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O nde e s t a v a a ig r e ja de C r ist o q u a n d o s e is m il h õ e s

DE JUDEUS FORAM MORTOS POR ORDEM DE HlTLER?

Decorridos vários anos do térm ino da Segunda Guerra M undial, essa


pergunta ainda requer um a resposta satisfatória. A m onstruosidade do
Terceiro R eich de Adolph H itler é ainda um capítulo assustador da
história e desperta acaloradas polêmicas.

Seduzidos pelo hipnotismo do Fü hrer, líderes eclesiásticos de toda a


A lem anha perm itiram que a suástica ocupasse lugar de proem inência
nos santuários. O orgulho nacionalista substituiu o cham ado de Deus
à pureza e, com poucas exceções, a igreja alem ã perm aneceu
indiferente enquanto H itler im plem entava sua “Solução Final”.

Em A cruz cie H itler , o teólogo Ervvin Lutzer exam ina as


lições que podem ser extraídas desse episódio histórico:

• os perigos de confundir igreja e Estado;


• como a igreja perdeu o foco;
• o papel de Deus na tragédia hum ana;
• os parâm etros da autonom ia de Satanás;
• a verdade por trás da aversão de H itler aos judeus;
• a fidelidade de Deus para com seu povo;
• comparações entre a ascensão de H itler e o
reinado futuro do A nticristo.

Este livro é a história de uma nação cuja igreja esqueceu seu cham ado
principal e descobriu sua falha tarde demais.

Ervvin Lutzer é pastor-titular da Moody Church, em Chicago, EUA. É bacharel


em Artes pela Winnipeg BiMe College, mestre em Teologia pelo Dallas
Theological Seminary, mestre em Artes pela Loyola University e doutor em
Direito pela Simon Greenleai School of Law. Escreveu vários livros, entre eles A
serpente do paraíso, Um minuto depois da morte, Dez mentiras sobre Deus, De pastor
para pastor, 7 razões para confiar na Bíblia e Os brados da cruz, todos publicados
pela Editora Vida.

Vida
www.editoravida.com.br Categoria: História da igreja
Vida

Editora do grupo D ir e ç ã o e x e c u tiv a


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(B e t â n ia )

A prenda a v iv e r b em co m D eus
e com seu s im pulsos sexuais
(Betânia) ©1995, de Erwin W. Lutzer
Título do original ® H itler’s cross
C risto en tre ou tros d euses (c p a d ) edição publicada pela
A serp ern te d o P araíso (Vida) M oody P r e ss
(Illinois, Chicago, eua)
7 razões p a r a co n fia r na B íblia

(Vida)
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sa lv o e m b r e v e s c it a ç õ e s , c o m in d ic a ç ã o d a f o n t e .

Todas as citações bíblicas foram extraídas da


Nova Versão In ternacional ( n v i ) ,
©2001, publicada por Editora Vida,
salvo indicação em contrário.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( c ip )


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lutzer, E rw in W . -
A cruz de /Hitler: com o a cruz de C risto foi usada para prom over a ideolo gia
nazista / Erw in W . Lutzer; tradução Jam es M onteiro dos R eis.— São Paulo : E ditora
V ida, 20 0 3 .

T ítu lo orig in al: H itle r’s cross


B ibliografia.
ISBN 85-7367-741-4

1. A lem anha — H isto ria d a igreja — 1 9 3 3 -1 9 4 5 2. C ruzes 3. H itler, Adolf,


1 8 8 9 -1 9 45 4. Igreja e Estado — A lem anha — H istó ria — 193 3 -1 9 45 5. N azism o
6. Suástica I. T ítu lo . II. T ítu lo : C om o a cruz de C risto foi usada para prom over a
ideolo gia nazista.

792 ______________________________________c d d - 2 6 1 . 7 0 9 4 3

índices para catálogo sistemático


1. A lem anha : Igreja e nazism o : T eologia social : C ristianism o 2 6 1 .7 0 9 4 3
2. A lem anha : N azism o e igreja : T eologia social : C ristianism o 2 6 l.7 0 ‘>-i3
Este livro é d ed ica d o ca rin h osa m en te aos
m em bros e am igos da Igreja M oody — cujo
am or e orações têm sido um incen tivo constante
p a ra m im e p a ra m in h a fa m ília , e cu jo
testem unho d e Cristo é um lem brete d e que a
cruz ainda é “o p o d er d e Deus para a salvação
Sumário

Prefácio 9
Introdução 13

1. A espera de Hider 17
2. Deus e Hider: quem estava no comando? 45
3. A religião do Terceiro Reich, ontem e hoje 71
4. O anti-semitismo do Terceiro Reich 97
5. A igreja é ludibriada 127
6. A igreja é dividida 153
7. A igreja é desmembrada 177
8. Heroísmo no TerceiroReich 197
9. O discipulado no Terceiro Reich 217
10. O encobrimento da cruz em nações cristãs 239
Prefácio

Este é um livro que precisava ser escrito.


Em 1991, passei por um momento de definição, em um dia
absurdamente gelado, nos campos de concentração de Auschwitz e
Birkenau. O desconforto físico causado pelo clima tornou-se insig­
nificante à medida que caminhava pelas salas daquele inferno huma­
no, que testemunhara, dia após dia, quão profundamente a mente
humana pode cair, quando a consciência já não existe. O próprio
Hitler disse isto: “Quero criar uma geração de jovens desprovidos de
consciência— soberba, implacável e cruel”.
Emudecido, fitava os retratos de crianças feridas e humilhadas
por experiências realizadas nelas. De repente, reparei que todos ha­
viam deixado a sala, com exceção de outro senhor que, como eu,
estava estupefato e precisava dizer algo a alguém. Virou-se e per­
guntou-me que tipo de trabalho eu fazia.
Respondi-lhe: “Sou ministro do evangelho”.
Sua resposta carregava o peso da história: “Isso lhe dá muito que
pensar, não é mesmo?”. Sua ilação era óbvia — Onde estava a igreja
nisso tudo? Após uma pausa, perguntei-lhe que tipo de trabalho fazia.
Hesitou, e a seguir respondeu: “Sou juiz no Estado de Nova
York”.
“Creio que nós dois temos muito que pensar”, disseéu.
Muito foi escrito sobre a era nazista, mas sempre desejei que
alguém, com discernimento e talento, pudesse nos ajudar a alcan­
çar um entendimento mais profundo a respeito desse terrível perío­
do da história. Precisávamos de uma análise investigativa que fizes­
se justiça ao que aconteceu e relacionasse esses acontecimentos às
10 A cruz de H itler

posturas das maiores instituições da região — até mesmo a da igre­


ja — e a da sociedade como um todo.
Este é o livro. Erwin Lutzer traz uma resposta bem fundamen­
tada e veemente às indagações de “como”, “por quê” e “se” dessa
tragédia. Temos em mãos uma interpretação bíblica de como Adolf
Hitler causou a mais sangrenta, desnecessária e prejudicial guerra da
história, a qual, provavelmente, alterou irremediavelmente os pa­
drões do nosso mundo.
Uma multidão de pessoas pergunta o óbvio: “Como seres huma­
nos normais podem ter se disponibilizado — tornando-se joguetes
nas mãos de Hitler intencionalmente ou de qualquer outra forma —
para cumprir as ordens mais brutais?”. O destacado caçador de nazis­
tas, Peter Malkin, contou sua experiência quando perseguia Adolf
Eichmann. Ele confessou ter se surpreendido, pois ao colocar sua
mão sobre a boca de Eichmann se deu conta de que ele era apenas um
ser humano. Quanto mais o encarava, mais se admirava de como
um homem tão frágil manipulara poderes tão diabólicos. Além dis­
so, e com mais pertinência, Malkin disse: “Eu ansiava por entrar em
sua mente e perguntar o porquê, mas isso era impossível”.
Em um artigo recente do Jo u rn a l ofM od em H istory [D iário da
H istória M oderna], o professor M ichaelR. Marrus, da Universi­
dade de Toronto, tenta destrinçar o mistério do nazismo no en­
saio intitulado R eflections on the historiogfaphy o f t h e H olocaust
['C onsiderações sobre a historiografia do H olocausto]. Por mais bri­
lhante que tenha sido sua tentativa, ainda restam perplexidade e
confusão profundas. Citando o célebre historiador do holocausto,
Christopher Browning, que insistia ter havido mais do que uma
obediência fanática, escreve: “Esses homens parecem ter ficado
absolutamente fascinados por sua posição de funcionários públi­
cos”, e
indiferentes ao que possam ter sentido ou desejado pessoalmen­
te, qualquer atitude que pudesse macular a reputação de buro­
cratas confiáveis e eficientes era impensável para eles. Eles eram
dominados pela compulsão interna de manter suas fichas limpas.
P refácio 11

Essa compulsão era tão poderosa, que obliterava qualquer senti­


mento de responsabilidade individual.
Marrus acrescenta: “Aqueles homens, e outros como eles, torna-
ram-se burocratas assassinos”.
Essas explicações não nos satisfazem. Não podemos abandonar
toda essa análise previsível e ir direto à realidade do que era tudo
aquilo? Será que não podemos ir além de nossas escrivaninhas, para
aprender com a história e não repetir os mesmos erros?
Por isso a abordagem de Erwin Lutzer é tão importante para
esta geração. Quando você começar a ler este livro, será difícil pô-lo
de lado. Ele é digno das mentes mais sérias e das mais ávidas. O que
será revelado nestas páginas pode ser importante para todos os que
se importam em preservar o futuro ao lembrar-se do passado. Na
verdade, se bem me recordo, este mesmo desafio está gravado nas
paredes do Museu do Holocausto em Jerusalém. O livro de Erwin
Lutzer nos leva a ter esse ímpeto, e ao fazê-lo, serve à humanidade
de forma esplêndida.
Ravi Zacharias
Introdução

Quando recentemente caminhava por Berlim, pensei que teria de


abandonar minha busca pelo Edifício Bendlerblock, onde ficava insta­
lado o Ministério da Guerra de Hitler, na era nazista. Meu mapa me
dizia que a rua que procurava já não se chamava Bendlerstrasse, pois
fora rebatizada Stauffenbergstrasse, em homenagem ao homem que
tivera a coragem de tentar assassinar Hitler. Sabia que no pátio desse
edifício, ele, juntamente com mais meia dúzia de pessoas que haviam
participado da conspiração fracassada, fora cruelmente fuzilado. Esses
assassinatos brutais foram filmados para o sádico deleite do Führer
lLíder]. Queria estar no local exato onde tudo isso acontecera e, assim,
homenagear o heroísmo daqueles homens.
Quando sai do metrô, fiquei um pouco confuso e desorienta­
do. Após caminhar um pouco, concluí, relutantemente, que estava
indo na direção errada. Porém, por providência divina, achei a rua
e, com a ajuda de um garoto em uma bicicleta, logo cheguei ao
pátio daquele edifício, e fiquei bem ao lado de um memorial ergui­
do em homenagem a Stauffenberg e seus colegas.
O que eu não sabia é que esse antigo prédio do Ministério da
Guerra abrigava agora um museu sobre a resistência; um registro
público de dezenas de homens corajosos, como Stauffenberg,
Niemõller e Bonhoeffer. Aqui estava a prova, caso fosse necessária,
de que nem todos os que viveram na Alemanha durante o Terceiro
Reich apoiavam Hitler. Alguns se opuseram a ele desde o início; ou­
tros só o viram como realmente era logo que as atrocidades começa­
ram. Mais indivíduos do que eu imaginava, porém, haviam se
disposto a dar a vida para impedi-lo.
14 A cruz de H ítler

Contudo, as fotos que chamaram minha atenção foram as que


retratavam pastores protestantes e padres católicos prestando a sau­
dação nazista. E o que me surpreendia ainda mais eram as fotos de
bandeiras com a suástica enfeitando igrejas cristãs — flâm ulas da
suástica co m a cruz de Cristo no centro!
Em pé, naquele museu, decidi-me a estudar como Hitler con­
quistara a simpatia da igreja cristã. Sabia que 95% do povo alemão
era formado por protestantes ou católicos. Agora, só queria saber por
que os cristãos da Alemanha não condenaram Hitler corajosamente
e a uma só voz. Perguntava-me por que milhões de pessoas, de bom
grado, tomaram a Hakenkreuz (cruz gamada ou quebrada) de Hitler,
colocando sobre ela a cruz de nosso Redentor crucificado. Somente
mais tarde viria a compreender quanto essa confusão de cruzes iludiu a
igreja alemã, atraindo o julgam ento d e Deus.
Ao sair do museu, peguei um táxi para a Igreja Memorial Kaiser
Guilherme, que já conhecia de visitas anteriores à Alemanha. Dessa
vez, observei os afrescos, os retratos e os relevos históricos com
outros olhos. Que indícios havia na história da Alemanha que pre­
pararam o país (e suas igrejas) para tamanha sedução em massa?
Será que isso poderia acontecer novamente? Ou tratando do que
realmente importa, será que isso estaria acontecendo agora, até
mesmo nos EUA, ainda que de maneira diferente? Que sinais deveri­
am ter alertado a igreja sobre os verdadeiros planos de Hitler?
Que Hitler era um deus, ninguém tem dúvida. Era adorado por
milhões, e se achava infalível e invencível. Seduzia as massas e acre­
ditava poder dominar o mundo. No fim, descobriu-se que era um
deus menor, cujo destino foi partilhado com os que se opuseram
ao Todo-Poderoso. A história subseqüente confirmaria que sua cruz
teve de se curvar perante a cruz de Cristo.
Hitler, creio, é o arquétipo do anticristo que algum dia se levan­
tará, realizando proezas políticas e econômicas. Ele também hipno­
tizará milhões de pessoas e exigirá a adoração do mundo. Terá a
capacidade de grandes conquistas e façanhas, e exercerá um controle
que Hitler jamais sonhou ser possível. Ao investigarmos aquela
Introdução 15

época, mostrarei algumas semelhanças impressionantes entre esses


dois homens.
A igreja sempre esteve entre dois deuses e duas cruzes. De um
lado, está nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, que padeceu em
uma cruz romana e morreu pelos pecados do mundo. Do outro
lado, ficam alguns deuses menores com suas outras cruzes — pro­
messas de libertação que oferecem falsa salvação.
Sim, nós também enfrentamos a tentação de nos curvar perante
os deuses de nossa época, que nos incitam a misturar Cristo com
outras religiões, planos políticos ou objetivos mundanos. A experi­
ência da igreja na Alemanha nazista nos lembra que Cristo deve
sempre estar sozinho; ele não deve ser adorado como aliado de líde­
res de governos deste mundo, mas como alguém que está acima
deles, como Rei dos reis e Senhor dos senhores.
Uma vez que acredito, como disse Santayana, que quem despre­
za a história está condenado a repeti-la; seríamos negligentes se dei­
xássemos de estudar a era nazista, a fim de aprender tudo o quer for
possível para a igreja de hoje. E como veremos, ao fazê-lo, também
estaremos nos preparando para nosso futuro iminente.
Descobriremos que a era nazista transmitiu seus ensinamentos
para várias igrejas do mundo. Essa era nos avisa, nos desafia e nos dá
um prognóstico do que poderá acontecer nos dias que se seguirão.
Cabe a nós atentar aos seus avisos, aceitar seus desafios e identificar
seus artifícios sutis.
Com a Bíblia em uma mão e livros de história na outra, inicia­
mos nossa jornada. Quando a completarmos, estaremos ajoelha­
dos diante de Deus, pedindo-lhe ajuda para nos manter fie|s à cruz
de Cristo, custe o que custar. E deveríamos notar e identificar os
sinais que estão levando a nação onde vivemos por um caminho
que poderia ser bastante parecido.
Vamos começar.
À espera de Hitler

C A P I T U L O UM

Rudolf Hess, filho de um comerciante atacadista e estudante da


Universidade de Munique, escreveu uma dissertação premiada que
respondia à questão: “Que tipo de homem irá liderar a Alemanha
de volta à glória do seu passado?”. Quando conheceu Hitler, em
1920, ficou impressionado com a semelhança entre o que escrevera
e o homem que estava ali em sua presença. Hitler sentiu-se tocado
pela dissertação e ficou impressionado com o homem que tivera
uma percepção tão aguçada. Não é de admirar que tenham se tor­
nado amigos íntimos.
Acima de tudo — disse Hess — esse indivíduo teria de ser um
homem do povo, cujas raízes estivessem profundamente firmadas
nas massas, para que soubesse como tratá-las psicologicamente.
Somente um homem assim poderia conquistar a confiança do povo,
o que, entretanto, seria somente sua imagem pública. [
Em segundo lugar, na vida real, esse homem não deveria ter
nada em comum com as massas, para que quando fosse necessário,
não se recusasse a derramar sangue. Grandes questões são sempre
decididas por meio de “sangue e ferro”. A imagem pública deveria
ser mantida à parte de sua verdadeira atuação.
Em terceiro lugar, deveria ser um homem disposto a passar
por cima dos amigos mais íntimos para alcançar seus objetivos.
18 A cruz de H itler

Deveria ser um homem extremamente duro; e quando necessário,


deveria esmagar as pessoas com as botas de um soldado.1
Hitler jurou que seria esse homem. Teria a aparência de perten­
cer às massas, mas na verdade seria o contrário. Quando a brutali­
dade fosse necessária, agiria com energia e decisão. Realizaria o que
as pessoas pertencentes às massas não poderiam. Ele não se esquiva­
ria da crueldade.
Hitler preparava-se secretamente para a guerra; em público, fa­
zia discursos sobre como desejava a paz. Em segredo, apreciava a
pornografia; publicamente, insistia na conduta correta, não aceita­
va palavrões e piadas pesadas em sua presença. Algumas vezes, che­
gava a ser encantador e indulgente; mas na maioria das vezes era
cruel, como ao exigir que quem conspirara contra sua vida fosse
“pendurado em um gancho de açougue e estrangulado lentamente
com uma corda de piano, pois a pressão era aliviada periodicamen­
te a fim de prolongar a agonia da morte”. Em particular (e algumas
vezes de forma pública), ele se orgulhava de sua honestidade; toda­
via, muitas vezes, revelava sua habilidade de ludibriar. “Se o apoio
das massas” for necessário, o povo alemão deve ser enganado, filo­
sofava.
Hitler arquitetou as atrocidades vistas em A lista d e Schindler,
filme que dramatizou uma pequena parte da “solução final”. Ele era
um poço de contradições. Durante o tempo que viveu em Viena,
guardava pães velhos para alimentar esquilos e pássaros, e apenas al­
guns meses após ter subido ao poder, já havia assinado três leis de
proteção aos animais; entretanto, chegava ao desvario ao deleitar-se
com as fotos das maiores capitais da Europa em chamas. Ele ficou
particularmente eufórico com os bombardeios de Varsóvia e Londres,
e furioso com o comandante de Paris por não ter incendiado a cidade.
Podia ser afável e até chegar a derramar lágrimas ao falar com
uma criança e, ao mesmo tempo, exultar com a conclusão de outro

'William L. Sh irer, The rise and fa li ofthe Tbird Reich, New York: Simon &
Schuster, 1960, p. 48.
À espera de H itler 19

campo de concentração. Compassivo e até mesmo generoso com


sua família e amigos, era facilmente tomado por uma ira vingativa
contra qualquer um — incluindo amigos íntimos — que se opu­
sesse aos seus planos. Podia ser encantador ou brutal, generoso ou
selvagem. “Aquele que repetia as palavras de Jesus”, disse Robert
Waite, “odiava toda a humanidade”.
Hitler continua a nos impressionar, pois sua ditadura desfrutava
de amplo apoio popular. Talvez, jamais tenha vivido na história
um ditador tao benquisto. Tinha o raro dom de motivar a nação a
querer segui-lo. Líderes comunistas como Lênin ou Mao Tse-tung
subiram ao poder por meio de revoluções que custaram milhões de
vidas e, por conseguinte, eram odiados pelas massas. Hitler não atraiu
apenas o apoio da classe média, mas também dos estudantes e dos
professores universitários. O psicólogo Cari Gustav Jung, por exem­
plo, cresceu inebriado com “o poderoso fenômeno do nacional-
socialismo, diante do qual todo o mundo pasmava com espanto”.
Hitler surgiu na Alemanha quando o país desfrutava de um re­
gime democrático. Chegou ao poder legitimamente, ainda que de
forma desleal. A nação esperava por ele, ansiava por aceitar um de­
magogo que parecesse possuir o talento de liderá-la para fora do
abismo. O povo anelava pelo líder que pudesse fazer o que estava
fora do alcance da democracia.

OS PRIMEIROS MILAGRES j
As informações sobre Hitler enumeravam realizações tão espanto­
sas, que muitos cristãos o viam como resposta às suas orações. Con­
taram-me que alguns cristãos — sim, eu disse cristãos — substituíram
na parede de suas casas a imagem de Cristo por um retrato de Hitler.
Winston Churchill fez uma análise de Hitler em 1937, e disse que
seus feitos estavam “entre os mais notáveis de toda a história do
mundo”. Eis uma lista parcial do que ele conseguiu realizar, sem os
obstáculos inerentes à democracia:
1. Restaurou a economia falida em menos de cinco anos.
20 A cruz de H itler

2. Apagou a vergonha da derrota alemã na Primeira Guerra


Mundial, ao reivindicar a Renânia e ao repudiar o injusto
Tratado de Versalhes.
3. Proporcionou férias a milhões de alemães, por meio do pro­
grama Kraft durch Freude [Força por meio da alegria].
4. Fundou escolas profissionalizantes para os que não possuíam
qualificações e acabou com o desemprego. A nação toda es­
tava empregada.
5. Controlou a criminalidade.
6. Construiu auto-estradas e prometeu a produção de um carro
popular acessível ao alemão comum.
7. Deu aos alemães uma razão para acreditar em si mesmos e
para sonhar que podiam novamente se tornar uma grande
nação.

Caso ele tivesse morrido antes da Segunda Guerra Mundial, con­


forme comentou um historiador, teria passado à história como “Adolf,
o Grande, uma das mais destacadas figuras da história alemã”.
Entretanto, Hitler não morreu antes da Segunda Guerra Mun­
dial. Na verdade, não morreu até que o povo alemão tivesse aberto
mão de seus direitos pessoais; até que fossem promulgadas leis que
levaram ao extermínio de mais de 8 milhões de pessoas; e até que a
Alemanha e vários outros países fossem destruídos em uma guerra
que matou 50 milhões de pessoas, no maior banho de sangue da
história. Ele não morreu até que milhares de pastores se juntassem às
fileiras das SS* ju ra n d o lealdade pessoal a ele.
É claro que os alemães não sabiam que tudo acabaria daquela
forma. Porém, não podemos ignorar o fato de que eles queriam uma
ditadura; ansiavam por um líder forte, que deixasse de lado o lento
progresso da reforma democrática. As pessoas estavam famintas, os

*Sigla de SchutzStajfel [Esquadrão de Defesa], tropaparamilitar e policial de


elite do partido nazista (N. do R.)
À espera de H itler 21

crimes políticos se multiplicavam e a Alemanha estava envolta em


vergonha nacional. O processo democrático estava em um impasse,
com mais de vinte partidos diferentes competindo pelo poder políti­
co. A democracia pode ser mais bem apreciada quando os tempos
sao bons; a ditadura funciona melhor em uma época ruim. Para a
Alemanha os tempos eram ruins, muito ruins.
No entanto, ainda nos resta uma dúvida incômoda: Por que o
povo alemão, e mais especialmente a igreja, não se afastou de Hitler
quando seus verdadeiros planos se tornaram conhecidos? Podemos
compreender o engano inicial, mas por que milhares e milhares de
alemães participaram, direta ou indiretamente, das atrocidades que se
tornaram parte do programa nazista? Esses milhares e milhares de
alemães, que de outra forma seriam cidadãos decentes, boicotaram
os estabelecimentos pertencentes aos judeus, participaram de julga­
mentos que eram farsas e controlaram brutalmente os campos de
prisioneiros. Em suma, Hitler teve auxiliares, milhões de auxiliares,
que executaram suas ordens por mais desprezíveis que fossem.
Será que é verdade, como alguns já sugeriram, que os alemães da
época de Hitler eram de alguma forma metade homens, metade
demônios, de um tipo que jamais tornará a aparecer sobre a terra?
Será que o historiador Friedrich Meinecke estaria correto quando
sugeriu que os nazistas foram um “evento fortuito”, ou um “aci­
dente” da história, que com toda a certeza jamais tornará a se repetir?
Ou será que os alemães eram apenas seres humanos, absolutam ente
humanos; simples seres humanos sem qualquer verniz, indivícfuos
sem as limitações da sociedade e de Deus?
A resposta, como descobriremos, é que os alemães da era nazista
— e até o próprio Hitler — eram todos bastante humanos. Basta
ler as manchetes sobre a Bósnia (as atrocidades na ex-Iugoslávia),
ou o estrangulamento de crianças em nossa vizinhança, que fica
bem claro que o gênero humano em estado natural não é muito
bonito. A perversidade contida, muitas vezes, vem à tona se as con­
dições são apropriadas. Quando as restrições deixam de existir, quan­
do as pessoas estão desesperadas e quando o poder está disponível
22 A cruz de H itler

para quem o quiser, o coração humano se desnuda para que todos o


vejam. Seremos ingênuos se pensarm os que a A lemanha nazista não
p o d e voltar a ocorrer. Na verdade, a Bíblia prediz seu retorno.

0 CONFLITO ENTRE IGREJA E ESTADO


A história de como Hitler esmagou a igreja na Alemanha é, obvia­
mente, o principal objetivo deste livro. Por sinal, devemos obser­
var que ele proibiu a oração nas escolas, transformou os feriados
cristãos em festivais pagãos e, por fim, forçou a liderança da igreja a
aceitar suas exigências ultrajantes. Sua máquina política engoliu a
igreja, porque ela perdera sua missão bíblica. Desse modo, o Esta­
do não apenas interferiu nas práticas religiosas, mas as controlou.
Um Estado autoritário sempre foi uma ameaça à existência e à in­
fluência da igreja. Seja a ameaça do nazismo, seja a do comunismo,
seja a do humanismo; um Estado hostil à religião sem pre tentará
jo g a r a igreja em um a situação d e irrelevância.
Mesmo sem uma ditadura, o Estado pode marginalizar a influ­
ência da igreja. À medida que o Estado amplia seu poder, pode
introduzir leis que limitem a liberdade da igreja. Veja, por exem­
plo, a frase “separação entre a igreja e o Estado”. Interpretando-a de
determinada maneira, pode significar que a igreja deveria ser livre
para exercer sua influência e praticar a religião sem a influência do
Estado. Esse tipo de separação era exatamente o que a igreja alemã
precisava com urgência.
Entretanto, nos EUA, a frase “separação entre a igreja e o Estado”
foi distorcida pelos libertários. Estes compreendem que não se deve
permitir que as pessoas pratiquem sua religião na esfera pertencente
ao Estado. A religião, dizem, deveria ser praticada em caráter priva­
do. O Estado deveria ser “purificado” de todo e qualquer vestígio
de influência religiosa. Ao insistir que o Estado seja “livre para toda
religião”, organizações como a A CLU * acabam, na realidade, por res­
tringir a liberdade de todas!

*American Civil Liberties Union é a associação de defesa dos direitos civis nos
EUA. (N. do T.)
À espera de H itler 23

Nos EUA, onde a igreja e o Estado são separados, os conflitos são


muito diferentes das dificuldades enfrentadas pela igreja na Alema­
nha nazista. Lá, a religião e a política sempre estiveram juntas, em
um relacionamento íntimo e tempestuoso. Ainda assim, este estudo
da Alemanha nos forçará a lidar com as mesmas questões que o povo
alemão lidou há mais de meio século:
• Quais são as obrigações da igreja quando o Estado adota po­
líticas injustas?
• Para os cristãos, onde termina o patriotismo e começa a de­
sobediência civil?
• Silenciar em face da injustiça é o mesmo que cumplicidade?
Pequenas concessões são justificáveis quando visam evitar que
o Estado extermine a liberdade religiosa?
• Como a igreja pode efetivamente espalhar o evangelho, quan­
do está engajada na batalha pela justiça social, que é cercada
de hostilidades?
• Quais são os sinais de alarme, quando a igreja se envolve com
o movimento cultural vigente, deixando de se opor ao mal
que predomina?
• Que relação há entre a teologia da igreja e sua capacidade de
resistir ao poder esmagador do Estado secular?

As respostas a essas perguntas não são fáceis. Seja na Europa, seja


nos EUA, sempre existiu alguma tensão entre a igreja e o Estado.
Para avaliar a luta existente no Terceiro Reich, devemos compreen­
der a história do Primeiro e do Segundo Reich, quando foram plan­
tadas na igreja as sementes do engano. E o Terceiro Reich nos ajudará
a compreender o Quarto Reich vindouro, que ofuscará Hitler pela
magnitude de seu alcance e crueldade.
A melhor tradução da palavra Reich é “império” ou “reino”. Aos
ouvidos alemães ela possui um som quase sagrado. Lembro-me
muito bem de meus pais, falantes nativos da língua alemã, que
imigraram para o Canadá, ensinando-nos o pai-nosso: “Dein Reich
24 A cruz de Hitler

komme, dein Wille geschehe”.* Para os nazistas, a palavra Reich


viria a representar o reino alemão místico e eterno.
Acompanhe-me enquanto damos uma rápida olhada no relacio­
namento entre a igreja e o Reich na história européia.

0 PRIMEIRO REICH (800-1806)


Carlos Magno foi coroado imperador pelo papa Leão m, no dia de
Natal do ano 800. Ele orava em frente a uma cripta na basílica de
são Pedro, enquanto Leão rezava a missa. A seguir, sem qualquer
aviso, Leão colocou a coroa sobre a cabeça de Carlos enquanto a
congregação o abençoava. Carlos ficou surpreso, mas satisfeito, e
deixou a basílica decidido a usar a espada para construir uma igreja
católica unida e universal. Suas conquistas trouxeram unidade à
Europa, e o Sacro Império Romano teve assim seu início (o impé­
rio que Voltaire disse não ser nem santo nem romano, tampouco
um império).
No entanto, Carlos Magno consolidou a crescente união entre a
igreja e o Estado, que havia iniciado nos dias de Constantino (274-
337). Nos os primeiros dois séculos da era cristã, a igreja foi perse­
guida pelo império romano. Quando Constantino conquistou a
cidade de Roma em 312, a igreja desposou o inimigo e foi corrom­
pida por ele. A espada de aço (o Estado) agora se dedicava a promo­
ver a espada da Bíblia (a igreja). A coroação de Carlos Magno foi o
ápice desse casamento fatal.
Embora Carlos tivesse amantes e sua educação limitada, ele se
via como o protetor das doutrinas da igreja. Visto que o batismo
infantil era a lei da terra, qualquer um que fosse batizado quando
adulto, o que representava uma declaração de fé em Jesus Cristo,
era perseguido e até mesmo morto. Não que Carlos estivesse inte­
ressado em teologia, mas acreditava que a igreja universal deveria
permanecer assim, abrangendo todos os que estivessem nos limites

*“Venhao teu Reino; seja feita a tua vontade” (M t6.9). (N. doT.)
À espera de H itler 25

do império. A religião unificava os diversos países, e o batismo


infantil manteria as futuras gerações “cristãs”.

... os nazistas puseram a cruz no centro da


suástica, transformando-a em arma para
o favorecimento dos planos de Hitler.

Logicamente, o Estado também perseguiu os que discordavam


de sua interpretação da missa e os que rejeitavam a autoridade do
papa. Esses “hereges” eram julgados, aprisionados ou até mesmo
mortos. Curiosamente, muitos crentes verdadeiros afirmavam que
pouco havia mudado após a “cristianização” do império romano.
Antes, eles eram perseguidos pela Roma pagã; e depois foram per­
seguidos pela Roma religiosa. A espada continuava ferindo, de uma
forma ou de outra!
Esse relacionamento inquietante entre a igreja e o Estado (algu­
mas vezes cômodo, outras vezes competitivo e, com freqüência,
corrupto), não foi encerrado pela Reforma de 1517. Ainda hoje, a
igreja na Europa (tanto católica como protestante) é sustentada por
impostos. Naturalmente, a chamada “regra de ouro” é muitas vezes
aplicada: Quem possui o ouro legisla! Na minha opinião, o relacio­
namento íntimo entre igreja e Estado é sempre prejudicial à missão
da igreja, pois ou a igreja altera sua mensagem para acomodar-se à
agenda política do Estado, ou os governantes seculares usam a igre­
ja para alcançar seus propósitos. De uma forma ou de outra, a pu­
reza da igreja fica comprometida.
Essa união profana contribuiu para a paralisia da igreja na época
de Hitler. No exato momento em que a igreja deveria ter condena­
do, em uníssono, as políticas postas em prática, ela notou que sua
existência dependia da boa vontade do Estado. A igreja possuía uma
história de lealdade aos heróis militares da Prússia. No século IV,
Constantino trazia a cruz de Cristo sobre os escudos de seus solda­
dos; no século XX, os nazistas puseram a cruz no centro da suástica,
26 A cruz de H itler

transformando-a em arma para o favorecimento dos planos de


Hitler. Porém, adiantei-me demais.
Voltando à história do Primeiro Reich, o Sacro Império Roma­
no era formado, de 1273 a 1806, em sua maior parte, por alemães
da Áustria, conhecidos por dinastia dos Habsburgos. O conflito
entre a igreja e o Estado continuaria até os últimos séculos do im­
pério, quando os imperadores perderam grande parte do seu poder,
e reinos rivais surgiram por toda a Europa.
Onde a Alemanha se encaixa em tudo isso? Durante os séculos xvi
e XVii surgiu o território de Brandemburgo/ Prússia, governado por
uma série de reis poderosos. O Portão de Brandemburgo, no coração
de Berlim, foi erguido em homenagem ao território que traz o seu
nome. Os belos palácios dos reis da Prússia ainda podem ser admira­
dos nos arredores de Berlim. A Prússia, como veremos, envolveu-se
em uma série de guerras, trazendo por fim, a união dos povos de
língua alemã da Europa.
Em 1804, o papa tentou coroar Napoleão Bonaparte na Cate­
dral de Notre Dame, em Paris, mas Napoleão tomou a coroa do
pontífice e coroou a si próprio. Com isso, mostrava que, ao con­
trário de Carlos Magno, ganhara o direito de tornar-se imperador
por méritos próprios! O objetivo de Napoleão era substituir o
império alemão, que dominara a Europa por tantos séculos, pelo
império francês. Após esmagar a Áustria, ele se voltou contra a
Prússia; e quando marchou vitoriosamente sobre Berlim, o Pri­
meiro Reich chegou ao fim.
Entretanto, após a derrota de Napoleão em Waterloo, o Estado
da Prússia foi recriado e a dominação francesa logo se encerrou. Na
verdade, a Prússia se reagrupou após a dominação francesa com um
senso de nacionalismo ainda mais profundo, e por meio de algu­
mas guerras, unificou a Alemanha. Desse modo, as condições eram
propícias à fundação do Segundo Reich.

0 SEGUNDO REICH (1871-1918)


Imagine a Alemanha como um conjunto de cerca de trezentos esta­
dos independentes, com organização própria e, muitas vezes, com
À espera de H itler 27

moeda própria, e até mesmo com diferentes sistemas de peso e


medida. O que poderia ter unido esses diversos estados germânicos?
Otto von Bismarck (1815-1898), o sagaz primeiro-ministro
recém-empossado na Prússia, teve a visão política de que somente a
guerra poderia unificar o povo de língua alemã da Europa. Rever­
teu a derrota sofrida diante de Napoleão ao montar um poderoso
exército. Político habilidoso, provocou uma guerra com a Áustria,
passando a controlar aquele país. A seguir, atraiu a França para a
batalha, prevalecendo sobre a mesma nação que derrotara a Prússia
sob a competente liderança de Napoleão. A Alemanha estava final­
mente unificada — e era poderosa!
Para aumentar a afronta da derrota da França, Bismarck fez com
que o rei da Prússia, Guilherme I, fosse levado à França para ser
coroado, na Galeria dos Espelhos, em Versalhes, como o dirigente
de um novo império, agora unificado. Ele foi coroado K aiser
(César*) Guilherme, indicando claramente que planejava reclamar
cada país que um dia pertencera ao ancestral Sacro Império Roma­
no, unificando-os sob o comando da Alemanha. Desse modo, o
Segundo Reich teve um início promissor.
Se o Primeiro Reich preparou o caminho para Hitler, ao unificar
a igreja e o Estado, o Segundo Reich contribuiu para a paralisia da
igreja, ao ensinar que deve haver a separação entre a moralidade
pública e a privada. Bismarck dizia ter tido uma experiência de
conversão ao cristianismo, quando visitava a casa de alguns amigos
pietistas.** Contudo, deparou com a compreensão de que, como
estadista e político, teria de violar os princípios morais que regula­
vam seu comportamento pessoal como cristão. Considerava que
na função de servo do Estado, o homem não poderia se ater à mes­
ma moralidade que deveria professar como indivíduo. O Estado,

*Título concedido aos imperadores romanos. (N. doT.)


**Partidários do pietismo: movimento de renovação cristã surgido na Alema­
nha luterana, que salientava os sentimentos místicos, em detrimento da teologia
racionalista. (N. doT.)
28 A cruz de H itler

argumentava, não deveria ser ju lga d o pelas leis comuns, porq u e suas
responsabilidades iam além dos valores hum anos comuns.
Essa dicotomia — que alguns dizem remontaria à época de
Lutero, que insistia com os camponeses para que obedecessem a
seus líderes, a despeito de quão tirânicos pudessem ser — era
ensinada nas igrejas alemãs. O ensinamento de Paulo de que
devemos nos sujeitar às autoridades políticas era priorizado
(Rm 13.1,2). As leis do Estado deviam ser obedecidas, sem que
fosse requisitado um raciocínio moral do que fora ordenando
fazer. Como disse Bismarck: “Creio obedecer a Deus quando sirvo
meu rei”. O elevado comprometimento com a honra nacional era
dever sagrado.
Os que participaram nas atrocidades do Terceiro Reich apelavam
com freqüência a essa particularidade para defender suas ações.
Quando lhes era perguntado como podiam reconciliar sua brutali­
dade com seus valores humanísticos, muitas vezes respondiam:
“Bem, isso é a guerra, e devemos cumprir nosso dever por mais
duro que seja”. Nas palavras do famoso Eichmann: “Eu tinha de
obedecer às leis do meu país e à minha bandeira”.
Bismarck concordava com seu antecessor prussiano, Frederico,
o Grande, que certa vez se gabou: “A salvação é um assunto que
pertence a Deus; todo o resto pertence a mim!”. Esse padrão moral,
com dois pesos e duas medidas, ficou conhecido por as “duas esfe­
ras”; assunto ao qual retornaremos quando examinarmos o papel
da igreja na Alemanha nazista. Essa doutrina ainda pode ser verificada
entre os políticos da atualidade, que dizem se opor pessoalmente
ao aborto e à imposição dos direitos dos gays sobre a sociedade,
mas que nao acreditam que sua opinião pessoal deva influenciar sua
atuação na vida pública.
Sob a batuta de Bismarck, formou-se o Reichstag (Parlamento).
Bismarck foi nomeado primeiro-ministro e, mais tarde, chanceler.
Apesar de uma nova constituição ter sido escrita, o Parlamento, na
prática, não possuía nenhum poder, restringindo-se apenas ao debate
de questões políticas. Bismarck e o Kaiser partilhavam o desprezo
À espera de H itler 29

pela liberdade indntdoal e pe1â"deriTocrada. Acreditavam que so­


mente a monarquia poderia resolver todos os problemas da Alema­
nha frouxamente alinhavada, que precisava ser mantida no curso.
Bismarck acreditava piamente na expressão que forjou no dia em
que assumiu como primeiro-ministro: “As importantes questões
do dia não serão resolvidas por resoluções e votações da maioria
[...], mas por sangue e ferro”.
Em 1871, quando o Kaiser Guilherme foi coroado, ele deposi­
tou a pedra inaugural do grandioso Reichstag em Berlim. Se você
visitou a cidade ou viu as fotos dessa estrutura, deve recordar-se de
que ela surge como um monumento do Segundo Reich. Na verda­
de, agora que a Alemanha fora unificada, providências para que o
parlamento alemão voltasse a ser instalado no prédio do Reichstag
eram tomadas.
Quando a Primeira Guerra Mundial teve início, em 1914, a
maioria dos alemães ansiava pela guerra, crendo que essa era, nas
palavras do general prussiano Von Moltke, parte da criação de Deus,
“pois encerra as mais nobres virtudes da coragem, da renúncia pes­
soal, da lealdade e da disposição ao sacrifício da própria vida”. Eles
também acreditavam que a guerra que começara no verão seria
vencida “antes do Natal”.
Ninguém desejou mais a guerra que Adolf Hitler, que contava
25 anos naquela época. Ele se ofereceu como voluntário e mais
tarde refletiu: “Até hoje não me envergonho de confessar que, do­
minado por delirante entusiasmo, caí de joelhos e, de todo o cora­
ção, agradeci aos céus ter-me proporcionado a felicidade de poder
viver nessa época”.2
Graças à decisão dos EUA de entrar na guerra, a Alemanha se
rendeu em 9 de novembro de 1918. O Kaiser Guilherme II foi
humilhado e, para escapar com vida, fugiu para a Holanda, onde
passou o resto de seus dias estudando ciências ocultas para tentar
compreender o motivo pelo qual a Alemanha perdera a guerra.

2Minha luta, São Paulo: Moraes, 1983, p. 109.


30 A cruz de Hítler

Depois de tudo, seus adivinhos, entre os quais o famoso Houston


Chamberlain (a quem tornaremos a ver em um capítulo posterior),
lhe asseguraram que os alemães superiores estavam destinados a
vencer.

I I
----------------------------- ■ .........................................
O que é ensinado hoje nas aulas de fi­
losofia, torna-se a crença do homem
comum de amanhã.

Quando Hitler foi informado da derrota alemã, enquanto se


recuperava de um ataque de gás mostarda, teve uma visão mística,
que acreditava ter sido seu chamado para a política. Ele chorou pela
primeira vez desde a morte de sua mãe. Assim, soube estar destina­
do a desempenhar um papel no futuro da Alemanha. O mundo,
por fim, teria de lidar com as conseqüências dessa decisão.
Com a derrota da Alemanha e a formação de um novo governo
constitucional, o Segundo Reich chegara ao fim inglório.

0 TERCEIRO REICH
Considerando o legado militarista — a exaltação do Estado acima
da moral comum — podemos perceber que a Alemanha aguardava
um ditador que a erguesse de sua humilhação. Assim seria importan­
te rastrear as raízes da árvore que produziu um fruto tão amargo.

Raízes filosóficas
Algumas pessoas imaginam que os filósofos se sentam em torres de
marfim, onde ficam devaneando por teorias que pouco têm que
ver com a vida do cidadão comum e trabalhador. Porém, na verdade,
os filósofos têm, com freqüência, comandado países inteiros (Karl
Marx é apenas um exemplo). O que é ensinado hoje nas aulas de
filosofia, torna-se a crença do homem comum de amanhã.
À espera de H itler 31

A Alemanha tambem teve seus filósofos; homens brilhantes que


tinham um grande público para suas obras e seus ensinamentos.
Eles prepararam o solo e até mesmo plantaram as sementes do na­
cionalismo, atiçando o ódio contra os judeus. Estavam preparando
o caminho para Hitler, quer tivessem consciência disso, quer não.
Conheçamos apenas dois deles.
Georg Friedrich H egel (1770-1831) ocupou a cadeira de filoso­
fia na Universidade de Berlim. Sua filosofia dialética, que serviu de
inspiração para Marx, pregava a glorificação do Estado, dizendo
que o Estado era “Deus caminhando sobre a terra”. Ele acreditava
que os direitos individuais apenas atrapalhavam a suprema autori­
dade do Estado. O Estado, dizia, é “o universo moral [...] e possui
o principal direito em contraste com o direito individual, cujo de­
ver supremo é ser membro do Estado [...] pois os direitos do espí­
rito do mundo estão acima de quaisquer privilégios especiais”.3
Hegel considerava a guerra um grande depurador, necessária para
a saúde ética do povo. Já as virtudes morais pessoais, como a hu­
mildade e a paciência, jamais deveriam se interpor aos objetivos do
Estado; aliás o Estado deveria esmagar tais “flores inocentes”. Aqui
deparamos com a justificação definitiva da doutrina das duas esfe­
ras: a moralidade privada deve permanecer privada! A moralidade
do Estado era algo completamente diferente.
Hegel previra que a Alemanha tornaria a prosperar, uma vez que
representava a mais elevada forma de desenvolvimento dialético.
Deixe a França agir como lhe aprouver; deixe que a Rússia e a Ingla­
terra cresçam poderosas, dizia. As leis da história estão do lado da
Alemanha. Ela merece se levantar novamente, e irá erguer-se.
Como seria de esperar, Hegel negava o caráter singular do cristia­
nismo e afirmava que o Antigo Testamento tinha de ser desprezado
devido às raízes judaicas. A pura fé cristã só poderia pertencer a uma

3Citação extraída da obra de S hirer, The rise andfa ll o f the Third Reich, p. 98.
32 A cruz de H itle r

raça pura, a saber, os alemães. Dessa forma, um novo cristianismo


teria de se desenvolver para se adequar ao elevado espírito alemão.
F riedrich Nietzsche (1844-1900), filho de um pastor luterano,
escreveu uma agressão infame ao cristianismo, acusando-o de ser
fraco e o causador dos males da Alemanha. Na obra intitulada O
anticristo, escreveu: “Considero o cristianismo a maior de todas as
maldições, a maior e a mais profunda perversão, a verdadeira man­
cha moral da humanidade [...] [e] a mais atraente mentira que já
existiu”.4 O cristianismo, dizia, com sua ênfase na virtude da mise­
ricórdia e do perdão, tornou a Alemanha uma nação fraca.
Nietzsche, você deve lembrar, declarou que Deus estava morto.
Escreveu: “Será que já não podemos escutar o barulho dos coveiros
que estão sepultando Deus? Será que já não estamos sentindo o
aroma da decomposição de Deus? Deuses também se decompõem.
Deus está morto e nós o matamos”. Ele dizia que as igrejas eram
túmulos e sepulcros de Deus.
Nietzsche enfrentou as aterradoras implicações do ateísmo sem
titubear. Veja como ele descreve o que a morte de Deus significa
para o homem:

Como poderemos nós, os maiores de todos os assassinos, nos


reconfortar? [...] Quem limpará de nós o sangue? Que água
haverá para que nos limpemos? Que eventos expiatórios, que
brincadeiras sagradas teremos que inventar? Será que a magni­
tude dessa façanha não é grande demais para nós? Nao devemos
nós mesmos nos tornar deuses, simplesmente por merecermos
isso?5

4Frau Forester N IET Z SC H E , The life o f Nietzsche, New York: Sturgis & Walton,
19 2 1, vol. 2, p. 656.
5The gay science, in: Theportable Nietzsche, Walter Kaufman (org.), New York:
Viking, 1954, p. 125.
À espera de H itler 33

Nietzsche sabia que com a morte de Deus não haveria reposta


para a culpa do homem; ninguém para secar o sangue de suas
mãos. Visto que Deus estava morto, um sucessor teria de ser
encontrado. Nietzsche sabia que no Estado ateísta o forte gover­
naria o fraco. Ele proclamava a vinda da raça superior e do super­
homem que unificaria a Alemanha e, possivelmente, o mundo. A
elite prometida governaria, e dela brotaria esse super-homem. Ele
e os que o cercavam se tornariam “senhores da terra”. Esse ho­
mem seria “o esplêndido brutamontes loiro, ávido pelo espólio e
pela vitória”.
Nietzsche, morto em 1900, não viveu para ver o surgimento
do Terceiro Reich, ou a expansão do comunismo ateísta. Porém,
sua previsão de que o século XX seria uma era banhada em sangue
era, infelizmente, muito verdadeira. Com Deus fora do cami­
nho, a humanidade não teria rédeas; não haveria nem o temor do
juízo nem a crença nas virtudes da moralidade. Quando os seres
humanos se dessem conta de que a história se baseava na força
bruta, haveria uma loucura mundial. (Observe que o próprio
Nietzsche enlouqueceu nos últimos onze anos de sua vida.) Como
disse Ravi Zacharias: Nietzsche compreendeu que o homem “ao
esfaquear o coração de Deus, na verdade, sangrou a si mesmo”.6
Nietzsche solidificou a filosofia vigente na Alemanha de que o
gênio estava acima da lei e de que ele não poderia ser limitado pelos
princípios éticos dos homens comuns. As virtudes pessoais apenas
atravancavam o caminho das virtudes maiores do domínio e da
força. A compaixão tornava o Estado fraco; o poder desenfreado
tornava o Estado forte. Não era o homem manso que herdaria a
terra, mas o homem violento. O super-homem esmagaria as virtu­
des mais apreciadas, para que pudesse dominar o mundo. Leia mais
uma vez estas arrepiantes palavras escritas por Nietzsche:

('A shattered visage, Brentwood, Tenn.: Wolgemuth & Hyatt, 1990, p. 22.
34 A cruz de H itle r

Os homens fortes, os governantes, recobram a consciência pura


de uma fera predadora; monstros repletos de júbilo. Podem
voltar de uma medonha série de assassinatos, incêndios, estu­
pros e torturas com a mesma alegria em seu coração [...] para
conceituar corretamente a moralidade, ela deve ser substituída
por dois conceitos emprestados da zoologia: a domesticação da
fera e a reprodução de uma espécie específica.7
Será que causa alguma surpresa o fato de Hitler ficar tão cativa­
do por Nietzsche, a ponto de presentear seu amigo Benito Mussolini
com uma cópia de suas obras? Hitler, com freqüência, visitava o
museu de Nietzsche em Weimar e posava para fotos em que fitava
deleitado o busto daquele grande homem. Nietzsche, conforme a
crença de muitos historiadores, teria abominado os excessos de
Hitler, em especial seu anti-semitismo. Seja como for, Hitler o
adotou como irmão espiritual e interpretou suas obras de acordo
com seus propósitos. Quer isso seja justo quer não seja, a obra de
Nietzsche foi usada, nas palavras de um historiador, “para liberar os
demônios do inferno”.

l,£ ,
------------------------------------------------------------ J - . -----------------------------------------------------------

Já disseram que após Deus ter morrido


no século xix, o homem morreu no
século XX. Pois com a morte de Deus, o
homem tornou-se uma fera indomável.

Hitler se considerava o super-homem da filosofia de Nietzsche.


Ele se alegrava pelo fato de que a doutrina de Deus, que sempre se
interpusera no caminho da brutalidade e do engano, fora removi­
da. Uma vez que o homem tivesse deposto Deus, o caminho ficava

7Shirer, The rise andfall o f the Third Reich, p. 1 1 1 .


À espera de H itler 35

livre para que a super-raça de Nietzsche, liderada por um super­


homem, dominasse o mundo.
Talvez agora possamos compreender melhor os campos de con­
centração. As idéias têm conseqüências, e a noção de que Deus esta­
va morto liberou os seres humanos para fazer o que tivessem vontade.
Com Deus derrotado, o homem estava livre para se levantar e per­
seguir sua insaciável cobiça pelo poder.
Victor Frankl, que sobreviveu ao Holocausto, escreveu esta ar­
dente análise:
As câmaras de gás de Auschwitz foram a última conseqüência
da teoria de que o homem nada é, senão produto da hereditari­
edade e do ambiente — ou, como os nazistas gostavam de dizer,
“de sangue e pó”. Estou absolutamente convencido de que as
câmaras de gás de Auschwitz, Treblinka e Maidanek, em última
análise, foram preparadas não por um ou outro ministério em
Berlim, mas antes, nas escrivaninhas e nas salas de leitura dos
cientistas e filósofos niilistas.8
Já disseram que após Deus ter morrido no século XIX, o homem
morreu no século XX. Pois com a morte de Deus, o homem tor­
nou-se uma fera indomável.

Raízes teológicas
A Alemanha foi (e ainda é) um manancial da erudição liberal que
tenta privar o cristianismo de seu caráter único. Um influente teó­
logo chamado Ludwig Feuerbach teria concordado com os parti­
dários da Nova Era da atualidade de que a doutrina de Deus deveria
ser mais adequadamente interpretada como a doutrina do homem.
A encarnação, afirmava, nos ensina que o Ser que era adorado como

sThedoctor and the soul: introduction to logotherapy, New York: Knopf, 1982,
p. xxi; citada na obra de Ravi Zacharias, Pode o homem viver sem Deus? (São Paulo:
Mundo Cristão, 1997), p. 51.
36 A cruz de H itler

Deus, podia agora ser identificado como homem. O homem já


não deve estar em segundo plano na religião, mas sim no primeiro.
D e acordo com Feuerbach, o fato de o homem ser Deus é o mais
elevado dos valores e o divisor de águas na história mundial. Cristo
era divino p orq u e todos nós o somos.
Os estudiosos alemães “demitologizaram” o Novo Testamento,
ou seja, o despojaram de todos seus mitos para que o cerne da
verdade pudesse ser encontrado. Alguns teólogos declaravam aber­
tamente que os milagres do Novo Testamento deveriam ser esque­
cidos, e que a atenção das massas deveria se fixar no milagre da
ascensão da Alemanha e de sua posição de liderança no mundo.
Não é de admirar que estivessem dispostos a ocultar a cruz de Cris­
to no centro da suástica.
Junto com a humanização de Deus, veio a deificação do ho­
mem. Em Weimar, Goethe havia proposto de forma eloqüente
que o homem deveria substituir Deus como o centro da arte, da
filosofia e da história. Ele era fruto do Iluminismo e, portanto,
acreditava que a religião deveria ser repensada e reformulada para
glorificar o homem e não a Deus. Entretanto, ele jamais poderia ter
imaginado que ao exaltar o homem, abriria a porta para a perversi­
dade desenfreada. Não foi um acaso histórico que Buchenwald,
um dos campos de concentração nazistas, distava cerca de dez qui­
lômetros de Weimar, o berço do Iluminismo. Fui informado que
Hitler deleitara-se, perversamente, ao estabelecer um campo de ex­
termínio próximo da cidade que se orgulhava de sua tolerância e da
glória do homem.
Se, como Frankl disse, os fornos de Auschwitz foram prepara­
dos nos salões de conferência da Europa, também podemos dizer
que aqueles fornos foram alimentados pelos estudiosos liberais que
glorificavam o homem e afirmavam que Deus era irrelevante. Essas
doutrinas solaparam a capacidade da igreja de se opor às atrocidades
do Terceiro Reich. Ao substituir a revelação de Deus pelas idéias
humanas, o Terceiro Reich reinterpretou a cruz d e Cristo, em benefí­
cio d e um program a pagão.
À espera de H itler 37

Raízes políticas
A Alemanha estava extremamente atormentada por sua derrota e
humilhação após a Primeira Guerra Mundial. O caos político
grassava pelas principais cidades. Em Munique, o partido comunis­
ta, encorajado pela bem-sucedida revolução na Rússia em 1918,
tentava tomar o poder. Organizações políticas, tanto de esquerda
quanto de direita, eram criadas. Em Berlim, os distúrbios e a insta­
bilidade social forçaram o Parlamento a deixar o Reichstag e mu­
dar-se para o Teatro Nacional em Weimar, a fim de formar um
novo governo baseado em princípios e ideais democráticos.
Assim, em 9 de novembro de 1918, foi proclamada a República.
Após seis meses de debates, uma Constituição foi adotada que, pelo
menos no papel, parecia ser capaz de produzir uma democracia está­
vel. Ela incorporava idéias da Inglaterra, da França e dos e u a . O povo
foi declarado soberano, e a Constituição afirmava: “... todos os ale­
mães são iguais perante a lei”. Uma frase significativa— “Para o povo
alemão” — foi entalhada no Reichstag, onde pode ser vista até hoje.
O esforço democrático poderia ter sido bem-sucedido, não fosse
o Tratado de Versalhes, que havia sido elaborado pelos Aliados. Ele
devolveu a Alsácia e a Lorena à França, bem como os territórios que
Bismarck havia conquistado da Bélgica, da Dinamarca e da Polônia.
Além disso, a Alemanha teve de pagar indenizações de guerra no
montante de 132 bilhões de marcos, ou cerca de 33 bilhões de dóla­
res, uma soma impossível de ser paga.
O tratado realmente desarmou a Alemanha. Limitou o exército
a 100 mil homens e proibiu a nação de possuir tanques ou aviões.
A marinha foi reduzida a uma força praticamente simbólica. As­
sim, como último ato de humilhação, a Alemanha concordou em
assumir a responsabilidade por ter começado a guerra; e o tratado
exigia que o Kaiser Guilherme li fosse entregue aos Aliados, junta­
mente com outros 800 criminosos de guerra.
A Inglaterra avisou que se a Alemanha não assinasse o tratado,
iniciaria um bloqueio em torno do país, o que, na realidade, levaria
(>salemães a ceder pela fome. Os Aliados insistiram em uma resposta
38 A cruz de H itler

imediata da Alemanha, estabelecendo um prazo até 24 de junho de


1919.
Até que por fim, com a concordância do líder provisório da
República, o marechal de campo Von Hindenburg, e com a apro­
vação da Assembléia Nacional, o Tratado foi ratificado. Quatro
dias mais tarde, foi assinado no Salão dos Espelhos, no palácio de
Versalhes; o mesmo lugar onde o Segundo Reich tivera seu emocio­
nante início, quando o K aiser Guilherme I foi coroado em 1871. A
Alemanha não havia perdido somente a guerra; também perdera
sua dignidade.

Raízes econômicas
A República, a despeito de suas boas intenções, era agora culpada
por ter aceitado os termos injustos do Tratado e pela crise econô­
mica que se seguiu. O dinheiro alemão, que já tivera a cotação,
em certa época, de 4 marcos por dólar, caiu para 75 marcos por
dólar, e depois para 400. Em 1923, a taxa de câmbio era de 7 000
marcos por dólar. Quando a Alemanha deixou de cumprir o pa­
gamento pelas indenizações de guerra, o presidente francês orde­
nou que suas tropas ocupassem a região do Ruhr. Dessa forma, o
coração industrial da Alemanha foi separado do resto do país.
Esse ato desencadeou o estrangulamento final da economia ale­
mã, já sufocada. Imediatamente após a ação da França, em janeiro
de 1923, a cotação despencou para 18 000 marcos por dólar, e em
novembro eram necessários 4 bilhões de marcos para comprar um
dólar. Na realidade, o marco havia sido eliminado.
Há uma história, talvez fictícia, de que uma mulher encheu seu
carrinho de mão com marcos alemães, e o deixou do lado de fora
da loja, certa de que n in gu ém se interessaria em roubar o dinheiro.
De fato, no momento de pagar pelas mercadorias, ela saiu e desco­
briu que os pacotes de dinheiro haviam ficado pelo chão, mas o car­
rinho de mão fora levado! Podemos achar essa história engraçada,
mas os alemães não achavam nenhuma graça nisso. Suas economias
À espera de H itler 39

foram completamente destruídas. Eles perderam sua fé no governo.


O povo sofria imensamente, e o pior ainda estava por vir.
Em 1923, Hitler falhou em sua drástica tentativa de derrubar o
governo bávaro (o golpe que será rapidamente descrito no próxi­
mo capítulo). Foi condenado por traição e após sua prisão na Peni­
tenciária de Landsberg, decidiu tomar o poder pelo processo político.
Ele utilizaria a dem ocracia com o cam inho para o p o d er e a esmagaria
após assumir o controle.
O panorama econômico melhorou entre os anos 1925 e 1929,
à medida que o desemprego baixou e as vendas no varejo melhora­
ram. Dez anos após o fim da guerra, a República alemã parecia ter
se aprumado. O partido nazista era tudo, menos inerte. Porém, com
a paixão pela conquista do mundo ardendo em seu peito, Hitler
simplesmente não desistia. Ele continuou esperando, na expectativa
de que a Alemanha voltasse a passar por outras dificuldades.

Hitler deixando a Penitenciária de Landsberg


40 A cruz de Hitler

A depressão mundial de 1929 deu a Hitler a oportunidade que


tanto aguardava. Sendo um revolucionário, só podia prosperar em
momentos de adversidade: quando a taxa de desemprego fosse alta,
a inflação galopante e a fúria e a desconfiança tivessem tomado
toda a Alemanha. Era o momento de conquistar a nação, não pela
guerra, mas por meios constitucionais.
Quando o maior banco austríaco quebrou, os bancos em Berlim
foram forçados a fechar temporariamente. A Alemanha estava im­
possibilitada de pagar suas indenizações de guerra. Milhões de pes­
soas ficaram desempregadas, pois milhares de pequenos negócios
foram destruídos. A Alemanha estava disposta a qualquer coisa para
sobreviver, pois o povo fora assolado pelo desemprego e destroça­
do pela fome.
Hitler estava exultante com a crise econômica, pois esse era o
momento ideal para ganhar os ouvidos e os votos das massas. Ele
fez campanha contra o Tratado de Versalhes e assegurou aos ale­
mães que, se houvesse uma oportunidade, o país poderia se tornar
grande mais uma vez. Finalmente, chegara a hora.

Raízes constitucionais
Uma mulher que sobreviveu à era nazista me disse: “Meus pais
votaram nele porque a situação estava tão ruim que eles não acredi­
tavam que pudesse piorar”. “Eles ponderavam: Por que não lhe dar
uma chance?”. Milhões de alemães concordavam com esse modo
de pensar. E dessa forma, os nazistas surgiram em julho de 1932
como o maior partido alemão, mas sem maioria no congresso. Uma
segunda eleição aconteceu no m esm o ano, porém, devido ao mau
temperamento, os nazistas foram derrotados nessas votações, em­
bora ainda representassem o maior número de votos unitários. Os
especialistas vaticinavam que os nazistas já haviam deixado para trás
seu apogeu.
No entanto, o desemprego ainda era alto, e os comunistas uma
ameaça. Existiam diversos partidos, e nenhum tinha a maioria; o
governo estava paralisado. Em desespero, Hindenburg nomeou
À espera de H itler 41

Hitler chanceler em 30 de janeiro de 1933.Ele, que agora jurava defen­


der a Constituição de Weimar, logo a destruiria.
Entretanto, Hitler sabia que, de acordo com a Constituição, seu
mandato dependia de sua habilidade em obter o apoio da maioria no
Reichstag. O Parlamento poderia votar por sua exclusão ou Hindenburg
poderia demiti-lo. Ele precisava da maioria que não possuía. Alguns
milagres eram necessários, e ele os teve — ou os criou.
Antevendo o resultado da eleição em março de 1933, que sabia
não poder vencer, Hitler aparentemente escolheu criar uma crise.
Em 27 de fevereiro de 1933, o prédio do Reichstag em Berlim
pegou fogo. As evidências apontavam para um incêndio criminoso;
provavelmente, os homens de Hitler forçaram um holandês cha­
mado Marinus van der Lubbe a entrar no prédio pela passagem do
sistema de aquecimento. Sob a mira de armas, ele pôs fogo no
porão do prédio, e logo a enorme estrutura estava em chamas.
Hitler culpou uma conspiração comunista pelo incêndio e in­
duziu Hindenburg a assinar um decreto “para a proteção do povo e
do Estado”, que suspendia as liberdades individuais. Os nazistas
podiam, assim, vasculhar casas sem mandatos, confiscar proprieda­
des e declarar ilegais as reuniões de grupos que pudessem se opor a
eles. Ao assinar o decreto, Hindenburg estava na verdade agindo de
acordo com a Constituição de Weimar, que estabelecia que o presi­
dente podia ignorar o Parlamento em caso de emergência. Não é de
admirar que Hitler afirmasse que o incêndio do Reichstag fora “um
presente dos deuses”.
Apesar de Hitler ainda não ter a maioria no Parlamento, por
meio de assassinatos, de ameaças e de promessas, logrou possuir
dois terços dos votos do Reichstag, a fim de emendar a Constitui­
ção. Por essa emenda, todas as funções legislativas foram transferidas
pessoalmente para ele. A partir de então, seria ele, e não o Reichstag,
que formularia as leis. Em 14 de julho, decretou que o partido nazis­
ta seria o único partido político na Alemanha.
Quando surgiu um conflito entre o exército e os “camisas-par-
das” (tropas de assalto) — os arruaceiros de Hitler —, ele fez um
42 A cruz de H itler

acordo com os oficiais do exército: se eles o apoiassem como suces­


sor de Hindenburg, ele prometia destruir o Tratado de Versalhes e
restaurar a antiga força do exército. E, além disso, daria cabo dos
“camisas-pardas”, que ficavam perambulando pelas ruas e passaram
a fazer manifestações pelo direito de substituir o exército.
Quando os generais concordaram com seu plano, ele manteve a
palavra. Eliminou mil pessoas em apenas um fim de semana (“a
Noite dos Longos Punhais”); muitos deles, seus próprios camisas-
pardas, e outros, amigos íntimos que haviam auxiliado sua chegada
ao poder. Hitler assumiu toda a responsabilidade pelos assassinatos
em massa e disse ao Reichstag-,
Se alguém me reprovar e perguntar por que não recorri aos
tribunais regulares, então poderei dizer apenas isto: Naquele
momento eu era responsável pelo destino do povo alemão. Eu
me tornei o juiz supremo do povo alemão”.9
O já idoso Hindenburg por fim morreu, e mesmo antes que
seu corpo chegasse a esfriar, Hitler realizou uma cerimônia na
qual todos os oficiais do exército fizeram um juramento de leal­
dade pessoal a ele. Assim, proclamou-se o F ührer e o chanceler
do R eich.
A loucura mundial predita por Nietzsche havia começado.

CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS
De modo geral, os alemães ofereceram pouca resistência ao totali­
tarismo. Falarei mais sobre a apatia geral da nação quando analisar­
mos como Hitler assumiu o controle da igreja. Por enquanto,
leremos o que Gerald Suster escreveu:
Muitas pessoas receberam com prazer a abolição da responsa­
bilidade individual por suas ações; para alguns é mais fácil
obedecer que aceitar os riscos da liberdade. Os trabalhadores

^Shirer, The rise andfall o f the Third Reich, p. 226.


À espera de H itle r 43

da atualidade possuem estabilidade no emprego, serviços de


saúde, programas de férias a baixo custo. Ora, se a liberdade
significa passar fome, então é preferível a escravidão. O homem
por quem a Alemanha aguardava havia chegado.10

Contanto que a economia estivesse forte, o povo não ligava para a


liberdade de expressão, liberdade para viajar ou liberdade eleitoral.
Na República, o povo estava morrendo de fome nas cidades; o pão
sobre a mesa era mais importante que o voto na urna.
“E a economia, imbecil!”, foi o slogan de um candidato à presi­
dência dos EUA em 1992. Embora fosse uma afirmação deplorável
para um estadista, era uma ótima técnica política. Na Alemanha na­
zista, assim como em qualquer época, a economia era a chave para a
prosperidade política de um partido ou ditador específico. Até mes­
mo o anticristo contará com a premissa de que a maioria de nós age
como se o corpo fosse mais valioso que a alma.

L íl,
------------------------------- g p , ------------------------------
Ele [Hitler] tomaria a cruz de Cristo
[...] e a substituiria pela cruz gamada,
que tinha o poder de, novamente,
tornar a Alemanha grandiosa.

Certa mulher que viveu na Alemanha nazista fez a seguinte


observação: “Hitler realizou mais em um ano do que a República
de Weimar realizara em dez”. Em tempos de crise, é mais fácil
para um líder forte agir rápida e decisivamente, que conseguir
realizar a tarefa quase impossível de formar um consenso e tecer
uma legislação percorrendo um labirinto de comissões. A Bíblia
prediz que chegará o tempo em que o mundo precisará de um

10Hitler, the occult messiih, New York: St. Martin’s, 19 8 1, p. 135.


44 A cruz de H itle r

homem que possa agir de forma decisiva, evitando o lento e impre­


visível processo do congestionamento do poder legislativo.
Se a economia é primordial para a sobrevivência física e o corpo é
considerado mais importante que a alma, a moralidade será rapida­
mente sacrificada em prol da sobrevivência. O povo alemão, pelo
menos no início, estava disposto a perdoar os expurgos de Hitler e
seus massacres brutais, em troca do direito à vida. Os alemães sim­
plesmente diziam que antes de Hitler tinham liberdade — mas que
essa era acompanhada pela liberdade para morrer de fome.
Com a existência de Deus extirpada da consciência da elite do­
minante e com a exaltação do Estado acima das leis dos homens
comuns, Hitler estava livre para executar seus objetivos. Dostoiévski
estava certo: “Se Deus não existe, tudo é admissível”.
O homem que Rudolf Hess descrevera em seus ensaios entra
em ação. Um deus havia assumido o poder, e milhões de pessoas
seriam aliciadas por sua agradável sedução. Ele tomaria a cruz de
Cristo com sua ênfase no amor e no perdão e a substituiria pela
cruz gamada, que tinha o poder de, novamente, tornar a Alemanha
grandiosa. Hitler não descansaria até que sua cruz prevalecesse.
Passemos agora a examinar esses acontecimentos à luz da Bíblia.
Deus não estava apenas assistindo do céu. Afinal de contas, é ele
quem constitui e depõe os governantes. Devemos ver suas impres­
sões digitais até mesmo nos rumos da história nazista.

\
Deus e Hitler: quem
estava no comando?

“Considero hoje por feliz determinação da sorte que Braunau no


Inn tenha sido destinada para lugar do meu nascimento”, escreveu
Adolf Hitler nas primeiras linhas de seu famoso livro M inha luta}
O homem que talvez tenha sido o mais famoso ditador de todos
os tempos explicou várias vezes seu papel no mundo como uma
responsabilidade que lhe fora outorgada por “forças superiores”. Seus
escritos estavam cheios de referências à “divina providência”, ou ao
que ele chamava simplesmente destino.
Ele acreditava que seu local de nascimento era especialmente
importante, porque estava localizado na fronteira entre a Alema­
nha e Áustria. E, embora ele não mencionasse, também sabemos
que o local era um centro de atividades ocultistas e, provavelmente,
o jovem Adolf teve contato com poderosas forças espirituais bem
cedo. Falaremos mais sobre isso no próximo capítulo.
Referências à providência ou ao destino são encontradas em quase
todos os discursos de Hitler. Após aterrorizar o chanceler da Áus­
tria, Hitler marchou para Viena e a invadiu sem disparar um único
tiro. A seguir, discursou a uma exultante multidão:
Creio que era da vontade de Deus enviar um jovem daqui para
o Reich, educá-lo para ser o líder da nação, a fim de que pudesse

'São Paulo: Moraes, 1983, p. 15.


46 A cruz de H itler

conduzir sua terra natal para o Reich. Há uma ordem superior


[...] Eu sinto o chamado da providência. E o que aconteceu só
seria concebível como o cumprimento do desejo e da vontade
da providência.2
Essa “ordem superior” providencial o conduziu.
Ele, com freqüência, agradecia à providência pelo sucesso. Quan­
do discursou em Würzburg em 1937, comparou o indivíduo com
a força maior da providência. O indivíduo poderia ser fraco em
comparação
com a onipotência e a vontade da providência; todavia, nos
momentos em que age conforme o desejo da providência, tor­
na-se imensamente forte. Assim, essa força é derramada sobre
ele [...] E quando contemplo apenas os últimos cinco anos,
sinto que seria justo dizer que não foram obra de um único
homem.3
Não é de admirar que ele tivesse escrito em M inha luta que
estava realizando “a vontade de Deus”.
O mais interessante é sua explicação sobre o motivo que o le­
vou, primeiramente, a ter entrado na política. Hitler era um men­
sageiro na Primeira Guerra Mundial, e ficou cego devido a um
ataque de gás mostarda. Enquanto se recuperava no hospital, em
um domingo, 10 de novembro de 1918, um pastor trouxe as no­
tícias inconcebíveis aos soldados feridos no hospital militar: a Ale­
manha havia perdido a guerra e um novo governo, a República,
fora proclamada em Berlim! Hitler sentiu-se profundamente traí­
do e teve uma experiência de conversão, um chamado à política
que ele mais tarde descreveu como “a força do destino”.

2W illia m L. S h ir e r , The rise and fa li ofthe Third Reich, New York: S im o n &
Schuster, 1960, p. 349.
3Ronald L ewin, Hitler s mistakes, New York, Quill: W illiam Morrow, 1948,
p. 15-6.
Deus e Hitler: quem estava no com ando? 47

Lá nóTíõspital, com seus olhos queimando e sem enxergar, teve


uma visão espiritual que mais tarde descreveu como “a relação má­
gica entre o homem e todo o universo”.4 O destino o “convocou”
a assumir um papel na restauração da pátria.
O propósito deste capítulo é trabalhar a questão de como o
entendimento de Hitler sobre a providência deve ser interpretado,
à luz da insistência da Bíblia de que Deus controla os assuntos dos
homens. Devemos responder à questão, que assumiu diversas for­
mas, sobre o que Deus estava fazendo durante a vigência do Tercei­
ro Reich. Será que Deus teria simplesmente decidido abandonar
suas responsabilidades como governante do mundo? Ou haveria
uma razão, talvez não totalmente clara para nós, mas, não obstante,
uma razão para o que aconteceu?
Deus fez muitas coisas na Alemanha nazista, mas creio que a mais
importante foi a purificação da igreja. Assim como o faraó foi levan­
tado por Deus para que o seu poder se manifestasse, também Hider
foi levantado para que o poder de Deus fosse novamente conhecido.
Esses terríveis acontecimentos julgaram os líderes nazistas desafiado­
res juntamente com os líderes da igreja apóstata. Eles também refina­
ram a fé dos verdadeiros crentes, que testemunharam da fidelidade
de Deus até mesmo no sofrimento.
O pastor Guilherme Busch, um evangelista que sobreviveu ao
período nazista de terror, conta que foi preso após realizar encon­
tros de evangelização na cidade de Darmstadt. Ele foi retirado da
multidão e empurrado para uma viatura de polícia, ao lado de
um oficial da Gestapo,* que deu ordens, ao membro da ss que
estava ao volante, para seguir. Porém, o motor não dava partida.
O oficial gritava: “Dê a partida!”, como se o carro fosse obede­
cer à sua ordem. Naquele momento, do meio da multidão, um
jovem que estava de pé nas escadas da igreja começou a cantar alto:

4Irevor R avenscroft, Thespearofdestiny, York Beach, Maine: Weiser, 1982, p. 95.


*Geheime Staats Polizei [Polícia Secreta do Estado], a polícia de Hitler (N.
do R.).
48 A cru z de H itler

Alegre-se, o Salvador reina


O Deus da verdade e do amor;
Após limpar nossas manchas,
Assumiu seu trono no céu
Eleve seu coração, erga sua voz!
Alegre-se, mais uma vez eu digo, alegre-se!
O jovem desapareceu na multidão, e o carro deu a partida. Vi-
rando-se para o oficial da Gestapo, o pastor Busch disse: “Meu
pobre amigo! Eu estou do lado vencedor!”.
O homem estava assustado e, a seguir, falou em voz baixa: “Há
muito tempo fui membro da a c m ” .*
“Ora!” respondeu o pastor. “E agora você prende cristãos! Pobre
coitado, eu não queria estar no seu lugar.” Em alguns instantes eles
chegaram à prisão, mas o triunfo de Cristo havia se revelado ao
evangelista.5 A convicção renovada da soberania de Deus o havia
encorajado na hora da necessidade. Os que viram apenas sofrimen­
to sem sentido na Alemanha nazista foram carregados pela maré do
nazismo; os que viram Deus, tiveram forças para resistir.
Dois homens sentados em uma cela.
Um vê a lama, o outro as estrelas.
Sim, o Salvador estava no controle até mesmo da Alemanha nazis­
ta! A doutrina bíblica da divina providência deu aos cristãos, como o
pastor Busch, fé para crer que o sofrimento da igreja alemã não seria
em vao. Se compreendermos corretamente a providência, ficaremos
convencidos de que para o povo de Deus nenhum sofrimento é des­
provido de significado. Os que puderam ver a mão de Deus prevale­
cendo mesmo no nazismo tiveram coragem para resistir à perseguição.
Estavam convencidos de que Deus jamais abandona seu povo, mesmo
quando lhes é exigido que paguem o preço supremo por sua fé.

*Associação Cristã de Moças, instituição ecumênica de educação, assistência


social e filantropia fundada em 1844 na Inglaterra. (N. do E.)
5Wilhelm Busch,Jesus ourdestiny, Basel, Switzerland: Brunnen, 1992, p. 195-6.
Deus e Hitler: quem estava no com ando? 49

O que significa dizer que Deus reinou na Alemanha, quando


parece tão óbvio que Hitler estava no comando? E a que devemos
atribuir as notáveis obras da providência que permitiram a Hitler
aterrorizar o mundo?
Acompanhe-me em uma viagem que começa nos vários inci­
dentes que corroboraram a obsessão de Hitler pela doutrina do
destino, ou providência, e que termina com a certeza de que Deus
governa “todas as coisas segundo o propósito da sua vontade”. Ten­
taremos esmiuçar o Terceiro Reich com base na perspectiva bíblica.
No fim, veremos o porquê de podermos confiar em Deus, ainda
que algum dia nos seja necessário atravessar algum vale similar, hor­
rendo e sombrio.
Os imprevistos e reviravoltas da providência, ou da “ordem su­
perior”, que agiram na vida de Hitler, devem lhe surpreender tanto
quanto a mim. Ele teve todos os motivos para acreditar que fora
destinado ao poder, pois os poderes superiores determinaram que
assumisse um papel especial no mundo, e todas as cartas pareciam
estar a seu favor.

OS MILAGRES DA PROVIDÊNCIA
Em diversas ocasiões, Hitler deveria ter sido morto; em outros
momentos caiu tão completamente em desgraça que deveria ter
sido proscrito e não adorado como o “F ührer'. Ao examinar sua
vida, você ficará impressionado com o número de vezes em que
somente a providência poderia explicar sua extraordinária carreira.

Seu nascimento
Hitler nasceu em Braunau, Áustria, às 18h30 de 20 de abril de
1889. Era um local de nascimento improvável para um camponês
que acabaria por ser adorado por milhões de alemães que, por natu­
reza, eram comedidos e sisudos. Mesmo aqui, percebemos a virada
do destino que decretou que ele sobrevivesse à infância e vivesse
para ter um nome curto e memorável.
50 A cruz de Hitler

Conforme todos os relatos, Adolf Hitler deveria ter se cha­


mado Adolf Schicklgruber. Seu pai, Alois, era um filho nascido
fora do matrimônio, e adotou o nome da mãe, Maria Schicklgruber.
M aria acabou se casando com um moleiro viajante, que ficou
desaparecido por vários anos. O homem não assumiu o filho,
logo Alois, o pai de Hitler, manteve o sobrenome da mãe du­
rante 39 anos.
Inacreditavelmente, esse homem reapareceu já com a idade
de 84 anos e decidiu aceitar a paternidade do filho ilegítimo de
sua esposa (mas, muitos acreditam que ele fosse o verdadeiro pai
de Alois). De qualquer forma, já em idade avançada, o padrasto
adotou o filho de 39 anos da esposa, dando-lhe um novo nome
— Alois Schicklgruber tornou-se Alois Hitler. Se seu velho pai
não tivesse aparecido do nada, o seu nome jamais teria sido mo­
dificado.
William Shirer, em sua importantíssima obra The rise a n d fa li
o f t h e Third R eich [„Ascensão e queda do Terceiro R eich\, diz que
seria difícil imaginar os alemães usando a cômica saudação “Heil
Schicklgruber!”.6 A saudação “Heil Hitler!” não é apenas ines­
quecível, mas militarista e sob medida para os gigantescos comí­
cios nazistas. Até mesmo Adolf Hitler contemplava a mudança
de nome de seu pai como mais uma indicação da “providência a
seu favor”.
Quanto ao pai de Hitler, Alois, podemos dizer que ele se relacio­
nou com muitas mulheres nas suas diversas carreiras — primeiro a
de sapateiro, e depois a de fiscal aduaneiro. Sua terceira esposa foi
Klara Poelzl, que se tornaria a mãe de Adolf Hitler. Por Alois e
Klara serem primos em segundo grau, eles acharam necessário que
houvesse uma permissão especial para seu casamento.
E, assim, aconteceu que Hitler foi o terceiro filho do terceiro
casamento de seu pai. Os primeiros dois filhos de BClara morre­
ram ainda crianças; Adolf, é claro, foi poupado pelo destino, ou

6P. 8.
Deus e H itler: quem estava no com ando? 51

pela providência; o quarto fdho morreu com a idade de seis anos.


Somente o quinto filho do casal, Paula, viveu para sobreviver a
seu abominável irmão.

------------------------- - j - ---------- --------------


Ele se apresentava como voluntário para
missões de risco, não tanto por sua
bravura, mas porque acreditava que o
destino o havia tornado invencível.

Imagine como a história do mundo teria sido diferente se Hitler


tivesse morrido na infância com seus dois irmãos e sua irmã. Se um
dos outros filhos tivesse sobrevivido em seu lugar, humanamente
falando, a Alemanha teria sido poupada do fabuloso apogeu de sua
grandeza e da devastação subseqüente que seria trazida sobre grande
parte da Europa e do mundo. Até onde sabemos, o Holocausto
não teria acontecido.
Será que alguém pode negar que foi Deus quem, pelo menos
indiretamente, determinou que Hitler tivesse um nome agradável
aos ouvidos do povo alemão e que sobrevivesse à sua infância?
Hitler tinha a plena convicção de que era guiado pela mão supe­
rior.

A Primeira Guerra Mundial


Quando a Primeira Guerra Mundial começou, Hitler deu graças
pela oportunidade de abandonar os tempos de penúria (a essa altu­
ra, ele se mudara de Viena para Munique), e se alistou no exército
alemão. Como austríaco, teve de solicitar permissão especial para
ser voluntário no serviço militar. Em sua primeira batalha contra os
britânicos, em Yprés, somente 600 dos 3 500 homens de seu regi­
mento sobreviveram. Ele passou a maior parte da guerra na frente
de batalha, e sobreviveu aos conflitos mais violentos. Embora as
52 A cruz de H itler

bombas explodissem e matassem as outras pessoas, sua vida foi


sempre poupada.
Como mensageiro, era voluntário para missões difíceis, mas es­
tava convicto de que possuía a habilidade sensacional de evitar a
fatalidade. Certa vez, enquanto comia em uma casamata, levantou-
se repentinamente e foi terminar sua refeição em outro lugar. Al­
guns momentos depois, uma bomba caiu onde ele estava sentado,
matando todos seus companheiros.
Ele se apresentava como voluntário para missões de risco, não
tanto por sua bravura, mas porque acreditava que o destino o havia
tornado invencível. Ao atravessar uma rajada de balas, ele “tentava a
providência”, assegurando-se de que não poderia morrer até que
sua missão fosse cumprida. Foi condecorado por bravura duas ve­
zes. Em quatro anos de combate, sofreu apenas um ferimento na
perna e a cegueira temporária, já mencionada.
Não é de admirar que afirmasse em sua correspondência pessoal
que devia sua vida a um milagre, ou, mais exatamente, a uma série
de milagres. Acreditava ter sido chamado para um papel que lhe
fora reservado por forças superiores.

0 Putsch
A revolução comunista na Rússia ocorreu em 1918 — no mesmo
ano em que a Alemanha se rendeu, pondo fim à Primeira Guerra
Mundial. O partido comunista na Alemanha estava se fortalecen­
do, e preparava-se para tomar o poder. Os soldados que haviam
voltado da guerra eram homens revoltados que não conseguiam
encontrar trabalho; Hitler, posteriormente, os descreveu como ho­
mens que apoiavam a revolução para o próprio proveito e “deseja­
vam que a revolução se tornasse uma situação permanente”. Já
tivemos a oportunidade de verificar que o governo democrático
organizado em Weimar era desprezado.
Quando Hitler retornou à cidade de Munique, que adotara,
conseguiu emprego no escritório de imprensa e notícias, do departa­
mento político do comando distrital do exército. Pediram-lhe que
Deus e H itler: quem estava no com ando? 53

comparecesse à reunião de um pequeno partido socialista, mas ele


não saiu desse encontro impressionado. Tomou a decisão de nao tor­
nar a comparecer; mas quando veio o convite, reconsiderou.
Após alguns receios, ele se registrou como o sétimo membro do
comitê do Partido dos Trabalhadores Alemães. Mais tarde, já sob o
seu controle, ele adicionou as palavras “Nacional-Socialista”; e as­
sim nascia o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães
(mais tarde apelidado nazista). Hitler manobrou até conseguir o
controle da liderança, e a usou para erguer sua base política.
Em 1923, quando a Alemanha enfrentava o caos político sem
limites e a inflação galopante, Hitler acreditou que o momento
era oportuno para o Putsch (golpe) que possibilitaria que assu­
misse o controle da Alemanha. Em 8 de novembro daquele ano,
ele assumiu o controle de uma reunião de três mil homens na
Bürgerbráukeller (cervejaria) em Munique, ao disparar seu revól­
ver para o ar, subir no palanque e proclamar que sua revolução
tinha começado! Todos teriam de segui-lo, ou, então, entrar em
conflito com seiscentos de seus homens que cercavam o prédio.
Ele foi ao palanque para declarar que o governo bávaro fora
deposto e que o exército e a polícia agora marchavam sob a ban­
deira da suástica. Ele estava blefando, mas as pessoas não sabiam
disso.
Hitler levou os três políticos que lideravam a reunião para uma
sala anexa, e ordenou-lhes, sob a mira de armas, que se unissem ao
seu partido. Quando se recusaram, correu de volta ao salão e anun­
ciou que um novo governo acabara de ser formado com o respeitá­
vel Ludendorff (o general derrotado na Primeira Guerra Mundial,
mas popular) à frente do exército. Os aplausos enchiam o prédio
enquanto os três líderes ainda estavam trancados na pequena sala
próxima ao palanque.
Um grupo de auxílio foi reunido para trazer o general Ludendorff
para a reunião. Quando o general chegou e descobriu que Hitler
liavia lhe despojado da surpresa, ficou furioso. Ficou ainda mais
Iurioso ao ouvir que Hitler, e não Ludendorff, seria o líder do novo
54 A cruz de H itle r

governo. Ainda assim, forçado pelos acontecimentos políticos do


dia e pela pressão do momento, o general convenceu os três líderes
a se juntarem à revolução. Alguns momentos depois, eles retornaram
ao palanque e anunciaram à multidão, pasmada, que se compro­
meteram a apoiar o novo regime!
Graças a um planejamento medíocre, o “novo governo” se des­
fez da noite para o dia. Os três homens que se comprometeram a
dar seu apoio sob a mira de armas voltaram-se contra Hitler. Para
salvar sua honra, no dia seguinte, Hitler concordou com o plano
proposto pelo general Ludendorff de que os “camisas-pardas” mar­
chassem para o centro de Munique para tomá-la de assalto. Juntos,
os dois homens lideraram uma coluna de três mil homens das tro­
pas de assalto até o centro da cidade. Uma bandeira com a suástica
foi desfraldada à frente da coluna, e os homens armados seguiam
logo atrás. Multidões os acompanhavam.
Quando marchavam pela estreita Residenzstrasse (Rua dos Resi­
dentes), que abria na espaçosa Odeonsplatz, eles depararam com
um contingente da força policial. Ninguém sabe quem atirou pri­
meiro, mas uma saraivada de balas foi disparada por ambos os la­
dos e, um minuto depois, dezesseis nazistas e três policiais haviam
sido atingidos. Hitler caminhara com seu braço esquerdo entrela­
çado ao braço direito de um companheiro que foi atingido e caiu,
puxando-o para o chão. Testemunhas disseram que Hitler foi o
primeiro a se levantar e bater em retirada, deixando seus compa­
nheiros mortos, ou agonizantes, nas ruas.
Hitler foi rapidamente conduzido, em uma limusine, para se
recuperar na casa de campo de um amigo, pois reclamava que
deslocara o braço. Ele fora completamente desacreditado, e sabia
disso. Os jornais por todo o mundo anunciavam que sua carreira
estava encerrada. Não é de admirar que tenha pensado em suicí­
dio, sentado durante horas com uma arma apontada para a cabe­
ça. Ele foi persuadido a abandonar essa opção pela esposa e pela
filha de seu amigo, que trataram dele durante a recuperação de
sua saúde. Mais uma vez, podemos apenas especular sobre como
Deus e H itler: quem estava no com ando? 55

teria sido a historia da Alemanha, se ele tivesse tido a coragem de


puxar o gatilho.
Até mesmo os amigos de Hitler se constrangeram com a estupi­
dez da tentativa de depor o governo bávaro. Mesmo que tivessem
sucesso, jamais teriam conseguido tomar o resto da Alemanha.
Hitler, porém, como estamos aprendendo, parecia sempre desafiar
as probabilidades.
Dois dias mais tarde, Hitler foi preso e julgado por traição. Mais
um capricho do destino, ele ficou famoso com seu julgamento,
que durou 24 dias, e ocupou a manchete de jornais de todo o mun­
do. Teve a oportunidade de discursar livremente e usou sua bri­
lhante oratória para espalhar sua mensagem pela Alemanha e, desse
modo, também pelo o mundo. Foi condenado por traição e pas­
sou dez meses na prisão de Landsberg, onde ele e Rudolf Hess es­
creveram a bíblia nazista, M inha luta.
Como ele veria esses acontecimentos anos depois? Percebeu ne­
les a mão da providência. Presumia que se seu golpe tivesse sido
bem-sucedido em Munique, isto teria sido o seu fim, pois naquela
época ele não tinha o poder necessário para apoiar a revolução na
Alemanha inteira. O fracasso ocorreu para o seu bem.
Leia como interpretava o fracasso inicial:
Nós sabíamos que estávamos levando à cabo a vontade da pro­
vidência e éramos guiados por um poder superior [...] O des­
tino queria o nosso bem. Ele não permitiria que uma ação
armada fosse bem-sucedida, pois se tivesse dado certo, inevita­
velmente, acabaria entrando em colapso devido à imaturidade
interna do movimento naqueles dias, bem como às suas bases
intelectuais e organizacionais deficientes.7
O destino fez com que ele falhasse em um momento, para que
fosse bem-sucedido em outro. Tempos depois, recebeu a chancela­
ria quando o apoio ao partido nazista começava a diminuir. E o

7Ibid., p. 7 7 .
56 A cruz de H itler

que dizer de ele ter conseguido manipular, convencer e ameaçar o


Reichstag para receber poderes ditatoriais — as idas e vindas do
destino são efetivamente extraordinárias. Não é de admirar que ele
aceitou ser adorado pelo povo alemão. Tinha a convicção de que
não haveria nenhum obstáculo em sua carreira que não pudesse ser
superado pelo destino.

As tentativas de assassinato
Em 1944, o destino havia protegido Hitler de pelo menos meia
dúzia de tentativas de assassinato. Uma delas fracassou quando uma
bomba relógio, colocada em seu aviao, não ex plodiu; quando o
mecanismo foi posteriormente examinado, não foi achada nenhu­
ma razão para que a bomba não tivesse detonado.
Desapontados, os conspiradores concluíram que não poderiam
falhar na tentativa seguinte. O coronel Gersforff concordou em
participar de uma missão suicida. Esconderia duas bombas em seu
sobretudo, dispararia as espoletas e ficaria o mais próximo possível

Tropas alemãs marcham em direção dos Sudetos na Checoslováquia, em


1.° de outubro de 1938. Dois dias mais tarde, Hitler faz sua entrada triunfal.
Deus e H itler: quem estava no com ando? 57

de Hider durante as cerimônias em Berlim. Ele explodiria a si mes­


mo, juntamente com o Führer e seu séquito.
O plano era deixar Hider fazer seu discurso e a seguir, Gersforff
dispararia as espoletas e ficaria junto a Hider durante os quinze minu­
tos necessários para que a bomba explodisse. Mas por força do destino,
foi anunciado que Hider ficaria apenas cinco minutos após o discurso,
e não meia hora como fora planejado. Logicamente as espoletas nunca
foram disparadas. A mudança de planos salvou mais uma vez sua vida.
A mais conhecida tentativa de assassinato foi empreendida por
Stauffenberg, um respeitado oficial do exército. Embora, de início,
tivesse apoiado Hider, mas com certa relutância, ele logo se juntou
ao quadro de conspiradores que nutria esperanças de matar o líder
demoníaco.
Quando visitei o antigo quartel-general das forças armadas em
Berlim, onde agora funciona um museu do movimento de resis­
tência, surpreendi-me com a riqueza de detalhes dos planos para a
implantação de um novo governo. Eles já haviam decidido quem
assumiria os vários departamentos, o gabinete e as negociações com
o Ocidente. Os planos estabeleciam o controle completo de Berlim
no espaço de duas horas após a morte do ditador. Só era preciso
que Hider fosse assassinado.
Para a felicidade dos conspiradores, Stauffenberg fora promovi­
do ao posto de coronel, o que significava que agora teria acesso
direto a Hider. Após várias tentativas frustradas, devido a reuniões
canceladas ou casualidades inesperadas, a oportunidade finalmente
chegou.
O coronel Stauffenberg viajou para encontrar Hitler e seus gene­
rais em Rastenburg. Permitiram-lhe que transpusesse a barreira rigo­
rosa da segurança, e, logo após o meio-dia, ele pediu licença para ir ao
toalete, onde preparou a bomba. Quebrou a cápsula de ácido que
derreteria o arame que soltaria o cão e detonaria a bomba.
Quando ele entrou na sala de reuniões, Hitler estava sentado no
centro da mesa com suas costas para a porta, e com sua equipe em
pé em torno dele, absorta sobre os mapas. O Führer parou para
58 A cruz de H itler

cumprimentar Stauffenberg e lhe dizer que já escutaria seu relató­


rio. Stauffenberg tomou seu lugar à mesa, próximo de Hitler, à sua
direita. Pôs sua maleta no chão, empurrando-a para baixo da mesa
a cerca de dois metros das pernas de Hitler. Faltavam cinco minu­
tos para a bomba disparar.
Stauffenberg pediu licença, argumentando que precisava fazer
uma ligação urgente. O coronel Brandt, atento ao que estava sendo
dito, inclinou-se sobre a mesa para ver o mapa. Como a maleta de
Stauffenberg estava no caminho, ele a pegou com uma mão e a
levou para a parte mais distante da mesa. O gesto salvou a vida de
Hitler e custou a vida de Brandt.
Exatamente às 12h42min de 20 de julho de 1944, a bomba
explodiu. Stauffenberg, que assistia a algumas centenas de metros,
viu corpos voarem pela janela e fragmentos serem arremessados
por toda a parte. Não restava a menor dúvida que todos naquela
sala tinham morrido ou estavam morrendo.
Um telegrama com a notícia de que o assassinato fora bem-suce­
dido pode ser visto no museu da resistência em Berlim. Stauffenberg
conseguiu passar pelos postos de controle e voar de volta a Berlim,
certo de que atingira seu objetivo. Após ter pousado, percebeu que
os conspiradores nãQ.haviam feito nada para consolidar o poder. Des­
cobriu, também, para seu pavor, que Hitler não fora morto. A atitu-
dfe do coronel Brandt, de ter empurrado a maleta para a parte mais
distante da sala, sob a sólida mesa de carvalho, salvara a vida de Hider.
Quatro homens foram mortos, mas Hitler fora apenas abalado
— tinha algumas queimaduras, o braço direito estava machucado e
os tímpanos foram perfurados. Porém, ele recuperara logo o curso
de seus encargos. Até mesmo compareceu ao compromisso com
Mussolini às quatro horas naquela tarde.
A que Hitler atribuiu essa miraculosa preservação de sua vida?
Não à sorte, mas ao destino. Disse a Mussolini:
É óbvio que nada irá me acontecer; não há dúvida de que o
meu destino é seguir o caminho até completar minha missão
[...] Agora, após escapar à morte [...] estou mais do que nunca
Deus e H itler: quem estava no com ando? 59

convencido de que a grande causa a que sirvo, sobreviverá aos


riscos que enfrentamos no presente, e tudo, por fim, dará certo.8
Algumas horas após a explosão, Stauffenberg foi apontado como
o autor da ação. Foi executado naquela mesma noite, e, em algu­
mas semanas, milhares de outros suspeitos de fazer parte da conspi­
ração foram brutalmente assassinados. À uma hora da madrugada
do dia seguinte, Hitler transmitiu um discurso à nação, asseguran­
do ao povo que estava bem e que puniria os responsáveis por aque­
le ato desprezível. Disse que fora poupado por ter um trabalho a
realizar: “Considero esse fato a confirmação da tarefa que me foi
imposta pela providência”.9 Ele disse ao seu criado que se tratava de
uma nova prova de que fora escolhido pela providência para levar a
Alemanha à vitória.
Em janeiro de 1945, ainda dizia aos soldados: “Suporto este
meu fardo, pois a providência achou-me digno de assumir [...] esta
tarefa crítica na história do povo alemão”.10 Nos últimos dias re­
clamava com amargura que “o destino lhe negara a vitória” que
desejava. Assim, em 30 de abril de 1945, suicidou-se em seu bunker
em Berlim. O destino ao qual atribuíra sua grandeza, foi também
o destino pelo qual morreu. A mão invisível que o ergueu, tam­
bém o derrubou.

Será que Deus só se envolve quando


líderes íntegros assumem o poder, e fica
de fora quando um líder não é cristão,
ou é, até mesmo, perverso?

sIbid„ p. 1056.
9Ibid., p. 1069
“ Robert G. "Waite,A dolfHitler, the psychopathic god, New York: Basic Books,
19 77, p. 17.
60 A cruz de H itler

O que podemos concluir com base nessa impressionante con­


vicção de Hitler de que era dominado pela vontade do destino?
Quem estava no controle? Qual o papel de Deus nos assuntos dos
seres humanos? Qual o papel de Satanás? E quanto ao próprio Hitler,
qual foi seu papel?

UMA INTERPRETAÇÃO DA PROVIDÊNCIA


A Bíblia é cheia de referências ao que os teólogos denominam “a
providência de Deus”, isto é, o fato de que o Todo-Poderoso não
deixou o mundo seguir por si só, mas está ativamente envolvido
nos assuntos dos seres humanos. Louis Berkhof apreendeu esse en­
sino bíblico, e assim definiu a providência: “... é o permanente exer­
cício da energia divina, pelo qual o Criador preserva todas as suas
criaturas, opera em tudo o que se passa no mundo, e direciona
todas as coisas para o seu determinado fim”.11
Apresentamos aqui cinco pilares sobre os quais podemos cons­
truir a doutrina da providência divina. Deixe-me incentivá-lo a ler
este capítulo até o fim, antes de chegar a qualquer conclusão. Tere­
mos de mergulhar em águas profundas da teologia, e quero assegu­
rar que chegaremos juntos ao nosso destino.

1. Deus controla os assuntos dos homens


Quando o sr. Clinton foi eleito presidente em 1992, ouvi um pre­
gador cristão dizer: “Deus não teve nada que ver com a eleição desse
presidente; o povo fez sua escolha!”.
Considerei essa afirmação ilógica por diversas razões. Em pri­
meiro lugar, tento imaginar o que o pregador diria se o presidente
eleito fosse cristão e seriamente comprometido a governar segundo
princípios bíblicos. Será que ele diria que o presidente fora levanta­
do por Deus para aquele momento da história dos EUA? Deixe-me
expor de outra forma: Será que Deus só se envolve quando líderes

u Teologia sistemática, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 154.


Deus e H itler: quem estava no com ando? 61

íntegros assumem o poder, e fica de fora quando um líder não é


cristão, ou é, até mesmo, perverso?
Em segundo lugar, pergunto-me como esse pregador analisaria
as dezenas de passagens bíblicas que dizem explicitamente que,é Deus
quem estabelece e depõe os governantes. Não podemos negar, e não
deveríamos querer negar, que é Deus quem supervisiona e dirige de
forma efetiva a estrutura política do mundo. Daniel diz que Deus
“muda as épocas e as estações; destrona reis e os estabelece” (Dn
2.21). Para que não pensemos ter entendido errado, ele repete isso
de forma ainda mais clara: “... para que todos os que vivem saibam
que o Altíssimo domina sobre os reinos dos homens e os dá a quem
quer, e põe no poder o mais simples dos homens” (Dn 4.17).
“O S e n h o r dos Exércitos” é uma expressão que ocorre centenas
de vezes no Antigo Testamento, para asseverar que o Deus invisível
do universo está por trás dos governantes visíveis do mundo. Não é
de admirar que Deus possa falar sobre o rei pagão Ciro, como se ele
fosse seu servo (Is 45.1), e dizer ao profeta Habacuque: “Estou tra­
zendo os babilônios, nação cruel e impetuosa, que marcha por toda a
extensão da terra para apoderar-se de moradias que não lhe perten­
cem” (Hc 1.6). O Novo Testamento respalda essa conclusão. Lem­
bra de quando Pilatos ficou contrariado com Jesus, que se recusava a
responder-lhe? Ele disse, com ar de desafio: “Não sabe que eu tenho
autoridade para libertá-lo e para crucificá-lo?”. Jesus, calmamente,
trouxe tudo para a perspectiva teológica: “Não terias nenhuma auto­
ridade sobre mim, se esta não te fosse dada de cima. Por isso, aquele
que me entregou a ti é culpado de um pecado maior” (Jo 19.10,11).

-------------------------- -- - ^ j -----------------------------

Hitler era um ser totalmente endemoni­


nhado, cujo corpo não passava de uma
casca para o espírito que habitava nele.
62 A cruz de H itler

Paulo, ao escrever para a igreja de Roma nos dias de Nero, decla­


rou abertamente: pois não há autoridade que não venha de
Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas” (Rm
13.1). Deus não abandonou seu papel no mundo nem na Roma
pagã, nem na Alemanha pagã.
Certamente, Hitler não teria governado se não lhe fosse dado
“por Deus”. Ele não teria nenhum poder, se este não lhe tivesse sido
concedido do alto. Deus governa!

2. Deus delega sua autoridade aos anjos, a Satanás e ao povo


Como deveríamos interpretar as constantes referências de Hitler ao
destino e à providência? É um tanto óbvio que as vozes que ele
ouvia, bem como os poderes de onde tirava sua força, não eram de
Deus, mas de Satanás. Como veremos no próximo capítulo, Hitler
era um ser totalmente endemoninhado, cujo corpo não passava de
uma casca para o espírito que habitava nele. Um exemplo típico de
como Satanás muitas vezes tenta dar o passo maior que a perna foi
quando Hitler profetizou que o Terceiro Reich duraria mil anos.
Ele não pode prever o futuro com exatidão, pois não o controla.
Talvez nenhum outro homem em toda a história tenha sido tão
claramente habitado por demônios sombrios e cruéis.
Assim, em que sentido podemos dizer que foi Deus que levan­
tou Hitler e o depôs? H itler estava, sim bolicam ente falando, nas
mãos de Satanás; mas Satanás, apesar de toda a sua maldade, está
sem pre nas mãos de Deus. Lutero nos lembra que até o Diabo é o
Diabo de Deus.
O Todo-Poderoso criou o mundo. Criou Lúcifer, que pecou e
se tornou Satanás. E é Deus quem controla e dirige tudo o que
ocorre por meio de causas secundárias. Nada acontece sem que Deus
tenha permitido deixar acontecer e tenha estabelecido as condições
que tornam esses acontecimentos possíveis. Assim, Deus continuou
governando os homens mesmo quando Hitler, sob o poder de Sa­
tanás, estava no controle.
Deus estabelece os parâmetros para a atuação de Satanás. E Deus
quem diz: “Só até aqui”. Satanás e os homens só possuem a margem
Deus e Hitler: quem estava no com ando? 63

de manobra definida pelo Todo-Poderoso. Da perspectiva huma­


na, Hitler comandou sozinho a Alemanha nazista. Contudo, ele
não poderia ter governado sem o consentimento e a supervisão de
Deus. Como Paulo nos recorda, Deus “faz todas as coisas segundo
o propósito da sua vontade” (Ef 1.11). Algumas pessoas preferem
chamar isso de “vontade permissiva”, mas trata-se mesmo assim da
sua vontade. Ele direciona todas as coisas ao seu destino previa­
mente designado.
Independentemente de suas posturas teológicas, você terá de con­
cordar que o Holocausto não teria acontecido se Deus não tivesse
optado por permiti-lo. Se usarmos figuras de linguagem diríamos
que ele rubricou o memorando; ele deu o aval. Visto que ele esco­
lheu permiti-lo, também poderia ter escolhido não permiti-lo. Eis o
motivo de a Bíblia afirmar que não há poder exceto o poder de Deus
e que Deus governa os assuntos dos homens. Ele não fe z a maldade,
mas optou por deixar que a maldade acontecesse.
E neste ponto que o assunto fica complicado. Embora o mal se
oponha à natureza de Deus — e se oponha à sua Palavra revelada —
Deus, todavia, permite que ele exista. Naturalmente, o Todo-Po-
deroso faz isso visando ao objetivo maior. Deus está disposto a
desconsiderar alguns dos seus próprios desejos para alcançar o pro­
pósito maior. Deus permite e aprova tudo o que sucede ou pode
vir a suceder. Permite até mesmo o que odeia.
Se você não estiver convencido, lembre-se que algum dia um ou­
tro homem se levantará para reavivar os planos de Hider. Ele não será
adorado apenas por um país, mas por todo o mundo, porque reali­
zará maravilhas econômicas e espirituais. Ele perseguirá Israel e tenta­
rá, desesperadamente, destruir o Estado judeu. Ele, assim como Hider,
acreditará ter sido levantado pelo destino. Sua carreira meteórica será
atribuída ao fato de ter sido “convocado por poderes superiores”.
O anticristo é chamado “a besta” em Apocalipse 13: “O dragão deuà
besta o seu poder, o seu trono e grande autoridade [...] [e] adoraram o
dragão, que tinha dado autoridade à besta” (Ap 13.2,4). Lemos quatro
vezes, em poucos versículos (v. 2-7), que esse poder foi dado “à besta”.
64 A cruz de H itler

Apesar de muitos de nós crermos que seremos arrebatados para


estar com Cristo antes que o anticristo assuma o controle, a exten­
são da sua autoridade deveria nos causar calafrios de horror:
Foi-lhe dado poder para guerrear contra os santos e vencê-los.
Foi-lhe dada autoridade sobre toda tribo, povo, língua e nação.
Todos os habitantes da terra adorarão a besta, a saber, todos
aqueles que não tiveram seus nomes escritos no livro da vida do
Cordeiro que foi morto desde a criação do mundo (Ap 13.7,8).
A autoridade do anticristo lhe foi dada por Satanás, mas a auto­
ridade de Satanás foi concedida a ele por Deus.
O motivo pelo qual Deus pode prever que a autoridade do
anticristo durará somente 42 meses, deve-se ao fato dessa influên­
cia maléfica sobre o homem depender da vontade de Deus. Aquilo
que “foi-lhe dado” também lhe será tirado. Ele não poderia exercer
seu domínio se não lhe fosse “dado dos céus” (Jo 3.27).
Deus abomina a idolatria do anticristo, assim como abominou a
idolatria do povo alemão. Apesar disso, Deus a permitiu. Não
obstante, ele direciona os eventos mundiais para que seus desígnios
sejam cumpridos; utiliza-se de guerras e perseguições como juízo so­
bre os incrédulos e como castigo sobre a igreja. Por fim, seus propó­
sitos serão alcançados e o seu nome será glorificado.
Os cristãos na Alemanha nazista que acreditavam que o triunfo
do mal se devia ao fato de Deus ser muito fraco para deter a maré
não encontraram nenhuma esperança em seu sofrimento. Porém,
os fiéis que sabiam que Deus ainda estava no comando, mesmo
quando Hitler estava no poder, seriam recompensados por qual­
quer sacrifício que tivessem de fazer. Eles eram sustentados por essa
convicção bíblica:
Por isso não desanimamos. Embora exteriormente estejamos a
desgastar-nos, interiormente estamos sendo renovados dia após
dia, pois os nossos sofrimentos leves e momentâneos estão pro­
duzindo para nós uma glória eterna que pesa mais do que to­
dos eles. Assim, fixamos os olhos, não naquilo que se vê, mas
Deus e H itler: quem estava no com ando? 65

no que não se vê, pois o que se vê é transitório, mas o que não


se vê é eterno (2Co 4.16-18).
Como Paulo diz em outra passagem: “Considero que os nossos
sofrimentos atuais não podem ser comparados com a glória que
em nós será revelada” (Rm 8.18).
Toda autoridade é delegada por Deus. Isto nos dá segurança,
mesmo quando governantes iníquos sobem ao poder. A persegui­
ção sempre separa as ovelhas dos bodes; ou ela conduz as pessoas
aos braços de Deus, ou as abandona ao seu justo destino. Deus
realizou mais na Alemanha nazista do que jamais poderíamos com­
preender.

Deus responsabiliza os anjos, Satanás e as pessoas pelo


mal que lhes permite realizar
Nesse ponto, parecemos chegar a um impasse. Visto que Deus
possui o controle supremo, será que seria cúmplice dos atos per­
versos do homem? Esse foi o dilema que, evidentemente, fez com
que Einstein deixasse de crer em um Deus pessoal. Ele argumen­
tava que se Deus fosse verdadeiramente todo-poderoso, então todo
pensamento e ato humano também seriam obras suas. Einstein
dizia que dessa maneira, ao conceder castigos e recompensas, “ele
estaria em certa medida, emitindo um veredicto sobre si mesmo.
Como isso poderia se harmonizar com a bondade e a virtude que
são atribuídas a ele?”.12
Einstein estava expressando o conflito que atinge a maioria de
nós. Como Deus pode responsabilizar os seres humanos, se eles estão
apenas cumprindo sua vontade? A discussão mais completa sobre
essa questão está muito além do objetivo deste capítulo, mas, de
maneira geral, podemos afirmar que os indivíduos criados por Deus
desfrutam de independência suficiente para serem responsabilizados
por seus atos.

12HughRoss, Creation and the cosmos, Colorado Springs: NavPress, 1993,


l>. 47-8.
66 A cruz de H itler

Observe com atenção que o título deste capítulo não é “Deus ou


Hitler: quem estava no comando?”, mas sim “Deus e Hitler”. Deus
tinha seu papel — delegando poderes. Hitler e Satanás desempe­
nharam seu papel — realizaram a destruição.
Deus está no controle, porque ele é o Criador e determina os
limites; Hitler era responsável por seus atos, pois escolheu o que
fazer dentro desses limites divinos. Deus não perpetrou um ato
perverso quando delegou autoridade a Hitler; no entanto, Hitler
fez o que era mau ao usar essa autoridade de maneira imprópria. E
tem mais, Deus não julgou a si mesmo, porque não existe um
padrão externo à sua pessoa ao qual ele deva se ajustar.
Logo, se atentarmos para a situação como um todo, Hitler (em­
bora fosse controlado por Satanás) governou nos limites da per­
missão e do critério do Deus Todo-Poderoso. Deus deu a Satanás o
alcance de sua atuação quanto ao enganar Hitler; e o próprio Hitler
fez as escolhas que o levaram a tais enganos.

4, A história terá o fim que se amolda aos planos de Deus


Não deveríamos ter nenhuma dúvida de que a história terminará
como Deus predisse. Ao falar dos crentes, Paulo falou que fomos
“predestinados conforme o plano daquele que faz todas as coisas
segundo o propósito da sua vontade” (Ef 1.11). Naturalmente, a
rebelião contra Deus seria vã. A despeito de quem pareça estar ven­
cendo agora, Deus vencerá no final.
Ao assistir trechos de filmes sobre a Alemanha de Hitler, nao
pude deixar de pensar como tudo seria diferente se os cristãos tives­
sem se lembrado de que a eternidade é mais importante que o tem­
po! Essa é uma lição de que devemos nos lembrar, mesmo antes
que a perseguição atravesse nosso caminho.

5, Podemos descansar na sabedoria dos caminhos de Deus


A doutrina da providência, com todo o seu mistério, é, mesmo
assim, um travesseiro sobre o qual podemos repousar nossa alma
cansada.
Deus e Hitler: quem estava no com ando? 67

Hitler utilizava indistintamente os termos destino eprovidência.


Contudo, ao examinarmos o curso de sua vida, talvez ele tivesse
sido mais acurado se tivesse utilizado exclusivamente o termo des­
tino. Pois ele se entregara a Satanás, que podia prometer coisas gran­
diosas, mas que não poderia cumpri-las. E Hitler, que era sua
marionete, transmitiu essas falsas promessas ao povo alemão.
A palavra destino é mais bem utilizada na definição de um poder
limitado, que não pode garantir seu desenrolar, cujos planos e aspi­
rações podem muito bem ser frustrados. O destino sobre o qual
Hitler falava não poderia conhecer o resultado final da Segunda
Guerra Mundial; e foi esse mesmo destino que fez de Hitler vítima
das forças além do seu controle. Aquele destino poderia controlar
somente os eventos permitidos pela providência superior.
Falando mais especificamente, somente os cristãos podem re­
pousar na doutrina da providência; ou seja, o fato de que o mundo
é governado pelo Deus que é capaz de fazer com que todas as coisas
prossigam até o fim determinado. É esta providência que vê um
pardal cair no chão e sabe quantos fios de cabelo temos na cabeça.
Os cristãos não acreditam no destino com os seus becos-sem-
saída e esperanças frustradas. Quem conhece Jesus, confia que está
nas mãos do Deus que conhece o início e o fim e atua para o bem
de todas as coisas.
Nós, cristãos, nao vivemos pelo destino, mas pela fé . O destino
leva à perdição; a fé nos leva ao objetivo. “Assim acontece para que
fique comprovado que a fé que vocês têm, muito mais valiosa do
que o ouro que perece, mesmo que refinado pelo fogo, é genuína e
resultará em louvor, glória e honra, quando Jesus Cristo for revela­
do” (IPe 1.7).

SUA REAÇÃO À PROVIDÊNCIA DIVINA


Existem três reações possíveis à providência de Deus.
A primeira reação é o ateísmo. Temos deparado com pessoas que
afirmam que nenhum Deus poderia ver as atrocidades deste mundo
(p. ex., o Holocausto) e deixar de intervir. Devemos ser sensíveis a
68 A cruz de H itler

essas reações, porque é difícil entender como Deus poderia permi­


tir (e, por conseguinte, decretar) tamanha perversidade. Contudo,
o ateísmo é extremamente decepcionante; ele nao apenas afirma
que temos horríveis injustiças no mundo, mas também que a justi­
ça nunca triunfará.
Tenho um amigo judeu que não acredita em um Deus pessoal,
exatamente por causa do Holocausto. Porém, ele pareceu pertur-
bar-se quando certo dia lhe lembrei que, de acordo com o ponto de
vista dele, Hitler e seus comparsas jamais seriam julgados pelo que
fizeram. Em um mundo ateu, não apenas este mundo é injusto,
mas não há nenhum tipo de justiça. O ateísmo ensina que nosso
clamor por justiça jamais será ouvido.
A segunda reação é a raiva — a raiva vingativa contra Deus.
Devido aos terrores deste mundo, algumas pessoas ficam tão res­
sentidas com Deus que o excluíram de sua vida. Uma pessoa,
com esse tipo de raiva, disse-me: “Se existe Deus, ele deve ser o
diabo!”.
Sejamos mais uma vez honestos o suficiente para admitir que
todos já nos confrontamos com esses pensamentos. Já nos pergun­
tamos: Por que Hitler não morreu na infância, junto com seus
irmãos? Por que ele saiu do refeitório e, assim, não foi morto por
uma bomba? Por que as tentativas de assassinato falharam? Por que
Deus rubricou o memorando que, em essência, dizia: “Você tem
permissão para fazer todo o mal que planejou?”.
Essa raiva é compreensível, mas é destrutiva. Sentir raiva de Deus
é inútil; um desperdício de energia. Ninguém que expressa sua rai­
va por Deus, vence. Podemos não gostar do que ele faz, mas como
ele não nos consulta sobre como governar o universo, apenas preju­
dicamos a nós mesmos. Você não pode afundar um navio de guerra
com um revólver de brinquedo.
E pior, quem sente raiva de Deus, deixa passar a oportunidade
de ser confortado por seu amor, sua misericórdia e seu perdão. E
melhor simplesmente admitir que nao podemos penetrar no
Deus e H itler: quem estava no com ando? 69

mistério dos caminhos de Deus, do que nos afastarmos do úni­


co que pode nos ajudar. Visto que ele sabe mais do que nós e
que ele vê a eternidade, é melhor acreditar que concordaríamos
com ele se tivéssemos acesso a todos os fatos.
A terceira opção na presença do Deus que governa nosso mundo
cruel é o tremor. Em vista do fato de Deus ser tão aterrorizante, por
ter permitido que todos esses tipos de atrocidades acontecessem no
universo, devíamos nos sentir estimulados a nos preparar para
encontrá-lo frente a frente após a morte. Não é de admirar que
possamos ler na Bíblia que “terrível coisa é cair nas mãos do Deus
vivo” (Hb 10.31).
Os teólogos liberais ofereceram teorias ridículas, que ensinam
que o Deus do Antigo Testamento era um Deus cruel, ao passo que
o Deus do Novo Testamento é amoroso e gentil, e jamais manda­
ria alguém para o inferno. Podíamos responder-lhes dizendo: “Ape­
nas observe o Holocausto!”. Você não precisa acreditar na Bíblia
para ver que Deus possui uma outra faceta, que não a de seu amor
ilimitado.
Devido ao terror que ele permitiu neste planeta, já que seus ca­
minhos estão além da nossa compreensão e porque ele é santo,
deveríamos aproveitar a dádiva do seu Filho para o nosso planeta.
Somente Cristo pode nos defender da ira de Deus, que virá sobre
todos os pecadores após a morte. “Quem crê no Filho tem a vida
eterna; já quem rejeita o Filho não verá a vida, mas a ira de Deus
permanece sobre ele.” (Jo 3.36)

__________________— __________________
A história da Alemanha nazista é, na
verdade, a história do combate entre
dois salvadores e duas cruzes.
70 A cruz de H itler

O rebelde não tem nenhum conforto no fato de que nada acon­


tece no mundo sem a permissão divina. Porém, para quem pode
chamar Deus de Pai, é extremamente reconfortante saber que todas
as coisas que surgem em nosso caminho estão de acordo com a
direção da providência de Deus. Não apenas os grandes aconteci­
mentos da história, mas até mesmo os eventos mais insignificantes,
estão sujeitos à condução divina. E ele sabe como transformar o
mal em bem.
As palavras de João Calvino teriam sido reconfortantes para os
cristãos que se opuseram ao regime nazista: “Lembre-os de que o
Diabo e toda a sua corja ímpia são totalmente controlados por
Deus, que tem as rédeas nas mãos. Dessa forma, não podem tramar
conspirações contra nós; ou caso a tenham tramado, fazer os prepa­
rativos; ou se tiverem tudo planejado, mover um dedo para levar a
cabo, a não ser na medida que Deus permitir; na verdade, na medi­
da que ele ordenar”. As atrocidades do nazismo só deram aos incré­
dulos mais razoes para não acreditar; a fé dos fiéis que se apegaram
às promessas de Deus foi sustentada.
Seja no Terceiro, seja no Ultimo Reich, o Deus do universo do­
mina. Bem-aventurados os que se submetem diretamente às mãos
dele, e não às mãos das criaturas falhas a quem ele delegou autori­
dade.
A história da Alemanha nazista é, na verdade, a história do com­
bate entre dois salvadores e duas cruzes. A igreja foi forçada, certa­
mente, a escolher, pois, no fim, somente uma cruz poderia triunfar.
Continue lendo.
A religião do Terceiro ; p
Reich: ontem e hoje
CAPÍTULO TRÊS

A profecia foi tão espantosa quanto precisa.


Em 1834, cem anos antes de Hitler, um poeta chamado Heinrich
Heine avaliou a disposição de espírito na Alemanha e concluiu que
apenas a cruz de Cristo reprimia a “ânsia pela guerra” dos alemães.
A predição foi ainda mais notável pelo fato de Heine ser judeu, e
mesmo assim, acreditar que somente o cristianismo poderia aman­
sar o que ele denominava o “bárbaro prazer que os alemães sentiam
na batalha”.
Heine, que provavelmente não compreendia o porquê dos po­
deres sobrenaturais da cruz, a chamava talism ã, um objeto com
poderes mágicos que impedia a agressividade da nação alemã. E se a
cruz fosse partida, as forças da brutalidade escapariam e o mundo se
encheria de “terror e assombro”.
Leia este texto de sua avaliação, que acabou se revelando mais
precisa do que ele jamais poderia imaginar:
Caso venha a se quebrar o talismã subjugador, a saber, a cruz,
surgirá, com um rugido, a loucura frenética dos antigos campe­
ões, a insana fúria Berserker [os ferozes guerreiros escandinavos]
que é cantada pelos poetas do Norte. Esse talismã é frágil, e
virá o dia em que ele, lamentavelmente, se quebrará. Os anti­
gos deuses de pedra ressurgirão das ruínas há muito esqueci­
das e limparão a poeira de milhares de anos de seus olhos; e
72 A cruz de H itler

Thor, saltando para a vida com seu gigantesco martelo, esma­


gará as catedrais góticas.1
Essa predição naturalmente se cumpriu com a chegada de Hitler.
A cruz de Cristo foi quebrada e transformada na “Hakenkreuz” (cruz
gamada), que se tornou o símbolo do nazismo. Quando essa cruz
pagã substituiu a cruz do Redentor, os deuses pagãos abandonaram
seus esconderijos e o mundo tremeu. Thor, o antigo deus nórdico
do trovão e da guerra, levantou seu martelo e as catedrais alemãs
foram esmagadas tanto literal como simbolicamente. Se a igreja
em qualquer nação do mundo aceitar uma cruz falsificada, aconte­
cerá exatamente o mesmo fenômeno.
Hitler tinha uma grande admiração por Guido von List, que,
garoto ainda, em Viena, prometeu perante o altar na Catedral de
Santo Estêvão que ergueria um templo para o antigo deus alemão
Wotan, quando se tornasse adulto. List usava a suástica como sím­
bolo de sua religião esotérica, pois acreditava tratar-se de um víncu­
lo com uma antiga raça de sacerdotes germânicos. Esse símbolo era
também encontrado em relíquias sagradas do hinduísmo e do bu­
dismo. Ele fundou uma fraternidade secreta chamada Armanem,
que substituiu a cruz pela suástica em rituais que envolviam perver­
sões sexuais e a prática de mágica medieval.
Os membros dessa irmandade usavam a saudação H eil! (Salve!)
que mais tarde se tornaria a marca registrada do culto ao nazismo.
List era um anti-semita fanático, que se opunha aos judeus e venerava
as glórias do sangue puro da raça ariana (alemã). Antes de falecer, em
1919, predisse que haveria na Alemanha uma comunidade racial­
mente pura, que destruiria a democracia e o gueto dos judeus.2
Durante sua juventude em Viena, Hitler encontrou-se com List
e conheceu sua sociedade secreta, que prometia “revelar os segredos

'Robert G. W aite, AdolfHitler, the psychopathic god, New York: Basic Books,
1977, p. 2 61.
2Dusty S klar , Gods and beasts-, the nazis and the occult, New York: Dorset,
1977, p. 23.
A re lig iã o do T erceiro Reich- ontem e hoje 73

do universo”. Quando os nazistas de Hider foram mobilizados, ele


adotou a suástica como símbolo, após desenhar vários esboços até
escolher o de sua preferência. Ele dizia que as três cores (vermelho,
branco e preto) “formavam a mais genial harmonia existente”.
“Isso é que é símbolo!”, disse Hitler em M inha luta. “No ver­
melho, vemos o ideário social do movimento; no branco, o pensa­
mento nacionalista; na suástica, a missão da luta pela vitória do
homem ariano.”3 Apesar de a cruz de Cristo ter sido embutida no
centro das suásticas que enfeitavam as igrejas alemãs, isso não era
suficiente para Hitler. Em seus planos constava, d e fo rm a expressa,
que a suástica substituísse com pletam ente a cruz d e Cristo. O novo
messias pedia uma nova cruz.
O significado dela não pode ser compreendido sem levar em
consideração o chamado messiânico de Hitler. A nova cruz simbo­
lizava a nova religião.

0 NOVO MESSIAS
“Sigam a Hitler! Ele dançará, mas fui eu que ditei o ritmo! Eu o
introduzi na ‘Doutrina Secreta, abri seus centros de visão e lhe ensi­
nei os meios de comunicação com os Poderes. Não lamentem a mi­
nha morte: eu influenciei a história mais do que qualquer alemão.”4
Assim falou Dietrich Eckart em seu leito de morte, em 1923.
Eckart foi um dos sete fundadores do partido nazista e um
satanista dedicado, completamente envolvido com a magia negra
e a sociedade ocultistaThule. Eckart procurara um discípulo, al­
guém a quem pudesse ensinar sobre as forças espirituais, alguém
que pudesse levar a Alemanha ao vertiginoso ápice da conquista
do mundo. Ele afirmava ter recebido a “anunciação satânica” em
diversas sessões espíritas, de que estava destinado a preparar aque­
le que receberia o anticristo, o homem que inspiraria o mundo e

3W illiam L. Sh irer, The rise and fa li ofthe ThirdReich, New York: Simon &
Schuster, 1960, p. 44.
4Trevor R avenscroft, Thespearofdestiny, York Beach, Maine: Weiser, 19 8 2 , p. 9 1 .
74 A cruz de H itler

lideraria a raça ariana na conquista do mundo. Quando conheceu


Hitler, ele disse: “Eis aquele de quem eu era apenas o profeta e
precursor”.5
Após a morte de Eckart, Karl Haushofer tornou-se o mentor es­
piritual de Hitler, levando-o aos mais profundos níveis da trans­
formação mística, até que se tornasse um ser completamente
endemoninhado. Hitler transformou-se até no aspecto sexual; tor-
nou-se sadomasoquista e praticante de diversas formas de perversão
sexual. Ele se estimulava sexualmente com violência, brutalidades e
sangue. Hermann Rauschning, um amigo de Hitler, que posterior­
mente desertou para os Aliados, fez o seguinte comentário: “O ódio
é como vinho para ele, o intoxica [...] ele tinha os instintos de um
sádico que se excita sexualmente ao torturar os outros”.6
Haushofer fez várias viagens a índia e era profundo conhecedor
do ocultismo oriental. Também viveu no Japão, quando foi admi­
tido em uma sociedade esotérica budista, o Dragão Verde. Por in­
termédio desses contatos, uma colônia de lamas tibetanos se esta­
beleceu em Berlim, e quando os russos conquistaram a cidade em
1945, encontraram cadáveres de mil tibetanos em uniformes ale­
mães. Haushofer, mais que qualquer outro, incitara Hitler com a
visão da conquista do mundo.
Dessa forma, uma nova religião com uma nova cruz foi inau­
gurada; uma cruz quebrada da Antiguidade foi usada para
arregimentar as massas. Hitler declarava abertamente que tinha a
intenção de iniciar uma nova religião que realizaria o que o cristia­
nismo não conseguira viabilizar. O cristianismo, ao valorizar a
misericórdia e o perdão, enfraquecera a nação alemã. A religião de
Hitler, ao contrário, seria “a alegre mensagem que libertaria os
homens das coisas que dificultavam a vida. Já não deveríamos ter
nenhum medo da morte ou de uma consciência pesada”. Essa

5Ibid., p. 92.
6Ibid„ p. 176.
A relig iã o do T e rceiro Reich: ontem e hoje 75

nova religião recuperaria a grandeza da Alemanha, vingaria os fra­


cassos do passado e traçaria os planos de um grande futuro. Os
homens “poderiam confiar em seus instintos, e não seriam mais
cidadãos de dois mundos, mas teriam suas raízes firmadas na úni­
ca vida eterna deste mundo”.7
Hitler se ofereceu como o messias com a divina missão de salvar
a Alemanha. Em certa ocasião, ele mostrou o chicote que habitual­
mente trazia consigo para demonstrar que, “ao expulsar os judeus”,
ele se recordava “de Jesus no templo”. Afirmava que, “assim como
Jesus, eu tenho uma responsabilidade para com o meu povo”. Ele
até mesmo se gabava de que assim como o nascimento de Cristo
mudara o calendário, sua vitória contra os judeus também seria o
início de uma nova era. “O que Cristo começou”, dizia, “eu com­
pletarei”. Em seu discurso, alguns dias após ter assumido a chance­
laria, fez uma paródia do pai-nosso, prometendo que, sob seu co­
mando, um novo reino surgiria na terra e que a este seria dado
“todo poder e toda a glória. Amém”. Acrescentou que se não cum­
prisse sua missão, “então, vocês devem me crucificar”.8
Hitler fez outras afirmações que aludiam a Cristo. Se Jesus ti­
nha os seus “eleitos”, Hitler também tinha os seus. Ele prometia:
“Quem quer que proclame sua lealdade a mim, será por esta mes­
ma proclamação, e pela forma que ela for feita, um dos escolhi­
dos”. Assim como Jesus sofreu nas mãos dos judeus, os nazistas
também acreditavam estar sofrendo nas mãos desses judeus, pois
foram crucificados pela traição deles na Primeira Guerra Mundial;
porém, a Alemanha ressuscitara com vigor e esperança.
Já vimos que Hitler teve uma visão, um “chamado” místico para
a política, que deu início à sua notável trajetória. A data era muito
importante para ele, pois na época ele já estava com quase trinta anos,
a mesma idade do outro Messias que veio para salvar a humanidade.

7S k l a r , Gods a n d beasts, p. 54.


8W aite, A d olf Hitler, p. 27.
76 A cruz de H itle r

Em julho de 1937, Hider comentou: “Deus criou este povo, que


se multiplicou de acordo com sua vontade. E de acordo com a
nossa vontade [nach unserem Willen\, ele permanecerá e jamais se
extinguirá”. Ele gostava de imaginar-se não apenas como líder do
mundo cristão, mas também do mundo não-cristão que planejava
conquistar. “Eu me tornarei uma personalidade religiosa. Logo se­
rei o grande chefe dos tártaros. Já agora, árabes e marroquinos colo­
cam meu nome em suas orações.”9

Hitler pregando aos primeiros seguidores no Sterneckerbrau, cerca de 1920.


Esta pintura foi intitulada: “No princípio era o Verbo”, por Herman Otto Hoyer.

Hitler se tornou um deus para milhões de pessoas. Rudolf Hõss,


comandante de Auschwitz, declarou antes de ser executado em 1947,
que teria jogado sua esposa, filhos e até a si mesmo na câmara de gás
para depois atear fogo nos corpos, se, tão-somente, o Führer lhe ti-

9Ibid., p. 29.
A re lig iã o do Terceiro Reich: ontem e hoje 77

vesse ordenado. Grande parte da nação se encontrava sob o feitiço


de um homem que era saudado como o salvador, há muito espera­
do, de um povo que estava farto da pobreza e da humilhação.
Em um dos comícios em Nuremberg, uma gigantesca foto de
Hitler trazia os seguintes dizeres: “No Princípio era o Verbo”. O
pai-nosso foi alterado para: “Nosso pai Adolf, que estás em
Nuremberg, santificado seja o teu nome, venha o Terceiro R eich”.
Caso você não dissesse “Heil Hitler!” ao entrar em um restaurante
ou em qualquer outro comércio, não seria atendido.
Milhões de pessoas concordaram com Alfred Rosenberg, que
disse: “Venha o que vier e aconteça o que acontecer, eu acredito em
Hitler; sobre ele paira uma estrela”.10 Muito embora os ditadores
sejam normalmente odiados pela maioria, este foi adorado, obede­
cido e cultuado por quase toda a população.
Os historiadores seculares já admitem que Hitler não pode ser
explicado simplesmente como um político astuto que entrou em
cena na Alemanha, quando a nação estava pronta para a ditadura.
Allan Bullock, que escreveu uma extensa e abrangente biografia de
Hitler, enumerou diligentemente o que o Führer estudara em sua
juventude: ioga, hipnotismo, astrologia e várias outras formas de
ocultismo oriental; no entanto, Bullock ainda assim não vê qual­
quer relação entre isso e o espantoso poder espiritual de Hitler. Ele
confessa:
Pessoalmente, quanto mais aprendo sobre Adolf Hitler, mais
difícil considero explicar e aceitar o que aconteceu. De algu­
ma forma, as causas não se ajustam à magnitude dos resulta­
dos [...] E aqui, na lacuna existente entre a explicação e os
acontecimentos, que persiste a fascinação pela trajetória de
Hitler.11

10S klar, Gods a n d beasts, p. 53.


1'W aite, A dolf Hitler, p. xi.
78 A cruz de H itle r

O anticristo, como aprenderemos


posteriormente, fará com que
Hitler pareça um amador.

Bullock, obviamente, jamais descobriu o que essa “lacuna” po­


deria ser. Admitiu que Hitler, até o fim de seus dias, tinha um
extraordinário dom de magnetismo pessoal que desafiava qualquer
análise ou conclusão: “O fascínio que ele exercia sobre o público
foi comparado ao ocultismo dos curandeiros africanos ou dos xamãs
asiáticos”. Contudo, Bullock nunca viu isso como fonte do miste­
rioso poder de Hitler.
Essa “lacuna” só pode ser explicada pela familiaridade de Hitler
com os poderes satânicos, o que lhe permitia cativar as massas e dar
ao nazismo uma atração quase irresistível. Milhares de pessoas, cé­
ticas, compareciam aos comícios de Nuremberg e voltavam para
casa como devotos adoradores do Führer. Em resumo, não temos
como compreender o nazismo sem entender a “religião” do Tercei­
ro Reich.
E o que era essa nova religião? Muitas de suas crenças fundamen­
tais são amplamente aceitas nos dias de hoje, especialmente por
quem não compreende a unidade básica de todas as seitas ocultistas.
E como seria de esperar, esses ensinamentos serão a religião do fu­
turo anticristo. Trata-se de uma religião de unidade, poder, espe­
rança e milagres. Algum dia surgirá aquele que Reinhold Kerstan
chama de “Führer atualizado”. O anticristo, como aprenderemos
posteriormente, fará com que Hitler pareça um amador.
Não conseguimos deixar de nos perguntar se a igreja estava
alertando as pessoas a respeito do ocultismo satânico que varria a
Alemanha. A mentira de que o cristianismo pode ser integrado ao
misticismo esotérico de outras religiões é facilmente engolida por
quem ignora os alertas bíblicos contra um acordo como esse. O apa­
rente silêncio da igreja contra uma rebelião dessa natureza é um aviso
A relig iã o do T erceiro Reich: ontem e hoje 79

para nós que vivemos na época em que essas mesmas idéias florescem
em n osso país, ainda que de forma distinta.

A RELIGIÃO DO NAZISMO
Examinemos esses ensinamentos de forma mais detalhada. Quais
eram as doutrinas da nova religião de Hitler? Elas são similares a
outros pensamentos antigos e contemporâneos.

 transformação da consciência
Na Biblioteca Hofburg, em Viena, existe uma lança que muitos
acreditam ter sido utilizada para perfurar o lado de Cristo. Certo
dia, quando Hitler tinha pouco mais de vinte anos, ouviu por aca­
so um guia de turismo apontar para a lança e dizer para seu grupo:
“Esta lança está envolvida em um mistério; aquele que desvendar
seus segredos dominará o mundo”. Mais tarde, Hitler disse que
aquelas palavras mudaram toda a sua vida.
Hitler logo descobriria que muitas outras lanças disputavam a
duvidosa honra de ter sido utilizada para golpear o lado de Jesus.
Mesmo assim, ele se convenceu de que aquela que estava na Biblio­
teca Hofburg possuía poderes espantosos, tanto para o bem como
para o mal. Observou que todas as vezes que os reis ou imperadores
a detinham, eram vitoriosos; quando perdiam sua posse, falhavam
na batalha. Em pé, perante a lança, Hitler fez um juramento
irrevogável de seguir Satanás.
Hitler ficou observando aquele objeto durante horas, convidan­
do seus poderes ocultos a invadir sua alma. Acreditava que aquela
arma ancestral era uma ponte entre o mundo material e o espiritu­
al. Ele tinha a sensação de tê-la segurado em suas mãos em uma
época anterior.
Walter Stein, que era amigo de Hitler naqueles dias, disse que
ele ficou em pé perante a lança,
Como um homem em transe, como alguém que tivesse sido
vitima de um feitiço [...] até mesmo o espaço ao seu redor
80 A cruz de H itler

parecia embebido em uma espécie sutil de radiação, um tipo


fantasmagórico de luz ectoplásmica. [Ele] pareceu estar trans­
formado, como se algum poderoso espírito agora habitasse sua
alma, criando tanto internamente como ao seu redor, um tipo
de transformação maléfica de sua natureza e energia.12
Parado lá em Hofburg, disse o dr. Stein, Hitler experimentou
um tipo de “lapso da consciência”. Quando Hitler marchou sobre
a cidade de Viena, estava convencido de que o destino decretara
que ele deveria ser o dono da lança mágica que contemplara anos
atrás. Conforme o relato de Trevor Ravenscroft, Hitler pegou a
lança, que se tornou para ele a lança da revelação. “Eu me sentia”,
disse Hitler, “como se estivesse segurando o mundo inteiro nas
maos . 13

Se essa história lhe parecer inacreditável, deveremos recordar que


qualquer objeto dedicado a Satanás pode se tornar uma porta de
entrada para o mundo espiritual. Apesar de essa lança em particular,
provavelmente, não ter sido a utilizada para ferir o lado de Cristo,
era uma ponte utilizada por reis e imperadores para entrar em con­
tato com Satanás. Para Hitler, além de significar o antagonismo
romano em relação a Cristo, era também o caminho para a trans­
formação luciferiana.
A doutrina da alteração da consciência, tão antiga quanto o pa­
ganismo, ensina que podemos entrar em contato com inteligências
não-humanas que nos passam sabedoria e poder. Esses seres, muitas
vezes denominados “mestres de sabedoria”, estão disponíveis para
quem aceitar pagar o preço da iniciação. Os detalhes variam de
cultura para cultura, mas a mensagem é a mesma: se estivermos
dispostos a expandir nossos horizontes mentais e estabelecer contato
com os “poderes”, é possível alcançar estados alterados de consciência.
Trata-se, literalmente, de um “novo nascimento”, uma experiência

I2Apud R a v e n s c r o f t , Spear ofdestiny, p. 64.


13Ibid„ p. 9.
A relig ião do T erceiro Reich: ontem e hoje 81

esotérica de iluminação. Para pertencer ao grupo de elite dos inici­


ados é preciso passar por essa experiência.
Ainda que tenha ficado fascinado com o ocultismo oriental,
Hitler não tinha paciência para lidar com a meditação transcendental
e preferiu o caminho mais rápido das drogas, a fim de entrar em
contato com os poderes espirituais. Ele travou amizade com um
negociante de livros usados, Ernest Pretzsche, que lhe apresentou
uma droga psicodélica que produzia visões clarividentes e intensifi­
cava as percepções espirituais. Dessa maneira, ele foi capacitado a
realizar o que acreditava que o destino decretara. Mesmo os que co­
nheciam Hitler desde o princípio perceberam seus poderes ocultos.
August Kubizek, um amigo, disse:
Era como se outra entidade falasse por meio do corpo dele [...]
não se tratava de um orador entusiasmado com suas palavras
[...] eu sentia que ele mesmo ouvia emocionado e surpreso o
que brotava da própria boca.14
Após Hitler ter se juntado ao grupo que se tornou conhecido
por Partido Nazista, ele foi iniciado nos níveis mais profundos da
transformação mística. Pelos rituais e pelos pactos com forças de­
moníacas, foi transformado em um homem com um poder tão
espantoso, que os céticos, constantemente, tornavam-se fanáticos
apenas por ouvir seus discursos. E ao terminá-los, ele, muitas vezes,
desmaiava de exaustão, assim como um médium que tivesse estado
em contato com o mundo dos mortos. Era necessário algum tem­
po para que descansasse e fosse reanimado.
Hitler também acreditava na doutrina da reencarnação; uma cren­
ça que lhe seria muito útil na tentativa de exterminar os judeus (isso
será tratado no próximo capítulo). Hitler acreditava ser a reencarna­
ção de vários reis da Antigüidade, incluindo Tibério de Roma.
Contudo, ainda que concordemos que Hitler era habitado por es­
píritos malignos, ou talvez pelo próprio Satanás, somos confrontados

14Ibid., p. 3.
82 A cru z de H itler

com uma questão: E os seus milhões de seguidores? O que os tor­


nou fanáticos em seu comprometimento com as determinações do
Fübreri
Lembremo-nos que um líder demoníaco tem a capacidade de
liberar forças espirituais que influenciam outras pessoas. Como disse
Houston Chamberlain, que era o conselheiro místico do K aiser
Guilherme II: “Hitler é um despertador de almas, o veículo de po­
deres messiânicos”. Servir como canal satânico era algo particular­
mente possível em um país já impregnado de ocultismo.
A obsessão nacional com o ocultismo preparou o caminho para
a escalada meteórica de Hitler no cenário mundial. O massagista de
Heinrich Himmler afirmou que a naçao foi enredada “no misticis­
mo de um movimento político”, e que “em nenhum país tantos
milagres eram realizados, tantos espíritos eram invocados, tantas
curas pelo magnetismo eram realizadas ou o horóscopo era tão
lido”.15 Havia telepatia, sessões espíritas e experiências espirituais
de todo o tipo que camuflavam as fraudes de Hitler. Assim como o
movimento da Nova Era nos dias atuais pode muito bem estar
preparando o mundo para aceitar os milagres do anticristo, tam­
bém o ocultismo na Alemanha fez com que ficasse muito mais
difícil para que as massas percebessem o engano engendrado.
As pessoas mais próximas a Hitler eram ocultistas por decisão
própria. Rudolf Hess, que acabou tentando negociar seu próprio tra­
tado de paz com o Ocidente, passou o resto de seus dias na prisão em
Berlim, até morrer em 1987. Ainda que sua esposa não o tivesse
visto por todos esses anos, ela afirmava que eles nunca estiveram se­
parados, dizendo: “A telepatia, a astrologia e suas cartas nos mantêm
unidos [...] meu marido e eu permanecemos em contato telepático
constante [...] meu marido e eu nos comunicamos dessa forma”.16
Himmler era um ocultista devotado; assim como Rosenberg e
Goebbels. À medida que o partido nazista crescia, atraía os que

15Sklar, Gods a n d beasts, p. 3.


16Ibid., p. 72.
A relig iã o do T e rce iro Reich: ontem e hoje 83

pertenciam a diversas organizações satânicas. A cúpula nazista ex­


traía sua força diretamente do ocultismo. Porém, em uma naçáo
que já estava impregnada com essas doutrinas, milhões de outras
pessoas sucumbiram ao encantamento de Hitler.
Devemos nos lembrar que quem se submete a uma pessoa
endemoninhada, corre o risco de ser pessoalmente ludibriado e in­
fluenciado por seu líder. Curiosamente, mesmo os que discorda­
vam de Hitler acabavam envolvidos pela atmosfera e o apoiavam
de qualquer maneira. Impostores hábeis podem enganar os outros,
que a seguir se submetem a níveis diversificados de controle demo­
níaco. Dado o vácuo espiritual na Alemanha, a nação estava quase
que ávida por ser enganada.
Naturalmente, Hitler tinha de pagar pelo poder. Ninguém pode
se associar com Satanás “por um preço módico”. Rauschning des­
creve uma cena recorrente:
Ele grita por socorro [...] apossado por um poder que o faz
tremer com tanta violência que a cama chega a tremer [...] em
seu quarto ele balbucia. [...] “É ele! É ele! Ele está aqui!” Seus
lábios ficam azuis [...] Ele pingava de suor [...] Ele recebia
uma massagem e algo para beber [...] A seguir, de repente,
gritava: “Lá! Lá no canto!”.17
O anticristo, certamente, também acreditará na transformação
pessoal da consciência. Ele será posto em contato com inteligên­
cias não-humanas; os poderes especiais que o capacitarão a gover­
nar o mundo. Não sabemos quem será o seu mentor; mas sabe­
mos que será conduzido por um rígido e disciplinado processo de
demonização. Seu poder não virá de si mesmo, mas de forças
espirituais invisíveis: “Ele se tornará muito forte, mas não pelo
seu próprio poder. [...] Destruirá os homens poderosos e o povo
santo” (Dn 8.24). Como vimos no último capítulo, o anticristo

17Apud David H u n t , Peace,prosperity and tbe comingHolocaust, Eugene, Oreg.:


Harvest House, 19 8 3, p. 128.
84 A cruz de H itle r

não terá a capacidade de fazer o que fàz, sem o póder que foi
“dado a ele”.
Muitas pessoas que desprezam Hitler hoje em dia, que se orgu­
lham de condenar o nazismo, estão na verdade abraçando as mes­
mas doutrinas que tornaram o nazismo a poderosa força mundial.
Leitores perspicazes perceberão que o que é hoje popularmente cha­
mado movimento Nova Era é, na verdade, o antigo ocultismo; ou
poderíamos chamar doutrinas espirituais do nazismo, com uma
amigável fachada.
Evidentemente, nem todos os que abraçam as doutrinas da trans­
formação pessoal se tornam tão perversos quanto Hitler. Aliás, uma
pessoa poderia experimentar uma melhora pessoal, sentir-se mais
completa, mais consciente de si mesma e mais confiante no futuro.
Satanás age de formas distintas com pessoas diferentes. Se você es­
tiver em busca de paz, ele tentará dá-la; se você precisa de um con­
selho, ele fará o melhor que puder para prever o futuro e lhe dar
informações secretas por meio das estrelas ou de uma cartomante.
Se você precisa de autoconfiança ou mesmo de um milagre, ele
tentará fazê-lo também. No caso de Hitler, ele precisava de poder
para governar, e Satanás o disponibilizou.
A Bíblia proíbe qualquer tipo de contato com o mundo dos espíri­
tos por uma boa razão: os demônios se disfarçam de anjos de luz, na
tentativa de enganar tantos quantos puderem. E claro que existem
“mestres”, ou inteligências não-humanas, na expectativa de uma opor­
tunidade de entrar em contato com seres humanos. Viabilizar essa trans­
formação de consciência é exatamente o que o maligno deseja.

A divindade inerente ao homem


Desde que Adão e Eva acreditaram na promessa de Satanás — de
que se comessem o fruto da árvore proibida seriam como Deus,
pois saberiam a diferença entre o bem e o mal — os seres humanos
tentam organizar um reino rival. Ser como Deus é um pensamento
terrível. O homem é suficientemente inteligente para saber que não
é o Criador, portanto a humanidade diz: “Sim, eu sou Deus, idên­
tico à natureza; na verdade tudo é Deus e Deus é tudo”.
A relig ião do T erceiro Reich: ontem e hoje 85

Hitler confidenciou aos que lhe eram próximos que ele estava
sob as ordens de seres superiores, em uma missão especial. “Eu vou
lhe contar um segredo”, disse a Rauschning, “estou fundando uma
ordem [...] o Homem-Deus, aquela esplêndida entidade será obje­
to de adoração [...] Porém, existem outros estágios sobre os quais
não posso falar”.18 Podemos apenas especular sobre quem o proi­
bia de revelar mais detalhes.
Após ler o ignominioso livro de seu amigo Alfred Rosenberg,
intitulado The m yth o fth e tw entieth Century [O m ito do século xx\,
Hitler declarou: “A criação ainda não chegou ao fim. O homem
está se tornando Deus [...] o homem é deus em formação”.19 Joseph
Goebbels, ministro da propaganda nazista, revela o efeito hipnóti­
co que Hitler exerceu sobre ele na primeira vez que se encontraram:
Ele é o instrumento criador do destino e da divindade. Eu
tremo profundamente quando estou ao seu lado [...] eu o re­
conheço como meu líder [...] ele é tão profundo e místico como
um profeta da Antiguidade. Com um homem como esse é
possível conquistar o mundo [...] as minhas dúvidas desapare­
cem [...] a Alemanha viverá! H e il Hitler!20
Em 1941, o historiador Benoist-Mechin conheceu Hitler e de­
clarou espantado: “Seus olhos sao tão estranhos, que a princípio era
tudo o que eu conseguia ver [...] [Ele] tinha uma forma de olhar
para você, que fazia com que sentisse que algo o atraía para ele [...]
você sentia um tipo de vertigem”.21 Milhões de pessoas que o te­
miam, ainda assim o admiravam e adoravam.
Assista a alguns documentários sobre Hitler, e verá que a adora­
ção das multidões é espantosa. Se o cumprimento “Heil!” foi em­
prestado da irmandade secreta de List, a conhecida saudação nazista

I8Gerald S uster, Hitler. the ocult messiah, New York: St. Martins, 1981, p. 7 7 .
19Apud H unt , Peace, prosperity and the coming Holocaust, p. 141.
“ R avenscroft , Spear ofdestiny, p. 188.
21H u n t , Peace, prosperity and the coming Holocaust, p. 1 3 1 .
86 A cruz de H itle r

era usada para invocar o poder da terra e do solo na organização


mística Ordem do Amanhecer Dourado. Em uma entrevista, ouvi
uma mulher dizer que quando tocou na mao de Hitler, cumpri­
mentando-o passou a ser tratada como “deusa” em sua cidade natal.
Um aldeão disse que “ela apertara a mão do deus alemão”.

l r'

Hitler disse que era mais fácil acreditar


em uma grande mentira, do que em
uma mentira pequena. Assim, a maior
de todas as mentidas é afirmar que o
homem pode ser Deus.

O objetivo do anticristo, assim como o de Hitler, é ser cultuado.


No início do período da tribulação, ele fará uma aliança com Israel,
aparentemente garantindo a existência pacífica daquele pequeno,
mas importante país. Contudo, após três anos e meio, ele estará
suficientemente confiante para ir para Jerusalém e romper a alian­
ça. Ele entrará no templo (que terá sido reconstruído a essa altura),
o profanará e declarará ser Deus. Paulo o descreve como alguém
que “se opõe e se exalta acima de tudo o que se chama Deus ou é
objeto de adoração, chegando até a assentar-se no santuário de Deus,
proclamando que ele mesmo é Deus” (2Ts 2.4).
Nós podemos achar graça quando os gurus nos dizem hoje que
todos somos deuses e que, simplesmente, precisamos nos dar conta
de nosso potencial. Porém, a divindade do homem, cuja crença foi
suscitada de diversas formas no Oriente, também já começa a ser
aceita no Ocidente. Assim como a Alemanha aceitou Hitler, devi­
do ao ocultismo desmedido, outras nações também estão sendo
preparadas para um líder que afirma ser Deus. Afinal de contas, se
todos somos pequenos deuses, por que um líder carismático não
poderia ser chamado de “grande Deus”, a personificação do divino?
A relig iã o do T e rce iro R eich: ontem e hoje 87

Assim como Hitler reprimiu a adoração concorrente e pratica­


mente esmagou a igreja, o anticristo também destruirá toda oposi­
ção. O cristianismo e o judaísmo serão seus alvos especiais. Perante
ele quase todo joelho se dobrará.
Hitler disse que era mais fácil acreditar em uma grande mentira,
do que em uma mentira pequena. Assim, a maior de todas as
mentidas é afirmar que o homem pode ser Deus. Essa nova religião
aglutinará todas as outras e unirá ciência e religião. Deus será descri­
to como uma “força” ou uma “energia” impessoal. Este conceito
permitirá o surgimento de muitos deuses, desde que Satanás coor­
dene todos eles. E, com o tempo, poderemos esperar o surgimento
de uma nova teologia, que nem mesmo tentará refutar a doutrina
cristã, mas que simplesmente a ignorará.
Quando você ouve alguém que está envolvido com doutrinas
esotéricas dizer “Creio que todos somos deuses”, você está diante de
uma doutrina satânica tão antiga quanto o Éden. Os que acreditam
nisso, certamente se surpreenderiam caso alguém lhes dissesse que este
era o argumento fundamental de Adolf Hider, assim como será o de
um príncipe ainda mais poderoso que está por vir.

Visão global
O que impulsionou Hitler ao poder? A quebra do mercado de
ações de 1929, que provocou as dificuldades econômicas na Ale­
manha, foi o agente catalisador. Contudo, sem o desejo de con­
quistar o mundo, que ardia em seu peito, o Terceiro R eich jamais
teria acontecido. Ele acreditava que daria início ao Reich, ou impé­
rio, de mil anos, que com o tempo se espalharia por todo o mun­
do. Uma vez que homens como Karl Haushofer concordavam
com o mito de que os alemães (arianos) pertenciam a uma raça
superior, a nação tinha todo o direito de estender seu império e
dominar o mundo.
Hitler teve a capacidade de acender a faísca do otimismo em
uma nação devastada. Milhões de pessoas foram cativadas pela grande
idéia de um líder, com um plano para tirar a Alemanha de seu
88 A cruz de H itle r

tempo de humilhação e trazê-la de volta a seu tempo de força e


orgulho. Até mesmo os mais céticos preferiram refrear suas dúvi­
das. Como disse uma pessoa que viveu naquela época: “Embora eu
não conseguisse aceitar Hitler e soubesse que ele era louco, desejava
em meu coração fazer parte do movimento”.
A globalização sempre foi o objetivo de longo prazo das religi­
ões esotéricas. No Parlamento Mundial das Religiões, realizado em
Chicago, em 1993, seis mil delegados de todas as partes do mundo
reuniram-se para discutir a necessidade de união entre as religiões.
O pressuposto era que a fome mundial, a guerra e a injustiça eram
tão estarrecedoras, que somente a religião e o governo unificados
poderiam resolver esses problemas. Um código ético global foi for­
mulado, no qual a palavra Deus não aparece, mas a palavra Terra,
com inicial maiúscula, é amplamente utilizada. O documento diz
que não pode haver a transformação da Terra, a menos que haja a
transformação da consciência.
Para concluir, apelamos a todos os habitantes deste planeta. A
Terra não poderá ser melhorada, a menos que a consciência do
indivíduo seja transformada. Prometemos trabalhar por essa
transformação na consciência individual e coletiva; pelo desper-
tamento de nossos poderes espirituais [...] juntos podemos mo­
ver montanhas.22
Quando as pessoas estão desesperadas, normalmente procuram se
unir sob a bandeira de homens, em lugar da bandeira de Deus. Seja na
Alemanha nazista, seja em nossos dias, a cruz é posta de lado em defe­
rência a outra bandeira qualquer. O domínio do mundo é uma ambi­
ção que não morre facilmente no coração do homem.

Obsessão pelo controle


Todo ditador — do passado, do presente ou do futuro — é obce­
cado com a necessidade de manter seus subalternos sob controle.

22A global ethic, 19 9 3 Parliament o f the W orld’s Religion, p. 9.


A relig ião do T e rce iro R eich: ontem e hoje 89

Hitler mantinha os alemães marchando ao ritmo de seus tambores,


por meio de ameaças e de brutalidade. Primeiramente, pela SA (tro­
pa de assalto) e depois pela ss (tropa de elite), a nação era levada a
temer a desobediência e os pensamentos contrários. Na gigantesca
cerimônia de juramento em Munique, as tropas da SS juraram leal­
dade pessoal a Hitler. Elas cuidavam da disciplina, intimidavam e
torturavam. Qualquer um que fosse suspeito de ser cúmplice de
insubordinação era proscrito, aprisionado ou eliminado. Hitler era
completamente louco pelo controle.
Um amigo meu, que serviu no exército de Hitler, contou-me que
os soldados procuravam os fazendeiros para pedir roupas para as tropas
durante a feroz campanha na Rússia de 1941-1942. Ao ser pressionada
para fazer uma doação, uma mulher perguntou nervosa: “Por quanto
tempo isso ainda vai durar?”. Algumas horas mais tarde parou um
carro em frente à sua casa e ela foi presa, para nunca mais voltar.
Por meio de vigilância, escutas telefônicas, espionagem e recom­
pensas para quem traíam os amigos, Hitler tentava controlar os
cidadãos da Alemanha. Ele incutiu em todos os seus subordinados
o desejo obsessivo de serem obedecidos e adorados. Logicamente, o
objetivo por trás de toda magia negra é o poder, a sede de exercer o
poder supremo sobre o mundo inteiro. Em poucas palavras, era a
motivação para tornar-se Deus. Foi Lúcifer que disse que seria “como
o Altíssimo”.
Porém, Hitler não tinha a tecnologia necessária para controlar
cada súdito do seu reino. Ele se aborrecia com o fato de que havia
algumas pessoas que não o adoravam, e escapavam impunes! Algu­
mas pessoas que serviram a Hitler com o corpo, desprezavam-no
com a mente. As tentativas fracassadas de assassiná-lo eram lembre­
tes constantes de que ele era finito, incapaz de se apropriar da ado­
ração que tão ardentemente desejava.

A RELIGIÃO DO REICH VINDOURO


Existem motivos para que Hitler seja muitas vezes visto como pro­
tótipo do anticristo. A Bíblia prediz que surgirá um governante
90 A cru z de H itler

mundial na Europa, que prometerá a paz enquanto estiver se pre­


parando para a guerra. Ele hipnotizará o mundo, exigindo a adora­
ção das massas em troca do direito de comprar pão. Como Hitler,
será habitado por forças demoníacas, provavelmente pelo próprio
Satanás. As semelhanças são tão impressionantes, que Robert van
Kampen diz no livro The sign [A m arca] crer que o anticristo será
na verdade Hitler, ressuscitado dentre os mortos.23 Ainda que essa
hipótese seja improvável, ela nos lembra a aura mística que cerca o
nome de Hitler até hoje.
O anticristo se sairá melhor que Hitler. Visto que a globalização
já é um poderoso fator mundial, muitos líderes e organizações co­
operarão na solução dos problemas deste planeta. O mundo ficará
ao seu lado. Clamando por pão e por paz, o mundo desesperado
abrirá mão de seus direitos pessoais por promessas que não serão
cumpridas. Ele será de início admirado, a seguir temido e, por fim,
adorado em todo o planeta.
O anticristo realizará o que Hitler apenas sonhou. Seus poderes
para a realização de milagres serão tão grandes, que o mundo intei­
ro ficará maravilhado quando uma de suas cabeças parecer “ter so­
frido um ferimento mortal, mas o ferimento mortal [for] curado”
(Ap 13.3). Poderá ser uma tentativa satânica de imitar a ressurrei­
ção de Cristo. E funcionará, pois lemos que “todo o mundo ficou
maravilhado e seguiu a besta”.
E a respeito do anticristo, lemos: “Todos os habitantes da terra
adorarão a besta, a saber, todos aqueles que não tiveram seus nomes
escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a criação
do mundo” (v. 8). Imagine só! Hitler recebeu a adoração de mi­
lhões em um único país do mundo. O anticristo receberá a adora­
ção de bilhões em todos os países do mundo. Até mesmo as tribos
de lugares remotos e os países cujos nomes achamos difíceis de
pronunciar, o adorarão em massa.

23Wheaton: Crossway, 1992, p. 209.


A relig ião do T e rce iro Reich: ontem e hoje 91

O anticristo achará a melhor forma de exercer seu controle. Usará


a economia como arma. Lemos:
Também obrigou todos, pequenos e grandes, ricos e pobres,
livres e escravos, a receberem certa marca na mão direita ou na
testa, para que ninguém pudesse comprar nem vender, a não
ser quem tivesse a marca, que é o nome da besta ou o número
do seu nome (Ap 13.16,17).
Ele será suficientemente perspicaz para compreender o que Hider
sabia tão bem: as pessoas têm de comer para que possam viver. E as
palavras de Satanás a respeito de Jó provarão ser verdadeiras: “Um
homem dará tudo o que tem por sua vida” (Jó 2.4). Então será
criado um aparelho, que se certificará de que todos na terra, com
ou sem vontade, se curvem perante o anticristo.
Erwin Chaegaff escreveu:
Vejo o início de uma nova barbárie [...] que amanhã será cha­
mada nova cultura [...] O nazismo foi apenas sua expressão
primitiva, embrutecida e absurda. No entanto, foi o primeiro
rascunho da suposta moralidade científica ou pré-científica que
está sendo preparada para o futuro brilhante.24
Apesar de Satanás vir a conseguir o que deseja, há uma nuvem
no horizonte. Ele sabe, assim como nós, que seu tempo é curto e
seu tormento futuro muito maior. Todas as vezes que vence, na
verdade perde, pois Deus possui a palavra final. A farsa será desco­
berta e Satanás será desmascarado pela verdade sobre quem ele
realmente é — um perdedor, por toda a eternidade.
A descrição do julgamento de Hitler, do anticristo e de todos
os que se recusaram a seguir a Cristo encontra-se em Apocalipse
20.10: “O Diabo, que as enganava, foi lançado no lago de fogo
que arde com enxofre, onde já haviam sido lançados a besta e o

24ApudTexeMARRS, A íégtí/m :«, Austin, Tex.: L iving Faith, 1988, p. 24.


92 A cruz de H itler

Adolf Hitler deixando uma igreja em 1931. Dois anos mais tarde Hitler
tornou-se chanceler e agiu para controlar as igrejas alemãs. Ele até
distribuiu esta foto, como parte de seus esforços para obter apoio.
A relig ião do T e rce iro Reich: ontem e hoje 93

falso profeta. Eles serão atormentados dia e noite, para todo o


sempre”.
Uma vez que esse julgamento ainda ocorrerá, devemos pergun­
tar: Onde Hitler está? Ele cometeu suicídio em seu abrigo em
Berlim. Conforme instruções, seu corpo foi queimado, possivel­
mente para não ser reconhecido. Porém sua alma sobreviveu ao tiro
e às chamas. Hoje ele está consciente; sua memória está mais aguçada
que durante um comício ao meio-dia em Nuremberg. Seus senti­
dos estão operantes; ele está sendo castigado por suas ações perver­
sas. Sua vontade, no entanto, permanece resoluta e sua determina­
ção de opor-se a Deus é firme (mesmo que tivesse mudado de idéia,
isso não afetaria seu destino eterno).
Cristo abriu a cortina e nos deixou dar uma olhada no Hades, o
lugar onde as almas dos incrédulos aguardam o julgamento final.
Certo homem rico estava sendo atormentado naquele lugar e cla­
mou: “Pai Abraão, tem misericórdia de mim e manda que Lázaro
molhe a ponta do dedo na água e refresque a minha língua, porque
estou sofrendo muito neste fogo” (Lc 16.24). Hitler, hoje, tam­
bém sente essa chama. É uma prévia do que está por vir.
Por fim, Hitler também será julgado e lançado no lago de
fogo juntamente com o dragão, a besta e o falso profeta. Terá
sido revelado que toda religião demoníaca é falsa, enganadora e
fraca. E toda língua confessará que Cristo é o Senhor, para a gló­
ria de Deus Pai. Deus comprovará que o homem não pode gover-
nar-se; todas as tentativas de tomar o cetro do Todo-Poderoso
foram tolas e inúteis.

UM ALERTA À IGREJA
A partir de meus estudos, cheguei à conclusão de que a igreja na
Alemanha estava muito preocupada com os problemas nacionais,
para enxergar o que acontecia diante de seus olhos. A religião do
sangue e do solo havia substituído a religião da humildade e da
oração. Apesar de estar sobrecarregada com o desemprego e as
adversidades materiais de seu povo já abatido, a igreja, em sua
94 A cruz de H itler

maior parte, ainda se recusava a arrepender-se e voltar-se comple­


tamente para Deus.

A igreja se equilibrou entre duas cruzes,


pois queria ser leal a ambas, mas
descobriu que nenhuma delas
poderia tolerar a outra.

A cultura popular alemã, com seus mitos sobre a raça e o ocul­


tismo, prosperou no lugar dos sólidos ensinamentos bíblicos e da
oração. A igreja negligenciou o fato de que a luta contra o nazismo
não era fundamentalmente política, mas espiritual. A igreja confun­
diu os benefícios temporais da suástica, com os benefícios espirituais da
cruz d e Cristo. Querendo acreditar que Hitler era a resposta, esque­
ceu quais eram as questões verdadeiramente importantes.
Paulo alertou os presbíteros de Efeso:
Cuidem de vocês mesmos e de todo o rebanho sobre o qual o
Espírito Santo os colocou como bispos, para pastorearem a
igreja de Deus, que ele comprou com o seu próprio sangue.
Sei que, depois da minha partida, lobos ferozes penetrarão no
meio de vocês e não pouparão o rebanho (At 20.28,29).
Os lobos, conforme aprenderemos, entraram no rebanho ale­
mão. A igreja se equilibrou entre duas cruzes, pois queria ser leal a
ambas, mas descobriu que uma não poderia tolerar a outra. A igreja
fe z as pazes com um inim igo contra o qu al deveria estar em guerra.
Chamada para vigiar e proteger, ela tolerou, a seguir, cumprimen­
tou e, logo após, se submeteu a ele.
Heinrich Heine estava certo: Quando a cruz de Cristo foi que­
brada, o mal irrompeu com toda a fúria. Ninguém sentiu o ataque
mais do que os judeus, que eram o alvo da “solução final” de Hitler.
A relig iã o do T e rce iro Reich: ontem e hoje 95

Lamentavelmente, até mesmo nesse momento, a igreja simples­


mente não viveu à altura do seu chamado.
O anticristo também terá seu programa de extermínio, mas Cris­
to, o judeu perfeito, o Leão da tribo de Judá, não deixará seu povo
ser destruído. A cruz de Cristo, no final, destruirá todas as outras.
Passemos agora a essa história enigmática e intrigante.
0 anti-semitismo do ,

Terceiro Reich ____


CAPITULO QUATRO

“Eu não considero os judeus animais, pois eles estão tão distantes
dos animais como os animais estão dos humanos [...] Por conse­
guinte, não é um crime exterminá-los, visto que eles não perten­
cem à raça humana.”1
Dessa forma, Adolf Hitler criou as novas leis que despojariam os
judeus de sua condição de seres humanos. Essa declaração de que eles
eram inferiores aos animais foi o aval que Heinrich Himmler neces­
sitava para utilizar a ss para exterminá-los. As tropas da ss, portanto,
passaram a ter liberdade para matar sem infringir nenhuma lei; ou
seja, estavam livres para exterminar, sem cometer assassinato. Nin­
guém seria julgado por envenenar parasitas, pois toda a imundice da
terra devia ser removida para que ela pudesse ser povoada por quem
possui sangue humano nas veias.
Com esse truque verbal, o homem que matava crianças de fome
dizendo que as estava “pondo sob uma dieta de baixas calorias” assas­
sinava agora judeus e chamava essa matança “limpeza da terra poluí­
da”. O mesmo acontece no caso dos defensores do aborto, que cha­
mam o feto de “produto da concepção”, em que a linguagem é mali­
ciosamente manipulada por quem deseja dessensibilizar a consciência
e promover os valores humanistas. Se dissermos que o mal é bom,
então ele se torna bom — pergunte a Adolf Hitler!

'Trevor R a v e n s c r o f t , Thespearo f destiny,YorkBeadi, Maine: Weiser, 1982, p. 251.


98 A cruz de H itler

O Terceiro Reich não pode ser entendido sem que examinemos a


doutrina racial: a crença de que somente por meio da linhagem pura
a humanidade pode alcançar sua legítima divindade. Hider, com uma
boa dose de cinismo, combinava o racismo do compositor Richard
Wagner, a teoria da evolução de Charles Darwin e os mitos sobre o
sangue, oriundos do ocultismo oriental. Inventou uma doutrina que
lhe permitisse descarregar sua fúria contra os judeus, pois tinha o
propósito de exterminá-los da face da terra.
Hitler costumava dizer “quem quiser compreender o nacional-
socialismo alemão, deve conhecer Wagner”. Wagner, com suas óperas
que festejavam os heróis alemães e as guerras, juntamente com deu­
ses pagãos e demônios, era um anti-semita radical. Esse homem de
talento desconcertante, afirmava que Jesus Cristo nascera de estir­
pe ariana (alemã), conforme uma revelação que tivera. Não se
tratava do Cristo judeu do Novo Testamento, mas de um Cristo
que derramara sangue ariano e que lideraria a Alemanha de volta à
grandeza que era sua por direito.2 Em sua obra Canção dos nibelungos,
Wagner pedia o despertar do Volk (povo) alemão. E na apoteose
chamada Crepúsculo dos deuses, ele dramatizava o conflito por meio
do qual a Alemanha, já desperta, passaria a dominar. Wagner criou
o termo “solução final” muito antes que se tornasse a política oficial
de Hitler.
De passagem, devíamos assinalar que existiram muitos cristos
ao longo da história. Já no Novo Testamento, João alertava sobre
os vários anticristos de sua época (ljo 2.18). Paulo condenou os
que pregavam outro Jesus (2Co 11.4) e outro evangelho, afirman­
do que eles deviam ser “amaldiçoados” (G11.9). Wagner, na verda­
de, cultuava Lúcifer sob a aparência do cristo ariano que odiava
intensamente os judeus. Não é de admirar que Hitler adorasse
Wagner e que, mesmo quando o Terceiro Reich já estava chegando
ao fim, ele recordasse muitas vezes as influências que Wagner tivera
em sua vida.

2Ibid., p. 29-30.
0 anti-sem itism o do Terceiro Reich 99

Hitler também adotou a teoria da “sobrevivência do mais adap­


tado” de Charles Darwin, e asseverava que o homem tinha o direito
de ser “tão cruel quanto a natureza”. Palestras pormenorizadas eram
dadas nas escolas e para as tropas da SS, a fim de comprovar a infe­
rioridade dos judeus. Crânios de arianos e de judeus eram compa­
rados para provar cientificamente que estes eram definitivamente
inferiores. Somente os mais “mais adaptáveis ao ambiente” tinham
o direito de sobreviver.
Nenhum evento na história moderna nos fez refletir tanto quanto
o Holocausto. A monstruosidade dos números, assim como a fla­
grante e desumana crueldade, deixa estupefata a mais tranqüila ima­
ginação. As pessoas que visitaram os campos de concentração na
Europa tentaram por um ínfimo instante absorver o horror. Mas
eu, pelo menos, tentei me esforçar o máximo que pude para sondar
o que parece ser insondável. Os Museus do Holocausto, existentes
em Israel e Washington, nos fazem encarar a extensão dos crimes
cometidos, mas, ao sair, ainda sentimos que não tratamos de forma
adequada essa parte da história.
O que me faz compreender o Holocausto são as histórias pesso­
ais: a carta que li no museu de Buchenwald, escrita por uma mãe ao
filho, dizendo que aguardava ansiosamente sua volta, sem saber
que ele já havia sido brutalmente assassinado. A imagem de uma
criança com uma casca de pão, dizendo a um guarda que estava
guardando seu tesouro especial para a “mamãe”, sem saber que ja­
mais a veria novamente. As fotografias de guardas espancando pri­
sioneiros esqueléticos, que, apesar de estarem praticamente nus,
eram forçados a carregar pedras no inverno. E fileiras de calçados
infantis: uma lembrança dos milhares de pequeninos torturados
até a morte com violência demoníaca.
Converse com os judeus, e muitos deles lhe dirão que não há
vantagem em ser o povo eleito. Os nao-eleitos, apesar de todas as
suas provações, parecem ter sido mais abençoados. Os eleitos pa­
recem ser os amaldiçoados. Junto com a honra de terem sido es­
colhidos por Deus para serem abençoados, seguiram-se séculos de
100 A cruz de Hitler

pranto e perseguição. E, como veremos, há muito mais ainda para


acontecer.
Caso os judeus gostem ou não, e caso os não-judeus gostem ou
não, o povo judeu é efetivamente o povo escolhido. Observe as
palavras do próprio Deus: “Pois vocês são um povo santo para o
S e n h o r , o seu Deus. O S e n h o r , o seu Deus, os escolheu dentre
todos os povos da face da terra para ser o seu povo, o seu tesouro
pessoal” (Dt 7.6). Os judeus, apesar de seus erros, são o povo por
meio do qual Deus escolheu abençoar o mundo. Abraão não era
judeu quando Deus se revelou a ele, mandou-o abandonar a famí­
lia e lhe disse:
Farei de você um grande povo, e o abençoarei. Tornarei fa­
moso o seu nome, e você será uma bênção. Abençoarei os
que o abençoarem e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem; e
por meio de você todos os povos da terra serão abençoados
(Gn 12.2,3).
A aliança de Deus com Abraão se mostra incondicional; ou seja,
depende inteiramente da fidelidade de Deus. Em Gênesis 15, essa
aliança é confirmada quando Deus caminha sozinho por entre as
carnes partidas, durante o sono de Abraão. Dessa forma, Deus esta­
va “jurando por si mesmo” que os termos do acordo seriam cum­
pridos (Gn 15.12-21). Jacó, neto de Abraão, teve doze filhos. Um
deles se chamava Judá, que deu origem ao gentílico ju d eu .
Os não-judeus são herdeiros da bênção unicamente por causa da
generosidade de Deus; pois nós fomos enxertados na “oliveira”, con­
forme a analogia de Paulo. Israel não aceitou o Messias, então nós,
os gentios (não-judeus), nos tornamos beneficiários do amor e do
afeto de Deus. Porém, Deus ainda não terminou sua obra com
Israel. Muitos dentre nós acreditam que, no fim, Deus ainda cum­
prirá sua aliança com eles, como nação.
Antes de passar pelas quatro fases da perseguição aos judeus,
devemos fazer uma pausa para advertir sobre os que se aprovei­
tam dessa terrível tragédia para promover suas causas. Nos EUA, a
0 anti-sem itism o do Terceiro R eich 101

comunidade homossexual radical divulga, constantemente, a his­


tória de que os homossexuais estavam entre as vítimas do Holocausto
perpetrado pelos nazistas. Assim, os que são contrários a que os
direitos dos homossexuais sejam impostos à sociedade são equipa­
rados a Hitler, que perseguiu cruelmente suas vítimas. O vínculo
entre a imagem de Hitler e os que poderiam se opor às leis especiais
favoráveis aos homossexuais é completamente artificial; entretan­
to, é tentador tirar proveito dessa associação.
Os ativistas dos direitos dos homossexuais têm organizado pro­
testos nos museus de Israel e de Washington, afirmando terem sido
ignorados pelos memoriais. Essa tática segue a estratégia proposta
em um ensaio que aconselha os homossexuais a “se caracterizar como
vítimas, e não como desafiadores agressivos do sistema”. Os auto­
res afirmam que “em qualquer campanha para persuadir a opinião
pública, os homossexuais devem transmitir a imagem de vítimas
que precisam de proteção, de forma que os heterossexuais fiquem
propensos, instintivamente, a assumir o papel de protetores”.3
A extensa pesquisa levada a cabo por Kevin E. Abrams revelou
que apesar de os homossexuais terem sido postos em campos de
concentração, eles jamais foram designados como uma classe de
indivíduos a ser exterminada; além do mais, o tratamento deles era
melhor que o da maioria das outras vítimas dos campos de concen­
tração. Dois anos após a vitória de Hitler, o termo “antinatural” foi
removido da definição de homossexualidade no Código Criminal
da Alemanha. Até mesmo o historiador homossexual Jonathan Katz
relata que, embora a polícia detivesse repetidamente os atores ho­
mossexuais e os artistas envolvidos em sodomia, eles não eram en­
viados para a prisão.
Na verdade, seria estranho se os nazistas tivessem escolhido os
homossexuais para ser especialmente perseguidos, uma vez que o pró­
prio movimento nazista era repleto de integrantes com vários tipos de
perversões sexuais. O historiador Samuel Igra afirma que no início a

3Citação extraída da obra de Kevin A brams, The Lambda Report, Aug. 1994, p. 8.
102 A cruz de H itler

Sala de jantar do alojamento da Leibstandarte, a guarda pessoal de Hitler,


formada por tropas da ss. A legenda sob a águia diz:
“Nossa fé continua sendo o desejo do Führef'.
0 an ti-se m itism o do Terceiro Reich 103

organização dos “camisas-pardas”, de Hider, era exclusivamente com­


posta de homossexuais e bissexuais. O secretário pessoal de Hitler,
Rudolf Hess, era um bissexual conhecido nos círculos homossexu­
ais como “Frãulein [senhorita] Anna”. O homossexualismo preva­
lecia tanto no círculo íntimo de Hitler como entre as tropas da ss,
e os garotos da Juventude Hitlerista eram reunidos para participar
de orgias sexuais.4 Logicamente, Hitler se posicionava contra os
homossexuais, assim como se posicionou contra os ocultistas, em­
bora ele mesmo fosse um dedicado satanista.
Seria um erro imaginar que somente os judeus morreram nos
campos de concentração. Hitler utilizava suas câmaras de tortura
contra qualquer um que considerasse inimigo. Embora a imensa
maioria dos que morreram era formada de judeus, eles foram acom­
panhados por uma mistura de comunistas, intelectuais, líderes reli­
giosos e quaisquer outras pessoas de quem os soldados da ss não
gostassem. Centenas de milhares de russos e poloneses foram exe­
cutados juntamente com prisioneiros políticos de outras nacionali­
dades. O extermínio dos judeus, entretanto, era o mais precioso
objetivo de Hitler. Em consonância com o sonho de Wagner, essa
era a “solução final”.

---------------------------- : t ' ---------------------------


Uma cruz repousa contra um fundo
preto, para relembrar o triste fato de
que milhões de judeus sofreram sob a
cruz que deveria ser o símbolo de
perdão e reconciliação.

Nas páginas seguintes, exploraremos o ódio pelos judeus. Ape­


sar de ter sido aperfeiçoado por Hider, não foi ele quem o iniciou.

4Ibid., p. 9.
104 A cruz de H itler

Os cristãos muitas vezes se impacientam com os judeus por sua com­


pleta rejeição de Cristo. E difícil para os cristãos conseguir compreen­
der o porquê de muitos judeus descartarem Cristo de forma peremp­
tória e se recusarem, com freqüência (embora nem sempre), à discus­
são séria sobre Jesus como Messias. Por sermos gentios, esquecemos
que Cristo é lembrado como um inimigo dos judeus. Uma mulher
judia disse a alguns de nós durante um estudo bíblico que, quando
pesquisava sobre Deus, tinha receio de estudar o Novo Testamento,
pois poderia constatar que ele era verdadeiro. Ela, muitas vezes, orava:
“O Deus, que venha a ser qualquer um, exceto Jesus!”.
Junte-se a mim na viagem pelas quatro fases da história judaica,
que chegará ao ápice com o retorno de Cristo. Prepare-se para algu­
mas surpresas ao longo do caminho.

O CRISTIANISMO E O JUDAÍSMO
Venha comigo à cidade alemã de Wittenberg, que ficou famosa
devido a Martinho Lutero, o reformador. Ao entrar na cidade, ve­
mos a imponente igreja do castelo, onde Lutero pregou suas 95
teses. Ele está sepultado logo abaixo do púlpito, no interior da igre­
ja, a cerca de quatro metros e meio de seu amigo, Melâncton.
Quando atravessamos a praça central, chegamos à igreja da cidade
onde Lutero pregava o Evangelho para o povo comum de Wittenberg.
Contudo, se você der a volta, até a parte posterior da igreja, e voltar
seus olhos para o ponto onde o telhado se encontra com a parede,
verá a imagem de um porco em relevo; uma escultura com aproxi­
madamente um metro de comprimento por meio metro de altura.
Esse porco, segundo o que aprendi enquanto liderava um grupo
em uma excursão pelos locais da Reforma, é um judensau (um “por­
co judeu”) feito para irritar os judeus e comemorar sua expulsão de
Wittenberg em 1305. Há uma inscrição em hebraico na qual se lê:
Rabine Schem Ha M phoras* [sic] que significa “Grande é o nome

*A expressão hebraica shem hameforash significa “o nome único” (“proeminen­


te”). É a designação judaica do caráter impronunciável do nome divino. (N. do R.)
0 anti-sem itism o do Terceiro R eich 105

daquele que é bendito”. Essa frase era usada pelos judeus para se
referir a Deus, uma vez que acreditavam que o nome divino não
deveria ser pronunciado. Agora, essas palavras são usadas para se
referir a eles com sarcasmo, pois os vinculam depreciativamente a
um porco, o mais profano dos animais, de acordo com os judeus!
Nosso grupo de turismo olhou para cima com desgosto, pois
não concebiam como um símbolo de ódio como aquele fora colo­
cado em uma igreja cristã. Nossa tristeza arrefeceu um pouco, quan­
do notamos um memorial no chão, datado de 1988, que era, na
verdade, uma retratação pelo que acontecera muitos anos atrás. Uma
cruz repousa contra um fundo preto, para relembrar o triste fato de
que milhões de judeus sofreram sob a cruz que deveria ser símbolo
de perdão e reconciliação. Sua tradução é a seguinte:
O difamado “Schem Ha Mphoras”,
O verdadeiro nome de Deus
Que, mesmo antes do aparecimento do cristianismo,
Os judeus já consideravam indizivelmente sagrado.
Sob o símbolo da cruz,
Este nome morreu com seis milhões de judeus,
Que o carregavam em seu íntimo.
Em Salmos 130.1 podemos ler: “Das profundezas clamo a ti,
S e n h o r ” . E assim, cinqüenta anos após a K ristallnacht (N oite dos
Cristais, assim denominada devido aos vidros estilhaçados, quando
os estabelecimentos comerciais dos judeus foram saqueados por
toda a Alemanha), a igreja humildemente reconheceu que pecou,
ao ridicularizar e perseguir os judeus.
E o que dizer de Lutero? William Shirer, no clássico The rise
a n d fa li o f tbe T hird R eich [Ascensão e queda do Terceiro Reicb\,
denomina o grande reformador um “extremado anti-semita”.
Lutero chamava os judeus de “venenosos”, “vermes amargos” e
“gentalha repugnante”. Em 1543, já próximo da morte, escreveu
três panfletos contra os judeus. Durante quatro séculos, suas pa­
lavras foram muitas vezes citadas por judeus para comprovar que
106 A cruz de H itler

Cristo não podia ser um amigo. Leia o conselho de Martinho


Lutero sobre como tratá-los:
Em primeiro lugar, incendeiem suas sinagogas ou escolas, en­
terrem e cubram com lama tudo o que não pegar fogo, de
forma que nenhum homem jamais volte a ver uma pedra se­
quer ou as cinzas do que havia. Isso deve ser feito para a honra
de nosso Senhor e da cristandade [...] Em segundo lugar, acon­
selho que suas casas sejam demolidas e destruídas [...] Em ter­
ceiro lugar, aconselho que todos seus livros de oração e ensinos
talmúdicos lhes sejam tomados, pois neles idolatrias, menti­
ras, maldições e blasfêmias são ensinadas. Em quarto lugar,
aconselho que seus rabinos sejam proibidos de ensinar daqui
por diante, sob pena de perder a vida ou um dos membros do
corpo. Em quinto lugar, aconselho que o salvo-conduto para
transitar pelas estradas seja abolido definitivamente para os
judeus [...] Em sexto lugar, aconselho que a usura lhes seja
proibida, e que todo o dinheiro e tesouros de prata e de ouro
lhes sejam tomados e mantidos sob custódia.5
Lutero, como você pôde fazer isso?
Em M inha luta, Hitler elogiou Lutero como o grande reformador,
alguém que merecia ser admirado como Frederico, o Grande, e
Richard Wagner. Porém, infelizmente, Hitler não admirava Lutero
por ele ter exposto o Evangelho, assim como não o admirava por
ter anunciado que a salvação só pode ser alcançada por intermédio
de Cristo e unicamente pela fé. Em vez disso, ele o via como um
homem de coragem que se opôs à igreja e, sem dúvida alguma,
como um homem que odiava os judeus. No entanto, podemos ter
certeza de que se Lutero tivesse vivido na época de Hitler, ele não
apenas teria se oposto ao ódio contra os judeus motivado pelo

5Luther’s work, trad. Martin H. Bertram, Philadelphia: Muhlenberg, 1962,


vol. 47, p. 268-72.
0 anti-sem itism o do T erceiro R eich 107

racismo, mas também teria denunciado Hitler como o anticristo.


E uma pena que Hitler não tenha visto o outro lado de Lutero, um
homem que, apesar de todas as suas falhas, compreendia o signifi­
cado da cruz de Cristo. Hitler só compreendia o significado da pró­
pria cruz.
Nos últimos dias de Lutero, quando a doença e a irritabilidade
da idade já se manifestavam, ele disse muitas coisas que melhor
seria se não as tivesse dito. Lutero sempre se expressou com uma
linguagem pitoresca e condenatória, qualquer que fosse seu alvo,
quer o papado, quer os anabatistas, quer os judeus.
É desnecessário mencionar que seus comentários eram deprecia­
tivos e anticristãos. Porém, devemos a ele o fato de compreender o
contexto de suas observações. Eis algumas das palavras que escre­
veu, em um momento anterior, em que culpava a incredulidade
dos judeus pelos fracassos do cristianismo medieval. Quem dera
ele tivesse repetido esses comentários no fim de sua vida:
Devem os na verdade, com oração e tem or a Deus, exercitar
apaixonada compaixão para com eles [os judeus], procurando
salvar alguns deles das chamas. Não ousaríamos buscar v in ­
gança. A vingança, mil vezes maior que a que pudéssemos de­
sejar, já está sobre eles.6

O que teria ocasionado essa mudança de atitude? O fato de


Lutero ser incrivelmente ingênuo. Ele realmente imaginava que uma
vez que o Evangelho fosse pregado, os judeus, em massa, aceitari­
am Jesus como seu Messias. Por não terem dado nenhum sinal de
que se converteriam ao cristianismo, Lutero se voltou furiosamen­
te contra os judeus.
Por mais indesculpáveis que fossem suas observações, devemos
ter em mente duas coisas. Sua animosidade era religiosa e não racial.
Não há nada em seus escritos sobre a pureza do sangue, mas sim
sobre a pureza da doutrina. O fato de os judeus rejeitarem a Cristo
o deixava furioso. Quanto aos comentários sobre a riqueza que

6Ibid., vol. 45, p. 229.


108 A cru z de H itler

possuíam, ele acreditava que a tinham obtido ilegalmente, pela usura,


e que por isso devia ser confiscada e posta em um fundo para os
“judeus crentes”. Contudo, na raiz da sua argumentação estava o
conceito medieval de que a igreja tinha a obrigação de odiar os que
odiavam a Cristo. Os judeus — os “assassinos de Cristo” — torna­
ram-se assim o alvo de sua fúria e perseguição.
Em segundo lugar, não devemos nos esquecer de que Lutero
viveu em uma época em que a liberdade religiosa era considerada
contrária à ordenança de que a terra deveria ser governada segundo
a verdade da Bíblia. Desse modo, não havia liberdade religiosa como
a que conhecemos nos regimes democráticos. Os católicos persegui­
am os protestantes e, sempre que possível, os protestantes revidavam.
Os hereges eram afogados ou queimados em estacas, e os judeus eram
perseguidos por serem os maiores de todos os “hereges”.
Ao fustigar os judeus, Lutero estava seguindo as pegadas de ou­
tros famosos líderes cristãos. Justino Mártir, na obra D iálogo com
Trifão, escreveu que as adversidades dos judeus eram uma punição
divina, assim como “as tribulações lhes eram justamente impostas
devido ao fato de terem assassinado o Justo”.
Agostinho acusava os judeus de serem culpados pelo sangue de
Cristo e de serem “amaldiçoados pela igreja”. João Crisóstomo,
entre os anos de 386 e 387, pregou oito sermões nos quais depreciava
a religião e os costumes judaicos. “Deus sempre odiou os judeus.”
“Todos os cristãos têm o dever de odiar os judeus.” Na Idade Mé­
dia, os jüdeus eram assassinados pelos cruzados em seu caminho
para a Terra Santa.
Você provavelmente conseguiu visualizar o quadro. Nao é de
admirar que o povo judeu, hoje em dia, se recuse a examinar aten­
tamente os méritos de Jesus e ore: “O Deus, que venha a ser qual­
quer um, exceto Jesus!”. Eles crêem que aceitar Jesus como o Mes­
sias não é apenas renegar a religião judaica, mas também sua heran­
ça, família e cultura. Aceitar Cristo é abraçar o inimigo.
Pode-se ler no Chicago Tribune, de 14 de novembro de 1994, a
seguinte manchete: “Luteranos repudiam publicamente seu funda­
dor”. Várias centenas de luteranos da área de Chicago se reuniram
0 anti-sem itism o do Terceiro Reich 109

para repudiar os escritos anti-semitas de Martinho Lutero. Lidera­


dos pelo bispo da Evangelical Lutheran Church of America [Igreja
Evangélica Luterana da América], eles caminharam até uma sinago­
ga próxima para uma cerimônia conjunta em que comemorariam a
declaração de repúdio. “Partilhamos da culpa dos que, sob o nome
de Martinho Lutero, caluniaram e difamaram o povo judeu [...]
Caso tenhamos falado e matado, ou se permanecemos em silêncio
enquanto outras pessoas difamavam e matavam, nós, mais uma
vez, crucificamos nosso Senhor”, disse o pastor.
Devemos elogiar a Igreja Evangélica Luterana da América pela
coragem demonstrada ao tomar essa atitude para com a comuni­
dade judaica. Quase todos os judeus com quem já conversei cita­
ram as declarações de Lutero como mais uma razão para nao po­
der aceitar o cristianismo. Nós devemos desculpas ao povo judeu
pelo que foi dito e feito a eles em nome de Cristo. Fomos chama­
dos a amar os judeus, reconhecê-los como o povo escolhido de
Deus e, a despeito de seus erros, vê-los como um povo amado
por Deus.
O melhor que posso fazer é citar o Lutero da época em que
falava mais como cristão: “Se alguns deles [os judeus] se mostrarem
obstinados, e daí? Afinal, nós também não somos todos bons cris­
tãos”. Podemos apenas especular sobre como a postura dos judeus
poderia ser tão diferente, se essa fosse a única citação de Lutero e se
ele tivesse proclamado: “Aquele que for antijudeu, é também
anticristão”.
Temos uma dívida para com os judeus que jamais poderá ser
quitada. A Bíblia que portamos é um livro judeu, pois como disse
Paulo: “... aos judeus foram confiadas as palavras de Deus” (Rm 3.2).
Eles nos deram o Salvador, o Messias, que nos lavou de nossos
pecados com o seu sangue.
E por isso nós seremos eternamente gratos a eles.

0 JUDAÍSMO E 0 NAZISMO
Com o nazismo, o ódio pelos judeus adquiriu novos contornos.
Em vez da perseguição religiosa, surgiu uma nova perseguição,
110 A cru z de H itler

fundamentada em uma doutrina sobre a raça ou o sangue. Teorias


sobre a estratificação racial e o sangue sobejavam na Alemanha muito
antes de Hitler tomar o poder, mas ele é lembrado como quem as
usou na vã tentativa de fundar um império.

O mito da pureza racial


Um dos mais interessantes colaboradores para o mito da superiori­
dade racial foi Houston Chamberlain, sobrinho de Sir Neville
Chamberlain. Aos 27 anos mudou-se para a Alemanha, tornando-
se genro do compositor Richard Wagner, e publicou um livro
intitulado Thefoundations o fth e nineteenth century [O sfundam entos
do século xrx] , que o lançou vertiginosamente para a fama. Retirei
essa obra de dois volumes da biblioteca para examiná-la, mas con­
siderei seu texto pesado, repetitivo e extravagante.
No livro, ele combina a teoria de Wagner sobre a raça superior
— a ariana —, com a teoria da super-raça de Nietzsche. Chamberlain
acreditava que a “raça superior” poderia ser criada; mas que, na ver­
dade, esta já existia entre o povo da Prússia (o poderoso Estado que
unificou os povos de língua alemã). “Assim como uma pérola pode
crescer pelo estímulo artificial, também a mente alemã deve guiar
os povos arianos à supremacia racial e à dominação do mundo.”7
A respeito de Cristo, Chamberlain só escreveu o que poderia
agradar ao coração de seu famoso sogro: “Quem afirmou que Jesus
era judeu, ou era estúpido ou estava mentindo [...] Jesus não era
judeu, era ariano”. O cristianismo, afirmava, só poderia ser apreci­
ado pela raça ariana. Ela não havia perdido sua superioridade pelas
leis naturais, mas poderia ser ainda mais forte, por intermédio da
reprodução apropriada.
Até mesmo Chamberlain estava despreparado para a espantosa
recepção que o livro receberia. Ele logo se tornaria o adivinho parti­
cular do Kaiser Guilherme li, o líder da Alemanha durante a Primei­

7C itação extraída da o b ra de R a v e n s c r o ft, Spear o f destiny, p. 116.


0 anti-sem itism o do T erceiro R eich 111

ra Guerra Mundial. O Kaiser lhe disse: “Foi Deus quem enviou seu
livro para o povo alemão e você, em pessoa, para mim”.8
Chamberlain relatou que era guiado por demônios e que a maio­
ria de seus textos eram feitos quando estava em transe. Dizia que
nunca sabia quando seu corpo seria tomado pelos espíritos que o
guiavam em seu trabalho. Em alguns momentos tornava-se mé­
dium e se comunicava com os mortos, de quem recebia mensa­
gens. Aparentemente, não percebia que essas entidades não eram
humanas; e como todos os médiuns, estava em contato com espí­
ritos malignos que fingiam ser pessoas falecidas.
Quando a Alemanha foi derrotada na Primeira Guerra Mundial,
Chamberlain ficou pasmado e amargamente desapontado. Afinal,

0 Führer e o Marechal de Campo Hermann Gõring passeiam por uma


das cidades da região dos Sudetos, no início da ocupação
alemã dessa região na Checoslováquia.

"Ibid.
112 A cruz de H itler

fora ele quem encorajara o Kaiser Guilherme II a entrar na guerra,


assegurando-lhe que a raça ariana estava destinada à vitória. Porém,
anos mais tarde, quando Chamberlain encontrou-se com Hitler,
ficou estupefato. Chamberlain lhe escreveu uma carta no dia se­
guinte:
A m inha fé no arianismo não vacilou em nenhum m omento
[...] com um único golpe você transform ou a situação de m i­
nha alma. O fato de a Alem anha em seu m om ento de maior
dificuldade ter dado à luz a um Hitler, prova sua vitalidade.
Que Deus o proteja!9

Ele ajudou a convencer Hitler de que lograr a criação da nova raça


poderia ser um objetivo político. Essa teoria sobre o sangue tor­
nou-se a pedra angular do Terceiro Reich.
Essas teorias não começaram com Chamberlain, pois são tão
antigas quanto a mitologia pagã. Era uma vez, diz a lenda, um
lugar chamado Atlântida, que passou por uma era com a duração
de sete gerações, nas quais as sub-raças se desenvolveram. A raça
superior tornou-se híbrida, mistura entre o elemento divino e o
humano. Quando a raça superior deixou Atlântida, foi conduzida
ao Tibete e à índia. Dessa forma, iniciou-se lá uma super-raça que
possuía poderes mágicos, cujas ordens eram obedecidas até mesmo
pelos espíritos. Contudo, somente os que tivessem sangue ariano
seriam sensíveis a esse poder cósmico. As raças inferiores não fariam
parte das mutações que se seguiriam.
Você reconhecerá nessa teoria os fundamentos do sistema de
castas na índia. O hinduísmo afirma que existem quatro castas, e
abaixo delas estão os intocáveis; as criaturas subumanas cujo carma
decretou que lhes fosse negada a dignidade proporcionada aos seres
humanos. Os nascidos nas camadas inferiores do sistema de castas
existem apenas para servir os que estão mais acima. Os inferiores
não possuem qualquer direito, mas devem simplesmente suportar

9I b i d . , p . 1 4 7 .
0 anti-sem itism o do Terceiro R eich 113

seu destino com toda a tranqüilidade que puderem reunir. Não é


de admirar que Mahatma Gandhi quase morreu em greves de fome
para resistir aos ingleses que queriam dar aos intocáveis o direito de
serem representados no parlamento indiano. Os subumanos não
mereciam esses direitos!
O sistema de castas possui três fundamentos. O primeiro diz
que o lugar de alguém na sociedade é determinado pelo nascimen­
to (sangue) e que não há nada que possa ser feito nessa vida para
mudar esse fato. Ninguém sobe de posição social nessa vida; as
raças inferiores permanecem inferiores por toda essa fase de sua exis­
tência. O segundo diz que a única esperança de salvação é a reencar-
naçao, isto é, ao morrer, a pessoa pode alcançar uma forma de exis­
tência superior. O terceiro fundamento diz que a sorte de alguém
nesta vida e na próxima é determinada pela lei impessoal do carma,
que distribui benesses ou castigos de acordo com a atuação pessoal
na existência passada.
Hitler era fascinado pelo hinduísmo e por outras formas de ocul­
tismo. A idéia hindu da raça ariana governante, dominando os in­
feriores, já havia se formado em sua mente. Como já vimos, ele
tomou a suástica emprestada de Guido von List, mas ela teve sua
origem na índia, onde já era reverenciada há oito mil anos.
Chamberlain confirmou os conceitos raciais de Hitler e o esti­
mulou com a visão da raça superior formada pelo povo alemão.
Hitler estava concentrado no desafio da dominação mundial. Ele já
aceitara o conceito hindu de que o destino da pessoa é determinado
pelo sangue, mas, agora, acreditava poder encurtar o processo de
desenvolvimento da raça superior, exterminando quem fosse infe­
rior. Na mente de Hitler, a própria existência de raças subumanas
atrapalhava o desenvolvimento da raça superior.

0 treinamento da ss
Se existiu alguém mais fascinado pelo hinduísmo que Hitler, essa
pessoa era Heinrich Himmler, o líder das temíveis SS. Ele se comu­
nicava regularmente com personalidades do passado e afirmava ser
114 A cruz de H itler

a reencarnação do rei alemão Henrique I, o Caçador, do século X.


Era obcecado por uma sociedade secreta medieval chamada Ordem
dos Cavaleiros Teutônicos, cujos ensinamentos utilizou na forma­
ção da guarda de elite da SS.
Himmler dizia que não tomava qualquer atitude sem consultar
os escritos hindus. Era especialmente aficionado ao Bhagavad-G ita
e ao Arthasastra, que descrevia um sistema de controle e de espio­
nagem que lhe foi útil no papel de líder da SS. Ele dizia que o carma
exigia apenas que o indivíduo desempenhasse sua função sem se
importar com as conseqüências. Também, adotara o conceito ori­
ental de que a pessoa devia se desprender deste mundo por meio da
meditação.10
Himmler tinha que lidar com o problema de como recrutar
jovens alemães decentes, com o objetivo de enfraquecer a consciên­
cia deles, de forma que concordassem em realizar atos hediondos.
Tanto Hitler como Himmler acreditavam que cada soldado SS ti­
nha de realizar algum ato que violasse sua consciência e seu senso de
decência. Somente romperiam com os seus valores antigos quando
fizessem o que as outras pessoas consideravam repreensível. A cons­
ciência tinha de ser mitigada por esses atos de crueldade; isso servi­
ria tanto ao propósito de separar o recruta de seus vínculos anterio­
res, família e amigos, quanto uni-lo a seus novos colegas e a seu
líder. A ruptura seria tão completa, que jamais poderia voltar. Um
ato de tortura ou assassinato o uniria a seus irmãos de sangue que
cruzaram a mesma linha, sentiram o mesmo entorpecimento e ju­
raram defender a mesma causa.
Assim, a organização ss se tornaria a família desses jovens, sua
fonte de unidade e de afirmação, enfim, sua gemeinschaft (comuni­
dade). Em nenhuma hipótese alguém deveria ser deixado de lado,
mas deveria, sim, estar constantemente ativo, como parte vital do
grupo maior, que estava além do bem e do mal. O líder ss se tornava

10Dusty Sklar, Gods and beasts: the Nazis and the occult, New York: Dorset,
1977, p. 91.
0 anti-sem itism o do Terceiro Reich 115

o pai que os garotos nunca tiveram. O grupo estava além de qualquer


crítica, uma vez que poderia haver furia sem culpa e tortura irracional
sem responsabilidade. A unidade e a obediência do grupo encoraja­
vam a fantasia da onipotência, a ilusão de que todos eles eram parte
de uma grande causa.11

Tropas ss desfilam orgulhosamente em Berlim, erguendo alto suas


- pernas no conhecido “passo de ganso”.

Para transformar homens em máquinas irracionais e sem senti­


mentos, Himmler precisou doutriná-los de acordo com a socieda­
de secreta que eles próprios estavam formando. Ele lhes assegurava
que a raça superior estava em desenvolvimento e que, portanto, as
raças inferiores não poderiam ficar em seu caminho, pois a crença
científica na “sobrevivência do mais adaptado” dizia que essas raças

" Ib id ., p. 151-3.
116 A cruz de H itler

tinham de ser exterminadas. Na verdade, eles tinham a “missão divi­


na” de criar o novo homem, e só poderiam cumprir seus objetivos se
os subumanos fossem impedidos de se multiplicar e povoar a terra.
Não deveriam nem em pensamento recusar uma ordem. Os rituais
místicos lhes davam a firme convicção de que todos eram mem­
bros do grupo eleito.
Os nazistas provaram que as pessoas comuns, caso sejam con­
troladas por disciplina rígida e estejam sob a influência do poder da
psicologia de massa, podem ser levadas a executar os crimes mais
brutais e destrutivos que a mente humana possa arquitetar. Os pes­
quisadores chegaram à conclusão de que as tropas SS de Hitler não
eram diferentes do resto da humanidade. George Kren e Leon
Rappoport escreveram:
nosso parecer é de que a maioria dos homens da ss, tanto os
líderes com o os soldados comuns, certam ente passariam em
todos os testes psiquiátricos a que são norm alm ente submeti­
dos os recrutas do exército ou da força policial da cidade de
K ansas.12

Os próprios membros da SS estavam convencidos de que eram o


primeiro estágio da mutação dos super-homens. A raça superior es­
tava sendo criada. Com os indesejáveis fora do caminho, o ritmo de
crescimento aumentaria e a transformação da humanidade seria ace­
lerada. Para se unir à SS, tinham de rastrear seu sangue ariano até três
gerações. Os soldados também tinham que alcançar certas qualifi­
cações físicas, e cada membro sabia que se traísse seu juramento de
fidelidade a Hitler, isso significaria sua destruição e a de sua família.
Eles estavam abraçando uma causa tão nobre, que deviam pôr de
lado seu discernimento natural; eles estavam na vanguarda da cria­
ção da nova sociedade. O objetivo era tornar-se indiferente ao so­
frimento ou à culpa, mesmo quando a ordem fosse matar crianças.
Deviam tornar-se tão inflexíveis quanto seus líderes.

12The holocaust and the crisis ofhuman behavior, New York: Holmes & Meier,
1 9 8 0 , p. 70 .
0 anti-sem itism o do Terceiro R eich 117

A cruz exigiu o sangue de Cristo; a


suástica exigiu o sangue da nação judaica.

O grupo dava a cada homem a sensação do que era necessário, e


que juntos o grupo estava acima de toda crítica. A vontade humana
era superada e a identidade era perdida em busca da causa maior. Os
soldados viviam as palavras de Hermann Gõring: “Eu não tenho
consciência! Adolf Hitler é minha consciência!”, ou “Não sou eu
quem vivo, mas o Filhrer vive em mim”.
Himmler repetiu as palavras de Hider, quando falou sobre os
judeus: “Eles não pertencem à mesma espécie, mas apenas imitam os
humanos [...] eles estão tão distantes de nós quanto os animais estão
dos humanos”.13 Suas tropas, ao marchar, entoavam a canção:
Afiem as facas longas
Nas pedras da calçada
Enterrem -nas
Bem fundo na carne judia
E deixem o sangue jorrar.

Himmler também acreditava na teoria da reencarnação e afirmava


que suas tropas estavam, na verdade, fazendo um favor aos ocupantes
dos campos de concentração ao exterminá-los. Após a morte, aque­
les subumanos obteriam algum tipo de salvação, ao ressurgir em seu
próximo ciclo de existência. A SS estava apenas auxiliando aqueles
vermes a prosseguir com sua evolução.
Efetivamente, os que eram espancados e mortos de fome nos
campos de concentração não eram as verdadeiras vítimas; os pró­
prios nazistas eram as vítimas, pois precisavam fazer grandes sa­
crifícios pela causa da raça superior! Himmler, repetidas vezes,
referia-se ao trabalho da SS nos campos de concentração como um

13R a v e n s c r o ft, Spear ofdestiny, p. 2 5 1 .


118 A cruz de H itler

sacrifício. Era como se eles sofressem mais do que as pessoas que


torturavam.
“Ater-se firmemente a essa verdade”, disse ele aos seus oficiais,
“ao mesmo tempo que nos mantínhamos pessoas decentes; foi
o que nos tornou inflexíveis. Essa é uma página de glória em
nossa história que nunca foi escrita no passado, nem jamais
voltará a ser escrita no futuro”.14

Ele adotara a idéia esotérica de que uma pessoa deve se manter


alheia a seus próprios atos, e o que parece monstruoso para os ou­
tros é purificador para o sábio. O que alguns chamavam realidade,
não passava de ilusão.
A lavagem cerebral que as tropas recebiam ajuda a explicar como
os soldados da ss podiam realizar atos de absurda crueldade, mas,
mesmo assim, ainda voltar para casa no Natal, ir à igreja e considera­
rem a si mesmos bons cristãos. Eles não eram assassinos, e sim pesso­
as que estavam construindo a raça de super-homens e ajudando os
seres inferiores a seguir em frente em sua jornada evolutiva. Graças
ao carma, todos estavam apenas tendo o que mereciam. Para citar
Himmler, eles ainda eram “pessoas decentes”.
E a história não acaba por aí. A Bíblia ensina que nós somos
redimidos pelo sangue de Cristo, que morreu para que fôssemos
salvos. O Antigo Testamento não deixa dúvidas quando afirma que
sem o derramamento de sangue não há remissão de pecados. Quando
paramos para pensar a esse respeito, podemos ver que o misticismo
hindu-ariano era uma variante demoníaca desse ensinamento. Os
“seres” inferiores, nos campos de concentração, derramavam seu
sangue para “purificar” o sangue da raça ariana. Dessa forma, os
judeus estavam na verdade sendo oferecidos como sacrifícios aos
deuses arianos. A cruz exigiu o sangue d e Cristo; a suástica exigiu o
sangue da nação judaica.
Estou seguro de que os hindus, certamente, gostariam de man­
ter distância das atrocidades do Terceiro Reich. Entretanto, muitos

14Sklar, Gods and beasts, p. 91.


0 anti-sem itism o do Terceiro R eich 119

deles reconhecem que Hitler era um “avatar”, ou seja, um deus


que encarnou na terra para punir os britânicos pela escravidão da
índia durante o último século. Preste atenção às palavras de Swami
Svatantrananda:
Independentem ente do que se possa dizer de H itler, ele foi
um mahatma, quase um avatar. Ele não comia carne, não se
relacionava com m ulheres, nem ao menos se casou, e era a
encarnação visível do regime ariano.15

Quero deixar claro que não estou culpando o hinduísmo pelo


que aconteceu na Alemanha nazista. Hitler e seus companheiros
são responsáveis perante Deus por suas ações, e devemos levar a
sério os líderes hindus quando condenam os excessos do Terceiro
Reich. Entretanto, o que não pode ser negado é o fato de que as
crenças hindus formavam o corpo doutrinário dos líderes da SS e
ajudaram a justificar a “Solução Final”. A doutrina cruel do sistema
de castas, baseada em idéias mitológicas sobre o sangue, tornou-se
ainda mais cruel sob a liderança de Hitler.

0 mito da personalidade seletiva


Embora critiquem Hitler por não ter classificado os judeus na cate­
goria de “pessoas”, os americanas não devem se esquecer de que têm
seus próprios jogos de palavras. Uma astuta manobra legal da Su­
prema Corte americana afirmou, em 1973 de forma arbitrária, que
determinada categoria de pessoas pode ter seus direitos individuais
negados. Bebês que ainda não nasceram não são humanos, disse o
tribunal, logo, não se encontram sob a proteção constitucional.
Milhões de bebês são sacrificados aos deuses da imoralidade e da
conveniência, com total proteção da lei. Infelizmente, os que bra­
dam que são “pró-escolha”, negam o direito de escolha às pessoas
que têm mais a perder, os bebês.

15Johannes A a g a a r d , Hindu scholars, Germany and the Third Reich, no


periódico Update, Sept., 1982.
120 A cruz de H itler

A moralidade arbitrária da decisão da Suprema Corte, em 1973


não foi a primeira a classificar pessoas como não-pessoas. Dred Scott
era um escravo negro que servia a John Emerson, um cirurgião do
exército americano. Quando Emerson foi enviado para regiões que
proibiam a escravidão, Scott demandou judicialmente sua liberda­
de. Como ele poderia ser legalmente escravizado em lugares onde a
escravidão era ilegal?
A Suprema Corte, em 1857, para sua própria vergonha, deter­
minou que os negros não deveriam ser considerados cidadãos dos
EUA; logo, não deveriam esperar ter direitos constitucionais. Os ne­
gros foram descritos como “seres de uma ordem inferior”, e o escravo
“era comprado, vendido e tratado como mercadoria comum, sendo
comercializado sempre que houvesse a possibilidade de lucro”.16
Após a Guerra Civil, o congresso aprovou uma emenda cons­
titucional que garantia os direitos de “todas as pessoas”. Nós ob­
viamente aplaudimos aquela decisão, mas nos entristecemos com
o fato de a proteção legal a uma outra classe de seres humanos
ter sido negada. Quando deixamos de proteger os mais fracos,
demonstramos a desumanidade que entristece o coração de Deus.
Devemos nos arrepender de nosso próprio, e silencioso,
“Holocausto”, no qual cinco mil pequenas vítimas perecem diari­
amente.

O JUDAÍSMO E O ANTICRISTO
A “Solução Final” de Hitler não foi definitiva. Deus preservou um
remanescente de judeus, estabeleceu Israel como Estado e, hoje,
chama muitos judeus para a fé em Jesus, o Messias do seu povo.
No final, comprovaremos que nenhuma só palavra dita pelos pro­
fetas será negligenciada. Seus escolhidos ainda florescerão.
Porém, outro Holocausto está por vir.
Que motivos sinistros se escondem por trás do ódio de Hitler
pelos judeus? Em Apocalipse 12, o mistério do porquê de Jesus

16Curt Y o u n g , The least o f these, Chicago: Moody, 1983, p . 7-8.


0 anti-sem itism o do Terceiro Reich 121

ter sofrido tanto torna-se claro. A nação é simbolicamente re­


presentada por uma mulher perseguida e que depara com um
dragão. Ela espera um bebê, e o dragão aguarda para matar seu
filho. Aqui, o ódio contra os judeus é desmascarado: a ação di­
reta de Satanás que quer exterminar os judeus para que Deus
seja considerado mentiroso, ou seja, incapaz de cumprir suas
promessas.
Por trás do ódio do antigo rei Herodes, dos líderes cristãos,
cuja raiva era pedra de tropeço para a nação judaica, e da “Solução
Final” de Hitler está a ação direta de Satanás, que é representado
nessa passagem pelo “dragão”. A história salta para o meio do pe­
ríodo vindouro, o da tribulação, quando o dragão faz mais uma
tentativa de concretizar sua “Solução Final”. Ele procura capturar
a mulher, mas ela recebe as asas de uma águia para que possa voar
para longe; o dragão a persegue com uma torrente de ódio e de
hostilidades, na tentativa de matá-la de uma vez por todas.
Então a serpente fez jorrar da sua boca água como um rio, para
alcançar a m ulher e arrastá-la com a correnteza. A terra, po­
rém, ajudou a mulher, abrindo a boca e engolindo o rio que o
dragão fizera jo rrar da sua boca. O dragão irou-se contra a
m ulher e saiu para guerrear contra o restante da sua descen­
dência, os que obedecem aos mandamentos de Deus e se man­
têm fiéis ao testemunho de Jesus (Ap 1 2 .1 5 -1 7 ) .

Observe que Deus fará novamente no futuro o que ele fez


durante o Holocausto: preservou a mulher (a nação), mesmo
quando parecia que ela fora engolida pelo rio de anti-semitismo.
Deus lhe prepara um abrigo e ela é preservada, porque ainda exis­
tem algumas promessas para a nação judaica que devem ser cum­
pridas. Deus permite que o dragão chegue bem perto, tão perto a
ponto de a nação perder a esperança. Porém, no fim, Deus ainda
está presente.
Muitos judeus mais uma vez questionarão a fidelidade de Deus,
durante o período de tribulação que está por vir. A nação entrará
122 A cruz de H itler

em desespero, sem perceber que a libertação final das garras do dra­


gão está próxima. Os judeus que crêem em Cristo sobrepujarão o
dragão “pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do testemunho que
deram; diante da morte, não amaram a própria vida” (Ap 12.11).
Felizmente, o último Holocausto terá fim.

0 JUDAÍSMO E CRISTO
Quando as nações da terra tiverem cercado Jerusalém, dando a
impressão de que estão em via de exterminar a cidade e o povo,
todos os olhos se voltarão para o monte das Oliveiras. Jesus virá
pessoalmente para defender seu povo e sua cidade.
Zacarias retrata a cena:
Naquele dia os seus pés estarão sobre o m onte das Oliveiras, a
leste de Jerusalém, e o m onte se dividirá ao meio, de leste a
oeste, p or um grande vale; m etade do m onte será rem ovido
para o norte, e a outra metade para o sul (14.4).

Naquele momento, Israel como nação, reconhecerá Jesus como


seu Messias. Mais uma vez, Zacarias profetiza que o Espírito Santo
será derramado sobre eles, de modo que
olharão para mim, aquele a quem traspassaram, e chorarão por
ele como quem chora a perda de um filho único, e se lamenta­
rão amargamente por ele como quem lamenta a perda do filho
mais velho (Zc 12 .10 ).

Assim como José se revelou a seus irmãos, também Cristo se


revelará aos judeus. O choro será tanto de tristeza como de alegria:
tristeza pelo tempo transcorrido para que a reconciliação aconteces­
se; e alegria pelo fato de que o desejo dos judeus é finalmente cum­
prido com a chegada do Messias.
Paulo faz a seguinte descrição: “E assim todo o Israel será salvo,
como está escrito: ‘Virá de Sião o redentor que desviará de Jacó a
impiedade. E esta é a minha aliança com eles quando eu remover os
seus pecados’” (Rm 11.26,27). Quase todas as pessoas desse povo,
CÍ anti-sem itism o do Terceiro R eich 123

que estiver vivas quando Cristo retornar, serão poupadas fisicamente


e salvas espiritualmente.
Deus acaba por se revelar como Jesus! Cristo estabelece seu rei­
no milenar, no qual judeus e gentios são igualmente recebidos e
bem-vindos.
Virão muitos povos e dirão: “Venham, subamos ao monte do
S enh or, ao templo do Deus de Jacó, para que ele nos ensine os
seus caminhos, e assim andemos em suas veredas”. Pois a lei
sairá de Sião, de Jerusalém virá a palavra do S e n h o r . Ele julga­
rá entre as nações e resolverá contendas de muitos povos. Eles
farão de suas espadas arados, e de suas lanças, foices. Uma na­
ção não mais pegará em armas para atacar outra nação, elas
jamais tornarão a preparar-se para a guerra (Is 2.3,4).

Os Holocaustos deste mundo deixarão de existir.

ONDE ESTAVA A IGREJA?


Hoje, muitos judeus são ateus devido ao Holocausto. Eles ponde­
ram que se houvesse um Deus, ele não poderia ter ficado lá sem
fazer nada para impedir aquela injustiça absurda. Infelizmente, a
igreja, em sua maior parte, não veio em auxílio dos que eram pros­
critos ou enviados aos campos de concentração. Na verdade, algu­
mas colaboraram na perseguição.
Algumas pessoas justificavam suas ações afirmando que os ju­
deus sofriam por terem pedido sobre si o sangue de Cristo, após tê-
lo rejeitado como Messias. Os judeus realmente crucificaram Je­
sus, os romanos também, e até mesmo nós. Jesus morreu volunta­
riamente oferecendo-se por todos nós.
Por isso é que meu Pai me ama, porque eu dou a m inha vida
para retom á-la. Ninguém a tira de m im , mas eu a dou por
minha espontânea vontade. Tenho autoridade para dá-la e para
retom á-la (Jo 1 0 .1 7 ,1 8 ) .

Não devíamos pensar que os judeus tiveram de sofrer no Holo­


causto porque a geração passada rejeitara Cristo. Ainda que os judeus
124 A cruz de H itler

tenham desperdiçado seu chamado, os gentios fizeram o mesmo.


De fato, somos todos pecadores e necessitados do Salvador que “se
entregou por nós” (Ef 5.2) para que pudéssemos ser redimidos. Os
judeus foram julgados no Holocausto, mas o mesmo aconteceu com
a Alemanha nazista, que exaltou um homem no lugar de Deus, como
também a igreja que deu ao mundo a Reforma e, a seguir, afundou
no abismo do enaltecimento humano.
A igreja simplesmente fracassou em sua tarefa de ser igreja.
Em uma carta enviada aos membros do Right to Life [Direito à
Vida], há uma história que reproduzirei aqui de forma resumida.
Em uma pequena igreja da costa leste dos EUA, um pastor fez uma
pregação sobre o aborto e, após o culto, um senhor alemão que
vivera na Alemanha nazista lhe contou sua experiência:
Eu vivi na Alemanha durante o Holocausto. Eu me considero
cristão. Ouvíamos histórias sobre o que estava acontecendo com
os judeus, mas tentávamos nos manter à parte. Afinal, o que
alguém poderia fazer para parar aquilo?
Uma linha ferroviária passava atrás de nossa pequena igreja.
Todos os sábados pela manhã podíamos ouvir ao longe o apito
do trem e a seguir o barulho das rodas sobre os trilhos. Ficáva­
mos transtornados quando ouvíamos os gritos que vinham dos
trens quando estes passavam próximo à nossa igreja. Percebía­
mos que naqueles vagões, judeus estavam sendo carregados
como se fossem gado!
Semana após semana ouvimos o apito do trem. Tínhamos
pavor de ouvir o som das rodas, porque sabíamos que ouviría­
mos o som dos gritos dos judeus rumo aos campos de extermí­
nio — gritos que nos atormentavam.
Sabíamos a hora em que o trem viria e quando ouvíamos o
zumbido, começávamos a cantar hinos. No momento em que
o trem passava atrás da igreja, já estávamos cantando com toda
a força. Se ouvíssemos os gritos, cantávamos mais alto para não
escutá-los.
0 anti-sem itism o do Terceiro R eich 125

Os anos se passaram e ninguém mais falou sobre isso. Po­


rém, ainda ouço o apito daquele trem em meus sonhos. Deus
me perdoe; perdoe a todos nós que nos dizíamos cristãos e não
fizemos nada para interferir.

Essa história, que explicita a fraqueza da igreja na Alemanha,


também fala sobre nós: será que ouvimos os trens — os gritos dos
fetos nas clínicas de aborto, as crianças maltratadas do outro lado
da rua, ou as minorias que são diariamente descriminadas em toda
a sua existência? Ou o barulho de nossos cultos movimentados
abafa esses gritos?
Infelizmente, poucos cristãos alemães consideravam os judeus
seus irmãos; poucos os viam da forma que Jesus os vê; poucos
resistiram aos demônios do inferno que foram enviados por um
líder satânico. Um dos participantes do Sínodo da Igreja Evangéli­
ca na Alemanha, em 1950, declarou: “Em cada trem que carregava
os judeus para os campos de extermínio no leste, pelo menos um
cristão deveria ter sido passageiro voluntário”.17 Os que preserva­
ram a vida perderam a honra. E por fim, Deus utilizou a persegui­
ção para forçar o povo a esclarecer sua missão. Houve razões para
que a igreja ficasse paralisada, incapaz de encontrar forças para agir.
O conflito não foi tanto entre Hitler e a igreja, e sim, no inte­
rior da própria igreja. A pergunta que a igreja tinha de responder
era: O que significa para a igreja ser igreja?
Passaremos agora a examinar essa luta, na qual Deus provou que
não permitiria que seu Filho fosse adorado pelos que envolveram
sua cruz em uma suástica.

17David A. R a u s c h , Alegacyofhatred, Chicago: Moody, 1984, p. 168.


A igreja é ludibriada
....

CAPÍTULO CINCO

O reitor, dr. Martin, declarou em 1933, em meio às muitas flâmulas


com suásticas, que cercavam o altar da Catedral de Magdeburgo:
“Quem quer que insulte este símbolo está insultando a Alema­
nha [...] as suásticas em torno do altar transmitem esperança; a
esperança de que esse dia esteja pelo menos a ponto de amanhe­
cer”.1
A adoração a Adolf Hitler partia dos púlpitos alemães. O pastor
Siegfried Leffer declarou:
Na absoluta escuridão da história da igreja, H itler se tornou,
por assim dizer, a maravilhosa transparência de nossa época, a
janela de nossa era pela qual a luz incide sobre a história do
cristianismo. Por intermédio dele, podemos ver o Salvador na
história dos alemães.2

Em 30 de agosto de 1933, o pastor Julius Leutherser falou en­


tusiasticamente:
Deus veio à nós por interm édio de H itler [...] por interm é­
dio de sua honestidade, de sua fé e de seu idealismo, o Re­
dentor nos encontrou [...] Hoje nós sabemos que o Salvador

1Eberhard B eth g e, Dietrich Bonboeffer, New York: Harper & Row, 1970, p. 191.
2Richard PlERARD, Radical resistance, Christian History 10, n.° 4, 1991, p. 30.
128 A cruz de H itler

veio [...] tem os apenas um a missão, serm os alemães e não


cristãos.3

Evidentemente, mesmo nos momentos iniciais dessa luta, a suástica


significava mais para alguns pastores que a cruz.
E assim, a terra que nos havia dado Lutero e Bach, agora dava ao
mundo Hitler e Wagner. A igreja, que fora chamada por Deus para
se opor às perversidades do regime nazista, abraçou-as. Suásticas,
com a cruz de Cristo, impecavelmente bordada no centro, adorna­
vam as igrejas. A cruz gamada do salvador político e a cruz do salva­
dor espiritual se uniriam para liderar a Alemanha para fora de seu
abismo, em direção à gloriosa supremacia do auto-respeito e da
unificação das regiões européias de língua alemã. A pátria fora res­
suscitada, e os alemães podiam voltar a sorrir.
Hoje, a visão dessa “união santa” nos assusta, mas nos dias de
Hitler, ser bom cristão incluía ser bom nacionalista. Deus e o país
eram praticamente a mesma coisa.
Quando o clero despertou de sua letargia política e espiritual,
descobriu, tarde demais, que fora enganado. De início, somente
uns poucos compreendiam que Hitler devia ser repudiado e não
reverenciado, mas suas vozes eram abafadas pelos brados de vitória
e da comemoração.

: r
......------------- -- I f - ' ---------------------
O ódio contra os judeus, sinto dizer,
também floresceu nas igrejas.

Nós, que temos a vantagem de uma perspectiva histórica, so­


mos rápidos em julgar; mas se tivéssemos vivido naqueles tempos,
também poderíamos ter sido ludibriados pelo nacionalismo da

3J. S. C on w ay, The nazipersecution ofthe churches 19 3 3 -19 4 5 , New York: Basic
Books, 1968, p. 48.
A igreja é ludibriada 129

época. Se estivéssemos^ãmintos, com a economia em ruínas e o


país despedaçado por disputas políticas, poderíamos estar dispos­
tos a crer em qualquer um que tivesse um plano para nos tirar do

Um altar nazista.
130 A cruz de Hitler

atoleiro cultural. Já sabemos que a República de Weimar estava


politicamente paralisada, incapaz de realizar o que precisava ser fei­
to. Hitler tinha um plano e isso era o suficiente.
A Alemanha, como já vimos, estava unida em torno do ódio
contra os inimigos, fossem eles reais ou imaginários. O humilhan­
te Tratado de Versalhes, a elite liberal, que acreditava na democra­
cia, e os comunistas — eram todos vistos como ameaça à recupera­
ção da Alemanha. Mesmo para quem se denominava cristão, a Ale­
manha forte era ainda mais valorizada que o forte testemunho
evangélico; a menos que o Evangelho, como muitas vezes era o
caso, fosse reinterpretado como um apelo à lealdade para com a
causa alemã.
O ódio contra os judeus, sinto dizer, também floresceu nas igre­
jas. Muitos alemães leram os trabalhos de Chamberlain, bem como
textos populares que retratavam os judeus como traidores. E apesar
de os judeus serem apenas uma pequena parte da população, eram
vistos como malfeitores — os responsáveis pela derrota da Alema­
nha da Primeira Guerra Mundial. Ainda que houvesse o reconheci­
mento, de má vontade, de que Jesus era judeu, também encontráva­
mos a afirmação de que, “de vez em quando, é possível que uma flor
nasça em um monte de estrume”. Quando Hitler conclamou o boi­
cote de um dia contra os estabelecimentos de judeus, que deveria
acontecer em 1.° de abril de 1933, muitos cristãos o apoiaram.
As igrejas estavam tão encantadas com o sucesso de Hitler, que
não pararam para pensar em nome de quem os benefícios foram con­
cedidos. Falavam do ressurgimento político como se fosse um avi-
vamento, um tempo de renovação e de fortalecimento espiritual.
As igrejas obtinham forças das melhorias econômicas e do otimis­
mo simplista de um dia melhor para a Alemanha. Muitos dos mem­
bros mais sábios das igrejas não foram enganados, mas a maioria
não fazia muitas perguntas. Por ora, o que era bom para a Alema­
nha era bom para a igreja.
A Alemanha era formada por um terço de católicos e dois ter­
ços de protestantes. Temos de deixar claro que à Igreja Católica se
A igreja é ludibriada 131

opôs a Hitler com solidariedade muito maior que os protestan­


tes. Hitler sabia que a Igreja Católica tinha uma organização que
se espalhava por muitos países, então preferiu manter a política
de boa-vizinhança com o Vaticano pelo maior tempo possível.
Na realidade, foi assinada uma concordata com o Vaticano, que
garantia a liberdade religiosa em troca de apoio político. Infeliz­
mente, quando Hitler começou a descumprir suas promessas, os
líderes eclesiásticos ficaram confusos. Eles haviam declarado sua
lealdade; mas, posteriormente, foram forçados a ser desleais. Por
fim, o rumo que escolheram foi essencialmente o mesmo que o
dos protestantes.
Muitos clérigos foram ludibriados. Padre Falkan, um sacerdote
católico, disse:
Devo admitir que fiquei feliz ao ver que os nazistas chegaram
ao poder, porque naquele m om ento tive a sensação de que
Hitler, um católico, era tem ente a Deus e seria alguém que
poderia combater o comunismo em nome da igreja [...] o anti-
semitismo dos nazistas, assim como o seu antimarxismo, inte­
ressavam à igreja.4

Hitler falava com desprezo tanto de protestantes como de cató­


licos, certo de que todos os cristãos trairiam seu Deus quando fos­
sem forçados a escolher entre a suástica e a cruz:
Você realmente acredita que o povo tornará a ser cristão? Bo­
bagem! N unca mais. O conto de fadas term inou. Ninguém
mais vai dar ouvidos a esse Deus. Nós, portanto, podemos
acelerar o processo. Os padres cavarão as próprias covas. Trai­
rão seu Deus por nós. Trairão qualquer coisa para preservar
seus miseráveis empregos e rendim entos.5

4Robert G. W a ite , Hitler. the psychopathic god, New York: Basic Books,
1977, p. 317.
5Ibid., p. 16.
132 A cruz de H itler

Algumas semanas antes de assumir o poder, em 1.° de abril de 1933, os


nazistas organizaram um boicote antijudeu. Nos cartazes estava escrito: “Os
judeus têm até as 10 horas da manhã de sábado para refletir. A seguir, as
lutas começarão. Os judeus do mundo todo querem destruir a Alemanha.
Povo alemão, resista! Não compre dos judeus!”.
A igreja é ludibriada 133

“Eles trairão seu Deus por nós.” Infelizmente, muitos pastores


fizeram exatamente isso. Várias fraquezas da igreja tornaram difícil
resistir a essa tentação. Na noite escura da perseguição, eles traíram
seu Deus. Por fim, tanto os católicos como os protestantes se viram
impotentes para deter o rolo compressor nazista. E, mesmo assim,
ainda que a oposição da igreja fosse fraca, era a única oposição organi­
zada contra Hitler. Nem as universidades nem as faculdades o desafi­
aram; e somente parte da igreja teve a coragem para fazê-lo.

AS CARACTERÍSTICAS DA IGREJA
Que Hitler ludibriou a igreja, já está bastante claro. Contudo, tam­
bém devemos lembrar que as igrejas da Alemanha já haviam se
entregado completamente aos temas populares da cultura alemã,
muito antes de Hitler subir ao poder. Elas estavam prontas para ser
enganadas; algumas pessoas diriam até que elas queriam ser ludibria­
das. Os enganos não aconteceram todos de uma vez, mas fizeram
parte de uma longa história. As condições em que a igreja se encon­
trava antes de Hitler — diz um historiador — são tão culpadas
quanto a oposição de Hitler às igrejas.

Nacionalismo
Não podemos esquecer que a igreja alemã tinha uma longa história
do mais absoluto nacionalismo. Durante a dominação prussiana, o
rei era o líder da igreja e o sacerdócio era subordinado ao líder polí­
tico do Estado. Considerando seu vínculo, tão forte e estreito, com
a monarquia germânica, fica fácil compreender o motivo de a igre­
ja ter caído na esparrela de abraçar os planos políticos da época.
Eu me pus a contemplar a Igreja Memorial Kaiser Guilherme
em Berlim (que é atualmente um monumento aos horrores da
Segunda Guerra Mundial) e fiquei espantado com os relevos de
Cristo e do Kaiser, como se juntos fossem os salvadores da nação
alemã. As vitórias militares da Prússia são descritas como vitórias
de Cristo e da religião cristã.
134 A cruz de H itler

Não causa surpresa o fato de os líderes protestantes terem preco­


nizado uma síntese do Volkstum (identidade nacional alemã) e do
cristianismo. Visto que todas as igrejas protestantes pertenciam a
mais de vinte distritos independentes, o objetivo era a substituição
dessas igrejas regionais pela igreja do Reich, ou seja, uma igreja naci­
onal, unificada e centralizada. Alguns líderes quiseram revisar as
crenças da igreja, a fim de alinhá-las com o nacional-socialismo.
Eles se tornaram conhecidos por “cristãos alemães” (co m ênfase na
palavra alemães). Desse modo, quando Hitler subiu ao poder, a
imensa maioria desses líderes o saudou com entusiasmo. Eles pen­
savam que a Alemanha forte significaria uma igreja forte.
A igreja achava que seria quase impossível opor-se à cultura ale­
mã; ela ficou imobilizada, aparentemente sem condições de desafi­
ar as premissas do nacionalismo alemão e de condená-lo quando
necessário. O nacionalismo era tão difundido, que durante a época
do Kaiser, este era visto como alguém que governava por “direito
divino”; como um representante de Deus para a nação crista. Os
soldados que morreram na Primeira Guerra Mundial foram honra­
dos como mártires de Cristo.
A igreja se juntou à oposição generalizada contra a democracia
da República de Weimar, assim como foi contra a liberdade indi­
vidual de consciência. A democracia era uma forma de governo
fraca, que dava atenção excessiva aos direitos humanos. Para que o
Estado fosse forte, as liberdades individuais tinham que ser postas
de lado para o bem de uma nação forte, unida e economicamente
estável. Os cristãos defendiam a grandeza da Alemanha, principal­
mente em relação à sua superioridade e ao poderio militar. Eles
desejavam a volta dos bons e velhos tempos, com o estabelecimen­
to do governo monárquico, o restabelecimento da ordem e a abun­
dância de vitórias.
Um homem, que viveu na Alemanha nazista, contou-me que al­
guns sacerdotes católicos ameaçavam negar os sacramentos aos fiéis
que apoiassem a República de Weimar. Cultos especiais eram realiza­
dos pelas tropas paramilitares de Hitler tanto em igrejas protestantes
A igreja é ludibriada 135

quanto católicas; eles eram os heróis comprometidos com a nova Ale­


manha. Estavam lutando pela pátria; pelo progresso da nação que me­
recia esquecer suas humilhações para se tornar novamente orgulhosa.
Em um clima de devotada euforia, o professor Adam, teólogo
de Tiibingen, elogiou Hitler como quem havia aberto os olhos do
povo alemão, unindo-o e libertando-o:
Agora ele está perante nós; ele, que era evocado pelas vozes de nossos
poetas e filósofos, o libertador do talento alemão. Ele removeu a
venda de nossos olhos e, por intermédio de aspectos políticos, eco­
nômicos, sociais e confessionais, possibilitou que víssemos e voltás­
semos novamente a amar a única coisa essencial — a integridade e
a unidade do sangue, o nosso ego alemão, o homo germanw.6

Dessa forma, os catedráticos se uniram ao homem comum em


louvores a Hitler. A igreja foi levada por sua crescente popularida­
de; pela alegria boba que parecia tão rara entre os sisudos alemães.
Enormes multidões afluíam ao local onde Hitler nascera. Seus
adoradores até mesmo viajavam de ônibus para reverenciar Spittal,
o local onde nascera sua mãe. Eles invadiam a chácara onde Hitler
passara seus verões quando garoto. John Toland escreve:
Eles subiam no telhado para tirar fotos, davam um jeito de
entrar no pátio e lavavam-se na gamela de madeira como se ela
tivesse água benta, assim como arrancavam lascas das grandes
pedras que sustentavam o celeiro.7

Eles pintavam suásticas nas vacas e desfilavam pelo local cantan­


do louvores a Hitler.
Os membros das igrejas que eram suficientemente observadores
compreendiam que esse tipo de idolatria chamaria sobre si o juízo

sRichard G ru n b e rg e r, The 12-yearReich, New York: Holt,Reinhart& Winston,


19 7 1, p. 439.
7Hitler. the pictorial documentary ofhis life, New York: Doubleday, 1978,
p. 47.
136 A cruz de Hitler

de Deus, mas tinham dificuldades de resistir à torrente de adoração


pública. De modo geral, quem desconfiava, mantinha suas descon­
fianças para si.

Liberalismo
A igreja, em sua maior parte, abandonou a fé cristã histórica e op­
tou pelo liberalismo teológico; ou seja, liam a Bíblia tentando se­
parar o verdadeiro do falso, negando o caráter único de Cristo.
Sem a mensagem clara de arrependimento e de fé unicamente em
Jesus como Filho de Deus, as igrejas substituíram a docilidade e a
humildade de Cristo pelo orgulhoso pendão do nacionalismo
cristianizado.
Martinho Lutero, embora fosse muitas vezes citado, não era
lembrado como o homem que pregara o Cristo divino, que podia
reconciliar completamente os pecadores corrompidos com o Deus
infinitamente santo. A cruz do Cristo de Lutero não combinava de
forma confortável com a suástica. Na presença da cruz anunciada
por Lutero, os homens se humilhavam; já a cruz que se ajustara tão
perfeitamente à suástica, produzia orgulho.
Visto que todas as crianças alemãs eram batizadas na igreja, pou­
co se falava sobre a necessidade da conversão individual a Cristo. O
fato de o nome de alguém constar nos registros da igreja, já era
prova suficiente de que esta pessoa era cristã. Tudo o que se espe­
rava de bons cristãos era que ajudassem a Alemanha a se tornar
grande.
Logicamente, havia exceções, como veremos nos capítulos sub­
seqüentes. Existiam cristãos genuínos dispersos entre as massas;
eram os poucos que afirmavam a enorme diferença entre a cruz e
a suástica. Porém, em sua maioria, a igreja foi tomada pelo espí­
rito da época; ela compreendia que seu papel se resumia em auxi­
liar a apagar a vergonha do passado e a produzir um futuro me­
lhor. Ela se alegrava com a diminuição do desemprego, com a
melhoria dos padrões de vida e na consciente dignidade que havia
restaurado uma nação sitiada.
A igreja é ludibriada 137

Um batismo nazista.

Espero que os evangélicos não imaginem que sempre houve uma


clara divisão entre os verdadeiros cristãos, que não foram ludibria­
dos por Hitler, e os nacionalistas, que o foram. Quando Oswald J.
Smith da Igreja do Povo em Toronto — um estadista missionário
e um homem com credenciais evangélicas impecáveis — visitou a
Alemanha em 1936, retornou impressionado com o que Hitler
fizera pelo país.
O relato de Oswald J. Smith não se baseava no que ouvira dos
cristãos liberais, mas sim dos que eram evangélicos. Observe ainda
que Smith escreveu o seguinte texto em 1936, muito depois dos
138 A cruz de H itler

expurgos do partido de Hitler — quando a perseguição aos judeus


já havia começado. “A Alemanha”, disse Smith, “despertou”. Eis o
seu relato:
Você me pergunta, qual é a verdadeira atitude do povo alemão
em relação a Hitler? Existe apenas uma resposta: eles o amam.
Sim, do m aior ao menor, pais e fdhos, jovens e idosos, todos
amam seu novo líder. A confiança que depositam nele não pode
ser abalada. Todos, sem exceção, confiam nele.
“E quanto às eleições?” perguntei. “Vocês não têm nenhu­
ma escolha. O u é H itler ou ninguém. Não há nenhum adver­
sário.” Eles responderam de form a indignada: “Nós não que­
remos outro partido. Já tivemos partidos suficientes. Q uere­
mos um verdadeiro líder, um hom em que nos ame e trabalhe
pelo nosso bem. Estamos satisfeitos com H itler”. E esse senti­
mento está por toda a parte. Todo verdadeiro cristão é partidá­
rio de Hitler. Eu sei isso, pois obtive a maior parte de minhas
informações dos cristãos, e, certo ou errado, eles apóiam A d o lf
H itler.8

O mais interessante são os comentários de Smith sobre os trata­


mentos dispensados aos judeus. Ele lamentava que “os bons judeus
tivessem que sofrer com os maus. Porém, quem pode diferenciar
um do outro durante a violência e a agitação da turba? Nem mes­
mo Hitler poderia conter seus seguidores”.
Smith até mesmo acreditava que um avivamento evangélico es­
tava ocorrendo na Alemanha, com o Evangelho de Cristo pregado
nas igrejas. Os líderes cristãos lhe asseguravam que enquanto o Evan­
gelho fosse pregado, “a Alemanha estaria a salvo”.
Entretanto, os cristãos, quer fossem liberais, quer fossem con­
servadores, deviam saber que a Alemanha não estava “a salvo”. Como
veremos no próximo capítulo, a perseguição à igreja estava aumen­

8M y visitto Germany, The Defender n.° ll,S e p t., 1 9 3 6 ,p. 15; citado na obra
de David A. Rausch, A legacy ofhatred (Chicago: Moody, 1984), p. 101.
A igreja é ludibriada 139

tando. Os luteranos já discordavam entre si quanto ao fato de os


pastores deverem ou não subscrever a Cláusula ariana; uma decla­
ração que proibia o indivíduo de sangue judeu de ocupar um púl­
pito na Alemanha.
Todos os tipos de cristãos foram ludibriados por Hider, pelo menos
a princípio. Entretanto, os liberais, que eram “jogados para cá e para
lá por todo vento de doutrina”, viram-se especialmente vulneráveis
ao turbilhão do redemoinho nazista. Mesmo quando os planos de
Hitler se tornaram finalmente claros, eles não estavam dispostos a
sofrer pelo Evangelho que há muito tinham abandonado. Estavam
mais interessados nos milagres da Alemanha restaurada, que nos mi­
lagres existentes nas páginas do Novo Testamento. A salvação neste
mundo era mais importante que a salvação na vida futura.

As duas esferas
Nós já fomos apresentados à doutrina das “duas esferas”, a qual, se
for interpretada da forma popular, significa que Cristo é o Senhor
da igreja, mas o Kaiser (ou o Führer) é, de certa forma, o senhor da
esfera política. A obediência à esfera política era um dever tão dig­
no e honroso quanto a obediência a Deus. E a maior expressão da
obediência a Deus era a obediência ao Estado.
Assim, os valores pessoais de honestidade, temperança e com­
paixão não eram transferidos para os valores públicos. A guerra era
glorificada e o bem do Estado estava acima do bem do indivíduo.
E com a ardorosa crença de que a obediência ao Estado produziria
a nova sociedade, os alemães estavam dispostos a fazer qualquer
coisa que o Führer exigisse. Seu dever para com Deus era espiritual;
mas, seu dever para com o Estado era político.
As crianças alemãs eram ensinadas a obedecer, explícita e pronta­
mente, aos pais, professores e comandantes militares. O respeito pela
ordnung (ordem) era ensinado ritualisticamente, assim como por
meio da ameaça de punições. Todos deviam manter-se úteis e no
ritmo da nação. Romanos 13.1,2 era muitas vezes citado:
140 A cruz de Hitler

Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois


não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que
existem foram por ele estabelecidas. Portanto, aquele que se
rebela contra a autoridade está se colocando contra o que Deus
instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação
sobre si mesmos.

Devemos ter um quadro mais completo


do que significa para a igreja realmente
ser igreja perante a sociedade.

Dentro da Igreja Luterana havia um forte movimento pietista,


que defendia o retorno à ortodoxia bíblica, à adoração a Deus no
coração. Em sua maior parte, essas pessoas se opunham à erudição
bíblica (especialmente a do tipo liberal) e evitavam debates teológi­
cos intelectuais dentro da Alemanha. Eles testemunhavam a graça
salvadora de Cristo, mas acreditavam que a missão da igreja era
apenas pregar a doutrina de Cristo.
O pietismo, com sua ênfase na devoção pessoal, era utilizado
para injetar vida espiritual na corrente principal da Igreja Luterana.
Porém, ao manter intensa lealdade às autoridades políticas e insistir
na obediência ao Estado, ainda que este fosse contrário às convic­
ções pessoais do fiel, o pietismo exerceu uma influência limitada
no controle da maré nazista. Há uma forma de pietismo que ainda
é popular nos EUA. São os que acreditam que devíamos nos afastar
de nossas batalhas culturais, para simplesmente “pregar o Evange­
lho” e permanecer longe da política. O que eles esquecem é que, à
medida que o Estado invade nossa independência, nossa esfera es­
piritual vai encolhendo até que as liberdades sejam tomadas, até
que, por fim, ninguém será capaz de fugir e esconder-se.
James Dobson, em carta enviada a seus mantenedores, desafiou-
os com uma série de perguntas: Até que ponto estaremos dispostos
A igreja é ludibriada 141

a defender o que acreditamos? Será que os pais se oporão, se seus


filhos forem repetidamente doutrinados na ideologia homossexual
ou no ocultismo nas escolas públicas? Será que contestaremos se o
Estado disser aos pastores o que eles podem e o que não podem
pregar no púlpito? (Na Suécia, um pastor evangélico que pregou
sobre Sodoma e Gomorra foi condenado por “violência verbal”
contra os homossexuais, e sentenciado a quatro semanas de prisão.)
Será que contestaremos se o Estado assumir o direito de posse so­
bre nossos filhos e nos disser como educá-los, ou, caso contrário,
perderemos a custódia deles? Será que contestaremos se toda igreja
for obrigada a contratar um homossexual, a fim de cumprir uma
cota mínima?9
Quer na Alemanha nazista, quer nos EUA de hoje em dia, os
crentes não podem optar por permanecer em silêncio sob o pretex­
to de pregar o Evangelho. Partilhar o Evangelho é, logicamente,
nossa principal responsabilidade, visto que somente a cruz de Cris­
to pode transformar o coração humano. Porém, uma vez que te­
nhamos recebido o dom da salvação por intermédio de Cristo, deve­
mos conviver com o envolvimento da cruz em todas as áreas da vida.
Na verdade, nosso direito de pregar o Evangelho estará comprometi­
do se não estivermos preparados para a submissão ao senhorio de
Cristo em todas as esferas.
Os cristãos que aceitaram, de forma obediente, os excessos do
regime nazista, mas continuaram a estudar a Bíblia para manter o
coração aquecido, devem ser denominados “os que a compreende­
ram pela metade”. Eles, certamente, foram muito mais relevantes
que os que pararam de estudar a Bíblia, para apoiar entusiastica­
mente o regime. Porém, como veremos em um capítulo posterior,
devemos ter um quadro mais completo do que significa para a
igreja realmente ser igreja perante a sociedade.
Hitler logo tentaria forçar a igreja a adotar o que ele chamava
“cristianismo positivo”, algo mais radical do que as igrejas mais

9Março de 1993.
142 A cruz de H itler

nacionalistas podiam prever. Seu plano, como seria revelado mais


tarde, preconizava a destruição da igreja. No fim, ele queria trans­
formar a igreja tao profundamente, que todo vestígio de cristia­
nismo seria esmagado. Não havia espaço suficiente nas igrejas para
a cruz e a suástica. Como ele mesmo ponderou: “Um deus deve
dominar o outro”. Dada a fraqueza da igreja, seu objetivo parecia
estar ao alcance de suas mãos, embora não fosse tão fácil como
pensara.

HITLER APRISIONA A NAÇÃO


Hitler começou querendo a mão, depois o braço, e por fim o cor­
po todo. Transformou a sociedade, e ao fazê-lo, transformou tam­
bém a igreja. Ele não teria sossego até que sua cruz substituísse a
cruz de Cristo. A estratégia de Hitler para a sedução do povo ale­
mão teve três fases.

As mentiras do Estado
Hitler acreditava em mentiras. Dizia que “a magnitude de uma
mentira sempre contém certo fator de credibilidade, visto que as
grandes massas [...] caem mais facilmente em uma grande menti­
ra do que em uma pequena”. Ele moldou a cultura e a religião
alemãs com mentiras, que logo se refletiriam nas leis.
Após ter prestado seu juramento como chanceler, ele homena­
geou o cristianismo como “o elemento essencial para a salvaguarda
da alma do povo alemão” e prometeu respeitar os direitos das igre­
jas. Declarou desejar a existência de “um acordo pacífico entre a
igreja e o Estado”.10 Também externou ter o propósito de melho­
rar o relacionamento com o papa Pio XII.
Ele dizia estar determinado a dar liberdades às igrejas, “desde que
não fizessem nada subversivo e contrário ao Estado”. Logicamente,

10W illiam L. S h ir e r , The rise andfa li ofthe ThirdReich, New York: Simon &
Schuster, 1960, p. 234.
A igreja é ludibriada 143

por trás dessa promessa, Kávià sua definição do que poderia ser sub­
versivo. Porém, tanto sua cautelosa promessa como a concordata
com o Vaticano, que garantia a liberdade da Igreja Católica, foram
bem-vindas.
O artigo 24 do programa do partido pedia “liberdade para todas
as denominações religiosas dentro do Estado, desde que não fos­
sem perigosas [...] para os sentimentos morais da raça germânica”.
Hitler falava favoravelmente de seu “cristianismo positivo”, que con­
tribuiria para o esforço da Alemanha. Ele obteve alguma benevo­
lência ao parecer conciliatório; e as igrejas gostavam do uso que
dava à palavra “liberdade”. Aparentemente, esperava que, a princí­
pio, as pessoas se sentissem bem a seu respeito, mesmo que mais
tarde já não se sentissem da mesma forma.
No entanto, Hitler, em particular, revelava suas verdadeiras in­
tenções. Herman Rauschning testemunhou que logo após sua su­
bida ao poder, Hitler advertiu que não havia qualquer futuro nem
para a Igreja Católica nem para o protestantismo. “Entrar em acor­
do com a igreja”, ele disse, “não me impedirá de erradicar o cristia­
nismo, de ponta a ponta na Alemanha. Ou um indivíduo é cristão,
ou alemão. Não é possível ser ambos.”11
Em 21 de março de 1933, Hitler montou um impressionante
espetáculo para a abertura do novo exercício do Reichstag [Parlamen­
to], na Igreja da Guarnição em Potsdam. Com pompa e circunstân­
cia, ele procurou garantir à nação que poderia seguir uma tendência
conservadora e, ao mesmo tempo, estar em harmonia com as igrejas.
Dois dias mais tarde, o Reichstag aprovou a suposta “Lei do apoio”,
segundo a qual o poder do Reichstag ficava reduzido ao de um ruidoso
conselho do partido. A maioria necessária à aprovação da lei foi assegura­
da pela prisão de alguns parlamentares e pela ameaça a outros. Em julho,
Hider proclamou o partido nazista o único partido da Alemanha.
Porém, naqueles primeiros anos, as palavras “liberdade” e “paz”
eram encontradas em todos os seus discursos. Suas palavras transmitiam

n CoNWAY, Nazipersecution o f the churches, p. 15.


144 A cruz de H itler

às massas a tranqüilidade de que embora pudessem ter alguns recei­


os, uma vez que o tivessem compreendido melhor, saberiam que
ele estava do seu lado.
Em seguida, Hitler, o mestre na arte da traição, procurou um
pretexto para exercer maior controle. Assim como o incêndio no
Reichstag foi uma desculpa para a suspensão das liberdades indivi­
duais, ele criou outras oportunidades que lhe deram o privilégio de
contornar os caminhos convencionais da justiça.
Como prelúdio da tentativa de tomar o poder da igreja, Hitler
eliminou alguns de seus opositores ao acusar falsamente membros
do clero de traição, fraudes e perversões sexuais. Goebbels, o minis­
tro da propaganda, insistia que esses julgamentos fossem publica­
dos nos jornais, promovendo dessa forma um desfile de detalhes
chocantes a respeito de padres, freiras e pastores conhecidos. Padres
que alertassem os pais sobre a participação de seus filhos na Juven­
tude Hitlerista eram vítimas de chantagens. E assim, Hitler silenci­
ava os que ousassem se opor a ele. Padres, freiras e líderes eclesiásti­
cos eram presos sob acusações forjadas, e publicações religiosas eram
suprimidas.
Hitler sempre falava que a melhor forma de conquistar os ini­
migos é causar divisão entre eles. Ele incentivou um movimento
simplesmente denominado “Crentes em Deus”, concebido para con­
vencer as pessoas a deixar as igrejas. O argumento desse movimen­
to era dizer que havia uma alternativa à igreja; o que quer que ela
realizasse poderia ser feito em outro lugar e de outras formas. O
Estado poderia ter uma cerimônia de dedicação de crianças; assim
como poderia ter seus feriados sem precisar celebrar os dos cristãos.
Os casamentos, para os que desejassem, também poderiam ser
realizados pelo Estado. As bênçãos da Mãe Terra e do Pai Céu eram,
com freqüência, invocadas sobre o casal para que seu destino se
cumprisse. Quando o Estado batizava uma criança, o pai a carrega­
va sobre um escudo enrolado em um cobertor de lã crua, bordado
com suásticas. A criança era, na verdade, dedicada ao Estado ale­
mão e tinha seu nome registrado.
A igreja é ludibriada 145

Em 1935, as orações deixaram de ser obrigatórias nas escolas. A


educação religiosa ainda não havia sido exatamente proibida, mas foi
restringida aos que tivessem permissão do Estado. Dessa forma, os
dogmas do nazismo substituíram as doutrinas bíblicas. As escolas
ensinavam as matérias de acordo com o enfoque do regime.
Hider teve que reinterpretar o significado do Natal e da Páscoa,
pois já eram celebrados havia séculos pelos alemães. O Natal foi trans­
formado em uma festa completamente pagã. Na verdade, pelo menos
para as tropas da ss, sua data foi transferida para 21 de dezembro, data
do solstício de inverno. Os cantos natalinos e as representações que
contavam o nascimento de Jesus foram proibidos nas escolas em 1938,
e até mesmo o nome “Natal” foi alterado para Julfest.* Os crucifixos
foram retirados das salas de aula, e a Páscoa foi transformada em um
feriado que saudava a chegada da primavera.
Essas mesmas mudanças se insinuam paulatinamente nos EUA,
graças aos defensores das liberdades sociais que se empenham em
expurgar o Estado de todo e qualquer vestígio de cristianismo. O
que Hitler conseguiu por meio de éditos, também pode ser alcan­
çado pelos tribunais americanos. Ainda que o crime esteja fora de
controle, a ilegalidade role solta e as drogas estejam destruindo a
juventude, a A C L U ** dedica-se a erradicar qualquer observância de
feriados religiosos por parte do Estado: não há mais canções natali­
nas nas escolas, presépios nas prefeituras e cruzes em propriedades
públicas.
De forma similar a de alguns dirigentes do movimento pelas li­
berdades sociais, Hitler pregava que as crianças pertenciam ao Reich.
Aos pais, Hitler dizia calmamente: “Seus filhos já nos pertencem [...]
e vocês? Vocês passarão. Seus descendentes, no entanto, agora fa­
zem parte de um novo grupo. Em pouco tempo, eles não conhece­
rão mais nada além desta nova comunidade”. E, em outro discurso,

“"Celebração pagã do equinócio de inverno. (N. do. R.)


**American Civil Liberties Union — Entidade norte-americana de defesa dos
direitos civis. (N. doT.)
146 A cruz de H itler

ele disse: “Este novo Reich não dará sua juventude a ninguém, mas a
tomará, dando-lhe sua própria educação e criação”.12
A Juventude Hitlerista competia com o sistema educacional do
Estado. As escolas particulares foram abolidas e, já em 1938, toda a
educação estava unificada sob a ideologia nazista. Os livros escola­
res foram reescritos para refletir a visão sobre a aptidão racial, a
lógica da expansão militar e a ênfase na história e na cultura alemãs.
Os que não se adequavam ao programa nazista (leia-se “politica­
mente correto”), eram repreendidos, expulsos ou executados. Se os
professores quisessem manter-se empregados, tinham de fazer um
juramento de lealdade a Hitler.
A queima de livros era comum. Quando visitei Berlim, estive
na praça oposta à Universidade de Berlim (agora denominada Uni­
versidade Humbolt), onde, na noite de 10 de maio de 1933, uma
manifestação realizada por milhares de estudantes munidos de tochas
queimou aproximadamente vinte mil volumes. Muitos desses li­
vros foram escritos por alemães famosos e por outros autores de
renome mundial, como H. G. Wells e o físico judeu Albert Einstein.
Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler, discursou aos estu­
dantes: “A alma do povo alemão pode mais uma vez se expressar.
Essas chamas não alimentam apenas o fim da era que passou; elas
também iluminam a era que se inicia”.13
De início, havia uma substancial oposição aos planos de Hitler.
Porém, poucos ousavam manifestar-se contra ele, devido ao medo
de represálias. O povo desejava acreditar na ficção de que após Hitler
ter consolidado o poder, ele relaxaria e permitiria maior liberdade.
Outras pessoas aceitavam as novas idéias como um tipo de per­
muta pelos benefícios econômicos e políticos que agora desfruta­
vam. Quando se deram conta de que esses eram apenas os estágios
iniciais da tomada de poder pelos nazistas, já era muito tarde para
voltar atrás.

12S h ir e r , Riseandfaliofthe ThirdReich, p. 2 3 8 .


13Ibid., p. 2 4 1 .
A igreja é ludibriada 147

A nação, que fora seduzida pela propaganda, era agora conduzida


pela perseguição. As mentiras tornaram-se leis.

As leis do Estado
As leis sempre refletem os valores, os planos e as prioridades de
uma nação. Na Alemanha nazista as leis não se baseavam na visão
teísta, tampouco crista; na verdade, nem mesmo as leis naturais
eram reconhecidas. Quando Hitler conseguiu que o Reichstag lhe
desse o poder de legislar, as leis passaram a ser arbitrárias, traçadas
para cumprir os objetivos do Estado. Os nazistas declaravam; “Hitler
é a lei!”. Como Gõring declarou: “A lei e a vontade do Führer são a
mesma coisa”.14 O certo e o errado eram o que H itler determ inava.
As leis de Nuremberg, de 15 de setembro de 1935, destituíram
os judeus da cidadania alemã, limitando-os à condição de “obje­
tos”. Proibiram o casamento entre judeus e arianos, assim como
relações sexuais entre eles. Essas eram as bases de treze leis específi­
cas contra os judeus, que os tornariam absolutamente fora da lei.
Muitos foram privados de seu meio de subsistência e acabaram pas­
sando fome. Em muitas cidades, eles foram proibidos de comprar
comida ou fazer negócios.
Havia também leis contra a traição. Traição era definida como
qualquer coisa contrária à vontade e aos propósitos do Reich. A
crítica era traição; a liberdade de imprensa era traição; fracassar na
realização dos planos do Reich era traição. Mais uma vez, traição era
tudo o que Hitler assim determinasse.
Em 1936, foi constituído o Tribunal Popular para o julgamento
de atos de traição. Cinco juizes foram nomeados para cada tribunal,
do quais três eram apontados por Hider ou um de seus associados,
“devido ao conhecimento especial sobre defesa contra atividades sub­
versivas, ou por estar mais intimamente vinculados às tendências
políticas do país”. As ações judiciais eram secretas, e as punições

l4Ibid., p. 268.
148 A cruz de H itler

severas. Cartazes, em vermelho vivo, anunciavam os nomes dos


que morriam sob o machado do carrasco.
O que ocorreu na Alemanha nazista me faz lembrar que quem
controla as leis de uma nação, controla seus valores e seus planos.
Rausas J. Rushdoony observou de forma acertada: “Por trás de todo
sistema legal há um deus. Ao acharmos o deus em qualquer siste­
ma, localizamos a fonte de suas leis”. Sempre que a fonte das leis
for um ditador, tribunais, ou um indivíduo, essa(s) personagem(ns)
é (são) o(s) deus (es) daquele sistema. Ele acrescenta: “Quando você
escolhe quem será sua autoridade, escolhe seu deus, e onde você
procura sua lei, lá está seu deus”.15
Com a posição de ditador assegurada, Hitler podia formular as
leis que desejasse e ridicularizar a oposição, aparentemente impo­
tente. Ele sempre encarou com desdém os protestantes, dizendo:
“Você pode fazer com eles tudo o que quiser [...] eles se submete­
rão [...] são um povo pequeno e insignificante, submissos como
cães, e suam de constrangimento quando você se dirige a eles”.16
Ele sabia que apenas a minoria dos líderes protestantes resistiria a
seus planos.
Felizmente, nem todos os protestantes eram “submissos como
cães”. Nos próximos capítulos deste livro encontraremos algumas
pessoas que se opuseram a Hitler e pagaram muito caro. Porém,
foram poucas, e essa reação veio muito tarde.

0 senhorio do Estado
Hitler começou com suas mentiras; e a seguir elas se refletiram sob a
forma de leis, e por fim evoluíram até se tornar o senhorio. Ele alcan­
çou o controle quase absoluto que seu louco coração tanto desejava.
Se nos perguntarmos por que Hitler via o cristianismo (mesmo
o do tipo nacionalizado alemão) como ameaça, um homem, que

l5Law andliberty, Fairfax, Va.: Thoburn, 19 7 1, p. 73.


16S h ir e r , Rise andfalioftbe ThirdReich, p. 238.
A igreja é ludibriada 149

viveu na mesma época que o Fiihrer, apresentou a resposta em uma


entrevista na televisão. Ao responder sobre os motivos que levaram
Hitler a sentir a necessidade de destruir o cristianismo, o homem
simplesmente respondeu: “Em qualquer conflito entre deuses, um
deve dominar o outro”.

“Mostre-me suas leis e lhe


mostrarei seu Deus!”

Antes de passarmos à luta que se desenrolou dentro da igreja,


devemos compreender qual era o objetivo fundamental que Hitler
tinha para a Igreja Nacional do Reich, que ele tentou organizar.
Reproduzirei parte de um plano de trinta tópicos, elaborado por
um bom amigo de Hitler, Alfred Rosenberg, que renegou Cristo e
insistia que a igreja devia substituir o cristianismo pelo paganismo
do movimento nazista. Eis alguns dos artigos de seu programa que
nos dão calafrios:
1. A Igreja Nacional do Reich da Alemanha reivindica catego­
ricamente o exclusivo direito e poder para controlar todas
as igrejas dentro dos limites do Reich-, declarando-as igre­
jas nacionais do Reich alemão.
1 3 . A Igreja Nacional exige a interrupção imediata da publica­
ção e distribuição de Bíblias na Alemanha.
1 4 . A Igreja Nacional declara que, doravante, para toda a na­
ção alemã, fica decidido que M inha luta, do Führer, é a
maior de todas as obras. Ela [...] não apenas contém o que
há de melhor, mas incorpora a mais pura e verdadeira moral
para a vida presente e futura de nossa nação.
1 8 . A Igreja Nacional removerá de seus altares todos os cruci­
fixos, Bíblias e imagens de santos.
150 A cruz de H itler

1 9 . Sobre os altares não deverá haver nada além da obra M inha


luta [o livro mais sagrado para a nação alemã e, por conse­
guinte, para Deus], e à esquerda do altar, uma espada.
3 0 . No dia de sua fundação, a cruz cristã deverá ser removida
de todas igrejas, catedrais e capelas [...] para ser substituí­
da pelo único símbolo invencível, a suástica.17

Observe que não era suficiente que a suástica ficasse lado a lado
com a cruz; mas que ela deveria ser substituída completamente. A
Bíblia não poderia ser posta ao lado de M inha luta, pois a “bíblia
nazista” tinha que ocupar o altar isoladamente. Em resumo, o Deus
dos céus tinha de ser removido para abrir caminho para o nacional-
socialismo.

O PODER DAS LEIS DE UMA NAÇÃO


A esta altura já deve ter ficado claro que o cenário moral de um país
é amplamente determinado por suas leis. Quando Hitler formu­
lou suas leis, a Alemanha foi conformada à sua imagem. Como
Rushdoony disse acertadamente: “Mostre-me suas leis e lhe mos­
trarei seu Deus!”.
Após Hitler ser derrotado, foram realizados julgamentos de cri­
mes de guerra em Nuremberg, a fim de avaliar a culpa dos cúmpli­
ces de Hitler. Porém, surgiu uma controvérsia a respeito de quais
leis deveriam ser usadas no julgamento dos acusados. Afinal, os
camaradas de Hitler argumentaram com bastante propriedade que
não haviam quebrado lei alguma; suas ações foram executadas sob
a proteção de seu sistema legal. Eles não podiam ser acusados de
assassinato, pois a definição de “pessoa” fora alterada para excluir os
judeus e outros indesejáveis. Esses homens haviam simplesmente
seguido as leis impostas pelos tribunais de sua época. Como pro­
testou Eichmann antes de sua execução: “Eu estava apenas seguin­
do as leis da guerra e da minha bandeira”.

I7I b i d . , p. 240.
A igreja é ludibriada 151

Nos EUA, um grupo de manifestantes que fazia piquete em fren­


te a uma clínica de abortos foi acusado de difamação ao afirmar
que esses médicos cometiam assassinato. Os médicos argumenta­
ram, assim como teriam feito os representantes de Hitler, que não
poderiam ser assassinos pois não estavam infringindo lei alguma. A
experiência de Nuremberg e o silencioso Holocausto nas clínicas
de aborto testemunham eloqüentemente que, quando o Estado
não se responsabiliza por ninguém além de si mesmo, supõe que
tudo o que for legal é ético. A lei é tão-somente o que os tribunais
disserem que é.
A controvérsia em Nuremberg foi solucionada quando Robert
H. Jackson, o principal consultor jurídico dos EUA, foi forçado a
apelar a valores permanentes; valores que transcendiam qualquer
sociedade em especial. Ele propôs que existia uma “lei acima de
toda as leis”, que julgava as opiniões arbitrárias dos homens. Entre­
tanto, creio firmemente que nenhuma lei desse tipo pode originar-
se da natureza ou da experiência humana, mas somente com base
na revelação divina.18
À medida que caminhamos em direção às leis sociológicas arbitrá­
rias, o Estado expandirá seus poderes e, assim, ou a igreja acompa­
nha essas mudanças ou encara as conseqüências.
O anticristo, assim como Hitler, também transformará o mun­
do ao alterar as leis. Daniel 7.25 diz que ele “tentará mudar os tem­
pos e as leis”. Como Hitler, ele começará com mentiras, a seguir
fará leis e por fim será adorado como senhor. Seu poder se expandi­
rá tanto em amplitude, como na invasão de detalhes da vida co­
mum. Ele será outro Hitler, mais poderoso, com mais credibilidade,
mais blasfemo e mais cruel.
Hitler acreditava que a propaganda deveria preceder a transfor­
mação do Estado. Atualmente, podemos ver como a mídia pode
moldar os valores da cultura, ajudando a criar uma sociedade que

18Citação extraída da obra de John Warwick Montgomery, The law above the
law (Menneapolis: Bethany, 1975), p. 25-6.
152 A cruz de H itler

combate os valores do passado. Qualquer que seja o aspecto — o


aborto, os direitos especiais dos homossexuais ou uma agenda “po­
liticamente correta” — que impeça a livre expressão; a postura de
uma nação pode mudar se um número suficiente de pessoas disser
a mesma coisa reiteradamente. Mentiras, muitas vezes, acabam se
tornando leis.
Nós traçamos uma visão global. Agora, veremos esses aconteci­
mentos de dentro da igreja. Tentaremos compreender o conflito,
ouvir as discussões e aprender com os que têm algo a nos ensinar. E
devemos imaginar o que teríamos feito, caso tivéssemos vivido
naquela época tão perigosa.
A igreja é dividida ^
“ f i
CAPÍTULO SEIS

“Confesse! Confesse! Confesse!”


As palavras ressoavam pelo templo da Igreja Luterana da Trinda­
de, em Berlim. Um jovem teólogo insistia para que a congregação
acordasse para sua responsabilidade, no momento em que seu tes­
temunho e força eram, mais do que nunca, extremamente necessá­
rios. Se a igreja se firmasse sobre Cristo, a Rocha, então:
A igreja não nos será tomada [...] venha você que foi abando­
nado, você que perdeu a igreja; retornemos às Sagradas Escri­
turas, busquemos juntos a igreja [...] pois aqueles momentos,
quando a compreensão humana se desintegra, podem m uito
bem ser um a grande oportunidade de edificação [...] Igreja,
permaneça igreja [...] Confesse! Confesse! Confesse!1

A data era 23 de julho de 1933. O jovem teólogo era Dietrich


Bonhoeffer. Em janeiro do mesmo ano, Hitler ocupara a chancela­
ria da Alemanha. No dia imediatamente posterior, esse jovem, que
não se deixava enganar pelas intenções do Führer, fez um discurso
nas rádios alertando que quando as pessoas idolatravam um líder “a
imagem desse líder gradualmente se tornava a imagem de um enga­
nador’. E, assim, esse líder fazia de si mesmo um ídolo e zombava

•Eberhard B eth g e, Dietrich Bonhoeffer, New York: Harper & Row, 1970, p. 228.
154 A cruz de H itler

de Deus”. Antes que essas últimas frases fossem transmitidas, o


microfone de Bonhoeffer foi misteriosamente desligado.
Bonhoeffer continuava relembrando a quem quisesse ouvir, que
a igreja possuía o único altar, do Todo-Poderoso, perante o qual
deveria se prostrar. Ele dizia que o orgulho da igreja deveria ser
repreendido pela humilhação da cruz.
A vitória de Deus significa nossa derrota, nossa humilhação,
significa a fúria zombadora de Deus contra toda a arrogância
humana, que nos enaltece em demasia ao tentar ser importan­
te em si mesma. Significa a cruz sobre o m undo [...] A cruz de
Cristo, que significa o desprezo implacável de Deus por toda
grandeza humana, o sofrimento amargo de Deus pelo que há
de mais profundo no ser hum ano, o dom ínio de Deus sobre
todo o m undo [...] juntam ente com Gideao, ajoelhem o-nos
perante o altar e digamos: “Senhor crucificado, que somente
tu sejas o nosso Senhor. Am ém ”.2

A crise de que falamos, em parte, era apenas o conflito entre


Hitler e o cristianismo; pois, ela era principalmente a luta da igreja
contra si mesma; era a luta do falso contra o verdadeiro, da suástica
contra a cruz. Foi uma luta dentro da igreja que, voluntariamente,
abraçou o nacionalismo alemão daquele momento. Bonhoeffer
insistia que somente Jesus poderia resgatar a igreja naquele mo­
mento crítico, o Cristo livre das idéias nacionalistas e da cultura
alemã. A igreja deveria anunciar o Cristo que estivesse acima da
política, acima do sagrado e do secular.
Os “cristãos alemães”, que conhecemos no último capítulo,
estavam comprometidos em alinhar a igreja com o nazismo. Eram
favoráveis à deposição das autoridades de cada distrito para que
todos os protestantes se unissem à Igreja do Reich, ou seja, uma

2Mary B o s a n q u e t , The life anddeath ofDietrich Bonhoeffer, London: Hodder


& Stoughton, 1968, p . 121-2.
A igreja é dividida 155

igreja nacional e universal. Obviamente, havia uma enorme opo­


sição a esse plano, mas eles acreditavam que se essa escolha fosse
feita por intermédio de eleições livres, a integridade da igreja seria
mantida.
Hitler surpreendeu os protestantes ao insistir que seu amigo
pessoal, Ludwig Müller, fosse eleito bispo do Reich. Logicamente,
houve uma imediata resistência a essa intrusão do Estado na “es­
fera espiritual”. Os luteranos estavam divididos. Alguns apoia­
vam o dr. Bodelschwingh, um homem respeitado e profunda­
mente piedoso. Os “cristãos alemães”, que também eram conhe­
cidos por “Movimento da fé”, apoiavam o candidato de Hitler.
Após um acalorado debate na conferência de delegados regionais,
em 27 de maio de 1933, Bodelschwingh foi eleito-pela maioria.
Em seu discurso de posse, prometeu manter-se acima dos debates
internos da igreja e colocar-se à disposição da igreja como um
“serviço à nação”.
As semanas seguintes demonstraram que aquele cristão, muito
gentil, não conseguia enxergar a importância das correntes ideoló­
gicas que varriam a Igreja Luterana. Ele não percebeu que lhe seria
impossível ficar “acima da batalha”, na igreja que se alinhara, de
forma voluntária, com o nazismo.
Os “cristãos alemães” se opuseram a ele de forma hostil. Ata-
cavam-no na imprensa e nas rádios, insistindo que M üller era
mais qualificado para liderar a igreja, devido ao seu estreito vín­
culo com Hitler. O bispo do R eich, diziam, só deveria ser eleito
após a ratificação da nova Constituição. Sob pressão, Bodel­
schwingh foi forçado a renunciar. Isso despertou o ressentimen­
to dos que estavam irritados com as táticas grosseiras das forças
pró-nazistas. Cinqüenta pastores assinaram uma declaração de
protesto.
Nesse meio tempo, os “cristãos alemães” finalizaram a nova
Constituição da igreja, que foi reconhecida pelo Reichstag em 14
de julho de 1933. Seu slogan era: “Um Estado, um povo, uma
igreja”. Eles apoiavam o “cristianismo positivo” de Hitler, afirman­
156 A cruz de H itler

do o que Hermann Gruner declarou: “Hitler é o caminho do Espí­


rito e a vontade de Deus para o povo alemão fazer parte da igreja de
Cristo”.3 Esses cristãos enfeitavam seus altares com bandeiras nazis­
tas e orientavam suas congregações a usar a saudação nazista.
Uma semana mais tarde, em 23 de julho, foi marcada uma elei­
ção nacional, e Hitler foi às rádios declarar seu apoio a todos os
candidatos, em todo o território alemão, vinculados aos “cristãos
alemães”. Em seu discurso, disse que o Estado queria garantir a
independência da igreja, mas que isto só poderia acontecer se a igre­
ja tivesse líderes comprometidos com “a liberdade desta nação”. A
seguir, continuou o discurso, dando sua aprovação direta aos “cris­
tãos alemães”, elogiando-os pelo apoio ao Estado nacional-socialis-
ta. Milhares de pessoas que há anos não passavam nem de perto da
porta de uma igreja compareceram à votação e, como previsto, os
candidatos de Hitler venceram. Tudo o que fora necessário para
que Ludwig Müller fosse eleito bispo do Reich pelos representantes
das igrejas.
Bonhoeffer estava profundamente angustiado. No mês seguin­
te, em agosto de 1933, enviou uma carta à sua avó, prevendo que
havia um movimento em direção à formação de uma igreja nacio­
nal, enorme e popular, cuja natureza não poderia ser compatível
com o cristianismo. Ele disse:
D evem os estar preparados para en trar em cam inhos com ­
pletam ente novos. O conflito é na verdade entre o germanismo
e o cristianism o, e quanto antes esse conflito vier a público,
melhor. Nada poderia ser mais perigoso que essa dissimula-
4
Ç ao.

No mês seguinte o conflito veio a público.

3Geffrey B. K e lly , The life and death o f a Modern Martyr, Christian History
10, n.° 4, 19 9 1. p. 11.
4B e th g e , Dietrich Bonhoeffer, p. 2 3 2 .
A igreja é dividida 157

0 SÍNODO PARDO
Em 5 e 6 de setembro de 1933, o antigo Sínodo Geral Prussiano
reuniu-se em Berlim. Havia delegações de pastores e líderes eclesi­
ásticos vestidos com uniformes nazistas e usando a saudação nazis­
ta. O sínodo rapidamente tomou a forma de uma demonstração, e
não de uma reunião de debates. Eles confirmaram Ludwig Müller
como bispo e demitiram os superintendentes gerais em exercício, a
fim de substituí-los por indivíduos leais ao programa nacional-so-
cialista. Adotaram o que era conhecido por “cláusula ariana”, que
impedia todos os que tivessem sangue judeu de ocupar um púlpito
na Alemanha. Ali, exigiram que todos os pastores assinassem essa
declaração e dessem “apoio incondicional ao Estado nacional-socia-
lista”. Quando a oposição teve a possibilidade de se expressar, foi
silenciada pelos gritos de seus oponentes.

A igreja é o lugar onde gentios e judeus


cristãos “se reúnem sob a Palavra de
Deus”; só essa submissão comprova
que a igreja ainda é igreja.

Esse sínodo, conhecido por “Sínodo Pardo” (graças aos unifor­


mes nazistas da SA dos delegados), não insistiu na renúncia dos que
já eram pastores e possuíam sangue judeu, mas apenas que novos
candidatos judeus fossem considerados inelegíveis para o ministé­
rio. Assim, foi exigido que todos os pastores comprovassem ser de
descendência ariana.
A responsabilidade da ata dessa infame reunião caiu sobre os
ombros de Martin Niemõller, um homem cujo nome tornou-se
famoso pela resistência à nazifxcação da igreja. Ele fora tenente da
marinha e comandante de submarino na Primeira Guerra Mundial;
porém, foi ordenado em 1924 e tornou-se um pastor influente nos
158 A cruz de H itler

subúrbios de Berlim. De início, acolheu muito bem o partido na­


zista, acreditando que ele era a melhor esperança para a Alemanha.
Na realidade, ele enviou um telegrama a Hitler, congratulando-o
por ter retirado a Alemanha da Liga das Nações e agradecendo pelo
seu “ato viril e declaração inequívoca em defesa da honra da Alema­
nha”. O telegrama terminava com uma expressão de “apoio leal e
devoto”.
Após observar o Sínodo Pardo em primeira mão, Niemõller
reconheceu que havia chegado a hora de um protesto ativo. Tor­
nou-se amigo de Dietrich Bonhoeffer, e eles se reuniram para dis­
cutir o que poderia ser feito. Bonhoeffer escrevera um ensaio so­
bre o absurdo de alguém ser afastado da igreja devido a razões
biológicas. A igreja, dizia, é o lugar onde gentios e judeus cristãos
“se reúnem sob a Palavra de Deus”; só essa submissão comprova
que a igreja ainda é igreja. Outros líderes tentaram evitar conside­
rar de forma negativa a decisão do Sínodo, dizendo que talvez
houvesse apenas onze pastores em toda Prússia que poderiam ser
afetados por ela. Quem sabe essa concessão ao nazismo devesse
ser permitida por causa do interesse da questão mais fundamen­
tal, a de “espalhar o Evangelho”.
Bonhoeffer e Niemõller desligaram-se completamente da igre­
ja. No mesmo instante que os “cristãos alemães” comemoravam
sua vitória, Deus estava em ação. Sua mao de juízo estava pesando
sobre a igreja, mas ele também se lembrou de sua misericórdia. Ele
dera ao povo a chance de se posicionar. Os que acreditavam que o
Evangelho não deveria fazer concessões, tiveram a oportunidade de
“confessar a Cristo perante os homens”.
Para citar as palavras de um observador: “Os juízos de Deus
eram o véu sobre sua graça onipresente”. A graça velada daria aos
verdadeiros crentes a coragem necessária.

A LIGA PASTORAL DE EMERGÊNCIA


Em 21 de setembro de 1933, apenas duas semanas após o Sínodo
Pardo, Bonhoeffer e Niemõller reuniram-se com um grupo chamado
A igreja é divid id a 159

“os jovens reformadores , para tormar a Liga Pastoral de Emergên­


cia. Eles se comprometeram a combater a “cláusula ariana” e a ado­
tar uma postura contrária à intrusão do nazismo na igreja. Não
devemos nos esquecer de que eles não falavam em lutar contra o
nazismo como força política, apenas insistiam que esse movimen­
to político não invadisse a esfera espiritual. Uma carta assinada por
ambos foi enviada aos pastores.5 De forma mais específica, os ob­
jetivos da Liga Pastoral de Emergência eram os seguintes:
1. Renovar a fidelidade às Escrituras e à doutrina.
2. Resistir aos que atacavam as Escrituras e a doutrina.
3. Dar ajuda financeira e material aos que sofriam violência ou
eram perseguidos pela lei.
4. Repudiar a “cláusula ariana”.

A carta imediatamente granjeou cerca de duas mil assinaturas e,


no fim de 1933, esse número chegou a seis mil. Os novos bispos
que foram eleitos com uma agenda pró-Hitler, logicamente, se en­
fureceram e mantiveram silêncio.

A suástica foi, na verdade, adotada


como a nova cruz, na mesma catedral
que Lutero, quatrocentos anos antes,
pregara a cruz de Cristo!

Quando um questionário foi enviado a todos os pastores, exi­


gindo que comprovassem seus ancestrais, Niemõller recusou-se a
obedecer e exortou os outros a seguir sua orientação. Ele sabia que
sua ação era uma desobediência ao Estado, mas ele levava a sério as

5Ibid., p. 241.
160 A cruz de H itler

palavras da Bíblia: “Não há judeu nem grego, escravo nem livre,


homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus” (G13.28).
Ele e Bonhoeffer acreditavam que os que assinassem a “cláusula
ariana” estariam se separando da igreja de Cristo.
A Liga Pastoral de Emergência logo teria a oportunidade de tes­
tar sua força, ao realizar um protesto formal. Seis dias após a carta
ter sido enviada aos pastores, um sínodo nacional foi reunido para
eleger Ludwig Müller à posição de bispo do Reich, unificando, des­
sa maneira, todas as denominações protestantes em uma organiza­
ção nacional. Não havia candidato de oposição.
Ironicamente, o sínodo foi realizado na igreja do castelo de
Wittenberg, onde Martinho Lutero pregara suas 95 teses. Ludwig
Müller foi eleito bispo do Reich, por unanimidade, e outros “cris­
tãos alemães” foram eleitos bispos regionais. Tudo isso aconteceu
bem ao lado da tumba onde Lutero estava enterrado. Assim, em

Sínodo Nacional em Wittenberg, 1933.


A igreja é dividida 161

uma daquelas ironias que não deixa o simbolismo passar desperce­


bido, a suástica foi, na verdade, adotada com o a nova cruz, na mes­
ma catedral que Lutero, quatrocentos anos antes, pregara a cruz de
Cristo!
Bonhoeffer e Niemõller estavam presentes na reunião em
Wittenberg em 27 de setembro de 1933. Distribuíram panfletos
aos delegados, assim como pregaram esses panfletos nas árvores.
“Não deixaremos de combater o que destrói a natureza da igreja.”
Quanto à resposta da igreja nacional aos panfletos foi relatado,
posteriormente, que a cidade de Wittenberg estava repleta de boa­
tos e que “o inimigo estava fazendo com que sua presença fosse
sentida”.
Quando Ludwig Müller foi eleito, Bonhoeffer, que estava em
pé nos fundos da igreja, cochichou para um amigo: “Você acaba de
testemunhar a morte da igreja na Alemanha!”. Na verdade, a falsa
igreja já morrera, e muito embora a verdadeira igreja estivesse a
ponto de aventurar-se na luta por sua sobrevivência, a vida ainda
emanaria dela.
Bonhoeffer, que se comprometera a tornar a igreja o que ela
devia ser, viu-se diante de uma importante decisão: será que deveria
continuar a lutar contra o nazismo dentro da própria Alemanha,
ou deveria aproveitar a oportunidade para ir para o exterior? Após
refletir, ele tomou sua decisão.

BONHOEFFER DEIXA A ALEMANHA


Bonhoeffer lecionava na Universidade de Berlim e estava desiludido
com a aceitação da filosofia nazista na universidade. Desde que fora
rejeitado para o pastorado na Alemanha devido à sua visão teológica,
optou por pastorear duas igrejas de língua alemã em Londres. Apesar
de ser criticado por alguns, que achavam que ele estava simplesmente
fugindo da batalha, ele insistia que estava apenas mudando sua estra­
tégia. De Londres, incitava a oposição à Igreja do Reich. Tentou reu­
nir igrejas internacionais em torno de uma posição antinazista, com a
finalidade de apoiar a igreja cristã confessional.
162 A cruz de H itler

Em uma reunião internacional da Aliança Mundial na Dinamarca,


Bonhoeffer fez um discurso inflamado, no qual perguntava como as
igrejas poderiam justificar sua existência, se não tomassem providênci­
as para interromper a constante marcha da Alemanha em direção à
guerra. Ele exigiu que o conselho ecumênico falasse abertamente,
de form a que o m undo, ainda que rangesse seus dentes, não
teria como deixar de ouvir; de forma que as pessoas se regozijarão
devido ao fato de a igreja de Cristo ter, em nom e de Cristo,
tomado as armas das mãos de seus filhos, proibido a guerra e
proclamado a paz de Cristo contra o m undo ensandecido.6

Aqui, Bonhoeffer apresentou uma de suas mais fortes defesas


do pacifismo, declarando que os cristãos não podem utilizar ar­
mas uns contra os outros, porque sabiam que ao fazê-lo, mira­
vam essas armas contra o próprio Cristo. Em uma frase memorá­
vel, ele disse: “A paz deve ser encarada sem medo; pois ela é uma
grande aventura”.
Dois anos mais tarde, Bonhoeffer retornaria à Alemanha e inicia­
ria um seminário para os estudantes da Igreja Confessante. Com o
tempo, recuou em relação à posição pacifista, e se juntou à conspira­
ção para assassinar Hitler.

OS “CRISTÃOS ALEMÃES” REVELAM SEUS PLANOS


Em 13 de novembro de 1933, os “cristãos alemães” encenaram um
monstruoso comício no Palácio dos Esportes em Berlim. A de­
monstração iniciou-se com uma procissão de bandeiras nazistas. A
seguir, um coro entoou: “Agora, todos nós devemos agradecer ao
nosso Deus”, e trombetas retumbavam: “Castelo forte é nosso Deus”.
Nas declarações iniciais, foi dito que o Movimento da Fé ainda não
alcançara todos os seus objetivos, e que o “inimigo teria que ser perse­
guido até que fugisse em confusão”.

sKelly, The life a n d death of'a m odern martyr, p. 13.


A igreja é dividida 163

Mais tarde, o dr. Krause, um dignitário dos “cristãos alemães”,


fez um discurso surpreendente, se não blasfemo, às vinte mil pesso­
as presentes. Pediu pela segunda “reforma” alemã. Interrompido
por aplausos estrondosos, ele declarou que se a igreja quisesse ter
um lar na Alemanha, o primeiro passo seria
a libertação da liturgia e da declaração de fé que não fossem
alemãs, a liberação do Antigo Testamento, com sua ética de
recompensa judaica, e de todas as histórias de negociantes de
gado e cafetões [...] as nossas igrejas nas províncias também
terão de tom ar providências quanto aos relatos obviam ente
distorcidos e supersticiosos do Novo Testamento, os quais de­
verão ser expurgados, e que toda teologia de inferioridade e de
bode expiatório, apresentada pelo rabino Paulo, deverá ser, em
princípio, renegada, pois ela perpetuou um a falsificação do
Evangelho.7

Outro palestrante reclamou que “a exagerada exposição do Cris­


to crucificado é intolerável na igreja alemã”.
Lutero, não seria preciso dizer, teria ficado escandalizado com
essa “segunda reforma”, em que era apregoada a renúncia ao Antigo
Testamento, a depreciação de Cristo, e a acusação de que Paulo
deveria ser descartado por ter falsificado o Evangelho. Acima de
tudo, ele teria conclamado a igreja a se arrepender por ter humilha­
do a cruz de Cristo, quando a uniram a planos políticos pagãos. Ele
teria afirmado que a igreja deixara de seguir a Cristo para seguir ao
anticristo.
A reunião deflagrou uma tempestade de polêmicas. Até mes­
mo alguns “cristãos alemães” ficaram ofendidos. Krause teve de se
demitir de sua posição e muitos líderes começaram a recuar na
nazificação radical da igreja. Porém, os danos já tinham sido cau­
sados. Os “cristãos alemães” seriam, a partir daquele momento,

7Peter M atheson , org., The ThirdReich and the Christian Churches, Grand
Rapids: Eerdmans, 19 8 1, p. 39-40.
164 A cruz de H itler

considerados anti-semitas radicais, anticristãos e contrários à doutri­


na de Paulo, conforme o que fora exposto na reunião. Até mesmo
Hitler recuou em seu apoio aos “cristãos alemães”, temendo que uma
divisão crescente fosse difícil de ser contida. Ele sabia que necessitava
do apoio da igreja para suas aventuras militares.
Niemõller não poderia permanecer em silêncio. Protestou junto
ao bispo Müller, do Reich, em nome da Liga Pastoral de Emergência,
requerendo a demissão de todos os bispos que não protestaram
contra aquele discurso blasfemo. No domingo seguinte, membros
da Liga leram uma declaração de protesto em suas congregações.

NIEMÕLLER SE ENCONTRA COM HITLER


Em 4 de janeiro de 1934, Müller, o bispo do Reich, emitiu o decre­
to que ficou conhecido por “Diretriz da Mordaça”, para restaurar a
ordem na igreja evangélica alemã. Os ministros foram proibidos de
incluir as questões controversas da igreja em seus sermões. Ele disse
que os cultos na igreja eram “para a proclamação do evangelho puro,
e somente para isso”.
Os pastores tiveram de lidar com a questão da definição de
“evangelho puro”. Seria possível que um pastor fosse fiel ao re­
banho, apenas pregando a mensagem do Cristo crucificado? Ou
existiam implicações que deviam ser vividas pelos cristãos? Qual
deveria ser o papel do pastor ao alertar e instruir o rebanho so­
bre os perigos da outra cruz? Ainda que o decreto contivesse
uma ameaça de expulsão, milhares de pastores desafiaram a di­
retriz de Müller.
Hitler começou a perceber que seria mais difícil subjugar a igreja
do que, a princípio, pensara. Ele disse que aprendera que “não é
possível quebrar a igreja com seus joelhos. Ela tem de ser abando­
nada para apodrecer como um membro gangrenado [...] mas a ju­
ventude saudável pertence a nós”. Por fim, ele certamente “tenta­
ria quebrar a igreja com seus joelhos”, mas naquele momento que­
ria mostrar-se conciliatório.
A igreja é dividida 165

Então, à guisa de uma demonstração de boa fé, em 25 de janeiro


de 1934, Hitler convocou os líderes das igrejas para uma conferên­
cia pessoal, na qual Niemõller estava incluído. Hitler havia recebi­
do a informação de que uma ruptura poderia estar se desenvolven­
do na igreja, e queria evitar que seu bispo fosse desacreditado. As­
sim, Niemõller e os outros membros do clero caminharam por
entre os guardas da ss, que serviam na chancelaria em Berlim, e
foram logo introduzidos no gabinete de Hitler. O bispo do Reich,
Ludwig Müller, estava de pé atrás do Führer.
Hitler começou repreendendo seus convidados, ao fazer um lon­
go discurso sobre como fora mal compreendido. “A paz”, dizia, era
tudo o que desejava; a “paz entre a igreja e o Estado”. Ele os culpou
por dificultar seu caminho e esforços para alcançar a paz.
Niemõller aguardava uma chance para falar e quando conse­
guiu, explicou que seu único objetivo era o bem-estar da igreja, do
Estado e do povo alemão. Hitler ouviu em silêncio e a seguir disse;
“Limite-se à igreja. Eu cuido do povo alemão”. A conversa, após
esse comentário, passou para outros temas.
Quando o encontro acabou, Hitler apertou a mão de todo o
clero e Niemõller se deu conta de que aquela seria sua última opor­
tunidade de se expressar claramente. Escolhendo cuidadosamente as
palavras, disse: “Você disse: ‘Eu cuido do povo alemão’. Porém, nós
também, como cristãos e homens do clero, temos responsabilidade
para com o povo alemão. Essa responsabilidade nos foi confiada por
Deus, e nem você nem ninguém neste mundo tem o poder de tirá-la
de nós”.8 Hitler os despediu sem dizer uma palavra.
Naquela noite, oito homens da Gestapo vasculharam a paróquia
de Niemõller em busca de material que pudesse incriminá-lo. Pou­
cos dias depois, uma bomba caseira explodiu no salão da igreja. A
polícia compareceu à cena, embora ninguém a tivesse chamado. As

8Dietmar S chmidt , PastorNiemõller, New York: Doubleday, 1959, p. 94. Esta


providencial biografia é a fonte da história sobre o encontro entre Niemõller e
I li der.
166 A cruz de H itler

ameaças foram mais fáceis de ser suportadas por Niemõller do que


as críticas que recebeu de alguns de seus colegas.
Na biografia intitulada Pastor N iemõller, Dietmar Schmidt diz
que Niemõller “viu-se como objeto de reprovação quase universal”
entre seus partidários. Eles o culpavam pelo fracasso da conferên­
cia, devido às palavras que dissera a Hitler. Vaticinaram que em vez
de demitir Müller de seu posto, Hitler, na verdade, fortaleceria a
posição de seu amigo. Um pastor procurou banir Niemõller com­
pletamente, ao dizer: “Parece que o pastor Niemõller está en­
tre nós. Eu acho que não temos nada mais para discutir com ele”.
Niemõller levantou-se e deixou o prédio sem dizer uma palavra.
Evidentemente, a maioria do clero adotara a postura de pôr a
segurança em primeiro lugar. Vários bispos começaram a desertar
de seus compromissos com uma igreja livre de interferências políti­
cas. Alguns se uniram aos “cristãos alemães”, insistindo na possibi­
lidade de um compromisso entre a igreja e o Estado. Alguns dias
mais tarde, dois mil pastores abdicaram de suas posições na Liga
Pastoral de Emergência. Eles acreditavam que Niemõller fora lon­
ge demais ao ser desleal com a maré crescente de apoio aos feitos
econômicos e políticos de Hitler.
Para sermos justos, devemos assinalar que alguns desses pastores
voltaram a apoiar Niemõller nos anos seguintes. Dietmar Schmidt
escreveu: “... pois o fato é que nem sempre existiam ‘frentes de
batalha nítidas nas batalhas religiosas da década de 1930. Os ‘cris­
tãos alemães’ e seus opositores jamais formaram legiões sólidas”.
Cada homem tinha de decidir por si mesmo a quem apoiar, man­
tendo-se atento ao próximo movimento de Hitler. Em todas essas
batalhas, diz Schmidt, “a ambição pessoal, a timidez, a indecisão e
o oportunismo estavam tão em evidência quanto a coragem, a per­
severança e o zelo cristão”.9
Um dia antes do encontro de Hitler com os pastores, ele indicara
um velho amigo, Alfred Rosenberg, para se encarregar da formação

9Pastor N iemõller, p. 96.


A igreja é dividida 167

espiritual do partido nazista. O objetivo de Rosenberg, como vi­


mos no capítulo anterior, era a criação da igreja alemã, onde não
houvesse espaço para os ensinamentos de Cristo. Ele asseverava que
“as verdades eternas não poderiam ser encontradas nos evange­
lhos [...], mas nos ideais alemães sobre o caráter. A educação na
Alemanha deveria, no futuro, fundamentar-se no ‘fato’ de que
o caráter alemão, e não o cristianismo, é a fonte de toda virtu­
de”.10 Ele quis substituir a Bíblia por M inha luta ou, preferivel­
mente, pelo seu livro, D er M y thus 20. Jahrhunderts [O m ito do
século xx], que ensinava que o povo alemão era a divindade que
todos deviam adorar.

A igreja teria de escolher entre um


Cristo que era o Senhor de uma “esfera
espiritual” diminuta e o Cristo
que é “Senhor de tudo”.

Dessa forma, o ano de 1933 findou e o de 1934 teve início,


com a igreja alemã passando por uma crise. O otimismo inicial de
que a igreja poderia formar um sólido bloco de oposição a Hitler
fora dissipado. E como se não bastasse, a batalha estava apenas co­
meçando. Com o passar do tempo, a igreja teria de suportar esco­
lhas cada vez mais duras. Mais batalhas ainda teriam de ser ganhas;
ou perdidas.

A FORMAÇÃO DA IGREJA CONFESSANTE (1934)


Sob a liderança de Bonhoeffer e Niemõller, a Liga Pastoral de
Emergência formou o núcleo do que seria chamado Igreja
Confessante. Bonhoeffer pregara que a igreja deveria assumir sua

,0Ibid„ p. 97.
168 A cruz de H itler

posição como igreja e dissera: “Confesse! Confesse! Confesse!”.


O momento para uma confissão pública e definitiva havia chegado.

A Declaração de Barmen
Em maio de 1934, a Igreja Confessante reuniu-se e adotou a De­
claração de Barmen, formulada pelo teólogo suíço Karl Barth. Muito
embora Bonhoeffer não estivesse presente na reunião, auxiliou na
preparação do evento por intermédio de contatos com Londres e
visitas à Europa. Sua liderança corajosa ajudou a preparar o cami­
nho para sua aceitação.
No livro The church’s confession under H itler [A confissão da igre­
j a sob o ju g o d e H itler], Arthur C. Cochrane escreve que a D eclara­
ção d e Barm en é “o mais importante documento que surgiu na
igreja desde a Reforma”.11 A igreja teria de escolher entre um Cris­
to que era o Senhor de uma “esfera espiritual” diminuta e o Cristo
que é “Senhor de tudo”. Bonhoeffer dissera que a “igreja devia ser a
igreja”. A D eclaração d e Barm en procurou responder à questão so­
bre o que a igreja deveria ser.
As divisões dentro da igreja são, logicamente, necessárias e apro­
vadas pelas Escrituras. Paulo escreveu aos coríntios carnais: “Pois é
necessário que haja divergências entre vocês, para que sejam conhe­
cidos quais dentre vocês são aprovados” (ICo 11.19). Quando a
apostasia é predominante, os que se agarram à verdade devem mar­
char sob outra bandeira. Embora não quisessem dividir a igreja, os
que assinaram a confissão sabiam que esse seria o efeito do docu­
mento.
Os pastores que assinaram a declaração de fé estavam assumindo
uma posição temerária; escolheram reafirmar a missão da igreja, no
momento em que ela estava sendo redefinida pela cultura político-
religiosa. Eles se reuniram para resistir unanimemente à exaltação do
Estado acima da igreja. Não há dúvidas de que tinham diversos desa­
cordos em outras questões teológicas, mas concordavam sobre a

"Philadelphia: Westminster, 1962, p. 14.


A igreja é dividida 169

necessidade de que a igreja prestasse contas som ente ao C risto da


Bíblia.
Em resposta às críticas de que tinham a intenção de dividir a
igreja, podemos ler no preâmbulo da confissão de fé: “A unidade
das igrejas evangélicas na Alemanha só pode passar a existir pela fé
na Palavra de Deus, por intermédio do Espírito Santo. Só então a
igreja será renovada”.
Em uma referência nada sutil à nazificação da igreja, a declaração
prosseguia reconhecendo que os princípios básicos da igreja vinham
sendo “sistematicamente prejudicados e anulados por princípios
estranhos [...] Quando esses princípios são aprovados [...] a igreja
deixa de ser igreja”.
O parágrafo fundamental que contradizia o ensino popular so­
bre as “duas esferas” trazia o seguinte: “Nós rejeitam os a falsa d ou tri­
na de que existem dom ínios na vida que não p erten cem a Jesus Cristo,
mas a outros mestres, esferas nas quais não temos d e ser ju stifica d os e
santificados p o r nosso Senhor"12 (grifo do autor). Os líderes reco­
nheceram que o papel do Estado era manter a harmonia e a paz,
mas não desempenhar a missão da igreja. Nenhum soberano hu­
mano deveria governar a igreja; ela deveria cumprir seu papel de
acordo com a Palavra de Deus.
Devemos nos lembrar que esse documento não criticava o na­
zismo como movimento político; naquele momento, a A le m a n h a
ainda não tinha visto o pior de Hitler. A lealdade ao Estado estava
tão profundamente entranhada na alma alemã, que um movimen­
to dessa natureza teria provocado uma resistência tenaz por parte
dos presentes.
Embora Bonhoeffer e Niemõller concordassem que a igreja deve­
ria ser independente do Estado, discordavam a respeito da natureza
do regime nazista. Há muito tempo, Bonhoeffer alertava contra as

12A Declaração de Barmen; citada em M atheson, org., The ThirdReich a n d the


Christian Churches, p. 46.
170 A cruz de H itler

intenções de Hitler e se opunha ás suas preparações para a guerra.


Entretanto, quando Niemõller censurou Ludwig Müller das esca­
darias de sua igreja, ele o fez com bandeiras nazistas penduradas nas
paredes de sua igreja e a saudação nazista sendo usada pela congre­
gação.
A lealdade a Hitler permanecia forte na Igreja Confessante. A
D eclaração de Barmen apenas dizia que a esfera política não tinha o
direito de se intrometer na esfera espiritual, e que os cristãos compro­
metidos tinham a ordenança de fé na plenitude de vida deles. Na­
quele momento, havia a ardente esperança de que fosse possível ser­
vir tanto a Deus como a César, sem que fosse necessário escolher
entre um e outro. Com o tempo essa esperança foi destruída.
A igreja achou difícil (alguns diriam impossível) movimentar-se
para resistir à autoridade política, ao mesmo tempo em que se
mantinha na “esfera apropriada”. A igreja só perceberia posterior­
mente que a obediência cega, até mesmo nos assuntos que perten­
ciam ao Estado, poderia ser uma violação dos princípios cristãos.
Muitos de nossos heróis cristãos eram infratores. Quer fosse John
Bunyan, que foi encarcerado em Bedford por sua pregação, quer
fosse Richard Wurmbrand, que foi espancado por ensinar a Bíblia
na Romênia comunista, os cristãos sempre afirmaram a existência
de uma lei acima da do Estado.
Dissidentes conscienciosos desobedeceram ao Estado durante sé­
culos, crendo que nenhum cristão pode participar de assassinatos,
mesmo em tempo de guerra. Todo cristão deve traçar esse limite de
acordo com suas convicções. Porém, se dissermos que sempre obe­
deceremos ao Estado, ele se tornará nosso Deus. Nós só podemos
dar a César o que pertence a César, quando dermos tudo o que pos­
suímos a Deus. Essas foram questões que a igreja alemã enfrentou.
Se a Igreja Confessante tivesse optado por se libertar da igreja
estabelecida, tornando-se independente, teria perdido o apoio fi­
nanceiro do Estado. Não se tratava de uma opção viável, pelo fato
de a Igreja Confessante declarar ser a verdadeira igreja, cuja herança
espiritual podia ser traçada até a Reforma. Os “cristãos alemães”
A igreja é dividida 171

asseveravam que eles eram a igreja legítima, crendo que Deus se


manifestara ao longo da história da Alemanha e, especialmente, na
ascensão de Hitler. Assim, a igreja alemã se esfacelou.
Seria desnecessário dizer que a D eclaração d e Barmen causou
uma comoção na Alemanha. Os pastores que a assinaram, ou que
até mesmo possuíssem uma cópia dela, eram perseguidos pela
Gestapo. Assim, planos para aterrorizar os “dissidentes” foram for­
mulados.
Quando os “cristãos alemães” fizeram o seu sínodo, Bonhoeffer
não compareceu. Simplesmente não os reconhecia como parte da
verdadeira igreja. Ele escreveu:
Temos de lutar pela verdadeira igreja, ou seja, contra a falsa
igreja do anticristo [...] Nós lutam os pelo cristianismo, não
apenas no que diz respeito à igreja na Alemanha, mas no m un­
do todo. Pois, em todas as partes da terra, serão encontrados os
poderes pagãos e anticristãos, que se apresentam abertamente
em nossa área de atuação.13

Se a verdade só puder ser encontrada na unidade, ele, no entan­


to, afirmava que a unidade só poderia ser alcançada pela verdade.
Dessa forma, os protestantes estavam divididos em dois grupos;
cada grupo afirmava constituir a igreja verdadeira e os legítimos her­
deiros da Reforma. Muitos pastores ficaram indecisos; outros espera­
ram simplesmente poder continuar no ministério sem escolher um
lado. Hitler, no entanto, não lhes permitiria o luxo da indecisão. Em
algum momento teriam de escolher entre César e Cristo. A suástica
não se contentaria com a lealdade a dois senhores.
A Igreja Confessante organizou seu segundo sínodo naquele mes­
mo ano em Dahlem, em 20 de outubro de 1934. A crueldade de
Hitler já não estava tão bem dissimulada como um dia estivera;
portanto a convenção declarou: “A igreja governamental do Reich
passou a destruir cruelmente a igreja, invocando o nome do Führer

13B o sa n q u e t, Life a n d death ofD ietrich Bonhoeffer, p. 163.


172 A cruz de Hitler

e valendo-se da cooperação dos poderes políticos [...] Isto significa


que existe um estado de emergência, e a igreja tem o direito de agir
a fim de sanar esse problema”.14 Niemõller disse claramente: “Obe­
decer a esses déspotas é desobedecer a Deus”.
Declarar um “estado de emergência” era realmente um movi­
mento ousado.
A Igreja do Reich foi condenada pelo sínodo, e o sínodo pediu que
a igreja acordasse para a crise de fé em que se encontrava. No entanto,
infelizmente, pouco foi feito para dar prosseguimento a essa corajosa
afirmação. Um requerimento foi feito ao bispo do Reich, para que ele
legitimasse o direito de existência da Igreja Confessante, mas esse re­
querimento ficou sem resposta. A perseguição foi incrementada com a
acusação de que a Igreja Confessante provocava agitação entre o povo,
incitando a deslealdade para com o Estado. Sob tamanha pressão, o
apoio à Igreja Confessante começou a se desgastar.

0 apoio em declínio
No terceiro sínodo realizado em Augsburgo, a Igreja Confessante
tratou de evitar as questões mais importantes. Nenhuma palavra
foi dita sobre a necessidade de a igreja possuir liberdade para pregar
e para ensinar o Evangelho. O “cristianismo positivo” de Hitler,
bem como suas implicações, não foram tratadas. Nem uma única
palavra foi dita a favor dos judeus.

- ..................- ........................... _________________________________________________________________________

Mesmo quando pregavam a cruz,


isso ocorria em um ambiente em que
havia indignação contra os judeus
e o desejo irresistível de ser um bom
alemão nacionalista.

14M atheson , Third Reich and the Christian churches, p. 50.


A igreja é dividida 173

Bonhoeffer e Niemõller enviaram uma carta a todos os pastores


confessantes, instando-os a permanecerem firmes. Parte de seu con­
teúdo era o seguinte:
Neste momento é a nossa falha que paira como anátema sobre
a Igreja Confessante f...] Trata-se de uma maldição que trou­
xemos sobre nós mesmos, pois renegamos o que Deus nos ha­
via confiado [...] Devemos retroceder e aceitar mais uma vez o
caráter obrigatório dessas decisões [dos dois sínodos, em
Barmen e em Dahlem]. Assim, seremos mais uma vez lidera­
dos com clareza. Não devemos nos afligir com o fato, confor­
me o percebemos, de que o futuro da igreja parece estar cober­
to por densas trevas; para nós, conhecer o que nos foi ordenado
deve ser suficiente.
Foi-nos ordenado que apresentemos uma resposta clara e
sem concessões a todas as tentações de resolver o problema da
igreja de forma que contradiga as decisões de Barmen e Dahlem.
Que Deus nos ajude — se chegarmos a esse ponto — a sermos
capazes de falar não, de bom grado e unidos.15
A carta não obteve grande reação. Muitos pastores ainda pensa­
vam que o acordo fosse possível, pois tinham a esperança de que
Hitler legitimasse a Igreja Confessante em troca do apoio silencio­
so às suas aventuras militares e ao patriotismo. Eles esperavam que
a diplomacia desse melhores resultados que o confronto ousado.
Bonhoeffer continuou a estimular a oposição à igreja nacional,
que continuava a buscar a lealdade do povo alemão. Falava aberta­
mente sobre o anti-semitismo do Reich e do vergonhoso silêncio
das igrejas diante de tamanha injustiça. Perguntava: “Onde está seu
irmão Abel?”.
Era impossível estruturar uma oposição unificada contra o tra­
tamento que os nazistas davam aos judeus. A igreja nao estava

15B o s a n q u e t, Life anddeath ofD ietrich Bonhoeffer., p. 165.


174 A cruz de H itler

inteiramente neutra sobre o assunto, mas apoiava em silêncio, e


muitas vezes de forma pública, que os judeus fossem excluídos da
vida alemã normal. Eis um trecho da carta de um pastor ao editor
de um jornal alemão, expressando sua gratidão por sua posição na
questão judaica:
Apoiam os entusiasticam ente sua luta contra os escaravelhos
judeus que corroem nossa nação [...] e igualmente contra os
amigos do judaísm o que são encontrados mesmo nas fileiras
do clero protestante. Lutaremos ao seu lado, e não desistire­
mos até que a luta contra o judaísmo e contra os assassinos de
nosso Salvador tenha chegado ao fim vitorioso, no Espírito de
Cristo e de M artinho Lutero.
Com o verdadeiro companheiro o saúdo: H eil HitleA
Pastor R iechelm ann16

Poucos pastores estavam dispostos a ser irmãos dos judeus. Eles


já estavam cansados de lutar contra o rolo compressor nazista. Di­
vididos entre Deus e César, muitos pastores tentavam servir a am­
bos. Pregavam, ensinavam e cantavam hinos em igrejas adornadas
com suásticas. Mesmo quando pregavam a cruz, isso ocorria em upi
ambiente em que havia indignação contra os judeus e o desejo
irresistível de ser bons alemães nacionalistas.
Por intermédio de astutas manipulações, os “cristãos alemães” to­
maram as virtudes da igreja e as usaram em seu benefício. Apelando
ao patriotismo e à necessidade prática, reuniram muitos pastores in­
decisos sob sua bandeira. A Igreja Confessante começou a perder sua
influência. Anos mais tarde, Bonhoeffer escreveu no livro Etica: “Se
o mal aparece em forma de luz, de benefícios, de lealdade e de reno­
vação, e se ele atende às necessidades históricas e à justiça social, en­
tão, se ele for claramente compreendido, trata-se de uma prova evi-

16J. S. C o n w a y , The N azipersecution o f the churches 19 3 3 -19 4 5 , New York:


Basic Books, 1968, p. 377.
A igreja é dividida 175

A Juventude Hitlerista marchando pelas ruas de Breslau,


durante o Festival de Esportes de 1938.
176 A cruz de H itler

dente de sua profunda perversidade”.17 A confissão de fé ainda era


professada, mas não tao alto como antes.
Hitler, logicamente, não considerava que a Alemanha tivesse es­
paço para dois deuses. Ao se contentar, a princípio, com duas cru­
zes nas igrejas, acabou por exigir que houvesse apenas uma. Nem a
cruz nem a suástica poderiam tolerar a lealdade dupla.
Uma escolha tinha de ser feita: os que escolhessem a cruz teriam
de andar por um caminho solitário em uma única direção; os que
escolhessem a suástica caminhariam passo a passo com a grande
multidão. Os que escolheram a suástica participaram do destino de
seu líder; e os que escolheram a cruz descobriram que ela “é o poder
de Deus para a salvação” (Rm 1.16).
Essas escolhas ainda aguardavam a igreja, que seria ainda mais
profundamente purificada.

17São Leopoldo: Sinodal, 6. ed., 2002, p. 68.


A igreja é desmembrada

CAPÍTULO SETE

No início de 1934, Martin Niemõller subiu ao púlpito de sua igreja


que ficava em Dahlem, no subúrbio de Berlim, e declarou profeti­
camente os propósitos de Deus nas provações que a igreja alemã
enfrentaria:
Todos nós — igreja e comunidade — fomos lançados na peneira
do Tentador, e ele nos joeira e o vento sopra, para que seja mani­
festo se somos trigo ou joio! Verdadeiramente, chegamos ao tempo
de sermos separados, e até mesmo quem dentre nós for mais
pacífico e apático poderá ver que a calma do cristianismo conci­
liatório está no fim...
Agora estamos na prim avera da igreja cristã esperançosa e
otimista — é hora de provação, e Deus está dando carta bran­
ca a Satanás para que ele possa nos provar, para que se possa ver
que tipo de pessoa somos!...
Satanás mexe a peneira e o cristianismo é jogado para lá e
para cá; e quem não está pronto para sofrer, e se denom ina
cristão apenas para com isso ter a esperança de conquistar algo
bom para a sua raça e nação, é soprado como o joio pelo vento
destes tem pos.1

'Apud J. S. C o n w a y , The nazipersecution ofthe churches 19 3 3 -19 4 5 , New


York: Basic Books, 1968, em uma página de abertura que não foi numerada.
178 A cruz de H itler

Deus deixou Satanás livre para joeirar toda a igreja alemã, a


fim de que o joio fosse separada do trigo. Cristo não abandonou
seu povo; se eles tivessem confiado a alma deles a Jesus, ele teria
caminhado com eles através do fogo da aflição. Cristo prometeu
edificar sua igreja e que “as portas do Hades não poderão vencê-
la” (Mt 16.18). A igreja, ainda que pequena e humanamente fra­
ca, prevaleceria.
Não devíamos nos surpreender com o fato de Deus muitas ve­
zes julgar sua igreja com rigor. À igreja de Éfeso, que havia perdido
o primeiro amor, Cristo enviou um aviso: “Arrependa-se e pratique
as obras que praticava no princípio. Se não se arrepender, virei a
você e tirarei o seu candelabro do lugar dele” (Ap 2.5). O “candela­
bro” na igreja alemã fora, em sua maior parte, arrancado de seu
lugar, quando a cruz perante a qual todos os homens deviam se
curvar foi substituída pela falsa cruz, com a qual os homens mar­
chavam orgulhosamente.
Mais para o fim deste capítulo seremos apresentados a um teó­
logo alemão, que nos dirá que as forças do mal foram liberadas na
Alemanha nazista porque a cruz de Cristo fora derrubada. Ele acre­
dita que a igreja foi esmagada contra a rocha chamada Deus, por­
que “de Deus não se zomba” (G16.7). E quando a cruz passou a ser
confundida com a suástica, ela já não era “o poder de Deus para a
salvação”.
Mesmo no juízo houve misericórdia. Muitos crentes verdadei­
ros experimentaram a força de Cristo ao serem sustentados, con­
fortados, fortalecidos e purificados por ele. Em algumas igrejas, as
reuniões de oração e de evangelismo continuaram. A igreja não es­
tava destruída, ainda que tivesse sido depurada e seu número de
membros fosse inferior ao esperado.
Bonhoeffer, para começar, continuou a insistir corajosamente
no retorno da igreja para Cristo. Em janeiro de 1936, discursou
pela última vez em um encontro de pastores confessantes. Devido
ao reduzido apoio, instou os líderes para que retornassem à sua mis­
são, independentemente do custo envolvido. Alguns de seus alunos,
A igreja é desm em brada 179

presentes nessa reunião, foram mais tarde criticados por suas explo­
sões de raiva durante o debate. Essa crítica foi usada por alguns para
desacreditar tudo o que Bonhoeffer disse e defendeu. Ele respondia
às críticas dizendo que essas questões eram insignificantes, diante
da crise vivida pela igreja: “Algo muito sério está em jogo, ou seja,
a necessidade de reconhecermos que só a Palavra de Deus tem auto­
ridade”.2
Bonhoeffer não conseguia respeitar os pastores que continua­
vam a apoiar os “cristãos alemães”. Ele compreendia a pressão exis­
tente para que fizessem concessões, mas instava com quem tinha a
responsabilidade de pregar o Evangelho para que permanecessem
firmes. Relatava que um de seus alunos havia optado por deixar a
Igreja Confessante para se associar à Igreja do Reich. Bonhoeffer
passou horas debatendo com ele, frisando que retroceder seria o
mesmo que voltar suas costas para Cristo. Ele ficou profundamen­
te magoado quando o aluno optou por seguir o caminho da aco­
modação.
Ele também estava desapontado pelo fato de tão poucos esta­
rem dispostos a pagar o preço para serem fiéis ao Evangelho de
Deus. Apesar de sentir-se muito só, ele não se deixava abater, firme
na crença de que a Igreja do R eich tornara-se apóstata. “Devo dizer
que, na minha opinião, qualquer um que se submeta em qualquer
aspecto aos Comitês Eclesiásticos (da Igreja do Reich), não pode
permanecer membro de nossa igreja.”

AS ÚLTIMAS ETAPAS DO DECLÍNIO


Após 1936, a igreja viu suas esperanças minguarem e teve de en­
frentar uma avalanche de desespero. Muitos vacilaram em seu com­
promisso com Cristo à medida que a perseguição aumentava. No
entanto, alguns membros da Igreja Confessante continuaram pro­
testando de todas as formas ao seu alcance.

2Mary B osanquet , The life anddeath ofDietrich Bonhoeffer, London: Hodder


& Stoughton, 1968, p. 166.
180 A cruz de H itler

Um memorando para Hitler


Em maio de 1936, a liderança da Igreja Confessante enviou um
memorando a Hitler, pedindo-lhe que respondesse diretamente “se
o esforço de descristianizaçao do povo alemão havia se tornado a
política oficial do governo”. Esse comunicado declarava corajosa­
mente:
Quando o hom em ariano é glorificado, a Palavra de Deus testifica
a Q ueda de todos os hom ens; quando o anti-sem itism o é
im pingido aos cristãos no contexto da cosmovisão do nacio-
nal-socialismo, obrigando-os a odiar os judeus, a ordem para
que amemos o nosso próximo aponta no sentido oposto.

O memorando listava exemplos de como o Estado se introme­


tera na vida da igreja, tentando substituir o cristianismo pela ideo­
logia nazista. O documento finalizava com exortações, que Hitler
não tinha como deixar de entender:
M esm o um a causa sublime pode acabar por levar a nação à
destruição, caso se posicione contra a vontade revelada de Deus.
A igreja de Cristo resistirá, mesmo que no esforço de descris-
tianização do povo alemão, milhões de cristãos evangélicos aca­
bem por perder sua salvação [...] O nosso povo ameaça ultra­
passar os limites estabelecidos por Deus. [O nazismo] procura
ser a medida de todas as coisas. Isso é arrogância hum ana que
se coloca contra Deus.3

Hitler ignorou o memorando, mas optou por responder quan­


do o conteúdo chegou ao conhecimento da imprensa internacio­
nal. A Gestapo passou a rondar de forma violenta os pastores da
Igreja Confessante. Por fim, mais de oitocentos pastores acabaram sendo
presos e alguns chegaram a morrer nos campos de concentração. Nin­
guém mais podia cogitar seriamente a possibilidade de acordo.

3Peter M atheSON, org., The Third Reích and the Christian churches, Grand
Rapids: Eerdmans, 19 8 1, p. 58-60.
A igreja é desm em brada 181

Dr. Kerrl, um amigo de Hider que substituiu Ludwig Müller


como bispo do Reich, finalmente admitiu que o “cristianismo po­
sitivo” de Hitler era extremamente diferente da fé histórica.
Não, o cristianismo não depende da doutrina dos apóstolos
[...] O verdadeiro cristianismo é personificado pelo partido, e
agora o povo alemão é chamado pelo partido, e em especial
pelo Fiihrer, para o verdadeiro cristianismo [...] O Führer é o
arauto da nova revelação.4
Esta “nova revelação” tentaria destruir a antiga. Hitler substi­
tuiria Cristo. O novo messias não toleraria outro deus em sua
presença.

A prisão de Niemõller
Em junho de 1937, o dr. Niemõller fez seu último sermão durante o
governo do Terceiro Reich. Ele, em parte, disse:
Como os apóstolos da antiguidade, já não pensamos em usar
as próprias forças para escapar do braço das autoridades. Já não
estamos dispostos a manter silêncio em obediência a homens,
quando Deus nos manda falar. Pois, tanto agora como no futu­
ro, devemos obedecer a Deus em vez de ao homem”.
Alguns dias mais tarde, ele foi preso e encarcerado.
Sua congregação o apoiou, tomando conta de sua esposa e
orando por ele. Cultos de oração eram realizados diariamente
em sua igreja desde o dia de sua prisão até o fim da guerra. Em
certa ocasião, quando tinham planejado um culto de maiores
proporções, a Gestapo trancou as portas da igreja. A multidão se
acomodou na frente da igreja, até que, por fim, após formar
grossas fileiras, cantou o antigo hino de Lutero: Castelo fo r te é
nosso Deus.

4W illia m L. S hirer, The rise andfallofthe ThirdReich, N ew York: S im o n &


Shuster, I 9 6 0 , p. 2 3 9 .
182 A cruz de H itler

O julgamento de Niemõller começou em 7 de fevereiro de 1938.


Durante os sete meses anteriores, ele fora confinado em uma solitá­
ria. As acusações contra ele enchiam quatorze páginas escritas à má­
quina. Ele foi descrito como “um dos mais radicais membros da
Igreja Confessante”. Foi acusado de fazer “críticas provocativas e ma­
liciosas contra o Reich [...] críticas de natureza premeditada, a fim de
minar a confiança do povo em seus líderes políticos”. Violara a “Lei
de prevenção a ataques traiçoeiros contra o Estado e o partido”. As­
sim, foi acusado de “uso indevido do púlpito”, o que simplesmente
foi considerado um caso de deslealdade “política”.
Em sua biografia, Pastor N iem õller, Dietmar Schmidt conta a
história de como um oficial fardado escoltou Niemõller de sua cela
até o tribunal. Sozinho com sua escolta, ele caminhava solitário e
apreensivo. Niemõller sabia que os procedimentos legais teriam
uma conclusão previsível. Onde estariam sua família e seus ami­
gos? E os membros da Igreja Confessante que estiveram ao seu
lado?
Naquele momento, ele passou por uma das experiências mais
edificantes de sua vida. Até então, o guarda que o escoltava não
dissera uma palavra, apenas caminhava, com passos regulares e còm
a expressão imperturbável. Quando passaram pelo túnel subterrâ­
neo e estavam prestes a subir o último lance de escadas, Niemõller
ouviu uma voz que parecia repetir uma seqüência de palavras. No
entanto, essa voz estava tao baixa que ficava difícil, devido ao eco,
identificar sua origem. S ó depois de alguns instantes percebeu o
que o soldado estava repetindo: “O nome do S e n h o r é uma torre
forte; os justos correm para ela e estão seguros” (Pv 18.10).
Niemõller já estava subindo os degraus e não deu qualquer sinal
de ter ouvido as palavras. Seu medo, no entanto, dissipara-se e,
conforme Dietmar Schmidt afirma, “em seu lugar havia a tranqüi­
lidade da absoluta confiança em Deus”. Ao entrar na sala do tribunal,
a primeira coisa que Niemõller viu foi uma foto de Adolf Hider na
parede, por trás da tribuna do juiz. Por uma ou duas vezes, nas sema­
nas que se sucederam, Niemõller viu de relance o guarda fardado,
A igreja é desm em brada 183

mas ele jamais viu sua face. Aquele homem jamais saberia o que
aquelas palavras significaram para seu prisioneiro nos dias que se
seguiram.5

Até o fim da vida ele lutou, conforme as


palavras do amigo Dietrich Bonhoeffer,
“para a igreja ser igreja”.

Niemõller foi condenado à prisão e, a seguir, foi confinado em


um campo de concentração, até chegar a Dachau, onde permane­
ceu até ser libertado pelas tropas aliadas. Seu comprometimento
lhe custou sete anos de sofrimento. O que causa maior surpresa é o
fato de sua angústia não ter terminado ao ser libertado após a guer­
ra. Ainda havia outro capítulo de sua vida para ser escrito.
Na famosa Declaração de culpa de Stuttgart de 1945, Niemõller
levou a Igreja Confessante a reconhecer a culpa, que partilhara com o
povo alemão, nos horrores da Segunda Guerra Mundial. Isso possibi­
litou que a igreja mundial se reconciliasse com seus irmãos alemães.
No entanto, por essa atitude, Niemõller foi denunciado como traidor
pelos próprios compatriotas. Muitos alemães, que ainda criam na pro­
paganda de Hitler, culpavam a Inglaterra, os EUA e, especialmente, a
Rússia, pelo fato de a elite de sua juventude ter morrido em vão. So­
mente mais tarde viriam a compreender a magnitude do Holocausto e
do papel de seu país na guerra.
Enquanto isso, os líderes judeus nos EUA insistiam que Niemõller
jamais condenara o nazismo, mas somente seu intrometimento na
igreja. Ele ficou estigmatizado como alguém “um pouco melhor
que um nazista”. No entanto, com o passar dos anos, o prestígio de

5Pastor Niemõller, New York: Doubleday, 1959, p. 110 -1.


184 A cruz de H itler

Niemõller como corajoso líder cristão cresceu. Até o fim da vida


ele lutou, conforme as palavras do amigo Dietrich Bonhoeffer, “para
a igreja ser igreja”. Apesar de ter morrido em 1984, suas palavras
permanecem vivas até hoje:
Prim eiro perseguiram os socialistas, e eu não me manifestei
porque não era socialista. A seguir, perseguiram os sindicalis­
tas, e eu não disse o que pensava porque não era sindicalista.
Logo depois, perseguiram os judeus, e eu não disse nada por­
que não era judeu. E por fim, vieram atrás de mim, mas não
havia sobrado ninguém para falar a meu favor.6

Graças a Deus, Niemõller se manifestou.

Juramento de lealdade a Hitler


O Chicago Tribune, de 6 de agosto de 1938, trazia a seguinte man­
chete: “Bíblia distorcida pela doutrina nazista”. O artigo contava
como o Sermão do Monte e o evangelho de João foram reescritos
pelo antigo bispo do R eich, Ludwig Müller. As palavras pecado e
graça foram apagadas do texto, e a Regra de Ouro reescrita de modo
a se aplicar somente aos relacionamentos entre camaradas nazistás.
Todas as referências aos profetas do Antigo Testamento, de Moisés
a Abraão, também foram apagadas. A vida eterna foi definida como
“vida verdadeira”.
O Cristo nazificado aprovava o nacionalismo alemão e a expan­
são do império germânico. Esse Cristo não se importava com a
vida eterna, mas com a vida atual do cidadão alemão comum. Esse
Cristo tinha uma cruz e um futuro diferentes: ele era Hitler, aquele
que Dietrich Eckart ungira o anticristo.
Um pequeno grupo de líderes da Igreja Confessante, que previa o
grande risco de uma guerra, fez circular uma declaração que encorajava
as igrejas a ter cultos de intercessão por seu país e de súplicas pelo

6F. Burton N elson , Family, friends & co-conspirators, Christian History 10,
n.° 4, 19 9 1, p. 20.
A igreja é desm em brada 185

perdão de Deus. Quando uma cópia caiu nas mãos de Himmler,


ele a publicou, interpretando-a como “punhalada pelas costas” nos
sucessos de Hitler, e classificou-a de “alta traição”. Por temer serem
considerados antipatriotas, mais pastores se afastaram da Igreja
Confessante.
A oposição organizada a Hitler tornou-se praticamente impos­
sível, em face dos triunfos na política externa. Em março de 1936,
ele recuperou a Renânia, que fora tomada da Alemanha pelo Trata­
do de Versalhes. Quando, dois anos depois, ele foi bem-sucedido
ao anexar rapidamente a Áustria, os alemães ficaram extasiados com
a Anscbluss (união com a Áustria). O cardeal arcebispo de Viena
expressou seu apoio, recomendando que, nas eleições da igreja que
estavam para se realizar, o povo votasse em bispos que “se pronun­
ciassem alemães no Reich alemão”. Os protestantes também ex­
pressaram sua lealdade. Quando parte da Checoslováquia de língua
alemã foi ocupada, a igreja apoiou a ação, ou permaneceu em silên­
cio em meio à euforia nacional.
Ao seguir a onda de entusiasmo gerada pela anexação da Áus­
tria, dr. Werner, o novo assessor de Hitler para atividades da igre­
ja, enviou um comunicado a todos os pastores. Esse comunicado
determinava que todos deveriam assinar um juramento de lealda­
de pessoal a Hitler, como presente de aniversário para ele. Em
uma parte do juramento, lia-se o seguinte: “Juro ser fiel e obedi­
ente a Adolf Hitler, o Führer do povo e do Reich alemão; obser­
varei as leis atentamente e desempenharei as atividades do meu
cargo. Que Deus me ajude”. Uma explicação mais detalhada dizia
que esse juramento devia ser interpretado como “o mais íntimo
ato de solidariedade para com o Terceiro Reich [...] e com o ho­
mem que criou a comunidade que o personifica [...] Um jura­
mento de lealdade pessoal”. Recusar-se a prestar o juramento sig­
nificava demissão ou coisa pior.
Durante a Semana Santa, a cruz que ficava no Castelo de
Wartburg, onde Lutero se escondera para escapar de seus inimigos,
186 A cruz de H itler

foi substituída por uma suástica enorme, bem iluminada. O bispo


da área enviou um telegrama a Hitler, relatando que haviam chega­
do a um grande momento histórico. Todos os pastores de seu dis­
trito obedeceram à uma disposição íntima e, “com alegria no cora­
ção, fizeram um juramento de lealdade ao Führer e ao Reich [...]
Um Deus, uma obediência à fé. Salve, meu Führer!”.7 Os outros
distritos seguiram a mesma “disposição íntima”.
A princípio, os pastores da Igreja Confessante se recusaram a
obedecer. De certa forma, eles não queriam violar a consciência;
no entanto, também queriam ser fiéis ao Estado alemão. Quan­
do a Igreja Confessante se reuniu em junho de 1938 para reagir à
última crise, muitos dos pastores já haviam prestado o juramento
e o interpretavam apenas como uma ampliação de seus votos de
ordenação.
Os pastores que não assinaram o juramento — benditos sejam!
— estavam em busca de orientação sobre como se manter unidos
contra a ameaça nazista. No entanto, o sínodo, desmoralizado pelo
medo, recusava-se a lutar contra o bombardeamento político que
os engolia. A maioria predominou e tomou a atitude que só con­
tentaria o coração do próprio Hitler: decidiram que cada pastor e
cada líder de igreja deveria tomar sua decisão sobre prestar ou não o
juramento de lealdade. Essa decisão teve conseqüências desastrosas,
pois ficou fácil para a Gestapo identificar qualquer pastor que não
tivesse obedecido, prendê-lo e condená-lo a qualquer que fosse a
sentença definida pelo Tribunal Popular.
Dessa forma, muitos pastores remanescentes da Igreja Con­
fessante se juntaram aos demais e prestaram o juramento de lealda­
de. Bonhoeffer estava arrasado. Esse fora um golpe que o povo
infligira em sua carne. Ele sentiu a vergonha que alguém sentiria por
sua família. “Será que a Igreja Confessante confessará publicamente
sua culpa e desunião?”, perguntou. Pelo menos a escolha era inequi­

7Eberhard B ethge, Dietrich Bonhoeffer, New York: Harper & Row, 1970, p. 504.
A igreja é d e sm em brad a 187

vocamente clara: ao curvar-se p era n te a suástica, os pastores voltaram


as costas para a cruz.
Os poucos que não assinaram o juramento juntaram-se aos oito­
centos que haviam sido anteriormente presos de acordo com a von­
tade de Hitler. Talvez, alguns ainda tivessem como se esquivar do
edito de Hitler, mas não muitos. Era uma época, conforme alguém
afirmou, “em que o poder das trevas era maior que o poder da luz”.
J. S. Conway escreveu: “Sob um bombardeio de acusações e
difamações, os membros da Igreja Confessante ficavam mais e mais
confusos entre a lealdade política e a teológica. Sua determinação
enfraquecera e sua moral descera ao nível mais baixo”.8 Encurrala­
dos entre duas cruzes, divididos por um acordo e enfraquecidos
por diferenças teológicas internas, a Igreja Confessante perdeu sua
influência conjunta.
No verão de 1938, o chefe da Gestapo pôde escrever no relató­
rio anual que “a situação nas igrejas é caracterizada pelo desânimo
para lutar, pela incerteza quanto aos propósitos e pela falta de cora­
gem”.9 Hitler conseguira marginalizar a igreja; reduzindo suas laba­
redas a uma pequena chama. O s “cães” protestantes, como ele os
chamava, eram, em sua maior parte, submissos.
Aos pastores que prestaram o juramento, foi permitido conti­
nuar com seu ministério, mas tiveram de permanecer leais à ideo­
logia nazista. Alguns meses mais tarde, em novembro de 1938,
quando, sob a liderança de Goebbels, houve o famoso ataque, a
“Noite dos Cristais”, contra os judeus, a igreja permaneceu no
mais absoluto silêncio. Apesar de 177 sinagogas terem sido
incendiadas e de vinte mil judeus terem sido presos, em uma na­
ção em que 95% do povo pertencia ou à Igreja Católica ou às
igrejas protestantes, os líderes escolheram olhar para o outro lado.
“Eles ficaram em silêncio”, diz Conway, “mesmo diante dessa afron­
ta tão monstruosa”. Um bispo católico de Berlim, que liderou seu

sN azipersecution ofthe churches, p. 223.


9Ibid., p. 220.
188 A cruz de Hitler

povo em oração pelos judeus, foi preso e morreu em um campo


de concentração.

Se a igreja tivesse ao menos percebido


que quando os judeus eram perseguidos,
quem estava sofrendo era o Senhor Jesus!

Não podemos omitir os pastores, centenas deles, que não pres­


taram o juramento de lealdade a Hitler. Eles se tornaram testemu­
nhas de Cristo nas prisões e nos campos de concentração. Ao tér­
mino da guerra, os sobreviventes relataram as ocasiões em que fo­
ram sustentados por pessoas, cuja fé fora testada, mas que se
mantiveram firmes apesar da investida violenta. Só Deus sabe
quantos judeus e gentios se converteram devido ao seu testemu­
nho. Mesmo que vejamos, com freqüência, o juízo que Deus infli­
ge ao seu povo, a purificação fica escondida de nós. E mais fácil ver
o joio que o trigo, que é o mais precioso para Deus.
Expressamos nosso respeito por quem aceitou a prisão e até mes­
mo a morte, pois não negociou sua liberdade — que lhe foi supri­
mida. Reverenciamos as famílias fiéis, que continuaram a instruir
seus filhos diante da acirrada oposição. Homenageamos todos os
que não dobraram os joelhos perante o deus inferior. O preço pago
por eles enaltece seu amor e sua coragem. Deus os recompensará.

A REAÇÃO DO POVO
O que será que o resto da Alemanha pensou ao ler notícias sobre a
prisão de oitocentos pastores que não aceitaram a nazificação de suas
igrejas? Qual terá sido a reação ao fato de milhares de pastores terem
jurado lealdade pessoal a Hider? O povo ficou apático.
William Shirer, na grande obra The rise a n d fa li o ft h e Third
Reich [Ascensão e queda do Terceiro Reich\, faz uma das análises mais
A igreja é desm em brada 189

arrepiantes em relação aos valores que os alemães apreciavam. Mui­


to embora seja um parágrafo longo, eu o exorto a ler cada palavra.
Shirer escreve:
Seria um equívoco dar a impressão de que a perseguição de
protestantes e católicos pelo Estado nazista despedaçou o povo
alemão, ou mesmo o despertou em sua maioria. Isso não acon­
teceu. O povo que desistira de sua liberdade política, cultural
e econômica de form a tão leviana, não se arriscaria, à exceção
de poucos, a m orrer ou mesmo ir para a prisão para preservar
sua liberdade de culto. O que realmente despertou os alemães,
na década de 19 3 0 , foi o esplêndido sucesso de Hitler na gera­
ção de empregos, no estímulo à prosperidade, na restauração
da força m ilitar alemã e em seus sucessivos triunfos na política
externa. Poucos alemães perderam o sono com as prisões de
alguns milhares de padres e pastores, ou com as disputas entre
as várias correntes protestantes. E ainda menos alemães pon­
d eraram que sob a lid eran ça de R osenb erg, B o rm a n n e
Himmler, que tinham o respaldo de Hitler, o regime nazista
pretendia, por fim, destruir, se possível, o cristianismo na A le­
manha, substituí-lo pelo antigo paganismo dos deuses tribais
e pelo novo paganismo dos nazistas radicais. Com o Bormann,
um dos homens mais íntim os de Hitler, disse publicam ente
em 1 9 4 1: “O nacional-socialismo e o cristianismo são incom­
patíveis”.10

Pois aí está. A maioria do povo, incluindo cristãos professos, já


não acreditava que valesse a pena sofrer pelo cristianismo, muito
menos morrer por ele. Estavam dispostos a substituir a Bíblia por
M inha luta, em troca de empregos e da Alemanha mais gloriosa.
Não obstante, os que salvaram sua vida acabaram por perdê-la; e os
que perderam sua vida acabaram por salvá-la.

10P. 240.
190 A cruz de H itler

O que poderia ter acontecido, se a igreja, unida, tivesse conde­


nado o nazismo? Em um sermão pregado em 1945, Niemõlller
apresentou uma espécie de epílogo da luta da igreja alemã. Disse:
Em 19 3 3 , e nos anos seguintes, havia aqui na Alem anha cator­
ze mil pastores evangélicos e um grande número de paróquias
[...] Se no início da perseguição aos judeus tivéssemos percebi­
do que era o Senhor Jesus Cristo quem estava sendo persegui­
do, atacado e chacinado no “mais hum ilde desses nossos ir­
mãos”; se tivéssemos sido fiéis e confessado seu nome, por tudo
que sei, Deus teria ficado do nosso lado e toda a seqüência de
eventos teria tomado um rum o diferente. E se tivéssemos nos
prontificado a seguir ao lado deles até a m orte, o número de
vítimas poderia não ter ultrapassado dez m il.11

Ainda assim, se a igreja tivesse ao menos percebido que quando


os judeus eram perseguidos, quem estava sofrendo era o Senhor
Jesus! Ao mencionar o período da tribulação, Cristo diz que o rei
falará aos que herdarem o Reino:
Pois eu tive fom e, e vocês me deram de com er; tive sede, e
vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolhe­
ram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo,
e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram
(Mt 25.35,36).
E quando os justos não puderem se lembrar de terem feito essas
coisas por Jesus, ouvirão dos lábios dele: “Digo-lhes a verdade: O
que vocês fizeram a algum dos meus menores irmãos, a mim o fize­
ram” (v. 40). Sim, os judeus eram Cristo para os cristãos na Alema­
nha; assim como os pastores que foram enviados às prisões; bem
como as crianças que foram recrutadas para lutar uma guerra cruel.
Com o início dos combates em 1939, a perseguição às igrejas
diminuiu. Hitler sabia que precisava dos filhos das igrejas para lutar

“A pudD avidA . R ausch , A legacy o f hatred, Chicago: Moody, 1984, p. 169.


A igreja é desm em brada 191

sob a bandeira nazista. A ssim , m uitas igrejas e suas congregações


c o n tin u ara m a realizar cultos e reuniões de oração, ao m esm o te m ­
p o que m an d avam seus filhos para lu ta r a “guerra de H itle r”. C ésar
estava ch am an do e os alem ães respondiam .
Após ter estudado, durante anos, a perseguição de Hitler contra
a igreja, Conway escreveu:
A ilusão de que Hider não poderia fazer nada de errado, ainda
que seus subordinados perseguissem abertamente a igreja e os
membros do clero, só se desfez quando os acontecimentos dos
últimos anos da guerra forçaram todos os alemães a ver que seu
ídolo tinha pés de barro.12

0 QUE DEU ERRADO?


Em abril de 1945, em meio às ruínas da Alemanha derrotada,
Helmut Thielicke, um pastor e teólogo alemão, falou de forma
comovente sobre o significado de tudo o que acontecera. Em uma
mensagem que certamente deve ter deixado sua congregação en­
cantada, ele, na verdade, disse que a nação teve o que merecia, pois
“repudiara o perdão e depreciara a cruz do Senhor”.13
Em sua análise crítica vigorosa sobre o que dera errado em um
país que era “cristão”, Thielicke disse que a cruz de Cristo fora des­
prezada e que a igreja ficara ofuscada pelo militarismo alemão. Ela
não percebera o maior perigo, ou seja, que ao ganhar o mundo
inteiro poderia “perder a própria alma”. Onde estavam as falhas?
Thielicke lista os erros:
• O povo pensava estar fazendo história [...] mas era apenas
um cavalo cego, guiado por Deus.
• O p o vo se considerava a nação eleita, qu and o o p u n h o de
D eus já estava erguido para lançá-lo ao chão.

12N azipersecution ofthe churches, p. 87.


13The great temptation, Christianity Today, n.° 12, july, 1985, p. 24-31. Meu
resumo da mensagem foi extraído da versão mais extensa.
192 A cruz de H itler

• Em suas tarefas seculares a igreja desprezava o que éeterno e,


pela fé em si mesma, deixava de ver a própria culpa e a neces­
sidade que tinha de perdão.
• O povo imaginava crer em Deus, mas era vítima do Diabo e
de suas reluzentes palavras vazias.
• O povo se empenhava com energia fanática na solução de
problemas econômicos, sociais e políticos, e ao solucioná-los
negligenciava, ou simplesmente ignorava, o fato de que aci­
ma de tudo precisamos de um Salvador, que endireita os fun­
damentos de nossa vida.
• Nao tínhamos consciência dos perigos nos quais naufraga­
mos, a saber: que há um demônio que pode conduzir o ho­
mem pelo cabresto em meio a todo seu idealismo, e que há
um Deus contra o qual podemos nos arrebentar, porque “de
Deus não se zomba” (G1 6.7).
• Não levamos em conta o fator chamado “Deus” em nossos
planos, tornando-nos, conseqüentemente, vítimas da mega­
lomania.
• Desobedecemos os mandamentos de Deus e enredamo-nos
em nossos instintos brutais e imprevisíveis.
• Não demos atenção ao importantíssimo chamado: “Eu sou
o S e n h o r , o teu Deus, [...] Não terás outros deuses além de
mim” (Êx 20.2,3), e por essa razão caímos na futil empolgação
da adoração ao poder, que pôs o mundo inteiro contra nós.
• Deixamos de confiar no milagre da orientação de Deus,
pondo a fé em armas milagrosas que nunca surgiram.
• Não tínhamos a consciência de que Deus está nos céus e o
homem sobre a terra; assim, perdemos todo o senso de pro­
porção de vida e fomos, portanto, atacados pela absoluta
cegueira em nossa política externa e em nossos relaciona­
mentos militares.
 igreja é desm em brada 193

Thielicke, a seguir, passou ao cerne da questão:


Negar a Deus e rem over a cruz jamais serão meras decisões
particulares que dizem respeito à m inha vida íntim a e salva­
ção pessoal; mas essa negação traz, im ediatam ente, as mais
brutais conseqüências para a história com o um todo e, em
especial, para o nosso povo, pois ‘de Deus não se zomba (G1
6.7). A história do m undo pode nos contar histórias terríveis
derivadas nesse texto.

Ele diz que, na história, o invisível é mais poderoso, criativo e


destrutivo que o visível. Qualquer um que ainda não tenha capta­
do que a Alemanha com seus programas
foi esmagada exatam ente sobre a poderosa rocha cham ada
‘Deus’ e ninguém mais tem olhos para ver. Pois, aquele que
somente vê as catástrofes de maneira isolada, já não vê a ca­
tástrofe básica e fundam ental que está por trás de todas.

Por fim, ele relembrou aos seus ouvintes que


a adoração ao sucesso é, quase sempre, a form a de idolatria
que o D iabo cu ltiva de form a mais persistente [...] P ude­
mos observar nos prim eiros anos após 1 9 3 3 o im pulso qua­
se irresistível que em anava dos enorm es sucessos e com o,
sob a influência desses sucessos, até mesmo os cristãos dei­
xaram de se perguntar em nom e de que e a que preço eram
alcançados [...] O sucesso é o mais poderoso de todos os
en torpecen tes.

Rejeitar a cruz de Cristo! Embriagados com o sucesso! Substi­


tuir o eterno pelo temporal! Dessa forma, a igreja e todo o país
foram esmagados sobre a rocha chamada Deus e “de Deus não se
zomba” (G1 6.7). O povo foi destruído por ter ficado cego pelo
orgulho do nacionalismo, em vez de ter se humilhado por sua grande
necessidade de arrependimento. A igreja ergueu-se orgulhosa, mas
não se curvaria pela humildade.
194 A cruz de Hitler

OS PORTÕES DO HADES PREVALECERAM?


O que se pode concluir com a aparente vitória de Hitler esmagan­
do a igreja? Os portões do hades prevaleceram? Pondo a questão de
outra forma: Será que Deus venceu até mesmo a Alemanha nazista?
Sim, Deus sempre vence, mesmo quando parece perder. Ele não
tem d e vencer num ericam ente p a ra ven cer espiritualmente.
A questão não é quantas pessoas são salvas; nem o número de
pessoas que estão dispostas a sofrer pela fé. Jesus não nutria qual­
quer tipo de ilusão sobre o percentual dos que seriam seus verda­
deiros seguidores. “Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi
do agrado do Pai dar-lhes o Reino.” (Lc 12.32) O grande Reino vai
para o “pequeno rebanho”.
Houve momentos na história mundial, especialmente na épo­
ca medieval, em que a luz do Evangelho foi praticamente extin­
ta. Com exceção de alguns pequenos grupos de proscritos e dos
relativamente poucos indivíduos que experimentaram a graça
pessoal e salvadora de Cristo, o Evangelho estava soterrado
sob séculos de tradição. Mesmo naquela época, Deus sempre
teve o seu povo, pois “O Senhor conhece quem lhe pertencp”
(2Tm 2.19).
Não havia a menor possibilidade de que a missão de Cristo fa­
lhasse. Ele ensinou que o Pai lhe deu certas pessoas como presente.
A salvação delas seria absolutamente garantida, pois o Pai os envia­
ria e Cristo os receberia. “Todo aquele que o Pai me der virá a mim,
e quem vier a mim eu jamais rejeitarei” (Jo 6.37).

Se cada pastor tivesse sido um


Bonhoeffer ou um Niemõller, os livros
escolares sobre a história da Alemanha
trariam um relato totalmente diferente.
A igreja é desm em brada 195

Quando o apóstolo Paulo explicou à igreja de Roma que Jesus


era o Messias, muitas pessoas perguntaram: Deus não falhou? Afi­
nal de contas, ele prometeu abençoar os judeus, e visto que eles
rejeitaram seu Filho, parece que o poder e a integridade de Deus
foram aviltados.
Para quem pensou que o plano de Deus fracassara, Paulo escreveu:
“Não pensemos que a palavra de Deus falhou” (Rm 9.6). Ao pé da
letra, a frase em grego poderia ter a seguinte tradução: “Não é como
se a palavra de Deus estivesse à deriva”. A perda de Israel não significa
que os planos de Deus tenham sido frustrados. No resto do capítulo
9, Paulo argumenta que Deus está salvando os que planejou salvar;
logo, seu plano alcançou pleno sucesso. Deus vence porque tudo é
coordenado por sua vontade.
O povo se convertia mesmo durante o período sombrio da Ale­
manha nazista. Deus estava atraindo seu povo para si e purificando
sua igreja. Alguns crentes verdadeiros cederam sob as pressões das
ameaças nazistas, mas podemos ler nas Escrituras que “se somos
infiéis, ele permanece fiel, pois não pode negar-se a si mesmo” (2Tm
2.13). Deus estava passando pelo fogo junto com seu povo. Deus
estava disposto a soprar para longe a nuvem de joio que pairava
sobre os grãos de trigo; no entanto, quer fossem muitos, quer fos­
sem poucos, esses grãos de trigo persistiram.
Lembremo-nos que Deus não tem d e vencer em um tem po espe­
cífico, a fim de vencer na eternidade. Muitas batalhas na terra pare­
cem ser vencidas por Satanás; mas quanto maior for sua vitória
agora, maior será sua derrota mais adiante. Deus tem toda a eterni­
dade para provar quem é o maior. Na verdade, se Satanás fosse
esperto, interromperia imediatamente toda revolta contra Deus,
por que ele será julgado por sua anarquia. Quanto mais batalhas ele
vencer aqui, maior será seu juízo no futuro. No final, ele será joga­
do no lago de fogo. A luta não termina até que soe o gongo.
Além disso, Deus precisa apenas d e reconhecim ento e não de leal­
dade. Toda criatura reconhecerá que Jesus Cristo é o Senhor. “Para
que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e
196 A cruz de H itler

debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Se­


nhor, para a glória de Deus Pai” (Fp 2.10,11). A admissão dessa
verdade, ainda que por parte de homens orgulhosos e das hostes de
Satanás, glorificará a Deus.
Naturalmente, quem estiver no tormento eterno, seja um ho­
mem pecador, seja um anjo caído, jamais amará a Deus e desfrutará
de sua companhia. A verdade, no entanto, triunfará; e toda mentira
será revelada. A justiça reinará e Deus será glorificado.
Muitos crentes na Alemanha perderam a extraordinária oportuni­
dade de demonstrar o poder de Deus, ao passo que outros tiveram a
extraordinária oportunidade de demonstrar uma fé extremamente
preciosa para Deus. Se cada pastor tivesse sido um Bonhoeffer ou
um Niemõller, os livros escolares sobre a história da Alemanha trari­
am um relato totalmente diferente. Talvez Niemõller estivesse certo:
Deus poderia ter impedido que Hitler levasse a cabo o Holocausto.
Mesmo assim, Deus vence quando a igreja parece perder. Quando
Satanás subjuga a cruz de Cristo, isso acontece somente por um tem­
po determinado. No fim, todas as cruzes rivais provarão que são, na
verdade, cruzes quebradas.
Peter Marshall disse: “E melhor falhar em uma causa que seja
bem-sucedida no final, que vencer em uma causa que no fim venha
a fracassar”. Melhor falhar dentro da igreja que ser bem-sucedido
fora dela. Melhor fazer parte da pequena multidão que parece per­
der, mas que vence no final, que pertencer a uma enorme multidão
cujas vitórias são temporárias e ilusórias.
Niemõller e Bonhoeffer não foram os únicos heróis do Terceiro
Reich. Na verdade, havia milhares de heróis; mais do que sabemos.
Havia bravos que ajudaram os judeus, que enfrentaram riscos ao
defender o Evangelho e os que até tiveram a disposição de tentar
depor Hitler.
A questão que tentaremos responder no próximo capítulo é:
Qual é o perfil de um herói? Será que seríamos heróis se tivéssemos
vivido na Alemanha daquela época?
Heroísmo no
Terceiro Reich ••1 J

CAPÍTULO OITO

Estamos, com alguma freqüência, criticando a igreja na Alemanha


nazista, mas o famoso físico Aibert Einstein ficou impressionado
com a luta dela contra Hitler. Apesar de as falhas da igreja terem
sido bem documentadas, Einstein a homenageou como a única
instituição que se opôs sistematicamente ao regime nazista. A me­
dida que o lado sombrio de Hitler era revelado, grande quantidade
de pessoas passou a resistir às políticas dele. Milhares de cristãos
comuns (juntamente com os que não queriam ser classificados como
cristãos) ajudaram a salvar os judeus de sua sorte.
Einstein, exilado da Alemanha pelo fato de ser judeu, escreveu:
Por ser um amante da liberdade, quando veio a revolução [na­
zista], confiei que as universidades defenderiam a liberdade,
ciente de que elas sempre se gabavam de se dedicar à defesa da
verdade; mas não, as universidades silenciaram imediatamen­
te. Eu, a seguir, confiei nos grandes editores dos jornais, cujos
brilhantes editoriais haviam, no passado, proclamado seu amor
pela liberdade; mas eles, assim como as universidades, silencia­
ram em poucas semanas.
Som ente a igreja se colocou bem no meio do caminho de
Hitler em sua campanha para abafar a verdade. Eu jamais tive­
ra nenhum interesse especial pela igreja, mas agora sinto um
grande afeto e admiração por ela, porque somente a igreja teve
198 A cruz de H itler

coragem e perseverança para defender a liberdade m oral e in­


telectual. Sou obrigado a confessar que o que já desprezei, ago­
ra elogio sem reservas.1

O teólogo suíço Karl Barth fez uma análise equilibrada do papel


da igreja:
Proporcionalmente à sua função, a igreja possui motivos sufi­
cientes para se envergonhar de não ter feito mais. Entretanto,
em comparação com os outros grupos e instituições, ela não
possui qualquer motivo de vergonha; realizou mais do que to­
dos os outros juntos.2

A igreja pode não ter realizado tudo o que deveria ou poderia,


mas ela fez alguma coisa! Em última análise, havia heróis na Ale­
manha; havia muitos que assumiram o risco de resistir à falência
moral do regime nazista.
O sofrimento purifica a igreja, pois estabelece diferenças relevan­
tes entre os homens. Quando estive na China em 1984, o bispo
Ding do movimento Three S elf * nos falou francamente: “A perse­
guição exterminou o liberalismo teológico na China [...] A igreja! de
hoje em dia na China é, em sua maior parte, evangélica”. Em nossos
dias, como em qualquer outra época, a igreja que prega o Cristo por
quem vale a pena morrer tem maiores possibilidades de passar por
perseguições, mas também as melhores chances de sobrevivência.
Falsos cristos são indignos do sacrifício supremo; somente o Jesus
do Novo Testamento pode exigir nossa lealdade.
E claro que a igreja apóstata e os verdadeiros crentes sofreram
juntos na Alemanha. Porém, os verdadeiros crentes possuíam as

*Apud Arthur C . C o c h r a n e , The Church’s confession under Hitler, Philadelphia:


Westminster, 1962, p. 40.
2Ibid., p . 41.
*“Three Self”. Termo cunhado por Henry Vern, que traduz um sistema
organizacional de igrejas (“self-supporting, self-governing, self-propagating” [auto-
sustentável, autogovernável e autopropagativo]). (N. do. T.)
H eroísm o no Terceiro Reich 199

promessas de Cristo para sustentá-los durante as provações. A igreja


na Alemanha teve de aprender as mesmas lições aprendidas pela
igreja por todo o mundo, durante os dois mil anos de sua turbu­
lenta história. “Amados, nao se surpreendam com o fogo que sur­
ge entre vocês para os provar, como se algo estranho lhes estivesse
acontecendo. Mas alegrem-se à medida que participam dos sofri­
mentos de Cristo, para que [...] vocês exultem com grande ale­
gria” (IPe 4.12,13).
Jerônimo, um estudioso do século iv, escreveu: “A igreja de Cris­
to foi fundada pelo derramamento do seu sangue, não pelo sangue
de outros; ao suportar afrontas, e não ao afrontar. As perseguições a
fizeram crescer; e os martírios a coroaram”. O sofrimento dá à igre­
ja sua credibilidade.
Algumas vezes, o Evangelho tem de ser passado adiante com
algo que vai além das palavras. Michael Baumgarten, pastor luterano
do século XIX, excomungado de sua igreja, escreveu: “Existem mo­
mentos em que palestras e publicações já não bastam para comuni­
car a verdade necessária. Nessas ocasiões, os feitos e os sofrimentos
dos santos devem criar um novo alfabeto, a fim de tornar a revelar
o segredo da verdade”.3
O sofrimento com unica o Evangelho em um a linguagem', autentica
as sílabas que saem tão facilmente de nossos lábios. Bonhoeffer alertou
a igreja para que estivesse pronta para sofrer, e até mesmo para mor­
rer. Em um sermão na Igreja Memorial Kaiser Guilherme em Berlim,
ele disse: “Não devemos nos surpreender se a nossa igreja retornar aos
tempos em que o sangue dos mártires era exigido”. Em uma reflexação
sombria continuou: “Porém, mesmo se tivermos coragem e fé para
derramá-lo, esse sangue não será tão puro ou inocente quanto o dos
primeiros mártires. Grande parte de nossa culpa estará em nosso san­
gue. A culpa do servo inútil que é lançado nas trevas”.4

3Apud Eberhard B ethge, Bonhoeffer. exile and martyr, New York: Seabury,
1975, p. 155.
4Ibid.
200 A cruz de H itler

Sim, o sangue derramado pelos crentes na Alemanha nazista não


era tão puro e inocente como o dos primeiros mártires. Bonhoeffer
acreditava que a igreja na Alemanha estava sendo perseguida pelo
juízo exercido por seus pecados. A cruz estranha que adornava suas
catedrais comprovava que a mensagem de redenção espiritual fora
substituída pela mensagem de expansão política.
Estive, há anos, em um país islâmico onde havia cerca de duzen­
tos verdadeiros convertidos ao cristianismo. Um cristão americano
observou, e creio que os muçulmanos convertidos concordariam,
que a igreja não crescerá nesses países até que os crentes estejam
dispostos a se identificar publicamente e a sofrer pelo Evangelho.
O sofrimento dá à cruz seu testemunho mais perene. Quando o jo io
é separado do trigo, o trigo germ in a e com eça a crescer.
Aqueles dentre nós que vivem nos EUA pensam que sofrer por
Cristo é de certa forma completamente inadmissível; é algo anti-
americano, que contradiz a noção de que eu deveria fazer “o que
for melhor para mim”. Devido à nossa aversão a essa medalha de
honra, os estudantes cristãos de nossas universidades, temendo as
conseqüências de discordar do que é “politicamente correto”, mui­
tas vezes silenciam sobre sua fé em Cristo. Dessa forma, evitam
agitar as águas acadêmicas, para que lhes seja permitido concluir o
curso.
O pastor do campus da InterVarsity disse a um repórter da revista
Christianity Today que “os cristãos não se destacam, a não ser quando
dizem que crêem que existe o inferno ou quando falam sobre o abor­
to”. Ele informa que a razão pela qual os ataques contra os cristãos
raramente se tornam pessoais é devido ao fato de poucos estudantes
porem em risco sua posição para defender suas visões. Nathan Chan,
um cristão que cursa a Universidade de Stanford, disse:
Se você levar o m ulticulturalism o ao extremo, ele se tornará
bastante individualista. Você possui suas influências e pode
pensar o que quiser em seu espaço, conquanto não afete o es­
H eroísm o no Terceiro R eich 201

paço dos outros. Quando você diz que o cristianismo é a única


verdade, você está se metendo no espaço de alguém.5

Se por temer ser execrados os cristãos permanecerem em silên­


cio em nossas universidades; e, se os crentes forem intimidados no
trabalho devido às novas leis que pretendem manter a religião fora
desse ambiente; ou se uma enfermeira crista não disser nada a res­
peito do aborto, porque manifestar-se poderia pôr seu emprego
em risco; em suma, se nos calarmos a respeito de Cristo devido ao
medo de represálias, será que não estaremos nos ju n ta n d o aos pastores
da Alemanha que escolheram se unir a Hitler?
Não seria nosso pecado ainda maior, já que as conseqüências de
obedecermos a Cristo são infinitamente menores do que a que eles
enfrentaram? Será que estamos capacitados a julgar a igreja da Ale­
manha, se nós mesmos jamais perdemos um emprego ou fomos
reprovados em um curso pelo fato de sermos cristãos?

Vejamos como Deus cumpriu suas


promessas e a seguir façamos a pergunta:
Qual é o perfil de um herói?
Será que estaríamos capacitados?

O profeta Jeremias escreveu: “Se você correu com homens e eles o


cansaram, como poderá competir com cavalos? Se você tropeça em
terreno seguro, o que fará nos matagais junto ao Jordão?” (Jr 12.5).
Se não conseguirmos ser fiéis a Cristo nas pequenas decisões, como
seremos leais quando nossa fé puder nos custar algo muito precioso?
Somente quando dermos valor ao menor dos sacrifícios, estare­
mos dispostos a ser fiéis aos de maior envergadura. Somente quando

5Tim S taffo rd , Campus Chxistians end the new thought police, Christianity
Today, 10/2/1992, p. 19.
202 A cruz de H itler

pudermos enxergar por que os pastores na Alemanha deviam ter


escolhido a prisão, estaremos dispostos a ser fiéis a Cristo mesmo
sob pena de sermos processados. Devemos verificar se passaríamos
nesses testes, a fim de nos prepararmos para os testes mais árduos,
caso eles venham.

COMO DEUS CUMPRIU SUAS PROMESSAS


Eis a história de dois homens que encontraram paz inesperada enquan­
to aguardavam a morte. Adaptei essas histórias do livro, muito provi­
dencial, The m en who tried to kill Hitler [ Os homens que tentaram
matar Hitler], de Roger Manvell e Heinrich Fraenkel.
O conde Helmut James Moltke formou um grupo de resistên­
cia não tanto para depor Hitler, porém mais para planejar como

Dietrich Bonhoeffer.
H eroísm o no Terceiro R eich 203

juntar os pedaços quando a guerra acabasse. Moltke foi capturado e


levado a interrogatório. O homem que o interrogou, disse: “O
nacional-socialismo só se parece em um aspecto com o cristianis­
mo: ambos requerem o homem por inteiro”. A essa afirmação,
creio que todos diríamos: “Ja W ohl!”.
Várias cartas de despedida de Moltke foram conservadas; foram
escritas para sua esposa e contrabandeadas para fora da penitenciária
de Tegel. Ele escrevia com uma constante expectativa da morte,
explicando continuamente à sua esposa que jamais estivera tao ani­
mado e nunca se sentira tao próximo de Deus. Dizia imaginar que
nas últimas horas de sua vida estaria pensando coisas como: “Esta é
a última vez que você verá o sol se pôr; ou a última vez que vai para
a cama”; mas ele se sentia animado e em excelente estado de espíri­
to. Ele continua:
Posso apenas orar ao nosso Pai celestial para que me mantenha
neste estado de espírito, uma vez que morrer dessa forma é
naturalmente mais fácil para a carne. Como Deus é bom para
mim! Eu corro o risco de soar histérico, mas me sinto tão grato
que já não há espaço para mais nada. Seu domínio sobre os
homens foi tão óbvio e claro durante estes dois últimos dias.
Quer o tribunal tivesse se transformado em uma baderna, quer
Herr Freisler e as paredes à minha volta tivessem se fechado so­
bre minha cabeça, não teria feito qualquer diferença para mim.6
Moltke escreveu que quando ele e sua esposa comungaram em
sua cela, ele chorou de gratidão por ter sido inundado pela presença
de Deus. Embora ainda não pudesse ver Deus face a face, disse: “Ele
segue diante de nós como uma nuvem durante o dia, e como uma
coluna de fogo durante a noite [...] Agora, nada mais pode aconte­
cer”. Ele foi enforcado alguns dias mais tarde, e pudemos saber que
“seguiu seu caminho calmo e tranqüilo”.

sNewYork: Coward-McCann, 1964, p. 2 0 9 -11.


204 A cruz de H itler

Fabian von Schlabrendorf era um jovem advogado que se opôs


a Hitler desde o princípio. Ele não era especialmente religioso,
pelo menos até ser torturado. A tortura a que foi submetido, para
que pudessem extrair as informações, foi realmente arrepiante.
Suas mãos foram presas, dedo por dedo, em suas costas, e peque­
nas estacas foram enfiadas sob suas unhas. Em outro momento,
teve as pernas e coxas presas em um aparelho especial, de modo
que ficou preso em uma estrutura similar a uma cama; a seguir,
por meio de parafusos, pontas afiadas eram introduzidas em seus
membros. Na terceira fase de sua tortura, ele enfrentou o esticador
medieval, onde seu corpo amarrado era esticado gradualmente. A
quarta fase foi o espancamento com pesados cassetetes, de forma
que o seu corpo, amarrado em uma posição arqueada, caia repeti­
damente para frente, e todo o peso caía sobre o rosto e a cabeça.
O comissário que executava as torturas ria e escarnecia durante o
suplício. A tortura só era interrompida quando Schlabrendorf per­
dia a consciência. Quando se recuperava, a tortura recomeçava. Ele
soube que outros prisioneiros estavam sendo tratados da mesma
maneira, e mais tarde escreveu:
Todos nós descobrimos que um homem pode suportar mui­
to mais dor do que imagina ser capaz. Os que dentre nós
jamais tinham aprendido a orar, aprendiam naquele momen­
to. Descobriam que somente a oração podia trazer conforto
em tamanho apuro, e que esta era mais importante que a resis­
tência humana. Aprendemos também que as orações de nos­
sos parentes e amigos podiam transmitir torrentes de força
para nós.7
Orações transmitiam torrentes de força! Ambos os homens cor­
reram o risco de se opor a Hitler e arcaram com as conseqüências.

7I b i d . , p. 177-80.
Heroísm o no Terceiro R eich 205

Apesar de serem homens comuns, encontraram a maravilhosa graça


no momento de necessidade.
Um pai escreveu um bilhete para sua família, despedindo-se da
esposa e filhos. Ele finalizou assim:
Meus queridos! Não chorem por mim — estou protegido e
feliz. Tenho diante de mim as rosas da montanha, já desidrata­
das; a última e doce lembrança de nossas amadas montanhas.
Em duas horas eu passarei a desfrutar da verdadeira liberdade
das alturas, pela qual lutei toda a vida.8
Ele encerra com uma oração e, a seguir, simplesmente assina:
“Seu amoroso pai”.
No livro Bonhoeffer. exile a n d m artyr [Bonhoeffer: exílio e m artí­
rio], Eberhard Bethge chama a atenção para o fato de que os márti­
res não se confundem com os que morrem vítimas da ira de outras
pessoas. O martírio possui características próprias.9
Em primeiro lugar, o risco do martírio é escolhido livremente.
Os judeus que morreram nos campos de concentração não foram
mártires no sentido tradicional da palavra. Foram vítimas em vir­
tude de seu nome e de seu nascimento; o que fizeram ou deixaram
de fazer não fez a menor diferença. Foram os inimigos que opta­
ram por fazê-los sofrer.
Em contrapartida, os mártires escolheram o caminho do sofri­
mento. Eles nao conseguiram permanecer em silêncio ou negar suas
convicções. Porém, se manifestaram ou agiram, optando por obe­
decer a Deus em vez de ao homem. Compreendiam os riscos, mas
o fizeram da mesma forma.
Já conhecemos dois desses heróis, mas havia outros milhares na
Alemanha e em outros países. Em The Holocaust: a history ofcou rage
an d resistance [O Holocausto: um a história de coragem e resistência], o

8Helmut G ollwitzer, Kathe K uhn e Reinhold S chneider , Dying we live,


New York: Pantheon Books Inc., 19 6 6, p. 162.
9P. 156-8.
206 A cruz de H itler

autor conta como uma bela jovem francesa, Lisa, transportava di­
nheiro, documentos ou armas em sua bicicleta para pessoas procu­
radas.10 Outra garota se embrenhou na floresta para encontrar ju­
deus que pudessem estar escondidos, a fim de que pudessem ser
alimentados. Isaac foi um jovem que passava as noites imprimindo
panfletos com importantes informações para os que sofriam.
Uma mulher corajosa escreveu um resumo da páscoa judaica, de
forma que pudesse ser discretamente cumprido em um campo de
concentração. Em Paris, alguns franceses carregavam lenços amarelos
em seus bolsos, enquanto traziam nas mãos uma estrela de Davi.
Por essa atitude foram enviados a campos de concentração, onde
cada um deles era forçado a usar uma braçadeira onde se lia “Amigo
dos judeus”.
Na Dinamarca, quase todos os judeus foram escondidos e tive­
ram a vida poupada. O doutor Gersfelt deu tranqüilizantes às crian­
ças para que dormissem enquanto eram transportadas para um lu­
gar seguro em barcos de pesca, através de um canal de quase um
quilômetro de extensão. Erin Kiaer, um encadernador, salvou tan­
tos judeus em barcos de pesca que foi caçado pelos nazistas. Por
fim, ele foi capturado e torturado, mas jamais revelou informação
alguma. Um motorista de ambulância, ao saber que uma captura
de judeus estava para começar, levou judeus para um hospital, onde
sabia que seriam escondidos em segurança.
Em cada um desses casos, assim como em outros milhares, as
pessoas conceberam formas criativas de se identificar com o pro­
blema do povo judeu. Arriscaram sua carreira e até mesmo a vida
para ajudar quem estava necessitado. Quando perguntaram a um
casal o motivo de terem escondido tantos judeus, a esposa respon­
deu: “Era como ver a casa do vizinho pegando fogo. Você natural­
mente quer ajudá-los”. Como um pastor observou: “Eu preferia
morrer com os judeus a viver com os nazistas”.

10Bea S tadtler , West Orange, N.J.: Behrman House, 1974. Esse livro está
repleto de episódios da resistência; dos quais cito apenas alguns.
Heroísm o no Terceiro R eich 207

A segunda característica do verdadeiro mártir é que ele não bus­


ca a morte, mas está disposto a aceitá-la se ela vier. Ele pode até ter
um grande medo da morte, mas teme muito mais a possibilidade
de fazer concessões. Essas pessoas não estavam buscando a morte,
ou esperavam ser martirizadas por algum feito nobre. A maioria
dos mártires possui forte desejo de viver, e só abre mão da vida com
certa relutância.
Em terceiro lugar, os mártires estao radicalmente comprometi­
dos com a causa que consideram mais importante que a própria
vida. Algumas pessoas foram martirizadas por seu engajamento re­
ligioso; outras por tentar derrubar um regime político. Os estudan­
tes que enfrentaram os tanques na Praça da Paz Celestial na China
foram martirizados pela causa da liberdade. Milhões de pessoas no
transcorrer dos séculos foram martirizadas por Cristo.
E finalmente, a maioria dos mártires acredita que permanecer
em silêncio é submeter-se ao inimigo. Eles concordariam com
Abraham Lincoln: “O silêncio torna os melhores homens covar­
des”. Essa covardia, afirmam os mártires, é exatamente o que eles se
esforçam para superar. Mesmo quando possuem a opção de ficar
em silêncio, sao de tal forma tomados pela grandeza da causa, que
falam ou agem como emissários da justiça.
A maioria dos debates sobre o Holocausto fala de dois grupos
de pessoas: os criminosos nazistas e as vítimas judias. Havia tam­
bém muitos espectadores, que se contam aos milhões; e a maioria
deles se autodenominaria crista. A maioria “buscou refugio na neu­
tralidade”. Todavia, admitamos ou não, essa neutralidade era, na
verdade, cumplicidade.
Bonhoeffer escreveu em 1940 que a igreja se tornara “culpada da
morte dos mais fracos e indefesos irmãos em Cristo”. Cria que a
igreja devia se opor à injustiça, ainda que ela fosse contra pessoas de
fora da igreja. Para ele, não era suficiente recusar-se a participar do
boicote contra os judeus; era necessário que assumissem ativamente a
causa, lutassem a seu favor e compreendessem suas preocupações. O
208 A cruz de H itler

fato de os judeus serem iiiVtPfl1'1 i"ni hi~TiliFÍT ICi maior para que os
cristãos estivessem ao lado deles.
Os nao-judeus que arriscaram sua vida e a de suas famílias para
ajudar os judeus a sobreviver são chamados “os gentios justos do
Holocausto”. Eles esconderam os judeus, defenderam-nos e ficaram
ao lado deles nas provações. Como Bonhoeffer ensinou, o judeu
sofredor era o Cristo sofredor; a criança rejeitada era Jesus rejeitado.
Esses gentios piedosos são considerados heróis em Israel e em
todos os lugares onde o Holocausto é lembrado. No Museu e no
Memorial do Holocausto em Jerusalém, milhares de árvores de
folhas perenes foram plantadas no que é chamado “O Jardim dos
Justos”. Cada árvore representa um gentio que se empenhou no
resgate de judeus. Mais de onze mil gentios foram oficialmente
reconhecidos. No entanto, estima-se que na Europa cerca de cem
mil gentios ajudaram os judeus a sobreviver.
Estima-se que, em média, cada um deles ajudou um judeu a
escapar da morte; logo cem mil vidas podem ter sido poupadas por
esses indivíduos. A maioria dessas pessoas afirmava ser cristã. São
muitos os judeus que se perguntam por que os cristãos nem sem­
pre honraram aqueles, de nosso meio, que arriscaram a vida pelos
desprezados.
Estudos foram feitos para nos ajudar a traçar o perfil desses
resgatadores. São as pessoas que você gostaria de ter como vizinhos,
se fosse um judeu vivendo na Alemanha nazista. São pessoas que
acreditam que algumas coisas são mais importantes que viver con­
fortavelmente, quando estamos cercados pela injustiça.

DE QUE SUBSTÂNCIA SÃO FEITOS OS HERÓIS?


Obviamente, nem todos os heróis durante a era nazista eram cris­
tãos. Muitos só eram cristãos nominais, ao passo que outros talvez
não tivessem fé alguma. Com certeza os cristãos deveriam ter dado
o exemplo; eles muitas vezes o fizeram, mas algumas vezes não.
Quais eram as características dos que se recusaram a se isolar no
silêncio ignominioso? No periódico Christianity Today, David P.
H eroísm o no Terceiro R eich 209

Gushee mostrou os resultados de suas investigações sobre o tipo de


pessoas que ajudou a resgatar os judeus.11 Em primeiro lugar, eram
pessoas totalmente distintas: ricos, pobres, jovens e velhos; uma
disparidade de classes sociais e de níveis culturais. Representavam
uma tal amostragem da população da Europa, que os que se torna­
ram resgatadores “não podiam ser previstos por nenhum indicador
utilizado pela sociologia”.
Em segundo lugar, existem algumas evidências que sugerem que
os resgatadores possuíam lares mais estáveis do que quem se limi­
tou a assistir. Muitos tiveram pais que serviram como modelo dos
valores universais do amor e da justiça. Tinham um forte senso de
responsabilidade social e a capacidade de se identificar com os po­
vos sofredores. Demonstraram um padrão consistente para auxiliar
as pessoas, antes, durante e depois do Holocausto.
Um traço comum a quase todas essas pessoas era a relutância em
aceitar elogios por seus atos. “E o que qualquer pessoa teria feito”;
assim descreviam seu comportamento incomum.
Em terceiro lugar, eram motivados por várias razões. Grande
número deles possuía laços pessoais com os judeus que salvaram.
Uma mulher disse que não se envolveu até que a família judia de
seu médico ficou na mira da Gestapo. Essas amizades, na maior
parte formadas antes do Holocausto, deram frutos mais tarde. Como
Jesus disse: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua
vida pelos seus amigos” (Jo 15.13).
Outros foram incentivados pelo grupo. Alguns salvaram judeus
em virtude das exortações e dos exemplos morais de outros. Esses
grupos podiam ser a família, os amigos ou a igreja. Isto é um lem­
brete, diz Gushee, de que somos profundamente influenciados pe­
las opiniões dos que fazem diferença em nossa vida. Nós devemos
“perguntar se a igreja pode recuperar seu papel apropriado como
comunidade responsável e de atitudes éticas”.

" W h y they helped the Jews (24/10/1994), p. 32-5. Incluí um resumo de


suas conclusões.
210 A cruz de H itler

Pode haver alguma dúvida sobre o que


Jesus teria feito se uma família judia
viesse à sua porta e pedisse ajuda para
sobreviver ao Holocausto?

Em alguns momentos, o heroísmo surgiu como resposta ime­


diata à justiça e à compaixão. Os que estavam comprometidos com
os princípios dos direitos humanos e da decência sentiriam-se abso­
lutamente ultrajados ao testemunhar a injustiça moral. Sua raiva,
misturada com a solidariedade, os incentivaria a agir.
Especificamente os cristãos diziam ser sustentados pela convic­
ção de que resgatar os judeus era a vontade de Deus. Eles eram
fortalecidos pela oração, pelo estudo bíblico e pelo apoio de outros
cristãos. Eram encorajados ao saber que, se fossem mortos, se apre­
sentariam diante de Deus com a consciência limpa.
Gushee encerra seu estudo perguntando: “Pode haver alguma
dúvida sobre o que Jesus teria feito se uma família judia viesse à sua
porta e pedisse ajuda para sobreviver ao Holocausto? Creio que
sabemos a resposta”.
Isso me leva a perguntar: O que eu e você teríamos feito se os
judeus batessem à nossa porta? Creio que essa pergunta pode ser par­
cialmente respondida ao fazermos outra pergunta: O que estamos
fazendo atualmente por aqueles que vêm à nossa porta — os pobres,
as pessoas que enfrentam discriminação, as crianças não-desejadas (tan­
to as nascidas como as em gestação) de nossa terra?
O que Jesus teria feito?

O ESTÍMULO DE CRISTO AOS PERSEGUIDOS


Jesus abençoou os que sofreriam pelo seu nome.
Bem-aventurados serão vocês quando, por m inha causa, os in­
sultarem , os perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia
H eroísm o no T erceiro R eich 211

contra vocês. Alegrem-se e regozijem-se, porque grande é a sua


recom pensa nos céus, pois da mesma form a perseguiram os
profetas que viveram antes de vocês (M t 5 .1 1 ,1 2 ) .

Os cristãos possuem todos os m otivos para ser os prim eiros voluntá­


rios quando fo r necessário sofrer.
A cidade de Esmirna no século I, como as cidades alemãs do
século XX, era uma localidade que possuía uma igreja sofredora.
Não era um bom lugar para ser cristão, a não ser, é claro, que você
estivesse preparado para sofrer. Na verdade, Jesus profetizou que
alguns pagariam pela fé com a vida. Embora dezenove séculos sepa­
rassem aqueles crentes dos pastores na Alemanha, as escolhas foram
basicamente as mesmas.
Para os crentes aterrorizados, Jesus escreveu uma carta pessoal de
encorajamento:
A o anjo da igreja em Esmirna escreva: “Estas sáo as palavras
daquele que é o Primeiro e o Ultimo, que morreu e tornou a vi­
ver. Conheço as suas aflições e a sua pobreza; mas você é rico!
C onheço a blasfêmia dos que se dizem judeus mas não são,
sendo antes sinagoga de Satanás. Não tenha medo do que você
está prestes a sofrer. O Diabo lançará alguns de vocês na prisão
para prová-los, e vocês sofrerão perseguição durante dez dias.
Seja fiel até a morte, e eu lhe darei a coroa da vida. Aquele que
tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas. O vencedor
de m odo algum sofrerá a segunda m orte” (Ap 2 .8 -1 1 ).

A fonte da perseguição era, evidentemente, o templo erguido ao


imperador Tibério. A cidade havia competido pela honra de erguê-lo e
se orgulhava de sua construção. Os cristãos, no entanto, não queimari­
am incenso perante a imagem dele, ou afirmariam “César é o Senhor”.
Essa recusa era considerada deplorável e não-patriótica. Eles sabiam que
em nenhuma igreja havia espaço para duas bandeiras e duas cruzes.
Os alemães perseguiram os judeus, mas o livro do Apocalipse
descreve os judeus perseguindo os cristãos. Os judeus eram isentos
de chamar César de Senhor, logo estavam livres para difamar os
212 A cruz de H itler

cristãos que não realizassem os rituais sagrados. Jesus disse que esses
judeus não eram verdadeiros judeus, mas eram “sinagoga de Sata­
nás”. Ou seja, embora fossem judeus por nascimento, eram perver­
sos em seu procedimento para com os outros.
Quais foram as conseqüências? Primeiro, os cristãos enfrenta­
ram a miséria, provavelmente por terem sido relegados aos níveis
mais baixos da sociedade. Sem dúvida, eram por demais honestos,
para auferir os lucros fáceis que os outros comerciantes conseguiam
por meio dos pesos e das medidas desonestas. Os outros não nego­
ciavam com eles, por serem cristãos. Provavelmente, alguns tive­
ram suas casas saqueadas. A miséria fazia parte do fardo que carre­
gavam por seu amor a Cristo.
Em segundo lugar, eram difamados. “Conheço a blasfêmia dos
que se dizem judeus mas não são” (v. 9). Os judeus haviam propa­
gado boatos; e suas falsas acusações eram semelhantes aos ataques
do Diabo, cujo nome significa “acusador”. Os cristãos estavam ma­
goados pelas ofensas.
Em terceiro lugar, alguns foram lançados nas prisões. “O Diabo
lançará alguns de vocês na prisão.” (v. 10) Citando John Stott: “As
celas de Jerusalém e de Cesaréia, ou de Filipos e de Roma, foram
santificadas pelas orações e pelos louvores dos fiéis cristãos”. As pri­
sões de todos os países foram um lar para o povo de Deus.
E por fim, alguns morreriam. “Seja fiel até a morte, e eu lhe
darei a coroa da vida” (v. 10). O martírio era definitivamente uma
possibilidade. Aliás, Policarpo, bispo da igreja de Esmirna, tornou-
se um dos mártires mais conhecidos da história.
O que Cristo promete a seu povo quando há a expectativa de
que sofram por ele? Por que motivo a igreja alemã — e também as
demais igrejas de hoje — deveriam nutrir outro tipo de esperança?

Cristo está presente ao lado deles


“Conheço as suas aflições”, ele disse. Os anos de 1933 a 1945 na
Alemanha foram completamente conhecidos por Cristo. A cada ge­
ração, precisamos novamente ouvir essa palavra do nosso Salvador.
Ele nos conhece individualmente e como nação, assim como política
H eroísm o no Terceiro R eich 213

e eclesiasticamente. Sabe como ficamos sem saber o que falar nas


reuniões de conselho escolar, quando o currículo está sendo discuti­
do; sabe como vacilamos para testemunhar aos colegas de trabalho.
Sabe que somos intimidados pela mídia. Sabe que preferiríamos fi­
car em silêncio a fim de nos formarmos na Universidade, em vez de
partilhar o que cremos. Ele sabe.
Quando Estêvão foi apedrejado, tornando-se o primeiro mártir,
Cristo estava assistindo. Os céus se abriram para recebê-lo. Jesus
sabia quando as pedras voariam; o momento da chegada de seu
servo. A cada geração, a igreja tem de se lembrar que Cristo sabe.
Se ao menos pudéssemos ver nosso sofrimento a partir do céu,
como ele nos pareceria diferente! Quando assisto filmes sobre o
Terceiro Reich e vejo a forma como Hitler era adulado, fico imagi­
nando como teria sido diferente se os cristãos tivessem visto suas
provações de uma perspectiva de longo alcance. Os pastores que
juraram lealdade a Hitler, com exceção de alguns, teriam morrido.
Como a visão que eles possuem deve ser diferente agora!

Cristo controla o sofrimento


O texto diz: “O Diabo lançará alguns de vocês na prisão para prová-
los, e vocês sofrerão perseguição durante dez dias”. Cristo fica com
sua mão sobre o termostato, quando seu povo passa pela fornalha
da aflição. O prazo da prisão desses crentes não era determinado
pelo acaso, mas por Cristo.
Ao contrário de alguns ensinos populares hoje, nem sempre po­
demos ser libertos dos ataques de Satanás. Cristo pôs aqueles cren­
tes nas mãos de Satanás! Mas Satanás estava nas mãos de Cristo.
Niemõller estava certo quando disse que Deus permitira que Sata­
nás sacudisse a igreja alemã, a fim de separar o trigo do joio.
Foi dado a Satanás o poder de fazer os crentes sofrer. Os cristãos de
Esmirna foram orientados a resistir às provações inspiradas por Sata­
nás, que duraria dez dias. Nao é possível saber se esse período é literal
ou simbólico; a questão é que essas provações terão a duração que Deus
quiser que tenham. Cristo determina o início e o fim.
214 A cruz de H itler

Cristo tem um propósito para o sofrimento


Todas essas coisas acontecerão, ele diz, “para prová-los”. Devido ao
fato de sermos tão preciosos para Jesus, nenhum sofrimento é vão.
Quando nos encontrarmos com Cristo, um dos presentes que lhe
ofereceremos é a nossa fidelidade nas várias provações de nossa fé,
que é “muito mais valiosa do que o ouro” (IPe 1.7).
Deus é glorificado quando sofremos pelo seu nome:
Se vocês são insultados por causa do nome de Cristo, felizes são
vocês, pois o Espírito da glória, o Espírito de Deus, repousa
sobre vocês. Se algum de vocês sofre, que não seja como assassi­
no, ladrão, criminoso, ou como quem se intromete em negócios
alheios. Contudo, se sofre como cristão, não se envergonhe, mas
glorifique a Deus por meio desse nome (IPe 4 .1 4 -16 ).

Cristo promete recompensas eternas


“Seja fiel até a morte, e eu lhe darei a coroa da vida” (Ap 2.10).
Cristo nos recompensará grandemente. Estará lá ao nosso lado, para
nos defender.
Hitler pediu à nação alemã para sofrer por ele e, assim, o Tercei­
ro Reich duraria mil anos. Como era de esperar, ele estava errado;
seu Reich durou doze anos e seis meses. E quando já estava no fim
de seus dias, gritava: “Todos me enganaram! Ninguém me disse a
verdade!”. Talvez não lhe tenha ocorrido o fato de que ele não fora
honesto consigo mesmo. O orgulhoso ditador finalmente perce­
beu que era mortal.

Não precisamos passar pelo Holocausto


para sermos heróis. Apenas precisamos
ser tudo o que Deus quer que
sejamos a cada dia.
H eroísm o no T erceiro R eich 215

Em nítido contraste, Cristo possui o presente e o futuro nas


mãos. Ele podia prometer a seus seguidores uma nova vida do
outro lado, pois não tem limitações humanas. Ele pode nos pro­
meter a eternidade, e possui os meios de cumprir sua palavra.

Cristo punirá os iníquos


Em meio às injustiças, o coração humano clama por um juiz que
acerte as contas. Ao entrar em Buchenwald, o campo de concentra­
ção localizado na periferia de Weimar, pode-se ler na placa que fica
sobre os portões: “Jedem des Seine” (A cada um o que lhe é pró­
prio). Trata-se de um arremedo da justiça; como se os que ali entra­
vam, realmente merecessem o que lhes acontecia. Sabemos que as
pessoas que ali entraram tiveram tudo, menos justiça.
Quem acertará as contas? Quem finalmente fará justiça ao que
aconteceu em Buchenwald e, igualmente, às injustiças que ocor­
rem neste planeta infeliz desde que ele começou? Deus!
O apóstolo João escreveu:
Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas
daqueles que haviam sido mortos por causa da palavra de Deus
e do testemunho que deram. Eles clamavam em alta voz: ‘A té
quando, ó Soberano, santo e verdadeiro, esperarás para julgar
os habitantes da terra e vingar o nosso sangue?’ (Ap 6 .9 ,10 ).

Esse clamor será respondido. A justiça será administrada de for­


ma tão precisa, que cantaremos para sempre: “Grandes e maravi­
lhosas sao as tuas obras, Senhor Deus todo-poderoso. Justos e ver­
dadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações” (Ap 15.3).
Dessa forma, no fim, as vítimas do Holocausto serão vingadas;
a igreja, tanto a apóstata como a verdadeira, será julgada por Deus;
uma no julgamento perante o Grande Trono Branco, a outra pe­
rante o trono de Jesus Cristo. Quem estiver sob a proteção de Cris­
to e do seu sacrifício na cruz será poupado da ira divina que será
lançada sobre a terra.
216 A cruz de H itler

Hoje, Deus mais uma vez nos chama para sofrer. Não o sofri­
mento da igreja na Alemanha (embora isso possa algum dia se tor­
nar nosso destino), mas o sofrimento que vem quando aceitamos o
senhorio de Cristo sobre toda a nossa vida. Não precisam os passar
p elo Holocausto para sermos heróis. Apenas precisam os ser tudo o que
Deus quer que sejam os a cada dia.
Agora examinaremos mais detalhadamente um dos heróis da
era nazista. Perceberemos que a força de sua fé também pode ser
nossa.
0 discipulado no
Terceiro Reich
CAPITULO NOVE

“QliandO Deus chama um homem, o convida para vir e morrer”


— Dietrich Bonhoeffer escreveu durante os dias sombrios em que
a igreja estava sendo “nazificada”. Ele sabia sobre o que estava falan­
do. Ele seguiu a Cristo e morreu aos 39 anos de idade.
A vida e a morte de Dietrich Bonhoeffer são um fascinante estu­
do sobre liderança, discernimento teológico e coragem. Quanto
mais aprendo sobre ele, mais sou forçado a perguntar: O que o
tornou tão diferente? Por que ele estava disposto a resistir sozinho,
quando tantos outros não tiveram a capacidade íntima de fazer o
que sabiam ser correto? Com certeza devemos ver a notável fé de
Bonhoeffer como dom de Deus. E, ainda assim, uma fé, se é que a
palavra é adequada, fundamentada em sólida formação teológica.
Bonhoeffer nos lembra que se conseguirmos compreender quem é
Cristo e o que ele exige, como também se pudermos ver o presente
do ponto de vista eterno, o sofrimento neste mundo não se torna
apenas controlável, mas algo que devemos esperar.
Dietrich Bonhoeffer condenava a igreja de seu tempo: “Nós,
luteranos, nos reunimos como águias em torno da carcaça da graça
barata, e ali bebemos o veneno que matou nossa vida como segui­
dores de Cristo”. A igreja estava fraca porque interpretara a graça de
maneira errônea.
A graça barata é inimiga m ortal de nossa Igreja. A nossa luta
trava-se hoje em torno da graça preciosa. Graça barata é graça
218 A cruz de H itler

como refugo, perdão malbaratado, consolo m altratado, sacra­


m ento m altratado [...]
Nesta igreja, o m undo encontra fácil cobertura para os pe­
cados dos quais não tem remorsos e de que não deseja verda­
deiramente libertar-se [...] Graça barata significa a justificação
dos pecados e não do pecador [...] isso é a graça sem discipulado,
a graça sem cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado.1

Bonhoeffer dizia que ou os outros não conseguiam ver ou não


queriam ver, ou seja, que seguir a Cristo envolvia muito mais que
doutrinas ou rituais. Segui-lo era concentrar-se na mensagem da
cruz, sem alterar seu tom para adequá-la ao Z eitgeist (o espírito da
era) político. Ele era comprometido com a separação entre a igreja
e o Estado, pois insistia no cristianismo que fosse livre de interfe­
rências políticas.
Esse homem, que chamou a igreja de volta à sua missão, aca­
baria por se juntar a uma conspiração (alguns diriam que por en­
gano) para assassinar Hitler. Independentemente do que pense­
mos sobre essa decisão, seu heroísmo, zelo e (de um ponto de
vista humano) erro merecem ser ponderados cuidadosamente. Ele;
levantou a bandeira de Cristo a grande custo pessoal, ainda que a
maioria se virasse para o outro lado e seguisse outra bandeira. Ele
fe z tudo o que podia, para resgatar a cruz d e Cristo das mãos da cruz
da suástica.

A VIDA DE BONHOEFFER
Bonhoeffer nasceu em Breslau, no ano de 1906, cinco anos após o
início do Segundo Reich, quando Guilherme I foi coroado Kaiser
no Palácio de Versalhes. Dietrich tinha 12 anos de idade quando a
Alemanha foi humilhada, tendo de admitir sua derrota na Primeira
Guerra Mundial. O Kaiser, você deve recordar, foi forçado a abdi­
car, e a República de Weimar foi fundada.

lD iscipulado, São Leopoldo: Sinodal, 7. ed., 2002, p. 9-10.


0 discipulado no T erceiro Reich 219

O pai de Dietrich, Karl, era professor de psiquiatria e neurolo­


gia no Hospital Universitário de Breslau. Porém, quando Dietrich
tinha seis anos, sua família se mudou para Berlim, onde seu pai
foi nomeado professor de psiquiatria e de doenças nervosas de
um hospital local. Essa cidade de nível internacional introduziu
Dietrich em atividades culturais e intelectuais. Apesar de, ao lon­
go de sua vida, ter deixado Berlim várias vezes, ele sempre a con­
siderou sua cidade, seu lar.
A família Bonhoeffer cria na piedade cristã, mas não freqüenta­
va a igreja; liam a Bíblia somente em ocasiões especiais. O batismo
e a confirmação eram considerados importantes, mas a freqüência à
igreja era considerada opcional, desnecessária para o comprometi-

Dietrich Bonhoeffer no pátio da Penitenciária de Tegel, no verão anterior à sua execução.


220 A cruz de H itler

mento com ideais elevados. Naturalmente, sua família se surpreen­


deu quando Dietrich anunciou, com a idade de dezessete anos, que
queria estudar teologia. Na verdade, a decisão já fora tomada em
seu íntimo antes daquela época, provavelmente com a idade de
oito anos, quando ele e sua irmã gêmea ficavam conversando sobre
a morte e a eternidade.
Seu irmão mais velho, Walter, foi morto após duas semanas de
combates durante a Primeira Guerra Mundial. Os alemães estavam
tão confiantes na vitória que, quando foram forçados a aceitar a
derrota, a nação ficou enlutada, deprimida. Os dois irmãos mais
velhos de Dietrich, que sobreviveram à guerra, estavam convenci­
dos de que a Alemanha necessitava de algo melhor que a teologia
para resgatá-la de sua humilhação e desordem política.
Klaus, o mais velho dos irmãos sobreviventes, esforçou-se para
convencer o irmão da impotência da igreja protestante na Alema­
nha, pois lamentava o fato de seu irmão dedicar sua vida a uma
causa tão irrelevante. Dietrich respondia a isso de forma resoluta:
“Se a igreja é impotente, eu a reformarei!”.
O outro irmão, Karl, sentia-se ainda mais descontente com as
intenções de Dietrich. Abriu um mapa do sistema solar e apontou-
lhe as últimas descobertas da ciência. Karl era um cético convicto e
temia que seu irmão estivesse a ponto de se dedicar a uma causa
perdida, irrelevante para a moderna era científica. Porém, Dietrich
não aceitava nenhum desses argumentos e respondia: “Dass es einen
Gott gibt, dafür lass’ Ich mir den Kopf abschlagen” (Eu acreditarei
que Deus existe mesmo se você arrancar minha cabeça). Sua dispo­
sição de estudar teologia permaneceu inabalável.
Os pais de Dietrich não se mostraram muito entusiasmados com
a decisão do filho de estudar para o ministério cristão. Sua mãe
ficou em silêncio a respeito do assunto, e seu pai, por acreditar que
um filho devia tomar as próprias decisões sobre sua carreira, não se
opôs de nenhuma forma. Porém, de modo geral, a família via a
igreja como um fator secundário no caos político e econômico;
0 discipulado no Terceiro R eich 221

que na época se encontrava descontrolado. As transformações que


realmente fariam a diferença, teriam de surgir de outro lugar.
Os Bonhoeffers estavam entre as poucas famílias que apoiavam
a República de Weimar, pois acreditavam que somente a democra­
cia poderia garantir as liberdades individuais. Contudo, quando os
termos do Tratado de Versalhes foram anunciados um ano mais
tarde, a família, juntamente com o resto da Alemanha, se enfure­
ceu com o que percebeu ser uma injustiça infame.
Quando a inflação chegou ao nível mais alto em 1923, com a
taxa de câmbio de um bilhão de marcos por dólar, a família pade­
ceu. Os alemães gastavam todo o dinheiro no dia em que o recebi­
am, uma vez que a inflação aumentava diariamente. Karl, o pai,
contava que durante esse período duas de suas apólices de seguro de
vida venceram, cada uma delas valia cinqüenta mil marcos. Ele pro­
metera aos filhos que gastaria o dinheiro com uma garrafa de vinho
e alguns morangos. Na realidade, a garrafa de vinho teve de ser
deixada de lado — o dinheiro do seguro só foi suficiente para os
morangos.

A formação para o ministério


Apesar de a inflação ser galopante, Dietrich começou a realizar seus
sonhos e se matriculou na Universidade de Tübingen em 1923.
Estudou lá durante um ano, concentrando seus estudos em teolo­
gia e história eclesiástica. No ano seguinte, matriculou-se na Uni­
versidade de Berlim, prosseguindo seus estudos sob o olhar vigilan­
te de estudiosos liberais, como Adolf von Harnack. Lá, Bonhoeffer
foi exposto aos estudos que visavam solapar a fé cristã histórica,
por intermédio da pesquisa crítica que afirmava que a Bíblia estava
repleta de erros e mitos. Debates populares discutiam os objetivos
do Jesus histórico, ou seja, o Cristo em quem os liberais acredita­
vam, que não passava de um homem extraordinário.
Bonhoeffer ficou impressionado com esses estudos, mas nunca
aceitou as conclusões desses professores. Ele era amigo do teólogo
suíço Karl Barth, que abandonara a escola liberal, a mais aceita
222 A cruz de H itler

naquela época, e insistia que a igreja devia voltar a declarar que


“Deus é Deus”; Barth pregava que Deus fora revelado em Cristo
como em nenhum outro. Se a igreja não voltasse à sua tarefa de
pregar a Palavra, falharia em sua missão.
Nesse caldeirão de controvérsias teológicas, o interesse de
Bonhoeffer quanto ao papel da igreja na sociedade intensificou-se.
Com 27 anos de idade, publicou uma tese intitulada Comunhão
dos santos, que Karl Barth chamou mais tarde de “um milagre teo­
lógico”. Nela, Bonhoeffer declarou que a igreja é “Cristo existindo
em forma de comunidade”. A igreja, ele dizia, não é igreja a menos
que “exista em função dos outros”.
Concordava com Lutero, pois também tinha a convicção de
que a igreja não é uma sociedade ideal que não precisa de reformas;
mas, ao contrário, como comunidade era capaz de ser desleal para
com o Evangelho. A igreja sempre tem de voltar para Cristo como
seu centro.
Precisamos ouvir essas palavras apaixonadas, em relação à nossa
época:
Há apenas uma esperança para a nossa época, que é tão impo­
tente, tão débil, tão miseravelmente frágil e patética e, além de
tudo isso, tão desprezada: retornar à igreja, o lugar onde um
homem encoraja o outro com amor, onde um homem partici­
pa da vida de outro, onde há comunhão em Deus, onde há um
lar, onde há amor.2

Como prometera a seus irmãos, ele reformaria a igreja fraca.

0 primeiro ministério
Como Bonhoeffer não alcançara a idade mínima para ser ordenado
pastor, aceitou o cargo de pastor-assistente na Espanha (1928-1929).

p2Mary B osanquet, The iife a n d death o f Dietrich Bonhoeffer, London: Hodder


& Stoughton, 1968, p. 65.
0 discipulado no Terceiro Reich 223

Lá, ele deparou com a miséria pela primeira vez em sua vida, e
ajudou a organizar um programa de auxílio aos necessitados. Ele
desafiava sua igreja: “Deus perambula entre nós na forma humana,
falando conosco por meio dos que cruzam nosso caminho: os es­
tranhos, os mendigos, os enfermos, ou, até mesmo, os que estão
mais próximos em nossa vida cotidiana; tornando-se o que Deus
requer de nossa fé”.
Quando voltou para a Alemanha, foi aceito como professor na
Universidade de Berlim. Isto lhe abriu as portas para uma bolsa de
estudos no Union Theological Seminary em Nova York. Nos EUA,
ele se tornou amigo de teólogos do porte de Reinhold Niebuhr,
que desafiava seu raciocínio em questões sociais. Passou incontáveis
horas com estudantes negros, que o ajudaram a compreender a dor
que o racismo causava nos EUA. Freqüentava assiduamente os cultos
realizados pelos negros e levou para a Alemanha gravações de seus
hinos, que tocava para seus alunos. Também se tornou pacifista, pois
acreditava que a guerra era intrinsecamente contrária ao Evangelho.
Cria que na batalha os cristãos se matavam uns aos outros por ideais
políticos mundanos, ocultando o peso mais importante que os fatos
espirituais deveriam ter. Durante o tempo em que esteve nos EUA,
começou a concentrar seus estudos no Sermão do Monte.

Devido às condições da igreja na


Alemanha na década de 1920, a teologia
de Barth e Bonhoeffer eram como a
brisa fresca no deserto escaldante.

O contato de Bonhoeffer com o liberalismo na Alemanha, e mais


tarde no Union Seminary, fazia com que os evangélicos, muitas vezes,
duvidassem de sua teologia. O fato de não ter condenado categorica­
mente o liberalismo, bem como suas referências ao “cristianismo sem
224 A cruz de H itler

religiosidade”, fez com que alguns evangélicos duvidassem de seu


verdadeiro compromisso com o Cristo do Novo Testamento. No
entanto — e isso é importante — , Bonhoeffer se empenhou em
apregoar que a Bíblia é a revelação de Deus, mesmo quando não
conseguia responder a todos os argumentos dos que tentavam de­
sacreditar a teologia evangélica.
“Em primeiro lugar, eu simplesmente confesso”, ele escreveu,
que creio que a Bíblia é a resposta a todas as nossas perguntas,
e que apenas precisamos pedir regularmente e com certa hu­
mildade, para recebermos as respostas [...] Som ente se espe­
rarmos dela as respostas definitivas poderem os recebê-las. E
por esse m otivo que a Bíblia fala conosco.3

E, no cerne da mensagem bíblica está Jesus e sua cruz. A um


amigo, ele escreveu: “O meu passado é cheio até a borda da bonda­
de de Deus, e os meus pecados sao co b er to s p elo a m or com p a ssivo
do Cristo crucificado”.4
Nós, certamente, desejaríamos que Bonhoeffer e seu amigo Karl
Barth tivessem sido mais contundentes ao afirmar a confiabilidade
da Bíblia até mesmo em seus detalhes históricos. Desejaríamos que
tivessem feito oposição ao liberalismo, que negava o Evangelho
que a Alemanha precisava tão desesperadamente. Mas permanece o
fato de que, devido às condições da igreja na Alemanha na década
de 1920, a teologia de Barth e Bonhoeffer eram como a brisa fresca
no deserto escaldante.
Bonhoeffer dizia ter se tornado cristão nos EUA e que, pela pri­
meira vez na vida, “estava no caminho certo”. Meditava continua­
mente em Cristo: “Fé é experimentar a presença concreta de Cris­
to, que se fez carne, foi crucificado e ressuscitou”. Estava profunda­
mente apaixonado por Cristo, e também estava disposto a morrer

3Ibid., p. 109.
4Geffrey B. K e l l y & F. Burton N e l s o n , orgs., A testament to freedom, San
Francisco: Essential Writings o f Dietrich Bonhoeffer, 1990, p. 538.
0 discipulado no T erceiro R eich 225

para que outros pudessem ser alcançados por essa mesma chama.
Nao podemos ler seus escritos sem sentir sua paixão, mente
inquisitiva e dedicação.

Os embates com a igreja


Após retornar à Alemanha em 1931, Bonhoeffer continuou em
sua implacável busca pelas respostas que a igreja alemã necessitava.
Hitler já começava a subir ao poder e Bonhoeffer alertava seus alu­
nos a respeito do nacionalismo alemão que estava sabotando a ver­
dadeira mensagem da igreja. Era necessário renunciar a todos os
deuses seculares.
Ele lamentava pelos alunos que optavam por aceitar o conceito
popular de que o que era bom para a Alemanha era bom para a
igreja. Após Hitler ter assumido a chancelaria em 1933, Bonhoeffer
se tornou ainda mais direto em suas críticas ao regime nazista e ao
fracasso da igreja em opor-se à interferência política. Bonhoeffer se
assombrava com a facilidade com que o povo confundia sucesso
político com sucesso espiritual.
Ele persistia em questionar seus alunos: “Quem é Jesus Cristo
no mundo de 1933?”. Para ele, Jesus Cristo era o judeu perseguido
e o dissidente encarcerado na luta da igreja. Quando em 1.° de abril
de 1933 foi expedida uma ordem para o boicote às lojas dos ju­
deus, toda a família Bonhoeffer desobedeceu à determinação. A
avó de Dietrich, com noventa anos de idade, caminhou calmamen­
te através de um cordão de isolamento formado pelos homens da
SA que faziam piquete contra os judeus, e fez suas compras.
Bonhoeffer acreditava que a responsabilidade da igreja ia além de
seus muros, pois alcançava a todos os que eram tratados injustamen­
te. Como já vimos antes, ele se opôs a “Cláusula ariana” e escreveu
um artigo no qual enfatizava que a afiliação à igreja não devia ser
fundamentada na raça, mas no relacionamento dessa pessoa com Je­
sus Cristo. Ele rogava para que a igreja desobedecesse ao Estado, quan­
do sua política estivesse em rota de colisão com o cristianismo.
226 A cruz de H itler

Boicote às lojas pertencentes a judeus, Berlim, 1933.

Ele ficava cada vez mais isolado em sua posição acadêmica na


Universidade. Em meio à maré crescente do nazismo, foi rejeitado
para o pastorado. Frustrado, deixou a Alemanha no outono de 1933,
para assumir o pastorado de duas igrejas de língua alemã em Lon­
dres. Foi criticado por algumas pessoas, incluindo Karl Barth, por
ter abandonado a luta. Porém, Bonhoeffer usou seus contatos fora
do país para pressionar as igrejas alemãs a resistir ao evangelho
nazificado.
Em 1935, voltou à Alemanha para dirigir um seminário ilegal
próximo ao mar Báltico. O seminário se recusava a receber apoio
governamental, ficando, dessa forma, livre de qualquer interferên­
cia política. O objetivo era treinar pastores para a Igreja Confessante,
que estaria livre dos erros teológicos dos “cristãos alemães”, que
achavam o nazismo compatível com as crenças que cultivavam.
No seminário, Bonhoeffer estruturava seu dia em torno da
oração, da meditação, das leituras bíblicas e das próprias aulas.
0 discipulado no Terceiro R eich 227

Elas formaram a base de seu livro mais consagrado: D iscipulado.


Apesar de a Gestapo ter fechado o seminário em 1937, seu legado
permanece por intermédio desse livro. Ele lembrava aos “cristãos
alemães” que tinham unido o cristianismo ao nacional socialismo
que
a cruz estava acima do mundo. Mesmo o mais nobre dos ho­
mens, quer queira, quer não, se desmanchará em pó ju n ta­
mente com todos os seus deuses, ídolos e senhores deste m un­
do. A cruz de Jesus Cristo, que significa o agudo desprezo de
Deus por toda a grandeza humana, o amargo sofrim ento de
Deus pelo que há de mais profundo no ser humano e o dom í­
nio de Deus sobre todo o m undo.5

Os que uniram a cruz à suástica eram como os que fizeram o


bezerro de ouro no Antigo Testamento. O chamado para seguir a
Cristo significava que havia uma única via, que implicava deixar
tudo para trás, pois “a estrada da fé passa pela obediência ao chama­
do de Jesus”.
Na “Noite dos Cristais”, em 9 de novembro de 1938, a polícia
assistiu passivamente enquanto os estabelecimentos comerciais
pertencentes a judeus eram destruídos, as sinagogas incendiadas e os
judeus aprisionados. Bonhoeffer retornou a Berlim, furioso com os
cristãos que diziam tratar-se apenas da maldição que os judeus mere­
ciam devido à morte de Cristo. Em sua Bíblia, havia sublinhado
Salmos 74.7,8: “Atearam fogo ao teu santuário; profanaram o lugar
da habitação do teu nome [...] Queimaram todos os santuários do
país”. Ele condenou o ignominioso silêncio da igreja e continuou
insistindo na pergunta: “Onde está seu irmão Abel?”.
No ano seguinte, 1939, Bonhoeffer retornou aos e u a para re­
pensar seu comprometimento com a Igreja Confessante e para dei­
xar de ser símbolo da resistência da igreja. Ele acreditava que sua

5B osanquet, The life a n d death o f D ietrich Bonhoeffer, p. 121.


228 A cruz de H itler

presença contínua acabaria por trazer a ira dos nazistas sobre seus
colegas mais íntimos. Porém, com a consciência atormentada,
retornou à Alemanha depois de apenas um mês.
Antes de descrever como sua vida terminou aos 39 anos, deve­
mos responder à pergunta: O que Bonhoeffer acreditava ser o
discipulado? E o que ele queria dizer quando disse que Cristo nos
chama para “vir e morrer”?

VIR E MORRER
Se perguntarmos por que Bonhoeffer teve a coragem de ser marti­
rizado, poderemos apenas responder que ele morreu várias vezes,
antes de ser enforcado no campo de concentração de Flossenbiirg.
Ele estava absolutamente convencido de que o discipulado signi­
ficava a morte — a morte para o próprio conforto, a morte de
nossos planos e, quando necessário, também a morte física. A
cruz de Cristo era o símbolo dessa morte e não deveria jamais ser
confundida com a suástica, que era o símbolo da busca do ho­
mem pela vida.
Bonhoeffer concordava com Lutero: somente a graça poderia nos
salvar, mas os que o seguiram adotaram essa doutrina, deixando dé
fora a conseqüente responsabilidade do discipulado. Nós somos sus­
tentados em nossos sofrimentos pela percepção de que Deus está
sofrendo neste mundo por intermédio de Jesus Cristo. O próprio
Deus foi rejeitado e hostilizado; o próprio Deus suportou a humi­
lhação da cruz. A marca da verdadeira igreja é o sofrimento.
Seguimos Jesus em suas fraquezas, para que possamos ser fortes.
O cristianismo é a religião do sofrimento; um homem se lança nos
braços de Deus e desperta no Getsêmani. Se Jesus morreu pelo que
acreditava, não deveríamos seguir seus passos?
Seguir Cristo nos liberta de todos os dogmas feitos pelo ho­
mem, de todo fardo e opressão, de toda ansiedade e tortura que
aflige a consciência. Somente se seguirmos Jesus sem reservas, e de
forma franca e sincera, acharemos seu jugo suave e seu fardo leve.
0 discipulado no Terceiro R eich 229

Felizmente, tudo o que Cristo nos pede para fazer, ele nos dá a
força para realizar.
Eis as cinco mortes que os cristãos devem experimentar— mor­
tes que capacitaram Bonhoeffer a realizar o supremo sacrifício, tran­
qüilo em seu íntimo, entregando-se com resignação a Deus. Em
alguns exemplos eu cito Bonhoeffer; em outros, faço uma paráfra­
se de seus pensamentos.

 morte para os relacionamentos naturais


Durante o Terceiro Reich, muitos pastores disseram que estariam
dispostos a enfrentar a prisão ou a morte, mas não o faziam em
razão de suas famílias. Para um pai ou marido ser perseguido é algo
completamente diferente de ver seus filhos enfrentarem a mesma
sorte. Hitler sempre se valeu da família de um homem para persu­
adi-lo a ser absolutamente obediente.
Bonhoeffer contestava e dizia que nosso comprometimento com
Jesus deveria ser tão completo, que toda a afeição natural estaria
sob sua autoridade. “Quem ama seu filho ou sua filha mais do que
a mim não é digno de mim” (Mt 10.37).
Nosso rompimento com os relacionamentos naturais é algumas
vezes externo, e outras velado. Mas devemos estar sempre prontos
a assumir publicamente esse rompimento. Abraão teve de abando­
nar seus amigos e parentes para seguir a Deus; nada poderia estar
entre Abraão e seu Deus. Ele teve de se tornar um forasteiro e um
nômade para herdar a Terra Prometida.
Mais tarde, Deus pediu que Abraão sacrificasse Isaque sobre o
altar, como teste para ver se o ancião permitira que seu filho inva­
disse seu coração. Seria possível que Isaque fosse mais importante
para ele que Deus? Ninguém mais escuta esse chamado que Deus
fez a Abraão, nem mesmo Sara nem seus servos. Deus falou pesso­
almente a ele, para que ele não ocultasse nada da graça soberana do
Todo-Poderoso.
230 A cruz de H itler

Abraão passou no teste, e Bonhoeffer escreveu:


Foi aqui destruída não somente a relação imediata natural, mas
também a própria relação imediata espiritual [...] Aceita o cha­
mado tal como fora prenunciado; não procura interpretá-lo ou
espiritualizá-lo; aceita a palavra de Deus e está pronto a obe­
decer [...] Abraão tornou a receber Isaque, mas passa a tê-lo de
form a diferente. Tem-no, agora, graças ao M ediador, e tam ­
bém por amor dele.6

Abraão desce da montanha da mesma forma que subira, com


seu filho ao lado; mas a situação fora completamente modificada.
Cristo colocara-se entre Abraão e seu filho. “Exteriormente, tudo
ficava como dantes. Porém, as coisas antigas já passaram e tudo se
fez novo. Tudo tivera de passar mediante Cristo”.7
Bonhoeffer sabia do que estava falando. Não apenas deixara sua
família, mas o amor especial de sua vida: uma jovem chamada Maria,
de quem estava noivo. Três meses após anunciar seu casamento,
Bonhoeffer foi preso. Ela, várias vezes, teve permissão para visitá-lo
na prisão, e cartas eram contrabandeadas para dentro e para fora dá
prisão; às vezes com a cooperação dos guardas. Quando ele foi trans­
ferido para a prisão da Gestapo em outra parte de Berlim, ela não
pôde mais visitá-lo.
Para Bonhoeffer, seus relacionamentos estavam sempre sujeitos
à obrigação mais elevada. Poderíamos pensar que nossa primeira
responsabilidade é para com nossa família, nossos filhos, nosso na­
morado ou namorada — podemos acreditar que esses relaciona­
mentos, que foram estabelecidos por Deus, não deveriam jamais
ser rompidos. Porém, Cristo interfere em nossas relações. Seu cha­
mado tem prioridade.

6D iscipulado, p. 53.
7Ibid., p. 53.
0 discipulado no Terceiro Reich 231

A morte para o sucesso


Peça a um cristão comum para fazer uma avaliação do sucesso, e ele
indicará tanto a riqueza como o poder. Jesus destrói todas essas
noções humanas. Bonhoeffer dizia: “O sucesso é o verniz que co­
bre apenas o vazio da alma”.
É difícil reprovar um homem bem-sucedido, devido ao seu com­
portamento, por um motivo: eie normalmente reluta em encarar
seu passado, visto que está empenhado em seu próximo êxito. Ele
é impelido pela percepção de sua importância, que não lhe será
tirada. Ele nao enxerga sua ganância e ambição, uma vez que seu
sucesso enaltece esses atributos como algo positivo e bom.
Em segundo lugar, ele justificará seu sucesso dizendo que se
empenha por Deus. Dessa forma, sua vida e segurança tornam-se o
abrigo onde ele se sentirá satisfeito e auto-suficiente. Ele não com­
preende que foi essa definição de sucesso que crucificou Jesus. Essa
compreensão de sucesso torna difícil distinguir entre os cristãos e o
mundo. Como podemos vencer o mundo, se aderimos à sua pai­
xão pelo sucesso?
A cruz modifica nossa perspectiva. O Cristo na cruz não pode
ser conciliado com nosso entendimento de sucesso. O cristão não
está preocupado com o “sucesso ou insucesso, e sim a pronta aceita­
ção do juízo de Deus”.8 Nós devemos depositar nossos sonhos mais
queridos aos pés do salvador crucificado.

A morte para a carne


O que nos atrapalha mais do que os desejos da carne quando busca­
mos seguir a Cristo? Esses desejos são enganosos.
Para ilustrar o ponto de vista de Bonhoeffer, acrescentarei uma
história que ouvi de um colega pastor que estava empenhado no
discipulado de um grupo de homens. Vários deles lhe confidenciaram

8Dietrich B o n h o e f f e r , São Leopoldo: Sinodal, 2 0 0 2 ,6 . ed, p. 48.


232 A cruz de H itler

que não queriam dominar seu desejo sexual, mesmo que Jesus lhes
quisesse conceder esse poder. Eles argumentavam que o desejo se­
xual é agradável e, considerando-se as pressões desta vida, eles mere­
ciam esse bocado de prazer.
Bonhoeffer diria que esses homens não perceberam um ponto
importante: a necessidade ter fé que os caminhos de Deus são
realmente a melhor opção para eles. Quando damos as costas para
Cristo nessa questão, perdemos a capacidade de resistir em outras
áreas.
Eis a análise de Bonhoeffer:
Mesmo o desejo m om entâneo é uma barreira para seguir Je­
sus, pois leva o corpo inteiro para o inferno, fazendo-nos ven­
der nosso direito de prim ogenitura por um prato de guisado.
Demonstra que nos falta fé em Jesus, que recompensa a m orti­
ficação da carne com uma alegria cem vezes maior.

Ele continua explicando o cerne da questão:


Em vez de confiar no invisível, nós preferimos os frutos palpá­
veis do desejo. Dessa form a, abandonam os o cam inho do
discipulado e perdemos contato com Jesus. A luxúria é impura
porque é falta de fé, e por isso deve ser evitada [...] o ganho da
luxúria é insignificante, se comparado ao prejuízo que ela traz
[...] Se você torna seus olhos um instrum ento da imundice,
não poderá usá-los para ver Deus.9

Bonhoeffer fala de nossa cultura, que afirma que o prazer sexual é


um direito de todos. Alguns até o consideram necessário, pois, sim­
plesmente, é parte de nossa humanidade. Porém, seu domínio não
pode ser quebrado, a menos que haja a firme decisão de seguir Cristo,
de olhar somente para ele. A cruz nos convida a vir e morrer.
A obstinação pode ser quebrada. Devemos nos tornar fracos para
que nos tornemos fortes; Cristo deve se envolver em todas as partes

9D iscipulado, p. 148.
0 discipulado no Terceiro Reich 233

de nossa vida. Bonhoeffer concordaria com Tozer: “A parte de nos­


sa vida que resgatamos da cruz torna-se a área em que enfrentare­
mos nossas lutas”.

 morte para o amor ao dinheiro


Náo acumulem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a
ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e furtam. Mas
acumulem para vocês tesouros nos céus, onde a traça e a ferru­
gem não destroem, e onde os ladrões não arrombam nem fur­
tam. Pois onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu
coração (M t 6 .1 9 - 2 1 ).

Ele declarou a igreja “culpada pela


morte dos irmãos e irmãs mais fracos
e indefesos de Jesus Cristo”.

Existem poucas pessoas que são ao mesmo tempo prósperas e


pobres de espírito. O amor pelo dinheiro deve ser oferecido, assim
como Isaque foi ofertado sobre o altar. Deus sabe, diz Bonhoeffer,
que o coração humano anseia por tesouros; e Deus quer que tenha­
mos tesouros. Porém, ele quer que tenhamos tesouros no céu. Os
tesouros materiais se desfazem, mas o tesouro no céu dura para
sempre. “O coração só tem espaço para uma devoção totalmente
abrangente, e só podemos nos agarrar a um Senhor”.
Bonhoeífer morreu para o amor natural pelo dinheiro. Acredita­
va que o dinheiro era para ser usado e não guardado. O pouco que
possuía, era visto como presente de Deus. O único dinheiro que
voltaremos a ver, dizia, é o que damos para ajudar os outros.
Passar por essas mortes, preparou-o para o sacrifício final. Ele será
contado entre os que estavam dispostos a correr o risco, provando
com isso que “diante da morte, ele não amou a própria vida”.
234 A cruz de H itler

0 MARTÍRIO DE BONHOEFFER
Embora Bonhoeffer tivesse inicialmente acreditado que o Sermão
do Monte ensinava o pacifismo, acabou por se juntar a uma cons­
piração para assassinar Hitler. Em defesa de suas ações, escreveu aos
companheiros de conspiração:
Pelo menos por uma vez, aprendemos a ver os grandes eventos
da história m undial com um a perspectiva mais baixa: a pers­
pectiva dos proscritos, dos suspeitos, dos maltratados, dos im­
potentes, dos oprimidos, dos ultrajados — em resumo, a pers­
pectiva dos que sofrem .10

Bonhoeffer acreditava que assumir o risco de assassinar Hitler seria


seguir Cristo, que arriscou a vida para defender os pobres e os
excluídos.
Na verdade, Bonhoeffer foi recrutado como espião em 1940
por seu cunhado, Hans Dohnanyi, agente da A bwehr (Inteligência
Militar). Dohnanyi se reuniu com o almirante Canaris, o chefe da
Abwehr, que a essa altura estava profundamente envolvido com o
movimento de resistência. Juntos, conseguiram inventar uma des­
culpa para a afiliação de Bonhoeffer. Ele poderia usar os contatos
de sua igreja para ajudar a avaliar politicamente a situação dos ou­
tros países europeus e dos EUA.
No entanto, em secreto, Bonhoeffer estava levando a cabo uma
missão inteiramente diferente, a saber, contatar os aliados para esta­
belecer os termos de rendição, caso o assassinato fosse bem-sucedi-
do. Ele também trabalhou em um ousado plano para contrabandear
judeus para fora da Alemanha. Ainda encontrou tempo para conti­
nuar a trabalhar no livro Etica, que repreendia a igreja por não le­
vantar sua voz a favor das vítimas. Ele acusou a igreja de ser “culpa­
da pela morte dos irmãos e irmãs mais fracos e indefesos de Jesus
Cristo”.

'“Geffrey B. K e l l y , The life and death o f a modern martyr, Christian History


10, ri.° 4, 19 9 1, p. 8.
0 discipulado no Terceiro R eich 235

Como seria de esperar, sua decisão de tornar-se agente duplo é


muitas vezes debatida por teólogos. Alguns concordam com seu
envolvimento político; outros relutam em contá-lo entre os mártires
cristãos, insistindo que ele morreu por motivos políticos e não religi­
osos. Independentemente da conclusão, um fato é inquestionável:
Bonhoeffer pesou suas opções e escolheu arriscar a vida pelo que
acreditava ser correto.
Em 5 de abril de 1943, ele foi indiciado por traição e foi encar­
cerado na prisão militar de Tegel, em Berlim. As evidências contra
ele eram imprecisas, mas foi mantido lá e jamais foi libertado. En­
quanto estava na prisão, escreveu Briefe u n d A ufzeichnungen aus
d er H aft [Cartas e artigos da prisão], que foi contrabandeado para
fora por guardas solidários.
Ele atacava intensamente a forma de religião que invalidava a
verdadeira fé. Acreditava que, muitas vezes, os debates teológicos
abstratos escondiam as respostas que o povo precisava desesperada­
mente. A igreja, dizia, preocupava-se em preservar seus privilégios
eclesiásticos intactos; ela alijara a responsabilidade pessoal e fracas­
sara em exercer a autoridade no “mundo que atingia a maioridade”.
A igreja só p o d e ser igreja se agir corajosam ente no m om ento d e neces­
sidade.
Quando as bombas aliadas atingiram a prisão, Bonhoeffer con­
fortou os outros prisioneiros. Um prisioneiro disse que seu com­
promisso com Deus era patente, e que todos se comoviam “com
sua absoluta sinceridade”.
Em 20 de julho de 1944, a conspiração do coronel Stauffenberg
para assassinar Hitler falhou. Isso ocasionou o massacre de mui­
tos que, de alguma forma, estivessem supostamente ligados à al­
guma conspiração. Bonhoeffer foi transferido para a prisão da
Gestapo em Berlim, em outubro daquele ano. Em fevereiro de
1945, ele foi levado para o campo de concentração de Buchenwald.
Um companheiro de prisão escreveu a seu respeito: “Ele foi um
dos pouquíssimos que já conheci, para quem seu Deus era real e
estava sempre próximo”.
236 A cruz de H itler

Outro disse:
Realmente calmo e normal, perfeitamente à vontade, sua alma
brilhava nas trevas de nossa prisão. Ele aprendeu a abandonar-
se completamente nos braços de Deus, levando seu sofrimento
muito a sério, assim como levava a sério o sofrimento de Deus
no m undo.

Dois meses mais tarde, em cumprimento de uma ordem de


Himler, Bonhoeffer, juntamente com Canaris e vários outros, foi
posto em uma viatura da prisão, para ser levado ao campo de
extermínio de Flossenbürg. Alguns dias mais tarde, chegava ao
minúsculo vilarejo de Schõnberg, onde os prisioneiros foram reu­
nidos em uma pequena escola, que servia como cela temporária.
Um dos prisioneiros relatou que Bonhoeffer os conduziu em um
culto durante o qual pregou sobre o versículo “... por suas feridas
vocês foram curados” (IPe 2.24), trazendo conforto aos compa­
nheiros de prisão.
A porta foi aberta e dois membros da Gestapo entraram, exigin­
do que Bonhoeffer os seguisse. Ele se despediu de todos sem pres­
sa. Suas últimas palavras registradas foram: “Ó Deus, este é o fim; [
para mim, o início da vida”.
A farsa do seu julgamento seguiu por toda noite, adentrando as
primeiras horas da manhã. A última imagem que temos dele vem
da descrição dada pelo médico que testemunhou sua execução. Ele
registrou que entre cinco e seis horas da manhã, Bonhoeffer e mais
três foram levados para serem executados. O médico disse que quan­
do a porta se abriu, ele viu o pastor Bonhoeffer ainda em roupas da
prisão, orando ao Senhor seu Deus.
Os prisioneiros receberam ordem para despir-se. A seguir, fo­
ram levados por um lance de escada por sob as árvores, para a área
isolada para a execução. Nu, sob o cadafalso de madeira, Bonhoeffer
se ajoelhou para orar pela última vez. Logo após, intrépido e con­
trolado, subiu os degraus para a forca. Cinco minutos depois, sua
vida tinha terminado; era o dia 9 de abril de 1945.
0 discipulado no Terceiro R eich 237

Ao comentar sobre a fé de Bonhoeffer, o médico escreveu:


A devoção e evidente convicção desse hom em me comoveu pro­
fundamente [...] Em quase cinqüenta anos atuando como mé­
dico, eu jamais vi um hom em m orrer tão inteiram ente sub­
misso à vontade de Deus.

Três semanas depois, Hitler cometeu suicídio; e uma semana


depois, a guerra na Europa terminava. O nazismo que Bonhoeffer
combatera estava desgraçado, e a igreja que ele condenara tão inten­
samente ficou a ponderar sobre a própria covardia. A mensagem da
cruz, que fora perdida durante os temerários dias das vitórias naci­
onais, teria de ser recuperada.
Se perguntarmos por que Deus não poupou a vida de Bonhoeffer
por mais algumas semanas, a fim de que pudesse ser libertado pelos
aliados, não teremos resposta. Podemos apenas estar seguros de que
ele morreu no momento determinado por Deus e da forma determi­
nada por Deus. Bonhoeffer, que amou Jesus com tamanho fervor,
seguiu seu mestre por meio da morte violenta nas mãos dos outros.
Ele diria que Deus lhe deu o privilégio da “graça preciosa”.
O legado de Bonhoeffer sobrevive. Ele é um constante lembrete
de que a igreja deve continuar sendo igreja, ainda que a um alto
custo pessoal. Cristo convida a todos nós: “venha e morra”. Mas se
não morrermos para nós mesmos durante nossa vida terrena, pro­
vavelmente não estaremos dispostos a pagar o preço final que nossa
fé poderá exigir.
Bonhoeffer deixou uma oração:
M orte, livra-nos de nossas penosas correntes e derruba os gros­
sos m uros de nosso corpo m ortal e de nossa alma cega, de
form a que possamos pelo menos contem plar o que falhamos
em enxergar neste lugar. Liberdade, por m uito tempo busca­
mos-te pela disciplina, pelos atos e pelo sofrimento. Agora que
estamos m orrendo, vemos-te na face de D eus.11

n Roger M anvell & Heinrich F raenkel, The men who triedto kill Hitler, New
York: Coward-McCann, 1964, p. 220-1.
0 encobrimento da cruz
em nações cristãs
CAPITULO DEZ

“O Cristianismo alemão tem uma responsabilidade perante Deus


muito maior que o nacional-socialismo, a ss e a Gestapo.” Assim
declarou Martin Niemõller numa palestra na Suíça, em 1946. Se é
verdade que a força da igreja é determinada por seu impacto na
sociedade, Niemõller pode muito bem estar certo.
A Alemanha e muitas nações cristãs possuem estes traços em
comum: possuem raízes cristãs, a ampla aceitação dos valores so­
ciais bíblicos, bem como o compromisso fundamental com a vir­
tude pessoal. Os EUA, por exemplo, se beneficiaram da garantia
constitucional da separação entre a igreja e o Estado, e da própria
democracia, a forma de governo que fracassou na Alemanha na
era de Weimar, mas que acabou por ser adotada depois da Segun­
da Guerra Mundial.
Apesar das diferenças, a igreja em muitas nações cristãs, assim
como a da Alemanha nazista, está correndo o risco de embrulhar a
cruz de Cristo em alguma bandeira estranha. Há evidências — o
que lamento dizer — de que nós, evangélicos, perdemos nossa con­
fiança no Evangelho como “o poder de Deus para a salvação”. Lutero
nos recorda que a igreja é uma comunidade que precisa ser continu­
amente reformada, sempre se auto-examinando, para verificar se
mantém a lealdade às ordens de Cristo. Creio que não devemos
apenas orar pelo reavivamento, mas também pela reforma que ve­
nha restaurar a confiança que tínhamos na cruz.
240 A cruz de H itler

E se for verdade que podemos dizer a respeito de várias nações


cristas o que Heinrich Heine disse sobre a Alemanha: a cruz de
Cristo é o que nos mantém a salvo de forças poderosas e brutais, as
quais, se forem liberadas, deixariam o mundo inteiro atônito. Será
que já não é possível ver essas forças em ação, com a escalada do
crime, o colapso moral das escolas e a destruição das famílias?
Será que não nos esquecemos — e isso eu falo de nós, que so­
mos cristãos comprometidos — que o poder de Deus é visto mais
nitidamente na mensagem da cruz, que em qualquer plano político
ou social que pudermos criar? Será que a procura por algum antí­
doto para nossas enfermidades terríveis não é um sintoma da nossa
perda de confiança no poder do Evangelho para transformar as pes­
soas de dentro para fora? Será que nos apegamos à cruz com a pro­
funda convicção de que não se trata apenas de uma pa rte de nossa
mensagem para o mundo, mas que, se corretamente compreendi­
da, é a mensagem com pletai
Testemunhamos o aumento das hostilidades contra o cristia­
nismo por parte da sociedade em geral e, mais especialmente, das
instituições governamentais. As restrições de nosso passado cris­
tão são negligenciadas de forma cínica e arrogante. No esforço de1
sermos “relevantes”, enfrentamos a tentação de nos desviarmos de
nossa missão e de nos envolvermos no que é bom , ignorando o
que é melhor.
Afinal de contas, qual é o significado da cruz sobre a qual fala­
mos? Por que os cristãos deveriam “agarrar-se à velha e rude cruz”,
como o antigo hino nos aconselha a fazer? Certamente, podería­
mos pensar que superamos esse tipo de sentimentalismo. Contu­
do, é exatamente aqui que o cristianismo tomba ou permanece; é o
significado da cruz que dá poder ao cristianismo.
A cruz não é nada mais do que Deus assumindo o nosso lugar.
Como Deus escolheu perdoar os seres humanos pecadores, ele só
poderia fazê-lo de maneira justa. Nas palavras de Charles E.
Cranfield, ele “teve o propósito de dirigir contra seu próprio ser, na
0 en co brim en to da cruz em nações cristãs 241

pessoa de seu Filho, o peso total dessa ira justa que eles mereci­
am”.1 Deus Filho pagou a dívida de nossos pecados para Deus Pai;
dessa forma, “a Salvação é do Senhor”.
A luta da Reforma não passou da luta pela correta interpretação
da cruz. Quando Lutero finalmente compreendeu que sobre a cruz,
Cristo levou sobre si a iniqüidade de todos nós, e que somente pela
fé os pecadores poderiam se reconciliar com Deus, ele, em suas
palavras, “renasceu e atravessou os portões do paraíso”. Não é de
admirar que, desde aquele momento, a cruz tornou-se o centro do
ensino de Lutero. Na cruz, todo narcisismo chega ao fim; todos os
esforços para impressionar a Deus chegam ao termo; e todo oti­
mismo em relação à habilidade humana de construir um mundo
melhor por conta própria desaparece.
O cristão não pode tratar a cruz de forma fria e distante. A cruz
expõe a futilidade do nosso farisaísmo; pois nos relembra que so­
mos pecadores, incapazes de viabilizar nossa reconciliação com Deus.
Cristo morreu para salvar os pecadores, para revelar o amor de Deus e
para vencer o mal. Perante sua cruz, podemos apenas contemplar com
a cabeça baixa e com o espírito quebrantado.
E aqui vem o alerta. P. T. Forsythe, ao falar sobre a cruz como o
ponto focal da obra de Deus pelos pecadores, escreveu: “Se tirar­
mos a fé desse centro, estaremos malhando o prego no caixão da
igreja. Ela estará condenada à morte, e seu passamento será apenas
uma questão de tempo”.2 A igreja só pode viver e respirar a cruz;
sem ela não há vida nem razão para existir.
Deixe-me repetir o aviso de Forsythe: Sem a cruz, acabamos de
preparar nosso caixão!

OS DOIS PERIGOS
Em nossos momentos de desespero ao longo da história enfrentamos
dois perigos. O primeiro é dizer que devemos recuar em nossas

'Apuei John S t o t t , A cruz de Cristo, S ã o Paulo: Vida, 19 9 1, p. 121.


2Ibid., p. 36.
242 A cruz de H itler

batalhas culturais e espirituais, para sermos fiéis à supremacia da


cruz. Esse ponto de vista está correto ao enfatizar que nossa missão
principal é pregar o Evangelho, mas fracassa porque acabamos pre­
gando para nós mesmos.
Após o julgamento de John Scopes* nos EUA, os fundamentalistas,
em sua maior parte, se retiraram da arte, da educação pública e da
política. Eles se sentiam desconfortáveis com o envolvimento em
atividades “mundanas”. Assim como na igreja alemã, muitos acre­
ditavam que existiam duas esferas. Eles, entretanto, levaram essa
doutrina um passo adiante e disseram que os cristãos deveriam em­
preender seus esforços no setor “espiritual”. Ir além disso seria tor­
nar-se muito “secular” ao ficar demasiadamente preocupado com o
que não é eterno. Esses veteranos fundamentalistas estavam certos
em ater-se à importância da mensagem cristã, mas errados ao ensi­
nar que a fé cristã podia ser vivida isoladamente da cultura e de suas
instituições. Desse modo, a cruz, apesar d e ser exaltada p o r m eio da
fé , estava escondida do mundo.
O segundo perigo é nos tornarmos tão sobrecarregados com
nossas agendas político-sociais, que nossa mensagem se perca em
meio a essas disputas culturais. A igreja sempre enfrentou a tenta­
ção de modificar o Evangelho e de subordiná-lo a determinado
projeto político, filosófico ou cultural. Quando isso acontece, os
cristãos entram em contato com a cultura, mas não com a cruz.
Mais uma vez, ela fica escondida.
Jacques Ellul, em The subversion o f Christianity [A subversão do
cristianismo], escreveu: “Toda geração pensa que finalmente desco­
briu a verdade [...] O cristianismo se torna uma garrafa vazia, que
culturas sucessivas preenchem com todo tipo de coisa”.3 Lamenta­
velmente, a garrafa cristã foi preenchida por muitas agendas distin­
tas. No início da história da igreja, a cruz era ocultada pelo sacra-

*John T. Scopes (190 0 -197 0 ). Professor secundarista do Tennessee que foi


julgado e condenado por lecionar a teoria da evolução. (N. do T.)
3Grand Rapids: Eerdmans, 1986, p. 18.
0 encobrim ento da cruz em nações cristãs 243

mentalismo: a idéia de que a salvação era uma graça concedida pe­


los rituais da igreja. A salvação já não era o relacionamento pessoal
com Deus, mas fora reduzida à parceria com a estrutura eclesiástica.
A garrafa foi esvaziada e preenchida com um tipo de liturgia que
nunca poderia trazer uma alma para Deus. A cruz se tornou um
enfeite carregado em volta do pescoço, e não o instrumento de
transformação dos corações.
O racionalismo e o humanismo, frutos do Iluminismo, surgi­
ram no século xviii. O Iluminismo insistia que a religião deveria se
ajustar ao nosso entendimento. Tudo que fosse contrário à nossa
sensibilidade era eliminado. Os milagres, por exemplo, eram des­
cartados por não estarem atualizados com a mentalidade iluminista.
Os unitaristas propunham que Deus era bom demais para mandar
alguém para o inferno, e os universalistas acreditavam que o ho­
mem era bom demais para ser mandado para lá. A cruz se tornou
símbolo de amor sentimental, e não o meio pelo qual Jesus derra­
mou seu sangue para reconciliar os homens com Deus.
Atualmente, o cristianismo costuma ser complementado com
psicologia. Desde Freud, a necessidade da conversão religiosa foi
eliminada. Os psicólogos seculares negam que o homem tenha
caído de algum estado prévio de santidade. Pelo fato de não ter
caído, não há a necessidade de ser erguido; pelo menos não por
Deus. A salvação é simplesmente uma questão de auto-imagem
saudável. A cruz de Cristo é o símbolo da alienação do homem
de si mesmo; um lembrete de que o homem deve se reconciliar
com o que ele já é.
O Movimento Nova Era, ao combinar o cristianismo com um
número variado de idéias orientais e místicas, ignora completamente
a cruz. Na melhor das hipóteses, trata-se de um símbolo de auto-
percepção, um lembrete da necessidade de entrar em contato com
o mundo além de nós. De acordo com esse movimento, a cruz nao
nos humilha; ela nos exalta.
Alguns ativistas políticos complementam a doutrina cristã com
uma estratégia de reforma política. Aparentemente, a salvação
244 A cruz de Hitler

aconteceria seelegêsscmos candidatos conservadores para cargos re­


gionais e nacionais. Por mais importante que isso possa ser, deve­
mos sempre nos lembrar que Deus não é nem republicano nem
democrata. Quando a cruz é embrulhada na bandeira de um parti­
do político, acaba distorcida ou diminuída. Mesmo para os que
experimentaram seu poder, a cruz se tornou um adendo de uma
agenda que parece ser mais urgente.

Visão aérea de Berlim, que mostra a destruição infligida pelos bombardeios aliados.
0 encobrim ento da cruz em nações cristãs 245

Devemos nos envolver no processo político, mas também preser­


var nossa distância combatendo o mal e incentivando o bem, sempre
que possível. Afinal, a urna não pode nos salvar, somente Deus. E a
cruz é o destaque central de sua agenda.
Somente quando a cruz está sozinha, livre de outras religiões, filo­
sofias ou ideologias políticas, ela mantém seu poder. A cruz de Lutero
tinham poder para humilhar e salvar os pecadores; a suástica exaltava
e confirmava os pecadores. Uma trazia os pecadores para o Reino de
Deus; a outra os trazia para um Reich em escombros.

Reminiscências da Alemanha de Hitler:


“Noite Feliz” deve ser substituída por
“Rodolfo, a rena do nariz vermelho”, o
Natal deve ser rebatizado como
Solstício de Inverno e Jesus deve deixar
o caminho livre para o Papai Noel.

Então, como podemos exaltar a cruz e, ao mesmo tempo,


envolvermo-nos nas batalhas sociais e culturais de nossa época? Como
poderemos evitar o erro do enclausuramento monástico e, conco-
mitantemente, evitar o erro dos fanáticos religiosos que incendeiam
clínicas de aborto?
Antes de responder sobre quais deveriam ser nossas prioridades,
devemos refletir sobre algumas semelhanças entre a igreja alemã e
nossas lutas político-culturais. Como de costume, no centro do fura­
cão está o conflito milenar entre a igreja e o Estado. A liberdade de
pregar livremente o Evangelho está em jogo.

A CRUZ CONTRA 0 MUNDO


Hitler se tornou ditador de um país que era, ao menos nominalmen­
te, cristão. Ele se viu diante do desafio de fazer com que milhões de
246 A cruz de Hitler

pessoas desistissem de sua fé em Deus e em Cristo. O cristianismo


não foi exatamente descartado, mas substituído pelo “cristianismo
positivo”, que poderia coexistir tranqüilamente com o nazismo.
Como muitas nações cristãs de hoje, ele acreditava que o cristianis­
mo deveria abrir mão de seu caráter singular, para que a cruz pudes­
se unir-se a outras ideologias. Ele não podia suportar os cristãos que
adoravam unicamente a Cristo, portanto limitou o livre exercício
da expressão religiosa à esfera espiritual ainda menor.
Esse foi exatamente o tipo de controle que os legisladores da
constituição americana tentaram evitar. Quando eles aprovaram a
Primeira Emenda (“O Congresso não poderá formular nenhuma
lei estabelecendo uma religião, e tampouco proibir seu livre exercí­
cio”), pensavam estar protegendo a liberdade religiosa, garantindo
que o povo pudesse viver livremente sua fé. Compreendiam que
essa frase significava que: 1) o Congresso (ou o Estado) não deveria
interferir nas práticas religiosas e 2) nenhuma igreja nacional sera
estabelecida, à qual todos seriam obrigados a pertencer.
Nas mãos de um grupo de reformadores de elite, essa emenda
está agora sendo distorcida de forma que faria seus autores estre­
mecerem. Atualmente, as cortes interpretam, com freqüência, á
liberdade religiosa como liberdade da religião. Em vez de separar
a igreja da interferência do Estado, o significado agora é que as
práticas religiosas deveriam ser removidas do Estado. Forças po­
derosas estão tentando desarraigar todos os vestígios da influência
cristã, reescrever a história americana e expulsar Deus do setor pú­
blico.
Nos EUA, sempre que chega o mês de dezembro, os advogados
da ACLU saem a campo. Estão sempre prontos a ameaçar qualquer
distrito ou cidade que ouse exibir presépios, como ficam ansio­
sos por calar os alunos que quiserem cantar canções natalinas du­
rante uma apresentação escolar. O objetivo, logicamente, é per­
mitir que o Natal seja comemorado, mas sem nenhuma expres­
são do que ele significa. Essas são reminiscências da Alemanha
0 en co brim en to da cruz em nações cristãs 247

de Hitler: “Noite feliz” deve ser substituída por “Rodolfo, a


rena do nariz vermelho”, o Natal deve ser rebatizado como
Solstício de Inverno e Cristo deve deixar o caminho livre para
Papai Noel.
E claro que os direitos das outras religiões devem ser respeita­
dos; concordamos que ninguém deva ser forçado a participar do
Natal. Lamentavelmente, somos incapazes de criar uma atmosfera
na qual um estudante em uma sala de aula possa desenhar uma
figura de Cristo sem imaginar que infringiu os direitos de outro
estudante. Em Fairfax, Virginia, a classe de uma garotinha de dez
anos de idade pintou cenas natalinas nas janelas de sua sala de aula.
Mesmo assim, ela foi solicitada a apagar sua pintura, pois se tratava
de uma cena do nascimento de Jesus!
Hitler fez com que os livros escolares alemães fossem reescritos,
para alinhá-los com o nacional-socialismo; da mesma forma, os
livros escolares americanos são revisados a fim de apagar nossa he­
rança cristã e estimular valores humanistas. Uma vez que o
secularismo esteja em movimento, ele se move inexoravelmente
por toda a terra, tentando esmagar a religião a qualquer custo.
Se você conversar com esses políticos liberais, eles lhe falarão,
cheios de hipocrisia, que acreditam na liberdade religiosa; entre­
tanto, dirão que a única forma de haver justiça para todas as reli­
giões é banir completamente a religião da vida pública. Esta é,
logicamente, a política básica de todos os regimes que negam a
liberdade religiosa. Seja na China, seja na Alemanha nazista, a pre­
missa é a mesma: a religião não pode ser praticada corporativa-
mente nas esferas que pertencem ao Estado. Uma vez que essa
premissa esteja firmada, o passo seguinte é expandir os poderes
do Estado para invadir diretamente a livre prática religiosa, até
mesmo na “esfera espiritual”. Vejamos:
• Em San José, na Califórnia, o conselho municipal se mobili­
zou para proibir a colocação de uma manjedoura em praça
pública, embora tenha gastado quinhentos mil dólares do
248 A cruz de H itler

dinheiro público para erguer uma estátua de Quetzalcoatl, o


deus asteca do sacrifício humano.
• Em Irmo, na Carolina do Sul, disseram a um estudante con­
decorado que seu quadro de Jesus não poderia ser exposto
junto com os outros trabalhos artísticos, devido ao conteú­
do religioso.
• Em Ladue, Missouri, um grupo de estudantes teve de recor­
rer aos tribunais para ter o direito de se reunir na escola. Eles
não queriam levar armas ou drogas para lá, apenas a Bíblia.
• Na Virgínia, o diretor de um colégio disse a uma garota de­
ficiente física que ela não poderia ler sua Bíblia no ônibus,
uma vez que o veículo pertencia ao distrito escolar.
• Na Califórnia, um homossexual demitido dos quadros da
igreja entrou com uma ação por discriminação. O fato de a
igreja ter conseguido vencer a causa não trouxe nenhum grande
alívio. Porém, o fato de uma ação como essa ter sido aberta é
uma séria ameaça à liberdade religiosa.
• Em Shanahan, Nebraska, um juiz manteve o direito da U. S.
West C ommunications de demitir uma funcionária, Christine
Wilson, por utilizar um button pró-vida no trabalho. O juiz
disse que ela teria causado dificuldades indevidas à empresa
que tentou “acomodar de forma razoável as práticas e as ob-
servâncias religiosas da mulher”.

Em 1941, a Igreja Confessante distribuiu um informativo que


descrevia a situação na Alemanha naquele momento. Chamava a
atenção para o fato de que nao deveria haver nenhuma arte crista
em exposições estatais, e os jornais não deveriam trazer artigos so­
bre o ponto de vista cristão. Além disso, “o fato de a igreja ter algo
a dizer sobre as questões relativas ao povo alemão, nao devia, nem
remotamente, ser considerado”. O artigo, a seguir, faz um comen­
tário, que parece ter sido escrito sobre os EUA da década de 1990:
“O Estado exclui a igreja de tudo o que considera pertinente à esfe­
0 encobrim ento da cruz em nações cristãs 249

ra política. Ao mesmo tempo, espera-se que a igreja definhe até


tornar-se nada”.4
As semelhanças entre a Alemanha nazista e os EUA podem não
ser tão evidentes, mas só quem for cego para as realidades que nos
cercam poderá negar que esse relatório da Alemanha de Hider significa
um alerta sinistro para muitas nações cristãs de hoje e, incluindo os
EUA. Os inimigos da religião não se contentam em banir a religião
do Estado, enquanto permitem a liberdade religiosa nas igrejas e
sinagogas. O objetivo é o controle total — a completa submissão
da igreja aos caprichos morais e despóticos do governo político.
Essa intrusão dos tribunais na esfera espiritual continuará. A me­
dida que nações cristãs escorregam para o paganismo, a igreja sofre­
rá pressões para realizar casamentos homossexuais. As pregações con­
tra o aborto, o homossexualismo e contra as doutrinas heréticas de
outras religiões serão definidas como “violência verbal”. Se os pla­
nejadores sociais p u d erem agir do seu jeito , as igrejas e as escolas
cristãs serão obrigadas a empregar homossexuais para o cumpri­
mento de cotas de contratação. Novas leis que proibirão as pessoas
de testemunhar sobre Jesus nos mercados e até mesmo pelo rádio
serão aprovadas. Um Estado hostil, se não puder extinguir a men­
sagem da cruz, tentará mesmo assim abafá-la.
A liberdade também será restringida nos locais de trabalho. O
Departamento do Trabalho do Oregon apresentou acusações con­
tra James Meltebeke, o dono de um negócio de pinturas naquela
localidade, por convidar seus empregados para ir à igreja, como
também por dizer a um casal que eles estavam vivendo em pecado
e que iriam para o inferno se não se casassem e fossem para a igreja.
O Departamento decidiu que seus comentários criaram um “ambi­
ente de trabalho ameaçador e ultrajante”. De modo inconcebível,
esse órgão definiu que o proselitismo era um ato físico que poderia
ser regulamentado pelo Estado. O testemunho poderia ser proibido,

4Peter M atheson , org., The Third Reich and the Christian churches, Grand
Rapids: Eerdmans, 19 8 1, p. 94-5.
250 A cruz de H itler

se fosse considerado “transgressor de importantes deveres sociais e


subversivo à ordem”. Meltebeke teve de pagar uma multa de três
mil dólares e fixar um letreiro em sua oficina que regulasse a discri­
minação.5
A experiência de Meltebeke poderia se tornar a política-padrão,
se as diretrizes do Equal Employment Opportunity Commission
[Comissão para a Igualdade nas Oportunidades de Emprego] se
tornassem leis federais. Enquanto escrevo, a oposição a essa nova lei
impediu sua aprovação no Congresso. Porém, se a história se repe­
te, seus defensores retornarão quando as condições políticas forem
mais favoráveis. As liberdades serão solapadas, sob o pretexto de
criar um “local de trabalho livre da religiosidade”.
Mesmo agora, os empregadores só podem expressar suas con­
vicções religiosas com “o enorme risco de serem responsabilizados
civilmente e com um potencial prejuízo para os negócios”.6 Al­
guns empregadores, com medo dessas novas diretrizes, não permi­
tirão que sejam entoados cânticos cristãos em suas festas natalinas.
Os símbolos religiosos, como crucifixos ou Bíblias, podem ser de­
clarados ilegais sob essas novas diretrizes. Na verdade, o povo será
orientado a deixar para trás sua crença mais estimada quando for
para o trabalho. Podemos dizer, como os cristãos na Alemanha na­
zista, que o que “se espera é que a igreja definhe até desaparecer”.
Quem quer defender a liberdade é apontado como se quisesse
destruí-la. No artigo intitulado N ew right wrongs \Abusos dos novos
direitos], o rev. Robert Meneilly ataca os extremistas e os religiosos
fanáticos que disseminam “práticas perversas [...] abomináveis perse­
guições [...] crimes de ódio e o caos político”. James Dobson, que foi
especialmente visado por esse ataque, destaca que Meneilly não esta­
va se referindo a militantes da Jih a d islâmica, e tampouco se tratava
de uma alusão a Adolf Hitler, mas aos cristãos que têm a audácia de
falar sobre as grandes questões do nosso tempo.

5Nicholas P. M il l e r , Religion free workplaces?, Liberty, Dec. 1984, p. 12-5.


6Ibíd.
0 encobrim ento da cruz em nações cristãs 251

Meneilly disse que esses cristãos eram uma ameaça maior para a
democracia que a antiga ameaça comunista. Na verdade, ele insis­
tiu que os cristãos não tinham nenhum direito de expressar o que
pensavam sobre questões políticas e sociais. Se mantivessem para si
suas idéias, isso seria aceitável, mas expressá-las é verboten.*7
Na verdade, os planejadores sociais liberais querem que nos ren­
damos, assim como querem que façamos a promessa de fechar a
boca e guardar nossos pontos de vista para nós mesmos. Isso faz
com que lembremos da mulher alemã que estava de pé em meio
aos escombros de sua cidade, já perto do fim da Segunda Guerra
Mundial. Quando um soldado britânico passou por perto, ela dis­
se amargamente: “Nada disso precisava ter acontecido se vocês ti­
vessem se rendido em 1940!”.
Essas atitudes são apoiadas pela mídia amplamente favorável,
que está decidida a transformar os EUA em um Estado secular. Isso
explica o porquê, de acordo com algumas pesquisas, a metade dos
americanos acreditam que a direita religiosa deve ser temida como
a força que tolherá as liberdades dos EUA. O fato de que a suposta
“direita cristã” está apenas tentando manter algumas das liberdades
desfrutadas no passado da nação é ignorado. Os liberais nunca são
rotulados “esquerda liberal radical”, mas são elogiados como guardiões
das liberdades.
O objetivo de nossos novos “guardiões da liberdade” é garantir
que se o cristianismo sobreviver nos EUA, ele será completamente
desprovido de sua singularidade. Trata-se da versão americana do
“cristianismo positivo” de Hider, que é compatível com diversas outras
religiões e pontos de vista morais. Os que crêem que a cruz de Cristo
exige lealdade absoluta, não poderão praticar livremente sua fé. Richard
Neuhaus observa que isso ocorre porque algumas pessoas acreditam
que o Estado deve ser “despojado da religião, e que a religião deve ser
tolerada somente quando estiver hermeticamente selada na esfera

*Proibido (emalemão). (N. do.T.)


7James D obson , Freezing the linebacker, Liberty, Oct. 1 9 9 4 , p. 1 4 -7 .
252 A cruz de H itler

privada da vida”.8 Somente quando os princípios judeu-cristãos


forem arrancados do coração e da mente da cultura ocidental, os
secularistas radicais ficarão satisfeitos.
Nao sabemos onde tudo isso terminará. O que sabemos é que
temos o honroso direito de representar Cristo em meio a essa revi­
ravolta ideológica. Somos desafiados a nos mostrar à altura dessa
hora de incrível oportunidade e contestação.
Então, como podemos manter a primazia da cruz, e ainda viver
nossa fé nesse bazar de opiniões? O que a igreja deveria estar fazen­
do no momento em que tantas forças estão tentando neutralizar
sua influência e limitar sua liberdade?

A CRUZ EXALTADA E APLICADA


Agora é o momento de priorizar nossos esforços, a fim de fazer, do
tempo que nos resta, o máximo de bem para a eternidade. Temos
que impedir, a todo custo, que a influência da igreja “definhe até
desaparecer”. Na prática, ao longo da maior parte de seus dois mil
anos de história, a igreja teve de sofrer por sua fé; embora não te­
nhamos sido alvo de perseguição nos EUA. Confiando em Deus,
podemos encarar o futuro com esperança e alegria. i

As bênçãos e os perigos da união


O apóstolo Paulo ansiava ouvir notícias que lhe assegurassem que os
membros da igreja de Filipos estavam “firmes num só espírito, lutan­
do unânimes pela fé evangélica” (Fp 1.27). A “fé evangélica” se refere às
doutrinas que se baseiam em Cristo e em sua obra por nós. Paulo sabia
que a palavraf é e a palavra luta estavam inseparavelmente unidas.
“Lutar unânimes” pela pureza do Evangelho deve sempre ser
nossa mais alta prioridade. Se o Evangelho é o nosso bem mais
querido, jamais poderemos fazer concessões, ainda que a quantida­
de de cristãos diminua e nossas lutas morais sejam perdidas. Todavia,

8National Federation o f Decency, Aug., 1987, p. 3.


0 encobrim ento da cruz em nações cristãs 253

existe força nos números, mas nao nos números que chegam a di­
minuir a pureza da mensagem do Evangelho. Quando os líderes
cristãos da Alemanha pensaram que a cruz poderia ser usada para
apoiar uma ideologia que reformularia sua nação, o Evangelho foi
perdido.
A uniao entre os crentes na defesa do Evangelho é sempre neces­
sária, principalmente quando existe pressão para cederem. Quando
o sexto sínodo da Igreja Confessante decidiu que ficaria a cargo de
cada pastor escolher se prestaria, ou não, o juramento de lealdade a
Hitler, ele concedeu uma tremenda vitória ao Führer. Indivíduos
isolados, não im porta sua coragem, não p od em ter o m esmo im pacto
d e milhares, ou milhões, d e pessoas unidas.
Existe ainda outro tipo de união que possui seus riscos e vanta­
gens. Há vários anos, os evangélicos cooperam, com uma ampla
gama de grupos religiosos, no combate a flagelos como o aborto, a
pornografia e a imposição de leis especiais a favor dos homossexu­
ais. Eles trabalham juntos na formação de centros para o atendi­
mento de gestações problemáticas e no fornecimento de alimentos
para os famintos. Esse trabalho é elogiável, uma vez que em uma
democracia, nós devemos juntar forças com todos os que apóiam
os valores familiares, independentemente de seus compromissos
religiosos ou da falta deles.
Podemos organizar uma campanha moral, erguer uma bandeira
e trabalhar com qualquer um que respeite isso. Porém, não sejamos
tão ingênuos a ponto de acreditar que essa é a grande esperança para
a Nação. As trevas só podem ser dissipadas pela luz, e a luz nos vem
pela graça do Evangelho de Deus. Não nos esqueçamos jam ais, que a
m aior necessidade do mundo, sempre, é ver Jesus; com preender p o r
que som ente ele p o d e nos reconciliar com Deus.
Mesmo quando nos empenhamos em batalhas políticas e cultu­
rais, o objetivo principal deve ser que o mundo veja Cristo. Sim,
podemos ser gratos por nossas vitórias legais e políticas, mas o que
ganhamos se as pessoas não forem apresentadas ao Salvador que as
reconcilie com Deus? Isso não significa que temos de fazer um sermão
254 A cruz de H itler

sempre que comparecemos à reunião da Associação de Pais e Mes­


tres, ou ajudamos uma jovem grávida a optar pela vida do filho.
Isso, no entanto, significa que devemos nos conduzir de forma a
termos credibilidade quando partilharmos o Evangelho.
E se a escolha tiver de ser entre vencer a “guerra cultural” ou
manter nosso compromisso com o Evangelho puro, deveremos
deixar que nossas batalhas culturais fiquem em segundo plano, a
fim de que a cruz seja ouvida no coração de homens e mulheres.
Logicamente, a escolha nunca é assim tão nítida, mas devemos nos
lembrar que Deus não nos pôs nesta terra para salvar um país espe­
cífico, mas para salvar seus habitantes.
Quando a Inglaterra do século xvill estava em decadência, com
o alcoolismo, com a exploração de menores e com a imoralidade
desenfreada, Deus graciosamente enviou um despertamento espiri­
tual pela pregação de George Whitefield e John Wesley. Alguns
historiadores acreditam que esse avivamento salvou a nação de um
destino similar ao da Revolução Francesa.
Enquanto oramos e aguardamos o avivamento, não há nada me­
lhor a fazer que renovar nossa confiança de que o poder da cruz
pode fazer o que a reforma moral não pode. Lembremo-nos de
que a reentrada dos evangélicos na política é recomendável, mas
nao é a resposta; é somente um meio para obtermos a resposta.
Não importa se os evangélicos atuam como advogados em um
tribunal, ou se são os manifestantes em um ato pró-vida, ou até
mesmo políticos; toda vocação é um meio de testemunhar a graça
salvadora de Deus em Cristo.

Olhando para além de nossos muros


Bonhoeffer argumentava que a igreja era responsável por todos os
homens, até mesmo por quem estava fora de seus muros. Quando
ele viu os judeus sendo perseguidos, viu Cristo sendo perseguido.
Ele acreditava que a igreja tinha a obrigação de “emperrar os raios
da roda”, de modo que o Estado não conseguisse realizar seus atos
0 encobrim ento da cruz em nações cristãs 255

medonhos sem esforço. Mesmo que a igreja perdesse a batalha, era


necessário lutar. Não devemos nos refugiar no silêncio ignominio­
so. “Portanto, enquanto temos oportunidade, façamos o bem a
todos, especialmente aos da família da fé” (G1 6.10).
Quem é Deus para nós, hoje? Com certeza ele é a criança não-
nascida, a criança maltratada, a mãe solteira, as minorias raciais.
Mas para mim, Cristo também é minha esposa, meus filhos e meus
vizinhos. Cada cristão deve determinar como se empenhará em aju­
dar os outros, mas o envolvimento de cada um de nós não é opção.
Se a cruz de Cristo é a maior expressão do amor de Deus para com
o mundo, logo, aqueles de nós que o seguem, também devem de­
monstrar seu amor para com o mundo.
Chegou o momento de os cristãos se tornarem líderes na arte,
na educação, na política e na advocacia. Não cometamos o erro da
igreja alemã, ao isolarmos a esfera espiritual do mundo político,
social e cultural. Bonhoeffer criticou a igreja quando seu único in­
teresse era a autopreservação. Devíamos ser caracterizados pela doa­
ção e não por reter.
Visto que partilhamos este planeta com toda a humanidade,
devemos reassumir a liderança em todas as áreas, nas quais os cris­
tãos, com freqüência, lideraram. Educação, política e área legal —
essas são as áreas nas quais devemos ganhar credibilidade, de forma
que o mundo ouça nossa mensagem. A cruz deveria ser vista em
todos os lugares em que encontramos um cristão.

Patriotismo e desobediência civil


Devemos apoiar nosso governo, mas devemos estar prontos para
criticá-lo ou mesmo desafiá-lo quando necessário. O patriotismo é
louvável, caso tenhamos uma causa justa. Toda nação tem o direito
de se defender; o direito de esperar que o governo faça o melhor
para seus cidadãos. Entretanto, se aprendemos com a igreja alemã
sobre os perigos da obediência cega ao governo, devemos evitar a
estúpida filosofia: “Certo ou errado, o meu país está sempre em
primeiro lugar”.
256 A cruz de Hitler

Nenhuma instituição humana pode tomar o lugar de Deus.


Devemos todos decidir qual é o limite. Será que protestamos con­
tra clínicas de aborto? Os pais devem enviar seus filhos às escolas
públicas, embora aprendam ali como ser imorais? Será que os estu­
dantes cristãos se alinham com o que é “politicamente correto” nas
universidades?
Ainda hoje, é comum escutarmos a expressão: “Ele é um bom
cristão e um bom cidadão”. Por muitas vezes, ao longo da história da
igreja, esses dois elogios não puderam ficar juntos. Nós, assim como
a igreja alemã, ainda teremos de escolher entre os dois.

0 poder das boas obras


Pedro escreveu: “Vivam entre os pagãos de maneira exemplar para
que, mesmo que eles os acusem de praticarem o mal, observem as
boas obras que vocês praticam e glorifiquem a Deus no dia de sua
intervenção” (1 Pe 2.12).
Não há muito que possamos fazer para corrigir a percepção
pública do cristianismo, após ele ter passado pelo crivo da mí­
dia secular. Não podemos fazer nada sobre o fato de nossa ima­
gem ter sido manchada pelos radicais entre nós. O que será que
p od em os fazer? Há apenas uma resposta. Cada cristão deve se
tornar um ativista, assumindo a delicada tarefa de ter uma pos­
tura firme, porém gentil sobre cada questão; e ainda apresentar
a cura espiritual para a sociedade que é afligida pela doença cha­
mada pecado.
O cidadão comum jamais ficará convencido da credibilidade da
fé cristã, até que tenha conhecido pessoalmente alguém que vive
como cristão, aplicando seus valores a todas as situações.
A mensagem da cruz não será recebida, a menos que esteja
envolta pela vida de um crente autêntico. O mundo deve ver nos­
sas “boas obras”, antes de escutar nossas “boas palavras”. Muitos
acreditam que não conhecem pessoalmente alguém que seja um
cristão nascido de novo. Eles não conhecem ninguém que seja pró-
0 encobrim ento da cruz em nações cristãs 257

vida e, mesmo assim, ame mulheres que fizeram abortos. Pen­


sam que jamais encontrarão alguém que se oponha aos valores
homossexuais, mas ainda assim seja capaz de amar os homosse­
xuais. Eles nunca encontraram ninguém que se opusesse ao cur­
rículo não aparente das escolas públicas e, mesmo assim, fosse
uma pessoa que realmente se preocupa com os outros. Na reali­
dade, eles provavelmente conhecem uma pessoa específica, mas
essa pessoa permaneceu em silêncio, por medo de ser considera­
da fanática ou maníaca religiosa.
Lembre-se, o nosso objetivo deve ser sempre o de sermos ouvi­
dos pelos cínicos de nossa época, que acreditam que Deus é
irrelevante para sua vida moderna.

-1 ^-sparação para o conflito


Pedro escreveu: “Antes, santifiquem Cristo como Senhor em seu
coração. Estejam sempre preparados para responder a qualquer pes­
soa que lhes pedir a razão da esperança que há em vocês. Contudo,
façam isso com mansidão e respeito” (IPe 3.15,16).
Todo crente deve ter condições de justificar sua fé; e defender a
supremacia de Cristo sobre todas as alternativas. Não podemos mais
pensar que ser cristão é alguém que vai à igreja, escuta mensagens e
canta hinos — por mais importantes que essas atividades sejam. Os
cristãos devem começar a perceber que todos os argumentos mais
fortes estão do nosso lado.
Devemos ensinar nossos pais, professores, enfermeiras, banquei­
ros e advogados a defender os valores bíblicos. Não devemos nos
envergonhar de mostrar às pessoas que nem todo mundo se con­
vence dos valores relativistas de nossa cultura em decomposição.
Os cristãos devem trabalhar em equipe para superar a percepção
que o mundo possui de que a Bíblia é um artigo de fé somente para
quem o Washington Post descreve como “pobre, sem cultura e
influenciável”.
258 A cruz de H itler

A cruz nos faz lembrar que a batalha


não é tanto entre a igreja e o Estado,
mas dentro do nosso coração.

Muitas nações vivem enfurecidas pela dor emocional causada


pela dissolução do lar; enfurecidas por causa dos crimes, pela deslealda­
de observada nos políticos e enfurecidas também porque cada lado
da guerra cultural considera o outro lado o inimigo de tudo o que
a nação deveria defender.
Devemos curar em vez de ferir; precisamos unir em vez de divi­
dir. Devemos dar o exemplo de reconciliação em nossas igrejas, de
modo que o mundo possa ver a aparência da comunidade redimida.
Devemos defender não a nós mesmos, mas o Evangelho: sem reta­
liações, sem ameaças e sem autopiedade; apenas com perseverança,
com paciência e com amor.

Humildade e pureza
Devemos perceber que nossa eficácia pública é amplamente funda­
mentada em nosso relacionamento particular com Deus. A igreja
participa de muitos dos pecados do mundo. Nossa paixão por Deus
é sufocada e a nossa visão é deformada. Cristo disse: “Bem-aventura­
dos os puros de coração, pois verão a Deus” (Mt 5.8).
Quando chegamos aos pés da cruz, é ali que somos finalmente
quebrantados; é ali que aprendemos a alcançar nosso mundo con­
fuso e magoado. A cruz põe por terra as barreiras entre nós e toda a
raça humana. Assim, já não nos veremos lutando contra os que
querem acabar com a influência do cristianismo na sociedade, a
mídia ou os políticos. Devemos nos livrar da mentalidade que diz:
“Se eliminarmos todos eles, tudo ficará bem”. Não é assim. Como
Os Guinness disse, o problema com essa visão é
que não há nenhum problema com a cultura em geral que
você não possa observar em escala ainda maior na igreja crista.
0 encobrim ento da cruz em nações cristãs 259

A podridão está em nós, e não do lado de fora. E os cristãos


estão cometendo grandes erros ao transformar tudo em guer­
ras culturais. Trata-se de uma crise muito mais profunda.9
Por fim, chegamos ao cerne da questão: a cruz nos faz lembrar
que a batalha não é tanto entre a igreja e o Estado, mas dentro de
nosso coração. Se Cristo possuir a todos nós, e se a cruz estiver acim a
da p olítica e do mundo, com o B onhoeffer nos lembrou, nós vencere­
mos, seja qual fo r o custo.
Como cristãos, podemos aceitar ataques à nossa liberdade, mas
só se virmos esse conflito como oportunidade de apresentar o au­
têntico testemunho de Cristo. Sem banalizar o enorme horror que
ocorreu na Alemanha, fica claro que, sem esse sofrimento, jamais
teríamos ouvido falar de N iemõller, ou de Bohnoeffer, ou de Corrie
ten Boom, cuja família escondeu judeus com grande risco pessoal, e
que descobriu que “não há um poço tão profundo, pois a graça de
Deus é ainda mais profunda”.
Nem teríamos lido sobre os milhares de pastores, mães e pais,
todos muito corajosos, que mantiveram a vida deles em Deus a um
grande custo pessoal, e sem qualquer compensação visível nesta vida.
Sem o sofrimento, Deus não teria visto a fé que eles demonstra­
ram, que é para ele “mais preciosa do que o ouro”.
E no conflito final, quando as cortinas caírem sobre o ato derra­
deiro de o Crepúsculo dos deuses na terra, Cristo fará o acerto de
contas. Os que foram fiéis a ele e à sua cruz serão recompensados
com “alegria indizível e gloriosa”. Todas as cruzes rivais serão expos­
tas e julgadas, e todo joelho se dobrará e toda língua confessará que
“Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai” (Fp 2.11).
Até lá, Deus é glorificado na nossa constância. Se sofrermos fielmen­
te, a cruz será exaltada no mundo. Bonhoeffer estava certo quando disse
que “é diante desta cruz, e não diante de nós, que o mundo treme”.

Soli Deo gloria!

9Apud Religion & politics: a round table discussion, Modem Reformation,


Sept./ Oct., 1994, p. 25.

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