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Alegoria da Caverna - Platão

Retirado de: PLATÃO. A República, Livro VII, 514a-521b. Lisboa: Ed. Fundação Calouste
Gulbenkian, 1990. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira (adaptado).

Participam do diálogo: Sócrates e Glauco.

“(Sócrates) - Depois disto – prossegui eu - Então, se eles fossem capazes de


– imagina a nossa natureza, relativamente à conversar uns com os outros, não te parece
educação ou à sua falta, de acordo com a que eles julgariam estar a nomear objetos
seguinte experiência. Suponhamos uns reais, quando designavam o que viam?
homens numa habitação subterrânea em - É forçoso.
forma de caverna, com uma entrada aberta - E se a prisão tivesse também um eco
para a luz, que se estende a todo o na parede do fundo? Quando algum dos
comprimento dessa gruta. Estão lá dentro transeuntes falasse, não te parece que eles
desde a infância, algemados de pernas e não julgariam outra coisa, senão que era a
pescoços, de tal maneira que só lhes é dado voz da sombra que passava?
permanecer no mesmo lugar e olhar em - Por Zeus, que sim! – De qualquer modo
frente; são incapazes de voltar a cabeça, – afirmei – pessoas nessas condições não
por causa dos grilhões; serve-lhes de pensavam que a realidade fosse senão a
iluminação um fogo que se queima ao longe, sombra dos objetos.
numa eminência, por detrás deles; entre a - É absolutamente forçoso – disse ele.
fogueira e os prisioneiros há um caminho - Considera pois – continuei – o que
ascendente, ao longo do qual se construiu aconteceria se eles fossem soltos das
um pequeno muro, no gênero dos tapumes cadeias e curados da sua ignorância, a ver
que os apresentadores de fantoches se, regressados à sua natureza, as coisas
colocam diante do público, para mostrarem se passavam deste modo. Logo que alguém
as suas habilidades por cima deles. soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-
(Glauco) - Estou a ver – disse ele. se de repente, a voltar o pescoço, a andar e
- Visiona também ao longo deste muro, a olhar para a luz, ao fazer tudo isso,
homens que transportam toda a espécie de sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-
objetos, que o ultrapassam: estatuetas de ia de fixar os objetos cujas sombras via
homens e de animais, de pedra e de outrora. Que julgas tu que ele diria, se
madeira, de toda a espécie de lavor; como é alguém lhe afirmasse que até então ele só
natural, dos que os transportam, uns falam, vira coisas vãs, ao passo que agora estava
outros seguem calados. mais perto da realidade e via de verdade,
- Estranho quadro e estranhos voltado para objetos mais reais? E se ainda,
prisioneiros são esses de que tu falas – mostrando-lhe cada um desses objetos que
observou ele. passavam, o forçassem com perguntas a
- Semelhantes a nós – continuei -. Em dizer o que era? Não te parece que ele se
primeiro lugar, pensas que, nestas veria em dificuldades e suporia que os
condições, eles tenham visto, de si mesmo e objetos vistos outrora eram mais reais do
dos outros, algo mais que as sombras que os que agora lhe mostravam?
projetadas pelo fogo na parede oposta da - Muito mais – afirmou.
caverna? - Portanto, se alguém o forçasse a olhar
- Como não – respondeu ele – se são para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e
forçados a manter a cabeça imóvel toda a voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos
vida? objetos para os quais podia olhar, e julgaria
- E os objetos transportados? Não se ainda que estes eram na verdade mais
passa o mesmo com eles? nítidos do que os que lhe mostravam?
- Sem dúvida. - Seria assim – disse ele.

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- E se o arrancassem dali à força e o intenso desejo “servir junto de um homem
fizessem subir o caminho rude e íngreme, e pobre, como servo da gleba”1, e antes sofrer
não o deixassem fugir antes de o arrastarem tudo do que regressar àquelas ilusões e
até à luz do Sol, não seria natural que ele se viver daquele modo?
doesse e agastasse, por ser assim - Suponho que seria assim – respondeu
arrastado, e, depois de chegar à luz, com os – que ele sofreria tudo, de preferência a
olhos deslumbrados, nem sequer pudesse viver daquela maneira.
ver nada daquilo que agora dizemos serem - Imagina ainda o seguinte – prossegui
os verdadeiros objetos? eu –. Se um homem nessas condições
- Não poderia, de fato, pelo menos de descesse de novo para o seu antigo posto,
repente. não teria os olhos cheios de trevas, ao
- Precisava de se habituar, julgo eu, se regressar subitamente da luz do Sol?
quisesse ver o mundo superior. Em primeiro - Com certeza.
lugar, olharia mais facilmente para as - E se lhe fosse necessário julgar
sombras, depois disso, para as imagens dos daquelas sombras em competição com os
homens e dos outros objetos, refletidas na que tinham estado sempre prisioneiros, no
água, e, por último, para os próprios objetos. período em que ainda estava ofuscado,
A partir de então, seria capaz de contemplar antes de adaptar a vista – e o tempo de se
o que há no céu, e o próprio céu, durante a habituar não seria pouco – acaso não
noite, olhando para a luz das estrelas e da causaria o riso, e não diriam dele que, por
Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol ter subido ao mundo superior, estragara a
e o seu brilho de dia. vista, e que não valia a pena tentar a
- Pois não! – Finalmente, julgo eu, seria ascensão? E a quem tentasse soltá-los e
capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo
não já a sua imagem na água ou em e matá-lo, não o matariam?
qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu - Matariam, sem dúvida – confirmou ele.
lugar. – Meu caro Glauco, este quadro –
- Necessariamente. prossegui eu – deve agora aplicar-se à tudo
- Depois já compreenderia, acerca do Sol, quanto dissemos anteriormente,
que é ele que causa as estações e os anos comparando o mundo visível através dos
e que tudo dirige no mundo visível, e que é olhos à caverna da prisão, e a luz da
o responsável por tudo aquilo de que eles fogueira que lá existia à força do Sol.
viam um arremedo. Quanto à subida ao mundo superior e à
- É evidente que depois chegaria a essas visão do que lá se encontra, se a tomares
conclusões. como a ascensão da alma ao mundo
- E então? Quando ele se lembrasse da inteligível, não iludirás a minha expectativa,
sua primitiva habitação, e do saber que lá já que é teu desejo conhecê-la. O Deus
possuía, dos seus companheiros de prisão sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo
desse tempo, não crês que ele se entendo, no limite do cognoscível é que se
regozijaria com a mudança e deploraria os avista, a custo, a idéia do Bem; e, uma vez
outros? avistada, compreende-se que ela é para
- Com certeza. todos a causa de quanto há de justo e belo;
- E as honras e elogios, se alguns tinham que, no mundo visível, foi ela que criou a luz,
então entre si, ou prêmios para o que da qual é senhora; e que, no mundo
distinguisse com mais agudeza os objetos inteligível, é ela a senhora da verdade e da
que passavam e se lembrasse melhor quais inteligência, e que é preciso vê-la para se
os que costumavam passar em primeiro ser sensato na vida particular e pública.
lugar e quais em último, ou os que seguiam
juntos, e àquele que dentre eles fosse mais
hábil em predizer o que ia acontecer –
parece-te que ele teria saudades ou inveja
das honrarias e poder que havia entre eles,
ou que experimentaria os mesmos
sentimentos que em Homero, e seria seu
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2 HOMERO. Odisséia XI. 489-490.
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