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O fotógrafo e seu atlas inverossímil

Agnaldo Farias

O conhecimento enciclopédico, a ilusão de se conhecer algo em profundidade, ilimitadamente, é uma vertigem. Antigamente, a
impossibilidade de se conhecer o mundo todo levava ao Atlas. O conhecimento direto era substituído por ferramentas impressas. Hoje elas
são digitais e nelas também se navega com enlevo, com a imaginação alimentada por perspectivas e vertigens exponencialmente maiores,
mas sem o recurso dos dedos deslizando sobre a topografia sutilíssima do papel.

Em 1971, o artista Douglas Huebler deu inicio a mais um dos seus projetos, o Variable Piece #70 (in Process) Global, que consistia em
“documentar fotograficamente a existência de cada pessoa viva antes que ela morra.” O propósito, como se vê, tem muito mérito, afinal,
“humanidade” é apenas um conceito, um conjunto tão imenso quanto abstrato e cuja verificação deve ser tentada, ainda que seja
aparentemente impossível. Para cientistas e artistas a conclusão a curto prazo dessas construções utópicas parece não importar muito. De
fato, a materialização de algumas de suas proposições mais ousadas parece ser uma questão de tempo. Se em 1865 a ida à Lua parecia
ser mais um delírio de Julio Verne, como fantasiou em seu clássico sobre o tema publicado naquele ano, hoje em dia qualquer espirito
sensato não põe em dúvida a possibilidade da descoberta do teletransporte, semelhante ao utilizado pela trupe do Jornada nas estrelas.

Há muito os artistas, exploradores dos vastos territórios das linguagens, o que


fazem com agudeza, ironia e liberdade distinta de seus colegas cientistas, vêm
sinalizando sobre os perigos de se confundir as representações, a base de todo
conhecimento, com os seus referentes; chamam a atenção para as relações
flutuantes entre as palavras e as coisas, entre o mundo concreto com as metáforas
que pretendem para captura-lo. Advertem sobre isso acusando a arrogância
displicente dessas construções que deixam de lado as qualidades do mundo. Sobre
esses riscos convém ler o Dom Quixote ou, num exemplo mais próximo e conciso, a
narrativa/parágrafo de Do rigor na ciência, de Jorge Luis Borges, na qual conta-se a
existência de um determinado império onde a “Arte da cartografia atingiu tal
perfeição” que, no afã de conseguir com que fossem ainda mais aperfeiçoados, “os
Colégios dos Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do
Império.” As gerações seguintes, conclui o texto, entendendo que o dilatado mapa
era inútil, entregaram-no às “Inclemências do Sol e aos Invernos.” Tomando ainda a
demora como corolário natural de um projeto científico ambicioso, vale lembrar o
colossal empreendimento do Oxford English Dictionary, cujo autor, James A. H.
Murray, fechou contrato em 1879 para a redação de sete mil páginas em cinco anos,
prorrogáveis por mais cinco, sem prever que ele alcançaria dezesseis mil páginas e
seria concluído em 1928, treze anos após sua morte as voltas com os vocábulos
iniciados com “T”.

Morador de São Paulo, Tuca Vieira foi tocado pelo mesmo impulso desses seus colegas, o mesmo ímpeto de abarcar o inabarcável. Para
tanto montou o Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores, cujos resultados parciais, que de resto nunca deixarão de o ser, está
expondo na Casa da Imagem, no coração da metrópole infinita.

Seu projeto, como todos dessa natureza, nasceu de uma crítica às limitações de mapas, guias, cartas, portulanos, até as versões recentes,
mais desdenhosas do mundo, com destaque ao GPS e WAZE, cuja falibilidade se expressa no tom irritantemente calmo mas peremptório
com que nos mete em becos sem saída, ruas bloqueadas, lugares remotos que preferiríamos evitar. Essas simulações, o convívio intimo
com elas, leva-nos à naturalização de signos, a nos acostumar com modos indiretos e cada vez mais abstratos de relacionamento com as
coisas. Tuca é fotógrafo e, portanto, sabe muito bem disso, senão não inventaria seu Atlas. É que fotógrafos conviveram longamente com a
ideia de que seu oficio estava mais perto da verdade, que sua leitura era muito mais objetiva do que dos outros – e não é justamente este o
nome da lente que levam acoplada ao corpo da câmera? Fotografia era documento, certo? Bem, se ela é, e por certo que é, nem por isso se
deve esquecer que qualquer coisa é também um documento. Foi o que Roland Barthes nos advertiu quando escreveu que os objetos são a
assinatura do homem no mundo.

O recalque da experiência direta em favor dos signos, uma realidade de segundo grau, levou o artista a pensar a cidade a partir de uma
referência clássica, um produto hoje em dia quase arqueológico mas que já foi indispensável para todo aquele que precisava se movimentar
pela cidade de São Paulo: o Guia das Ruas de São Paulo. A regularidade do desenho impresso das ruas, avenidas e viadutos, impresso em
cores esmaecidas, sublima a topografia com seus desníveis em alguns casos abruptos, as cenas que se descortinam no alto dos vales, o
perigo latente de certas encostas, ocupadas ou não, da vizinhança dos rios e córregos, isso sem falar na transformação incessante das
edificações, no intrincado labirinto desenhado pela passagem dos moradores, a direção e a variação de intensidade dos ventos, no cheiro,
nos ruídos, no tudo que se desprende de uma cidade, que a anima, que viceja ou que purga na sua superfície incessantemente.

Tendo em mente a distância dos mapas em relação ao que representam, Tuca Vieira foi ao guia e escolheu 203 pontos da metrópole, cada
um deles extraído de uma página dupla, dado que cada dupla perfaz uma seção quadrada das 203 que, reunidas de acordos com seus
números, compõem a retícula que se sobrepõem ao perímetro urbano de São Paulo e seus arredores. Para a escolha de cada ponto o
artista fez uso do Google Street, valeu-se dos mapeamentos efetuados pelo satélite, escrutinizou cada uma das páginas duplas, até chegar
a um ponto determinado: uma esquina, um viaduto, uma ponte etc.

Ao passo em que foi realizando esse minucioso e extravagante levantamento, e pode-se supor o longo tempo dispendido no exame atento
de uma área, com aproximações, zooms sucessivos, o artista saiu à campo. Como premissa evitou o uso da câmera de seu celular, ágil,
portátil, passível de ser discretamente carregada numa cidade cheia de riscos, predicados que garantiram a difusão irrestrita do ato
fotográfico e, com ela, uma banalização do olhar que o leva próximo à cegueira. Em seu lugar saiu desconfortavelmente equipado com tripé
e câmera de grande formato, além de muita energia, paciência e cautela.

Do mapa para o corpo da cidade e no mais puro estilo de Militão de Azevedo (RJ 1837 - SP 1905), o grande fotografo do século XIX. Militão
não foi apenas o magnífico autor das vistas das metrópoles nascentes, como também um dos responsáveis pela democratização do acesso
à fotografia. Seu estúdio, Photographia Americana, situado em frente a Igreja do Rosário, em São Paulo, frequentada pela população negra,
produzia fotos a preços muito mais baixos do que seus concorrentes, o que o tornava acessível a toda gente.

Armado com seu aparato tecnológico um tanto quanto anacrônico, a exigir muito tempo e esforço no transporte de sua casa até o ponto
escolhido, em muitos casos de acesso difícil ou simplesmente distante, Tuca procedia sua montagem não sem antes efetuar a necessária
revisão in loco das opções sugeridas pelo google. Feito tudo isso, ultimava o processo fazendo a escolha do ângulo e do motivo a ser
fotografado e, como um legítimo lambe-lambe, eventualmente sob os olhos desconfiados dos que não tiravam satisfação porque julgavam
tratar-se de um técnico da prefeitura, ele finalmente tirava a foto.

Com esse ritmo lento, com essa complexa liturgia envolvendo um delicado e imponente maquinário fotográfico, com o seu Atlas fotográfico
da cidade de São Paulo e arredores Tuca Vieira dignifica simultaneamente o objeto de análise, a cidade, o mapa fotográfico produzido a
partir dela, e o olhar que os produz.

Agnaldo Farias é professor da FAU-USP, crítico e curador

(texto originalmente publicado no jornal Foha de S. Paulo em 11/09/2016)

Cidade Inacabada

É de Tuca Vieira a fotografia mais representativa de São Paulo nos últimos tempos: um casario da favela de Paraisópolis ao lado de um
edifício de alto padrão, com caprichosas piscinas nas varandas dos apartamentos, dando volteios em espiral. Dois mundos tão próximos e
contrastantes, separados por um muro enorme. Símbolo cristalino da exclusão social e da urbanização aberrante do capitalismo periférico,
essa foto ganhou o mundo, ainda que seu criador tenha permanecido razoavelmente incógnito.

É significativo que o autor dessa imagem-síntese se lance à investida de mapear essa mesma cidade, agora atrás de uma espécie de
síntese às avessas, que se configura pelo acúmulo e pela comparação exaustiva, no limite impossível. Afinal, qual é a verdadeira cara de
São Paulo? Quais os seus limites? Será possível conceber uma imagem dessa massa informe e tentacular que desafia, por sua escala e
complexidade, qualquer esforço de cognição humana?

Essas são perguntas sem


resposta, e que só podem
ser levadas a sério por
meio de duas posturas
aparentemente opostas: a
ficção, por um lado, ou o
experimento científico, por
outro. Partindo de regras e
métodos muito claros, Tuca
Vieira trilha o segundo
caminho, mas o tempera
com um importante halo de
ficcionalidade, próprio de
quem sabe não haver
respostas exatas nem
muito menos únicas.
Resulta um esforço algo
inglório para realizar um
trabalho cujo sentido
parece escapar ao bom
senso.

Explico a sinuca de Sísifo: o fotógrafo quer conhecer melhor a cidade na qual nasceu e vive, e ao mesmo tempo ser capaz de registrá-la
fotograficamente. Como fazê-lo? Por onde começar? Diante da dificuldade da empreitada, escolheu um critério objetivo e impessoal: tomar
como base um guia de ruas – no caso, o Quatro Rodas. Isto é, seu trabalho consiste em produzir uma foto para cada página dupla da
publicação, que, por sua vez, corresponde a um número. Assim, cada número, ou página dupla, representa uma seção quadrada que divide
a mancha urbana da região metropolitana de São Paulo em 203 partes iguais. Trata-se de um grid rígido com módulos equivalentes a
aproximadamente 3 por 3 quilômetros, que varre a capital de norte a sul, da esquerda para a direita.

O guia de ruas não só dá conta de toda a extensão da mancha urbana – salvo o extremo sul, eliminado, já que é quase nada urbanizado –,
como também permite uma apreensão palpável da metrópole, uma vez que sua escala nos faculta identificar todas as ruas e praças. Tem-
se, portanto, um trânsito possível entre as partes e o todo da cidade, a chave para a elaboração desse mapeamento. Entra em cena aqui
um elemento crucial do projeto: a experiência real do espaço. Para que visitar lugares que estão plenamente mapeados pelo Google e pelos
sistemas de georreferenciamento da cidade? Note-se, a propósito, que uma série de fotógrafos contemporâneos tem feito trabalhos urbanos
apenas coletando imagens do Google Street View como uma forma de ready-made fotográfico, sem nunca terem posto os pés naqueles
locais e, portanto, sem jamais terem disparado pessoalmente nenhum daqueles cliques.

Daí o aspecto algo quixotesco desse projeto de Tuca Vieira. Podemos imaginar o grau de infortúnios cotidianos enfrentados para a
consecução da tarefa, que envolve deslocamentos, congestionamentos, gastos com combustível e equipamentos, cansaço e eventuais
problemas com segurança. E assim como o guia de ruas é um instrumento em absoluto desuso nos dias de hoje, também o fotógrafo opta
por registrar a cidade não por meio de máquinas leves e portáteis, e sim com uma câmera artesanal de grande formato com chapas
individuais, montada cuidadosamente sobre um tripé. Esse ritual cênico, claramente anacrônico, leva as pessoas na rua a identificar o
artista mais como um técnico de medição da cidade, como se empunhasse um teodolito.

Previsto para ser exibido na Casa da Imagem, museu da Prefeitura de São Paulo, ainda em 2016, o trabalho encontra-se em processo,
tendo atingido quase 50% de seu escopo. Seu Atlas Fotográfico da Cidade de São Paulo e Seus Arredores é uma homenagem manifesta a
Militão Augusto de Azevedo, primeiro fotógrafo a realizar uma cartografia importante da cidade, na segunda metade do século XIX. Assim,
um século e meio depois do pioneiro, Tuca Vieira também escolhe pontos de vista e enquadramentos referenciados na altura do olho
humano, que guardam certa proximidade com os objetos retratados, e extrai especial força estética das esquinas urbanas. O fotógrafo
estrutura muitas de suas cenas por meio de um jogo de relações entre elementos verticais (os postes) e elementos horizontais e diagonais
(os fios elétricos), particularmente abundantes em São Paulo, sobretudo nas situações de esquina, em que assumem configurações formais
fortes.

Trata-se de uma obra que afirma a importância da experiência no mundo contemporâneo, em uma clara atitude de resistência à progressiva
virtualização das relações e das formas de apreensão do meio físico, correlatas à emancipação da imagem na sociedade de consumo.

Mas nem por isso resulta num trabalho panfletário ou nostálgico. Empreendendo, na velocidade que lhe é possível, esse improvável
levantamento fotográfico de São Paulo entre 2014 e 2016, Tuca Vieira nos oferece uma ideia consistente – ainda que sempre insuficiente –
da cidade hoje. Há fortes motivos para sentirmos, nesse atlas, o predomínio da generalidade e da monotonia. Em primeiro lugar, porque a
imensa extensão edificada, em grande parte autoconstruída, tende a um padrão que reconhecemos como genérico. Depois, porque São
Paulo não tem uma paisagem natural determinante que ajude a distinguir os lugares para além de suas construções. Enfim, porque o
procedimento catalográfico do artista, inspirado em grande medida por fotógrafos contemporâneos alemães, busca identificar e registrar
certas tipologias recorrentes.

O casal Bernd e Hilla Becher realizou um admirável trabalho de catalogação do acervo de construções industriais europeias em declínio,
sempre em preto e branco e com a mesma luz neutra. Já Tuca Vieira fotografa, em distintas horas do dia, com sol ou chuva, céu aberto ou
nublado, uma cidade que, ao contrário das europeias, como já percebeu Claude Lévi-Strauss nos anos 50, nunca atinge o estado de
declínio, pois jamais chega a ficar pronta. Isto é, uma metrópole marcada pela urgência, pelo improviso e pelo inacabamento, em que a
violência das sobreposições de construções em um curto espaço de tempo provém tanto da precariedade econômica e social quanto da
opulência especulativa.

São Paulo é um dos aglomerados urbanos que melhor demonstram aquilo que o arquiteto holandês Rem Koolhaas qualificou como “cidade
genérica”. Os chamados “espaços-lixo”, típicos do processo avassalador de generalização urbana e cultural que vivemos, são consequência
do encontro bastardo entre a utopia de modernização trazida pelas vanguardas, a sociedade de consumo do pós-guerra e a dominância da
informalidade nos países periféricos, no momento em que as cidades se tornaram centros de serviços. Daí que a “cidade genérica”,
segundo Koolhaas, se mantenha unida pelo que nela há de residual, de transitório e de precário.

De fato, diante desse atlas ainda inacabado, mas já exaustivo, sentimos de forma potente uma espécie de torpor decorrente do genérico,
que emana da predominância de tons de cinza, bege e creme na paisagem edificada da cidade, particularmente notável depois da Lei
Cidade Limpa. E a falta de regulação dos gabaritos dos edifícios faz do Centro um paliteiro de alturas muito díspares, e, da periferia, um
conglomerado disforme de casas térreas, sobrados e edifícios de até cinco pisos, de uso comercial. A heterogeneidade, quando regra,
talvez seja mais genérica do que a uniformidade.

Ao mesmo tempo, a generalidade se apresenta tão incrustada no DNA de São Paulo que ela passa a ser um traço distintivo da cidade.
Parece muito fortemente paulistana a convivência entre um casario em geral acanhado e a presença massiva de elementos de
infraestrutura urbana, tais como estruturas de pontes e viadutos, ou tanques de retenção de água (piscinões), todos de concreto. Ou, ainda,
a convivência entre elementos históricos remanescentes e isolados – como galpões industriais, chaminés, igrejinhas jesuíticas e edi-fícios
modernos – e enormes blocos e-dificados recentemente que irrompem de forma imponente e banal, como nas torres afrancesadas do
Parque Cidade Jardim, uma cidadela rodeada de estradas.

Salta aos olhos o modo como a feiura de base parece se infiltrar tanto na autoconstrução de periferia quanto na opulência do mercado
imobiliário de classe média e alta, na proliferação de janelas de alumínio, grades, pixos, balaustradas e mansardas. E também como a
ausência de espaços públicos e a mesquinhez das calçadas – ofendidas tanto por portões que avançam para acomodar os carros dentro
das casas, quanto por imensos muros de garagens em sobressolo que as transformam em lugares inóspitos – são atributos que atravessam
igualmente as divisões centro–periferia, ou pobreza–riqueza, definindo uma imagem mais geral da cidade na qual o espaço urbano é
desertificado e o pedestre não existe.
De posse do Aleph – um dispositivo minúsculo, secreto e miraculoso, que permite ao observador enxergar o mundo inteiro –, o pretenso
escritor Carlos Argentino Daneri, no conto “O Aleph” (1949), de Jorge Luis Borges, se lança à fastidiosa redação de um vastíssimo poema
épico chamado “A Terra”, em que descreveria em minúcia todos os continentes. Disposto a versificar “toda a redondez do planeta”, Daneri,
no entanto, após anos de trabalho, percebe ter dado conta de apenas alguns hectares do estado de Queensland, na Austrália; de mais de 1
quilômetro do curso do rio Ob, na Sibéria; de um gasômetro ao norte de Veracruz, no México; e de um estabelecimento de banhos turcos
não distante do aquário de Brighton, na Inglaterra. Detalhista e pernóstico, ele perde a dimensão do todo no atoleiro das infinitas partes,
sucumbindo à impossibilidade de comunicá-las.

O trânsito entre realidade e mapeamento é um tema muito borgiano. Não sabemos se Tuca Vieira um dia terminará seu trabalho, mas
podemos pensar essa catalogação como um ato silencioso de construção paralela de uma outra cidade latente que nós ainda não vemos,
enquanto a que conhecemos continua se transformando. Afinal, como notou o ensaísta francês Georges Didi-Huberman, “se o atlas aparece
como um trabalho incessante de recomposição do mundo, é, em primeiro lugar, porque o mundo mesmo sofre decomposições constantes”.

Guilherme Wisnik

(texto originalmente publicado na revista Piauí #112, janeiro de 2016)

São Paulo, máquina entrópica


https://revistazum.com.br/radar/sp-resenha-tuca-vieira-felipe-russo/

Complementaridades e antagonismos: oscilamos entre esses polos ao ver as duas mostras fotográficas em cartaz na Casa da Imagem até
o dia 16 de outubro. Garagem automática, de Felipe Russo, e Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e seus arredores, de Tuca Vieira,
deixam São Paulo exposta. O lugar é sugestivo para tal desvelamento: um espaço cultural público, municipal, situado no coração da cidade
e sem bilheteria. A franca entrada contrasta com o acesso proibido aos espaços revelados nas garagens da primeira exposição e com a
improbabilidade de se percorrer toda a extensão da metrópole retratada na segunda. Ambas exibem o que não está necessariamente ao
alcance dos nossos olhos. Como uma sugestão implícita, fica a cargo do visitante especular um diálogo entre as duas exposições que
coabitam a Casa da Imagem.

É fácil apontar antíteses. Felipe Russo opera na concentração, na clausura, no escuro. Por sua vez, Tuca Vieira explora a irradiação, a
abertura, a luz. As garagens automáticas induzem Felipe a trabalhar nas suas particularidades, explorando o que há nelas de serial. Às
lentes de Tuca, a capital paulistana alterna entre o genérico e o heterogêneo.
Deixando de lado o raciocínio dual, a complementaridade primeira das exposições
está em um protagonista (quase) ausente: os carros. Nas fotografias, a presença
dos veículos é, em grande medida, omitida: em muitas imagens, eles nem
aparecem; ocasionalmente, estão quase escondidos; em outras tantas, surgem
secundariamente. Mas a área destinada aos carros está lá e é invariavelmente
abundante. Predominam tanto nos ambientes internos de Felipe como nas muitas
e tão distintas vias apresentadas por Tuca. É patente a primazia concedida à
indústria automobilística nas políticas federais (dos anos 50 até os dias atuais)
bem como nas municipais, até muito recentemente – foi “anteontem” que nos
demos conta do quão vilanescos são os carros para as cidades brasileiras. O Atlas
fotográfico nos fornece também uma bela variedade de indícios pontuais do
automóvel: um monumental ferro velho, grandes colunas em vias de se tornar
viadutos a cortar uma área com resquícios de mata nativa, uma kombi estacionada
na via exclusiva para pedestres no triângulo histórico de São Paulo. Nesta mesma
área central da cidade, Felipe Russo alerta-nos à existência de 34 prédios feitos
para empilhar centenas de veículos. “É importante para pensarmos até que ponto
a questão do carro chegou e o que isso representa para a economia brasileira”,
declara o fotógrafo. “Construímos edifícios de trinta andares para guardar os
veículos como em prateleiras.” Alguns paulistanos têm conhecimento desses
estacionamentos verticais, outros tantos passam pela frente sem dar atenção, mas
quase ninguém sabe como são por dentro: universos fechados e obscuros, em que
o usuário deixa o carro na entrada, sem poder visualizar o caminho até a posição
onde será guardado. O artista os define como “máquinas que guardam máquinas”.

Numa dedução ao acaso, alguém poderia dizer que essas garagens-máquinas são mambembes, cheias de gatilhos e jeitinhos. Ledo
engano: tais máquinas são o triunfo da técnica, a supremacia do pensamento racional. Sistemas automatizados operando com controle total
do funcionamento. Roldanas, cabeamentos metálicos, pedais, polias, engrenagens, motores, contrapesos, painéis de geradores,
plataformas capazes de deslocar-se carregando toneladas, todos esses elementos interdependentes conformam um conjunto uno com a
função de armazenar carros.

Com uma única exceção, quase todas as garagens automáticas paulistanas foram feitas nos anos 60 e 70. Nesta mesma época, uma
geração de arquitetos capitaneados pelo crítico inglês Reyner Banham questionava a estaticidade da arquitetura – afinal, a “máquina de
morar” de Le Corbusier era estética e estática. Buscavam incorporar em seus edifícios a capacidade de movimento das máquinas.
Propunham a mobilidade das estruturas com total autonomia do engenho, isto é, todas as partes do edifício poderiam ser rearranjadas e
reconfiguradas sem que fosse necessária uma ação humana direta para operá-lo. Com essas diretrizes, Cedric Price projetou o Fun Palace
e o Archigram concebeu as Walking Cities, e na mesma chave trabalharam o Superstudio e o Archizoom Associati com sua No-Stop City.

Deste último, a imagem de um sem-fim de vagas de carro remete às sobreposições de andares de nossas garagens automáticas, herdeiras
também dessa fantasiosa busca banhaniana pela associação intrínseca entre arquitetura e tecnologia. Os Fun Palaces daqui eram feitos
para os automóveis. A publicidade da época insistia que nenhum homem encostaria no carro para estacioná-lo; era a outra grande máquina
que faria isso. Operadores acompanhavam o funcionamento geral, mas não havia manobrista. Desse modo, as garagens automáticas
operaram por alguns anos. Mas essa tecnologia demandava certo tempo de operação – cerca de 5 minutos de espera para cada carro – e a
impaciência geral trouxe de volta os manobristas para agilizar o processo.

Se Felipe Russo expõe um sistema mecânico serialmente edificado no centro de São Paulo, Tuca Vieira precisou estabelecer um sistema
para responder à pergunta que se propôs: “Como fotografar São Paulo?”. Ele mesmo rapidamente indica a questão subsequente: “O que é
São Paulo?”. O desafio de retratar (e mesmo conhecer) a cidade como um todo é descomunal. O fotógrafo se impôs uma provocação que
diz respeito a uma mancha urbana vasta, disforme, heterogênea. Logo, foi preciso implantar uma metodologia a fim de se apreender e
representar o todo de modo equânime. Um Guia Quatro Rodas, no qual a região metropolitana está seccionada em quadrantes de mesma
dimensão, é o alicerce fundamental para o sistema criado por Tuca para representar São Paulo – para cumprir o desafio de retratar o
imensurável para um único indivíduo, para possibilitar algo que poderia ser megalomaníaco, mas que acaba por ser candidamente
pragmático. Assim, entre 2014 e 2016, o fotógrafo foi nos 203 quadrantes e fez as 203 fotografias que vemos na Casa da Imagem. Com um
tripé e uma câmera artesanal de grande formato, Tuca se descreve fazendo “uma coisa meio século 19: eu me sentia como um pintor de
cavalete ao ar livre.”

Dessa prática impressionista resultam imagens estranhamente familiares. Afinal, ali está a cidade que habitamos. Contudo, somente cerca
de uma dezena de fotos retratam lugares inseridos no dia a dia de um paulistano comum. Um número maior se conhece somente de
passagem. E uma brutal maioria não se sabe onde é, e nossa “geolocalização mental” depende do quadrante no mapa do Guia Quatro
Rodas, das coordenadas geográficas e do respectivo nome do local – o qual tende a causar a mesma estranheza familiar que a foto.
Nesses pontos paulistanos que não sabemos exatamente onde ficam, reconhecemo-nos no supermercado Pão de Açúcar, na agência
bancária da Caixa Econômica, nas Casas Pernambucanas, no posto de gasolina BR, na esquina ocupada por uma padaria de bairro com
um letreiro de mau gosto. Vivemos numa cidade capitalista genérica.

Tuca Vieira ensaia uma organização tipológica dentre o que encontrou: conjuntos habitacionais carimbando o território, construções
industriais, arranha-céus, resquícios de mata nas bordas e monótonos bairros residenciais com ruas repletas de casas e sobrados (em sua
maioria autoconstruídos) cujas fachadas são ocupadas por portões de garagem. A conclusão de Tuca, no entanto, não poderia ser mais
honesta: “Meu trabalho convida à ideia científica de amostragem. Só que a própria amostra não funciona.” Prova disso é o Templo de
Salomão no Brás, a capelinha neocolonial de 1904 na ilha (que não é ilha) do Bororé, a cópia do Davi de Michelangelo no meio de um
estacionamento no Tatuapé (também replicada na fachada de um shopping), a descoberta da fachada de uma academia ornada com o
incrível Hulk.

Todas essas construções contêm as marcas da passagem do tempo. Fachadas desenhadas pelo escorrimento da água da chuva, camadas
de tinta descascada, manchas de umidade, ferrugem surgindo do metal e deixando seus rastros na alvenaria. A deterioração inevitável do
estrutural e do cosmético. A cidade gosta de narrar sua existência como um perpétuo processo de construções e reconstruções, mas as
fotos demonstram que o que prevalece é a decomposição. São Paulo está em avançado estágio de entropia.

Em Garagem automática, essa constante degradação da energia para o funcionamento é tão sutil quanto um tapa na cara. O sistema é tão
automatizado e independente da presença humana que acumula-se ali a fumaça, a fuligem, a sujeira e a poluição de décadas. As peças
fundamentais recebem manutenção preventiva das empresas de elevadores, mas esses edifícios não precisam ser lavados. A entropia está
praticamente livre para atuar, chamuscando o que era propagandeado como fantástico na arquitetura-máquina de meados do século 20.

“Meu trabalho foi tentar extrair da superfície desses prédios o que o tempo impregnou”, relata Felipe Russo. “Não era a sobreposição de
uma criação minha, mas um esforço de dar transparência.” Transparência ao que é crescente e continuamente mais obscuro. Peças,
estruturas, ambientes tornam-se indiferenciados no paulatino e irreversível negror da matéria. Felipe complementa: “Tento trazer para as
imagens um pouco da experiência do local”. Porém, qual é a experiência quando a dimensão humana é vetada? A dimensão humana não
tem espaço naquele projeto, nem passou a ter em qualquer momento ao longo das cinco décadas de existência das garagens automáticas.
A experiência do lugar é para as máquinas que hoje vemos submetidas às inevitáveis forças da entropia. A experiência do lugar é para os
carros.

É interessante que o termo “experiência” retorne na fala de Tuca Vieira. Nas imagens do Atlas fotográfico, não predominam as fachadas em
elevação, com ângulos ajustadamente retos, preponderantes na fotografia de arquitetura brasileira. Tuca explora as esquinas, as diagonais,
como se apreendesse as construções em um instante da caminhada. Em suas palavras, “a foto é um índice da experiência” em cada
quadrante paulistano. Mas ressalta: “É uma experiência mais desconfortável que perigosa. É uma cidade feia. É um desconforto visual”.
Este incômodo deve-se por uma razão muito semelhante ao das garagens automáticas: praticamente inexiste a dimensão humana nesse
pseudoprojeto paulistano de cidade. Se no sistema instituído por Tuca para fazer o Atlas era preciso retratar a cidade sempre a partir do
espaço público – da rua –, evidencia-se que nele faltam espaços feitos para que possamos ter uma experiência, algo verdadeiramente
relacionado ao viver humano.

Sob essa lógica, a entropia serve para percebermos que as duas exposições estão tratando sobre um assunto bastante semelhante. As
garagens automáticas foram uma maquete, um modelo de cidade. Quis-se fazer de São Paulo uma “máquina que guarda máquinas”. Deu
muito errado.///

Francesco Perrotta-Bosch é arquiteto e ensaísta, mestrando pela FAU-USP. Foi vencedor do 2º prêmio serrote de ensaísmo, em 2013,
quando escreveu sobre as relações entre o prédio do Masp, Lina Bo Bardi e John Cage. Seus textos podem ser lidos no blog
acercaacerca.com.br.

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São Paulo profunda


https://www1.folha.uol.com.br/colunas/guilherme-wisnik/2016/07/1790350-sao-paulo-profunda.shtml

Nesse sábado abriram duas excelentes exposições na Casa da Imagem, em São Paulo: "Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e seus
arredores", de Tuca Vieira, e "Garagem automática", de Felipe Russo.

Olhares contemporâneos sobre São Paulo, os dois trabalhos são, no entanto, opostos e complementares. Pois se as fotos de Tuca Vieira
varrem toda a extensão da mancha urbana metropolitana, num esforço de levantamento por acúmulo da imagem da cidade, as de Felipe
Russo mergulham no poço escuro dos seus edifícios garagem, registrando a solidão opressiva e algo sublime dessas carcaças urbanas
feitas para empilhar carros. Significativamente, desde a própria varanda da Casa da Imagem, olhando-se para leste, vemos um skyline
baixo em que se destaca uma torre opaca: o Edifício Garagem Automática 25 de março.

Autor da famosa foto da favela de Paraisópolis, ícone na última década, Vieira se lançou a um novo desafio pelo avesso: buscar a síntese
pela exaustão. Qual é a verdadeira cara de São Paulo? Como representar essa cidade inapreensível? Perseguindo tal questão, mas
reconhecendo a impossibilidade de resolver a contento a empreitada delirante, o fotógrafo adotou um método científico: tomando um guia
de ruas da cidade, resolveu realizar uma foto para cada página dupla.
Agora, depois de dois anos de trabalho hercúleo percorrendo todos os quadrantes da cidade, o conjunto de 203 imagens está finalmente
pronto. E impressiona pela capacidade de expressar singularidades sob um tom de monotonia. Marcada pela urgência, pelo improviso e
pela estética inacabada, a cidade se espraia no território na mesma medida em que concentra recursos. Mas na escala babélica desse
atlas, somos absorvidos pela recorrência de tons cinza, bege e creme nas construções, e pelo contraste marcado entre grandes obras de
infraestrutura e a dominância da autoconstrução e da informalidade.

Já o ensaio visual de Felipe Russo procura flagrar São Paulo por um elemento muito marcante da sua paisagem construída, mas em geral
pouco percebido: os edifícios garagem. E mais: elege só os automáticos, aqueles dotados de elevador. Sem janelas, e muitas vezes sem
acabamentos, essas toscas "máquinas de guardar máquinas", como diz o fotógrafo, são presenças mudas na cidade, enigmáticas lápides
urbanas que povoam a sua área central.

Por dentro, são feitos de grossas lajes de concreto recobertas de fuligem, e equipados com cabos de aço, roldanas, alavancas, polias e
correntes, como cárceres piranesianos da cidade industrial. Russo inclui também, na primeira sala, um som ambiente com o ronco grave de
motores, buzinas e guinchos de elevadores, além de, em outra sala, um singelo vídeo mostrando o movimento automático dos painéis de
controle. Não vemos pessoas nem carros, apenas máquinas fossilizadas que estão ligadas em moto-perpétuo há sessenta anos. E
praticamente sentimos a sua vibração monocórdica, como se a cidade tivesse deixado de existir.

É um alento que em um momento de corte geral de investimentos, e de desmonte da política cultural no plano nacional, um museu público
(do município) abra uma exposição com essa qualidade. E, depois de tamanha experiência de viagem pelos labirintos verticais e horizontais
da cidade, percebemo-nos ao lado do Pátio do Colégio, que parece mais irreal do que todas as fotografias.

Guilherme Wisnik, é colunista do jornal Folha de S. Paulo


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Revista Amarello #19 (2015)

Viadutos têm uma presença mais do que forte na obra de Tuca Vieira. Estruturas em concreto que ligam duas pontas de chão sobre um
abismo e que delineiam o horizonte com veemência ímpar, a versão do homem, mais grosseira e pesada, para o risco de luz faiscante que
nasce do encontro do sol com a superfície da Terra. São cortes no espaço que introduzem uma geometria em movimento no quadro
fotográfico, uma linha imóvel por onde deslizam pessoas, carros, trens, ou seja, um corpo de trânsito.

Talvez por isso uma das imagens mais poderosas do artista seja a fotografia do corpo de um homem que ele viu se jogar do viaduto da
avenida Doutor Arnaldo, em São Paulo. É um quase cadáver, uma vida que parece se esvair pelos poros no momento em que o obturador
da câmera dispara, visto de cima como uma mancha sobre o canteiro central da Sumaré lá embaixo, ladeado de carros em alta velocidade,
indiferentes ao fato. Vieira fez 13 fotografias em sequência, entre a autocensura de registrar sem pudor o fim de uma vida e o fascínio diante
da vida que se transforma em morte num percurso de 30 metros entre o viaduto e o asfalto. São 13 fotogramas, ele diz, iguais. Mas é uma
sequência que treme com certo movimento, a imagem estática com pulsão de vida.

Na série que realizou sobre o que o ex-presidente Lula chamou de “espetáculo do crescimento” no Brasil, Vieira viajou pelo Pará e por
Pernambuco para flagrar as consequências do desenvolvimento econômico na região, de obras gigantescas, como a transposição do rio
São Francisco, aos pequenos impactos da bonança financeira na vida da nova classe média que surgiu por ali, com salões de beleza
anunciados em outdoors, hordas de motocicletas abarrotando ruazinhas antes modorrentas e manequins ostentando calças jeans
fabricadas em massa.
Mas uma imagem, ou melhor, um vídeo, resume toda essa história. Vieira monta sua câmera diante de um viaduto e filma a passagem do
trem de carga que leva minério bruto da mina de Carajás, no Pará, ao porto de Ponta da Madeira, no Maranhão. Sobre a linha que substitui
o horizonte na imagem, passa uma composição de vagões que parecem infinitos, uma sequência ininterrupta de retângulos de ferrugem
que, com o passar do tempo, quase viram um aspecto permanente da paisagem, um rastro ocre e barulhento.

Outra imagem, essa da mina vista do alto, mostra as cicatrizes no solo deixadas pela extração de minério. Lembra um modelo topográfico
desses usados em aulas de geografia, mas aqui a escultura, como os viadutos, é também resultado da ação do homem e da voracidade da
exploração econômica. De cor vermelha, aquela imensidão de terra escavada dá à fotografia uma pegada carnal. Quando Vieira me contou
que esse era o lugar mais parecido com Marte que já viu na vida, fez sentido a imagem de planeta vermelho. Mais do que Marte, ele
fotografou ali uma espécie de sangria desatada da paisagem.

Mas seu esforço nessa série consistiu em manter certa neutralidade mesmo diante do caos. Vieira, a exemplo de como retratou um suicida
desmanchando no asfalto, não julga. E aqui lança mão de um formato rigoroso, submetendo todas as arestas da urbanização improvisada,
fruto dos dutos de dinheiro investidos ali, a composições sempre quadradas, de uma elegância indiferente à realidade.

Vieira é um grande fotógrafo de metrópoles, de Nova York a São Paulo, passando por Berlim. Está quase sempre em busca da marca
humana mais mínima em cenários que às vezes ganham dimensões opressoras. Mas, nas imagens do Pará e de Pernambuco que mostrou
na Bienal de Arquitetura de São Paulo, há dois anos, essa presença humana aparece sem filtros, em toda sua balbúrdia, como se Vieira já
não lutasse contra a realidade em busca do rigor geométrico que pauta suas imagens. Ele desloca isso para as margens, enquadrando sem
dó toda a fúria de uma era de transição num espaço equilátero. Na imagem mais movimentada dessa série, uma rua de Salgueiro, em
Pernambuco, surge abarrotada de motocicletas, quase todas vermelhas, ecoando um prédio da mesma cor mais ao fundo. É a cor do
movimento, e de alguma dor e certo prazer."

Silas Martí é jornalista da Folha de S.Paulo e escreve sobre artes visuais e arquitetura no caderno "Ilustrada.

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Texto para a exposição "V. se encontra na posição da seta" (Funarte, 2013)

Essa enorme fotografia é feita de muitas outras. Cento e cinco, mais precisamente. Assim, cada fotograma é, ao mesmo tempo, célula de
um conjunto grande e coeso, e unidade auto-suficiente de um olhar que mergulha nas cenas que se apresentam a sua frente, buscando
detalhes da vida íntima alheia. E, assim, como que em um jogo de detetive, cenas inesperadas – já que invisíveis a olho nu – vão saltando à
vista através da câmera: pessoas na janela, silhuetas veladas através de vidros translúcidos, fotos, desenhos e objetos situados no fundo
dos apartamentos etc. Não se trata apenas de voyeurismo. Aqui, a poética do fotógrafo se irmana à ficção cinematográfica e literária. Penso
imediatamente em Janela indiscreta (1954) de Alfred Hitchcock, assim como em Blow-Up (1966) de Michelangelo Antonioni, inspirado no
conto Las babas del diablo (1959) de Julio Cortázar. O jogo de suspense instaura enigmas que transcendem a compreensão causal das
coisas. Vivemos em um grande labirinto. As teias da vida cotidiana são infinitas, e às vezes se cruzam em lugares impróprios. O grande jogo
lúdico do acaso dispara relações associativas incontroláveis, que podem nos levar até a desvendar um crime através de ampliações
sucessivas de uma foto, tal como acontece em Blow-Up.

Toda essa rede de possibilidades está implícita nesse trabalho de Tuca Vieira - V. se encontra na posição da seta. Escrita em um luminoso
localizado em uma das entradas do edifício, essa frase de identificação informativa pode ser vista também como índice de rastreamento e
vigilância: você está mapeado, registrado, grampeado. Aqui, Tuca elabora artisticamente a noção de mapeamento. Pois não se trata apenas
de uma vigilância panóptica. Aliás, não estamos mais no plano paranoico do “olho do poder” descrito por Michel Foucault. Trata-se, agora,
de uma vigilância que envolve sedução, buscada e consentida em certa medida, como nos reality shows televisivos, ou nos sobrevoos e
mergulhos repentinos proporcionados pelo Google Earth, amplificados mais recentemente nas cenas ao mesmo tempo anônimas e
indiscretas do Street View. Se o mapeamento é um dos temas centrais da arte contemporânea – pelo menos desde Robert Smithson, no
final dos anos 1960 –, Tuca Vieira desdobra a questão a partir do universo simbólico engendrado pelas tecnologias de busca e mapeamento
digital nos anos 2000, tais como Google e GPS, focalizando um ícone arquitetônico de São Paulo.

Nossa experiência diária está saturada de imagens. Vivemos envoltos por imagens, tanto palpáveis quanto virtuais. Fotografamos e
filmamos tudo a todo momento, armazenando o mundo em memórias digitais que ficarão disponíveis para que qualquer pesquisador futuro
saiba tudo sobre a vida que levamos hoje. O consumo obsessivo extravasou o mundo das coisas para atingir também suas representações.
Diferentemente do que queria Hélio Oiticica nos anos 1960, não é o museu que virou mundo, e sim o mundo que se museificou.
Consumimos também a representação do mundo, suas infinitas imagens. Nesse sentido, o trabalho de Tuca Vieira dialoga com essa
banalização. Mas reverte essa espiral da variedade infinita e irrelevante a seu favor. Alguma forma de controle e organização se mantém.
Os cento e cinco fotogramas reunidos compõem uma imagem única. Única, porém falsa como totalidade, já que as fotos não foram tiradas
no mesmo instante e, portanto, as cenas que vemos nunca estiveram juntas ali.

São Paulo #1 Mas o que é a realidade? Não será a realidade sempre uma construção? À medida que se aproximam de objetos menores, recortando
São Paulo #2 pedaços da imagem, as fotos de Tuca Vieira se pixelizam, assumindo o artifício, isto é, a realidade digital do trabalho. Ou será a realidade
Urban age Rio digital do mundo? Já não distinguimos bem o rosto de uma pessoa real em relação a uma foto que estava sobre a parede do apartamento
S/T
em forma de pôster. Não poderíamos supor haver uma identidade entre os pixels de um rosto muito ampliado e os padrões geométricos das
superfícies de cobogó que vedam as varandas de serviço no Copan? De que padrão visual e construtivo é feita a nossa vida? Será que
s/t
aquele rosto não é o seu? Perguntas como essas se amplificam à medida que percorremos essas imagens. E quanto mais buscamos os
segredos dos outros, mais nos lembramos de que nós é que estamos sempre na posição da seta.
Salto no escuro
Textos
textos
Gulherme Wisnik é professor na FAUUSP. É autor dos livros Lucio Costa (Cosac naify, 2001), Caetano Veloso (Publifolha, 2005) e Estado
crítico: à deriva nas cidades (Publifolha, 2009), entre outros. É membro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte, e da LASA –
Latin American Studies Association. Crítico de arte e arquitetura, foi curador do projeto de Arte Pública margem (itaú Cultural, 2008-10), das
exposições Cildo Meireles: rio oir (itaú Cultural, 2011) e Paulo Mendes da Rocha: a natureza como projeto (Museu Vale, 2012). É o curador
da 10a Bienal de Arquitetura de São Paulo (2013).

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Sobre "Berlinscapes"

Tuca Vieira se notabilizou em sua carreira de andarilho, poeta visual e fotojornalista em flagrar e capturar com sua câmera instantes nos
quais o mundo sorrateiramente lhe oferece o sublime em composições fortuitas que harmonizam forma, conteúdo e acaso. Imagens que
celebram o surreal oculto na expressão apenas aparentemente banal do cotidiano. Era uma forma de apreender a poética por meio de um
olhar apaixonado pelo fluxo contínuo do tempo.
“Berlinscapes” marca uma reviravolta nas séries produzidas pelo artista até agora. Mantém-se a cidade, esta paisagem alterada pela ação
do homem que segreda grandes batalhas por conquistas de territórios e imposições de ideologias, como seu laboratório de experiências. No
entanto, o imperativo do instante e do acaso percebido pelo andarilho que segue à deriva no espaço urbano dá lugar a uma nova e
extraordinária densidade contemplativa.
A cidade surge não mais como um fluxo acelerado que os olhos observam em movimentos de scanner, mas como pontos fixos e frontais
que interrogam placidamente a câmera e o espectador.
Se por um lado a presença física do homem escapa do visor, por outro ela se reforça pela ação que este impõe a paisagem por meio de
seus monumentos, pelas inscrições que denotam conquistas e circunscrevem o tempo histórico.
As estratégias estéticas e conceituais de Tuca Vieira retomam a dimensão de uma imagem absoluta, sem fissuras, onde o tempo e o
espaço ganham uma inesperada suspensão. Se aliando a tradição da fotografia alemã, notadamente ao legado do casal Becher, no qual
produto arquitetônico se equivale a escultura, Vieira adiciona ao rigor da forma desta escola, uma miríade de luzes noturnas que findam por
desestabilizar a pretensão documental da fotografia para adentrar numa zona de atmosferas instáveis, sedutoras.
A cidade, enfim, se mostra como fragmentos, justaposição de tempos que em forma de enigmas desnudam e segredam a aventura dos
tempos.

Eder Chiodetto é curador e crítico

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Prefácio do livro As Cidades do Brasil: São Paulo, Publifolha, 2005)

O fotógrafo que quiser retratar São Paulo não terá à sua disposição os cartões-postais que tantas capitais brasileiras são pródigas em
oferecer a cada passo. Cada objeto de sua atenção haverá de destacar-se de um ambiente desordenado e hostil: como se muitos bens
culturais, relíquias históricas ou simples recantos pitorescos sobrevivessem, a exemplo de seus cidadãos, num permanente estado de sítio.
Claro que, a certa altura, mesmo a violência visual paulistana se torna um motivo plástico: os edifícios cobertos de pichações, os fantasmas
de concreto que são os velhos prédios do centro transformados em cortiços verticais, o emaranhado dos fios de eletricidade, as vias
elevadas e viadutos trançando novos níveis de asfalto e de concreto por cima de velhas avenidas; os grafites, os buracos, os mendigos, as
luzes de congestionamento brilhando sobre a água das inundações, os rostos de pedestres liquefeitos na pressa, tudo isso compõe o
quadro de uma cidade em que o espaço, quase inabitável, por isso mesmo se instabiliza e se abre ao exercício da arte fotográfica, no poder
que tenha de extrair lirismo do feio e do áspero, de recortar ângulos peculiares dentro de um labirinto feito de impaciência, vandalismo,
congestionamentos infindáveis e invencível vontade de seguir em frente.

Um esforço de vista, por parte do fotógrafo, que terá de ser também poeta, irá encarregar-se de fluidificar, de dissolver em associações e
metáforas aquilo que, duramente, se impõe como realidade bruta. Talvez isso valha para qualquer cidade. Mas em São Paulo os pontos de
interesse estão sempre na dependência de serem salvos, de serem revelados, de serem descobertos em meio a um ambiente hostil.

Tornar tudo útil, não perder tempo, fazer dos seus problemas e inviabilidades motivo de orgulho e de proveito: nada mais paulistano, nada
mais pragmático do que isto. Mas que seja permitido, a quem tem este livro entre as mãos, um instante, breve que seja, de contemplação.
As lentes de Tuca Vieira se multiplicaram como os cristais de um caleidoscópio, conseguindo captar, num contraponto de imagens que se
renova e surpreende a cada página, tudo o que a cidade tem de extremado, de conflitivo, de inquietante --e de bonito.

Marcelo Coelho é jornalista e colunista do jornal Folha de S. Paulo

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