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Pusemo-nos a destrinchar o processo da vida com etc. de tal forma que elas não se reduzam umas às
nossas tesouras de pesquisa. Fomos do organismo para o outras e nos levem a um tipo de conhecimento que se
órgão, do órgão ao tecido, do tecido à célula, até chegar- diferencia daquele que é concebido na ótica do carte-
mos à molécula de DNA em seu ambiente celular. Conti- sianismo e do positivismo, caracterizando-se, princi-
nuamos a picotar. Decompusemos o DNA. Decompusemos palmente, pela pluralidade e heterogeneidade.
o ambiente. Com surpresa, descobrimos que a vida desa- Nesse sentido, a abordagem multirreferencial
pareceu. Para onde ela foi? pode ser considerada como uma (entre várias) res-
posta às críticas que são dirigidas aos modelos cientí-
Schwartz, 1992
ficos estruturados a partir do racionalismo cartesiano
e do positivismo comteano. Japiassu (1975) assinala
que quando as ciências humanas se instauraram elas
Introdução buscaram seu reconhecimento e sua legitimidade
como ciências apoiando-se em paradigmas então con-
Pretendemos trazer para discussão algumas con- sagrados pelas ciências naturais. Objetividade e neu-
tribuições da abordagem multirreferencial desenvol- tralidade são almejadas em direção a um conhecimen-
vida por Jacques Ardoino para a compreensão dos to positivo da realidade humana. Buscar nas ciências
fenômenos sociais e, mais especificamente, aqueles naturais os meios para garantir a legitimidade cientí-
que se circunscrevem no âmbito da educação, enfo- fica fez com que as ciências humanas assumissem os
cando especificamente alguns desdobramentos epis- pressupostos das ciências naturais, incorporando uma
temológicos. perspectiva epistemológica e, em conseqüência, uma
Esta abordagem, à medida que pretende assegu- perspectiva metodológica que não lhe é própria, o que
rar a complexidade de tais fenômenos, pressupõe a não nos possibilita explicitar os fenômenos humanos
conjugação de uma série de abordagens, disciplinas em sua profundidade – em sua complexidade.
retamente relacionada com o reconhecimento da com- Sua postura epistemológica se estrutura com base
plexidade e da heterogeneidade que caracterizam as no reconhecimento do caráter plural dos fenômenos
práticas sociais. Segundo ele “Foi efetivamente, em sociais:
1966, especialmente em Communications et Relations
Humaines [...], no prefácio a La pedagogie institutio- [...] quer dizer que no lugar de buscar um sistema explicativo
nnelle, de Michel Lobrot [...], e na revista Education unitário [...] as ciências humanas necessitam de explica-
Nationale [...], de junho de 1967, que foram delineadas ções, ou de olhares, ou de óticas, de perspectivas plurais
as primeiras noções deste procedimento a respeito das para dar conta um pouco melhor, ou um pouco menos mal,
situações educativas representadas como complexas” da complexidade dos objetos. (Ardoino, 1998d, p. 4)
(Ardoino apud Barbosa, 1998, p. 200).
Em seus trabalhos iniciais, o referido autor esta- Ou seja, a
belece o que denominou de modelo de inteligibilida-
de das organizações; suas preocupações o aproximam [...] análise multirreferencial das situações das práticas dos
de outros intelectuais vinculados ao que é conhecido fenômenos e dos fatos educativos se propõe explicitamente
como Movimento de Análise Institucional. Para ele, uma leitura plural de tais objetos, sob diferentes ângulos e
a análise institucional é uma forma de introdução para em função de sistemas de referências distintos, os quais
a análise multirreferencial (Ardoino, 1998a), visto que não podem reduzir-se uns aos outros. Muito mais que uma
ambas têm o mesmo objetivo, qual seja, permitir uma posição metodológica, trata-se de uma decisão epistemoló-
certa explicação – uma elucidação – do não-dito, das gica. (Ardoino, 1995a, p. 7)
entrelinhas, do movimento latente, implícito nas prá-
ticas sociais, entre elas a educação (Ardoino, 1995a). Essa proposta de trabalho é elaborada num mo-
A análise multirreferencial, por sua vez, caracteriza- mento muito específico da educação francesa. Res-
se como um modelo de inteligibilidade específico, que gatando esse momento, Ardoino destaca:
veio a se tornar conhecido por “análise institucional
multirreferencial, ou plural” (Ardoino, 1998b, p. 43). [...] nos anos 60 a situação da educação pública da França
Cabe salientar que Ardoino, numa das citações coloca questões de reificação, pois o aparelho educativo, um
precedentes, denomina a abordagem multirreferencial aparelho ideológico de estado para falar na linguagem de
de procedimento, referindo-se ao modelo de inteligi- Althusser, faz que não haja mais elasticidade, não haja mais
bilidade esboçado em 1966. Nesse sentido, podemos flexibilidade. Note bem, trinta e cinco anos depois o atual
dizer que essa abordagem é, inicialmente, uma res- ministro da educação definiu o sistema educativo francês como
posta ao caráter extremamente complexo da prática um “mamute”, que tem que emagrecer. Isto quer dizer que aí
social e, principalmente, das práticas educativas. Tal há uma forma de monstro pré-histórico, e isso quer dizer tam-
complexidade traz para aqueles que estão envolvidos bém que não houve muito progresso [durante todos esses anos].
com questões educacionais (professores, pedagogos, Na época, 1965, isso já era visível e a complexidade emer-
psicólogos etc.) uma série de dificuldades de leitura e gia [...] no prolongamento de inovações cibernéticas, tecno-
de compreensão sobre suas próprias práticas, o que lógicas. Eu acho que são esses os fatores que vão nos condu-
se desdobra em dificuldades de tomar decisões zir [...] ao reconhecimento do plural. (Ardoino, 1998d, p. 2)
(Ardoino, 1998c).
Se, num primeiro momento, a abordagem mul- Quanto ao domínio científico daquele momento,
tirreferencial se caracteriza como um procedimen- ele avalia que existia e ainda existe
to, notamos, ao longo dos trabalhos de Ardoino, que
suas preocupações se voltaram para as questões epis- [...] uma idéia de pureza, da unidade, que encontra a idéia
temológicas implícitas no procedimento proposto. de homogeneidade. Então a multirreferencialidade é antes
de tudo o reconhecimento do valor do plural [da pluralida- pensamento complexo, este não será um pensamento capaz
de]. Quer dizer que esse plural vale pelo menos tanto quan- de abrir todas as portas [...] mas um pensamento onde esta-
to a unidade. Eu creio que isso já era verdade em 1965 ao rá sempre presente a dificuldade. (Morin, 1996a, p. 274)
nível das práticas, mas é tanto verdade também hoje, em
1998, e provavelmente porque se vê melhor o movimento O termo complexidade traz em seu cerne confu-
de globalização que busca incansavelmente esta homoge- são, incerteza e desordem. Para Morin, ele expressa
neização. (Ardoino, 1998d, p. 2) “nossa confusão, nossa incapacidade para definir de
maneira simples, para nomear de maneira clara, para
Temos, com base nessa posição de Ardoino, uma pôr ordem em nossas idéias” (Morin, 1996b, p. 21).
nova perspectiva para a compreensão dos fenômenos Conforme suas palavras, o pensamento complexo é
educativos: a da pluralidade e da heterogeneidade. visto como uma
Como apontei em outro lugar (Martins, 1999),
nosso sistema educacional – apesar das novas expe- [...] viagem em busca de um modo de pensamento capaz de
riências e iniciativas – ainda aborda o processo educa- respeitar a multidimensionalidade, 1 a riqueza, o mistério
cional como aquele que deve oferecer um conjunto de do real, e de saber que as determinações – cerebral, cultu-
experiências que assegure uma espécie de unidade, ral, social, histórica – que se impõem a todo o pensamento
tendo em vista a “formação integral do educando”. co-determinam sempre o objeto de conhecimento. É isso
Essa forma de abordar o processo, no entanto, que eu designo por pensamento complexo. (Morin apud
traz implícita a noção de identidade, o que nos remete Petraglia, 1995, p. 46)
para a mesmice, para o igual – o que revela uma repe-
tição do mesmo. Repetição que se distende sob duas Tal posição é claramente distinta da perspectiva
perspectivas: a primeira diz respeito ao cumprimento epistemológica do conhecimento científico tradicional
das expectativas que professores e estudantes estrutu- (cartesiano, positivo etc.), pois este último “foi conce-
ram entre si (Aquino, 1996); a segunda refere-se ao bido durante muito tempo, e ainda é freqüentemente,
próprio processo de aprendizagem, cujo desdobramen- como tendo por missão dissipar a aparente complexi-
to se revela nas “eternas repetições do conteúdo apren- dade dos fenômenos, com o intuito de revelar a ordem
dido”, que são realizadas pelos alunos durante sua vida simples a que obedecem” (Morin, 1996b, p. 21).
escolar. Tais perspectivas, no entanto, modificam-se A necessidade do pensamento complexo se im-
na medida em que considerarmos os espaços educati- põe, portanto, quando o pensamento simplificador
vos em sua complexidade. A introdução dessa noção encontra seus limites, suas insuficiências, suas carên-
no âmbito educacional redimensiona-o, trazendo no- cias. No entanto, cabe ressaltar que a complexidade
vas perspectivas para a pesquisa dos fenômenos que não elimina a simplicidade.
ali se estabelecem. É o que veremos a seguir.
[...] A complexidade aparece ali onde o pensamento
A noção de complexidade simplificador falha, mas integra em si mesma tudo aquilo
que põe ordem, claridade, distinção, precisão no conheci-
Como assinalei anteriormente, a noção de multir- mento. Enquanto o pensamento simplificador desintegra a
referencialidade está estreitamente relacionada com a complexidade do real, o pensamento complexo integra o
noção de complexidade. Ardoino toma essa noção no mais possível os modos simplificadores de pensar, mas re-
sentido que Edgar Morin lhe confere, ou seja:
cusa as conseqüências mutilantes, reducionistas, unidimen- Para Ardoino, esse tipo de abordagem é possível
sionalizantes e finalmente ocultadoras de uma simplifica- quando se trata de fenômenos químicos, ou físicos,
ção... (Morin, 1996b, p. 22) até mesmo matemáticos, mas “não há coincidência
possível entre essa visão das coisas e o fenômeno vivo
Cabe ressaltar que, para Morin, o paradigma da ou, mais especificamente ainda, humano e social.
complexidade não “produz” nem determina a inteli- Nesse sentido, nenhuma redução é legítima” (Ardoino,
gibilidade: “ele pode incitar a estratégia/inteligência 1995a, p. 8).
do sujeito pesquisador a considerar a complexidade Atribuir a um objeto a característica de comple-
da questão estudada” (Morin, s.d., p. 334). Ou seja, xo significa, em princípio, que nós estamos nos de-
para Morin, assim como para Ardoino (1998c), a com- frontando com um problema lógico, e esse problema
plexidade não está no objeto, mas no olhar de que o aparece quando a lógica dedutiva se mostra insuficien-
pesquisador se utiliza para estudar seu objeto, na te para dar uma prova num sistema de pensamento, o
maneira como ele aborda os fenômenos. que faz com que apareçam contradições insuperáveis.
A educação é entendida, no âmbito da aborda- Visto que o ser humano se caracteriza por uma
gem multirreferencial, “como uma função global, que multideterminação de fatores: sociais, econômicos,
atravessa o conjunto dos campos das ciências do ho- políticos, psíquicos etc., o que o localiza na ordem
mem e da sociedade, interessando tanto ao psicólogo do complexo, as abordagens que se inspiraram no
como ao psicólogo social, ao economista, ao sociólo- cartesianismo ou mesmo no positivismo, buscando
go, ao filósofo ou ao historiador etc.” (Ardoino, 1995a, na redução a compreensão para os fenômenos huma-
p. 7). À medida que os fenômenos educativos são apre- nos, confrontam-se constantemente com os limites
endidos enquanto complexidade, torna-se necessário que essas posturas epistemológicas lhes impõem, aca-
uma abordagem que atente para essas várias perspec- bando por produzir um conhecimento fragmentado e
tivas, reconhecendo suas recorrências e contradições, superficial.
de tal forma que elas não se reduzam umas às outras. Nesse sentido, tomando a educação em sua com-
Entretanto, uma abordagem tradicional – aquela plexidade, bem como as ciências que fazem dela seu
cujos pressupostos vinculam-se ao racionalismo car- objeto, Ardoino, assinala:
tesiano ou ao positivismo – tem como perspectiva
“recortar” o real, decompô-lo em elementos cada vez Apesar das tentativas para “calcá-las” mais ou menos
mais simples, cada vez mais fundamentais, cuja com- sobre o padrão das ciências exatas, já não podemos nos
binação resulta igualmente nas propriedades do con- contentar atualmente com uma aproximação somente “po-
junto, ou seja, o todo corresponde à soma de suas par- sitivista” no marco das ciências antropossociais, no seio
tes, e vice-versa. das quais se situam, incontestavelmente, diferentes olhares
Essa última postura pressupõe, para Ardoino, que que pretendem dar conta cientificamente dos fenômenos
os fenômenos educativos são susceptíveis de trans- que interessam à educação e às práticas que põem esta em
parência, ou seja, ação. (1995a, p. 8)
[...] algo mais que só aquilo que pode ser atravessado pelo Com a noção de complexidade desenvolvida por
olhar, abarcado, totalmente descrito, definido ou inspecio- Morin, Ardoino quer chamar a atenção para a neces-
nado segundo o sentido corrente, e incluir o que pode ser sidade de um “luto da ambição simplificadora”, bem
construído efetivamente, fisicamente, segundo a necessi- marcada pela ciência de inspiração cartesiana – divi-
dade, mas ainda descontruído (decomposto) e reconstruído, dir a dificuldade. “Reconhecer a complexidade como
idêntico, com todas suas propriedades, pelo espírito conhe- fundamental em um âmbito de conhecimento dado é
cedor. (Ardoino, 1995a, p. 8) então, por sua vez, postular o caráter ‘molar’, holístico
da realidade estudada e a impossibilidade de sua re- menos humanos, o que vai circunscrever o modelo de
dução por recorte, por decomposição em elementos inteligibilidade citado anteriormente.
mais simples” (Ardoino, 1995a, p. 8). Podemos dizer que o trabalho do pesquisador
A perspectiva multirreferencial, à medida que aproxima-se ao do bricoleur, como propõe Lapassade
postula que o conhecimento sobre os fenômenos edu- (1998). Essa idéia elaborada por Lapassade inspirou-
cativos – considerando a complexidade destes últi- se nas considerações tecidas por Lévi-Strauss em Pen-
mos – deve ser construído através da conjugação e de samento selvagem, quando discutiu as característi-
aproximações de diversas disciplinas, inscreve-se num cas do trabalho científico. Apesar de Lévi-Strauss não
universo dialético e dialetizante, no qual o pensamento estar preocupado com a questão da complexidade dos
e o conseqüente conhecimento são concebidos em fenômenos sociais, ele reconhece as dificuldades en-
contínuo movimento, num constante ir e vir, o que frentadas pelo pesquisador no desvelamento da rea-
possibilitará a criação e, com ela, a própria constru- lidade, em vista dos limites teóricos que ele enfren-
ção do conhecimento. ta. Tal dificuldade leva o pesquisador a “negociar”
Reconhecer a necessidade de um olhar múltiplo com a realidade, buscando “pedaços de teorias hete-
para a compreensão dos fenômenos educativos im- rogêneas”, estabelecendo um conhecimento plural da
plica um rompimento com o pensamento linear, uni- realidade.
tário e reducionista característico do “paradigma de Ardoino (1998d) aponta, no entanto, que o pro-
simplicidade” descrito anteriormente, e privilegiar o blema em que a análise multirreferencial se coloca é
heterogêneo, como ponto de partida para a constru- utilizar várias linguagens para a compreensão dos fe-
ção do conhecimento. nômenos sem misturá-las, sem reduzi-las umas às ou-
tras; o conhecimento produzido por essa postura seria,
Heterogeneidade e conhecimento portanto, um conhecimento “bricolado”, “tecido” etc.
Nesse sentido, Ardoino assinala que a compreensão
Quando Morin desenvolve as hipóteses para es- da realidade se efetiva apelando “a sistemas de refe-
tabelecer o paradigma de complexidade, ele assinala rências, a grades de leitura diferentes (psicológicas,
a necessidade de uma conjugação entre noções com- psicossociais, sociológicas). [...] O trabalho de análise
plementares, concorrentes e antagônicas: ele coloca consiste menos em tentar homogeneizá-las, ao preço
como imprescindível a necessidade de estruturarmos de uma redução inevitável, que em procurar articulá-
o conhecimento científico a partir de vários pontos las, se não as conjugar” (Ardoino, 1995a, p. 7-8).
de vista, de tal forma que ele comporte suas diferen- Tal forma de abordar os fenômenos traz implíci-
ças e contradições. ta a idéia de complexidade desenvolvida por Morin.
Vamos encontrar esse mesmo princípio na pro- Conforme afirma esse autor:
posta de Ardoino quanto à caracterização da aborda-
gem multirreferencial, já que ele toma a pluralidade A visão não complexa das ciências humanas, das ciên-
como ponto de partida para estabelecer os elementos cias sociais, implica pensar que existe uma realidade eco-
que subsidiam tal abordagem: ela traz em si mesma a nômica, por um lado, uma realidade psicológica, por outro,
marca da heterogeneidade como o eixo principal na uma realidade demográfica, mais além etc. Acreditamos
construção do conhecimento. que essas categorias criadas pelas universidades são reali-
No âmbito dessa abordagem, a heterogeneidade dades, mas esquecemos que, no econômico, por exemplo,
deve ser entendida com base em duas perspectivas. A estão as necessidades e os desejos humanos. Por trás do
primeira está relacionada à conjugação de diversas dinheiro, existe todo um mundo de paixões. [...] A cons-
disciplinas para o processo de elucidação dos fenô- ciência da complexidade nos faz compreender que não po-
deremos escapar jamais à incerteza e que jamais podere- cialmente os humanos, quando submetidos a quais-
mos ter um saber total: “a totalidade é a não verdade”. quer que sejam os determinismos (econômicos, so-
(Morin, 1996b, p. 100-101) ciais, culturais etc.) que condicionam e podem expli-
car seus modos de funcionamento, têm em si um poder
Ardoino articula-se, portanto, com o pensamen- de negação, de contra-estratégia, que lhes dá, ao me-
to de Morin, com base na idéia de “complexidade” e nos em parte, a inteligência desses determinismos e
da crença de que a barbárie dos tempos modernos, uma certa capacidade de reagir e de adaptar-se, senão
como a barbárie de todos os tempos, está no pensa- de transformá-los. Ardoino denomina essa capacida-
mento simplificante (Ardoino, 1995a, 1998c). de de negatricidade, o que significa o reconhecimen-
Cabe ressaltar que a análise multirreferencial não to de uma certa opacidade própria dos objetos que
tem como pretensão “esgotar” seu objeto de estudo. estão sob investigação. Ele define negatricidade como
Analisar, nesse contexto, não se define mais por sua “a capacidade que o outro possui sempre de poder
capacidade de recortar, de decompor, de dividir- desmantelar com suas próprias contra-estratégias
reduzir em elementos mais simples, mas por suas pro- aquelas das quais se sente objeto” (Ardoino, Barbier
priedades de “compreensão”, de “acompanhamento” & Giust-Desprairies, 1998, p. 68). Isso quer dizer que
dos fenômenos vivos e dinâmicos (Ardoino, 1995a, o homem – tanto individual como coletivo – não é
p. 9). indiferente às produções de saber que lhe concernem
Além disso, a abordagem multirreferencial – à e reagirá diante delas, interferirá constantemente com
medida que não se caracteriza como um movimento os dispositivos de análise e de investigação que lhe
de decomposição ou redução de seus objetos – aceita serão aplicados, perturbando seu funcionamento.2
a opacidade própria dos fenômenos humanos (o que Cabe ressaltar ainda que, do ponto de vista do pes-
pressupõe, conseqüentemente, o reconhecimento de quisador, Ardoino considera que, além de ele não do-
sua complexidade). minar (no sentido de controle) seu objeto (em função
A outra perspectiva que gostaríamos de assina- da negatricidade que lhe é inerente), ele está implicado
lar com relação ao papel da heterogeneidade na com- com ele/nele. A implicação é entendida aqui como
preensão dos fenômenos humanos diz respeito à ques-
tão da relação entre sujeito e objeto. A ciência que se [...] engajamento pessoal e coletivo do pesquisador em e
desenvolveu durante a modernidade tem como pres- por sua práxis científica, em função de sua história familiar
suposto a manutenção de um distanciamento entre os e libidinal, de suas posições passadas e atual nas relações
termos dessa relação, de tal forma que, se assim fos- de produção e de classe, e de seu projeto sociopolítico em
se, se asseguraria a objetividade e a neutralidade do ato, de tal modo que o investimento que resulte inevitavel-
A abordagem multirreferencial retoma essa dis- atividade de conhecimento. (Barbier, 1985, p. 120)
égide exclusiva de uma determinada racionalidade. balho de campo – o que podemos chamar de “perla-
Pelo contrário, o conhecer se estabelece com base em boração”.3
vários outros planos: das motivações mais profundas Quero dizer com isso que a relação entre sujeito e
do pesquisador, de seus desejos (inconscientes?), de objeto, entendida como um encontro intersubjetivo, re-
suas projeções pessoais, das suas identificações, de quer o reconhecimento de dimensões que não estão re-
sua trajetória pessoal etc. Nesse sentido, podemos di- lacionadas nem com os aspectos teóricos nem com os
zer que a relação entre sujeito e objeto propicia tanto aspectos metodológicos que utilizamos quando da rea-
o desvelamento do objeto como o desvelamento do lização de nossas pesquisas. Tais dimensões estão cir-
sujeito. cunscritas pela ordem do psíquico, do desejo, da vonta-
Com a idéia de implicação assume-se que o co- de, o que implica o reconhecimento de afetos nem
nhecimento produzido no âmbito da abordagem mul- sempre “dizíveis” em nosso cotidiano acadêmico, mas
tirreferencial é da ordem da intersubjetividade, o que que emergem durante a construção do conhecimento.
significa reconhecer que a produção de conhecimen- Muitas vezes as informações provenientes desse
to implica um processo de “negociação” entre as tipo de experiência são registradas em nossas anota-
múltiplas referências que compõem o conjunto das ções, em nossos cadernos de campo, e “lapidados” e
representações de cada indivíduo envolvido no pro- “re-elaborados” pelo prisma da razão.4
cesso, ou seja, o conhecimento se produz a partir da Numa perspectiva psicológica, podemos dizer
heterogeneidade implícita nas relações que se esta- que a heterogeneidade intrínseca na relação entre su-
belecem no campo da pesquisa. jeito e objeto caracteriza-se como processo de altera-
Em outro lugar (Martins, 1995), tive a oportu- ção, já que ela é circunscrita por um jogo de influên-
nidade de assinalar as vicissitudes inerentes à rela- cias mútuas. A interação (alteração) desencadeia
ção entre sujeito e objeto. Neste trabalho aponto para “jogos próprios das vontades, dos desejos, da angús-
a necessidade de reconhecermos a imprevisibilida- tia, das manifestações de uma vida inconsciente, de
de que essa relação traz em si mesma, já que tanto o um funcionamento imaginário...” (Ardoino, 1995b,
“outro”, que foi tomado como objeto, como o pes- p. 19) que suscitam tantas estratégias, resistências,
quisador, estiveram submetidos a uma situação de ambivalências, opacidades: expressões de uma nega-
“alteração”, vindo a se influenciar mutuamente. tricidade que permanecem ininteligíveis para um apa-
Tal situação, principalmente no que tange ao pa- rato racional. Tal situação, em função de sua comple-
pel do pesquisador, tornou possível a emergência de xidade, geralmente nos leva para os caminhos das
alguns questionamentos de ordem pessoal que lhe incertezas e do inacabamento, condições impensáveis
possibilitaram redimensionar seu próprio projeto de na ótica de uma epistemologia tradicional – cartesiana,
pesquisa, levando-o ao reconhecimento de suas im- positivista.
plicações ao longo da pesquisa.
As situações experienciadas no campo foram tão
intensas – do ponto de vista psicológico e sociológi-
3
co – que não foi possível manter a “clássica” relação “Processo pelo qual a análise integra uma interpretação e
entre sujeito e objeto (aquela prevista nos livros e supera as resistências que suscita. Tratar-se-ia de uma espécie de
manuais), levando o pesquisador a estabelecer uma trabalho psíquico que permite ao indivíduo aceitar certos elemen-
relação sincrética com os seus “informantes”. tos recalcados e libertar-se da influência dos mecanismos
O trabalho – a dissertação em si – foi-se dando à repetitivos” (Laplanche & Pontalis, 1967, p. 429).
4
medida que foram se esclarecendo as implicações ine- Sobre essa questão ver Borba (1997), especialmente o ca-
rentes às relações que se estabeleceram durante o tra- pítulo intitulado Jornal de pesquisa.
A abordagem multirreferencial, enfim, nos abre a quisa, nesse modelo, prima pela captura de um objeto
possibilidade de traçar um novo caminho no processo que existe fora do sujeito. O cientista moderno, por-
de elucidação dos fenômenos sociais, rompendo com que se vê separado do objeto, busca uma teoria e uma
a posição epistemológica desenvolvida ao longo da metodologia e, em vão, forja uma união que revele a
modernidade.5 Podemos dizer que esse rompimento “verdade objetiva”. Compartimentalização, causali-
restaura o espaço de sentido de cada participante da dade, linearidade, determinismo... estes são alguns dos
relação e nos permite pensar esse espaço restaurado princípios básicos que sustentam os conhecimentos
como circunscrevendo o discurso de um sujeito falan- aí construídos. E é nessa perspectiva que aprendemos
te – tanto para aquele que se diz pesquisador como a fazer ciência.6
para aquele que é olhado como objeto – libertando o Esse tipo de formação, que tem como princípio a
homem da sua condição de objeto. máxima de São Tomé que é a de “ver para crer”, tem
A proposta de Ardoino, por sua vez, nos leva ao reduzido nossa realidade, que é múltipla e complexa,
reconhecimento de uma heterogeneidade própria do em “pedacinhos”, em “fragmentos”. A perspectiva
campo das ciências humanas, visto que esta se caracte- multirreferencial vem problematizar tal prática colo-
riza por uma coexistência temporal de várias perspec- cando em discussão as bases sobre as quais construí-
tivas teóricas, várias abordagens, vários paradigmas. mos nosso conhecimento, propondo sua ampliação e
Diferentemente das ciências naturais, que registram sua complexificação: para além daquilo que pode ser
um contínuo processo de sucessão de teorias (confor- grupado e contado (no sentido de numerado), vai tam-
me Kuhn, 1978), nas ciências humanas as vemos em bém nos interessar aquilo que é contado (pela voz que
plena simultaneidade, sem que uma nova teoria (ou diz) pela memória e pela fluidez do cotidiano, o que
abordagem, ou paradigma) elimine a anterior pela via escapa, o lapso, a história, a fotografia esquecida na
das “revoluções científicas” de que nos fala Kuhn. gaveta, a incerteza, o improvável, o imponderável...
Trata-se de uma convivência na qual todas “valem” à A perspectiva que aqui apresento vem tentar su-
sua maneira, em função de sua própria forma de co- perar uma prática no campo da educação cuja ten-
nhecer. O fato de aproximarmos perspectivas teóri- dência é a de legitimar a razão instrumental, isto é,
cas marcadas pela heterogeneidade engendra um cam- implementar uma proposta que se pauta no desenvol-
po de tensão, a partir do qual podemos vislumbrar vimento de uma práxis reflexiva, superando a lógica
novas perspectivas epistemológicas para a compreen- implementada por uma racionalidade exclusivamen-
são dos fenômenos humanos. te técnica.
Cabe lembrar que o paradigma “cartesiano” nos
ensinou a pensar no mundo como um cosmos “mecâ- JOÃO BATISTA MARTINS, doutor em educação pela Uni-
nico”, um “universo maquininha”, com peças fixas e versidade Federal de São Carlos (UFSCar), é professor no Depar-
movimentos previsíveis, num tempo/espaço absolu- tamento de Psicologia Social da Universidade Estadual de Lon-
to. Sua lógica de sustentação vem da física e da mate- drina. Organizou as seguintes publicações: Temas em análise ins-
mática, que prescrevem o conhecimento embasado em titucional e em construcionismo social (São Carlos: RiMa /
quantificações e medidas. Aqui, o conhecimento é tan- Curitiba: Fundação Araucária, 2002, 174p.) e Na perspectiva de
to mais científico e racional quanto forem diferencia- Vygotsky (São Paulo: Quebra Nozes / Londrina: CEFIL, 1999,
das as identidades dos “sujeitos” e “objetos”. A pes- 109p.). E-mail: jbmartin@sercomtel.com.br
5
Martins (1998) sugere-nos uma aproximação da aborda-
6
gem multirreferencial com as propostas epistemológicas desen- Para uma discussão mais detalhada, ver Japiassu (1975) e
volvidas por autores pós-modernos. Schwartz (1992).