Você está na página 1de 8

9.

Interseccionalidade: sexualidade, raça e gênero

Larissa Pelúcio

A interseccionalidade não produz uma camisa-de-forças normativa para


monitorar a investigação (...) na busca de uma ‘linha correta’. Ao invés
disso, encoraja a cada acadêmica feminista a se envolver criticamente
com suas próprias hipóteses seguindo os interesses de uma investigação
feminista reflexiva, crítica e responsável (Angela Davis, 2008, p. 79).

Tudo parece muito contemporâneo: a Avenida Paulista, coração financeiro do


País, está fechada para o lazer. É um domingo. Há diversidade nas expressões artísticas
que enchem a rua de pessoas e ideia. O termo já desgastado (diversidade) parece fazer
sentido para jovens famílias, gays brancos, meninas masculinas e talvez para o próprio
poder municipal que vem impondo uma “cidade linda”, num vão esforço eufemístico
para disfarçar seu higienismo.
A moça ocupa um ponto de ônibus, inútil naquele dia, com equipamentos de
som e sua voz com a qual anuncia que ela é “uma mulher preta, lésbica, da periferia,
que faz RAP”. Ali naquele cenário ela não parecia nem preta, nem de periferia, mas
mobiliza essa tríade como quem acumula opressões, para legitimar seu discurso e
marcar sua presença no coração do sistema tanto como tanto oprimida como resistente.
Um corpo marcado por diferenças que, no contexto brasileiro, se tornam desigualdades,
extraindo desses eixos de exclusão a sua força combativa. A artista sobrepõe esses eixos
a fim de reivindicar a legitimidade da sua voz que denuncia. Talvez minha leitura sobre
a forma como a jovem artista mobiliza os marcadores sociais não esteja correta, pois
afirmei acima que ela o faz acrescentando camadas de exclusões, mas poderíamos
pensar que o faz de forma a articulá-lo, enfeixando-os de modo estratégico em um corpo
que carrega essas experiências. Na sua fala durante a performance que realizava naquele
domingo, o os marcadores de identidade como gênero, classe ou orientação sexual não
aparecem apenas como formas de categorização exclusivamente limitantes. Eles
oferecem, simultaneamente, recursos que possibilitam o enfrentamento. Ela reivindica
ali um “lugar de fala”, para aqueles e aquelas que estiveram historicamente silenciados.

1
No atual contexto brasileiro a discussão sobre o “lugar de fala” tem mobilizado
acalorados debates. Adio essa discussão para outro momento neste texto. Antes disso,
pretendo retomar de forma bastante sintética a constituição de um campo de reflexão
feminista sobre o enfeixamento de marcadores sociais da diferença como metodologia
necessária para se analisar situações de opressão, violência e enfrentamentos às mesmas
experenciadas por mulheres, mas também homens, de forma que além do gênero e da
classe, outras variáveis fossem necessariamente consideradas. Sinalizo desde já que,
como Henrietta Moore penso que

Todos os principais eixos da diferença, raça, classe, etnicidade,


sexualidade e religião têm interseções com o gênero, que oferecem uma
multiplicidade de posições de sujeito dentro de qualquer discurso. Essa
noção do sujeito marcado por gênero como lugar de múltiplas
diferenças, e, portanto, de múltiplas subjetividades e identidades
concorrentes, é o resultado da recente crítica feminista da teoria pós-
estruturalista e desconstrucionista. (MOORE, 2000, p. 26).

No debate sobre interseccionalidade, minha adesão talvez possa ser identificada


com “construcionista” (PISCITELLI, 2008; HENNING, 2015), por esta “desenvolver
uma concepção de poder mais dinâmica e relacional, levando em consideração aspectos
de agência e identidade social” (HENNING, 2015, p. 112). Penso ainda que a
identidade social é constituída em arenas de disputas, são contingentes e estão
implicadas em relações de poder difusas. Quem pode se dizer “favelada”? A quem
interessa essa identificação? Desindetificar-se também pode ser um ato político, quando
se recusa certas identidades altamente estigmatizadas?

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora


do discurso que precisamos compreendê-las como produzidas em locais
históricos e institucionais específicos, no interior de formações e
práticas discursivas específicas. Além disso, elas emergem no interior
do jogo de modalidades específicas de poder e são assim, mais produto
da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade
idêntica naturalmente constituída de uma “identidade” em seu
significado tradicional – isto é, uma mesmice que tudo inclui, uma

2
identidade sem costuras, inteiriças, sem diferenciação interna. (HALL,
2000, p. 109).

A perspectiva intersecional tem justamente esse mérito desconstrutivista, no


sentido derridariano, e tendencialmente antiessencialista, como teoriza Stuart Hall.
Desmontar a lógica interna das categorias gênero, classe, geração, nacionalidade e raça,
por exemplo, revela suas limitações, suas instabilidades contextuais, o entrelaçamento
que existe entre elas, na conformação de sujeitos sociologicamente densos.
As discussões sobre os marcadores sociais da diferença são relativamente
recentes. Historicamente, essas abordagens têm seu ponto de referência no “feminismo
das diferenças”, nascido nos Estados Unidos ao longo dos anos 1980 (PISCITELLI,
2008). Essa vertente teórica surge como uma crítica à miopia do feminismo vigente,
voltado, segundo formularam diversas autoras, para as mulheres brancas, anglófonas,
heterossexuais, protestantes e de classe média. Estas vozes periféricas se articulam
também para propor uma epistemologia crítica capaz de superar as limitações teóricas
expressas nos binarismos homem/mulher, masculino/feminino, homo/hetero, West/rest,
tomados como essencializadores e biologizantes. O feminismo da diferença procurou
salientar que o sujeito é social e culturalmente constituído em tramas discursivas nas
quais gênero, raça, religião, nacionalidade, sexualidade e geração não são variáveis
independentes, mas se enfeixam de maneira que o eixo de diferenciação constitui o
outro ao mesmo tempo em que é constituído pelos demais. Esse debate avança e no final
da década de 1990 já reúne um escopo considerável de reflexões.
A percepção de que experiências de gênero, sobretudo, do “ser/tornar-se
mulher” não era suficiente para definir-se como sujeito político ou criar agendas
unificadas, deu visibilidade a categorias negligenciadas ou subsumidas pela categoria
gênero.
Como escreve Judith Butler

se alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse
alguém é (...) o gênero estabelece interseções com modalidades raciais,
classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente
constituídas (...) [e] se tornou impossível separar a noção de ‘gênero’
das interseções políticas e culturais em que invariavelmente ela é
produzida e mantida (BUTLER, 2003, p. 20).

3
A interseccionalidade revela o que não é visível quando categorias tais como
gênero e raça, para citarmos apenas aquelas que Carlos Eduardo Henning nomeia como
o “mantra da interseccionalidade”, são conceitualizadas separadamente. No Brasil, essa
forma de abordar as questões identitárias nos estudos feministas e de gênero ganha
fôlego teórico nos primeiros anos deste século, com sensível influência de um texto da
pensadora indiana Avtar Brah. Seu texto “Diferença, diversidade, diferenciação”,
publicado em 2006 nos cadernos pagu (Unicamp), passa a ser referência quase que
obrigatória quando se trata da abordagem interseccional. De lá para cá a perspectiva
interseccional foi adotada no campo da saúde, principalmente por antropólogas/as que
têm apostado metodologicamente na abordagem dos marcadores sociais a fim de
compreender como estes agem em combinação, produzindo e (re)produzindo diferenças
e desigualdades em saúde.
Porém, chama-me a atenção a forma como jovens negras foram se apropriando
do termo “interseccionalidade” para articular um campo de reflexão e de luta bastante
novo, que tem sua aparição relacionada a diversas transformações sociais que o País
atravessou nas últimas duas décadas. As políticas reparatórias, o acesso mais inclusivo
às mídias digitais, a instituição de secretarias especiais para tratar de temas como
racismo e gênero, a politização de temas como relações de gênero e sexualidade,
desenham um contexto histórico no qual as pautas feministas voltam com força crítica e
chega às periferias das grandes cidades brasileiras, ocupam páginas na internet,
fomentam debates em escolas públicas e nos meios acadêmicos.
Bastante inspiradas em teóricas-ativistas negras norte-americanas, muitas
feministas brasileiras passam a se identificar com o feminismo interseccional. Patricia
Hill Collins, Angela Davis e Audre Lourdes formam a tríade mais citada nas falas,
textos e post na internet de mulheres que se assumem como feministas e negras no
Brasil contemporâneo. Collins (2017), em texto recentemente traduzido lembra que

As narrativas contemporâneas relativas à emergência da


interseccionalidade ignoram, com frequência, a relação desta com as
políticas feministas negras dos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos.
Apesar de um longo projeto feminista negro, nos movimentos sociais do
século XX, mulheres afro-americanas avançaram diversas dimensões do

4
feminismo negro que foram claramente reconhecidas como
interseccionais.

É ainda Collins que chama atenção para a necessidade de se teorizar sobre as


hierarquias da interseccionalidade. Posto que, para ela há contextos em que alguns
desses eixos constituidores de identidades complexas e específicas se sobrepõem aos
outros.
Em um país onde o racismo só passou a ser reconhecido como um problema
social relevante muito recentemente, textos como o de Collins que mostram
apagamentos das contribuições das feministas negras para a sofisticação teóricas para o
enfretamento às desigualdades, remete às suas próprias histórias de silenciamentos. Ser
negro ou negra no Brasil não se desassocia facilmente do pertencimento de classe.
Mulheres negras que falam anunciando a consciência que adquiriram de seu lugar
subalternizado, reaviva temores ancestrais pelos quais se constitui o próprio projeto de
nação brasileira: o de criminalização da pobreza e da negritude, além da insistente tutela
que o Estado mantém sobre o corpo das mulheres, sobretudo das pobres.
É recente a emergência de um enunciado de políticas e reivindicações centrado
na ideia de lugar de fala. O sintagma tem potência crítica e política indubitável, uma vez
que reivindica não só voz para aquelas e aqueles que foram historicamente
silenciadas/os, mas requer também a escuta. Quer dizer, que estas sejam vozes ouvidas e
levadas a sério. A polêmica que envolve a exigência do lugar de fala não se deve, pelo
menos não neste texto, a questionamentos quando à legitimidade desta demanda e a
importância da denúncia que ela encerra, mas aos essencialismos que foram sendo
reavivados nesse processo.
Passou a ser voz comum em espaços universitários, em eventos acadêmicos e,
acredito que isso tenha se dado também em outros fóruns de discussão, que pessoas
iniciassem suas falas ou intervenções elencando suas opressões. Sublinhar essas marcas
de desigualdade servia para dar visibilidade aquelas que falavam em espaços nos quais
suas vozes não costumavam ser ouvidas. Dizer-se negra, lésbica e favelada tornou-se
um ato político em uma país que parecia se transformar e rever séculos de racismos,
colonialismo, machismos e violências de classe. A experiência subjetiva passou a, por
si, emprestar legitimidade em ocupar o espaço de fala. Falas que não podiam ser
interrompidas, ainda que ultrapassassem o tempo convencionado coletivamente para as

5
exposições. A ação reparatória podia vir também nessas concessões, ou estas seriam
formas envergonhadas de “paternalismo”?
Em 2009, uma mesa-redonda que encerrou um grande evento universitário de
caráter bastante transgressivo, feministas tidas como brancas foram questionadas e
quase impedidas de falar: “onde estavam as feministas negras?”, interrogava parte da
audiência. De feministas, aquelas senhoras que corporificavam referências
bibliográficas brasileiras clássicas, passaram a serem suspeitas de racismo. Não bastava
mais que fossem mulheres falando de feminismo, de sexualidade, de reprodução, de
direitos. Raça precisava ser reconhecida como eixo constituinte de experiências
singulares de exclusão. E precisava ser feito por uma mulher negra.
A recusa na forma, por vezes de acusação, em ouvir acadêmicas falarem,
reproduzia dicotomias como “elas fazem teoria e nós fazemos política” (BENTO,
2010). A potência dos feminismos foi, a meu ver, romper, justamente, como esse tipo de
separação, denunciando a mal-disfarçada neutralidade das ciências canônicas.
Adriana Vianna (2012, p. 228) remonta o cenário destas tensões em sua pesquisa
de campo sobre direitos sexuais. Escreve ela:

Os limites à minha escuta e da minha escuta por certo também


estiveram marcados por esses processos de localização, alguns dos
quais pude apenas pressentir e outros que acreditei perceber de modo
mais evidente, senão nas outras pessoas, ao menos em mim mesma:
momentos em que minha fala não parecia autorizada, momentos em que
minha possibilidade de ouvir e compreender saturava-se em irritações,
incapacidade de empatia, desacordo político.

De repente, era como se só os subalternos pudessem falar. Aconteceu também na


Inglaterra em meados dos anos de 1980, como relata Avtar Brah:

Em lugar de embarcar na tarefa complexa, mas necessária, de identificar


as especificidades de opressões particulares, entendendo suas
interconexões com outras formas de opressão, e construir uma política
de solidariedade, algumas mulheres começavam a diferenciar essas
especificidades em hierarquias de opressão. Supunha-se que o mero ato
de nomear-se como membro de um grupo oprimido conferisse
autoridade moral. Opressões múltiplas passaram a ser vistas não em

6
termos de seus padrões de articulação, mas como elementos separados
que podiam ser adicionados de maneira linear, de tal modo que, quanto
mais opressões uma mulher pudesse listar, maior sua reivindicação a
ocupar uma posição moral mais elevada. (BRAH, 2006, p. 348).

Volto à Avenida Paulista, para aquela cena que se torna possível por ser fruto
concreto, tangível, desses acirrados debates. A voz que ali se expressa diz, no enunciado
de apresentação da cantora, dos silêncios que a invisibilizaram, fragilizaram, calaram,
quando ela tinha tanto a dizer. Aquela voz, porém, não se fez audível sozinha. Acreditar
nesse protagonismo voluntarista seria abraçar os mais perniciosos (e tolos, e nem por
isso menos perigosos) refrãos neoliberais. Muitas vozes falam ali. Reconhecê-las é
fundamental para não apagar uma história de lutas. A história da transformação cultural
mais profunda pela qual as sociedades de matriz ocidental têm passado: a da critica
feminista.
Essa tem sido a potência crítica dos feminismos: sua capacidade transformadora.
O que implica em transformar-se constantemente, problematizando suas próprias
categorias de análise. Os desafios se colocam mais acentuadamente nos tempos de
radicalização, tão necessários para as mudanças e para a gestação de novas teorias. Mas
são nesses momentos também que corremos maiores riscos de construirmos
polarizações como quem constrói barreiras. Momentos também que, como escreveu
Brah, na citação recortada acima, dificultam que se estabeleçam políticas de
solidariedade.

Referências bibliográficas
BRAH, A. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu. Campinas, n. 26, p.
329-376, jan/ jun. 2006.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. In:
SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e
diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora. Vozes, pp. 103-133,
[1996] 2000.
HENNING, Carlos Eduardo. Interseccionalidade e pensamento feminista: As
contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de

7
marcadores sociais da diferençaMediações, Londrina, V. 20 N. 2, P. 97-128, JUL./DEZ.
2015
PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidade, categorias de articulação e experiências de
migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez, 2008, p. 263-274.

VIANNA, Adriana. Atos, sujeitos e enunciados dissonantes: algumas notas sobre a


construção dos direitos sexuais. In MISKOLCI, Richard; PELÚCIO, Larissa. Discursos
Fora da Ordem. São Paulo: Annablume Queer/Fapesp. 2012

Você também pode gostar