Haendel articular o encadeamento, a “lassidão”


harmônica pelo uso do ciclo de 5as ascendentes (em vez de descen-
dentes), não ocorrem na sinfonia de Haydn: aqui também há um
alto grau de incerteza, mas a grande força dramática decorre de
uma invenção contundente em que a instabilidade harmônica do
“Adagio cantabile” opera por oposição e complementação à esta-
bilidade na qual o tema principal propriamente dito (“Vivace as-
sai”) irá iniciar. Essa utilização dramática da forma e da harmonia
é onde Beethoven irá beber, haja vista a introdução do “Adagio
molto” de sua Primeira sinfonia, cujo acorde inicial (C7) nega a to-
nalidade de dó maior para posteriormente reafirmá-la com uma
contundência ainda maior na entrada do tema principal (“Allegro
com brio”):

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Beethoven, Sinfonia no 1, Op-21, comps. 1-19.

Percebe-se, neste exemplo, como na comunicação musical


operam ambigüidades e paradoxos, pois se espera que uma “in-
trodução”, como o próprio nome já diz, dê a ambiência do tema
introduzindo, ao menos, seu campo harmônico. Nos casos de
Haydn e Beethoven, a introdução se torna praticamente um ele-
mento estranho e autônomo a fim de que a entrada dos temas e
suas respectivas tonalidades adquiram um imenso potencial dra-
mático. Constata-se, assim, que a alteração da forma “acadêmica”
transforma, também, a própria “forma de comunicação”: Haydn
e Beethoven não necessitaram, ao menos aqui, inovar a lingua-
gem em si, mas tão somente alterar a relação de forças entre suas
duas “personagens” (Introdução e Tema Principal), o que, por sinal,
já é altamente significativo. As inovações da linguagem musical
do Classicismo não constituem um fim em si mesmo, pois estão
intimamente atreladas a uma nova forma de discurso.
Devido à organicidade, aos processos de elaboração e ao dia-
logismo das obras do Classicismo, não será mais possível analisá-
las isolando suas partes. Surge, como já dissemos, a consciência do

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132 Estética da Comunicação Musical

tempo não só como história, mas enquanto criação e construção


humanas. O tempo deixa de ser mecânico para se tornar dramáti-
co e existencial. Ele adquire uma outra substância, mais próxima
ao que Sto. Agostinho definiu como sendo “lembrança presente
das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperan-
ça presente das coisas futuras”.10 A nova organização interna dos
elementos musicais afetará o modo de percepção de tempo dos
ouvintes: o passado poderá ser mais amplo e o futuro restrito; ou
ainda, a música poderá situar-nos em uma espécie de “eterno pre-
sente” e assim por diante. Essa maleabilidade temporal nos diz
que o “presente das coisas presentes” do Barroco foi abandonado
em prol de uma realidade pluridimensional, de camadas latente-
mente presentes no texto aparente que conferem ao ouvinte a im-
pressão de “domínio do tempo”, o “dom” de articulá-lo criando
nexos entre os eventos.
O tempo ontológico do Barroco e o tempo dramático do
Classicismo formariam, de acordo com Stravinsky, as duas espé-
cies básicas de música:

Uma evolui paralelamente ao processo do tempo ontológico,


penetra-o e se identifica com ele, fazendo nascer no espírito do
ouvinte um sentimento de euforia, de “calma dinâmica”, por assim
dizer. A outra excede ou contraria este processo. Não se ajusta ao
instante sonoro. Afasta-se dos centros de atração e de gravidade e
se estabelece no instável, o que a torna propícia a traduzir os impul-
sos emocionais de seu autor. Toda música na qual domine a vonta-
de de uma expressão pertence a este segundo tipo. [...]
A música ligada ao tempo ontológico está geralmente domi-
nada pelo princípio da semelhança. A que se vincula ao tempo psi-
cológico procede espontaneamente por contraste.11

Se na primeira espécie de música a semelhança e a repeti-


ção eram a garantia mínima de unidade do todo, o mesmo já não

10. Sto. Agostinho. Confissões XI, in Santo Agostinho. Col. “Os pensadores”, São Paulo:
Abril Cultural, 1980, p. 222.
11. Strawinsky. Poética Musical. Madrid: Taurus, 1977, p. 35.

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Eduardo Seincman 133

acontece com aquela que opera através do contraste e conflito. As-


sim, o Classicismo teria uma questão a resolver: como reconquistar
a unidade que se perdeu juntamente com o abandono do tempo
ontológico do Barroco? Essa reconquista da “unidade perdida”
não foi imediata, mas teve de passar pelo período de transição do
“estilo galante” antes de adquirir todas as ferramentas para tal.
Para isso contribuiu também o fato de a música instrumental vir
se afirmando desde o setecentos no cenário musical, a princípio
na Alemanha e na Áustria e, posteriormente, no restante do con-
tinente europeu. Várias características específicas relacionadas às
formas de dança, como a pontuação, o ostinato rítmico, a unidade
tonal, a concisão, a quadratura, a repetição de motivos e temas, a
forma simétrica, a arquitetura proporcional e equilibrada, permi-
tiram à música desvincular-se da palavra cantada, assim como do
ritual, e adquirir uma estrutura própria, reconhecível, diversa e
singular. Com o advento do Classicismo, este desenvolvimento da
música pura associado ao drama de fundo psicológico e existen-
cial permitirá o redimensionamento da figura do instrumentista
que irá se tornar um “co-autor” da obra, o responsável direto por
sua expressão e interpretação.
Não será casual o fato de o palco do Classicismo musical
situar-se em solo austríaco e alemão: o germe e as bases de um
novo estilo já haviam sido lançados, mas França e Itália estavam
por demais atarefadas e preocupadas com as querelas estéticas e
políticas: ópera buffa versus ópera séria, bel canto versus simplici-
dade melódica, Raguenet versus Lacerf, estilo italiano versus estilo
francês, D’Alembert e Rousseau versus Rameau, “lullistas” versus
“rameauistas”, “buffonistas” versus “anti-buffonistas”, “glückistas”
versus “piccinistas” etc. O racionalismo iluminista exigia algo mais
do que a preocupação com as particularidades estilísticas: busca-
va, também, a síntese das diferenças. Era preciso encontrar no do-
mínio mesmo do fenômeno musical as respostas e soluções que os
novos ideais exigiam. A Alemanha, já há muito aceitando a música
instrumental pura, estava distante das querelas centradas no con-
fronto entre a música vocal e a música instrumental do restante da
Europa. O eixo da discussão situava-se nas controvérsias entre os
defensores das leis harmônicas de Rameau e os do ensino tradicio-

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134 Estética da Comunicação Musical

nal do contraponto e baixo-cifrado, ou na questão da harmonia


versus polifonia, já que esta última, estilisticamente barroca, era
vista por músicos como Scheibe, Mattheson e Quantz como uma
técnica “artificial”, incapaz de expressar sentimentos e paixões.
Quantz, conhecido por seu famoso tratado de flauta de 1752,
exprime idéias estéticas que irão se constituir em uma antecipação
extraordinária do Classicismo vienense: ele aceita a autonomia da
música instrumental e de suas formas; mostra que ela, tanto quan-
to a música vocal, suscita emoções e paixões devido à sua proprie-
dade de dosificar os contrastes relativos ao timbre instrumental,
andamentos, dinâmicas e à presença de temas contrastantes. Su-
gere, assim, um “equilíbrio de opostos” que, desviando-se de qual-
quer excesso, aspire à elegância formal. Contrapondo-se à ótica do
Barroco, acrescenta que a música tem a função de servir ao homem
e não a Deus, e sugere um “estilo misto” que observe o que há de
melhor, tanto nos franceses quanto nos italianos, criticando a falta
de variedade daqueles e o excesso de audácias destes últimos.
Este equilíbrio manifestar-se-ia, em toda a sua plenitude, nas
óperas de Mozart, das quais Don Giovanni e A Flauta Mágica cons-
tituem exemplos magistrais desta síntese tão almejada. Quanto a
esta última Rushton afirma, com propriedade, ser ela

um repositório de quase todos os estilos existentes; seus movimen-


tos são como canções folclóricas estróficas, suas árias mais comple-
xas aproximam-se da linguagem da ópera séria e a música dos sa-
cerdotes iluminados varia da pureza hínica a um coral entretecido
em contraponto bachiano – uma síntese semelhante de simplicida-
de e artifício inspira a Nona de Beethoven, que neste sentido é a
culminância de uma época, e não um modelo para a seguinte.12

Mas para que a música instrumental sobrepujasse aos pou-


cos a música vocal foi necessária uma transformação social mais
profunda, qual seja, o surgimento de uma “classe média” que iria
influir nos rumos da atividade musical e de sua estética: inicia-se o

12. Julian Rushton. Op. cit., p. 18.

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Eduardo Seincman 135

comércio de partituras impressas, todo um mercado voltado para


a transcrição da música de câmara e da música orquestral para
os teclados. O cravo, em especial, foi um meio através do qual os
leigos puderam ter acesso à expressão musical. Ele permitia ao
intérprete executar, a duas mãos, o que anteriormente era con-
signado a vários instrumentos ou a muitas vozes corais. Devido à
complexidade polifônica dos diversos conjuntos foi necessário, na
maioria das vezes, simplificar as partes a fim de que pudessem ser
executadas. Esta simplificação, somada à uniformidade timbrís-
tica dos instrumentos de teclado, fez com que a polifonia fosse
gradualmente desaparecendo para dar vez à homofonia.
As novas diretrizes técnicas e estéticas valorizaram a figura
individual do executante (o virtuose) e permitiram a criação de
novos gêneros musicais, como as peças curtas, o pot-pourri, as fan-
tasias e as variações. O timbre particular e nasal do cravo, bem
como a utilização excessiva de ornamentos pelo Rococó, possibili-
tou o advento de um gênero até então ausente dos padrões musi-
cais: a paródia. O humor, o chiste, o sarcasmo, irão aguçar ainda
mais a face crítica e autocrítica do Iluminismo.
O Classicismo não pode ser visto apenas como uma ruptura,
pois muitos de seus procedimentos são uma continuidade na bus-
ca de soluções formais e estruturais que o Barroco já havia posto
em prática. Dentre as conquistas do Barroco, a fuga é exemplar:
mais que uma “forma”, ela é, conforme salientou Charles Rosen,
um processo que, gestado no âmbito da polifonia vocal, desvincula-
se gradualmente do texto e se desloca para o gênero instrumental.
Contribuiu desse modo para a unidade e coerência internas que
o Classicismo iria tanto almejar. A fuga foi igualmente essencial
para o estabelecimento definitivo das relações de força tonais e
introduziu, de forma inequívoca, o processo de modulação. Além
disso, o emprego de motivos conflitantes (sujeito e contra-sujeito),
de resposta na Dominante, de “digressões” e “desenvolvimentos”
(episódios) e da própria forma ternária, constituem, sem dúvida,
os embriões do futuro allegro-de-sonata. A fuga é, portanto, uma
espécie de arcabouço estrutural de todos os elementos necessários
a um discurso musical de teor dramático:

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136 Estética da Comunicação Musical

Este impulso que conduz o motivo desde sua tonalidade ini-


cial até a quinta superior faz caminhar a música adiante; sucessão
agógica cujo desenvolvimento é importantíssimo, porque a música
não seguirá já passivamente como na canção arrastada pelo texto,
nem mecanicamente como na dança impulsionada pelos passos
dos bailarinos, senão organicamente e por um princípio dinâmico
interno e especificamente musical.13

Essa organicidade se deveu também a um fato de ordem téc-


nica que marcou o definitivo estabelecimento do sistema tonal e a
possibilidade de modulações mais longínquas dentro do ciclo de
5as: o aparecimento, em 1722, do “temperamento igual”, exemplar-
mente demonstrado na obra O cravo bem temperado, de J. S. Bach.
Se o “velho” Bach é um grande ordenador organizador das
novas possibilidades, seu filho C. P. E. Bach será um dos respon-
sáveis pela “desordem” que levará a linguagem musical a outros
caminhos para além do Barroco. Carl Philip

substituiu a incrustração ornamental do Barroco e do Rococó pela


ornamentação expressiva, com um grau de liberdade que prefigura
o rubato de Chopin. Após a regularidade de pulsação do Barroco, e
em concomitância com os períodos simétricos do galant operístico,
Bach surpreende pela variedade rítmica e das figuras de valor; ele
procede por arremetidas de atividade e repouso, freqüentemente
demorando-se numa harmonia estranha à tonalidade principal
[...] Particularmente significativa é a multiplicação de idéias con-
trastantes, não raro de curtíssima duração, num mesmo movimen-
to. Uma torrente de motivos pode servir de introdução à tonalidade
da peça, ou algo que se revela não ser a tonalidade, como na Sonata
em fá maior que começa em dó menor.14

A velocidade das mudanças torna-se brutal: basta constatar


o curto período de tempo que separa as sonatas barrocas (suítes,

13. Adolfo Salazar. La música en la sociedad europea. II. Hasta fines del siglo XVIII, Madrid:
Alianza, 1983, p. 147.
14. Julian Rushton. Op. cit., pp. 84-85.

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Eduardo Seincman 137

formas de dança etc.) das formas rudimentares do allegro-de-so-


nata do Classicismo. Instaura-se, então, uma hierarquia entre os
acordes e os graus da tonalidade, com conseqüências profundas
na estrutura e forma tonais. Também será necessário apenas um
pequeno passo para que a sonata monotemática caminhe na dire-
ção do bitematismo. Comentando as sonatas de Domenico Scarlat-
ti, Salazar afirma que

a inflexão T-D-T que se encontra nas danças simples se acha, como


é natural, na sonata monotemática scarlattiana, mas sob uma for-
ma, mesmo que fácil e graciosa, muito estreita, que se ampliará
indefinidamente na sonata bitemática. Para integrar a primeira
bastarão duas seções: T-D e D-T. Mas como o jogo modulatório e o
motívico necessitam maior dimensão na segunda, será mister inter-
polar, entre ambas as seções, uma terceira na qual esse jogo possa
espraiar-se suficientemente: é a seção posteriormente conhecida
como Desenvolvimento, ou elaboração temática, ou Durchführung.15

A técnica de “elaboração temática”, relacionada ao desenvol-


vimento e transformação dos materiais, foi o grande trunfo para o
salto qualitativo, já que permitiu uma maior unidade orgânica en-
tre os temas e a conseqüente manutenção da tensão psicológica,
além de dotar a linguagem musical de um sentido de causalidade,
de direção no tempo. A música poderá, assim, corresponder aos
grandes anseios do próprio Iluminismo como a possibilidade de
controlar o tempo e de questionar criticamente a história dos fa-
tos. O processo de elaboração temática, inaugurado pelos Quarte-
tos scherzi (ou russos) op. 33, de Haydn permite que uma determina-
da entidade musical (motivo, tema etc.) transforme-se a partir de
seus próprios elementos engendrando, assim, uma nova entidade,
e possibilita a integração do tema e do acompanhamento a ponto
de não se poder mais distinguir um do outro, o que, para Rosen,
constitui “uma revolução no estilo, [...] verdadeira invenção do
contraponto clássico”:16

15. Adolfo Salazar. Op. cit., p. 152.


16. Charles Rosen. El estilo clásico – Haydn, Mozart, Beethoven. Madrid: Alianza, 1986, p. 102.

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138 Estética da Comunicação Musical

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Haydn, Quarteto op. 33 no 1, comps. 1-31.

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140 Estética da Comunicação Musical

O processo de elaboração temática tornou-se uma poderosa


ferramenta de composição. Propiciou o amadurecimento do alle-
gro-de-sonata que se fez presente em praticamente todo o reper-
tório musical, da música solista até as grandes obras sinfônicas,
adentrando inclusive o próprio século vinte. O allegro-de-sonata,
sendo um processo orgânico, permitiu que a linguagem cons-
truísse dialeticamente o drama a partir de uma base estritamente
musical. A separação ordinária de suas partes em Exposição, De-
senvolvimento e Reexposição não faz jus às mútuas imbricações aí
presentes. A apresentação de temas antagônicos em centros acústi-
cos diferentes é apenas parte do processo, pois só terão plenitude
quando submetidos à “onírica” elaboração da seção de Desenvolvi-
mento (Durchführung) que, levando a tensão ao ápice, irá desembo-
car na Reexposição, onde se dará a resolução e síntese de todos os
conflitos anteriores. O allegro-de-sonata propiciará à música co-
municar não apenas sentimentos dramáticos, como no Barroco, mas
ações dramáticas, como se observa nessa comparação que Charles
Rosen fez entre Haendel e Mozart:

Em seu famoso quarteto Jephta, Haendel conseguiu represen-


tar quatro emoções diferentes: o valor da filha, a severidade trágica
do pai, o desespero da mãe e o desafio da amante; no entanto,
os amantes, no final do segundo ato de O rapto do serralho de Mo-
zart, vão da alegria à reconciliação final, passando pela suspeita e
ultraje; nada como estas quatro emoções sucessivas para colocar
manifesta a relação do estilo sonata com a ação operística durante
o período clássico, e qualquer um se sente tentado a fazer corres-
ponder esta sucessão de emoções com o primeiro tema, o segundo,
o desenvolvimento e a recapitulação.17

Percebe-se como a perspectiva foi alterada: as noções de


transformação, de mudança no tempo, de direção, tornam-se parte in-
tegrante do discurso musical que, dessa forma, torna-se um corre-
lato das questões humanas e existenciais. A conexão entre ouvir

17. Charles Rosen. Op. cit., p. 51.

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Eduardo Seincman 141

e impressionar-se adquire um novo sentido: a obra, embora pura


exterioridade, torna-se um reflexo da instável e mutante interio-
ridade humana. Devido aos efeitos que a instabilidade é capaz de
suscitar, o próprio “estar em trânsito” passa a ser valorizado, tal
como se observa nesse pequeno trecho mozartiano:
6

Mozart, Fantasia em dó menor, K.V.475, comps. 6-15.

Essa ênfase nas transições terá seu apogeu no Romantismo


e Pós-Romantismo a ponto de, em muitas obras do final do sé-
culo XIX e XX, elas serem veiculadas por si mesmas e não como
pontes entre estados em equilíbrio. Mesmo no Classicismo, tais
transições podem tornar-se, por vezes, novas entidades temáticas
ou, cristalizando-se como episódios significativos, perderem um
tanto de sua função conectiva. Esse fato explica, em parte, a gran-
de quantidade de melodias que Mozart utiliza em muitos de seus
concertos para piano. Em alguns casos, tais pontes e transições
tornam-se verdadeiros “devaneios” harmônico-melódicos de forte
apelo dramático que, por sua inconstância e vaguidade tonal, nos

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142 Estética da Comunicação Musical

lançam em uma espécie de “suspensão temporal”, na maior parte


das vezes amorfa e ambígua:

69

Mozart, Rondó em lá menor K. V. 511, comps. 69-73.

A resultante destes trechos é aparentemente paradoxal: pelo


fato de eles constituírem um só corpo e não termos, assim, a pos-
sibilidade de segmentá-los e efetuarmos sínteses da duração, não
haverá a impressão do antes, agora e depois, mas de um já em per-
manente mudança, um eterno presente cambiante com tênues
franjas de passado e futuro. É como estar entre aquilo que já não é
mais e o que ainda não é. Só resta perguntar: “para onde vamos?” e
“quando termina?”. Nesses momentos-limite nossos fundamentos
espaço-temporais são questionados e alterados: não há mais a pos-
sibilidade de uma “evolução criadora”.
Daí o aparente paradoxo: quando nos situamos em uma “du-
ração segmental”, de formas discerníveis, pode-se dizer: “aquilo
passou” – e o mundo divide-se em passado, presente e futuro; mas
quando estamos “colados” na transição, em uma “duração inco-
mensurável”, só se pode dizer: “isto está passando” – e o mundo é
presentidade. O Classicismo será, portanto, sempre surpreenden-
te, pois apresentando-nos estados em equilíbrio poderá, a qual-
quer instante, deles nos arrancar colocando-nos diante do para-
doxo, do inusitado e do próprio hiato que, separando e unindo
obra/ouvinte, estímulo/resposta, torna a comunicação pensável e
possível. O Classicismo, enfim, não abdica nem de Apolo, nem de
Dionísio: estabelece um diálogo tenso entre ambos visando sem-
pre um equilíbrio ótimo.
Mas esse já é o assunto do próximo e último capítulo.

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Eduardo Seincman 143

Schoenberg
Entre A polo e Dionísio

A obra do filósofo e escritor Friedrich Nietzsche foi um ver-


dadeiro marco da passagem do século XIX ao XX. Nietzsche não
apenas reinterpretou o distante passado grego, mas colocou em
questão a hipocrisia moral e religiosa de sua época que, a despeito
das novas conquistas cientificas, foi um tempo de crise em relação
aos antigos valores. Procurando superar a dualidade platônico-
cristã da civilização ocidental, Nietzsche apontou para o futuro da
humanidade: sua obra, cujo gênero é de difícil definição, serviu
como uma espécie de espelho côncavo que, concentrando o pas-
sado e o futuro em um presente distorcido, contribuiu para que
nada ficasse incólume ao seu crivo e sua verve crítica.
Sua relação não apenas com Wagner, mas com a música, foi
crucial: ele não a concebia somente como um meio de expressão
artística, mas como a própria síntese de suas idéias filosóficas. O
reingresso do mito como paradigma de um novo homem e de uma
nova época trágica já estava esboçado em sua primeira obra – O
nascimento da tragédia – que ansiava pelo equilíbrio dinâmico entre
Apolo e Dionísio. Essa obra e seu autor foram fundamentais para
o posterior desenvolvimento das teorias e práticas artísticas, pois
influenciaram seus “enfants terribles”, tal como a figura polêmica
e paradigmática de um novo século que se anunciava: o composi-
tor Arnold Schoenberg. O autor de Zaratustra teve forte influência
sobre as idéias que engatilharam o expressionismo alemão. Muitos
dos assuntos abordados por Nietzsche – a autoconsciência, o auto-

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144 Estética da Comunicação Musical

domínio, a auto-superação, os limites entre a razão e a loucura, a


ferida da hipocrisia moral da civilização ocidental, a constatação
de um mundo fragmentado e individualista, o anúncio da morte
de Deus, o niilismo – foram arduamente explorados pelo expres-
sionismo. Destacaram-se, nesta corrente, pelo lado musical, os in-
tegrantes da Segunda Escola de Viena: Arnold Schoenberg e seus
discípulos Alban Berg e Anton Webern.
O apolíneo quer a proporção, a moderação, a ordem, a har-
monia de um mundo racional e ideal; o dionisíaco deseja a paixão,
o dinamismo, o ímpeto, o instinto, a vontade. Na introdução de
seu livro Funções estruturais da harmonia, Schoenberg mencionaria
esse conflito:

A música do Classicismo foi criada em um dos períodos apo-


líneos quando a aplicação e o tratamento das dissonâncias e seu
tratamento, bem como a forma e extensão da modulação, eram
governados por regras que haviam se tornado a segunda natureza
de todo músico. Sua musicalidade era posta em questão caso ele
fracassasse neste aspecto, se fosse incapaz de permanecer, instin-
tivamente, nos limites da convenção. Nesta época, a harmonia era
inerente à melodia.
Mas os novos acordes e dissonâncias da época seguinte, pe-
ríodo dionisíaco (estimulado pelos compositores românticos), mal
haviam sido digeridos e catalogados, e as regras de suas utilizações
gestadas, quando se iniciou um novo movimento progressista an-
tes mesmo de este anterior se estabelecer. Mahler, Strauss, Debussy
e Reger lançaram novos obstáculos no caminho da compreensibi-
lidade musical. Ainda assim, suas recentes e mais violentas disso-
nâncias e modulações ainda podiam ser catalogadas e explicadas
utilizando-se ferramentas teóricas do período precedente.
Isto já não é mais assim em nosso mundo contemporâneo.
Devido a suas muitas tentativas de conectar o passado com o
futuro, estaríamos propensos a chamá-lo de período apolíneo. Mas a
fúria com que os adeptos das várias escolas por suas teorias apresenta
um aspecto mais particulamente dionisíaco.
Muitos compositores contemporâneos acrescentam notas
dissonantes a melodias simples, esperando produzir, assim, sono-

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Eduardo Seincman 145

ridades “modernas”. Mas eles negligenciaram o fato de que tais


acréscimos dissonantes podem exercer funções inesperadas. Ou-
tros compositores ocultam a tonalidade de seus temas por meio de
harmonias deles desvinculadas. As imitações semicontrapontísti-
cas – fugatos tomando o lugar das seqüências, eram anteriormente
utilizadas como “preenchimento” na música medíocre dos “mes-
tres de capela” – aprofundam a confusão, perdendo-se de vista a
pobreza de idéias. A harmoniané, aqui, ilógica e inútil.
Minha escola, incluindo homens como Alban Berg, Anton
Webern e outros, não visa o estabelecimento de uma tonalidade,
mas, também, não o exclui totalmente. O procedimento está base-
ado em minha teoria da “emancipação da dissonância”. Segundo
essa teoria, as dissonâncias são, meramente, consonâncias mais re-
motas da série harmônica. Embora a semelhança dos harmônicos
mais longínquos com a nota fundamental diminua gradativamente,
sua compreensibilidade é idêntica à das consonâncias. Assim, para
os ouvidos de hoje, desapareceu a impressão de pertubação que as
dissonâncias causavam. Sua emancipação é tão justificável quanto
a do intervalo de terça menor nos tempos antigos.1

Constata-se que Schoenberg, em concordância com a postura


do primeiro Niezstche que buscava a unidade trágica entre Apolo
e Dionísio, era favorável ao seu equilíbrio, pois critica os que op-
tando fanaticamente pela novidade se esquecem das conquistas le-
gadas pela tradição. Essa visão mais “classicizante” de Schoenberg
será fundamental para compreender o conflito que se abaterá so-
bre ele, principalmente após a composição de obras mais radicais.
De qualquer modo, ela reflete algo muito mais profundo: as oscila-
ções da geração da Viena fim-de-século entre o desejo burguês de
transpor as barreiras sociais e morais impostas por uma sociedade
aristocrática – e ao mesmo tempo invejando seu status quo – e o
sentimento de culpa pelo fato de tê-las transposto. Este “mal-es-
tar” da época, obviamente presente na pessoa de Schoenberg e de
tantos outros, diz respeito a uma profunda contradição entre os
“dionisíacos” impulsos individuais e as “apolíneas” imposições civi-

1. Arnold Schoenberg. “Cap.XII: Apreciação Apolínea de uma Época Dionisíaca”, in: Fun-
ções estruturais da harmonia. São Paulo: Via Lettera, 2004, p. 216

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146 Estética da Comunicação Musical

lizatórias ou culturais da vida em sociedade. Schorske, analisando


esta questão, comenta:

A arquitetura moderna, a música moderna, a filosofia moder-


na, a ciência moderna – todas se definem não a partir do passado,
e na verdade nem contra o passado, mas em independência do
passado. [...]
Paradoxalmente, o esforço de lançar fora os grilhões da histó-
ria acelerou os processos históricos, pois a indiferença por qualquer
relação com o passado libera a imaginação, permitindo que prolife-
rem novas formas e novas construções. [...]
Viena fin-de-siècle, sentindo profundamente os abalos da desin-
tegração social e política, revelou-se um dos terrenos mais férteis
para a cultura a-histórica de nosso século. Seus grandes inovadores
intelectuais – na música, na filosofia, na economia e arquitetura e,
evidentemente, na psicanálise – romperam, todos eles, e de modo
mais ou menos deliberado, seus laços com a perspectiva histórica
essencial da cultura liberal novecentista em que foram gerados.2

Porém, Arnold Schoenberg tem uma profunda considera-


ção pelo passado: critica, como vimos, os que introduzem notas
dissonantes apenas com o intuito de “produzir sonoridades mo-
dernas”. Sabemos que entre seus maiores exemplos estavam Bee-
thoven, Brahms e Wagner. Schoenberg afirma que aprendeu com
Beethoven a imperiosa necessidade de uma economia de meios, o
emprego de células que fossem o embrião da totalidade da obra.
Essa influência, ainda sob o crivo da linguagem pós-romântica,
já se fará notar em seu Quarteto de cordas op. 7 no 1, em ré menor
(1905), obra esta que foi o início de uma maratona de frustrações.
Paul Stefan, um crítico da época, comentou as reações negativas
do público quando da estréia da obra em 5 de fevereiro de 1907
pelo Quarteto Rosé:

2. Carl E. Schorske. Viena fin-de-siècle – política e cultura. Campinas/São Paulo: Unicamp/


Cia das Letras, 1988, pp. 13-14.

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Eduardo Seincman 147

Para muitas pessoas a obra parecia impossível, e eles abando-


naram a sala enquanto ainda estava sendo executada; um mais
espertinho saiu pela porta de emergência. Além disso, no final ou-
viam-se as vaias da platéia. Mahler, no meio do público, armou-se
imediatamente contra aquela injustiça artística e, emocionalmen-
te envolvido, bravejou contra um dos insatisfeitos dizendo: “Você
não pode vaiar”! O estranho, até então mais dócil que uma ovelha
diante de seu próprio criador, encheu-se de orgulho quando se viu
diante daquele monarca espiritual, e revidou: “Eu também vaio
suas sinfonias”! 3

Decorridos dezessete anos desse episódio, Alban Berg ainda


tentava dar conta do incômodo que o quarteto causara. Assim,
para homenagear o qüinquagésimo aniversário de seu professor,
escreveu o artigo “Por que é tão difícil compreender a música de
Schoenberg?” (1924), em que fazia a sua defesa e de suas obras
atonais a partir de uma análise técnica do início do quarteto.
Schoenberg não é, no entanto, um caso isolado. Desde o final
do século dezenove já se iniciara um rompimento entre os artistas
e o público, sendo este último desprezado por um poeta como
Mallarmé. Havia um clima permanente de ousadia e de inspira-
ção mútua entre os movimentos artísticos da literatura, pintura e
música, o que fazia com que Schoenberg, além de compositor, se
considerasse um pintor (e, de fato, ele chegou a receber elogios de
Kandinsky).
O contexto histórico do início de século incluía violentas
reações contra Salomé e Elektra, de Richard Strauss, A sagração da
primavera, de Stravinsky, a exposição dos fovistas no “Salão de Ou-
tono” de 1906, em Paris, e a comoção causada pelas prostitutas
de Les demoiselles d’Avignon, de Picasso. Havia uma forte relação
entre o fovismo francês e o expressionismo alemão. O grupo “Der
Blaue Reiter” (“O Cavaleiro Azul”), que sucedeu ao “Die Brucke”,
publicou sua revista em que apareciam obras de Picasso, Delaunay,
Henri Rousseau, Matisse e muitos artigos de música, como um en-
saio de Schoenberg e uma discussão a respeito de Scriabin.

3. Willi Reich. Schoenberg – a critical biography. Nova York: Da Capo, 1981, pp. 20-21.

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148 Estética da Comunicação Musical

Em Viena, o primeiro ato de revolta contra o conservadoris-


mo já se dera em 1897, com o grupo de pintores e escultores que
fundou a “Secessão”. Outros grupos iriam se seguir, passando, in-
clusive, a promover concertos musicais, tal como a “Sociedade An-
sorge”, de 1903. Schoenberg e seu professor Zemlinsky seguiram
o exemplo e fundaram a “Sociedade dos Músicos Criativos”, em
1904, tendo Gustav Mahler como presidente honorário e regente.
Em uma circular distribuída em sua inauguração e provavelmen-
te escrita pelo próprio Schoenberg, fala-se da situação musical de
Viena que, se anteriormente costumava estar na vanguarda das no-
vas tendências, agora tinha um público que detestava novidades, a
não ser quando se tratava de operetas. Schoenberg afirmava que
na música, mais que nas outras artes, a resistência às novidades
era muito maior, mesmo em relação ao que era considerado como
“obra-prima”. Dizia não se poder confiar na primeira audição:

Acima de tudo, qualquer espécie de música só poderá ter efei-


to se houver um relacionamento interior entre obra e ouvinte; para
produzi-lo, são de importância decisiva não apenas as qualidades
da obra, mas, também, as do ouvinte. A capacidade de pensamen-
to e sensibilidade musicais do ouvinte devem elevá-lo às demandas
exigidas pela obra, assim como a obra deve preencher todas nossas
demandas, ser tudo o que se pede de uma obra artística.4

Mas, em seguida, insere nesta dialética obra/ouvinte uma vi-


são positivista e evolucionista, afirmando:

Todo progresso, todo desenvolvimento, vai do simples ao


complexo, e os últimos desenvolvimentos musicais são justa-
mente os que irão ampliar todas as dificuldades e obstáculos
com que qualquer novidade em música sempre lidou; como
esta música é mais complexa, e sua harmonia e melodia mais
concentradas, há mais obstáculos, e eles se tornaram nume-
rosos a ponto de se necessitar de inúmeras e repetidas per-
formances de primeira linha a fim de ultrapassá-los, mesmo

4. Willi Reich. Op. cit., p.17.

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Eduardo Seincman 149

assumindo-se a receptividade por parte do ouvinte (e isso é


uma questão tanto de habilidade quanto de vontade). Tais
performances necessitam de preparação, as quais devem ser
extremamente precisas e em perfeita concordância com as
intenções do compositor.5

Os termos por ele utilizados fazem entrever uma situação li-


mítrofe: se a música “evolui” para uma complexidade e concentra-
ção cada vez maiores criando mais e mais “obstáculos”, isso é sinto-
ma de que a própria comunicabilidade foi afetada, e não restará a
Schoenberg outro antídoto senão o de “educar” os ouvidos dos ou-
vintes através de “repetidas performances” para que sejam capazes
de alcançar os “últimos desenvolvimentos musicais”. Além disso, o
compositor é aquele quem “conhece”, de fato, a obra e os intérpre-
tes lhe devem obediência. Essa ótica evolucionista aplicada à arte
se fará posteriormente presente em Adorno e sua “regressão da
audição”, deixando rastros até os nossos dias.
De qualquer maneira, Schoenberg colocará em prática sua ex-
periência: no ano de 1918, em lugar de um concerto tradicional, o
compositor decidiu reunir e orientar quinze músicos de primeiro es-
calão para a realização de dez ensaios públicos de sua Primeira sinfo-
nia de câmera (1906). No dia 4 de julho de 1918, foi publicado o artigo
“Um curso musical de verão” no qual o renomado crítico musical
Heinrich Kralik fazia um relato mordaz deste empreendimento:

Não foi concebido exatamente para iniciantes, mas certamen-


te para aqueles que ainda tinham algo a apreender. Para mentes
ativas que, não contentes com o desfrute confortável e hedonista
da arte, necessitavam, ainda, de uma iniciação aos recônditos se-
gredos dos avanços mais recentes; para aqueles sedentos em des-
cobrir, por fim, o que se espera que eles ouçam e como. Um curso
experimental de instrução cuja finalidade é tornar as faculdades
auditivas (físicas e intelectuais) do ouvinte mais sensíveis às novas
concepções e sonoridades acústicas contidas na música secessio-
nista mais radical. Esta era, grosso modo, a intenção que estava por

5. Willi Reich. Op. cit., pp. 17-18.

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150 Estética da Comunicação Musical

detrás dos dez ensaios públicos da Sinfonia de câmera de Schoen-


berg [...]
Neles, o objetivo era abrandar a recalcitrante faculdade auditi-
va. A instrução prática – uma espécie de propaganda ativa – era o
único meio que restava (e, certamente, o correto) após o truque
da teorização e da exortação bem intencionadas ter fracassado em
seu intento. O Tratado de harmonia de Schoenberg, um respeitável
volume, cheio de excelentes idéias, muito estimulantes, a despeito
da abundância de afirmações sábias é incapaz de remodelar o ou-
vido de quem quer que seja. A única coisa que pode salvar é um
obstinado curso metódico. Algo que, ouvido pela nona vez, ainda
era uma monstruosidade acústica, quando ouvido pela décima vez
aflora como algo já familiar, e poderá inclusive estar no ponto de
revelar todas as formas de beleza misteriosas – na próxima vez...6

É de se perguntar: não estaria Schoenberg, em seu íntimo,


colocando em dúvida a própria comunicabilidade de suas obras
“radicais” e tentando suprir essa “deficiência” estética por meio
do treinamento auditivo das platéias? Terá Schoenberg se inco-
modado com o grau de “complexidade” de sua própria música, tal
como ocorreu quando, em uma aula, ao ouvir uma gravação de
um movimento de um de seus quartetos de cordas comentou que
não o “compreendia”? Contudo, antes de ser imputada a questões
puramente pessoais, talvez essa cisão que começa a se impor entre
escrita e escuta se deva à própria crise do fim-de-século entre a
tensão da “vontade” dionisíaca e a “representação” apolínea, entre
o impulso de inovação e o peso da tradição.
Schoenberg costumava afirmar que ao compor uma obra
obedecia a uma compulsão interior mais poderosa que qualquer
educação. Educar auditivamente o público parece ser, portanto,
uma tentativa de anular tal compulsão dionisíaca. Berg, auxilian-
do Schoenberg em sua empreitada, publica uma análise da estru-
tura formal de sua Primeira Sinfonia de Câmara7 em que procura
demonstrar que ela possui lógica, sentido e forma. Berg apontou

6. Willi Reich. Op. cit., p. 113-114.


7. Análise publicada pela Universal Edition, em 1913.

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Eduardo Seincman 151

duas possíveis análises formais: trata-se ou da ampliação de um


allegro-de-sonata com duas incrustações – uma entre a Exposição
e o Desenvolvimento, e outra entre este último e a Reexposição –
ou, então, de uma colagem de vários movimentos em um só. Mas,
nenhuma das duas hipóteses é factível enquanto realidade sono-
ra. Se nos guiarmos pela primeira hipótese, constataremos que o
primeiro tema já sofre, desde o início, um alto grau de elaboração
dando a impressão de que já se está em plena seção de Desenvol-
vimento. O critério de adotar uma análise formal tradicional é, na
realidade, uma camisa-de-força para algo que, sendo um “work in
progress” com viés pós-romântico, se baseia na expansão pratica-
mente ininterrupta da primeira célula de abertura da obra: uma
figura melódica de intervalos de 4as superpostas que, tal como na
Quinta sinfonia de Beethoven, se “auto-harmoniza” e se transfigura
no percurso da obra. Sabemos, inclusive, que a aparente ausência
de uma conexão lógica entre o tema principal e o secundário inco-
modou Schoenberg por anos a fio até que, “aliviado”, finalmente
ele a encontrou.
Como a comunicação musical se estabelece através de um
processo sonoro, e não escrito, pode-se dizer que a face dionisíaca
da Sinfonia de câmera, tal como em suas demais obras da época,
preponderou sobre a apolínea. Seu discurso “embriaga”, assume o
controle da narrativa e, portanto, o apelo à forma foi usado mais
por razões de ordem conjuntural do que propriamente estéticas:
a forma, nesse caso, não seria “digna de questionamento”. Essa
incompatibilidade entre a experiência estética e a teorização analí-
tica não é “culpa” da música, mas do conservadorismo de Schoen-
berg e Berg que tentam enquadrar o fenômeno sonoro em forma
tradicionais preestabelecidas (correndo, inclusive, o risco de dis-
torcerem a própria experiência estética da obra). Rosen comentou
esse aspecto apolíneo:

Para Schoenberg, a forma era basicamente o mesmo que para


o século XIX: um conjunto ideal de proporções e configurações
que transcendiam o estilo e a linguagem; sempre e em qualquer

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152 Estética da Comunicação Musical

estilo podiam ser postas em prática porque eram absolutas. Os


três grandes tipos de forma eram a sonata, a variação e a forma
da capo.7

Schneider também comentou essa incontrolável compulsão


dionisíaca de Schoenberg:

Schoenberg, desautorizando a si próprio, declarou ao final


de sua vida que seu drama havia consistido “em tratar de fazer algo
totalmente convencional sem havê-lo conseguido. Sempre, contra
minha vontade, o resultado foi algo inusitado”.9

O próprio Schoenberg comentando o período que vai de Gur-


relieder (1900) às Quinze canções sobre poemas de Stefan George (1908),
esclarece sua “compulsão interior”:

Com as Canções de George eu consegui, pela primeira vez, al-


cançar um ideal de expressão e forma que esteve em minha mente
durante anos. Até agora, eu não tivera a força e a coragem de torná-
lo realidade. Mas agora que trilhei definitivamente esse caminho,
tenho a consciência de ter superado cada uma das restrições de
uma estética ultrapassada; e, embora a meta à qual me empenho
me pareça correta, já estou sentindo, entretanto, a resistência que
terei de superar. [...]
Portanto, me pareceu adequado apontar, apresentando Gur-
relieder – que há alguns anos atrás não possuía admiradores mas
que hoje tem muitos –, que estou sendo forçado nessa direção não
porque minha criação ou técnica seja inadequada, nem porque
esteja desinformado sobre as demandas da estética anterior, mas
porque estou obedecendo a uma compulsão interior que é mais
poderosa que qualquer legado: porque obedeço a um processo
criativo que, sendo natural para mim, é mais forte que minha edu-
cação artística.10

8. Charles Rosen. Schoenberg, Barcelona: Antoni Bosch, 1983, p. 106.


9. M. Schneider. La sinfonía imaginaria. Barcelona: Juan Granica, 1983, p. 218.
10. Willi Reich. Op. cit., p. 49.

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Eduardo Seincman 153

A despeito de suas resistências apolíneas enquanto profes-


sor e teórico, o lado dionisíaco de Schoenberg como compositor
predominava:

As realizações de Schoenberg e sua escola entre os anos de


1908 e 1913 têm, inclusive hoje em dia, certas implicações tão ex-
plosivas que se pode dizer que estamos apenas começando a com-
preendê-las. Esses anos assistiram a criação de várias das melhores
obras da escola, entre as quais se incluem a maioria das obras mais
conhecidas de Webern e as Três peças para orquestra e os Altenberglieder
de Berg. Em um só ano, 1909, Schoenberg terminou Das Buch der
Hängenden Garten – ciclo de canções baseados nos poemas de Stefan
George que havia iniciado no ano anterior –, escreveu as Três peças
para piano op. 11, as Cinco peças para orquestra e a ópera em um ato
Erwartung. Esta última obra foi composta em dezessete dias; Scho-
enberg a escreveu, como quase todas suas obras, em um frenesi de
inspiração. Ocorria que, uma vez perdido o fio de uma peça, quase
nunca podia retornar a ela sem que isso fosse um desastre.11

O percurso de Schoenberg é, portanto, uma verdadeira ba-


talha entre Apolo e Dionísio, em que a tentativa de o primeiro
domar o segundo assume várias formas:

• Audições e ensaios didáticos das obras;


• Schoenberg pára temporariamente de escrever a fim de criar
um novo sistema musical, o dodecafonismo, sistema musical de
características predominantemente apolíneas: é autocentra-
do, simétrico e equilibrado; a série original, e seus espelha-
mentos, comporta-se como uma Idéia (conceito que lhe é
caro) arquetípica e platônica “fora do tempo”;
• Retorno à forma (neoclacissmo): é sintomático que sua pri-
meira obra dodecafônica seja um minueto, o “Minueto” da
Suíte op. 25 (1921). O título talvez seja irônico ou provocativo,
como de fato aparenta ser, ou então seria um desejo de pro-

11 Charles Rosen. Op. cit., p. 21.

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154 Estética da Comunicação Musical

var a si mesmo que a forma apolínea finalmente preponde-


rou à compulsão dionisíaca;
• Redução do aparato instrumental;
• O retorno à tonalidade, que Schoenberg abandonara em
nome da “emancipação da dissonância”, revelará mais uma
faceta apolínea do compositor.

Para Rosen,

O serialismo de Schoenberg teve sérias conseqüências no as-


pecto estético. Em um sentido, constituiu um grave retrocesso com
respeito ao enfoque de suas primeiras obras, nas quais havia se
esforçado para que o timbre, o colorido sonoro e a textura não fossem
meros acessórios, mas elementos tão importantes para a música
quanto a altura dos sons. O sistema dodecafônico exalta novamen-
te a altura do som à categoria de veiculo essencial da invariância,
de elemento fundamental da unidade”.12

Porém, quando Rosen fala do “retrocesso” do serialismo, não


estaria atendo-se à própria visão positivista inicial de Schoenberg
que proclamava que os desenvolvimentos musicais iriam se efetuar
em uma escala cada vez mais alta e irreversível? Mas é de se ques-
tionar também se Schoenberg não teria tomado consciência de
que muitas das dificuldades e resistências, de então, se deveram a
uma boa dose de incomunicabilidade daquelas obras. Quem sabe,
não estaria Schoenberg agora mais preocupado com o plano do
discurso do que propriamente com a inovação técnica do plano
da linguagem? Ou ainda, as preocupações com o timbre, com o
colorido sonoro e textura, a que alude Rosen, não delatariam a
forte influência do expressionismo pictórico sobre o musical? Pois
sabemos que Schoenberg, além de músico, foi um pintor expres-
sionista, e que acreditava ser a linguagem musical muito mais con-
servadora do que a pintura requerendo, desse modo, mais tempo
para deglutir as grandes novidades.

12. Charles Rosen. Op. cit., pp. 116-117.

Estética da Comunicação Musical 154 154 17/3/2008 18:08:03


Eduardo Seincman 155

Não esquecendo, conforme salientara Nietzsche, que Apolo


e Dionísio estarão em maior ou menor grau sempre presentes em
quaisquer obras, pode-se dizer que cada um dos três integrantes
da Segunda Escola de Viena optou por uma postura diferenciada
com relação ao “esgotamento” do sistema musical do século XIX:
em Webern predomina o apolíneo, a perfeição formal, as sime-
trias cristalinas, o mundo platônico das formas puras a extrema
concisão; em Schoenberg, como visto, impera a pulsão dionisíaca,
os rompantes expressionistas, a distorção da forma; em Berg, há
um verdadeiro equilíbrio tenso e dramático, “trágico” diria Niet-
zsche, entre Apolo e Dionísio. Berg, entre os três, talvez seja o mais
“humano, demasiado humano”: é quem mais se aproxima do ideal
nietzscheano de um renascimento do espírito trágico no homem.
A escuta de sua Sonata op. 1, para piano, revela-o: o “classicismo”
de Berg realiza uma espécie de equilíbrio ótimo e enérgico entre
o “tempo vivido” e o “tempo pensado”; a forma não se impõe, mas
resulta da própria organicidade do discurso:

Existe uma importante diferença entre a atitude de Berg e a


de Schoenberg com respeito às formas tradicionais. Berg sustenta-
va que não queria que o público se inteirasse do emprego destas
formas; Schoenberg, que desejava que o público não notasse a téc-
nica serial, preocupava-se especialmente de que as formas exterio-
res fossem claramente audíveis.13

Quando a forma é um dado orgânico da obra, como ocorre


em Berg, ela de fato não “aparece”. Para Schoenberg, ela se torna
um problema, nem sempre de fácil resolução. Em Webern a obra
é antes de mais nada, forma, estrutura, molde, modelo, arquétipo:
aqui, o grande desafio não é o de mostrá-la, pois esse é o dado
mais aparente, mas dotá-la de “conteúdo” expressivo, de subjeti-
vidade, pois tende a se tornar “inumana, demasiado inumana”.
Não é mera coincidência o fato de Berg ter sido o único dos três
a escrever óperas de fato. Berg, tal como Mozart, era um compo-
sitor “teatral”, de dramas, de música para o palco, mesmo que as

13. Charles Rosen. Op. cit., p. 107.

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peças não tivessem tal finalidade. As pretensões de Moises e Arão,


de Schoenberg, são outras:

Poder-se-ia dizer da arte moderna que o que a torna assim, e


inconfundível para a nossa sensibilidade, é a freqüente dissonân-
cia entre conteúdo moral e psicológico e forma tradicional. Sen-
do um drama da não-comunicação, da resistência primordial da
percepção intuitiva ou revelada à encarnação verbal e plástica (a
recusa da palavra em ser transformada em carne), Moses und Aron
é, em um plano vital, uma ópera sobre a ópera. É uma demonstra-
ção da impossibilidade de encontrar um acorde exaustivo entre
linguagem e música, entre corporificação sensória e a enorme ur-
gência e pureza de sentido pretendido. Ao fazer do conflito dra-
mático o conflito entre o homem que fala e o homem que canta,
Schoenberg defendeu até o último limite a convenção paradoxal,
o compromisso com o irreal, inerente a toda ópera.
O paradoxo resolve-se em derrota, em um grande grito de
necessário silêncio.14

Mesmo a ópera Wozzeck, de Berg, é bastante “clássica” se com-


parada a esta obra de Schoenberg em que o silêncio e a impossibi-
lidade da palavra assumem o cerne dramático. É, pois, sintomático
que Schoenberg, tal como já fizera em Pierrot Lunaire op. 21, esteja
revolucionando a própria ópera: é que os extremos – Schoenberg,
dionisíaco e Webern, apolíneo – tocam sempre nos limites da se-
manticidade e da comunicabilidade musicais, ao passo que Berg,
no ponto de equilíbrio, utilizando a tradição para questioná-la de
dentro, não pretende, de modo algum, contestar o passado ou ne-
gar o papel da História. Webern e Schoenberg, ao debruçarem-se
sobre o passado o fazem com a intenção de ultrapassá-lo afirman-
do, com isso, um futuro, mesmo que idealizado. As construções
da poética de Berg surgem das necessidades inerentes ao próprio
drama que se desdobra em cena.

14. George Steiner. Linguagem e silêncio – ensaios sobre a crise da palavra. São Paulo: Cia das
Letras, 1988.

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Berg não necessitou “emancipar-se da dissonância”, pois suas


obras revelam que consonância/dissonância se comporta como
um binômio de opostos e complementares que só pode ser expe-
rimentado dentro do contexto sonoro e comunicativo da obra. Ele
não tinha motivos para deixar de lado as tríades perfeitas do siste-
ma tonal ou de misturar serialismo e tonalidade quando o drama
de seu Concerto para violino assim o exigia.

* * *

Uma última questão: não seria o ato de pintar, para Schoen-


berg, uma espécie de antídoto à sua própria obra musical na medi-
da em que ali ele podia “representar” à vontade, sem ter de domar
sua “vontade” dionisíaca?

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FINALE

É difícil terminar um livro que não tem fim. No entanto,


se, por ventura, você meu leitor chegou até aqui sentindo que
ainda há muito mais para se pensar e esclarecer, então me dou
por satisfeito, pois desse ponto em diante minha tarefa será
compartilhada.
Se escrevi um livro sobre a estética da comunicação musical,
é porque penso que a música não pode estar desacompanhada
dessas outras duas palavras mágicas e enigmáticas. Assim, suas
reflexões nada mais são que reflexos dessas misteriosas ondas que
constituem apenas o lado aparente da música, mas cuja profundi-
dade depende de nossa criatividade para dotá-las de sentido.
Se alguém me perguntar o que é estética da comunicação
musical, talvez eu indique esse livro, dizendo: leia-o. E se a sua
leitura gerar uma infinidade de questões, então terei, talvez, cum-
prido uma parte importante de meus objetivos.

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