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Larissa Pelúcio
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No atual contexto brasileiro a discussão sobre o “lugar de fala” tem mobilizado
acalorados debates. Adio essa discussão para outro momento neste texto. Antes disso,
pretendo retomar de forma bastante sintética a constituição de um campo de reflexão
feminista sobre o enfeixamento de marcadores sociais da diferença como metodologia
necessária para se analisar situações de opressão, violência e enfrentamentos às mesmas
experenciadas por mulheres, mas também homens, de forma que além do gênero e da
classe, outras variáveis fossem necessariamente consideradas. Sinalizo desde já que,
como Henrietta Moore penso que
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identidade sem costuras, inteiriças, sem diferenciação interna. (HALL,
2000, p. 109).
se alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse
alguém é (...) o gênero estabelece interseções com modalidades raciais,
classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente
constituídas (...) [e] se tornou impossível separar a noção de ‘gênero’
das interseções políticas e culturais em que invariavelmente ela é
produzida e mantida (BUTLER, 2003, p. 20).
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A interseccionalidade revela o que não é visível quando categorias tais como
gênero e raça, para citarmos apenas aquelas que Carlos Eduardo Henning nomeia como
o “mantra da interseccionalidade”, são conceitualizadas separadamente. No Brasil, essa
forma de abordar as questões identitárias nos estudos feministas e de gênero ganha
fôlego teórico nos primeiros anos deste século, com sensível influência de um texto da
pensadora indiana Avtar Brah. Seu texto “Diferença, diversidade, diferenciação”,
publicado em 2006 nos cadernos pagu (Unicamp), passa a ser referência quase que
obrigatória quando se trata da abordagem interseccional. De lá para cá a perspectiva
interseccional foi adotada no campo da saúde, principalmente por antropólogas/as que
têm apostado metodologicamente na abordagem dos marcadores sociais a fim de
compreender como estes agem em combinação, produzindo e (re)produzindo diferenças
e desigualdades em saúde.
Porém, chama-me a atenção a forma como jovens negras foram se apropriando
do termo “interseccionalidade” para articular um campo de reflexão e de luta bastante
novo, que tem sua aparição relacionada a diversas transformações sociais que o País
atravessou nas últimas duas décadas. As políticas reparatórias, o acesso mais inclusivo
às mídias digitais, a instituição de secretarias especiais para tratar de temas como
racismo e gênero, a politização de temas como relações de gênero e sexualidade,
desenham um contexto histórico no qual as pautas feministas voltam com força crítica e
chega às periferias das grandes cidades brasileiras, ocupam páginas na internet,
fomentam debates em escolas públicas e nos meios acadêmicos.
Bastante inspiradas em teóricas-ativistas negras norte-americanas, muitas
feministas brasileiras passam a se identificar com o feminismo interseccional. Patricia
Hill Collins, Angela Davis e Audre Lourdes formam a tríade mais citada nas falas,
textos e post na internet de mulheres que se assumem como feministas e negras no
Brasil contemporâneo. Collins (2017), em texto recentemente traduzido lembra que
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feminismo negro que foram claramente reconhecidas como
interseccionais.
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exposições. A ação reparatória podia vir também nessas concessões, ou estas seriam
formas envergonhadas de “paternalismo”?
Em 2009, uma mesa-redonda que encerrou um grande evento universitário de
caráter bastante transgressivo, feministas tidas como brancas foram questionadas e
quase impedidas de falar: “onde estavam as feministas negras?”, interrogava parte da
audiência. De feministas, aquelas senhoras que corporificavam referências
bibliográficas brasileiras clássicas, passaram a serem suspeitas de racismo. Não bastava
mais que fossem mulheres falando de feminismo, de sexualidade, de reprodução, de
direitos. Raça precisava ser reconhecida como eixo constituinte de experiências
singulares de exclusão. E precisava ser feito por uma mulher negra.
A recusa na forma, por vezes de acusação, em ouvir acadêmicas falarem,
reproduzia dicotomias como “elas fazem teoria e nós fazemos política” (BENTO,
2010). A potência dos feminismos foi, a meu ver, romper, justamente, como esse tipo de
separação, denunciando a mal-disfarçada neutralidade das ciências canônicas.
Adriana Vianna (2012, p. 228) remonta o cenário destas tensões em sua pesquisa
de campo sobre direitos sexuais. Escreve ela:
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termos de seus padrões de articulação, mas como elementos separados
que podiam ser adicionados de maneira linear, de tal modo que, quanto
mais opressões uma mulher pudesse listar, maior sua reivindicação a
ocupar uma posição moral mais elevada. (BRAH, 2006, p. 348).
Volto à Avenida Paulista, para aquela cena que se torna possível por ser fruto
concreto, tangível, desses acirrados debates. A voz que ali se expressa diz, no enunciado
de apresentação da cantora, dos silêncios que a invisibilizaram, fragilizaram, calaram,
quando ela tinha tanto a dizer. Aquela voz, porém, não se fez audível sozinha. Acreditar
nesse protagonismo voluntarista seria abraçar os mais perniciosos (e tolos, e nem por
isso menos perigosos) refrãos neoliberais. Muitas vozes falam ali. Reconhecê-las é
fundamental para não apagar uma história de lutas. A história da transformação cultural
mais profunda pela qual as sociedades de matriz ocidental têm passado: a da critica
feminista.
Essa tem sido a potência crítica dos feminismos: sua capacidade transformadora.
O que implica em transformar-se constantemente, problematizando suas próprias
categorias de análise. Os desafios se colocam mais acentuadamente nos tempos de
radicalização, tão necessários para as mudanças e para a gestação de novas teorias. Mas
são nesses momentos também que corremos maiores riscos de construirmos
polarizações como quem constrói barreiras. Momentos também que, como escreveu
Brah, na citação recortada acima, dificultam que se estabeleçam políticas de
solidariedade.
Referências bibliográficas
BRAH, A. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu. Campinas, n. 26, p.
329-376, jan/ jun. 2006.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. In:
SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e
diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora. Vozes, pp. 103-133,
[1996] 2000.
HENNING, Carlos Eduardo. Interseccionalidade e pensamento feminista: As
contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de
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marcadores sociais da diferençaMediações, Londrina, V. 20 N. 2, P. 97-128, JUL./DEZ.
2015
PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidade, categorias de articulação e experiências de
migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez, 2008, p. 263-274.